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Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental da Infância e Adolescência (LEPSIA) View project
All content following this page was uploaded by Rossano Cabral Lima on 03 January 2021.
RESUMO
sido solapada pela hegemonia de concepções fisicalistas, que tendem a reduzi-las a sua
hegemonia com outras que se originavam em diferentes campos e que utilizavam outros
ser considerados como tendo causas médicas, mas também podiam ser tomados como
razões dos dissabores experimentados na vida. Embora esse movimento não se restrinja aos
dos lugares privilegiados nos quais essa tendência aparece. Nele, uma categoria nosológica
tem se destacado pela rapidez com que vem saltando dos ambientes médicos para outros
psiquiátrica, essa entidade passou, especialmente a partir dos anos 90, a influenciar o
professores, pais e outros adultos. Crianças anteriormente tidas como “peraltas”, “mal-
educadas”, “indisciplinadas” ou “desmotivadas”, e adultos que se consideravam
disfunção nos circuitos cerebrais, possivelmente de origem genética, que provoca uma
pessoais.
Tido como o distúrbio psiquiátrico mais comum entre crianças em idade escolar
especializados” (Rohde e Mattos, 2003, p.12), seus sintomas, de início precoce, consistem
etária que ainda hoje responde pelo maior número de diagnósticos, o TDA/H tem sido
controvérsias sobre o aumento de suas taxas de prevalência nos últimos anos: para diversos
terceira edição revisada e sua quarta edição) tendem a identificá-lo mais que as anteriores.
Da mesma forma, parece haver uma tendência a incluir casos mais leves em comparação
com o que ocorria há uma década (Diller, 1998), indivíduos com um diagnóstico
rígido controle, tem se tornado um problema de saúde pública, especialmente nos EUA,
onde sua produção cresceu 700 % entre 1990 e 1998, quando quase cinco milhões de
pessoas - a maioria crianças - usavam o fármaco (Diller, 1998). No Brasil os números são
mais modestos, mas no mesmo período as vendas de Ritalina saltaram de 16, 4 para 65,2
atingido especialmente os demais países ocidentais. Sua presença na mídia tem crescido:
em 1994, o transtorno foi capa da revista Time. O livro “Tendência à Distração”, lançado no
mesmo ano por dois psiquiatras que se apresentam como portadores do TDA/H, figurou na
lista dos best-sellers americanos. Desde então, o tema é assíduo nos meios de comunicação
(Diller, 1998, p. 135). Episódios de séries como The Sopranos, The Simpsons e South Park
A ampla divulgação do tema contribui para sua visibilidade e para o acesso dos
vontade ou culpa (da criança, dos pais ou de outros adultos diagnosticados) para
explicações físicas sobre as condutas, nas quais o conceito de atenção, reduzido a uma
“função” cerebral, ganha uma importância estratégica. Como a atenção, seus desvios e
principal é a de que ele parece consistir num tópico especial da tendência contemporânea
Sabe-se que, desde a modernidade, o corpo e a saúde sempre foram elementos importantes
intensificação, mas uma alteração qualitativa dessa questão. Está ocorrendo uma passagem
exclusivamente aos padrões biológicos e aos predicados corporais. Isso não implica,
dos modos modernos de constituição psíquica. Os arranjos identitários ligados aos ideais
também os processos de “medicalização”, nos quais categorias nosológicas são usadas para
TDA/H aparece como uma das figuras a permitir o ingresso de crianças e adultos no
identidades individuais se apoiará na obra de Bauman (1998, 1999, 2003a, 2003b), que
incerteza e necessidade de constituições pessoais flexíveis para sobreviver num mundo sem
será complementado pelos estudos de Sennett (2002) e Lasch (1991). Sennett diz que o
das tarefas e a fragilidade dos vínculos comunitários. Isso faz desaparecer a possibilidade
das pessoas elaborarem narrativas coerentes para suas vidas, perdendo-se referenciais
importantes para a formação de seu caráter. Lasch mostra a anomia e esvaziamento da
família burguesa original pela anulação da competência parental no cuidado dos filhos e sua
defenderam Sfez (1998), Rabinow (1999) e Ortega (2002). Sfez considera que, no mundo
características biológicas compartilhadas. Ortega, por sua vez, chama a atenção para o
denominados de “bioidentidades”. Bezerra Jr. (2000), por fim, indica os meios pelos quais
TDA/H, desde as concepções presentes no inicio do século passado, passando por noções
como a de Disfunção Cerebral Mínima - popular entre as décadas de 1960 e 1970 - , até
chegar ao quadro atual. Dar-se-á ênfase às descrições do DSM-IV, por ser a classificação
mais difundida e aceita não apenas nos EUA, mas também em nosso país. Em
complemento, serão utilizadas obras representativas da literatura científica atual produzida
profissionais de saúde mental com outras destinadas ao público leigo, antes de prejudicar a
exposição do tema, é útil para mostrar o quanto o discurso “oficial” sobre o transtorno tende
Explorando brevemente suas contradições internas, serão expostas as principais idéias sobre
epifenômeno do mal funcionamento neural, cujo sítio pode, inclusive, ser determinado na
anatomia cerebral. Serão destacadas também a noção de que o TDA/H é um distúrbio das
genética.
TDA/H como fenômeno típico da cultura atual. Para finalizar, apresentaremos a análise das
mudanças sofridas pela categoria da atenção com o advento da modernidade, feita por
Crary (2001). Mostrando como a atenção foi encarnada - despida de suas propriedades
Na elaboração do tema, tiveram que ser mantidas como secundárias outras variáveis
forma, a categoria criança foi descartada como objeto de análise, por entendermos que o
forma irreversível em direção à vida adulta, e que nossas hipóteses podem ser generalizadas
para ambos os períodos da vida. Entretanto, sempre que necessário para nossa
Este trabalho não tem como objetivo propor uma nova compreensão etiológica do
TDA/H para disputar o estatuto de verdade com as demais. Mais que isso, este estudo
exclui
qualquer tentativa de entender o TDA/H como uma entidade universal e a-histórica, e
qualquer
discurso, seja de natureza biológica ou psicológica, que despreze a influência dos contextos
cultural, político e econômico atuais na construção dessa categoria diagnóstica, em sua
rápida disseminação por amplos estratos da sociedade e em seu impacto nos sujeitos e em
suas identidades. Nosso propósito é desnaturalizar o tema, tratando sua emergência como
uma resultante de variáveis presentes na cultura e, em especial, como um caso particular da
tendência contemporânea de extrair a identidade pessoal, preferencialmente, do corpo e dos
parâmetros oferecidos pela biologia.
mais adequados para enfatizar o estatuto dos sujeitos no mundo contemporâneo. Todos eles
tentam traduzir a percepção de que, com o enfraquecimento das grandes narrativas e das
incerteza quanto a manutenção de vínculos duradouros com lugares, coisas e pessoas, entre
outros - vêm sendo apontados como responsáveis por esta inflexão na constituição dos
portar direção, a possuir um “prá frente” e um “prá trás” e um sentido de “progresso”. Essa
pois o senso de direção oferecia segurança às pessoas, ao delinear contornos claros para o
errático, com leis que mudam no decorrer do jogo e valores que se esvaziam pouco depois
provisoriedade se torna a regra, o que sabota a própria existência das regras e sua
exigência, mas agora sem indicadores estáveis que apontem, no tempo, a direção a seguir.
desejo de liberdade desbanca a autoridade da tradição. A ordem não foi abandonada, mas é
procurada num jogo no qual o movimento espontâneo dos desejos individuais tem primazia,
ou pelo menos é perseguido como o valor em relação ao qual os outros valores devem se
mais adequadas de se viver nele. Para os homens pré-modernos e suas sociedades holistas, a
essencial de todas as invenções ou criações modernas” (ibid., p.221). Isso significa que,
precisou desenvolver novas habilidades mentais para que pudesse julgar e escolher os
caminhos colocados à sua disposição. Com a identidade, nasceu também uma nova
para a humanidade, tal sentimento, hoje, não é mais reconhecido como um percalço
traçado, que retoma seu fio de condução tão logo a dificuldade seja ultrapassada. A
Bauman destaca alguns fatores responsáveis por essa incerteza crônica. O primeiro
seria a “nova desordem do mundo”. Os blocos de poder bem definidos, que em seu
maior consistência, já que esta última vacila entre o rechaço às diretrizes políticas
capitais acima de qualquer outro valor. O livre mercado capitalista é tratado como
coletivos ou das regras tradicionalmente fixadas pelo Estado. Na conjuntura dos países, isso
se traduz pela constante ameaça aos empregos, pelo desmonte da rede de seguridade social
vida das pessoas, isso aparece no temor da perda de posição social e na sensação de
regendo pela lógica do mercado, seu exercício vai assumindo um caráter de desfrute
processos, à medida que a identidade deixava de ser uma questão de atribuição ou herança e
Ao contrário do que possa parecer, isso não desencaixou o indivíduo de seu mundo, mas
impôs uma forte determinação entre os planos coletivos de uma ordem social estável e
duradoura e os projetos particulares de vida. Essa determinação não excluía uma boa
colocarem em perigo. Além disso, indaga Bauman, o que significava a duração da vida de
uma pessoa frente aos séculos de idade de instituições cuja eternidade sempre pareceu
garantida? Pois, mesmo após a substituição das epistemologias mágicas e espirituais pelas
mundo” -, que retiraram da Igreja o papel de única ou principal força aglutinadora entre as
duradouras, que lhes servissem como ponto de referência e garantia contra a dispersão e a
errância.
processo tão radical de redescrição que deixam de se tornar referências sólidas. É verdade
que os tempos modernos produziam suas próprias formas de desenraizamento, mas apenas
para que tudo fosse “reenraizado” logo depois. Hoje, entretanto, não há mais como
assegurar que isso venha a ocorrer. Os ventos que nos chegam propagam a mensagem da
testemunhem a disposição de incorporar novas qualidades no lugar das antigas, nas quais
as marcas mnêmicas sejam apagadas sem muita dificuldade, apontam para uma identidade
pronta a adaptar-se a um mundo que não oferece mais garantias e lastros estáveis e sólidos.
usado várias vezes pelo apagamento ou raspagem do texto anterior. Ele afirma que há uma
“crônica falta de recursos” à disposição dos homens e mulheres para a definição de uma
estabilidade da identidade mostra ser uma desvantagem para aqueles que não têm mais o
controle sobre o itinerário de suas vidas nem encontram portos seguros nos quais ancorá-
las. A angústia produzida por tal situação pode aparecer sob forma bruta ou em novas
modalidades de adoecimento psíquico, ou pode ser eliminada quando o estilo de viver sem
moldava seus membros como soldados e obreiros. Com uma necessidade menor de mão-de-
restou da sociabilidade, e exige indivíduos mais ávidos por aventuras e prazer e menos
parciais, e a atenção não se fixa nos objetos mais do que precisa para sorver breve
pois seu afã de consumo liga-se muito mais a experiências sensórias que à posse de bens
materiais:
apresentados pelo aparecimento desse novo arranjo subjetivo. A partir de que parâmetros
deve-se considerar uma nova experiência “normal” ou “adequada”, e como saber se não se
busca do nível ótimo de vivências sensórias agradáveis reforça a incerteza dos sujeitos
Para Bauman, o único “teste de pureza” requisitado para ser admitido na sociedade
devem não apenas se deixar seduzir, mas querer e buscar ativamente ser seduzidos.
novos “produtos”, sejam eles pessoas, experiências ou sensações, mantém viva e recicla
provisoriedade.
subjetividades. Ele afirma que o ambiente de trabalho atual, caracterizado por tarefas
efêmeras, tempo fragmentado e laços interpessoais frágeis, não pode mais oferecer a
O autor toma “caráter” como sinônimo dos traços pessoais aos quais atribuímos
valor ético, e que nos ligam ao mundo dos homens por meio de projetos de longo prazo.
“internas”, pouco visíveis para as outras pessoas. O caráter seria a face mais “pública” de
adiamento da satisfação imediata. Sua construção, portanto, é posta em risco num ambiente
cultural que cultiva a instabilidade das instituições e a incerteza dos laços entre os homens.
de moldar a si, a sua história e seu tempo, para mostrar-se digno da piedade divina após a
morte. Como não tinha nenhuma garantia de que a modelagem realizada atingiria tal
objetivo, o trabalho árduo e disciplinado apareceu como um tipo de ascese que lhe ajudaria
obrigatórios daqueles que necessitavam mostrar seu valor moral através do trabalho.
era e opõe-se frontalmente à ética anterior. No domínio das equipes, o uso flexível do
submetido às exigências do poder dentro da empresa. Para Sennett, entretanto, tudo isso não
passa de aparência e farsa. A disciplina do período anterior foi trocada por um simulacro de
acontecer no seio das equipes, mas agora a ausência de uma figura de autoridade clara
período, pois as equipes passam por um permanente rearranjo entre seus membros. Não há
tempo suficiente para o cultivo de compromissos e confianças mais profundos. Tudo isso
dificulta que se organize a história de uma vida tendo como referência o trabalho, como se
Nas instituições empresariais do novo capitalismo o que mais chama a atenção é a ausência,
por obsolescência, do sentimento de “longo prazo”. O preço da sobrevivência no mercado
em papéis ou em uma única habilidade, de nunca se fazer a mesma coisa da maneira que se
fazia anteriormente. O valor de uma carreira construída passo a passo ao longo dos anos
decai à medida que, para cada tarefa, uma nova habilidade é requerida, a qual não costuma
experiências de vida. Um eu em constante fluxo e com frágeis amarras com pessoas, coisas
e lugares pode dispensar a rotina em seu reservatório de bens duráveis, até porque há cada
novo capitalismo. Sennett mostra como a cultura do risco que emana da vida empresarial
infiltra-se nos modos de ser e viver em nossa época. Essa cultura transforma um valor como
fixar, arriscar sempre, tornando a existência uma sucessão de novas “partidas” - seja no
sentido de novos lances num jogo descontínuo, seja na disposição de sempre estar iniciando
moderno. Agora, porém, sua disseminação torna-se mais ampla, e ele assume o estatuto de
um imperativo. Arriscar-se prova que não se é fraco nem passivo, que se sabe jogar o jogo:
é uma nova “prova de caráter”. Aqueles que se encontram longe dos núcleos de poder
decisório - ou seja, a grande maioria - são os que mais sofrem com o dever de arriscar
sempre, já que o fracasso costuma ser a mais constante companhia de viagem. A sensação
tornando-se um ópio desorientador, que não permite a criação de laços duradouros com as
outras pessoas - pois o foco da ação sempre muda e, com ele, também os companheiros de
aventuras - nem proporciona ao indivíduo uma sensação de continuidade com sua própria
história.
Numa cultura que reifica a eficácia imediata, a potência decai à medida que as
longo prazo, passa a não ter mais sentido. Um mundo de tarefas independentes e equipes
contaminar as outras esferas da vida e corroer o caráter, a partir do que ele considera a sala
ela exige “capacidade para despreender-se do próprio passado, confiança para aceitar a
compreensão do trabalho é superficial (pois ele pouco conhece as suas regras e lógica mais
profundas, embora tenha a ilusão de que elas se lhe apresentam com clareza) e é superficial
Não é coincidência, como será mostrado mais à frente, que uma das respostas “não
corporal.
indivíduo contemporâneo, aquelas que ocorrem na família não poderiam deixar de também
fazê-lo, e desde muito mais cedo. É na família que a cultura penetra com força em cada um,
a partir dos primeiros anos de vida, o que explica o impacto sobre seus membros de
quaisquer mudanças na sua configuração. Embora não eleja a categoria caráter como seu
objeto privilegiado de análise, não é muito diferente o alvo de Lasch (1991) ao apontar a
anomia da família burguesa, o esvaziamento das funções parentais de cuidado dos filhos e
sua apropriação técnica pelos profissionais da saúde e bem-estar. Enquanto entregava a
maior parte de sua competência à escola e aos especialistas assistenciais, a família propunha
interior passam a pautar-se pela mesma lógica que domina as relações pessoais no mundo
constituição do eu, cujas modificações, por sua vez, acabam por sustentar os novos arranjos
acumulação de capital. A criação dos filhos, por exemplo, passou a ser alvo de cuidados
inéditos, já que eles eram encarados como reservas familiares para o futuro. Uma nova
sociedade em geral. Esse alto prestígio da privacidade doméstica cobrou seu preço: à
medida que os laços entre pais e filhos se intensificavam, aumentava também a sobrecarga
configuração familiar burguesa. Seus sinais mais explícitos foram o aumento do número de
situação foi a tecnicização das tarefas antes executadas “naturalmente” no lar. Surgiam as
gestão, as quais iam do controle dos gastos à conquista do prazer sexual. O amor romântico
passou a ser atacado como fonte de ilusões que inviabilizavam a estabilidade e o equilíbrio
especialmente dos imigrantes, apareciam como ameaças aos esforços dos reformadores
sociais em produzir uma sociedade coesa e uma direção unívoca de progresso. Submeter as
iniciativas, sob a justificativa de que os pais já não cumpriam suas funções, falhando na
filhos e com o lar, convencendo os pais a confiarem em sua ciência. Com essa delegação
assentida de poder, a família perdia a capacidade de prover-se, o que só estimulou a
expansão dos serviços de saúde, educação e bem-estar. Quando esses serviços decidiam
autorizavam a pensar sozinhos sobre o que fazer com os filhos ou com o próprio
todo, executando tarefas isoladas, numa dependência passiva em relação a outros técnicos e
instâncias superiores da fábrica. Pais e mães passaram a sentir-se incapazes de cumprir seus
seja por sua ação direta, seja pela racionalidade científica tornada referência simbólica de
diversos outros “agentes sociais”. A partir dos anos 50, amplos setores da psiquiatria
americana deixaram clara a intenção de ampliar seu campo de atuação para o interior da
especialidade, mais do que curar pacientes, transformar “padrões culturais”. Nesse esforço
de “evangelização”, toda sociedade passava a ser vista como paciente, e a família era uma
das instituições que, mal orientada, produziria pessoas desajustadas, neuróticas e pouco
“democratização” da vida doméstica, com a crítica ao poder patriarcal, a defesa dos direitos
das mulheres e de uma educação das crianças que erradicasse os antigos conceitos de
convertidos à ideologia da saúde mental, conseguiriam liberar seus filhos dos antigos
autonomia e da boa sociabilidade. Tudo isso só fazia preparar indivíduos para o reinado do
adaptando os métodos consagrados pela saúde pública e pela medicina preventiva a seus
sociedade. Na justiça de menores, por exemplo, conceitos como “culpa” e “pecado” eram
substituídos por outros oriundos do vocabulário médico. Seus tribunais foram redefinidos
pela expressão de sentimentos em seu interior eram a fonte de sua vitalidade e seu sentido
último. A coesão e solidariedade domésticas, que não eram mais garantidas pela tradição
sociedade, que lhe garantia o estatuto de oásis sentimental na aridez capitalista, há muito
não se sustentava. Como poderia ela assegurar uma função “afetiva”, encontrando-se
sua possibilidade de lhe proporcionar os produtos que desejava, e os próprios pais pautavam
sua autoridade na sua capacidade de prover o lar de bens materiais. A lógica do próprio
devoção ou sentido de dever das gerações mais novas com as mais velhas, e também
jovens que descartam a mediação de seus genitores com a cultura porque não os consideram
mais em sintonia com as exigências sociais. São os próprios adolescentes que, ao terem que
hiperadaptabilidade que parecem não ter aprendido com os pais, mas com a realidade
se dilui quando esta nem lhes oferece proteção contra as intromissões e ameaças do mundo
externo, nem lhes provê segurança emocional. Enquanto isso, cresce a influência do grupo
de pares, da escola e dos meios de comunicação. Quando a família tenta reagir, só faz
demonstrar sua invasão e submissão à lógica do mesmo mundo que produziu o seu
de se preocupar com a criação e educação de sua prole, se dedica à tarefa de treinar pessoas
impossibilidade dos pais atuarem como modelos de identificação para os filhos, e a única
Sem contar com indicadores tradicionais a lhes dar garantias dos melhores caminhos
pela família, o que podem fazer os cidadãos contemporâneos para atenuar as ansiedades
haver um “nós” - uma comunidade - é, para Sennett (2002), um dos recursos possíveis para
das pessoas recuperaria a sensação de pertencimento coletivo que parece perdida nos dias
de hoje. Entretanto, para que se cultive esse senso de filiação mútua, é necessário que haja a
admissão de dependência por parte dos sujeitos. Sennett acredita que o capitalismo
sentido do trabalho para toda uma vida, gera tamanha confusão e tão ameaçadora incerteza
para os trabalhadores que pode acabar levando-os a admitir sua vulnerabilidade e a procurar
defensiva ou como resistência ativa, uma noção renovada de comunidade pode tornar-se o
tem servido como combustível na busca pela comunidade, mas esta “continua
mundo nos estimula a realizar nossos sonhos de uma vida segura não nos aproxima de sua
realização”(ibid., p.129). Como o eu parece a única coisa estável, a certeza possível num
fronteiras, ao investir na união dos semelhantes e num “seguro” distanciamento dos demais.
passem a ser tratadas como problemas privados. Se há uma nova busca por “identidades
comunitárias”, ela não parece incluir a preocupação com o outro, como queria Sennett,
uma nação, de um povo. Nela, o sentido da vida não é retirado do trabalho ou da casa, pois
pelo recurso recíproco ao outro. É a saúde e o cuidado com o corpo individual que redime a
pessoa e cria identidades coletivas. Num mundo inconstante, marcado pelo esvaziamento
Este é um dos argumentos de Sfez (1996), para quem a “Saúde Perfeita” é o único
uma constante atenção ao corpo, este no papel de sujeito e objeto, sempre disponível a ser
intermediárias entre o indivíduo e a ciência. Pode-se, assim, abrir mão do Estado, das
à lógica tecnológica cujos princípios são moldados longe dele. Nota-se aqui o quanto o
projeto da Grande Saúde precisa de uma montagem social e econômica na qual a “mão
pelo contexto histórico de suposto triunfo da ideologia neoliberal, que dispensa instâncias
reguladoras constituídas, crendo nos poderes de uma “iniciativa” que se supõe “livre”.
Neste novo mundo, o valor moral de cada indivíduo acaba sendo pautado por sua
metafísica, tampouco qualquer ligação a princípios éticos que não estejam baseados na
ascese da corporeidade têm o mesmo poder de atribuir sentido para os laços e valor para as
dos corpos, os quais exigem cuidados e atenção constantes. Por outro lado, instâncias de
vigilância disfarçadas são construídas para zelar por este bem supremo, acima do interesse
de cada indivíduo, introduzindo, nem sempre com sutileza, uma moral sanitária
“politicamente correta” que deve ser observada. Como meta da utopia, o momento no qual
Um dos principais movimentos dessa utopia, como aponta Sfez, vai na direção de
uma superação da distinção entre o ser e a aparência, herdeira das antigas metafísicas.
diria respeito ao que é visível ou possível de ser captado pelos sentidos, e a tudo que é
incontestáveis, mas inacessíveis diretamente. Já o apreço pela aparência e pela matéria tinha
são mais guardiões de uma identidade interior: eles são a própria identidade. Se a metáfora
portanto, não pode mais ser chamada de metáfora. Os genes são os melhores exemplos
dessa interioridade detectável pelas biotecnologias. Intervir neles é intervir sobre o próprio
eu, mas é também agir sobre o que carrega a “alma” da espécie humana, e por isso a
(material, mas este adjetivo já se torna redundante) do ser e também a transmissão das
características do Homem.
A medicina torna-se cada vez mais uma prática preventiva. No âmbito do indivíduo,
pretende perceber as doenças nos genes antes que elas surjam como sintomas no corpo; no
declínio, pois seu saber tem que ser compartilhado, se não subordinado, com uma série de
outros experts (geneticistas, bioeticistas, etc.), a tecnologia médica e seu ideário vão se
prescrição médica, escrita às pressas com letras quase indecifráveis num bloco de papel,
Natureza, permitindo antecipar e prever não apenas doenças, mas comportamentos, traços
única) da utopia da saúde perfeita. Por meio dele se tenta validar a idéia de que a verdade
nada tem a ver com valores, mas está contida concretamente nos genes, que são ao mesmo
tempo matéria e aquilo que torna possível a matéria surgir e se perpetuar. Quando
potencialmente nada escapa de seus domínios, passamos a nos submeter, segundo Sfez, a
reducionismo.
e que mostra-se útil e necessária a todo saber científico, une-se ao reducionismo ontológico
ou metafísico, que enxerga tais unidades como o fundamento último do “real”. Reforça-se,
assim, uma estreita identidade da condição humana com os atributos genéticos: encontrar e
irmão gêmeo, o determinismo, todo fenômeno humano passa a ser entendido como causado
totalitária quando alardeia ter acesso direto à “essência” das coisas e dos fenômenos, sendo
incompatível com qualquer outra descrição, imediatamente tida como menos verdadeira e,
portanto, menos científica. Não deixa de ser irônico observar que, num mundo no qual o
genes são a “alma” que aprisiona, ao contrário do “ser interior” romântico cujo
desvelamento libertava o indivíduo das amarras da regra social artificial. Estando tudo
inscrito em seus genes, o cuidado e a atenção ao corpo não são mais escolhas da vontade
(apesar de assim parecer ao individuo), mas condições imperativas para se conquistar uma
interior das células. Mesmo decisões como a de encerrar uma vida antes de seu nascimento
precocemente, que acenaria com riscos inaceitáveis para o futuro ser e, no limite, para toda
a espécie.
consigo o risco de um novo eugenismo, sem o fantasma do extermínio das pessoas menos
exemplo, mesmo quando não aparece diretamente, surge a partir das estratégias de evitação
noção de perfeição, longe de designar atributos morais como retidão, coerência, prudência e
médica
almejam privar a cultura de uma lógica própria, tornando-a refém da linguagem da biologia,
da qual o corpo individual seria a única fonte de leitura, um texto aparentemente vazio de
sentido, mas repleto de implicações na vida das pessoas, na construção de suas identidades
Rabinow (1991) afirma estar havendo uma rearticulação entre o pólo corporal e o
preferencial de produção de novos saberes e poderes. Também para ele a nova genética e
seu filho dileto, o Projeto Genoma, seriam os grandes representantes desse rearranjo
paradigmático, provocando mudanças nas práticas e éticas coletivas. Sua lógica passa a
contaminar todo o tecido social, já que ela acena com a possibilidade de compreender e
Rabinow não ignora a existência dos projetos eugênicos, que elegeram o campo da
biologia como seu território de intervenção, mas argumenta que esses eram “projetos
sociais moldados em metáforas biológicas” (ibid., p.143), ou seja, não nasceram dentro da
ciência médica, mas a utilizaram para respaldar ideologias ou sistemas políticos. Seguindo
seu raciocínio, pode-se afirmar que mesmo estratégias preventivas não eugênicas, tais as
das famílias. Diferente de tudo isso, a nova genética traz a promessa - ainda em seus
nascentes, uma rede autônoma de circulação de conceitos que inauguram uma nova
separação entre natureza e cultura, já que a primeira se mostrará maleável e passível de ser
oriundos da natureza. À medida que isso ocorre, vai se produzindo uma “dissolução da
categoria do social”. O agrupamento dos indivíduos começa a não mais tomar como
critérios como religião, classe social, nação de origem ou raça, mas sim determinadas
que para Rabinow nada mais são que um “mapeamento de riscos”. Tornando obsoleta a
entre as quais não se observava nenhum outro vínculo ou afinidade. A sociabilidade rende-
se à biologia, e portar algumas marcas corporais se mostra suficiente para realocar a pessoa
grupal e subjetivamente.
Ortega (2002) também sublinha que o homo medicus, produto e produtor desse
processo, vive num mundo no qual a saúde, o gene, a bioquímica cerebral, transformam-se
reordenação do campo da ação pública em torno dos referenciais corporais criam novos
saúde ou uma doença compartilhada. Uma primeira grande distinção opera a ordenação
dessa cultura, opondo o mundo dos saudáveis (identificados como os novos guardiães da
moral) contra o universo decadente dos glutões, fumantes e sedentários, os quais são
condenados por prejudicar não só a si, mas a toda a espécie. Mesmo dentro do universo dos
modelo. Começam, então, a ser criados grupos de pessoas que compartilham o mesmo
diagnóstico, e que a Natureza uniu por marcas discerníveis na superfície de seus corpos, nas
“iguais”.
Tudo isso indica que está havendo a passagem de uma cultura na qual a identidade -
gestada nos ambientes relativamente estáveis de trabalho e nos limites da cultura emocional
está referido quase exclusivamente aos predicados corporais. Dessa forma, a subjetividade
ajustando a uma dada característica corporal ou doença, que passa a definir e regular as
167). A prática ascética clássica era dualista, visando tanto o corpo quanto a alma. Na
verdade, o cuidado que incidia sobre o corpo não o tomava como finalidade última, mas
visava, no fundo, a uma ascese da alma, que se articulava indissociavelmente à vida social.
forma:
identidades, num aparente paradoxo que resulta na anulação do espaço entre os indivíduos,
desinteresse pelo mundo; a hipertrofia muscular se traduz em atrofia social” (ibid., p. 173).
o bem comum. Se o registro da bioascese funda uma comunidade, a do corpo, esta pouco
grupos biopolíticos.
porém esta não é mais livre, mas serva dos determinismos e reducionismos biológicos.
Segundo Ortega, as práticas ascéticas clássicas costumavam ser um desafio aos modos de
existência prescritos; as atuais nada mais fazem que marcar a submissão do homem à
subjetiva. Para se atingir os ideais de saúde, cuja busca se transforma num fim em si
mesmo, se exige a obediência a novos padrões de disciplina, e sua mais completa tradução
pode ser encontrada na doutrina do fitness. Saúde e boa vida tornam-se sinônimos: o
vigilante às condutas “saudáveis” vai se estabelecendo como base de uma moral que não
lastro possível de uma débil tentativa de se estabelecer uma narrativa de si, uma biografia.
si, descrita acima por Sennett, recorrendo à superfície corporal como panacéia para a crise
de identidade na qual se vê enredado. O corpo não guarda mais segredos; seus recantos
microscópicos sítios, como o núcleo celular, são violados e expostos pela genética. Esta
superficialização de toda a estrutura corporal espelha e reforça o desmonte do sujeito
interior: nenhuma psicologia consegue fazer frente ao oferecimento do corpo como início e
fim da identidade pessoal. Com isso, mesmo as formas de sofrimento perdem sua dimensão
fobias e drogadições .
Os elos reais e imaginários entre o grande arranjo cultural que patrocina os estilos
bioidentitários de viver e sua expressão cotidiana são efetuados por uma série de saberes e
instâncias sociais. Bezerra Jr. (2000) comenta o quanto o léxico da biologia, transformada
estimulado tanto pelo enorme avanço das intervenções biotecnológicas sobre o organismo
humano quanto pela formação de um mercado global preparado para seu consumo. A
indústria farmacêutica torna-se um dos pólos mais visíveis, poderosos e lucrativos do novo
consumidores não só tenham dinheiro para usufuir de suas benesses, mas principalmente
que desenvolvam
representantes que assediam os médicos, etc. -, jornais e revistas semanais, livros de “auto-
pela saúde perfeita. “É necessária uma atmosfera social permeável para que as estratégias
das indústrias do bem estar viabilizem e legitimem sua presença agressiva maciça junto à
À medida que os pais passam a contar com essa categoria diagnóstica para explicar
fracasso acadêmico de seus alunos, observa-se - em consonância com a descrição feita por
na sala de aula (Silvestre, Azzi e Ferraz, 1975). Outra especialidade que floresceu ao seu
lado foi a de psicomotricidade. Entendendo que na DCM havia “falta de coordenação entre
o que o sujeito se propõe a fazer e a respectiva ação, o que dificulta a expressão através do
também propunham um trabalho de reeducação para corrigir tais disfunções. Por fim, a
figura da DCM reforçou a intervenção do neurologista clínico num campo até então
desconhecido para a maioria desses especialistas, como comenta Cypel (2001), atribuindo
situações clínicas diversas e por vezes discrepantes, a DCM paulatinamente foi sendo
neurológico, entre outros fatores, fizeram com que essa entidade cedesse o lugar para
categorias mais pragmáticas e descritivas. Surgiam novos diagnósticos que abriam mão da
aparente e marcante. O empirismo subjacente ao diagnóstico de DCM, que fazia com que
controle dos impulsos, sinais neurológicos leves, etc.) fossem agrupados a partir de sua
hiperatividade pode ser identificado nesse momento, encorajado pelos efeitos das
realizando a primeira tentativa de descrever uma estrutura cerebral específica como a sede
da patologia. Segundo sua teoria, o tálamo, nas crianças acometidas, não realizava
hiperativa”, designando crianças que apresentavam atividade motora muito acima do que
seria esperado para sua faixa etária. Stella Chess, uma das defensoras da idéia, excluiu a
possibilidade de dano cerebral, mas a considerou como uma forma de “hiperatividade
Americana (APA), em 1968, demonstrava o rápido respaldo que essa nova descrição passou
nos trabalhos de Virgínia Douglas. Essa autora identificou quatro déficits envolvidos na
inclinação para buscar reforço imediato (Barkley, 1997). Sua descrição, junto com a de
outros autores, foi fundamental para que, na terceira edição do DSM, em 1980, a entidade
fosse renomeada de “distúrbio de déficit de atenção (DDA)”, que incluía um subtipo com e
outro sem hiperatividade. Segundo Diller (1998), a ênfase na atenção ajudou a distinguir
este transtorno de outros nos quais também se podia encontrar condutas hiperativas, como o
que os adultos passassem a figurar entre os portadores do transtorno. Não parece casual ser
diagnóstica, havendo fortes indícios de que a ação dos estimulantes não difere muito entre
pessoas com ou sem o transtorno. Isso, por um lado, encorajou os esforços pelo
aprimoramento de critérios descritivos para defini-lo, mas, por outro, tornou mais imprecisa
mais semelhanças que discrepâncias entre si, traduzindo a pretensão de se validar uma
categoria diagnóstica homogênea e universalmente aceita. Para que assim seja, sustenta-se o
caráter “ateórico” dessas descrições nosológicas, acreditando ser isso uma vantagem
metodológica na abordagem das patologias mentais. Serpa Jr. (1994), em artigo sobre a
Tomando como referência as críticas feitas por Lock e Kleiman, ele comenta o quanto o
crença na possibilidade de ser ateórico já implica, por si, numa posição teórica e valorativa:
p. 486). Este autor aponta o pressuposto essencialista que subjaz às atuais classificações
psiquiátricas e que tem como principal consequência a idéia de que diferentes descrições de
patologias podem ser reduzidas a uma delas - aquela que melhor corresponda à realidade
última, supostamente imutável no tempo e espaço, e que estava apenas à espera de ser
espécie.
atuais, demonstram seu peso quando se observa como se recorre ao diagnóstico de TDA/H
menos do uso de medicação. Barkley (1997) acrescenta que, enquanto nos EUA crianças
inquietas e que agem irrefletidamente serão consideradas como tendo TDA/H - de causas
substanciais surgem quando se trata de considerar ou não o TDA/H como uma entidade
homogênea. Alguns autores, como Barkley (1997), julgam que a forma desatenta, mais
necessidade de afirmá-lo como tal. Enquanto se faz dispensável defender que outras
entidades médicas (como a cirrose hepática, miopia ou epilepsia) são patologias “reais”,
precisa-se insistir que “o TDAH é um transtorno médico verdadeiro, reconhecido como tal
e os dados gerais sobre sua validade são muito mais convincentes que a maioria dos
transtornos mentais e até mesmo que muitas condições médicas” (Goldman et al., apud
Rohde e Mattos, 2003, p. 11). Enunciados como esses tentam desprezar, entre outras coisas,
o papel dos jogos políticos internos e externos a essas sociedades na definição do que será
impulsividade. Esses sintomas devem ser evidentes em mais de uma situação social e se
mostrar excessivos no contexto que ocorrem, em comparação com o que seria esperado de
outras pessoas com a mesma idade e nível de inteligência. São mais comuns em meninos e
costumam iniciar-se entre os 3 e 7 anos de idade. Em geral os sintomas persistem nos anos
escolares e em metade dos casos parecem continuar na idade adulta. Apesar dos aparentes
pontos de discórdia, há uma tendência a que a visão do TDA/H difundida pela APA se
torne a mais usada e aceita pela comunidade científica americana e por países fortemente
influenciadas por ela, como o Brasil. Em seu DSM, o diagnóstico do transtorno é realizado
pela soma de sintomas ou critérios, que são organizados em dois grupos: desatenção e
hiperatividade/impulsividade - sintomas considerados, por Barkley, como a “santíssima
(2) seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperatividade persistiram pelo período mínimo de 6
meses, em grau mal adaptativo e inconsistente com o desenvolvimento:
HIPERATIVIDADE
a-frequentemente agita a mão ou os pés ou se remexe na cadeira
b-frequentemente abandona sua cadeira em sala de aula ou outras situações nas quais se espera que
permaneça sentado
c-frequentemente corre ou escala em demasia, em situações impróprias (em adolescentes e adultos,
pode estar limitado a sensações subjetivas de inquietação)
d-com frequência tem dificuldade para brincar ou se envolver silenciosamente em atividades de
lazer
e-está frequentemente “a mil” ou muitas vezes age como se estivesse “a todo vapor”
f-frequentemente fala em demasia
IMPULSIVIDADE
g-frequentemente dá respostas precipitadas antes de as perguntas terem sido completamente
formuladas
h-com frequência tem dificuldade para aguardar sua vez
i-frequentemente interrompe ou se intromente em assuntos alheios (p.ex., em conversas ou
brincadeiras)
B-Alguns sintomas da hiperatividade/impulsividade ou desatenção causadores de
compromentimento estavam presentes antes dos 7 anos de idade
C-Algum comprometimento causado pelos sintomas está presente em dois ou mais contextos (p.
ex., na escola [ou trabalho] e em casa)
D-Deve haver claras evidências de compromentimento clinicamente importante no funcionamento
social, acadêmico ou ocupacional
E-Os sintomas não ocorrem exclusivamente durante o curso de um Transtorno Global do
Desenvolvimento, Esquizofrenia ou outro Transtorno Psicótico, nem são melhor explicados por
outro transtorno mental (p. ex., Transtorno do Humor, Transtorno de Ansiedade, Transtorno
Dissociativo ou Transtorno de Personalidade) (American Psychiatric Association, 2002).
Como já comentado acima, os diferentes arranjos entre esses critérios podem dar
menos rigorosa da CID - procura conferir uma maior objetividade e cientificidade ao que
transtorno difundida pelo DSM vem sendo criticada como estanque, por não levar em conta
Barkley (1997) e Mattos, Abreu e Grevet (2003) condenam o caráter “categorial” que o
normal é a mais adequada para bem entendê-lo. A tensão entre esta última concepção, mais
dimensional, e aquela visão do transtorno como uma categoria bem demarcada, poderia
estimular um rico debate público sobre a “natureza” do TDA/H. Entretanto, não é isso que
definido por uma série de relações com o ambiente) a uma visão quantitativa (na qual o
anormal é tratado como fato objetivo). Assim, o TDA/H é difundido como uma “entidade” -
reducionista precisa atuar em duas etapas. Primeiro, a ação e a atenção (e, como prefere
Barkley, também o “auto-controle”) são reduzidas a “funções” que devem ser medidas e
elaboradas e difundidas como geradoras de dados objetivos, tendo como uma de suas
pretensões a distinção de subtipos do transtorno a partir de diferenças no “perfil
localização neurológica que uma análise mais arguta dos dados das pesquisas científicas
diagnóstico. Ao contrário, elas ofertam a indivíduos que - pelos “rígidos” critérios da APA -
correriam o risco de ficar fora dos limites do quadro, a possibilidade de nele se incluirem.
Com o borramento das fronteiras entre o TDA/H e a normalidade, mais e mais pessoas
diagnóstico aparece, por exemplo, nas propostas de se estender a idade máxima de início do
ao jogar videogame ou em outra brincadeira muito estimulante. Neste caso, não haveria um
e Ratey, 1999). Tem sido questionada até mesmo a necessidade de haver claros indícios de
déficits em seu cotidiano. Sem contar com ajuda e sem saber que carregam consigo o
transtorno, eles acabam vendo-se privados das vantagens de ser sócio do clube do TDA/H.
2.2.2 - Quantos são os “portadores”: a epidemiologia do transtorno
em diversos países e culturas, uma análise mais detalhada dos dados mostra números
taxas médias (Cypel, 2001). Entretanto, pesquisadores de renome na área, como Biederman,
avaliam que 10 % das crianças americanas têm TDA/H (Diller, 1998). No Brasil, pesquisa
próxima dos índices médios dos EUA. Num estudo alemão, porém, chegou-se a 17,8 % de
pesquisas sobre o transtorno, a presença do TDA/H variou entre 1,9 e 14, 4 % (Golfeto e
Barbosa, 2003). McCracken (2000), num esforço semelhante, agrupou 8 estudos recentes e
encontrou uma variação entre 1,9 e 11,4%. Num outro extremo, um estudo mais antigo
de Wigh. (Cypel, 2001). De um modo geral, a prevalência britânica costuma ser uma das
O uso da Ritalina também pode ser um bom indicador do quanto varia o recurso a
essa categoria ou, pelo menos, sua abordagem medicamentosa, mesmo em países
costuma ser mais baixa entre afro-americanos e filhos de imigrantes asiáticos que nas
A discrepância dos dados levantados entre países e mesmo dentro de uma mesma
nação tem sido atribuída, principalmente, a diferenças das metodologias ou dos critérios
transtorno. É verdade, porém, que tanto a delimitação da linha de corte entre normalidade e
que os obtidos utilizando sua versão anterior (Diller, 1998; McCracken, 2000). A atual
a ser até 9 vezes maior que a de meninas. Porém, quando a pesquisa é feita na população
geral, a relação cai para 2 garotos:1 garota (Rohde et al, 1998). Alguns estudos em amostras
comunitárias ou entre escolares tendem a achar taxas praticamente iguais entre os dois
sexos. Acredita-se hoje que as meninas são vítimas de uma tendência a serem
incomodariam menos a escola ou os pais e, por isso, a chance de serem levadas para
boa parte das pessoas que o manifestaram quando criança, mesmo que não haja mais
é muitas vezes referida pelos adultos como prejuízos de memória. A impulsividade muda
suas características e passa a ser responsável por boa parte dos problemas cotidianos, com
graves consequências para o indivíduo e as pessoas próximas. Além disso, o TDA/H nos
adolescentes e adultos se complexifica ao causar ou associar-se a outros distúrbios, como o
instrumentos diagnósticos mais comuns, como o DSM, não se mostrariam muito sensíveis
para detectar as mudanças no perfil sintomático ocorridas com o passar dos anos. Ao exigir
características das crianças, as classificações modernas deixam escapar muitos adultos, que
descrições em primeira pessoa que indivíduos maduros podem fazer das experiências
emocionais associadas com o transtorno. Para resolver estes problemas e não provocar sua
menor do que aquele exigido para as crianças. Ao invés de um mínimo de seis sintomas em
para diagnosticar uma pessoa de meia idade. Outros autores, entretanto, propõem uma lista
proposto por Tomas Brown, em 1996, e envolve prejuízos em cinco áreas: “1 - Capacidade de organização e
ativação para o trabalho; 2 - Manutenção da atenção; 3 - Manutenção da energia e esforço nas tarefas; 4 -
operacional) e de recuperação” (Mattos, Abreu e Grevet, 2003, p. 225-26).. Com eles, persegue-se uma
(Diller, 1998). Além disso, como veremos no próximo capítulo, passa-se a oferecer aos
saiba, ao início do século passado. A partir da década de 50, entretanto, tornaram-se mais
frequentes estudos que visam identificar, com maior precisão, a área cerebral ou o
seguintes tornou-se um dos principais responsáveis pelo impulso nesse ramo de pesquisas.
O aperfeiçoamento das biotecnologias diagnósticas, a partir dos anos 90, aumentou o poder
convencer - e, assim, a convencer à mídia e aos potenciais clientes leigos - que já dispunha
professores e pais, que são encontradas as afirmações mais categóricas sobre a descoberta
Os fatores psicológicos e sociais, quando merecem algum comentário, são tratados como
secundários ou dispensáveis.
relações entre o córtex pré-frontal e estruturas subcorticais como o núcleo caudato e o globo
pálido (rede conhecida como circuito fronto-estriatal). Como essas regiões têm
inibição dos impulsos, planejamento de ações, entre outras, acredita-se que nelas se
das pesquisas realizadas até os anos 70 continuam a perseguir boa parte dos estudos mais
(PET, em inglês) foi recebido como evidência inegável de alterações metabólicas nos
controles normais (Zametkin et al, 1993; Ernst et al,1994, 1997; Barkley, 1997). Estudos
Dados contraditórios também aparecem quando o foco dos trabalhos muda para o
núcleo caudato. Seu tamanho tem se mostrado diminuído no TDA/H, mas enquanto estudo
caudato esquerdo maior que o direito, outros trabalhos mostraram exatamente o contrário.
Alterações no córtex parietal posterior também têm sido encontradas, assim como
hiperperfusão na região occipital (Barkley, 1997; Rohde e Benczic, 1999; Szobot e Stone,
2003). A aparente confusão de achados não impede haver a certeza de que o TDA/H pode
com suas particularidades biológicas. A localização encefálica passa a ser confundida com
cerebral.
esforços para definir a sua química. Os efeitos da Ritalina estimularam hipóteses e estudos
dos neurônios a novos estímulos e cuja deficiência no córtex pré-frontal levaria ao aumento
Barkley (1997) propõe uma concepção do transtorno como um déficit nas “funções
cerebrais referem-se “to those self-directed actions of the individual that are being used to
indispensável para que se possa antecipar o futuro e para que se maximize o sucesso de
ações a longo prazo. O autor constrói um “modelo híbrido”, que se inicia com a eficaz
gestadas as quatro funções executivas: uma memória de trabalho não-verbal (que permite
manter os eventos passados em mente de modo a poder usá-los para planejar o futuro), uma
experiências passadas visando criar estratégias para superar novos obstáculos). O resultado
desejado é o aparecimento de condutas intencionais, racionais e objetivas, dirigidas de
condutas orientadas para o futuro. O tempo - isto é, “the conjecturing of the future that
arises out of reconstruction of the past and the goal-directed behaviors that are predicated
on these activities” (ibid., p.202) -, segundo Barkley, é a “central executiva” de todo este
processo. Assim, o indivíduo que desfruta de funções executivas bem reguladas é aquele
eficazmente para alcançar seus objetivos. Seu uso racional do tempo lhe permite adiar as
prazo.
as “funções executivas” mostra-se atrasada, essas pessoas são mais influenciadas pelo
contexto atual, são governadas pelo agora, tendo dificuldade em utilizar adequadamente o
que foi aprendido no passado para orientar suas ações, principalmente para alvos muito
um evento vindouro. Da mesma forma, não conseguem tolerar um mal-estar atual em troca
de uma consequência posterior mais favorável. Na verdade, como a função de inibição de
estímulo ou situação. Seu uso dos diálogos interiores para se auto-regularem é precário,
assim como sua aptidão para a criação e aplicação de regras internalizadas e seu uso para
instruí-las em ações distantes. Seu comportamento parece ser mais aleatório, automático e
imediato como estímulo para persistirem nas ações mais demoradas e sem gratificações
rápidas. Como não sabem adiar as respostas emocionais - além disso, é pobre sua
fazer com que levem as perspectivas alheias em conta. Sua incapacidade de reorientar suas
síntese das condutas passadas - que lhes permitiria reconstituí-las em atitudes novas frente a
situação lhes exija outros. Em outras ocasiões, as dificuldades com a linearidade temporal
crianças e adultos com TDA/H. Barkley acredita que, naqueles com o tipo hiperativo-
que a motivação interna é falha, eles demonstram dificuldades quando a atividade é pouco
longínquos, e facilmente se distraem. Portanto, sua teoria aplica-se apenas a esse subtipo do
instintivo e universal, não dependendo de treino ou outras variáveis culturais para ser
alcançado. Portanto, seus desvios só podem ser localizados na biologia, e não nos
disseminado em toda a concepção atual do TDA/H. Todas as aptidões que descreve, mesmo
seriam, no final, apenas resultados de alterações fundamentais nos genes, já que são eles
que regulam a montagem da rede neural. Em sintonia com o que Sfez e Rabinow haviam
indicado, neles se tem buscado a etiologia das etiologias do TDA/H. Dispersos por todas as
concepção unicausal do transtorno, tende-se a produzir uma identidade entre este e suas
o gene do TDA/H. Uma complexa herança poligênica seria a maior responsável pelo
incluídos nessa categoria diagnóstica, que difeririam entre si pela maior ou menor
abuso de substâncias, reforça a idéia de existir entre eles uma ligação etiológica,
familiar. Tem sido regularmente observada uma maior frequência de TDA/H (e também dos
diagnóstico: os pais teriam 2 a 8 vezes maior risco de também terem o distúrbio (Roman et
al, 2003); já em irmãos o risco estaria de 1,8 a 5 vezes aumentado (McCracken, 2000).
Porém, como definir se este aumento não seria influenciado por fatores mais ligados ao
ambiente familiar que à genética? Acredita-se que os gêmeos monozigóticos, com seu
genoma idêntico, possam dar a resposta a favor da hereditariedade. Estudos mostram que,
também são usados para argumentar a favor dos genes: quando uma criança adotada é
entre os pais biológicos do que entre os adotivos (Roman et al., 2003). Cadoret e Stewart,
em 1991, registraram uma alta prevalência de TDA/H entre adotados cujos pais biológicos
haviam sido condenados por atos criminosos, sugerindo um vínculo genético entre as duas
agrupa-se praticamente tudo que escapa da esfera hereditária: toxinas, fumo materno na
neurológicas pós-natais, classe social baixa, discórdia entre os pais, família numerosa ou
pouco coesa. O discurso hegemônico sobre o TDA/H atribui pouco ou nenhum valor a tais
desordenado poderia, assim, exacerbar os sintomas de uma criança que, por ser “portadora”
da doença, já teria enormes dificuldades com organização e controle de impulsos.
nos genes não se conforma com a minimização das determinações sociais, psicológicas ou
“subclínicos”, esses pais falhariam em prover atenção e atitudes adequadas a seus filhos,
mas isso não se deveria a seus desacertos morais ou a conflitos psicológicos provocados
pelo exercício da paternidade - é no seu TDA/H (ou em outro distúrbio co-mórbido, que
compartilharia com este alguma carga genética) que se encontrará os motivos de sua função
falhar. Os problemas familiares que escapam a essa lógica recebem um outro tratamento:
balbúrdia que um filho com TDA/H pode provocar em casa e no alto nível de estresse que
atribuir explicações morais ou psicológicas para condutas que - mesmo com as frágeis
evidências de uma clara etiologia biológica - seriam apenas manifestações de uma doença
“De uma vez por todas: o TDAH não é secundário a problemas com a
mãe (ou o pai, ou o avô, ou quem quer que seja), não é um conflito
inconsciente de medo do sucesso e não é um problema de personalidade.
É um transtorno com forte influência genética em que existem alterações
químicas no sistema nervoso” (Mattos, 2001, p. 48, grifos do autor).
“[O DDA] não é uma doença da vontade, nem um defeito moral ou tipo
de neurose. Não é causada por uma fraqueza de caráter, nem por
incapacidade de amadurecer. Sua cura não será encontrada com o uso da
força de vontade, nem pela punição, sacrifício ou sofrimento” (Hallowell
e Ratey, 1999, p. 295-96).
o transtorno sempre começa durante a infância. A vida de uma criança com TDA/H não
parece ser fácil, mas, segundo os estudiosos, torna-se bem pior quando demora a receber o
diagnóstico. Caso seja do tipo hiperativo e impulsivo, ela é tipicamente pouco popular com
os colegas, pois se envolve frequentemente em brigas, não sabe esperar sua vez nas
abandonar um jogo na metade, em busca de emoções mais fortes. Perde seus brinquedos,
derruba objetos por onde passa e, se frustrada, tem explosões de cólera. Em casa, sua
irresponsável e pouco empenhada na tarefa de mudar suas condutas. Caso seja do tipo
desatento costuma receber as mesmas repreensões, mas agora por estar sempre “no mundo
da lua”, não escutar quando é chamada, esquecer ou protelar as tarefas cotidianas e exibir
um caderno repleto de lacunas, pois não acompanha a lição do quadro negro na escola. Os
no vídeo-game mas se distrair a todo momento quando tenta fazer a lição de casa.
A baixa auto-estima de uma criança com o transtorno não diagnosticado é
considerada um dos complicadores de seu quadro. Os pais costumam recriminar seus filhos
de drogas ou a uma resignação com seus “defeitos morais”. Por sorte, o TDA/H também
lhes proporciona “aspectos positivos”, que os auxiliam a “driblar” parte desses problemas.
Além de portarem muita “energia” e inteligência, chama atenção sua criatividade, intuição
e sua “personalidade cativante” (Halowell e Ratey, 1999; Rohde e Benczik, 1999; Mattos,
2001). Ao invés de sempre ressaltar as falhas de seus filhos, são essas virtudes que
precisam ser elogiadas pelos adultos, pois são um trunfo da família em sua cotidiana
enxergar defeitos na criação, falhas de caráter ou conflitos inconscientes onde deveriam ver
Aperfeiçoando o que a DCM já havia iniciado, uma série de profissionais são mobilizados
para, junto com a quase inevitável prescrição de Ritalina, informar, tratar e orientar famílias
e escolas sobre o que fazer com essas crianças. Na verdade, as próprias crianças devem ser
esclarecidas sobre seu diagnóstico, e para isso contam com a opinião dos especialistas, dos
pais, e também com uma literatura dirigida a elas. Pedro, personagem fictício criado por
acomete:
“Ás vezes fico pensando como é difícil entender por que não consigo prestar atenção e fazer o que
preciso se sou inteligente. Por que consigo passar horas na frente da TV? Por que consigo jogar no
computador e ganhar do meu amigo?
Aí eu peço para o meu médico e meu psicólogo me explicarem tudo de novo. Eles me dizem que é
como se parte do meu cérebro que me ajuda a prestar atenção não trabalhasse muito bem, a não ser
que sejam coisas muito, muito interessantes para mim”(ibid., p. 34, grifos dos autores).
também suas qualidades, de um novo modo. Porém, para “cristalizar” a noção de ter uma
doença que justifica suas condutas é necessário um modo de pensar e um vocabulário que
adequem suas experiências ao que aprendeu sobre o transtorno. Só assim ela pode livrar sua
auto-estima de ataques acusatórios que a responsabilizam por algo que ela não controla:
“Coisas do tipo: ‘mas esse seu TDAH é fogo, não é? Viu como ele fez
com que você acabasse brigando e perdendo a amizade do fulano naquele
dia?’ têm um efeito impressionante. Uma vez que a ênfase não é mais
‘você é desse jeito’, ‘você tem problemas de comportamento’, mas sim
‘esse seu TDAH atrapalha você’, ‘o TDAH é um saco às vezes’, as
coisas começam a caminhar” (Mattos, 2001, p.74).
Saber que há um transtorno que pode explicar os “terremotos” provocados pelo filho
causa reações diferentes nos pais. Enquanto alguns demonstram tristeza ou demoram a ser
orientação, eles ficam sabendo que a rotina doméstica deve ser organizada com regras
estilo permissivo de paternidade. Por outro lado, os pais são desestimulados a aplicar
premiando o que a criança fez corretamente. “Promova o sucesso de seu pequeno DDA”
(Silva, 2003, p.70), conclama um dos autores. As crianças também precisam ser ajudadas a
notar seus próprios erros e excessos, pois teriam uma deficiente auto-observação, além de
que os pais devem oferecer e a flexibilidade que as condutas impulsivas dos filhos
1999; Mattos, 2001; Silva, 2003). Por ser difícil alcançar tal equilíbrio, o mais comum é
castigos e restrições cada vez mais severos, que aumentam o comportamento opositivo da
que, segundo os especialistas, a criança parece precisar da excitação extraída das brigas em
casa para livrar-se do tédio e “aliviar” seu TDA/H (Hallowell e Ratey, 1999).
da criança com o transtorno. A escola, com seus profissionais “pouco informados” sobre o
TDA/H, costuma ser uma das disseminadoras dos estereótipos que recaem sobre essas
crianças, havendo mesmo uma trajetória acadêmica e uma postura docente patognomônicas:
“A imagem de uma criança que começa bem na escola e então vê seu desempenho escolar
decair enquanto os professores vão ficando cada vez mais moralistas em suas explicações
deve sempre sugerir a possibilidade de DDA” (ibid., p. 89). Tipicamente, elas não
conseguem permanecer muito tempo sentadas, falam enquanto o professor expõe a matéria,
provocam os colegas, abandonam sua tarefa quando outro estímulo lhes chama a atenção.
Suas carteiras são uma bagunça. Podem não escutar instruções dadas e serem flagradas com
o olhar distante, e demoram mais que os colegas para terminar as lições. É comum que
ocorram longos desentendimentos entre os pais e as escolas antes que surja a hipótese
TDA/H a explicar as limitações dos alunos, como demonstra o depoimento de uma mãe:
Como parte essencial das informações que podem resultar na detecção de mais um
precisa estar impregnada do saber sobre o TDA/H, abrindo-se a consultorias e palestras dos
professores.
almoço, caso a criança lá permaneça em período integral. Mas, admite-se, isso não é o
suficiente, e novas prescrições são realizadas: o ambiente necessita estar livre de estímulos
excessivos, o tempo de provas deve ser maior do que o dos alunos não-TDA/H, as lições
devem ser explicadas de modo simples e precisam ser executadas em pequenos períodos,
com espaços para descansar ou mesmo para sair da sala de aula. Assim como em casa, a
no trabalho e na vida afetiva parecem moldar as manifestações da patologia, que tanto pode
tornar-se uma vantagem quanto um estorvo para o indivíduo. A impulsividade, um dos três
eixos do TDA/H, toma a dianteira e assume o comando de sua vida. A figura mais típica de
impelida por uma necessidade de mudanças e inovações. Em seu trajeto errante, ele repudia
as rotinas, tenta administrar vários projetos ao mesmo tempo, pode brigar raivosa e
repetidamente com seus superiores, trocar diversas vezes de emprego, nunca conseguir
estabilidade em relacionamentos pessoais, experimentar sexo casual e arriscado, praticar
tônica seja a ação e a criação. Assim como na infância, a criatividade é um dos maiores
bens desses adultos. Seu cérebro desatento e impulsivo lhes prega peças, mas também lhes
presenteia com a curiosidade e inquietude necessárias para que povoe o mundo com suas
obras. É por isso que se costuma considerar alta a concentração de TDA/H’s no meio
artístico: lá eles estariam liberados para criar sem as exigências de organização tão difíceis
essas pessoas que, sem saber, procurariam a atividade física como uma forma de “auto-
medicação” de seu transtorno (Lowe, 2002). A vigorosa energia costuma ser uma de suas
marcas registradas: “Se você conhece uma pessoa cuja definição mais frequente que se
ouve dela é algo como ‘ela é cheia de pique’, você pode estar diante de alguém com DDA
de inadequação ou incompetência. Mesmo que sua função não lhes demande vigilância
simultâneos - já vimos que crônicas queixas de memória são frequentes nesses adultos. Os
organizar uma agenda, prever orçamentos: tudo aquilo que envolve um manejo racional do
do trabalho lhes prive da diplomacia e “jogo de cintura” necessários para seguir adiante na
de ocorrer - e ocorrem. O entusiasmo inicial por uma nova tarefa rapidamente decai e dá
incapacidade para gerenciar seu cotidiano e para levar seus projetos com sucesso até o êxito
“Eu sempre me enrolava com prazos, projetos que deviam ser tocados em
uma sequência definida... quando minha sócia me perguntava a quantas
andava este ou aquele projeto, eu me enrolava todo, fosse porque estava
tocando tudo de forma atabalhoada, fosse porque eu ainda não tinha
resolvido alguma questão importante ou mesmo até quando estava
correndo tudo muito bem. Eu sempre respondia a primeira coisa que me
vinha à cabeça, na ânsia de me justificar, sempre na defensiva. Como eu
já tinha dito, até mesmo nos projetos em que tudo estava correndo muito
bem. Talvez porque, lá no fundo, eu sempre tenha a sensação de que algo
está errado, de que eu estou falhando em alguma coisa ou que não estou
sendo cuidadoso o bastante” (ibid., p.25).
outras circunstâncias da vida social. A desatenção e a falta de memória fazem com que a
pessoa, com frequência, passe pelo constrangimento de falhar em reconhecer alguém que
venha cumprimentá-la, de não conseguir repetir uma informação que acabou de ser exposta,
de não notar que o tópico de uma conversação já foi mudado, de não se recordar onde
estacionou seu carro. Sua impulsividade lhe faz ter a fama de “grossa” ou “imprevisível”,
pois sai da sala no meio de uma reunião ou de um encontro social e diz o que lhe vem à
cabeça, sem pensar em consequências. O alto potencial criativo atribuído ao TDA/H parece
falhar quando aplicado à gestão de seu cotidiano e relações pessoais, onde ficam evidentes a
pouca flexibilidade de suas condutas e sua tendência a repetir sempre as mesmas atitudes,
mesmo sem bons resultados. Além disso, costuma mostrar-se inquieta e impaciente, não
em discussões e brigas passionais. São sedutores e apaixonantes mas, assim como ocorre na
frequentes, traições e busca frenética de novas experiências sexuais até uma necessidade de
parceiro. Com sua necessidade de movimento e busca de novidades, o cônjuge com TDA/H
ele repetidamente demonstra não reparar no que lhe é dito e tende a devanear, o que pode
de decisões sem levar em conta a opinião do outro - tudo isso vai minando a relação sem
que ambos saibam existir um diagnóstico que poderia poupar anos de ressentimentos e
acusações mútuas. Eis aqui uma amostra do sofrimento de uma esposa às voltas com um
marido-TDA/H:
“Não, ele não bate em mim, não me engana, não bebe, não joga. Só que
se comporta como um garotinho irresponsável. Não me importo que ele
fique mudando de emprego porque não acha muito interessante ser
médico. Não me importo que ele acorde de madrugada porque está
entediado e queira voar (...). Não me importo que Sam seja incapaz de
guardar suas coisas, ou lembrar onde elas estão, ou que se esqueça dos
aniversários das pessoas. Não me importo que ele não consiga assistir a
um programa de tevê por mais de cinco minutos sem que precise ver o
que está passando nos outros canais, mesmo que esteja gostando do
programa a que está assistindo... Nada disso me perturba muito. Mas o
que me incomoda é ele não saber que eu existo. É tão ensimesmado que
para ele não faria diferença se eu fosse um robô. Ele não tem a mínima
idéia do que seja a minha vida íntima, nem sequer desconfia que eu tenho
uma. Sam não sabe quem eu sou. Após oito anos, o homem com que
estou casada não me conhece. E ele não sabe que não me conhece; é o
que torna tudo um inferno. Nada disso o incomoda, ele é tão
desatento!”(Hallowell e Ratey, 1999, p. 139-140).
especialistas, “o diagnóstico pode ser ofuscado, pois os problemas podem parecer com os
identificação que oferece, como estabelecer critérios para diferir um “casal qualquer” de um
transtorno. Segundo Hallowell e Ratey (ibid.), enquanto alguns adultos com TDA/H
precisam do estímulo constante da atividade sexual, que lhes ofereceria rara possibilidade
Assim como ocorre com as crianças e seus pais, a maior parte desses adultos não
sabe que suas atitudes são determinadas pelo TDA/H. Durante toda a vida foram tratados
escutando as mesmas opiniões sobre seu modo de ser e suas dificuldades pessoais ou de
relacionamento, podem tentar atribuir a terceiros seus percalços ou solidificar uma auto-
imagem baseada na noção de ser uma impostura ou uma fraude, mesmo que ocorram
inconscientemente ou buscando as causas de suas condutas nas relações precoces com seus
pais. Ter acesso a uma nova descrição para seus problemas - no fundo, para toda sua
identidade e história -, a qual conta com respaldo médico e “científico”, costuma gerar um
“‘Um alívio enorme! Enfim havia um nome para isso, especialmente para
aquelas reações emotivas que tinha diante de provocações. Eu pensava
que fosse uma histérica típica, ou qualquer coisa assim, e tudo o mais;
não ser capaz de ficar sentada quieta, subir na caixa d’àgua, as brigas, ser
bagunceira, ter problemas na escola. As coisas se encaixam, e o melhor
de tudo é ter um nome para isso (...)’” (ibid., p. 41).
“Qual não foi minha surpresa e alívio ao descobrir que todo o meu jeito
enrolado de ser não era devido a uma incapacidade básica que eu tinha
para lidar com a vida, e sim a algo chamado Distúrbio do Déficit de
Atenção” (Silva, 2003, p. 124).
dissipa, mas pode dar lugar a um sentimento de raiva ou impotência por ter se sentido
responsável e ter convivido tanto tempo com algo que era apenas produto de um mal-
funcionamento cerebral. Todo o esforço e sofrimento poderiam ter sido minorados caso
Um homem que teve conhecimento de seu TDA/H aos 27 anos descreve, numa carta
para sua irmã, uma experiência mais dolorosa, misturando tristeza e resignação:
esforço para dispensar velhos conceitos sobre si, num processo de busca ativa do
esquecimento - o que, para quem já se queixa de escassez de memória, pode não ser tão
difícil assim... Para isso, eles contam com os grupos de portadores, onde se unem a pais e
reforça seu saber sobre a síndrome, pois dela conhecem os dois lados. Com frequência tais
sua comunidade pode ter o significado de uma nova gênese pessoal, como comemora essa
ex-funcionária pública:
revela a potência dessa entidade como refúgio bioidentitário para aqueles cujas condutas
eficácia acadêmica, laborativa ou afetiva. Como visto no primeiro capítulo, num mundo
sem marcos sólidos, onde a tradição e coletividade não mais se oferecem como fiadoras na
construção de uma história de vida, os atributos corporais são elevados a fonte quase
exclusiva de doação de identidades não apenas para os “normais”, mas também para
aqueles considerados desviantes ou anormais. O TDA/H parece estar emergindo (em países
dois, o que mais tem lhe garantido, dentre as diversas patologias do cardápio psiquiátrico,
esse lugar de destaque? Por que ele, e não qualquer outra categoria que se suponha, ainda
que vagamente, radicada nos circuitos cerebrais de suas vítimas? Estas questões guiarão
utilizaremos as teses expostas no capítulo um, cotejando a descrição dos traços subjetivos
atenção com a chegada da modernidade, a partir das teses apresentadas por Crary. Tudo
envólucro médico, sua penetração em outros campos da sociedade e seu poder de engendrar
Nas obras dos principais arquitetos do TDA/H, especialmente em Barkley e sua tese
exposto acima. Tais pontos de contato entre os dois fenômenos, mais que resultantes de
depende menos do jogo de forças interno à ciência médica, e mais de um amplo arranjo
reduzir um ao outro, pois trata-se de fatos descritos em campos diferentes e com objetivos
extrai dessas afinidades parte de sua força, pois seus portadores padecem de ambiguidades
comuns aos sujeitos atuais. Por um lado podem e desejam gozar os frutos de seu impulsivo
desapego a mesmices e rotinas, força motriz de sua criatividade e aventureirismo; por outro
sofrem com a constante exposição a riscos e com as exigências de eficácia e sucesso, seja
indivíduo-TDA/H, por sua vez, também sofre com a incapacidade de adequar seu
comportamento presente à previsão das suas consequências futuras, com predomínio dos
interesses e prazeres imediatos. Pode-se dizer, a partir das teorias de Barkley, que ele
temporal resultam sua impulsividade e desatenção, não havendo como sua “inibição
objetivos mais tardios ou postergar recompensas. Tudo isso leva à “confusa relação que as
pessoas com DDA têm com o tempo: em vez de se ater a atividades discretas que criem
memória dos TDA/H’s: “They should not be able to hold information in mind as well as
e mais o seu fracasso em “articular as metas futuras com o registro de material passado”
avaliar as experiências atuais e planejar” (Hallowell e Ratey, 1999, p. 328). É isso que lhes
impede de fazer um uso racional dos episódios vividos, já que esses lhes parecem dispersos,
fora de sequência, sendo-lhes difícil transformá-los em ações úteis. Para um TDA/H, “a
vida parece ser descontínua; não há senso de história. Cada nova experiência é vivida de
A “efêmera memória” que o homem atual preserva dos episódios que constituem
narrativas a partir do mundo do trabalho, apontada por Sennett, certamente têm outras
é constantemente invadido pela impressão de que os novos episódios da sua vida não vêm
completar, mas sim apagar os anteriores. Viver de impulso em impulso, com a atenção
narrativas pessoais estáveis pode trazer-lhes desvantagens adicionais no mundo atual, mas,
em princípio, um eficaz manejo desse traço também poderia produzir bons resultados. O
trabalhador-TDA/H deveria ser facilmente adaptável ao novo mundo laborativo descrito por
Sennett, com seus papéis pouco definidos, tarefas que mudam sempre, trabalho em grupos
novo capitalismo e também dos indivíduos-TDA/H, e por isso o casamento entre ambos
Pelo contrário, rever uma decisão ou conduta equivocada lhe é uma difícil tarefa. Além
incerteza permanente que decorre do desfrute desse presente incessante, junto com sua
ou pessoal. Aí está um dos motivos que tem levado pais de crianças desatentas ou adultos
A invasão das famílias por médicos e outros especialistas durante o século passado,
e a submissão a suas prescrições, como mostrou Lasch, preparou o terreno para que o
ideário do TDA/H venha penetrando tão rapidamente na cultura contemporânea e para que
sua aprovação venha crescendo. Assombrados pelo risco de insucesso de sua prole no
pessoas recebem dos profissionais, além da onipresente Ritalina, uma oferta de estrutura,
de uma rotina mínima - enfim, de um roteiro. A construção desse roteiro, difícil para todos
nestes tempos de identidades fragmentadas, não será realizada a partir da história pessoal do
de uma mente ou cérebro externos, na viabilização de uma estrutura ambiental que possa
comentam Hallowell e Ratey (1999), “ os que têm DDA precisam disso muito mais do que
a maioria das pessoas. Precisam tanto de estrutura externa porque lhes falta estrutura
interna” (ibid., p.119). Outros autores concordam: “Essas crianças precisam do ambiente
para estruturar externamente o que elas têm dificuldade de estruturar internamente” (Rohde
e Benckzic, 1999, p. 80). Barkley, que, como vimos, considera o TDA/H como um atraso
na “internalização” (na formação das “funções executivas”), empresta verniz teórico a essas
impressões oriundas da clínica. Ele observa que os portadores do transtorno são mais
governados pelo contexto que pelos conteúdos representados internamente, e conclui: “(...)
the mental lives of those with ADHD would have to be more ‘externalized’ than
acarreta dá início a uma “bionarrativa” que será majoritariamente escrita com a ajuda de
na qual se travam os embates que constituem um sujeito. Por isso lhe são oferecidas as
transtorno que não se pode mudar. Sua prática acarreta uma oposição quase hostil ao uso de
doença dos filhos. Ela seria renitente resquício de uma antiga ordem, romântica e anti-
científica, a ser superada pela redução dos problemas “mentais” a seus componentes
materiais. Seu convite ao mergulho no universo interior teria até mesmo efeitos
com o transtorno: “O tratamento que haviam recebido na escola especial, visando não ao
DDA mas antes a trazer à tona conflitos inconscientes, poderia ter causado grandes
prejuízos nas crianças se não tivesse sido interrompido” (ibid., p. 80). Mesmo os problemas
ou diminuição da auto-estima, deveriam ser abordados através das TCC. Reforça-se, assim,
a ruptura com o internalismo psicológico, pois não resta nenhuma interioridade ou sentido
oculto a ser desvelado. Em sintonia com as considerações de Sfez sobre a utopia da Saúde
Perfeita, os sintomas não portam nenhum valor simbólico. Não há nada além da superfície,
nessa superficialização uma das molas-mestras de seu sucesso. Irmanando portadores, pais
e especialistas em torno da crença nas determinações fisicalistas do transtorno, eles põem
americano CHADD tornam-se uma importante força social ao colocar no centro das
políticas públicas as demandas de uma comunidade unida por uma doença genético-
2002).
Assim, o portador do TDA/H, seja ele criança ou adulto, tem a sua disposição uma
absolvição neurológica para seu ar distraído, sua busca incessante de novidades e sua
incapacidade de planejamento futuro. Agora ele sabe, por exemplo, que seu cérebro se
utiliza das mudanças como uma medicação estimulante a lhe oferecer uma provisória fonte
de concentração. Não precisa mais olhar para dentro de si, para suas relações familiares ou
dispensar concepções morais, leigas e psicológicas que só serviram para produzir pais
culpados, agravar os desvios dos filhos e diminuir a auto-estima. Tudo que necessita para se
conhecer está logo à mão, na concretude do corpo. Atinge aqui seu ápice o processo,
descrito por Sfez, de indiferenciação entre ser e aparência. Não apenas tudo aquilo que se
sabia de si passa a ser atribuído a uma disfunção cerebral, mas ter um TDA/H dá lugar a ser
um TDA/H. A única interioridade da qual ainda cabe falar não tem qualquer sentido
metafórico ou simbólico, mas refere-se concretamente aos lobos pré-frontais ou aos genes
da existência de quem conta com pouco mais que o próprio corpo para conhecer a si e o seu
tornou-se “um TDA/H” é o mesmo que Bauman descreveu como portando a identidade de
palimpsesto? Sabemos que a identidade de palimpsesto é uma categoria geral, que tenta
dar conta das fragilidades da constituição e continuidade das narrativas pessoais dos
aplicar-se a diversas áreas e temas da cultura atual - dos estilos de vida no campo
pela internet às novas formas de ligação com a religiosidade. Mesmo esferas nas quais a
figura do TDA/H tem penetrado fundo ao oferecer uma leitura reducionista de experiências
e condutas - a escola, o trabalho, a vida amorosa ou as relações entre pais e filhos - sofrem
entidade que a tudo explica, abrangendo estilos de vida e traços de caráter - os “traços
DDA” -, poderão, por seu exagero, facilmente cair no descrédito e no ridículo. Entretanto,
identidades (psico)patológicas, aquela oferecida por esse transtorno mostra ser uma das que
o transtorno deve parte de sua rápida propagação e persuasão ao fato de suas descrições se
conjecturar que uma figura como a DCM, embora tendo desfrutado de certo sucesso em seu
tempo, não prosperou por não dispor de um contexto semelhante ao atual, a estabelecer
como regra uma extrema flexibilidade identitária. Além disso, se a repetida troca de papéis
figura corporal com a qual se identificar, um ponto de fixação a permitir que modos
hiperativos, desatentos e impulsivos de ser não precisem deixar de sê-lo, pois é nas
Alguns autores têm proposto enfoques que levem em conta variáveis da cultura
comparadas com o volume da literatura “oficial” sobre o transtorno, e seus proponentes são
tópico anterior, nos deteremos em algumas das teses críticas já elaboradas sobre o tema.
Dumit (2000) considera o TDA/H uma das “novas desordens sócio-médicas”,
expressão que cunhou para referir-se a uma série de distúrbios emergentes que teriam, entre
Dumit observa que boa parte das controvérsias sobre esse grupo de entidades (que também
papel das tecnologias de diagnóstico por imagem (PET, SPECT e Ressonância Magnética)
transtornos. Segundo esse ponto de vista, essas desordens são formatadas principalmente
por movimentos de fora do campo científico: são os grupos de “doentes” e seus familiares,
etc., que exercem papel fundamental para defini-las. Os argumentos de Dumit nos são úteis
para mostrar o quanto variáveis contextuais, como o caráter excludente do sistema de saúde
nos EUA, estimulam uma equivocada utilização de pesquisas científicas preliminares pelos
Diller (1998) também mostra como fatores tais quais o sistema de managed care, a
política dos direitos das minorias ou a pressão de grupos como o CHADD por ambientes
escolares mais adequados têm ajudado a emergência de uma “cultura TDA/H” nos EUA.
Tendo em sua prática clínica um ponto privilegiado de análise, Diller remete a pressão de
familiar americana nas últimas décadas. Mais que um “chemical imbalance”, o TDA/H
famílias nas quais ambos os pais necessitam trabalhar fora, reservando a creches e escolas
as tarefas de lidar cotidianamente com suas crianças. Junto com isso, a exigência de sucesso
considerado abaixo da média, mesmo que dentro da faixa de variação esperada para aquela
idade, assusta e preocupa os pais. A carreira universitária, antes uma entre várias, é agora
encarada desde cedo como indispensável, mesmo que não demonstre ser a mais adequada
às aptidões e talentos de todas as crianças. Como resultado, a família exige o máximo das
escolas, que vêem as classes se encherem enquanto os fundos públicos para educação são
Uma série de pressões são realizadas para oferecer benefícios para aquelas crianças
que largam em desvantagem na competição por sucesso na vida futura. Diller mostra que, à
medida que o TDA/H torna as pessoas elegíveis para receber medidas especiais de proteção,
condições que provocam limitações acadêmicas, nos EUA, houve uma elevação nas taxas
a requisitar e receber esse status de deficientes. Na vida adulta, embora o TDA/H não seja
listado como transtorno psiquiátrico que incapacita para o trabalho, caso os empregados
consigam demonstrar que os sintomas prejudicam sua atuação e concentração, podem
requerer mudanças nos horários ou reorganização dos ambientes nos quais exercem suas
medida que seu padrão econômico se deteriora, a classe média precisa lutar com renovada
dedicação para se afastar da linha da pobreza e manter seu nível de consumo. Nessa batalha,
diagnóstico “real” de TDA/H, torna-se muito atraente. A questão, então, desloca-se de por
que usar a Ritalina para por que não usá-la. Além de apontar para pressões diretas, como
aquelas vindas das escolas, o autor ressalta a criação de um ambiente cultural que,
performance no colégio ou no trabalho, por que também não experimentar seus benefícios,
Werner Jr. (1997, 2000), um dos poucos médicos brasileiros a abordar o tema de
modo crítico, aponta para questões semelhantes às de Diller. Remontando sua análise à
DCM, este autor considera que o surgimento e aceitação rápidos daquele diagnóstico
podem ser explicados pelo contexto histórico e social dos EUA na década de 1960. Nesse
seus filhos, e é atendida pelo discurso dos médicos e autoridades sanitárias. Com aval
Nada mais adequado para eximir as instâncias culturais (como a escola) de sua
responsabilidade frente a tais problemas e para aliviar a culpa de pais pelas dificuldades de
suas crianças e adolescentes. Isso explica a rápida popularidade que a DCM atingiu entre os
pais de classe média, além de poupar suas crianças de serem consideradas deficientes
mesmo acima dela. Nota-se, assim, que tal arranjo não foi preparado para consumo das
classes populares, que continuavam a ver as dificuldades de seus jovens serem tratadas
trajetória americana, e chega até as classes populares quando as escolas públicas passam a
(‘retardo mental’ ou ‘privação cultural’) e sutis ‘disfunções neurológicas’ que justificam seu
fracasso escolar” (ibid., 1997, p. 95). Werner Jr. se indaga se, no contexto atual de escassez
por meio de um transtorno que oferece uma justificativa preventiva às futuras dificuldades
cultura contemporânea. Gerald Block, por exemplo, afirma que “as a result of the increased
level of excitement that permeates our society, more children who in the past may have
been prone to hyperactivity, now are hyperactive”(Block, apud Diller, 1998, p. 98, grifos
aceleração dos tempos musicais desde Bach - ajudaria a manifestação de sintomas latentes
crianças e adultos atuais estão realmente mais hiperativos e desatentos. Para ele, isso é
produto de uma “rapid-fire culture”, levando a uma aceleração concomitante dos ritmos da
“sensory addiction” tanto na busca por mudanças e velocidade quanto na Ritalina. Diller
(1998), entretanto, rebate este argumento perguntando por que outras culturas nas quais o
ritmo de vida é tido como acelerado, como a japonesa, exibem taxas bastante inferiores de
diagnóstico de TDA/H e uso de Ritalina. Para ele, a hipótese proposta por Dorothea e
Sheila Ross pode ser mais útil. Essas autoras defenderam que culturas consistentes - como a
TDA/H e seu poder de engendrar bioidentidades pode ganhar maior densidade se for
moderna, oferecida por Crary. Entender a encarnação da atenção, assim como as demandas
ambivalentes às quais deve se submeter, a partir do final do século XIX, irá nuançar a
perceptivas na modernidade
humana passível de ser modelada pelos contextos históricos, e não como uma função
universal a ser desvelada pela ciência. Restringindo seu estudo às três últimas décadas do
século XIX e à primeira do século XX, esse autor mostra como a atenção, nesse período,
modernas.
O último quarto do século XIX assistiu a atenção, antes apenas uma entre várias
eixo da vida mental, naquilo que dá coesão à consciência, organiza a experiência perceptiva
do mundo e comanda o comportamento. Uma torrente de obras confirmava seu novo status,
no campo das artes (com os trabalhos de Manet, Seurat e Cézanne), da filosofia (Henri
Bergson, William James, Nietzsche, Charles S. Peirce), da medicina (Charcot, Alfred Binet
empírico em forma de tempos de reação, ações reflexas e respostas condicionadas. Para que
of how a subject maintains a coherent and practical sense of the world” (ibid., p. 4) - veio
essência do mundo “real”. O final do século XIX assistiu ao declínio da idéia de uma mente
passiva e etérea, que apenas se deixa marcar pela natureza dos objetos. A atenção, então,
a ação motora.
atividade voluntária e autônoma do sujeito. Esta última noção, entretanto, era contestada
por estudos como os que envolviam técnicas hipnóticas, e mostravam como a atenção,
interior da filosofia e das ciências naturais, não deve ser compreendido como um
organismo humano, ele originou-se da lógica dinâmica do capital no final do século XIX e
implicava uma fragmentação do campo visual, pois o sujeito devia excluir uma parte do
mundo de seu foco atentivo enquanto concentrava-se em uma outra fração. É exatamente
isso o problema da atenção tornou-se, nas palavras de um aluno de Wundt, “(...) essentially
plano concreto da existência corporal dos indivíduos, permitindo não só sua manipulação
mas também sua vigilância externa. A fábrica, assim como a escola, tornou-se um dos
locais nos quais os corpos individuais eram organizados em torno dos imperativos de
mesmo tempo, era uma ameaça à própria eficácia laborativa. Instalava-se assim o que Crary
disciplina perceptual eficaz. A desatenção não pode, portanto, ser compreendida como um
the same imperatives and forces incite one and another” (ibid., p. 51). As tentativas de se
própria anulação, a atenção não pode ser a fiadora da autonomia individual. Num regime
do mundo:
necessitou das habilidades de um sujeito atento para sustentá-lo. Assim, mesmo com as
como categoria normativa no mundo ocidental. Sem poder usar o outro como fiador, à
continuam estimulando esse arranjo social, o que pode ser constatado na valorização e
“In the late twentieth century as in the late nineteenth, the management of
attention depends on the capacity of an observer to adjust to continual
repatternings of the ways in which a sensory world can be consumed.
Throughout changing modes of production, attention has continued to be
a disciplinary immobilization as well as an accommodation of the subject
to change and novelty - as long as the consumption of novelty is
subsumed within repetitive forms” (ibid., p. 33).
seu conteúdo é o que menos interessa: ele é uma estratégia visando o indivíduo, e seu
corpos, preparados assim para uma sociabilidade fundada na contínua produção de novas
necessidades, bens e objetos. Crary identifica pontos de convergência entre esta abordagem
individuais (os “dóceis corpos” foucautianos) e por eles são internalizados, criando
expectativas de adequação e normalização. Na encruzilhada entre vigilância e espetáculo, a
atenção torna-se instrumento e alvo privilegiado das formas não coercitivas de poder.
Para Crary, a exitosa propagação do TDA/H nos últimos anos confirma a perenidade
da atenção como categoria normativa, cujas falhas provocam ameaças à coesão social e
Ritalina, para ele, é a mais clara evidência da ação do poder moderno sobre os corpos, pelo
uso de uma “tecnologia disciplinar” neuroquímica no manejo de tais condutas. O que lhe
chama atenção, pelo contra-senso que implica, é que a metamorfose da tríade desatenção-
modernidade até os dias atuais. Exige-se que o indivíduo, a fim de obter uma boa
mas também que demonstre uma disposição maleável de trocar o foco de interesse quando
desejar ou lhe for requerido. As mesmas forças que produziram corpos que, sedentários e
inaceitáveis. Para estas, o TDA/H e a Ritalina servem como um novo - talvez o mais
disciplinamento. Já tendo indicado não ser uma sólida referência para o exercício de uma
vontade autônoma, ela também mostra-se um escorregadio objeto nas mãos dos
mecanismos de poder. À medida que se modificam as circunstâncias culturais nas quais é
distratibilidade e devaneio. Mesmo entre esses últimos, a separação entre uma desatenção
“The realization that attention had limits beyond and below which
productivity and social cohesion were threatened created a volatile
indistinction between newly designated 'pathologies' of attention and
creative, intensive states of deep absorption and daydreaming” (ibid.,
p.4).
mostrariam tão fáceis de serem reguladas e, a partir delas, a atenção poderia transformar-se
das novas tecnologias de informação tem estabelecido uma dura concorrência com o livre
pessoas e têm produzido “an unprecedented mixture of diffuse attentiveness and quasi-
mecânico padrão auto-regulado de respostas. O que importa, para Crary, é que essas formas
Na verdade, o milieu tecnológico só deixa mais evidente que o regime de atenção moderno
vem tomar o lugar que uma vez foi ocupado pela auto-reflexão. Mais que apenas uma
da cultura perceptiva moderna quanto a radical individualização que ela patrocina. “The
logic of spectacle prescribes the production of separate, isolated, but not introspective
São esses indivíduos, segundo nossa hipótese, que vão aderir entusiasticamente à
ação no mundo em lugar que não no corpo próprio. O primado do biológico faz com que a
bem a orientar o sujeito contemporâneo, vale tudo para protegê-la do seu desbordamento ou
separação entre os corpos operada na sociedade do espetáculo, o recurso ao outro não está
mais disponível como fonte de sentido e alívio. Vendo a sombra da desatenção ameaçar sua
TDA/H tem sido uma delas. Ao ingressar no universo do transtorno ele passa a contar, por
um lado, com o auxílio da Ritalina, arma bioquímica a provar que se pode atuar na
materialidade do corpo para que o farol da atenção não se apague, ou para fazê-lo brilhar
mais que o do vizinho. Como mostrou Diller (1998), tem se instalado uma indiferenciação
atenção”, por que não aderir a uma bem-vinda explicação fisicalista para as dificuldades
pessoais, e por que não usar a Ritalina para melhorar o desempenho nos diversos recantos
da vida, já que ela demonstra ser eficiente mesmo na ausência do TDA/H? Na verdade, o
íntima associação do transtorno com uma substância que modifica a química cerebral acaba
difundidas de forma quase autônoma pelas redes de sociabilidade TDA/H. Assim como a
constante vigilância sobre as condutas alheias (pais sobre os filhos, professores sobre os
alunos, esposas sobre maridos, psiquiatras sobre todos eles, etc.), mas também sobre os
corporal que se extrai o sentido de identidade pessoal, e é pela utilização da vontade que se
caso dos saudáveis, dos graus de vigilância, no caso do TDA/H). Porém, se o esforço
diferente para cada um. Enquanto os que não se esforçam para manter o padrão de saúde
grupos biologicamente desfavorecidos, mas nem por isso sua vontade é escassa ou frouxa.
Se no ascetismo cínico-estóico o estulto era o indivíduo que falhava nos cuidados de si, que
se mostrava disperso e desatento na prática ascética, hoje o desatento não é mais estulto,
nem vitimado pela acrasia, mas vítima de uma patologia que atinge em cheio sua rede
sucesso e sensações. Quando mesmo seus talentos e qualidades são explicados pela lógica
do transtorno, nada mais lhe resta a não ser a total conformidade com seus desígnios,
reflexo da submissão da vida social e política às regras ditadas pela ciência biológica e do
“culturais” ou “psicológicos”.
sua imprecisão conceitual ou clínica, por mais úteis que se mostrem, não têm conseguido
exigir nitidez de uma patologia fundada numa qualidade tão volúvel. O transtorno se
pessoas, de seus traços de comportamento - ou das condutas dos filhos - nas descrições
oferecidas pelo DSM ou suas versões “para leigos” divulgadas na mídia. A despeito das
entidade já circula de modo semi-autônomo nas cabeças dos professores, nas revistas e
progressivamente substituída por uma irrestrita adesão individual, que necessita apenas de
um aval médico - facilmente disponível - para que as pessoas ajustem suas vidas
e sobre as quais a vigilância externa (dos pais, da escola ou dos especialistas em saúde
mental) ainda se mantém, o ideal é o de que também elas consigam se aprimorar na arte da
isso revela que essa regulação dos corpos tem se afastado do poder disciplinar e se
aproximado das tecnologias de si, da ação do sujeito sobre ele próprio - ou seja, da ascese.
biosociabilidade, demonstra, assim, que pode até dispensar esta última, mas nunca a
primeira.
Na cultura atual, a atenção transforma-se em índice de refiliação do sujeito à
comunidade do corpo, uma “escala de medição” com implicações na regulação das noções
de saúde e doença. Encarnada e reduzida a uma “função” cerebral, ela torna-se susceptível a
seu uso instrumental no cotidiano, e seu controle avalia o nível e o sucesso da inscrição dos
tornado uma maneira de pais maximizarem a eficácia de seus filhos, quando a desatenção
atenção um ponto de referência instável, aderir ao TDA/H será suficiente para, usando
(ibid., p.148-51), fundamental para a saúde e para a preservação da segurança pessoal nas
relações com o ambiente? Mesmo contando com a localização de uma patologia no registro
modelo oferecido pelo TDA/H dificilmente lhes proverá de tudo que necessitam e, como
esbarram nos limites da própria corporeidade, impostos pelas regras da biologia. Caberá a
outros trabalhos mostrar de onde mais os sujeitos extrairão seu roteiro pessoal. A atenção e
o corpo, territórios onde têm procurado um solo firme para edificar seu arcabouço
contemporaneidade.
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