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Teoria e método:

diálogos entre Pierre Bourdieu e Norbert Elias


ISABELA GARCIA GELFUSO*

Resumo:
O objetivo deste artigo é apresentar as principais contribuições do pensamento de
Pierre Bourdieu e de Norbert Elias à teoria social e ao método sociológico no
decorrer do século XX. Ao estabelecer uma aproximação entre os autores
mencionados, pretende-se identificar alguns dos possíveis pontos de convergência
entre suas teorias, dando ênfase, sobretudo, ao papel de centralidade atribuído à
esfera da subjetividade em ambos os projetos teóricos.
Palavras-chave: Pierre Bourdieu; Norbert Elias; Teoria sociológica.
Theory and method: dialogues between Pierre Bourdieu and Norbert Elias
Abstract:
The purpose of this article is to introduce the main contributions of the thought of
Pierre Bourdieu and Norbert Elias to social theory and sociological method
throughout the 20th century. By establishing an approximation between the authors,
it is intended to identify some of the possible points of convergence between their
theories, especially in relation to the central role attributed to the sphere of
subjectivity in both theoretical projects.
Key words: Pierre Bourdieu; Norbert Elias; Sociological theory.

*
ISABELA GARCIA GELFUSO é mestranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais da UNESP/FCLAr. É bacharela e licenciada em Ciências Sociais pela mesma
instituição.

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Introdução sociologia deve ser uma disciplina
O objetivo deste artigo é identificar e engajada, de resistência e luta contra as
expor algumas possíveis aproximações desigualdades e às dominações sociais. A
entre as teorias sociais formuladas por sua herança teórica se manifesta na ampla
Pierre Bourdieu e Norbert Elias, bem utilização e difusão pela produção
como as convergências relativas aos sociológica contemporânea de conceitos
métodos de pesquisa empregados por como habitus, campo, capital cultural e
ambos os autores em suas trajetórias simbólico, entre outros. Na esfera
intelectuais. A questão da subjetividade, metodológica, destaca-se também
eleita como fio condutor para a elaboração importantes contribuições de Bourdieu em
deste trabalho, nos permite traçar um relação à pesquisa etnográfica, aos estudos
diálogo entre os dois projetos teóricos e de trajetória e à análise do discurso.
visualizar de forma explícita suas Nascido na década de 1930 em Denguin,
semelhanças e divergências. comuna interiorana localizada no sul da
A escolha dos autores se deu pela França, Bourdieu dedicou grande parte de
conhecida proximidade de suas teorias, sua vida profissional à pesquisa
sobretudo em relação à recusa de uma sociológica. Formou-se em filosofia na
concepção substancialista de sociedade e École Normale Supérieure em Paris e,
ao destaque atribuído à esfera do durante o mesmo período, foi convocado
inconsciente que ambos os autores a prestar serviços militares na guerra da
compartilham, bem como a vasta Argélia, onde foi alocado para um cargo
influência e relevância de suas teorias para administrativo, que consistia no trabalho
a pesquisa sociológica contemporânea. de leitura de cartas. O tempo em que
habitou a Argélia constitui um ponto
No que se refere à divisão do trabalho, importante em sua trajetória intelectual
primeiro serão apresentadas algumas das pois marca o momento em que o pensador
principais contribuições de Bourdieu para francês desliza da filosofia à ciência
a teoria e a pesquisa sociológica, social, e passa a articular a pesquisa
atribuindo ênfase ao conceito de habitus e empírica feita em campo às suas reflexões
à suas inovações metodológicas. Depois, teóricas. É através do contato com a
será exposta a tese de Norbert Elias acerca população argelina, do contexto dramático
do processo civilizador, atravessando a da guerra e do intercâmbio entre as
sua conceitualização de figuração. Por realidades de sua pequena comunidade na
fim, algumas aproximações entre os dois França imperialista e da Argélia colonial
projetos teóricos serão apontadas a fim de que Bourdieu passa a formular perguntas
se traçar um diálogo entre os autores significativas que o acompanhariam em
analisados. grande parte de seu empreendimento
Pierre Bourdieu, habitus e etnografia acadêmico. Como expressa Wacquant
(2006, p. 14):
Considerado um dos maiores sociólogos
do século XX, Pierre Bourdieu carrega o Foi na dura prova da Argélia que a
libido philosophica de Bourdieu foi
legado de alguém cujas pesquisas
inesperadamente desviada e
revolucionaram o campo da sociologia na irreversivelmente transformada na
França. Ao apontar a existência do elo libido sociológica que iria alimentar
indissociável entre a teoria social e a sua permanente busca de uma ciência
pesquisa empírica, na qual uma não se da prática e do poder simbólico. A
sustenta sem que haja a atuação da outra, vocação antropológica de Bourdieu
o pensador francês defende que a cristalizou-se, e a sua aprendizagem

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sobre pesquisa empírica foi mal umas em relação às outras, como
literalmente gerada “no campo”, formavam, elas próprias, uma mistura
como a própria expressão indica. Ou variada de tradição enraizada e de
seja, através da imersão continuada imposição colonial, com as
nas realidades diárias de uma estratégias dos autóctones
sociedade aflita, apanhada nas predispostos a oscilar entre dois
convulsões do colonialismo princípios antinômicos
decadente, das vagas do nacionalismo
e do caos nascido da sua inevitável
A noção de habitus pode ser descrita
conflagração. enquanto um movimento de incorporação
da sociedade no indivíduo e de devolução
Além disso, é também nesse mesmo desses códigos sociais feita por esse
período que o seu trabalho etnográfico mesmo indivíduo a partir de sua
ganha contornos concretos e originais, subjetividade. Essa devolução, que nunca
desvencilhando-se da noção hegemônica se dá inalterada e da mesma maneira
em voga nos espaços acadêmicos de que a “crua” como incorporada inicialmente,
distância entre o observador e o observado evidencia o papel do sujeito no processo
é crucial para a pesquisa científica. A de manutenção ou de superação das
experiência pessoal de Bourdieu no desigualdades e dominações sociais.
campo o permitiu formular um novo modo Designa “um sistema de disposições,
de se realizar pesquisa sócio- modos de perceber, de sentir, de fazer, de
antropológica, no qual a subjetividade do pensar, que nos levam a agir de
pesquisador compõe parte crucial do determinada forma em uma circunstância
processo. Rompendo com o dada” (THIRY-CHERQUES, 2006, p.
estruturalismo francês, entende as 33). O conceito de habitus expõe a dupla
estruturas sociais como algo que se gramática existente entre a história
constitui continuamente através das individual e a história coletiva, e
práticas e ações sociais dos sujeitos nelas consequentemente suas incongruências,
envolvidos. Assim, é possível apontar que, paradoxos e contradições. O cenário que
na perspectiva bourdieusiana, o agente ilustra as estruturas sociais é, portanto, o
não é um mero ente passivo frente à de uma inter-relação entre dinâmicas do
estrutura social, mas a constitui de forma inconsciente e das escolhas racionais dos
relacional e ininterrupta. Existe, neste indivíduos.
sentido, uma ênfase atribuída por
Bourdieu ao sujeito e às subjetividades em Antiga na filosofia ocidental, a noção de
relação ao que estava sendo produzido habitus já estava presente nas reflexões de
pela teoria sociológica de sua época. Esta teóricos como Aristóteles, Kant,
superação da oposição entre as categorias Durkheim e Heidegger. De acordo com a
de indivíduo e sociedade se manifesta em concepção clássica aristotélica, por
sua teoria através do conceito de habitus. exemplo, o habitus representaria o mundo
Segundo a definição de Wacquant (2006, incorporado e reproduzido pelo indivíduo.
p. 17), Bourdieu utiliza essa mesma concepção,
mas adiciona a ela o caráter da
O habitus é a categoria mediadora, mutabilidade. Ao observar os
transcendendo a fronteira entre o descompassos e as contradições presentes
objetivo e o subjetivo, que permitiu a
Bourdieu captar e descrever o agitado
na sociedade francesa rural em relação às
mundo duplo da Argélia colonial em expectativas das mulheres (que estiveram
desagregação. Nesse mundo em contato com a cultura parisiense) sobre
conturbado, as estruturas sociais e os homens locais do campesinato, o
mentais não só estavam funcionando sociólogo francês encontra no campo

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empírico a manifestação do conceito de experiência vivida do sujeito
habitus. O mesmo ocorre ao analisar as consciente, mas as condições sociais
contradições encontradas na realidade da de possibilidade - e, portanto, os
população argelina que, frente às efeitos e os limites - dessa experiência
e, mais precisamente, do próprio ato
mudanças culturais impostas pelos
de objetivação. Pretende objetivar a
colonos franceses, mantinha suas relação subjetiva com o objeto que,
tradições e saberes culturais vivos em uma longe de conduzir a um subjetivismo
sociedade onde “já não tinham relativista e mais ou menos
possibilidade de se comportarem como anticientífico, é uma das condições da
camponeses” (WACQUANT, 2006, p. objetividade científica genuína.
17). O habitus, como ressalta Wacquant
Objetivar o pesquisador como parte do
(2006, p. 17),
processo de investigação sociológica
Permitiu a Bourdieu realçar como o significa, em outros termos, comprometer-
sistema colonial vive nas e pelas se com uma ideia de vigilância
disposições discordantes e epistemológica (WACQUANT, 2006,
expectativas confusas que introduz p.22). Nesse sentido, a objetivação
nos sujeitos. E, além disso, como o
sistema colonial sobreviveria com o
participante rompe com a ideia até então
fim do domínio francês e com o presente na academia de que o saber
estabelecimento de um estado científico demanda a existência de uma
argelino independente. distância entre o pesquisador e o seu
objeto de estudo. Pelo contrário, ao
O conceito de habitus integra o ponto incluir-se no processo de investigação, o
central das metodologias formuladas e pesquisador assume seu papel enquanto
exploradas por Bourdieu em seus agente que influencia a pesquisa e que
trabalhos, como a etnografia multi-situada possui vínculos subjetivos com o próprio
e a sócio-análise. Ambas consistem em objeto analisado.
formas de se produzir conhecimento
científico através do pressuposto de que a Norbert Elias e o processo civilizatório
sociedade possui um caráter relacional e De origem alemã, Norbert Elias nasceu em
flexível, na qual a subjetividade dos 1897 em uma família judia pertencente à
indivíduos possui papel de destaque. classe média. Devido à perseguição
Indo além da proposta da observação nazista durante a Segunda Guerra
participante, amplamente utilizada pelas Mundial, deslocou-se à Inglaterra, onde
correntes antropológicas, Bourdieu estabeleceu sua carreira intelectual e viveu
propõe a adoção de uma objetivação até os últimos anos de sua vida.
participante, ou seja, uma forma de se Considerado, assim como Bourdieu, um
realizar pesquisa empírica na qual o dos sociólogos mais influentes do século
pesquisador olha para si mesmo enquanto XX, sua obra versa primordialmente sobre
parte do processo de estudo. A proposta temáticas referentes às relações entre os
defendida aqui é a de que ao se objetivar comportamentos individuais, as emoções,
no ato da pesquisa, o observador consegue a sociedade e as dinâmicas de poder. A
visualizar sua relação com o objeto a ser sociologia desenvolvida por Elias,
estudado e atribuir um sentido a ela. descrita como sociologia configuracional,
Seguindo a explicação de Bourdieu (2017, compreende a sociedade enquanto uma
p. 77): rede de interdependência, na qual os
indivíduos estão sempre em relação uns
A objetivação do participante
com os outros em uma dinâmica de
compromete-se a explorar não a
tensões e poder.

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Em “O Processo Civilizador” (1993), obra A construção de um ferramental
considerada como uma das mais conceitual mais preciso lograva
importantes de sua trajetória intelectual, identificar formações societárias
Elias realiza um estudo minucioso sobre como um campo de forças ou um
espaço de disputa e equilíbrio de
as mudanças dos costumes e
poder. A essas formações societárias
comportamentos da sociedade ocidental Elias deu a denominação de
ao longo da história. A partir de uma configurações ou figurações
distinção entre as noções de natureza e históricas — isto é, um ambiente de
cultura, demonstra a inter-relação entre relações, espaço ou campo de
essas duas instâncias e como a esfera da interdependência de indivíduos e
natureza é submetida às contingências grupos sociais entre si.
sociais e moldadas culturalmente. Como demonstra o sociólogo alemão, uma
Utilizando como metodologia de pesquisa das formas mais eficazes de se moldar as
a história comparativa, analisa os manuais subjetividades individuais e gerar novas
de comportamento da Idade Média e configurações mentais no processo
chega à conclusão de que, ao longo do civilizador é através do controle das
tempo, houve um movimento de emoções e das pulsões. A encarnação
monitoramento e regulação das funções corpórea desses processos de subjetivação
corporais e dos instintos humanos naturais moldados socialmente é um tema
em direção à ideia de civilidade. Esse amplamente explorado por Elias em suas
movimento, descrito por Elias como o reflexões sociológicas. Reações como o
processo civilizatório, é responsável pela nojo, a vergonha e o constrangimento
alteração das configurações subjetivas dos frente a situações cotidianas se
indivíduos, moldando socialmente os manifestam aparentemente como
comportamentos e as ações através de respostas instintivas, porém, como
dispositivos de controle das pulsões. demonstra o autor, são resultados de
Elias rejeita a ideia de que exista uma longos processos de socialização histórica
oposição entre indivíduo e sociedade, na transmitidos de modo geracional. Elias se
qual cada uma destas instâncias seria refere a um contexto de “socialização das
independente e delimitadas uma da outra. vísceras”, na qual o corpo passa a
Pelo contrário, sustenta a tese de que o responder aos códigos transmitidos pela
indivíduo está inserido em uma complexa aprendizagem socialmente construída.
trama de poder e interdependência com a Aproximando-se da perspectiva
sociedade externa, que ora se estabelece bourdieusiana, Elias cita o conceito de
de maneira harmoniosa, ora de maneira habitus enquanto uma forma de mediação
tensa e conflituosa. O processo entre a sociedade externa e a subjetividade
civilizatório, portanto, não incide sobre o individual. O autor define o “conceito de
indivíduo de modo unilateral, mas é habitus como a autoimagem e a
reproduzido pelos próprios indivíduos que composição social dos indivíduos”
são também agentes do processo. À essa (ELIAS, 1987 apud SETTON, 2018, p.
trama de inter-relações entre os indivíduos 12). A conceitualização de habitus na obra
e os grupos sociais, caracterizada por um de Elias expressa a indissociável relação
equilíbrio de tensões, Elias define como entre o indivíduo e a sociedade, e como a
“figuração” ou “configuração”. Nas tentativa de desacoplamento dessas duas
palavras utilizadas por Setton (2018, p. esferas levam a cenários enganosos.
10): Aponta Elias (1987, p. 123):

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Conceitos como “estrutura social de O conceito de habitus, articulado pelos
personalidade” ou “estágio e padrão dois autores, porém mais extensamente
de autoregulação individual” figuram lapidado na obra bourdieusiana, evidencia
entre os que podem ser úteis nesse a indissociabilidade dessas duas esferas e
ponto. Em particular, o conceito de
a subjetividade como objeto importante de
composição ou habitus social, que
introduzi anteriormente, tem papel
atenção sociológica. O campo, definido na
fundamental nesse contexto. Em sociologia praxiológica de Bourdieu como
combinação com o conceito de a exteriorização do habitus e espaço
individualização crescente ou constituído pela doxa, aproxima-se em
decrescente, ele favorece nossas certa instância do conceito de figuração na
chances de escapar da abordagem “ou obra elisiana à medida que ambos revelam
isto/ou aquilo” que amiúde se insinua o caráter relacional entre a produção das
nos debates sociológicos sobre a personalidades e a estrutura social.
relação do indivíduo com a sociedade.
Quando ele e o conceito muito similar Formados inicialmente em filosofia,
de estrutura social de personalidade Bourdieu e Elias transitam para o campo
são compreendidos — e da sociologia ao longo de suas trajetórias
adequadamente aplicados —, é mais intelectuais, onde deixaram como herança
fácil entender por que o velho hábito uma vasta gama de ferramentas teórico-
de usar os termos “indivíduo” e conceituais e novas formas de raciocínio
“sociedade”, como se representassem sociológico. O processo civilizador
dois objetos distintos, é enganador enquanto categoria sociológica somado à
Considerações finais sócio-análise bourdieusiana permite, por
exemplo, novas possibilidades de se olhar
Ao longo deste trabalho, buscou-se expor
para o campo das emoções como objeto da
algumas das principais contribuições
pesquisa empírica e da teoria social.
conceituais das obras dos autores, e o
modo pelo qual ambas se aproximam no Referências
que concerne às análises sobre a relação BOURDIEU, P. Objetificação participante.
entre a sociedade e os processos de Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.
individualização. A questão da 16, n. 48, p. 73-86, 2017.
subjetividade pode ser destacada como um ELIAS, N. O processo civilizador: formação do
fator de aproximação entre ambos os Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
autores analisados. Enquanto as teorias ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de
sociais mais influentes durante o século Janeiro: Zahar, 1994.
XX, como a durkheimiana e a weberiana, SETTON, M. G. J. Socialização de habitus: um
delimitavam uma cisão entre a esfera diálogo entre Norbert Elias e Pierre Bourdieu.
individual e a esfera da sociedade, sempre Revista Brasileira de Educação, v. 23, 2018.
atribuindo ênfase à alguma delas para THIRY-CHUERQUES, H. R. Pierre Bourdieu: a
explicar os fenômenos sociais em curso, teoria na prática. Revista de Administração
os raciocínios sociológicos de Bourdieu e Pública, v. 40, n. 1, p. 27-53, 2006.
Elias apontam para uma direção diferente. WACQUANT, L. Seguindo Pierre Bourdieu no
Ao partirem do pressuposto de que o campo. Revista de Sociologia e Política, n. 26, p.
indivíduo e a sociedade não constituem 13-29, jun. 2006.
uma dualidade oposta, lançam luz para a
questão do sujeito social enquanto agente Recebido em 2023-03-17
e reprodutor das dominações e Publicado em 2023-10-20-
transformações sociais.

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