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DIREITO PENAL DA LOUCURA: O

INTERNAMENTO COMPULSIVO NO
ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS,
À LUZ DA LEI DA SAÚDE MENTAL
Criminal Law of madness: compulsory admission and
involuntary treatment of mentally ill patients in Portuguese
Legal System under the Mental Health Law

Vanessa Pelerigo*
1

Palavras-Chave: Saúde Mental – Internamento Compulsivo – Psiquiatria – Lei de Saúde Mental –


Doente Mental – Anomalia Psíquica
Resumo: O presente arƟgo aborda a temáƟca do internamento compulsivo, em Portugal,
à luz da Lei de Saúde Mental, e discute se a decisão de internamento é um juízo
meramente clínico.

Keywords: Mental Health – Compulsory Admission and Involuntary Treatment of Mentally Ill
PaƟents - Psychiatry – Mental Health Law – Mentally Ill - Insanity
Abstract: This paper addresses the issue of the compulsory admission and involuntary
treatment of mentally ill paƟents in portuguese legal system under the Mental
Health Law and discusses whether the inpaƟent care determining is a purely clinical
judgment.

Minha loucura, outros que me a tomem


Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
¥›ÙÄƒÄ—Ê Ö›ÝÝʃ

* Doutoranda em Ciências Jurídico-Criminais (FDUL). Assessora Jurídica. Professora Auxiliar Con-


vidada (ISCSP).

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Introdução*

Direito e Psiquiatria estão interligados umbilicalmente, mas nem sempre o esƟveram


de forma pacífica1. As perturbações psíquicas são anomalias que se reflectem no compor-
tamento humano, alterando-o. Mas, haverá certezas no próprio pensamento médico-cien-
ơfico? Como podemos colmatar o desconhecimento ou a afirmação da própria ignorância
num determinado estágio temporal? É que no caso do Direito, objecƟvamente, mesmo onde
haja lugar a dúvida, tem de se encontrar imperaƟvamente uma resposta, uma certeza nor-
maƟva – porque o julgador não se pode defender com o non liquet. E, assim, qualquer legis-
lação, por maior que tenha sido a reflexão e ponderação, não tem, tal como na medicina,
direito a subterfúgio2. Nas palavras de Vieira de Andrade: “nem sempre é fácil determinar
a existência de uma tal enfermidade: designadamente, é indeterminável (indefinível e indi-
zível) a fronteira entre a anomalia psíquica e a idiossincracia, a diferença, a originalidade,
a peculiaridade, a extravagância, a excentricidade ou bizarria, a extraordinariedade e até a
genialidade” (Andrade, V., 2000, p. 78).
Assim, se por um lado, os psiquiatras (e os médicos, na generalidade) tendem a achar
que os juristas são demasiado rígidos e redutores, pois propendem a circunscrever tudo a
um modelo racional organizado – o que poderá prejudicar a compreensão do ser humano
na sua essência –, já os juristas esperam, daqueles, um absoluto rigor técnico-cienơfico que
não deixe, ou deixe pouca, margem para dúvidas. Procuram-se verdades inquesƟonáveis, o
que naturalmente não é possível quando estamos num campo aberto ao desenvolvimento e
progressão epistemológica3. A percepção social da doença mental sempre esteve arraigada
de um preconceito que, talvez, ainda hoje persista: o de que doença mental e violência são
indissociáveis. Factor este que foi alimentado pelos psiquiatras do século XIX. No entanto,
se é certo que a violência pode surgir em todos os casos psiquiátricos, menos verdade não é
que pode não surgir em nenhum. Trata-se de um esƟgma com um peso considerável.

*
Por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico.
1 Assim: «Fernandes da Fonseca (1987) admite mesmo que o Direito Romano pode ter sido
o primeiro a estabelecer normas jurídicas relativamente ao comportamento dos cidadãos, ao
reconhecer os seus atributos de uma consciência moral e de uma responsabilidade»., AA.VV
(2009), p. 185; Mais desenvolvidamente, ANTÓNIO DOS REIS (2000), p. 114: «Esta aliança entre
a psiquiatria e os penalistas foi responsável pela noção dos estigmas patológicos que levavam à
loucura perigosa, dando guarida às teses penalistas em que a responsabilidade atinge não só os
actos cometidos, mas também o indivíduo e as suas características psicológicas que representassem
provável perigo social».
2 Diz CUNHA RODRIGUES (2000), p. 51: «As dificuldades suscitadas pela relação entre a pessoa
afectada por doença mental e a sociedade convocam-nos, assim, para áreas de problematização
que têm por epicentro a liberdade e onde, não obstante o progresso epistemológico verificado nos
vários ramos das ciências, subsistem extensas manchas de equívoco e de indefinição (...) mas é
necessário que a comunidade científica não desperdice a oportunidade para revisitar alguns lugares
de sombra e obscuridade».
3 A propósito das dificuldades no cruzamento entre Direito e Medicina, LUÍS GAMITO (2004), p.
12: «...onde a medicina sempre tem encontrado obstáculo no discernimento entre o normal e o
patológico. Propiciando assim, ao Direito um papel de desconforto nas expressões denominativas
a encontrar para a caracterização de fenómenos, chegando a resultados nem sempre consensuais
e, por vezes, esteticamente singulares».

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Na grande maioria das obras de Michel Foucault, sobretudo em A hermenêuƟca do


sujeito e História da Loucura, há a percepção de que a aƟtude da comunidade e da socie-
dade, em geral, para com os loucos não se alterou com o decorrer do tempo, o que desde
logo nos alerta para a necessidade premente de compreender a doença mental e a essência
do ser humano. O louco não consegue o “cuidado de si”. Foucault traça um caminho que nos
permite indagar a importância da interpretação de si mesmo, dos outros e do mundo e o
peso que isso tem no processo de consƟtuição da sua existência éƟca, com vista à transfor-
mação nunca acabada do sujeito. A razão será a negação da loucura4.
Os loucos, como os homossexuais, os leprosos, os judeus, são excluídos da sociedade, de
modo a não perturbarem a ordem social. O louco é banido por ser um ser ausente de razão.
A doença mental é um desvio. Embora a exclusão social se tenha vindo a manter quase até
aos dias de hoje, a verdade é que a própria percepção da loucura se vai alterando.
O louco é visto, então, como um ser para além da razão, violento, e confinado a asilos,
de modo a que os homens ditos “normais” dele se disƟngam e o afastem da sociedade, pro-
tegendo-a. Só mais tarde, o louco passou a ser encarado como doente, dotado de um real
estatuto cienơfico, terapêuƟco e jurídico. O louco, o doente mental, passa assim a enqua-
drar-se num quadro razoável e compreensível, ou seja, na razão médica.
O louco é, desde modo, subjugado a uma relação de poder estabelecida com o médico,
detentor exclusivo do saber cienơfico. A experiência da loucura é entendida, agora, como
uma alteração das faculdades cogniƟvas e como uma alienação da verdadeira essência da
pessoa. A dimensão real do homem não pode ser dissociada da sua existência. Todavia,
importa sublinhar que é a sua patologia a responsável pelo seu afastamento5.
Podemos afirmar que só após a Revolução Francesa, se altera um paradigma e se inicia
uma sistemaƟzação de direitos e garanƟas do doente mental. Nasce assim uma verdadeira
psiquiatria forense.

4 Também a propósito da abordagem de Foucault, vide CUNHA RODRIGUES (2000), p. 21: «A


loucura fez parte, até muito recentemente, de uma ordem de infra-humanidade. Na Idade Média,
o estatuto da loucura tocava a transcendência mas era, apesar de tudo, aceitável. A família e a
colectividade eram moral e juridicamente responsáveis pelos seus loucos. Só os furiosos eram
encarcerados. Na Renascença, a loucura ainda é analisada segundo o ângulo da transcendência:
instala-se nos confins do mundo, do homem e da morte como figura escatológica. Se é verdade
que, com Erasmo, o humanismo, entrou, cada vez mais, no discurso da loucura, a sua carga de
tragédia aparece em Bosch ou Brueghel e subsiste, no imaginário colectivo, como uma espécie
de nave, em que rostos distorcidos pela angústia e pelo terror retratam “paisagens que falam da
estranha alquimia entre os saberes, as surfas ameaças de bestialidade e o fim dos tempos”. A
institucionalização do internamento data do século XVII. Os insensatos, os homossexuais, as
“viúvas que se casam tolamente” ou os filhos-família que querem contrair um “casamento vil”,
os pobres e os vagabundos são internados em prisões e hospitais. A loucura é assimilada ao crime
e retribuída como castigo. O conceito de protecção social não existe, só tendo relevo a honra da
família, a segurança e a defesa dos bens. O cartesianismo obriga a razão a proteger-se do erro e
da ilusão e a não ceder à loucura. O homem pode ser louco, o pensamento não».
5 Nesse sentido, FOUCAULT (2005), p. 131, dá conta do reconhecimento da loucura como “realidade
patológica” no séc. XIX, cabendo a este século a definição da boa e da má loucura.

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Com Pinel e Esquirol6, a psiquiatria forense assenta em três pilares fundamentais,


a saber: a defesa da segurança pública contra um possível comportamento agressivo do
doente, a própria defesa do doente em casos de auto-agressão e o tratamento da própria
doença que despoletou todas as reacções adversas. Será Esquirol o autor e responsável pela
Lei da Reforma Hospitalar, de 1838, que se alicerçará em dois pressupostos essenciais: por
um lado, a protecção da própria sociedade; por outro, a defesa dos direitos inalienáveis do
cidadão, cujo comportamento só deveria relevar se fosse consciente, lúcido e a expressão
integral da sua vontade.
Começa a haver um interesse cada vez maior por parte dos psiquiatras do fim do século
XIX e início do século XX pelos estudos da Psiquiatria Forense, estudos que em Portugal
aƟngiram um grande relevo com grandes vultos, nomeadamente: Júlio de Matos, Miguel
Bombarda, Sobral Cid, Barahona Fernandes e Pedro Polónio. Desde logo, porque a psiquia-
tria tem sofrido alterações de fundo ao longo da evolução do tempo, sobretudo porque na
doença psíquica predominam, na maioria das vezes, os aspectos subjecƟvos.
Iremos restringir a nossa abordagem à concepção do doente mental que nos é dada
pela Lei de Saúde Mental, em Portugal, e ao regime do internamento compulsivo.
O tema que se pretende abordar alude à decisão de internamento compulsivo em insƟ-
tuição médica de natureza psiquiátrica, adstrita a determinadas condições, nomeadamente
a de ser portador de grave anomalia psíquica.
O conceito de anomalia psíquica é demasiado vago e abrangente. Os juristas entendem-
-no como clínico e os médicos como jurídico. Como delimitá-lo? Ou a delimitação impede a
adaptação do mesmo à evolução da psiquiatria?
Pretendemos responder à questão de saber se dada a existência de uma anomalia psí-
quica, eventualmente grave, mesmo que tenha posto em perigo bens jurídicos, e não tendo
sido demonstrado o nexo de causalidade entre aquela e a criação do perigo, e havendo
recusa voluntária e assumida de tratamento, deve haver lugar a internamento compulsivo.
Será um juízo meramente clínico?

I. A Lei de Saúde Mental (Lei 36/98, de 24 de Julho)

Dita a CRP que “[n]inguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não
ser em consequência de sentença judicial condenatória pela práƟca de acto punido por lei
com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança” (arƟgo 27º)7. Quando,
em 1997, a Assembleia da República procedeu à revisão da CRP, abriu caminho à possi-

6 Esquirol é autor da Lei de Reforma Hospitalar em 30 de Junho de 1838 (e que esteve em vigor
até 27 Junho de 1990). Esta lei regulamentou a situação médico-jurídica na maioria dos países
ocidentais, diferenciando doentes mentais graves e criminosos. Criou um verdadeiro estatuto
jurídico para os doentes mentais.
7 Segundo MARIA JOÃO ANTUNES (2002) :«O Direito Penal saído do Século das Luzes é um direito
que assenta no princípio da responsabilidade moral e tem como destinatário o cidadão livre e
senhor dos seus actos da Declaração dos Direitos do Homem de 1789, assim se compreendendo
que o cidadão com tais anomalias seja um estranho para a justiça penal e que só aquele que, contra
a vontade geral expressa na lei, escolheu livremente a via do crime seja sancionado através da
aplicação de uma pena necessariamente ligada à culpa».

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bilidade de internamento de doentes portadores de doenças mentais, sem o seu consen-


Ɵmento, através do aditamento das excepções da privação da liberdade consagradas no
arƟgo 27º8.
Esta modificação veio desbravar caminho até à nova publicação da Lei de Saúde Mental,
de 24 de Julho de 19989. Em vigor desde 1999, é composta por dois capítulos: o primeiro
enuncia os objecƟvos da lei – a protecção e a promoção da saúde mental –, os princípios
gerais de políƟca, a criação do Conselho Nacional de Saúde Mental e os direitos e os deveres
do utente. O segundo capítulo regulamenta o internamento compulsivo10.
A Lei de Saúde Mental veio consagrar, antes de mais, o início de um diálogo sério entre
médicos e juristas, com ganhos e inputs de formação para ambos os grupos, permiƟndo
que a própria comunidade possa disso Ɵrar vantagem. Pretendeu-se, assim, acompanhar a
evolução da psiquiatria e da saúde mental e de novos princípios jurídicos.
A própria concepção sobre a doença mental e o papel do internamento teve uma evo-
lução notória. Primeiramente, com a reconceptualização da doença mental, com a teoria da
psiquiatria comunitária11 e, em segundo lugar, através da defesa dos direitos do homem,
com uma série de princípios de natureza jurídica e oganizacional e do movimento da bioé-
Ɵca. A isto acresceu o desenvolvimento da psicofarmacologia12.
O texto da actual Lei de Saúde Mental13 subsƟtui a Lei nº 2118, de 3 de Abril de 1963,
onde vinham plasmados os princípios gerais da políƟca de saúde mental e era regulado o

8 Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei
determinar, nos casos seguintes: «(...) h) Internamento de portador de anomalia psíquica
em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial
competente».
9 Posteriormente complementada pelo Decreto-Lei 35/99 e mais recentemente por todos os
documentos produzidos na sequência do Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016.
10 Até aí, esta prática era regulamentada pela Lei n. .º 2118, de 1963, a qual, ainda que considerada
muito avançada para a época, se tornou desadequada após a publicação da Constituição da
República, em 1976. Desde logo, por dificuldades de compatibilização, ainda que se pudesse
entender o reconhecimento da necessidade de uma intervenção judicial prévia.
11 Caracterizada pela desinstitucionalização e pela tentativa de implementação de serviços próximos
da comunidade, de modo a evitar a estigmatização do recurso a hospitais psiquiátricos.
12 Sobretudo com a evolução dos tranquilizantes.
13 A própria denominação da lei é questionada por vários autores. Veja-se CUNHA RODRIGUES
(2000), p. 40: «O que, em rigor, parece questionável é a denominação da lei como “Lei de Saúde
Metal”, pela ambição que sugere, pois os princípios ligam-se mais à definição dos modelos de
protecção e de tutela que a alternativas médicas, sanitárias ou sociais. Em resumo, é um diploma
que consagra e regulamenta princípios de protecção e tutela de pessoas afectadas por anomalia
psíquica, designadamente doença mental. O diploma ordena separadamente os direitos e deveres
do internando e do internado, de molde a assegurar meios de defesa da liberdade e de manutenção
dos direitos cívicos consentâneos com o internamento»; No mesmo sentido, ADRIANO VAZ SERRA
(2000), pp. 55 e 56: «O seu verdadeiro nome deveria ser “Lei do Internamento Compulsivo”,
pois a maior parte do seu articulado é deste facto que trata. É uma lei de aplicação muito restrita,
que abrange e diz respeito a um escasso número de pessoas».; E, ainda, VIEIRA DE ANDRADE
(2000), pp. 80 e 81: «a lei pretende ser a lei da saúde mental, que regula com alguma densidade
o internamento compulsivo, porque se trata de uma matéria de reserva legislativa (de direitos
fundamentais) em que se exige um grau elevado de concretização, e que se limita a estabelecer
os princípios gerais da política de saúde mental, porque é assim, apenas através de princípios, que

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tratamento e internamento compulsivo de doentes mentais. Aquela resulta de dois grupos


de trabalho: um dos quais nomeado pelo Despacho conjunto dos Ministros da JusƟça e da
Saúde, nº 7/96, de 23 de Agosto, publicado no DR IIS, de 9 de Setembro de 1996 e o outro
nomeado pelo Despacho da Ministra da Saúde, de 8 de Outubro de 199614.
Desde logo, estamos face ao perigo de se alargar a aplicação da lei de tal forma que se
possa privar da liberdade quem não oferece um real perigo (para si próprio e para os outros)
ou que simplesmente padeça de uma anomalia psíquica pouco grave. Assim, tornou-se pre-
mente que ficassem definidas as situações em que é lícito e admissível o internamento com-
pulsivo, revesƟndo todas estas possibilidades com as garanƟas necessárias15. Neste senƟdo,
a lei veio suprimir uma lacuna, optando pelo modelo judiciário, em preterição do modelo
terapêuƟco.
Deste modo, prevê-se o internamento compulsivo de doentes com anomalia psíquica
grave, visando a protecção da pessoa com doença mental, pela sua sujeição, sem que haja
consenƟmento à terapêuƟca clínica-psiquiátrica.
O não tratamento resultará num perigo real para bens de natureza pessoal ou patri-
monial, do próprio doente ou, eventualmente, de terceiros. Trata-se, desde modo, de uma
excepção ao princípio de que os tratamentos médicos carecem, sob pena de serem con-
siderados arbitrários, de consenƟmento livre e esclarecido do paciente, restringindo-se,
desta forma, o direito fundamental dos cidadãos à liberdade, uma vez que os doentes não
possuem o discernimento necessário ou a capacidade para avaliar o senƟdo e o alcance do
consenƟmento e quando a ausência desse mesmo tratamento deteriore o seu estado16.
Ao consagrar os princípios da necessidade e da proporcionalidade no que ao interna-
mento compulsivo diz respeito, a lei assegura o respeito integral pelos direitos, liberdades e
garanƟas individuais. Esta parece ser uma solução cautelosa, delimitando o internamento,
em função da criação de um perigo que tem por referência bens jurídicos protegidos e con-
cretamente individualizados. De referir, no entanto, apesar da lei se munir de critérios e

o legislador deve intervir normativamente no plano da definição política. Não se tratará então de
uma regulação deficiente da política de saúde mental, mas da assunção pela legislador de uma
ideia de autocontenção normativa, pelo que esta será uma “lei da saúde mental”, tanto quanto é
uma “lei do internamento compulsivo”.
14 Com base nos relatórios dos grupos de trabalho, o governo apresentou à Assembleia da República
a Proposta de Lei n.º 121/VII, cuja discussão na generalidade está publicada no Diário da
República I Série, n.º 47, de 12 de Março de 1998. Os relatórios e pareceres da Comissão de
Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e da Comissão de Saúde, encontram-se
publicados no DR, II S, n.º 36, de 12 de Março de 1998.
15 Nesse mesmo sentido, DUARTE NUNO VIEIRA e GUILHERME DE OLIVEIRA (2000), p.5: «Esta lei
fez uma opção quanto ao melindroso problema de saber se se pode internar compulsivamente
um indivíduo que, apesar de exibir sintomas manifestos de uma anomalia psíquica grave, nunca
praticou um “acto punido por lei” e, assim não foi por esse facto julgado e condenado».
16 ADRIANO VAZ SERRA (2000), p. 57: «Estas circunstâncias ocorrem, na prática clínica, usualmente
em duas situações distintas. Uma delas, quando o indivíduo perde a crítica da realidade, como
pode acontecer num surto de Mania ou Esquizofrenia. Outra, quando determinado comportamento
compulsivo, sem controlo adequado, faz correr riscos ao próprio ou aos outros, ou tem como
consequência a delapidação de bens. Podem ser aqui incluídos certos Transtornos de Controlo
de Impulso».

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mecanismos próprios do Direito Penal e do Direito Processual Penal17, neste caso do inter-
namento compulsivo está a fazer valer-se do Direito AdministraƟvo, pois estamos perante
uma medida administraƟva, revesƟda de um princípio de judicialidade.
Face ao que acabámos de expor torna-se necessário fazer uma pequena ressalva no
senƟdo de compreendermos as diferenças entre os procedimentos da Lei de Saúde Men-
tal e os do Código Penal quanto ao tratamento jurídico do portador de anomalia psíquica.
Assim, enquanto a Lei de Saúde Mental é orientada, em grande parte, para a regulamen-
tação do internamento compulsivo (com uma finalidade sobretudo terapêuƟca), o Código
Penal define os pressupostos da inimputabilidade e do respecƟvo internamento, mas num
contexto pós-delitual e com finalidade de aplicação da sanção penal.
Desde logo, a Lei de Saúde Mental não estabelece como pressuposto da sua interven-
ção a práƟca de um qualquer facto ilícito ơpico pelo portador de anomalia psíquica, não se
confundindo, por isso, com as medidas de segurança criminais. Não é, assim, necessária a
práƟca de um facto ơpico e ilícito, qualificado pela lei penal como crime18. A dispensa desta
exigência é indicadora do escopo da Lei de Saúde Mental, o qual não passará pela prevenção
da ocorrência de factos ơpicos ilícitos, mas sim pela possibilidade de assegurar ao doente
o tratamento necessário, evitando assim pôr em risco bens jurídicos (seus e alheios). Esta
conclusão convoca o seguinte problema: se o propósito da intervenção é eminentemente
curaƟva, porque será o perigo um pressuposto daquela? Note-se que o Internamento Com-
pulsivo tem de ser concreƟzado nos termos no nº 2 do arƟgo 8º, em função do grau de
perigo e do bem jurídico em causa. Uma interpretação orientada para a asserção do escopo
da norma revela que a perigosidade deve ser analisada e verificada concretamente e não de
forma genérica. O perigo será, assim, uma condição apenas para a legiƟmidade da interven-
ção estatal. Pretende-se que o tribunal compreenda se o sujeito padece de uma anomalia
psíquica grave e se, através da consideração de determinados factos segundo um juízo de
perigosidade, é sustentada a conclusão de que o doente representa um perigo para bens
jurídicos importantes, próprios ou de terceiros.
No que diz respeito à medida de segurança de internamento de portador de anomalia
psíquica, esta encontra-se regulamentada nos arƟgos 91º e seguintes do Código Penal. É
necessária, para a sua aplicação, a verificação de dois pressupostos: o facto praƟcado seja
um facto ilícito ơpico, por alguém considerado inimputável, nos termos do arƟgo 20º e que

17 ANTÓNIO LEONES DANTAS (1998), p. 59: «O recurso ao sistema jurídico penal, na parte em que
enquadra estas medidas permitiu estender ao internamento compulsivo aspectos fundamentais do
regime de garantias construído no direito penal para aquelas medidas. O que está em causa com
esse recurso é a utilização daquele sistema de garantias para a protecção do doente e não para
confundir com um qualquer arguido de um processo penal».
18 No mesmo sentido, CUNHA RODRIGUES (2000), p.45: «(...) é evidente que não se exige uma
perigosidade especificamente criminal, no sentido da possibilidade da prática de factos ilícitos
típicos. Mas a Lei fala em “bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza
pessoal ou patrimonial”, o que significa que há-de tratar-se de bens protegidos pelo direito e, ainda
aqui, de “relevante valor”. Não basta um juízo vago ou abstracto de “perigosidade social”, com o
que fica definitivamente arredada a aplicação de critérios baseados em princípios morais, em usos
ou em conceitos ou estereótipos de ordem ou de desvio e, ainda mais, a cedência a concepções
estéticas, de higiene social ou de honra familiar que historicamente justificaram e estimularam a
ocultação da loucura».

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por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praƟcado, houver fundado receio
de que venha a cometer outros factos da mesma espécie19.
Ainda assim, não basta que exista doença mental, pois ela, per si, não dá lugar à inimpu-
tabilidade, sendo ainda necessário que se prove que é a doença mental que torna o agente
incapaz de avaliar o seu comportamento face ao ilícito.
Regressemos à Lei de Saúde Mental. O arƟgo 1º define o objecto da lei, estabelecendo
os princípios gerais de políƟca e de saúde mental e regulando o internamento compulsivo. É
notória a relevância, face ao número crescente de pessoas com problemas de saúde mental,
da necessidade de protecção, no âmbito das políƟcas de saúde, num modelo comunitário (a
contrapôr ao tradicional)20.
Os próprios direitos e deveres dos doentes mentais reflectem uma nova relação entre
o doente e o médico, convocando a problemáƟca do consenƟmento informado, do mero
direito à informação ou do direito à protecção da saúde.
Numa escala gradaƟva, apresenta-se, em primeiro lugar, o princípio da necessidade de
consenƟmento, seguido do consenƟmento informado21 e, como excepção, a intervenção
sem consenƟmento, a qual se jusƟfica quando, por força do problema psiquiátrico de que
padece, o doente perca a capacidade de compreender22.

19 Concluindo, MENEZES LEITÃO (2005), p. 132: «Daqui resulta que a medida de internamento
compulsivo tem pressupostos bastante mais latos do que aqueles que resultariam de uma medida
de segurança, dado que esta é avaliada em função da prática anterior de factos ilícitos tipificados
como crimes, enquanto a medida de internamento compulsivo tem apenas como pressuposto
uma situação de potencial perigosidade, ou até pode prescindir dela, bastando-se com os danos
causados ao doente com a ausência de tratamento».
20 Nesse sentido, HELDER ROQUE (2000), p.124: «...a Nova Lei de Saúde Mental assenta numa
concepção de cidadão passível de ser sujeito a internamento compulsivo, como de um ser afectado
na sua capacidade de avaliação e decisão, em face do qual a sociedade legitima a imposição de
restrições aos seus direitos fundamentais. Porém (...) os seus destinatários são cidadãos doentes,
carecidos de tratamento, e não, propriamente, autores de factos ilícitos penais típicos, pelo que
qualquer reacção social contra os mesmos pode correr o risco de ser inoportuna, desadequada
ou desenquadrada. É que o conceito de anomalia psíquica pressuposto pela nova Lei é o de um
estado de perturbação de consciência ou de perturbação do equilíbrio psíquico, relativamente a
um padrão de cidadão considerado normal, mas susceptível de tratamento adequado».
21 Embora possa haver situações de consentimento presumido a contrastar com o consentimento
efectivo expresso.
22 Nesse sentido, ANTÓNIO JOÃO LATAS e FERNANDO VIEIRA (2004), p. 36: «O legislador de saúde
mental deixa bem claro o entendimento de que a existência de patologia psiquiátrica só por si
não implica ausência da capacidade de entender ou decidir, reconhecendo para o doente utente
dos serviços de saúde mental, em termos idênticos aos dos restantes doentes, o abandono do
modelo paternalista e o respeito pela sua vontade, mostrando-se, assim, em sintonia com os
instrumentos jurídicos internacionais aludidos e, designadamente, com a CDHB»; pp. 45 e 46: «a
lei privilegia agora a perspectiva gradativa e casuística, segundo a qual são reconhecidos diversos
graus à capacidade de decidir, cabendo ao médico a sua identificação em cada caso, relacionando
a capacidade de decidir com as particularidades do acto médico e a maior ou menor exigência
imposta pelo mesmo».

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II. O Internamento Compulsivo

O Internamento Compulsivo, isto é, não voluntário, consƟtui, ainda que para fins tera-
pêuƟcos, uma restrição à liberdade individual, a qual pode revesƟr, tendo em conta o con-
texto de doença mental, uma agravação da vulnerabilidade e exposição do doente, pelo que
a jusƟficação dessa privação de liberdade só se poderá fundamentar na prevenção do dano
para si próprio e para os outros23.
As condições de aplicação do Internamento Compulsivo encontram-se no Capítulo
II, todo ele dedicado ao Internamento Compulsivo, definindo-se, logo no arƟgo 6º, o seu
âmbito de aplicação. Este é, efecƟvamente, o capítulo mais significaƟvo da Lei da Saúde
Mental, onde se prevê e se regulamenta o regime do internamento compulsivo.
Detalhadamente, a Lei da Saúde Mental admite dois regimes de Internamento Compul-
sivo: o internamento compulsivo normal (arƟgo 12º e ss.) e o internamento compulsivo de
urgência (arƟgo 22º e ss.). Desde logo, o Internamento Compulsivo tem como pressupostos:

– que o portador de anomalia psíquica grave crie, por força dela, uma situação de
perigo para bens jurídicos e se recuse submeter ao tratamento necessário;
– que o portador de anomalia psíquica grave não possua o discernimento necessário
para sequer compreender o alcance do consenƟmento e quando a ausência de trata-
mento deteriorar o seu estado.

Neste caso, “o internado é apresentado de imediato no estabelecimento com urgência


psiquiátrica mais próximo do local em que se iniciou a condução, onde é submeƟdo a avalia-
ção clínico-psiquiátrica com registo clínico e lhe é prestada a assistência médica necessária”
(vide arƟgo 24º).
Não obstante, exige-se que a situação de perigo para bens jurídicos, próprios ou alheios,
de natureza pessoal ou patrimonial, coloque em causa bens jurídicos de relevante valor.
Impõe-se, ainda, a verificação de um nexo de causalidade entre a gravidade da anomalia
psíquica e a situação de perigo para os referidos bens jurídicos, dada a mulƟplicidade de
factores que podem dar lugar a situações de perigo.
O perigo tem de ser concreto e actual, ou seja, não basta haver a suscepƟbilidade, a
potencialidade, de ocorrer uma situação de perigo, exigindo-se a existência de uma situação
de perigo efecƟva.24.
Antes da análise do Internamento Compulsivo, impõem-se ainda algumas considera-
ções sobre a noção de anomalia psíquica, a qual tem sido alvo de algumas críƟcas por parte
de alguns autores. Sobre aquela noção usa a lei expressões bastante diferentes do ponto de
vista literal. A ơtulo de exemplo, note-se como o arƟgo 1º fala em “portadores de anomalia

23 M. SIMÕES DE ALMEIDA (2011), pp. 103 e 104: «Reconhece-se que estes doentes não podem gozar
de todos os direitos fundamentais da mesma maneira que a generalidade das pessoas, pois que
a sua situação justifica e impõe restrições ou limitações especiais. Contudo, estas restrições ou
limitações têm que ser adequadas e na medida estritamente necessária ao fim a que se destinam.
Além disso, é necessário que não sejam desproporcionadas ou desproporcionais, ponderando o
custo da limitação com o benefício desse modo alcançado para os direitos dos outros ou para os
valores comunitários envolvidos».
24 Nesse sentido, ANTÓNIO LEONES DANTAS (1998), p. 56.

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psíquica, designadamente de pessoas com doença mental”, por oposição à mera referência
a “anomalia psíquica” em todo o capítulo relaƟvo ao Internamento Compulsivo. No entanto,
a doutrina sobre as questões de inimputabilidade25 assenta numa noção de anomalia psí-
quica aberta à evolução do próprio conhecimento cienơfico, até porque se trata de um con-
ceito mais abrangente que “doença mental”26. A designação surge em todo o ordenamento
jurídico português27. Ainda assim, aquele conceito vago, mas abrangente, coloca dúvidas a
juristas e a médicos. Os juristas dizem ser um conceito clínico28. Os médicos dizem ser um
conceito jurídico. Seja qual for a sua génese, parece-nos que a uƟlização deste conceito é
profundamente úƟl, uma vez que permite englobar toda e qualquer alteração que nasça
de uma perturbação do funcionamento psíquico e que requeira, por isso, um tratamento
médico-psiquiátrico. Isto é, abarca um leque extenso de psicopatologias, adaptando-se à
evolução da Psiquiatria.
Se do ponto de vista teórico parece a solução adequada, a verdade é que coloca alguns
problemas aos profissionais de saúde, uma vez que a estes – e apenas a estes – caberá a
verificação, caso a caso, da existência de “anomalia psíquica”. Será, assim, um juízo mera-
mente clínico. Não há aqui uma enumeração de que diagnósƟcos estarão incluídos29 nesta
categoria, o que em alguns casos poderá ser uma fonte de dificuldades30. Como vemos, as
fronteiras não são fáceis de definir.

25 Assim, CUNHA RODRIGUES (2000), p. 43: «O quadro de perturbações da vida mental que Eduardo
Correia enumerou, a este propósito, incluía as doenças mentais, as personalidades anormais
e ainda certas perturbações singulares, traduzidas em tendências e reacções psicopáticas, as
perturbações de consciência e as neuroses. Esta enunciação visava apurar o critério determinante
da imputabilidade, aproveitando a ideia de Mezger, e associava elementos descritivos a elementos
normativos ou valoradores».
26 Criticamente, pela incorrecção da designação anomalia psíquica vide JOSÉ MANUEL JARA (1997),
p. 123.
27 Cfr. Constituição da República: artigos 27.º, n.º 3 e 30.º, n.º 2; Código Penal: artigos 20.º, 91.º,
104.º a 108.º; Código do Processo Penal: artigo 202.º; Código Civil, artigos 138.º e 152.º; LOFTJ
aprovado pela Lei 3/99, de 13 de Janeiro: artigo 91.º, n.º 1, alínea b; Lei de Saúde Mental 36/98:
artigos 12.º e 22.º.
28 Vide VERA JARDIM, na discussão da Proposta da Lei 121/VII, na Assembleia da República:
«conceito estritamente médico suficientemente genérico, de uso generalizado na prática médica,
cobrindo um vasto leque de psicopatologias».
29 E o problema não termina aqui no conceito de anomalia psíquica. Várias são as perguntas
pertinentes que podemos fazer. Vejamos VIEIRA DE ANDRADE (2000), p. 84: «Que dizer da forma
como a Lei regula os pressupostos do internamento compulsivo? Será que satisfaz as exigências
de densificação normativa que a Constituição estabelece (...) para as leis restritivas de direitos,
liberdades e garantias? A pergunta é pertinente, na medida em que se utilizam conceitos imprecisos
na definição legal das hipóteses de internamento: o que são anomalias psíquicas graves? Quando
são causa adequada de uma situação de perigo? Quais são os bens jurídicos de relevante valor
(sobretudo em autolesão)? Quando se pode afirmar que há falta do discernimento necessário?
Quando se pode dizer que a ausência de tratamento é susceptível de causar deterioração acentuada
do estado do internado?».
30 Com maior profundidade acerca dos possíveis problemas, F ERNANDO V IEIRA e S OFIA
BRISSOS (2007), pp. 47 e 48: «Aliás, achamos que não raras vezes, as próprias classificações
psiquiátricas complicam a vida aos peritos e aos tribunais, não conseguindo mesmo assim os
médicos especialistas explicar que algumas “anomalias psíquicas” se enquadram dentro de uma

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DIREITO PENAL DA LOUCURA: O INTERNAMENTO COMPULSIVO NO ORDENAMENTO … | 139

Verificada a existência de anomalia psíquica, como poderemos definir a sua gravidade?


E quem tem legiƟmidade para efectuar essa avaliação?
Se, como dissemos, o Internamento Compulsivo é uma medida administraƟva inte-
grada por um princípio de judicialidade (um procedimento médico jurisdicionalizado) então
parece-nos lógico que essa avaliação de gravidade compeƟrá, primariamente, aos médicos.
O julgamento deverá ser clínico, em termos técnico-cienơficos, para depois, em segunda ins-
tância, ser avaliado em termos jurídico-penais. Só com um apuramento de dados descritos
na avaliação psiquiátrica poderá o tribunal fazer uma avaliação desses elementos.
Ainda assim, a gravidade da anomalia está associada aos restantes pressupostos do
Internamento Compulsivo: por força da anomalia31 criar uma situação de perigo para bens
jurídicos com valor relevante e o doente recusar o tratamento; a ausência do tratamento
agravar o seu estado, já não possuindo o doente o discernimento necessário para compreen-

eventual “normalidade”, leia-se, são mais compreensíveis do que explicáveis do ponto de vista
psicopatológico. Com efeito, costumamos referir, em jeito de introdução nalgumas exposições,
que há uma dúzia de anos tudo era bem mais simples. Dantes havia pessoas normais, tristes
e deprimidas; actualmente não, quase se perdendo o direito à natural tristeza. A tirania das
classificações torna difícil introduzir em audiência de julgamento um ponto de vista técnico,
fundamentado evidentemente, mas tão só na experiência clínica e científica. É que se alguém em
exame pericial verbaliza não estar “contente” com o seu dia-a-dia, e fizer relatos subjectivos de
eventual vontade de chorar, de estar mais “parado”, de pensar na sua vida antes de adormecer,
não tirando prazer de actividades de outrora, dificilmente podem os psiquiatras fugir a um
“diagnóstico” de Depressão. Com esse rótulo indicia-se desde logo um maior risco de suicídio,
podendo facilmente nessa sequência, preencherem-se pressupostos de dano grave justificativo
do pagamento de uma indemnização no caso de um processo civil, ou se em sede penal, poder
conduzir eventualmente até à libertação de um recluso.»; «As classificações taxonómicas em
psiquiatria devem constituir um instrumento de trabalho que facilite a comunicação entre os
técnicos, tendo constituído um freio necessário à excessiva subjectividade e individualidade (que
dificultava o desenvolvimento desta especialidade), mas que não estão, de modo algum, isentas
de problemas; a ditadura, não dos peritos, mas da visão necessariamente rígida dos sistemas
classificativos, pode levar à impossibilidade do não-diagnóstico médico (ou de um Tribunal não
poder dar como não provado) de uma Perturbação de Stress Pós-Traumático (PTSD), mesmo
quando em termos de senso-comum ou de experiência médica, existe a convicção (e certeza) da
ausência deste quadro. Acontece que os critérios diagnósticos previstos nas classificações5 para
PTSD são unicamente apurados através de relatos, não existindo exames complementares que
comprovem, sem margem para dúvidas, o diagnóstico, ou que o excluam, por exemplo, em virtude
de simulação. As classificações são ainda, em nosso entender, perigosas quando não ponderadas
clinicamente (ao serem olhadas por não médicos), em situações de charneira como o caso das
Perturbações de Personalidade; estas, não sendo doenças mentais em sentido estrito, sempre
poderão ser enquadradas na definição de Anomalia Psíquica, grave pelo comportamento, mas não
grave patologicamente. É defensável clinicamente portanto, que as perturbações da personalidade
dificilmente possam preencher pressupostos médico-legais, seja para internamento compulsivo,
seja de inimputabilidade, o que nem sempre será compreendido juridicamente».
31 A propósito desta questão “por força dela”, a Dra. Luísa Figueira, no III Curso de Pós-Graduação
de Direito da Medicina e Justiça Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, referiu
que é necessário vir na avaliação clínica porque pode haver casos em que os doentes podem
oferecer perigo, mas esse perigo não é por resultado da doença. Assim como, a patologia não ser
clinicamente grave ao ponto de deteriorar a capacidade de avaliação.

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140 | VANESSA PELERIGO

der o alcance do consenƟmento. Enquanto nos encontramos, no primeiro caso, perante um


internamento de perigo, ultrapassando-se a questão do consenƟmento, por força da rele-
vância dos bens jurídicos em causa, no segundo estamos face ao internamento tutelar que,
apesar da perigosidade, pretende salvaguardar quem não tem discernimento necessário
para avaliar a premência do tratamento.
Mas, significará perigo o mesmo para juristas e psiquiatras?32 Recorde-se que existe
uma diferenciação entre os pressupostos clínicos e jurídicos, pelo que a linguagem não pode
nem deve ser herméƟca. CompeƟrá, em úlƟma instância, ao juiz analisar essa mesma ava-
liação clínica, de modo a apreciar o próprio conceito de perigo, avaliando se naquele caso
específico se deve privar alguém da sua liberdade.
Enquanto os juristas se detêm sobre a questão de saber se determinado indivíduo é ou
não perigoso, os psiquiatras focam a sua atenção na avaliação do risco de violência, dada a
impossibilidade de alcançar garanƟas cienơficas. Deste modo, o internamento é, em rigor,
confirmado ou autorizado, através de um juízo técnico-cienơfico (médico) que o antecede e
fundamenta e que, pelos moƟvos já expostos, estará subtraído à livre apreciação do julgador.
No que respeita à questão da legiƟmidade para requerer o Internamento Compulsivo,
dispõe o arƟgo 13º que caberá ao representante legal do portador de anomalia psíquica,
qualquer pessoa com legiƟmidade para requerer a sua interdição, as autoridades de saúde
pública e o Ministério Público. Pode, no entanto, acontecer que um médico, no exercício das
suas funções, possa detectar uma anomalia psíquica e comunicá-la, com os efeitos previstos
no arƟgo 12º. A Lei de Saúde Mental estatui ainda que se se verificar no decurso de um inter-
namento voluntário tem também legiƟmidade para requerer o Internamento Compulsivo o
director clínico do estabelecimento hospitalar.
A compreensão do Internamento Compulsivo comporta a invocação dos princípios
gerais (elencados no arƟgo 8º - necessidade, subsidiariedade, adequação e proporciona-
lidade, numa complexa ponderação de bens33), pelo que este só pode ser determinado

32 Desenvolvidamente, ANTÓNIO JOÃO LATAS e FERNANDO VIEIRA (2004), pp. 89 e 90: «Quanto
ao que tradicionalmente se vem chamando de avaliação da perigosidade, pode dizer-se que,
do ponto de vista clínico-psiquiátrio, assiste-se recentemente a uma mudança do paradigma da
“perigosidade” para o de “risco de violência”, sendo os principais cultores desta tendência autores
norte-americanos e anglo-saxónicos. Explica-se que esta simples mudança de conceitos mude o
foco da atenção de uma “qualidade vitalícia” para uma “probabilidade”, que será maior ou menor
consoante um manejo clínico a ser executado, reduzindo-se também o estigma associado e fazendo
apelo à fundamentação científica psicológica. Se a “Perigosidade” era algo de categorial binário
inconsistente com a realidade do dia a dia, enquanto constructo estável e inerente, o “Risco de
Violência” aponta para um continuum, passível de ser classificado em risco baixo, médio ou alto,
que se revela da maior importância na avaliação clínico-psiquiátrica».
33 Nesse sentido, VIEIRA DE ANDRADE (2000), p. 82: «A lei afirma o carácter subsidiário do
internamento compulsivo no contexto da política global e, mais que isso, enfatiza a necessidade
da medida, ao defini-la como a ultima ratio, uma intervenção para tratamento que só em último
caso pode ser utilizada, ao mesmo tempo que assegura a sua adequação e proporcionalidade,
respectivamente, em função do grau de perigo e em função da importância do valor ameaçado
– deste modo, a decisão de interenamento implica uma séria e complexa ponderação de bens,
pressupondo o valor da liberdade e só permitindo a sua constrição quando o perigo seja de molde
a implicar o tratamento compulsivo e o desvalor que para a liberdade resulta do internamento não
seja desproporcionado em relação ao valor que se visa proteger».

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DIREITO PENAL DA LOUCURA: O INTERNAMENTO COMPULSIVO NO ORDENAMENTO … | 141

quando for a única forma de garanƟr a submissão a tratamento do internado e quando ter-
minarem os fundamentos que lhe deram origem. De qualquer modo, só pode ser validado
se for proporcional ao grau de perigo e ao bem jurídico em causa. Sempre que exista essa
possibilidade, o Internamento Compulsivo deverá ser subsƟtuído por tratamento em regime
de ambulatório.
Para assegurar este mesmo desígnio, a Lei de Saúde Mental adoptou um modelo misto
de decisão médica e judicial, e fez depender o internamento da conjugação de dois juízos:
por um lado, uma decisão médica especializada e, por outro lado, uma decisão judicial. No
entanto, é ao juiz que cabe a decisão final, seja na primeira decisão ou na confirmação do
internamento urgente34. É evidente que a avaliação clínico-psiquiátrica tem um peso deci-
sivo, pois o parecer psiquiátrico é obrigatório e vinculante, mas o juíz deve especificar as
razões clínicas e os moƟvos do internamento. Ou seja, isso não significa que o juiz tenha
necessariamente que decretar o internamento face a uma avaliação médica favorável a este,
devendo jusƟficar a intervenção judicial atendendo a todos os pressupostos legais.
O juiz é o garante da liberdade e do respeito pelos princípios fundamentais que possam
restringir direitos. No entanto, antes da sua intervenção está a do psiquiatra. Se o tribunal
entender, poderá ainda determinar a realização das diligências que considerar oportunas.
Este modelo de decisão radica num tronco garanơsƟco.
Dispõe o art 25º que se esta avaliação clínico-psiquiátrica “concluir pela necessidade
de internamento e o internado a ele se opuser, o estabelecimento comunica de imediato ao
tribunal judicial com competência na área a admissão daquele, com cópia do mandado e do
relatório da avaliação”. No entanto, quando “a avaliação clínico-psiquiátrica não confirme
a necessidade de internamento, a enƟdade que Ɵver apresentado o portador de anomalia
psíquica resƟtui-o de imediato à liberdade, remetendo o expediente ao Ministério Público
com competência na área em que se iniciou a condução”.
Esta subsƟtuição dependerá da aceitação, por parte do doente, das condições fixa-
das pelo psiquiatra para o tratamento em regime ambulatório e é comunicada ao tribunal
competente. Sempre que o portador da anomalia psíquica deixe de cumprir as condições
estabelecidas, o psiquiatra assistente comunica o incumprimento ao tribunal competente,
retomando-se o internamento e, caso seja necessário, o estabelecimento solicita ao tribunal
competente a emissão de mandados de condução a cumprir pelas forças policiais.
O internamento terminará quando cessarem os pressupostos que lhe deram origem
e a cessação ocorre por alta dada pelo director clínico do estabelecimento, fundamentada
em relatório de avaliação clínico-psiquiátrica do Serviço de Saúde onde decorreu o interna-
mento, ou por decisão judicial, sendo a alta imediatamente comunicada ao tribunal compe-
tente (vide arƟgo 34º). Junta ao processo a avaliação, é realizada a sessão conjunta, da qual
resultará a decisão sobre a manutenção do internamento. Este relatório tem de ser assinado
por dois psiquiatras e conter os factos que permitam ao tribunal concluir que se mantêm os
pressupostos do internamento.

34 A propósito da judicialização do internamento, ANTÓNIO LEONES DANTAS (1998), p. 62: «....tem


fundamentalmente que ver com a herança de abusos nas restrições aos direitos individuais que a
Constituição de 1933 nos deixou, e que tem o seu assento na abordagem do sistema de direitos
fundamentais consagrados na Constituição da República».

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142 | VANESSA PELERIGO

O tribunal intervém, deste modo, para pôr cobro ou reiterar os fundamentos do


internamento, pelo que é necessário que o diálogo entre juristas e médicos seja aberto e
transparente.

Procedimento Responsabilidade
Pedido (a um Tribunal) Elemento da família, autoridade de saúde,
tutor, médico, Ministério Público
NoƟficação (família, Ministério Público) Tribunal
Atribuição de um advogado independente
Avaliação Psiquiátrica Dois psiquiatras (hospital público)
Sessão conjunta Tribunal + Advogado independente
+ Ministério Público
Decisão Tribunal
Admissão/Internamento Equipa psiquiátrica (polícia, se necessário)

Algoritmo de Internamento Compulsivo (Casos Standard) (M. Xavier, 200235)

Procedimento Responsabilidade
Condução do doente a um Serviço de Urgência Polícia
1ª Avaliação psiquiátrica Psiquiatra (Serviço de Urgência)
Pedido (a um Tribunal) Psiquiatra (Serviço de Urgência)
Confirmação (num período de 48 horas) Tribunal
NoƟficação (família, Ministério Público) Tribunal
Atribuição de um advogado independente
2ª Avaliação Psiquiátrica (num prazo de 5 dias) Dois psiquiatras (hospital público)
Sessão conjunta Tribunal + Advogado independente +
Ministério Público
Decisão Tribunal

Algoritmo de Internamento Compulsivo (Casos de Emergência) (M. Xavier, 2002)

III. O Caso de C.

C., programador informáƟco, foi internado compulsivamente durante 71 dias ao abrigo


da Lei de Saúde Mental. Bateram-lhe à porta quatro agentes da PSP para o conduzirem ao
hospital. Traziam um mandado onde se dizia que era “portador de anomalia psíquica”, que

35 M. XAVIER (2002), pp. 123-130.

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DIREITO PENAL DA LOUCURA: O INTERNAMENTO COMPULSIVO NO ORDENAMENTO … | 143

o seu estado de saúde se Ɵnha “deteriorado”, que representava perigo e se recusava a ser
tratado.
No caso de C., foram os pais, o irmão e cunhada, que é médica, quem pediu o seu inter-
namento por estarem convencidos de que sofria de uma doença mental de evolução prolon-
gada, uma “perturbação delirante”. Na base da convicção dos familiares estaria informação
que Ɵnha colocado na Internet, assim como o facto de haver na família um esquizofrénico.
C. afirma que, à data do internamento, estava de relações cortadas com os seus pais,
precisamente por andarem a dizer aos seus amigos, filha menor e contactos profissionais
que sofria de doença mental, algo que o descredibilizou e lhe trouxe vários problemas de
trabalho.
Já os seus familiares defenderam em tribunal que C. sofria de “ideias delirantes” e que
o tentaram levar ao psiquiatra e este não aceitou.
C. avançou com um processo contra os médicos, dizendo que foi internado injusta-
mente e que não sofre de qualquer problema mental e contesta sobretudo a uma informa-
ção clínica que deu origem ao internamento, que foi pedida pelos familiares e foi assinada
por uma médica interna de psiquiatria (em período de formação). Na nota, a clínica refere
que a informação que reproduz lhe foi passada pelos familiares e pela cunhada, “dignos de
credibilidade”, por ser “colega”.
Na informação clínica, apesar de nunca o ter visto, a médica toma como certo que C.
sofre de “perturbação delirante com grande tempo de evolução”. Alude ao seu isolamento
social e corte de relações com a família.
Na sua primeira avaliação psiquiátrica, nas urgências do Hospital São José, para onde foi
levado pela polícia, outra médica escreveu que C. sofre de “psicose delirante persistente”.
C. declara que a médica quase não falou consigo, leu a informação clínica da outra médica e
colheu informações apenas junto dos seus familiares.
O advogado de C., que veio, pela primeira vez, expor o caso num arƟgo de opinião na
comunicação social, disse que o documento que fundamenta o internamento foi pedido
desde o início pelo advogado mas foi sendo “intencionalmente ocultado durante seis
meses”. O director responsável pelo Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro
Hospitalar de Lisboa Ocidental exerceu o seu direito de resposta, na qual se destaca: “o
doente em causa foi internado compulsivamente na Urgência do Hospital de São José com
base em avaliação psiquiátrica que concluiu exisƟr perturbação psiquiátrica grave, ausên-
cia de consciência patológica, recusa de tratamento e risco de deterioração acentuada do
estado clínico na ausência de tratamento, sendo o internamento a única forma de garanƟr
o tratamento adequado”.
Da nossa análise do caso resultam as seguintes conclusões: o IC não parece adequado,
no quadro da LSM, quando o objecƟvo for apenas “garanƟr o tratamento adequado”, coer-
civamente, só porque um serviço acha que é melhor para o indivíduo. O internamento com-
pulsivo tem o seu escopo na existência de uma anomalia psíquica grave que, em consequên-
cia da mesma, põe em perigo bens jurídicos de relevante valor, seus e de terceiros; e que,
no quadro dessa mesma anomalia, o agente recusa o tratamento ou não tem discernimento
para compreender o alcance do discernimento. Ou seja, não se internam compulsivamente
pessoas para apenas lhes “garanƟr o tratamento adequado”. E no arƟgo em local nenhum se
refere o perigo para bens jurídicos.
Por conseguinte, o que o director responsável pelo Departamento de Psiquiatria e
Saúde Mental do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental disse foi que se internam pessoas

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144 | VANESSA PELERIGO

compulsivamente para lhes proporcionar o melhor tratamento, o que, per si, restringe fun-
damentalmente a liberdade do indivíduo. Há, também, o direito a não ser tratado, a não
ser que se verifiquem os pressupostos cumulaƟvos do regime do internamento compulsivo.
O que esteve na base da criação da lei é a salvaguarda do próprio e de terceiros tendo em
conta os possíveis danos que a falta de consciência psíquica determinará no comportamento
do doente, donde decorre da importância de um acompanhamento após o internamento
hospitalar.

IV. Conclusão

Se a oposição entre a loucura e a razão desƟnou milhares de loucos aos grilhões do


abandono e do esquecimento, entregues à própria sorte pelo perigo que representavam, o
nascimento da ciência psiquiátrica teve um papel fundamental no seu desenvolvimento e na
sua compreensão cabal.
Embora os internamentos compulsivos de pessoas afectadas por anomalia psíquica
grave tenham uma expressão numérica bastante reduzida, quando comparados com os
internamentos comuns, levantam problemas e colocam questões extremamente delicadas,
a nível dos direitos, liberdades e garanƟas.
Não podemos, sob a capa da saúde e segurança públicas jusƟficar procedimentos que
são na sua essência privação da liberdade. E aqui reacende-se outra problemáƟca. É impor-
tante discuƟr a lei de saúde mental não só em relação à sua aplicação (haverá possivelmente
alguns casos de abuso), mas também à sua própria natureza, isto porque se equaciona, cada
vez mais, que as pessoas devem ser completamente livres de optar por não se tratarem,
mesmo quando essa decisão seja afectada pela ausência de críƟca.
A verdade é que a aplicação da Lei evidencia números crescentes de Internamento
Compulsivo desde a sua implementação. Embora não existam números isentos de incer-
teza, esƟma-se que actualmente os Internamento Compulsivo correspondam, a nível nacio-
nal, a uma percentagem aproximada de 10% do total dos doentes psiquiátricos internados,
segundo relatório da OMS, de 2006.
Existem doentes a padecer de anomalias psíquicas graves, com risco para si e para ter-
ceiros, sem que estejam a fazer a terapêuƟca adequada, o que nos parece, desde logo injus-
Ɵficável, dada a existência de suporte legislaƟvo, pensado exactamente para evitar estes
casos. Impõe-se um cuidado mais apurado na sua supervisão e no seu acompanhamento
(posteriormente, até em regime de ambulatório).
Cumpre-nos, assim, sinteƟzar o regime e tecer algumas considerações, dando resposta
ao que pretendemos abordar no nosso trabalho.
Pela simples leitura dos preceitos legais, compreendemos que o legislador se muniu de
redobradas cautelas no que respeita à possibilidade de decretar um internamento compul-
sivo, sendo certo que a própria possibilidade de internamento compulsivo só tem legiƟmi-
dade num quadro de excepção a um direito fundamental - a liberdade.
A estrita conformidade à CRP, seja na decisão de internamento, seja em todo o pro-
cesso que o medeia, é uma afirmação dos princípios de necessidade e da adequação no
que respeita à restrição de direitos fundamentais, tal como o princípio de subsidiariedade e
proporcionalidade.

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DIREITO PENAL DA LOUCURA: O INTERNAMENTO COMPULSIVO NO ORDENAMENTO … | 145

SintenƟzando, é necessária, para que se possa decretar o Internamento Compulsivo, a


verificação dos seguintes pressupostos:

– a verificação de uma anomalia psíquica do agente;


– que tal anomalia seja grave;
– que, em resultado dessa anomalia psíquica grave, o agente crie situações de perigo
para bens jurídicos (seus e de terceiros);
– que os bens jurídicos postos em perigo sejam de valor relevante;
– e que a criação do perigo tenha um nexo de causalidade com a anomalia;
– que o agente se recuse a receber a terapêuƟca necessária (a recusa de tratamento só
é relevante se não derivar de uma vontade esclarecida).

Estas exigências legais são cumulaƟvas e não podem ser ignoradas na práƟca jurídica.
A anomalia psíquica abrange todo o conjunto de afecções do intelecto ou vontade que
eliminam ou perturbam a capacidade do internando em compreender o alcance dos seus
actos. No que concerne à verificação da anomalia psíquica grave, esta comportará todas as
afecções e perturbações que perturbem a capacidade psíquica do agente em compreender
o alcance dos seus comportamentos, tal como o valor daquilo que por eles possa ser afec-
tado, sendo que será a patologia a responsável pela perda dessa mesma autonomia indivi-
dual. No entanto, esta análise e juízo deverão ser estritamente médicas.
No que respeita ao requisito do perigo, traduzir-se-á na forte probabilidade, factual-
mente concreta, do agente vir a lesar bens jurídicos de relevante valor.
Assim, se se confirmar a anomalia psíquica, mas esta não for grave, mesmo que tenha
posto em perigo bens jurídicos relevantes, e não seja evidente o nexo de causalidade entre
aquela anomalia e a criação do perigo - ainda que se verifique uma situação de recusa volun-
tária e assumida de tratamento - não se pode decretar um internamento compulsivo.

Bibliografia

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Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 30/07/1999, processo 9910781, relator Costa Mortágua
Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 30/07/1999, processo 9910698, relator Baião Papão
Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 15/09/1999, relator Marques Pereira (Colectânea de Jurispru-
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Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/01/2004, processo 9216/2003-9, relator João Carrola
Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 03/11/2004, processo 6318/2004-3, relator Miranda Jones
Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 26/04/2005, processo 186/05-1, relator Rui Maurício
Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 09/03/2005, processo 0510591, relator Ângelo Morais
Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/09/2005, processo 7074/2005-9, relatora Ana Brito
Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 21/12/2005, processo 0514697, relatora Élia São Pedro
Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 28/06/2006, processo 0544461, relator António Gama
Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/11/2007, processo 6930/2007-3, relator Pedro Mourão
Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 25/09/2008, processo 0834971, relator José Ferraz
Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 06/02/2009, processo 0110232, relator Marques Salgueiro

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DIREITO PENAL DA LOUCURA: O INTERNAMENTO COMPULSIVO NO ORDENAMENTO … | 147

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Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 16/09/2009, processo 4307/09.3TBVNG.P1, relatora Olga
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Ac. do Supremo Tribunal de JusƟça de 22/06/2010, processo 3736/07.1TVLSB.L1.S.1, relator Paulo Sá
Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 10/11/2010, processo 2510/10.2TBVNG.P1, relatora Lídia
Figueiredo
Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 02/02/2011, relator José Piedade (Colectânea de Jurisprudência,
Ano XXXVI – tomo I/2011, pp. 233-235)
Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 12/07/2011, relator António Condesso (Colectânea de Jurispru-
dência, Ano XXXVI – tomoIII/2011, pp. 267-269)
Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 20/12/2011, relator Fernando Cardoso (Coletânea de Jurispru-
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Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 18/06/2013, processo 71/12.7TBADV.E1, relator António Cle-
mente Lima
Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 01/07/2014, relatora Maria Isabel Alves Duarte (Colectânea de
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Sentença de 19/11/2014, Filipa MarƟns Louro
Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/04/2015, processo 1/14.1T1LSB.L1-9, relatora Margarida
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Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 14/07/2015, relator João MarƟnho de Sousa Cardoso
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nando Chaves
Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa 23/02/2016, processo 1693/14.7TBSXL.A1-5, relatora Maria José
Machado
Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 03/05/2017, processo 1073/15.7T8AMD-3, relatora Maria Elisa
Marques
Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa 06/06/2017, processo 19731/15.4T8LSB-A.L1-5, Luís Gominho
Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 18/08/2017, processo 1704/17.4T8FAR.E1, relator António João
Latas
Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/10/2017, processo 122/17.9T8TND.C1, relator Inácio
Monteiro
Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 09/05/2018, processo 674/16.0T8OVR-M.P1, relator João Pedro
Nunes Maldonado
Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 11/07/2018, processo 4644/18.6T8PRT-A.P1, relator Cravo Roxo

Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos

Varbanov c. Bulgaria – 31365/96 (05.10.2000)


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148 | VANESSA PELERIGO

C.B. c. Romania – 21207/03 (20.04.2010)


X c. Finland – 34806/04 (03.07.2012)
Shopov c. Bulgaria – 11373/04 (03.07.2012)
Plesó c. Hungary - 41242/08 (02.10.2012)
Mihailovs c. Latvia - 35939/10 (22.01.2013)
Petukhova c. Russia – 28796/07 (02.05.2013)
Akopyan c. Ukraine – 12317/06 (05.06.2014)
L.M. c. Slovenia – 32863/05 (12.06.2014)
Lazariu c. Romania – 31973/03 (13.11.2014)
Zaichenko c. Ukraine (no. 2) – 45797/09 (26.02.2015)

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