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COLETIVIZAÇÃO E DESKULAQUIZAÇÃO

Uma década após a Revolução de Outubro, a situação económica da União Soviética, e em particular da
agricultura, enfrentava um grave impasse. Se bem que a produção agrícola tivesse recuperado para
níveis de produtividade similares aos anteriores a 1917, em consequência das medidas liberalizantes
aplicadas no âmbito da N.E.P., a insuficiente quantidade de cereais disponível no mercado continuava a
não permitir exportações suficientes para o financiamento do vasto e ambicioso programa estatal de
industrialização acelerada de um país ainda essencialmente agrário. Por outro lado, a relutância do
campesinato em vender a sua produção a baixo preço ao Estado colocava permanentemente em causa
o abastecimento regular das cidades. Para ultrapassar este impasse, o regime estalinista decide, em
novembro de 1929, empreender a coletivização acelerada e total da agricultura, ou seja, a apropriação
estatal das terras, das colheitas, do gado e das alfaias, mediante a implantação das designadas
“fortalezas do socialismo: as explorações agrícolas coletivas de estatuto cooperativo (kolkhozes), as
explorações agrícolas estatais (sovkhozes) e as estações de máquinas e tratores (Mashinno-Traktornaya
Stantsiya ou M.T.S.). No âmbito do Primeiro Plano Quinquenal, o Estado passará a estabelecer planos de
coleta para a produção agropecuária, visando garantir, de modo regular e quase gratuito, o
abastecimento das cidades e das forças armadas e a exportação para o mercado externo”. Outro dos
desideratos desta “segunda revolução” consiste na imposição de um controle político-administrativo
mais efetivo sobre uma categoria social que representava, àquela época, mais de 80% da população
soviética.

Para milhões de camponeses, as consequências destas medidas revelam-se trágicas. Teoricamente


baseada no princípio da adesão voluntária, a coletivização será, em muitos casos, implementada de
forma caótica e arbitrária, com recurso aos mais variados abusos e violências, suscitando a oposição
maciça do campesinato e o recuo táctico do poder comunista, forçado a suspendê-la temporariamente
entre a Primavera e o Outono de 1930. Os escassos funcionários e membros das células rurais do
Partido Comunista, encarregues da execução, no terreno, da política de coletivização, viram as suas
fileiras reforçadas com o acréscimo de, aproximadamente, 200.000 operários e ativistas provenientes
dos centros urbanos, organizados, para esse efeito, em brigadas. Importa sublinhar que na União
Soviética continuava a existir uma profunda fratura entre o mundo dominante das cidades e o mundo
dominado das aldeias, pelo que a coletivização é interpretada como ato de guerra cometido pelo Estado
contra o modo de vida e a cultura camponesa tradicionais, reeditando a espiral de violência e de fome
que caracterizara o período da Guerra Civil e do Comunismo de Guerra (1918-1921).

É desencadeada, em simultâneo, uma campanha de deskulaquização, tendo por objetivo a liquidação


dos kulaks enquanto classe, ou seja, a erradicação dos camponeses considerados hostis à coletivização
socialista da agricultura, acusados de sabotarem as coletas estatais, de acumularem a produção ou de se
recusarem a vendê-la. Num contexto de violência institucionalizada, a arbitrariedade é promovida à
condição de virtude revolucionária, através da deportação (a título definitivo) para regiões inóspitas,
como o Cazaquistão e a Sibéria, neutralizaram-se os elementos economicamente mais dinâmicos e
politicamente susceptíveis de criar maior perigo. As operações de deportação fornecem também
recursos humanos necessários à colonização e exploração das vastas riquezas naturais existentes
naqueles territórios. No cômputo total, esta enorme operação de engenharia social afetara perto de 2,8
milhões de pessoas: 2.400.000 – dos quais 300.000 ucranianos – no contexto da campanha de
deskulaquização de 1930-1931, e 340.000, em consequência da repressão da resistência oposta às
requisições efetuadas pelos organismos estatais de coleta, entre 1932 e 1933. Estigmatizados «como
vermes, como piolhos que tinham de ser destruídos», os deportados são, em muitos casos, obrigados a
sobreviver em condições de extrema precariedade e abandonados em territórios inóspitos, nos quais
enfrentam todo o tipo de adversidades. Eis o exemplo dos 25.000 deportados na região russa de Kotlas.

Calculam-se em 500.000 os camponeses (incluindo muitas crianças) que perecem, vítimas do frio, da
fome e do trabalho extenuante, entre 1930 e 1934, 30.000 camponeses são punidos com a pena capital
e cerca de 400.000 enviados para os campos de trabalho forçado (o Gulag), tendo os sobreviventes
constituído, mais tarde, um dos alvos preferenciais do Grande Terror de 1937-1938.

Em consequência de vários fatores a resposta camponesa assume expressões de desespero e violência


em numerosas manifestações, revoltas e distúrbios por todo o país. Suprimidas com maior ou menor
dificuldade pelas forças de segurança e, em particular, pela O.G.P.U., as sublevações camponesas (mais
de 14.000 casos registados) mobilizam cerca de três milhões de pessoas31, com particular incidência nas
regiões dos rios Don e Volga, no Cáucaso do Norte, Cazaquistão, e sobretudo, na Ucrânia. De facto, é
nesta região, conhecida como o “celeiro da Rússia”, que a resistência à coletivização é mais generalizada
e violenta, traduzindo-se em mais de 4.000 distúrbios, envolvendo 1,2 milhões de camponeses.

O ÍNICIO DA FOME
A partir de 1931, e com o conhecimento das autoridades, surgem os primeiros e ainda reduzidos focos
de fome no Cazaquistão e nas principais áreas cerealíferas. Na sequência das más colheitas registadas na
Sibéria Ocidental e no Cazaquistão, milhares de kolkhozes da Ucrânia, do Cáucaso do Norte e da região
do rio Don, são objeto de requisições acrescidas. Deste modo, os órgãos estatais de coleta, apesar de
uma colheita bastante medíocre (69 milhões de toneladas), mentem obter perto de 23 milhões de
toneladas. A Ucrânia é obrigada a contribuir com 42% da sua produção cerealífera, agravando a
desorganização do ciclo produtivo iniciada com a coletivização forçada e a deskulaquização. Nesta fase
inicial, a fome é o resultado imprevisto e não programado da política estatal de destruição das
estruturas sociais e produtivas da economia de mercado, concorrendo, para o seu surgimento, a
convergência dos seguintes fatores: A grave desorganização do ciclo produtivo agrícola, em resultado da
coletivização e da deskulaquização.

A destruição pelo próprio campesinato de grande parte do seu património, como gesto de resistência à
coletivização forçada. Entre 1929 e 1930, o abate do gado reduziu em 30% o número de cabeças; no
período de 1928-1933, reduziu-se para metade; A ineficácia e miséria cotidiana dos kolkhozes,
instituídos num contexto de violência e de caos generalizados; As vagas de requisição sucessivas e
brutais, estimuladas pelas dificuldades do processo de industrialização acelerada, pelo crescimento
urbano desregrado e pelo agravamento da dívida externa; A resistência dos camponeses expropriados
dos seus bens fez ao que consideram tratar-se de uma “segunda servidão” -qualificada pelo crítico da
política estalinista, Nikolai Bukharin, de “exploração militar-feudal – com significativas perdas de
produtividade, quer resultantes da sua rejeição do modelo coletivista, quer provocadas pela
subnutrição; As condições meteorológicas adversas, afetaram as colheitas, devendo-se, no entanto,
relativizar a sua importância no desencadeamento da tragédia. Apesar de ser bem menos intensa e
generalizada do que a fome de 1921-22, em termos de seca e de regiões afetadas, a fome de 1932-1933
provocou três a quatro vezes mais vítimas; além disso, nos anos de colheita inferior à de 1932, como o
de 1945, não houve uma fome generalizada na U.R.S.S. Na Primavera de 1932, assiste-se, em diversas
regiões, ao agravamento da situação alimentar, particularmente na Ucrânia e no Cazaquistão. No
entanto, o governo central, animado pelo êxito das requisições, fixa para o ano de 1932 um plano de
coleta com o valor de 29,5 milhões de toneladas, dos quais 7 milhões deverão ser obtidos
exclusivamente na Ucrânia. Deste modo, torna-se inevitável a eclosão de novo conflito entre as
autoridades locais, obrigadas a cumprir a todo o custo o plano de coleta, e os camponeses,
determinados a conservar uma parte das reservas alimentares indispensáveis à sua sobrevivência. A
importância que o regime comunista atribui ao cumprimento dos planos de coleta é sublinhada por um
dos mais destacados membros do Poliburo (o órgão dirigente do Partido Comunista da U.R.S.S.), Sergei
Kirov, que a qualifica de pedra de toque da nossa força ou da nossa fraqueza, da força ou da fraqueza
dos nossos inimigos. No início, Estaline manifesta a sua insatisfação com o ritmo lento da campanha de
requisições na Ucrânia, responsabilizando os dirigentes locais pela situação, e imputando-lhes uma
atitude de laxismo e de falta de firmeza perante aquilo que considera serem atos de sabotagem e de
terrorismo. Em 7 de Agosto de 1932 entra em vigor uma nova disposição legal (conhecida por “lei das
cinco espigas”) que pune com dez anos de campo de trabalho forçado, ou com a pena capital, o roubo e
delapidação da propriedade social. Visa-se, desta maneira, impedir que as populações esfaimadas
desviem para proveito próprio a produção alimentar. Durante o mês de agosto, as autoridades centrais
são informadas da eventualidade de uma “situação alimentar crítica” no próximo Inverno. Vyacheslav
Molotov informa o Poliburo de que existe “uma real ameaça de fome mesmo nos distritos onde a
colheita tinha sido excelente”, no entanto, propõe o cumprimento integral do plano de coleta.

O Holodomor O extermínio do campesinato ucraniano A decisão de Estaline de utilizar a fome,


provocando artificialmente o seu alastramento, para «dar uma lição» aos camponeses ucranianos 54, é
tomada num contexto especialmente delicado para o ditador. No decurso do Verão e Outono de 1932
conjugam-se diversos problemas que irão agravar a sua paranoia e insegurança: a agudização da crise
provocada pela execução do Primeiro Plano Quinquenal55, o receio de uma invasão polaca, não
obstante a recente assinatura de um pacto de não-agressão com o governo de Varsóvia56, o suicídio da
sua esposa Nadezhda Alliluyeva57 e a descoberta de um grupo oposicionista no interior do Partido,
conhecido por «Plataforma de Ryutin»

De acordo com esta leitura dos factos, o incumprimento dos planos de colheita na Ucrânia e na região
do Kuban60 revela a existência de uma vasta organização conspirativa, envolvendo kulaks, nacionalistas
ucranianos e espiões do dirigente polaco Jozef Pilsudski, perante a suspeitosa atitude complacente dos
três principais dirigentes da república: o chefe do governo, Vlas Chubar, o líder do Partido Comunista,
Stanislav Kosior e o responsável da polícia política, Stanislav Redens62. Na sua óptica, é inaceitável que a
segunda mais importante república da União, cujo potencial industrial e agrícola é de importância
estratégica, esteja numa situação de grande vulnerabilidade, à mercê da sabotagem
contrarrevolucionária e nacionalista, pondo, assim, em risco a própria continuidade do sistema político
criado por Lenine em 1917. Nesta conjuntura, Estaline tem bem presente o facto da resistência à
coletivização ter sido particularmente violenta na Ucrânia (só em Março de 1930, tinham ocorrido mais
de 6.500 motins e distúrbios) e do poder soviético ter deixado de vigorar, durante vários meses, em
quase uma centena de distritos contíguos à Polónia, sendo uma das palavras de ordem dos camponeses
revoltosos «Vse ne vmerla Ukraina!» («A Ucrânia ainda não morreu!»)

Com base na “interpretação nacional”64 da crise ucraniana, a decisão de instrumentalizar a fome


adquire, a partir de então, as características de genocídio. Assiste-se, com efeito, a um processo de
“radicalização cumulativa”65 que torna a fome ucraniana qualitativamente diferente das fomes
ocorridas noutras regiões da União Soviética. No espaço de alguns meses, entre o Outono de 1932 e o
Verão de 1933, cerca de 3,5 a 5 milhões de ucranianos – na Ucrânia e no Kuban – sucumbem aos efeitos
da fome e das epidemias associadas, como o tifo e a disenteria, sendo a taxa de mortalidade
particularmente elevada nas crianças86. Durante a fase mais crítica, de Março a Abril de 1933, 15.000 a
20.000 pessoas morrem diariamente, perante a indiferença e o silêncio generalizados.

As pessoas inchadas são transportadas em comboios de mercadorias e abandonadas a cinquenta –


sessenta quilómetros da cidade, para morrerem sem que ninguém as veja. Acontece muitas vezes que o
comboio só fica com a lotação esgotada dois ou três dias depois do encerramento das portas dos
vagões. Há uns dias atrás, um empregado dos caminhos-de-ferro, que passava próximo de um desses
vagões, ouviu gritos; aproximou-se e ouviu um infeliz, no seu interior, que lhe suplicava que o deixasse
sair, porque o cheiro dos cadáveres se tornara insuportável. Uma vez o vagão aberto, verificou-se que
ele era o único sobrevivente; então, foi levado dali e deixado a morrer num outro vagão, onde as
pessoas enclausuradas ainda estavam vivas. À chegada aos locais de descarga, abrem-se grandes valas e
retiram-se todos os mortos dos vagões. Garantem-me que, se olhar com atenção, com frequência vejo
uma pessoa deitada na vala reanimar e mexer-se num último ímpeto de vitalidade. Porém, o trabalho
dos coveiros não é interrompido e a descarga prossegue. Pelo seu número de vítimas, a fome
representa um caso excepcional em toda a história demográfica europeia, tendo a esperança média de
vida caído para níveis só comparáveis aos do período pré-histórico do Neolítico.

Durante a catástrofe, o Estado soviético continua a exportar cereais para o estrangeiro (em 1932,
1.730.000 toneladas; em 1933, 1.680.000 toneladas) com vista ao financiamento da industrialização,
apesar de, em termos comparativos, o valor dessas exportações ser claramente inferior ao de outros
produtos (em 1932-1933, os cereais renderam 369 milhões de rublos, enquanto a madeira e o petróleo
representaram 1.570 milhões de rublos)107. Por outro lado, são acumuladas enormes reservas
estratégicas (em 1933, 1.800.000 toneladas) para a eventualidade de um conflito militar108 . Para
garantir as condições necessárias às futuras colheitas, em risco devido à mortandade que dizima grande
parte da mão-de-obra rural, e para prevenir o alastramento de epidemias resultantes da acumulação de
cadáveres insepultos, as autoridades centrais promulgam, em 8 de Maio de 1933 uma diretiva secreta
que suspende formalmente as requisições109 . São adoptadas, de forma tardia, seletiva e
insuficiente110, medidas de auxílio a algumas das regiões atingidas pelas dificuldades alimentares, no
sentido de «estimular a saída para o trabalho dos kolkhozianos esfaimados. Assim, entre janeiro e Junho
de 1933, disponibilizam 320.000 toneladas de cereais – ou seja 10 quilos de cereais por pessoa,
representando somente 3% do consumo médio anual de um camponês – para cerca de 30 milhões de
pessoas atingidas pela fome. No entanto, esta ajuda, além de privilegiar o abastecimento às cidades,
destina-se apenas aos que a “merecem”, como os camponeses com melhor rendimento, os brigadistas e
os tratoristas dos kolkhozes
Bibliografia

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libre.pdf?1390870697=&response-content-
disposition=inline%3B+filename%3DHolodomor_O_Genocidio_Ucraniano.pdf&Expires=1683668075&Sig
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