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A construção contemporânea de bioidentidades: um estudo sobre o transtorno


de déficit de atenção/hiperatividade(TDA/H).

Thesis · January 2004


Source: OAI

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Rossano Cabral Lima


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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL

A CONSTRUÇÃO CONTEMPORÂNEA DE BIOIDENTIDADES:


um estudo sobre o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade
(TDA/H)

ROSSANO CABRAL LIMA

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do grau de Mestre em Saúde
Coletiva, Curso de Pós-graduação em Saúde
Coletiva - área de concentração em Ciências
Humanas e Saúde, do Instituto de Medicina
Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro

Orientador: Jurandir Sebastião Freire Costa


Rio de Janeiro
2004

RESUMO

Este estudo visa a examinar as matrizes culturais da emergência e difusão do


transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDA/H), constructo psiquiátrico que vem
se oferecendo como explicação de diversas condutas disfuncionais em todas as faixas
etárias. A categoria tem penetrado em vários espaços sociais e suas descrições vêm sendo
incorporadas ao arcabouço identitário de crianças e adultos. Esta dissertação se propõe a
investigar as relações existentes entre esse diagnóstico e as formas de subjetivação
contemporâneas, ligadas ao enfraquecimento de referências coletivas e fontes tradicionais
de doação de identidade. Havendo um processo de desenraizamento e desfiliação dos
indivíduos, juntamente com um desprestígio da interioridade, observa-se uma tendência a
recorrer ao registro do corpo e da biologia como âncora subjetiva. Surgem, assim, arranjos
"bioidentitários" e formas de sociabilidade que se organizam em torno de predicados
físicos, tanto no campo da normalidade quanto no da patologia. No interior deste último, o
TDA/H, pretensamente radicado no cérebro e determinado pela genética, parece ser uma
das entidades às quais as pessoas aderem e ao redor das quais se agregam. O estudo sustenta
que a potência do TDA/H em engendrar bioidentidades é reforçada pela preponderância
cultural contemporânea de um modelo de subjetividade cujos traços se assemelham aos dos
supostos portadores do transtorno. Além disso, o TDA/H parece nutrir-se da elevação do
problema da atenção a um lugar central na cultura. Com o advento da modernidade, a
atenção foi encarnada e o indivíduo passou a ser alvo de demandas ambivalentes de
concentração e distratibilidade. Assim, a atenção e seus desvios transformam-se em índices
de refiliação do sujeito à comunidade do corpo, garantindo sua inscrição no registro das
bioidentidades.

Palavras-chave: Psiquiatria; distúrbio de falta de atenção com hiperatividade; corpo e


mente; identidade
INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, a descrição de uma série de condutas, afetos e mal-estares

humanos vem sofrendo um progressivo deslocamento de sentido. A pluralidade de

abordagens, outrora presente quando se tratava de explicar as vicissitudes individuais, tem

sido solapada pela hegemonia de concepções fisicalistas, que tendem a reduzi-las a sua

dimensão biológica. Até meados do século passado, tais concepções disputavam a

hegemonia com outras que se originavam em diferentes campos e que utilizavam outros

léxicos. Por exemplo, os comportamentos que traziam desconforto a si e a outros podiam

ser considerados como tendo causas médicas, mas também podiam ser tomados como

efeitos da ação insuficiente ou equivocada de instâncias como a família ou a escola, da falta

de obstinação e vontade ou de conflitos interiores. Hoje, explicações psicológicas,

pedagógicas ou oriundas da moral leiga são dispensadas como equivocadas e

estereotipadas, sendo substituídas, especialmente, por outras que localizam no corpo as

razões dos dissabores experimentados na vida. Embora esse movimento não se restrinja aos

fenômenos tidos como desviantes ou psicopatológicos, o campo psiquiátrico tem sido um

dos lugares privilegiados nos quais essa tendência aparece. Nele, uma categoria nosológica

tem se destacado pela rapidez com que vem saltando dos ambientes médicos para outros

recantos da vida cultural e social: o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade

(TDA/H). Se a princípio seu conhecimento era restrito a setores da comunidade

psiquiátrica, essa entidade passou, especialmente a partir dos anos 90, a influenciar o

raciocínio clínico de outros especialistas e a fazer parte do vocabulário cotidiano de

professores, pais e outros adultos. Crianças anteriormente tidas como “peraltas”, “mal-
educadas”, “indisciplinadas” ou “desmotivadas”, e adultos que se consideravam

“desorganizados” e “irresponsáveis”, passam a ser tomados como acometidos por uma

disfunção nos circuitos cerebrais, possivelmente de origem genética, que provoca uma

deficiência ou inconstância na atenção e um excesso nos níveis de ação. Paulatinamente, a

experiência de si e a identidade pessoal passam a ser contaminadas pelo reconhecimento,

nos critérios diagnósticos do transtorno, de novas leituras para antigas dificuldades

pessoais.

Tido como o distúrbio psiquiátrico mais comum entre crianças em idade escolar

(McCracken, 2000) e “a principal causa de encaminhamento de crianças para serviços

especializados” (Rohde e Mattos, 2003, p.12), seus sintomas, de início precoce, consistem

em “hiperatividade, desatenção, subaproveitamento acadêmico, e comportamento

impulsivo” (McCracken, 2000). Antes descrito quase exclusivamente na infância, faixa

etária que ainda hoje responde pelo maior número de diagnósticos, o TDA/H tem sido

crescentemente identificado em adultos. Acredita-se que cerca de um a dois terços dos

casos do transtorno na infância persista após a adolescência (Wender, 2000). Há

controvérsias sobre o aumento de suas taxas de prevalência nos últimos anos: para diversos

autores os instrumentos diagnósticos mais recentes, como as últimas versões do Diagnostic

and Statistic Manual of Mental Diseases (DSM-III-R e o DSM-IV, respectivamente sua

terceira edição revisada e sua quarta edição) tendem a identificá-lo mais que as anteriores.

Da mesma forma, parece haver uma tendência a incluir casos mais leves em comparação

com o que ocorria há uma década (Diller, 1998), indivíduos com um diagnóstico

“subliminar”(Mattos et al, 2003) ou mesmo pessoas que possuam “traços” do transtorno

(Silva, 2003). Uma das consequências de um diagnóstico de TDA/H é a quase onipresente


prescrição de Ritalina, independente da gravidade. O uso da droga, apesar de submetido a

rígido controle, tem se tornado um problema de saúde pública, especialmente nos EUA,

onde sua produção cresceu 700 % entre 1990 e 1998, quando quase cinco milhões de

pessoas - a maioria crianças - usavam o fármaco (Diller, 1998). No Brasil os números são

mais modestos, mas no mesmo período as vendas de Ritalina saltaram de 16, 4 para 65,2

mil unidades (Manso, 1998).

Os EUA podem ser considerados o berço do fenômeno, que tem se globalizado e

atingido especialmente os demais países ocidentais. Sua presença na mídia tem crescido:

em 1994, o transtorno foi capa da revista Time. O livro “Tendência à Distração”, lançado no

mesmo ano por dois psiquiatras que se apresentam como portadores do TDA/H, figurou na

lista dos best-sellers americanos. Desde então, o tema é assíduo nos meios de comunicação

americanos, a ponto de um crítico da situação descrever uma “hiperatividade midiática”

(Diller, 1998, p. 135). Episódios de séries como The Sopranos, The Simpsons e South Park

já abordaram o assunto (Lowe, 2003). Na internet, proliferam páginas de entidades e grupos

de auto-ajuda envolvendo pais de crianças e outros adultos com o diagnóstico. No Brasil, o

transtorno aparece nos cadernos de família, seções de saúde e de comportamento dos

jornais e revistas e já gerou um best-seller nacional, “Mentes Inquietas”, da psiquiatra Ana

Beatriz B. Silva, que em 2003 permaneceu 15 semanas não-consecutivas na lista de livros

mais vendidos da revista Veja, na seção de “auto-ajuda e esoterismo”, chegando a ocupar o

segundo lugar (Os mais vendidos, 2003).

A ampla divulgação do tema contribui para sua visibilidade e para o acesso dos

indivíduos às descrições do transtorno. Pais passam a subitamente “entender” o porquê das

dificuldades acadêmicas dos filhos, trabalhadores “descobrem” os motivos de sua baixa


eficácia, esposas passam a “enxergar” o que há por trás da impulsividade ou esquecimentos

do seu marido. Com o TDA/H, ocorre um deslocamento da idéia de responsabilidade,

vontade ou culpa (da criança, dos pais ou de outros adultos diagnosticados) para

explicações físicas sobre as condutas, nas quais o conceito de atenção, reduzido a uma

“função” cerebral, ganha uma importância estratégica. Como a atenção, seus desvios e

outras expressões comportamentais associadas se manifestam na dimensão corporal, será o

corpo, em última instância, o alvo do zelo, a sede do desvio e o locus da terapêutica.

No intuito de determinar as matrizes culturais do fenômeno, nossa hipótese

principal é a de que ele parece consistir num tópico especial da tendência contemporânea

para redescrever as experiências humanas tendo como referência os parâmetros corporais.

Sabe-se que, desde a modernidade, o corpo e a saúde sempre foram elementos importantes

na formação de identidades. Entretanto, o panorama atual indica não apenas uma

intensificação, mas uma alteração qualitativa dessa questão. Está ocorrendo uma passagem

de uma cultura ancorada no sujeito psicológico, na qual a identidade estava referida

preferencialmente aos critérios de desenvolvimento emocional interior, para outra, a das

“bioidentidades”, na qual o critério de normal ou normativo se remete quase

exclusivamente aos padrões biológicos e aos predicados corporais. Isso não implica,

obviamente, em uma mudança radical nas formas de subjetivação, nem no desaparecimento

dos modos modernos de constituição psíquica. Os arranjos identitários ligados aos ideais

sentimentais, “internalistas”, ainda são poderosos e deverão persistir, coexistindo,

combinando-se ou mesmo competindo com os novos modos corporais de ser. Entretanto,

em nossa opinião, essa tendência à “externalização” ou “somatização” da subjetividade tem

se expressado de forma inequívoca, tanto na constituição individual “normal”, como nos


prova a elevação dos cuidados físicos e estéticos ao primeiro plano das preocupações

pessoais, quanto na prevalência de modalidades de sofrimento psíquico que se organizam

corporalmente, como as anorexias, bulimias, certas fobias e drogadições. Incluem-se aí

também os processos de “medicalização”, nos quais categorias nosológicas são usadas para

reduzir fenômenos humanos complexos a seus elementos orgânicos. Nesse contexto, o

TDA/H aparece como uma das figuras a permitir o ingresso de crianças e adultos no

registro das bioidentidades - ainda que se trate, aqui, de “bioidentidades patológicas”.

Visando a relacionar a hegemonia do fisicalismo na descrição dos problemas

encontrados em crianças e adultos com mudanças na constituição subjetiva atual, a

dissertação se dividirá em três capítulos. No primeiro, serão abordadas as modificações na

construção das identidades pessoais na contemporaneidade, que refletem o enfraquecimento

das relações de pertencimento a grupos mais amplos e a ancoragem dos processos

identificatórios nos suportes biológicos. A análise da fragmentação do campo social e das

identidades individuais se apoiará na obra de Bauman (1998, 1999, 2003a, 2003b), que

mostra os efeitos da troca da segurança pela liberdade desregulamentada: uma crônica

incerteza e necessidade de constituições pessoais flexíveis para sobreviver num mundo sem

indicadores estáveis. Como o ambiente do trabalho e da família continuam sendo poderosas

matrizes na construção das identidades, o panorama cultural contemporâneo de Bauman

será complementado pelos estudos de Sennett (2002) e Lasch (1991). Sennett diz que o

trabalho moderno não mais oferece a sensação de continuidade, previsibilidade e

estabilidade de antes, sendo caracterizado pela fragmentação do tempo, a provisoriedade

das tarefas e a fragilidade dos vínculos comunitários. Isso faz desaparecer a possibilidade

das pessoas elaborarem narrativas coerentes para suas vidas, perdendo-se referenciais
importantes para a formação de seu caráter. Lasch mostra a anomia e esvaziamento da

família burguesa original pela anulação da competência parental no cuidado dos filhos e sua

apropriação técnica e controle externo por profissionais especializados. Esse processo de

“proletarização da paternidade” enfraquece o potencial formador da família, ao privá-la da

função de socialização de suas crianças.

O processo de esgotamento das instituições de referência e pertencimento terá como

consequência a refiliação dos indivíduos à comunidade do corpo e da saúde, como

defenderam Sfez (1998), Rabinow (1999) e Ortega (2002). Sfez considera que, no mundo

atual, a “Saúde Perfeita” tornou-se o único projeto utópico, dispensando a mediação de

instituições tradicionais na relação do indivíduo com a ciência e transformando a atenção ao

corpo na última fonte de sentido para o homem contemporâneo. Rabinow mostra o

surgimento de uma “biosociabilidade”, na qual os indivíduos tendem a agrupar-se segundo

características biológicas compartilhadas. Ortega, por sua vez, chama a atenção para o

aparecimento de uma nova forma de ascese, a “bioascese”, na qual o cuidado corporal

implica em desprezo por objetivos coletivos mais amplos. Em consequência, os indivíduos

tendem a colar sua subjetividade no corpo, produzindo modos de experiência do eu

denominados de “bioidentidades”. Bezerra Jr. (2000), por fim, indica os meios pelos quais

esse contexto macrocultural se atualiza no cotidiano das pessoas.

O segundo capítulo inicia-se apresentando o percurso de construção histórica do

TDA/H, desde as concepções presentes no inicio do século passado, passando por noções

como a de Disfunção Cerebral Mínima - popular entre as décadas de 1960 e 1970 - , até

chegar ao quadro atual. Dar-se-á ênfase às descrições do DSM-IV, por ser a classificação

mais difundida e aceita não apenas nos EUA, mas também em nosso país. Em
complemento, serão utilizadas obras representativas da literatura científica atual produzida

sobre o assunto, livros dirigidos a pais, professores e “portadores”, além de informações

presentes em páginas da internet dedicadas ao tema. A mescla de fontes escritas para

profissionais de saúde mental com outras destinadas ao público leigo, antes de prejudicar a

exposição do tema, é útil para mostrar o quanto o discurso “oficial” sobre o transtorno tende

à uniformidade, e por que meios tal discurso é vulgarizado e circula na população.

Explorando brevemente suas contradições internas, serão expostas as principais idéias sobre

suas manifestações clínicas, epidemiologia e etiologia, onde o TDA/H aparece como

epifenômeno do mal funcionamento neural, cujo sítio pode, inclusive, ser determinado na

anatomia cerebral. Serão destacadas também a noção de que o TDA/H é um distúrbio das

“funções executivas”, defendida por Barkley (1997), e as tentativas de fundamentá-lo na

genética.

No início do último capítulo mostraremos, a partir de depoimentos em primeira

pessoa e relatos clínicos encontrados na literatura e na internet, como pais de crianças

hiperativas/desatentas e adultos considerados portadores do transtorno têm redescrito as

próprias experiências, ou a de seus filhos, a partir do referencial oferecido pelo TDA/H, e

como têm organizado formas de sociabilidade em torno dele. Para entender as

particularidades desta construção bioidentitária, serão retomadas as idéias apresentadas no

primeiro capítulo, mostrando que a preponderância cultural de um modelo de subjetividade

- como aquele denominada por Bauman de “identidade de palimpsesto” - reforça o TDA/H,

havendo mesmo uma sobreposição descritiva entre as características dos indivíduos

acometidos pelo transtorno e as identidades contemporâneas. Extrairemos contribuições de

outras abordagens críticas à concepção hegemônica do TDA/H, como as de Dumit (2000),


Diller (1998) e Werner Jr. (1997, 2001) , entre outros, para auxiliar na inteligibilidade do

TDA/H como fenômeno típico da cultura atual. Para finalizar, apresentaremos a análise das

mudanças sofridas pela categoria da atenção com o advento da modernidade, feita por

Crary (2001). Mostrando como a atenção foi encarnada - despida de suas propriedades

metafísicas ou interiores - e como os indivíduos modernos foram submetidos a ambíguas

exigências de concentração e distratibilidade, esse autor será o toque final na construção de

nossas hipóteses sobre o destaque que o TDA/H vem recebendo na atualidade.

Na elaboração do tema, tiveram que ser mantidas como secundárias outras variáveis

importantes na apreciação do fenômeno TDA/H, como as pressões da indústria

farmacêutica e o papel da Ritalina, os jogos políticos no interior do establishment

psiquiátrico e o fortalecimento da corrente denominada de “psiquiatria biológica” nas

últimas duas décadas, ou o papel dos grupos de familiares e portadores na definição de

categorias nosológicas e de políticas públicas de saúde mental ou de educação. Da mesma

forma, a categoria criança foi descartada como objeto de análise, por entendermos que o

TDA/H, apesar de ainda ser um diagnóstico eminentemente infantil, vem se ampliando de

forma irreversível em direção à vida adulta, e que nossas hipóteses podem ser generalizadas

para ambos os períodos da vida. Entretanto, sempre que necessário para nossa

argumentação, serão assinaladas as peculiaridades do transtorno em cada faixa etária.

Este trabalho não tem como objetivo propor uma nova compreensão etiológica do
TDA/H para disputar o estatuto de verdade com as demais. Mais que isso, este estudo
exclui
qualquer tentativa de entender o TDA/H como uma entidade universal e a-histórica, e
qualquer
discurso, seja de natureza biológica ou psicológica, que despreze a influência dos contextos
cultural, político e econômico atuais na construção dessa categoria diagnóstica, em sua
rápida disseminação por amplos estratos da sociedade e em seu impacto nos sujeitos e em
suas identidades. Nosso propósito é desnaturalizar o tema, tratando sua emergência como
uma resultante de variáveis presentes na cultura e, em especial, como um caso particular da
tendência contemporânea de extrair a identidade pessoal, preferencialmente, do corpo e dos
parâmetros oferecidos pela biologia.

 O REFÚGIO NA COMUNIDADE DO CORPO

1.1 - O desenraizamento e a desfiliação do sujeito contemporâneo

Os adjetivos frágil, errático, obsoleto e provisório costumam ser considerados os

mais adequados para enfatizar o estatuto dos sujeitos no mundo contemporâneo. Todos eles

tentam traduzir a percepção de que, com o enfraquecimento das grandes narrativas e das

redes institucionais de doação de identidade, ocorreu um progressivo rearranjo nas formas

de subjetivação. O avanço do modo de produção capitalista e todo o seu corolário -

liberdade de mercado e de ir e vir, desregulamentação e esvaziamento de instâncias

garantidoras de direitos adquiridos (como o Estado), flexibilidade nos papéis profissionais,

incerteza quanto a manutenção de vínculos duradouros com lugares, coisas e pessoas, entre

outros - vêm sendo apontados como responsáveis por esta inflexão na constituição dos

modos de ser e sentir. As experiências de desfiliação, de desenraizamento espacial e de

descontinuidade temporal reconfiguram o próprio modo de se viver o cotidiano,

gradualmente despido do lastro de história passada ou dos projetos de futuro.

Bauman (1998, 1999, 2003a, 2003b) chama a esta última característica de

“destemporalização do espaço social”. Em sua opinião, os homens e mulheres modernos


projetaram no tempo atributos originalmente vinculados à espacialidade: o tempo passou a

portar direção, a possuir um “prá frente” e um “prá trás” e um sentido de “progresso”. Essa

organização temporal estruturou a experiência de vida dos indivíduos e das coletividades,

pois o senso de direção oferecia segurança às pessoas, ao delinear contornos claros para o

fluxo instável da vida. O homem contemporâneo, ao contrário, experimenta um mundo

errático, com leis que mudam no decorrer do jogo e valores que se esvaziam pouco depois

de se afirmarem. A estratégia necessária para se viver, agora, é o viver o agora. O manejo

do tempo do homem “pós-moderno” reflete a nova organização de seu mundo. A

provisoriedade se torna a regra, o que sabota a própria existência das regras e sua

confiabilidade; a durável lealdade a grupos, territórios ou vocações dá lugar a uma gestão

do presente, com ênfase na qualidade de adaptação. O movimento contínuo torna-se uma

exigência, mas agora sem indicadores estáveis que apontem, no tempo, a direção a seguir.

O ponto de partida da análise de Bauman (1998) é o de que, no mundo pós-

moderno, ocorre uma inversão da relação de forças entre o desejo de liberdade e a

necessidade de segurança. O homem moderno se definia como aquele que sacrificava o

primeiro em benefício da segunda. Daí vem a noção freudiana do “mal-estar na

civilização”, instalado inexoravelmente pela renúncia ao livre curso das necessidades

instintivas, em prol da cultura, suas instituições e suas normas. Na contemporaneidade o

desejo de liberdade desbanca a autoridade da tradição. A ordem não foi abandonada, mas é

procurada num jogo no qual o movimento espontâneo dos desejos individuais tem primazia,

ou pelo menos é perseguido como o valor em relação ao qual os outros valores devem se

organizar. O mal-estar continua presente, mas hoje resulta da troca do opressivo

compromisso com a segurança pelo volúvel e incerto fluxo da liberdade individual.


A incerteza, que, segundo Bauman, é o sentimento dominante em nosso tempo,

aplica-se tanto à experiência de si quanto à configuração futura do mundo e das maneiras

mais adequadas de se viver nele. Para os homens pré-modernos e suas sociedades holistas, a

vida reservava uma modesta dose de surpresa e insegurança, em geral associada à

imprevisibilidade do momento da morte - o que esse autor nomeia de “insegurança

ontológica”. Quando a tradição ou a transcendência deixaram de ser firmes avalistas de sua

passagem pelo mundo, abriu-se o caminho para o nascimento da identidade, “a mais

essencial de todas as invenções ou criações modernas” (ibid., p.221). Isso significa que,

sem princípios de orientação oferecidos por instâncias externas imperecíveis, o indivíduo

precisou desenvolver novas habilidades mentais para que pudesse julgar e escolher os

caminhos colocados à sua disposição. Com a identidade, nasceu também uma nova

experiência de incerteza, “não-ontológica”. Apesar de não se constituir numa vivência nova

para a humanidade, tal sentimento, hoje, não é mais reconhecido como um percalço

temporário num projeto de vida, uma “tempestade” no meio de um caminho previamente

traçado, que retoma seu fio de condução tão logo a dificuldade seja ultrapassada. A

incerteza é, isso sim, assumida como permanente e irredutível.

Bauman destaca alguns fatores responsáveis por essa incerteza crônica. O primeiro

seria a “nova desordem do mundo”. Os blocos de poder bem definidos, que em seu

antagonismo ditavam a lógica da política internacional na modernidade, deram lugar a

multipolaridades instáveis. Mesmo a oposição entre os países ricos e a periferia carece de

maior consistência, já que esta última vacila entre o rechaço às diretrizes políticas

“liberalizantes” vindas dos primeiros e a dependência forçada ou voluntária às mesmas,

ditadas pela pragmática da sobrevivência econômica. O segundo fator, “a


desregulamentação universal”, sustenta-se na implacável defesa da liberdade do fluxo de

capitais acima de qualquer outro valor. O livre mercado capitalista é tratado como

suficiente para a garantia da justiça de oportunidades, tomando o lugar dos projetos

coletivos ou das regras tradicionalmente fixadas pelo Estado. Na conjuntura dos países, isso

se traduz pela constante ameaça aos empregos, pelo desmonte da rede de seguridade social

(que sustentava períodos de desemprego, adoecimentos ou outras dificuldades), pela revisão

das legislações trabalhistas (associada ao enfraquecimento das organizações sindicais). Na

vida das pessoas, isso aparece no temor da perda de posição social e na sensação de

obsolescência das habilidades adquiridas, de desprezo pelo mundo do passado. Para

completar, observa-se um esgarçamento de redes de segurança mais locais, refúgios

oferecidos pela família ou por outras pessoas próximas. O espírito de consumismo e

competição, associado às incertezas permanentes, minam os laços comunitários, que são

impossibilitados de se conservarem duradouros. Como as relações interpessoais vão se

regendo pela lógica do mercado, seu exercício vai assumindo um caráter de desfrute

interesseiro, imediato e efêmero de experiências agradáveis.

Neste contexto cultural, pode-se falar de modificações nos processos de construção

de identidades. No chamado mundo “moderno” já havia ocorrido um deslocamento em tais

processos, à medida que a identidade deixava de ser uma questão de atribuição ou herança e

passava a ser uma realização, sob os auspícios do esforço e responsabilidade individuais.

Ao contrário do que possa parecer, isso não desencaixou o indivíduo de seu mundo, mas

impôs uma forte determinação entre os planos coletivos de uma ordem social estável e

duradoura e os projetos particulares de vida. Essa determinação não excluía uma boa

margem de manobra para as escolhas pessoais, que, no entanto, só se mantinham “livres”


dentro do cardápio oferecido pelas estruturas sociais, as quais apresentavam firmeza e

flexibilidade suficientes para suportar o impacto das investidas individuais e não se

colocarem em perigo. Além disso, indaga Bauman, o que significava a duração da vida de

uma pessoa frente aos séculos de idade de instituições cuja eternidade sempre pareceu

garantida? Pois, mesmo após a substituição das epistemologias mágicas e espirituais pelas

racionais e seculares - descritas por Weber (1967, 1974) como “desencantamento do

mundo” -, que retiraram da Igreja o papel de única ou principal força aglutinadora entre as

pessoas, instituições leigas como o Estado, a família ou o trabalho ocuparam o lugar da

tradição religiosa na tarefa de proporcionar coesão à vida social. Assim, a modernidade

assegurava que as identidades individuais contassem com “totalidades seculares” estáveis e

duradouras, que lhes servissem como ponto de referência e garantia contra a dispersão e a

errância.

O sentido do eu e da existência em sociedade, que retiravam boa parte de sua

matéria-prima da constância dessas entidades em relação às quais os homens nutriam um

sentimento de pertencimento, passam a ver-se transfigurados pela inequívoca sensação de

indeterminação atual. Oposições organizadoras da experiência de mundo, como certo-

errado, progresso-atraso, nós-outros, mesmo quando não abandonadas, passam por um

processo tão radical de redescrição que deixam de se tornar referências sólidas. É verdade

que os tempos modernos produziam suas próprias formas de desenraizamento, mas apenas

para que tudo fosse “reenraizado” logo depois. Hoje, entretanto, não há mais como

assegurar que isso venha a ocorrer. Os ventos que nos chegam propagam a mensagem da

descontinuidade e maleabilidade do mundo, como explica Bauman (1998):


“Neste mundo, tudo pode acontecer e tudo pode ser feito, mas nada
pode ser feito de uma vez por todas - e o que quer que aconteça
chega sem anunciar e vai-se embora sem aviso. Neste mundo, os
laços são dissimulados em encontros sucessivos, as identidades em
máscaras sucessivamente usadas, a história de uma vida numa série
de episódios cuja única sequência duradoura é a sua igualmente
efêmera memória. Nada pode ser conhecido com segurança e
qualquer coisa que seja conhecida pode ser conhecida de um modo
diferente - um modo de conhecer é tão bom, ou tão ruim (e
certamente tão volátil e precário) quanto qualquer outro. Apostar,
agora, é a regra onde a certeza, outrora, era procurada, ao mesmo
tempo que arriscar-se toma o lugar da teimosa busca de objetivos.
Desse modo, há pouca coisa, no mundo, que se possa considerar
sólida e digna de confiança, nada que lembre uma vigorosa tela em
que se pudesse tecer o itinerário da vida de uma pessoa” (ibid.,
p.36).

Assim sendo, a estratégia de construção subjetiva à disposição é a da fragmentação

da imagem e identidade pessoais. Episódios de vida vão se sucedendo, e se sobrepõem mais

que se justapõem. A faculdade de esquecer, de não se aferrar demais a habilidades ou

comportamentos aprendidos, de apresentar um currículo no qual espaços em branco

testemunhem a disposição de incorporar novas qualidades no lugar das antigas, nas quais

as marcas mnêmicas sejam apagadas sem muita dificuldade, apontam para uma identidade

pronta a adaptar-se a um mundo que não oferece mais garantias e lastros estáveis e sólidos.

Bauman chama a isso de uma identidade de palimpsesto, referindo-se ao papel de escrita

usado várias vezes pelo apagamento ou raspagem do texto anterior. Ele afirma que há uma

“crônica falta de recursos” à disposição dos homens e mulheres para a definição de uma

imagem pessoal duradoura e firme. Embora encorajada no discurso manifesto, a

estabilidade da identidade mostra ser uma desvantagem para aqueles que não têm mais o

controle sobre o itinerário de suas vidas nem encontram portos seguros nos quais ancorá-

las. A angústia produzida por tal situação pode aparecer sob forma bruta ou em novas
modalidades de adoecimento psíquico, ou pode ser eliminada quando o estilo de viver sem

lastros passa a ser desejado, a despeito dos riscos da incerteza permanente.

O modelo do consumidor transforma-se no eixo cultural e subjetivo desse modo de

viver, substituindo um arranjo moderno cujo foco encontrava-se na produção e que

moldava seus membros como soldados e obreiros. Com uma necessidade menor de mão-de-

obra industrial e de exércitos, a pós-modernidade organiza em torno do consumo o que

restou da sociabilidade, e exige indivíduos mais ávidos por aventuras e prazer e menos

interessado em qualquer coisa que se assemelhe a compromissos ou dependências. Num

mundo de políticas e existências humanas fragmentadas, as preocupações são sempre

parciais, e a atenção não se fixa nos objetos mais do que precisa para sorver breve

satisfação, sem degustá-los completamente, deslocando rapidamente o foco para novas

atrações. Bauman nomeia os sujeitos contemporâneos de “colecionadores de sensações”,

pois seu afã de consumo liga-se muito mais a experiências sensórias que à posse de bens

materiais:

“A promessa de nova experiência, capaz de esmagar, de espantar o


espírito ou gelar a espinha, mas sempre animadora, é o ponto a ser
realçado na venda de alimentos, bebidas, carros, cosméticos, óculos,
pacotes de feriados. Cada um acena com a perspectiva de ‘viver a
fundo’ sensações nunca experimentadas antes e mais intensas do
que qualquer antes provada. Cada nova sensação deve ser ‘maior’,
mais irresistível do que a de antes, com a vertigem da experiência
máxima, ‘total’ assomando sempre no horizonte. É esperado, e
aberta ou tacitamente sugerido, que, andando pela estrada do
acrescentamento quantitativo da intensidade sexual, chegar-se-ia
finalmente a uma penetração qualitativa - a uma experiência não
exatamente mais profunda e agradável, mas ‘totalmente diferente’”
(Bauman, 1998, p. 224-225).
Quantificar o desempenho de quem acumula sensações é um dos desafios

apresentados pelo aparecimento desse novo arranjo subjetivo. A partir de que parâmetros

deve-se considerar uma nova experiência “normal” ou “adequada”, e como saber se não se

poderia ter extraído um pouco mais dela? A suspeita de inadequação ou da insuficiência na

busca do nível ótimo de vivências sensórias agradáveis reforça a incerteza dos sujeitos

contemporâneos. Para curá-la, faz-se necessário recorrer aos “especialistas na identidade”,

profissionais que regulam a qualidade dos esforços do sujeito ou prescrevem técnicas e

produtos para “ajudar a realçar, aprofundar ou intensificar as sensações” (ibid., p.222).

Para Bauman, o único “teste de pureza” requisitado para ser admitido na sociedade

de consumo é mostrar-se capaz de desejar, seduzir-se e deleitar-se com a renovação

constante e a multiplicidade de ofertas de adereços identitários. Na verdade, os indivíduos

devem não apenas se deixar seduzir, mas querer e buscar ativamente ser seduzidos.

Internalizando as pressões da cultura, eles apropriam-se de suas compulsões como se

representassem um livre exercício de sua vontade. A insatisfação e a busca permanentes de

novos “produtos”, sejam eles pessoas, experiências ou sensações, mantém viva e recicla

cotidianamente um estilo de vida completamente adequado às necessidades do mercado

livre globalizado. Como será exposto adiante, o surgimento de um mercado do bem-estar e

da saúde e suas repercussões no aparecimento de laços comunitários e identidades pessoais

marcados pela dimensão corporal - a “comunidade do corpo” e as “bioidentidades” - se

constituirão num modo especial e privilegiado de responder às demandas dessa cultura da

provisoriedade.

É este mundo do “novo capitalismo” o responsável, segundo Sennett (2002), por um

processo de “corrosão do caráter” do indivíduo contemporâneo. Enquanto a análise de


Bauman abarcava variados aspectos da cultura, Sennett centra seu foco nas mudanças

ocorridas no universo do trabalho, das quais derivariam transformações na constituição das

subjetividades. Ele afirma que o ambiente de trabalho atual, caracterizado por tarefas

efêmeras, tempo fragmentado e laços interpessoais frágeis, não pode mais oferecer a

sensação de continuidade, previsibilidade e estabilidade de antes, inviabilizando a

construção de narrativas pessoais e desgastando o caráter.

O autor toma “caráter” como sinônimo dos traços pessoais aos quais atribuímos

valor ético, e que nos ligam ao mundo dos homens por meio de projetos de longo prazo.

Opõe o termo à “personalidade”, que se referiria a desejos e emoções mais privadas e

“internas”, pouco visíveis para as outras pessoas. O caráter seria a face mais “pública” de

nossa presença no mundo, e mantém-se como um precipitado de toda a nossa experiência

emocional. Sentimentos podem surgir e desaparecer; o caráter permanece. Assim, encontra-

se na dependência de experiências de compromisso mútuo, planejamento de metas de vida e

adiamento da satisfação imediata. Sua construção, portanto, é posta em risco num ambiente

cultural que cultiva a instabilidade das instituições e a incerteza dos laços entre os homens.

Sennett recorre à “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de Weber

(1967), para rememorar as balizas éticas do trabalho no capitalismo clássico: a

automodelagem e a autodisciplina. O indivíduo protestante, dispensando as instâncias

intermediárias que o separavam de Deus, devia dedicar-se a um esforço constante e solitário

de moldar a si, a sua história e seu tempo, para mostrar-se digno da piedade divina após a

morte. Como não tinha nenhuma garantia de que a modelagem realizada atingiria tal

objetivo, o trabalho árduo e disciplinado apareceu como um tipo de ascese que lhe ajudaria

a demonstrar suas intenções junto ao criador. Motivação, competitividade e disposição para


adiar o prazer (cuja maior expressão é o espírito de poupança) tornaram-se atributos

obrigatórios daqueles que necessitavam mostrar seu valor moral através do trabalho.

Se essa disciplina orientou a formação do caráter, ela também se mostrou opressora

e auto-punitiva. No novo capitalismo, os indivíduos parecem ter se libertado das formas

rígidas de organização do trabalho. A ética do “trabalho em equipe” é o símbolo da nova

era e opõe-se frontalmente à ética anterior. No domínio das equipes, o uso flexível do

tempo e a provisoriedade das tarefas substitui a rigidez implícita no esforço

autodisciplinador, ao mesmo tempo que a responsabilidade mútua indica a valorização de

laços interpessoais inexistentes na organização anterior do trabalho. Da mesma forma, as

estruturas menos hierarquizadas parecem demonstrar que o trabalhador está menos

submetido às exigências do poder dentro da empresa. Para Sennett, entretanto, tudo isso não

passa de aparência e farsa. A disciplina do período anterior foi trocada por um simulacro de

transparência, companheirismo e democratização. O exercício do poder continua a

acontecer no seio das equipes, mas agora a ausência de uma figura de autoridade clara

desorienta os empregados, ao mesmo tempo que qualquer reinvindicação aparece como

falta de cooperatividade. Os vínculos entre os profissionais só se mantêm por breve

período, pois as equipes passam por um permanente rearranjo entre seus membros. Não há

tempo suficiente para o cultivo de compromissos e confianças mais profundos. Tudo isso

dificulta que se organize a história de uma vida tendo como referência o trabalho, como se

podia fazer nas etapas anteriores do capitalismo.

Para Sennett, como para Bauman, analisar a experiência temporal no mundo

contemporâneo é essencial para se entender os novos modos de ser e a vida em sociedade.

Nas instituições empresariais do novo capitalismo o que mais chama a atenção é a ausência,
por obsolescência, do sentimento de “longo prazo”. O preço da sobrevivência no mercado

globalizado é a permanente disposição das empresas e de seus trabalhadores de não se fixar

em papéis ou em uma única habilidade, de nunca se fazer a mesma coisa da maneira que se

fazia anteriormente. O valor de uma carreira construída passo a passo ao longo dos anos

decai à medida que, para cada tarefa, uma nova habilidade é requerida, a qual não costuma

se somar à anteriormente aprendida e sim apagá-la da memória. A rotina tornou-se a

principal inimiga nos ambientes de trabalho. Aliada da burocracia e da ineficiência

econômica, ela também é encarada como limitadora da espontaneidade e de novas

experiências de vida. Um eu em constante fluxo e com frágeis amarras com pessoas, coisas

e lugares pode dispensar a rotina em seu reservatório de bens duráveis, até porque há cada

vez menos bens duráveis.

A organização do tempo no trabalho tem reflexos diretos na temporalidade

subjetiva. A possibilidade de construção de narrativas pessoais é colocada em xeque no

novo capitalismo. Sennett mostra como a cultura do risco que emana da vida empresarial

infiltra-se nos modos de ser e viver em nossa época. Essa cultura transforma um valor como

a estabilidade em equivalente de morte em vida. Estar vivo, ao contrário, significa nunca se

fixar, arriscar sempre, tornando a existência uma sucessão de novas “partidas” - seja no

sentido de novos lances num jogo descontínuo, seja na disposição de sempre estar iniciando

uma nova viagem.

O risco sempre foi valor celebrado desde os primeiros passos do capitalismo

moderno. Agora, porém, sua disseminação torna-se mais ampla, e ele assume o estatuto de

um imperativo. Arriscar-se prova que não se é fraco nem passivo, que se sabe jogar o jogo:

é uma nova “prova de caráter”. Aqueles que se encontram longe dos núcleos de poder
decisório - ou seja, a grande maioria - são os que mais sofrem com o dever de arriscar

sempre, já que o fracasso costuma ser a mais constante companhia de viagem. A sensação

de viver um presente incessante, de nunca sair do lugar, transforma-se em angústia e

apreensão, porque, nessas situações, as experiências passadas tornam-se de pouca utilidade.

De antídoto contra a sensação de passividade, colocar-se em risco permanente acaba

tornando-se um ópio desorientador, que não permite a criação de laços duradouros com as

outras pessoas - pois o foco da ação sempre muda e, com ele, também os companheiros de

aventuras - nem proporciona ao indivíduo uma sensação de continuidade com sua própria

história.

Numa cultura que reifica a eficácia imediata, a potência decai à medida que as

narrativas se acumulam. Entretanto, para as novas gerações, a própria construção de

narrativas passa a ser desestimulada e, em boa medida, impossibilitada. No trabalho, a

noção de carreira, associada ao estabelecimento de padrões de conduta e investimentos de

longo prazo, passa a não ter mais sentido. Um mundo de tarefas independentes e equipes

provisórias, associadas ao risco iminente de demissão ou deslocamento para outro setor ou

cidade, impede que se faça um histórico pessoal consequente, na forma de planejamentos

futuros. O trabalho não mais oferece a experiência de se percorrer um trajeto, de se estar

seguindo uma direção na vida.

É essa incerteza constante, já identificada por Bauman, que Sennett acredita

contaminar as outras esferas da vida e corroer o caráter, a partir do que ele considera a sala

de parto da situação - o mundo do trabalho. Se há uma nova estrutura de caráter surgindo,

ela exige “capacidade para despreender-se do próprio passado, confiança para aceitar a

fragmentação” (Sennett, 2002, p.73). Sennett parece reforçar, assim, o diagnóstico da


“identidade de palimpsesto” baumaniana. Contra seus males ele acredita haver um remédio:

a reabilitação do potencial narrativo de cada indivíduo. Sem o domínio da narrativa de sua

própria vida, resta ao indivíduo resignar-se a uma crônica superficialidade. Sua

compreensão do trabalho é superficial (pois ele pouco conhece as suas regras e lógica mais

profundas, embora tenha a ilusão de que elas se lhe apresentam com clareza) e é superficial

a experiência que tem do mundo e de si:

“As imagens de uma sociedade sem classes, com uma maneira


comum de falar, vestir e ver, também podem servir para esconder
diferenças mais profundas; numa determinada superfície, todos
parecem estar num plano igual, mas abrir a superfície pode exigir
um código que as pessoas não têm. E se o que elas sabem sobre si
mesmas é fácil e imediato, talvez seja demasiado pouco” (ibid.,
p.88).

Não é coincidência, como será mostrado mais à frente, que uma das respostas “não

narrativas” dos sujeitos ao mal-estar da contemporaneidade, ao empobrecimento do eu e à

sensação de desfiliação e desenraizamento seja alicerçar toda a identidade na superfície

corporal.

Se as modificações no ambiente do trabalho se refletem na organização subjetiva do

indivíduo contemporâneo, aquelas que ocorrem na família não poderiam deixar de também

fazê-lo, e desde muito mais cedo. É na família que a cultura penetra com força em cada um,

a partir dos primeiros anos de vida, o que explica o impacto sobre seus membros de

quaisquer mudanças na sua configuração. Embora não eleja a categoria caráter como seu

objeto privilegiado de análise, não é muito diferente o alvo de Lasch (1991) ao apontar a

anomia da família burguesa, o esvaziamento das funções parentais de cuidado dos filhos e
sua apropriação técnica pelos profissionais da saúde e bem-estar. Enquanto entregava a

maior parte de sua competência à escola e aos especialistas assistenciais, a família propunha

tornar-se exclusivamente espaço de “companheirismo” e “amizade”, um “refúgio” das

agruras do mundo do trabalho. Entretanto, o “lar como santuário” mostra-se um projeto

inviável, à medida que - como já havia apontado Bauman - os relacionamentos em seu

interior passam a pautar-se pela mesma lógica que domina as relações pessoais no mundo

externo, a da sobrevivência e gratificação imediatas.

Lasch não tem dúvidas que o desenvolvimento do capitalismo repercute na

constituição do eu, cujas modificações, por sua vez, acabam por sustentar os novos arranjos

econômicos e políticos. Nos primórdios da modernidade, a valorização do modelo de

casamento calcado na prudência e previsão acompanhou as crescentes necessidades de

acumulação de capital. A criação dos filhos, por exemplo, passou a ser alvo de cuidados

inéditos, já que eles eram encarados como reservas familiares para o futuro. Uma nova

concepção de infância emergiu, demarcando um período específico, separado da vida adulta

e preenchido com características peculiares como vulnerabilidade e inocência. As crianças

não mais se misturavam com os adultos, e seu desenvolvimento demandava proteção e

cuidados afetuosos. O casamento arranjado era abandonado e o amor romântico ajudava a

construir a idéia da família como refúgio da brutalidade e competição do mundo. Ao

mesmo tempo, o ambiente doméstico patrocinava o surgimento de um tipo de personalidade

centrada e autoconfiante, adequada à sobrevivência na sociedade do livre mercado

competitivo, que exige adiamento da recompensa, acumulação e previsão racional. A

família nuclear se fortalecia, distanciando-se do restante da rede de parentesco e da

sociedade em geral. Esse alto prestígio da privacidade doméstica cobrou seu preço: à
medida que os laços entre pais e filhos se intensificavam, aumentava também a sobrecarga

emocional na relação familiar, o que se mostrava fonte de tensões e conflitos.

O fim do século XIX, nos Estados Unidos, já testemunhava uma crise na

configuração familiar burguesa. Seus sinais mais explícitos foram o aumento do número de

divórcios e a queda nas taxas de natalidade. A separação entre o ambiente da casa e o do

trabalho, operada pela industrialização, esvaziou a família de sua função produtiva,

estimulando as mulheres a se dedicarem a atividades externas. A contrapartida dessa

situação foi a tecnicização das tarefas antes executadas “naturalmente” no lar. Surgiam as

“ciências” domésticas, que enfatizavam a necessidade de dominar técnicas específicas de

gestão, as quais iam do controle dos gastos à conquista do prazer sexual. O amor romântico

passou a ser atacado como fonte de ilusões que inviabilizavam a estabilidade e o equilíbrio

da vida conjugal. Em seu lugar, propunha-se a “racionalização da vida emocional no

interesse da saúde psíquica” (ibid., p.34).

Segundo Lasch, diversas modificações na estrutura e nas funções da família não

apareceram como respostas espontâneas às novas configurações econômicas e sociais, mas

foram deliberadamente planejadas. A heterogeneidade e a privacidade das famílias,

especialmente dos imigrantes, apareciam como ameaças aos esforços dos reformadores

sociais em produzir uma sociedade coesa e uma direção unívoca de progresso. Submeter as

crianças à influência da escola, da justiça ou de outras instâncias tornou-se uma de suas

iniciativas, sob a justificativa de que os pais já não cumpriam suas funções, falhando na

transmissão de princípios morais. As agências de reprodução social e seus profissionais

tomaram para si a tarefa de produzir e acumular o conhecimento sobre os cuidados com os

filhos e com o lar, convencendo os pais a confiarem em sua ciência. Com essa delegação
assentida de poder, a família perdia a capacidade de prover-se, o que só estimulou a

expansão dos serviços de saúde, educação e bem-estar. Quando esses serviços decidiam

devolver às famílias seu conhecimento especializado sob a forma de “educação para os

pais”, só reforçavam a dependência e a impotência destes últimos, que já não se

autorizavam a pensar sozinhos sobre o que fazer com os filhos ou com o próprio

relacionamento conjugal. Lasch denomina esse processo de “proletarização da

paternidade”, por considerá-lo análogo à socialização da produção industrial, quando os

trabalhadores se viram privados do conhecimento sobre o processo de produção como um

todo, executando tarefas isoladas, numa dependência passiva em relação a outros técnicos e

instâncias superiores da fábrica. Pais e mães passaram a sentir-se incapazes de cumprir seus

papéis domésticos sem recorrer à supervisão técnica dos especialistas.

Os médicos ocuparam a liderança da tarefa de supervisionar e intervir nas famílias,

seja por sua ação direta, seja pela racionalidade científica tornada referência simbólica de

diversos outros “agentes sociais”. A partir dos anos 50, amplos setores da psiquiatria

americana deixaram clara a intenção de ampliar seu campo de atuação para o interior da

vida doméstica. Essas iniciativas sustentavam-se na convicção de que cabia a essa

especialidade, mais do que curar pacientes, transformar “padrões culturais”. Nesse esforço

de “evangelização”, toda sociedade passava a ser vista como paciente, e a família era uma

das instituições que, mal orientada, produziria pessoas desajustadas, neuróticas e pouco

preparadas para os novos desafios da vida. Tomando para si a tarefa de difusão da

moralidade, os médicos declararam guerra às configurações familiares conservadoras. Sua

pregação advogava a administração tolerante e madura das relações interpessoais e a

“democratização” da vida doméstica, com a crítica ao poder patriarcal, a defesa dos direitos
das mulheres e de uma educação das crianças que erradicasse os antigos conceitos de

“certo” e “errado”. Somente pais que, após treinamento adequado, se mostrassem

convertidos à ideologia da saúde mental, conseguiriam liberar seus filhos dos antigos

dogmas sexuais repressores e da superproteção - esta última, supostamente, inibidora da

autonomia e da boa sociabilidade. Tudo isso só fazia preparar indivíduos para o reinado do

consumo, auto-realização e versatilidade flexível da sociedade contemporânea.

Uma série de outras profissões assistenciais nascidas nas primeiras décadas do

século XX inspiraram-se na ideologia médica para justificar a intervenção nas famílias e a

disseminação do ideário preventivo na saúde mental doméstica. Educadores, assistentes

sociais e especialistas na área penal passaram a ver-se como “patologistas sociais”,

adaptando os métodos consagrados pela saúde pública e pela medicina preventiva a seus

objetivos. Acreditando-se investidos de poder curativo em relação aos desvios

comportamentais juvenis ou aos distúrbios nos relacionamentos dos casais, esses

profissionais também almejavam impedir o surgimento de tais problemas, pois se achavam

conhecedores de seus fatores determinantes. O arsenal profilático e terapêutico, nascido da

nova moralidade das relações humanas, começava a influir em diversos campos da

sociedade. Na justiça de menores, por exemplo, conceitos como “culpa” e “pecado” eram

substituídos por outros oriundos do vocabulário médico. Seus tribunais foram redefinidos

como “hospitais morais”. A delinquência juvenil, agora entendida como parida da

brutalização e humilhação das crianças em seus lares profundamente disfuncionais,

necessitava da intervenção de profissionais capacitados para agir “terapeuticamente”, no

sentido de produzir pais “maduros”, “tolerantes” e “amigos”, ou no de tomar para as

“agências sociais” uma parte ou a totalidade das tarefas da paternidade.


Nesse cenário, parecia restar à família um único papel, aquele que não poderia ser

assumido por nenhuma outra instituição: o de provedora emocional. As tensões provocadas

pela expressão de sentimentos em seu interior eram a fonte de sua vitalidade e seu sentido

último. A coesão e solidariedade domésticas, que não eram mais garantidas pela tradição

personificada na figura da autoridade paterna, sustentavam-se agora na troca de afeto, na

compreensão e no companheirismo. Não mais parecia que a família cumprisse função

alguma na socialização de seus filhos. Ao contrário, aparentava incompetência para

preparar a criança para enfrentar a realidade da vida moderna. Criou-se, assim, um

paradoxo: as crianças desfrutavam de um refúgio de afeto em casa, mas que as incapacitava

a funcionar adequadamente no frio e competitivo mundo mercantil.

Na verdade, diz Lasch, a visão da família como célula isolada do restante da

sociedade, que lhe garantia o estatuto de oásis sentimental na aridez capitalista, há muito

não se sustentava. Como poderia ela assegurar uma função “afetiva”, encontrando-se

moralmente esvaziada, e quando a racionalidade individualista do mercado também vinha

se estabelecendo no seu interior, contaminando as relações entre seus membros? A família

não mais conseguia proporcionar um espaço protegido, no qual a transmissão de valores

morais não se mostrasse subjugada à lógica do consumo, das relações superficiais, da

exploração e da inconstância permanente. A criança passava a julgar os pais de acordo com

sua possibilidade de lhe proporcionar os produtos que desejava, e os próprios pais pautavam

sua autoridade na sua capacidade de prover o lar de bens materiais. A lógica do próprio

interesse e da eficácia econômica destrói a organização familiar baseada na deferência,

devoção ou sentido de dever das gerações mais novas com as mais velhas, e também

inviabiliza sua sustentação apenas pelo vínculo afetivo.


A decadência da autoridade faz decair também a influência dos pais sobre os filhos

e o potencial de identificação destes últimos com os primeiros. Como resultado tem-se

jovens que descartam a mediação de seus genitores com a cultura porque não os consideram

mais em sintonia com as exigências sociais. São os próprios adolescentes que, ao terem que

enfrentar desde cedo os imperativos de flexibilidade e consumismo, demonstram uma

hiperadaptabilidade que parecem não ter aprendido com os pais, mas com a realidade

mesma, sem intermediários. A vacilação paterna em ditar regras e a delegação de tarefas

(como a disciplina) a instâncias exteriores deixam marcas nos modos de organização da

personalidade de todos, em especial das crianças. O sentimento de pertencimento à família

se dilui quando esta nem lhes oferece proteção contra as intromissões e ameaças do mundo

externo, nem lhes provê segurança emocional. Enquanto isso, cresce a influência do grupo

de pares, da escola e dos meios de comunicação. Quando a família tenta reagir, só faz

demonstrar sua invasão e submissão à lógica do mesmo mundo que produziu o seu

esvaziamento. Em sintonia com as necessidades do novo capitalismo, ela, longe de deixar

de se preocupar com a criação e educação de sua prole, se dedica à tarefa de treinar pessoas

equipadas para o empreendimento, para a imprevisibilidade, para o autocuidado e a

adaptação rápida a mudanças. Desse ponto de vista, a permissividade testemunha apenas a

impossibilidade dos pais atuarem como modelos de identificação para os filhos, e a única

saída é abdicar de transmitir os preceitos tradicionais da cultura em nome da moldagem de

personalidades adaptadas à realidade do mundo, e que por isso mesmo precisam se

desgarrar de dependências e filiações que lhe serão inúteis.


1.2 - A comunidade do corpo e a construção de bioidentidades

Sem contar com indicadores tradicionais a lhes dar garantias dos melhores caminhos

a trilhar, atingidos pela decadência do trabalho como fonte de criação identitária e de

narrativas de vida e pelo esgotamento do papel de produção e reprodução da socialização

pela família, o que podem fazer os cidadãos contemporâneos para atenuar as ansiedades

provocadas por sua condição de desfiliação e desenraizamento? O resgate do sentimento de

haver um “nós” - uma comunidade - é, para Sennett (2002), um dos recursos possíveis para

se reestabelecer ligações entre os indivíduos e, consequentemente, garantir um sentido para

sua existência e a preservação do seu caráter. A partilha de crenças e valores no cotidiano

das pessoas recuperaria a sensação de pertencimento coletivo que parece perdida nos dias

de hoje. Entretanto, para que se cultive esse senso de filiação mútua, é necessário que haja a

admissão de dependência por parte dos sujeitos. Sennett acredita que o capitalismo

contemporâneo, num movimento dialético, ao celebrar a autonomia individual, a

superficialidade, a obsolescência da confiança e do compromisso e o esvaziamento do

sentido do trabalho para toda uma vida, gera tamanha confusão e tão ameaçadora incerteza

para os trabalhadores que pode acabar levando-os a admitir sua vulnerabilidade e a procurar

novos cenários de ligação, minando as bases da ideologia da indiferença. De maneira

defensiva ou como resistência ativa, uma noção renovada de comunidade pode tornar-se o

refúgio de pessoas deslocadas nos tempos contemporâneos.

Bauman (2003a) mostra que, historicamente, quando a noção de comunidade entrou

em decadência, a identidade apareceu como sua substituta. A arena das venturas e

desventuras humanas, com a modernidade, começou a se deslocar das situações públicas e


coletivas para se localizar no eu. A partir daí, a tensão entre as duas noções passou a ser

constitutiva de nossa cultura, refletindo outra polarização: entre a segurança, idealmente

ligada à primeira, e liberdade, associada à segunda. Para ele, a insegurança contemporânea

tem servido como combustível na busca pela comunidade, mas esta “continua

teimosamente em falta, escapa ao nosso alcance ou se desmancha, porque a maneira como o

mundo nos estimula a realizar nossos sonhos de uma vida segura não nos aproxima de sua

realização”(ibid., p.129). Como o eu parece a única coisa estável, a certeza possível num

ambiente em turbulência, a autopreservação aparece como resposta preferencial aos perigos

e ameaças. Isso patrocina arranjos comunitários que reforçam a atomização e a criação de

fronteiras, ao investir na união dos semelhantes e num “seguro” distanciamento dos demais.

Assim, o máximo que a pós-modernidade tem conseguido produzir, nas palavras de

Bauman, são “comunidades-cabide”:

“(...) a vulnerabilidade das identidades individuais e a precariedade


da solitária construção de identidade levam os construtores da
identidade a procurar cabides em que possam, em conjunto,
pendurar seus medos e ansiedades individualmente experimentados
e, depois disso, realizar os ritos de exorcismo em companhia de
outros indivíduos assustados e ansiosos. É discutível se essas
‘comunidades-cabide’ oferecem o que se espera que ofereçam - um
seguro coletivo contra as incertezas individualmente enfrentadas”
(ibid., p.21).

A ênfase na identidade faz que as ansiedades produzidas por contradições sistêmicas

passem a ser tratadas como problemas privados. Se há uma nova busca por “identidades

comunitárias”, ela não parece incluir a preocupação com o outro, como queria Sennett,

mostrando-se mais próxima das “comunidades-cabides” baumanianas. Um processo de

refiliação parece estar em curso e tem conduzido multidões de voluntários à comunidade do


corpo e da saúde. Nela, o que une a todos não é mais a felicidade de uma classe social, de

uma nação, de um povo. Nela, o sentido da vida não é retirado do trabalho ou da casa, pois

o sentimento de dependência mútua é frouxo e superficial, e a vulnerabilidade, quando

admitida, o é para que se tente obstinadamente superá-la em esforços individuais, e não

pelo recurso recíproco ao outro. É a saúde e o cuidado com o corpo individual que redime a

pessoa e cria identidades coletivas. Num mundo inconstante, marcado pelo esvaziamento

das instituições de referência e pertencimento, a concretude do corpo próprio e os

parâmetros da biologia tornam-se uma das poucas fontes de certeza, segurança e

estabilidade a qual recorrer.

Este é um dos argumentos de Sfez (1996), para quem a “Saúde Perfeita” é o único

projeto mundial da contemporaneidade. Esse autor sustenta que

“(...) se há um lugar que resiste à dissolução do sentido, este lugar é


o nosso corpo, centro e foco de uma identidade, portador da
continuidade da espécie humana, garantia - se está em boa saúde -
de uma vida de bem estar desembaraçada das doenças que
comprometem o equilíbrio da natureza” (ibid., p.41).

A ciência se propõe a curar a carência de sentido do homem moderno prescrevendo

uma constante atenção ao corpo, este no papel de sujeito e objeto, sempre disponível a ser

vasculhado por tecnologias visuais, corrigido cirurgicamente, substituído por próteses, na

promessa de um ideal de saúde e longevidade.

Uma das características desse projeto utópico é a suspensão das instâncias

intermediárias entre o indivíduo e a ciência. Pode-se, assim, abrir mão do Estado, das

antigas ideologias, da filosofia e da moral tradicional, pois o indivíduo usa a si e a seu


corpo no estabelecimento de diálogos diretos, mas ilusoriamente livres, já que subordinados

à lógica tecnológica cujos princípios são moldados longe dele. Nota-se aqui o quanto o

projeto da Grande Saúde precisa de uma montagem social e econômica na qual a “mão

invisível do mercado” marca a presença da ausência de mediação entre o indivíduo e o

mundo “real”. A eficácia do discurso não-mediado da ciência sobre os homens é alimentada

pelo contexto histórico de suposto triunfo da ideologia neoliberal, que dispensa instâncias

reguladoras constituídas, crendo nos poderes de uma “iniciativa” que se supõe “livre”.

Neste novo mundo, o valor moral de cada indivíduo acaba sendo pautado por sua

capacidade de se adequar às novas prescrições sobre o corpo e sua saúde. Nenhuma

metafísica, tampouco qualquer ligação a princípios éticos que não estejam baseados na

ascese da corporeidade têm o mesmo poder de atribuir sentido para os laços e valor para as

pessoas. Cria-se assim, de um lado, identidades que se inscrevem radicalmente na realidade

dos corpos, os quais exigem cuidados e atenção constantes. Por outro lado, instâncias de

vigilância disfarçadas são construídas para zelar por este bem supremo, acima do interesse

de cada indivíduo, introduzindo, nem sempre com sutileza, uma moral sanitária

“politicamente correta” que deve ser observada. Como meta da utopia, o momento no qual

vigilância interna e externa ao indivíduo se fundem numa coisa só.

Um dos principais movimentos dessa utopia, como aponta Sfez, vai na direção de

uma superação da distinção entre o ser e a aparência, herdeira das antigas metafísicas.

Nelas, a aparência, ligada indissoluvelmente aos conceitos de externo e de contingência,

diria respeito ao que é visível ou possível de ser captado pelos sentidos, e a tudo que é

dispensável, volúvel, perecível. A essência do ser estaria em outra parte, no interior, na


“alma” imaterial, que seria a identidade última de cada indivíduo, necessária mesmo para

que ele fosse assim nomeado.

Tal distinção penetrou fundo na modernidade, jogando papel fundamental na

caracterização do ser psicológico, interior, profundo, depositário das verdades

incontestáveis, mas inacessíveis diretamente. Já o apreço pela aparência e pela matéria tinha

caráter de negatividade, tomado como correlato de superficialidade psíquica, banalidade,

pouca complexidade. Na utopia da saúde perfeita, entretanto, há equivalência entre ser e

materialidade, e é o vocabulário desta última que dá as cartas. Os atributos corporais não

são mais guardiões de uma identidade interior: eles são a própria identidade. Se a metáfora

da interioridade persiste é porque ela foi despida de suas propriedades simbólicas -

portanto, não pode mais ser chamada de metáfora. Os genes são os melhores exemplos

dessa interioridade detectável pelas biotecnologias. Intervir neles é intervir sobre o próprio

eu, mas é também agir sobre o que carrega a “alma” da espécie humana, e por isso a

genética é a arena privilegiada dessa utopia. Em seu campo, se conjugam a identidade

(material, mas este adjetivo já se torna redundante) do ser e também a transmissão das

características do Homem.

A medicina torna-se cada vez mais uma prática preventiva. No âmbito do indivíduo,

pretende perceber as doenças nos genes antes que elas surjam como sintomas no corpo; no

âmbito da espécie, há a preocupação em cuidar da carga hereditária que é transmitida às

futuras gerações. Ao mesmo tempo que a tradicional prática do médico clínico se vê em

declínio, pois seu saber tem que ser compartilhado, se não subordinado, com uma série de

outros experts (geneticistas, bioeticistas, etc.), a tecnologia médica e seu ideário vão se

ampliando e tomando conta do campo antes dedicado às “humanidades”. Radicaliza-se,


assim, a submissão das normas culturais ao projeto fisicalista. Porém, no lugar da clássica

prescrição médica, escrita às pressas com letras quase indecifráveis num bloco de papel,

coloca-se a informação pré-inscrita (portanto também prescrita) no código genético. Seu

deciframento não é mais conseguido às custas do hábito do olhar do clínico, do leigo ou do

balconista da farmácia. Só a ciência possuiria o instrumental para ler o texto original da

Natureza, permitindo antecipar e prever não apenas doenças, mas comportamentos, traços

de personalidade, toda a vida, enfim.

O Projeto Genoma é a face mais visível e pretensamente triunfante (mas não a

única) da utopia da saúde perfeita. Por meio dele se tenta validar a idéia de que a verdade

nada tem a ver com valores, mas está contida concretamente nos genes, que são ao mesmo

tempo matéria e aquilo que torna possível a matéria surgir e se perpetuar. Quando

potencialmente nada escapa de seus domínios, passamos a nos submeter, segundo Sfez, a

dois subprodutos da genética, tornados então seus sinônimos: o determinismo e o

reducionismo.

Nesse campo, o reducionismo metodológico, “prática que consiste em caracterizar

um sistema ou um processo em termos de suas menores unidades funcionais”(ibid., p.173)

e que mostra-se útil e necessária a todo saber científico, une-se ao reducionismo ontológico

ou metafísico, que enxerga tais unidades como o fundamento último do “real”. Reforça-se,

assim, uma estreita identidade da condição humana com os atributos genéticos: encontrar e

decifrar o genoma corresponderia a entender e explicar o homem. Com a ajuda de seu

irmão gêmeo, o determinismo, todo fenômeno humano passa a ser entendido como causado

privilegiadamente, quando não exclusivamente, pelo código genético, já que ele, a

neuroquímica, a anatomia mesma, são percebidos como a razão de todas as doenças e


comportamentos normais ou desviantes. A posição reducionista confirma uma vocação

totalitária quando alardeia ter acesso direto à “essência” das coisas e dos fenômenos, sendo

incompatível com qualquer outra descrição, imediatamente tida como menos verdadeira e,

portanto, menos científica. Não deixa de ser irônico observar que, num mundo no qual o

corpo reina aparentemente desvinculado das determinações históricas das coletividades, os

genes são a “alma” que aprisiona, ao contrário do “ser interior” romântico cujo

desvelamento libertava o indivíduo das amarras da regra social artificial. Estando tudo

inscrito em seus genes, o cuidado e a atenção ao corpo não são mais escolhas da vontade

(apesar de assim parecer ao individuo), mas condições imperativas para se conquistar uma

felicidade possível e pré-moldada por meio da leitura de previsibilidades de doenças no

interior das células. Mesmo decisões como a de encerrar uma vida antes de seu nascimento

são apenas parcialmente fruto do livre-arbítrio. A vontade, também aqui, é subjugada ao

determinismo genético, em seu intuito de eliminar uma condição indesejável detectada

precocemente, que acenaria com riscos inaceitáveis para o futuro ser e, no limite, para toda

a espécie.

A hegemonia do determinismo e reducionismo biológicos, segundo Sfez, traz

consigo o risco de um novo eugenismo, sem o fantasma do extermínio das pessoas menos

favorecidas, mas sustentado pelas tecnologias que maximizam as potencialidades de saúde

e minimizam antecipadamente os riscos de doença. O ideal de uma “criança perfeita”, por

exemplo, mesmo quando não aparece diretamente, surge a partir das estratégias de evitação

das diversas “imperfeições” que o conhecimento do código genético permitiria mapear. A

noção de perfeição, longe de designar atributos morais como retidão, coerência, prudência e

solidariedade, passa a ser diretamente associada à de saúde. A saúde-perfeição do indivíduo


é rapidamente convertida para a das coletividades, e vice-versa. Em consequência, a ciência

médica

“logo se torna controle social (prevenção da violência ou das drogas


pela química ou pela cirurgia, controle da depressão, etc). Por isso
mesmo os problemas sociais se tornam problemas individuais e os
comportamentos de desvio, totalmente despolitizados e
dessocializados. A figura do diabo é assim evacuada do social e
reificada nos genes. O diabo está em nós” (ibid., p. 179).

Advogando sua neutralidade moral, a ciência e seu instrumental biotecnológico

almejam privar a cultura de uma lógica própria, tornando-a refém da linguagem da biologia,

da qual o corpo individual seria a única fonte de leitura, um texto aparentemente vazio de

sentido, mas repleto de implicações na vida das pessoas, na construção de suas identidades

e na organização de seus agrupamentos coletivos.

Rabinow (1991) afirma estar havendo uma rearticulação entre o pólo corporal e o

das populações no campo do biopoder, que outorga às “práticas de vida” o lugar

preferencial de produção de novos saberes e poderes. Também para ele a nova genética e

seu filho dileto, o Projeto Genoma, seriam os grandes representantes desse rearranjo

paradigmático, provocando mudanças nas práticas e éticas coletivas. Sua lógica passa a

contaminar todo o tecido social, já que ela acena com a possibilidade de compreender e

intervir no corpo como nenhuma outra havia conseguido antes.

Rabinow não ignora a existência dos projetos eugênicos, que elegeram o campo da

biologia como seu território de intervenção, mas argumenta que esses eram “projetos

sociais moldados em metáforas biológicas” (ibid., p.143), ou seja, não nasceram dentro da

ciência médica, mas a utilizaram para respaldar ideologias ou sistemas políticos. Seguindo
seu raciocínio, pode-se afirmar que mesmo estratégias preventivas não eugênicas, tais as

implementados por psiquiatras e outros “patologistas sociais”, como descreveu Lasch,

também foram projetos eminentemente sociais, apropriando-se da lógica da terapêutica

médica, para, a partir dela, autorizar-se a intervir profilática ou curativamente no interior

das famílias. Diferente de tudo isso, a nova genética traz a promessa - ainda em seus

primórdios, mas já prenha de efeitos - de tornar-se, junto com outras biotecnologias

nascentes, uma rede autônoma de circulação de conceitos que inauguram uma nova

autoprodução identitária, desembocando naquilo que Rabinow denomina de

“biosociabilidade”. Em seus domínios, abre-se a possibilidade da futura superação da

separação entre natureza e cultura, já que a primeira se mostrará maleável e passível de ser

refeita através da tecnociência, e a última passará a organizar-se segundo parâmetros

oriundos da natureza. À medida que isso ocorre, vai se produzindo uma “dissolução da

categoria do social”. O agrupamento dos indivíduos começa a não mais tomar como

referência o contexto de seu ambiente cultural ou suas características psicológicas, nem

critérios como religião, classe social, nação de origem ou raça, mas sim determinadas

marcas corporais ou comportamentos compartilhados. Surgem novas práticas preventivas,

que para Rabinow nada mais são que um “mapeamento de riscos”. Tornando obsoleta a

necessidade de vigilância direta de indivíduos ou populações consideradas “perigosas”, a

soma não contextualizada de diversos fatores impessoais dão a medida da provável

ocorrência de doenças ou anomalias, projetando fatores de risco que aglutinam pessoas

entre as quais não se observava nenhum outro vínculo ou afinidade. A sociabilidade rende-

se à biologia, e portar algumas marcas corporais se mostra suficiente para realocar a pessoa

grupal e subjetivamente.
Ortega (2002) também sublinha que o homo medicus, produto e produtor desse

processo, vive num mundo no qual a saúde, o gene, a bioquímica cerebral, transformam-se

em padrões para avaliar fenômenos culturais de todo o tipo. Na ideologia do healthism, os

critérios de mérito e reconhecimento social agora se baseiam na aquisição e superação de

parâmetros biológicos, ao mesmo tempo que diversas atividades lúdicas, esportivas ou

sexuais passam a ser encaradas como práticas de saúde. A fragmentação política e a

reordenação do campo da ação pública em torno dos referenciais corporais criam novos

grupos de sociabilidade, como os descritos por Rabinow. As pessoas passam a organizar-se

em torno de marcas identitárias biológicas, como as performances corporais, o nível de

saúde ou uma doença compartilhada. Uma primeira grande distinção opera a ordenação

dessa cultura, opondo o mundo dos saudáveis (identificados como os novos guardiães da

moral) contra o universo decadente dos glutões, fumantes e sedentários, os quais são

condenados por prejudicar não só a si, mas a toda a espécie. Mesmo dentro do universo dos

“adequados” às prescrições do fitness, da genética e da medicina, pode-se diferenciar

grupos menores, subordinados a marcas corporais muito específicas. No campo das

patologias, os considerados “desfavorecidos” biologicamente não se rebelam contra esse

modelo. Começam, então, a ser criados grupos de pessoas que compartilham o mesmo

diagnóstico, e que a Natureza uniu por marcas discerníveis na superfície de seus corpos, nas

trilhas bioquímicas de seus cérebros ou na sua “alma” genética intracelular. Em torno da

identificação do gene A, que determina (mesmo que apenas supostamente) a patologia B,

novas práticas individuais e grupais serão estabelecidas. Grupos de portadores de tais

distúrbios genéticos se organizarão, difundindo a “verdade” do que é carregar esse traço


inscrito nos corpos, estimulando a troca de experiências e definindo estilos de vida entre os

“iguais”.

Tudo isso indica que está havendo a passagem de uma cultura na qual a identidade -

gestada nos ambientes relativamente estáveis de trabalho e nos limites da cultura emocional

familiar - estava referida, preferencialmente, à dimensão psicológica, e se apoiava no

desenvolvimento emocional interior, para outra na qual o critério de normal ou normativo

está referido quase exclusivamente aos predicados corporais. Dessa forma, a subjetividade

se cola no corpo, e fenômenos sociais e psíquicos passam a ser descritos em linguagem

fisicalista. Posto que o biológico torna-se o suporte da auto-identidade, os indivíduos vão se

ajustando a uma dada característica corporal ou doença, que passa a definir e regular as

formas de subjetivação. Tal tendência se dirigiria, assim, para a formação de

“bioidentidades” - termo que englobaria os processos de subjetivação correspondentes às

formas de ascese contemporâneas, denominadas por Ortega de “bioasceses”. Segundo esse

autor, essas não parecem visar a liberdade e a transgressão, mas a disciplina e a

uniformidade, e “fundem corpo e mente na formação da bio-identidade somática” (ibid., p.

167). A prática ascética clássica era dualista, visando tanto o corpo quanto a alma. Na

verdade, o cuidado que incidia sobre o corpo não o tomava como finalidade última, mas

visava, no fundo, a uma ascese da alma, que se articulava indissociavelmente à vida social.

Ortega esclarece a distinção entre as asceses clássicas e as atuais bioasceses da seguinte

forma:

“Nas asceses clássicas greco-romanas e cristãs (...) o corpo possuía


sempre um valor simbólico, estava na base da constituição de um
self dono de si, que mediante as práticas de ascese corporal e
espiritual, legitimava-se para a vida política, atingia um
conhecimento de si ou se auto-anulava na procura de Deus. Em
contrapartida, nas modernas bio-asceses e tecnologias do self o
corpo obtém um novo valor. Na sua materialidade sofre um
desinvestimento simbólico: já não é mais o corpo a base do cuidado
de si; agora o eu existe só para cuidar do corpo, estando ao seu
serviço. Predicados mentais como vontade são definidos segundo
critérios materiais e corporais: vontade ou fraqueza de vontade
(acrasia) obtêm um referente fisicalista, força e falta de vontade
referem-se exclusivamente à tenacidade e à constância, ou à
debilidade (desânimo) na observação de uma dieta, na superação
dos limites biológicos e corporais, etc.” (...) Dessa maneira, sentir-
se bem fisicamente, maximizar os ganhos de prazer, desafiar os
limites estabelecidos de satisfação, força ou potência física se
tornam os equivalentes das asceses clássicas, as quais visavam
atingir a sabedoria, coragem, prudência, bondade, conhecimento de
si, superação de si, etc.” (ibid., p.167-168).

Se a contemporaneidade tem exigido a recriação identitária permanente, o processo

de “somatização da subjetividade” acaba redundando numa homogeneização dessas

identidades, num aparente paradoxo que resulta na anulação do espaço entre os indivíduos,

provocando a morte da diversidade. A única forma de sociabilidade restante, a

biosociabilidade, tem caráter apolítico e individualista: “O interesse pelo corpo gera o

desinteresse pelo mundo; a hipertrofia muscular se traduz em atrofia social” (ibid., p. 173).

No ascetismo clássico, ao contrário, o cuidado de si tinha um forte viés social, não

visando a “purificação” de um eu que desprezava suas implicações coletivas. O asceta

cumpria um definido e valorizado papel social, o cuidado de si implicava em reciprocidade

com a comunidade e potencializava as preocupações políticas, permitindo que relações

interpessoais se intensificassem. Cuidar de si permitia cuidar dos outros e se preocupar com

o bem comum. Se o registro da bioascese funda uma comunidade, a do corpo, esta pouco

ou nada preserva da inquietação com o destino e o bem-estar da coletividade para além


daqueles traços fisícos compartilhados. Os ideais sociais mais abrangentes são esquecidos e

a política se preserva, no máximo, de forma fragmentada, visando interesses específicos de

grupos biopolíticos.

A ascese, no referencial das bioidentidades, continua sendo exercício da vontade,

porém esta não é mais livre, mas serva dos determinismos e reducionismos biológicos.

Segundo Ortega, as práticas ascéticas clássicas costumavam ser um desafio aos modos de

existência prescritos; as atuais nada mais fazem que marcar a submissão do homem à

uniformidade e a modos conformistas de ser. O alvo da ascese é desviado, já que o desfrute

de sensações substitui a introspecção e o cultivo dos sentimentos como critério de avaliação

subjetiva. Para se atingir os ideais de saúde, cuja busca se transforma num fim em si

mesmo, se exige a obediência a novos padrões de disciplina, e sua mais completa tradução

pode ser encontrada na doutrina do fitness. Saúde e boa vida tornam-se sinônimos: o

desleixo com a primeira impossibilita o desfrute da segunda. A obediência constante e

vigilante às condutas “saudáveis” vai se estabelecendo como base de uma moral que não

mais se consegue extrair do campo da tradição e de outros marcos culturais. Quando a

corporeidade e os atributos externos começam a substituir os referenciais clássicos da

interioridade na constituição subjetiva do indivíduo contemporâneo, o corpo se torna o

lastro possível de uma débil tentativa de se estabelecer uma narrativa de si, uma biografia.

O indivíduo tenta combater os efeitos da superficialidade de sua experiência de mundo e de

si, descrita acima por Sennett, recorrendo à superfície corporal como panacéia para a crise

de identidade na qual se vê enredado. O corpo não guarda mais segredos; seus recantos

anatômicos tornam-se públicos ao serem vasculhados por scanners; seus mais

microscópicos sítios, como o núcleo celular, são violados e expostos pela genética. Esta
superficialização de toda a estrutura corporal espelha e reforça o desmonte do sujeito

interior: nenhuma psicologia consegue fazer frente ao oferecimento do corpo como início e

fim da identidade pessoal. Com isso, mesmo as formas de sofrimento perdem sua dimensão

de experiência integrada, ao mesmo tempo social, histórica e corporal, inscrevendo-se

quase exclusivamente neste último registro, como demonstram as anorexias, bulimias,

fobias e drogadições .

Os elos reais e imaginários entre o grande arranjo cultural que patrocina os estilos

bioidentitários de viver e sua expressão cotidiana são efetuados por uma série de saberes e

instâncias sociais. Bezerra Jr. (2000) comenta o quanto o léxico da biologia, transformada

em “ciência-paradigma” no cenário atual, penetra no vocabulário do homem comum,

estimulado tanto pelo enorme avanço das intervenções biotecnológicas sobre o organismo

humano quanto pela formação de um mercado global preparado para seu consumo. A

indústria farmacêutica torna-se um dos pólos mais visíveis, poderosos e lucrativos do novo

capitalismo, transformando-se em ponta de lança de um “biomercado” a exigir que os

consumidores não só tenham dinheiro para usufuir de suas benesses, mas principalmente

que desenvolvam

“uma forma subjetiva de se relacionarem com os mal-estares e o


sofrimento da existência que transforme o recurso às intervenções
biológicas não numa opção especial no meio de várias alternativas,
mas que se apresente como o meio mais eficaz e legitimado de fazer
frente às injunções da vida (...). É preciso intervir decisivamente
junto ao restrito contingente dos que efetivamente podem consumir
esses produtos e tecnologias, e junto aos que viabilizam esses fluxos
de consumo com o objetivo de transformar esses produtos e
serviços em itens indispensáveis à vida” (ibid., p. 163).
Uma diversidade de agentes e agências, prossegue o autor, toma parte deste

processo que entrelaça consumo, mudanças subjetivas e corporalidade. Além daqueles

ligados diretamente à indústria farmacêutica - seus homens de marketing, de pesquisa,

representantes que assediam os médicos, etc. -, jornais e revistas semanais, livros de “auto-

ajuda” ou “divulgação científica”, consultores de programas de TV, profissionais de saúde e

educação, associação de pais de portadores de transtornos, todos contribuem na busca por

um sentido biológico para os sofrimentos humanos, por aumento de performance física ou

pela saúde perfeita. “É necessária uma atmosfera social permeável para que as estratégias

das indústrias do bem estar viabilizem e legitimem sua presença agressiva maciça junto à

população” (id.), conclui.

A psiquiatria e suas categorias diagnósticas têm sido um meio de transmissão da


cultura bioidentitária ao cotidiano dos sujeitos. Dizendo-se “remedicalizada” - ou seja,
afastando-se das influências oriundas das ciências humanas, em especial da psicanálise -
nas últimas duas décadas, e privilegiando as concepções biológicas na compreensão de
distúrbios mentais, ela tem reforçado um processo de “medicalização” de condutas e
estados emocionais. Tem sido criado um número progressivamente maior de categorias
psiquiátricas a cada nova classificação, e suas descrições têm avançado sobre áreas que nem
sempre eram tidas como passíveis de abordagens fisicalistas, sendo, no máximo, alvo de
compreensões ou intervenções psicológicas. No próximo capítulo será apresentado o
Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDA/H), cuja grande presença no
discurso médico e na mídia atuais reflete e alimenta essa “atmosfera social permeável” da
qual falou Bezerra Jr., seduzindo pais, educadores e outros indivíduos. Fortemente
associado à prescrição de psicofármacos - especialmente um, o metilfenidato,
comercialmente conhecido como Ritalina - e supostamente localizado no cérebro e
determinado pela genética, este transtorno tem substituído leituras psicológicas,
pedagógicas e morais na descrição de comportamentos considerados inadequados pelo
excesso de ação ou pela carência de atenção, incluindo em seus “critérios diagnósticos” um
grande número de adultos e crianças. Nos seus domínios, condutas e afetos são reduzidos a
epifenômenos das atividades das redes neuroquímicas cerebrais. Em torno dele,
bioidentidades vêm sendo construídas e formas de biossociabilidade se estruturam. O
TDA/H, assim, torna-se um desses instrumentos privilegiados por meio dos quais as amplas
mudanças culturais encarnam-se no dia-a-dia das pessoas, e por isso seu estudo pode
enriquecer a compreensão dos modos e contextos da instalação de novas formas de
subjetivação corporal.
 HIPERATIVIDADE, DESATENÇÃO E IMPULSIVIDADE: O
TDA/H SEGUNDO A PSIQUIATRIA

2.1- A construção do TDA/H

Costuma-se atribuir ao pediatra inglês George Frederic Still, em três palestras no


Royal College of Phisicians, em 1902, o pioneirismo de descrever como condição médica
diversas condutas infantis que, até então, eram tratadas como “maus comportamentos”. Still
havia estudado um grupo de vinte crianças, numa proporção de três meninos para cada
menina, que demonstravam ausência de “volição inibitória”, apresentavam uma atitude
desafiadora e não reconheciam regras, sendo agressivos e indisciplinados, desatentos e
impulsivos, destemperados e voluntariosos. Ele observava que todas haviam sido criadas
em ambientes familiares que considerava bons, tendo recebido cuidados parentais
satisfatórios. Por isso, sua hipótese era a de que suas condutas eram um “defeito no controle
moral” herdado geneticamente de seus pais, pois também foram encontradas patologias
psiquiátricas, como o alcoolismo e a depressão, em membros de suas famílias, além de uma
maior incidência dos mesmos comportamentos descritos nas suas crianças (Barkley, 1997;
Diller, 1998; Hallowell e Hatey, 1999).
As consequências da pandemia de encefalite, ocorrida nos anos de 1917-18,
ajudaram a reforçar a hipótese de uma causa biológica para tais distúbios de conduta
infantis. Durante esse período, e nos 10 anos que se seguiram, as crianças atingidas
mostravam como sequela uma marcante hiperatividade, impulsividade e comportamento
perturbador - quadro denominado por Holman, em 1922, de “desordem pós-encefalítica do
comportamento” -, em contraste com muitos adultos que passaram a apresentar sintomas
parkinsonianos como imobilidade crônica. Situações como esta contribuiram para
estabelecer a categoria de lesão cerebral mínima, expressão consagrada por Strauss e
Lehtinen, em 1947. Crianças que apresentavam comportamentos semelhantes às das vítimas
da encefalite passaram a ser consideradas portadoras de um dano na estrutura cerebral que
era apenas presumido (Cypel, 2000; McCracken, 2000). Esse termo passa a explicar não
apenas transtornos de comportamento, mas também os de linguagem e aprendizado. Porém,
com a dificuldade de generalização de hipóteses localistas cerebrais e a persistência da
impossibilidade, na grande maioria dos casos, de identificar uma lesão no cérebro a
justificar os distúrbios no comportamento, propôs-se, a partir de um simpósio promovido
pela Spastic Society em 1962, em Londres, a denominação disfunção cerebral mínima -
DCM (Hallowell e Ratey, 1999; Cypel, 2000; Werner Jr., 1997, 2001). Foi sob a
imprecisão desse termo, o qual sofreu espetacular disseminação no campo médico e entre
os leigos, a partir dos EUA, nos anos 60 e 70, que passou a se abrigar crianças com conduta
hiperativa, desatenta, anti-social ou com problemas de aprendizagem. Sobre todas elas caía
a suspeita ou o desejo de que portassem um mal funcionamento ou imaturidade em seus
cérebros, localizando seus desvios na biologia.
Considerada por Wender (1974) “provavelmente a entidade diagnóstica mais
comum vista em clínicas de orientação infantil” (ibid., p. 235), a DCM foi assim descrita
pelo U.S. Departament of Health, Education and Welfare, em 1966:

“o termo disfunção cerebral mínima refere-se a crianças com inteligência


geral próxima da média, média ou superior à média, com distúrbios de
aprendizagem e/ou de comportamento, que variam de grau leve a severo,
associados a desvios de funcionamento do sistema nervoso central. Esses
desvios manifestam-se por variadas combinações de déficits na
percepção, conceituação, linguagem, memória e controle da atenção, dos
impulsos ou da função motora. Essas anomalias podem ser decorrentes de
variações genéticas, irregularidades bioquímicas, sofrimento perinatal,
moléstias ou traumas sofridos durante os anos críticos para o
desenvolvimento e maturação do sistema nervoso central ou de causas
desconhecidas. A definição admite a possibilidade que privações severas
precoces possam resultar em alterações permanentes do sistema nervoso
central. Durante os anos escolares uma variedade de incapacidades de
aprendizagem constitui a mais importante manifestação do que é definido
por disfunção cerebral mínima”(Clements e Peters, apud Werner Jr.,
2001, p. 107).

À medida que os pais passam a contar com essa categoria diagnóstica para explicar

as atitudes ou reações desviantes de seus filhos e as escolas a incluem entre os motivos do

fracasso acadêmico de seus alunos, observa-se - em consonância com a descrição feita por

Lasch da proletarização da paternidade - uma expansão do mercado de cuidados

profissionais dirigidos à infância. Além de reforçar a ingerência de psiquiatras e psicólogos

no cotidiano da família e da escola, a DCM patrocinou a emergência da especialidade de

psicopedagogia, ajudando a disseminar e institucionalizar a noção de “dificuldades

específicas na aprendizagem”, à qual o diagnóstico comumente se via associado. Reduzindo

essas dificuldades à dimensão individual, (a criança e sua estrutura cerebral) ao excluir da

categoria os problemas de aprendizado que se deviam a questões emocionais ou desajustes

ambientais, a psicopedagogia oferecia-se como terapêutica, abrangendo aspectos

preventivos (que envolviam desde “exercícios de atenção” até os de “relaxamento ou volta


à calma”) e reeducativos, enquanto admitia entre seus objetivos o “controle de disciplina”

na sala de aula (Silvestre, Azzi e Ferraz, 1975). Outra especialidade que floresceu ao seu

lado foi a de psicomotricidade. Entendendo que na DCM havia “falta de coordenação entre

o que o sujeito se propõe a fazer e a respectiva ação, o que dificulta a expressão através do

corpo” (Pimenta, 1975, p. 156), resultando em hiperatividade, problemas de organização

temporal e orientação espacial, percepção visual e esquema corporal, os psicomotricistas

também propunham um trabalho de reeducação para corrigir tais disfunções. Por fim, a

figura da DCM reforçou a intervenção do neurologista clínico num campo até então

desconhecido para a maioria desses especialistas, como comenta Cypel (2001), atribuindo

ao fato um aspecto positivo:

“Essa qualificação nosológica do DCM foi extremamante importante e


merece ser destacada como marco histórico, pois permitiu ao
neuropediatra (...) o interesse pela caracterização de discretas alterações
relacionadas com as atividades nervosas superiores, passando a estudar
com mais profundidade o aprendizado escolar, a aquisição da linguagem,
a atenção, as percepções, a memória e outras funções importantes e
relacionadas ao desenvolvimento da criança” (ibid., p. 14, grifo nosso).

A inclusão de tais problemas infantis no campo de ação do neurologista respaldou,

ainda, a terapêutica medicamentosa dos comportamentos hiperativos e impulsivos. Sem

contar com recursos de explicação e intervenção exceto os oriundos da biologia, a

especialidade ajudou a elevar os psicofármacos a eixo do tratamento de tais condições.

Considerada por muitos uma categoria diagnóstica imprecisa, que englobava

situações clínicas diversas e por vezes discrepantes, a DCM paulatinamente foi sendo

substituída por outras noções. As dificuldades em definir claramente seu substrato

neurológico, entre outros fatores, fizeram com que essa entidade cedesse o lugar para
categorias mais pragmáticas e descritivas. Surgiam novos diagnósticos que abriam mão da

expressão “lesão” ou “disfunção” cerebral em sua denominação e, embora sem dispensar

uma postulação etiológica (em geral neurológica), enfatizavam a sintomatologia mais

aparente e marcante. O empirismo subjacente ao diagnóstico de DCM, que fazia com que

diferentes dificuldades e sintomas (motores, de atenção, cognitivos e de aprendizagem, do

controle dos impulsos, sinais neurológicos leves, etc.) fossem agrupados a partir de sua

identificação na clínica, persistiu nas classificações subsequentes. Porém, notava-se agora

um esforço de diferenciação, isolando-se “patologias” como os distúrbios de linguagem e

de aprendizado daquelas marcadas pela hiperatividade. Essa delimitação mais específica

proporcionou aos quadros uma maior validade e confiabilidade científicas, preparando-os

para a desejada adequação aos padrões da medicina tecnológica e da psiquiatria biológica

que iriam se tornar referencial hegemônico do campo nas décadas seguintes.

Um nítido movimento de estreitamento do foco sintomático em torno da

hiperatividade pode ser identificado nesse momento, encorajado pelos efeitos das

medicações estimulantes na diminuição das condutas hipercinéticas. Já em 1957, Laufer,

Denhoff e Salomons haviam proposto a categoria de “síndrome do impulso hipercinético”,

realizando a primeira tentativa de descrever uma estrutura cerebral específica como a sede

da patologia. Segundo sua teoria, o tálamo, nas crianças acometidas, não realizava

corretamente a tarefa de “filtragem” dos estímulos que chegavam ao sistema nervoso

central. Pouco tempo depois, em 1960, surgia o diagnóstico de “síndrome da criança

hiperativa”, designando crianças que apresentavam atividade motora muito acima do que

seria esperado para sua faixa etária. Stella Chess, uma das defensoras da idéia, excluiu a
possibilidade de dano cerebral, mas a considerou como uma forma de “hiperatividade

fisiológica” de circuitos neurológicos (Barkley, 1997; Hallowell e Ratey, 1999).

A inclusão da categoria “reação hipercinética da infância” na 2ª edição do

Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM-II), da Associação Psiquiátrica

Americana (APA), em 1968, demonstrava o rápido respaldo que essa nova descrição passou

a receber da comunidade científica. Entretanto, a presença da expressão reação indicava a

influência que noções psicanalíticas ainda exerciam na compreensão do transtorno. Apesar

de vários expoentes e pesquisadores demonstrarem sua crença numa causalidade biológica,

a ascendência da psicanálise na psiquiatria americana desse período permitia conciliar o

reconhecimento da existência da síndrome com a postulação de fatores ambientais e

psicológicos envolvidos em sua origem, entendendo-se que a inquietude da criança poderia

ser causada por eventos de sua vida familiar e social.

Durante a década de 70, o alvo das pesquisas começou a deslocar-se da

hiperatividade para as dificuldades de atenção e do controle dos impulsos, especialmente

nos trabalhos de Virgínia Douglas. Essa autora identificou quatro déficits envolvidos na

síndrome: na manutenção da atenção e esforço; na inibição do comportamento impulsivo;

na modulação dos níveis de vigília e no adiamento de recompensas, acarretando uma

inclinação para buscar reforço imediato (Barkley, 1997). Sua descrição, junto com a de

outros autores, foi fundamental para que, na terceira edição do DSM, em 1980, a entidade

fosse renomeada de “distúrbio de déficit de atenção (DDA)”, que incluía um subtipo com e

outro sem hiperatividade. Segundo Diller (1998), a ênfase na atenção ajudou a distinguir

este transtorno de outros nos quais também se podia encontrar condutas hiperativas, como o

autismo ou os transtornos de ansiedade. O mais relevante, entretanto, é que tal mudança


fundamentou a ampliação da abrangência do diagnóstico, pois permitiu a inclusão de

crianças sem nenhuma hiperatividade, aparentemente “tranquilas”, mas com dificuldades

em manter o foco de vigilância em tarefas escolares. Da mesma forma, também facilitou

que os adultos passassem a figurar entre os portadores do transtorno. Não parece casual ser

esse o momento a partir do qual o TDA/H e a Ritalina tornam-se praticamente

indissociáveis: a detecção do primeiro levará, cada vez mais, à indicação da prescrição da

última. Com um público-alvo ampliado, cresce o interesse da indústria farmacêutica neste

diagnóstico. A Ritalina, entretanto, mostrou-se incapaz de funcionar como prova

diagnóstica, havendo fortes indícios de que a ação dos estimulantes não difere muito entre

pessoas com ou sem o transtorno. Isso, por um lado, encorajou os esforços pelo

aprimoramento de critérios descritivos para defini-lo, mas, por outro, tornou mais imprecisa

a eleição daqueles que devem ou não receber o fármaco.

Após o surgimento de críticas sobre o exagerado destaque dado à atenção, a

hiperatividade recupera sua importância na revisão da classificação (DSM-III-R), editada

em 1987, na qual o distúrbio ganha sua atual denominação: “transtorno do déficit de

atenção/hiperatividade”. A 4ª edição do DSM, de 1994, apresenta o transtorno dividido em

2 subgrupos, um predominatemente desatento e outro hiperativo/impulsivo, além de admitir

um tipo combinado. Entretanto, a Classificação Internacional de Doenças (CID), da

Organização Mundial da Saúde, preserva a ênfase na hiperatividade. A CID-9, de 1978,

designava a condição de “síndrome hipercinética da infância” e a atual edição (CID-10),

publicada em 1992, a nomeia de “transtorno hipercinético”.

Apesar das variações nas denominações, as descrições do DSM e da CID conservam

mais semelhanças que discrepâncias entre si, traduzindo a pretensão de se validar uma
categoria diagnóstica homogênea e universalmente aceita. Para que assim seja, sustenta-se o

caráter “ateórico” dessas descrições nosológicas, acreditando ser isso uma vantagem

metodológica na abordagem das patologias mentais. Serpa Jr. (1994), em artigo sobre a

“natureza” das categorias psiquiátricas, classifica como “insustentável” tal premissa.

Tomando como referência as críticas feitas por Lock e Kleiman, ele comenta o quanto o

DSM-III mostra-se impregnado de princípios caros à cultura americana e adverte que a

crença na possibilidade de ser ateórico já implica, por si, numa posição teórica e valorativa:

“a própria aspiração por objetividade, manifestada pela ênfase em sinais e sintomas

descontextualizados, é uma posição carregada de valor e culturalmente determinada” (ibid.,

p. 486). Este autor aponta o pressuposto essencialista que subjaz às atuais classificações

psiquiátricas e que tem como principal consequência a idéia de que diferentes descrições de

patologias podem ser reduzidas a uma delas - aquela que melhor corresponda à realidade

última, supostamente imutável no tempo e espaço, e que estava apenas à espera de ser

“descoberta” pela ciência. Essa concepção encaixa-se perfeitamente na empreitada

reducionista dos arquitetos do TDA/H. A pesquisa psiquiátrica estaria nos aproximando da

realidade última do transtorno, entendido como entidade “natural”, a-histórica e a-cultural,

cuja verdade encontra-se repousando na bioquímica cerebral e acorrentada à genética da

espécie.

As diferenças culturais, ignoradas na maioria das categorias das classificações

atuais, demonstram seu peso quando se observa como se recorre ao diagnóstico de TDA/H

em diferentes lugares. Segundo Diller (1998), a psiquiatria européia exige a presença de

conduta hiperativa marcante e ubíqua para caracterizar o transtorno, tendendo a valer-se

menos do uso de medicação. Barkley (1997) acrescenta que, enquanto nos EUA crianças
inquietas e que agem irrefletidamente serão consideradas como tendo TDA/H - de causas

predominantemente biológicas - na Europa as mesmas crianças podem ser tratadas como

tendo um distúrbio comportamental ou de conduta devido a causas ambientais, como falhas

nos cuidados parentais ou precariedade social. Dados estatísticos contraditórios sobre a

prevalência do TDA/H, analisados mais à frente, demonstram o quanto a noção de uma

entidade universal, que se faria presente de forma razoavelmente homogênea em todo o

planeta, é de difícil sustentação.

No próprio ambiente norte-americano, alguns atores, dentro e fora do círculo

médico, têm questionado publicamente o diagnóstico de TDA/H ou, outras vezes,

reconhecem a categoria mas criticam o uso da Ritalina, advogando a prescrição de

mudanças dietéticas ou medicamentos naturais. Tais posições provocam intensa reação do

establishment psiquiátrico, que as condena como anti-científicas e descarta fatores

ambientais ou culturais determinando a gênese do transtorno. Mesmo no interior desse

establishment, embora a aceitação do diagnóstico não seja colocada em questão, diferenças

substanciais surgem quando se trata de considerar ou não o TDA/H como uma entidade

homogênea. Alguns autores, como Barkley (1997), julgam que a forma desatenta, mais

“internalizante” que “externalizante”, portaria características e fisiopatologia distintas da

forma hiperativa-impulsiva, ambas sendo, na verdade, distúrbios diferentes.

A fragilidade do TDA/H como uma “doença” costuma aparecer, indiretamente, na

necessidade de afirmá-lo como tal. Enquanto se faz dispensável defender que outras

entidades médicas (como a cirrose hepática, miopia ou epilepsia) são patologias “reais”,

precisa-se insistir que “o TDAH é um transtorno médico verdadeiro, reconhecido como tal

por associações médicas internacionalmente prestigiosas (...)” (Carta de Princípios, 2003).


Uma dessas “associações prestigiosas”, a AMA (American Medical Association)

preocupou-se em alertar: “O TDA/H é um dos transtornos mais bem estudados na medicina

e os dados gerais sobre sua validade são muito mais convincentes que a maioria dos

transtornos mentais e até mesmo que muitas condições médicas” (Goldman et al., apud

Rohde e Mattos, 2003, p. 11). Enunciados como esses tentam desprezar, entre outras coisas,

o papel dos jogos políticos internos e externos a essas sociedades na definição do que será

ou não considerado como doença.

2.2 - A atual descrição do transtorno

2.2.1 - O TDA/H das classificações psiquiátricas

O TDA/H corresponde a uma síndrome caracterizada por comportamento hiperativo

e inquietude motora, desatenção marcante, falta de envolvimento persistente nas tarefas e

impulsividade. Esses sintomas devem ser evidentes em mais de uma situação social e se

mostrar excessivos no contexto que ocorrem, em comparação com o que seria esperado de

outras pessoas com a mesma idade e nível de inteligência. São mais comuns em meninos e

costumam iniciar-se entre os 3 e 7 anos de idade. Em geral os sintomas persistem nos anos

escolares e em metade dos casos parecem continuar na idade adulta. Apesar dos aparentes

pontos de discórdia, há uma tendência a que a visão do TDA/H difundida pela APA se

torne a mais usada e aceita pela comunidade científica americana e por países fortemente

influenciadas por ela, como o Brasil. Em seu DSM, o diagnóstico do transtorno é realizado

pela soma de sintomas ou critérios, que são organizados em dois grupos: desatenção e
hiperatividade/impulsividade - sintomas considerados, por Barkley, como a “santíssima

trindade” do TDA/H (Diller, 1998).

Quadro 1: CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DO DSM-IV PARA TRANSTORNO DE DÉFICIT DE


ATENÇÃO/HIPERATIVIDADE
A - Ou (1) ou (2)
(1) Seis (ou mais) dos seguintes sintomas de desatenção persistiram pelo período mínimo de 6
meses, em grau mal-adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento:
DESATENÇÃO
a-frequentemente não presta atenção a detalhes ou comete erros por omissão em atividades
escolares, de trabalho ou outras
b-com frequência tem dificuldade para manter a atenção em tarefa ou atividades lúdicas
c-com frequência parece não ouvir quando lhe dirigem a palavra
d-com frequência não segue instruções e não termina seus deveres escolares, tarefas domésticas ou
deveres profissionais (não devido a comportamento de oposição ou incapacidade de compreender
instruções)
e-com frequência tem dificuldade para organizar tarefas e atividades
f-com frequência evita, demonstra ojeriza ou reluta em envolver-se em tarefas que exijam esforço
mental constante (como tarefas escolares ou deveres de casa)
g-com frequência perde coisas necessárias para tarefas e atividades (p. ex., brinquedos, tarefas
escolares, lápis, livros ou outros materiais)
h-é facilmente distraído por estímulos alheios à tarefa
i-com frequência apresenta esquecimento em atividades diárias

(2) seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperatividade persistiram pelo período mínimo de 6
meses, em grau mal adaptativo e inconsistente com o desenvolvimento:

HIPERATIVIDADE
a-frequentemente agita a mão ou os pés ou se remexe na cadeira
b-frequentemente abandona sua cadeira em sala de aula ou outras situações nas quais se espera que
permaneça sentado
c-frequentemente corre ou escala em demasia, em situações impróprias (em adolescentes e adultos,
pode estar limitado a sensações subjetivas de inquietação)
d-com frequência tem dificuldade para brincar ou se envolver silenciosamente em atividades de
lazer
e-está frequentemente “a mil” ou muitas vezes age como se estivesse “a todo vapor”
f-frequentemente fala em demasia
IMPULSIVIDADE
g-frequentemente dá respostas precipitadas antes de as perguntas terem sido completamente
formuladas
h-com frequência tem dificuldade para aguardar sua vez
i-frequentemente interrompe ou se intromente em assuntos alheios (p.ex., em conversas ou
brincadeiras)
B-Alguns sintomas da hiperatividade/impulsividade ou desatenção causadores de
compromentimento estavam presentes antes dos 7 anos de idade
C-Algum comprometimento causado pelos sintomas está presente em dois ou mais contextos (p.
ex., na escola [ou trabalho] e em casa)
D-Deve haver claras evidências de compromentimento clinicamente importante no funcionamento
social, acadêmico ou ocupacional
E-Os sintomas não ocorrem exclusivamente durante o curso de um Transtorno Global do
Desenvolvimento, Esquizofrenia ou outro Transtorno Psicótico, nem são melhor explicados por
outro transtorno mental (p. ex., Transtorno do Humor, Transtorno de Ansiedade, Transtorno
Dissociativo ou Transtorno de Personalidade) (American Psychiatric Association, 2002).

Como já comentado acima, os diferentes arranjos entre esses critérios podem dar

origem a 3 subtipos do transtorno: o “tipo predominantemente desatento” o “tipo

predominantemente hiperativo” e o “tipo combinado”. Este último se aproximaria mais das

diretrizes diagnósticas do “transtorno hipercinético” da CID-10:

“As características fundamentais são atenção comprometida e


hiperatividade: ambas são necessárias para o diagnóstico e devem ser
evidentes em mais de uma situação (p.ex. casa, classe, clínica).
A atenção comprometida é manifestada por interromper tarefas
prematuramente e por deixar atividades inacabadas. As crianças mudam
frequentemente de uma atividade para outra, parecendo perder o interesse
em uma tarefa porque se distraem com outras (...). Esses déficits na
persistência e na atenção devem ser diagnosticados apenas se forem
excessivos para a idade e QI da criança.
A hiperatividade implica em inquietação excessiva, em especial em
situações que requerem calma relativa. Pode, dependendo da situação,
envolver correr e pular ou levantar do lugar quando é esperado ficarem
sentadas, loquacidade e algazarra excessivas ou inquietação e se remexer.
O padrão para julgamento deve ser que a atividade é excessiva no
contexto do que é esperado na situação e por comparação com outras
crianças da mesma idade e QI. Este aspecto de comportamento é mais
evidente em situações estruturadas e organizadas que necessitam de um
alto grau de autocontrole de comportamento” (OMS, 1993, p. 257).

A soma de critérios diagnósticos do DSM-IV - e mesmo a descrição aparentemente

menos rigorosa da CID - procura conferir uma maior objetividade e cientificidade ao que

pareceria ser apenas uma exacerbação de comportamentos comuns. Qualquer um dos


“sintomas”, tomado isoladamente, poderia ser encontrado na maioria das crianças; somados

e ocorrendo “frequentemente” eles passam a provocar “comprometimento clinicamente

importante no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional” e, “em comparação com

outras crianças da mesma idade e QI”, denotam a presença da patologia. A concepção do

transtorno difundida pelo DSM vem sendo criticada como estanque, por não levar em conta

as modificações psicológicas e comportamentais que ocorreriam à medida que a criança

cresce. Tratando o TDA/H como um distúrbio do desenvolvimento, portanto evolucionário,

Barkley (1997) e Mattos, Abreu e Grevet (2003) condenam o caráter “categorial” que o

DSM-IV imprime ao transtorno, e avaliam que a noção de um continuum com a população

normal é a mais adequada para bem entendê-lo. A tensão entre esta última concepção, mais

dimensional, e aquela visão do transtorno como uma categoria bem demarcada, poderia

estimular um rico debate público sobre a “natureza” do TDA/H. Entretanto, não é isso que

ocorre: a categoria chega até a mídia, pais e professores de forma simplificada,

subordinando uma visão qualitativa de normalidade (o normal como um valor, sempre

definido por uma série de relações com o ambiente) a uma visão quantitativa (na qual o

anormal é tratado como fato objetivo). Assim, o TDA/H é difundido como uma “entidade” -

cuja existência independe das particularidades do sujeito acometido - “descoberta” quando

se reconhece nas condutas do “paciente” características que preenchem o número

necessário de critérios. Na falta de um marcador biológico específico, a estratégia

reducionista precisa atuar em duas etapas. Primeiro, a ação e a atenção (e, como prefere

Barkley, também o “auto-controle”) são reduzidas a “funções” que devem ser medidas e

comparadas com o padrão esperado de normalidade. “Testagens neuropsicológicas” são

elaboradas e difundidas como geradoras de dados objetivos, tendo como uma de suas
pretensões a distinção de subtipos do transtorno a partir de diferenças no “perfil

neuropsicológico” de seus portadores. Quase simultaneamente, reduz-se essas “funções” a

áreas ou neurotransmissores cerebrais, divulgando à população a verdade de uma

localização neurológica que uma análise mais arguta dos dados das pesquisas científicas

não permite afirmar - como veremos mais adiante neste capítulo.

As críticas ao caráter categorial do DSM, porém, não visam a colocar em xeque o

diagnóstico. Ao contrário, elas ofertam a indivíduos que - pelos “rígidos” critérios da APA -

correriam o risco de ficar fora dos limites do quadro, a possibilidade de nele se incluirem.

Com o borramento das fronteiras entre o TDA/H e a normalidade, mais e mais pessoas

identificam a si ou a seus filhos nas descrições do transtorno e facilmente têm sua

impressão avalizada pela opinião de algum psiquiatra. A tentativa de ampliar os limites do

diagnóstico aparece, por exemplo, nas propostas de se estender a idade máxima de início do

quadro de 7 para 13 anos (Barkley, 1997) e na possibilidade de que crianças com o

transtorno mostrem concentração adequada e duradoura em algumas situações, geralmente

ao jogar videogame ou em outra brincadeira muito estimulante. Neste caso, não haveria um

déficit de atenção difuso, mas “inatenção seletiva” ou “inconstância de atenção” (Hallowell

e Ratey, 1999). Tem sido questionada até mesmo a necessidade de haver claros indícios de

comprometimento significativo no funcionamento social, acadêmico ou laborativo para que

se faça o diagnóstico. Mattos, Abreu e Grevet (2003) consideram essa exigência

“problemática”, especialmente quando os portadores, no decorrer da vida, encontram meios

de se adaptar a suas dificuldades, criando estratégias que minimizam o impacto desses

déficits em seu cotidiano. Sem contar com ajuda e sem saber que carregam consigo o

transtorno, eles acabam vendo-se privados das vantagens de ser sócio do clube do TDA/H.
2.2.2 - Quantos são os “portadores”: a epidemiologia do transtorno

Enquanto parte dos estudiosos insiste na semelhança das prevalências encontradas

em diversos países e culturas, uma análise mais detalhada dos dados mostra números

contraditórios. Entre crianças norte-americanas em idade escolar, observa-se a presença do

transtorno em 3 a 5% delas, e estes percentuais são usualmente generalizados como suas

taxas médias (Cypel, 2001). Entretanto, pesquisadores de renome na área, como Biederman,

avaliam que 10 % das crianças americanas têm TDA/H (Diller, 1998). No Brasil, pesquisa

de Rohde et al. (1998) em adolescentes escolares mostrou prevalência de 5,8 %, bastante

próxima dos índices médios dos EUA. Num estudo alemão, porém, chegou-se a 17,8 % de

prevalência, enquanto numa pesquisa realizada na Espanha, na população escolar, as taxas

oscilaram entre 15 e 20 %. Em um outro estudo norte-americano, que reuniu dados de 13

pesquisas sobre o transtorno, a presença do TDA/H variou entre 1,9 e 14, 4 % (Golfeto e

Barbosa, 2003). McCracken (2000), num esforço semelhante, agrupou 8 estudos recentes e

encontrou uma variação entre 1,9 e 11,4%. Num outro extremo, um estudo mais antigo

encontrou apenas 0,09 % de casos em crianças inglesas de 10 e 11 anos, moradoras da Ilha

de Wigh. (Cypel, 2001). De um modo geral, a prevalência britânica costuma ser uma das

mais baixas, mantendo-se em torno de 1% (Golfeto e Barbosa, 2003).

O uso da Ritalina também pode ser um bom indicador do quanto varia o recurso a

essa categoria ou, pelo menos, sua abordagem medicamentosa, mesmo em países

geograficamente próximos. Os EUA respondem por 90 % do consumo mundial de

psicoestimulantes, e estima-se que, em 1997, cerca de 3 milhões e meio de americanos (três


quartos deles crianças) estavam usando Ritalina. No Canadá, o consumo per capita deste

estimulante estava abaixo da metade de seus vizinhos (Diller, 1998). Diferenças

epidemiológicas importantes são encontradas mesmo dentro do território americano, onde

“the ADD-Ritalin boom appears to be primarily a white, middle-to-upper-middle-class,

suburban phenomenon” (ibid., p. 36). A incidência do transtorno (e o uso do medicamento)

costuma ser mais baixa entre afro-americanos e filhos de imigrantes asiáticos que nas

crianças de origem caucasiana.

A discrepância dos dados levantados entre países e mesmo dentro de uma mesma

nação tem sido atribuída, principalmente, a diferenças das metodologias ou dos critérios

diagnósticos utilizados, excluindo-se qualquer reflexão sobre a possibilidade de variáveis

culturais influenciarem de modo significativo na detecção ou mesmo na incidência do

transtorno. É verdade, porém, que tanto a delimitação da linha de corte entre normalidade e

patologia quanto a escolha da classificação repercutirá nos dados encontrados. Os índices

de prevalência do TDA/H sob os critérios do DSM-IV, por exemplo, são 15 a 57 % maiores

que os obtidos utilizando sua versão anterior (Diller, 1998; McCracken, 2000). A atual

concepção do transtorno e a crescente disposição dos psiquiatras em diagnosticá-lo vem

permitindo sua identificação na presença de problemas de comportamento menos sérios,

sob o rótulo de casos “leves”.

Outro ponto de controvérsias é a relação entre gênero e TDA/H. Em populações

oriundas de ambulatórios especializados, a proporção de meninos com o diagnóstico tende

a ser até 9 vezes maior que a de meninas. Porém, quando a pesquisa é feita na população

geral, a relação cai para 2 garotos:1 garota (Rohde et al, 1998). Alguns estudos em amostras

comunitárias ou entre escolares tendem a achar taxas praticamente iguais entre os dois
sexos. Acredita-se hoje que as meninas são vítimas de uma tendência a serem

“subdiagnosticadas”. Como nelas os sintomas de desatenção são mais frequentes que os de

hipercinesia e impulsividade, e como haveria menor coexistência (ou co-morbidade) de

comportamentos perturbadores ou transtornos de conduta no sexo feminino, as meninas

incomodariam menos a escola ou os pais e, por isso, a chance de serem levadas para

avaliação e tratamento seria menor.

Um adequado e contínuo esforço de educação dirigido aos médicos poderia evitar a

perpetuação do erro de deixar as mulheres à mercê de sua insidiosa e deletéria desatenção.

A mesma expectativa é nutrida em relação ao diagnóstico do TDA/H em adultos. Até a

década de 70 a idéia era a de que o transtorno desaparecia no início da adolescência em

quase todos os sujeitos, caracterizando-o como uma entidade nosológica peculiarmente

infantil. A valorização da desatenção na descrição do transtorno permitiu, a partir dos anos

80, que se defendesse a persistência do TDA/H através da adolescência e da vida adulta de

boa parte das pessoas que o manifestaram quando criança, mesmo que não haja mais

hiperatividade significativa. As “falhas” na detecção e as incertezas quanto às taxas de

persistência do transtorno em adultos costumam ser atribuídas a dois fatores principais. Em

primeiro lugar, haveria uma mudança em suas características: a hiperatividade diminuiria,

transformando-se em sensações mais “internalizadas” de inquietude ou na necessidade de

realizar várias atividades simultaneamente, seja no trabalho ou no lazer. A desatenção

persiste, levando a prejuízos importantes na vida profissional e nas atividades domésticas, e

é muitas vezes referida pelos adultos como prejuízos de memória. A impulsividade muda

suas características e passa a ser responsável por boa parte dos problemas cotidianos, com

graves consequências para o indivíduo e as pessoas próximas. Além disso, o TDA/H nos
adolescentes e adultos se complexifica ao causar ou associar-se a outros distúrbios, como o

abuso de álcool e drogas ou condutas anti-sociais que desembocam na criminalidade, e que

acabam por “mascarar” o quadro original.

Isso explica o segundo fator relacionado ao “subdiagnóstico” nessa faixa: os

instrumentos diagnósticos mais comuns, como o DSM, não se mostrariam muito sensíveis

para detectar as mudanças no perfil sintomático ocorridas com o passar dos anos. Ao exigir

o preenchimento dos mesmos critérios que foram elaborados tendo em vista as

características das crianças, as classificações modernas deixam escapar muitos adultos, que

se mantêm, no máximo, com um TDA/H “subclínico” ou “subliminar”. Outro pecado

cometido pelo DSM é o de ater-se a “sinais” observados por terceiros, desprezando as

descrições em primeira pessoa que indivíduos maduros podem fazer das experiências

emocionais associadas com o transtorno. Para resolver estes problemas e não provocar sua

exclusão do diagnóstico, tem-se proposto que os adultos preencham um número de critérios

menor do que aquele exigido para as crianças. Ao invés de um mínimo de seis sintomas em

cada área pesquisada (atenção e hiperatividade/impulsividade), quatro já seriam suficientes

para diagnosticar uma pessoa de meia idade. Outros autores, entretanto, propõem uma lista

de critérios específicos, como os “Critérios de Utah” Outro sistema diagnóstico foi

proposto por Tomas Brown, em 1996, e envolve prejuízos em cinco áreas: “1 - Capacidade de organização e

ativação para o trabalho; 2 - Manutenção da atenção; 3 - Manutenção da energia e esforço nas tarefas; 4 -

Capacidade de administração da interferência do afeto; 5 - Integridade da memória de trabalho (memória

operacional) e de recuperação” (Mattos, Abreu e Grevet, 2003, p. 225-26).. Com eles, persegue-se uma

validação científica para o propósito de ampliar o escopo do TDA/H, não limitando a

abrangência do transtorno à população infantil, o que conta com a simpatia e apoio da


indústria farmacêutica - em 1995, 25 % do consumo de Ritalina era feito por adultos

(Diller, 1998). Além disso, como veremos no próximo capítulo, passa-se a oferecer aos

adultos a possibilidade de redescrever não apenas o comportamento de seus filhos, mas

também os seus próprios, a partir da lógica da biologia e das regras da corporalidade.

2.2.3 - A redução biológica do TDA/H

2.2.3.1- Um transtorno neural

Como discorrido acima, as tentativas de estabelecer relações diretas entre lesões ou

disfunções cerebrais e o comportamento hipercinético ou desatento remontam, ao que se

saiba, ao início do século passado. A partir da década de 50, entretanto, tornaram-se mais

frequentes estudos que visam identificar, com maior precisão, a área cerebral ou o

neurotransmissor presumivelmente relacionados com a gênese do transtorno. Foi o início da

era psicofarmacológica na psiquiatria, e o sucesso no emprego da Ritalina nas décadas

seguintes tornou-se um dos principais responsáveis pelo impulso nesse ramo de pesquisas.

O aperfeiçoamento das biotecnologias diagnósticas, a partir dos anos 90, aumentou o poder

de persuasão das teorias biológicas sobre o TDA/H. A comunidade psiquiátrica passou a se

convencer - e, assim, a convencer à mídia e aos potenciais clientes leigos - que já dispunha

de instrumentos para vasculhar de modo menos incerto a “origem” do transtorno. É na

literatura destinada à popularização do diagnóstico entre o público em geral, especialmente

professores e pais, que são encontradas as afirmações mais categóricas sobre a descoberta

das causas do TDA/H e sua localização na rede neural encefálica:


“O Distúrbio do Déficit de Atenção deriva de um funcionamento alterado
no sistema neurobiológico cerebral, isto significa que substâncias
químicas produzidas pelo cérebro, chamadas neurotransmissores,
apresentam-se alteradas quantitativa e/ou qualitativamente no interior dos
sistemas cerebrais que são responsáveis pelas funções da atenção,
impulsividade e atividade física e mental no comportamento humano.
Trata-se de uma disfunção e não de uma lesão como anteriormente se
pensava. O cérebro de um DDA, em forma e aparência, em nada difere
dos demais cérebros, que não apresentam um funcionamento DDA; a
diferença está no íntimo dos circuitos cerebrais que são movidos e
organizados pelos neurotransmissores que, em última instância, seriam os
combustíveis que alimentam, modulam e fazem funcionar todas as
funções cerebrais” (Silva, 2003, p. 176).

“O distúrbio do déficit de atenção se localiza na biologia do cérebro e do


sistema nervoso central” (Hallowell e Ratey, 1999, p. 318).

“Lembre-se de que o que você tem é uma condição neurológica


geneticamente transmitida e provocada por mecanismos biológicos, pela
forma como é arrumada a fiação de seu cérebro” (ibid., p. 295-96).

A literatura dedicada aos profissionais da área psiquiátrica e afins, embora

compartilhe os mesmos pressupostos daquela destinada ao público em geral, costuma ser

mais cautelosa nas afirmações sobre a etiologia do transtorno:

“The precise causes of ADHD are unknown at present time, if by cause


one means the direct, necessary, and sufficient events that immediately
precede and directly lead to the creation of this behavior pattern in
children. A precise causal chain of events simply has not been
unequivocally established as yet for ADHD, not for any other mental
disorder” (Barkley, 1997, p. 29).

“Apesar do grande número de estudos já realizados, as causas precisas do


TDAH ainda são desconhecidas. (...) Provavelmente, casos diversos com
fenomenologias particulares (heterogeneidade clínica) também
apresentam heterogeneidade etiológica. Isso significa que fatores
genéticos e ambientais devem atuar na manifestação das características
que compõem os vários quadros clínicos do TDAH” (Roman et al., 2003,
p. 35).
Entretanto, mesmo entre os autores com opiniões mais nuançadas, que atentam para

a complexidade das possíveis cadeias de eventos determinantes do TDA/H, há consenso em

considerá-lo como patologia neuropsiquiátrica, um transtorno do neurodesenvolvimento no

qual os neurotransmissores, a anatomia cerebral e a genética ocupam posição de destaque.

Os fatores psicológicos e sociais, quando merecem algum comentário, são tratados como

secundários ou dispensáveis.

A maioria dos estudos realizados a partir da década de 90 tem se concentrado nas

relações entre o córtex pré-frontal e estruturas subcorticais como o núcleo caudato e o globo

pálido (rede conhecida como circuito fronto-estriatal). Como essas regiões têm

demonstrado correlacionar-se com funções como controle motor, manutenção da atenção,

inibição dos impulsos, planejamento de ações, entre outras, acredita-se que nelas se

encontrará parte das respostas sobre as origens e a “natureza” do TDA/H. Apesar do

refinamento das tecnologias utilizadas hoje, a fragilidade e as contradições dos resultados

das pesquisas realizadas até os anos 70 continuam a perseguir boa parte dos estudos mais

recentes. Em 1990, trabalho de Zametkin usando tomografia por emissão de pósitrons

(PET, em inglês) foi recebido como evidência inegável de alterações metabólicas nos

cérebros com TDA/H. O metabolismo de glicose das regiões pré-frontais mostrou-se

diminuído em adultos de ambos os sexos e em adolescentes do sexo feminino. Porém, seus

trabalhos subsequentes com adolescentes não confirmaram os achados iniciais, não

encontrando diferenças estatisticamente significativas entre portadores do transtorno e

controles normais (Zametkin et al, 1993; Ernst et al,1994, 1997; Barkley, 1997). Estudos

com ressonância magnética em crianças com TDA/H evidenciaram uma diminuição no

tamanho do corpo caloso, estrutura relacionada à transmissão de informações entre os


hemisférios cerebrais. Tentativas de reproduzir esse achado, porém, não conseguiram fazê-

lo ou encontraram diferenças bem menos significativas entre crianças normais e as

diagnosticadas com o transtorno (Barkley, 1997).

Dados contraditórios também aparecem quando o foco dos trabalhos muda para o

núcleo caudato. Seu tamanho tem se mostrado diminuído no TDA/H, mas enquanto estudo

de Castellanos et al. (1994) identificou uma perda da assimetria normal, mostrando o

caudato esquerdo maior que o direito, outros trabalhos mostraram exatamente o contrário.

Alterações no córtex parietal posterior também têm sido encontradas, assim como

hiperperfusão na região occipital (Barkley, 1997; Rohde e Benczic, 1999; Szobot e Stone,

2003). A aparente confusão de achados não impede haver a certeza de que o TDA/H pode

ser espacialmente localizado no circuito fronto-estriatal: dados conflitantes são

interpretados como indicativos da existência de diferentes subtipos da patologia, cada qual

com suas particularidades biológicas. A localização encefálica passa a ser confundida com

o transtorno mesmo - o qual se torna, no máximo, um epifenômeno do mal-funcionamento

cerebral.

Associados às tentativas de identificar o sítio encefálico do TDA/H encontram-se os

esforços para definir a sua química. Os efeitos da Ritalina estimularam hipóteses e estudos

clínicos inicialmente envolvendo a dopamina, neurotransmissor inibidor da responsividade

dos neurônios a novos estímulos e cuja deficiência no córtex pré-frontal levaria ao aumento

de reações impulsivas. Como nem todos os medicamentos que melhoram a sintomatologia

do transtorno têm a mesma ação dopaminérgica, a noradrenalina e o sistema

serotoninérgico também têm sido implicados na sua fisiopatogenia. Tentativas de

diferenciar crianças com e sem TDA/H a partir da dosagem dos neurotransmissores na


urina, sangue e líquor fracassaram. Poucos apostam hoje que uma só substância possa

explicar o transtorno, e a hipótese de um circuito integrando os três sistemas é a mais

plausível (Werner Jr., 1997, 2001; Szobot e Stone, 2003).

2.2.3.2 - TDA/H: um distúrbio das “funções executivas”?

Tentando oferecer um modelo neuropsicológico que conferisse inteligibilidade

teórica à entidade TDA/H, preenchendo as lacunas existentes entre as descrições

comportamentais das classificações e os achados neuroanatômicos e neurofisiológicos,

Barkley (1997) propõe uma concepção do transtorno como um déficit nas “funções

executivas”. Amadurecendo no decorrer do desenvolvimento infantil, essas funções

cerebrais referem-se “to those self-directed actions of the individual that are being used to

self-regulate” (ibid., p.56, grifos do autor). O auto-controle que proporcionam mostra-se

indispensável para que se possa antecipar o futuro e para que se maximize o sucesso de

ações a longo prazo. O autor constrói um “modelo híbrido”, que se inicia com a eficaz

inibição de comportamentos prepotentes, com a interrupção de atos que venham se

mostrando ineficazes e com o controle de interferências externas ou internas. Essa “inibição

comportamental” permite o aparecimento de uma lacuna temporal interna na qual serão

gestadas as quatro funções executivas: uma memória de trabalho não-verbal (que permite

manter os eventos passados em mente de modo a poder usá-los para planejar o futuro), uma

memória de trabalho verbal (que corresponde à internalização da fala e instala regras

interiores), uma auto-regulação do afeto, da motivação e dos níveis de alerta

(responsável pelo autocontrole emocional) e a reconstituição (que permite reorganizar

experiências passadas visando criar estratégias para superar novos obstáculos). O resultado
desejado é o aparecimento de condutas intencionais, racionais e objetivas, dirigidas de

forma persistente e auto-disciplinada para as metas planejadas.

Essas “funções executivas” resultam da internalização de comportamentos e

emoções que um dia (nos primórdios da ontogenia ou da filogenia) foram públicos e

direcionados para o outro. O desenvolvimento normal do indivíduo ou da espécie

conduziria necessariamente ao seu ocultamento e privatização. O que estaria sendo

internalizado, na verdade, seria o sentido de temporalidade, que permite a execução de

condutas orientadas para o futuro. O tempo - isto é, “the conjecturing of the future that

arises out of reconstruction of the past and the goal-directed behaviors that are predicated

on these activities” (ibid., p.202) -, segundo Barkley, é a “central executiva” de todo este

processo. Assim, o indivíduo que desfruta de funções executivas bem reguladas é aquele

que retém corretamente as sequências de eventos em sua memória de trabalho, utilizando ao

máximo as informações e imagens armazenadas das vivências passadas, e as manipulando

eficazmente para alcançar seus objetivos. Seu uso racional do tempo lhe permite adiar as

gratificações oriundas do ambiente imediato a favor das recompensas prometidas no longo

prazo.

O TDA/H, para Barkley, acarreta a seus portadores uma forma de “miopia

temporal”. Como a internalização de comportamentos (e do sentido de tempo) que constitui

as “funções executivas” mostra-se atrasada, essas pessoas são mais influenciadas pelo

contexto atual, são governadas pelo agora, tendo dificuldade em utilizar adequadamente o

que foi aprendido no passado para orientar suas ações, principalmente para alvos muito

distantes no futuro. Falham quando precisam prever ou se preparar antecipadamente para

um evento vindouro. Da mesma forma, não conseguem tolerar um mal-estar atual em troca
de uma consequência posterior mais favorável. Na verdade, como a função de inibição de

comportamentos está enfraquecida, todo o processo de construção das funções executivas

se mostra danificado. Têm dificuldades em manter uma informação ou evento na memória,

e quando conseguem não costumam usá-la antes de responder impulsivamente a um

estímulo ou situação. Seu uso dos diálogos interiores para se auto-regularem é precário,

assim como sua aptidão para a criação e aplicação de regras internalizadas e seu uso para

instruí-las em ações distantes. Seu comportamento parece ser mais aleatório, automático e

impensado. Não conseguem se auto-motivarem, precisando de um reforço ambiental

imediato como estímulo para persistirem nas ações mais demoradas e sem gratificações

rápidas. Como não sabem adiar as respostas emocionais - além disso, é pobre sua

internalização de emoções - não há como torná-las menos passionais, mais razoáveis, ou

fazer com que levem as perspectivas alheias em conta. Sua incapacidade de reorientar suas

ações quando há um feedback negativo do meio, somada às falhas no processo de análise e

síntese das condutas passadas - que lhes permitiria reconstituí-las em atitudes novas frente a

novas adversidades - levam-nas a insistir nos mesmos comportamentos, ainda que a

situação lhes exija outros. Em outras ocasiões, as dificuldades com a linearidade temporal

lhes provoca condutas desorganizadas, parecendo fora de sequência ou irrelevantes. Por

fim, os estímulos do ambiente imediato lhes controlam e interrompem o comportamento,

tornando o retorno à atividade inicial uma árdua tarefa.

Esta última característica é a responsável pela desatenção observada em parte das

crianças e adultos com TDA/H. Barkley acredita que, naqueles com o tipo hiperativo-

impulsivo ou combinado, o déficit de atenção não é o problema principal, mas é

secundário à precária inibição de comportamento e controle das interferências internas e


externas ao mesmo. Precisando de recompensas imediatas para persistirem nas tarefas já

que a motivação interna é falha, eles demonstram dificuldades quando a atividade é pouco

interessante ou demanda que cumpram etapas sequenciais em direção a objetivos

longínquos, e facilmente se distraem. Portanto, sua teoria aplica-se apenas a esse subtipo do

TDA/H, já que no tipo exclusivamente desatento haveria uma dificuldade primária de

atenção, não decorrente de disfunções executivas.

Barkley enxerga o processo de internalização que funda as funções executivas como

instintivo e universal, não dependendo de treino ou outras variáveis culturais para ser

alcançado. Portanto, seus desvios só podem ser localizados na biologia, e não nos

complexos processos sociais de aquisição de regras e condutas. A teoria do déficit nas

funções executivas de Barkley compartilha o reducionismo cerebral que se encontra

disseminado em toda a concepção atual do TDA/H. Todas as aptidões que descreve, mesmo

preservando um vocabulário oriundo das ciências do homem, residem em lugares

específicos do lobo pré-frontal do cérebro:

“ Behavioral inhibition and its three-component processes seem to be


localized to the orbital-prefrontal regions and associated interconnections
to the striatum. There is accumulating evidence that persistent inhibition
or resistance to distraction (interference control) may be somewhat more
lateralized to the right anterior prefrontal region, while the capacity to
inhibit prepotent responses so as to delay the decision to respond is
situated in the orbital-prefrontal region. Working memory (both verbal
and nonverbal) seems to be associated with the dorsolateral regions. And
the regulation of affect/motivation/arousal has been attributed to the
ventral-medial regions” (ibid., p. 156).

2.2.3.3- O fundamento último: a genética


Contudo, as distorções delineadas na estrutura, bioquímica e funções cerebrais

seriam, no final, apenas resultados de alterações fundamentais nos genes, já que são eles

que regulam a montagem da rede neural. Em sintonia com o que Sfez e Rabinow haviam

indicado, neles se tem buscado a etiologia das etiologias do TDA/H. Dispersos por todas as

suas explicações biológicas, é aí que se revelam com maior clareza os germes do

determinismo e do reducionismo. Mesmo quando se ressalva a insuficiência de uma

concepção unicausal do transtorno, tende-se a produzir uma identidade entre este e suas

determinações genéticas, que reinariam acima de todas, e seriam as únicas indispensáveis

para o aparecimento da patologia.

Embora alguns pesquisadores defendam essa possibilidade, é pouco provável haver

o gene do TDA/H. Uma complexa herança poligênica seria a maior responsável pelo

distúrbio, promovendo uma suscetibilidade aumentada ao mesmo. A grande variação nas

formas clínicas do TDA/H estimula hipóteses de que haveriam diversos “subfenótipos”

incluídos nessa categoria diagnóstica, que difeririam entre si pela maior ou menor

participação do componente genético em sua causação. A ocorrência de “co-morbidades”

entre o TDA/H e outros diagnósticos, como transtornos de conduta, transtornos do humor e

abuso de substâncias, reforça a idéia de existir entre eles uma ligação etiológica,

proporcionada principalmente pelos genes. Quanto mais grave ou complexo o quadro do

TDA/H, maior a participação do fator hereditário, e menor a do ambiental.

Os principais argumentos a favor dessa etiologia derivam dos estudos de prevalência

familiar. Tem sido regularmente observada uma maior frequência de TDA/H (e também dos

transtornos co-mórbidos citados acima) em parentes de pessoas que já portam esse

diagnóstico: os pais teriam 2 a 8 vezes maior risco de também terem o distúrbio (Roman et
al, 2003); já em irmãos o risco estaria de 1,8 a 5 vezes aumentado (McCracken, 2000).

Porém, como definir se este aumento não seria influenciado por fatores mais ligados ao

ambiente familiar que à genética? Acredita-se que os gêmeos monozigóticos, com seu

genoma idêntico, possam dar a resposta a favor da hereditariedade. Estudos mostram que,

quando um dos gêmeos é diagnosticado como TDA/H, a concordância (a frequência de

TDA/H no outro gêmeo) varia entre 51 a 81 % em caso de monozigóticos, enquanto em

dizigóticos cai para 29 a 33 % (Barkley, 1997; McCracken, 2000). Os estudos de adoções

também são usados para argumentar a favor dos genes: quando uma criança adotada é

diagnosticada com TDA/H, há probabilidade 3 vezes maior de haver o mesmo diagnóstico

entre os pais biológicos do que entre os adotivos (Roman et al., 2003). Cadoret e Stewart,

em 1991, registraram uma alta prevalência de TDA/H entre adotados cujos pais biológicos

haviam sido condenados por atos criminosos, sugerindo um vínculo genético entre as duas

situações (Barkley, 1997).

Como as taxas de concordância entre familiares e mesmo entre os gêmeos

monozigóticos não chega a 100 %, precisa-se encontrar um lugar para a participação de

outros elementos na determinação do transtorno. Sob o rótulo de “fatores ambientais”

agrupa-se praticamente tudo que escapa da esfera hereditária: toxinas, fumo materno na

gravidez, complicações gestacionais ou do parto, deficiências nutricionais, lesões

neurológicas pós-natais, classe social baixa, discórdia entre os pais, família numerosa ou

pouco coesa. O discurso hegemônico sobre o TDA/H atribui pouco ou nenhum valor a tais

variáveis. Elas poderiam influenciar a evolução do transtorno no decorrer da vida, mas,

isoladamente, não teriam a capacidade de causá-lo. A existência de um ambiente familiar

desordenado poderia, assim, exacerbar os sintomas de uma criança que, por ser “portadora”
da doença, já teria enormes dificuldades com organização e controle de impulsos.

Entretanto, a empresa de afirmar o TDA/H como entidade patológica sediada no cérebro e

nos genes não se conforma com a minimização das determinações sociais, psicológicas ou

educacionais no seu surgimento, tratando mesmo de reduzir tais “fatores ambientais” a

origens genéticas. Características do ambiente doméstico, como um padrão ruim de

cuidados parentais, poderiam ser apenas consequências da presença do transtorno também

em um dos pais. Usualmente negligenciados no diagnóstico, ou apresentando sintomas

“subclínicos”, esses pais falhariam em prover atenção e atitudes adequadas a seus filhos,

mas isso não se deveria a seus desacertos morais ou a conflitos psicológicos provocados

pelo exercício da paternidade - é no seu TDA/H (ou em outro distúrbio co-mórbido, que

compartilharia com este alguma carga genética) que se encontrará os motivos de sua função

falhar. Os problemas familiares que escapam a essa lógica recebem um outro tratamento:

desavenças entre o casal ou o enfraquecimento da coesão doméstica deixam de ser eventos

que causariam a hiperatividade ou desatenção da criança e passam a ser consequências da

balbúrdia que um filho com TDA/H pode provocar em casa e no alto nível de estresse que

acarreta nos pais.

Praticamente todos os autores que tratam do tema assinalam o equívoco de se

atribuir explicações morais ou psicológicas para condutas que - mesmo com as frágeis

evidências de uma clara etiologia biológica - seriam apenas manifestações de uma doença

cerebral. Acoplada a uma definição positiva do transtorno (o que é o TDA/H), quase

sempre aparecem as definições negativas (o que ele não é):

“De uma vez por todas: o TDAH não é secundário a problemas com a
mãe (ou o pai, ou o avô, ou quem quer que seja), não é um conflito
inconsciente de medo do sucesso e não é um problema de personalidade.
É um transtorno com forte influência genética em que existem alterações
químicas no sistema nervoso” (Mattos, 2001, p. 48, grifos do autor).

“[O DDA] não é uma doença da vontade, nem um defeito moral ou tipo
de neurose. Não é causada por uma fraqueza de caráter, nem por
incapacidade de amadurecer. Sua cura não será encontrada com o uso da
força de vontade, nem pela punição, sacrifício ou sofrimento” (Hallowell
e Ratey, 1999, p. 295-96).

Quanto mais recusam o poder da cultura na determinação dos comportamentos


patológicos, mais o TDA/H e seus engenheiros tornam-se perfeitos representantes do
panorama cultural da contemporaneidade. Esvaziados o campo da tradição e da política, ou
seja, dos registros nos quais referenciais coletivos serviam de bússula para a constituição de
si e do mundo, o corpo e a biologia tornam-se abrigo onde buscar o sentido perdido de
identidade. A construção do modelo bioidentitário oferecido pelo TDA/H passa,
obrigatoriamente, pela eliminação de qualquer possibilidade que os comportamentos aí
incluídos sejam derivados do campo moral, da dinâmica familiar ou possam ser descritos
com o tradicional vocabulário do internalismo psicológico. A postulação de uma etiologia
biológica é parte indispensável das estratégias de popularização do TDA/H. A disseminação
dessa concepção pela mídia, escolas, grupos de pais e portadores e pela literatura destinada
aos leigos vai impregnando a cultura e, num contexto social favorável, como o exposto no
primeiro capítulo, ganha potência e poder de convencimento, ajudando indivíduos a
redescreverem suas experiências pessoais e as condutas de seus filhos. No próximo capítulo
descreveremos como o TDA/H torna-se uma entidade privilegiada para proporcionar o
ingresso de crianças e adultos no mundo das bioidentidades, e serão apresentadas as
hipóteses finais sobre o fenômeno.

 REDESCRIÇÕES DE SI: O TDA/H COMO MATRIZ DE


BIOIDENTIDADES

3.1 - Como é ser um TDA/H


Após a abordagem crítica do TDA/H como categoria médica, feita no capítulo
anterior, nos deteremos agora nos modos pelos quais as pessoas se apropriam desse
diagnóstico para reavaliar suas histórias de vida, para dar novo sentido às próprias
idiossincrasias e às de sua prole e para construir redes de sociabilidade. Com o aval e
estímulo do discurso científico, assimilado por outros agentes e instituições, o público
detentor do poder de consumo de informações e produtos - as chamadas classes médias -
vai se convencendo de que tudo aquilo que considerava traços do seu caráter ou que os pais
avaliavam ser produto de suas falhas na educação dos filhos nada mais é que sintomas de
um transtorno cerebral. Nenhum período da vida ou área da atividade humana encontra-se
imune a suas nefastas repercussões, e saber reconhecer nas próprias condutas os sinais da
patologia é o primeiro passo para que os indivíduos acometidos se vejam livres de
preconceitos e estereótipos antigos e possam procurar a ajuda adequada. Nada mais
confortador para alguém que descobre seu TDA/H do que poder se libertar de marcas que
desde cedo se colavam a sua personalidade. Considerados “mal-educados”, “indolentes”,
“preguiçosos”, “desligados” e “bagunceiros”, todos sabem agora que tudo isso é efeito de
sua constituição biológica inata, de onde emerge o transtorno que têm. Na verdade, ter não
exprime com exatidão o fenômeno: na construção desta bioidentidade, observaremos como
a experiência de “portar” o transtorno vai sutil e necessariamente se transmutando na de ser
um TDA/H.
Apesar da expansão do diagnóstico para todas as faixas etárias, as crianças

continuam sendo a principal fonte de preocupações, cuidados e vigilância, em parte porque

o transtorno sempre começa durante a infância. A vida de uma criança com TDA/H não

parece ser fácil, mas, segundo os estudiosos, torna-se bem pior quando demora a receber o

diagnóstico. Caso seja do tipo hiperativo e impulsivo, ela é tipicamente pouco popular com

os colegas, pois se envolve frequentemente em brigas, não sabe esperar sua vez nas

brincadeiras, interrompe bruscamente as atividades dos amigos, fala em excesso e pode

abandonar um jogo na metade, em busca de emoções mais fortes. Perde seus brinquedos,

derruba objetos por onde passa e, se frustrada, tem explosões de cólera. Em casa, sua

inquietude tende a transformá-la no “bode expiatório” da família, sendo acusada de

irresponsável e pouco empenhada na tarefa de mudar suas condutas. Caso seja do tipo

desatento costuma receber as mesmas repreensões, mas agora por estar sempre “no mundo

da lua”, não escutar quando é chamada, esquecer ou protelar as tarefas cotidianas e exibir

um caderno repleto de lacunas, pois não acompanha a lição do quadro negro na escola. Os

pais se irritam e a julgam displicente por conseguir se fixar entusiasmada e continuamente

no vídeo-game mas se distrair a todo momento quando tenta fazer a lição de casa.
A baixa auto-estima de uma criança com o transtorno não diagnosticado é

considerada um dos complicadores de seu quadro. Os pais costumam recriminar seus filhos

severamente, especialmente por não entenderem como podem apresentar um déficit de

atenção para os deveres escolares e não demonstrá-lo em atividades que os estimulem

muito. Os fracassos e humilhações provocados por seus comportamentos estabelecem uma

auto-imagem de “preguiçoso”, “incapaz” ou “fraco” que pode conduzir à depressão, abuso

de drogas ou a uma resignação com seus “defeitos morais”. Por sorte, o TDA/H também

lhes proporciona “aspectos positivos”, que os auxiliam a “driblar” parte desses problemas.

Além de portarem muita “energia” e inteligência, chama atenção sua criatividade, intuição

e sua “personalidade cativante” (Halowell e Ratey, 1999; Rohde e Benczik, 1999; Mattos,

2001). Ao invés de sempre ressaltar as falhas de seus filhos, são essas virtudes que

precisam ser elogiadas pelos adultos, pois são um trunfo da família em sua cotidiana

batalha contra os obstáculos impostos pela doença.

O único remédio disponível contra a ignorância que leva pais e professores a

enxergar defeitos na criação, falhas de caráter ou conflitos inconscientes onde deveriam ver

o TDA/H é a disseminação radical das descobertas da psiquiatria sobre o transtorno.

Aperfeiçoando o que a DCM já havia iniciado, uma série de profissionais são mobilizados

para, junto com a quase inevitável prescrição de Ritalina, informar, tratar e orientar famílias

e escolas sobre o que fazer com essas crianças. Na verdade, as próprias crianças devem ser

esclarecidas sobre seu diagnóstico, e para isso contam com a opinião dos especialistas, dos

pais, e também com uma literatura dirigida a elas. Pedro, personagem fictício criado por

Rohde e Benczyk (1999), é um exemplo da importância de fazê-las reconhecer o mal que as

acomete:
“Ás vezes fico pensando como é difícil entender por que não consigo prestar atenção e fazer o que
preciso se sou inteligente. Por que consigo passar horas na frente da TV? Por que consigo jogar no
computador e ganhar do meu amigo?
Aí eu peço para o meu médico e meu psicólogo me explicarem tudo de novo. Eles me dizem que é
como se parte do meu cérebro que me ajuda a prestar atenção não trabalhasse muito bem, a não ser
que sejam coisas muito, muito interessantes para mim”(ibid., p. 34, grifos dos autores).

Conhecendo o TDA/H, a criança pode começar a enxergar suas dificuldades, e

também suas qualidades, de um novo modo. Porém, para “cristalizar” a noção de ter uma

doença que justifica suas condutas é necessário um modo de pensar e um vocabulário que

adequem suas experiências ao que aprendeu sobre o transtorno. Só assim ela pode livrar sua

auto-estima de ataques acusatórios que a responsabilizam por algo que ela não controla:

“Coisas do tipo: ‘mas esse seu TDAH é fogo, não é? Viu como ele fez
com que você acabasse brigando e perdendo a amizade do fulano naquele
dia?’ têm um efeito impressionante. Uma vez que a ênfase não é mais
‘você é desse jeito’, ‘você tem problemas de comportamento’, mas sim
‘esse seu TDAH atrapalha você’, ‘o TDAH é um saco às vezes’, as
coisas começam a caminhar” (Mattos, 2001, p.74).

Saber que há um transtorno que pode explicar os “terremotos” provocados pelo filho

causa reações diferentes nos pais. Enquanto alguns demonstram tristeza ou demoram a ser

convencidos de que é ele a explicação para as recorrentes dificuldades, a maioria recebe o

diagnóstico com alívio:

“Esse comportamento sempre foi passado como uma característica de


personalidade psicológica, ou seja, ‘ela é teimosa e até mesmo
dominadora em algumas situações. Ela é assim mesmo e ponto!!!!’. Isso
nunca nos soou bem... Percebíamos que mudava, mas para mim, o quebra
cabeça não se encaixava... não conseguia ver (e juro que eu queria!) onde
havíamos errado tanto (...). No início de 2000, procuramos um
neurologista e relatamos o que vivemos, avaliamos e percebemos durante
todos esses anos. Ele disse que eu já chegava com o diagnóstico de
TDA/H pronto e, por mais difícil que isso fosse para nós, eu já sabia o
que ela tinha. Finalmente nossas visões cegas, nossas percepções sofridas
e as angústias de nossa filha tinham um nome e o peso de não saber o que
era isso terminava aqui” (Hiperatividade, 2003).

Após o diagnóstico, os pais são convidados a transformar-se em “especialistas” no

tema, dominando a melhor postura a adotar em situações cotidianas. Com a adequada

orientação, eles ficam sabendo que a rotina doméstica deve ser organizada com regras

claras, que os limites necessitam ser impostos tranquila e repetidamente, evitando-se um

estilo permissivo de paternidade. Por outro lado, os pais são desestimulados a aplicar

punições e a fazer críticas excessivas, trocando-as pelo “reforço positivo”, destacando e

premiando o que a criança fez corretamente. “Promova o sucesso de seu pequeno DDA”

(Silva, 2003, p.70), conclama um dos autores. As crianças também precisam ser ajudadas a

notar seus próprios erros e excessos, pois teriam uma deficiente auto-observação, além de

falharem em interpretar corretamente os sinais emitidos pelas outras pessoas. Essas

características de seus cérebros desregulados explicariam atos como interrupções de

brincadeiras ou insistência em assuntos desagradáveis, que para terceiros parecem

manifestações de grosseria ou estupidez. Na harmonia entre a organização ou regularidade

que os pais devem oferecer e a flexibilidade que as condutas impulsivas dos filhos

demandam está a fórmula para a educação doméstica bem-sucedida (Rohde e Benczic,

1999; Mattos, 2001; Silva, 2003). Por ser difícil alcançar tal equilíbrio, o mais comum é

encontrar famílias extenuadas por combates intermináveis, pois os pais insistem em

castigos e restrições cada vez mais severos, que aumentam o comportamento opositivo da

criança (especialmente se a infeliz também é “portadora” de um outro distúrbio, o


“transtorno desafiador de oposição”). As negociações também podem se mostrar inúteis, já

que, segundo os especialistas, a criança parece precisar da excitação extraída das brigas em

casa para livrar-se do tédio e “aliviar” seu TDA/H (Hallowell e Ratey, 1999).

Os professores também são convocados a tornarem-se parte da equipe que cuidará

da criança com o transtorno. A escola, com seus profissionais “pouco informados” sobre o

TDA/H, costuma ser uma das disseminadoras dos estereótipos que recaem sobre essas

crianças, havendo mesmo uma trajetória acadêmica e uma postura docente patognomônicas:

“A imagem de uma criança que começa bem na escola e então vê seu desempenho escolar

decair enquanto os professores vão ficando cada vez mais moralistas em suas explicações

deve sempre sugerir a possibilidade de DDA” (ibid., p. 89). Tipicamente, elas não

conseguem permanecer muito tempo sentadas, falam enquanto o professor expõe a matéria,

provocam os colegas, abandonam sua tarefa quando outro estímulo lhes chama a atenção.

Suas carteiras são uma bagunça. Podem não escutar instruções dadas e serem flagradas com

o olhar distante, e demoram mais que os colegas para terminar as lições. É comum que

ocorram longos desentendimentos entre os pais e as escolas antes que surja a hipótese

TDA/H a explicar as limitações dos alunos, como demonstra o depoimento de uma mãe:

“Os mesmos problemas se repetiram e no final do ano fui avisada de que


a matrícula dele não poderia ser renovada. Comecei a ficar desesperada e
não sabia o que fazer. Aos 7 anos de idade meu filho já tinha sido
expulso de duas escolas. Foi quando o meu marido leu uma reportagem
sobre crianças hiperativas em um jornal e decidimos levá-lo ao
psiquiatra” (Pereira, 2003a).

Como parte essencial das informações que podem resultar na detecção de mais um

caso do transtorno advém da avaliação da conduta e desempenho acadêmicos, torna-se


indispensável que o corpo docente esteja treinado e disposto a colaborar. Toda a escola

precisa estar impregnada do saber sobre o TDA/H, abrindo-se a consultorias e palestras dos

psiquiatras, utilizando as escalas ou questionários específicos produzidos para os

professores.

Se o psiquiatra confirmar que se trata de TDA/H, a cooperação da escola deve

tornar-se ainda maior. A principal tarefa, agora, é a administração da medicação após o

almoço, caso a criança lá permaneça em período integral. Mas, admite-se, isso não é o

suficiente, e novas prescrições são realizadas: o ambiente necessita estar livre de estímulos

excessivos, o tempo de provas deve ser maior do que o dos alunos não-TDA/H, as lições

devem ser explicadas de modo simples e precisam ser executadas em pequenos períodos,

com espaços para descansar ou mesmo para sair da sala de aula. Assim como em casa, a

ênfase recai no respeito às necessidades especiais quanto à gestão da temporalidade e à

organização do espaço, na flexibilização permanente e no reforço positivo aos esforços

e atitudes corretas dessas crianças.

Com a chegada da vida adulta, novas exigências ligadas ao desempenho e sucesso

no trabalho e na vida afetiva parecem moldar as manifestações da patologia, que tanto pode

tornar-se uma vantagem quanto um estorvo para o indivíduo. A impulsividade, um dos três

eixos do TDA/H, toma a dianteira e assume o comando de sua vida. A figura mais típica de

um adulto-TDA/H é a de um “novelty seeking” (Mattos, 2001, p.132), uma pessoa que é

impelida por uma necessidade de mudanças e inovações. Em seu trajeto errante, ele repudia

as rotinas, tenta administrar vários projetos ao mesmo tempo, pode brigar raivosa e

repetidamente com seus superiores, trocar diversas vezes de emprego, nunca conseguir
estabilidade em relacionamentos pessoais, experimentar sexo casual e arriscado, praticar

esportes radicais, buscar o prazer fugidio das drogas ilícitas ou do álcool.

Já na definição da carreira pode-se observar a intromissão do transtorno. Pessoas

assim raramente escolheriam atividades rotineiras, preferindo sempre empregos onde a

tônica seja a ação e a criação. Assim como na infância, a criatividade é um dos maiores

bens desses adultos. Seu cérebro desatento e impulsivo lhes prega peças, mas também lhes

presenteia com a curiosidade e inquietude necessárias para que povoe o mundo com suas

obras. É por isso que se costuma considerar alta a concentração de TDA/H’s no meio

artístico: lá eles estariam liberados para criar sem as exigências de organização tão difíceis

de serem cumpridas. As carreiras esportivas também seriam especialmente atraentes para

essas pessoas que, sem saber, procurariam a atividade física como uma forma de “auto-

medicação” de seu transtorno (Lowe, 2002). A vigorosa energia costuma ser uma de suas

marcas registradas: “Se você conhece uma pessoa cuja definição mais frequente que se

ouve dela é algo como ‘ela é cheia de pique’, você pode estar diante de alguém com DDA

brando” (Silva, 2003, p.36).

Juntos, o desapego por rotinas, a execução de múltiplas tarefas simultâneas e a

busca de novidades poderiam tornar-se um trunfo dos trabalhadores-TDA/H. Porém,

algumas características associadas conspiram contra o seu sucesso. Sua tendência à

procrastinação é uma delas. A insegurança experimentada quando lhes são feitas

exigências de desempenho, levando ao adiamento crônico da resolução de tarefas e a falha

em cumprir prazos podem resultar em um baixo rendimento no trabalho e numa sensação

de inadequação ou incompetência. Mesmo que sua função não lhes demande vigilância

constante, a desatenção extrema e a desorganização típica de uma mente TDA/H levam a


esquecimentos de compromissos, à perda de documentos ou à confusão entre projetos

simultâneos - já vimos que crônicas queixas de memória são frequentes nesses adultos. Os

adultos-TDA/H são fracos estrategistas de médio e longo prazo. Elaborar relatórios,

organizar uma agenda, prever orçamentos: tudo aquilo que envolve um manejo racional do

tempo - ou seja, a habilidade de planejamento - demanda esforços adicionais e

frequentemente infrutíferos. Como se não fosse o bastante, o transtorno também determina

que sua impulsividade e incapacidade de administrar a ingerência dos afetos no cotidiano

do trabalho lhes prive da diplomacia e “jogo de cintura” necessários para seguir adiante na

carreira, pois explosões de cólera e comentários inconvenientes estão sempre na iminência

de ocorrer - e ocorrem. O entusiasmo inicial por uma nova tarefa rapidamente decai e dá

lugar à desmotivação e ao tédio. De malogro em malogro, instala-se a certeza da

incapacidade para gerenciar seu cotidiano e para levar seus projetos com sucesso até o êxito

final, promovendo uma auto-avaliação que sublinha suas deficiências em detrimento de

suas qualidades. Tudo isso aparece em relatos como o desse executivo-TDA/H:

“Eu sempre me enrolava com prazos, projetos que deviam ser tocados em
uma sequência definida... quando minha sócia me perguntava a quantas
andava este ou aquele projeto, eu me enrolava todo, fosse porque estava
tocando tudo de forma atabalhoada, fosse porque eu ainda não tinha
resolvido alguma questão importante ou mesmo até quando estava
correndo tudo muito bem. Eu sempre respondia a primeira coisa que me
vinha à cabeça, na ânsia de me justificar, sempre na defensiva. Como eu
já tinha dito, até mesmo nos projetos em que tudo estava correndo muito
bem. Talvez porque, lá no fundo, eu sempre tenha a sensação de que algo
está errado, de que eu estou falhando em alguma coisa ou que não estou
sendo cuidadoso o bastante” (ibid., p.25).

Os traços esculpidos pelo TDA/H infiltram-se, ora insidiosa, ora agudamente, em

outras circunstâncias da vida social. A desatenção e a falta de memória fazem com que a
pessoa, com frequência, passe pelo constrangimento de falhar em reconhecer alguém que

venha cumprimentá-la, de não conseguir repetir uma informação que acabou de ser exposta,

de não notar que o tópico de uma conversação já foi mudado, de não se recordar onde

estacionou seu carro. Sua impulsividade lhe faz ter a fama de “grossa” ou “imprevisível”,

pois sai da sala no meio de uma reunião ou de um encontro social e diz o que lhe vem à

cabeça, sem pensar em consequências. O alto potencial criativo atribuído ao TDA/H parece

falhar quando aplicado à gestão de seu cotidiano e relações pessoais, onde ficam evidentes a

pouca flexibilidade de suas condutas e sua tendência a repetir sempre as mesmas atitudes,

mesmo sem bons resultados. Além disso, costuma mostrar-se inquieta e impaciente, não

tolerando permanecer muito tempo na mesma situação ou ambiente, e com frequência

precisa de vários estímulos simultâneos - TV ligada, som alto, internet - ou do movimento

de um automóvel para experimentar a sensação subjetiva de “relaxamento” que não

consegue extrair de recintos silenciosos e estáticos:

“‘Cristina era psicopedagoga e muito bem considerada profissionalmente.


Era descrita como ‘ativa’ e se ocupava de inúmeras tarefas na escola em
que trabalhava. Sempre estava envolvida em alguma coisa, todo o tempo.
Levava inúmeras coisas de trabalho para casa. Certa ocasião seu marido
resolveu passar um feriado numa praia do Nordeste, num confortável
hotel afastado de tudo. Já no segundo dia, Cristina pedia para voltar para
casa senão ‘ia ficar louca’ porque não havia nada a fazer! O marido, que
estava adorando toda a calma e tranquilidade que o local proporcionava,
não entendeu. Ela disse que sua mente sempre tinha que se ocupar de
algo fosse o que fosse, e ali não havia simplesmente nada para fazer. Se
deitasse na areia, pouco depois levantava e ia para o mar, voltando em
seguida, procurando algo para jogar, corria, voltava ao hotel, enfim,
procurava se ocupar de qualquer coisa. O marido percebeu com maior
clareza que toda aquela atividade que a esposa sempre tinha não era por
conta da quantidade de trabalho que lhe impunham - ela mesmo é que
procurava um monte de coisas para fazer, o tempo todo’” (Mattos, 2001,
p. 128).
Uma série de delícias e dissabores da vida afetiva também têm sido compreendidos

como efeitos colaterais do TDA/H. Os portadores do transtorno, especialmente os mais

hiperativos e impulsivos, costumam amar intensamente, sofrem, envolvem-se todo o tempo

em discussões e brigas passionais. São sedutores e apaixonantes mas, assim como ocorre na

vida laborativa, precisam de estímulos constantes, e isso provoca desde separações

frequentes, traições e busca frenética de novas experiências sexuais até uma necessidade de

exclusividade e fusão com o objeto da paixão. Quando consegue estabelecer um

relacionamento duradouro, o portador do transtorno exige paciência e compreensão de seu

parceiro. Com sua necessidade de movimento e busca de novidades, o cônjuge com TDA/H

pode se entediar com o casamento e passar a se dedicar em excesso ao trabalho ou ao lazer,

destinando pouco tempo para a companheira. Caso seja “predominantemente desatento”,

ele repetidamente demonstra não reparar no que lhe é dito e tende a devanear, o que pode

levar o parceiro a rotulá-lo como um egoísta ou um “narcisista patológico”. Os

esquecimentos de aniversários, compromissos ou datas de pagamentos, a tomada impulsiva

de decisões sem levar em conta a opinião do outro - tudo isso vai minando a relação sem

que ambos saibam existir um diagnóstico que poderia poupar anos de ressentimentos e

acusações mútuas. Eis aqui uma amostra do sofrimento de uma esposa às voltas com um

marido-TDA/H:

“Não, ele não bate em mim, não me engana, não bebe, não joga. Só que
se comporta como um garotinho irresponsável. Não me importo que ele
fique mudando de emprego porque não acha muito interessante ser
médico. Não me importo que ele acorde de madrugada porque está
entediado e queira voar (...). Não me importo que Sam seja incapaz de
guardar suas coisas, ou lembrar onde elas estão, ou que se esqueça dos
aniversários das pessoas. Não me importo que ele não consiga assistir a
um programa de tevê por mais de cinco minutos sem que precise ver o
que está passando nos outros canais, mesmo que esteja gostando do
programa a que está assistindo... Nada disso me perturba muito. Mas o
que me incomoda é ele não saber que eu existo. É tão ensimesmado que
para ele não faria diferença se eu fosse um robô. Ele não tem a mínima
idéia do que seja a minha vida íntima, nem sequer desconfia que eu tenho
uma. Sam não sabe quem eu sou. Após oito anos, o homem com que
estou casada não me conhece. E ele não sabe que não me conhece; é o
que torna tudo um inferno. Nada disso o incomoda, ele é tão
desatento!”(Hallowell e Ratey, 1999, p. 139-140).

“Quando o DDA está na raiz de um casamento sob estresse”, comentam os

especialistas, “o diagnóstico pode ser ofuscado, pois os problemas podem parecer com os

de qualquer outro casal” (ibid., p.138). Com a vulgarização do diagnóstico e o potencial de

identificação que oferece, como estabelecer critérios para diferir um “casal qualquer” de um

outro atormentado pelo TDA/H? Na dúvida, se o relacionamento está em crise, é melhor

reservar ao transtorno o lugar de uma provável e bem-vinda explicação. Até mesmo os

problemas sexuais que aparecem no casamento podem estar apenas mascarando o

transtorno. Segundo Hallowell e Ratey (ibid.), enquanto alguns adultos com TDA/H

precisam do estímulo constante da atividade sexual, que lhes ofereceria rara possibilidade

de concentração e absorção, outros aparentariam desinteresse ou frigidez, mas na verdade

teriam apenas uma intensa tendência à distração durante o ato sexual.

Assim como ocorre com as crianças e seus pais, a maior parte desses adultos não

sabe que suas atitudes são determinadas pelo TDA/H. Durante toda a vida foram tratados

como irresponsáveis, desequilibrados, pouco esforçados, desinteressados. Sempre

escutando as mesmas opiniões sobre seu modo de ser e suas dificuldades pessoais ou de

relacionamento, podem tentar atribuir a terceiros seus percalços ou solidificar uma auto-

imagem baseada na noção de ser uma impostura ou uma fraude, mesmo que ocorram

lampejos de brilhantismo eventuais. Neste caso, sentindo-se responsabilizados ou culpados,


podem procurar a psicanálise e passar anos tentando entender o porquê de se sabotarem

inconscientemente ou buscando as causas de suas condutas nas relações precoces com seus

pais. Ter acesso a uma nova descrição para seus problemas - no fundo, para toda sua

identidade e história -, a qual conta com respaldo médico e “científico”, costuma gerar um

arrebatamento que resulta numa adesão entusiasmada:

“‘Um alívio enorme! Enfim havia um nome para isso, especialmente para
aquelas reações emotivas que tinha diante de provocações. Eu pensava
que fosse uma histérica típica, ou qualquer coisa assim, e tudo o mais;
não ser capaz de ficar sentada quieta, subir na caixa d’àgua, as brigas, ser
bagunceira, ter problemas na escola. As coisas se encaixam, e o melhor
de tudo é ter um nome para isso (...)’” (ibid., p. 41).

“Qual não foi minha surpresa e alívio ao descobrir que todo o meu jeito
enrolado de ser não era devido a uma incapacidade básica que eu tinha
para lidar com a vida, e sim a algo chamado Distúrbio do Déficit de
Atenção” (Silva, 2003, p. 124).

Após o espanto inicial, episódios da vida ganham novo sentido, experiências

diversas vão sendo detalhadamente englobadas pela descrição do quadro. A culpa se

dissipa, mas pode dar lugar a um sentimento de raiva ou impotência por ter se sentido

responsável e ter convivido tanto tempo com algo que era apenas produto de um mal-

funcionamento cerebral. Todo o esforço e sofrimento poderiam ter sido minorados caso

houvesse acesso mais cedo ao diagnóstico do transtorno:

“Tereza era psicóloga e ao término de um curso sobre TDAH me


procurou e disse que se sentia bem e mal ao mesmo tempo depois do que
tinha ouvido. Sentia-se bem porque havia descoberto um nome para o que
tinha e sabia agora que existiam outras pessoas com o mesmo problema e
que ele era bem estudado. Também sentia-se feliz porque existia um
tratamento. Sentia-se mal, por outro lado, porque passara muitos anos
submetendo-se à psicanálise, na qual a tônica sempre era o fato de que
‘ela se boicotava’ e ‘não queria inconscientemente melhorar, ter
sucesso’”(Mattos, 2001, p.48-49).

Um homem que teve conhecimento de seu TDA/H aos 27 anos descreve, numa carta

para sua irmã, uma experiência mais dolorosa, misturando tristeza e resignação:

“Esse negócio de DDA não apenas me bloqueou no sentido de conseguir


fazer as coisas que se esperava que eu fizesse, mas o fez de tal maneira
que eu (junto com a maioria dos outros afortunados) passei a acreditar
que minha incompetência era uma questão de escolha e portanto uma
grande fraqueza de caráter. (...) Seu irmão, a quem você tinha declarado
amor e afeição, lhe conta que tem um distúrbio neurológico de
proporções extremamante significativas, o DDA, cujos desdobramentos
literalmente deformavam cada ato, relacionamento e pensamento meu.
(...) Eu não tinha controle dessas funções mentais que permitem manter o
interesse em qualquer coisa significativa na vida” (Hallowell e Ratey,
1999, p.184, grifo dos autores).

Submeter-se a essa verdade quando adulto exige desses indivíduos um enorme

esforço para dispensar velhos conceitos sobre si, num processo de busca ativa do

esquecimento - o que, para quem já se queixa de escassez de memória, pode não ser tão

difícil assim... Para isso, eles contam com os grupos de portadores, onde se unem a pais e

crianças, estimulados a trocar experiências e oferecer alívio e suporte mútuo, na tentativa de

eliminar a atmosfera “negativa” que cerca o diagnóstico. Juntam-se a eles diversos

profissionais do campo psi - em geral psiquiatras - que fazem questão de se apresentar

como portadores do transtorno, o que os aproxima da irmandade TDA/H mas também

reforça seu saber sobre a síndrome, pois dela conhecem os dois lados. Com frequência tais

grupos tornam-se o principal lugar de circulação social dessas pessoas ou de famílias

inteiras, e o vocabulário que envolve o TDA/H transforma-se em sua nova língua no

manejo e compreensão de si mesmos ou de seus filhos. A sociabilidade oferecida por essas


entidades é complementada por uma proliferação de jornais e páginas eletrônicas, nos quais

os participantes aprendem e discutem sobre seus direitos como familiares e portadores de

uma situação “incapacitante”. A ênfase, entretanto, é nas manifestações “positivas” do

transtorno, no exorcismo de antigas concepções “culpabilizantes”, e na “celebração da

criatividade” TDA/H. Idiossincrasias são confessadas, comparadas e até convertidas em

pilhérias, e se compartilham técnicas de enfrentamento dos problemas e maximização das

potencialidades. “Venha descobrir como lidar com estas dificuldades e transformá-las em

dons”, convida o site Hiperatividade (2003). A identificação com o TDA/H e o ingresso em

sua comunidade pode ter o significado de uma nova gênese pessoal, como comemora essa

ex-funcionária pública:

“‘Quem não sabe o que é sofrer de TDAH e ser chamada de ‘carga de


preguiça’ a vida inteira pode não entender, mas poucas vezes me senti tão
feliz. A sensação que tenho é a de que eu fui concebida novamente agora,
e que minha vida vai recomeçar. E daqui para frente vai ser muito
melhor” (Pereira, 2003b).

3.2 - É o indivíduo-TDA/H um indivíduo-palimpsesto?

A crescente adesão de pais e outros adultos às descrições oferecidas pelo TDA/H

revela a potência dessa entidade como refúgio bioidentitário para aqueles cujas condutas

lhes acarretam mal-estar ou inadaptação, ao se chocar com as expectativas sociais de

eficácia acadêmica, laborativa ou afetiva. Como visto no primeiro capítulo, num mundo
sem marcos sólidos, onde a tradição e coletividade não mais se oferecem como fiadoras na

construção de uma história de vida, os atributos corporais são elevados a fonte quase

exclusiva de doação de identidades não apenas para os “normais”, mas também para

aqueles considerados desviantes ou anormais. O TDA/H parece estar emergindo (em países

como o Brasil) ou já se estabelecendo (como nos EUA) como entidade privilegiada a

oferecer uma “bioidentidade patológica” a milhares de pessoas. Mas, além das

peculiaridades de sua construção no interior do campo médico, examinadas no capítulo

dois, o que mais tem lhe garantido, dentre as diversas patologias do cardápio psiquiátrico,

esse lugar de destaque? Por que ele, e não qualquer outra categoria que se suponha, ainda

que vagamente, radicada nos circuitos cerebrais de suas vítimas? Estas questões guiarão

esta última parte da dissertação, e tentaremos respondê-las em três tempos. No primeiro,

utilizaremos as teses expostas no capítulo um, cotejando a descrição dos traços subjetivos

dos indivíduos contemporâneos com aqueles dos portadores do TDA/H. No segundo,

visitaremos as proposições de outros autores, como Diller, Dumit, DeGrandpre e Werner

Jr., os quais já forneceram tentativas de leituras não-fisicalistas do fenômeno TDA/H,

ajudando a entendê-lo em sua relação com o panorama social e econômico. E, no terceiro,

concluiremos nossa hipótese sobre o transtorno focalizando as mudanças ocorridas na

atenção com a chegada da modernidade, a partir das teses apresentadas por Crary. Tudo

isso para auxiliar a compreensão das matrizes culturais de seu transbordamento do

envólucro médico, sua penetração em outros campos da sociedade e seu poder de engendrar

bioidentidades. Comecemos com um breve retorno a Bauman, Sennett e Lasch.

Nas obras dos principais arquitetos do TDA/H, especialmente em Barkley e sua tese

das disfunções executivas, observa-se uma transposição de vocabulários apropriados a


condutas sociais cotidianas, contextualmente determinadas, para o campo da psicopatologia

e do localismo cerebral. Deparamo-nos, assim, com estreitas semelhanças entre as

descrições das subjetividades contemporâneas e o “perfil” do indivíduo-TDA/H,

exposto acima. Tais pontos de contato entre os dois fenômenos, mais que resultantes de

equívocos metodológicos na abordagem desses problemas ou de puros artifícios de

linguagem, constituem-se, em nossa opinião, numa das fontes do vigor e do poder de

cooptação demonstrados pela figura do TDA/H na atualidade. O empréstimo que as

descrições do TDA/H fazem de um vocabulário próprio a tematizações filosóficas,

sociológicas ou psicológicas de fenômenos humanos evidencia o quanto sua existência

depende menos do jogo de forças interno à ciência médica, e mais de um amplo arranjo

cultural a lhe respaldar e ressoar. Tomando o cuidado de não incorrer no equívoco de

reduzir um ao outro, pois trata-se de fatos descritos em campos diferentes e com objetivos

distintos, pensamos que a elevação do TDA/H a uma das “patologias-paradigma” da cultura

extrai dessas afinidades parte de sua força, pois seus portadores padecem de ambiguidades

comuns aos sujeitos atuais. Por um lado podem e desejam gozar os frutos de seu impulsivo

desapego a mesmices e rotinas, força motriz de sua criatividade e aventureirismo; por outro

sofrem com a constante exposição a riscos e com as exigências de eficácia e sucesso, seja

na vida escolar ou no trabalho. Ambos parecem fadados à errância e à busca por um

desfrute irrefletido do presente, consumindo sensações num corpo em incessante

movimento, desviando rapidamente sua atenção para novas atrações.

As modificações no manejo do tempo são, para Bauman e Sennett, fundamentais na

constituição das subjetividades atuais. No lugar da administração segura e previsível de

uma vida, aparece a experiência do tempo fragmentado e da obsolescência do sentimento de


“longo prazo” - a “destemporalização do espaço social”. O desenraizamento e a desfiliação

resultam numa reificação do presente e do provisório, visando a adaptação através do

movimento contínuo. Perdem-se o cultivo da história passada e dos planos de futuro. O

indivíduo-TDA/H, por sua vez, também sofre com a incapacidade de adequar seu

comportamento presente à previsão das suas consequências futuras, com predomínio dos

interesses e prazeres imediatos. Pode-se dizer, a partir das teorias de Barkley, que ele

padece de uma doença da temporalidade. De um defeito inato em sua “central executiva”

temporal resultam sua impulsividade e desatenção, não havendo como sua “inibição

comportamental” atuar adequadamente e permitir-lhe sustentar respostas que visem

objetivos mais tardios ou postergar recompensas. Tudo isso leva à “confusa relação que as

pessoas com DDA têm com o tempo: em vez de se ater a atividades discretas que criem

sensação de momentos separados, a pessoa não consegue deter o fluxo incessante de

acontecimentos. Tudo se passa ao mesmo tempo, sem freios ou inibição” (Hallowell e

Ratey, 1999, p.334).

Essa vivência temporal anômala, associada às dificuldades de atenção, prejudica a

memória dos TDA/H’s: “They should not be able to hold information in mind as well as

others (...)” (Barkley, 1997, p. 238). Os adultos, principalmente, tendem a eleger os

esquecimentos como um de seus problemas principais quando relatam seus sintomas.

Porém, o que costuma provocar-lhes dissabores é menos a fixação defeituosa de lembranças

e mais o seu fracasso em “articular as metas futuras com o registro de material passado”

(Mattos et al, 2003, p.67), ou a falência da “habilidade de rever as experiências passadas,

avaliar as experiências atuais e planejar” (Hallowell e Ratey, 1999, p. 328). É isso que lhes

impede de fazer um uso racional dos episódios vividos, já que esses lhes parecem dispersos,
fora de sequência, sendo-lhes difícil transformá-los em ações úteis. Para um TDA/H, “a

vida parece ser descontínua; não há senso de história. Cada nova experiência é vivida de

forma desconectada da história do indivíduo” (id.).

A “efêmera memória” que o homem atual preserva dos episódios que constituem

sua história de vida, como descreveu Bauman, e a precariedade da construção de

narrativas a partir do mundo do trabalho, apontada por Sennett, certamente têm outras

matrizes, mas compartilham das mesmas descrições reservadas às debilidades de síntese

psíquica - a “memória de trabalho” - daqueles que padecem de TDA/H. A modo da

“identidade de palimpsesto” baumaniana - marcada pela facilidade em substituir adereços

identitários antigos pelos últimos lançamentos do mercado global - o portador do transtorno

é constantemente invadido pela impressão de que os novos episódios da sua vida não vêm

completar, mas sim apagar os anteriores. Viver de impulso em impulso, com a atenção

desviada de estímulo em estímulo, gera uma existência fragmentada. A dificuldade de criar

narrativas pessoais estáveis pode trazer-lhes desvantagens adicionais no mundo atual, mas,

em princípio, um eficaz manejo desse traço também poderia produzir bons resultados. O

trabalhador-TDA/H deveria ser facilmente adaptável ao novo mundo laborativo descrito por

Sennett, com seus papéis pouco definidos, tarefas que mudam sempre, trabalho em grupos

que continuamente se refazem, imprevisibilidade e deslocamentos geográficos, aparente

abolição de hierarquias e rotinas. A flexibilização é a necessidade mais fundamental do

novo capitalismo e também dos indivíduos-TDA/H, e por isso o casamento entre ambos

poderia ser perfeito.

Entretanto, na cultura do risco, o que leva um indivíduo ao sucesso também pode

deixá-lo a um passo da ineficácia. Para o portador do transtorno, a procura por maior


flexibilização do ambiente próximo não corresponde a uma maior flexibilidade pessoal.

Pelo contrário, rever uma decisão ou conduta equivocada lhe é uma difícil tarefa. Além

disso, a tendência a trocar um planejamento futuro por uma gratificação imediata e a

incerteza permanente que decorre do desfrute desse presente incessante, junto com sua

procrastinação, desatenção e desorganização, também podem conduzi-lo à ruína financeira

ou pessoal. Aí está um dos motivos que tem levado pais de crianças desatentas ou adultos

com o transtorno a buscarem ajuda especializada, apesar dos atributos “positivos” -

criatividade, bom-humor, empreendedorismo - que o TDA/H lhes proporciona.

A invasão das famílias por médicos e outros especialistas durante o século passado,

e a submissão a suas prescrições, como mostrou Lasch, preparou o terreno para que o

ideário do TDA/H venha penetrando tão rapidamente na cultura contemporânea e para que

sua aprovação venha crescendo. Assombrados pelo risco de insucesso de sua prole no

mundo da competição individualizada ou por sua baixa produtividade no trabalho, as

pessoas recebem dos profissionais, além da onipresente Ritalina, uma oferta de estrutura,

de uma rotina mínima - enfim, de um roteiro. A construção desse roteiro, difícil para todos

nestes tempos de identidades fragmentadas, não será realizada a partir da história pessoal do

indivíduo-TDA/H, muito menos de sua introspecção. Todos os esforços apostam na criação

de uma mente ou cérebro externos, na viabilização de uma estrutura ambiental que possa

compensar a fragilidade de seus recursos interiores. “Enquanto todos nós precisamos de

estrutura externa em nossas vidas - algum grau de previsibilidade, rotina, organização - ”,

comentam Hallowell e Ratey (1999), “ os que têm DDA precisam disso muito mais do que

a maioria das pessoas. Precisam tanto de estrutura externa porque lhes falta estrutura

interna” (ibid., p.119). Outros autores concordam: “Essas crianças precisam do ambiente
para estruturar externamente o que elas têm dificuldade de estruturar internamente” (Rohde

e Benckzic, 1999, p. 80). Barkley, que, como vimos, considera o TDA/H como um atraso

na “internalização” (na formação das “funções executivas”), empresta verniz teórico a essas

impressões oriundas da clínica. Ele observa que os portadores do transtorno são mais

governados pelo contexto que pelos conteúdos representados internamente, e conclui: “(...)

the mental lives of those with ADHD would have to be more ‘externalized’ than

‘internalized’, that is, more public in nature” (Barkley, 1997, p.249).

Consequentemente, para o indivíduo-TDA/H, a introspecção é uma experiência

inútil ou mesmo dolorosa, e é claramente desaconselhada. Nela, ele só encontra ruminações

incessantes e severos sermões auto-acusatórios. Nenhuma verdade pode ser descoberta na

convulsão permanente de seu mundo interior, pois o transtorno subverte e trapaceia,

falseando a auto-avaliação. A revelação do diagnóstico e a nova compreensão de si que ele

acarreta dá início a uma “bionarrativa” que será majoritariamente escrita com a ajuda de

técnicas de gerenciamento pessoal, prova última da decadência da interioridade como arena

na qual se travam os embates que constituem um sujeito. Por isso lhe são oferecidas as

terapias cognitivo-comportamentais (TCC), como o chamado “Treino em Habilidades

Sociais”, que inclui técnicas de entrosamento social, de conversação, de resolução de

conflitos e de controle da raiva (Mattos, 2001). Todas abdicam do mergulho na

interioridade, propõem a “reestruturação cognitiva” e enfatizam a gestão eficaz do ambiente

exterior, chegando mesmo a prescrever uma resignação produtiva com as características do

transtorno que não se pode mudar. Sua prática acarreta uma oposição quase hostil ao uso de

técnicas e leituras psicanalíticas nos pacientes com TDA/H. Ao insistir na gênese

psicodinâmica dos sintomas, considerando-os como reações neuróticas a conflitos internos


ou respostas da criança à verdade do par familiar, a psicanálise é acusada de ter desviado a

atenção do verdadeiro problema ou de fomentar concepções que incriminam os pais pela

doença dos filhos. Ela seria renitente resquício de uma antiga ordem, romântica e anti-

científica, a ser superada pela redução dos problemas “mentais” a seus componentes

materiais. Seu convite ao mergulho no universo interior teria até mesmo efeitos

iatrogênicos, como argumentam Hallowell e Ratey (1999), a respeito de um par de gêmeos

com o transtorno: “O tratamento que haviam recebido na escola especial, visando não ao

DDA mas antes a trazer à tona conflitos inconscientes, poderia ter causado grandes

prejuízos nas crianças se não tivesse sido interrompido” (ibid., p. 80). Mesmo os problemas

psicológicos que podem aparecer secundariamente ao TDA/H, como ansiedade, depressão

ou diminuição da auto-estima, deveriam ser abordados através das TCC. Reforça-se, assim,

a ruptura com o internalismo psicológico, pois não resta nenhuma interioridade ou sentido

oculto a ser desvelado. Em sintonia com as considerações de Sfez sobre a utopia da Saúde

Perfeita, os sintomas não portam nenhum valor simbólico. Não há nada além da superfície,

por baixo da manifestações clínicas, como revela o raciocínio de um dos autores:

“Algo muito comum é achar que por meio da psicoterapia pode-se


descobrir as ‘verdadeiras causas’ de todo e qualquer problema
comportamental, não havendo necessidade de se empregar
medicamentos. Os medicamentos tratariam os sintomas, mas não a causa,
do mesmo modo que a aspirina tira a febre, mas não resolve a infecção
que está causando a febre. A analogia parece muito bonita e é inclusive
lógica, acontece que é inteiramente falsa. (...) Os sintomas clínicos do
TDAH (desatenção, hiperatividade e impulsividade) são a própria
doença” (Mattos, 2001, p.54, grifo nosso).

Os grupos que promovem e estimulam a biosociabilidade no campo do TDA/H têm

nessa superficialização uma das molas-mestras de seu sucesso. Irmanando portadores, pais
e especialistas em torno da crença nas determinações fisicalistas do transtorno, eles põem

em prática a “dissolução da categoria do social” da qual falou Rabinow. Grupos como o

americano CHADD tornam-se uma importante força social ao colocar no centro das

políticas públicas as demandas de uma comunidade unida por uma doença genético-

cerebral. Para isso, precisam homogeneizar a experiência do transtorno e finalizar a tarefa

da contemporaneidade de enterrar o sujeito romântico interior, elegendo para seu lugar um

ser marcado quase exclusivamente pelas manifestações corporalmente externalizadas de sua

atenção e ação. Em suas formas de “bioativismo”, especialmente via internet, portadores e

familiares demonstram ter assimilado as lições dos profissionais e as reproduzem sem

necessitar de sua vigilância constante, por meio da troca de informações e da “tomada de

controle através do conhecimento”, como advoga um dos endereços eletrônicos (Lowe,

2002).

Assim, o portador do TDA/H, seja ele criança ou adulto, tem a sua disposição uma

absolvição neurológica para seu ar distraído, sua busca incessante de novidades e sua

incapacidade de planejamento futuro. Agora ele sabe, por exemplo, que seu cérebro se

utiliza das mudanças como uma medicação estimulante a lhe oferecer uma provisória fonte

de concentração. Não precisa mais olhar para dentro de si, para suas relações familiares ou

sua biografia para entender suas deficiências e potencialidades, estando autorizado a

dispensar concepções morais, leigas e psicológicas que só serviram para produzir pais

culpados, agravar os desvios dos filhos e diminuir a auto-estima. Tudo que necessita para se

conhecer está logo à mão, na concretude do corpo. Atinge aqui seu ápice o processo,

descrito por Sfez, de indiferenciação entre ser e aparência. Não apenas tudo aquilo que se

sabia de si passa a ser atribuído a uma disfunção cerebral, mas ter um TDA/H dá lugar a ser
um TDA/H. A única interioridade da qual ainda cabe falar não tem qualquer sentido

metafórico ou simbólico, mas refere-se concretamente aos lobos pré-frontais ou aos genes

que controlam a produção de neurotransmissores. Neles encontra-se a garantia e o sentido

da existência de quem conta com pouco mais que o próprio corpo para conhecer a si e o seu

lugar no que ainda merece ser chamado de comunidade humana.

Há condições de retornar agora à pergunta do título deste tópico: o indivíduo que

tornou-se “um TDA/H” é o mesmo que Bauman descreveu como portando a identidade de

palimpsesto? Sabemos que a identidade de palimpsesto é uma categoria geral, que tenta

dar conta das fragilidades da constituição e continuidade das narrativas pessoais dos

homens contemporâneos. Não engloba exclusivamente os fenômenos biomédicos, podendo

aplicar-se a diversas áreas e temas da cultura atual - dos estilos de vida no campo

empresarial àqueles do mundo da moda, consumo e espetáculo; da sociabilidade oferecida

pela internet às novas formas de ligação com a religiosidade. Mesmo esferas nas quais a

figura do TDA/H tem penetrado fundo ao oferecer uma leitura reducionista de experiências

e condutas - a escola, o trabalho, a vida amorosa ou as relações entre pais e filhos - sofrem

influências do desenraizamento e desfiliação contemporâneas que transcendem, e muito, o

poder explicativo de uma alegoria neuropsiquiátrica. As tentativas de tornar o TDA/H uma

entidade que a tudo explica, abrangendo estilos de vida e traços de caráter - os “traços

DDA” -, poderão, por seu exagero, facilmente cair no descrédito e no ridículo. Entretanto,

tão inegável quanto a irredutibilidade do TDA/H ao palimpsesto é o fato de que, dentre as

identidades (psico)patológicas, aquela oferecida por esse transtorno mostra ser uma das que

melhor espelha a fragmentação do “colecionador de sensações” de Bauman, transferindo

para uma figura nosológica a experiência da errância e provisoriedade dos homens


contemporâneos. Apesar de não se equivalerem, ambas parecem nutrir-se reciprocamente, e

o transtorno deve parte de sua rápida propagação e persuasão ao fato de suas descrições se

sobreporem às de um tipo de subjetividade cada vez mais prevalente. Pode-se mesmo

conjecturar que uma figura como a DCM, embora tendo desfrutado de certo sucesso em seu

tempo, não prosperou por não dispor de um contexto semelhante ao atual, a estabelecer

como regra uma extrema flexibilidade identitária. Além disso, se a repetida troca de papéis

e ideais ameaça gerar angústia, ao inviabilizar a criação de hábitos e de um eu sólido, o

TDA/H se apresenta como um modo de estabilizar o palimpsesto, sem exigir que se

dispense a busca por mudanças constantes. É dessa contradição que as bioidentidades

organizadas em torno do transtorno parecem se alimentar. O TDA/H habilita-se como

figura corporal com a qual se identificar, um ponto de fixação a permitir que modos

hiperativos, desatentos e impulsivos de ser não precisem deixar de sê-lo, pois é nas

descrições do transtorno que seus portadores podem descobrir quem são.

3.3- Um “novo distúrbio sócio-médico” na era da performance

Alguns autores têm proposto enfoques que levem em conta variáveis da cultura

atual na produção e propagação do TDA/H. Tais abordagens ainda são minoritárias se

comparadas com o volume da literatura “oficial” sobre o transtorno, e seus proponentes são

costumeiramente desacreditados ou encarados como obstáculos aos avanços científicos,

como já comentado no capítulo dois. Com o intuito de enriquecer a hipótese apresentada no

tópico anterior, nos deteremos em algumas das teses críticas já elaboradas sobre o tema.
Dumit (2000) considera o TDA/H uma das “novas desordens sócio-médicas”,

expressão que cunhou para referir-se a uma série de distúrbios emergentes que teriam, entre

outras, as seguintes características em comum: seriam “biomentais”; causalmente

indeterminados; criam identidades e sentimentos de “parentesco” entre seus portadores.

Dumit observa que boa parte das controvérsias sobre esse grupo de entidades (que também

incluiria a síndrome da fadiga crônica e a sensibilidade química múltipla) se dá em torno do

papel das tecnologias de diagnóstico por imagem (PET, SPECT e Ressonância Magnética)

na sua definição. Essas técnicas migram do campo da pesquisa para o do diagnóstico, e

transformam-se em instrumento de pressão em favor dos interessados em validar tais

transtornos. Segundo esse ponto de vista, essas desordens são formatadas principalmente

por movimentos de fora do campo científico: são os grupos de “doentes” e seus familiares,

os tribunais, as agências de seguridade social e as companhias privadas de seguro-saúde,

etc., que exercem papel fundamental para defini-las. Os argumentos de Dumit nos são úteis

para mostrar o quanto variáveis contextuais, como o caráter excludente do sistema de saúde

nos EUA, estimulam uma equivocada utilização de pesquisas científicas preliminares pelos

grupos de portadores, como “prova” da existência de tais transtornos:

“They [the suffers of the new socio-medical disorders] would prefer to


be stereotyped biologically and to risk misdiagnosis rather than being
excluded from diagnosis altogether. The alternative - that there is not yet
enough evidence to decide one way or another regarding the reality and
significance of their illness and therefore they should wait - is simply not
livable given the current status of healthcare in the US” (ibid., p. 221).

Diller (1998) também mostra como fatores tais quais o sistema de managed care, a

política dos direitos das minorias ou a pressão de grupos como o CHADD por ambientes

escolares mais adequados têm ajudado a emergência de uma “cultura TDA/H” nos EUA.
Tendo em sua prática clínica um ponto privilegiado de análise, Diller remete a pressão de

pais e escolas por um diagnóstico de TDA/H e alívio farmacológico às mudanças na vida

familiar americana nas últimas décadas. Mais que um “chemical imbalance”, o TDA/H

seria resultado de um “living imbalance” contemporâneo. A pressão econômica produziu

famílias nas quais ambos os pais necessitam trabalhar fora, reservando a creches e escolas

as tarefas de lidar cotidianamente com suas crianças. Junto com isso, a exigência de sucesso

na vida acadêmica parece estar se impondo desde a pré-escola, e qualquer desempenho

considerado abaixo da média, mesmo que dentro da faixa de variação esperada para aquela

idade, assusta e preocupa os pais. A carreira universitária, antes uma entre várias, é agora

encarada desde cedo como indispensável, mesmo que não demonstre ser a mais adequada

às aptidões e talentos de todas as crianças. Como resultado, a família exige o máximo das

escolas, que vêem as classes se encherem enquanto os fundos públicos para educação são

diminuídos. Na insuficiência da intervenção escolar, a hipótese TDA/H localiza no

indivíduo e em sua constituição biológica a explicação dos insucessos acadêmicos.

Uma série de pressões são realizadas para oferecer benefícios para aquelas crianças

que largam em desvantagem na competição por sucesso na vida futura. Diller mostra que, à

medida que o TDA/H torna as pessoas elegíveis para receber medidas especiais de proteção,

há um estímulo para o aumento dos diagnósticos do transtorno, e também do recurso ao

tratamento farmacológico. Em 1991, ano em que foi oficialmente incluído na lista de

condições que provocam limitações acadêmicas, nos EUA, houve uma elevação nas taxas

de produção e consumo de Ritalina. Simultaneamente, tem crescido o número de estudantes

a requisitar e receber esse status de deficientes. Na vida adulta, embora o TDA/H não seja

listado como transtorno psiquiátrico que incapacita para o trabalho, caso os empregados
consigam demonstrar que os sintomas prejudicam sua atuação e concentração, podem

requerer mudanças nos horários ou reorganização dos ambientes nos quais exercem suas

funções. As imprecisas fronteiras entre a síndrome e alguns traços de personalidade que

dificultam a adequação às exigências do trabalho na contemporaneidade estimulam o pleito

por vantagens, mas também reforçam a resistência dos empregadores em concedê-las.

Para Diller, a chave para entender a prevalência do TDA/H nos EUA e,

principalmente, o sucesso comercial da Ritalina, reside na ênfase na performance. À

medida que seu padrão econômico se deteriora, a classe média precisa lutar com renovada

dedicação para se afastar da linha da pobreza e manter seu nível de consumo. Nessa batalha,

a existência de uma medicação que pode melhorar o desempenho, independente de um

diagnóstico “real” de TDA/H, torna-se muito atraente. A questão, então, desloca-se de por

que usar a Ritalina para por que não usá-la. Além de apontar para pressões diretas, como

aquelas vindas das escolas, o autor ressalta a criação de um ambiente cultural que,

indiretamente, vem persuadindo as pessoas a aderir ao diagnóstico e ao uso da Ritalina, não

importando se terapêutico ou cosmético. Se o vizinho a usa e apresenta uma melhora da

performance no colégio ou no trabalho, por que também não experimentar seus benefícios,

ao invés de se dedicar de modo extenuante a uma melhor nota ou a conseguir uma

promoção? Diller se pergunta se a Ritalina também trataria de “déficit de motivação”, já

que o mal desempenho de alguns indivíduos se deveria mais ao desinteresse ou

inadequação à tarefa proposta que a uma presumida disfunção neurológica.

Werner Jr. (1997, 2000), um dos poucos médicos brasileiros a abordar o tema de

modo crítico, aponta para questões semelhantes às de Diller. Remontando sua análise à

DCM, este autor considera que o surgimento e aceitação rápidos daquele diagnóstico
podem ser explicados pelo contexto histórico e social dos EUA na década de 1960. Nesse

período, a prosperidade econômica experimentada nos anos do pós-segunda guerra começa

a se enfraquecer e a estabilidade da família americana começa a dar evidentes sinais de

nova crise. Aumenta o número de divórcios, de suicícios e de uso de tranquilizantes,

enquanto a contracultura e o movimento hippie se disseminam. A classe média clama por

uma explicação para os distúrbios de comportamento e para as dificuldades escolares de

seus filhos, e é atendida pelo discurso dos médicos e autoridades sanitárias. Com aval

científico, o fracasso acadêmico e a “indisciplina” se descolam de possíveis matrizes

econômicas, sociais ou familiares e passam a ser atribuídas a mínimas disfunções cerebrais.

Nada mais adequado para eximir as instâncias culturais (como a escola) de sua

responsabilidade frente a tais problemas e para aliviar a culpa de pais pelas dificuldades de

suas crianças e adolescentes. Isso explica a rápida popularidade que a DCM atingiu entre os

pais de classe média, além de poupar suas crianças de serem consideradas deficientes

mentais, pois a inteligência dos portadores da DCM geralmente se localizava na média ou

mesmo acima dela. Nota-se, assim, que tal arranjo não foi preparado para consumo das

classes populares, que continuavam a ver as dificuldades de seus jovens serem tratadas

como efeitos de privação psicosocial ou do retardamento mental. Para os brancos e ricos, os

caprichos da biologia; para os negros e pobres, o despojamento cultural ou a má-formação

cerebral grosseira. Transformada atualmente em TDA/H, a disfunção repete no Brasil a

trajetória americana, e chega até as classes populares quando as escolas públicas passam a

avalizar a medicalização dos problemas que afetam a aprendizagem. Os alunos pobres

tornam-se, então, “duplamente diagnosticados: como padecentes de ‘déficits intelectuais’

(‘retardo mental’ ou ‘privação cultural’) e sutis ‘disfunções neurológicas’ que justificam seu
fracasso escolar” (ibid., 1997, p. 95). Werner Jr. se indaga se, no contexto atual de escassez

de oportunidades de trabalho e desemprego estrutural, a medicina não continuaria a

fornecer respostas política e ideologicamente necessárias para os dilemas da classe média,

por meio de um transtorno que oferece uma justificativa preventiva às futuras dificuldades

de suas crianças no mercado profissional.

Alguns autores defendem que na origem do TDA/H encontra-se a velocidade da

cultura contemporânea. Gerald Block, por exemplo, afirma que “as a result of the increased

level of excitement that permeates our society, more children who in the past may have

been prone to hyperactivity, now are hyperactive”(Block, apud Diller, 1998, p. 98, grifos

do autor). A aceleração do “cultural tempo” - expressão usada por Block em analogia à

aceleração dos tempos musicais desde Bach - ajudaria a manifestação de sintomas latentes

de hiperatividade. Numa abordagem semelhante, DeGrandpre (2000) acredita que as

crianças e adultos atuais estão realmente mais hiperativos e desatentos. Para ele, isso é

produto de uma “rapid-fire culture”, levando a uma aceleração concomitante dos ritmos da

consciência humana (“rapid-fire conscience”). Os EUA, hoje, seriam um país de indivíduos

dependentes de estímulos, que se aborrecem com a lentidão e encontram alívio dessa

“sensory addiction” tanto na busca por mudanças e velocidade quanto na Ritalina. Diller

(1998), entretanto, rebate este argumento perguntando por que outras culturas nas quais o

ritmo de vida é tido como acelerado, como a japonesa, exibem taxas bastante inferiores de

diagnóstico de TDA/H e uso de Ritalina. Para ele, a hipótese proposta por Dorothea e

Sheila Ross pode ser mais útil. Essas autoras defenderam que culturas consistentes - como a

chinesa ou japonesa -, que enfatizam a tradição e os arranjos coletivos, tendem a acolher

melhor as crianças que tendem à hiperatividade. Em contrapartida, culturas inconsistentes,


como a americana, ao estimular o individualismo como caminho para a felicidade e o

sucesso, provocam a manifestação de tendências hiperativas latentes.

Entre o palimpsesto e as idéias expostas neste tópico, nosso argumento introduz a

corporeidade como elemento diferencial na compreensão do contexto cultural que permitiu

a rápida aprovação ao TDA/H. Como o recurso ao corpo vem tornando-se um imperativo

para indivíduos despossuídos de outros referenciais estáveis, a teia de hipóteses sobre o

TDA/H e seu poder de engendrar bioidentidades pode ganhar maior densidade se for

acrescentada às teorias já apresentadas a análise da categoria da atenção na cultura

moderna, oferecida por Crary. Entender a encarnação da atenção, assim como as demandas

ambivalentes às quais deve se submeter, a partir do final do século XIX, irá nuançar a

compreeensão dos impasses das subjetividades contemporâneas e, especialmente, daquelas

agrupadas em torno do TDA/H.

3.4- Atenção e distratibilidade: subjetividade, corpo e tecnologias

perceptivas na modernidade

No livro “Suspentions of Perception”, Crary (2001) despe a atenção de qualquer

descrição naturalista reducionista ou essencialista, tratando-a como uma peculiaridade

humana passível de ser modelada pelos contextos históricos, e não como uma função

universal a ser desvelada pela ciência. Restringindo seu estudo às três últimas décadas do

século XIX e à primeira do século XX, esse autor mostra como a atenção, nesse período,

desbancou a clássica centralidade reservada à consciência nos trabalhos filosóficos,


psicológicos e científicos e tornou-se categoria normativa na descrição das subjetividades

modernas.

O último quarto do século XIX assistiu a atenção, antes apenas uma entre várias

“faculdades mentais” - como o julgamento, a introspecção e a reflexão -, transformar-se no

eixo da vida mental, naquilo que dá coesão à consciência, organiza a experiência perceptiva

do mundo e comanda o comportamento. Uma torrente de obras confirmava seu novo status,

no campo das artes (com os trabalhos de Manet, Seurat e Cézanne), da filosofia (Henri

Bergson, William James, Nietzsche, Charles S. Peirce), da medicina (Charcot, Alfred Binet

e Théodule Ribot) ou da nascente psicologia científica. É no interior desta última disciplina

que se tornou evidente o mais significativo deslocamento na posição da atenção no período.

Nas experiências de Gustav Fechner e Wilhelm Wundt, um indivíduo atento a diversos

estímulos artificiais produzidos no ambiente do laboratório permitia que se tentasse

observar, mensurar e quantificar suas habilidades perceptivas, gerando conhecimento

empírico em forma de tempos de reação, ações reflexas e respostas condicionadas. Para que

a psicologia experimental e suas tecnologias se viabilizassem, a atenção teve que abandonar

o terreno da metafísica e o campo do “mental” e tornar-se uma função claramente alocada

no corpo. A psicometria tornou-se a mais eloquente evidência da mudança na natureza das

senso-percepções, que perdiam seu sentido como fatos exclusivamente “interiores” e

ofereciam-se como passíveis de manipulação pelo instrumental científico.

Como entender a encarnação e elevação da atenção ao centro das preocupações em

praticamente todos os campos da cultura nesse período? Segundo Crary, o conhecimento

mais refinado da estrutura e funções do corpo humano, especialmente da fisiologia óptica,

estimulou uma reconfiguração da subjetividade, que passou a ligar-se de modo


indissociável aos fluxos e tempos corporais. A concepção funcional da atenção - “a model

of how a subject maintains a coherent and practical sense of the world” (ibid., p. 4) - veio

substituir aquela que atribuía à percepção humana a capacidade de capturar a presença e a

essência do mundo “real”. O final do século XIX assistiu ao declínio da idéia de uma mente

passiva e etérea, que apenas se deixa marcar pela natureza dos objetos. A atenção, então,

tornou-se crucial para um conhecimento ativo e pragmático do mundo, e só se podia

entendê-la levando-se em conta os mecanismos fisiológicos da percepção e sua ligação com

a ação motora.

Nesse período, três concepções de atenção disputavam a hegemonia científica e

filosófica. A primeira era a da atenção como um processo reflexo, constituinte do

equipamento evolucionário, visando a adaptação do homem ao ambiente; a segunda, como

determinada por processos ou forças automáticas ou inconscientes; e a terceira, como

atividade voluntária e autônoma do sujeito. Esta última noção, entretanto, era contestada

por estudos como os que envolviam técnicas hipnóticas, e mostravam como a atenção,

supostamente sob o controle da vontade, rapidamente passava a estados involuntários ou

obnubilados. Ficava, então, mais evidente o divórcio entre as noções de consciência e

atenção. No campo da psicologia científica, obras como a de William James indicavam o

deslocamento de uma psicologia associacionista - que tem na consciência a mola mestra do

conhecimento - para uma psicologia funcionalista. Trabalhos de Schopenhauer, Bergson e

Nietschze demonstravam que a filosofia da consciência começava a dar lugar à filosofia

da vida. No lugar da contemplação estática e da reflexão racional, a intuição, o fluxo

constante e a imprevisibilidade tornavam-se, por excelência, os atributos que importavam

na abordagem de uma subjetividade dinâmica e de um mundo desarmônico e veloz. Foi


assim que a atenção passou a ocupar uma posição privilegiada nos estudos das relações do

homem com o seu universo.

Todo esse deslocamento na descrição da experiência da atenção, mais nítido no

interior da filosofia e das ciências naturais, não deve ser compreendido como um

movimento autônomo desses saberes. Além de vincular-se às descobertas médicas sobre o

organismo humano, ele originou-se da lógica dinâmica do capital no final do século XIX e

de sua associação com diversas tecnologias de comunicação e entretenimento surgidas

naquele período. A concepção pragmática da atenção, desbancando a clássica noção de uma

correspondência instantânea e atemporal entre a percepção e o objeto, inevitavelmente

implicava uma fragmentação do campo visual, pois o sujeito devia excluir uma parte do

mundo de seu foco atentivo enquanto concentrava-se em uma outra fração. É exatamente

essa a exigência da ordem econômica e da vida urbana/tecnológica na modernidade, e por

isso o problema da atenção tornou-se, nas palavras de um aluno de Wundt, “(...) essentially

a modern problem” (Titchener, apud Crary, 2001, p. 21).

Para Crary, o modo de produção do capitalismo industrial passou a depender de uma

inédita demanda de “prestar atenção”, de suprimir do campo perceptivo tudo que

comprometesse a eficácia laborativa. Apareceu, assim, a necessidade de impor uma

disciplina de gerenciamento da atenção, o que só foi possível quando esta se localizou no

plano concreto da existência corporal dos indivíduos, permitindo não só sua manipulação

mas também sua vigilância externa. A fábrica, assim como a escola, tornou-se um dos

locais nos quais os corpos individuais eram organizados em torno dos imperativos de

concentração e produtividade. Porém, o acelerado fluxo da economia capitalista e a

organização do trabalho em novas formas de produção em larga escala, junto com o


surgimento de tecnologias perceptivas como o cinematógrafo, o fonógrafo e o telefone,

nutriam-se também do imperativo cultural de desviar o interesse para diversas fontes de

estímulo e consumo. A distratibilidade tornava-se traço inevitável de um sujeito que

transformou a atenção no eixo de sua vida psíquica e social:

“Part of the cultural logic of capitalism demands that we accept as


natural switching our attention rapidly from one thing to another.
Capital, as accelerated exchange and circulation, necessarily produced
this kind of human perceptual adaptability and became a regime of
reciprocal attentiveness and distraction” (ibid., p. 29-30, grifo do autor).

Em meio a uma saturação de estímulos sensoriais e à fragmentação do campo

perceptivo, a inatenção tornou-se produto desejável do arranjo da sociedade de consumo; ao

mesmo tempo, era uma ameaça à própria eficácia laborativa. Instalava-se assim o que Crary

denomina de “crise da atenção” constituinte da modernidade, pois o próprio modo de

produção que necessitava de tenacidade sabotava a tentativa de se estabelecer uma

disciplina perceptual eficaz. A desatenção não pode, portanto, ser compreendida como um

desvio de estados “naturais” de atenção. Ao contrário, ambas, longe de serem condições

qualitativamente diferentes, representam um continuum, “as part of a social field in which

the same imperatives and forces incite one and another” (ibid., p. 51). As tentativas de se

estabelecer um sujeito atento, seja nos estudos de psicologia experimental, na escola ou no

ambiente da fábrica, tiveram como efeito a transformação da desatenção em experiência

constitutiva do indivíduo. Assim, a centralidade do par atenção/distratibilidade tornou-se

um problema na arquitetura das identidades modernas. Ao portar as condições de sua

própria anulação, a atenção não pode ser a fiadora da autonomia individual. Num regime

onde ela facilmente se desdobra em distratibilidade e outros estados patológicos e


irracionais, não há como torná-la ponto de referência estável, no qual a vontade individual

se imponha como soberana no processo de auto-conhecimento ou no conhecimento objetivo

do mundo:

“Though it [the attention] appeared to hold the possibility of building up


stable and orderly (though not necessarily truthful) cognitions, it also
contained within itself uncontrollable forces which would put that
organized world in jeopardy. Within the general epistemological crisis of
the late nineteenth century, attention became a makeshift and inadequate
simulation of an Archimedean point of stability from which
consciousness could know the world. Rather than perceptual fixity and
the certainty of presence, it opened onto flux and absence within which
subject and object had a scattered, provisional existence” (ibid., p. 65).

Se o problema da atenção ascendeu a uma posição de destaque a partir do final do

século XIX, isso também se deveu às estratégias de isolamento e separação levadas a

cabo pelos avanços tecnológicos, sustentadas pelas necessidades do mundo do capital.

Crary utiliza-se do trabalho de Thomas Edison para concluir que o cinetoscópio e o

fonógrafo reforçaram o abandono de formas coletivas de vivência perceptual (típicas do

período “pré-moderno”) e contribuiram para a estruturação da experiência subjetiva

solitária, que se baseia em corpos organizados como unidades de consumo separadas e

especializadas. Esse arranjo de imagens, informações e sons para consumo individual

necessitou das habilidades de um sujeito atento para sustentá-lo. Assim, mesmo com as

posteriores transformações do capitalismo, durante o século XX - enfraquecimento do

modelo centrado na fábrica e a ascenção de formas pós-industriais de produção, com ênfase

na informação e comunicação -, a atenção não se viu depreciada, mas antes revigorou-se

como categoria normativa no mundo ocidental. Sem poder usar o outro como fiador, à

medida que a cultura solapou os arranjos comunitários e as redes de solidariedade, o corpo


atento tornou-se única garantia de sobrevivência e desfrute no mundo, e o indivíduo

depende do equilíbrio entre as forças da atenção e da distratibilidade para agir eficazmente

em seu cotidiano. Novas tecnologias, especialmente a TV e o computador pessoal,

continuam estimulando esse arranjo social, o que pode ser constatado na valorização e

ubiqüidade, na cultura atual, da imagem do homem sozinho em frente a uma tela,

consumindo objetos, diversão e informação continuamente renovados. Isso mantém a

subjetividade contemporânea orbitando ao redor da atenção, como nos mostra o autor:

“In the late twentieth century as in the late nineteenth, the management of
attention depends on the capacity of an observer to adjust to continual
repatternings of the ways in which a sensory world can be consumed.
Throughout changing modes of production, attention has continued to be
a disciplinary immobilization as well as an accommodation of the subject
to change and novelty - as long as the consumption of novelty is
subsumed within repetitive forms” (ibid., p. 33).

Crary encontra ressonâncias de seus argumentos na teorização de Guy Debord sobre

a “sociedade de espetáculo”. Para Debord, no espetáculo a contemplação das imagens ou

seu conteúdo é o que menos interessa: ele é uma estratégia visando o indivíduo, e seu

sentido é o do “desenvolvimento de uma tecnologia de separação”. Fruto do esfacelamento

das formas comunitárias de vida, a sociedade do espetáculo nutre-se da atomização dos

corpos, preparados assim para uma sociabilidade fundada na contínua produção de novas

necessidades, bens e objetos. Crary identifica pontos de convergência entre esta abordagem

e a da “sociedade disciplinar” de Foucault, apesar de reconhecer a existência de diferenças

importantes entre elas. Em ambas, mecanismos difusos de poder atravessam os corpos

individuais (os “dóceis corpos” foucautianos) e por eles são internalizados, criando
expectativas de adequação e normalização. Na encruzilhada entre vigilância e espetáculo, a

atenção torna-se instrumento e alvo privilegiado das formas não coercitivas de poder.

Para Crary, a exitosa propagação do TDA/H nos últimos anos confirma a perenidade

da atenção como categoria normativa, cujas falhas provocam ameaças à coesão social e

transformam em patologia os comportamentos desviantes. A explosão da utilização da

Ritalina, para ele, é a mais clara evidência da ação do poder moderno sobre os corpos, pelo

uso de uma “tecnologia disciplinar” neuroquímica no manejo de tais condutas. O que lhe

chama atenção, pelo contra-senso que implica, é que a metamorfose da tríade desatenção-

hiperatividade-impulsividade em doença é estimulada por uma cultura que depende de uma

sobrecarga de estímulos perceptivos, de uma ubíqua disposição em desviar o alvo da

atenção, da celebração da agressividade e da mobilidade incessante na busca de sucesso e

prosperidade. Esse aparente paradoxo decorre da ambivalência inerente à atenção, da

modernidade até os dias atuais. Exige-se que o indivíduo, a fim de obter uma boa

performance em todas os recantos da vida, mantenha-se concentrado em suas atividades,

mas também que demonstre uma disposição maleável de trocar o foco de interesse quando

desejar ou lhe for requerido. As mesmas forças que produziram corpos que, sedentários e

isolados em torno do computador ou da TV, atendem eficazmente ao imperativo de

consumo e espetáculo, também deram origem a condutas ineficazes e socialmente

inaceitáveis. Para estas, o TDA/H e a Ritalina servem como um novo - talvez o mais

potente, mas provavelmente não o único - regime disciplinar sobre a atenção.

Entretanto, o caráter fugidio da atenção impõe dificuldades para seu

disciplinamento. Já tendo indicado não ser uma sólida referência para o exercício de uma

vontade autônoma, ela também mostra-se um escorregadio objeto nas mãos dos
mecanismos de poder. À medida que se modificam as circunstâncias culturais nas quais é

gestada, surgem inevitável e simultaneamente novas modalidades de desvios, alterando os

limiares a partir dos quais uma atenção competente transforma-se em estados de

distratibilidade e devaneio. Mesmo entre esses últimos, a separação entre uma desatenção

normal ou “positiva” e uma “negativa” ou patológica não é clara:

“The realization that attention had limits beyond and below which
productivity and social cohesion were threatened created a volatile
indistinction between newly designated 'pathologies' of attention and
creative, intensive states of deep absorption and daydreaming” (ibid.,
p.4).

Ao contrário do TDA/H, experiências como o devaneio e a fantasia não se

mostrariam tão fáceis de serem reguladas e, a partir delas, a atenção poderia transformar-se

em pólo de criação e resistência individual a tentativas de controle. Porém, a disseminação

das novas tecnologias de informação tem estabelecido uma dura concorrência com o livre

devaneio e a distratibilidade necessária aos indivíduos. O computador, o cinema e a TV,

mesmo quando supostamente “interativos”, competem com a fantasia autônoma das

pessoas e têm produzido “an unprecedented mixture of diffuse attentiveness and quasi-

automatism” (ibid., p. 78). Isso aparece quando se examina o comportamento dos

indivíduos no manejo de tais tecnologias - é duvidoso se há atenção consciente ou um

mecânico padrão auto-regulado de respostas. O que importa, para Crary, é que essas formas

de automatismo produzem estados de absorção que não implicam em uma interiorização.

Na verdade, o milieu tecnológico só deixa mais evidente que o regime de atenção moderno

vem tomar o lugar que uma vez foi ocupado pela auto-reflexão. Mais que apenas uma

característica particular de modos de absorção produzidos pelos equipamentos de


comunicação e entretenimento, a dispensa da interioridade é um traço geral, tão constitutivo

da cultura perceptiva moderna quanto a radical individualização que ela patrocina. “The

logic of spectacle prescribes the production of separate, isolated, but not introspective

individuals” (ibid., p. 79), conclui o autor.

São esses indivíduos, segundo nossa hipótese, que vão aderir entusiasticamente à

bioidentidade TDA/H, ou encontrar nela a explicação para as insuficiências acadêmicas de

seus filhos. A valorização da atenção em detrimento de outros atributos, sintoma da

superficialização ou somatização da subjetividade, inibe a busca dos referenciais para a

ação no mundo em lugar que não no corpo próprio. O primado do biológico faz com que a

atenção, idealmente mensurável a partir de sua exteriorização corporal e supostamente

localizável na anatomia cerebral, substitua o mundo interior como referência na construção

de identidades. E se a atenção - em seu jogo permanente de fixação e desvio - é o único

bem a orientar o sujeito contemporâneo, vale tudo para protegê-la do seu desbordamento ou

insuficiência. Porém, como já dito, a agonia da interioridade é acompanhada pela

decadência de todo o edifício comunitário baseado na tradição e na solidariedade. Com a

separação entre os corpos operada na sociedade do espetáculo, o recurso ao outro não está

mais disponível como fonte de sentido e alívio. Vendo a sombra da desatenção ameaçar sua

eficácia ou a de seus filhos, resta ao indivíduo poucas saídas - e a identificação com o

TDA/H tem sido uma delas. Ao ingressar no universo do transtorno ele passa a contar, por

um lado, com o auxílio da Ritalina, arma bioquímica a provar que se pode atuar na

materialidade do corpo para que o farol da atenção não se apague, ou para fazê-lo brilhar

mais que o do vizinho. Como mostrou Diller (1998), tem se instalado uma indiferenciação

entre os usos terapêutico e cosmético do estimulante, na lacuna produzida pelas incertas


fronteiras entre o transtorno bem definido, suas formas “subclínicas” e seus “traços”

presentes nos normais. Como vimos, a atenção porta necessariamente os germes da

distratibilidade. Não havendo um critério claro para o diagnóstico dessa “doença da

atenção”, por que não aderir a uma bem-vinda explicação fisicalista para as dificuldades

pessoais, e por que não usar a Ritalina para melhorar o desempenho nos diversos recantos

da vida, já que ela demonstra ser eficiente mesmo na ausência do TDA/H? Na verdade, o

sucesso do TDA/H parece depender da existência da Ritalina. A potência do diagnóstico na

redefinição de identidades liga-se, em parte, à possibilidade de intervenção e modificação

da atenção e das performances individuais por via farmacológica. Em contrapartida, a

íntima associação do transtorno com uma substância que modifica a química cerebral acaba

por aumentar o poder de convencimento de suas concepções biológicas.

Por outro lado, o indivíduo-TDA/H conta também com as técnicas de

gerenciamento externo de suas condutas, que representam um “cuidado de si” perfeitamente

compatível com as formas de bioascese contemporâneas. As formas clássicas de ascese

eram práticas de liberdade, criatividade e resistência. Tendo no caráter ambíguo e arisco da

atenção um trunfo potencial para se opor a tentativas de enquadrá-los em categorias

médicas, os “portadores”, como indicou Ortega, parecem mais inclinados a conformar-se do

que a resistir. As prescrições da ciência e seus especialistas são absorvidas acriticamente e

difundidas de forma quase autônoma pelas redes de sociabilidade TDA/H. Assim como a

bioidentidade “saudável” - por meio da prática da fitness, das dietas rigorosas, do

prolongamento da juventude por reposições hormonais, do uso de próteses e cirurgias

estéticas, etc. - a bioidentidade do TDA/H impõe um inequívoco regime de disciplina, uma

constante vigilância sobre as condutas alheias (pais sobre os filhos, professores sobre os
alunos, esposas sobre maridos, psiquiatras sobre todos eles, etc.), mas também sobre os

próprios comportamentos e emoções. Na saúde ou na doença, é da constante auto-peritagem

corporal que se extrai o sentido de identidade pessoal, e é pela utilização da vontade que se

corrige excessos, extravios e depleções (dos índices de colesterol ou da massa muscular, no

caso dos saudáveis, dos graus de vigilância, no caso do TDA/H). Porém, se o esforço

voluntário é um instrumento à mão de normais e enfermos, a vontade tem um estatuto

diferente para cada um. Enquanto os que não se esforçam para manter o padrão de saúde

corporal são considerados fracos de vontade, caráter ou personalidade, os portadores do

TDA/H recorrem à causalidade biológica para livrá-los de qualquer traço de

responsabilidade ou de condenação moral por seus “sintomas”. Exibem-se como pessoas ou

grupos biologicamente desfavorecidos, mas nem por isso sua vontade é escassa ou frouxa.

Se no ascetismo cínico-estóico o estulto era o indivíduo que falhava nos cuidados de si, que

se mostrava disperso e desatento na prática ascética, hoje o desatento não é mais estulto,

nem vitimado pela acrasia, mas vítima de uma patologia que atinge em cheio sua rede

neural e, em consequência, o coloca em suposta desvantagem na cotidiana competição por

sucesso e sensações. Quando mesmo seus talentos e qualidades são explicados pela lógica

do transtorno, nada mais lhe resta a não ser a total conformidade com seus desígnios,

reflexo da submissão da vida social e política às regras ditadas pela ciência biológica e do

primado do naturalismo reducionista na leitura dos fenômenos um dia considerados

“culturais” ou “psicológicos”.

A ambiguidade inerente à atenção contribui para o sucesso do TDA/H. As críticas a

sua imprecisão conceitual ou clínica, por mais úteis que se mostrem, não têm conseguido

alcançar que a atenção moderna - e isso se mantém na contemporaneidade - é um ente


esquivo, que facilmente se converte em estados de inatenção e devaneio. Não há como

exigir nitidez de uma patologia fundada numa qualidade tão volúvel. O transtorno se

alimenta dessa indeterminação, pois dela depende o crescente reconhecimento, pelas

pessoas, de seus traços de comportamento - ou das condutas dos filhos - nas descrições

oferecidas pelo DSM ou suas versões “para leigos” divulgadas na mídia. A despeito das

tentativas de aperfeiçoamento de critérios objetivos para a caracterização do TDA/H e sua

diferenciação de outros estados, a confusão entre a desatenção “normal”, a supostamente

“reativa”, estados de devaneio criativo e a patologia psiquiátrica também persiste porque a

entidade já circula de modo semi-autônomo nas cabeças dos professores, nas revistas e

cadernos de saúde, na literatura de “auto-ajuda” e no vocabulário cotidiano de pais. As

estratégias de disciplina ou controle se pulverizam e a imposição externa é

progressivamente substituída por uma irrestrita adesão individual, que necessita apenas de

um aval médico - facilmente disponível - para que as pessoas ajustem suas vidas

disfuncionais a essa intangível entidade. Mesmo tratando-se de crianças, obrigadas a aderir

e sobre as quais a vigilância externa (dos pais, da escola ou dos especialistas em saúde

mental) ainda se mantém, o ideal é o de que também elas consigam se aprimorar na arte da

auto-peritagem, observando suas condutas e maximizando o controle de seus desvios. Tudo

isso revela que essa regulação dos corpos tem se afastado do poder disciplinar e se

aproximado das tecnologias de si, da ação do sujeito sobre ele próprio - ou seja, da ascese.

A produção da bioidentidade TDA/H, que depende tanto da bioascese quanto da

biosociabilidade, demonstra, assim, que pode até dispensar esta última, mas nunca a

primeira.
Na cultura atual, a atenção transforma-se em índice de refiliação do sujeito à

comunidade do corpo, uma “escala de medição” com implicações na regulação das noções

de saúde e doença. Encarnada e reduzida a uma “função” cerebral, ela torna-se susceptível a

ações de hetero ou auto-vigilância, sinalizando a valorização de uma subjetividade expressa

em marcas externas e o desprestígio do mundo interior. A correção de seus desvios garante

seu uso instrumental no cotidiano, e seu controle avalia o nível e o sucesso da inscrição dos

indivíduos no registro das bioidentidades. Aderir ao ideário do TDA/H e à Ritalina tem se

tornado uma maneira de pais maximizarem a eficácia de seus filhos, quando a desatenção

ou hiperatividade ameaça prejudicar seu potencial competitivo, e um meio de adultos

minimizarem os obstáculos a suas performances amorosas ou profissionais. Porém, sendo a

atenção um ponto de referência instável, aderir ao TDA/H será suficiente para, usando

expressão de Winnicott (1990), garantir aos sujeitos a sensação de “continuidade do ser”

(ibid., p.148-51), fundamental para a saúde e para a preservação da segurança pessoal nas

relações com o ambiente? Mesmo contando com a localização de uma patologia no registro

fisicalista, é provável que as pessoas precisem de outras fontes de estabilidade e

perspectivas de longo prazo para sobreviver num mundo em constante transformação. O

modelo oferecido pelo TDA/H dificilmente lhes proverá de tudo que necessitam e, como

prótese que é, se desgastará se usado em exagero. Além disso, a tentativa de conciliar a

ancoragem corporal da subjetividade com a exigência cultural de arranjos pessoais em

mudança permanente dá origem a um paradoxo que pode levar ao fracasso de qualquer

empreitada bioidentitária. Quando os indivíduos tentam extrair do corpo uma flexibilidade

infinita de mudança e reinvenção, como a exigida por uma identidade de palimpsesto,

esbarram nos limites da própria corporeidade, impostos pelas regras da biologia. Caberá a
outros trabalhos mostrar de onde mais os sujeitos extrairão seu roteiro pessoal. A atenção e

o corpo, territórios onde têm procurado um solo firme para edificar seu arcabouço

identitário, revelam-se necessários porém frágeis abrigos contra as intempéries da

contemporaneidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Perseguiu-se, no percurso da dissertação, o objetivo de entrelaçar o panorama


cultural contemporâneo, novas formas de subjetivação por ele engendradas e a emergência
de uma relativamente nova categoria diagnóstica, o TDA/H. Ao se propor uma visão
contextualista do TDA/H, não há a intenção de defender uma etiologia cultural do distúrbio,
competindo com as demais teorias etiológicas pela “verdade” de sua causação ou
localização. Assim, só por grave equívoco ou má-fé as hipóteses aqui sustentadas poderiam
ser tomadas como proposições de que "o capitalismo e a pós-modernidade causam TDA/H"
ou "a tecnologia causa TDA/H". Tais teses se mostrariam tão frágeis e insustentáveis como
"a genética e o lobo frontal causam TDA/H". Não nos interessa propor um reducionismo
sociocultural em substituição ao reducionismo fisicalista.
Em nossa abordagem crítica, vimos que a caracterização do TDA/H como entidade
cerebral, reduzida a seus componentes "naturais", não é fruto de uma melhora progressiva
do instrumental diagnóstico psiquiátrico, e que seu poder de conversão de idiossincrasias
individuais em critérios diagnósticos também não é resultado de um maior grau de
informação das pessoas sobre os avanços científicos. Em nossa hipótese, há um contexto
cultural a reforçar e patrocinar modos de subjetivação que se organizam em torno de
atributos corporais e biológicos, dando origem a “bioidentidades”, das quais o TDA/H se
constitui num caso particular. Para sustentar essa tese, percorremos o caminho resumido a
seguir.
No primeiro capítulo, foi apresentada a hipótese que sustenta toda a argumentação
posterior. Mostramos como o mundo contemporâneo ou “pós-moderno” promoveu o
desenraizamento e desfiliação dos indivíduos, que passaram a ver-se privados de fontes
tradicionais ou coletivas de doação de identidade. Se a busca por arranjos sociais
comunitários persistiu, ela tomou o rumo de uma comunidade do corpo e da saúde, na qual
as preocupações coletivas mais amplas dão lugar a uma absorção egoísta com o próprio
corpo. Nesse registro, a individualidade tende a descolar-se dos ideais sentimentais e
intimistas, dando lugar a uma exteriorização ou somatização da subjetividade. O corpo
torna-se fonte última de sentido para a existência pessoal, o que é válido não apenas no
âmbito da saúde, mas também no das patologias. O TDA/H, então, parece emergir como
uma dessas figuras nosológicas, supostamente radicadas na rede neural e na genética, em
torno das quais crianças e adultos (re)organizam suas identidades.
No segundo capítulo, visitamos o percurso de construção histórica do TDA/H desde
o início do século XX. Foi apresentada sua concepção atual, baseada em critérios
diagnósticos descritivos, sua epidemiologia e as principais teorias biológicas sobre sua
causação. Não pudemos deixar de apontar a íntima relação desse transtorno com a
prescrição de um fármaco psicoestimulante, a Ritalina. Preocupamo-nos, simultaneamente,
em mostrar as inconsistências e fragilidades das teses hegemônicas sobre a síndrome, e foi
introduzida a concepção de Barkley, que a encara como um déficit das “funções
executivas”, o que permitiu antever as redescrições subjetivas analisadas no capítulo
seguinte.
O terceiro capítulo se inicia com um recenseamento, por meio da literatura
destinada ao público leigo e de páginas na internet, dos novos modos de descrição de si que
a categoria diagnóstica vem disponibilizando, ao promover uma substituição de antigas
noções sobre condutas pessoais disfuncionais pela revelação de se portar o TDA/H.
Empreendeu-se, em seguida, um retorno a várias das idéias apresentadas no primeiro
capítulo, para defender que a potência desse transtorno em dar origem a bioidentidades se
deve, em parte, à existência de diversas afinidades entre o perfil subjetivo do indivíduo
contemporâneo - nomeado por Bauman de “identidade de palimpsesto” - e os
comportamentos ou traços de personalidade ligados ao transtorno. A figura do TDA/H
extrai dessas semelhanças parte de seu poder de convencimento, ao mesmo tempo que se
oferece como ponto de fixação para a experiência de fragmentação desses indivíduos.
Após uma apresentação de outras visões críticas sobre o TDA/H, com ênfase em sua
descrição como um “novo distúrbio sócio-médico” e no uso da Ritalina para aprimoramento
de performances individuais, foi concluída nossa hipótese, reservando à atenção e à
corporeidade seu lugar de destaque. Servindo-nos das teses de Crary, pudemos entender
como a atenção, a partir do fim do século XIX, converteu-se em elemento central na
constituição dos sujeitos modernos. Regulada pelas exigências da produção capitalista e por
novas tecnologias perceptivas, ela abandonou o terreno da metafísica e tornou-se
fortemente encarnada, e os indivíduos passaram a submeter-se a demandas ambivalentes de
concentração e distratibilidade. Observamos que o TDA/H alimenta-se da ambiguidade
inerente à atenção moderna, permitindo que mais crianças e adultos se reconheçam ou
sejam reconhecidas em seus critérios diagnósticos. Concluímos, por fim, que a atenção
transforma-se num índice ou escala de medição da adequação das pessoas ao mundo das
bioidentidades. Questionamos, porém, a capacidade do TDA/H e dos atributos corporais em
funcionar como únicas fontes de estabilidade e de ideais para os indivíduos
contemporâneos.
Como já asseverado, os arranjos subjetivos contemporâneos, sejam os descritos por
Bauman como “caçadores de sensações” ou “identidades de palimpsesto”, sejam os que
nomeamos de bioidentidades, não vêm substituir aqueles já existentes. As modalidades de
subjetivação corporal vêm competir, por exemplo, com aquelas ligadas à cultura da
interioridade e dos sentimentos, as quais não dão sinais de desaparecimento. Novas
combinações entre ambas as matrizes - corporais e internalistas - poderão surgir, de feições
ainda não completamente previsíveis.
Na cultura das bioidentidades, a ênfase no corpo - o qual, desde a modernidade,
ocupa um papel relevante nos processos de subjetivação - vem substituindo o interesse pelo
outro e pela coletividade. A biosociabilidade tornou-se uma maneira de desfrutar benefícios
individuais, desprezando os objetivos interpessoais, não visando mais o bem comum ou a
cidade. Aderir ao TDA/H e à Ritalina tornou-se um dos poucos modos disponíveis de pais
maximizarem a eficiência de seus filhos e de adultos minimizarem os entraves ao seu
sucesso, num mundo que não mais permite planejar um percurso de vida e que prescreve o
desfrute de sensações como regra de uma boa existência.
Patrocinado pela cultura do corpo e da saúde e pelo primado da biologia, o TDA/H
deverá incorporar-se definitivamente à vida contemporânea. Tentar ignorá-lo é tarefa tão
condenável quanto sucumbir a sua transformação em doença a explicar todos os desvios das
crianças e insucessos dos adultos. Nosso exercício crítico em relação a essa categoria
pretende escapar de qualquer ilusão retrospectiva, que idealiza um passado ao qual não se
pode retornar, só enxerga decadência no presente e antevê uma completa falta de horizontes
éticos no futuro. Não nos interessa, por exemplo, propor um retorno saudosista a uma
ordem repressora, que prescrevia castigos físicos e morais para as crianças incômodas ou
reservava aos pais uma culpa impotente, por não oferecer-lhes alternativas de ação. Da
mesma forma, nossa intenção não é a de erigir um líbelo anti-TDA/H ou anti-Ritalina, nem
a de desmantelar o saber psiquiátrico atual em nome da nostalgia do introspeccionismo ou
de qualquer outro mentalismo intimista. Apesar da hegemonia do fisicalismo, é possível
elaborar um modo não-reducionista de se entender e valorizar a exigência contemporânea
de externalização da subjetividade, modo que se refletirá num repertório clínico de
descrições e ações mais ricas e úteis. A ênfase no corpo, na exterioridade e na atenção, ao
contrário do que a cultura do TDA/H tenta provar, não significa necessariamente morte do
campo dos valores e redução de tudo aos índices sensoriais da corporeidade.

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