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Ementa: Constitucional. Administrativo.

Agências reguladoras e
Poder Regulamentar. Art. 24, VIII, e Art. 78- A da Lei 10.233/2011.
Resolução ANTT 233/2003. Previsão Legal da Competência para a
Agência Reguladora Editar Regulamento sobre Infrações Adminis-
trativas. Previsão das Sanções Cabíveis e Critérios Mínimos para a
Regulamentação. Alegação de Violação ao Princípio da Legalidade.
Improcedência.

Supremo Tribunal Federal


Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.906

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5.906 DISTRITO FEDERAL


RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO
REDATOR DO ACÓRDÃO: MIN. ALEXANDRE DE MORAES

1. As Agências Reguladoras, criadas como autarquias especiais pelo Poder Legislativo (CF, art.
37, XIX), recebem da lei que as instituem uma delegação para exercer seu poder normativo
de regulação, competindo ao Congresso Nacional a fixação das finalidades, dos objetivos
básicos e da estrutura das Agências, bem como a fiscalização de suas atividades.
2. As Agências Reguladoras não poderão, no exercício de seu poder normativo, inovar pri-
mariamente a ordem jurídica sem expressa delegação, tampouco regulamentar matéria para
a qual inexista um prévio conceito genérico, em sua lei instituidora (standards), ou criar ou
aplicar sanções não previstas em lei, pois, assim como todos os Poderes, Instituições e órgãos
do poder público estão submetidas ao princípio da legalidade (CF, art. 37, caput).
3. No caso em julgamento, a Lei 10.233/2003, com as alterações redacionais supervenientes,
fixou os critérios mínimos indispensáveis para o exercício, pela Agência Reguladora, da com-
petência para imposição de sanções pela prática de infrações administrativas.
4. As disposições emanadas da Resolução ANTT 233/2003 obedecem às diretrizes legais, na
medida em que protegem os interesses dos usuários, relativamente ao zelo pela qualidade e
pela oferta de serviços de transportes que atendam a padrões de eficiência, segurança, con-
forto, regularidade, pontualidade e modicidade das tarifas, assim como a cominação das
penas não desborda da parâmetros estabelecidos em lei.
5. Ação Direta julgada improcedente.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos esses autos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal,


em Sessão Virtual do Plenário, sob a Presidência da Senhora Ministra ROSA WEBER, em con-
formidade com a certidão de julgamento, por maioria, julgaram improcedente a ação direta,
para declarar a constitucionalidade do art. 24, XVIII, e do art. 78-A, da Lei 10.233/2001, nos
termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão, vencido o Minis-
tro Marco Aurélio (Relator). Não votou o Ministro André Mendonça, sucessor do Ministro
Marco Aurélio. Plenário.
Brasília, 6 de março de 2023.

Ministro ALEXANDRE DE MORAES


Relator

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RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Adoto, como relatório, as informa-


ções prestadas pelo assessor Hazenclever Lopes Cançado Júnior:

A Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Pas-


sageiros – Abrati ajuizou ação direta buscando ver declarada a inconstitucio-
nalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 24, inciso XVIII, e 78-A,
cabeça e incisos I a VI, da Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, a atribuírem,
à Agência Nacional de Transporte Terrestre – ANTT, a criação, no âmbito
dos serviços de transporte, de tipos infracionais, e a inconstitucionalidade,
por arrastamento, da Resolução ANTT nº 233/2003. Eis o teor:

Lei nº 10.233/2001:

Art. 24. Cabe à ANTT, em sua esfera de atuação, como atri-


buições gerais:

[…]

XVIII – dispor sobre as infrações, sanções e medidas admi-


nistrativas aplicáveis aos serviços de transportes. [...]
Art. 78-A. A infração a esta Lei e o descumprimento dos
deveres estabelecidos no contrato de concessão, no termo de per-
missão e na autorização sujeitará o responsável às seguintes sanções,
aplicáveis pela ANTT e pela ANTAQ, sem prejuízo das de natureza
civil e penal:

I – advertência;
II – multa;
III – suspensão;
IV – cassação;
V – declaração de inidoneidade;
VI – perdimento do veículo. [...]

Resolução nº 233/2003 da ANTT:

Art. 1º Constituem infrações aos serviços de transporte rodo-


viário de passageiros sob a modalidade interestadual e internacional,
sem prejuízo de sanções por infrações às normas legais, regulamen-
tares e contratuais não previstas na presente Resolução, os seguintes
procedimentos, classificados em Grupos conforme a natureza da
infração, passíveis de aplicação de multa, que será calculada tendo
como referência o coeficiente tarifário
– CT vigente para o serviço convencional com sanitário, em
piso pavimentado.
- multa de 10.000 vezes o coeficiente tarifário:

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a) realizar transporte permissionado de passageiros, sem a


emissão de bilhete;
b) emitir bilhete sem observância das especificações;
c) reter via de bilhete destinada ao passageiro;
d) vender bilhete de passagem por intermédio de pessoa
diversa da transportadora ou do agente credenciado, ou em local
não permitido;
e) não observar o prazo mínimo estabelecido para início da
venda de bilhete de passagem;
f) não devolver a importância paga pelo usuário ou não reva-
lidar o bilhete de passagem para outro dia e horário;
g) não fornecer, nos prazos estabelecidos, os dados estatísti-
cos e contábeis, conforme disposto na Resolução ANTT nº 3.524, de
26 de maio de 2010;
h) não portar no veículo formulário para registro de recla-
mações de danos ou extravio de bagagens;
i) transportar passageiros em número superior à lotação
autorizada para o veículo, salvo em caso de socorro;
j) não portar, em local de fácil acesso aos usuários e à fiscali-
zação, no ônibus em serviço, cópia do quadro de tarifas;
K) trafegar com veículo em serviço, apresentando defeito em
equipamento ou item obrigatório;
l) trafegar com veículo em serviço, sem documento de porte
obrigatório não previsto em infração específica, no original ou cópia
autenticada;
m) emitir “Bilhete de Embarque Gratuidade”, sem observân-
cia das especificações;
n) emitir bilhete de passagem com o desconto previsto em
legislação específica, sem observância das especificações;
o) não fornecer os dados estatísticos de movimentação de
usuários na forma e prazos previstos na legislação específica;
p) não afixar, em local visível, relação dos números de tele-
fone ou outras formas de contato com o órgão fiscalizador;
q) não divulgar informações ou fornecer formulários a que
esteja obrigado, aos usuários.

II - multa de 20.000 vezes o coeficiente tarifário:

a) não atender à solicitação da ANTT para apresentação de


documentos e informações no prazo estabelecido;
b) retardar, injustificadamente, a prestação de transporte
para os passageiros;
c) não observar os procedimentos relativos ao pessoal da
transportadora;
d) não fornecer comprovante do despacho da bagagem de
passageiro;

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e) empreender viagem com veículo em condições inadequa-


das de higiene e/ou deixar de higienizar as instalações sanitárias,
quando do início da viagem e nas saídas de pontos de parada ou de
apoio;
f) não adotar as medidas determinadas pela ANTT ou órgão
conveniado, objetivando a identificação dos passageiros no embar-
que e o arquivamento dos documentos pertinentes;
g) utilizar pessoas ou prepostos, nos pontos terminais, pon-
tos de seção e de parada, com a finalidade de angariar passageiros;
h) vender mais de um bilhete de passagem para uma mesma
poltrona, na mesma viagem;
i) trafegar com veículo em serviço, sem equipamento ou item
obrigatório;
j) divulgar informações que possam induzir o público em
erro sobre as características dos serviços a seu cargo;
k) atrasar o pagamento do valor da indenização por dano ou
extravio da bagagem;
l) transportar bagagem fora dos locais próprios ou em condi-
ções diferentes das estabelecidas para tal fim;
m) não observar a sistemática de controle técnico-operacio-
nal estabelecida para o transporte de encomenda;
n) transportar encomendas ou mercadorias que não sejam
de propriedade ou não estejam sob a responsabilidade de passagei-
ros, quando da prestação de serviço de transporte sob o regime de
fretamento;
o) apresentar dados estatísticos e contábeis de maneira
incompleta; e
p) não observar o prazo estabelecido em Resolução da
ANTT para arquivamento dos bilhetes de passagem e os bilhetes de
embarque;
q) Não observar os critérios para informação aos usuários
dos procedimentos de segurança.
r) não emitir documento ao beneficiário, indicando a data,
a hora, o local e o motivo da recusa em conceder as gratuidades e
descontos estabelecidos na legislação específica;

III – multa de 30.000 vezes o coeficiente tarifário:

a) não comunicar a ocorrência de assalto ou acidente, na


forma e prazos estabelecidos na legislação;
b) executar serviço com veículo cujas características não cor-
respondam à tarifa cobrada;
c) executar serviço com veículo de características e especifi-
cações técnicas diferentes das estabelecidas, quando da delegação;
d) alterar, sem prévia comunicação a ANTT, o esquema ope-
racional da linha;

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e) cobrar, a qualquer título, importância não prevista ou não


permitida nas normas legais ou regulamentos aplicáveis;
f) não providenciar, no caso de atraso de viagem ou prete-
rição de embarque, o transporte do passageiro de acordo com as
especificações constantes do bilhete de passagem;
g) comercializar seguro facultativo de acidentes pessoais ou
qualquer serviço ou produto, em conjunto com o bilhete de passa-
gem, de forma que possa induzir a obrigatoriedade de sua aquisição;
h) suprimir viagem a que esteja obrigado, sem prévia comu-
nicação a ANTT;
i) não comunicar a interrupção do serviço pela impratica-
bilidade temporária do itinerário, na forma e prazo determinados;
j) transportar pessoa fora do local apropriado para este fim;
k) recusar o embarque ou desembarque de passageiros, nos
pontos aprovados, sem motivo justificado;
l) não dar prioridade ao transporte de bagagens dos
passageiros;
m) não disponibilizar os assentos previstos para transporte
gratuito e com desconto no valor de passagem, na quantidade e
prazo estabelecidos na legislação específica;
n) não conceder o desconto mínimo de cinquenta por cento
do valor da passagem previsto em legislação específica;
o) não aceitar como prova de idade ou comprovante de ren-
dimento os documentos indicados em legislação específica que trata
de benefícios de gratuidade e/ou de desconto no valor de passagem
no transporte coletivo interestadual de passageiros; e
p) não observar o limite de trinta minutos antes da hora mar-
cada para o início da viagem para o comparecimento ao terminal de
embarque do beneficiário da gratuidade ou do desconto no valor da
passagem previstos na legislação específica;
q) não observar as normas e procedimentos de atendimento
a pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida; e
r) não observar as normas e procedimentos necessários para
garantir condições de acessibilidade aos veículos;
s) não observar as normas e procedimentos de inscrição indi-
cativa da categoria e de cadastramento dos ônibus;

IV – multa de 40.000 vezes o coeficiente tarifário:

a) executar serviços de transporte rodoviário interestadual ou


internacional de passageiros sem prévia autorização ou permissão;
b) não contratar seguro de responsabilidade civil, de acordo
com as normas regulamentares, ou empreender viagem com a res-
pectiva apólice em situação irregular;
c) praticar a venda de bilhetes de passagem e emissão de
passagens individuais, quando da prestação de serviço de transporte
sob o regime de fretamento;

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d) transportar pessoa não relacionada na lista de passagei-


ros, quando da prestação de serviço de transporte sob o regime de
fretamento;
e) utilizar terminais rodoviários nos pontos extremos e no
percurso da viagem objeto da delegação, quando da prestação de
serviço de transporte sob o regime de fretamento;
f) manter em serviço veículo cuja retirada de tráfego haja
sido exigida;
g) adulteração dos documentos de porte obrigatório;
h) ingerir, o motorista de veículo em serviço, bebida alcoólica
ou substância tóxica;
i) apresentar, o motorista de veículo em serviço, evidentes
sinais de estar sob efeito de bebida alcoólica ou de substância tóxica;
j) utilizar-se, na direção do veículo, durante a prestação do
serviço, de motorista sem vínculo empregatício;
k) transportar produtos perigosos ou que comprometam a
segurança do veículo, de seus ocupantes ou de terceiros;
l) interromper a prestação do serviço permissionado, sem
autorização da ANTT, salvo caso fortuito ou de força maior;
m) não observar os procedimentos de admissão, de controle
de saúde, treinamento profissional e do regime de trabalho dos
motoristas;
n) dirigir, o motorista, o veículo pondo em risco a segurança
dos passageiros;
o) não prestar assistência aos passageiros e à tripulação, em
caso de acidente, assalto, avaria mecânica ou atraso;
p) efetuar operação de carregamento ou descarregamento
de encomendas em desacordo com as normas regulamentares;
q) transportar encomendas fora dos locais próprios ou em
condições diferentes das estabelecidas para tal fim; e
r) praticar atos de desobediência ou oposição à ação da
fiscalização.

§1º Na hipótese das alíneas “a”, “b” e “g” do inciso IV deste


artigo e, quando não for possível sanar a irregularidade no local da
infração, das alíneas “k” e “l” do inciso I, “i” do inciso II e “c” a “f ”
e “h” a “k” do inciso IV deste artigo, a continuidade da viagem se
dará mediante a realização de transbordo, sem prejuízo das penali-
dades e medidas administrativas a serem aplicadas pela autoridade
de trânsito.
§2º O transbordo consiste na apresentação, pelo infrator, de
veículo de permissionária ou autorizatária de serviços disciplinados
nesta Resolução ou, considerando o número de passageiros trans-
portados, de bilhete(s) de passagem emitido(s) em linha operada por
permissionária.
§3º Caso a empresa infratora não efetive o transbordo no
prazo de 2 (duas) horas, contado a partir da autuação do veículo, na

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forma do §2º deste artigo, a fiscalização requisitará veículo ou bilhete


(s) de passagem para a continuidade da viagem.
§4º Caberá à empresa infratora o pagamento da despesa
de transbordo referida nos §§2º e 3º deste artigo, identificada no
“Termo de Fiscalização Com Transbordo” (Anexo I), expedido pela
fiscalização, tomando-se por base a distância a ser percorrida, por
passageiro transportado e o coeficiente tarifário vigente para os
serviços regulares da mesma categoria do executado pela infratora
ou do executado pela permissionária ou autorizatária que presta o
transbordo, se esse for de categoria inferior.
§5º Ocorrendo interrupção ou retardamento da viagem,
as despesas de alimentação e pousada dos passageiros correrão às
expensas da empresa infratora.
§6º A fiscalização liberará o veículo da empresa infratora
após a comprovação do pagamento das despesas referidas nos §§4º e
5º deste artigo, independentemente do pagamento da multa decor-
rente, sem prejuízo da continuidade da retenção por outros motivos,
com base em legislação específica.
§7º O pagamento da multa não elide o infrator da responsa-
bilidade de sanar a irregularidade, quando assim couber.
§8º Os dados contábeis a que se referem a alínea “g” do
inciso I deste artigo, devem ser fornecidos nos moldes estabelecidos
nos §§3º e 4º, inciso II, art. 1º, da Resolução ANTT nº 3.524, de 26
de maio de 2010.

Art. 2º Constituem infrações relativas aos aspectos econô-


mico-financeiros das atividades de que trata o art. 1º desta Resolução,
dentre outras, as seguintes condutas:
a) deixar de submeter previamente à ANTT modificações do
Estatuto ou do Contrato Social que configurem alteração do grupo
ou bloco de controle (ingresso ou saída de acionistas ou quotistas),
quer se caracterize, ou não, transferência do controle societário;
b) não efetuar os pagamentos devidos, nos termos e condi-
ções determinados no contrato de permissão;
c) deixar de comunicar à ANTT, no prazo de 10 dias úteis,
as operações financeiras realizadas por permissionárias com seus
quotistas e acionistas controladores diretos ou indiretos, ou com
empresas que nela tenham participação direta ou indireta; e
d) descumprir obrigações tributárias, trabalhistas e/ou
previdenciárias.
Parágrafo único. As infrações previstas neste artigo serão
punidas com multa de 50.000 vezes o coeficiente tarifário vigente
para o serviço convencional com sanitário, em piso pavimentado.
Art. 3º Na forma prevista no regulamento que disciplina o
processo administrativo para apuração de infrações, na aplicação das
multas de que trata esta Resolução deverá ser observada a ocorrência
de reincidência genérica ou específica.
Parágrafo único. Na reincidência genérica, o valor da multa
será acrescido em 30% (trinta por cento) e na reincidência específica,
o valor será acrescido em 50% (cinqüenta por cento).

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Art. 4º Nos casos em que houver previsão legal para apli-


cação da pena de suspensão, cassação, decretação de caducidade
da outorga ou declaração de inidoneidade, a Diretoria da ANTT
poderá, alternativamente, aplicar a pena de multa, considerando a
natureza e a gravidade da infração, os danos dela resultantes para
o serviço e para os usuários, a vantagem auferida pelo infrator, as
circunstâncias agravantes e atenuantes, os antecedentes do infrator e
a reincidência genérica ou específica.
§1º Nos casos em que a infratora é empresa permissioná-
ria, o valor da multa será de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a R$
200.000,00 (duzentos mil reais), considerando-se como valor de
referência o resultado da soma do valor mínimo da multa com o
valor de R$0,000036 (trinta e seis milionésimos de real) por unidade
de passageiro-quilômetro transportado no(s) serviço(s) atingido(s)
pela sanção convertida, no período de um ano, mediante a seguinte
fórmula:

M(P) = 20.000,00 + 0,000036 . P onde:


M(P) = valor básico de referência da multa em R$; 20.000,00
= valor mínimo da multa em R$; 0,000036= acréscimo por unidade
de passageiros- quilômetro por ano em R$/pass-km; e P = quanti-
dade de passageiros-quilômetro por ano em passkm.

§2º Para fins de cálculo da multa de que trata o §1º, será con-
siderada a última produção anual de transporte em passageiro por
quilômetro (pass.km) informada pela empresa por ocasião do levan-
tamento de informações para elaboração do Anuário Estatístico.
§3º Nos casos em que a infratora é empresa autorizatá-
ria, o valor da multa será de R$ 4.000,00 (quatro mil reais) a R$
200.000,00 (duzentos mil reais), considerando-se como valor de
referência o resultado da soma de R$ 3.000,00 (três mil reais) com
R$ 500,00 (quinhentos reais) por veículo cadastrado no Certificado
de Registro de Fretamento (CRF), mediante a seguinte fórmula
R$;M (A) = 3.000,00 + 500,00 . V onde: M(A) = valor básico de
referência da multa em 3.000,00 = constante, em R$; 500,00 =
acréscimo por veículo cadastrado no ertificado de Registro de
Fretamento (CRF), em R$; e V = quantidade de veículos cadastrados
no Certificado de Registro de Fretamento (CRF).
§4º Para fins de cálculo da multa de que trata o §3º, será
considerado o número de veículos cadastrados no Certificado de
Registro de Fretamento (CRF) na data da infração objeto da instau-
ração do processo administrativo para aplicação das penalidades de
que trata este artigo.
§5º Com base no valor de referência de que tratam os §§1º
e 3º, será calculado o valor final da multa, que poderá ser minorado
ou majorado, mediante decisão fundamentada.

Art. 5º Esta Resolução entra em vigor na data de sua


publicação.

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Ressalta a legitimidade, reportando-se ao artigo 103, inciso IX, da


Carta da República, ante a condição de entidade de classe de âmbito nacio-
nal. Justifica a pertinência temática no fato de as normas impactarem os
interesses dos congregados. Evoca precedentes.
Aponta violados os artigos 2º, 5º, incisos II e XXXIX, e 37, cabeça,
da Constituição Federal.
Discorre sobre as reformas realizadas no Estado brasileiro voltadas
à intervenção indireta na economia, mediante mecanismos de fiscalização,
controle e fomento. Alude à instituição das agências com o objetivo de regu-
lar atividades privadas. Frisa conferidas autonomia e atribuição normativa
visando a previsibilidade econômica e a segurança jurídica.
Afirma caber ao Legislativo, por meio de lei formal, a criação de
direitos e obrigações. Salienta a competência regulamentar do Executivo.
Assinala inobservado o princípio da reserva de lei consideradas a tipifica-
ção de infrações e a cominação de sanções direcionadas a particulares. Cita
doutrina e precedentes. Realça pertinente a atuação normativa das agências,
tendo em conta as balizas estabelecidas em lei.
Refere-se à impossibilidade de ato infralegal inovar na ordem jurí-
dica. Menciona a edição da Resolução nº 233/25.06.2003, a prever infrações
considerados os serviços de transporte rodoviário de passageiros, nas moda-
lidades interestadual e internacional.
Sublinha haver o artigo 25, cabeça e inciso I, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, implicado a revogação de dispositivos legais nos
quais previstas atribuição ou delegação, a órgão do Executivo, de competên-
cia conferida pela Lei Maior ao Congresso Nacional, especialmente em sede
normativa.
Destaca a proteção dos particulares, no Estado Democrático de
Direito, tendo em conta a atuação do Poder Público. Afirma imprescindíveis,
à disciplina do ilícito administrativo, parâmetros fixados em lei.
Requer a declaração da inconstitucionalidade parcial, sem redução
de texto, dos artigos 24, inciso XVIII, e 78-A, cabeça e incisos I a VI, da Lei
nº 10.233/2001, afastando-se interpretação no sentido de a agência regula-
dora, em caráter primário, poder, mediante ato infralegal, tipificar infração
administrativa e cominar penalidade correspondente, bem como a inconsti-
tucionalidade, por arrastamento, da Resolução ANTT nº 233/2003.
Vossa Excelência determinou fossem providenciadas informações,
manifestação da Advocacia-Geral da União e parecer da Procuradoria-Geral
da República.
O Presidente da República sustenta a inadmissibilidade da via esco-
lhida no que concerne à Resolução, afirmando estabelecidos parâmetros
relativos ao valor de multa, consideradas natureza, gravidade da infração e
reincidência. Aponta crise de legalidade. Diz ausente impugnação do com-
plexo normativo, referindo-se aos artigos 78-B, 78-C, 78-D e 78-F da Lei nº
10.233/2001. Ressalta o poder das agências reguladoras quanto à edição de
normas técnicas. Realça prever a Lei nº 10.233/2001 elementos e circuns-
tâncias necessários à imputação de infração e à gradação de penalidade.
Sustenta preservada a autonomia dos entes da Administração indireta. Evoca
precedentes. Articula com a crescente complexidade das relações jurídicas e
especialização das disciplinas normativas, a ensejarem a retirada, pelo legisla-
dor, de certas matérias do domínio da lei, passando-as ao da regulamentação.
O Presidente da Câmara dos Deputados salienta a higidez do pro-
cesso legislativo que resultou nas normas impugnadas.

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O do Senado Federal assevera ser o Legislativo espaço representativo


da sociedade. Reportando-se ao princípio da separação de poderes, salienta a
atuação contida do Judiciário na interpretação dos atos normativos, visando
o fortalecimento do regime político previsto na Constituição Federal. Afirma
a improcedência do pedido.
A Advocacia-Geral da União manifesta-se no sentido da inadmissi-
bilidade da ação, e, no mérito, da improcedência do pedido, nos seguintes
termos:

Administrativo. Artigos 24, inciso XVIII; e 78-A da Lei nº


10.233/2001. Normas que conferem à Agência Nacional de Trans-
portes Terrestres atribuição para regulamentar e aplicar sanções a
prestadores do serviço de transporte. Alegação de ofensa aos princí-
pios da separação dos Poderes e da reserva legal. Preliminar. Ausência
de impugnação a todo o complexo normativo. Violação meramente
reflexa ao Texto Constitucional. Mérito. Inocorrência de usurpação
de prerrogativas legais e regulamentares do Congresso Nacional e da
Presidência da República. A competência, conferida por lei, à agên-
cia reguladora de editar normas regulamentares de caráter técnico,
dentro dos limites legalmente fixados, com o objetivo de organizar e
fiscalizar as atividades de transporte terrestre configura prerrogativa
inerente ao regime especial a que tal entidade se submete. Preceden-
tes dessa Suprema Corte. Manifestação pelo não conhecimento da
ação direta e, no mérito, pela improcedência do pedido.

A Procuradoria-Geral da República opina pela improcedência do pe-


dido, ante fundamentos assim resumidos:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.


PEDIDO DE INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTI-
TUIÇÃO. ARTS. 24-XVIII E 78-A DA LEI 10.233/2001. AGÊNCIA
NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES – ANTT. RESO-
LUÇÃO 233/2003. PREVISÃO DE INFRAÇÕES ADMINISTRATI-
VAS EM ATOS INFRALEGAIS. ALEGAÇÃO DE OFENSA À SE-
PARAÇÃO DE PODERES E À RESERVA LEGAL. ARTS. 2.º, 5.º-II
E XXXIX E 37-CAPUT DA CONSTITUIÇÃO. INOCORRÊNCIA.
AGÊNCIAS REGULADORAS. PODER NORMATIVO TÉCNICO.
DESLEGALIZAÇÃO. PARÂMETROS FIXADOS EM LEI.
1. Compete à ANTT, no exercício das atribuições e nos limi-
tes previstos pela Lei 10.233/2003, dispor sobre as infrações, sanções
e medidas administrativas aplicáveis aos serviços de transportes.
2. As agências reguladoras são dotadas de poder normativo
técnico que lhes permite, de forma ampla, tratar sobre especifici-
dades do serviço regulado. A deslegalização é fenômeno moderno
necessário à eficiência da função administrativa e à promoção do
interesse público, respeitados os parâmetros constitucionais e legais
específicos.
3. Impossibilidade de o legislador ordinário prever todas
as condutas aptas a gerar infrações administrativas. Especialidade
técni­
co-científica que afasta a alegação de afronta aos arts. 2.º,

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.906 227

5.º-XXXIX e 37-caput da Constituição. Desnecessidade de interpre-


tação conforme.
- Parecer pela improcedência do pedido.

VOTO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) –


A problemática referente à ausência de impugnação ao grande todo representado pela
Lei nº 10.233/2001 e a Resolução nº 233/2003 da Agência Nacional de Transporte Terrestre
– ANTT tem solução mediante o pedido formalizado. Neste, não se atacou, especificamente,
certos dispositivos legais ou contidos na Resolução, mas, simplesmente, a possibilidade de,
por meio de lei, transferir-se à Agência a definição de infrações, sanções e medidas adminis-
trativas aplicáveis ao serviço de transporte.
As agências submetem-se ao princípio da legalidade. Atuam, aliás, como sinaliza a mani-
festação da Advocacia-Geral da União, no campo da regulamentação. Cabe-lhes editar normas
regulamentares, a partir da legislação, ou seja, dentro dos limites legalmente fixados com o obje-
tivo de organizar e fiscalizar as atividades desenvolvidas por aqueles que as congreguem.
A teor do disposto no artigo 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
há a impossibilidade de delegação, a segmento do Executivo, de atos da competência do
Congresso Nacional.
Pleiteia-se, nesta ação direta de inconstitucionalidade, que se empreste, aos artigos
24, inciso XVIII, e 78-A, cabeça e incisos I a VI, da Lei nº 10.233/2001, interpretação con-
forme à Constituição Federal, afastada a possibilidade de agência reguladora atuar no campo
da normatização abstrata e autônoma.
sem prejuízo das de natureza cível e penal.
Há de conferir-se interpretação conforme à Constituição Federal a partir da premissa
segundo a qual não pode a agência substituir-se ao Congresso Nacional.
Confiro interpretação conforme à Constituição aos artigos 24, inciso XVIII, e
78-A, cabeça e incisos I a VI, da Lei nº 10.233/2001, para concluir pela pecha considerada
interpretação no sentido de poder a agência inovar quanto a infrações, sanções e medidas
administrativas aplicáveis ao serviço de transporte.

VOTO

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: Em complemento ao relató-


rio lançado pelo Ministro MARCO AURÉLIO, anoto que o presente caso trata de Ação Direta
proposta pela Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros –
ABRATI, na qual requer:

1) a declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de


texto, dos arts. 24, XVIII, e 78-A, ambos da Lei 10.233/2001, a fim de que
seja fixada interpretação que o poder normativo deferido à Agência Nacional
de Transportes Terrestres – ANTT – pelos dispositivos legais em questão não
lhe confere a prerrogativa de tipificar ilícitos administrativos por meio de
atos infralegais;
(2) a declaração de inconstitucionalidade da integralidade da
Resolução 233/2003 que, expedida pela ANTT, criou infrações administrati-
vas, cominando-lhes pena de multa.

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228 Supremo Tribunal Federal

Eis o teor dos dispositivos impugnados da Lei 10.233/2001, com a redação conferida
por sucessivos atos normativos, como a MP 2217-3, a MP 595/2012, a Lei 12.815/2013 e a
Lei 12.996/2014:

Art. 24. Cabe à ANTT, em sua esfera de atuação, como atribuições


gerais:
(...)
XVIII - dispor sobre as infrações, sanções e medidas administrativas
aplicáveis aos serviços de transportes. (Incluído pela Lei nº 12.996, de 2014)

Art. 78-A. A infração a esta Lei e o descumprimento dos permissão


e na autorização sujeitará o responsável às seguintes sanções, aplicáveis pela
ANTT e pela ANTAQ, sem prejuízo das de natureza civil e penal:
I - advertência;
II - multa;
III - suspensão
IV - cassação
V - declaração de inidoneidade.
VI - perdimento do veículo.
§1º Na aplicação das sanções referidas no caput, a Antaq observará
o disposto na Lei na qual foi convertida a Medida Provisória nº 595, de 6 de
dezembro de 2012.
§2º A aplicação da sanção prevista no inciso IV do caput, quando
se tratar de concessão de porto organizado ou arrendamento e autorização
de instalação portuária, caberá ao poder concedente, mediante proposta da
Antaq.
§3º Caberá exclusivamente à ANTT a aplicação da sanção referida
no inciso VI do caput.

A Requerente sustenta que as normas impugnadas transgrediriam o disposto nos arts.


2º, 5º, II e XXXIX, 37, caput, da Constituição Federal, sob o fundamento de que “o poder nor-
mativo conferido às agências reguladoras não tem o alcance de produzir, em contrariedade à lei e sem
base nela, inovação primária na ordem jurídica, mediante a criação de direitos e obrigações oponíveis
aos particulares”.
Sustenta que o núcleo essencial do princípio da legalidade constituiria óbice intrans-
ponível à edição de normas por atos infralegais que descrevam, em caráter geral e abstrato,
condutas ilícitas, cominando- lhes sanções, sob pena de caracterizar invasão da competência
do Poder Legislativo, a quem o constituinte originário atribuiu o poder de inovar na ordem
jurídica em caráter primário, criando direitos e obrigações por meio de lei em sentido estrito.
O Presidente da Câmara dos Deputados informou que o processo legislativo de que
resultou a Lei 10.233/2001 transcorreu “dentro dos estritos trâmites constitucionais e regimentais
inerentes à espécie”.
O Presidente da República, por meio das informações elaboradas pela Consultoria-
Geral da União, sustentou a constitucionalidade dos atos normativos, sob o argumento de que
o caso dos autos corresponde ao fenômeno jurídico da deslegalização.
O Congresso Nacional, por intermédio da Advocacia do Senado, manifestou-se
no sentido de que a norma impugnada evidencia a concretização da liberdade do Poder
Legislativo de definir as regras de regência das relações jurídicas e sociais, em expressão da

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.906 229

vontade popular, e que a Lei 10.233/2001 é fruto de proposta legislativa amplamente deba-
tido no âmbito de ambas casas legislativas, além de afirmar a necessidade de autocontenção
da jurisdição constitucional na revisão e na interpretação dos atos legislativos, sob pena de
desnaturação do pacto constituinte fundado na harmonia e na independência dos poderes.
A Advocacia-Geral da União sustentou, preliminarmente, a incognoscibilidade desta
Ação Direta e, quanto ao mérito, defendeu a constitucionalidade das normas ora questiona-
das, em manifestação cuja ementa é a seguinte:

Administrativo. Artigos 24. inciso XVIII: e 78-A da Lei nº 10.233/2001.


Normas que conferem à Agência Nacional de Transportes Terrestres atribuição para
regulamentar e aplicar sanç6es a prestadores do serviço de transporte. Alegação de
ofensa aos princípios da separação dos Poderes e da reserva legal. Preliminar. Ausência
de impugnação a todo o complexo normativo. Violação meramente reflexa ao Texto
Constitucional. Mérito. Inocorrência de usurpação de prerrogativas legais e regu-
lamentares do Congresso Nacional e da Presidência da República. A competência.
conferida por lei. À agência reguladora de editar normas regulamentares de caráter
técnico. dentro dos limites legalmente fixados. com o objetivo de organizar e fiscalizar
as atividades de transporte terrestre. Configura prerrogativa inerente ao regime espe-
cial a que tal entidade se submete. Precedentes dessa Suprema Corte. Manifestação pelo
não conhecimento da ação direta e. no mérito. pela improcedência do pedido.

A Procuradoria-Geral da República manifestou-se contrariamente ao acolhimento da


pretensão deduzida na petição inicial, em parecer assim ementado:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE


INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO. ARTS. 24-XVIII
E 78-A DA LEI 10.233/2001. AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES
TERRESTRES – ANTT. RESOLUÇÃO 233/2003. PREVISÃO DE INFRA-
ÇÕES ADMINISTRATIVAS EM ATOS INFRALEGAIS. ALEGAÇÃO DE
OFENSA À SEPARAÇÃO DE PODERES E À RESERVA LEGAL. ARTS. 2.º,
5.º-II E XXXIX E 37-CAPUT DA CONSTITUIÇÃO.INOCORRÊNCIA.
AGÊNCIAS REGULADORAS. PODER NORMATIVO TÉCNICO. DESLE-
GALIZAÇÃO. PARÂMETROS FIXADOS EM LEI.
1. Compete à ANTT, no exercício das atribuições e nos limites pre-
vistos pela Lei 10.233/2003, dispor sobre as infrações, sanções e medidas
administrativas aplicáveis aos serviços de transportes.
2. As agências reguladoras são dotadas de poder normativo técnico
que lhes permite, de forma ampla, tratar sobre especificidades do serviço
regulado. A deslegalização é fenômeno moderno necessário à eficiência da
função administrativa e à promoção do interesse público, respeitados os
parâmetros constitucionais e legais específicos.
3. Impossibilidade de o legislador ordinário prever todas as condutas
aptas a gerar infrações administrativas. Especialidade técnico-científica que
afasta a alegação de afronta aos arts. 2.º, 5.º-XXXIX e 37- caput da Constitui-
ção. Desnecessidade de interpretação conforme.
- Parecer pela improcedência do pedido.”

Iniciado o julgamento em ambiente virtual, o Relator, Ministro Marco Aurélio,


apresentou voto no sentido dar interpretação conforme à Constituição às normas da Lei
10.233/2001 ora questionadas “(...) para concluir pela pecha considerada interpretação no sentido

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230 Supremo Tribunal Federal

de poder a agência inovar quanto a infrações, sanções e medidas administrativas aplicáveis ao serviço
de transporte.”
Para uma melhor compreensão da controvérsia, pedi vista dos autos. É o breve relato
do essencial.

A presente Ação Direta atende aos requisitos de admissibilidade pertinentes, porque


foi promovida por entidade constitucionalmente legitimada, tendo por objeto a validade
constitucional de dispositivos veiculadores de preceitos normativos que produzem conse-
quências jurídicas diretas para as empresas prestadoras de serviço de transporte rodoviário
interestadual e internacional de passageiros, sob regime de concessão, permissão ou autori-
zação, o que atesta a existência de pertinência temática no caso.
Passando ao exame do mérito da controvérsia, observo que o conceito de “lei”, em
seu sentido clássico no Estado Liberal, como resultado da atuação do Parlamento, dentro da
ideia de “Separação de Poderes”, tinha como função definir uma ordem abstrata de Justiça,
com pretensão de estabilidade e permanência, sobre a qual os cidadãos poderiam planejar
suas vidas com segurança e certeza, conhecendo os limites da liberdade que a “lei” oferecia
e o alcance exato da permissão legal à submissão ao Poder Público. Hoje, diferentemente, a
“lei”, além de definir uma situação abstrata, com pretensão de permanência, busca a implan-
tação de políticas públicas, o estabelecimento do modo e dos limites de intervenção do Estado
na economia, na fiscalização das atividades privadas e, inúmeras vezes, na própria resolu-
ção de problemas concretos, singulares e passageiros. Não poucas vezes, principalmente no
campo do Direito Administrativo, em que se ordenam políticas públicas singulares, caracteriza-
das pela contingência e singularidade de situações específicas, o conteúdo das “leis” passou
a se aproximar daqueles tradicionalmente veiculados por “regulamentos”, necessários para
disciplinar matérias destinadas a articular e organizar fomento do emprego, crescimento eco-
nômico, educação, saúde, proteção ao meio ambiente etc.; gerando, no dizer de GARCIA DE
ENTERRÍA, uma verdadeira inflação legislativa.
Essa inflação legislativa, decorrente da ampliação da utilização de “leis formais emana-
das do Parlamento” para uma “ampla normatização”, foi se acentuando no desenvolvimento
do Estado Liberal durante o século XIX, em especial com a Revolução Industrial, e, posterior-
mente, no século XX, com a chegada do Estado do Bem-estar Social, tornando-se necessário
repensar o tradicional conceito de “lei”, imaginado pelo pensamento liberal clássico.
Nesse contexto, o Parlamento inglês, em 1834, criou diversos órgãos autônomos com
a finalidade de aplicação e concretização dos textos legais. Posteriormente, em virtude da
influência do direito anglo-saxão, os Estados Unidos criaram, em 1887, a Interstate Commmerce
Comimission, iniciando assim a instituição de uma série de agências, que caracterizam o Direito
Administrativo norte-americano como o “direito das agências” (Cf. ELOISA CARBONELL;
JOSÉ LUIS MUGA. Agencias y procedimiento administrativo en Estados Unidos de América. Madri:
Marcial Pons, 1996, p. 22 ss.), em face de sua organização descentralizada, existindo várias
espécies de agências: reguladoras (regulatory agency); não reguladoras (non regulatory agency);
executivas (executive agency); independentes (independent regulatory agency or comimissions).
Nessa mesma direção, houve uma forte expansão da legislação delegada inglesa, em
virtude da falta de tempo do Parlamento pela sobrecarga das matérias; caráter técnico de
certos assuntos; aspectos imprevisíveis de certas matérias a ser reguladas; exigência de flexi-
bilidade de certas regulamentações; possibilidade de se fazerem experimentos por meio da
legislação delegada; situações de extraordinárias emergência, como ressaltado por NELSON
SAMPAIO (O processo legislativo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1996) ao apontar os funda-
mentos presentes no relatório apresentado pelo Committee on Ministers’ Powers.
Esse novo panorama administrativo do Estado passou a exigir maior descentrali-
zação, trazendo consigo novas exigências de celeridade, eficiência e eficácia fiscalizatórias
incompatíveis com o antigo modelo anacrônico.

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.906 231

O aumento da insatisfação com a ineficiência do Estado contemporâneo, sobre-


carregado na execução de obras e na deficiente prestação de serviços públicos, ampliou a
necessidade de descentralização na prestação de serviços públicos, inclusive por particulares
(concessões, permissões) pois, como salientam GARCÍA DE ENTERRÍA e TOMÁS-RAMÓN
FERNANDEZ, as funções e atividades a serem realizadas pela Administração são algo pura-
mente contingente e historicamente variável, que depende essencialmente de uma demanda
social, distinta para cada órbita cultural e diferente também em função do contexto socioeco-
nômico em que se produzem (Curso de derecho administrativo. Madri: Civitas, 2000, v. I).
Assim, o Poder Público passou a concentrar-se na elaboração de metas e na política
regulatória e fiscalizatória de diversos setores da economia, descentralizando a realização
dos serviços públicos, permissões ou concessões ao setor privado (AGUSTÍN GORDILLO,
Tratado de derecho administrativo. 3 ed. Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo,
1998, t. 2, p. 4 ss.)
Em relação à produção normativa, portanto, houve uma evolução nas tradicionais
ideias decorrentes da tripartição de poderes, mantendo- se, porém, um de seus dogmas
salientado nas lições de JOHN LOCKE, que apontava que “o Poder Legislativo é aquele que
tem o direito de fixar as diretrizes de como a força da sociedade política será empregada
para preservá-la a seus membros” (Dois tratados sobre o governo civil. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p. 514).
A moderna Separação dos Poderes manteve, em relação à produção normativa do
Estado, a centralização política-governamental no Poder Legislativo, que decidirá politicamente
sobre a delegação e seus limites às Agências Reguladoras, fixando os preceitos básicos e as dire-
trizes; porém, passou a exigir maior eficiência e eficácia, possibilitando maior descentralização
administrativa, inclusive no exercício do poder normativo desses órgãos administrativos para
a consecução dos objetivos e metas traçadas em lei, como bem salientado por TÉRCIO SAM-
PAIO FERRAZ JÚNIOR, ao ensinar que:

“trata-se, como visto, de uma forma de delegação, com base no prin-


cípio da eficiência e por este introduzida no ordenamento constitucional.
Afinal, no caso de atividade reguladora, sem ela ficaria vazio o princípio,
tanto no sentido de sua eficácia quanto no sentido de controle constitucional.
Ou seja, com base na eficiência, a delegação instrumental ganha contornos
próprios que garantem à independência das Agências Reguladoras seu supe-
dâneo” (Agências reguladoras: legalidade e constitucionalidade. Revista Tri-
butária e de Finanças Públicas, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 35, p. 154).

Também, DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO aponta que


“o poder normativo das Agências Reguladoras se enquadra como uma variedade de
delegação, denominada pela doutrina de deslegalização” (Mutações do direito admi-
nistrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 182).
O Direito brasileiro incorporou, principalmente do Direito norte-a-
mericano, a ideia de descentralização administrativa na prestação dos servi-
ços públicos e consequente gerenciamento e fiscalização pelas Agências Re-
guladoras, que poderão ser criadas como autarquias especiais pelo Poder Le-
gislativo (CF, art. 37, XIX), por meio de lei específica de iniciativa do Poder
Executivo, recebendo uma delegação para exercer seu poder normativo de
regulação, competindo ao Congresso Nacional a fixação das finalidades, dos
objetivos básicos e da estrutura das Agências, bem como a fiscalização de suas
atividades (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 13 ed. São
Paulo: Atlas, 2001, p. 396; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Muta-
ções do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 148; TÁCITO,

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232 Supremo Tribunal Federal

Caio. “Agências reguladoras na administração.” Revista de Direito Administrati-


vo, Rio de Janeiro, v. 221, p. 1, jul./set. 2000; WALD, Arnoldo; MORAES, Luiza
Rangel de. “Agências reguladoras.” Revista de Informação Legislativa, Brasília,
jan./mar. 1999, p. 145; MATTOS, Mauro Roberto Gomes de.
“Agências reguladoras e suas características.” Revista de Direito Administrati-
vo. Rio de Janeiro, v. 218, out./dez. 1999, p. 73; MEDAUAR, Odete. Direito
administrativo moderno. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 83;
AZEVEDO, Eurico de Andrade. Agências reguladoras. Revista de Direito Admi-
nistrativo, Rio de Janeiro, v. 213, jul./set. 1998, p. 141.)
As Agências Reguladoras não poderão, no exercício de seu poder
normativo, inovar primariamente a ordem jurídica sem expressa delegação,
tampouco regulamentar matéria para a qual inexista um prévio conceito
genérico, em sua lei instituidora (standards), ou criar ou aplicar sanções não
previstas em lei, pois, assim como todos os Poderes, Instituições e órgãos
do poder público estão submetidas ao princípio da legalidade (CF, art. 37,
caput), como bem destacado por CAIO TÁCITO “a liberdade decisória das
Agências Reguladoras não as dispensa do respeito ao princípio da legalidade e aos
demais fixados para a Administração Pública, no art. 37 da Constituição Federal de
1988” (“Agências reguladoras na administração.” Revista de Direito Administra-
tivo, Rio de Janeiro, v. 221, jul/set. 2000), não possuindo, portanto, como
lembra MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS, um “cheque em branco
para agir como bem entendem, divorciada do princípio da legalidade” (“Agências
reguladoras e suas características.” Revista de Direito Administrativo. Rio de
Janeiro, v. 218, p. 73, out./dez. 1999). Conferir, ainda, em favor da necessi-
dade de observância pela Agência do princípio da legalidade e dos limites
da delegação: MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Direito administrativo.
13 ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 397; ARNOLDO WALD, LUIZA RANGEL
MORAES, “Agências reguladoras.” Revista de Informação Legislativa, Brasília,
jan./mar. 1999, p. 153.
Nesse sentido, a jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDE-
RAL reconhece o papel regulatório do Estado, exigindo, porém, que o ato
regulatório apresente lastro legal, isto é, uma correspondência direta com di-
retrizes e propósitos afirmados em lei ou na própria Constituição (ADI 4093,
Rel. Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, DJe de 16/10/2014; ADI 4954, Rel.
Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, DJe de
29/10/2014; RMS 28.487, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe
de 14/3/2013); na forma do já citado binômio “centralização política- gover-
namental” – “descentralização administrativa”.
Nesse sentido também me manifestei no julgamento da ADI 4874,
(Rel. Min. ROSA WEBER, julgado em 1/2/2018, DJe de 1/2/2019), oportu-
nidade em que anotei que “as agências reguladoras não poderão, no exercício de
seu poder normativo, inovar primariamente a ordem jurídica – ou seja, regulamen-
tar matéria para a qual inexista um prévio conceito genérico em sua lei instituidora
(standards) -; nem tampouco poderão criar ou aplicar sanções não previstas em lei”.
Na hipótese, assentada a premissa geral de que a impossibilidade
de criação normativa primária do ordenamento jurídico não significa que os
regulamentos emanados das agências reguladoras não possam inovar, acres-
centando e complementando, desde que seu conteúdo normativo não tradu-
za desbordamento dos limites da delegação congressual estabelecidos para
sua atuação, é preciso verificar se os standards fixados na Lei 10.233/2001

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.906 233

são capazes de dar sustentação jurídica à Resolução 233/2003, emanada da


Diretoria-Geral da ANTT.
Nesse contexto, o diploma legislativo em questão estabelece, em seu
artigo 11, inciso III, a proteção dos interesses dos usuários quanto à qualida-
de e oferta de serviços de transporte à condição de princípio a ser observado
no gerenciamento da infraestrutura e na operação dos transportes aquaviá-
rios e terrestres pelas agências reguladoras destes serviços.
Sob tal perspectiva, é importante observar o que dispõe o art. 20,
II, “a”, da Lei 10.233/2003 quanto aos propósitos a serem alcançados pelas
agências reguladoras (grifos aditados):

Art. 20. São objetivos das Agências Nacionais de Regulação dos


Transportes Terrestre e Aquaviário:
(...)
II – regular ou supervisionar, em suas respectivas esferas e atribui-
ções, as atividades de prestação de serviços e de exploração da infra-estrutura
de transportes, exercidas por
terceiros, com vistas a:
a) garantir a movimentação de pessoas e bens, em cumprimento a
padrões de eficiência, segurança, conforto, regularidade, pontualidade e mo-
dicidade nos fretes e tarifas;

Nota-se, portanto, que a partir do binômio centralização


política- governamental e descentralização administrativa, a delega-
ção congressual desta matéria fixou como standard zelar pela
qualidade e pela oferta de serviços de transportes que atendam
a padrões de eficiência, segurança, conforto, regularidade, pon-
tualidade e modicidade das tarifas, em clara delimitação legal
da diretriz à qual ANTT deve se ater no exercício da atividade
regulatória do serviço de transporte, especialmente em relação
ao exercício da atribuição de que dispõe art. 24, XVIII, da lei
criadora da agência em questão.
É necessário, ainda, ter-se em conta que as penalida-
des (advertência, multa, suspensão, cassação, declaração de ido-
neidade e perdimento de veículo) aplicáveis às concessionárias,
permissionárias e autorizadas do serviço de transporte são de-
finidas pelo art. 78-A da Lei 10.233/2003 e que o diploma legis-
lativo em causa não se limita a enumerar as punições às quais
estão sujeitas as pessoas prestadoras do serviço de transporte.
O referido ato estatal emanado do Congresso Nacional
vai além e:

a) estabelece que a apuração de infrações e a aplicação da penalida-


des deverá se dar em sede de processo administrativo (art. 78-B), em cujo
âmbito deve-se garantir o exercício do contraditório e da ampla defesa (art.
78-C);
b) elege “a natureza e a gravidade da infração, os danos dela resultantes
para o serviço e para os usuários, a vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias
agravantes e atenuantes, os antecedentes do infrator e a reincidência genérica ou
específica” como critérios de observância obrigatória na gradação da aplicação
das sanções;

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234 Supremo Tribunal Federal

c) impõe limite máximo à penalidade pecuniária (art. 78- F), deter-


minando que a fixação da expressão monetária da multa deve tomar em
conta o princípio da proporcionalidade, agravidade da falta e a intensidade
da sanção (art. 78-F, §1º);
d) restringe a penalidade de suspensão às infrações graves cujas cir-
cunstâncias determinando prazo máximo de duração da sanção (art. 78-G);
e) deixa a cassação circunscrita apenas às infrações graves (art. 78-H);
f) determina que a declaração de inidoneidade, cujo prazo máximo
de vigência não deve ultrapassar cinco anos, fica limitada aos casos de prática
de atos ilícitos praticados com a finalidade de frustrar os objetivos de licitação
ou a execução de contrato (art. 78-I e parágrafo único);
g) limita a aplicação da pena de perdimento de veículo a apenas uma
única hipótese (transporte terrestre coletivo interestadual ou internacional
de passageiros remunerado por pessoa que não detenha outorga para tal) e,
ainda assim, só no caso em que haja reincidência no uso do veículo no inters-
tício temporal de 1 (um) ano (art. 78-K).

Todas esses elementos evidenciam que, no exercício do poder normativo que lhe
foi congressualmente delegado, a ANTT não dispõe de liberdade absoluta para inovar no
ordenamento jurídico, em matéria de infrações administrativos, tanto no que concerne à pre-
visão, geral e abstratas, de condutas caracterizadoras de ilícito administrativo e à cominação
de sanções.
Assim, a leitura dos arts. 11, III, 20, II, “a”, 24, XVII e do 78-A ao 78- K, todos da
Lei 10.233/2001, torna evidente que a delegação congressual traçou os standards necessários
e suficientes para legitimar a edição da Resolução 233/2003 pela Diretoria-Geral da ANTT.
As disposições emanadas do ato normativo infralegal impugnado obedecem às dire-
trizes legais, na medida em que protegem os interesses dos usuários, relativamente ao zelo
pela qualidade e pela oferta de serviços de transportes que atendam a padrões de eficiên-
cia, segurança, conforto, regularidade, pontualidade e modicidade das tarifas, assim como a
cominação das penas (todas de multa) não desborda da parâmetros estabelecidos no ato legis-
lativo emanado do Congresso Nacional.
Nesse contexto, faz-se oportuna a citação do seguinte julgado do Superior Tribunal
de Justiça, proferido na qualidade de intérprete da legislação federal, que ilustra a jurispru-
dência firmada no âmbito daquela Corte a propósito da legalidade da Resolução 233/2003
da ANTT (grifos aditados):

“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. APLICAÇÃO DE


MULTA ADMINISTRATIVA. INFRAÇÃO A RESOLUÇÕES DA ANTT.
EXERCÍCIO DO PODER NORMATIVO CONFERIDO ÀS AGÊNCIAS
REGULADORAS. LEGALIDADE.
1. Cuida-se, na origem, de exceção de pré-executividade, por meio
da qual se apontou a ilegalidade das Resoluções 233/2003 e 579/2004 da
Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT), normas em que se fun-
dou a multa objeto da execução.
2. Na sentença, foi acolhida a exceção de pré- executividade, e extin-
to o feito sem resolução de mérito. O Tribunal de origem manteve a sentença
que extinguiu a execução.
3. As agências reguladoras foram criadas com o intuito de regular,
em sentido amplo, os serviços públicos, havendo previsão na legislação

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.906 235

ordinária delegando a elas competência para a edição de normas e regu-


lamentos no seu âmbito de atuação. Dessa forma, não se vislumbra ilegali-
dade na aplicação da penalidade pela ANTT, que agiu no exercício do seu
poder regulamentar/disciplinar, amparado na Lei 10.233/2001.
4. A questão a respeito da validade jurídica dos atos normativos
infralegais expedidos pelas Agências Reguladoras não é nova no Superior
Tribunal de Justiça, já tendo sido, por diversas vezes, apreciada.
5. No sentido da tese acima apresentada, recente julgamento da
Primeira Turma no AgInt no REsp 1.620.459/RS, de relatoria do Ministro
Benedito Gonçalves, DJe 15.2.2019:”Consoante precedentes do STJ, as
agências reguladoras foram criadas no intuito de regular, em sentido amplo,
os serviços públicos, havendo previsão na legislação ordinária delegando à
agência reguladora competência para a edição de normas e regulamentos
no seu âmbito de atuação.
Dessarte, não há ilegalidade configurada, na espécie, na aplicação
da penalidade pela ANTT, que agiu no exercício do seu poder regula-
mentar/disciplinar, amparado na Lei 10.233/2001 (REsp 1.635.889/RS, Rel.
Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 19/12/2016). Precedentes:
REsp 1.569.960/RN, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de
19/5/2016; AgRg no REsp 1.371.426/SC, Rel. Min. Humberto Martins, Se-
gunda Turma, DJe de 24/11/2015”.
6. Na mesma linha, segue precedente da Segunda Turma no AgRg
no AREsp 825.776/SC, de relatoria do Ministro Humberto Martins, DJe
13.4.2016: “Não há violação do princípio da legalidade na aplicação de mul-
ta previstas em resoluções criadas por agências reguladoras, haja vista que
elas foram criadas no intuito de regular, em sentido amplo, os serviços pú-
blicos, havendo previsão na legislação ordinária delegando à agência regu-
ladora competência para a edição de normas e regulamentos no seu âmbito
de atuação”.
7. Ainda, citam-se as seguintes decisões: REsp 1.685.473, Ministro
Napoleão Nunes Mais Filho, DJe 3/10/2019; REsp 1.625.789-RS, Ministro
Herman Benjamin, DJe 18.102016.
8. Como se vê, a Corte de origem, ao decidir que houve o extra-
polamento do poder regulamentar - “Resolução-ANTT nº 233/2003 não
poderia, a pretexto de regulamentar a Lei nº 10.233/01, passar a descrever
hipóteses de infrações administrativas e fixar valores das penalidades vio-
lando o princípio da reserva legal” -, destoa da jurisprudência pátria, que
afirma ser legal a aplicação de multa por infração a obrigação imposta por
resolução editada pelas agências reguladoras, entre elas a ANTT - Agência
Nacional de Transportes Terrestres, tendo em vista a Lei 10.233/2001, que
assegura seu exercício de poder normativo.
9. Recurso Especial provido.
(REsp 1.807.533, Segunda Turma, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN,
DJe 4/9/2020)

A interpretação da norma inscrita no art. 24, XVIII, da Lei 10.233/2001, da forma


como pretendida pela Requerente, teria como consequência a supressão quase total da compe-
tência normativa da agência reguladora em referência, despojando-a de ferramenta relevante
para o adequado e fiel cumprimento da atividade regulatória, ou seja, o papel da ANTT ficaria
reduzido ao de verdadeira gestora dos contratos de outorga de serviços públicos.

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236 Supremo Tribunal Federal

Em vista do exposto, DIVIRJO do eminente Ministro Relator e julgo IMPROCE-


DENTE a Ação Direta, para declarar a constitucionalidade do art. 24, XVIII, e do art. 78-A
da Lei 10.233/2001.

É como voto.

VOTO-VISTA

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR): Trata-se de ação direta


de inconstitucionalidade, com pedido de medida liminar, ajuizada pela Associação Brasileira
das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros – ABRATI, em que se pede a declara-
ção de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos arts. 24, XVIII, e 78-A, da
Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, que dispõe sobre a reestruturação dos transportes
aquaviário e terrestre, cria o Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte, a
Agência Nacional de Transportes Terrestres, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários
e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, e dá outras providências.
Eis o teor do ato normativo impugnado:

“Art. 24. Cabe à ANTT, em sua esfera de atuação, como atribuições


gerais: (...)
XVIII – dispor sobre as infrações, sanções e medidas administrativas
aplicáveis aos serviços de transportes.
(...)
Art. 78-A. A infração a esta Lei e o descumprimento dos deveres esta-
belecidos no contrato de concessão, no termo de permissão e na autorização
sujeitará o responsável às seguintes sanções, aplicáveis pela ANTT e pela
ANTAQ, sem prejuízo das de natureza civil e penal:
I – advertência;
II – multa;
III – suspensão;
IV – cassação;
V – declaração de inidoneidade;
VI – perdimento do veículo.”

A requerente aponta violação aos arts. 2º, 5º, II e XXXIX, 37, caput, do texto cons-
titucional.
Alega que a norma não poderia conferir à ANTT poder normativo para definir atos
infracionais e a previsão das respectivas sanções aplicáveis aos particulares, por violação aos
princípios constitucionais da legalidade e da separação de poderes.
O relator, Min. Marco Aurélio, adotou o rito previsto nos arts. 6º e 8º da Lei nº 9.868,
de 10 de novembro de 1999, e solicitou informações. (eDOC 14)
A Câmara dos Deputados, o Senado Federal e a Presidência da República manifesta-
ram-se pela constitucionalidade dos dispositivos impugnados.
A Advocacia-Geral da União emitiu parecer pelo não conhecimento da ação direta e,
no mérito, pela improcedência do pedido.
A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela improcedência do pedido.
Iniciado o julgamento no Plenário Virtual da sessão de 12/02/2021 a 23/2/2021, o
relator, Min. Marco Aurélio, manifestou-se no sentido de conferir “interpretação conforme à
Constituição aos artigos 24, inciso XVIII, e 78-A, cabeça e incisos I a VI, da Lei nº 10.233/2001,

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.906 237

para concluir pela pecha considerada interpretação no sentido de poder a agência inovar
quanto a infrações, sanções e medidas administrativas aplicáveis ao serviço de transporte.”
O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do Min. Alexandre de Moraes,
sendo retomado na sessão do Plenário Virtual de 15/10/2021 a 22/10/2021, ocasião na qual
Sua Excelência emitiu voto assim ementado:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AGÊNCIAS REGU­


LA­
DO­RAS E PODER REGULAMENTAR. ART. 24, VIII, E ART. 78-A
DA LEI 10.233/2011. RESOLUÇÃO ANTT 233/2003. PREVISÃO
LEGAL DA COMPETÊNCIA PARA A AGÊNCIA REGULADORA
EDITAR REGULAMENTO SOBRE INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS.
PREVISÃO DAS SANÇÕES CABÍVEIS E CRITÉRIOS MÍNIMOS PARA A
REGULAMENTAÇÃO. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE. IMPROCEDÊNCIA.
1. As Agências Reguladoras, criadas como autarquias especiais pelo
Poder Legislativo (CF, art. 37, XIX), recebem da lei que as instituem uma
delegação para exercer seu poder normativo de regulação, competindo ao
Congresso Nacional a fixação das finalidades, dos objetivos básicos e da
estrutura das Agências, bem como a fiscalização de suas atividades.
2. As Agências Reguladoras não poderão, no exercício de seu poder
normativo, inovar primariamente a ordem jurídica sem expressa delegação,
tampouco regulamentar matéria para a qual inexista um prévio conceito
genérico, em sua lei instituidora (standards), ou criar ou aplicar sanções não
previstas em lei, pois, assim como todos os Poderes, Instituições e órgãos do
poder público estão submetidas ao princípio da legalidade (CF, art. 37, caput ).
3. No caso em julgamento, a Lei 10.233/2003, com as alterações
redacionais supervenientes, fixou os critérios mínimos indispensáveis para
o exercício, pela Agência Reguladora, da competência para imposição de
sanções pela prática de infrações administrativas.
4. As disposições emanadas da Resolução ANTT 233/2003 obedecem
às diretrizes legais, na medida em que protegem os interesses dos usuários,
relativamente ao zelo pela qualidade e pela oferta de serviços de transpor-
tes que atendam a padrões de eficiência, segurança, conforto, regularidade,
pontualidade e modicidade das tarifas, assim como a cominação das penas
não desborda da parâmetros estabelecidos em lei.
5. Ação Direta julgada improcedente.”

Pedi vista dos autos para melhor debruçar-me sobre a questão controvertida, que
discute a constitucionalidade da delegação de competência às agências reguladoras para que
disponham sobre figuras infracionais.
É o que cumpria relatar.
Passo ao meu voto.
As agências reguladoras foram gestadas no afã de alterar o papel tradicional da Admi-
nistração Pública, permitindo que entidades estatais, com maior flexibilidade, pudessem
estar atentas a determinado setor estratégico e atuar rapidamente no respectivo mercado,
mediante complementação da legislação da área correlata, de forma infralegal, desde que
observados os limites impostos na lei de sua criação e na Constituição Federal.
Para que essa nova realidade se desenvolvesse, foi determinante o surgimento do
paradigma do Estado Democrático de Direito e sua vertente jurídico-econômica, o Estado
Regulador, como descreve Pedro Gonet Branco:

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238 Supremo Tribunal Federal

“O Estado contemporâneo [Regulador] torna anacrônica a propo-


sição do Estado Liberal de aprisionar em um Código toda a regulação das
relações importantes da sociedade civil. A modernidade mostrou ser indis-
pensável a adoção de mecanismos capazes de lidar com os problemas da vida
em comunidade de forma ágil e eficiente. As relações sociais cada vez mais
complexas nos campos econômico e social obrigaram o legislador a compar-
tilhar com agentes independentes e técnicos a disciplina de temas caros à
coletividade.
Para tanto, desenvolveu-se a figura do regulador, que, com expertise,
rapidez e foco concentrado em determinados setores da economia, assumiu o
dever de estabelecer normas para os novos desafios da vida coletiva.
Essa atividade conjunta do regulador e do legislador deu novo sig-
nificado à palavra regulação, compreendida como o exercício de atividade
administrativa e normativa que repercute em determinado ambiente de ativi-
dades relevantes para o Estado e que demanda mudança contínua por parte
do regulador frente aos efeitos que essa atividade administrativa e normativa
gera nos regulados.
Outra novidade da contemporaneidade foi o reconhecimento de que
a regulação não pode se limitar a
garantir a eficiência de mercado, como pretendido em momentos anteriores.
Antes, o Estado Regulador tem a obrigação de desenvolver suas atividades re-
gulatórias tendo como norte a salvaguarda dos direitos fundamentais, entre
eles o direito à liberdade, à propriedade e à igualdade, mas também
o direito à saúde, à privacidade, ao trabalho, ao lazer, a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, entre tantos outros direitos positivados pelos
mais variados ordenamentos jurídicos.
Essa compreensão se insere em um contexto no qual o Estado não
assume para si a função de principal agente econômico do mercado, mas
também não ignora que deve vigiar e, quando necessário, interferir nas
atividades econômicas que destoam do que se considera contrário ao inte-
resse público e, em especial, aos direitos fundamentais.” (BRANCO, Pedro
Henrique de Moura Gonet. Regulação de novas tecnologias: a utilização da
Sandbox Regulatória como instrumento da Teoria da Regulação Responsiva.
Monografia. Universidade de Brasília, Brasília, 2022.)

Para o desempenho dessas atividades regulatórias, o Estado depende, como já men-


cionado, da criação das agências reguladoras como órgãos descentralizados da Administração
Pública, o que suscita discussões sobre os limites do seu poder regulamentar, conforme se
colhe da doutrina especializada:

“[...] as leis de criação das Agências, quer haja ou não suporte cons-
titucional para sua existência, são responsáveis pela delegação de potestade
normativa a tais entidades sob a fórmula da deslegalização. O ponto de parti-
da usualmente adotado para defender esta posição está em texto de Eduardo
García de Enterría no qual é afirmado que a delegação de poder legislativo
é reconhecidamente possível nos sistemas de tradição continental, podendo
ser efetuada por intermédio de três fórmulas: (a) delegação receptícia, con-
sistente em uma delegação limitada a certas matérias e a um tempo determi-
nado e que, uma vez utilizada, consome-se. Este seria o modelo utilizado no
artigo 68 de nossa Constituição, responsável pelo tratamento das leis dele-
gadas; (b) delegação remissiva, a qual é representada por simples remissões

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.906 239

pela lei a uma regulamentação posterior a ser elaborada pela Administração.


Tais remissões não se esgotam com o exercício da competência normativa por
parte do Poder Executivo, que poderá alterar as normas por ele editadas a
qualquer tempo. Este, conforme o argumento aqui exposto, seria o padrão
utilizado em nossa Constituição ao dispor sobre o poder regulamentar do
Presidente da República, em seu artigo 84, IV; e (c) finalmente, a deslegaliza-
ção, técnica na qual o Poder Legislativos simplesmente demite-se da função
de regular determinada matéria, remetendo tal atribuição a outra entidade.
Após a verificação de tais premissas, conclui-se que as leis respon-
sáveis pela criação de Agências Reguladoras específicas, como a Lei nº
9.427/96, que criou a Agência Nacional de Energia Elétrica, teriam procedi-
do à deslegalização das matérias por elas tratadas em favor da Administração
Pública. Efeito semelhante teriam possuído as Emendas Constitucionais nºs
8 e 9, referidas no item anterior.
Fundamentada deste modo a atuação normativa das Agências Regula-
doras, afirma-se, por fim, que o exercício de tal atribuição estará limitado pela
chamada discricionariedade técnica. Esta consistiria na outorga de espaço de
ação à Administração para que ela decida com base em critérios estritamente
técnicos - e não em critérios políticos. Em razão deste limite, a atuação das
Agências Reguladoras seria nula toda vez que ela fosse o resultado de critérios
não reconhecidos como desejáveis pelo Poder Legislativo.
(…)
A inadequação das categorias descritas por Enterría a nosso sistema
fica clara quando se investiga qual o sistema de articulação de competências
entre Executivo e Legislativo contido na Constituição Espanhola: ela contém
numerosas reservas específicas de lei, as quais, sem esgotar todas as matérias
que podem receber tratamento normativo, deixam fatias da potestade nor-
mativa do Estado fora de qualquer reserva legal específica. É digno de nota o
fato de que existe certo dissenso sobre a extensão da reserva de lei no ordena-
mento espanhol, mas nenhuma das posições existentes nega o fato de que a
totalidade da potestade normativa do Estado não está submetida ao princípio
da reserva legal: têm-se campos não reservados à Lei nos quais Executivo e
Legislativo podem atuar de modo originário. É neste campo de potestade
normativa independente das amarras da reserva legal, sem similar entre nós,
que podem ocorrer o congelamento de grau normativo e a deslegalização. É
que nele, a despeito de não haver reserva legal, existe a supremacia da Lei
- e isso é precisamente o que permite a ocorrência tanto do congelamento,
quanto da deslegalização.
É igualmente problemático justificar a possibilidade de deslegali-
zação em nosso sistema com base na doutrina portuguesa: a exemplo do
mencionado acima em relação às palavras de García de Enterría, é preciso
estudar o sistema de repartição de competências e de articulação entre Exe-
cutivo e Legislativo traçado pela Constituição Portuguesa para que se possa
compreender qual o real conteúdo do termo deslegalização quando utilizado
por autores como Canotilho ou Jorge Miranda.
Em Portugal, existem quatro diferentes campos dentro dos quais po-
dem ser produzidos atos normativos primários: tem-se
(a) uma reserva absoluta de lei, em que apenas a Assembleia da República
pode atuar, (b) uma reserva relativa de lei, contemplando matérias passíveis
de transferência ao Governo, c) um campo de competência concorrente entre

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240 Supremo Tribunal Federal

o Governo e a Assembleia da República e (d) um campo de competência ex-


clusiva do Governo. Nestes campos, o instrumento ordinário da Assembleia
é a lei; do Governo, o decreto-lei. Deve-se perceber, contudo, que o Governo
não equivale ao nosso Poder Executivo: a Constituição Portuguesa separa as
figuras do Presidente e do Governo, e claramente atribui ao Governo, além
da chefia da Administração Pública, uma parcela de poderes legislativos.
Veja-se, agora, o que afirma o artigo 112 da Constituição Portuguesa:
1. São actos legislativos as leis, os decretos-leis e os decre-
tos legislativos regionais.
2. As leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo
da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publi-
cados no uso de autorização legislativa e dos que desenvolvam as
bases gerais dos regimes jurídicos.
3. Têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis
que carecem de aprovação por maioria de dois terços, bem como
aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto nor-
mativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser
respeitadas.
4. Os decretos legislativos têm âmbito regional e versam
sobre matérias enunciadas no estatuto político- administrativo
da respectiva região autónoma que não estejam reservadas aos
órgãos de soberania, sem prejuízo do disposto nas alíneas b) e c)
do nº 1 do artigo 227º.
5. Nenhuma outra lei pode criar outras categorias de
actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder
de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspen-
der ou revogar qualquer dos seus preceitos.
6. Os regulamentos do Governo revestem a forma
de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela
lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos
independentes.
7. Os regulamentos devem indicar expressamente as leis
que visam regulamentar ou que definem a competência subjec-
tiva e objectiva para a sua emissão.
8. A transposição de actos jurídicos da União Europeia
para a ordem jurídica interna assume a forma de lei,decreto-lei
ou, nos termos do disposto no nº 4, decreto legislativo regional.
Em um primeiro momento, o artigo parece contraditório: afinal,
como podem existir regulamentos independentes (nº 6), se nenhuma lei
pode delegar eficácia a outros instrumentos normativos (nº 5), e se todo re-
gulamento deve indicara lei que visa a regulamentar (nº 7)?
A solução está em que os regulamentos independentes do direito
português não são regulamentos com força em tudo idêntica à de uma lei,
como a denominação, em um primeiro momento, sugere. Eles são atos nor-
mativos que dispõem originalmente, após autorização legislativa específica,
sobre matérias situadas no campo da competência concorrente entre Assem-
bleia e Governo - fora, portanto, da reserva material de lei. A deslegalização
opera apenas no âmbito de atuação de tais regulamentos independentes, não
podendo, em hipótese alguma, ser efetuada nos campos de reserva de lei.

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.906 241

Ora, em razão da inexistência, em nosso sistema, das condições que


autorizam a existência de regulamentos independentes e de deslegalização
no sistema português, não se pode invocar a doutrina portuguesa para jus-
tificar,entre nós, a possibilidade de deslegalização que confira a um regula-
mento a possibilidade de agir como se lei fosse. Deslegalização, entre nós,
ocorre apenas quando uma lei que regula minudentemente um determinado
campo material é substituída por outra lei que, no lugar da regulação an-
terior, adota apenas conceitos indeterminados, abrindo espaço ao adminis-
trador para que exerça sua discricionariedade. Se a lei revogadora for além
disso, simplesmente transladando competência ao Administrador, ela será
inconstitucional.
Por fim, se o fundamento do poder normativo das Agências é a técni-
ca da ampla deslegalização – instrumentalizada, como diz Enterría, por meio
de uma lei vazia de conteúdo que subtrai da competência legal um certo tipo
de matéria - não há como justificar que sua competência esteja restrita pela
discricionariedade técnica, cuja origem deve estar em conceitos jurídicos in-
determinados de caráter técnico.
Isto evidencia que a origem apontada para o poder normativo por
esta tese está incorreta, pois não há como compatibilizar as duas partes de
seu argumento: ou bem se trata dedeslegalização, e então não há que se fa-
lar em restrições técnicas à potestade da Administração, ou então se trata
de discricionariedade técnica, caso no qual não haverá deslegalização, mas
sim discricionariedade relacionada ao preenchimento de conceitos jurídicos
indeterminados.
(...)
Tais colocações, no entanto, não resolvem todo o problema. Nosso
sistema de controle de atos administrativos foi elaborado especialmente para
avaliar a legalidade de atos individuais e concretos, na melhor tradição fran-
cesa. Se decidimos criar entidades com um amplo poder normativo, baseado
em standards vagos, e atribuímos a elas a regulação de matérias técnicas e
intrincadas por meio da edição de normas gerais, provavelmente estaremos
gerando um cenário de um certo desencaixe entre os sistemas de controle
existentes e as atividades dessas entidades. Esse desencaixe, por dificultar
a supervisão judicial, pode favorecer a contaminação política das Agências
- com o que teríamos novamente frustrada a finalidade de sua criação. A
discussão referente ao poder normativo, portanto, deve ser complementada
por uma discussão sobre os mecanismos de controle passíveis de imposição à
atividade regulatória. (MOURA, Mauro Hiane. O Poder Normativo e a Auto-
nomia das Agências Reguladoras. Revista Brasileira de Direito Administrati-
vo RDA, Belo Horizonte, ano 2007, n. 246, p. 173194, set./dez. 2007, grifos
acrescidos)

Especificamente sobre a discussão envolvendo o postulado da legalidade ante o poder


normativo das agências reguladoras, tive a oportunidade de registrar em sede doutrinária:

“O desenvolvimento das agências reguladoras, dotadas de amplo


poder regulamentar, suscita desafiadores problemas. É lícito indagar se o
modelo tradicional do regulamento de execução, até aqui dominante, pode
ser aplicado, sem reparos, ao sistema inaugurado com o surgimento dessas
agências. Em outras palavras, é preciso questionar se a decisão regulatória
tomada pelas agências estaria submetida ao princípio da legalidade estrita,

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242 Supremo Tribunal Federal

tal como os denominados regulamentos de execução, ou se estaríamos diante


de uma nova categoria de regulamento ou de um regulamento autônomo.
Enfim, é possível perceber que o vocábulo lei é dotado de uma pluris-
significância que é resultado de diferentes conceitos e concepções fundadas
historicamente em distintos princípios estruturantes do Estado, ora assumin-
do feições aproximadas ao conceito formal decorrente do princípio demo-
crático, ora traduzindo sentidos próprios do conceito material fundado no
princípio do Estado de Direito.
Em razão dos desafios contemporâneos de acomodação teórica entre
o princípio da legalidade em sua visão liberal clássica acima exposta e o sur-
gimento de novos modelos de regulação por entidades públicas e privadas,
há posições pela reinterpretação desse princípio. Argumenta-se que a ideia
de legalidade deve ser remetida a um princípio da juridicidade, de modo
que todos os atos da administração devem estar conformes ao ordenamen-
to jurídico como um todo, incluindo Constituição, emendas constitucionais,
tratados internacionais, leis em sentido formal e demais atos administrativos.
Com a ascensão do chamado modelo de Estado Regulador, que en-
contra seu fundamento normativo especialmente no art. 174 da Constituição
Federal, observa-se uma verdadeira pluralidade de fontes normativas, em
que órgãos e entidades da Administração Pública criam novas normas jurídi-
cas apoiados em leis com terminologia vaga e principiológica.
Dessa maneira, não é fácil precisar o significado da lei na Consti-
tuição de 1988, dada a polissemia da palavra empregada em diversos dis-
positivos ao longo do texto. A Constituição impõe ao seu intérprete esforço
hermenêutico na identificação do significado do termo lei, como na distinção
das hipóteses em que se exige lei ordinária ou lei complementar para o tra-
tamento de determinado tema submetido à reserva legal.
(…)
Sente-se a necessidade, todavia, de uma reformulação do texto cons-
titucional no que concerne à atividade normativa dos órgãos reguladores, em
especial, das agências. Isso porque parece restar claro que as normas editadas
por tais órgãos, cada qual no seu campo de atuação, possuem uma margem
de atuação ampla, que não pode ser reduzida a uma atividade meramente
regulamentadora da lei. A própria ideia da criação de agências reguladoras
parece trazer consigo a noção de que a regulação dos serviços públicos sub-
metidos à tutela desses órgãos demanda deles uma atuação mais abrangente.
Assim, uma reforma constitucional que expressamente autorizasse às agên-
cias reguladoras essa função normativa mais ampla teria o condão de melhor
equipá-las para o exercício de seu múnus precípuo, bem como de esclare-
cer juridicamente os seus poderes normativos.” (MENDES, Gilmar Ferreira;
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 14ª. ed. São
Paulo: Saraiva, 2019, p. 951/952 e 1.058/1.059)

Em um dos casos mais relevantes sobre o tema, esta Corte entendeu pela consti-
tucionalidade da criação das agências reguladoras em âmbito federal, estadual, distrital e
municipal, com competências para efetivamente criar normas jurídicas sobre matérias espe-
cíficas previstas em lei, na ADI 1.969, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, DJe 31.8.2007.
Quanto ao aspecto formal da delegação normativa a agências reguladoras, esta Corte
entendeu hígida tal atividade complementar normativa, como se depreende do seguinte jul-
gado:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓ-
RIA N. 214/2004. MODIFICAÇÃO DAS LEIS NS. 9.478/1997 E 9.847/1999.

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.906 243

REGULAMENTAÇÃO DA INTRODUÇÃO DO BIOCOMBUSTÍVEL NA


MATRIZ ENERGÉTICA BRASILEIRA. ATRIBUIÇÃO À AGÊNCIA NA-
CIONAL DO PETRÓLEO DE COMPETÊNCIA REGULATÓRIA DOS
COMBUSTÍVEIS RENOVÁVEIS. ATENDIMENTO AOS PRESSUPOSTOS
CONSTITUCIONAIS DE URGÊNCIA E RELEVÂNCIA. INEXISTÊNCIA
DE CONTRARIEDADE EMENDA CONSTITUCIONAL N. 9/1995 E AO
ART. 246 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.

1. Observados os pressupostos constitucionais de urgência e relevância na al-


teração do caput do art. 8º da Lei n. 9.478/1997: atribuição à Agência Nacio-
nal do Petróleo da competência para regulação, contratação e fiscalização da
indústria dos combustíveis renováveis pela Medida Provisória n. 214/2004. 2.
Ausência de afronta ao art. 3º da Emenda Constitucional n. 9/1995 e ao art.
246 da Constituição da República: a Medida Provisória n. 214/2004 não regu-
lamenta o monopólio da União sobre as atividades econômicas relacionadas
a petróleo, gás natural, outros hidrocarbonetos fluidos e derivados. 3. Ação
julgada prejudicada quanto ao inc. XVI do art. 8º da Lei n. 9.478/1997 e ao
inc. II do §1º do art. 1º da Lei n. 9.847/1999 e improcedente com relação ao
caput do art. 8º da Lei n. 9.478/1997. (ADI 3.326, Rel. Min. Cármen Lúcia,
Tribunal Pleno, DJe 15.4.2020, grifo nosso)

Reforço, ademais, o que manifestei quando do julgamento da ADI 5.779 (Tribunal


Pleno, redator do acórdão Min. Edson Fachin, DJe 22.02.2022): as autoridades reguladoras
exercem uma verdadeira atuação normativa conjuntural do ambiente regulado. Isso quer
dizer que a delegação de poderes normativos a essas entidades vai além de uma simples
substituição do legislador. Em essência, a opção por submeter determinados mercados ao
escrutínio regulatório perpassa uma opção política de ressignificar a forma de intervenção
pública que se opera.
Como bem destacado pelo Professor Márcio Iório Aranha, o diferencial de um regime
jurídico regulatório é que, diferente dos demais ambientes não regulados, existe uma nota
característica de constante batimento entre resultados esperados e resultados efetivamente
alcançados. Nesse sentido, o autor destaca com clareza que “o mecanismo regulador se apre-
senta como um diferencial do regime jurídico regulatório, revelando-o como um conjunto
de atuações normativas e administrativas capazes de interagir pari passu com os rumos efe-
tivamente detectados no ambiente regulado para redirecioná-lo aos deveres normativos de
concretização dos direitos fundamentais”. (ARANHA, Márcio Iório. Manual de Direito Regu-
latório. London: Laccademia Publishing, 2015. p. 90)
Ainda nas palavras do autor, o que diferencia a intervenção regulatória da intervenção
legislativa ordinária é que aquela “transparece o conjunto de produções não só normativas,
mas administrativas de diuturna reconfiguração do ambiente regulado, como também do for-
mato estatal de ataque aos problemas nele detectados”. (ARANHA, Márcio Iório. Manual de
Direito Regulatório. London: Laccademia Publishing, 2015. p. 91)
Sendo assim, reconheço a constitucionalidade da abertura normativa às agências
reguladoras para que, a fim de controlar e fomentar o exercício da atividade regulada, dispo-
nham sobre infrações, sanções e medidas administrativas aplicáveis aos agentes privados que
descumpram o arcabouço normativo regulatório do setor.
Registre-se, evidentemente, que o exercício desse poder regulador pelo órgão compe-
tente deve dar-se nos limites da lei aplicável – no caso concreto, a Lei nº 10.233, de 5 de junho
de 2001. Esta, em seu art. 78-F, limita o valor da multa a dez milhões de reais, bem como veda
a aplicação de suspensões com prazo superior a 180 dias, no seu art. 78-G.
Ademais, a atuação do regulador deve observar o devido processo legal e, tratando-se
de atividade que a lei tenha como discricionária, deve ser desempenhada sem abuso ou desvio

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244 Supremo Tribunal Federal

de poder. Caso se verifique violação a um desses elementos, como, por exemplo, pela impo-
sição de multa que assuma caráter confiscatório, é legítimo que se recorra ao juiz de primeiro
grau para que este verifique a adequação da medida.
Ante o exposto, acompanho a divergência aberta pelo Min. Alexandre de Moraes e
voto pela improcedência do pedido, reconhecendo a constitucionalidade dos arts. 24, XVIII,
e 78-A, da Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001.

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