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A SÍNDROME DE MÜNCHHAUSEN E O ENSINO JURÍDICO

BRASILEIRO

A SÍNDROME DE MÜNCHHAUSEN E O ENSINO JURÍDICO BRASILEIRO


Revista de Direito Educacional | vol. 5/2012 | p. 263 - 276 | Jan - Jun / 2012
DTR\2012\450742

Lícia Bonesi Jardim


Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela FDV. Mestranda em Direitos e
Garantias Fundamentais pela FDV. Professora universitária. Servidora pública do TRT da
1.ª Região.

Área do Direito: Educação


Resumo: O presente artigo analisa a matéria do arquivado PLS 220/2010, que visava
alterar a Lei 9.394/1996 (que cuida sobre as diretrizes e bases da educação nacional) no
que tange à qualificação exigida dos docentes para lecionar em instituições de ensino
superior. O trabalho faz primeiro uma análise descritiva do Projeto de Lei, para, em
seguida, fazer uma análise crítica sobre a sua matéria, destacando que deve ser dada
maior atenção à qualificação, em vez da titulação.

Palavras-chave: Ensino jurídico - Titulação - Qualificação.


Abstract: This article analyses the subject of the archived Bill of Senate 220/2010, which
had the purpose of amending the Law 9.394/1996 (the Brazilian Guidelines and Bases
for National Education) regarding the qualification exigency for teachers in higher
education institutions. This work makes firstly a descriptive analysis of the Bill of Senate,
and secondly a critical analysis on the matter, giving emphasis to the need of
qualification exigency, not for entitlement exigency.

Keywords: Legal education - Entitlement - Qualification.


Sumário:

1. INTRODUÇÃO - 2. UMA ANÁLISE DESCRITIVA DA MATÉRIA - 3. UMA ANÁLISE


CRÍTICA À MATÉRIA - 4. CONCLUSÃO - 5. BIBLIOGRAFIA

1. INTRODUÇÃO

O Barão de Münchhausen é conhecido por uma velha estória. Conta-se que dito Barão se
encontrou certo dia em uma situação difícil: atolado em um pântano enquanto cavalgava
com seu cavalo, viu-se sozinho sem que ninguém o pudesse salvar; diante da situação,
o Barão agarrou os seus próprios cabelos, puxando-se para cima e desatolando a si e a
seu cavalo. O expediente utilizado por Münchhausen para se livrar de um impasse em
uma situação que põe em xeque-mate o rei no tabuleiro de xadrez ou que torna vãos
todos os argumentos de que se possa lançar mão em defesa de uma teoria, caracteriza a
síndrome de Münchhausen. Assim, quando alguém quer sair de uma situação difícil sem
assumir o próprio erro e dar os braços a torcer, diz-se que sofre da síndrome de
Münchhausen, já que certamente, montado em um cavalo, ao puxar os seus próprios
cabelos para salvar a si e a seu equino de um destino desagradável que os espera, o
Barão teria desfiado todo o seu couro cabeludo.

O ensino jurídico brasileiro, desde quando foi declarada sua crise, encontra-se acometido
pela síndrome de Münchhausen. Alvo de bastantes críticas no mundo pedagógico, o
ensino jurídico brasileiro não evoluiu muito, pedagogicamente, desde sua implantação,
em 1827. Ao contrário de ser um bom indicativo, a grande quantidade de faculdades de
direito existentes no Brasil, atualmente, registra apenas um movimento de massificação,
o ensino continua a ser prestado de forma arcaica, formal, tradicional, sem grandes
inovações e por vezes praticado mecanicamente, sem qualquer preocupação com o
aprendizado do aluno, mas sim com a mera passagem de conteúdo e de informações.
Fora algumas iniciativas de tentar transformar o habitus do ensino jurídico, promovendo
um movimento de transição e até mesmo de sua transformação, o fato é que como bem
destacava San Tiago Dantas em 1955, na aula inaugural da Faculdade Nacional de
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Direito, a crise do ensino jurídico se deve, em grande parte, “ao alheamento e à


burocratização estéril das nossas escolas, que passaram a ser meros centros de
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transmissão de conhecimentos tradicionais”. Mais de meio século depois, a crise
continua. E não há cabelos a se puxar para desatolar o ensino jurídico.

Em fins de 2011, o número de cursos de direito autorizados pelo MEC (Ministério da


Educação e Cultura) era de 1.210. Desse universo, 90 cursos de direito, isto é, pouco
mais de 7% eram recomendados pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Isso
demonstra que é forte o movimento de massificação do ensino jurídico brasileiro, mas
fraca a valorização da qualidade. Como o mercado jurídico ainda é rentável, a vontade
de debelar a crise é apenas pontual e isolada, já que os grandes grupos que têm vendido
o produto jurídico ainda não determinaram uma tendência neste sentido, permanecendo
em segundo plano a preocupação com a formação do professor e, consequentemente,
com o ensino de qualidade. Preza-se, pois, a quantidade de pessoas com um diploma de
ensino superior em vez da qualidade de sua formação.

E encontra-se respaldo nos dois Ministérios nacionais envolvidos com a questão da


educação no Brasil: o MCT (Ministério da Ciência e da Tecnologia) – representado pelo
CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa) e pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior) – e o MEC, que contam com comissões especializadas em
ensino jurídico e responsáveis pelo estabelecimento de um interessantíssimo plano de
níveis e notas: uma sequência de sete graus (de um a sete), cujos dois primeiros graus
são eliminatórios, ao passo que os outros cinco são apenas classificatórios. A concessão
de graus depende que seja preenchida uma série de requisitos que incluem, por
exemplo, um projeto político-pedagógico coerente e consistente, infraestrutura
adequada, produção intelectual qualificada, inserção e impacto social, visibilidade,
transparência e um quadro de professores com diversificação em sua formação superior,
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atualização, experiência, dedicação e titulação.

Obviamente, não se pode simplesmente deixar de lado os esforços que têm sido feitos
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para amainar a crise e aos poucos removê-la do cenário jurídico-educacional brasileiro.
Mas o fato é que a grande maioria dos cursos de direito vive profundamente a crise e
não se manifesta no sentido de arrumar uma solução plausível para ela. Prefere-se ou
deixar o ensino jurídico se atolar ainda mais, ou manifestam a síndrome de
Münchhausen, puxando-se pelos cabelos para deixar tentar se livrar da crise.

Uma das últimas manifestações da síndrome que aflige o ensino jurídico foi o PLS
220/2010, cujo objetivo era alterar a Lei 9.394/1996, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), para tornar mais flexível o critério referente à titulação dos
docentes universitários. O presente trabalho é uma crítica, baseada na necessária
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revisão do habitus do ensino jurídico brasileiro, à matéria do PLS 220/2010.

2. UMA ANÁLISE DESCRITIVA DA MATÉRIA

O PLS 220, de autoria da Comissão de Serviços e Infraestrutura, apresentado ao Senado


Federal em 10.08.2010, apesar de ter sido definitivamente arquivado em 01.12.2011,
em virtude do Parecer 1.311/2011 do rel. Senador Aloysio Nunes Ferreira, trazia matéria
que merece ser enfrentada e discutida: o critério da titulação em nível de pós-graduação
para a admissão de docentes na educação superior como elemento essencial para uma
formação de qualidade do corpo discente.

A proposta, em seus termos originais, era uma emenda ao art. 66 da Lei 9.394/1996
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(LDB), adicionando-lhe um 2.º parágrafo, cuja proposta de redação era a seguinte:
“portadores de diploma de graduação poderão ser admitidos como docentes nas áreas
tecnológica e de infraestrutura, desde que comprovem relevante experiência
profissional, na forma do regulamento”.

A justificativa do projeto originário é assaz interessante. Em primeiro lugar, atesta-se


que há uma carência de profissionais qualificados, fundamentando-se no fato de que
falta mão de obra qualificada no Brasil na área das engenharias. Em segundo lugar,
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procuram-se indicar as causas para o problema: reduzida oferta de cursos na área,


concentrando-se as que existem nos grandes centros; poucos estímulos para que tais
profissões sejam almejadas pelos jovens; deficiências na educação básica dos
estudantes brasileiros, notadamente em matemática e ciências exatas; pouca articulação
entre a teoria e a prática na formação dos futuros engenheiros; excessiva valorização de
títulos de pós-graduação, em detrimento da experiência prática, para a formação de
quadros de docentes.

Em terceiro lugar, sem que seja necessária qualquer análise crítica, apresenta-se uma
saída que pretende corrigir todo o problema: mitigar os requisitos acadêmicos na
contratação de docentes no ensino superior para os cursos das áreas tecnológicas e das
engenharias. É interessante observar que o legislador é simplesmente imediatista:
ignorando as deficiências da educação básica brasileira e a pouca articulação entre teoria
e prática que aflige também o ensino superior no país, pretende, com a singela
modificação nos quadros docentes e no perfil dos cursos de engenharia por meio da
alteração dos requisitos para contratação de professores, que sejam formados
profissionais que tenham conhecimento da realidade socioeconômica e possam contribuir
para o desenvolvimento do setor produtivo.

Confirmando o escopo do já arquivado PLS 220/2010, o Parecer 525/2011, produzido


pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal, traz uma síntese dos
dois argumentos sobre os quais se pauta o projeto originário, destacando que há falta de
docentes pós-graduados em nível de mestrado e doutorado e de que o acesso de
profissionais com notório saber é restringido em virtude do necessário reconhecimento
por universidade que possua doutorado na área.

O rel. Senador Álvaro Dias e o rel. ad hoc Senador Paulo Bauer resolveram, com o
Parecer 525/2011, ampliar o objeto do PLS 220/2010, estendendo-o para as demais
áreas do conhecimento, independente de serem consideradas estratégicas ao
desenvolvimento nacional, sob o argumento de que é necessário que a LDB clareie o
processo de formação dos docentes no ensino superior. Neste parecer é interessante
observar a argumentação dos relatores, que afirmam que tanto a Constituição Federal
de 1988 quanto a LDB trazem mitigações e rigor excessivo no que diz respeito à
formação e ao exercício da docência superior, obviamente que não são tecidas críticas às
mitigações, e sim apenas aos rigores, direcionando-se, mormente, à questão do
reconhecimento do notório saber.

A observação não é feita pelos relatores do substitutivo, mas embora Anísio Teixeira,
Burle Marx e Cândido Portinari (citados pelos relatores como exemplos de profissionais
com notório saber, mas que não passaram por um processo obrigatório de
reconhecimento) tenham vivido em outra época, certamente se houvesse a necessidade
de que fosse reconhecido o notório saber de cada um deles para o exercício do
magistério, o merecimento seria também notório. Deixando, entretanto, a avaliação
crítica da matéria do PLS para a próxima seção, demonstra-se qual a real preocupação
do legislador com uma proposta desde talante: facilitar o acesso ao mercado de trabalho
sem pensar nas consequências, como, por exemplo, a redução no número de
pesquisadores ou de profissionais academicamente qualificados. Além disso, demonstra
claramente como a instrução, que é usualmente confundida com educação, não é
prioridade no Brasil. A proposta de reforma, não mais de emenda, ao art. 66 da Lei
9.394/1996 (LDB) demonstrou como isso é característico no sistema de ensino superior
brasileiro.

Uma comparação descritiva do atual art. 66 da Lei 9.394/1996 (LDB) e da redação que
era proposta pelo PLS 220/2010 revela que a alteração no caput do dispositivo seria
bem-vinda, uma vez que determinava que a formação de docentes dos cursos de nível
superior dependesse do estudo aprofundado na respectiva área, além de capacitação
prática e pedagógica. A proposta de inc. I também seria salutar, por reafirmar, embora
já exista, a necessidade da formação, pelo menos nas instituições públicas, de um
quadro de carreira escalonado conforme a complexidade da função. O problema da
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proposta está mais nos incs. II e III.

O segundo inciso criaria a figura do contrato de trabalho temporário para profissionais


que queiram exercer o magistério, mas que tenham apenas diploma de graduação, ou
diploma de pós-graduação lato sensu, ou ainda que não tenham diploma, mas que
possuam notório saber na respectiva área de atuação. Transferindo-se isso para a área
do ensino jurídico, que é objeto de crítica neste estudo, cumpre reforçar que há critérios
estabelecidos tanto pelo MEC quanto pela Capes que prejudicam a pontuação dos
programas de graduação e de pós-graduação que não contarem com um determinado
número de docentes mestres ou doutores, sendo que os cursos de direito, para obterem
melhor pontuação, têm evitado contratar docentes que não possuem a titulação mínima
exigida pelos órgãos do governo federal. Apenas para se ter ideia dos requisitos para o
corpo docente, no caso das universidades e de centros universitários é requerido que
pelo menos um terço possua mestrado ou doutorado. Apesar de não existir uma norma
que estabeleça referida percentagem para as faculdades, o Inep (Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira) estabelece conceitos que permitem entrever como
deve ser formado o corpo docente destas instituições, sempre nos dois primeiros anos
do curso: quando há menos de 15% dos docentes com titulação de mestre ou doutor –
conceito um; quando há entre 15%, inclusive, e um terço dos docentes com titulação de
mestre ou doutor – conceito dois; quando há entre um terço, inclusive, e 45% dos
docentes com titulação de mestre ou doutor – conceito três; quando há entre 45%,
inclusive, e 60% dos docentes com titulação de mestre ou doutor – conceito quatro;
quando há pelo menos 60% dos docentes com titulação de mestre ou doutor – conceito
cinco.

Assim, o trabalho temporário duraria o tempo necessário para o indivíduo adquirir uma
titulação maior, a fim de se enquadrar nos requisitos que os órgãos oficiais exigem das
IES (Instituições de Ensino Superior). Não que isso não ocorra – ocorre, e muito. Como
as visitas dos avaliadores da Capes são interessantemente agendadas, as IES podem
trabalhar com um planejamento de mudança do quadro de professores, a fim de
poderem contar com um quadro de professores com uma boa titulação no intuito de
obter uma melhor avaliação da Capes. E, assim que os avaliadores vão embora, tudo
volta a ser como antes.

Evitando, porém, por ora as críticas que serão mais bem formuladas na próxima seção –
em que se enfrenta a crise do ensino jurídico e a perpetuação da síndrome de
Münchhausen a partir da exigência de titulação –, cumpre destacar o inc. III que o PLS
220/2010 pretendia acrescer ao parágrafo único do art. 66 da Lei 9.394/1996 (LDB).
Referido inciso é uma especificação da parte final do inciso anterior, dispondo sobre os
profissionais de notório saber que, “quando reconhecidos e diplomados por
universidades que tenham programas de mestrado ou doutorado em sua área de
conhecimento e atuação, poderão se candidatar ao ingresso nas carreiras de docência
em instituições públicas de educação superior”. Nestes termos, um profissional terá
reconhecido seu notório saber em determinada área do conhecimento depois que for
aprovado por uma banca examinadora, obtendo tal reconhecimento em nível de
mestrado (algo como um mestre honoris causae) ou em nível de doutorado (algo como
um doutor honoris causae). Isso, no entanto, não quer dizer que possua titulação de
doutor ou de mestre, apenas que o seu conhecimento sobre determinado assunto foi
reconhecido por um conjunto de especialistas – tal como ocorre com os pais de Lorenzo
no longa-metragem “Óleo de Lorenzo”.

Por fim, é interessante destacar a argumentação do Parecer 1.311/2011, da Comissão


de Educação, que rejeitou a matéria, abrindo, então, conforme o Regimento Interno do
Senado Federal (RISF), em seu art. 254, parágrafo único, prazo de dois dias úteis para
interposição de recurso por um décimo dos membros da Casa, a fim de que o PLS
continuasse a tramitar. Como não foi interposto recurso, determinou-se em 30.11.2011
o arquivamento definitivo do PLS, o que foi publicado oficialmente em 01.12.2011.
Segundo o rel. Senador Aloysio Nunes Ferreira, há a necessidade de se precaver sobre a
qualificação docente diante de uma massificação dos cursos superiores, exigindo-se uma
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formação exclusiva em cursos de pós-graduação stricto sensu, sem quaisquer exceções,


de maneira que se deve prestar atenção à titulação acadêmica dos docentes.

A argumentação é no sentido de que é preciso haver uma melhoria no que diz respeito à
titulação docente, mormente em virtude da massificação dos cursos superiores, de
maneira que a abertura proposta pelo PLS 220/2010 (e respectivos substitutivos) para
uma contratação temporária de docentes sem título de mestre ou doutor seria danoso
para o sistema de ensino superior, permitindo um viés tal que se interpretasse tal
contratação como mitigação de exigências fundamentais para a formação dos corpos
docentes nas IES. Afirma o Senador relator ao final de seu voto, isso “seria lamentável”.

3. UMA ANÁLISE CRÍTICA À MATÉRIA

Lamentável é a preocupação com a titulação do docente, não com sua qualificação. Na


verdade, é muito lamentável que uma Comissão de Educação do Senado Federal não
tenha dado a devida atenção à distinção entre titulação e qualificação. Ora, manter-se o
requisito de que o indivíduo seja portador de um título acadêmico sem possuir
qualificação necessária para ser docente e poder ser agente da qualificação discente é
determinante para atolar ainda mais o direito em sua crise, já tendo há muito tempo o
cavalo do barão se afogado e estando Münchhausen por um triz.

Um dos grandes problemas do ensino jurídico no Brasil é a questão do valor dado a uma
simples distinção, aquela entre a qualificação e a titulação do docente. Enquanto ter
titulação significa tão somente ser portador de um diploma que confere ao indivíduo um
título e nada mais, ter qualificação diz respeito ao conjunto de competências e de
saberes de que dispõe o docente para contribuir para uma formação discente de
qualidade. A grande questão, porém, é que o Governo, por meio dos órgãos
competentes, congelou como requisito para a conceituação das IES a titulação e deixou
de lado a qualificação, o resultado é a constatação de que “os professores dos cursos
jurídicos brasileiros, normalmente especializados do ponto de vista de sua área de
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formação, não possuem qualquer especialização no âmbito pedagógico”.

Nesse sentido, o art. 52 da Lei 9.394/1996 (LDB), já no capítulo específico que


regulamenta o ensino superior, determina que as universidades, ou, de maneira mais
ampla, as IES, “são instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais
de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano, que
se caracterizam por: I – produção intelectual institucionalizada mediante o estudo
sistemático dos temas e problemas mais relevantes, tanto do ponto de vista científico e
cultural, quanto regional e nacional; II – 1/3 (um terço) do corpo docente, pelo menos,
com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado; III – 1/3 (um terço) do corpo
docente em regime de tempo integral”. Note-se que em momento algum o legislador
fala em qualificação, e sim que se refere à titulação como requisito essencial para um
corpo docente de qualidade. Exigência esta que deixa subentendida a necessidade de
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algum diferencial, que não é revelado pela lei, nem quando faz referência a um padrão
de qualidade do ensino (art. 3.º, IX, da Lei 9.394/1996 – LDB).

Assim, sem o estabelecimento de um padrão de qualidade que determine um diferencial,


a simples exigência de um título de pós-graduação stricto sensu tem contribuído para a
crise cada vez mais acentuada do ensino jurídico, já que se preocupa somente com a
titulação do docente, sem observar se ele possui as competências pedagógicas para
ocupar o lugar de destaque que o professor ocupa na formação do aluno. Esta
preocupação com a titulação em detrimento da qualificação tem como efeito a
multiplicação de cursos de pós-graduação, lato sensu e stricto sensu, para dar conta da
demanda do mercado: “a multiplicação de cursos, além de não vir acompanhada por
uma preocupação qualitativa, deu-se desordenadamente, obedecendo a fluxos e
princípios empresariais, conforme ditames de mercado, alastrando-se pelo solo brasileiro
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as faculdades de direito como fábricas de ilusão!”.

Com a massificação do ensino jurídico e com o intuito cada vez maior de obtenção de
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lucro pelas IES, o que menos importa é a contratação de docentes qualificados, e sim
que o “protocolo” da LDB seja cumprido, isto é, que sejam contratados docentes
titulados. Em pleno século XXI, o ensino jurídico brasileiro reproduz uma realidade
existente no Império brasileiro quando da implantação dos primeiros cursos jurídicos no
país: a hierarquia de títulos. A diferença é que não se fala mais em duques, marqueses,
condes, viscondes e barões, mas em livres-docentes, pós-doutores, doutores, mestres e
especialistas, atestando, em tese, níveis distintos de excelência (pesquisa e docência)
em uma área específica.

O foco na titulação coloca no breu a questão da qualificação e torna cada vez mais
deficiente de qualidade o ensino jurídico brasileiro. Estabeleceu-se, assim, verdadeira
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relação de compra e venda: o comprador (o aluno) exige do vendedor (a IES),
mediante o pagamento de um preço (as mensalidades), a entrega de um produto (o
título). Ainda mais interessante é o mercado de pós-graduação lato sensu, que tem
permitido a obtenção de título de especialista simultaneamente a um curso preparatório
para concursos. Pactua-se com a mediocridade em prol da obtenção de lucros.

E esse pacto não há de ser quebrado puxando-se o ensino jurídico pelos cabelos. Para
ser professor não basta ser portador de um título; há que se fazer muito mais que isso.
Levando-se em consideração que o docente é responsável pela instrução e formação de
um indivíduo, a LDB deveria exigir muito mais que um simples título de pós-graduado.
Ora, a “docência é uma atividade complexa que demanda formação específica.
Contrariamente ao senso comum, para ser professor, não basta apenas conhecer
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profundamente um assunto”, é preciso ser portador de outros saberes. E estes saberes
são, além dos saberes da área de conhecimento, os saberes pedagógicos, os didáticos e
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os da experiência do sujeito.

É necessário, portanto, “considerar a importância dos saberes das áreas de


conhecimento (ninguém ensina o que não sabe), dos saberes pedagógicos (pois o
ensinar é uma prática educativa que tem diferentes e diversas direções de sentido na
formação do humano), dos saberes didáticos (que tratam da articulação da teoria da
educação e da teoria do ensino para ensinar nas situações contextualizadas), dos
saberes da experiência do sujeito professor (que dizem do modo como nos apropriamos
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do ser professor em nossa vida)”. É preciso, portanto, que o docente se esforce por
adquirir e que aperfeiçoe contínua e regularmente os saberes que lhe permitem
influenciar da maneira adequada na formação de capital humano. A preocupação com a
qualificação, ao contrário do que ocorre com a titulação, deve ser constante.

Quatro são, nesse sentido, as dimensões que um professor qualificado deve atingir em
sua profissão de formador de capital humano: “dimensão técnica – capacidade de lidar
com os conteúdos, dimensão estética – presença da sensibilidade e sua orientação numa
perspectiva criadora, dimensão política – participação na construção coletiva da
sociedade e exercício de direitos e deveres e dimensão ética – orientação da ação,
fundada no princípio do respeito e da solidariedade, na direção da realização de um bem
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coletivo”.

Para ser professor, é preciso muito mais que um título de pós-graduação. Docentes
necessitam de saberes essenciais para exercer a profissão de ensinar; conhecimento que
têm de estar presentes de forma conjunta. Entretanto, a capacitação própria e específica
para o ambiente de sala de aula não tem sido um expediente muito utilizado, “só
recentemente os professores universitários começaram a se conscientizar de que seu
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papel de docente do ensino superior, como o exercício de qualquer profissão” exige
uma qualificação que não se adquire apenas com a experiência como aluno ou com a
obtenção de um título.

A competência pedagógica é fundamental. Todavia, a maioria dos professores dos cursos


de direito não possui um mínimo de formação pedagógica antes de adentrarem na
docência: “adentram a sala de aula sem saber o que a docência exige, baseando-se
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apenas na vivência como alunos”. É que, atualmente, de maneira completamente
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equivocada, a valorização de todos os saberes para o exercício da profissão de professor


não é o que predomina. Valoriza-se apenas o saber técnico (firmado pelo título) e o
saber da experiência (firmado pela função jurídica exercida), não se preocupando com a
formação pedagógica do docente ou se ele tem didática para conduzir uma aula.

Assim, na atualidade a crise do ensino jurídico já se encontra presente e tende a ficar


pior com projetos de lei equivocados como o é o caso do PLS 220/2010. É óbvio que
para se desatolar da crise o habitus do ensino jurídico atualmente reproduzido deve ser
revisitado e transformado, mas esse é um processo demorado e que parte da
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complementaridade entre o habitus da manutenção e o habitus da transformação; isto
é, entre o aprender a pensar juridicamente (saberes técnico e da experiência) e ter uma
visão para além da cultura estritamente jurídica (saberes pedagógico e didático). Vê-se,
portanto, que não basta o título pelo título, é preciso, se assim se quiser, que ao lado
dele venha, em destaque, uma boa qualificação. Um título serve apenas para incorporar
mais uma entrada no currículo, aumentar a remuneração de seu portador ou permitir o
acesso a certos cargos, coisas indubitavelmente importantes, se individualmente
consideradas, mas que não contribuem para a formação de capital humano.

Já dizia Rousseau em seu Discurso sobre as ciências e as artes que a riqueza do


vestuário ou a elegância de um indivíduo são ornamentos vãos inventados para esconder
alguma deformidade e que, por isso, dificultam ao indivíduo de bem o emprego de suas
forças para melhor combater, pois um indivíduo de bem sente prazer em combater nu
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ou sob trajes rústicos, em vez de adornado por um excesso de pompa. O mesmo
deveria valer para o exercício da docência, o professor deveria se sentir estimulado,
especialmente pelos órgãos governamentais especializados, a procurar cada vez mais
uma melhor qualificação, e não se encher de títulos.

4. CONCLUSÃO

Diante do exposto, conclui-se que alguma providência tem que ser tomada para tentar
salvar o ensino jurídico brasileiro. Ou seja, tem de haver alguma atitude por parte de
autoridades, entidades e organismos não governamentais para que o ensino
universitário como um todo, em especial o jurídico, seja resgatado do atoleiro em que se
encontra hoje.

A profissão do professor não é levada a sério como deveria ser. Esquece-se que o
professor possui um papel fundamental no saber do aluno. Assim, o docente tem que se
especializar, tem que estudar e tem que se formar, uma vez que precisa de
conhecimentos específicos para mergulhar na tarefa de ensinar. O professor precisa
conhecer profundamente e se especializar nos saberes essenciais como (saberes do
conhecimento, pedagógicos, didáticos, experiências etc.). Para ser professor é
necessário tudo isso e muito mais. Não se pode valorizar, para o exercício da atividade
docente, somente as experiências adquiridas e vividas daquele profissional. Essas
características têm que estarem presentes em conjunto com todos os saberes.

As autoridades brasileiras responsáveis pela Educação precisam se conscientizar para


que seja feito alguma coisa para mudar o cenário do ensino jurídico atual. A sociedade
precisa se mobilizar para tentar junto ao Ministério da Educação uma solução para a já
instaurada crise no ensino jurídico. O MEC tem que fiscalizar com mais seriedade as
instituições de ensino que não possuem o intuito de aprendizagem e não autorizar
confecções de verdadeiras aberrações jurídicas.

Além disso, o Poder Legislativo, poder este eleito, deveria se preocupar em representar
efetivamente o povo e não em prejudicá-lo, consequência esta direta caso o projeto em
questão seja aprovado. A LDB precisa, sim, ser alterada, mas para fortificar os critérios
para contratação de professores em instituições de ensino superior e não para mitigar os
requisitos existentes (que são poucos) para investidura de professores para lecionar em
universidades. Tem-se que ter em mente que, somente com a elevação da qualidade da
educação do Brasil, já que a mesma reflete em toda a sociedade, é que se pode sonhar
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com um país melhor.

5. BIBLIOGRAFIA

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OLIVEIRA, Juliana Ferrari de. A formação dos professores dos cursos de direito no Brasil:
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PIMENTA, Selma Garrido; ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos. Docência do ensino
superior. São Paulo: Cortez, 2002.

PINHEIRO FARO, Julio. Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação. Revista


de Direito Educacional. vol. 3. p. 217. São Paulo: Ed. RT, 2011.

______; FABRIZ, Daury Cesar. Economics of legal education in Brazil. In: MURZEA,
Cristinel Ioan; REPANOVICI, Angela (ed.). Legal practice and international laws. Brasov:
Wseas/Transylvania University of Brasov, 2011.

RIOS, Terezinha Azerêdo. Compreender e ensinar: por uma docência da melhor


qualidade. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Lourdes Santos Machado.


São Paulo: Nova Cultural, 1997.

SAN TIAGO DANTAS. A educação jurídica e a crise brasileira. Cadernos FGV Direito Rio.
n. 3. p. 9. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro/FGV, fev. 2009.

1 SAN TIAGO DANTAS. A educação jurídica e a crise brasileira. Cadernos FGV Direito Rio
3/14.

Página 8
A SÍNDROME DE MÜNCHHAUSEN E O ENSINO JURÍDICO
BRASILEIRO

2 Uma crítica contundente e incisiva ao ensino jurídico no Brasil pode ser encontrada
em: PINHEIRO FARO, Julio; FABRIZ, Daury Cesar. Economics of legal education in Brazil.
In: MURZEA, Cristinel Ioan; REPANOVICI, Angela. (ed.). Legal practice and international
laws. Brasov: Wseas/Transylvania University of Brasov, 2011. p. 265.

3 Algumas Instituições de Ensino Superior (IES) têm editado publicações que dão conta
das tentativas de afastar a síndrome de Münchhausen do ensino jurídico, como, por
exemplo, os docentes e discentes da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), que narram
experiências de ensino aplicadas naquela IES e fazem também análises sobre o habitus
do ensino jurídico: MIGUEL, Paula Castello; OLIVEIRA, Juliana Ferrari de (org.). Ensino
jurídico: experiências inovadoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; FRANCISCHETTO,
Gilsilene Passon P. (org.). Ensino jurídico e pedagogia: em busca de novos saberes.
Curitiba: CRV, 2010; FRANCISCHETO, Gilsilene Passon P. (org.). Um diálogo entre
ensino jurídico e pedagogia. Curitiba: CRV, 2011. Também não se pode deixar de
destacar os registros feitos pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV),
publicados nos Cadernos FGV Direito Rio, contendo, dentre outros, ensaios de San Tiago
Dantas, Caio Farah Rodriguez, Joaquim Falcão, Carlos Ari Sundfeld, Roberto Mangabeira
Unger.

4 Sugerindo tal revisão, ver, dentre outros: PINHEIRO FARO, Julio. Ensino jurídico: em
busca do habitus de transformação. Revista de Direito Educacional 3/217
(DTR\2011\2502)-259.

5 “Art. 66. A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de


pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado.
Parágrafo único. O notório saber, reconhecido por universidade com curso de doutorado
em área afim, poderá suprir a exigência de título acadêmico.”

6 MARQUES, Fabiano Lepre. Ensino jurídico: o embate entre a formação docente e o


pacto de mediocridade. Revista de Direito Educacional 3/200.

7 OLIVEIRA, Juliana Ferrari de. A formação dos professores dos cursos de direito no
Brasil: a pós-graduação stricto sensu. Tese de Doutorado em Educação, São Paulo, PUC,
2010, p. 43.

8 BITTAR, Eduardo C. B. Estudos sobre ensino jurídico: pesquisa, metodologia, diálogo e


cidadania. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 8.

9 MARQUES, Fabiano Lepre. Op. cit., p. 198.

10 OLIVEIRA, Juliana Ferrari de. Op. cit., p. 26.

11 PIMENTA, Selma Garrido; ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos. Docência do


ensino superior. São Paulo: Cortez, 2002. p. 71.

12 Idem, ibidem.

13 RIOS, Terezinha Azerêdo. Compreender e ensinar: por uma docência da melhor


qualidade. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 108.

14 MASETTO, Marcos Tarciso. Competência pedagógica do professor universitário. São


Paulo: Summus, 2003. p. 13.

15 OLIVEIRA, Juliana Ferrari de. Op. cit., p. 65.

16 PINHEIRO FARO, Julio. Op. cit., p. 233.

Página 9
A SÍNDROME DE MÜNCHHAUSEN E O ENSINO JURÍDICO
BRASILEIRO

17 ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Lourdes Santos


Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1997. p. 191.

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