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A EPISTEMOLOGIA DO ENSINO RELIGIOSO: UM ESTUDO A PARTIR DA BNCC

Dionísio Felipe Hatzenberger 1


Thais Janaina Wenczenovicz 2

Resumo
Este estudo objetiva, a partir de uma pesquisa bibliográfica exploratória, apresentar
e discutir brevemente a epistemologia do Ensino Religioso presente na BNCC.
Contextualiza, historicamente, as matrizes propostas para o Ensino Religioso e
defende a aplicação do proposto pela BNCC, como sendo uma formulação que
respeita a laicidade e a diversidade religiosa do Brasil. O presente artigo também
discute o lugar do Ensino Religioso no campo científico, afirmando que a melhor
elaboração possível, frente à legislação, é aquela que o define enquanto
transposição didática da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões). Além disso, apresenta
seu principal objeto de estudo, seus principais conceitos e sua metodologia,
conforme o proposto pela BNCC e por autores como Junqueira, Brandenburg,
Teixeira e Rodrigues, entre outros.

Palavras-chave: Ensino Religioso; Epistemologia; BNCC; Ciência da Religião.

INTRODUÇÃO
O desafio de pesquisar a respeito do Ensino Religioso está, primeiramente,
no fato de tratar-se de um tema controverso na sociedade e no meio educacional.
Vejamos que não se discute a necessidade ou a importância do ensino de
Matemática, por exemplo, nas escolas. Sabe-se também, pacificamente, que a
Matemática pertence ao campo das Ciências Exatas. Porém, quanto ao Ensino
Religioso já não é tão simples assim. Por este motivo torna-se importante discutir e
levantar dados sobre o lugar epistemológico do Ensino Religioso, a fim de esclarecer
a qual área do conhecimento pertence essa disciplina escolar, bem como definir de
1 Mestrando em Educação pela UERGS. Licenciado em História, Especialista em Filosofia, com
formação continuada em Ensino Religioso e Mediação de Conflitos. Membro da Associação de
Professores de Ensino Religioso do Rio Grande do Sul (APER/RS) e redator do Referencial
Curricular Gaúcho de Ensino Religioso. Atualmente é Assessor Técnico-Pedagógico da SMED/NH e
Coordenador adjunto da Pós-graduação em Docência no Ensino Religioso da UERGS. Contatos:
dionisio-felipe@uergs.edu.br

2 Pós-doutora em História pela UFRGS e Instytut Studiów Iberyjskich i Iberoamerykanskich


Uniwersytetu Warszawskiego-Polônia e Pós-Doutora em Educação - CAPES/UNIOESTE. É doutora
em História pela PUCRS. Atualmente é docente adjunta/pesquisador sênior da Uergs. Avaliadora do
INEP - BNI ENADE/MEC. Membro do Comitê Internacional Global Alliance on Media and Gender
(GAMAG) - UNESCO. Contatos: t.wencze@terra.com.br
quais ciências auxiliares faz uso, quais seus principais conceitos e quais seus
métodos.
Essa definição é bastante relevante para o fazer pedagógico do professor de
Ensino Religioso, haja vistas que se não houver uma clareza quanto ao lugar
epistemológico, aos conceitos, aos objetos de estudo e aos objetivos desse
componente curricular, certamente a construção dos planos de aula estarão
comprometidos por tornarem-se vagos ou até desrespeitosos com relação ao
princípio da laicidade. O desafio, portanto, está em compreender e disseminar no
meio educacional a compreensão ajustada de qual é, de fato, o lugar epistemológico
do Ensino Religioso, sua razão de ser, seu mote, sua epistemologia. Por
epistemologia compreendemos a teoria do conhecimento, historicamente construída,
a respeito de um determinado campo de investigação.
Ao apontar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017) como referência
para balizar esta questão não se está afirmando que esta seja um documento do
qual os autores concordem com todos os termos. Mas compreende-se a BNCC é o
documento educacional mais atual a versar sobre o tema, sendo a prescrição legal
que define todo o conjunto mínimo de saberes do território nacional brasileiro.

O ENSINO RELIGIOSO E AS ÁREAS DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO


Rodrigues (2017), ao discutir o lugar epistemológico do Ensino Religioso,
conceitua o que vem a ser uma área do conhecimento, ou uma “ciência”:
Por definição, área de conhecimento compreende três dimensões dialógicas
que constituem o conhecimento sobre um objeto, quais sejam: a dimensão
dos saberes específicos, a dimensão dos enquadramentos ou referenciais
teóricos e a dimensão metodológica, a partir da qual propõe como ensinar
sobre um objeto específico. Essas três dimensões conjuntamente
constituem uma área de conhecimento submetida a um classificador, que
varia conforme o país. (RODRIGUES, 2017, p.118)

Assim, para ser área do conhecimento, é necessário haver saberes específicos


(objetos de estudo), referenciais teóricos (conceitos e autores) e uma proposta de
como se estudar estes objetos (metodologia). Portando definimos como desafio
desse estudo, não apenas apontar, com a leitura da BNCC, a área do conhecimento
científico na qual se situa o Ensino Religioso, mas também como os principais
objetos de estudo, conceitos e metodologias propostos para essa disciplina escolar.
Na última seção será apresentado um breve relato histórico da produção de
conhecimento em Ensino Religioso no Brasil.
Ao discutir à qual grande área do conhecimento o Ensino Religioso está
inscrito, há autores que propõe várias hipóteses, entre elas Teologia, Ciências
Humanas, Ciência da Religião, Antropologia ou outras opções. Essa controvérsia
deve-se ao fato de que, no caso do Ensino Religioso no Brasil, a legislação que
estabeleceu a disciplina antecedeu à produção científica de conhecimento a
respeito do componente curricular. Posto está que, em 1988, quando foi
promulgada a constituição cidadã e nela ficou definido o Ensino Religioso enquanto
parte integrante do currículo escolar, pouca produção acadêmica e pedagógica
havia e a produção existente estava muito vinculada à confessionalidade religiosa
católica. O grande dilema estava, porém, no que o contexto constitucional exigia:
uma escola laica. Portanto, novos paradigmas eram necessários ao Ensino
Religioso.
As definições quanto ao papel e o lugar epistemológico do Ensino Religioso
começam a clarear quando a LDBEN (1996) alterou o artigo 33, no ano de 1997,
definindo o Ensino Religioso “parte integrante da formação básica do cidadão e
constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
vedadas quaisquer formas de proselitismo”. Havia o questionamento do que seria o
Ensino Religioso não confessional, sem proselitismo. O desenvolvimento dessa
discussão foi levando, pouco a pouco as temáticas para o campo da Ciência da
Religião, da Antropologia e da História das Religiões. Assim, historicamente foi
sendo construído um campo de conhecimento e de saberes próprios para o Ensino
Religioso escolar.
No colonialismo e eurocentrismo (Quijano, 2005), sobre os quais foi fundada a
sociedade Latino Americana, está a maior dificuldade de desatrelar, do imaginário
popular e até da tradição pedagógica, o Ensino Religioso da antiga “aula de
religião”, catequética católica, instituída ainda nos tempos da colonização e do
Brasil Imperial. Esse ensino, de uma religião específica, estava situado no campo
da Teologia Católica, sendo ele uma versão escolar da catequese. Junqueira
(2017) descreve um pouco do cenário das várias concepções de Ensino Religioso
que houve no decorrer do tempo:
Desta forma, decorrem as diferentes concepções de Ensino Religioso
veiculadas na história: aula de religião (Teologia – conceito de religiosidade,
fé, crenças: particularidades entre elas); aula de vivência religiosa
(Antropologia – favorece a compreensão das diferentes expressões
religiosas, possibilitando uma visão global de mundo e de pessoa); aula de
interpretação e análise do conhecimento religioso (Ciência da Religião-
análise dos elementos comuns e específicos às diversas religiões, isto é, o
fenômeno religioso em si e nas suas múltiplas expressões). (JUNQUEIRA,
2017, p. 23)

A aula de religião, a aula de vivência religiosa e a aula de interpretação e


análise do conhecimento, coexistem ainda na prática pedagógica real das escolas
públicas do Brasil. Esses três modelos disputam entre si e ainda competem com
um quarto modelo: aulas vazias de qualquer sentido, onde o professor que
desconhece a temática dá aos alunos um texto qualquer para leitura ou um
desenho desconexo para pintura.
Historicamente falando, o primeiro modelo, pautado na Teologia Católica, é o
que perdurou por mais tempo e ainda ocupa espaço em muitas escolas pela força
da tradição colonial. O segundo modelo é, ao que parece, o menos aplicado, talvez
por falta de condições práticas nas escolas, apesar de ser uma perspectiva
interessante, porém controversa. O terceiro modelo é o que veio sendo proposto
com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) desenvolvidos pelo FONAPER
e que se consolidou na BNCC, como proposta pedagógica para o Ensino Religioso.
A Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017) estabelece que o Ensino
Religioso passa a ser uma área do conhecimento própria no contexto escolar, não
subscrevendo-se dentro das Ciências Humanas, como anteriormente já fora
inscrito. Vejamos as considerações do documento a esse respeito:
A Constituição Federal de 1988 (artigo 210) e a LDB nº 9.394/1996 (artigo
33, alterado pela Lei nº 9.475/1997) estabeleceram os princípios e os
fundamentos que devem alicerçar epistemologias e pedagogias do Ensino
Religioso, cuja função educacional, enquanto parte integrante da formação
básica do cidadão, é assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa,
sem proselitismos. Mais tarde, a Resolução CNE/CEB nº 04/2010 e a
Resolução CNE/CEB nº 07/2010 reconheceram o Ensino Religioso
como uma das cinco áreas de conhecimento do Ensino Fundamental de 09
(nove) anos. (BRASIL, 2017, p. 435)

Portando, conforme as Resoluções do CNE/CEB 04/2010 e 07/2010, o Ensino


Religioso tornou-se uma Área do Conhecimento própria, entre as 5 (cinco) áreas que
compõem o Ensino Fundamental. Porém, ao dizer que o Ensino Religioso constitui-
se em Área do Conhecimento, no âmbito do currículo escolar, não significa dizer que
ele é uma ciência independente ou propriamente uma Área do Conhecimento
Científico geral. Vejamos que a própria BNCC constata que os saberes necessários
para desenvolver o Ensino Religioso estão presentes em diferentes ciências, mas
apresentam-se mais concentrados em uma:
O conhecimento religioso, objeto da área de Ensino Religioso, é produzido
no âmbito das diferentes áreas do conhecimento científico das Ciências
Humanas e Sociais, notadamente da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões).
Essas Ciências investigam a manifestação dos fenômenos religiosos em
diferentes culturas e sociedades enquanto um dos bens simbólicos
resultantes da busca humana por respostas aos enigmas do mundo, da
vida e da morte. (BRASIL, BNCC, 2017, p. 436)

Assim, a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) é a grande Área do Conhecimento


Científico, no qual se enquadra o Ensino Religioso dentro das especificações legais
em vigência (BNCC). Afastando-se, definitivamente, o Ensino Religioso do campo da
Teologia, ou das Teologias, pois todas elas são olhares situados e confessionais
para com a espiritualidade. Também não se enquadra na Antropologia, pois a
vivência religiosa, enquanto metodologia, não é aplicável pelas questões estruturais
das escolas e pelo perigo do proselitismo.
Há, portanto, um grande distanciamento entre a proposta da antiga “aula de
religião” e o Ensino Religioso alicerçado na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), sendo
essas duas matrizes, a colonial e a proposta mais recentemente pela BNCC
possíveis de serem sistematizadas no seguinte esquema:
Quadro 1: Esquema das principais matrizes epistemológicas do Ensino Religioso no Brasil

Fonte: Autor, 2019.

É importante deixar claro que, apesar da tradição escolar, por muitas vezes,
trazer consigo a prática da antiga “aula de religião”, esta primeira matriz apresentada
na sistematização é atualmente vedada pela legislação educacional e está em
desconformidade com o que propõe a BNCC. Assim, faz-se necessário a
atualização e qualificação do corpo docente para ministrar o Ensino Religioso nas
escolas públicas em conformidade com a laicidade do Estado brasileiro e com as
normas que definem a epistemologia dessa disciplina escolar.

O ENSINO RELIGIOSO NA(S) CIÊNCIA(S) DA(S) RELIGIÃO(ÕES)

Segundo Teixeira (2011, p.842) há uma discussão no meio científico e


acadêmico quanto à nomenclatura correta para a ciência que estuda o fenômeno
religioso na diversidade humana. Serão apresentadas as 4 (quatro) formas possíveis
de nomenclatura para essa Área do Conhecimento Científico, que possuem motivos
e críticas à sua composição textual, conforme resumiu-se no quadro abaixo:

Tabela 1: Defesa e crítica às nomenclaturas da “Ciência da Religião”

Titulo: Defesa: Crítica:


Ciência da Religião Trata-se de uma ciência na qual o - Há quem critique o uso singular de
estudo da “religião” compreende “ciência” por entender que sejam várias
essa enquanto um fenômeno que “ciências” que a compõe.
se expressa de distintas formas em - Há quem critique o uso singular de
espaços e tempos. “Religião” por entender que são várias
religiões o objeto de estudo.
Ciência das Trata-se de uma ciência na qual o - Há quem critique o uso singular de
Religiões estudo das diferentes “religiões” é o“ciência” por entender que sejam várias
objetivo. “ciências” que a compõe.
- Há quem critique o uso plural de
“Religiões” por entender que o singular
já dá conta disso.
Ciências da Religião Tratam-se de várias “ciências”, - Há quem critique o uso plural de
como antropologia, sociologia, “Ciências” por compreender que este
história, filosofia, etc, que juntas estudo acaba por fundar uma nova
estudam a “religião” enquanto um ciência.
fenômeno que se expressa de - Há quem critique o uso singular de
distintas formas em espaços e “Religião” por entender que são várias
tempos. religiões o objeto de estudo.
Ciências das Tratam-se de várias “ciências”, - Há quem critique o uso plural de
Religiões como antropologia, sociologia, “Ciências” por compreender que este
história, filosofia, etc, que juntas estudo acaba por fundar uma nova
estudam a “religião” enquanto um ciência.
fenômeno que se expressa de - Há quem critique o uso plural de
distintas formas em espaços e “Religiões” por entender que o singular
tempos. já dá conta disso.
Fonte: Dados sistematizado de Teixeira (2011) e Marques; Rocha (2007)

Por entender que, seja qual for a nomenclatura dada a essa Área do
Conhecimento, trata-se da mesma ciência em questão, com os mesmos objetivos e
objetos de conhecimento, muitos autores optaram por usar o termo “Ciência(s) da(s)
Religião(ões)” como forma de respeitar e incluir as diferentes interpretações sem
entrar no mérito da polêmica. Essa é forma também na qual se encontra essa
ciência citada na BNCC. Outro equívoco se deu quanto ao lugar dessa ciência.
Inicialmente havia um entendimento de que a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) e a
Teologia eram parte de um mesmo saber, outros entendiam que uma estava dentro
da outra ou que ambas estariam dentro da Filosofia. Essa polêmica foi alvo de
discussões junto ao CNPq/CAPES, conforme descreve Rodrigues (2017, p. 120):
No Brasil, a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) e a Teologia foram,
inicialmente, classificadas como subáreas da Filosofia. Recententemente,
tais campos tornaram-se distintos da filosofia, passando a ocupar, no âmbito
da árvore de saberes do CNPq/CAPES, a posição de área autônoma, como
área 44 – Ciência(s) da(s) Religião(ões) e Teologia. A despeito de não
constituírem áreas dependentes entre si, Ciência(s) da(s) Religião(ões) e
Teologia permanecem, pois, no mesmo indicador, que vale uma ressalva.

Assim, atualmente, a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), com essa


nomenclatura, está compondo a área 44 da árvore dos saberes do CNPq/CAPES,
como área autônoma, apesar de dividir a mesma numeração com a Teologia,
mesmo que não sendo por isso colocada como sinônimo dela, mas sendo posta ao
lado.
Segundo Teixeira (2011), o estudo a respeito do Fenômeno Religioso, no
contexto da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), não é um estudo isolado, no sentido
epistemológico, pois as ciências interdependem umas das outras. Nesse caso, a(s)
Ciência(s) da(s) Religião(ões), usam recursos metodológicos de outras ciências
auxiliares, como a Antropologia da Religião, a História das Religiões, a Sociologia da
Religião, a Psicologia da Religião, a Filosofia da Religião e as Teologias, entre
outras. Portanto a epistemologia do Ensino Religioso, atrelado à(s) Ciência(s) da(s)
Religião(ões), também precisa levar em conta os saberes historicamente
constituídos por essas ciências.
Objetivando definir a natureza da relação entre o Ensino Religioso e a (s)
Ciência(s) da(s) Religião(ões), Junqueira (2015, p. 46) propõe uma elaboração, da
seguinte forma:
[...] o que geralmente é denominado de Ensino Religioso é, na verdade, a
transposição didática, ou melhor, a aplicação para o cotidiano da sala de
aula dos resultados dessa Ciência, possibilitando aos estudantes da
educação básica a compreensão da(s), cultura(s) das diferentes
comunidades que formam determinado país/nação.

Baseado no que prevê a BNCC e Junqueira, o Ensino Religioso é uma


disciplina escolar que reflete os saberes da(S) Ciência(s) da(s) Religião(ões) numa
linguagem e num tratamento didático que torne viável e significante aos estudantes
do Ensino Fundamental o conhecimento religioso. Essa transposição didática é um
olhar da academia, do pesquisador e do professor para os saberes complexos da(s)
Ciência(s) da(s) Religião(ões), com a intenção de verificar quais conceitos e saberes
podem ser desenvolvidos em sala de aula e, de que forma, podem ser levados para
um público que varia entre crianças e adolescentes, pensando nesse estudante em
seu atual estágio do desenvolvimento intelectual. Junqueira (2015, p.11) descreve a
transposição didática como uma simplificação, uma vulgarização, dos profundos
saberes de uma ciência.

O PRINCIPAL OBJETO DE ESTUDO DO ENSINO RELIGIOSO


A BNCC estabelece os objetos de estudos e as habilidades para cada
disciplina escolar, enquanto direitos mínimos de aprendizagem e desenvolvimento
de cada educando. Conforme descreve o texto da BNCC (2017, p.434) o
“conhecimento religioso” é o “objeto da área de Ensino Religioso”. Porém, há alguns
autores que colocam o “Fenômeno Religioso” como sendo o objeto de estudo do
Ensino Religioso, como é o caso de Junqueira (2017):

O Ensino Religioso, enquanto disciplina enquadra-se no padrão comum a


todas as outras áreas do conhecimento, ou seja, tem objeto de estudo: o
fenômeno religioso; conteúdo próprio: conhecimento religioso; tratamento
didático: didática do fenômeno religioso; objetivos definidos; metodologia
própria; sistema de avaliação; inserção no sistema de ensino. O saber
construído estabelece um pensamento decorrente no ensino e na
aprendizagem. (JUNQUEIRA, 2017, p. 23)

Nesse caso, torna-se necessário esclarecer que o Fenômeno Religioso é


objeto principal de estudo da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) e que o
“Conhecimento Religioso” é o conjunto de saberes oriundos da observação e análise
do “Fenômeno Religioso” na sociedade. Ou seja, trata-se de um substrato desse
estudo mais amplo, fruto do tratamento didático necessário para o Ensino Religioso
atingir seus objetivos junto ao público do Ensino Fundamental. Ou seja, ao
afirmarmos que o Fenômeno Religioso é objeto de estudo do Ensino Religioso não
estamos fazendo uma afirmação equivocada, pois é dele que advém os saberes que
são tratados na disciplina.
A BNCC (2017, p. 436) dá um conceito para os “fenômenos religiosos” como
sendo “[…] um dos bens simbólicos resultantes da busca humana por respostas aos
enigmas do mundo, da vida e da morte”. Este fenômeno é universal, ou seja, dá-se
em todas as épocas e lugares por onde os indivíduos humanos formaram
sociedades. A BNCC, buscando justificar e dar subsídios aos docentes, quanto à
natureza desse estudo, descreve o fenômeno religioso da seguinte forma:

De modo singular, complexo e diverso, esses fenômenos alicerçaram


distintos sentidos e significados de vida e diversas ideias de divindade(s),
em torno dos quais se organizaram cosmovisões, linguagens, saberes,
crenças, mitologias, narrativas, textos, símbolos, ritos, doutrinas, tradições,
movimentos, práticas e princípios éticos e morais. Os fenômenos religiosos
em suas múltiplas manifestações são parte integrante do substrato cultural
da humanidade. (BRASIL, 2017, p. 436)

Nesse sentido, compreender a religião e a religiosidade humana nas suas


mais diversas manifestações, historicamente constituídas deve ser o verdadeiro
objeto de estudo do Ensino Religioso, permitindo aos envolvidos no processo de
ensino e aprendizagem o debate quanto à interferência desse âmbito sobre a vida
humana, permitindo uma visão holística, analítica, crítica e reflexiva quanto ao viver
em sociedade e quanto ao próprio sentido da existência humana. Compreender o
sagrado no mundo que nos cerca é letramento religioso, uma forma de
enriquecimento cultural e histórico de grande valor para qualquer sujeito inserido na
sociedade, que se apresenta cada vez mais complexa e diversa.

PRINCIPAIS CONCEITOS EMPREGADOS NO ENSINO RELIGIOSO


Como já foi afirmado, o Ensino Religioso é uma transposição didática dos
saberes da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) para o mundo da sala de aula. Entende-
se que essa transposição didática é um tratamento que a academia e os
profissionais da educação fazem com relação aos paradigmas desenvolvidos com
profundidade e complexidade pelos profissionais da ciência, que muitas vezes não
tem consenso sobre uma matéria ou outra, e que a discutem à exaustão. O
tratamento didático de que se faz referência, constitui-se exatamente em estabelecer
os paradigmas que podem ser trabalhados com estudantes do Ensino Fundamental
de tal forma que os introduza, trazendo reflexões e saberes relevantes, porém, de
forma mais objetiva e concreta. Junqueira narra como se dá essa transposição
didática dos paradigmas científicos para o saber escolar sintético:
[...] o objeto produzido por um cientista ao ser transformado em um objeto
do saber escolar é estabelecido por uma mediação didática favorecendo o
processo de ensino e aprendizagem no espaço escolar. São estudos que
buscam a criação e a exploração de situações de aprendizagem sobre
temas específicos de ensino, e que visam a validação de certas construções
empíricas, extraídas de inovações pedagógicas, visando à transformação do
conhecimento científico, exterior à escola, em conhecimento escolar.
(JUNQUEIRA, 2015, p.11)

Desta forma, ao definir quais são os conceitos que farão parte do processo
escolar de socialização do saber, está se definindo uma série de paradigmas que se
considera minimamente consensual no meio científico e que pode ser submetido ao
público escolar. Esses conceitos estão distribuídos em toda literatura e produção
científica do Ensino Religioso e da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), porém, ficaram
mais evidenciados, sistematizados e até simplificados na BNCC. Analisando os
principais conceitos propostos pela BNCC, realizamos a sistematização deles e da
conceituação apresentada nesse documento em uma tabela, apresentada abaixo:
Tabela 2: Principais conceitos do Ensino Religioso presentes na BNCC

Conceito: Descrição contida na BNCC (2017):


Imanência Dimensão concreta do sujeito.
Transcendência Dimensão subjetiva, simbólica do sujeito.
Alteridade A percepção das diferenças, que possibilita a distinção entre o “eu” e
o “outro”, “nós” e “eles”, cujas relações dialógicas são mediadas por
referenciais simbólicos (representações, saberes, crenças,
convicções, valores) necessários à construção das identidades.
Identidade Caráter singular e diverso do ser humano.
Finitude Condição frente à qual os sujeitos e as coletividades sentiram-se
desafiados a atribuir sentidos e significados à vida e à morte.
Práticas Espirituais Incluem a realização de cerimônias, celebrações, orações,
ou Ritualísticas festividades, peregrinações, entre outras.
Ritos Narram, encenam, repetem e representam histórias e acontecimentos
religiosos. O rito é um gesto que aponta para outra realidade.
Símbolo Uma coisa que significa outra.
Espaços e Montanhas, mares, rios, florestas, templos, santuários, caminhos,
Territórios Sagrados entre outros, que se distinguem dos demais por seu caráter simbólico.
Esses espaços constituem-se em lócus de apropriação simbólico-
cultural, onde os diferentes sujeitos se relacionam, constroem,
desenvolvem e vivenciam suas identidades religiosas.
Lideranças Pessoas incumbidas da prestação de serviços religiosos. Sacerdotes,
Religiosas líderes, funcionários, guias ou especialistas, entre outras designações,
desempenham funções específicas: difusão das crenças e doutrinas,
organização dos ritos, interpretação de textos e narrativas,
transmissão de práticas, princípios e valores etc. Portanto, os líderes
exercem uma função pública, e seus atos e orientações podem
repercutir sobre outras esferas sociais, tais como economia, política,
cultura, educação, saúde e meio ambiente.
Manifestações É expressão da religiosidade na sociedade, composta por um
Religiosas conjunto de elementos (símbolos, ritos, espaços, territórios e
lideranças).
Mitos Eles representam a tentativa de explicar como e por que a vida, a
natureza e o cosmos foram criados. Apresentam histórias dos deuses
ou heróis divinos, relatando, por meio de uma linguagem rica em
simbolismo, acontecimentos nos quais as divindades agem ou se
manifestam. O mito é um texto que estabelece uma relação entre
imanência (existência concreta) e transcendência (o caráter simbólico
dos eventos). Ao relatar um acontecimento, o mito situa-se em um
determinado tempo e lugar e, frequentemente, apresenta-se como
uma história verdadeira, repleta de elementos imaginários.
Divindades Seres, entes ou energias que transcendem a materialidade do mundo.
São representados de diversas maneiras, sob distintos nomes,
formas, faces e sentidos, segundo cada grupo social ou tradição
religiosa.
Crenças Um conjunto de ideias, conceitos e representações estruturantes de
determinada tradição religiosa. As crenças fornecem respostas
teológicas aos enigmas da vida e da morte, que se manifestam nas
práticas rituais e sociais sob a forma de orientações, leis e costumes.
Narrativas São preservadas e passadas de geração em geração pela oralidade.
Religiosas Desse modo, ao longo do tempo, cosmovisões, crenças, ideia(s) de
divindade(s), histórias, narrativas e mitos sagrados constituíram
tradições específicas, inicialmente orais. Em algumas culturas, o
conteúdo dessa tradição foi registrado sob a forma de textos escritos.
Doutrinas Religiosas Um conjunto de princípios e valores. Estas reúnem afirmações,
dogmas e verdades que procuram atribuir sentidos e finalidades à
existência, bem como orientar as formas de relacionamento com a(s)
divindade(s) e com a natureza.
Ideias de Ancestralidade, reencarnação, ressurreição, transmigração, entre
Imortalidade outras, que são norteadoras do sentido da vida dos seus seguidores.
Essas informações oferecem aos sujeitos referenciais tanto para a
vida terrena quanto para o pós-morte, cuja finalidade é direcionar
condutas individuais e sociais.
Códigos Éticos e Definem o que é certo ou errado, permitido ou proibido. Esses
Morais princípios éticos e morais atuam como balizadores de comportamento,
tanto nos ritos como na vida social.
Filosofias de Vida Ancoram-se em princípios cujas fontes não advêm do universo
religioso. Pessoas sem religião adotam princípios éticos e morais cuja
origem decorre de fundamentos racionais, filosóficos, científicos, entre
outros. Esses princípios, geralmente, coincidem com o conjunto de
valores seculares de mundo e de bem, tais como: o respeito à vida e à
dignidade humana, o tratamento igualitário das pessoas, a liberdade
de consciência, crença e convicções, e os direitos individuais e
coletivos.
Fonte: Autor, 2019.

Estes conceitos servem como baliza para o Ensino Religioso no decorrer das
etapas do Ensino Fundamental, e são estudados progressivamente, conforme as
habilidades e as competências propostas pela BNCC. São conceitos oriundos de
produções intelectuais diversas, que compõe o arcabouço do Ensino Religioso e são
uma progressão do que já vinha sendo proposto nos PCNs. Estes conceitos estão
divididos no documento em 3 (três) diferentes Unidades Temáticas maiores, sendo
elas: (a) Crenças religiosas e filosofias de vida, (b) Manifestações religiosas e (c)
Identidades e alteridades.
Os fundamentos teóricos (e os autores) para o Ensino Religioso não são
citados na BNCC, porém, ao analisar os principais conceitos a serem abordados
pelo Ensino Religioso no decorre do currículo escolar, observa-se que estes estão
presentes em produções científicas de diversos autores da(s) Ciência(s) da(s)
Religião(ões), da Antropologia e da Teologia. Porém, nota-se que grande parte da
discussão conceitual desses termos já se fazia anteriormente presente em
documentos do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER),
entidade que congrega estudiosos do Ensino Religioso e membros das mais
diversas Tradições Religiosas de todo Brasil.
METODOLOGIA DO ENSINO RELIGIOSO
Brandenburg (2013, p.223) afirma que a “fenomenologia ou o estudo do
fenômeno religioso pode funcionar como método de organização desse
conhecimento específico”, referindo-se ao Ensino Religioso. De fato, o próprio objeto
de estudo do Ensino Religioso já sugere, nele mesmo, um método, que é análise,
estudo e observação do fenômeno em questão.
A fenomenologia é um tipo de estudo oriundo da filosofia e que atualmente é
mais empregado em estudos antropológicos. Porém, por tratar-se de uma
transposição didática, dificilmente os métodos mais profundos da fenomenologia
serão aplicáveis para o estudo em sala de aula, no Ensino Fundamental. Assim, é
importante percebermos que se recorre ao substrato desse estudo, que é o
conhecimento religioso, esse já mais mastigado, trabalhado, apesar de ainda ser
complexo e profundo.
Assim, as metodologias do Ensino Religioso, não diferentemente das demais
disciplinas escolares, serão buscadas no campo das metodologias educacionais da
atualidade. A BNCC propõe a adoção de metodologias educacionais ativas para o
desenvolvimento das aulas de Ensino Religioso, conforme o texto evidencia:
No Ensino Fundamental, o Ensino Religioso adota a pesquisa e o diálogo
como princípios mediadores e articuladores dos processos de observação,
identificação, análise, apropriação e ressignificação de saberes, visando o
desenvolvimento de competências específicas. (BRASIL, BNCC, 2017,
p.436)

Percebemos a simplificação do estudo fenomenológico nos seguintes termos:


“observação, identificação, análise, apropriação e ressignificação de saberes”. A
opção por metodologias ativas, presentes em todo documento visa oportunizar ao
educando condições de inferir questionamentos sobre a realidade, o mundo, os
problemas sociais e suas próprias certezas, dando lugar de evidência ao educando,
enquanto protagonista de seus saberes. Uma metodologia analítica que visa uma
formação reflexiva e crítica é proposta também por Rodrigues:
[...] pode-se afirmar que os estudos de religião que se desenvolvem na(s)
Ciência(s) da(s) Religião(ões) visam atinar para a religião ou o religioso
considerando (a) a região da atribuição de sentidos e (b) a dimensão do
desdobramento desses significados – ou capacidade de interpelação -, em
diferentes contextos sociopolíticos. Daí que o instrumental teórico e
metodológico mobilizado para a elaboração de análises que contemplem as
ambiguidades da religião [...] sugere uma abordagem interdisciplinar mais
atenta aos temas e aos conteúdos do que a algum método específico.
(RODRIGUES, 2017, p.121)
Essa “abordagem interdisciplinar”, citada por Rodrigues, traz consigo uma
metodologia interdisciplinar, ou seja, metodologias que provém de várias ciências.
Por exemplo: a análise histórica, a interpretação de textos, a leitura e análise de
dados presentes em gráficos, a discussão filosófica, o contemplar artístico, e muitos
outros elementos trazidos de outras áreas do conhecimento escolar que são úteis e
bem vindos no desenvolvimento do Ensino Religioso em sala de aula.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O grande feito da BNCC para o Ensino Religioso é a definição do lugar
epistemológico dessa disciplina escolar, ligando-a à(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões)
e definindo que seu objeto principal de estudo é o Conhecimento Religioso,
substrato do Fenômeno Religioso.
O documento também estabeleceu uma série de conceitos-chave para se
trabalhar esse objeto de estudo em sala de aula, já observando o tratamento
didático necessário, além de apontar o lugar desses saberes na progressão
longitudinal do currículo. Com isso, foi dado um grande passo, apesar de algumas
dúvidas ainda pairarem sobre o tema, em especial no que tange à metodologia, que
merece mais estudos.
Portanto, ministrar Ensino Religioso no Brasil, seguindo o que se propõe na
BNCC, exige do profissional da educação, em primeiro lugar, um trabalho intelectual
de apropriação dos saberes da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), no geral pouco
conhecida dos docentes, por tratar-se de uma área bastante nova na academia
brasileira. Em segundo lugar, há a necessidade de um esforço para se realizar a
transposição desses saberes para a linguagem da sala de aula, exigindo nesse
período inicial, que se busquem e desenvolvam metodologias que deem conta das
habilidades que se propõe desenvolver em cada etapa do Ensino Fundamental.

REFERÊNCIAS
BRANDENBURG, Laude Erandi. A Epistemologia do Ensino Religioso, suas
Limitações e Abrangências: a Confluência da Educação e da Religião na Escola. In:
Interações – Cultura e Comunidade. Belo Horizonte, V.8 N.14, Jul./Dez, 2013.
BRASIL. BNCC. Brasília, 2017. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/06/BNCC_EI_EF_
110518_versaofinal_site.pdf> Acesso em: 09 Ago 2018.
JUNQUEIRA, Sérgio Rogério Azevedo; GABRIEL JÚNIOR, René Faustino; KLUCK,
Cláudia Regina; RODRIGUES, Edile Maria Fracaro. Socialização do saber e
produção científica do ensino religioso. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017.
JUNQUEIRA, Sérgio. Uma ciência como referência: uma conquista para o Ensino
Religioso. In: Rever: Revista de Estudos da Religião, p.10-25, 2009. Disponível em:
<http://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/26181> Acesso em 25 jun.
2019.
MARQUES, Ângela Cristina Borges; ROCHA, Marcelo. Memórias da fase inicial da
Ciência da Religião no Brasil - Entrevistas com Edênio Valle, José J. Queiroz e
Antonio Gouvêa Mendonça. In: Rever – Revista de Estudos da Religião. Março,
2007. Disponível em: <https://www.pucsp.br/rever/rv1_2007/p_entrevista.pdf>
Acesso em 2 Jul. 2019.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In:
Lander, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autônoma de
Buenos Aires, Argentina: set. 2005. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2591382/mod_resource/content/1/
colonialidade_do_saber_eurocentrismo_ciencias_sociais.pdf> Acesso em: 27 Jun.
2019.
RODRIGUES, Elisa. Ensino Religioso e área do conhecimento. In: JUNQUEIRA,
Sérgio Rogério Azevedo; BRANDENBURG, Laude Erandi; KLEIN, Remi (Orgs).
Compêndio do Ensino Religioso. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2017.
TEIXEIRA, Faustino. Ciências da Religião e “ensino do religioso”. In. SENA,
Luzia(org.). Ensino Religioso e formação docente: ciências da religião e ensino
religioso em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2006.

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