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De Doctrina Christiana (II, 10.15-16.23) / Sobre a Doutrina Cristã (II, 10.15-


16.23)

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Mauri Furlan
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DE DOCTRINA CHRISTIANA
(II, 10.15-16.23)
DA DOUTRINA CRISTÃ
(II, 10.15-16.23)

AURELIUS AUGUSTINUS HIPPONENSIS (SANTO AGOSTINHO)


MAURI FURLAN (TRADUTOR)

O S QUATRO LIVROS QUE COMPÕEM A OBRA De Doctrina Christiana fo-


ram escritos por Santo Agostinho (354-430) entre os anos 397 e 427,
nos quais oferece um sistema para o estudo, a leitura e a pregação das
Escrituras Sagradas. É um tratado de exegese, de hermenêutica bíblica, com fins didá-
ticos e pastorais, dirigido a todos os cristãos cultos.
O tema da tradução em De Doctrina Christiana surge, mormente no segundo
livro, ao ser relacionado com a questão do conhecimento. Concebendo a linguagem
como um sistema de signos, Agostinho oferece uma teoria geral de significação lin-
guística para interpretar a Escritura capaz de abranger todos os enunciados, sejam pró-
prios (literais) ou metafóricos (figurados), desconhecidos ou ambíguos, uma scientia
signorum (ciência dos signos). E aborda também questões como a intenção do autor, a
multiplicidade de sentidos, e o papel das comunidades interpretativas para determinar
o sentido de um texto1, remetendo-nos ao usus loquendi da retórica clássica. Enqua-
drando-se no marco da concepção clássica da relação entre as palavras e as coisas,
para Agostinho, todo o conhecimento tange às coisas (res) ou aos signos (signa). A
Sagrada Escritura é um conjunto de signos escritos (uerba) em distintas línguas. De aí
a necessidade de conhecermos os signos e as línguas, sobretudo a hebraica e a grega,
a fim de entendermos os sentidos dos livros inspirados, isto é, a vontade de Deus
revelada por meio das línguas humanas e escrita por seres humanos.
Os parágrafos 10.15 a 16.23 do livro II de sua De Doctrina Christiana, sinteti-
zam a visão de Agostinho sobre a tradução. Para ele, a Escritura pode não ser entendi-
da por causa de signos que, sendo próprios ou metafóricos, sejam desconhecidos ou
ambíguos (10.15). É mediante o conhecimento de línguas, principalmente a hebraica e
a grega, além da latina, que se elimina a ignorância dos signos, porque, por elas, pode-
se recorrer ao original diante da dúvida sobre alguma tradução (11.16). Embora a
1
Cf. TOOM, Tarmo. “Augustine on the Communicative Gaps in Book Two of De Doctrina Christiana”,
in Augustinian Studies, 34/2, 2003.

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diversidade de traduções seja fonte de divergências entre os tradutores, ela também é


útil para esclarecer por vezes orações mais obscuras, “porque é difícil que os tradu-
tores discrepem tanto entre si, que não se aproximem em algumas coisas” (12.17).
Dado que há signos ambíguos, “muitas vezes o tradutor se equivoca por causa da
ambiguidade da língua do original, e, não entendendo bem uma sentença, traduz uma
expressão com sentido totalmente diferente daquele do autor,” produzindo orações
não obscuras, mas falsas (12.18). “Muitos tradutores tentam expressar segundo a
capacidade e o discernimento de cada um”, mas se não forem muitíssimo doutos aca-
bam se afastando do sentido do autor. Diante de uma tradução em que não é evidente
qual seja a sentença verdadeira, “deve-se ou buscar o conhecimento das línguas a par-
tir das quais se chega à Escritura latina, ou ter traduções que se prenderam bastante às
palavras, não porque sejam suficientes, mas para que a partir delas se descubra a liber-
dade ou o erro dos outros”, que, ao traduzir, interpretaram mal o sentido pretendido
do autor (13.19). Contudo, mais importante que o estilo e a gramática (scientia signo-
rum) é o conteúdo (scientia res) (13.20). Quanto aos signos desconhecidos, se provêm
de línguas estrangeiras, deve-se buscar sua explicação ou entre nativos daquelas lín-
guas, ou pelo aprendizado das mesmas, ou pela comparação entre as versões de vários
tradutores; mas se for por desconhecimento da própria língua, pode-se conhecê-los
com mais leitura e audições (14.21). Quanto aos signos metafóricos, deve-se também
buscar o conhecimento das línguas, assim como o conhecimento das coisas: conhecer,
por exemplo, o significado de certos nomes próprios aprofunda a compreensão dos
fatos (16.23).
Enquanto Jerônimo ainda produzia a Vulgata latina, Agostinho, sem aprovar
tal projeto, recomendava que, de entre todas as traduções, se optasse pela “Ítala às
demais, pois é mais constante nas palavras e clara nas sentenças. E para emendar
quaisquer versões latinas, que se usem as gregas, entre elas a Septuaginta, dos Setenta
tradutores, no que tange ao Antigo Testamento, porque sua autoridade é inconteste.”
E mesmo sem nominá-lo, critica Jerônimo: “não é necessário, nem convém que algum
homem sozinho, qualquer que seja sua habilidade, deseje emendar o consenso de
tantos anciãos e sábios” (15.22).

Mauri Furlan
maurizius@gmail.com
Prof. dr., Universidade Federal de Santa Catarina
Fonte: Migne, Jacques-Paul.
Patrologia Latina Tomus XXXIV – Aurelius Augustinus Hipponensis, 0035/0066

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De Doctrina Christiana Da Doutrina Cristã


(II, 10.15-16.23)(400) (II, 10.15-16.23)

Scriptura saepe non intellegitur signorum Às vezes não se entende as Escrituras por
causa causa dos signos
10.15 Duabus autem causis non intelle- 10.15 Por duas causas não se entende o
guntur quae scripta sunt, si aut ignotis aut que está escrito, por estar encoberto ou
ambiguis signis obteguntur. Sunt autem por signos desconhecidos ou ambíguos.
signa vel propria vel translata. Propria Os signos são, pois, ou próprios ou meta-
dicuntur, cum his rebus significandis fóricos. São denominados próprios quan-
adhibentur, propter quas sunt instituta, do são empregados para significar as coi-
sicut dicimus bovem, cum intellegimus sas pelas quais são instituídos, assim co-
pecus, quod omnes nobiscum latinae mo quando dizemos bos [boi] e entende-
linguae homines hoc nomine vocant. mos o animal que todos os homens de
Translata sunt, cum et ipsae res quas língua latina, junto conosco, chamam por
propriis verbis significamus, ad aliquid este nome. São metafóricos quando tam-
aliud significandum usurpantur, sicut bém as mesmas coisas que significamos
dicimus bovem, et per has duas syllabas com palavras próprias são usadas para
intellegimus pecus quod isto nomine significar algo de outro modo, assim co-
appellari solet, sed rursus per illud pecus mo quando dizemos bos [boi] e por esta
intellegimus Evangelistam, quem signifi- sílaba entendemos o animal que costuma
cavit Scriptura, interpretante Apostolo, ser chamado por este nome, mas também
dicens: por aquele animal entendemos o evange-
lista, que a Escritura significou, tendo o
Apóstolo interpretado, dizendo:
Bovem triturantem non infrenabis. Não amordaçarás o boi que tritura o grão
(1Cor 9,9).

Ut ignorantia signorum tollatur, necessaria est Para eliminar a ignorância dos signos, é neces-
linguarum cognitio, ac praesertim graecae et sário o conhecimento de línguas, sobretudo da
hebraeae grega e da hebraica
11.16 Contra ignota signa propria 11.16 Excelente remédio contra a igno-
magnum remedium est linguarum cogni- rância dos signos próprios é o conheci-
tio. Et latinae quidem linguae homines, mento das línguas. E os homens de lín-
quos nunc instruendos suscepimus, dua- gua latina, que agora buscamos instruir,
bus aliis ad Scripturarum divinarum cog- têm necessidade de outras duas para o
nitionem opus habent, hebraea scilicet et conhecimento das Escrituras Divinas, a
graeca, ut ad exemplaria praecedentia saber, a hebraica e a grega, a fim de re-
recurratur, si quam dubitationem attulerit correr aos originais, caso a infinita varie-
latinorum interpretum infinita varietas. dade de tradutores latinos causar alguma
Quamquam et hebraea verba non inter- dúvida. Embora também encontremos
pretata saepe inveniamus in libris, sicut por vezes palavras hebraicas não traduzi-
Amen et Allelluia et Racha et Osanna et das nos livros, como amen, aleluia, raqa,
si qua sunt alia. Quorum partim propter hosana e talvez algumas outras. Destas,
sanctiorem auctoritatem, quamvis inter- em parte, foi preservada a antiguidade,
pretari potuissent, servata est antiquitas, como amen e aleluia, por causa de sua
sicut sunt Amen et Alleluia, partim vero autoridade mais sagrada, embora pudes-
in aliam linguam transferri non potuisse sem ser traduzidas; em parte, como as

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dicuntur, sicut alia duo quae posuimus. outras duas que possuímos, dizem não ter
Sunt enim quaedam verba certarum lin- sido possível traduzi-las de fato a outra
guarum quae in usum alterius linguae per língua. Existem, pois, algumas palavras
interpretationem transire non possint. Et de certas línguas que não podem passar
hoc maxime interiectionibus accidit, quae ao uso de outra língua via tradução. E is-
verba motum animi significant potius to acontece sobretudo com as interjei-
quam sententiae conceptae ullam parti- ções, palavras que significam antes um
culam. Nam et haec duo talia esse perhi- sentimento da alma que qualquer parte de
bentur; dicunt enim Racha indignantis uma ideia concebida. Com efeito, tam-
esse vocem, Osanna laetantis. Sed non bém estas duas são consideradas como
propter haec pauca quae notare atque tais, pois dizem que raqa é fala de quem
interrogare facillimum est, sed propter se indigna, e hosana, de quem se alegra.
diversitates, ut dictum est, interpretum Mas não por causa destas poucas pala-
illarum linguarum est cognitio necessa- vras, que são facilmente notadas e ques-
ria. Qui enim Scripturas ex hebraea in tionadas, mas por causa das discordân-
graecam verterunt, numerari possunt, cias dos tradutores é necessário o conhe-
latini autem interpretes nullo modo. Ut cimento daquelas línguas, como foi dito.
enim cuique primis fidei temporibus in Os que verteram as Escrituras do hebrai-
manus venit codex graecus et aliquan- co ao grego podem ser contados, os tra-
tulum facultatis sibi utriusque linguae dutores latinos, porém, de modo algum.
habere videbatur, ausus est interpretari. Porque nos primeiros tempos da fé, se
um códice grego caísse nas mãos de al-
guém, a quem lhe parecesse ter um pou-
quinho de habilidade em ambas as lín-
guas, ousava traduzi-lo.

Diversitas interpretationum utilis. Ex verbo- A diversidade de traduções é útil. O erro dos


rum ambiguitate accidit error interpretum tradutores se deve à ambiguidade das palavras
12.17 Quae quidem res plus adiuvit 12.17 Na verdade, este fato mais ajudou
intellegentiam quam impedivit, si modo do que impediu a compreensão, sempre
legentes non sint neglegentes. Nam que os leitores não foram negligentes.
nonnullas obscuriores sententias plurium Pois o exame de muitos códices esclare-
codicum saepe manifestavit inspectio, ceu por vezes algumas orações mais obs-
sicut illud Isaiae prophetae unus interpres curas, como aquilo que um tradutor diz
ait: do profeto Isaías:
Et domesticos seminis tui ne despexeris, E não desprezes teus familiares
frutos de tua semente (Is 58,7),
alius autem ait: outro, porém, diz:
Et carnem tuam ne despexeris; E não desprezes tua carne (Is 58,7);
uterque sibimet invicem attestatus est. e ambos confirmaram mutuamente um ao
Namque alter ex altero exponitur, quia et outro, pois se esclarece um a partir do
caro posset accipi proprie, ut corpus outro, porque a carne pode ser tomada
suum quisque ne despiceret se putaret também em sentido próprio, de modo que
admonitum; et domestici seminis trans- cada qual considere ter sido admoestado
late Christiani possent intellegi, ex eo- a não desprezar o seu corpo; e os familia-
dem verbi semine nobiscum spiritaliter res frutos da semente possam ser entendi-
nati. Nunc autem collato interpretum sen- dos em sentido metafórico como cristãos
su probabilior occurrit sententia proprie nascidos espiritualmente conosco da

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de consanguineis non despiciendis esse mesma semente do Verbo. Agora, porém,


praeceptum, quoniam domesticos semi- com o sentido aportado pelos tradutores,
nis cum ad carnem retuleris, consan- ocorre-nos mais provavelmente o pensa-
guinei potissimum occurrunt. Unde esse mento de haver um preceito de não des-
arbitror illud Apostoli quod ait: prezar os consaguíneos, em sentido pró-
prio, porque ao relacionares os familiares
frutos da semente à carne, ocorrem-nos
os consanguíneos. De onde, acredito, ha-
ver aquilo do Apóstolo que diz:
Si quo modo ad aemulationem adducere potuero Se de algum modo eu puder levar à emulação
carnem meam, ut salvos faciam aliquos ex illis; minha carne, para salvar alguns deles
(Rm 11,14);
id est, ut aemulando eos qui crediderant, isto é, que imitando aqueles que creram,
et ipsi crederent. Carnem enim suam creiam eles também. Ele chamou aos ju-
dixit Iudaeos, propter consanguinitatem. deus de sua carne, por causa da consan-
Item illud eiusdem Isaiae: guinidade. Igualmente aquilo do mesmo
Isaías:
Nisi credideritis, non intellegetis, Se não crerdes, não compreendereis
(Is 7,9),
alius interpretatus est: outro traduziu:
Nisi credideritis, non permanebitis. Se não crerdes, não permanecereis
(Is 7,9).
Quis horum verba secutus sit, nisi Não se sabe qual deles seguiu a letra, se
exemplaria linguae praecedentis legantur, os originais da língua primeira não são
incertum est. Sed tamen ex utroque apresentados. Porém, de ambos se insi-
magnum aliquid insinuatur scienter nua algo grande aos leitores conscientes.
legentibus. Difficile est enim ita diversos Porque é difícil que os tradutores dis-
a se interpretes fieri ut non se aliqua crepem tanto entre si, que não se aproxi-
vicinitate contingant. Ergo quoniam mem em algumas coisas. Logo, porque a
intellectus in specie sempiterna est, fides compreensão consiste na visão sempiter-
vero in rerum temporalium quibusdam na, a fé, de fato, nos alimenta como o
cunabulis quasi lacte alit parvulos, nunc leite às crianças, nestes berços das coisas
autem per fidem ambulamus, non per temporais; agora, pois, “caminhamos pe-
speciem, nisi autem per fidem ambula- la fé, não pela visão” (2Cor 5,7). Se, po-
verimus, ad speciem pervenire non pos- rém, não caminharmos pela fé, não pode-
sumus quae non transit sed permanet, per remos chegar à visão que não passa, mas
intellectum purgatum nobis cohaeren- que permanece, pela compreensão purifi-
tibus veritati, propterea ille ait: cada dos que aderimos à verdade, por
isso que um diz:
Nisi credideritis, non permanebitis, Se não crerdes, não permanecereis
(Is 7,9),
ille autem: o outro, porém:
Nisi credideritis, non intellegetis. Se não crerdes, não compreendereis
(Is 7,9).

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Exempla ex quibus cognoscendarum lin- Exemplos a partir do quais se evidencia a


guarum necessitas elucet necessidade de conhecer as línguas
12.18 Et ex ambiguo linguae praeceden- 12.18 Muitas vezes o tradutor se equivo-
tis plerumque interpres fallitur, cui non ca por causa da ambiguidade da língua
bene nota sententia est, et eam significa- do original, e, não entendendo bem uma
tionem transfert, quae a sensu scriptoris sentença, traduz uma expressão com sen-
penitus aliena est. Sicut quidam codices tido totalmente diferente daquele do au-
habent: tor. Assim, certos códices apresentam:
Acuti pedes eorum ad effundendum sanguinem; Seus pés afiados para derramar sangue
(Sl 13,3);
ὀξύς enim et "acutum" apud Graecos et pois ὀξύς entre os gregos significa tanto
"velocem" significat. Ille ergo vidit sen- agudo quanto veloz. Logo, compreendeu
tentiam qui transtulit: a sentença aquele que traduziu :
Veloces pedes eorum ad effundendum sanguinem; Seus pés velozes para derramar sangue
(Sl 13,3);
ille autem alius ancipiti signo in aliam Errou, porém, o outro por ter tomado
partem raptus erravit. Et alia quidem non uma outra acepção de um signo ambíguo.
obscura, sed falsa sunt. Quorum alia E outras versões deste tipo não são obs-
condicio est; non enim intellegendos, sed curas, mas falsas, e sua condição é outra,
emendandos tales codices potius praeci- pois deve-se antes recomendar não que
piendum est. Hinc est etiam illud, quo- tais códices sejam esclarecidos, mas cor-
niam µόσχος graece vitulus dicitur, rigidos. Assim é também outro exemplo:
µοσχεύµατα quidam non intellexerunt porque µόσχος em grego significa ternei-
esse plantationes et vitulamina interpre- ro, alguns, sem entender que µοσχεύµατα
tati sunt. Qui error tam multos codices significa plantações, traduziram por re-
praeoccupavit ut vix inveniatur aliter banhos de terneiros. Este erro se introdu-
scriptum. Et tamen sententia manifes- ziu em tantos códices, que dificilmente se
tissima est, quia clarescit consequentibus encontra escrito de outro modo. E, contu-
verbis; namque: do, a sentença é claríssima porque se ilu-
mina com as palavras seguintes; assim:
Adulterinae plantationes non dabunt Plantas bastardas não darão raízes profundas
radices altas, (Sb 4,3),
convenientius dicitur quam vitulamina, é mais convenientemente dito que reba-
quae pedibus in terra gradiuntur, et non nhos de terneiros, que caminham com os
haerent radicibus. Hanc translationem in pés na terra e não fincam raízes. Também
eo loco etiam cetera contexta custodiunt. outros contextos garantem esta tradução
nessa passagem.

In latinae linguae usu si quis rem teneat, verba No uso da língua latina, se alguém domina o
sequentur conteúdo, as palavras o seguirão
13.19 Sed quoniam et quae sit ipsa 13.19 Mas porque não é evidente qual
sententia, quam plures interpretes pro sua seja a sentença verdadeira, –que muitos
quisque facultate atque iudicio conantur tradutores tentam expressar segundo a
eloqui, non apparet, nisi in ea lingua ins- capacidade e o discernimento de cada
piciatur quam interpretantur, et plerum- um, e geralmente um tradutor desviado
que a sensu auctoris devius aberrat inter- se afasta do sentido do autor se não for
pres, si non sit doctissimus; aut lingua- muitíssimo douto–, a não ser quando se a

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rum illarum ex quibus in latinam Scriptu- examina na língua da qual traduzem,


ram pervenit, petenda cognitio est; aut deve-se ou buscar o conhecimento das
habendae interpretationes eorum qui se línguas a partir das quais se chega à Es-
verbis nimis obstrinxerunt, non quia suf- critura latina, ou ter traduções que se
ficiunt, sed ut ex eis libertas vel error prenderam bastante às palavras, não por-
detegatur aliorum, qui non tam verba que sejam suficientes, mas para que a
quam sententias interpretando sequi ma- partir delas se descubra a liberdade ou o
luerunt. Nam non solum verba singula, erro dos outros, que, ao traduzir, preferi-
sed etiam locutiones saepe transferuntur, ram seguir não tanto as palavras quanto
quae omnino in latinae linguae usum, si as sentenças [as quais eles mal interpreta-
quis consuetudinem veterum qui latine ram]. Pois muitas vezes são transferidas
locuti sunt tenere voluerit, transire non não só palavras isoladas, mas também
possint. Quae aliquando intellectui nihil expressões, que não podem passar abso-
adimunt, sed offendunt tamen eos qui lutamente ao uso da língua latina, caso se
plus delectantur rebus, cum etiam in ea- queira manter o costume dos antigos de
rum signis sua quaedam servatur integri- falar em bom latim. Por vezes, estas tra-
tas. Nam soloecismus qui dicitur, nihil duções não impedem em nada o entendi-
est aliud quam cum verba non ea lege mento, mas perturbam aqueles que se
sibi coaptantur qua coaptaverunt qui deleitam mais com os conteúdos quando
priores nobis non sine auctoritate aliqua também se conserva uma certa pureza
locuti sunt. Utrum enim inter homines an nos signos delas. Pois o que se chama so-
inter hominibus dicitur, ad rerum non lecismo, nada mais é do que palavras que
pertinet cognitorem. Item barbarismus são combinadas entre si sem conformida-
quid aliud est nisi verbum non eis litteris de com a regra pela qual as combinavam
vel sono enuntiatum, quo ab eis qui ante os que falavam, não sem certa autorida-
nos latine locuti sunt enuntiari solet? de, antes de nós. Não importa ao conhe-
Utrum autem ignoscere producta an cor- cedor de conteúdos que se diga entre os
repta tertia syllaba dicatur, non multum homens ou entre aos homens. Do mesmo
curat qui peccatis suis Deus ut ignoscat modo, que outra coisa é o barbarismo se-
petit, quolibet modo illud verbum sonare não uma palavra enunciada não com as
potuerit. Quid est ergo integritas locutionis letras ou som, com que costuma ser
nisi alienae consuetudinis conservatio, enunciada pelos que antes de nós falaram
loquentium veterum auctoritate firmatae? bem latim? Quem pede a Deus que lhe
perdoe os pecados, não se preocupa mui-
to se a terceira sílaba de ignoscere [per-
doar] é pronunciada longa ou breve, ou
qualquer que seja o modo que aquele ver-
bo pudesse soar. O que é, pois, a pureza
de uma locução se não a conservação de
um costume de outros, confirmado pela
autoridade dos antigos falantes?

Auctorum profanorum linguae non asservien- Não se deve privilegiar a língua dos autores
dum profanos
13.20 Sed tamen eo magis inde offen- 13.20 Mas os homens tanto mais se inco-
duntur homines quo infirmiores sunt, et modam por isso quanto mais ignaros são,
eo sunt infirmiores quo doctiores videri e são tanto mais ignaros quanto mais
volunt, non rerum scientia qua aedifica- doutos querem parecer, não na ciência
mur, sed signorum, qua non inflari omni- das coisas, pela qual somos edificados,

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no difficile est, cum et ipsa rerum scien- mas dos signos, pela qual não é absolu-
tia saepe cervicem erigat, nisi dominico tamente difícil tornar-se orgulhoso, uma
reprimatur iugo. Quid enim obest intel- vez que a própria ciência das coisas mui-
lectori quod ita scriptum est: tas vezes empina nossa cabeça, se não se
submete ao jugo do Senhor. O que preju-
dica a quem compreende o que está as-
sim escrito?:
Quae est terra in qua isti insidunt super eam, si Qual é a terra na qual estes se assentam sobre
bona est an nequam; et quae sunt civitates in ela [super eam], se é boa ou má; e quais são as
quibus ipsi inhabitant in ipsis? cidades nas quais os mesmos vivem nelas
[in ipsis] (Nm 13,19)
Quam locutionem magis alienae linguae Acredito que esta locução seja mais pró-
esse arbitror quam sensum aliquem altio- pria de uma língua estrangeira do que ha-
rem. Illud etiam quod iam auferre non ja nela algum sentido mais profundo.
possumus de ore cantantium populorum: Também aquilo que já não podemos tirar
da boca do povo que canta:
Super ipsum autem floriet sanctificatio mea, Sobre ele flora [floriet] minha santificação
(Sl 132,18),
nihil profecto sententiae detrahit. Auditor não tira nada mesmo do sentido. Um ou-
tamen peritior mallet hoc corrigi, ut non vinte, porém, mais instruído preferiria
floriet, sed florebit diceretur, nec quid- que isto fosse corrigido, que se dissesse
quam impedit correctionem, nisi consue- florebit e não floriet, e nada impede a
tudo cantantium. Ista ergo facile etiam correção, a não ser o costume dos que
contemni possunt, si quis ea cavere nolu- cantam. Estas coisas também podem ser
erit, quae sano intellectui nihil detrahunt. facilmente desconsideradas se alguém
At vero illud quod ait Apostolus: não quiser lhes dar atenção, porque não
impedem uma compreensão razoável.
Mas, de fato, aquilo que diz o Apóstolo:
Quod stultum est Dei, sapientius est hominibus, et O que é loucura de Deus, é mais sábio do que os
quod infirmum est Dei, fortius est hominibus, homens [sapientius est hominibus], e o que é
fraqueza de Deus, é mais forte do que os homens
(1Cor 1,25),
si quis in eo graecam locutionem servare se alguém quisesse conservar a locução
voluisset, ut diceret: Quod stultum est grega nisso, diria: “O que é loucura de
Dei, sapientius est hominum; et quod Deus, é mais sábio (o) dos homens, e o
infirmum est Dei, fortius est hominum; que é fraqueza de Deus, é mais forte (o)
iret quidem vigilantis lectoris intentio in dos homens”, e a atenção do leitor cuida-
sententiae veritatem, sed tamen aliquis doso se dirigiria para a verdade da sen-
tardior aut non intellegeret aut etiam tença, mas alguém mais lento ou não en-
perverse intellegeret. Non enim tantum tenderia ou entenderia mal. Pois uma tal
vitiosa locutio est in latina lingua talis, locução na língua latina não é apenas vi-
verum et in ambiguitatem cadit, ut quasi ciosa, mas também ambígua, de maneira
hominum stultum vel hominum infirmum a parecer que a loucura dos homens ou a
sapientius vel fortius videatur esse quam fraqueza dos homens é mais sábia ou
Dei. Quamquam et illud: sapientius est mais forte que a de Deus. Embora tam-
hominibus non caret ambiguo, etiamsi bém aquele sapientius est hominibus não
soloecismo caret. Utrum enim his homi- esteja isento de ambiguidade, está, contu-
nibus ab eo quod est: Huic homini; an his do, isento de solecismo. Pois a não ser à
hominibus ab eo quod est: Ab hoc homi- luz da sentença, não é evidente se o vocá-

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ne dictum sit, non apparet nisi illumina- bulo hominibus foi dito no dativo (aos
tione sententiae. Melius itaque ita dicitur: homens), ou no ablativo (pelos homens).
Sapientius est quam homines, et: Fortius Por isso, melhor é expressar [a oração
est quam homines. comparativa em latim com a partícula
quam, em vez de com ablativo]: “Mais
sábio do que os homens [quam homines,
no nominativo]”, e “mais forte do que os
homens”.

Ignoti verbi et ignotae locutionis unde eruenda Deve-se obter o conhecimento de uma palavra
cognitio e de uma locução desconhecidas
14.21 De ambiguis autem signis post 14.21 Sobre os signos ambíguos, falare-
loquemur; nunc de incognitis agimus, mos depois, agora, porém, tratamos dos
quorum duae formae sunt, quantum ad desconhecidos, que possuem duas formas
verba pertinet. Namque aut ignotum ver- no tocante às palavras. O fato é que uma
bum facit haerere lectorem, aut ignota palavra ou uma locução desconhecidas
locutio. Quae si ex alienis linguis veni- fazem o leitor hesitar. Se elas provêm de
unt, aut quaerenda sunt ab earum lingua- línguas estrangeiras, deve-se buscá-las
rum hominibus aut eaedem linguae, si et entre nativos destas línguas, ou deve-se
otium est et ingenium, ediscendae aut aprender estas línguas, caso haja tempo e
plurium interpretum consulenda collatio engenho, ou deve-se compará-las entre as
est. Si autem ipsius linguae nostrae ali- versões dos muitos tradutores. Se, porém,
qua verba locutionesque ignoramus, le- ignoramos algumas palavras e locuções
gendi consuetudine audiendique innotes- de nossa própria língua, tornam-se co-
cunt. Nulla sane sunt magis mandanda nhecidas pelo hábito da leitura e da audi-
memoriae, quam illa verborum locutio- ção. Nada deve ser mais absolutamente
numque genera quae ignoramus; ut cum memorizado do que os tipos de palavras
vel peritior occurrerit de quo quaeri e locuções que ignoramos, para que, seja
possint, vel talis lectio quae vel ex quando aparecer alguém mais instruído,
praecedentibus vel consequentibus vel possam ser perguntadas a respeito, seja
utrisque ostendat quam vim habeat, uma dada leitura que mostre, a partir do
quidve significet quod ignoramus, facile que precede ou pelo que segue, ou pelo
adiuvante memoria possimus advertere et contexto, ter a noção ou o significado da-
discere. Quamquam tanta est vis quilo que ignoramos, possamos facilmen-
consuetudinis etiam ad discendum ut qui te perceber e aprender com a ajuda da
in Scripturis sanctis quodammodo nutriti memória. Contudo, é tamanha a força do
educatique sunt, magis alias locutiones hábito também no aprender, que os que
mirentur easque minus latinas putent foram de certo modo nutridos e educados
quam illas quas in Scripturis didicerunt, nas Escrituras santas admiram-se muito
neque in latinae linguae auctoribus diante de certas locuções profanas e as
reperiuntur. Plurimum hic quoque adiu- consideram menos latinas do que aquelas
vat interpretum numerositas collatis codi- que aprenderam nas Escrituras e que não
cibus inspecta atque discussa. Tantum são encontradas nos autores de língua la-
absit falsitas, nam codicibus emendandis tina. Aqui também ajuda muito a quanti-
primitus debet invigilare sollertia eorum dade dos tradutores quando se a controla
qui Scripturas divinas nosse desiderant, e examina comparando seus códices.
ut emendatis non emendati cedant, ex Cuida-se apenas que não haja erro, pois
uno dumtaxat interpretationis genere inicialmente a habilidade daqueles que
desejam conhecer as Escrituras divinas

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venientes. deve ocupar-se de emendar os códices,


para que os não emendados cedam aos
emendados, se provenientes exclusiva-
mente de uma única família de tradução.

Commendantur Itala versio latina et graeca Recomenda-se a versão latina Ítala e a grega
Septuaginta interpretum dos Setenta tradutores
15.22 In ipsis autem interpretationibus, 15.22 Entre todas as traduções, porém,
Itala ceteris praeferatur; nam est verbo- prefira-se a Ítala às demais, pois é mais
rum tenacior cum perspicuitate senten- constante nas palavras e clara nas senten-
tiae. Et latinis quibuslibet emendandis ças. E para emendar quaisquer versões
graeci adhibeantur, in quibus Septuaginta latinas são usadas as gregas, entre elas a
interpretum, quod ad Vetus Testamentum Septuaginta, dos Setenta tradutores, no
attinet, excellit auctoritas. Qui iam per que tange ao Antigo Testamento, porque
omnes peritiores Ecclesias tanta praesen- sua autoridade é inconteste2. Estes, diz-se
tia Sancti Spiritus interpretati esse dicun- em todas as Igrejas mais sábias, traduzi-
tur, ut os unum tot hominum fuerit. Qui ram com tamanha presença do Espírito
si, ut fertur, multique non indigni fide Santo, que fora uma única a voz de tantos
praedicant, singuli cellis etiam singulis homens. Afirma-se ainda, e muitos não
separati cum interpretati essent, nihil in indignos de sua fé apregoam que, se eles,
alicuius eorum codice inventum est quod traduzindo separados uns dos outros e em
non isdem verbis eodemque verborum celas individuais, não se encontrou nada
ordine inveniretur in ceteris, quis huic no códice de um deles que não se encon-
auctoritati conferre aliquid, nedum prae- trasse entre os outros com as mesmas pa-
ferre audeat? Si autem contulerunt ut una lavras e na mesma ordem das palavras,
omnium communi tractatu iudicioque quem ousaria comparar, muito menos
vox fieret, ne sic quidem quemquam preferir outra coisa a esta autoridade? Se,
unum hominem qualibet peritia ad emen- porém, acordaram em reunião e com de-
dandum tot seniorum doctorumque con- terminação que uma única voz se tornas-
sensum aspirare oportet aut decet. Quam se a de todos, ainda assim, não é necessá-
ob rem, etiamsi aliquid aliter in hebraeis rio, nem convém que algum homem sozi-
exemplaribus invenitur quam isti posue- nho, qualquer que seja sua habilidade,
runt, cedendum esse arbitror divinae dis- deseje emendar o consenso de tantos na-
pensationi quae per eos facta est, ut libri ciãos e sábios. Por esta razão, mesmo que
quos gens Iudaea ceteris populis vel se encontre nos exemplares hebraicos
religione vel invidia prodere nolebat, cre- algo de um modo distinto ao que estes
dituris per Dominum Gentibus ministra possuíam, penso que se deve render-se ao
regis Ptolomei potestate tanto ante pro- plano divino que foi realizado por meio
derentur. Itaque fieri potest ut sic illi deles para que os livros que o povo ju-
interpretati sint quemadmodum congrue- deu, ou por causa da religião ou por ciú-
re Gentibus ille, qui eos agebat, et qui mes, não queria transmitir a outros po-
unum os omnibus fecerat, Spiritus Sanc- vos, fossem revelados com tanta anteci-
tus iudicavit. Sed tamen, ut superius dixi, pação pelo poder ministerial do rei Pto-
horum quoque interpretum qui verbis lomeu aos gentios que haveriam de crer
tenacius inhaeserunt, collatio non est por meio do Senhor. Por isso, pode ter
inutilis ad explanandam saepe senten- acontecido que, assim, eles tenham tradu-
tiam. Latini ergo, ut dicere coeperam, zido do modo como o Espírito Santo, que
2
Cf. De civ. Dei XVIII, 43.

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SANTO AGOSTINHO, MAURI FURLAN

codices Veteris Testamenti, si necesse os conduzia e que lhes dera uma única
fuerit, graecorum auctoritate emendandi voz a todos, julgou convir aos gentios.
sunt, et eorum potissimum qui, cum Contudo, como disse mais acima, tam-
Septuaginta essent, ore uno interpretati bém não é inútil, para esclarecer muitas
esse perhibentur. Libros autem Novi vezes a sentença, a comparação entre
Testamenti, si quid in latinis varietatibus aqueles tradutores que se prenderam mais
titubat, graecis cedere oportere non du- tenazmente às palavras. Portanto, se for
bium est, et maxime qui apud Ecclesias necessário, deve-se emendar os códices
doctiores et diligentiores repperiuntur. latinos do Antigo Testamento, como eu
começara a dizer, com a autoridade dos
gregos, e, entre estes, principalmente os
que, sendo Setenta, considera-se que tra-
duziram com uma única voz. Quanto aos
livros do Novo Testamento, se algo titu-
beia nas variedades dos textos latinos,
não haja dúvida da necessidade de ren-
der-se aos gregos, sobretudo os que se
encontram em uso nas Igrejas mais sá-
bias e mais diligentes.

Ut translata signa intellegantur iuvat tum Como o conhecimento das línguas e das coisas
linguarum notitia tum rerum ajuda a entender os signos metafóricos
16.23 In translatis vero signis si qua forte 16.23 Quanto aos signos metafóricos, se
ignota cogunt haerere lectorem, partim acaso aqueles desconhecidos levam o lei-
linguarum notitia, partim rerum investi- tor a hesitar, deve-se buscar em parte o
ganda sunt. Aliquid enim ad similitudi- conhecimento das línguas, em parte o das
nem valet et procul dubio secretum quid- coisas. Serve, pois, um pouco como com-
dam insinuat Siloa piscina, ubi faciem paração e, sem dúvida, guarda um certo
lavare iussus est cui oculos Dominus luto mistério a piscina de Siloé [que se traduz
de sputo facto inunxerat. Quod tamen por “enviado” (Jo 9,7)3], onde o Senhor
nomen linguae incognitae nisi Evangelis- ordenou que lavasse o rosto a quem ungi-
ta interpretatus esset, tam magnus intel- ra com barro feito com sua saliva. Se o
lectus lateret. Sic etiam multa, quae ab Evangelista, porém, não tivesse traduzido
auctoribus eorumdem librorum interpre- aquele nome de uma língua desconheci-
tata non sunt nomina hebraea, non est da, uma compreensão profunda teria per-
dubitandum habere non parvam vim manecido oculta. Assim também muitos
atque adiutorium ad solvenda aenigmata nomes hebraicos, que não foram traduzi-
Scripturarum, si quis ea possit interpre- dos pelos autores dos mesmos livros, não
tari. Quod nonnulli eiusdem linguae peri- se duvida de que são de não pouco valor
ti viri non sane parvum beneficium pos- e ajuda para resolver enigmas das Escri-
teris contulerunt, qui separata de Scrip- turas, caso alguém possa traduzi-los.
turis eadem omnia verba interpretati sunt; Muitos varões especialistas nesta língua
et quid sit Adam, quid Eva, quid Abra- certamente proporcionaram não pouco
ham, quid Moyses; sive etiam locorum benefício aos pósteros traduzindo todas
nomina, quid sit Hierusalem vel Sion vel as palavras deste tipo tiradas das Escritu-
Hiericho vel Sina vel Libanus vel Iorda- ras, tanto o que significa Adão, Eva,

3
O evangelista João usa o verbo ἑρµηνεύω (traduzir, interpretar, explicar, significar): ὃ ἑρµηνεύεται
Ἀπεσταλµένος .

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nis et quaecumque alia in illa lingua Abraão, Moisés, como também os nomes
nobis sunt incognita nomina. Quibus de lugares, o que significa Jerusalém,
apertis et interpretatis multae in Scrip- Sião, Jericó, Sinai, Líbano, Jordão e al-
turis figuratae locutiones manifestantur. guns outros nomes que nos são desco-
nhecidos naquela língua. Os quais, uma
vez tendo sido apresentados e traduzidos,
esclarecem muitas locuções figuradas das
Escrituras.

***

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