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v. 17, n.

1, 2014 /2015 ISSN: 1983-6899

REVISTA DO

MINISTÉRIO PÚBLICO
DO ESTADO DA BAHIA

1 REVISTA DO MPBA
v. 17, n. 1, 2014 /2015 ISSN: 1983-6899

REVISTA DO

MINISTÉRIO PÚBLICO
DO ESTADO DA BAHIA

REVISTA DO MP DO ESTADO DA BAHIA SALVADOR V. 17Nº 1 XX P. 2014/2015

REVISTA DO MPBA 2 3 REVISTA DO MPBA


©Ministério Público do Estado da Bahia, 2016 ISSN: 1983-6899

REVISTA DO MP DO ESTADO DA BAHIA APRESENTAÇÃO


PROCURADORA-GERAL DE JUSTIÇA
Ediene Santos Lousado

CONSELHO EDITORIAL
Com imensa satisfação, apresentamos a 17ª edição da Revista do Ministério
Cleonice de Souza Lima
Procuradora de Justiça
Público do Estado da Bahia, que, pela primeira vez, é lançada em formato eletrônico.
Presidente da Comissão Editorial A publicação é um compilado de artigos jurídicos de autoria de membros e servidores
do MP, que abordam temas atuais e de fundamental importância para duas relevantes
Aurisvaldo Melo Sampaio área de atuação.
Procurador de Justiça
A Revista disponibiliza um rico e diversificado material intelectual, que foi produzido
Lívia Maria Santana e Sant´Anna Vaz a partir de profunda reflexão. As contribuições dos integrantes do Ministério Público
Promotora de Justiça estão relacionadas a aspectos jurídicos da atuação profissional cotidiana e traduzem
o estudo, a pesquisa e a atualização com fulcro na doutrina e na jurisprudência. Elas
Roberto de Almeida Borges Gomes
Promotor de Justiça
são ainda o resultado dos trabalhos jurídicos apresentados nas Semanas do Ministério
Público de 2014 e de 2015.
Organização
Centro de Estudos e Aperfeiçoamento – CEAF Os artigos da publicação servirão como elemento de estudo e atuação para todos
os que buscam novos entendimentos na doutrina e na jurisprudência. A Revista é,
Apoio Editorial portanto, um valioso instrumental de consulta e estudo para aqueles que têm interesse
Rita de Cássia de Matos Mesquita Teixeira em temas jurídicos contemporâneos.
Fabíola Barbosa da Silva Souza
Salvador, 01 de dezembro de 2016
Projeto gráfico e capa
Central Integrada de Comunicação - CECOM

Trabalhos jurídicos apresentados pelos integrantes da Instituição na Semana do Ministério EDIENE SANTOS LOUSADO
Público 2014 e 2015, juntamente com outros da mesma natureza, não representam, Procuradora-Geral de Justiça
necessariamente, a opinião da Instituição, dos membros da sua administração superior
ou dos editores. As ideias e conceitos emitidos nos artigos apresentados são de inteira
responsabilidade dos seus autores.

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde citada a fonte.

Revista do Ministério Público do Estado da Bahia, v. 1, n. 1 (jan./dez. 1991) – v. 17, n. 1


(2014/2015). - Salvador: Ministério Público do Estado da Bahia, 1991-

Anual
Interrompida, 2000 – 2002. 2005. 2009 – 2015.
ISSN: 1983-6899

1.Direito. I. Bahia - Ministério Público. II. Título.

CDDir: 340

5ª Avenida, nº 750, Centro Administrativo da Bahia, Salvador – BA. CEP: 41.745-004.


Telefone: (71) 3103-0100/3103-6400
www.mpba.mp.br
REVISTA DO MPBA 4 5 REVISTA DO MPBA
O DIREITO QUILOMBOLA E CONFLITO FUNDIÁRIO NA BAHIA: REFLEXÕES
SUMÁRIO JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS
MACACOS ...............................................................................................................135
Marli Mateus dos Santos
EDITORIAL ...............................................................................................................009
DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO
ACOLHER OU SEGREGAR? A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS DO CONTROLE SOCIAL ........................................................................................ 148
E ADOLESCENTES COM TRANSTORNO MENTAL E DEFICIÊNCIAS EM Heliete Rodrigues Viana
SALVADOR – BAHIA ...............................................................................................012
Marcia Luzia Guedes de Lima; Luciana França Barreto; Isis Milena Melo dos Santos EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM
Ribeiro; Laís Sacramento Meirelles MEDIDA SOCIOEDUCATIVA .................................................................................. 160
Moacir Silva do Nascimento Júnior
A ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA INVESTIGAR
EVENTUAL ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA COMETIDA POR A (IN) DISPENSABILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AUDIÊNCIAS
TERCEIROS EM FACE DE PROMOTOR DE JUSTIÇA INVESTIDO NA FUNÇÃO DE INSTRUÇÃO REFERENTES A AÇÕES PENAIS DE INICIATIVA PÚBLICA:
ELEITORAL ............................................................................................................. 019 TOQUES DOUTRINÁRIOS E RETOQUES JURISPRUDENCIAIS – A MAQUIAGEM
Fernanda Carolina Gomes Pataro de Queiroz Cunha ARGUMENTATIVA .................................................................................................. 174
Saulo Murilo de Oliveira Mattos
A COMERCIALIZAÇÃO DOS PLANOS DE PACOTES DE DADOS DE INTERNET
DENOMINADOS “TARIFA ZERO” PELAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE?! O QUE É ISSO?! “R.H - VISTAS AO MINISTÉRIO
E O (DES)CUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DA REDE PÚBLICO” ............................................................................................................... 184
PREVISTO NA LEI 12.965/2014 (MARCO CIVIL) .................................................. 027 Saulo Murilo de Oliveira Mattos
Fabrício Rabelo Patury
O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CURADOR ESPECIAL NAS INTERDIÇÕES:
O CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA NOVA INCOMPATIBILIDADE DO MÚNUS DE CURADOR ESPECIAL COM O PERFIL
COMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL ....................................................................... 033 CONSTITUCIONAL DO PARQUET DESDE O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE
João Paulo Santos Schoucair 1973 ......................................................................................................................... 191
Ana Patricia Vieira Chaves Melo
CONTRIBUIÇÃO PARA UMA MOBILIDADE URBANA SAUDÁVEL..................... 040
Paulo Ferreira Santos Silva A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO
PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA, E A REVOGAÇÃO PARCIAL
O CRIME DE POLUIÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: UMA DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ...................................... 207
RESPOSTA LEGÍTIMA AOS RISCOS DA PÓS-MODERNIDADE ......................... 052 André Luis Silva Fetal
Sheilla Maria da Graça Coitinho das Neves
A OMISSÃO DOS PREFEITOS NO ENFRENTAMENTO E RESOLUÇÃO DOS
CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: PARTICIPAÇÃO POPULAR E O LIXÕES E A CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA ...........222
RESGATE DA CONFIANÇA ................................................................................... 070 Thyego de Oliveira Matos
Marco Aurélio Nascimento Amado
POSSIBILIDADE/NECESSIDADE DE RECOMENDAÇÃO DO MINISTÉRIO
DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E SUA LEGITIMIDADE .................................... 086 PÚBLICO ÀS ESCOLAS PÚBLICAS PARA INCLUSÃO NOS CALENDÁRIOS
Edvaldo Gomes Vivas LETIVOS DAS ATIVIDADES PEDAGÓGICAS CORRESPONDENTES ÀS
COMEMORAÇÕES DA SEMANA DAS FAMÍLIAS ................................................ 230
A DELAÇÃO PREMIADA E A FALÊNCIA DO ESTADO NA INVESTIGAÇÃO Inocêncio de Carvalho Santana
CRIMINAL: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO GARANTISMO PENAL ...................... 098
Madson Thomaz Prazeres Sousa PRECEDENTE JUDICIAL: IMPORTÂNCIA E EFICÁCIA JURÍDICA DO SISTEMA
DE PRECEDENTES DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ..........................239
DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO Paulo Daniel S. da Silva
TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
.................................................................................................................................. 117
Pablo Antonio Cordeiro de Almeida
A PRESCINDIBILIDADE DA LEI 9.296/96 PARA SUBSIDIAR A DECISÃO JUDICIAL
EMBASADA NA LEI 12.965/2014, VISANDO O FORNECIMENTO DE REGISTROS
DE CONEXÃO E/OU REGISTROS DE ACESSO A APLICAÇÕES NA INTERNET,
EDITORIAL
PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO OU PRODUÇÃO PROBATÓRIA ........................249
Fabrício Rabelo Patury A REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, trata de
temas atuais e de grande interesse para os membros e para todos os profissionais
O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS envolvidos com a prestação jurisdicional.­
ILÍCITAS .................................................................................................................. 258 Os trabalhos doutrinários, e análises abordam as duas grandes áreas de atuação
Dario José Kist
cível e penal, sem destaque para as áreas ou ramos especializados do Direito.
PUBLICIDADE INFANTIL E A ATUAÇÃO (D)EFICIENTE DOS ÓRGÃOS DE Cada contribuição está relacionada com aspectos jurídicos importantes
PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR ..........................................................285 da atuação dos Membros do Ministério Público à luz da doutrina e de importantes
Ana Rosa Silva Mascarenhas precedentes jurisprudenciais, a partir de uma reflexão crítica dos princípios
constitucionais, controle de legalidade e controle administrativo.
A RACIONALIDADE PENAL MODERNA E SEUS DESDOBRAMENTOS TÉORICOS
E PRÁTICOS ........................................................................................................... 299 São colaboradores desta edição: ANA PATRICIA VIEIRA CHAVES MELO; ANA
Camila Beatriz Boaventura dos Santos; Saulo Murilo de Oliveira Mattos ROSA SILVA MASCARENHAS; ANDRÉ FETAL; CLÓVIS MENDES LEITE REIMÃO
DOS REIS; DARIO JOSÉ KIST; EDVALDO GOMES VIVAS; FABIANA FERNANDES
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO E O REGIME JURÍDICO DAS POLÍTICAS DA CUNHA BARBOSA; FÁBIO FERNANDES CORRÊA; FABRÍCIO RABELO PATURY;
PÚBLICAS ............................................................................................................... 307 FERNANDA PATARO DE QUEIROZ CUNHA; INOCÊNCIO SANTANA; JELIANE
Clóvis Mendes Leite Reimão dos Reis
PACHECO DE ALMEIDA; JOÃO PAULO SANTOS SCHOUCAIR; LUCAS RAMOS
REGULAÇÃO UNIFICADA E ACESSÍVEL AO PÚBLICO – DIREITO DE TODOS, DE VASCONCELOS; MADSON THOMAZ PRAZERES SOUSA; MÁRCIA LUZIA
ATÉ MESMO DA ADINISTRAÇÃO PÚBLICA ........................................................ 321 GUEDES DE LIMA; MARCO AURÉLIO NASCIMENTO AMADO; MARLI MATEUS
Mirella Barros Conceição Brito DOS SANTOS; MIRELLA BARROS C. BRITO; MOACIR SILVA DO NASCIMENTO
JÚNIOR; PABLO ANTONIO CORDEIRO DE ALMEIDA; PAULO FERREIRA SANTOS
RESERVA LEGAL EM ZONA URBANA ..................................................................331 SILVA; SAULO MURILO DE OLIVEIRA MATTOS; SHEILLA MARIA DA GRAÇA
Fábio Fernandes Corrêa COITINHO DAS NEVES; THYEGO DE OLIVEIRA MATOS

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO DESEMPENHO DA JURISDIÇÃO O Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional - CEAF apresenta, por fim,
CONSTITUCIONAL E O ATIVISMO JUDICIAL ...................................................... 339 o primeiro número da Revista do Ministério Publico do Estado da Bahia, no formato
Marco Aurélio Nascimento Amado eletrônico com um rico e atual repertório, graças à excelência de seus colaboradores
e ao esforço contínuo e pessoal de cada na busca de aperfeiçoamento e qualidade
UMA ABORDAGEM SOBRE O RELEVANTE PAPEL DAS DECISÕES JUDICIAIS de seu trabalho, entusiastas que são da nobre missão que lhes foi atribuída pela
NO FORTALECIMENTO DO DIREITO URBANÍSTICO E NA MELHORIA DOS Constituição Federal de 1988.
ESPAÇOS URBANOS: MUDANÇAS DE PARADIGMAS HISTÓRICOS ................349
Pablo Antonio Cordeiro de Almeida; Thyego de Oliveira Matos A crise porque passa o país e as flagrantes e contínuas tentativas de
enfraquecimento das Instituições renova a nossa força e determinação em
A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL À CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS E O corresponder à confiança depositada no Ministério Público pelo Povo Brasileiro.
JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.983 PELO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ......................................................................... 361 Por fim, o Conselho Editorial tem consciência da grande visibilidade e rapidez
Lucas Ramos de Vasconcelos de acesso através da rede mundial de computadores, mas pretende continuar com
a edição da revista impressa, dando continuidade ao trabalho daqueles que nos
ÁRVORES NATIVAS ISOLADAS: PRESERVAÇÃO E POSSIBILIDADE antecederam.
DE CORTE .............................................................................................................. 368
Fábio Fernandes Corrêa, Fabiana Fernandes da Cunha Barbosa e Jeliane Pacheco
de Almeida

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ARTIGOS

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ACOLHER OU SEGREGAR?
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM TRANSTORNO MENTAL E DEFICIÊNCIAS EM SALVADOR - BAHIA

ACOLHER OU SEGREGAR? A implementação desta política tem evidenciado uma mudança de paradigma
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM TRANSTORNO para o atendimento à infância institucionalizada no Brasil, que, desde o século XVI, vem
MENTAL E DEFICIÊNCIAS EM SALVADOR - BAHIA sendo marcado por ideologias higienistas, as quais visavam manter as crianças acolhidas
excluídas, de forma a assegurar uma sociedade “limpa” da iniciação da marginalidade
Marcia Luzia Guedes de Lima* que os infantes nessa situação supostamente representavam (GANDELMAN, 2001).
Luciana França Barreto** Contudo, as diretrizes das apontadas normativas exigem uma mudança da cultura da
Isis Milena Melo dos Santos Ribeiro*** filantropia para o marco da garantia de direitos, incluindo os serviços de acolhimento
Laís Sacramento Meirelles**** institucional para crianças e adolescentes como serviços públicos situados no âmbito da
proteção social especial de alta complexidade da política de assistência, tirando-lhe as
EMENTA feições e contornos de “casas de caridade”.
Este trabalho objetivou identificar o número de crianças e adolescentes com transtorno Pode-se afirmar que existem dois momentos de consolidação das políticas sociais
mental ou deficiências institucionalizadas em serviços de acolhimento institucional para destinadas ao atendimento a crianças e adolescentes: antes e depois do Estatuto
crianças e adolescentes no município de Salvador – Bahia, a partir do levantamento da Criança e do Adolescente (ECA), pois, segundo Rizzini, Naiff e Baptista (2006), a
realizado pelo Ministério Público do Estado da Bahia, por meio das inspeções periódicas aprovação do ECA, em 1990, foi um marco legal que vem com um conjunto de direitos civis,
a estes serviços, entre os meses de março e abril de 2015. Através de uma pesquisa sociais, econômicos e culturais de promoção e proteção, tendo sua demanda assumida
descritiva, na qual os dados foram coletados, utilizando-se de questionário fechado, pelo Estado brasileiro e pela sociedade visando, além da formulação, implementação e
observação direta e entrevistas semiestruturadas, foi possível alcançar a quase totalidade monitoramento de políticas constitucionais, a ressignificação das concepções de infância
dos serviços existentes (95,5%), constatando-se que, do total de crianças e adolescentes e de juventude, presentes no imaginário social da população consideradas arcaicas
institucionalizadas no município, 26,2% possuem algum tipo de deficiência mental, anteriormente (PEREZ; PASSONE, 2010).
física, sensorial ou transtorno mental supostamente diagnosticados por especialistas. Para o fortalecimento e consolidação das políticas de assistência social, voltadas à
Os resultados apontam para o necessário olhar do Estado e da Sociedade em relação promoção e proteção de crianças e adolescentes, foram criadas normas técnicas, surgindo
às políticas públicas de atendimento à saúde mental infantojuvenil e ao combate à o Caderno de Orientações Técnicas, direcionado para os Serviços de Acolhimento para
institucionalização prolongada, que a despeito da reforma psiquiátrica, passou a ser Crianças e Adolescentes, para que os serviços sigam os parâmetros estabelecidos por
realizada nos equipamentos da Assistência Social. lei, reafirmando a ação participativa governamental. “O presente documento tem como
finalidade regulamentar, no território nacional, a organização e oferta de Serviços de
PALAVRAS-CHAVE: Crianças. Adolescentes. Saúde Mental. Deficiências. Acolhimento Acolhimento para Crianças e Adolescentes, no âmbito da política de Assistência Social.”
Institucional. (BRASIL, 2009, p. 17)
Porém, mesmo com tantos avanços nos dispositivos legais, é possível observar
INTRODUÇÃO que ainda existe uma grande dificuldade, por parte do Sistema de Garantia de Direitos
da Criança e do Adolescente, em atuar dentro dos novos paradigmas propostos pela
Tendo como pressuposto que o reordenamento dos serviços de acolhimento política pública, o que faz com que as crianças e adolescentes com deficiência ou
institucional, preconizado pelo Sistema Único da Assistência Social (SUAS), a partir
de recentes normativas (BRASIL, 2006; BRASIL, 2009; BRASIL, 2011; BRASIL, 2013), transtorno mental continuem sendo institucionalizados e estigmatizados, como já fora
busca contribuir para melhoria do atendimento às crianças e adolescentes no Brasil, este feito largamente através dos trabalhos filantrópicos do passado, a despeito de todo
trabalho objetivou levantar o número de crianças e adolescentes com transtorno mental ou avanço da reforma psiquiátrica brasileira. A ideia de que as crianças e adolescentes em
deficiências institucionalizadas em serviços de acolhimento institucional para crianças e regime institucional ainda fazem parte do quadro de “excluídos”, parece estar enraizada
adolescentes no município de Salvador – Bahia, relacionando os resultados encontrados no pensamento da sociedade.
com o modelo de atendimento que está previsto na lei. Foram problematizados os dados
encontrados na pesquisa, contrapondo-os às diretrizes de atendimento previstas na
Resolução Conjunta 001/2009, do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e
do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), buscando
contribuir para o entendimento histórico-social da longa permanência das crianças e
adolescentes nas instituições de acolhimento no município.

* Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Centro de Apoio Opera-
cional à Criança e ao Adolescente
** Mestre em Políticas Públicas (UNEB). Psicóloga, do Ministério Público do Estado da Bahia
*** Ex-estagiária de Psicologia do Ministério Público do Estado da Bahia
**** Ex-estagiária de Psicologia do Ministério Público do Estado da Bahia
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ACOLHER OU SEGREGAR? ACOLHER OU SEGREGAR?
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM TRANSTORNO MENTAL E DEFICIÊNCIAS EM SALVADOR - BAHIA A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM TRANSTORNO MENTAL E DEFICIÊNCIAS EM SALVADOR - BAHIA

MÉTODO Gráfico 1 – Total de crianças e adolescentes institucionalizados em relação ao


universo total de crianças e adolescentes acolhidos no município de Salvador (Inspeção
Trata-se de uma pesquisa descritiva, uma vez que se buscou, através da análise Periódica Ministério Público do Estado da Bahia, 2015)
dos dados coletados, descrever as características de 20 instituições de acolhimento Diante deste cenário, conclui-se que, apesar do movimento de reordenamento
para crianças e adolescentes no município de Salvador – Bahia, conforme os critérios da rede de acolhimento, provocada pela política de assistência social, a visão caritativa
estabelecidos para esta denominação, obtidos por meio de informações do cadastro do destes serviços ainda persiste na sociedade, aliada à falta de políticas públicas específicas
Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA). Esse número representa 95,5% do total para atendimento a este público.
existente no município. Segundo o Caderno de Orientações Técnicas, as Instituições de Os Serviços de Acolhimento Institucional encontram-se tipificados dentre os
Acolhimento são: serviços de Proteção Social Especial de Alta Complexidade, como encontramos na
Resolução n° 109, de 11 de novembro de 2009, tendo como marco legal o art. 101 do
Serviços que oferecem acolhimento provisório para crianças e ECA, em seu §1º, que prevê deva ser o acolhimento institucional uma medida provisória
adolescentes afastados do convívio familiar por meio de medida protetiva e excepcional, servindo como medida de transição para a reintegração familiar ou
de abrigo (ECA, Art. 101), em função de abandono ou cujas famílias colocação em família substituta. A despeito da reforma psiquiátrica, em contraposição
ou responsáveis encontram-se temporariamente impossibilitados de a este modelo de atendimento previsto na lei, é possível afirmar que a segregação
cumprir sua função de cuidado e proteção, até que seja viabilizado o
de crianças e adolescentes com transtornos ou deficiências mentais, através da
retorno ao convívio com a família de origem ou, na sua impossibilidade,
institucionalização prolongada, continua sendo utilizada no município de Salvador, em
encaminhamento para família substituta. (BRASIL, 2009, p. 67)
decorrência da fragilidade e/ou ausência de políticas de atendimento que acolham tais
demandas.
A pesquisa foi realizada entre os meses de março e abril de 2015 e a coleta de A pesquisa apresentada permitiu chegar à conclusão de que, por não possuírem
dados ocorreu utilizando-se de questionários-padrão com respostas objetivas, cujo acesso aos serviços necessários, seja pela inexistência destes ou pela fragilidade
modelo foi produzido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), para o do atendimento, muitas famílias, em sua grande maioria pobres, “optam” pela
cumprimento da Resolução nº 71 de 15 de julho de 2011, posteriormente alterada pela institucionalização dos seus filhos, a fim de promover-lhes o bem-estar, acreditando
Resolução nº 96/2013. A aplicação do questionário foi realizada pela equipe técnica da ser isto possível nas instituições de acolhimento. Porém, a institucionalização dessas
infância e adolescência do MPBA, conforme determinação da normativa em comento, crianças não pode ter a pobreza de suas famílias de origem como justificativa, como
além de seus respectivos estagiários. Seu preenchimento ocorreu mediante entrevista assevera o Art. 23 do ECA: “A falta ou a carência de recursos materiais não constitui
com o dirigente e equipe técnica da Instituição, bem como através de conversas motivo suficiente para a perda ou suspensão do poder familiar.”
informais com as crianças/adolescentes, em observação direta do ambiente e estrutura Mesmo com o citado arcabouço legislativo, é possível encontrar casos como os
física e em análise documental (prontuários individuais, Plano Individual de Atendimento apontados, nos serviços. Apesar dos avanços evidenciados diante dos marcos regulatórios
e Projeto Político Pedagógico). Além dos dados coletados com a utilização dos aludidos da Política de Assistência Social, ainda há grande fragilização da rede socioassistencial
questionários, a pesquisa bibliográfica possibilitou uma análise aprofundada dos serviços e saúde mental. Infelizmente, a institucionalização acaba sendo adotada como primeira
e sobre as crianças e adolescentes institucionalizados. medida de proteção, diante da falta de respostas dos programas de atendimento à saúde
Os dados colhidos foram organizados em planilhas no Excel. Considerando o mental às crianças e adolescentes e respectivos familiares que dele necessitam.
grande número de informações obtidas, optou-se por escolher os dados considerados Contribuindo, ainda, para a cultura da institucionalização, os hábitos e costumes
mais relevantes para esta pesquisa, relacionados à quantidade de crianças e adolescentes das famílias pobres continuam sendo julgados pelas autoridades competentes como
institucionalizadas/os com algum tipo de deficiência física, mental, sensorial ou transtorno situação de risco e negligência dos pais e/ou responsáveis, resultando, mais uma vez,
mental supostamente diagnosticados. na institucionalização das crianças e adolescentes.
Problematizar tal realidade permite compreender o ranço caritativo e assistencialista
que pauta, na atualidade, as práticas dentro dos Serviços de Acolhimento Institucional,
RESULTADOS/DISCUSSÃO contrapondo-se à legislação vigente, pois, para que essas instituições funcionem como
determina a lei, é necessário o acompanhamento dos acontecimentos externos, já que
Dentre os inúmeros resultados da análise, destacam-se, para fins deste trabalho, estes viabilizariam a garantia dos direitos das crianças e adolescentes, no que concerne
que 26,2% do total de crianças e adolescentes acolhidos no município possuem algum ao convívio familiar, e que tornaria, de fato, o serviço de acolhimento provisório e
tipo de transtorno ou deficiência mental, deficiências físicas ou sensoriais, supostamente excepcional.
diagnosticados através de laudos médicos e psicológicos:

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ACOLHER OU SEGREGAR? ACOLHER OU SEGREGAR?
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM TRANSTORNO MENTAL E DEFICIÊNCIAS EM SALVADOR - BAHIA A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM TRANSTORNO MENTAL E DEFICIÊNCIAS EM SALVADOR - BAHIA

Com efeito, é importante não se perder de vista que, por mais protetiva que CONSIDERAÇÕES FINAIS
seja a medida adotada pelo juiz ao encaminhar a criança e/ou adolescente para uma
Instituição de Acolhimento, a separação dos seus pais lhes causará dor e estranheza, Este trabalho possibilitou a ampliação do entendimento acerca dos motivos que
já que tudo será novidade. Terão que aprender a viver sem seus familiares e a construir levam à institucionalização de crianças e adolescentes no município de Salvador, com
novos vínculos, seguindo novas regras, desenvolvendo novas formas de pensar. Logo, destaque para o necessário enfrentamento pela sociedade e Estado das questões
todo movimento de inserção destes infantes nesse novo meio se torna arriscado, pois, que dificultam o atendimento daqueles que possuem deficiências e/ou transtornos
geralmente, o que ocorre em seus pensamentos é que eles foram excluídos do seio mentais, sob pena de continuar-se repetindo o ciclo higienista de segregação através da
familiar. institucionalização prolongada, antes realizada em instituições psiquiátricas, passando a
As pesquisas vêm demonstrando que as práticas que regem a complexa realidade ocupar os serviços de acolhimento institucional do município.
que envolve abrigo, poder público e sociedade não acontecem apenas em função do que A partir das novas diretrizes da Política de Assistência e o aceite do município de
propõe a lei. (MARTINEZ; SILVA, 2008, p. 115). Através dos documentos analisados, Salvador em relação à expansão qualificada e ao reordenamento, ocorrido em 2015, o
observou-se que as crianças e adolescentes com algum tipo de transtorno ou deficiência Ministério Público Estadual, através da Promotoria de Justiça Especializada na matéria,
mental são as que mais permanecem nas instituições, já que, muitas vezes, as famílias vem acompanhando a implementação do Plano de Acolhimento. Este prevê, dentre
não possuem subsídios que possam custear suas estadias em seus seios familiares, ou outras ações, o reordenamento de grandes unidades de acolhimento especializadas
ainda, fazerem parte de algum programa social, por necessitarem trabalhar e não terem no atendimento a crianças com transtorno mental e deficiências. A equipe técnica de
como pagar um “cuidador” para zelar por seus filhos enquanto estejam fora. Preferem, apoio, vem articulando ações em parceria com a Secretaria Responsável, a fim de reunir
assim, utilizarem-se da institucionalização dos filhos como subterfúgio para conseguirem esforços para fortalecimento da rede de atendimento e construção de fluxos de trabalho
sair das dificuldades apresentadas. Apesar de toda a complexidade dos cuidados recair que garantam a efetiva gestão da rede de acolhimento institucional do município.
sobre seus responsáveis, segundo Rizzini (2010), é importante reconhecer que crianças Este conjunto de ações visa apoiar a estruturação da política de atendimento e
e adolescentes com algum tipo de transtorno ou deficiência mental devem permanecer assistência a crianças e adolescentes, buscando extinguir o pensamento filantrópico,
em seus contextos familiares, como é direito de qualquer criança ou adolescente, higienista e de exclusão para com os infantes institucionalizados além de fomentar
ressaltando-se que o maior desafio para estas famílias está em como promover cuidados melhorias para as práticas dos agentes da infância.
e tratamentos adequados quando não se dispõe de recursos. Nesta senda, com vistas à problematização e superação dessa problemática,
O atendimento a crianças e adolescentes deficientes ou com transtornos mentais lança-se o desafio de elaboração de novas pesquisas que explorem o tema das formas de
está intimamente relacionado à existência de políticas públicas nas quais diversos psiquiatrização e medicalização de crianças e adolescentes em situação de acolhimento
serviços possam ser acessados pelas famílias, retirando das mesmas a exclusividade institucional, contribuindo tais investigação para os avanços da política de atendimento
da responsabilidade do cuidar, pois esta é uma ação que deveria ser compartilhada entre em saúde mental infantojuvenil.
a família, sociedade e Estado, conforme prevê o artigo 227 da Constituição Federal.
Segundo Rizzini (2010), é necessária a realização de um trabalho intersetorial para que
tanto o atendimento, quanto o curso de vida destas crianças não sejam interrompidos REFERÊNCIAS
com a institucionalização prolongada, pois, à medida que a criança passa a ser atendida
numa instituição total, sua circulação pela sociedade diminui e sua existência é ignorada, BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Orientações
contribuindo ainda mais para invisibilidade deste público. Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e adolescentes. Brasília, DF, jun. 2009.
Medeiros (2011) afirma que os abrigos e os serviços de acolhimento institucional
BRASIL. Ministério do desenvolvimento social e combate à fome. Tipificação Nacional
são os manicômios das crianças e adolescentes, levando em consideração a história
de Serviços Socioassistenciais. Texto da Resolução Nº 109, de 11/11/2009. Brasília:
da institucionalização de crianças no Brasil. A partir de uma perspectiva foucaultiana,
Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), 2009. Disponível em: <http://www.mds.
a autora ainda aponta as práticas de assujeitamento e docilização de corpos que são
gov.br/assistenciasocial/secretaria-nacional-de-assistencia-social-snas/livros/tipificacao-
produzidas e reforçadas nesses espaços, onde temos grande número de crianças e
nacional-de-servicos-socioassistenciais>.
adolescentes em medida de proteção de acolhimento institucional sujeitas a todas as
formas de psiquiatrização e medicalização. ______. Sistema Único de Assistência Social − SUAS; Norma Operacional Básica de
Recursos Humanos do SUAS − NOB-RH/SUAS. Brasília: SNAS, 2006. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaobasica/cras/documentos/Norma%20
Operacional%20de%20RH_SUAS.pdf>. Acesso em: 28 out. 2013.
______. Política nacional de assistência social. Brasília, nov. 2005.

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ACOLHER OU SEGREGAR?
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM TRANSTORNO MENTAL E DEFICIÊNCIAS EM SALVADOR - BAHIA

______. Serviço de acolhimento institucional. Brasília, DF. Disponível em: <http:// A ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA INVESTIGAR
www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaoespecial/altacomplexidade/servico-de EVENTUAL ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA COMETIDA POR
acolhimento-institucional>. Acesso em: 21 de ago. 2013. TERCEIROS EM FACE DE PROMOTOR DE JUSTIÇA INVESTIDO NA FUNÇÃO
ELEITORAL
______. Norma operacional básica. Brasília. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/
assistenciasocial/protecaobasica/cras/documentos/Norma%20Operacional%20de%20 Fernanda Carolina Gomes Pataro de Queiroz Cunha *
RH_SUAS.pdf>. Acesso em: 28 de out. 2013;
EMENTA
BRASIL. Ministério da Justiça. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Promotor de Justiça. Investidura na atribuição de Promotor Eleitoral. Improbidade
Adolescente – Conanda. Brasília, 1991. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/
Administrativa praticada por terceiro. Atribuição do Ministério Público Federal para
conanda/OqueeoCONANDA.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2013.
investigação. Atividade delegada do MPF para MP Estadual. Violação de interesse da
CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Resolução nº 71 de 15 de junho de União.
2011. (Alterada pela Resolução nº 96/2013); Anexos revogados. Dispõe sobre a atuação
dos membros do Ministério Público na defesa do direito fundamental à convivência familiar PALAVRAS-CHAVE: Artigo; Promotor Eleitoral; Improbidade Administrativa; Atribuição
e comunitária de crianças e adolescentes em acolhimento e dá outras providências. MPF; Violação Interesse da União.
Brasília, 15 jun. 2011. Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/
Normas/Resolucoes/Resoluao_n_71_alterada_pela_Res._83-2012.pdf>. Acesso em: 20
jul. 2013 INTRODUÇÃO
GANDELMAN, L. M. A Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro nos séculos XVI a
Este artigo surgiu como fruto do resultado de uma investigação PIC (procedimento
XIX. História, Ciência, Saúde, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, set./dez. 2001. Disponível em:
investigativo criminal) e PIP (procedimento investigativo preliminar) numa de suas
<http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v8n3/7647.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2013.
comarcas de atuação da Promotora que subscreve o presente artigo.
MARTINEZ, A. L. M.; SILVA, A. P. S. O momento da saída do abrigo por causa da Originariamente, o fato surgiu com o descumprimento de uma requisição do
maioridade: a voz dos adolescentes. Psicologia em Revista, Minas Gerais, v. 14, n. Ministério Público Eleitoral por uma autoridade estadual.
2, p. 113-131, set. 2008. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/ De plano, porque o Promotor de Justiça estava atuando na esfera eleitoral (serviço
psicologiaemrevista/article/view/336/350>. Acesso em: 14 nov. 2013. da União) e, portanto, houve violação a interesse daquele ente federado, concluiu-se
pelo declínio de atribuição para o Ministério Público Federal, para apuração de eventual
MEDEIROS, A.M.A. A atuação do psicólogo em Serviços Socioassistenciais sob a
crime ali decorrente, nos termos do art. 109, inc. IV, CF, restando dúvida quanto ao ato
perspectiva ético-política. III Encontro do Fórum de Psicólogos que atuam em Serviços
de improbidade.
de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes. CRP-SP, 2011.
Isso porque, muito se discute sobre a divisão de atribuição entre Ministério Público
PEREZ, J. R. R.; PASSONE, E. F. Políticas sociais de atendimento às crianças e aos Federal (MPF) e Ministério Público Estadual (MPE) no âmbito da improbidade. Basta
adolescentes no Brasil. Cadernos de Pesquisa, v. 40, n. 140, p. 649-673, maio/ago. ingressar no site do STJ ou do STF para se ter um panorama de como este assunto é
2010. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/cp/v40n140/a1740140.pdf>. árduo e contraditório.
Por conta disso, se discorrerá neste artigo sobre a conclusão a que se chegou,
RIZZINI, I. Crianças e adolescente com deficiência mental e/ou transtorno mental:
qual seja, de que a atribuição também, é do MPF para investigação da improbidade no
Entre as dimensões do confinamento e as lacunas dos dispositivos de cuidado. Texto
presente caso, conforme se verá.
elaborado para a IV Conferência Nacional de Saúde Mental – intersetorial. Brasília,
27 de junho a 1 de julho de 2010. Disponível em: <www.ciespi.org.br/publicacoes/
artigos?task=download&file...pdf>. Acesso em: 05 de nov. 2013.
1 DA ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA INVESTIGAR
RIZZINI, I.; NAIFF, L. A. M.; BAPTISTA R. (Coord.). Acolhendo crianças e adolescentes: EVENTUAL ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA COMETIDA POR TERCEIROS
experiências de promoção do direito à convivência familiar e comunitária no Brasil. São EM FACE DE PROMOTOR DE JUSTIÇA INVESTIDO NA FUNÇÃO ELEITORAL
Paulo: Cortez; Brasília: Unicef; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006.
Ordinariamente, se a questão da improbidade tem como agente um servidor
público federal, a atribuição para ingresso da ação será do MPF e a competência será da

* Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, Promotoria de Gandu, pós-graduada em


Direito Público pelo JusPodivm.
REVISTA DO MPBA 18 19 REVISTA DO MPBA
A ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA INVESTIGAR EVENTUAL ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA COMETIDA POR TERCEIROS EM A ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA INVESTIGAR EVENTUAL ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA COMETIDA POR TERCEIROS EM
FACE DE PROMOTOR DE JUSTIÇA INVESTIDO NA FUNÇÃO ELEITORAL FACE DE PROMOTOR DE JUSTIÇA INVESTIDO NA FUNÇÃO ELEITORAL

Justiça Federal. Já se o servidor que cometeu o ato ímprobo for estadual ou municipal, Há uma outra posição do STF que determina que em caso de desvio de verbas,
atribuição do MPE com ação tramitando na Justiça Estadual. Isso é pacífico! Não há como do FUNDEB, a competência criminal é da Justiça Federal e do MPF e a apuração
maiores questionamentos quanto a este fato. de improbidade aconteceria no âmbito estadual, in fine:
O problema começa a surgir quando o ato de improbidade envolve desvio de ACO 1109 / SP - SÃO PAULO
verbas. Se há repasse da União inserido nessas verbas, há duas soluções para o AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA
problema: a) se a verba foi incorporada ao Município, a atribuição será do MPE; b) caso Relator(a):Min. ELLEN GRACIE
Relator(a) p/ Acórdão:  Min. LUIZ FUX (art. 38, IV, b, do RISTF)
não seja incorporada, será do MPF. Nesse sentido, segue texto da súmula nº 208 STJ:
Julgamento:  05/10/2011           Órgão Julgador:  Tribunal Pleno
Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-047 DIVULG 06-03-2012
COMPETE A JUSTIÇA FEDERAL PROCESSAR E JULGAR
PUBLIC 07-03-2012
PREFEITO MUNICIPAL POR DESVIO DE VERBA SUJEITA A
Parte(s) AUTOR(A/S)(ES): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL;
PRESTAÇÃO DE CONTAS PERANTE ORGÃO FEDERAL”. E da
RÉU(É)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
súmula nº 209 STJ: “COMPETE A JUSTIÇA ESTADUAL PROCESSAR
E JULGAR PREFEITO POR DESVIO DE VERBA TRANSFERIDA E
Ementa: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÕES.
INCORPORADA AO PATRIMONIO MUNICIPAL.
CARACTERIZAÇÃO. AUSÊNCIA DE DECISÕES DO PODER
Mas como saber se determinado repasse da União foi incorporado ou não ao JUDICIÁRIO. COMPETÊNCIA DO STF. ART. 102, I, f, CF. FUNDEF.
COMPOSIÇÃO. ATRIBUIÇÃO EM RAZÃO DA MATÉRIA. ART. 109, I E
patrimônio municipal ou estadual? Muitos solucionam o caso, verificando o Órgão
IV, CF. 1. Conflito negativo de atribuições entre órgãos de atuação
legitimado para julgar a aprovar a prestação de contas pelo uso de tais verbas. Se é do Ministério Público Federal e do Ministério Público Estadual a
atribuição do TCU, a competência seria da Justiça Federal e do MPF. Nesse passo, traz- respeito dos fatos constantes de procedimento administrativo. 2.
se à baila decisão do STF: O art. 102, I, f, da Constituição da República recomenda que o presente
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO conflito de atribuição entre os membros do Ministério Público Federal
EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA. e do Estado de São Paulo subsuma-se à competência do Supremo
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PREFEITO. REPASSE DE Tribunal Federal . 3. A sistemática de formação do FUNDEF impõe,
VERBA SUJEITA A PRESTAÇÃO DE CONTAS EM ÓRGÃO para a definição de atribuições entre o Ministério Público Federal
FEDERAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL PARA e o Ministério Público Estadual, adequada delimitação da natureza
DETERMINAR O INTERESSE DA UNIÃO: PRECEDENTES. cível ou criminal da matéria envolvida 4.A competência penal,
AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. uma vez presente o interesse da União, justifica a competência
da Justiça Federal (art. 109, IV, CF/88) não se restringindo ao
(RE 767501 AgR, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, aspecto econômico, podendo justificá-la questões de ordem
julgado em 03/02/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-030 DIVULG moral. In casu, assume peculiar relevância o papel da União
12-02-2015 PUBLIC 13-02-2015) na manutenção e na fiscalização dos recursos do FUNDEF, por
isso o seu interesse moral (político-social) em assegurar sua
E DO STJ: adequada destinação, o que atrai a competência da Justiça
Federal, em caráter excepcional, para julgar os crimes praticados
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO EM em detrimento dessas verbas e a atribuição do Ministério Público
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE Federal para investigar os fatos e propor eventual ação penal. 5.
ADMINISTRATIVA. PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO A competência da Justiça Federal na esfera cível somente se verifica
ESCOLAR - PNAE. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO quando a União tiver legítimo interesse para atuar como autora, ré,
FEDERAL E COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. assistente ou opoente, conforme disposto no art. 109, inciso I, da
ARGUMENTAÇÃO GENÉRICA E DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. Constituição. A princípio, a União não teria legítimo interesse
SÚMULA 208/STJ. 1. É deficiente a fundamentação do especial processual, pois, além de não lhe pertencerem os recursos
que não demonstra contrariedade ou negativa de vigência a tratado desviados (diante da ausência de repasse de recursos federais a
ou lei federal (Súmula 284/STF). 2. “Compete à justiça federal título de complementação), tampouco o ato de improbidade seria
processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita imputável a agente público federal. 6. Conflito de atribuições
a prestação de contas perante órgão federal” (Súmula 208 do conhecido, com declaração de atribuição ao órgão de atuação do
STJ). 3. Agravo regimental não provido. (STJ - AgRg no AREsp: 30160 Ministério Público Federal para averiguar eventual ocorrência de
RS 2011/0172896-8, Relator: Ministra ELIANA CALMON, Data de ilícito penal e a atribuição do Ministério Público do Estado de São
Julgamento: 12/11/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: Paulo para apurar hipótese de improbidade administrativa, sem
DJe 20/11/2013). (grifo nosso). prejuízo de posterior deslocamento de competência à Justiça Federal,
caso haja intervenção da União ou diante do reconhecimento ulterior
de lesão ao patrimônio nacional nessa última hipótese. (grifo nosso).
REVISTA DO MPBA 20 21 REVISTA DO MPBA
A ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA INVESTIGAR EVENTUAL ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA A ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA INVESTIGAR EVENTUAL ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
COMETIDA POR TERCEIROS EM FACE DE PROMOTOR DE JUSTIÇA INVESTIDO NA FUNÇÃO ELEITORAL COMETIDA POR TERCEIROS EM FACE DE PROMOTOR DE JUSTIÇA INVESTIDO NA FUNÇÃO ELEITORAL

Mas esse entendimento não é absoluto, porque há ações de improbidade em Agora, e se o servidor da União for vítima do ato ímprobo? Aliás, e se o servidor
casos semelhantes tramitando na Justiça Federal, além de haver entendimento dos vítima for um servidor estadual em atuação delegada de Órgão da União e a ação parte
Tribunais Superiores, notadamente do STJ, salientando que se o MPF ingressa com de um servidor estadual ou municipal, como sói acontecer no presente caso? Para ser
ação de improbidade, está demonstrado a interesse da União, por ser o MPF Órgão mais clara, se um Promotor de Justiça investido nas atribuições eleitorais é vítima de um
deste ente Federado o que, por si, desloca a competência para a Justiça Federal. Então, ato de improbidade praticado por um servidor público municipal ou estadual, porque estes
se o MPF diz que tem interesse em apurar eventual improbidade no desvio de dinheiro últimos descumpriram uma requisição deste Promotor? A atribuição para investigação é
do FUNDEB, a competência passa a ser da Justiça Federal. Vejam os próximos dois do MPF ou MPE? Aplicar-se-á o entendimento de que o crime tramita na Justiça Federal
julgados: e a improbidade na Justiça Estadual?
PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. Quanto ao crime, não há dúvidas que seria atribuição do MPF, haja vista o quanto
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL.
disposto na CF/88, art. 109, inc. IV (que afirma que compete à Justiça Federal julgar os
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. Na indicação dos
precedentes, tendo o Ministério Público Federal legitimidade para
crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou
promover a ação de improbidade administrativa, por suposta ofensa interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas [...] - grifei) e
a bem público da União, a sua presença na relação processual como já afirmado alhures. Ratificando esse entendimento, insta trazer o julgado abaixo:
é o suficiente para firmar a competência da Justiça Federal para o PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME COMUM
processo e julgamento da ação. 2. Agravo de instrumento provido. PRATICADO CONTRA JUIZ ELEITORAL. INTERESSE DA UNIÃO.
(TRF-1 - AG: 175534620104010000, Relator: DESEMBARGADOR COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
FEDERAL OLINDO MENEZES, Data de Julgamento: 12/08/2014, 1. A competência criminal da Justiça Eleitoral se restringe ao processo
QUARTA TURMA, Data de Publicação: 22/08/2014) e julgamento dos crimes tipicamente eleitorais.
2. O crime praticado contra Juiz Eleitoral, ou seja, contra órgão
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. MALVERSAÇÃO DE jurisdicional de cunho federal, evidencia o interesse da União em
VERBAS PÚBLICASORIUNDAS DO FUNDEB. AUSÊNCIA DE preservar a própria administração.
COMPLEMENTAÇÃO DE VERBAS FEDERAIS.IRRELEVÂNCIA. 3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal
CARÁTER NACIONAL DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO. INTERESSE do Juizado Especial Cível e Criminal da Seção Judiciária do Estado
DAUNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. Após o de Rondônia, ora suscitado. (Processo: CC 45552 / RO - CONFLITO
julgamento do CC nº 119.305/SP, a Terceira Seção desta Corte passou DE COMPETENCIA 2004/0102937-6; relator: Ministro ARNALDO
a entender que é da competência da Justiça Federal a apuração, ESTEVES LIMA (1128); Órgão Julgador: S3 - TERCEIRA SEÇÃO;
no âmbito penal, da malversação de verbas públicas oriundas do data do julgamento: 08/11/2006; data da publicação: DJ 27/11/2006
FUNDEB, ainda que não tenha complementação de verbas federais, p. 246)
diante do caráter nacional da política de educação, evidenciando
o interesse da União na correta aplicação dos recursos. 2. Conflito
conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 3ª Vara de
O mesmo raciocínio que se aplica ao Juiz Eleitoral, se aplica ao Ministério Público
Bauru - SJ/SP, o suscitado. (STJ - CC: 115434 SP 2011/0002770-7, Eleitoral. O Juiz Eleitoral ou Promotor Eleitoral estavam a serviço da União (a Justiça
Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: Eleitoral é uma Justiça da União e a atividade do Promotor Eleitoral é delegada do
28/03/2012, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe Ministério Público Federal).
14/05/2012) Mas e em relação à improbidade administrativa? Também desloca essa atribuição
para a Justiça Federal e, por conseguinte, para o MPF investigar? Ou permanece o
Por isso, não é tão simples definir o que seria atribuição do Ministério Público Federal entendimento de que a improbidade seria com o MPE?
e o que seria atribuição do Ministério Público Estadual, em questão de improbidade. O Ora, reza a Constituição Federal que:
art.109, inc. I, CF/88 é muito vago ao trazer que será competência da Justiça Federal a
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
ação em que houver interesse da União.
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública
Deste modo conclui-se que é meio nebuloso tratar de competência no âmbito da federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes
moralidade pública. ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as
Voltando à questão da improbidade decorrente de descumprimento de requisição sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; (grifo nosso).
de Promotor Eleitoral e a atribuição para sua apuração, nota-se que, in casu, o Promotor
Eleitoral, que está no uso de uma atribuição da União é vítima do ato de improbidade Pois bem: o Ministério Público Eleitoral não possui estrutura orgânica própria.
cometido por um agente estadual. Ele não é o autor. Se fosse o autor, a solução era Em outras palavras, não constitui um ramo autônomo do “Parquet” brasileiro, mas sim
pacífica, como visto acima. Servidor da União que comete o ato ímprobo, a atribuição um conjunto de atribuições que é expressamente atribuído por lei ao Ministério Público
será do MPF para ingresso de eventual ação. Federal. A lei complementar n° 75/1993 aduz, in verbis, que:
REVISTA DO MPBA 22 23 REVISTA DO MPBA
A ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA INVESTIGAR EVENTUAL ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA A ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA INVESTIGAR EVENTUAL ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
COMETIDA POR TERCEIROS EM FACE DE PROMOTOR DE JUSTIÇA INVESTIDO NA FUNÇÃO ELEITORAL COMETIDA POR TERCEIROS EM FACE DE PROMOTOR DE JUSTIÇA INVESTIDO NA FUNÇÃO ELEITORAL

Art. 37. O Ministério Público Federal exercerá as suas funções: 6. Necessidade de serem apurados os fatos narrados na inicial.
I - nas causas de competência do Supremo Tribunal Federal, do 7. Reforma da sentença para assegurar o recebimento da petição
Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos inicial para que se dê o regular processamento do feito. (TRF 3ª
Juízes Federais, e dos Tribunais e Juízes Eleitorais; (grifo nosso). Região, AC Nº 0002977-38.2008.4.03.6119/SP, Rel. Juiz Federal
Convocado Herbert de Bruyn, publicado em 15/03/2013) (grifo nosso).
Posto isso, a legislação é clara no sentido de que o exercício da função eleitoral
compete ao mencionado ramo do Ministério Público da União. Na atualidade, essa função PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. AÇÃO
é exercida diretamente nos graus superiores (o Procurador Geral da República atua CIVIL POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.
como Procurador Geral Eleitoral e designa os membros do Ministério Público Federal AGENTES POLÍTICOS. PREFEITO. APLICABILIDADE DA LEI Nº.
8.429/92. PRECEDENTE DO STJ E DESTE TRIBUNAL. ATO DE
que atuarão como Procuradores Regionais Eleitorais) e por delegação no Primeiro Grau
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA DO ART. 11, II, DA LEI Nº 8.429/92
(os Promotores de Justiça agem como delegados do “Parquet” Federal). CONFIGURADO. 1. O STF entendeu, na Reclamação n. 2.138, que
Assim, quando o Promotor de Justiça atua na área eleitoral, ele está atuando os agentes políticos, por serem regidos por normas especiais de
por delegação do MPF. Ele atua como membro do Ministério Público Federal. Logo, há responsabilidade, não respondem por improbidade administrativa com
interesse da União quando, ainda que por atuação delegada, seu agente é vítima de um base na Lei 8.429/92, mas, apenas, por crime de responsabilidade em
ato de improbidade. ação que somente pode ser proposta perante a Corte, nos termos
No caso, o descumprimento de eventual requisição sua, tem de ser apurado pelo do art. 102, I, c, da CF. A decisão proferida na Reclamação n. 2.138,
próprio MPF. contudo, não possui efeito vinculante nem eficácia erga omnes, não
Com efeito, como se dispõe dos julgados abaixo, todas as vezes que foram se estendendo a quem não foi parte naquele processo, uma vez que
não tem os mesmos efeitos das ações constitucionais de controle
descumpridas requisições do MPF, o próprio MPF ingressou com ação judicial decorrente
concentrado de constitucionalidade. 2. Os Prefeitos Municipais, ainda
por este descumprimento na Justiça Federal ainda que a autoridade agente do ato fosse que sejam agentes políticos, estão sujeitos à Lei de Improbidade
autoridade municipal ou estadual: Administrativa, conforme o disposto no art. 2º dessa norma, e nos
AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. artigos 15, V, e 37, § 4º, da Constituição Federal. Também estão
REJEIÇÃO DA PETIÇÃO INICIAL. AUSÊNCIA DE DEFEITOS sujeitos à ação penal por crime de responsabilidade, na forma do
FORMAIS PARA A REJEIÇÃO DA PETIÇÃO INICIAL. INEXISTÊNCIA Decreto-Lei nº. 201/67, em decorrência do mesmo fato. Precedentes
DE PROVA SUFICIENTE PARA A DECRETAÇÃO SUMÁRIA DA do STJ e deste Tribunal. 3. O descumprimento injustificado de
IMPROCEDÊNCIA DA ACUSAÇÃO. NECESSIDADE DE ASSEGURAR requisição ministerial por Prefeito configura ato de improbidade
O REGULAR PROCESSAMENTO DO FEITO. administrativa, previsto no art. 11, II, da Lei nº 8.249/92. 4. As
1. Ação ajuizada pelo Ministério Público Federal no intuito de penalidades aplicadas estão razoáveis (adequadas, sensatas,
apurar atos de improbidade administrativa praticados pelo réu, coerentes) e proporcionais (compatíveis com a gravidade e extensão
que, sob alegação de sigilo bancário deixou de atender a requisição do dano - material e moral) ao ato de improbidade praticado. 5. Apelação
do Ministério Público Federal, fundamentada no art. 8º, §§ 2º e 3º não provida. (TRF 1ª Região, AC 0003197-24.2008.4.01.3813 / MG,
da Lei Complementar nº 75/1993, de fornecimento de documentos Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL TOURINHO NETO, TERCEIRA
e informações destinados a instruir o procedimento administrativo TURMA, e-DJF1 p.52 de 29/07/2011) (grifo nosso)
instaurado para investigar a capacidade técnica e financeira das
construtoras escolhidas pela CEF, sem licitação, para construção de Note-se que até mesmo quando o descumprimento de requisição se deu em face
conjuntos habitacionais, por terem as mesmas falido ou abandonado do Ministério Público do Trabalho que faz parte do Ministério Público da União, a referida
as obras após recebimento de recursos públicos. ação foi ajuizada pelo MPF:
2. Rejeição da petição inicial.
3. A rejeição da inicial, com base no artigo 17, § 8º, da Lei nº 8.429/92, CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ATOS
somente se dá em caráter excepcional e quando não houver dúvidas DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI Nº 8.429/92. PRELIMINAR
acerca do descabimento da pretensão, de molde a evitar lides DE INÉPCIA DA INICIAL E DE ILEGIMIDADE ATIVA DO AUTOR DA
temerárias. AÇÃO. PRECLUSÃO. CONDENAÇÃO COM BASE EM PEÇAS DE
4. Descrição da inicial, subsidiada pela documentação juntada que se INQUÉRITO POLICIAL. IMPOSSIBILIDADE. IMPRESCINDIBILIDADE
mostra suficiente para respaldar a admissão da ação civil pública por DE PRODUÇÃO DE OUTRAS PROVAS EM JUÍZO. 1. Alega o apelante
improbidade administrativa. que a inicial não poderia ter sido recebida, porque a prova documental
5. Ausência de defeitos formais para a rejeição da petição inicial juntada foi extraída de inquérito policial arquivado e que o inquérito foi
e inexistência de prova suficiente para a decretação sumária da instaurado por órgão ministerial diverso.
improcedência da acusação. Cumprimento dos requisitos legais
mínimos da Lei nº 8.429/92.
REVISTA DO MPBA 24 25 REVISTA DO MPBA
A ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA INVESTIGAR EVENTUAL ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA COMETIDA POR TERCEIROS EM
FACE DE PROMOTOR DE JUSTIÇA INVESTIDO NA FUNÇÃO ELEITORAL

As questões estão preclusas. O apelante não recorreu da decisão que A COMERCIALIZAÇÃO DOS PLANOS DE PACOTES DE DADOS DE INTERNET
recebeu a inicial. 2. Os documentos juntados pelo Ministério Público, DENOMINADOS “TARIFA ZERO” PELAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES E
relativos a inquérito policial, mostram a existência tão-somente de O (DES)CUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DA REDE PREVISTO
indícios da prática de atos de improbidade administrativa. Faltou uma
NA LEI 12.965/2014 (MARCO CIVIL)
reconstrução probatória dos fatos em juízo, com a imprescindível
ouvida de testemunhas. 3. Provimento do apelo. (AC 0000839- Fabrício Rabelo Patury*
90.2002.4.01.4300 / TO, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON
QUEIROZ, QUARTA TURMA, DJ p.46 de 28/09/2007)
EMENTA
Extrai-se do julgado por último citado, a seguinte passagem: Artigo expondo os fundamentos que demonstram que a comercialização de pacotes de
A sentença do Juiz Federal da 1ª Vara da Seção Judiciária do Tocantins dados de Internet denominados “Tarifa Zero” pelas empresas de telefonia descumpre o
assim sumariou a controvérsia: Princípio da Neutralidade da Rede previsto na Lei 12.965/2014 (Marco Civil).
“1. O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ajuizou a presente ação
de improbidade administrativa em face de JOSÉ CARNEIRO DA PALAVRAS-CHAVE: Pacotes Tarifa Zero. Zero Rating. Neutralidade. Internet. Lei
SILVA alegando, em síntese, que o requerido, na qualidade de
12.965/2014. Marco Civil.
Prefeito do Município de Buriti do Tocantins/TO, deixou de atender
a requisições de informações e documentos formuladas pelo
Ministério Público do Trabalho, conduta omissiva que caracteriza
ato de improbidade previsto no art. (sic) 11, II, da Lei 8.429/92.” 1 INTRODUÇÃO
Ora, o mesmo raciocínio deve ser aplicado no caso em tela, uma vez que como já O Marco Civil da Internet (Lei 12.865/2014) é uma lei que tem por finalidade
dito, o Promotor de Justiça estava na atuação de Promotora Eleitoral e, por conseguinte, consolidar direitos, deveres e princípios para a utilização e o desenvolvimento da Internet
em função delegada pelo MPF, Órgão da União. no Brasil. A iniciativa partiu da percepção de que o processo de expansão do uso da
Internet por empresas, governos, organizações da sociedade civil e por um crescente
número de pessoas colocou novas questões e desafios relativos à proteção dos direitos
CONCLUSÃO civil e políticos dos cidadãos. Nesse contexto, é crucial o estabelecimento de condições
mínimas e essenciais não só para que o futuro da Internet siga baseado em seu uso livre
Destarte, conclui-se que não existe atribuição do Ministério Público Estadual para a aberto, mas que permita também a inovação contínua, o desenvolvimento econômico,
conduzir o procedimento de improbidade, quando o Promotor que atua investido da político e cultural da sociedade.
função eleitoral é vítima de improbidade, ainda que o agente seja servidor municipal ou De todas as propostas de princípios norteadores do Marco Civil da Internet,
estadual. uma das mais importantes sempre foi a Neutralidade da Rede, que é um princípio de
arquitetura de rede que endereça aos provedores de conexão (que incluem as empresas
de telecomunicações) o dever de tratar os pacotes de dados que trafegam em suas
REFERÊNCIAS redes de forma isonômica, não os discriminando em razão de seu conteúdo, origem,
destino, política, etc. As primeiras  formulações a respeito do tema surgiram no início
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. dos anos 2000, período em que a expansão da banda larga e a emergência de novas
Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ gerações de internet móvel aumentaram o número de dispositivos conectados em um
Constituicao.htm>. ritmo muito maior do que a expansão física das redes de telecomunicações disponíveis,
Julgados dos Tribunais (TJ, TRF, STJ, STF). Disponíveis em: www.jusbrasil.com.br; surgindo evidências de que provedores de conexão estariam discriminando tráfego de
www.stf.jus.br; www.stj.jus.br aplicações que pudessem ser danosas a seus interesses comerciais (como, por exemplo,
aplicações VoIP que competem com serviços de telefonia tradicional).

* Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia - Capital; Coordenador no Núcleo de Comba-
te aos Crimes Cibernéticos - Nucciber - do Ministério Público do Estado da Bahia; Coordenador da Central de
Inquéritos da Capital do Ministério Público do Estado da Bahia; Subcoordenador da Coordenadoria de Segu-
rança e Inteligência Institucional - CSI - do Ministério Público do Estado da Bahia; Especialista em Ciências
Criminais pela Universidade Gama Filho – UGF-RJ; Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela
Universidade Estadual da Bahia – UNEB; Ex-Professor de Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade
Nobre de Feira de Santana – FAN.
REVISTA DO MPBA 26 27 REVISTA DO MPBA
A COMERCIALIZAÇÃO DOS PLANOS DE PACOTES DE DADOS DE INTERNET DENOMINADOS “TARIFA ZERO” PELAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES E O A COMERCIALIZAÇÃO DOS PLANOS DE PACOTES DE DADOS DE INTERNET DENOMINADOS “TARIFA ZERO” PELAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES E O
(DES)CUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DA REDE PREVISTO NA LEI 12.965/2014 (MARCO CIVIL) (DES)CUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DA REDE PREVISTO NA LEI 12.965/2014 (MARCO CIVIL)

A ideia de neutralidade é um dos pilares do Marco Civil Brasileiro. Isto porque, sem seriam obrigados a realizar contrato com as teles para poder ofertar seus produtos na
a neutralidade, não é possível garantir a todos o direito de livre acesso à Internet. Ela foi rede. Por certo, o consumidor perderia sua capacidade de escolha.
abraçada não só sob uma visão técnica, mas também comercial, conforme se infere em
todo o trâmite de elaboração legislativa.
Contudo, as operadoras de telefonia no Brasil, após todo o processo de 2 FUNDAMENTAÇÃO
discussão, votação a aprovação da Lei 12.965/2014 (Marco Civil), que consagrou
como princípio social fundamental à Neutralidade, tem fornecido planos de pacotes de A Neutralidade de Rede é básica em qualquer interação social e um princípio
dados denominados “Tarifa Zero” em que, mesmo após encerrado o crédito de dados, embutido na origem da Internet, fundada na necessidade de que não exista interferência
ficam mantidos os acessos a determinados e exclusivos aplicativos denominados OTTs no conteúdo que passa pela rede e que não haja distição de origem e destino. Garantir
(over the tops), ou seja, aplicativos de forte uso e apelo popular, tais como Whatsapp, a neutralidade de rede corresponde a garantir que todos os conteúdos e usuários seja
Facebook, Twiter, etc... No caso, o “zero rating” residiria no fato de que, concluído tratados da mesma maneira.
os créditos e/ou o pacote da dados contratado para o acesso a todo o conteúdo de Segundo os Princípios para Uso e Governança da Internet, aprovados por
Internet, o serviço seria descontinuado, menos para os aplicativos excetuados através consenso, em reunião que estiveram presentes representantes dos diversos segmentos
de “parceria”, oferencendo-se aos pacotes de dados destes aplicativos preferência da sociedade, a filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar somente critérios
exclusiva de tráfego, discriminando todos os demais. técnicos e éticos, não sendo admissíveis qualquer motivos políticos, comerciais,
Não existe nenhuma gratuidade - no sentido amplo - nesta denominada ‘Tarifa Zero”. religiosos, culturais ou outras formas de discriminação ou favorecimento. Para qualquer
O acordo comercial entre o Provedor de Aplicações e a Operadora de Telecomunicações serviço de telecomunicações, são previstas condições técnicas para o gerenciamento de
prevê um intenso retorno em marketing e uso de outros serviços ofertados pelas Teles, uso de sua rede de suporte, exclusivamente com o objetivo de assegurar a qualidade do
passando a tratar o consumidor como o verdadeiro produto lucrativo. O preço para o serviço.¹
contratante é perder seu direito de liberdade de navegação da rede mundial, de acesso a Assim dispõe a Lei 12.965/2014:
informação não direcionada, em detrimento de um consumo direcionado de um aplicativo Art. 3° - A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes
específico. Não há “almoço grátis” nesta relação contratual em benefício ao consumidor, princípios:
I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação
visto que tal pactuação se formula em notório cerceamento do direito de navegação livre
de pensamento, nos termos da Constituição Federal;
na Internet. (...)
Sendo assim, o denominado “Plano Tarifa Zero” vai de encontro ao quanto IV - preservação e garantia da neutralidade de rede;
previsto no Marco Civil, já que o Princípio da Neutralidade da Rede estabelece que todo (…)
o conteúdo que trafega pela Internet deve ser tratado de forma igual, sem discriminação
econômica, política, religiosa, de origem ou destino. Os provedores de conexão podem Da Neutralidade de Rede
até vender velocidades diferentes  (ex: megabits por segundo), desde que independente
do conteúdo acessado pelo usuário, mas não poderiam vender planos para acesso Art. 9° - O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento
exclusivo ou restrito para aplicativos específicos. Sem o respeito ao princípio ora avocado, tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de
dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço,
as empresas de provimento de conexão poderão escolher pelo usuário o que acessar,
terminal ou aplicação.
poderão vender planos fragmentados sob demanda, como uma espécie de TV por § 1° A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada
assinatura. Nisto reside a pressão pela quebra ao princípio: para os grupos econômicos, nos termos das atribuições privativas do Presidente da República
o desrespeito ao princípio da Neutralidade da Rede visa liberar este nicho lucrativo, bem previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel
como pressão de determinados grupos e bancadas políticas visam liberar a viabilidade execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência
de restrições de conteúdos de cunho religioso, de gênero, etc. Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:
Acaso a Neutralidade seja ultrajada, teremos enorme impacto negativo na inovação, I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos
já que dificultaria que as pessoas divulgassem livremente suas produções e informações, serviços e aplicações; e
no momento em que as empresas de telecomunicações privilegiariam o tráfego de dados II - priorização de serviços de emergência.
§ 2° Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista
delas mesmas ou de suas associadas pagantes em detrimento aos demais conteúdos.
no § 1o, o responsável mencionado no caput deve:
Com isso, um usuário comum, dono de pequeno blog, seria prejudicado em relação a I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei
grandes empresas com maior poder econômico, impedindo a inovação e a criação. Teria no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;
o Facebook nascido se esta prática tivesse sido adotada pelo Orkut? II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;
Ademais, a falta de liberdade na navegação afetaria diretamente as startups, que
são empreendedores da área da tecnologia que, caso viessem a criar novo aplicativo, * O CGI.BR e o marco civil da internet. Disponível em: < http://www.cgi.br/publicacao/o-cgi-br-e-o-marco-civil-
-da-internet/91>. Acesso em: 12 ago. 2015.
REVISTA DO MPBA 28 29 REVISTA DO MPBA
A COMERCIALIZAÇÃO DOS PLANOS DE PACOTES DE DADOS DE INTERNET DENOMINADOS “TARIFA ZERO” PELAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES E O A COMERCIALIZAÇÃO DOS PLANOS DE PACOTES DE DADOS DE INTERNET DENOMINADOS “TARIFA ZERO” PELAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES E O
(DES)CUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DA REDE PREVISTO NA LEI 12.965/2014 (MARCO CIVIL) (DES)CUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DA REDE PREVISTO NA LEI 12.965/2014 (MARCO CIVIL)

III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente Já o inciso II em voga também não tem por fundamento excepctuar o princípio
descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e da Neutralidade da Rede, mas sim permitir que serviços de emergência, tais como 190,
mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança Disque 100, etc..., tenham prioridade de tráfego caso sejam usados através de Voz sobre
da rede; e IP (Voip), o que demanda intenso uso de banda.
IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias Como se vê, as exceções em nenhum momento sugerem a possibilidade dos
e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.
provedores de conexão poderem discriminar os pacotes de dados, também cobrando
§ 3° Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem
como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, diferentes preços por serviço ou aplicação, tais como na aplicação do Plano “Tarifa Zero”.
monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, A neutralidade não é somente técnica, mas também econômica e política.
respeitado o disposto neste artigo. (grifo nosso) Pedro Ramos, autor de um site específico sobre Neutralidade na Rede3, especifica
que há pelo menos três formas de discriminar um conteúdo ou aplicação específica na
O Marco Civil da Internet, em seu Artigo 9°, estabelece como dever do
Internet: bloqueando, reduzindo sua velocidade ou cobrando um preço diferente pelo
responsável pela trasmissão, comutação ou roteamento, ou seja, pelo serviço e rede
acesso àquele conteúdo.
de telecomunicações utilizados, tratar de forma isonômica qualquer pacotes de dados,
O bloqueio de conteúdos é algo que costuma ocorrer em países com rigoroso
sem distinção por conteúdo, origem, destino, serviço, terminal ou aplicativo, no intuito de
controle censorial na Internet, por iniciativa dos próprios governos ou dos provedores de
garantir que a Neutralidade de Rede seja respeitada.
acesso (que em geral são direta ou indiretamente controlados pelo Estado), a exemplo
Á época das discussões legislativas, o relator do então projeto de Lei na Câmara
da China.
que viria se transformar na Lei 12.965/2014 (Marco Civil), o deputado Alessandro
Já a redução de velocidade ocorre quando determinado aplicativo específico não é
Molon (PT-RJ), posicionou-se a respeito do que poderia ou não ser regulamentado
carregado na mesma velocidade dos demais. Isso pode ocorrer por diversas razões: para
após a aprovação da lei. Na época, ele se referiu a Neutralidade como um conceito
diminuir a qualidade de um serviço concorrente aos serviços de telefonia tradicional (e.g.
autoaplicável e que não dependia de qualquer regulamentação, salvo as exceções
Skype e WhatsApp); para favorecer o acesso dos usuários a um serviço concorrente;
devidamente previstas em lei. Mas os casos de exceção também estariam devidamente
para reduzir o consumo de banda em aplicações pesadas (como o Youtube); ou mesmo
amarrados aos princípios centrais, não podendo se falar em regulamentação de Lei pelo
impedir o acesso a serviços que podem violar direitos de propriedade intelectual de
executivo que extrapole a própria norma legal, aprovada em devido processo legislativo.²
empresas parceiras de provedores de acesso (Bittorrent). Ainda que existam vários
As únicas exceções possíveis (e ainda assim completamente vinculadas as
casos reportados no mundo todo desse tipo de discriminação, muitas delas ocorrem de
princípio central), foram previstas no parágrafo 1°, onde se estabeleceram duas
forma oculta, sendo difícil para o usuário identificar padrões de discriminação. 
situações nas quais é admitido o tratamento diferenciado da capacidade de transmissão,
Finalmente, conclui o autor que os provedores de acesso podem discriminar
quais sejam: “I – requisitos técnicos indispensáveis à fruição adequada dos serviços e
também cobrando diferentes preços por serviço ou aplicação. Essa diferenciação pode vir
aplicações, sendo proibido o gerenciamento com base em quem são os usuários ou o
a partir da cobrança de uma taxa a mais para acesso a determinados conteúdos, como já
tipo de serviço utilizado; e II- priorização a serviços de emergência”.
ocorre nas TV’s por assinatura. Ainda, provedores de conexão podem dar gratuidade no
O inciso I do aludido parágrafo não tem por fundamento excepctuar o princípio da
acesso a alguns aplicativos especificamente escolhidos pelos provedores, algo que pode
Neutralidade da Rede, mas sim permitir tão somente que não haja desigual uso de banda
dificultar a competição entre aplicações semelhantes. Esta seria , inclusive, a aplicação
da Internet, como teríamos, por exemplo, se tivéssemos 5% dos usuários usando 90%
do Plano “Tarifa Zero”.
da banda para streaming de vídeo, prejudicando os demais 95% de usuários de dados
Importante ressaltar que o debate sobre as exceções à Neutralidade ganharam
menos intensos. Como forma de equalizar o serviço, se pratica o denominado “traffic
reforço com as discussões sobre o tema nos Estados Unidos, justamente quanto a
shaping”, ou seja, haveria uma modelagem no tráfego a fim de otimizar e equalizar o
proibição ou não de acordo entre empresas que exploram serviços de conteúdo na
uso de largura de banda disponível. Um exemplo profano seria como se tivéssemos uma
Internet (Ott’s) e operadoras de telecomunicações, com o objetivo de obter tráfego
pista com seis faixas de rolamento e, para impedir que todos os caminhões usem todas
privilegiado.
faixas ao mesmo tempo, prejudicando os carros de pequeno porte de transitarem mais
As decisões tomadas pelos órgãos reguladores nos Estados Unidos certamente
rapidamente, se estabelecesse o uso de três faixas para caminhões e três faixas para
influenciarão o debate. Contudo, o Brasil está na vanguarda dessa discussão e o Marco
veiculos, modelando, assim, o tráfego pela banda de rolagem da pista.
Civil é uma legislação exemplo para todo mundo. Por isso outros países estão olhando
Outra possibilidade para uso previsto no inciso I seria o da videoconferência,
para a normatização brasilera. Isto porque o tema vai além da questão econômica. As
quando utilizada, por exemplo, de forma oficial (audiências, reuniões governamentais,
tentativas de ampliar as exceções devem ser vistas com cautela, pois, se aceitarmos
etc).
que o Princípio da Neutralidade seja desrepeitado, poderemos, sim, estar desfigurando
a Internet como ela é hoje e concentrando muito poder nos donos da infraestrutura.

³ RAMOS, Pedro. Neutralidade da Rede. Disponível em: <http://www.neutralidadedarede.com.br >. Acesso


² REVISTA.BR. Marco Civil. Ano 06, n. 08, CGI.Br, 2015. em: 13 ago. 2015.
REVISTA DO MPBA 30 31 REVISTA DO MPBA
A COMERCIALIZAÇÃO DOS PLANOS DE PACOTES DE DADOS DE INTERNET DENOMINADOS “TARIFA ZERO” PELAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES E O
(DES)CUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DA REDE PREVISTO NA LEI 12.965/2014 (MARCO CIVIL)

Exagerar nessas exceções abriria espaço para uma Internet que se aproximaria cada O CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA NOVA
vez mais da experiência segmentada da TV a cabo. COMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL
João Paulo Santos Schoucair*
3 CONCLUSÃO
“Quando os ventos de mudança sopram, umas pessoas levantam
A Neutralidade de Rede é um princípio embutido na origem da Internet, essencial a barreiras, outras constroem moinhos de vento.”
sociedade de informação, porque garante que a Internet seja uma plataforma livre e sem Érico Veríssimo
restrições para a inovação. É chave para o constante desenvolvimento e a criação de
novas aplicações e uma ferramenta popular por meio da qual as relações se estabelecem EMENTA
de forma vibrante e voluntária. Controlar essa liberdade em qualquer aspecto, ainda mais Conselho Superior do Ministério Público. Composição. Leitura Constitucional. Participação
sob o prisma econômico ou mesmo político, é uma interferência que vai muito além dos de Promotores de Justiça. Possibilidade. Requisitos.
aspectos tecnológicos.
Somente a Neutralidade de Rede vista sob uma forma ampla, ou seja, tanto a PALAVRAS-CHAVE: Institucional. Ministério Público. Conselho Superior. Composição.
neutralidade técnica como a neutralidade econômica, tem o condão de assegurar a Redefinição Constitucional.
democratização, proporcionar um ambiente horizontal de interação social e cultural,
com participação de todos, permitindo, ainda, o surgimento de novas oportunidades de
trabalho e negócios por meio de um ambiente que facilita o pleno funcionamento do livre 1 INTRODUÇÃO
mercado, no momento em que possibilita que indivíduos e pequenas médias empresas,
com poucos recursos, atuem em regime de competição com todas as demais empresas Como é cediço, o Conselho Superior do Ministério Público é órgão vital à
já estabelecidas, usando da variedade de serviços da Internet. Administração Superior do Parquet, tendo sua composição e atribuições formatadas
O Marco Civil da Internet assegurou, portanto, a preservação dos princípios da pelos art. 15 da Lei nº 8.625/93 e art. 26 da Lei Complementar Estadual nº 11/96, sendo,
Internet livre e aberta, protegeu os direitos daqueles que utilizam a web e assegurou nessa plataforma legislativa, acessível, prima facie, apenas aos Procuradores de Justiça
os instrumentos necessários para que os prestadores de serviços de telecomunicações em atividade.
realizem o gerenciamento de seus serviços e redes preservando o princípio da Ocorre, todavia, que, com a criação do Conselho Nacional do Ministério Público,
Neutralidade da Rede.4 frise-se, por oportuno, Órgão máximo na árvore genealógica administrativa ministerial,
Conclui-se à luz dos argumentos trazidos que a comercialização de pacotes de inédita dinâmica foi dada ao guardião do Estado Democrático e de Direito, permitindo-se,
dados de Internet denominados “Tarifa Zero” pelas empresas de telefonia descumpre o na sua composição, o ingresso de Promotores de Justiça.
Princípio da Neutralidade da Rede previsto na Lei 12.965/2014 (Marco Civil). Dentro deste espectro de metamorfose jurídico-institucional, exsurge a necessidade
de ser feita uma releitura sobre a acessibilidade ao Conselho Superior do Ministério
Público, sem que seja firmado qualquer tipo de axioma; catalisando, humildemente, o
REFERÊNCIAS qualificado embate intelectual, a fim de flexibilizar velhos paradigmas, consolidando o
fortalecimento de uma Instituição que se almeja robusta e aguerrida.
WENDT, Emerson; JORGE, Higor Vinicius Nogueira. Crimes cibernéticos. Ameaças e
procedimentos de Investigação. Rio de Janeiro: Brasport, 2012;
2 DO ESPECTRO NORMATIVO INFRACONSTITUCIONAL DO CONSELHO SUPERIOR
RAMOS, Pedro. Neutralidade da Rede. Disponível em: <http://www.neutralidadedarede. DO MINISTÉRIO PÚBLICO
com.br >. Acesso em: 13 ago. 2015.
O Conselho Superior do Ministério Público tem, na sua composição, como
REVISTA.BR. Marco civil. Ano 06, n. 08, CGI.Br, 2015. membros natos, o Procurador-Geral de Justiça e o Corregedor-Geral do Ministério
Público, sendo elegíveis somente Procuradores de Justiça que não estejam afastados
REVISTA.BR. Marco civil e Neutralidade, edição n° 04, ano 03: CGI.Br, 2011. da carreira, podendo o eleitor votar em cada um dos elegíveis até o número de cargos

O CGI.BR e o marco civil da internet. Disponível em: < http://www.cgi.br/publicacao/o-cgi-


br-e-o-marco-civil-da-internet/91>. Acesso em: 12 ago. 2015. *
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, Promotoria de Santo Amaro. Professor de
Direito Processual Penal Convidado da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais AGES. Pós-graduado em
Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e mestrando em
4
O CGI.BR e o marco civil da internet. Disponível em: < http://www.cgi.br/publicacao/o-cgi-br-e-o-marco-civil- Segurança Pública pela Universidade Federal da Bahia. Membro do Grupo Nacional de Membros do Ministé-
-da-internet/91>. Acesso em: 12 ago. 2015. rio Público - GNMP. Associado ao Movimento Ministério Público Democrático - MPD.
REVISTA DO MPBA 32 33 REVISTA DO MPBA
O CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA NOVA COMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL O CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA NOVA COMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL

postos em eleição, como versam, respectivamente, as Legislações Federal e Estadual 3 DA RELEITURA CONSTITUCIONAL DA COMPOSIÇÃO DO CONSELHO SUPERIOR
Institucionais, senão vejamos: DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Art. 14 - Lei Orgânica de cada Ministério Público disporá sobre a
composição, inelegibilidade e prazos de sua cessação, posse e duração Sem perder de vista, permissa venia, a natural acomodação das estruturas
do mandato dos integrantes do Conselho Superior do Ministério Público, administrativas que permanecem intocadas, assim como o desinteresse de parte dos
respeitadas as seguintes disposições: membros em integrá-las e/ou discutir um novo modelo de atuação, propostas e/ou
I - o Conselho Superior terá como membros natos apenas o Procurador-
Geral de Justiça e o Corregedor-Geral do Ministério Público; aperfeiçoamento, a reformatação da composição do Conselho Superior é medida que
II - são elegíveis somente Procuradores de Justiça que não estejam está na pauta do dia do Ministério Público brasileiro.
afastados da carreira; É curial acentuar que, nas eleições para o apontado Órgão baiano, em 2008,
III - o eleitor poderá votar em cada um dos elegíveis até o número de existiam 25 (vinte e cinco) Procuradores de Justiça elegíveis, os quais se mantiveram na
cargos postos em eleição, na forma da lei complementar estadual. disputa até o resultado final, o mesmo não acontecendo, nos biênios seguintes, em que,
Art. 22 - O Conselho Superior do Ministério Público é órgão da no ano de 2010, dos 29 (vinte e nove) potenciais candidatos, ficaram apenas 22 (vinte
administração superior do Ministério Público, incumbindo-lhe velar e dois), ao passo que, no ano de 2012, dos 35 (trinta e cinco) elegíveis, restaram tão
pela observância de seus princípios institucionais. §1° - O Conselho somente 22 (vinte e dois), e, no ano de 2014, dos 45 (trinta e cinco) elegíveis, restaram
Superior do Ministério Público será composto pelo Procurador-Geral de tão somente 18 (dezoito).
Justiça, que o Presidirá, pelo Corregedor-Geral do Ministério Público, e Nesse contexto, além da apontada temática encontrar campo fértil de aceitação
por 09 (nove) Procuradores de Justiça eleitos por todos os integrantes
na carreira, para mandato de 02 (dois) anos, vedada a recondução, nos conclaves ministeriais2, não se busca aqui fazer, venia concessa, qualquer espécie
observado o procedimento desta Lei. de manobra jurídica, mas apenas reconhecer a força normativa da Constituição Federal,
a qual, não criando qualquer tipo de critério de posição institucional para ingresso
Por sua vez, cabe ao Conselho Superior do Ministério Público, dentre suas várias no Conselho Nacional do Ministério Público3, mais destacado colegiado ministerial,
atribuições, atuar nas movimentações, afastamentos e efetivações da carreira, eleger os chancelou aos Promotores de Justiça o direito de ascender ao seu respectivo Conselho
integrantes da Comissão de Concurso de ingresso na carreira; sugerir ao Procurador- Superior.
Geral a expedição de recomendações fecundando o aprimoramento do seu mister, Não se deve perder de foco que todo exercício hermenêutico reclama uma
bem como reforçar a atuação extrajudicial ministerial na tutela dos direitos individuais atividade contínua de superação de entendimentos que se contrapõem com o passar do
homogêneos, coletivos e difusos. tempo. A interpretação do direito não é mera dedução lógica dele, “mas sim processo de
Fincadas tais premissas, percebe-se que o Conselho Superior do Ministério contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos”4, por conta
Público atua como bússola para seus membros e Administração Superior, oxigenando disso há de se reler toda a elegibilidade dos membros do Ministério Público frente ao seu
a carreira e sinalizando seu norte magnético, bem como abalizando o labor na sensível Conselho Superior, a lume do seu perfil constitucional hodierno.
tarefa de defender a sociedade na implementação dos direitos fundamentais, sendo Com autoridade na matéria, assim sustenta Lênio Streck:
imprescindível a exortação dos ensinamentos de Carlos Jatahy: Sendo o texto constitucional, em seu todo, dirigente e vinculativo,
O perfil constitucional do Ministério Público e sua legitimidade é imprescindível ter em conta o fato de que todas as normas
perante a sociedade o vinculam primordialmente a sua atuação (textos) infraconstitucionais, para terem validade, devem passar,
como órgão agente, através dos poderosos instrumentos previstos necessariamente, pelo processo de contaminação constitucional
na Constituição da República, em que se destacam o Inquérito Civil (banho de imersão, se se quiser usar a expressão de Liebman, ou
e Ação Civil Pública (art. 129, III).O papel do Ministério Público, filtragem constitucional, no dizer de Clève). O juiz (e o operador jurídico
como agente de transformação social, está diretamente, relacionado, lato sensu) somente estará sujeito à lei enquanto válida, que se fizer,
portanto, à implementação dos princípios e valores insertos no texto coerente com o conteúdo material da Constituição. Não se deve olvidar
constitucional, sendo o Parquet o defensor direto dos interesses com Ferrajoli, que é relativamente fácil delinear um modelo garantista
de relevância social (sejam eles coletivos, difusos ou individuais
homogêneos imbuídos de interesse social).¹ 2
Foi aprovada, na plenária do XX Congresso Nacional do Ministério Público moção sobre a possibilidade
da participação de todos os membros do Ministério Público, inclusive promotores de Justiça, nas eleições
ao Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Disponível em: <http://amp-mg.jusbrasil.com.br/
noticias/112094129/plenaria-do-xx-congresso-aprova-mocao-para-participacao-de-promotores-de-justica-
no-csmp>. Acesso em: 26 out. 2015.
3
De acordo com o art. 130-A, inciso III, da Carta Magna, terão assento no Conselho Nacional do Ministério
Público, 03 (três) membros do Ministério Público dos Estados.
1
JATAHY, Carlos Roberto de C. O Ministério Público e o estado democrático de direito: perspectivas constitu- 4
GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros,
cionais de atuação institucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 28. 2006. p. 132.
REVISTA DO MPBA 34 35 REVISTA DO MPBA
O CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA NOVA COMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL O CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA NOVA COMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL

em abstrato e traduzir seus princípios em normas constitucionais Com o mesmo desiderato, mas fundamentação calcada na competência legislativa
dotadas de claridade e capazes de deslegitimar, com relativa certeza, para amalgamar o Ministério Público dos Estados e necessidade de respeito ao princípio da
as normas inferiores que se apartem dele. Mais difícil, acrescenta, é isonomia, valorosa é a posição do Eduardo Pucinelli:
modelar técnicas legislativas e judiciais adequadas para assegurar a
Em conclusão, diante da possibilidade de participação de Promotores de
efetividade dos princípios constitucionais e os Direitos Fundamentais
Justiça no Conselho Superior do Ministério Público – ainda que vinculada
consagrados por eles.5
ao estabelecimento de critério da maturidade profissional (vitaliciedade,
Com efeito, podendo ascender ao cargo de membro do Conselho Nacional do limite de idade e tempo de carreira) -, sustenta-se que:
Ministério Público, seria, data venia, inconcebível a vedação para seu ingresso em a) a norma inserida no artigo 14, inciso II, da Lei no 8.625/93 é
organismo de inferior hierarquia aos Promotores de Justiça, qual seja o Conselho inconstitucional, por violação dos dispositivos previstos no artigo 5º,
Superior do Ministério Púbico, sob a óptica de um sistema que necessita ser harmônico caput, no artigo 18, caput e no artigo 61, parágrafo 1º, inciso II, aliena
e coerente, para sua sobrevivência. “d”, todos da Constituição da República.
No outro giro, não se olvidando que, no caso do Parquet baiano, sendo os b) é de rigor, portanto:
b.1. a formalização, pelo Ministério Público dos Estados, de
Promotores de Justiça, com mais de 10 (dez) anos de carreira, elegíveis ao cargo representação ao Procurador-Geral da República, nos termos do
de Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público, ex vi do disposto no art. 5º da artigo 103, inciso VII, da Constituição da República, para o aforamento
Lei Complementar Estadual nº 11/96, podem ser os mesmos, incrivelmente, alçados de ação direta de inconstitucionalidade; e
à Presidência do apontado Colegiado sem nunca, destaque-se, por relevante, tê-lo b.2. a proposição, pelo Ministério Público dos Estados, de alteração
integrado, o que reafirma a reavaliação de sua composição para harmonização da matriz legislativa no plano estadual para a correção da apontada
sistêmica. inconstitucionalidade.8
Nesta direção, valiosas são as advertências de Emerson Garcia:
Interessante trazer ao debate que, mesmo existindo, inacreditavelmente, Estados
Em que pese ser atribuição da lei orgânica estadual disciplinar a
composição e os critérios de escolha dos integrantes do Conselho onde é vedada a participação de Promotor de Justiça no certame para o cargo de Procurador-
Superior, é imperativa a realização de eleições. O art. 14 da Lei nº Geral de Justiça, a jurisprudência, ao ser convocada para enfrentar a questão, posicionou-se
8.625/1993 não deixa margem a dúvidas quando fala em inelegibilidade, no sentido de garantir a sua integral participação:
mandato, eleitor e eleição. De qualquer modo, é impossível que a lei MANDADO DE SEGURANÇA - ELEIÇÃO PARA O CARGO DE
estabeleça uma dicotomia entre os eleitores, dispondo que metade dos PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
integrantes será escolhida pelos Procuradores e a outra metade pelos DO AMAPÁ - LIMINAR CONCEDIDA PARA ASSEGURAR
Promotores de Justiça. A PARTICIPAÇÃO DE PROMOTORES DE JUSTIÇA COMO
Somente são excluídos dessa regra os membros natos: o Procurador CANDIDATOS AO CARGO - SATISFAÇÃO DO DIREITO
Geral de Justiça, que será o seu Presidente (art. 10, II) e o Corregedor PLEITEADO ANTES DO JULGAMENTO DO MÉRITO - PERDA DO
– Geral. Nesse particular, a disposição do art. 14, I é salutar, pois OBJETO - FATO SUPERVENIENTE - ORDEM NÃO CONHECIDA,
afasta, ex ante, o desarrazoado argumento de que o Promotor de COM RESERVAS DO RELATOR, FACE AO ENTENDIMENTO
Justiça que ocupa o cargo de Procurador- Geral (sempre que a lei MAJORITÁRIO DA CORTE. 1) A perda de objeto por fato
estadual o admitir) não pode participar do Conselho Superior em superveniente porque os Impetrantes já tiveram satisfeito o direito de
razão da regra do art. 14, II, que dispõe que seus integrantes serão concorrerem ao cargo de Procurador Geral de Justiça em condições
Procuradores de Justiça. 6 (grifo nosso) de igualdade com todos os demais membros do Ministério Público
No mesmo trilhar, caminha Marconi de Melo: Estadual, impõe necessária e obrigatori-amente “o conhecimento da
ordem” para que dela conhecendo, possa ser verificado se a causa de
Em relação ao Conselho Superior do Ministério Público, enquanto
pedir e o pedido estão prejudicados. Sem conhecimento do processo,
não extintos os cargos de procurador de justiça, em uma solução
impedido está esse exame. Entendimento do Relator; 2) Com essas
transitória, defende-se aqui que passe a contar, em sua composição,
reservas, mas em respeito ao entendimento majoritário da Corte, não
de modo fracionário, com procuradores e promotores de Justiça, sendo
conheço da Ordem para extinguir o processo pela perda do objeto.9
reservada uma fração de vagas para o percentual de procuradores
existentes e promotores.7
5
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 254.
6
GARCIA, Emerson. Ministério Público: organização, atribuições e regime Jurídico. 3. ed. Rio de Janeiro: lumen
Juris, 2008. p. 215.
7
MELO, Marconi Antas Falcone de. O Ministério Público brasileiro do futuro: Recrutamento de novos 8
PUCINELLI, Humberto Eduardo. A Composicão do Conselho Superior do Ministério Público:
membros, objetivação da unidade ministerial, unificação das “instâncias ministeriais” (fim da dicotomia
Inconstitucionalidade da previsão legal sobre a exclusiva participação de Procuradores. Disponível em: <
PromotorxProcurador de Justiça), racionalização, núcleo constitucional recursal e unificação do MP pelo
http://www.ceaf.mppr.mp.br/arquivos/File/a_composicao.pdf.>. Acesso em: 26 out. 2015.
CNMP. In: XX CONGRESSO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2013, Natal: Gomes e Oliveira, 2013. 9
p. 795-810. TJ/AP, Tribunal Pleno, MS nº 38600, rel. Des. Mello Castro, DOE 2663, p. 09.11.01.
REVISTA DO MPBA 36 37 REVISTA DO MPBA
O CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA NOVA COMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL O CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA NOVA COMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL

4 DA EVOLUÇÃO ESTRUTURAL DOS ESPAÇOS DE PODER COMO FORMA DE REFERÊNCIAS


BUSCAR O APERFEIÇOAMENTO DA TRANSFORMAÇÃO DO MISTER MINISTERIAL
COUTO, Luiz Evânio Dias; SOARES, T. Diana. L. V. A. de Macedo. Três estratégias para
Superada a demonstração da argumentação jurídica, acerca da imperiosa necessidade turbinar a inteligência organizacional. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
de redefinição da composição do Conselho Superior do Ministério Público, é relevante
acentuar que, hodiernamente, os organismos públicos e privados, sob pena de sucumbir ou GARCIA, Emerson. Ministério público: organização, atribuições e regime Jurídico. 3. ed.
se tornarem anacrônicos, necessitam passar, a todo instante, por mudanças de paradigmas Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
adaptando-se aos novos cenários. GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito. 4. ed. São
Assim sendo, descortina-se a inteligência organizacional, a qual, calcada na capacidade Paulo: Malheiros, 2006.
coletiva de identificação de situações que justifiquem iniciativas de aperfeiçoamento,
conceber, projetar, implementar e operar os sistemas aperfeiçoados, utilizando recursos JATAHY, Carlos Roberto de C. O Ministério Público e o estado democrático de direito:
intelectuais, materiais e financeiros, impõe a evolução das instâncias de poder, de modo perspectivas constitucionais de atuação institucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
que a evolução organizacional seja uma constante. MELO, Marconi Antas Falcone de. O Ministério Público Brasileiro do futuro: Recrutamento
Nesse diapasão, valiosas são as ponderações de Luiz Couto e Diana Soares: de novos membros, objetivação da unidade ministerial, unificação das “instâncias
As organizações produtoras estão permanentemente
ministeriais” (fim da dicotomia PromotorxProcurador de Justiça), racionalização, núcleo
procurando se aperfeiçoar. Afinal sendo sistemas vivos, elas
atuam em condições de concorrência, buscando garantir sua
constitucional recursal e unificação do MP pelo CNMP. In: CONGRESSO NACIONAL DO
sobrevivência. Ao perseguirem esse objetivo, as organizações MINISTÉRIO PÚBLICO, 20, 2013, Natal. Anais Gomes e Oliveira, 2013.
executam ações que influenciam o ambiente onde exercem PUCINELLI, Humberto Eduardo. A Composição do Conselho Superior do Ministério
suas atividades, as quais podem trazer consequências de curto,
Público: inconstitucionalidade da previsão legal sobre a exclusiva participação de
médio e longo prazo para o futuro delas.
Assim sendo, o processo geral de aperfeiçoamento deve ser
procuradores. Disponível em: < http://www.ceaf.mppr.mp.br/arquivos/File/a_composicao.
aplicável tanto a questões estratégicas quanto a problemas de pdf.>. Acesso em: 26 out. 2015.
natureza tática ou operacional, na busca contínua de otimização STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do
do desempenho da organização. 10
Advogado, 2007.
Por fim, é essencial asseverar que não se busca, em momento algum, diminuir a
magnitude do cargo de Procurador de Justiça, mas apenas, permitindo o ingresso dos
Promotores de Justiça, com no mínimo 10 (dez) anos de carreira, no Conselho Superior
do Ministério Público, aumentar a competitividade, para seu ingresso, oxigenar o debate de
ideias, assim como viabilizar uma maior interação e troca de conhecimentos/experiências
entre as duas instâncias ministeriais.

CONCLUSÕES

Diante do exposto, com lastro nos fundamentos arremessados, conclui-se, numa


interpretação sintonizada com a atual sistemática constitucional do Ministério Público,
que:
1. Pode o Promotor de Justiça concorrer ao cargo de Procurador-Geral do
Ministério Público e presidir o respectivo Conselho Superior;
2. É permitida a participação de Promotor de Justiça no Conselho Nacional do
Ministério Público;
3. Fica assegurado ao Promotor de Justiça, com 10 (dez) anos na carreira, o direito
de concorrer e exercer o cargo de Conselheiro Superior do Ministério Público da Bahia;
4. A admissibilidade da integração do Promotor de Justiça no certame em questão
permitirá maior arejamento em vital instância de poder e aprimoramento institucional.

10
COUTO, Luiz Evânio Dias; SOARES, T. Diana. L. V. A. de Macedo. Três estratégias para turbinar a inteligência
organizacional. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 32.
REVISTA DO MPBA 38 39 REVISTA DO MPBA
CONTRIBUIÇÃO PARA UMA MOBILIDADE URBANA SAUDÁVEL

CONTRIBUIÇÃO PARA UMA MOBILIDADE URBANA SAUDÁVEL


De início, faz-se necessário frisar que o presente trabalho apresenta um enfoque
Paulo Ferreira Santos Silva* prioritariamente socioambiental da mobilidade urbana, uma vez que a contribuição aqui
Orientador: Prof. Eduardo Vacovski1 almejada tem enfoque no bem-estar da sociedade e do meio ambiente, no que tange
à sua saúde e qualidade de vida. O ponto de partida para esse objetivo consiste-se
EMENTA em destacar a importante contribuição que os usuários de transporte não motorizado,
Essencialmente, o cerne do tema da mobilidade urbana é um dos reflexos do direito pedestre e ciclista, podem oferecer à cidade quando conseguem atender às suas
à liberdade, liberdade de locomoção. O objetivo do presente artigo, com enfoque na demandas laborais, estudo ou lazer sem causar os prejuízos ambientais característicos
mobilidade de pedestres e ciclistas, é discutir o tema da mobilidade urbana no âmbito dos automóveis. A dimensão econômica da mobilidade urbana surge indiretamente, como
dos poderes municipais, executivo e legislativo, e da sociedade civil, visando, assim, consequência da abordagem socioambiental, pois são interdependentes, apresentando
encontrar alternativas que possam contribuir para a solução ou mitigação dos problemas reflexos entre si. Este afunilamento se faz primordial uma vez que a abordagem de todos
que afetam a mobilidade e a saúde ambiental nas regiões urbanas do Brasil na presente os contextos abarcados pelo fenômeno da mobilidade urbana necessitaria de um estudo
era. Para a consecução do objetivo, lançou-se mão de revisão bibliográfica sobre os mais abrangente e mais aprofundado do tema.
modais de transporte não motorizado e sobre a legislação pátria que trata do tema. Almeja-se aqui, pesquisar quais as ferramentas disponíveis ao gestor público
Abordou-se, também, a questão da mobilidade e acessibilidade das pessoas portadoras para que este possa colocar em prática, em conjunto com a sociedade, políticas que
de deficiência ou com mobilidade reduzida. Os resultados do presente trabalho apontaram possibilitem aos pedestres e ciclistas o seu direito de locomoção consagrado no artigo 5º,
necessidade de mudanças na concepção dos planejamentos e gestão dos transportes inciso XV da Constituição Federal de 19883, qual seja: “é livre a locomoção no território
no Brasil, que, ainda se originam de políticas de governo que, na sua grande maioria, não nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar,
se sustentam, a priori, nos princípios e diretrizes de políticas públicas, persistindo, como permanecer ou dele sair com seus bens”. Tal preceito reflete uma das nuances de um
regra, projetos de vias urbanas que privilegiam a mobilidade das máquinas (veículos dos fundamentos da República Federativa do Brasil, qual seja: a dignidade da pessoa
motorizados) em detrimento do ir e vir de pedestres e ciclistas. humana, cujo fim almejado pelo constituinte teve como alvo toda e qualquer pessoa e em
todo o território nacional. Nesse aspecto, o cidadão que diuturnamente trafega nas ruas
PALAVRAS-CHAVE: Mobilidade urbana. Pedestre. Ciclista. Política pública. Saúde. e calçadas (quando existem) de sua cidade sente na própria pele o quanto sua dignidade
tem sido negligenciada. Esta negligência salta aos olhos quando, principalmente, se
constata que o espaço urbano das vias públicas não é configurado de forma que o
1 INTRODUÇÃO mesmo seja usufruído democraticamente por todos os seus usuários, em especial por
aqueles que se utilizam do esforço do próprio corpo para se locomoverem.
O tema da mobilidade urbana, isto é, a “condição em que se realizam os
deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano” (art.4º, inciso II da Lei
12.587/2012)2, tem adquirido, nos dias atuais, crescente preocupação por parte de 2 A POLÍTICA NACIONAL DE MOBILIDADE URBANA
todos: dos governos e da sociedade em geral, principalmente pela frequente violência
do trânsito brasileiro e demais danos à saúde humana causados pelo tempo despendido Segundo a Lei que instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana, a Lei nº
nos engarrafamentos diários. 12.587/20124, dois são os modos de transporte urbano: o motorizado e o não motorizado.
Não se pode negar que tal preocupação é necessariamente relevante, uma vez A ênfase do presente artigo fixa-se no modo de transporte não motorizado, o modo a pé
que o deslocamento de pessoas visando satisfazer compromissos diários pode trazer e a bicicleta. Sobre estes últimos modais, não é preciso muito esforço para perceber
prejuízos significativos à sua qualidade de vida, e por conseguinte à sua saúde, caso se que as políticas de governo vigentes na maioria das cidades brasileiras voltadas ao
encontrem em dificuldades ou mesmo impedidas de alcançarem seus objetivos (laborais, desenvolvimento urbano têm ignorado a sua efetiva integração com o modo de transporte
lazer e outros). Dificuldades essas em decorrência do mau funcionamento do trânsito nas motorizado, ou, principalmente, negligenciado a sua prioridade nas vias urbanas. Nesse
vias urbanas, as quais são projetadas para priorizar o modo de transporte motorizado,
e renegar a segundo plano, ou mesmo desconsiderar, os modos de transporte não-
motorizados, adotando, assim, um modelo que já se sabe ambientalmente insustentável.
3
* BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Lei nº 12.587, de 3 de
Pós-Graduado em Administração Pública e Gerência de Cidades - Facinter
1 janeiro de 2012. Política Nacional de Mobilidade Urbana. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Graduado em Direito pela PUC – PR; Especialista em Direito Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe 04 jan. 2012, p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm>.
Bacellar. Acesso em: 07 jan. 2015.
2
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos.Lei nº 12.587, de 3 de 4
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Constituição (1988).
janeiro de 2012. Política Nacional de Mobilidade Urbana. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Promulga a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa
04 jan. 2012, p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm>. do Brasil, 05 out. 1988, p. 1 (ANEXO). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
Acesso em: 07 jan. 2015. constituicaocompilado.htm>.
REVISTA DO MPBA 40 41 REVISTA DO MPBA
CONTRIBUIÇÃO PARA UMA MOBILIDADE URBANA SAUDÁVEL CONTRIBUIÇÃO PARA UMA MOBILIDADE URBANA SAUDÁVEL

caso, sobre a competência do Município de proporcionar a cidadania no seu território, Neste último estudo, constata-se, um salto de 500 mil automóveis vendidos no ano de
deixa-se de cumprir o que dispõe a Constituição Federal de 19885 a respeito, isto é: 1990, para mais de 2,2 milhões vendidos no ano de 2008, e, no caso de motocicletas,
Art. 182 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo tomando como referência os mesmos anos, de 120 mil unidades vendidas para 1,9
poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas milhão. Tal fenômeno, segundo os autores, se deu devido ao aumento do poder aquisitivo
em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
das pessoas e às deficiências do transporte público. Outro motivo apontado pelos
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes. (grifo nosso)
pesquisadores do IPEA, tem sido as políticas governamentais que, com o argumento
de aquecer a economia, estimula tal consumo ao baixar as alíquotas do imposto (IPI)
Mais especificamente, a Lei 12.587/126, que disciplina a matéria abordada pelo
incidente sobre o valor dos veículos de baixa cilindrada, que representam a maioria da
dispositivo constitucional acima, no sentido de instruir os gestores municipais a priorizarem
frota existente no país 9,10.
o modo de transporte não motorizado na execução das políticas de mobilidade urbana,
É inegável a forte importância da indústria automobilística na economia brasileira
dispõe:
Art. 6º A Política Nacional de Mobilidade Urbana é orientada – 23% (vinte e três por cento) do PIB industrial do país em 2013 ANFAVEA11 – que
pelas seguintes diretrizes: fomenta mais de 1 milhão (1,5 milhão12) de empregos diretos e indiretos no país. Porém,
(...) tal argumento não impede que o gestor municipal desenvolva a competência de sopesar
II – prioridade dos modos de transportes não motorizados o crescimento da economia do município com inclusão social proporcionada por uma
sobre os motorizados e dos serviços de transporte público gestão eficiente em termos de acessibilidade e mobilidade urbana. Muitos usuários ainda
coletivo sobre o transporte individual motorizado; (grifo nosso)
preferem manter-se utilizando veículos motorizados, individual ou coletivo, justamente por
(…)
não vislumbrarem segurança nas vias municipais por onde trafegam, caso resolvessem
O art. 18 desta última Lei, determina as atribuições de cada ente federativo,
mudar para o modo a pé ou para a bicicleta. Este sentimento de insegurança é fruto da
estabelecendo ao Município a obrigação de colocar em prática a política de mobilidade
perigosa concorrência de pedestres e ciclistas que muitas vezes são obrigados a circular
urbana no seu território, ou seja: “Art. 18. São atribuições dos Municípios: I – planejar,
pelo leito carroçável das vias, devido à inexistência de calçadas e ciclovias ou, quando
executar e avaliar a política de mobilidade urbana, bem como promover a regulamentação
existem, não proporcionam um deslocamento seguro e confortável aos seus usuários.
dos serviços de transporte urbano;”
Neste sentido, importante destacar os dados apontados por pesquisa conduzida pela
Também no inciso III do mesmo artigo, o legislador atribui ao Município a função
organização não governamental Mobilize Brasil, onde foram avaliadas as calçadas de
de promover os meios por meio dos quais se efetivará a política de mobilidade urbana
228 ruas de 39 cidades brasileiras, as quais receberam, em uma escala de zero a dez,
no seu território, isto é: “III – capacitar pessoas e desenvolver as instituições vinculadas
nota média de 3,4.13
à política de mobilidade urbana do Município;”. Vê-se, então, que ainda falta muito para que as cidades brasileiras possam oferecer
Olhando a questão sob a ótica do gestor municipal, o desafio que se impõe é o de o mínimo de civilidade aos que delas se utilizam, proporcionando, ao menos, mobilidade
priorizar o modo de transporte não motorizado em um contexto social onde o automóvel e acessibilidade seguras e confortáveis àquelas pessoas que tentam cotidianamente
se tornou um dos maiores sonhos de consumo de boa parte dos brasileiros. Estudo fazer uso do seu direito de ir e vir, primordialmente pedestres e ciclistas. Mesmo porque,
divulgado no portal G17 em fevereiro de 2014 apontou um carro para 4 habitantes, poder transitar com relativa segurança e conforto em calçadas e ciclovias é o mínimo que
se pode esperar de uma cidade. Apesar do panorama desfavorável, mesmo correndo o
equivalendo, no cômputo geral, a mais de 45 milhões e uma motocicleta para 11 pessoas, risco de serem acidentados, boa parte dos usuários das vias públicas são pedestres,
equivalendo a mais de 18 milhões, ou seja, mais de 63 milhões de veículos motorizados é o que revelam os dados do estudo da Associação Nacional dos Transporte Públicos
em circulação no país. Estes números refletem a tendência de crescimento anual na (ANPT)14, onde se constata que 36% dos deslocamentos urbanos são realizados a pé.
aquisição de veículos motorizados apontada em estudo encomendado pelo IPEA.8
9
CARNEIRO, Mariana. Com vendas em baixa, governo prorroga IPI reduzido para veículos. Folha de S. Paulo,
5
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Constituição (1988). São Paulo. 30 jun. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/06/1478755-governo-
Promulga a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa mantem-aliquotas-reduzidas-de-ipi-de-veiculos-ate-fim-do-ano.shtml>. Acesso em: 20 fev. 2015.
10
do Brasil, 05 out. 1988, p. 1 (ANEXO). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ VASCONCELOS, Eduardo Alcântara de; CARVALHO, Carlos Henrique Ribeiro de; PEREIRA, Rafael
constituicaocompilado.htm>. Henrique Moraes. Transporte e mobilidade urbana. Brasília, dezembro de 2011. IPEA (Instituto de Pesquisa
6
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Lei nº 12.587, de 3 de Econômica e Aplicada). Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1552.
janeiro de 2012. Política Nacional de Mobilidade Urbana. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, pdf>. Acesso em: 27 fev. 2015.
11
de 04 jan. 2012, p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587. ANFAVEA. Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores. Anuário da Indústria
htm>. Acesso em: 07 jan. 2015. Automobilística Brasileira. Disponível em: <http://www.virapagina.com.br/anfavea2015/#15/z>. Acesso em:
7
REIS, Thiago. Frota de carros e motos no país. G1. 10 março 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/ 15 fev. 2015.
12
brasil/noticia/2014/03/com-aumento-da-frota-pais-tem-1-automovel-para-cada-4-habitantes.html>. Acesso Ibidem.
13
em: 15 fev. 2015. MOBILIZE BRASIL. Calçadas do Brasil Médias por local avaliado. Disponível em: < http://www.
8
VASCONCELOS, Eduardo Alcântara de; CARVALHO, Carlos Henrique Ribeiro de; PEREIRA, Rafael mobilize.org.br/midias/pesquisas/relatorio-calcadas-do-brasil---jan-2013.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2105.
14
Henrique Moraes. Transporte e mobilidade urbana. Brasília, dezembro de 2011. IPEA (Instituto de Pesquisa ANTP. Associação Nacional de Transportes Públicos. Sistema de Informações da Mobilidade Urbana
Econômica e Aplicada). Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1552. – Relatório Geral 2012, Julho/2014. Disponível em: <http://antp.org.br/_5dotSystem/download/
pdf>. Acesso em: 27 fev. 2015. dcmDocument/2014/08/01/CB06D67E-03DD-400E-8B86-D64D78AFC553.pdf>. Acesso em: 28 fev. 2015.
REVISTA DO MPBA 42 43 REVISTA DO MPBA
CONTRIBUIÇÃO PARA UMA MOBILIDADE URBANA SAUDÁVEL CONTRIBUIÇÃO PARA UMA MOBILIDADE URBANA SAUDÁVEL

2.1 CALÇADAS: GESTÃO PÚBLICA OU PRIVADA? um meio de autopromoção do seu governo, mas sim um instrumento duradouro concebido
no seio da comunidade local e, portanto, para o benefício da coletividade.
Nesta altura, cabe indagar: se construir e manter o leito carroçável das vias públicas Após estas breves considerações sobre as calçadas, pode-se perceber no cenário
são atribuições de competência do poder público, no caso das calçadas, de quem seriam atual dos planejamentos de transportes e gestão de mobilidade urbana uma ênfase
essas atribuições, do proprietário do respectivo imóvel ou da prefeitura municipal? No exagerada à circulação de veículos automotores, renegando a último plano, ou até
Brasil, infelizmente o tema ainda causa polêmica, enquanto que nas cidades europeias já mesmo desconsiderando, o direito de ir e vir dos pedestres. Não seria exagero admitir
é questão resolvida, ou seja, a construção, manutenção e fiscalização das calçadas são que o sentimento destes, ao virem o seu espaço na rua ser invadido pelas máquinas
atribuições de competência das prefeituras15. Seguindo o raciocínio de que as calçadas (veículos motorizados), pode ser comparado ao sentimento que se extrai das palavras
fazem parte das vias e estas são construídas e mantidas pelo poder público, por óbvio do célebre poeta baiano, Castro Alves, no seu poema O Povo ao Poder18, pois o direito
tais estruturas também o deveriam ser. Outro argumento válido é o de que as calçadas que se está reclamando em ambos os casos não é outro senão o direito à liberdade. In
também são um sistema de circulação, merecendo pisos adequados, sinalizações verbis:
específicas e demais regras características, assim como o é o sistema de circulação no (...)
leito das vias. A praça! A praça é do povo
Por outro lado, deixar a atribuição acima referida sob a responsabilidade do Como o céu é do condor!
particular, como acontece hoje nas cidades brasileiras, é correr o risco de o proprietário (…) (grifo nosso)
construir sua calçada a seu bel prazer, sem respeitar as normas técnicas dirigidas a 2.2 CICLOVIAS E CICLOFAIXAS: OS CICLISTAS PEDEM PASSAGEM
esta infraestrutura urbana.16 Mesmo com a fiscalização sob a responsabilidade do poder
executivo municipal, muitos proprietários de imóveis desconhecem as citadas normas Outro modo de transporte não motorizado de uso sustentável é a bicicleta. A
técnicas e uma eventual aplicação de multa por seu descumprimento configura apenas utilização da bicicleta como meio de transporte pelos brasileiros, quando comparado
uma medida paliativa ou mesmo inócua para a solução do problema. com o modo a pé, ainda é pequeno, 4% contra 36% deste último19. Porém, importante
A calçada é uma infraestrutura urbana inserida na via pública e, por este motivo, trazer aqui um dado relevante da Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas,
deve ser construída, mantida e fiscalizada pelo poder público. A esperança alimentada Ciclomotores, Motonetas e Similares (Abraciclo)20, apontando que em 2009 o Brasil
por milhares de brasileiros que fazem uso do esforço do seu próprio corpo para circularem ocupava o 5º lugar no ranking dos maiores mercados consumidores de bicicleta no
pela via pública é a de que as futuras gerações e ainda as presentes possam andar mundo, sendo registradas 5,3 milhões de unidades vendidas naquele ano. Este número
com segurança e conforto pelas ruas das suas cidades. Tal esperança torna-se especial, não deixa dúvida de que o uso da bicicleta não deveria ser negligenciado no contexto do
pois traz na sua essência a possibilidade concreta de melhoria da saúde do próprio planejamento e gestão de transportes municipais, mesmo porque este modal tem grande
pedestre e também dos demais usuários da via. Nesse sentido, ao decidir fazer uso possibilidade de crescimento da demanda por apresentar vantagem econômica para o
da energia do seu próprio corpo para se locomover pela cidade, o cidadão toma uma usuário pelo baixo custo de aquisição e manutenção quando comparado, por exemplo,
decisão inevitavelmente altruística, mesmo que esteja a princípio preocupado com a ao custo do transporte público a médio prazo.
saúde própria. Na presente época, o uso da bicicleta como meio de transporte alternativo ao
Assim, diante da importância desta infraestrutura urbana para a cidade e seus transporte motorizado tem sido bastante discutido por especialistas do setor de
usuários pedestres, o gestor municipal deve promover em seu município atos de gestão transportes. Tal uso ganha força por se tratar de veículo que se utiliza de energia limpa e,
que possam tornar real os anseios dos seus munícipes, ouvindo a opinião e sugestão por isso, apresenta-se como uma alternativa viável para resolver ou ao menos amenizar
dos mesmos através de instrumentos de gestão democrática, conforme teor do art. 5º, o caos do transporte urbano atualmente instalado no trânsito das médias e grandes
inciso V da Lei 12.587/12.17 Agindo assim, ouvindo a sociedade civil e encaminhando cidades. A bicicleta tem preço acessível a praticamente todas as classes sociais quando
ao Legislativo Municipal o projeto de mobilidade urbana para o município discutido comparado com o preço dos carros e motocicletas e, por isso, detém a a capacidade
democraticamente, o gestor criará um ambiente propício para que tal projeto não seja importante de inclusão social na mobilidade urbana. Este modo de transporte também
apresenta a característica distinta de não necessitar do uso da queima de combustíveis

15
MOBILIZE BRASIL. Calçadas do Brasil Médias por local avaliado. Disponível em: <http://www.mobilize.org.
18
br/midias/pesquisas/relatorio-calcadas-do-brasil---jan-2013.pdf>. Acesso em 12 jan. 2105. JORNAL de Poesia. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/calves4.html>. Acesso em: 07 fev.
16
ABNT. Associação Brasileira de Normas Técnicas. Acessibilidade a edificações, mobiliário, 2015.
19
espaços e equipamentos urbanos: ABNT NBR 9050:2004 Disponível em: <http://www.abnt.org.br/ ANTP. Associação Nacional de Transportes Públicos. Sistema de Informações da Mobilidade Urbana
pesquisas/?searchword=acessibilidade&x=8&y=9>. Acesso em: 07 de mar. 2015. – Relatório Geral 2012 – Julho/2014. Disponível em: <http://antp.org.br/_5dotSystem/download/
17
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Lei nº 12.587, de 3 de dcmDocument/2014/08/01/CB06D67E-03DD-400E-8B86-D64D78AFC553.pdf> Acesso em: 28 fev. 2015.
20
janeiro de 2012. Política Nacional de Mobilidade Urbana. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, ABRACICLO. Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas e Similares.
04 jan. 2012, p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm> Brasil é o 5º maior mercado consumidor de bicicletas no mundo. Disponível em: <http://www.abraciclo.com.
Acesso em: 7 jan. 2015. br/images/pdfs/consumo-mundial.pdf>. Acesso em: 27 de fev. de 2015.
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poluentes para a sua locomoção, necessitando apenas do esforço físico do seu usuário, se vê na maioria das calçadas são rampas de acesso que levam ninguém a lugar
o que promove, assim como no modo a pé, benefícios à saúde pública refletidos na nenhum, fazendo crer que apenas este recurso é o suficiente para a efetivação da
saúde do próprio ciclista, dos demais usuários da via pública e da qualidade de vida na acessibilidade. Na verdade, a Lei 10.098/200025, no seu art. 5º, trata a questão em um
cidade. contexto bem mais amplo induzindo os responsáveis a atenderem aos preceitos técnicos
Os especialistas em transporte urbano apontam, como ponto negativo para estabelecidos nas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), em
a efetivação do modal bicicleta, a falta de investimentos em infraestrutura urbana. especial a NBR 9050 – Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos
Atualmente, locomover-se de bicicleta em muitas cidades brasileiras é muito arriscado, urbanos.26 Infelizmente, os usuários que sofrem o maior prejuízo por essa ingerência são
pois poucas iniciativas por parte dos planejadores em mobilidade urbana não consideram os portadores de deficiência e de mobilidade reduzida, fazendo com que o princípio da
nos seus projetos a inclusão de ciclovias ou ciclofaixas nas novas vias que se pretende acessibilidade universal somente exista na letra da lei.
construir. Ou, mesmo que constem nos projetos, a lógica é a de que as ciclovias não
são um sistema de circulação com características próprias e específicas, como o são no 2.4 A MOBILIDADE URBANA NA PRESENTE ERA
sistema de veículos automotores, quais sejam: leito carroçável conforme as características
do veículo, espaço suficiente e seguro da faixa de trânsito, sinalização própria, etc., Na atual era, marcada pelo excesso de informação e de consumo desenfreado,
restando, assim, prejudicados os projetos pelo seu mau planejamento. é cada vez maior a consciência de que mudanças efetivas no comportamento de
Como visto, criadas as condições favoráveis à circulação de bicicletas, a cidade empresas, governos e sociedade já deveriam estar em curso.
teria chances de oferecer maior qualidade de vida e dignidade aos seus habitantes e As entidades, públicas e privadas, em muitos casos orgulham-se em divulgar suas
aos seus eventuais transeuntes. E quanto aos benefícios à saúde pelo uso cotidiano da visões e missões institucionais, prometendo praticar políticas bem intencionadas com os
bicicleta, é inquestionável a conclusão de que há ganhos consideráveis para o seu usuário. atores sociais, internos e externos, e com o meio ambiente. Na prática, no entanto, estas
Essa também é a bandeira defendida pela Organização das Nações Unidas (ONU) ao entidades, em sua grande maioria, não querem se dar conta nem se comprometer com
enfatizar a importância da bicicleta para a saúde do planeta e de seus habitantes.21 a abrangência e os custos que envolvem a coerência com aquilo que foi pomposamente
prometido. Como manter uma perspectiva otimista para as futuras gerações se o modelo
2.3 CIDADES ACESSÍVEIS: DIREITO UNIVERSAL socioeconômico que impera na presente geração é o desenvolvimento ancorado no
consumo desenfreado?
A lei que disciplina a mobilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com Vale frisar o pensamento de Buarque (2012)27 a respeito da questão acima
mobilidade reduzida é a Lei nº 10.098/200022. Também a Lei 12.587/2012 (Política abordada, isto é:
Nacional de Mobilidade Urbana)23 trata da questão, elevando o tema ao patamar de Desde os anos 1960, dezenas de autores retomaram o que já era
princípio fundamental, como se vê expresso no seu art. 5º: “A Política Nacional de considerado pelos existencialistas dos anos 1950: que o consumo
não satisfazia existencialmente. […] A sociedade contemporânea
Mobilidade Urbana está fundamentada nos seguintes princípios: I – acessibilidade
conseguiu elevar o consumo a níveis inimaginários, mas o resultado
universal;” (grifos nossos). Por fim, a Lei Maior brasileira24 traz colacionado no seu art. não está satisfazendo. A desigualdade, a pobreza, o abandono dos
1º, inciso IV, o fundamento da “dignidade da pessoa humana” e, no seu art. 3º, a proibição setores sociais, a incerteza, a violência, o antagonismo anticivilizatório,
de “quaisquer formas de discriminação”. a crise ecológica provocam uma situação que deixa o conjunto de
Como se vê acima, não se pode alegar que a falta de efetivação das políticas cada sociedade humana descontente. (BUARQUE, 2012, p. 91-92)
públicas destinadas às pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, Ou seja, seguindo a linha de raciocínio do presente trabalho, o gestor público
no tocante ao seu direito de ir e vir, não se deve à falta de dispositivo legal. Com efeito, no contemporâneo e sua equipe de técnicos devem desenvolver uma visão não apenas
caso do Brasil, o que se percebe, claramente, é que o tema da mobilidade urbana ainda técnica, mas, primordialmente, interdisciplinar das demandas que afligem a sociedade
é tratado nas iniciativas dos governos municipais com soluções paliativas. O máximo que moderna. Para tanto, requer-se, a princípio, uma equipe de técnicos com capacidade de
discernimento suficiente para aprovarem projetos de novos empreendimentos, públicos
ou privados, que gerem menor impacto à saúde ou à qualidade de vida da população lo-
22
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Lei nº 10.098 de 19
dezembro de 2000. Lei da Acessibilidade. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 20 dez. 2000,
p. 2. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L10098.htm> . Acesso em: 07 jan. 2015. 25
23
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Lei nº 10.098 de 19
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Lei nº 12.587, de 3 de dezembro de 2000. Lei da Acessibilidade. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 20 dez. 2000, p.
janeiro de 2012. Política Nacional de Mobilidade Urbana. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 2. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L10098.htm> . Acesso em: 07 jan. 2015.
04 jan. 2012, p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm> 26
ABNT. Associação Brasileira de Normas Técnicas. Acessibilidade a edificações, mobiliário,
Acesso em: 7 jan. 2015.
24
espaços e equipamentos urbanos: ABNT NBR 9050:2004 Disponível em: <http://www.abnt.org.br/
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Constituição (1988). pesquisas/?searchword=acessibilidade&x=8&y=9>. Acesso em: 07 de mar. 2015.
Promulga a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa 27
BUARQUE, Cristovam. Da ética à ética: minhas dúvidas sobre a ciência econômica. Curitiba: Ibpex, 2012.
do Brasil, 05 out. 1988, p. 1 (anexo). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
195 p. Bibliografia: p. 189-194.
constituicaocompilado.htm>.
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cal. Aliada a essa exigência de cunho técnico e interdisciplinar, sugere-se, como condição do município ou neste inserido, conforme reza o art. 24, caput, §§ 1º e 3º da Lei
sine qua non, que o gestor e os membros da sua equipe sejam servidores públicos dotados 12.587//2012.31
de um elevado grau de resiliência para não se sucumbirem às pressões de interesses
estranhos à moralidade, à eficiência no setor público e, no tocante à mobilidade urbana, à
dignidade dos cidadãos usuários dos sistemas e serviços de circulação no meio urbano, 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
notadamente os mais vulneráveis, quais sejam: pedestres e ciclistas.
É bastante oportuno trazer ao presente trabalho a contribuição de Haddad (1999)28 Como visto, o tema da mobilidade urbana na presente era traz no seu bojo outros
quando trata do tema desenvolvimento econômico e social. Segundo este autor, para de importância de mesmo quilate. Isso se deve à crescente conscientização da atual
fazer valer o significado e abrangência do termo desenvolvimento econômico e social, geração sobre as questões ligadas à preservação do meio ambiente e as consequências
não se pode prescindir do elemento inclusão social. Isto é: “Uma concepção adequada danosas à saúde humana caso não sejam colocadas em prática medidas capazes
da estratégia de desenvolvimento econômico e social de uma região e sua área de de mitigar os efeitos da poluição (atmosférica e sonora) gerada nos centros urbanos.
influência deve conter, como elemento essencial, um crescente processo de inclusão Colocar o pé no freio para desacelerar a degradação ambiental em curso nas cidades
social”. (HADDAD, 1999, p. 19) requer atitude por parte de todos os atores sociais envolvidos: governantes, empresários
Neste contexto, considerando a ideia trazida pelo autor, dizer que uma cidade ou e sociedade civil.
uma região urbana é desenvolvida não é sinônimo, por exemplo, de cidades com vias Sabe-se que o transporte realizado por meio de bicicleta ou a pé tem grande
bem pavimentadas apenas, mas, essencialmente, se há no seu sistema de circulação o potencial para despoluir as cidades devido à não geração de ruídos e por não se utilizar
elemento da inclusão social revelado na infraestrutura destas vias, onde haja espaços da queima de combustíveis fósseis. Além deste grande benefício ao meio ambiente,
transitáveis, seguros e confortáveis, não somente aos automóveis, mas também, e esses modais proporcionam economia de custos aos governos no tocante à redução de
prioritariamente, aos pedestres, ciclistas e pessoas com mobilidade reduzida que por despesas com internações por doenças causadas pelo sedentarismo da população. No
elas circulam diuturnamente. nível individual, o usuário que utiliza a energia do seu próprio corpo para se locomover,
No cenário internacional, um dado importante são os altos índices de utilização da não somente se beneficia com a melhoria da própria saúde como, também, pode gerar
bicicleta como meio de transporte em países do norte da Europa, Holanda e Dinamarca: aumento da produtividade nas suas atividades laborais, como reflexo da disposição
30% e 20%, respectivamente; na Ásia, China: 40%29; e, mais recentemente, na América do física e mental característica de indivíduos que praticam exercícios físicos. Em resumo,
Sul, na Colômbia, onde o prefeito de Bogotá30 declarou “guerra” aos veículos motorizados ganham os pedestres e ciclistas, com a melhoria da sua saúde, o governo, com a redução
e uma política governamental maciçamente voltada para os meios de transportes não de gastos decorrentes de internações por motivo de obesidade e sedentarismo da
poluentes, com grande ênfase na construção de infraestrutura para ciclistas e pedestres, população e, também, ganham os empresários pela melhoria da produtividade dos seus
atendendo à alta demanda por estes modais. empregados proporcionada pelo exercício físico utilizado no trajeto residência-trabalho.
No Brasil, a Política Nacional de Mobilidade Urbana traz um avanço com relação ao Até aqui, o tema em debate revela que a política da mobilidade urbana nos
planejamento do uso e ocupação do solo urbano e à gestão dos transportes. Tal Política municípios, se aplicada conforme os princípios, diretrizes e priorização dos modos não
traz no seu âmago o modelo que mais se aproxima do ideal que é aquele que consegue motorizados de transporte, conforme previsto em lei, tem potencial para mitigar o atual
encurtar as distâncias percorridas pelos usuários de transportes não motorizados nas suas quadro de degradação ambiental instaurado no meio urbano brasileiro. Em boa medida,
atividades cotidianas. Estas distâncias dizem respeito à extensão do percurso realizado o que se espera é que os governos municipais façam a sua parte, implantando, o quanto
pelos usuários do ponto de origem (domicílio) ao de destino (trabalho, ensino, lazer e antes, nos seus respectivos territórios o instrumento legal para a efetivação da Política
outras viagens utilitárias como, por exemplo, as realizadas ao comércio). O instrumento Nacional de Mobilidade Urbana, qual seja, o Plano Municipal de Mobilidade Urbana.
que a referida legislação elege para a viabilidade da estratégia acima apresentada é o Portanto, o desafio que se impõe à atual geração consiste em deixar como legado
Plano Municipal de Mobilidade Urbana, que deve estar em sintonia com o plano diretor a iniciativa de retirar da inércia as boas políticas públicas e colocá-las em prática a
cada nova via de circulação urbana que se constrói, ou que se planeja, no âmbito de
cada município do território brasileiro. Para tanto, sugere-se campanhas educativas dos
órgãos gestores do trânsito e meio ambiente (dos três níveis de governo) em parceria
com instituições de ensino (Faculdades, Universidades, Escolas Públicas e Privadas)
28
HADDAD, Paulo Roberto (Org.). A concepção de desenvolvimento regional. In: HADDAD, Paulo Roberto Institutos e Organizações Não Governamentais – ONG’s e outros segmentos da
et al (Org.). A competitividade do agronegócio e o desenvolvimento regional no Brasil: estudos de clusters. sociedade para divulgação da importância do tema da mobilidade urbana e seus reflexos
Brasília: CNPq/Embrapa, 1999. no meio ambiente e na saúde da população urbana.
29
BACCHIERI, Giancarlo; GIGANTE, Denise Petrucci; ASSUNÇÃO, Maria Cecília. Determinantes e padrões
de utilização da bicicleta e acidentes de trânsito sofridos por ciclistas trabalhadores da cidade de Pelotas. 31
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Lei nº 12.587, de 3 de
Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1499-1508, set-out, 2005.
30
janeiro de 2012. Política Nacional de Mobilidade Urbana. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
PINHEIRO, Antenor. Bogotá capital da mobilidade. O Popular. Goiania, 08 de janeiro de 2012. Disponível em: 04 jan. 2012, p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm>
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CONTRIBUIÇÃO PARA UMA MOBILIDADE URBANA SAUDÁVEL CONTRIBUIÇÃO PARA UMA MOBILIDADE URBANA SAUDÁVEL

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Roberto et al (Org.). A competitividade do agronegócio e o desenvolvimento regional no
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O CRIME DE POLUIÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: UMA RESPOSTA LEGÍTIMA AOS RISCOS DA PÓS-MODERNIDADE

O CRIME DE POLUIÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: UMA


No ordenamento jurídico brasileiro, o crime que define tal conduta está tipificado na
RESPOSTA LEGÍTIMA AOS RISCOS DA PÓS-MODERNIDADE Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, a qual prevê a possibilidade de ele ser praticado
Sheilla Maria da Graça Coitinho das Neves* de forma dolosa e culposa, por ação ou omissão, numa clara observância do mandado
de criminalização estabelecido na Constituição Federal, em seu art. 225, parágrafo 3º,
quando o constituinte determinou que “as condutas e as atividades consideradas lesivas
EMENTA ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais
Os grandes riscos causados pelos avanços tecnológicos da pós-modernidade vêm e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
causando degradações ambientais de expressiva monta. Dentre elas, destaca-se Desta maneira, com o desiderato de promover uma breve reflexão acerca da
a poluição da água, do solo e da atmosfera. Para responder a esses riscos, o Brasil possível legitimidade do crime de poluição na forma como estabelecida na lei brasileira,
cominou o crime de poluição no artigo 54 da Lei n. 9.605/98, em consonância com o é que se dedica o presente estudo. Para tanto, parte-se da análise de alguns argumentos
mandado de criminalização estabelecido pela Constituição Federal de 1988. Sustenta-se encetados pela doutrina nacional e estrangeira acerca do tema, bem como do exame do
que tal conduta é legítima, em face de sua configuração dogmática e alinhamento aos regramento pátrio e de sua proposta dogmática.
princípios constitucionais.
1 SOCIEDADE DE RISCOS, DIREITO PENAL E MEIO AMBIENTE
PALAVRAS-CHAVE: Pós-modernidade. Poluição. Crime. Legitimidade.
Com o término da Segunda Guerra Mundial, tem início no planeta um período
histórico de amplo desenvolvimento tecnológico. Houve necessidade de se correr atrás
INTRODUÇÃO dos prejuízos causados pela destruição de várias cidades, quando se empreenderam
pesquisas que visavam aprimorar técnicas de produção aplicadas na indústria, na
O ser humano sempre utilizou o meio ambiente como instrumento de sobrevivência biologia, na energia nuclear, na informática, nas comunicações e em outras ciências.
e desenvolvimento. Mas com a crescente industrialização, reforçada pelos avanços Surgem, assim, novos materiais que, embora tenham eficácia para os fins a que se
tecnológicos que tomaram corpo na contemporaneidade, houve uma explícita mudança destinam, revelam-se poluentes com o passar do tempo. Promoveu-se, ainda, o
dos modos de produção. O alto consumo de energia e matérias-primas, o significativo consumo desenfreado destes produtos e, com ele, o aumento da geração de resíduos,
aumento de elementos estranhos na composição da água, da atmosfera e do solo, a propiciando-se um panorama perfeito para o desequilíbrio do ecossistema, quase sempre
intensificação das fontes de ruído e a produção descontrolada de resíduos, fatores esses acompanhado de sérios efeitos nocivos à saúde humana.
quase sempre provocados pelo homem, vêm causando, em larga escala, o fenômeno No dizer de Ulrich Beck, não se realiza, apenas, uma simples utilização econômica
conhecido por “poluição”. da natureza para libertar as pessoas de sujeições tradicionais, mas também, e sobretudo,
As novas tecnologias, fruto da evolução científica, embora propulsoras de cria-se problemas que são decorrentes do próprio desenvolvimento técnico-econômico.
importantes avanços no campo da indústria e de outros segmentos econômicos, que são “O processo de modernização torna-se ‘reflexivo’, convertendo-se assim mesmo em
responsáveis por reconhecidos benefícios sociais, também ocasionam riscos ao planeta; tema e problema”. Está instaurada, portanto, a chamada “sociedade de riscos”, assim
riscos estes que precisam ser contidos. Nesta perspectiva, o Direito vem desempenhando nominada por este sociólogo alemão.¹
importante papel, de modo a controlar tais riscos de efetivo potencial poluidor, ao regular O risco deixa de ocorrer preponderantemente num contexto de ousadia e aventura,
as condutas humanas advindas da sofisticada techne dessa era, que se convencionou ou seja, do mero risco pessoal, e evolui para o da ameaça global ou da possível destruição
chamar pós-modernidade, e também ao punir penalmente seus infratores. da vida na terra, a exemplo daquele produzido pelo lixo nuclear e o desmatamento global.
Entretanto, alguns doutrinadores rechaçam a tutela penal do meio ambiente, no São afetados, inclusive, países com ampla cobertura florestal, como a Noruega e Suécia,
qual está inserido o crime de poluição, sustentando que a criminalização dessas condutas que nem mesmo possuem muitas indústrias poluentes, “mas que tem que pagar pelas
afronta aos princípios do Estado Democrático de Direito e compromete as estruturas emissões de poluentes de outros altamente industrializados com a extinção de florestas,
clássicas do Direito Penal. Ainda assim, cresce em legislações de vários países o número plantas e animais”.²
de crimes ambientais e o delito de poluição erige-se como um de seus notários tipos. É justo neste contexto que a sociedade contemporânea começa a adquirir
consciência sobre a grande importância da preservação do meio ambiente. Movimentos
* Mestrado em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; Especialização em Direito Processual Ci- difundem-se em diversos Estados, e clamam para que a sociedade reconheça o direito
vil e Penal pela Universidade Federal da Bahia; Especialização em Ciências Criminais pela Universidade do do ser humano “enquanto integrante do meio, não do indivíduo isoladamente - o direito a
Estado da Bahia; Extensão Universitária em Ciencias Criminales y Dogmática Penal Alemana - Georg-August
Universität Göttingen. Extensão universitária em Pós-graduação em Direito Econômico - Universidade Fede- 1
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo à outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São
ral da Bahia, Universidade Federal da Bahia. Professora convidada do Curso de Especialização em Ciências
Paulo: Editora 34, 2010. p. 10-24.
Criminais da Universidade Federal da Bahia e do Curso de Capacitação em Direitos Humanos promovido
² Ibidem, p. 26.
pela Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia já extinto. Ex-professora de Direito Penal da
Faculdade 2 de Julho.
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O CRIME DE POLUIÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: UMA RESPOSTA LEGÍTIMA AOS RISCOS DA PÓS-MODERNIDADE O CRIME DE POLUIÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: UMA RESPOSTA LEGÍTIMA AOS RISCOS DA PÓS-MODERNIDADE

viver em um ambiente sadio, para que sua dignidade seja respeitada, e sua personalidade Hassemer, por sua vez, atesta que o Direito Penal é um instrumento inadequado “para
desenvolva-se em plenitude”.³ apoiar objetivos políticos, controlar situações problemáticas ou prever a ampla prevenção
Ocorre que esse movimento de conscientização do problema ecológico ainda de situações perigosas”.8 Sobre o meio ambiente, conjura existirem bons motivos para
encontra resistência no chamado pensamento “desenvolvimentista”, que Silva Sánchez considerar a hipótese de que o Direito Penal Ambiental, em longo prazo, seria “mais
afirma aproximar-se da máxima “navigare recesse est, vivere non necesse” 4, advindo do danoso do que útil ao meio ambiente”. 9
século passado 5, e que ainda hoje está presente em parcela significativa da população Em posição diametralmente oposta, Schünemann textualiza que o consumo
mundial, no qual impera uma concepção ampliada do risco permitido. abusivo e desenfreado dos recursos deste século, juntamente à superlotação de espaços
Nesse passo, em face das mudanças profundas que caracterizam a sociedade de terra, conduziram a sociedade a um “beco sem saída”, o que dissipa qualquer dúvida
contemporânea, defende-se que, além de programas sociais e de governo, o Direito é um sobre o caráter dominante dos bens jurídicos ecológicos, justificando-se, por esse motivo,
dos instrumentos indispensáveis para regular as situações de dimensionamento desse sua tutela penal. 10
risco, que são criadas diuturnamente em benefício do desenvolvimento econômico, Silva Sánchez propõe a alternativa da transferência da função da tutela jurídico-
científico e tecnológico, a exemplo das advindas da radioatividade, das toxinas e dos penal dos bens supra-individuais para o que ele denomina de Direito Administrativo
poluentes presentes no ar, na água, no solo e nos alimentos. Ademais, em vista da Sancionatório, que admite a existência de três velocidades, conforme o maior ou menor
relevância do bem jurídico a ser protegido, percebe-se a vultosa necessidade de o rigor das sanções a serem aplicadas e uma possível relativização das garantias político-
Direito Penal intervir, ao lado do Direito Administrativo e do Direito Civil, com a finalidade criminais, em hipóteses mais ou menos graves. 11
de prevenir e reprimir lesões graves causadas ao meio ambiente, em especial, as Na esteira de Schünemann, segue Figueiredo Dias, aduzindo que, em hipóteses
decorrentes de condutas poluidoras. como a danificação da camada de ozônio, dos lixos tóxicos e de outras condutas
Entretanto, alguns penalistas, ainda apegados ao Direito Penal formatado no prejudiciais à humanidade, não se pode aceitar apenas a punição civil ou mesmo a
Iluminismo, asseveram que a proteção penal só é legítima se assentada na esfera dos administrativa, ainda que intensificada como quer Silva Sanchez. Tal solução significa
bens jurídicos individuais. Para eles, os bens jurídicos supra-individuais, a exemplo do nada menos do que subtrair à tutela penal as condutas penais “mais gravosas, aquelas
meio ambiente, devem ser objeto de tutela apenas do Direito Administrativo e do Direito que põem do mesmo passo em causa a vida planetária, a dignidade das pessoas e a
Civil. Destaca-se, por esse posicionamento, a Escola de Frankfurt e seus expoentes solidariedade” para com os seres humanos, com os que existem e com os que hão de
Winfried Hassemer e Cornelius Prittwitz, além de outros professores do Instituto de nascer. Significaria, pois, colocar “a máxima do direito penal como ultima ratio da política
Ciências Criminais de Frankfurt.6 social de pernas para o ar”. 12
Cornelius Prittwitz sustenta que o Direito Penal é o pior candidato para solucionar Desta maneira, diante dos novos problemas que medeiam a sociedade de riscos,
os problemas da sociedade de riscos. Augura que as urgências provenientes dessa que podem ser, inclusive, de megadimensões e capazes de comprometer a vida e saúde
sociedade são de causalidade difusa, não podendo ser por ele atendida, eis que se dos seres humanos e das gerações futuras, defende-se, conforme os bem lançados
restringe à dicotomia do “homem mau” e do “homem bom”, e não dos “homens perigosos”, fundamentos da corrente favorável à incriminalização dos interesses supra-individuais,
que a caracteriza.7 que o Direito Penal deve intervir na proteção do meio-ambiente, bem jurídico da mais
elevada envergadura e, por consequência, no combate à poluição, conduta que vem
sendo reconhecida, pelo seu alto grau de importância lesiva, por legisladores dos mais
diversos países, inclusive do Brasil.

³ PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime de poluição: uma resposta do Direito Penal aos novos
riscos. Curitiba: Juruá, 2010. p. 26.
4
Versão latina do texto grego de Plutarco que foi adotada como lema pela Liga Hanseática citado por
Jesús María Silva Sanchez. (SÁNCHEZ, Jesús María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da polí-
tica criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 43).
5
Na Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, no ano de 1972, o então Minis-
tro do Interior do Brasil sustentou abertamente que “os países que não atingiram ainda um nível econômico
satisfatoriamente suficiente para atender às mínimas necessidades, não deveriam desviar grandes somas 8
HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Tradução de Adriana Beckman Meire-
de recursos para proteger o ambiente”. (Como na Profecia de João. Veja. São Paulo, Ambiente, p. 62-63, les, Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos, Felipe Rhenius Nitzke, Mariana Ribeiro de Souza e Odim Bran-
11 jun. 1975, apud PRADO, op. cit., p. 55). dão Ferreira. Porto Alegre: Fabris Editor, 2008. p. 227-228.
6
Bernard Schünemann cunhou a designação dos autores do Instituto de Ciências Criminais como “Escola 9
Idem, 2007, p. 226.
de Frankfurt”. Entretanto, tais autores rechaçam essa denominação, em vista das divergências pontuais 10
SCHÜNEMANN, Bernard. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-penal
das teorias por eles adotadas. (OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos. Hassemer e o direito penal Brasileiro: alemana. Traducción de Manuel Cancio Meliá. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 1996. p. 21-22.
direito de intervenção, sanção penal e administrativa. São Paulo: IBCCRIM, 2013). 11
SÁNCHEZ, Jesús María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades
7
PRITTWITZ, Cornelius. “La Función del Derecho Penal en la Sociedad Globalizada del Riesgo: defensa pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.150.
de un rol necesariamente modesto” In: Desarrollos Actuales de las Ciencias Criminales en Alemania, Bo- 12
DIAS, Jorge de Figueiredo. O Problema do direito penal no dealbar do terceiro milênio. RBCCRIM, São
gotá: Temis, 2012. p. 58-60. Paulo, ano 20, v. 99, p. 42, 2012.
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O CRIME DE POLUIÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: UMA RESPOSTA LEGÍTIMA AOS RISCOS DA PÓS-MODERNIDADE O CRIME DE POLUIÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: UMA RESPOSTA LEGÍTIMA AOS RISCOS DA PÓS-MODERNIDADE

2 O CONCEITO DE POLUIÇÃO: SUAS FORMAS E REPERCUSSÃO NAS LEIS Saliente-se que a Resolução do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente)
BRASILEIRAS n. 20/86 estabeleceu os níveis aceitáveis de presença de elementos nocivos ao meio
ambiente nas águas, podendo-se entender que a poluição se configura quando se estiver
A poluição pode ser entendida, num sentido amplo, como a degradação ou a diante da ruptura de tais índices. Todavia, poderá haver poluição ainda que estes índices
alteração que resulta da introdução de substâncias ou energia no meio ambiente. Trata- sejam respeitados. 15
se de uma mudança indesejável no ambiente face à introdução de altas concentrações Além das águas, a poluição pode atingir a atmosfera16 , e é proveniente do
de substâncias prejudiciais ou perigosas, calor ou ruído, que pode ser realizada por uma lançamento de agentes poluidores num ecossistema, tais como gases, fumaça e poeira,
conduta humana ou por fenômenos da própria natureza. que provocam desequilíbrio ecológico e, por conseguinte, prejuízos para a vida humana.
A Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do O efeito estufa, a chuva ácida, a inversão térmica, o aquecimento global e o buraco na
Meio Ambiente concebeu, em seu artigo 3º, inciso III, o conceito jurídico de poluição, camada de ozônio são graves e importantes consequências da poluição do ar.17
definindo-a como: A preocupação com os problemas advindos da poluição do ar levou o CONAMA,
a degradação da qualidade ambiental resultante das atividades que através da Resolução n. 5, de 15.06.1989, a instituir o Programa de Qualidade do Ar
direta ou indiretamente: prejudiquem a saúde, a segurança e o bem- (Pronar), regulando padrões, ações e instrumentos de controle.
estar da população; criem condições adversas às atividades sociais e Posteriormente, em face do movimento internacional iniciado em favor da proteção
econômicas; afetem desfavoravelmente a biota; afetem as condições da camada de ozônio, foram firmados o Tratado de Viena, em 22 de março de 1985, e o
estéticas ou sanitárias do meio ambiente; lancem matérias ou energia
de Montreal, no Canadá, em 16 de setembro de 1987. Neste último, foram especificadas
em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos.13
as substâncias que provocam a destruição dessa camada. Tais documentos foram
Observe-se que tal conceito de poluição da legislação brasileira abrange todos os promulgados no Brasil, através do Decreto n. 99.280/90. Já em 14 de setembro de 2000,
tipos de poluição: da água, da terra, do ar, sonora, visual, etc. Desta maneira, todas as foi editada a Resolução n. 267, também do CONAMA, que estabelece a proibição do uso
fontes poluidoras e ecossistemas poluíveis estão nele previstos, assim como a poluição de substâncias que destroem a camada de ozônio.
por gases, líquidos e sólidos. Outra forma de poluição bastante comum é aquela praticada contra o solo, a
A poluição dos recursos hídricos é definida pelo Decreto n. 50.877/61, em seu qual pode ocorrer através de elementos líquidos ou sólidos. A Resolução do CONAMA
artigo 3º, e complementada pelo Decreto n. 73.030/73, artigo 13, parágrafo 1º. 14 A água n. 5/93, que repete a NBR n. 10.004, da Associação Brasileira de Normas Técnicas -
protegida pela legislação é a de superfície (rios, lagos, mares) assim como a subterrânea, ABNT, textualiza que “resíduos nos estados sólido e semi-sólido são os que resultam
e abarca todos os corpos (de água) perenes ou efêmeros, inclusive os já poluídos. de atividades da comunidade de origem: industrial, doméstica, hospitalar, comercial,
agrícola, de serviços e de varrição”. Na dicção de Paulo Afonso Leme Machado, significa
“lixo, refugo e outras descargas de materiais tóxicos, incluindo resíduos sólidos de
materiais provenientes de operações industriais, comerciais e agrícolas e de atividades
da comunidade”. 18
Quando lançados a céu aberto, podem causar a proliferação de ratos, o crescimento
e desenvolvimento de germes e parasitas, além dos fortes odores que são provenientes
da decomposição de elementos orgânicos. 19
Mas existem, também, outras formas de poluição, a exemplo da sonora, visual e
radioativa. Luís Paulo Sirvinskas afirma que “poluição sonora é toda a vibração emitida
acima dos níveis suportados pelo ser humano, que causa lesões no sentido auditivo.
13
“Atmosfera é a camada de gases que envolve os corpos celestes, mantida pela força gravitacional”. (LIMA-
-E-SILVA et. al. Dicionário brasileiro de ciências ambientais. Rio de Janeiro: Thex, 1999. p. 184). É a produção de sons, ruídos ou vibrações em desacordo com as precauções legais”.
14
Art. 3º - Para os efeitos deste Decreto, considera-se “poluição” qualquer alteração das propriedades físicas,
químicas e biológicas das águas, que possa importar em prejuízo à saúde, à segurança e ao bem-estar das
populações e ainda comprometer a sua utilização para fins agrícolas, industriais, comerciais, recreativos e,
principalmente, a existência normal da fauna aquática. (BRASIL. Decreto n. 50.877, de 25 de junho de 1961.
Brasília: DF. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-50877-29-junho-
-1961-390520-norma-pe.html>. Acesso em: 19 out. 2014). Art. 13. No âmbito de suas atribuições, a SEMA 15
BELLO FILHO, Ney de Barros. Conferência proferida no Seminário de Direito Ambiental, Ano V, realizado
dará prioridade, nos exercícios de 1973 e 1974, aos estudos, proposições e ações relacionadas com a polui- pelo Centro de Estudos Judiciários, 27 e 28 de março de 2003, Rio Branco/AC. Disponível em: <http://www2.
ção hídrica. § 1º - Para os efeitos previstos neste artigo, a SEMA adotará diretrizes e critérios que assegurem cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/564/744>. Acesso em: 13. out. 2014.
a defesa contra a poluição das águas, entendida como qualquer alteração de suas propriedades físicas, quí- 16
LIMA-E-SILVA et. al. Dicionário brasileiro de ciências ambientais. Rio de Janeiro: Thex, 1999. p. 23.
micas ou biológicas, que possa importar em prejuízo à saúde, à segurança e ao bem-estar das populações, 17
FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 8. ed. São Paulo:
causar dano à flora e à fauna, ou comprometer o seu uso para fins sociais e econômicos. (BRASIL. Decreto Revista dos Tribunais, 2006. p. 206-207.
73.030 de 30 de outubro de 1973. Brasília: DF. Disponível em: http://nxt.anp.gov.br/nxt/gateway.dll/leg/decre- 18
MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 313.
tos/1973/dec%2073.030%20-%201973.xml. Acesso em: 19 out. 2014). 19
BELLO FILHO, op. cit.
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Para o mesmo autor, a poluição visual “é a alteração exterior do meio ambiente mediante Tal Lei seguiu, pois, o plexo valorativo instalado na Constituição Federal de 1988,
a colocação de cartazes, placas de sinalização ou de propaganda em geral, em lugares ao referir-se ao meio ambiente como “bem de uso comum do povo”, que o elevou à
impróprios, assim como em residência ou comércio urbanos, nas ruas ou estradas”, o categoria de direito fundamental e determinou sua proteção penal.
que torna a cidade “feia e suja, causando má impressão”.20 O vigente delito de poluição está cominado em seu artigo 54, revogando o tipo
A poluição radioativa, por seu turno, vem se destacando como uma das mais análogo previsto no artigo 15 da Lei n. 6.938/1981, em razão de seu conteúdo normativo
perigosas, podendo contaminar a água, o solo, o ar, as pessoas, os alimentos, os mais abrangente, numa clara demonstração de que se inaugurava, no âmbito infralegal
animais e as plantas. Pode ser causada por radiações ionizantes geradas diretamente brasileiro, uma nova realidade acerca da preservação do meio ambiente.
por materiais radioativos ou por equipamentos de raios X ou aceleradores de elétrons -
os quais também produzem raios X. É emitida, ainda, por meio da geração de energia
nuclear, cuja produção de resíduos é conhecida por “lixo atômico”. Resulta, muitas 3 O CRIME DE POLUIÇÃO: ASPECTOS DOGMÁTICOS E LEGITIMIDADE
vezes, de explosões nucleares, vazamentos durante a operação de uma usina nuclear,
dos processos de transporte, reprocessamento e armazenagem de material radioativo.21
A Lei n. 6.453/77 dispõe sobre a responsabilidade civil por danos nucleares e a O crime de poluição, definido no artigo 54 (caput) da Lei n. 9.605/98, possui a
responsabilidade criminal por atos relacionados com atividades nucleares, descrevendo seguinte redação: “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que: resultem ou
oito figuras típicas (arts. 20 a 27). possam resultar em danos à saúde humana ou provoquem a mortandade de animais, ou
Assim, do breve escorço acerca do fenômeno “poluição” e de sua repercussão a destruição significativa da flora”. Nele se observa certa restrição ao conceito jurídico
nas leis pátrias, percebe-se que, ao longo do período que marcou a segunda metade do de poluição previsto no artigo 3º, inciso III, letras a a e, da Lei 6.938/81 (Lei da Política
século XX, houve uma gradativa conscientização do governo, sociedade civil e legislador Nacional do Meio Ambiente). Uma análise perfunctória do mencionado dispositivo
acerca do fenômeno “poluição” e da necessidade da proteção do meio ambiente de seus já dá a ideia de que ele não pode ser aplicado em sua integralidade como norma
efeitos danosos. complementadora da elementar “poluição” que se encontra no tipo penal.23 Isto porque a
As leis penais eram, na primeira metade do século XX, bastante tímidas, como se poluição que caracteriza este delito ambiental deve atingir a saúde humana, ou provocar
pode constatar do exame do Código Penal de 1940 que, em seu artigo 271, cominava a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora.
apenas o crime de “poluição ou corrupção” de água potável. Também o Decreto-Lei n. Observa-se, portanto, que, no âmbito jurídico-penal brasileiro, nem toda degradação
3.688/41 (Lei das Contravenções Penais) estabelecia, em seu artigo 38, a contravenção ambiental deve ser considerada poluição, mas somente aquela que apresentar uma
de emissão de fumaça, vapor e gás (“provocar abusivamente, emissão de fumaça, vapor “ofensividade maior”. Não se pode perder de vista que o Direito Penal possui um caráter
ou gás que possa ofender ou molestar alguém”), cujo objeto jurídico ainda não era o fragmentário, de ultima ratio, no qual importam somente os fatos socialmente intoleráveis
“meio ambiente”, mas sim a “incolumidade pública”. 22 quanto à intensidade e gravidade em relação a bens jurídicos relevantes. Neste passo,
Somente no ano de 1981 é que o crime de poluição foi tipificado no ordenamento foge-lhe a proteção absoluta do meio ambiente.
jurídico brasileiro através da Lei n. 6.938/81, que dispôs sobre a Política Nacional do O verbo núcleo do tipo em epígrafe é “causar”. Causar significa originar, produzir,
Meio Ambiente. Posteriormente, com o movimento ambientalista que ganhou corpo nas provocar, ocasionar, dar ensejo, criar, estimular, fomentar ou gerar “poluição”. Tal
décadas de oitenta e noventa, decidiu-se sistematizar a legislação penal esparsa relativa conduta pode-se configurar na forma comissiva, a exemplo do lançamento de efluentes
à matéria ambiental, tendo sido promulgada, em fevereiro de 1998, a Lei n. 9.605, e da disposição de resíduos sólidos, ou na omissiva, como a não instalação de filtros, a
que cominou as condutas administrativas e penais lesivas ao meio ambiente e suas não fiscalização das operações, a não reparação das contenções de resíduos ou a não
respectivas sanções. impermeabilização do solo.
Essa limitação está presente, portanto, em seus elementos normativos,
percebendo-se que não se trata de uma norma penal em branco em sentido estrito, cuja
complementação é remetida a outras fontes normativas, mas sim de uma norma que
necessita para a determinação de seus conceitos de uma intervenção complementar a
ser operada pelos juízes, como bem reconhece Alessandra Prado.24
20
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela penal do meio ambiente. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 263-264.
21
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime de poluição: uma resposta do Direito Penal aos novos
riscos. Curitiba: Juruá, 2010. p. 144-145.
22
O bem jurídico incolumidade pública consiste no “complexo de condições, garantidas pela ordem jurídica,
necessárias para a segurança da vida, da integridade pessoal e da saúde, independentemente da sua relação 23
MACIEL, Sílvio. Meio ambiente: Lei 9.605, de 12.02.1998. In: GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério San-
a determinadas pessoas”. O objetivo do lesgislador é punir “fatos que acarretam situação de perigo a indeter- ches (Orgs.). Legislação criminal especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 800. (Coleção Ciências
minado ou não individuado número de pessoas” (Hungria). (FRANÇA, Denis. Direito Penal da UFJF. Disponível Criminais, v. 6.).
em: <http://penalufjf.blogspot.com.br/2012/03/penal-iv-crimes-contra-incolumidade.html>. Acesso em: 23 out. 24
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime de poluição: uma resposta do Direito Penal aos novos
2014). riscos. Curitiba: Juruá, 2010. p. 63.
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Contudo, esse dispositivo de lei vem recebendo críticas de alguns doutrinadores, a Neste lanço, diante da complexidade do bem jurídico a ser protegido (meio ambiente),
exemplo de Miguel Reale Júnior. Ele afirma que a “utilização de termos vagos compromete inexiste infringência ao princípio da lesividade, pois se afasta da tutela penal as lesões
por inteiro o tipo penal”. Primeiramente pelo fato de a lei referir-se à “poluição de qualquer menos graves e de bagatela. Caso essas expressões não tivessem sido empregadas,
natureza”. Na sequência, por consignar a expressão “em níveis tais”, quando o legislador haveria menor segurança jurídica, sendo necessário, inclusive, recorrer-se ao princípio
se utiliza de uma linguagem coloquial, ficando ao talante do intérprete dizer o que vem a da insignificância para que fossem subtraídos os resultados penalmente irrelevantes.29
ser tal expressão, sem qualquer parâmetro em legislação regulamentar. Quanto à flora Com efeito, a palavra “qualquer” (qualquer poluição) esclarece, em face das
e à fauna, assevera haver completa imprecisão do significado e limite do que deva ser diversas formas de poluição existentes, que elas estão todas abrangidas no mencionado
considerada “mortandade” bem como o que caracteriza a “significativa destruição da tipo. A expressão “em níveis tais” estabelece uma relação de proporcionalidade, e indica
flora”.25 que a alteração do meio ambiente deve ser grave o suficiente para colocar em risco a
Constata-se, inclusive, que a vagueza e incerteza constantes em suas expressões saúde humana. Já a “mortandade de animais” demonstra que a quantidade de espécies
“causar poluição de qualquer natureza em níveis tais” e “destruição significativa da deve ser grande, considerando-se aquelas que estavam presentes no momento e local
flora” já propiciou que se levantasse a hipótese de inconstitucionalidade do crime de em que se produziu o resultado. A “destruição significativa da flora” há de ser aferida
poluição por parte de alguns autores.26 Todavia, vislumbra-se que a maioria maciça quando se opera uma destruição relevante e grave das plantas de uma área ou região.
de doutrinadores e tribunais posicionam-se em sentido contrário. 27 Luiz Regis Prado Assim, a essas expressões tidas como vagas deve-se dar uma interpretação
afirma que a expressão: “em níveis tais exprime um certo quantum - suficiente -, elevado conforme os princípios do desenvolvimento sustentável30 e da prevenção, que se
o bastante para resultar ou poder resultar em lesão à saúde humana”. Prossegue encontram previstos no artigo 225 da Constituição Federal, considerando-se que o meio
ensinando que “por destruição significativa da flora deve ser entendida aquela realizada ambiente é patrimônio indisponível para essa geração e às futuras, bem como direito
de forma expressiva, de gravidade considerável”. Conclui aduzindo tratarem-se, pois, fundamental assentado na Carta Magna.
de “corretivos típicos”, devendo ser excluídas do injusto “as condutas escassamente Demais disso, quanto ao resultado, trata-se de um tipo de dano e de perigo
lesivas ou de pouca relevância para o bem jurídico tutelado”. Assevera em acréscimo concreto. De dano quando se refere à poluição que “acarreta danos à saúde humana, à
que “o estado de perigo deve ser grave, intenso e hábil para resultar em lesão à saúde mortandade de animais ou à destruição significativa da flora”, e de perigo concreto quando
humana.” 28 a poluição “coloca em risco a vida humana”. Em ambos os casos, tanto o dano quanto
No mesmo diapasão, Alessandra Prado leciona que os termos e expressões “em o perigo devem ser comprovados no curso do processo, através de provas diversas,
níveis tais”, “mortandade” e “significativa”, ao revelarem uma idéia de quantum, que é tais como perícias, inquirição de testemunhas, vistorias, fotografias, etc. Portanto, não
variável consoante o caso concreto, limitam o tipo penal e podem ser denominados de há antecipação de tutela, nem ocorre a presunção de um perigo de dano. Por isso, não
“condições limitadoras da tipicidade”. lhes cabem as críticas que são dirigidas aos crimes de perigo abstrato, aos quais se
reporta a pecha de ausência de lesividade ao bem jurídico ou infringência aos princípios
garantistas da intervenção mínima e da ofensividade. Portanto, analisados por esse
prisma, revestem-se de absoluta legitimidade.31

25
REALE JÚNIOR, Miguel. Meio ambiente e direito penal brasileiro. Revista da Associação Brasileira de Pro-
fessores de Ciências Penais. São Paulo, v. 2, p. 75-76, 2005.
26
Nesse sentido Paulo Nabuco Filho: “Também excessivamente genérico é o art. 54, que descreve a conduta 29
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime de poluição: uma resposta do Direito Penal aos novos
de ‘causar poluição de qualquer natureza em níveis tais... ‘, contendo ainda o elemento normativo ‘destruição riscos. Curitiba: Juruá, 2010. p. 66.
significativa da flora’.” Aduz, pois, que tais expressões contrariam o princípio constitucional da legalidade. 30
”A definição mais aceita para desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento capaz de suprir as necessi-
(NABUCO FILHO, Paulo. O princípio constitucional da determinação taxativa e os delitos ambientais. Boletim dades da geração atual, sem comprometer a capacidade de atender as necessidades das futuras gerações. É
IBCCrim, n. 164, jul. 2001. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/522-O-princípio-consti- o desenvolvimento que não esgota os recursos para o futuro”. Tal “definição surgiu na Comissão Mundial sobre
tucional-da-determinação-taxativa-e-os-delitos-ambientais.> Acesso em: 23 out. 2014. Édis Milaré também Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada pelas Nações Unidas para discutir e propor meios de harmonizar
ressalta saltar “aos olhos a falta de técnica na construção do tipo, eis que demasiadamente aberto, destoante dois objetivos: o desenvolvimento econômico e a conservação ambiental”. (WWF-Brasil. Disponível em: <http://
das exigências do princípio da legalidade e agressivo aos princípios da ampla defesa e do contraditório”. www.wwf.org.br/wwf_brasil/organizacao/> Acesso em: 23 out. 2014).
(MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 31
No sentido de que a primeira parte do tipo se caracteriza como crime de perigo concreto seguem: Luiz Regis
950). Prado (PRADO, 2005, p. 420), Sílvio Maciel (MACIEL, Sílvio. Meio ambiente: Lei 9.605, de 12.02.1998. In:
27
Vislumbrando constitucionalidade no mencionado artigo, manifestam-se também Roberto Delmanto e ou- GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches (Orgs.) Legislação criminal especial. São Paulo: Revista dos
tros autores. (DELMANTO, Roberto et al. Leis penais especiais comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Tribunais, 2009. (Coleção Ciências Criminais v. 6, p. 800). Alessandra Prado defende a tese de ocorrência de
p. 506). Na mesma posição segue Sílvio Maciel. (MACIEL, Sílvio. Meio Ambiente: Lei 9.605, de 12.02.1998. um tipo de dano sui generis ao sustentar que sempre que houver poluição haverá um dano ao meio ambiente,
In: GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches (Orgs.). Legislação Criminal Especial. São Paulo: Revista bem jurídico imediatamente tutelado (PRADO, op. cit., p. 157-158). Afirmam tratar-se de crime de perigo abstra-
dos Tribunais, 2009. p. 801 (Coleção Ciências Criminais, v. 6)). to: Guilherme de Souza Nucci (NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 3.
28
PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 419. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 913) e Vladimir e Gilberto Passos de Freitas (FREITAS, p. 200).
REVISTA DO MPBA 60 61 REVISTA DO MPBA
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A conduta culposa, prevista no parágrafo primeiro do artigo 54, que não era O tipo qualificado está inserto no parágrafo segundo do mencionado dispositivo,
punida na legislação anterior, também se encontra perfeitamente justificada, já que em seus incisos I a V:
constitui uma das formas mais frequentes de poluição. A marítima é um dos melhores I - tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação
exemplos. Afirmam Vladimir e Gilberto Passos de Freitas que “são comuns os casos de humana; II - causar poluição atmosférica que provoque a retirada,
ainda que momentânea, dos habitantes das áreas afetadas, ou que
abalroamentos (imprudência) ou lavagem de porões de navios sem cautelas (negligência),
cause danos diretos à saúde da população; III - causar poluição hídrica
lançando os resíduos ao mar”. 32 Também a atividade industrial tem importante destaque que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água
nos crimes negligentes. Como bem se expressa Auxiliadora Minahim, “a revolução de uma comunidade; IV - dificultar ou impedir o uso público das praias;
tecnológica provocou uma profunda transformação da criminalidade que aparece cada V - ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos,
vez mais imbricada com atividades lícitas e, por isso, de difícil visibilidade”. 33 Refere-se ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as
a fatos acidentais, às consequências lesivas da “falha técnica”, expressão esta usada exigências estabelecidas em leis ou regulamentos.
por Silva Sanchez para demonstrar que “um certo porcentual de acidentes graves As primeiras quatro hipóteses são formas do crime de poluição majoradas pelo
resulta inevitável à vista da complexidade dos desenhos técnicos”. 34 Nesse passo, a resultado, nas quais o agravamento da pena se impõe em face da gravidade do dano
criminalização da conduta se faz necessária para que todos os que coordenam, planejam causado. A última, entretanto, toma como parâmetro o desvalor da conduta na qual está
e executam ações arriscadas aprimorem seus deveres de cuidado a ponto de reduzirem inserido o descumprimento de uma norma administrativa, bastando, para a sua incidência,
a possível “falha técnica” que, muitas vezes, encontra-se no campo da previsibilidade. que a infringência desta norma seja ao menos previsível por parte do agente. Assim,
Não se pode perder de vista que quando se está na esfera do previsível, o risco será na hipótese do inciso V, ocorre o fenômeno que vem se denominando, na doutrina, de
sempre penalmente relevante. “acessoriedade administrativa”, bastante comum nos crimes ambientais, já que a tutela
Claus Roxin propõe, na obra Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal 35 ,uma penal se apresenta dependente de norma ou ato administrativo.
estruturação dos tipos negligentes que atende ao princípio da determinação através Essa técnica de tipificação vem recebendo críticas, sobretudo, por contrariar o
de uma tipologia e sistematização dos deveres de cuidado que bem se afeiçoa ao modo tradicional de o Direito Penal definir, de forma autônoma, os pressupostos de
parágrafo terceiro do dispositivo em exame, eis que nele se encontram os limites que são suas normas. A respeito, atesta Luís Greco que a dependência do Direito Penal em
constituídos pelos elementos normativos elencados no caput, e que Luiz Regis Prado relação ao Direito Administrativo traz verdadeiros problemas de legitimidade, porque
bem denominou de “corretivos típicos”. esta situação faz com que o Direito Penal “contenha vasto número de dispositivos que
Lembra, ainda, Alessandra Prado, que “quem comete o crime de poluição não parecem proibir não qualquer lesão” ao meio ambiente, mas apenas “aquela praticada
pode, via de regra, alegar desconhecer que sua conduta era poluidora”. Isto porque em contrariedade ao direito administrativo”. Ademais, cogita que as remissões da lei
“normalmente se trata de pessoa cuja atividade está relacionada à produção de riscos penal a atos administrativos poderiam “relegar à administração a competência para
para o meio ambiente e que tem, portanto, o dever não apenas de saber, mas também o de definir que comportamentos são puníveis, o que contraria o princípio da legalidade.” 37
evitar ou não produzir riscos e danos resultantes da mesma”. Observa que os “elementos Não obstante, fornece o aludido doutrinador uma solução bastante esclarecedora,
normativos utilizados justificam-se como meio de dar efetividade a alguns princípios do que aqui pode ser utilizada para se conferir legitimidade ao tipo em exame. Partindo
direito penal garantista, como proporcionalidade, ofensividade e insignificância”, além de da teoria da imputação objetiva, assevera que “só viola a norma penal, só pratica uma
segurança jurídica.36 conduta proibida, só cria um risco juridicamente desaprovado aquele que se comporta
em desacordo com os padrões de prudência vigentes em seu círculo social”. Neste
passo, deduz que “o direito administrativo pode ser relevante para a fixação do risco
juridicamente desaprovado na medida em que ele sirva de parâmetro de conduta para
as pessoas prudentes”. Trata-se de uma determinação, pelos atos administrativos, dos
“limites entre o proibido e o permitido, entre o típico e o atípico”. Explicita que naquelas
normas penais que remetem a uma violação do Direito Administrativo, esta determinação
é feita em momento anterior, pelo órgão administrativo, sendo a violação àquilo que
determinou este órgão indispensável para que esteja praticada a conduta prevista no
tipo. Daí concluir-se que será legítima a remissão expressa ao direito administrativo “ao
32
FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 8. ed. São Paulo: menos nas hipóteses em que ela nada mais faça do que concretizar o que é exatamente
Revista dos Tribunais, 2006. p. 204. o risco permitido em determinado dispositivo.” 38
33
MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito penal e biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 50.
34
SÁNCHEZ, Jesús María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 32. 37
GRECO, Luís. A Relação entre o direito penal e o direito administrativo no direito penal ambiental: uma in-
35
ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 44-45. trodução aos problemas da acessoriedade administrativa. In: Desarrollos Actuales de las Ciencias Criminales
36
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime de poluição: uma resposta do direito penal aos novos en Alemania, Bogotá: Temis, 2012. p. 224-229.
riscos. Curitiba: Juruá, 2010. p. 64. 38
Ibidem, p. 233-234.
REVISTA DO MPBA 62 63 REVISTA DO MPBA
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Ora, a remissão da lei penal aos atos administrativos é, muitas vezes, inevitável, Prossegue aduzindo que quando os deveres do papel social estão fixados de modo
como na hipótese em liça. Isto porque a regulação penal de determinadas matérias exato em regulamentos e estatutos, estes crimes são equivalentes aos crimes de ação
está altamente condicionada por fatores histórico-culturais e, na área ambiental, “no que se refere às exigências de determinação legal”, e trazem à tona, do ponto de
especialmente no crime de poluição, depende dos avanços das ciências naturais, que vista normativo, “a realidade social que subjaz a toda diferenciação dogmática, de
ensejam uma atividade normativa constante e variável. Em casos tais, pode-se dizer, na forma surpreendente”. Atesta que, nesse caso, há esferas de vida já organizadas, “cuja
dicção de Luiz Regis Prado, que “a norma penal em branco favorece a estabilidade do funcionalidade deve ser protegida pelos tipos”. E sobre a possibilidade de aplicação ao
dispositivo principal, emanado de autoridade legislativa de maior categoria, o que lhe crime omissivo, conclui com maestria: “se é a violação de um dever oriundo de um papel
confere legitimidade”.39 social que cria determinados tipos, então está claro que, sob o manto da problemática do
O parágrafo terceiro do artigo 54 descreve, por sua vez, o crime de poluição que é nullum-crimen, tanto faz que o comportamento seja comissivo ou omissivo”. 42
praticado na forma omissiva (própria): “Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo Ora, ao verificar-se o grau de importância do bem jurídico ambiental conferido pela
anterior quem deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas realidade imposta pela sociedade de riscos, conclui-se, na esteira dos ensinamentos do
de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível”. professor alemão, que inexistem dúvidas acerca da legitimidade da construção do tipo
Observa-se que esse tipo omissivo orienta-se pelo princípio da precaução.40 Tal de poluição também na sua forma omissiva. Visa este tipo não apenas proteger o meio
princípio, após ter sido mencionado na Convenção de Viena (1985), foi consagrado na ambiente e as pessoas que nele vivem, como também conferir maior poder de persuasão
Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), no item à exigência da autoridade administrativa. “Mas tal exigência há de ser razoável, clara,
n. 15, e destina-se a proteger o meio ambiente: objetiva e dirigida à determinada pessoa”, como elucidam Roberto Delmanto e outros
[...] o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos autores, sendo necessário que o agente tenha tomado ciência de forma pessoal da
Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de exigência, a qual deve ainda observar “todos os demais requisitos do ato administrativo”.43
danos sérios e irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica Desta maneira, considerando que o crime de poluição foi pelo legislador definido
não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e com o fim precípuo de proteger o meio ambiente e, com isso, evitar danos à saúde
economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. humana, aos animais e à flora, numa clara demonstração de que se a sociedade vive
Pune, portanto, com a mesma pena do parágrafo segundo, a conduta omissiva um novo tempo - o tempo dos riscos - e concretiza o núcleo valorativo instalado na
daquele que, “tendo o dever de agir em virtude de exigência de autoridade competente, Constituição Federal de uso e respeito à natureza pelo ser humano, obedecendo ao
em casos de risco de dano ambiental grave ou irreversível, deixa de fazê-lo”.41 Saliente- expresso mandado de criminalização estabelecido em seu artigo 225, parágrafo terceiro,
se que a omissão, que é sempre dolosa, só configura crime se o dano ambiental for há de lhe ser conferida a legitimidade necessária para a sua devida aplicação pelos
grave e irreversível. juízes, desde que observados os parâmetros de rigor e precisão dos limites do proibido.
Trata-se de norma penal em branco, a qual é complementada por “exigência da
autoridade competente”. É, pois, uma infração omissiva de dever, na qual o infrator tem
o dever de agir e não o faz. Neste caso, o fundamento da sanção está no fato de que 4 CONCLUSÃO
alguém infringe as exigências de um papel social por ele assumido. Mas tal dever não se
encontra descrito no tipo, sendo remetido a outra lei, regulamento ou ato administrativo. 1. A intervenção humana no meio ambiente é um dos fenômenos mais
Também aí residem críticas por suposta infringência ao princípio da determinação. preocupantes do mundo contemporâneo. Tal intervenção é realizada, principalmente,
Afirma Claus Roxin, entretanto, que o que existe de criticável, do ponto de vista pelo uso equivocado da tecnologia, quase sempre em favor de interesses econômicos.
garantístico nesses tipos, não está na ausência de uma descrição de conduta, mas na O gradativo crescimento da industrialização, a utilização desordenada dos recursos
falta de clareza dos deveres a que o tipo se refere. Onde estes deveres estiverem fixados naturais, o excessivo incremento do consumo de matérias-primas e energia, bem como
de modo claro, “bastará indicá-los e tal indicação será apta a substituir a descrição da a grande produção de resíduos, são fatores que vêm propiciando o aparecimento de
conduta para satisfazerem-se as exigências do postulado nullum-crimen”. elementos estranhos na composição da atmosfera, da água e do solo, trazendo, portanto,
sérios e ingentes prejuízos à natureza. Trata-se da chamada “poluição ambiental”, que
39
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, atinge níveis alarmantes nesse momento histórico.
2010. v. 1, p. 183.
40
O princípio da precaução teve origem na Alemanha, nos anos sessenta, quando a imposição de medidas
de restrição de atividades cujos potenciais danosos desconhecidos foi institucionalizada como instrumento
de proteção ambiental. Surge, portanto, como princípio norteador da política alemã de meio ambiente, que
determinava às autoridades a obrigação de agir perante uma ameaça de danos ambientais irreversíveis,
mesmo que os conhecimentos científicos até então acumulados não confirmassem tal risco. (ROSSATO
apud BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco.
42
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 65-66). ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 33-36.
43
41
DELMANTO, Roberto et al. Leis Penais Especiais Comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 509-510. DELMANTO, Roberto et al. Leis penais especiais comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 510.
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2. Diante desse quadro, a ciência do Direito é chamada a intervir para regular REFERÊNCIAS
o instrumental tecnológico dessa era, mas também para punir criminalmente seus
infratores, sem prejuízo da reparação de danos na área jurídico-civil. No Brasil, surgem BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo à outra modernidade. Tradução de Sebastião
várias leis que visam proteger os rios, os lagos, os mares, a atmosfera, e o solo. Dentre Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010.
elas, destaca-se a Lei n. 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente e
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos.
tipificou o crime de poluição.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: DF. Disponível em:
3. Alinhada às necessidades de proteção do bem jurídico ambiental, foi editada
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 19 out.
a Constituição Federal de 1988, que determinou, em seu artigo 225, parágrafo terceiro,
2014.
que fossem criminalizadas as condutas lesivas ao meio ambiente. Dando corpo ao
mandamento constitucional, entrou em vigor a Lei n. 9.605/98, a qual cominou, no seu ______. Decreto n. 50.877, de 25 de junho de 1961. Brasília, DF. Disponível em: <http://
artigo 54, o novo tipo de poluição nas formas simples e qualificada, criando também as www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-50877-29-junho-1961-390520-
condutas culposa e omissiva, quando revogou o dispositivo anterior que era de menor norma-pe.html>. Acesso em: 19 out. 2014.
amplitude.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos.
4. A par de posições divergentes, entende-se que o crime de poluição, vigente na
Decreto n. 73.030 de 30 de outubro de 1973. Brasília, DF. Disponível em: <http://nxt.anp.
lei brasileira, é legítimo em todas as suas modalidades. Primeiro, porque a conduta de
gov.br/nxt/gateway.dll/leg/decretos/1973/dec%2073.030%20-%201973.xml>. Acesso
“poluir” que foi criminalizada é tão somente aquela que coloca em risco ou resulta em
em: 19 out. 2014.
danos à saúde humana, ou aquela que provoca a mortandade de animais ou a destruição
significativa da flora. Ademais, os elementos normativos “em níveis tais”, “mortandade” ______. Decreto n. 99.280 de 6 de junho de 1990. Brasília, DF. Disponível em: <http://
e “significativa” são verdadeiras “condições limitadoras de tipicidade” ao revelarem uma www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99280.htm>. Acesso em: 19 out.
ideia de quantum, como bem se refere Luiz Regis Prado. Estabelecem, pois, uma relação 2014.
de proporcionalidade e indicam que a alteração do meio ambiente deve ser relevante,
______. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Brasília, DF. Disponível em: <http://
grave, o que depende do dimensionamento a ser realizado por outras ciências. Diante da
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm>. Acesso em: 19 out. 2014.
complexidade do bem jurídico a ser protegido, deduz-se que não há qualquer infringência
ao princípio da lesividade, pois são afastadas da tutela penal as lesões menos graves e ______. Decreto-Lei n. 2848 de 7 de dezembro de 1940 . Brasília, DF. Disponível em:
de bagatela. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 19 out. 2014.
5. A conduta culposa está perfeitamente justificada em vista da própria revolução
______. Lei n. 6.453, de 17 de outubro 1977. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.
tecnológica provocada pela sociedade de riscos. Ora, todos os que coordenam,
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6453.htm>. Acesso em: 19 out. 2014.
planejam e executam ações arriscadas devem aprimorar seus deveres de cuidado
a ponto de reduzirem a possível “falha técnica”. Quando esta se encontra no campo ______. Lei n. 6.938 de 31 de agosto de 1981. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.
da previsibilidade, situa-se no âmbito do risco penalmente relevante, devendo ser planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm>. Acesso em: 19 out. 2014.
punida. O crime de poluição praticado na modalidade omissiva própria, por sua vez, é
______. Decreto-Lei n. 63.688 de 3 de outubro de 1941. Brasília, DF. Disponível em:
consectário do princípio da precaução, e visa evitar a ocorrência de um dano ambiental
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm>. Acesso em: 19 out. 2014.
grave ou irreversível. Ele está legitimado pela relevância do bem jurídico protegido, e na
razoabilidade, clareza e objetividade da exigência a ser cumprida. BRASIL. Resolução do Conama n. 20, de 18 de junho de 1986. Brasília, DF. Disponível
6. Assim, há de se concluir que o delito de poluição vigente no ordenamento jurídico em: http://www.mma.gov.br/port/conama/res/res86/res2086.html. Acesso em: 19 out.
brasileiro se insere, de forma legítima, no programa legislativo político-criminal que se faz 2014.
necessário na contenção dos grandes riscos, produzidos pelas atividades tecnológicas
______. Resolução do Conama n. 267 de 14 de setembro de 2000 . Brasília, DF.
da pós-modernidade, seguindo os valorosos princípios constitucionais da Carta Magna.
Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/conama/legislacao/CONAMA_RES_
CONS_2000_267.pdf.>. Acesso em: 19 out. 2014.
______. Resolução do Conama n. 5 de 15 de junho de 1989. Brasília, DF. Disponível em:
<http://www.mma.gov.br/port/conama/legislacao/CONAMA_RES_CONS_1989_005.
pdf.> Acesso em: 19 out. 2014.
______. Resolução do Conama nº 5 de 5 de agosto de 1993. Brasília, DF. Disponível
em: <http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=130>. Acesso em: 19
out. 2014.
REVISTA DO MPBA 66 67 REVISTA DO MPBA
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REVISTA DO MPBA 68 69 REVISTA DO MPBA
CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: PARTICIPAÇÃO POPULAR E O RESGATE DA CONFIANÇA

CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: Vale repetir, que crise é esta? Para responder a tais questionamentos, devem-se
PARTICIPAÇÃO POPULAR E O RESGATE DA CONFIANÇA estabelecer algumas premissas.
Marco Aurélio Nascimento Amado* Primeira, esta temática não é nova. Ao contrário, no decorrer da história antiga
(Grécia e Roma), moderna e contemporânea, a democracia já conviveu com diversos
sistemas que colocaram (e colocam) em risco a própria existência da raça humana, a
exemplo dos regimes autocráticos, teocráticos e ditatoriais. É forçoso reconhecer que,
EMENTA
no fim, a democracia sempre sobreviveu e, de certa forma, se consagrou, ao menos nos
Diante da indiscutível crise que o mundo ocidental vivencia na efetivação de uma (real)
países ocidentais. Esta tem sido a sua sina: evoluir para sobreviver! Segunda, diante
democracia representativa, quais medidas sociais, políticas e jurídicas podem ser
da complexidade que o tema crise democrática envolve, procurou-se, neste modesto
implementadas com o objetivo de que a desejada confiança do povo (titular do poder
trabalho, um maior direcionamento na famigerada crise da democracia representativa e
político), enfim, seja alcançada? Há a necessidade premente de se buscar mecanismos
do sistema de partidos políticos, até mesmo porque se compreende que a democracia,
não traumáticos que permitam a regeneração dos partidos políticos, pois, somente assim,
em si, não atravessa um abalo de “dentro para fora”, bem como que os seus instrumentos
estes cumprirão com a sua missão: atender o anseio do real titular do poder político – o
(referendo, plebiscito e iniciativa legislativa popular) estão muito longe de apresentar
povo.
qualquer ameaça (em verdade, são parte da solução!). Terceira (e mais importante),
é preciso ter a consciência, equilíbrio e, sobretudo, esperança de que a solução para
PALAVRAS-CHAVE: Democracia representativa. Crise. Partidos políticos. Regeneração.
a(s) “enfermidade(s)”, que põe(m) em risco a integridade e o bom funcionamento do
Confiança. Povo.
regime democrático, não virá pronta e acabada. Ao revés, as medidas que se afiguram
necessárias para se restabelecer a integridade dos partidos políticos, a (abalada)
1 INTRODUÇÃO
confiança do povo em seus representantes e a própria sobrevivência da democracia
representativa são inúmeras, inadiáveis, incisivas e, por vezes, “amargas”.
Muito se tem discutido acerca da crise democrática que, em especial, as nações
Eis a pretensão do presente artigo científico: apresentar a problemática que
ocidentais vêm experimentando. Tal debate se irradia desde o mundo acadêmico
envolve a crise da democracia representativa; contextualizá-la historicamente, desde o
e alcança até mesmo os noticiários que a população assiste todos os dias em seus
apogeu até o crepúsculo do sistema de partidos políticos; e, por fim, sugerir algumas
lares. A mencionada crise atinge sobremaneira os países situados nos rincões menos
medidas que podem garantir a sobrevivência do regime representativo, o resgate da
desenvolvidos (América do Sul, África, América Central, etc.), cujos sistemas políticos
imprescindível confiança do povo em seus representantes e, consequentemente, o
encontram-se mais esgarçados, desacreditados e imersos no abismo da corrupção.
fortalecimento da democracia (em sentido amplo), enquanto tal.
Mas, desde já, algumas indagações podem ser ventiladas e denunciam o quão
complexa se apresenta esta temática. Afinal, a que crise se está referindo? Crise da
2 DEMOCRACIA: UM CONCEITO DIFÍCIL
democracia (em si), enquanto sistema político? Arrefecimento dos instrumentos
democráticos (iniciativa legislativa popular, referendo, plebiscito, etc.)? Fragilização da
Neste momento, mostra-se relevante buscar uma compreensão mais consistente
democracia representativa, na exata medida em que o povo (titular do poder político)
do que significa democracia. Isto porque, não se pode, a partir daqui, seguir discorrendo
não obtém a desejada sintonia de seus anseios atendida por seus representantes?
sobre crise da democracia representativa, necessidade de regeneração dos partidos
Esvaziamento substancial (ideologia, planos de governo, etc.) dos partidos políticos, uma
políticos e participação popular sem se ter uma noção muito clara do sistema adotado
vez que, atualmente, seu agigantamento e mecanismo de funcionamento extremamente
pela grande maioria dos países ocidentais.
burocratizado têm metamorfoseado este importante ente em um fim em si mesmo?
Etimologicamente, demos = povo e kratos = poder, donde se conclui que, em
tradução simples, direta e literal, democracia = poder do povo. Mas, a mera disposição
etimológica da palavra está muito longe de explicitar toda a complexidade deste instituto
que, até os dias atuais, provoca calorosos debates acerca das suas características e
elementos identificadores. Afinal, quem é o povo? Como se atribui tal poder ao povo?
Como seguir o decidido pela maioria? Como respeitar o direito da minoria? Tais indagações
*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, ex-Defensor Público do estado do Ceará
(2008-2011), ex-Advogado (2004-2008) e ex-Assessor Jurídico Parlamentar (2007). Autor de artigos publi-
bem demonstram que o fenômeno é deveras difícil de ser compreendido com definições
cados no sítio virtual Conteúdo Jurídico (www.conteudojuridico.com.br). Mestrando em Segurança Pública, exatas e limitadoras. Todavia, atualmente, pode-se ter uma ideia bem satisfatória do que
Justiça e Cidadania (Universidade Federal da Bahia). Pós Graduado em Direito do Estado pela Universidade seja democracia através da análise das suas “condições operativas”, vale dizer, a forma
Anhanguera-Uniderp (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes) e em Direito Constitucional pela Universidade de como se desenvolve/opera a democracia dentro de determinado tecido social. Neste
Salamanca (Espanha). Vencedor do Prêmio Nacional de Melhor Monografia (Pós-Graduação Jurídica (LFG),
no 7° Seminário de Produção Acadêmica da Anhanguera (2014). Membro da Banca Examinadora do Concurso
sentido, a lição de Giovanni Sartori (2009, p. 17) mostra-se bastante esclarecedora:
Público para Ingresso no Cargo de Promotor de Justiça Substituto do Estado da Bahia - 2014/2015 (Examina-
dor de Direito Constitucional).
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CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: PARTICIPAÇÃO POPULAR E O RESGATE DA CONFIANÇA CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: PARTICIPAÇÃO POPULAR E O RESGATE DA CONFIANÇA

Como puede verse, la complicación no es poca, pero hoy puede Quando se trata de se identificar o que é democracia, há outro elemento importantíssimo
simplificarse con dos nociones <<operativas>> de democracia (en que não se pode olvidar: o voto. Sem o “direito (real) do voto”, não se pode falar de
el sentido de que consideran la democracia por su forma de operar). democracia. Trata-se, pois, de conditio sine qua non. Porém, vale pontuar que o simples
En este contexto encontramos el principio de mayoría absoluta o fato de votar não identifica automaticamente determinado regime como democrático. Eis
bien mayoría relativa. El primero quiere decir: los más tienen todos o alerta dado por Gianfranco Pasquino (2014, p. 30):
los derechos, mientras que los menos, la minoría, no tiene ningún
[…] hay una característica sustancial e ineludible sin la cual no se puede
derecho. En cambio, el principio de mayoría relativa se concreta así:
hablar de democracia. Podemos hablar de muchos otros requisitos y
los más tienen derecho a mandar, pero en el respeto de los derechos
condiciones, pero, si no se vota, si los representantes y los gobernados
de la minoría. Por tanto, desde un punto de vista operativo, el demos
no son designados mediante procesos electorales, que más adelante
es una mayoría, o bien absoluta o bien moderada, y la doctrina es
explicitaré, no tenemos democracia de ningún tipo. Lo que no significa
prácticamente unánime al afirmar que la democracia tiene que inspirar
que donde quiera que se vote exista una democracia. Han existido
en el principio de mayoría limitada o moderada. […]
muchísimos regímenes autoritarios y totalitarios donde se votaba y que
sin embargo no eran calificables como democráticos. […]
Vê-se, pois, que não faz sentido se falar em democracia se não houver o respeito ao
“direito da minoria”, em que pese o “direito de mando” (prerrogativa para ditar as “regras” Para finalizar esta árdua tarefa de se estabelecer parâmetros mínimos ao complexo
que devem ser obedecidas) gravitar nas mãos da maioria. É o que se chama princípio fenômeno intitulado democracia, não se pode deixar de mencionar as famigeradas
da maioria limitada ou moderada. No Brasil, por exemplo, no Congresso Nacional, as “regras do jogo democrático”. Trata-se de “regras” pressupostas sem as quais não se
normas são editadas obedecendo-se sempre a regra da maioria formada pela “bancada pode identificar determinado regime como democrático. Portanto, é uma espécie de
dos partidos políticos”. Entretanto, sempre que possível, procura-se observar, respeitar “teste”, criada por Bobbio, onde se estabelece o parâmetro de identificação/definição
e incorporar as sugestões modificativas realizadas pela minoria parlamentar. Exemplo mínima de democracia. Eis as tais “regras de ouro” que funcionam como verdadeiras
disto foi a aprovação do novo Código Florestal, onde a “bancada ruralista” e a “bancada condições da democracia, citadas por Michelangelo Bovero (2014, p.18):
ambientalista” tiveram que realizar concessões mútuas com o escopo de aprovar o texto 1. Todos los ciudadanos que hayan alcanzado la mayoría de edad, sin
final de lei. distinción de raza, religión, condición económica y sexo, deben disfrutar
Duas observações podem ser feitas para melhor compreender este regime, que de los derechos políticos, es decir, cada uno debe disfrutar del derecho
encontra sua síntese e potência em “poder do povo”: (1) poder é uma relação onde um de expresar la propia opinión y de elegir a quien la exprese por él; 2.
indivíduo ou coletividade obriga o(a) outro(a) a fazer algo que, de outra maneira, não faria el voto de todos los ciudadanos debe tener el mismo peso; 3. todos los
e (2) a atribuição e exercício deste poder se dá de forma ascendente (o povo transmite que disfrutan de los derechos políticos deben ser libres para poder votar
o poder ao governante) e descendente (onde o governante direciona o poder transmitido según la propia opinión, formada lo más libremente posible, en una
competición libre entre grupos políticos organizados en concurrencia
ao povo). Esta constatação permite concluir que o povo é, ao mesmo tempo, governante
entre ellos; 4. deben ser libres también en el sentido de que deben ser
(faceta 1) e governado (faceta 2). Mas, há de se ter a cautela com este processo de puestos en la condición de elegir entre soluciones diversas, es decir,
atribuição do poder. No lúcido ensinamento de Giovanni Sartori (2009, p. 21): entre partidos que tengan programas diversos y alternativos; 5. tanto
para las elecciones como para las decisiones colectivas, debe valer la
Son procesos muy delicados porque si no se vigila el trayecto, si en regla de la mayoría numérica, en el sentido de que se considere electa o
la transmisión del poder los controlados se sustraen al control de los se considere válida la decisión que obtenga el mayor número de votos;
controladores, el gobierno sobre el pueblo corre el riesgo de no tener 6. ninguna decisión tomada por mayoría debe limitar los derechos de la
nada que ver con el gobierno del pueblo. minoría, en especial el derecho de convertirse a su vez en mayoría en
igualdad de condiciones.
Como se percebe, a “palavra-chave”, no processo de atribuição do poder, é
vigilância. Eis o primeiro grande problema que se enfrenta no Brasil, por exemplo. Como funciona o “teste”? Simples, faz-se o cotejo de determinado regime político,
Aqui, o povo (titular do poder por reconhecimento constitucional) não exerce a que servirá como “modelo de verificação”, e aplicam-se as “regras de ouro” mencionadas
necessária vigilância e acompanhamento dos atos praticados por aqueles que acima. Acaso haja a não observância de apenas uma delas, pode-se concluir que tal
realizam o exercício do poder (governantes), através da democracia representativa. governo não é realmente democrático. O mesmo ocorre quando se aplica incorretamente
Até aqui, viu-se alguns dos principais elementos identificadores da democracia: poder ou se altera a aplicação de tais princípios formulados por Bobbio. Assim, estar-se-ia
do povo; atribuição do poder; ideia de maioria e minoria; e, por fim, as “condições diante do famigerado processo de degeneração da democracia. Esta é a conclusão a
operativas”, ou seja, como deve se desenvolver a democracia dentro de determinada que chega Michelangelo Bovero (2014, p.19):
sociedade (prevalência do decidido pela maioria com respeito aos direitos da minoria).

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CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: PARTICIPAÇÃO POPULAR E O RESGATE DA CONFIANÇA CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: PARTICIPAÇÃO POPULAR E O RESGATE DA CONFIANÇA

[…] este <<conjunto de reglas>> puede ser asumido y utilizado como progresso qualitativo e quantitativo da civilização clássica, tocante à
verdadero y apropiado criterio de democraticidad, simplificado pero conquista da liberdade humana. [...]
eficaz, esto es, como parámetro esencial de un juicio que establezca
si este o aquel régimen político real merece el nombre de democracia.
Assim, não é difícil perceber que diversos fatores tornaram efetivamente
En otras palabras, invito a considerar las <<reglas del juego>> como impossíveis a permanência deste regime tal e qual existia em Atenas. Eis as seguintes
condiciones de la democracia. […]. No tengo dudas sobre el hecho razões de ordem prática que impulsionaram a transição da democracia direta para a
de que basta la no observancia de una de estas reglas para que un democracia representativa: (a) a complexidade organizativa que o tecido social tomou
gobierno no sea democrático. com o decorrer do tempo, inclusive no que diz respeito ao aspecto territorial (cidades
Realizada as considerações acima, espera-se ter facilitado ao leitor a identificação grandes, complexas e com necessidade de manter um princípio político unificador); (b)
de um parâmetro mínimo do que se entende hodiernamente por democracia. A pretensão a inviabilidade numérica de se permitir que centenas de milhares de pessoas pudessem
aqui não foi estabelecer um conceito analítico e exauriente deste intricado instituto, até expor a sua opinião em um espaço público físico determinado; (c) o homem da democracia
porque se crê que tal tarefa se mostra inglória e impossível de alcançar o resultado direta era integralmente político, ou seja, não se preocupava com qualquer outro afazer
desejado. da vida cotidiana, que ficava a cargo dos escravos, mulheres e etc. Já o homem moderno
era (e ainda é) essencialmente econômico e, por consequência, possuía a necessidade
3 A DEMOCRACIA DIRETA: BREVES CONSIDERAÇÕES de primeiro prover a subsistência própria e de sua família para, depois, ocupar-se
dos “assuntos estatais”. Todos estes fatores permitem concluir que a emergência da
Sabe-se que a Grécia, mormente Atenas, foi o berço do que se conhece por democracia representativa foi um caminho inevitável. Pode-se dizer mais: é um caminho
democracia direta. Trata-se de um modelo que possui as seguintes características sem retorno que pode (e merece) ser aprimorado, porém jamais extinto.
principais: (a) O exercício direto e imediato do poder político era efetivado pelo povo e
se concretizava na praça pública (ágora); (b) Isonomia – igualdade de todos os cidadãos 4 INSTRUMENTOS DA DEMOCRACIA DIRETA, A FALÁCIA DO RISCO E NOVAS
perante a lei, sem qualquer distinção; (c) Isotimia – os cidadãos tinham livre acesso FORMAS DE PARTICIPAÇÃO CIDADÃ
para o exercício das funções públicas, de modo que não se acolhia os famigerados
títulos ou funções hereditárias; (d) Isagoria – concentra-se no direito de palavra, ou seja, No item anterior, percebeu-se que a democracia representativa é um fenômeno
na liberdade e igualdade reconhecidas a todos de se expressarem nas assembleias proveniente da evolução do sistema político, na sociedade ocidental, que prevaleceu
populares (direito a livre manifestação da opinião). Porém, é relevante esclarecer que tal irreversivelmente diante da democracia direta (ateniense). Todavia, a representação não
modelo somente se fez possível, àquela época, conforme explica Giovanni Sartori (2009, basta em si mesma e o grau de participação política que existe em um determinado país não
p. 59), porque: pode se centralizar apenas no direito de votar, sob pena de se esvaziar imensuravelmente
Su democracia era una democracia sin Estado, y por tanto también sin a participação política direta dos cidadãos. Sendo assim, o fortalecimento da democracia
extensión territorial. En Atenas, vivían como mucho 35.000 personas, y representativa pode ser alcançado com a adoção de alguns instrumentos já consagrados,
los ciudadanos que participaban en la asamblea popular eran dos y tres tais como, o referendo, a iniciativa legislativa popular, plebiscito, a participação cidadã
mil, raramente entre cuatro y cinco mil. Por consiguiente, el primer límite (audiências públicas no processo legislativo), orçamento participativo, o debate público
de aquella democracia es que requiere, inevitablemente, una extensión francês e os mecanismos baseados em sorteio.
reducida, reducidísima. En Atenas, las decisiones se adoptaban en No Brasil, o delineamento normativo do plebiscito, referendo e iniciativa popular
parte por aclamación y en parte por un consejo de 500 miembros, y por
pode ser sintetizado da seguinte forma: (a) Plebiscito e referendo são consultas
último por una variedad de magistraturas que se atribuían por sorteo y
en rapidísima rotación. […] formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza
constitucional, legislativa ou administrativa (artigo 2 da lei nº 9.709/1998). O § 1º e o §
Em que pese a indiscutível envergadura cívica e as vantagens que se extraem na 2º da lei mencionada faz a seguinte distinção entre plebiscito e referendo: o plebiscito é
aplicação do modelo ateniense, há fortes críticas que devem ser consideradas, conforme convocado com anterioridade ao ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo
bem informa Paulo Bonavides (2000, p. 268): voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido, ao passo em que o referendo
A escura mancha que a crítica moderna viu na democracia dos antigos
é convocado com posterioridade ao ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo
veio porém da presença da escravidão. A democracia, como direito de a respectiva ratificação ou rejeição; (b) A iniciativa popular consiste na apresentação
participação no ato criador da vontade política, era privilégio de ínfima de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do
minoria social de homens livres apoiados sobre a esmagadora maioria eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três
de homens escravos. De modo que autores mais rigorosos asseveram décimos por cento dos eleitores de cada um deles (artigo 2 da lei nº 9.709/1998). Já os
que não houve na Grécia democracia verdadeira, mas aristocracia conceitos de orçamento participativo, debate público francês e mecanismos baseados em
democrática, o que evidentemente traduz um paradoxo. Ou democracia sorteio encontram eco nas lições de Luigi Bobbio (2014, p.48, 49 e 50), respectivamente:
minoritária, como quer Nitti, reproduzindo aquele pensamento célebre
de Hegel, em que o filósofo compendiou, com luminosa clareza,
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Orçamento participativo: “[…] nace de la exigencia de implicar a los ciudadanos en el 5 DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: DA “PARTIDOCRACIA” AO CREPÚSCULO
control del gasto de la administración municipal destinado a inversión y en el modo de
repartir el dinero de modo transparente y equilibrado […]”. Debate público francês: “[…] A previsão de Montesquieu, no sentido de que o povo era excelente para eleger, mas
procesos tendentes a implicar a la población en el asunto de dirimir o prevenir conflictos péssimo para governar, parece ter se traduzido, dentre outros motivos já enumerados no
territoriales o ambientales, relativos especialmente a los proyectos de las grandes item 3 deste trabalho, na consolidação de representantes que iriam gerenciar, planejar,
obras de infraestructura […]”. Mecanismos baseados em sorteio: “La tercera familia de governar e elaborar leis em nome do titular primeiro do poder político. Interessante notar
mecanismos participativos es la que trata de implicar a ciudadanos comunes, elegidos que o surgimento dos partidos políticos, no século XX, veio para atender às exigências
mediante extracción a suerte, en discusiones sobre temas específicos”. das camadas menos favorecidas da sociedade burguesa, que necessitavam de um
Todos estes mecanismos permitem uma maior interação “instituição governamental canal de comunicação que reverberasse as aspirações populares para o seio estatal.
povo” e, consequentemente, uma transparente e sólida formação da vontade pública O desenho político pode ser dimensionado da seguinte maneira: POVO  PARTIDOS
(popular). É a democracia representativa incorporando instrumentos da democracia POLÍTICOS ESTADO.
direta para melhor servir o povo, notadamente em um período em que o descrédito das A importância dos partidos políticos cresce na exata proporção que aumentam
instituições de poder (Poder Legislativo/Executivo) revela-se tão evidente. Miguel Ángel os clamores do povo por melhoria e reforma social (desenvolvimento da ideia de
Presno Linera (2014, p.64) já alertava: Estado Social), firmando-se a ideia de que tais entes se revelam imprescindíveis para
No parece dudoso que el creciente cuestionamiento en que los Estados a democracia e com ela se identifica nos objetivos e propósitos almejados. Isto porque,
democráticos está experimentando el funcionamiento de las instituciones conforme se pode observar, as instituições partidárias passam a fazer o prestigioso papel
se centra, precisamente, en las de carácter representativo – “No nos de interlocução do povo (caixa de ressonância) frente ao governante. Consagra-se, pois,
representan!” -, por lo que la inclusión de las formas de intervención a realidade partidária como poder institucionalizado das massas, seja na democracia,
directa podría descargar de parte de esa presión a las primeras y seja na ditadura. A observação de Elviro Aranda Álvarez (2014, p.53) é de uma didática
contribuiría a la integración democrática de sectores sociales que se ímpar e bem explicita a relevância e prestígio que os partidos políticos adquiriram naquele
sienten excluidos del sistema y a los que, precisamente, se descalifica
momento:
como <<anti-sistema>>. […] desde la consolidación de la democracia de masas los partidos
Apesar dos evidentes ganhos que a democracia auferiria com a incorporação dos políticos son consustanciales a la democracia representativa; y la
instrumentos acima citados, no sentido de realizar a participação direta como essência otra, como apuntó en los años 20 del siglo pasado Kelsen, que <<
la democracia moderna descansa, puede decirse, sobre los partidos
de uma “democracia real” (leia-se, efetiva), diversos são os argumentos utilizados por
políticos, cuya significación crece con el fortalecimiento progresivo del
parlamentares contrários a adoção de tais modelos. São os chamados argumentos do principio democrático […] Solo por ofuscación o dolo puede sostenerse
risco (teses do risco). Eis alguns deles: (a) Tais iniciativas podem gerar graves conflitos la posibilidad de la democracia sin partidos políticos. La democracia,
entre o “Parlamento  povo” e “Parlamento  Governo (Poder Executivo)”, como necesaria e inevitablemente, requiere un Estado de partidos.
poderia ocorrer, por exemplo, com o referendo no qual haveria uma interferência popular
extraordinária em todo o processo legislativo; (b) Em verdade, os partidos políticos já Tamanha simbiose (democracia partidos políticos) permite concluir que o sistema
são os órgãos de manifestação da vontade popular, e não instituições que concorrem democrático, nas democracias representativas, somente é capaz de se desenvolver
para a formação e manifestação da vontade popular (a distinção é sutil, mas traz sérias coerentemente se houver um funcionamento adequado dos partidos políticos. Acaso isto
consequências); (c) O povo está muito mais sujeito às manipulações demagógicas, além não ocorra, torna-se muito fácil prever que a democracia se debilitará ou funcionará
de se caracterizar como volátil na apreciação de matérias que reclamam maturidade imperfeitamente. Assim, o risco de a vontade popular não se refletir nas atitudes dos
política e cautela gerencial, circunstância que não atingiria aos partidos políticos, partidos políticos ocorre quando estes se alienam por inteiro em um ato de “fechar-se
porquanto se caracterizam como instituições que trazem em seu corpo pessoas com para os seus próprios interesses” (oligarquia partidária), olvidando-se dos reclamos e
vasta experiência no trato da “coisa pública”. anseios do povo. Eis aí a corrupção dos partidos políticos que deságua na quebra de
Percebe-se claramente que são argumentos que escondem, na verdade, um confiança da sociedade e na desilusão do corpo eleitoral! Este cenário desolador é bem
único objetivo: concentrar todo o protagonismo político “nas mãos” dos partidos políticos. esmiuçado por Paulo Bonavides (2000, p. 278):
Não é à toa que se limitam, no Brasil, por exemplo, as matérias que podem ser objeto
A lição de nossa época demonstra que não raro os partidos, considerados
de iniciativa popular; recrudesce-se o número de pessoas necessárias a respaldar a
instrumentos fundamentais da democracia, se corrompem. Com
iniciativa legislativa popular e se impõe uma série de condicionantes para a efetivação a corrupção partidária, o corpo eleitoral, que é o povo politicamente
do plebiscito e do referendo. Forja-se, assim, a perniciosa figura da partidocracia/estado organizado, sai bastante ferido. No seio dos partidos forma-se logo mais
partidário! uma vontade infiel e contraditória do sentimento da massa sufragante.
Atraiçoadas por uma liderança portadora dessa vontade nova, estranha
ao povo, alheia de seus interesses, testemunha as massas então a

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maior das tragédias políticas: o colossal logro de que caíram vítimas. Vê-se, pois, a necessidade premente de mudança de rumo dos partidos políticos,
Indefesas ficam e a democracia que elas cuidavam estar segura e ainda que se tenha a plena consciência de que não haverá solução milagrosa para a
incontrastavelmente em suas mãos, escapa-lhes como uma miragem. quebra de confiança já existente.
(...). O partido onipotente, a esta altura, já não é o povo nem a sua
vontade geral. Mas ínfima minoria que, tendo os postos de mando e os
cordões com que guiar a ação política, desnaturou nesse processo de 6 BUSCANDO ALCANÇAR A CONFIANÇA: O POVO COMO CONTRAPODER!
condução partidária toda a verdade democrática.

Algumas condutas podem contribuir para que se estabeleça a nefasta oligarquização Antes de se aprofundar acerca dos meios de como pode ser percorrido o caminho
partidária: falta de filiação aos partidos políticos; escassos quadros preparados para para se (re)construir a legitimidade dos partidos políticos, é salutar estabelecer, como
exercer as responsabilidades internas e externas; burocratização do sistema de premissa argumentativa, a distinção entre o que se concebe como mandato representativo
funcionamento intrapartidário; personificação dos partidos em lideranças escassas e, e mandato imperativo. Explica-se o motivo de se estabelecer tal diferença: a escolha por
às vezes, única; ausência de programa (ideologia efetiva e real) partidário. Esta mescla um destes dois modelos de sistema representativo implicará indubitavelmente como se
de partidos oligarquizados, pessoas de qualificação inadequada e poderes sujeitos às vislumbra o exercício correto do poder soberano, que é, não custa rememorar, do povo.
flutuações de um mercado extremadamente capitalizado gera claros exemplos de desvios A ideia de mandato representativo deita as suas raízes na França revolucionária
de poder e grandes benefícios econômicos e políticos para intermediários, políticos e e traz a ideia síntese de que os representantes parlamentares são mandatários da
empresários inescrupulosos que colocam os interesses privados acima do bem comum. nação (soberania nacional), e não de um corpo de eleitores. Logo, o comportamento
As consequências óbvias desta degeneração perpassam desde a coação partidária, político do representante, suas manifestações, seus atos e sua vontade são imputáveis
que restringe a atuação de seus próprios parlamentares filiados, onde a consciência à nação soberana. Aqui, o mandatário exerce o seu múnus com amplíssima liberdade
individual cede lugar à consciência partidária (a liberdade do parlamentar transmuda- (independência), de forma geral e sem a preocupação de ter o seu mandato revogado
se em obediência cega às diretrizes dos partidos), até a quase abolição da discussão (impossibilidade de destituição dos parlamentares). Já no mandato imperativo sobressai
construtiva parlamentar, que deveria implicar na tentativa racional e argumentativa a supremacia da vontade do corpo eleitoral. Neste modelo, o povo pode realizar uma
da persuasão (a imposição aniquila o debate de ideias). Incendiando, ainda mais, o verdadeira fiscalização e acompanhamento da atuação de seus representantes, uma vez
quadro catastrófico da degeneração da democracia representativa, sobressaem, como que o eleito é considerado como verdadeiro depositário da confiança do eleitor. Trata-se,
consequência direta do movimento hiperbólico da partidocracia, a corrupção e a ausência pois, de instrumento consentâneo com a democracia social, donde a soberania popular
de transparência dos poderes públicos. (e não a nacional) é o verdadeiro alvo a ser perseguido. Em suma, tal sistema se revela
A efetiva adoção dos mecanismos mencionados no item 4 deste artigo científico como sendo o real instrumento de autenticação da vontade democrática. A aplicação do
pode colaborar para a regeneração do sistema da democracia representativa vigente mandato imperativo corporifica-se em alguns exemplos como o recall norte-americano
no Brasil, contrabalançando a fissura que se instituiu na relação POVO  PARTIDOS (revoga-se o mandato de um representante, individualmente considerado, quando este
POLÍTICOS  ESTADO. Todavia, aparentemente, os oligarcas ainda não se mostraram aja com infidelidade perante seu eleitorado) e o abberufungsrecht suíço (espécie de recall
muito interessados em equacionar esta “enfermidade”, que já demonstra sinais de coletivo). As observações realizadas por José Pedro Galvão de Sousa (2011, p.59) bem
saturação máxima por parte da população. Tal fato não passou despercebido por Elviro evidenciam as diferenças de tais modelos de mandatos, bem como identifica a distorção
Aranda Álvarez (2014, p.54): existente na ideia de mandato representativo, uma vez que fruto de um idealismo quase
intangível (cidadão abstrato e “vontade geral”):
Como decía, la democracia necesita de los partidos políticos, pero los
excesos en los que han incurrido en los últimos años en nuestro país El diputado – en esa concepción – no representa a los electores,
los hace organizaciones muy impopulares. La solución no puede ser como ocurría en los tiempos del <<mandato imperativo>>, sino la
otra que su reinvención: se necesitan partidos que destierren de sus propia Nación, y la voluntad nacional se encarna en la voluntad de sus
prácticas cotidianas comportamientos oligárquicos y que, desde la representantes. En esta presunta identidad entre la voluntad nacional
democracia interna y la limitación de su poder, puedan ir recuperando y la de sus representantes, así como en aquella indivisibilidad de la
la credibilidad y confianza de los ciudadanos. Otra cosa es cómo se soberanía del texto de la Declaración de Derechos, ve BURDEAU los
puede producir ese cambio. Desde luego parece poco probable que dos principios esenciales de una construcción política teóricamente
aquellos que han formado parte de la estructura de poder sean los que perfecta, pero que choca frontalmente con la realidad. <<La teoría
produzcan la regeneración; más bien se atisba que ese cambió será de la representación es una cosa, el funcionamiento del régimen
fruto de un recambio generacional, además de unas nuevas prácticas representativo es otra. Ahora bien, la más ligera observación de la vida
tanto en el funcionamiento interno como externo. política interna de los Estados representativos desde fines del siglo XIX,
prueba que entre la teoría y hecho, el divorcio se vino acentuando cada
vez más>>.

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Continua o referido autor (2011, p. 61): (b) Internet – Instrumento de comunicação, informação e discussão de ideias capaz de
La idea de mandato representativo ya fue expuesta por BLACKSTONE movimentar centenas de milhares de pessoas com uma velocidade espantosa e que
y BURKE, en la tradición del sistema parlamentario inglés. La defendió carrega consigo uma descentralização de controle muito maior que os órgãos formais de
SIEYÈS, sustentando la incompatibilidad del mandato imperativo con poder; (c) Igreja – Entidade que continua exercendo fortíssima influência na tomada de
en régimen representativo. En su argumentación, se colocaba en la decisões políticas dos estados. Um bom exemplo de como a igreja pode fazer implantar
misma posición que MONTESQUIEU, para quien el pueblo es admirable a sua ideologia, inclusive no âmbito político, é o enorme número de parlamentares
cuando se trata de escoger, pero incapaz de dirigir los negocios
evangélicos eleitos no Brasil que, confessadamente, adotam como “bandeira de atuação”
públicos. Excluido el mandato imperativo, se pasó a preconizar la
aqueles assuntos que interessam, sobretudo, a determinados setores religiosos; (d)
amplitud de un mandato sin restricciones. Por el primero, cada diputado
representa una circunscripción electoral o un determinado grupo que lo Militares – Tradicionalmente, as instituições que compõem o exército, a marinha e a
ha escogido, recibiendo además, en su caso, instrucciones especiales. aeronáutica encontram-se fortemente imbricadas com os órgãos estatais, dando suporte
Por el llamado mandato representativo se considera que el diputado não apenas na área da segurança nacional, como também nas diretrizes estratégicas
representa la nación, sin estar vinculado a ninguna directriz previamente de relacionamento entre nações; (e) Multinacionais – Empresas de grande poderio
establecida. Según explica muy bien BURDEAU, las voluntades de los econômico que, muitas vezes, ditam as “regras” que determinado governo deve seguir,
representantes deben ser entendidas no como su propia voluntad, sino acaso desejem ter em seu território a implantação de imensas unidades empresariais
como expresión de la voluntad nacional. produtivas. Aqui, a influência sobre os atos governamentais é tamanha que muitos
Das lições acima expostas, percebe-se a existência de dois diferentes sistemas estudiosos chegam a questionar a real existência da chamada soberania estatal frente
de representação política. No representativo, o mandato é amplo, livre, irrevogável e aos grandes conglomerados econômicos.
independente, ao passo em que, no imperativo, a representação mostra-se com um Esta multiplicidade de poderes existentes bem demonstra a complexa missão
matiz de vinculação muito mais forte e acentuada. Ou seja, neste último, a relação de se elevar a cidadania a um patamar de participação política nunca dantes vista, na
POVO  PARLAMENTAR é muito mais visceral e traz algumas consequências exata medida em que, atualmente, não basta equilibrar a relação entre os três poderes
interessantes como, por exemplo, (a) a necessidade de o representante prestar contas clássicos. Ao contrário, os inúmeros outros poderes existentes devem ser levados em
ao representado; (b) possibilidade de o representado destituir o representante em caso consideração e também “transformados”, haja vista que as decisões governamentais,
de infidelidade no cumprimento do poder que lhe foi delegado; e, (c) o mandatário possui que atingem diretamente os cidadãos, perpassam, de forma mais ou menos intensa,
poderes de representação mais restritos e que estão vinculados a tão-somente aquilo por todos estes entes acima identificados. Desenha-se, assim, a necessidade inadiável
que o povo (representante) outorgou. Percebe-se, pois, a existência de características de crescimento e fortalecimento dos famigerados contrapoderes, cujo desenvolvimento
típicas, porém com contornos próprios, da ideia de mandato do Direito Civil. Constata- será capaz de fazer frente aos desmandos que se irradiam da partidocracia. Ou seja,
se que a fiscalização do exercício do mandato parlamentar pode ser concretizada de crê-se que somente com a sedimentação serena, porém firme, de alguns contrapoderes
maneira muito mais intensa, contínua e séria na hipótese do mandato imperativo. Tal é que se poderá sonhar com a concretização de uma maior identidade entre o que o povo
circunstância permite que se defenda, atualmente, uma maior aproximação deste modelo anseia e o que os agentes políticos praticam.
de representação como forma de se equalizar melhor o déficit de legitimidade pela qual
passa a democracia representativa em diversos países ocidentais, como é o caso do CONTRAPODER – OPINIÃO PÚBLICA, MAIORIA SILENCIOSA E MINORIAS ATIVAS:
Brasil, por exemplo. Frise-se: ainda que não se adote a ideia de se absorver por completo
os matizes do mandato imperativo, defende-se, aqui, uma maior aproximação deste Não se pretenderá aqui definir o que é opinião pública ou maioria silenciosa.
modelo representativo. Estabelecida tal premissa ideológica e argumentativa, passa- Melhor será constatar a resposta que RAMÓN ADELL ARGILÉS (2014, p.122) deu a sua
se a analisar os meios de como pode ser percorrido o caminho para se (re)construir a própria pergunta:
legitimidade dos partidos políticos. Volviendo a la cuestión inicial: ¿cómo observamos el grado de
O caminho a ser percorrido até o restabelecimento da dignidade representativa consentimiento social? La respuesta es: preguntando a la sociedad.
dos partidos políticos passa, necessariamente, pela constatação de que há inúmeros Conocemos la opinión de las mayorías silenciosas escuchando a
poderes (formais ou informais) que influenciam a tomada de decisões estatais e que nuestro alrededor, lo que se dice en los bares, en los taxis, comentarios
acabam por atingir, ao final, a própria cidadania. Trata-se de uma realidade indiscutível de amigos, vecinos y… a través de las encuestas de opinión, como
e que modela a tão porosa e volátil percepção que se tem da expressão soberania. termómetro o barómetro de las inquietudes sociales.
Vejamos alguns destes poderes influentes: (a) Meios de comunicação de massas
(imprensa) – É tida por muitos como o Quarto Poder e exerce incontrastável influência
sobre a opinião pública, seja sob o aspecto positivo (informando e dando transparência
aos atos governamentais), seja sob o viés negativo (manipulando ideologias e
obscurecendo fatos que não interessam às grandes corporações midiáticas);
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CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: PARTICIPAÇÃO POPULAR E O RESGATE DA CONFIANÇA CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: PARTICIPAÇÃO POPULAR E O RESGATE DA CONFIANÇA

O referido autor parece colocar a opinião pública e a chamada maioria silenciosa PRIMEIRO E ÚLTIMO CONTRAPODER – O CIDADÃO COMO CONTRAPODER:
no verso e reverso de uma mesma moeda: a sociedade. E a constatação paralisante a
que se chega é de que a sociedade ainda não se mostrou plenamente consciente de seu Parece paradoxal colocar o cidadão (povo) como contrapoder, tendo em vista que,
poder de renovar e exigir, porquanto continua preferindo delegar poderes a participar em verdade, este é o real detentor do poder. Todavia, não há contradição alguma. Em
ativamente da vida política do local em que vive, exceto em situações pontuais e de rara verdade, o cidadão, individualmente considerado, será contrapoder na justa medida em
inflamação em virtude da manutenção do status quo. Mas, uma vez que a opinião pública que terá que fazer frente à partidocracia (fenômeno este que se agigantou; se deformou e
erga-se do seu estado de inércia, o que se terá é a constante renovação da cultura irradia as suas teias sobre todas as demais instituições, consumindo-as pouco a pouco).
democrática; a defesa de um sistema de participação aperfeiçoado e a cooperação Assim, a relação de “confronto” se estabelece entre CIDADÃO X PARTIDOCRACIA.
da sociedade em contextos adversos (crise econômica, populismo, etc.). É quando se Arquitetar tal transformação não é tarefa fácil e exigirá primordialmente que os
chega ao momento, portanto, em que a opinião pública se fará ouvir, demonstrando o cidadãos abandonem a conhecida e perniciosa postura individualista, uma vez que tal
seu descontentamento em protestos, pesquisas realizadas pelos órgãos de imprensa, conduta impede que as pessoas se unam e lutem por condições melhores no intuito de
etc., e, no fim, ela mesma será agente de transformação. Sobre a maioria silenciosa, cobrar dos seus representantes as ações para as quais foram eleitos. Volta-se, aqui, à
Ramón Adell Argilés (2014, p.123) tece a seguinte consideração: lição fornecida a milhares de anos atrás pelos gregos de Atenas e que já foi mencionada no
La llamada mayoría silenciosa no existe como tal. Deberíamos hablar início do presente ensaio: a necessidade de se adotar uma postura de participação política
más bien, en plural, de mayorías silenciosas (en contraposición a ativa, imbricando-se, cada vez mais, nos negócios políticos estatais e acompanhando
minorías activas y <<ruidosas>>). Con ilusión o resignación, según muito mais de perto os afazeres dos agentes políticos. Somente assim, se resgatará a
los tiempos, estas mayorías no son muy participativas, y suelen ser necessária confiança do povo e se poderá falar em verdadeira regeneração dos partidos
progresivamente conservadoras. Delegan, se sienten representadas, y políticos com a consequentemente reestruturação da democracia representativa. Não
quieren básicamente trabajo, vivienda, familia, seguridad y bienestar custa lembrar que, na Grécia antiga, todas aquelas pessoas que não acompanhavam
(Paz y Orden). Mantienen la cohesión social y sólo salen a la calle
e deixavam em segundo plano os assuntos da Política e da administração do local em
en convocatorias unitarias, en contados momentos históricos de
emergencia nacional, de crisis democrática y riesgo de ruptura de la que viviam eram consideradas idiotés (idiota!). Ou seja, eram aquelas pessoas que se
paz (contra el golpismo, contra el terrorismo, e incluso contra la guerra). preocupavam apenas com a sua própria vida, com os assuntos pessoais, com os seus
Para los más activos, <<la mayoría silenciosa>> suele ser cómplice de negócios particulares. Para os gregos, ser um idiotés era escapar da natureza humana,
la <<democracia lanar>> o de <<ciudadanía zombi>>. o que significava não utilizar a própria razão. A lição aristotélica é no sentido de que a
participação política ativa dos cidadãos é a única forma capaz de proporcionar o pleno
Ocorre que os retrocessos sociais, a corrupção endêmica dos agentes políticos desenvolvimento da potencialidade social, política, econômica e intelectual dos seres
em geral, a ausência de eco dos anseios populares nos partidos políticos e a falta de humanos. São ensinamentos do grande filósofo grego (2012, p. 67):
perspectiva de mudanças têm mobilizado tais maiorias a manifestarem o seu desencanto Toda Cidade é um tipo de associação, e toda associação é estabelecida
e indignação. Ao final, o que se tem é a união de interesses das maiorias silenciosas tendo em vista algum bem (pois os homens sempre agem visando a algo
com os das minorias ativas/ruidosas (movimentos sociais, sindicatos, grupos de pressão, que consideram ser um bem); por conseguinte, a sociedade política, a
organizações não governamentais, etc.). E em que redunda tão união? Em uma indiscutível mais alta dentre todas as associações, a que abarca todas as outras,
força mobilizadora que se cristaliza em contrapoder em face dos partidos políticos, bem tem em vista a maior vantagem possível, o bem mais alto dentre todos.
como dos agentes políticos em geral, gerando a tão necessária democracia participativa.
Em que pese os poderes constituídos (Legislativo e Executivo) ainda se manterem Depreende-se do excerto acima que a Política deve visar o bem comum.
refratários a realizarem mudanças profundas e consistentes e tentarem se blindar de É a arte de viver em sociedade e de tomar decisões que busquem o bem de todos.
todas as formas (exemplo: criminalizando condutas oriundas do direito de manifestação, Logo, deve-se dar primazia à pólis (aqui entendida como conjunto), e não ao cidadão
recrudescendo a atuação policial contra os movimentos sociais, manipulando o discurso individualmente considerado. O homem, como animal político que é, deve buscar,
da opinião pública nos grandes meios de comunicação, etc.), não há dúvidas que as acima de tudo, a participação na administração da res publica (coisa pública) e só se
maiorias silenciosas, juntamente com os movimentos organizados (minorias ativas), já desenvolverá plenamente dentro do contexto social em que vive (a cidade é anterior ao
deram os primeiros passos rumo a uma mudança de postura. Como se vê, a confiança indivíduo), jamais isoladamente. Todo aquele que não procura viver integrado no seio
que não venha voluntariamente dos poderes instituídos será buscada pelo cidadão, pois da sua comunidade abandona a sua própria natureza (humana) e, por isso, diminui a si
o único fundamento de legitimidade de poder admitido hoje é o poder por consentimento mesmo ou sente-se superior aos outros. Não é difícil perceber que ambos os efeitos são
dos cidadãos. extremamente perniciosos à própria condição humana.
A noção aristotélica de felicidade guarda íntima relação com a
convivência em comunidade, ultrapassando-se a barreira do individualismo.

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CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: PARTICIPAÇÃO POPULAR E O RESGATE DA CONFIANÇA CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA: PARTICIPAÇÃO POPULAR E O RESGATE DA CONFIANÇA

Em suma, exercitando a participação política, haja vista que, sem a sociedade, o homem REFERÊNCIAS
torna-se um ser injusto e refém do egoísmo (um verdadeiro animal desprovido de
racionalidade). Todas estas observações servem para se concluir que o atuar cidadão ÁRGILÉS, Ramon Adell. El Poder de los Contrapoderes. In: GUTIÉRREZ, Ignacio
(participação da vida política no local em que se vive) é o verdadeiro contrapoder capaz Gutiérrez (Org.). La democracia indignada: tensiones entre voluntad popular y
de impor freios aos desmandos dos agentes políticos e de seus partidos. E mais: apenas representación política. Ed. Comares, 2014.
com o controle, vigília, limite e complementação do verdadeiro detentor do poder político
ÁLVAREZ, Elviro Aranda. Poder Democrático y Derechos en una Sociedad en Crisis.
é que se conseguirá fazer com que os representantes (partidos políticos) deixem de agir
In: GUTIÉRREZ, Ignacio Gutiérrez (Org.). La democracia indignada: tensiones entre
em benefício próprio (fechando-se em si mesmo) e passem a atender à pauta de quem
voluntad popular y representación política. Ed. Comares, 2014.
lhe delegou parcela do poder.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
BOVERO, Michelangelo. La democracia en nueve lecciones. Madrid: Trotta, 2009.
7 CONCLUSÃO
CASQUETE, Jesús. El poder de la calle: ensayos sobre acción colectiva. Ed. Centro de
Sem dúvida alguma, a vivência da democracia exige um reinventar ininterrupto Estudios Políticos y Constitucionales, 2006.
seja porque a sociedade muda incessantemente; seja porque o atuar humano, no
LINERA, Miguel Ángel Presno Linera. La Democracia Directa y La Falacia de sus
sentido de construir e fazer Política, é de flexibilidade tamanha que o mundo ocidental
Riesgos. In: GUTIÉRREZ, Ignacio Gutiérrez (Org.). La democracia indignada: tensiones
não conseguiu (e não conseguirá) estabelecer limites fixos. As experimentações que vão
entre voluntad popular y representación política. Ed. Comares, 2014
desde a democracia ateniense até a teocracia bem demonstram a variedade absurda de
sistemas de organização política. LINZ, Juan J. La quiebra de las democracias. México: Alianza Editorial, 1996.
A democracia continua sendo o sistema que melhor permite ao ser humano
LÓPEZ, Enrique Guillén. Las Enseñanzas del 15-M (El Léxico Constitucional Frente
explorar as suas potencialidades positivas. Dentro deste espectro, após toda a análise
a la Crisis de Legitimidad). In: GUTIÉRREZ, Ignacio Gutiérrez (Org.). La democracia
acima desenvolvida, apesar do indiscutível enfraquecimento e sinais de séria exaustão,
indignada: tensiones entre voluntad popular y representación política. Ed. Comares,
chega-se também à conclusão de que a democracia representativa ainda não se esgotou
2014.
e pode servir de ferramenta para que o cidadão continue na busca do bem comum.
A regeneração da democracia representativa passa, necessariamente, pela PASQUINO, Gianfranco. La democracia en nueve lecciones. Madrid: Trotta, 2009.
adoção, sem melindres ou receios, de determinados instrumentos da democracia direta,
SARTORI, Giovanni. La democracia en treinta lecciones. México: Taurus, 2009.
que viabilizarão, em última senda, maior participação do cidadão no trato da coisa pública.
De outro lado, há que combater o nefasto fenômeno da partidocracia, que acabou por SOUZA, José Pedro Galvão de. La representación política. Ed. Marcial Pons, 2011.
colocar os interesses partidários em primeiro e único plano, relegando os anseios
populares a um sótão escuro e sombrio, onde nenhuma voz indignada pode ser ouvida.
As recentes manifestações populares demonstram que o povo é capaz de se
organizar (maioria silenciosa + minoria ativa) e fazer com que a opinião pública seja
escutada. Os poderes formais (Executivo, Legislativo e Judiciário) e informais (mídia,
militares, empresas transnacionais, etc.) instituídos passam a experimentar a atuação
latente e inflamada dos demais contrapoderes. As “vozes das ruas” não podem mais
simplesmente ser desconsideradas ou silenciadas, apesar de todo o esforço realizado
neste sentido. O povo, enfim, resolveu atuar, em carne, pele e osso, como contrapoder!
As consequências ainda não são tão visíveis, mas é indiscutível que algo mudou e o
caminho não admite mais o retrocesso de antes.
Deve-se, por fim, ter a plena convicção de que realmente todo o poder emana do
povo. O que se é delegado ao representante estatal é apenas, e tão-só, parcela (exercício)
do poder político, de modo que nada mais legítimo que haja uma aproximação ao modelo
do mandato imperativo, no qual o agente político realmente tenha a consciência e o
comprometimento de prestar contas de sua atuação profissional, sob pena de lhe ser
retirado o poder que lhe foi delegado. Afinal, no trato da coisa pública, onde os interesses
devem ser de muitos, e não de poucos ou de um só, a confiança que não se conquista,
resgata-se!
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DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E SUA LEGITIMIDADE

DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E SUA LEGITIMIDADE De fato, não se pode falar com seriedade em hierarquia das normas jurídicas, estando
Edvaldo Gomes Vivas* a norma constitucional em seu topo, nem em vinculação à Constituição pelos poderes
públicos constituídos, muito menos em efeito irradiador da ordem constitucional por
todo o sistema jurídico, sem um mecanismo de garantia da Constituição. Não negamos,
EMENTA entretanto, tal como Adverte Maria Benedito Urbano, que a Justiça Constitucional não
A Justiça Constitucional é consecutário lógico da supremacia da Constituição. Não “esgota a garantia da constituição, sendo apenas um dos seus meios, porventura o mais
obstante, a Justiça Constitucional vive sob constante tensão, sendo comum que usado e eficaz”² , mas convém não olvidar as lições da História, que nos ensinou a
seus críticos façam suas objeções em nome do ideal democrático. Sabidamente, dos duras puras, quiçá com o sacrifício da dignidade senão da própria vida de milhões de
opositores à Justiça Constitucional se destaca Jeremy Waldron, o qual advoga que existe pessoas, que o erguimento de um mecanismo institucional para a defesa da Constituição
um desacordo profundo sobre o conteúdo dos direitos fundamentais (seus contornos e abriu novas e nada negligenciáveis formas de resistência do particular e de grupos de
limites), cuja solução não deve nem pode ser alcançada por quem não possui legitimidade particulares contra atos indevidos do Poder Público. Antes, contudo, de avançarmos
democrática, qual seja, a Corte Constitucional, devendo, ao contrário, ser remetida para neste ponto, cabe aqui um esboço teórico:
o processo democrático (o Parlamento). Não faltam críticas a este posicionamento, no A um, mister salientar, como bem o faz Urbano³ , da inviabilidade de um conceito
entanto. Dentre elas, o artigo traz o posicionamento do Professor lisboeta Jorge Reis material de Justiça Constitucional, na medida em que diversas são as matérias afeitas à
Novaes, que parte da conhecida metáfora dos direitos como trunfos cunhada por Ronald sua apreciação, como por exemplo, o processo eleitoral em alguns países4 , ou, no caso
Dworkin, mas faz um outro uso dela, constitucionalmente mais adequado. Com argúcia, brasileiro, as decisões sobre eventuais conflitos entre os entes da Federação. Mesmo se
aduz Reis Novaes que o desacordo profundo não seria então incidente sobre o conteúdo nos concentrarmos em seu “núcleo duro”, isto é, o controle da constitucionalidade das
do direito, mas sim, sobre a violação do direito fundamental pelo Poder Público. Por via de leis e atos normativos, a questão da definição do que seria uma Justiça Constitucional
consequência, se é de violação concreta que estamos tratando, a questão competencial carece ainda de imprecisões e vaguezas. Tomemos, a princípio, o conceito kelseniano
exsurge cristalina: quem deve arbitrar se a escolha do Poder Legislativo foi ou não , citado por Urbano6 , a definir a Justiça Constitucional como a “jurisdição especializada
devida? Ele mesmo ou um poder independente e neutro? Bem entendido, o controle encarregada de controlar a constitucionalidade das leis.” Se por um lado, este conceito
judicial sobre a ação estatal é devido à partida porque vivemos sob a égide de um estado tem o mérito de ressaltar o modelo judicial (de jurisdição) sobre o modelo político (o qual
de direito. A Justiça Constitucional assim deve ser entendida como um garante contra também existiu em certo momento histórico e quiçá até bem pouco tempo na França
a vontade imposta das maiorias conjunturais frente aos direitos fundamentais que são com seu Conseil Constitutionnel), por outro, também peca tanto ao se identificar com a
trunfos contramajoritários. forma concentrada de controle (afinal, “jurisdição especializada” carrega em si a idéia de
um tribunal à parte, o que não sucede em países que adotam o controle difuso) quanto
PALAVRAS-CHAVE: Justiça Constitucional. Legitimidade. Crítica a Waldron aPartir de denota uma concepção um tanto, em nosso entender, amesquinhada da atividade judicial
Dworkin e Reis Novaes. Direitos como trunfos. constitucional, quase que associada à autocontenção.
Neste sentido, preferimos, tal como Urbano7 , o conceito de Justiça Constitucional
1 CONCEITO trazido por Aragon Reys, a saber: “a totalidade da atividade judicial de aplicação da
Constituição, seja ela praticada de maneira concentrada, seja difusa.” Não sabemos
Sacralizada sobre os escombros da Segunda Guerra como uma peça fundamental se nossa preferência se deva pelas mesmas razões que levaram à preferência
do novo constitucionalismo que então se erguia e renovada nos anos setenta do século da Professora de Coimbra (que não explicita as suas razões em seu Curso).
passado, quer na América quer na Europa (sobretudo na Alemanha) por jurisprudências no
mínimo instigantes¹ , A Justiça Constitucional assiste hoje, em tempos de Crise do Estado
Social no dito “Primeiro Mundo” e de democratização real acompanhada da redução
efetiva das desigualdades sociais na América Latina, a um grande questionamento
acerca de seu papel ou mesmo a respeito de sua legitimidade.
A Justiça Constitucional é consecutário lógico da supremacia da Constituição.
2
URBANO, Maria Benedita. Curso de justiça constitucional. Evolução histórica e modelos de controlo da
constitucionalidade. Coimbra: Almedina, 2012. p. 11.
*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenador do NUDEPHAC (Núcleo de
3
Ibidem, p. 12 et seq..
Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Ministério Público da Bahia). Especialista em Direitos
4
Não o caso do Brasil, que possui uma corte própria para tais questões, qual seja, o TSE – Tribunal Superior
Humanos pela UNEB (Universidade do Estado da Bahia). Mestre em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Eleitoral, tendo aqui o Supremo Tribunal Federal uma atribuição recursal excepcionalíssima.
Direito da Universidade de Lisboa
5
Eis que tudo começou, em Europa, com a célebre querela entre Hans Kelsen e Carl Schmitt, na década de
¹ Como, por exemplo, o caso Wade na Supreme Court norteamericana ou as notáveis construções germânicas trinta do século passado, do que resultou no chamado modelo judicial austríaco ou europeu.
acerca dos direitos sociais que não são previstos expressamente em sua carta.
6
URBANO, op. cit,. p. 12.
7
Ibidem, p. 13
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DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E SUA LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E SUA LEGITIMIDADE

De nossa parte, gostamos e muito deste conceito, não somente porque une os dois 2 LEGITIMIDADE
modelos de Justiça Constitucional - o modelo de controle difuso norte-americano da judicial
review of legislation de efeitos interpartes com o modelo de controle concentrado clássico Voltamos a trazer a polêmica: Em países de constituição rígida como a brasileira,
europeu da Verfassungsgerichtsbarkeit de efeitos erga omnes - o que cai com perfeição é mesmo necessário discorrer acerca da legitimidade da Justiça Constitucional? Afinal,
de luva ao caso brasileiro, mas sobretudo porque ressalta que a Justiça Constitucional se nos detivermos tão somente na questão competencial, i.e., da Constituição em seu
é uma atividade jurisdicional comprometida não apenas com a mera (declaração da) sentido orgânico como o instrumento jurídico que fixa as atribuições entre os Poderes e
constitucionalidade das leis, mas também com a aplicação da Constituição. Isto para uma vez sendo a Constituição a norma suprema, a legitimidade da Justiça Constitucional
nós muda tudo, não se tratando de um joguete de palavras. Ao optar em fixar a atividade não se resolveria já daí? Noutras palavras, a atuação da Justiça Constitucional não é
da jurisdição constitucional não em anular ou validar as leis tidas por (in)constitucionais, desde logo legítima porque o Poder Constituinte originário assim o quis? Ou ainda, a
mas sim, em objetivar a aplicação das normas constitucionais, o papel da Justiça Justiça Constitucional precisa mesmo ter esta legitimidade democrática? A quem serve,
Constitucional alça outro relevo, do que pode resultar um sem número de implicações ao final e ao cabo, cotejar a Justiça Constitucional com a democracia?
na vida prática, como por exemplo, a admissão de novas técnicas de decisão em sede É curial observar que os críticos da Justiça Constitucional sempre o fazem em
de controle da constitucionalidade das leis ou atos normativos8 . Bem entendido, este nome do ideal democrático, nos termos da famosa “dificuldade contramajoritária” de
conceito formal de Justiça Constitucional trazido por Reys melhor se coaduna com a Bickel, que entendemos por bem reproduzir aqui: “o judicial review é uma força contra-
hodierna superação do positivismo estrito, onde o papel dos juízes se subscrevia a serem majoritária em nosso sistema [...] Quando a Suprema Corte declara inconstitucional uma
tão somente “la bouche de la loi”, do que resultava, via de consequência, em conceber a lei provinda do legislativo [...] ela frustra a vontade dos representantes das pessoas reais
jurisdição constitucional como um mero legislador negativo, a retirar do ordenamento as do aqui e agora [...].” 11
normas ordinárias reputadas inconstitucionais. Ora, se tal dificuldade pode ser levantada de boa-fé em países de sólida tradição
Embora seja um consenso que o modelo clássico kelseniano não nos sirva mais democrática, o mesmo poderia se dar na América Latina em geral, ou até em países
a contento ante a complexidade de nossas sociedades plurais e globalizadas, até onde periféricos do capitalismo mundial, como Portugal, Espanha e Itália? Afinal, se o Brasil
possa ir a Justiça Constitucional é uma questão fraturante entre os juristas, um verdadeiro possui uma tradição constitucional esta é a de rompimento, de tempos em tempos, da
Ouroboros9 , que sempre retorna quando pensamos que tudo já havia sido dito a respeito, ordem constitucional. Nossa Carta Magna atual acaba de completar vinte e cinco anos,
quando tudo já parecia pacificado, bastando apenas uma dada questão de um único mas o que são vinte e cinco anos, na história do Brasil, afinal? Nossa última constituição
indivíduo chegar ao juiz constitucional para uma vez mais lançar-se fogo à velha lenha. não outorgada (a de 1946) não durou vinte anos; Antes dela, a de 1934, apenas três.
Em verdade, forçoso reconhecer que há uma tensão inerente à Justiça Constitucional, Com esta pontuação queremos dizer que pensar o papel da Justiça Constitucional,
eis que, desde os primórdios de sua criação, ela representou uma quebra de paradigma em um país de formação constitucional instável como a nossa é assaz relevante,
no sacrosanto princípio da separação dos poderes. Inegavelmente, a própria existência mas não faltarão – especialmente nestes tempos em que somente na última década
de uma Justiça Constitucional traz em seu bojo uma certa antinomia entre o Parlamento o Supremo Tribunal Federal (com acertos e erros, aqui e acolá) tem se posicionado
e o Judiciário, entre a democracia representativa e a autocracia judicial; entre o Estado contra a autocontenção – quem lhe esteja apto a lhe “podar as asas”. Neste sentido,
Democrático e o Estado de Direito, em uma última palavra. Donde, uma questão Garcia de Enterria12 já chamava a atenção para o fato de que os ataques à Justiça
naturalmente se coloca importante para os fins deste nosso trabalho, qual seja, a da Constitucional não costumam vir apenas da direita mas também da esquerda. É com
legitimidade da Justiça Constitucional, quer dizer, por que se admite que a decisão de um muita perspicácia que Enterria explica como o jacobinismo descambou facilmente para a
juiz ou mesmo de um corpo de juízes (que, inclusive, quase nunca nem mesmo decidem ditadura da esquerda, onde a visão de mundo do partido acabou por se sobrepôr sobre
unanimemente um caso), possa, em prol de interesses de particulares e em nome de todas as demais, donde a desconfiança do partido em relação a Justiça Constitucional.
direitos de cariz precipuamente principial, derrogar leis criadas pelo legislador ordinário,
o qual em suma representa a vontade da maioria da população10 ?

8
De logo ressaltamos que não nos coadunamos com nenhuma forma de criativismo teratológico da Justiça 11
BICKEL apud WALDRON, Jeremy. A Essência da Oposição ao Judicial Review. In: BIGONHA, Antonio Carlos
Constitucional, mas sim, como se verá mais tarde, que atividade judicial não se pode limitar às clássicas pos- Alpino; MOREIRA, Luiz (Org.). Legitimidade da jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
turas do constitucionalismo kelseniano. p. 94.
9
Símbolo alquímico representado por uma cobra a morder o próprio rabo, ensejando a ideia de eterno retorno. 12
ENTERRIA, Eduardo García de. La constitucíon como norma Y el tribunal constitucional. 4. ed. Navarra:
10
Verdadeira “questão socrática” posta por Reis Novais em sua primeira preleção na Disciplina Direito Constitu- Thonson Civitas, 2006. p. 173.
cional com o tema Justiça Constitucional e Direitos Fundamentais no Curso de Mestrado Científico, Faculdade
de Direito de Lisboa, outubro de 2011.

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DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E SUA LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E SUA LEGITIMIDADE

Tal observação é muito válida para o caso latino-americano, não somente por conta de Entretanto, esta idéia lançada por Schmitt de que o que se leva ao Tribunal
Cuba, mas sobremaneira porque o populismo de esquerda tem se consagrado em quase Constitucional não seria uma questão jurídica, mas sim e tão somente, uma apreciação
toda a parte nesta primeira década do novo século.13 política, permaneceu indelével. Ela subjaz, por exemplo, da posição de Waldron, expressa
Com isto pretendemos alertar que a defesa da democracia frente a Justiça em seu marcante artigo intitulado Direito e Desacordo (Law and Disagreement), escrito
Constitucional pode estar sendo feita não a bem da democracia, mas sim como uma em 1999. Para Reis Novais e outros tantos, a Waldron coube proferir “a mais poderosa
maneira de defesa da opinião das visões de mundo das maiorias conjunturais. Acerca e bem fundamentada contestação da Justiça Constitucional ”17 de nossa época.
disso falaremos mais abaixo. Sua influência é tão grande que seu nome é continuamente citado e imediatamente
Seja como for, razão assiste a Enterria14 quando aduz que por trás de toda a relacionado ao tema em voga.
celeuma acerca da legitimidade da Justiça Constitucional repousa o velho embate em Em apertada síntese, advoga Waldron que existe um desacordo profundo sobre
torno do mesmo problema: a relação entre direito e política. o conteúdo dos direitos fundamentais (seus contornos e limites). Este desacordo é
A despeito da legitimidade da Justiça Constitucional, pululam doutrinas as mais profundo não somente em virtude da indeterminabilidade dos termos empregados nas
diversas. Reis Novais as agrupa da seguinte forma: 15 De um lado, a corrente doutrinária declarações de direitos (não se contentando com sua resolução no plano interpretativo)
que nega de antemão qualquer legitimidade à Justiça Constitucional. Aqui, vale a pena mas também e notadamente porque ele diz respeito a questões que não são de somenos
registrar as formulações de Carl Schmitt e a Jeremy Waldron. importância, na medida em que “elas definem escolhas maiores que qualquer
A formulação de Schmitt vale o registro por ter sido a primeira, feita ainda na sociedade deve enfrentar, (...) escolhas que são o ponto focal da discordância moral e
década de vinte do século passado. Contestava ele a própria possibilidade de haver política em muitas sociedades.” 18
um verdadeiro conflito de ordem constitucional como também refutava a idéia de que Ademais, Waldron vaticina que, em verdade, não há verdadeiras confrontações
pudesse uma decisão judicial desta ordem ser promulgada conforme critérios unicamente sobre direitos a contrapor de um lado, defensores de direitos, e de outro, oponentes
jurídicos. Pior ainda, dizia ele: “El conflito sobre el contenido de la decisión normativo- de direitos.19 O que há para Waldron é uma discordância sobre diferentes concepções
constitucional (...) no es matéria judicial, sino la decisión política del legislador. Aunque dos direitos, não havendo também por que supor de antemão que “uma das partes da
se organice como um procedimento justizförmig, lo que se organiza em verdade es uma discordância não leve os direitos a sério.”20
instancia legislativa cuya función se apercebe como uma Cámara Alta, o bien de uma Do exposto, a solução deste desacordo profundo – que nem mesmo chega a
segunda primera Cámara.” 16 ser um verdadeiro confronto – não deve nem pode ser resolvido por quem não possui
Schmitt tentou, assim, chamar a atenção para os perigos da judicialização da legitimidade democrática, qual seja, a Corte Constitucional, devendo, ao contrário, ser
política, em que o governo passaria das mãos dos políticos eleitos para o “governo dos remetida para o processo democrático, forum por excelência do exercício do direito de
juízes” não eleitos. Embora este termo – “judicialização da política” – seja comumente participação de cada indivíduo integrante da sociedade. É o que conclui o doutrinador
invocado nos tempos hodiernos, a base na qual se assentava o argumento de Schmitt neozelandês já que não haveria como garantir que a Corte Constitucional entregasse
é totalmente inaproveitável, uma vez que sua idéia de Constituição não era a de lei uma resolução melhor que a do Parlamento.
fundamental (com supremacia hierárquica), mas sim a de decisão (política) fundamental. Não faltam críticas a este posicionamento. Há, contudo, quem divirja da idéia
Ora, não tendo, para Schmitt, a norma constitucional esta dimensão de sobrevalência central de Waldron (ou seja, quem defenda ser legítima a Justiça Constitucional), mas,
sobre as demais normas do ordenamento, não haveria sentido em conceber o Judiciário na prática (baseando-se numa concepção meramente procedimentalista de democracia),
como defensor da Constituição, mas ao contrário, entregar tal tarefa ao Chefe de Estado. concorde com Waldron nos seus termos práticos, isto é, tanto a respeito da sobrevalência
O argumento de Schmitt foi apreciado pelo banco da História: Hitler não precisou derrogar do direito de igual participação política sobre os demais direitos fundamentais quanto
formalmente a Constituição de Weimar para a aniquilar por completo e sem muito esforço. acerca da limitação do controle da Corte Constitucional apenas na garantia de um
processo representativo igualitário. É onde se perfila, por exemplo, John Hart Ely.

13
Temos o chavismo na Venezuela, com suas versões no Equador e na Bolívia e, diriam alguns cientistas
políticos, o lulismo no Brasil? Ainda que não se admita isto muito facilmente no Brasil atual, o argumento que
tecemos ainda assim subiste, na medida que a solução de conciliação política do lulismo tem favorecido clara- 17
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: Trunfos Contra a Maioria. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 149.
mente a ascensão, de movimentos ultra conservadores dentro do Congresso Nacional, apoiados em especial Aliás, contestação feita por Waldron se dirige também contra “a própria ideia de constitucionalização de
na ideologia religiosa evangélica. direitos”, prossegue o Autor.
14
ENTERRIA, op. cit., p. 168. 18
WALDRON, Jeremy. A Essência da Oposição ao Judicial Review. In: BIGONHA, Antonio Carlos Alpino;
15
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 144 et MOREIRA, Luiz (Org.). Legitimidade da jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 133.
seq. 19
Ibidem, p. 112.
16
SCHIMITT apud ENTERRIA, Eduardo García de. La constitucíon como norma Y el tribunal constitucional. 20
WALDRON, Jeremy. A Essência da Oposição ao Judicial Review. In: BIGONHA, Antonio Carlos Alpino;
4. ed. Navarra: Thonson Civitas, 2006. p. 171. MOREIRA, Luiz (Org.). Legitimidade da jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 114.
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DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E SUA LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E SUA LEGITIMIDADE

Tal posicionamento doutrinário redunda em um controle de constitucionalidade fraco ou Ainda que tal associação implícita não ressoe mal aos ouvidos norteamericanos (que
débil ou, na melhor das hipóteses, sem maiores considerações acerca do conteúdo dos se abeberam de uma cultura muito mais liberal e individualista que a nossa), o mesmo
direitos. não se dá para nós, lusobrasileiros. Destarte, explica Reis Novais que a cedência
Há também quem aceite a justa em seus termos – isto é, uma hierarquia do poder de um direito fundamental se justifica em democracia a bem de outros interesses
sobre o direito, da democracia sobre o estado de direito, do processo eleitoral sobre jusfundamentais27 e após uma operação de objetiva ponderação. Assim, vaticina ele: “ter
os direitos fundamentais – mas refute peremptoriamente as conclusões a que chega um direito fundamental significará, então, ter um trunfo contra o Estado, contra o governo
Waldron. Assim, por exemplo, Sager21 admite que o controle de constitucionalidade democraticamente legitimado”.28
implique em certo défice democrático, mas enfatiza que existem ganhos compensatórios Fora isso, os direitos fundamentais – na precisa acepção de trunfos
com isso. Também Bickel e Rostow22 ao defenderem uma suposta função sócio- contramajoritários – representariam uma competência negativa ao legislador ordinário,
educativa da Corte. Igualmente, não faltam doutrinadores que tentam, ainda que quer dizer, gozariam de indisponibilidade perante o Legislador. Isto porque e tão somente
indiretamente, atribuir uma certa legitimidade democrática à Justiça Constitucional. Aqui, no tocante à igual dignidade que toca à cada pessoa no seio de sua comunidade,
Alexandre de Moraes23, conhecido constitucionalista brasileiro, parece falar em nome da dignidade esta que não pode ser suprimida pelo legislador ordinário, porque assim o
maioria tupiniquim:24 Ele defende, por exemplo, que a Justiça Constitucional seja fruto veda a ordem constitucional.29
da vontade do Legislador Constituinte, e, portanto, da soberania do povo. Aduz também Bem entendido, a premissa de Waldron até poderia ser correta se partíssemos da
que a composição dos Tribunais Constitucionais, cuja nomeação passa pela aprovação premissa de que os direitos fundamentais não fossem normas constitucionais, ou seja,
prévia dos Poderes Legislativo e Executivo e cujo pluralismo advém da divisão tripartite gozam de supremacia no ordenamento jurídico e são, em certo nível, oponíveis contra
entre seus membros oriundos da Magistratura, do Ministério Público e da Advocacia, o Estado. Não é de todo o modo errado afirmar que o desacordo seja político (porque
tudo isso, confira legitimidade democrática à Justiça Constitucional. implica em juízo de valor, de valor moral), mas ele também é jurídico, isto é, constitui
Por seu turno, S. Raz 25 critica a democracia representativa partidária como um problema de direito e de Direito Constitucional inclusive ante a jusfundamentalidade
método efetivo de garantir o direito de igual participação política. Muito similar a posição em questão. Em verdade, o que Waldron faz não é senão defender de antemão que a
daqueles que contrapõem à democracia procedimentalista o conceito de democracia escolha que os governantes fizeram sobre este patamar mínimo deve ser respeitado, o
substancial que incorpora a proteção mais efetiva das minorias. Nesta visão, a atuação que não é outra coisa senão defender, à custa de muita retórica, que a ponderação de
da Justiça Constitucional, no controle da constitucionalidade, não estaria a malferir bens feita pelo governo deve ser imposta sem possibilidade de contestação no plano
a democracia, mas sim, a assegurá-la. Digno de registro, neste ponto, o modelo de jurídico. Ora, se isto não é sinônimo de negar a força da Constituição não sabemos mais
democracia constitucional de Dworkin. o que não o possa ser.
Todavia, como alerta Reis Novais 26 , todos os posicionamentos descritos acima, E prossegue Reis Novais30 , com argúcia, que o desacordo profundo não seria
embora representem importantes críticas a Waldron, têm como pano de fundo, a defesa então incidente sobre o conteúdo do direito, mas sim, sobre a violação do direito
da democracia como um valor intrinsecamente maior. fundamental pelo Poder Público. Por via de consequência, se é de violação concreta
Com efeito, o Professor de Lisboa parte da conhecida metáfora dos direitos que estamos tratando, a questão competencial exsurge cristalina: quem deve arbitrar se
como trunfos cunhada por Dworkin, mas faz um outro uso dela, ou melhor, lhe a escolha do Poder Público foi ou não devida? Ele mesmo ou um poder independente e
faz um uso constitucionalmente mais adequado, pois a noção dworkiana de neutro? Quais destas duas possibilidades melhor serve ao cidadão senão a de atribuir
“trunfo”, alerta Reis Novais, em si carrega a noção do direito fundamental como esta tarefa ao juiz constitucional, que nada deve ao sistema representativo? Ora, ao
um direito individual, válido, embora contrário aos fins coletivos de bem comum. se identificar o Estado de Direito com o Estado de direitos fundamentais; Ao conceber
os direitos fundamentais como garantias contramajoritárias, não haveria outro modo de
arbitramento do confronto concreto entre o interesse do particular (ou de uma minoria)
e o interesse da maioria, senão entregá-lo a um órgão estatal independente, no caso, a
Justiça Constitucional.31
21
SAGER apud NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: Trunfos Contra a Maioria. Coimbra: Coimbra,
2006. p. 147.
22
ENTERRIA, Eduardo García de. La constitucíon como norma Y el tribunal constitucional. 4. ed. Navarra:
Thonson Civitas, 2006. p. 204.
27
O que Reis Novais denomina de “razão pública” em seu citado artigo.
23
Vide seu conhecidíssimo artigo “Da Legitimidade da Justiça Constitucional”. Disponível em: <www.estig.
28
Ibidem, p. 17.
ipbeja.pt/~ac_direito/ALEXANDRE_MORAES.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2012.
29
Melhores considerações a respeito do princípio estruturante da dignidade da pessoa humana será tratada
24
Embora este adjetivo seja mais empregado em tom pejorativo, nós aqui o usamos no sentido de nossos em apartado no transcorrer deste trabalho.
autores românticos que viam no indígena o que de mais autêntico havia no “ser” brasileiro.
30
NOVAIS, op. cit., p. 141 et seq.
25
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 153.
31
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 174: “Dar
26
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 144 et ao ‘adversário’ no jogo a possibilidade de certificar pontualmente a qualidade de trunfo, não só subverteria as
seq. regras do jogo, como acabaria com a própria idéia de trunfo.”
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Noutras palavras, o controle de constitucionalidade não tem como finalidade dizer incluídas as processuais, importantíssimas na medida em que institucionalizam o debate
o conteúdo do direito ou pôr à prova a escolha política do governante, mas sim, cotejar (fazem as partes envolvidas trazerem suas razões) ao tempo em que o racionalizam
esta escolha com os parâmetros postos pela Constituição para dizê-la que é ou não uma (impedindo decisões arbitrárias).
restrição indevida de um direito particular do cidadão. 32 Neste sentido, uma expressão tão cara à recente doutrina brasileira como
Bem entendido, o controle judicial sobre a ação estatal é devido à partida porque “legitimidade democrática” da Justiça Constitucional é um contradição em si mesmo, pois
vivemos sob a égide de um estado de direito. Agora, o seu modus operandi e sua a Justiça Constitucional não cabe ser questionada em termos de democracia. Muito pela
extensão já são outra coisa. A questão então que se deva colocar não é tanto a de contrário, ela tem de ser, somente pode ser, questionada em termos de estado de direito.
legitimidade da Justiça Constitucional - eis que esta resulta diretamente do Estado de Ou seja, tanto do ponto de vista da competência quanto do ponto de vista substantivo,
Direito, não carecendo de modo algum de advir do regime democrático – mas sim, a de aqui identificado com o princípio da dignidade da pessoa humana. O jogo tem que ser
discussão dos seus limites, pois, se não nos interessa seja a Justiça Constitucional um jogado nestes termos e não do outro (nos termos da democracia).
mero legislador negativo, como o era na limitada concepção kelseniana de seu tempo – Mas voltemos a Waldron para dar cabo desta polêmica de uma vez por todas:
incapaz, como sabido, de impedir a ascensão do nazifascismo -, também não convém, Em outro importante (mas não tão famoso) artigo escrito em 2006 que complementa
ou, pior, prejudica mais ainda, que ela se converta em verdadeiro legislador positivo33, o sentido do primeiro, intitulado “A essência da oposição ao judicial review”37, ele tenta
ou pior, como denominamos nós, em “legislador paralelo”. Afinal, como bem diz Renato esboçar uma defesa definitiva de seu argumento, cotejando-o com posicionamentos
Vieira, “o déficit de legitimidade (da Justiça Constitucional) pode decorrer (tanto) do de S. Ratz, Dworkin, dentre outros. Ali, Waldron tece alguns pormenores a respeito de
excesso de atuação jurisdicional em alguns pontos (quanto) na falta de atuação em seu posicionamento inicial, feito há dezessete anos antes ao tempo em que lança mão
outros.” 34 de outros. Curioso observar que ele começa seu artigo citando a decisão do Supremo
De nossa parte, vamos um pouco mais além na crítica Waldron: Tomando de Reis Tribunal Judicial de Massachusetts que julgou inconstitucional, com supedâneo no devido
Novais suas concepções a respeito da identificação a grosso modo do estado de direito processo legal e na isonomia, nas leis estaduais sobre casamento gay.
com os direitos fundamentais e da democracia com a regra da maioria e concebendo, Pois bem, Waldron afirma que sua refutação da legitimidade da justiça constitucional
como de fato concebemos, a razão de ser de uma Constituição a limitação do poder não é incondicional.38 Antes, se subordina à existência prévia de certas pressuposições
face os indivíduos que compõe a sociedade, assumimos que a democracia não é nem (pré-condições), a saber39: existência de instituições democráticas e judiciais sólidas,
pode ser um valor intrinsecamente maior na hora de sopesar de um lado, o princípio do boa-fé dos membros da sociedade e dos governantes em discutir direitos e finalmente o
estado de direito e, de outro, o princípio democrático, como se no conflito entre um e compromisso de todos em construir uma sociedade inclusiva.
outro já houvesse uma regra prévia a determinar de antemão o resultado deste embate. E avança. Com suas próprias palavras: “O que acontece com a argumentação
Absolutamente. Bem entendido, o princípio da separação de poderes exsurge com um contra o judicial review se as pressuposições não forem satisfeitas? Nos casos em que as
viés eminentemente instrumental. 35 pressuposições não se sustentam, a argumentação contra o judicial review apresentada
Ademais, tomando empréstimo a concepção de Luhmann de Constituição como neste ensaio não subsiste.” 40
acoplamento estrutural entre política e direito36, se denota que o Direito Constitucional Pois bem, não seria este precisamente o caso da América Latina, onde a
é este especialíssimo ramo do Direito em que a política e o direito se encontram, implantação e implementação tanto da democracia quanto do estado de direito são débeis
se interpenetram e se influenciam mutuamente, de modo que qualquer eventual e frágeis, sempre sofrendo soluções de continuidade? Ainda, afirmamos nós, se todo o
antinomiaentre estes dois fenômenos só pode ser resolvido pelo operador do Direito em argumento de Waldron é erguido tendo como primeira premissa a relevância do direito
cada caso concreto e tomando como leme sempre as normas constitucionais, aqui de igual participação, em que medida isto se encontra enraizado na história da América
Latina? Aqui, a consciência da cidadania não foi erguida com base no direito ao voto,
mas sim, com base nos direitos sociais. A América Latina nunca assistiu a construção
32
É a conclusão de raciocínio a que chega Reis Novais, na obra já citada. de seu estado de direito como uma revolução da classe burguesa. Ao contrário: o que
33
Como adverte Reis Novais ao tratar da Supreme Court, o perigo é a Justiça Constitucional “se transformar
em instância militante de uma particular mundividência”, “Direitos fundamentais: Trunfos Contra a Maioria
se instalou na América Latina foi só e tão somente o estado de legalidade, em que o
[...]”, NOVAIS, op. cit., p. 41. império da lei foi usado como bandeira dos valores das elites brancas dominantes frente
34
VIEIRA, Renato Stanziola. Jurisdição Constitucional Brasileira e os limites de sua legitimidade democrática. a maioria da população indígena ou negra. Destarte, o Parlamento nunca foi para o
Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 268 cidadão latino-americano comum o local por excelência da defesa dos seus direitos.
35
NOVAIS, op. cit, p. 203 “Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em Estado de Direito Democráti-
co[...]”, “[...]no Estado de Direito material de nossos dias, deve haver a consciência da instrumentalidade do 37
WALDRON, Jeremy. A Essência da Oposição ao Judicial Review. In: BIGONHA, Antonio Carlos Alpino;
primeiro princípio, a separação de poderes, relativamente aos segundos, os direitos fundamentais. A derra-
MOREIRA, Luiz (Org.). Legitimidade da Jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 133.
deira racionalidade subjacente aos mecanismos de competência e de separação de poderes constantes na 38
Ibidem, p. 98.
Constituição é a de assegurar a prossecução optimizada dos direitos fundamentais.” 39
Ibidem, p. 106.
36
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o estado democrático de direito a partir e além 40
Ibidem, p. 153.
de Luhmann e Habermas. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 102.

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DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E SUA LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E SUA LEGITIMIDADE

Com efeito, a cidadania da América Latina se construiu em torno dos direitos sociais, daí REFERÊNCIAS
porque as liberdades positivas nos são tão caras. Daí porque nutrimos uma desconfiança
desmedida no legislador ordinário e entregamos nossas esperanças – numa intensidade DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,
que choca um observador europeu - nos juízes. 2010.
Destarte, na América Latina, prenhe de grupos sociais historicamente
ELY, John Hart. Democracia e desconfiança. Uma teoria do controle judicial de
marginalizados, a desconfiança que Sager41 lança contra a boa fé dos parlamentos
constitucionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
assume contornos ainda mais alarmantes.
Neste sentido, mister trazer a lume o seguinte registro: “Se nos velhos e assentados ENTERRÍA, Eduardo García de. La constitucíon como norma Y el tribunal constitucional.
sistemas jurídicos com instituições de justiça constitucional existe um certo debate sobre 4. ed. Navarra: Thonson Civitas, 2006.
qual é o fundamento democrático da existência da Justiça Constitucional, em outros
MORAES, Alexandre de. Legitimidade da justiça constitucional. Revista Diálogo Jurídico.
países, e em especial na América Latina, a questão é em certo sentido a contrária, i.e.,
Salvador, Ano I, v. I, n. 08, nov. 2001. Disponível em: <www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/
que a Justiça Constitucional se converte em um elemento muito importante de legitimação
ALEXANDRE_MORAES.pdf>. Acesso em 24 ago. 2012.
do sistema democrático.” 42
______. (Org.) Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988.
3 CONCLUSÃO 39. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de
A melhor interação entre democracia e estado de direito resultará da aceitação de
Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,
uma tensão potencial entre democracia e estado de direito.
2012.
O estado de direito tem como sua nota distintiva a garantia de salvaguarda do
indivíduo contra o livre arbítrio estatal. Esta característica essencial se traduz na NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra,
construção de um sistema de direitos fundamentais, devendo estes ser entendidos como 2006.
trunfos contramajoritários.
______. Direitos fundamentais e justiça constitucional em estado de direito democrático.
O Holocausto representou não somente um ponto de viragem na concepção acerca
Coimbra: Coimbra, 2012.
da natureza e da força dos direitos fundamentais como foi determinante, na Europa
Continental, para que se atribuíssem novos poderes aos Tribunais Constitucionais. De URBANO, Maria Benedita. Curso de justiça constitucional. Evolução histórica e modelos
igual forma, no caso norteamericano, o papel da Suprema Corte na luta pelos direitos de controlo da constitucionalidade. Coimbra: Almedina, 2012.
civis foi decisivo, qual seja, a de que proteção efetiva de direitos não pode ser feita com
VIEIRA, Renato Stanziola. Jurisdição constitucional brasileira e os limites de sua
simples discursos ou categorias jurídicas vazias.
legitimidade democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
Bem entendido, há de haver instituições estatais politicamente neutras e
juridicamente compromissadas com os princípios estruturantes da igualdade e da WALDRON, Jeremy. A Essência da oposição ao judicial Review. In: BIGONHA, Antonio
dignidade da pessoa humana para realizarem, o apuramento entre as razões dos grupos Carlos Alpino; MOREIRA, Luiz (Org.). Legitimidade da jurisdição constitucional. Rio de
minoritários e das maiorias conjunturais. Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 93-157.
Tal apuramento é uma função da Justiça Constitucional que não fere, destarte, o princípio
da separação dos poderes.
Por fim, o debate em torno da legitimidade da Justiça Constitucional jamais
poderá ser levado a cabo tomando de empréstimo concepções generalistas advindas de
doutrinadores estrangeiros, por mais notáveis que sejam. Nisto, Reis Novais43 e o próprio
Waldron 44 convergem: a resposta para este debate é forçosamente cultural. Quem quer
que não se faça esta ressalva, pensamos nós, incorre em inescusável má-fé intelectual.

41
SAGER apud NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006. em Estado de Direito à capacidade de deliberação (ou redeliberação) das assembleias parlamentares, deci-
p. 147. dindo segundo os parâmetros da razão pública.”
42
VIEIRA, Renato Stanziola. Jurisdição Constitucional brasileira e os limites de sua legitimidade democrática.
44
WALDRON, Jeremy. A Essência da Oposição ao Judicial Review. In: BIGONHA, Antonio Carlos Alpino;
Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 279. MOREIRA, Luiz (Org.). Legitimidade da jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 97:
43
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: Trunfos Contra a Maioria. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 146, a “Uma razão conexa para separar a substância da estrutura da crítica teórica é o fato de que o judicial review
contrario sensu: “De nossa parte, admitimos que haja ambientes culturais e políticos em que, pelo menos con- constituir uma questão para outros países que têm uma história diferente, uma cultura judicial diferente e
junturalmente e em períodos não críticos, não seja desrazoável confiar a garantia dos direitos fundamentais diferentes experiências com instituições legislativas, em comparação com as dos Estados Unidos.”
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A DELAÇÃO PREMIADA E A FALÊNCIA DO ESTADO NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO GARANTISMO PENAL

A DELAÇÃO PREMIADA E A FALÊNCIA DO ESTADO NA INVESTIGAÇÃO Nesse trilhar pode-se dizer que se o homicídio atinge a família de alguém
CRIMINAL: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO GARANTISMO PENAL importante, transformemo-lo em crime hediondo (caso Daniela Perez e Lei nº 8.930/94);
se o crime de tráfico cresce aumentemos suas penas (Lei. 11.343/06); se fotos íntimas de
Madson Thomaz Prazeres Sousa*
uma celebridade são divulgadas na rede mundial de computadores, em tempo “record”
aprovemos uma lei que criminaliza de modo extremamente amplo e confuso delitos
EMENTA informáticos (caso Carolina Dieckmann e a Lei nº 12.745/12) e, dentro em breve: se
O estudo busca avaliar a evolução legislativa da delação premiada e as mais recentes crianças cometem crimes (atos infracionais) porque ainda não reduzimos a maioridade
modificações, pretendendo demonstrar que não se trata de uma nova investida no âmbito penal?
da justiça negociada, apenas mais uma técnica investigativa criada para solucionar a Segundo o Mapa da Violência², a taxa de homicídios da população total, que em
falência da investigação criminal. Desse modo, partindo de uma perspectiva garantista, 1996 era de 24,8 por 100mil habitantes, cresceu para 27,1 em 2011, o que demonstra
demonstrar-se-á que os fins almejados pelo Estado não são idôneos a justificar o uso da que a maior repressão não surtiu efeito prático na redução da criminalidade. Por outro
delação premiada, como técnica investigativa, nos termos propostos pelas mais recentes lado, em 2006, o sistema penitenciário brasileiro contava com 47.472 pessoas presas
modificações legais. por tráfico no país, ao passo que em 2012, registrou-se 132.051 presos por esta razão³.
Ora, se percebe que esse tipo de lei – fruto de um Congresso Nacional em crise
PALAVRAS-CHAVE: Delação Premiada. Direito Penal de Emergência. Justiça ético-moral representativa, crise esta que, por sua vez, tem origem numa indispensável
Negociada. Técnica Investigativa. Garantismo. reforma política, mas que as linhas deste trabalho também não seriam capazes de
compreender... – cuja proposta é solucionar as grandes mazelas nacionais, mas que se
1 INTRODUÇÃO aplicam apenas às consequências delas, estão muito longe de solucionar os problemas
que se propõe a enfrentar.
A sociedade brasileira contemporânea vem sendo bombardeada diariamente com É nesse panorama que pretendemos analisar as inovações legislativas sobre o
soluções que, num passe de mágica, resolveriam todos os problemas que fazem deste instituto da delação premiada, considerando que a proposta legal é solucionar a grave
país uma nação subdesenvolvida, dotada de um potencial econômico surpreendente, deficiência dos meios de investigação, alicerçada numa suposta excepcionalidade e sob
mas, que não consegue trazer condições de vida dignas para a imensa parte da o fundamento de um direito penal de emergência, razão pela qual exsurge a mesma
população. como um necessário meio de investigação cada vez mais rebuscado.
De modo geral são leis, muitas delas originadas medidas provisórias que Destarte, após uma análise acerca de evolução histórica do Instituto, investigar-
desrespeitam flagrantemente os requisitos constitucionais para sua edição, cuja se-á a essência do modelo premial adotado através do conceito de delação premiada,
pretensão é solucionar de alguma forma as principais consequências dos grandes suas características, bem como sua inspiração na experiência estrangeira, ao fim
problemas nacionais. Ora, se as pessoas pobres estão passando fome, vamos lhes pretende-se desenvolver uma crítica quanto à sua utilização, norteando-se sempre pela
dar comida (Bolsa Família), se faltam médicos no interior, trazemos médicos de fora busca de um processo penal acusatório inserto no modelo garantista.
(Programa Mais Médicos); se os jovens negros não estão na Faculdade, façamos cotas.
Na seara criminal esse fenômeno também se manifesta no que se convencionou
denominar leis penais de emergência, que criam um sistema penal simbólico cuja única
finalidade é atender ao clamor popular, que por sua vez em grande parte é fruto de uma
exposição midiática criteriosamente manipulada.
Não é o espaço oportuno, contudo, para discussão acerca dos benefícios,
malefícios e ponderação de interesses nos citados programas federais mas, através da
experiência específica destas modificações e inovações nas legislações penais, pode-se
ter certeza que nunca tangenciaram a raiz dos problemas.

*
Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador, Pós-Graduando em Ciências Criminais pela
Universidade Católica do Salvador. Membro do IBCCRIM. Servidor Público Estadual no Ministério Público do 2
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Homicídio e juventude no Brasil: O Mapa da Violência 2013. Brasília, 2013. Dis-
Estado da Bahia. ponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2013/mapa2013_homicidios_juventude.pdf> Acesso em:
¹ Artigo Científico apresentado ao Curso de Direito da Universidade Católica do Salvador, como requisito 07 nov. 2013.
para obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a orientação da professora Thaize de Carvalho Correia, 3
Dados Infopen. Disponível em:
Advogada, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, Professora Substituta Direito <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=&par
Processual Penal da Universidade Federal da Bahia e Professora de Direito Processual Penal da Universidade ams=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-24D28407509C%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-
Católica do Salvador. 4347-BE11-A26F70F4CB26%7D> Acesso em: 07 nov. 2013.
REVISTA DO MPBA 98 99 REVISTA DO MPBA
A DELAÇÃO PREMIADA E A FALÊNCIA DO ESTADO NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO GARANTISMO PENAL A DELAÇÃO PREMIADA E A FALÊNCIA DO ESTADO NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO GARANTISMO PENAL

2 A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA: DE CAUSA GERAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA À Um século após, a delação premiada ressurgi no país com a Lei n.º 8.072, de
CONDIÇÃO IMPEDITIVA DE DEFLAGRAÇÃO DA AÇÃO PENAL 26 de julho de 1990, Lei dos Crimes Hediondos que no parágrafo único do seu artigo
8º assim disciplinou: “o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando
Em terraes brasilis4 a delação premiada tem longa história. Segundo o professor ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois
Damásio de Jesus5, ainda nas Ordenações Filipinas, que vigoraram de janeiro de 1603 terços”. Ressalte-se que a mesma lei introduziu dispositivo semelhante no Código
até a entrada em vigor do Código Criminal do Império de 1830, precisamente no Título Penal, precisamente o § 4º do art. 159 permitindo ao coautor denunciante, que facilitar a
VI, que definia o crime de “Lesa Magestade” assim como no Título CXVI, encontram-se libertação do sequestrado igual redução.
os arcabouços históricos do instituto sob a rubrica “Como se perdoará aos malfeitores Neste primeiro momento a Delação Premiada – que ao longo das últimas décadas
que derem outros á prisão”.6 recebeu diversos nomen iuris9 – caminhava timidamente como uma causa geral de
Embora diga-se que no Código do Império de 1830 o instituto havia sido abolido, diminuição, restrita ao crime de bando ou quadrilha, cuja finalidade era estimular por
ainda que não faça menção expressa à delação, o aludido diploma faz referência, pois em meio de uma redução na pena corporal a denúncia por parte dos membros daquela com
seu art. 7º, que tratava dos crimes de “abuso de liberdade de comunicar os pensamentos”, o fito de permitir o desbaratamento da quadrilha.
ao tempo em que criminalizava todos aqueles responsáveis pela impressão, distribuição, Em seguida, precisamente em 04 de maio de 1995 era publicada a Lei de
venda entre outros e, de certo modo, premia àqueles que informarem o autor dos escritos Organizações Criminosas, cujo instituto recebeu a singela nomenclatura de colaboração
com o perdão judicial (isenção de pena). 7 espontânea mas, cujos efeitos eram similares: causa geral de redução de pena, no
Tratamento diverso é emprestado àqueles mesmos crimes no Código Penal patamar de um a dois terços desde que a dita colaboração levasse ao esclarecimento
de 1890. O Governo percebendo que estes criminosos, quais sejam, os autores, das infrações penais e sua autoria, nos termos do texto, daquela legislação ora revogada.
vendedores e até mesmo os donos da tipografia ou jornal – que à época eram os grandes No mesmo ano, a Lei nº 9.080 acrescentou o §2º, ao art. 25 da Lei dos Crimes de
inimigos do Estado – não se sujeitaram àquela barganha prevista no Código do Império, Colarinho Branco (Lei nº 7.492/86), cuja redação determinava que o coautor ou partícipe
transformaram o delito numa “responsabilidade solidária”, precisamente em seu art. 22. 8 que através de confissão espontânea revelasse à autoridade policial ou judicial toda a
trama delituosa teria a sua pena reduzida de um a dois terços. Nesta lei o instituto leva a
rubrica de confissão espontânea mas, para fazer jus a redução de pena deverá o agente
revelar “toda a trama delituosa”.
4
Expressão cunhada por Luiz Lênio Streck em Hermenêutica, Estado e Política: uma visão do papel da
Constituição nos países periféricos, que retrata o modo singular como os institutos jurídicos são adaptados no
Brasil. In: CADEMARTORI, Daniela Mesquita Leutchuk; GARCIA, Marcos Leite (Org.) Reflexões sobre Política
e Direito: homenagem aos Professores Osvaldo Ferreira de Melo e Cesar Luiz Pasold. Florianópolis: Conceito
Editorial, 2008. p. 229.
5
JESUS, Damásio E. de. Estágio atual da “delação premiada” no Direito Penal brasileiro. Jus Navigandi, Te-
resina, ano 10, n. 854, 4 nov.2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7551>. Acesso em: 07 nov. 2013.
6
ORDENAÇÕES Filipinas. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1272.htm> Acesso em: 07
nov. 2013.
7
”1º O impressor, gravador, ou lithographo, os quaes ficarão isentos de responsabilidade, mostrando por es-
cripto obrigação de responsabilidade do editor, sendo este pessoa conhecida, residente no Brazil, que esteja
no gozo dos Direitos Politicos; salvo quando escrever em causa própria, caso em que se não exige esta ultima
qualidade.
2º O editor, que se obrigou, o qual ficará isento de responsabilidade, mostrando obrigação, pela qual o autor se § 1º Si a typographia, lithographia, ou jornal pertencer a entidade collectiva, sociedade ou companhia, os ge-
responsabilise, tendo este as mesmas qualidades exigidas no editor, para escusar o impressor. rentes ou administradores serão solidariamente responsaveis para todos os effeitos legaes.
3º O autor, que se obrigou. § 2º Serão também responsáveis:
4º O vendedor, e o que fizer distribuir os impressos, ou gravuras, quando não constar quem é o impressor, ou a) o vendedor ou distribuidor de impressos ou gravuras, quando não constar quem é o dono da typographia,
este fôr residente em paiz estrangeiro, ou quando os impressos, e gravuras já tiverem sido condemnados por lithographia, ou jornal, ou for residente em paiz estrangeiro;
abuso, e mandados supprimir. b) o vendedor ou distribuidor de escriptos não impressos, comunicados a mais de 15 pessoas, si não provar
5º Os que communicarem por mais de quinze pessoas os escriptos não impressos, senão provarem, quem quem é o autor, ou que a venda ou distribuição se fez com o consentimento deste.
é o autor, e que circularam com o seu consentimento: provando estes requesitos, será responsavel sómente Art. 23. Nestes crimes não se dá cumplicidade, e a acção criminal respectiva poderá ser intentada contra qual-
o autor.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso em: 27 nov. quer dos responsáveis solidários, a arbitrio do queixoso.
2013. Decreto n. 847 de 11 de outubro de 19890. Promulga o Código Penal. Disponível em: <http://legis.se-
8
Art. 22. Nos crimes de abuso da liberdade de communicação do pensamento são solidariamente responsa- nado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=847&tipo_norma=DEC&data=18901011&link=s> Acesso
veis: em: 27 nov. 2013.
a) o autor;
9
Embora o Professor Damásio de Jesus considere significantes diferenças entre voluntariedade e espontanei-
b) o dono da typographia, lithographia, ou jornal; dade, partiremos do pressuposto de que, como de costume, a divergência entre as nomenclaturas usadas nas
c) o editor. leis é fruto da má técnica legislativa costumeira em nosso Congresso, razão pela qual consideraremos neste
trabalho que se referem ao mesmo instituto.
REVISTA DO MPBA 100 101 REVISTA DO MPBA
A DELAÇÃO PREMIADA E A FALÊNCIA DO ESTADO NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO GARANTISMO PENAL A DELAÇÃO PREMIADA E A FALÊNCIA DO ESTADO NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO GARANTISMO PENAL

Na Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98), surgi no § 5º do art. 1º a figura do Na atual Lei Antidrogas (Lei nº 11.343/06), o instituto vem sobre a rubrica de
“colaborador espontâneo”, cuja finalidade era prestar esclarecimentos que conduzissem Colaboração Voluntária, nos termos do art. 41 do referido diploma e, no mesmo caminho
à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou dos anteriores, prevem uma redução de um a dois terços da pena.
valores objeto do crime. Neste caso, outras benesses eram permitidas, além da redução Em 2011 fora promulgada a Lei nº 12.529 que estruturou o Sistema Brasileiro de
no mesmo patamar citado, poderia o colaborador iniciar o cumprimento de pena em Defesa da Concorrência permitindo ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica
regime aberto, e mais, poderia ainda o magistrado – sem qualquer parâmetro, diga-se – – CADE, em seu art. 86, celebrar aquilo que denomina de “acordo de leniência” com as
deixar de aplicá-la (perdão judicial) ou substituir por pena restritiva de direitos, ainda que seguintes consequências penais: a) a suspensão do curso do prazo prescricional e b)
ausentes os requisitos previstos no Código Penal10. impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência,
No final da década de 90, percebeu-se que a ausência de proteção tanto às nos crimes contra ordem econômica (Lei nº 8.137/90), nos demais crimes diretamente
testemunhas como àqueles que porventura viessem a delatar os comparsas prejudicava relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei de Licitações (Lei nº
sobremodo a investigação – posto que os coautores não sentiam seguros para imputar o 8.666/93) e no delito de associação criminosa (art. 288 do Código Penal). Há ainda
fatos criminosos aos comparsas – assim como prejudicava, quando não inviabilizava, a previsão legal de que, cumprido o “acordo de leniência” extingue-se automaticamente a
própria condenação uma vez que também as testemunhas não tinham um apoio estatal punibilidade dos referidos crimes.
claramente definido caso sentissem-se ameaçadas. Vislumbra-se aqui uma flagrante violação à titularidade da ação penal pública.
Nesse panorama, em 13 de julho de 1999, foi instituído o Programa Federal de É consabido que, consoante expressa previsão constitucional, ao Ministério Público foi
Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, através da Lei nº 9.807, com a consagrado privativamente o exercício da ação penal pública. Dessarte, muito embora
promessa de que a partir de sua vigência, inúmeros crimes passariam a ser esclarecidos possa o Estado através do CADE celebrar acordo em que transacione ação e as
e importante instrumento estaria apto a auxiliar a diminuição dos alarmantes índices de penalidades administrativas, não nos parece compatível com a Constituição a previsão
violência. de que tal acordo venha a impedir o Parquet de desempenhar o seu papel constitucional.
No capítulo “Da Proteção aos Réus Colaboradores”, a novel legislação permite A mais recente investida surge na Lei 12.850/2013 que propõe-se a definir a
ao juiz conceder o perdão judicial e consequente extinção da punibilidade desde que organização criminosa e os meio de investigação, dentre eles, a colaboração premiada.
preenchidos alguns requisitos: ser o acusado primário e a colaboração “efetiva e voluntária” Neste novel legislativo há uma sistematização detalhada do instituto, que o aproxima
resulte na i) identificação dos coautores; ii) localização da vítima com a sua integridade consideravelmente da americana plea bargaining, como veremos adiante.
física preservada; iii) recuperação total ou parcial do produto do crime. Entre os pontos relevantes deve-se destacar uma questão que muito irá se discutir
Em 2002, a malfadada Lei nº 10.409, cujo objeto era o tráfico ilícito de entorpecentes, acerca da possibilidade de aplicação do procedimento nela previsto aos demais casos
mas foi revogada pouco tempo depois pela Lei nº 11.343/06, ante a enorme quantidade em que a Delação Premiada é permitida. Ora, há um tratamento muito mais benéfico ao
de dispositivos vetados – todas as condutas criminosas (arts. 14 a 26), por exemplo – delator e, como se viu, o instituto não é prerrogativa das organizações criminosas.
previa nos §§ 2º e 3º do art. 32 o sobrestamento do processo ou a redução da pena Por outro lado, deve-se anotar a possibilidade intervenção direta do Delegado de
ao indiciado que, espontaneamente, revelasse a existência de organização criminosa, Polícia, legitimado agora para firmar os acordos de colaboração, consoantes disposto
permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da no art. 4º, § 2º, na medida em que com a manifestação do Ministério Público, poderá
substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, contribuísse para os interesses requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda
da Justiça. Havia ainda previsão de que caso a revelação fosse posterior à Denúncia, que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, remetendo-se, no que
poderia o juiz, ao proferir a sentença, deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la, de um sexto couber (?), ao art. 28 do CPP, que determina a possibilidade de o Juiz, ao discordar do
a dois terços. posicionamento do órgão Ministério Público ao requerer o arquivamento do inquérito
policial, remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça a fim de que este ofereça a
Denúncia, designe outro órgão ou mantenha o entendimento pelo arquivamento quando
o juiz estará obrigado a atendê-lo.
Nesse ponto a crítica do Professor Eugênio Pacelli é ferrenha sob a ótica de que o
acordo poderá extinguir a persecução penal em relação a determinado agente, viabilizar
a redução ou substituição da pena condicionando a sentença e promover a extinção da
punibilidade. Pacelli assenta a inconstitucionalidade do dispositivo em face da invasão
das atribuições constitucionais do Ministério Público pelo delegado de polícia:
10
Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência
ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II - o réu não for reincidente em crime doloso
III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os moti-
vos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
REVISTA DO MPBA 102 103 REVISTA DO MPBA
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E isso por uma razão muito simples: a Constituição da República 3 DELAÇÃO PREMIADA: O FUTURO DA JUSTIÇA NEGOCIADA OU APENAS UM
comete à polícia, inquinada de judiciária, funções exclusivamente MEIO DE INVESTIGAÇÃO ANTE A FALÊNCIA DO ESTADO NA PERSECUÇÃO
investigatórias (art. 144, §1º, IV, e §4º). E, mais, remete e comete ao PENAL?
Ministério Público a defesa da ordem jurídica (art. 127) e a promoção
privativa da ação penal (art. 129, I). (...)
Assim, temos por absolutamente inconstitucional a instituição de
Não obstante a longa trajetória do instituto na legislação pátria observa-se que as
capacidade postulatória e de legitimação ativa do delegado de polícia mais recentes alterações/inovações aproximam bastante seu procedimento de utilização,
para encerrar qualquer modalidade de persecução penal e, menos conforme já mencionado, da plea bargain e guilty plea americanas onde a lógica da
ainda, para dar ensejo à redução ou substituição de pena e à extinção justiça negociada, segundo Carla Veríssimo De Carli 13 chega a encerrar 90% dos casos.
da punibilidade pelo cumprimento do acordo de colaboração. A plea bargain consiste num processo de negociação entre a acusação, o réu e
Se o sistema processual penal brasileiro sequer admite que a
seu defensor, que poderá alcançar dois diferentes resultados: i) o réu pode optar por
autoridade policial determine o arquivamento de inquérito policial,
confessar sua culpa (guilty plea ou plea of guilty), renunciando assim ao direito de um
como seria possível admitir agora, a capacidade de atuação da
referida autoridade (...).11 julgamento em troca de uma redução nas acusações e/ou nas penas que lhe serão
aplicadas; ii) pode ainda optar por não assumir a culpa mas aceita não discuti-la, ou seja
Não obstante o valor da justiça negociada, notadamente na experiência advinda não pretende contender (nolo contendere).
dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/9512, há na lei um dispositivo de discutível Em ambas, o réu é imediatamente sentenciado, contudo na última não há na seara
constitucionalidade (art. 4º, § 4º) que permite o não oferecimento da denúncia associado civil a confissão de modo que o acordo na seara criminal não produzirá qualquer efeito
a dois requisitos: não ser o colaborador o líder da quadrilha e for o primeiro a prestar a no âmbito da responsabilidade civil.14
colaboração. Dessarte, ouve-se dizer, que esta seria uma solução importada para reduzir a
Nota-se, sem embargos, que andou muito mal o legislador. Se por um lado estimula criminalidade, contudo, observa-se que no sistema common law – em que os alicerces
a mais rápida colaboração por parte dos agentes, por outro lado deverá enfrentar uma do Direito são as decisões judiciais e sobressai o princípio do stare decisis, donde se
grande quantidade de delatores cuja única finalidade será livrar-se da denúncia, que extrai que os casos semelhantes devem ser decididos conforme as mesmas regras – a
poderão trazer falsas informações com o único objetivo de furta-se à ação penal, ao colaboração do imputado com a justiça é uma rotina e, por conseguinte, a concessão
mesmo tempo em que desestimula a possibilidade de delatores tardios que não obterão de benefícios é um dos elementos básicos desta relação. Ocorre que nos EUA a ideia é
a mesma benesse. justamente evitar o processo, como adverte Frederico Valdez:
Cabe ainda dizer que o aludido diploma legal, na medida em que avança na O postulado regente da persecução penal nesses países: princípio da
concretização de um sistema acusatório impondo o afastamento do juiz os atos de oportunidade, confere ao Ministério Público amplo poder de seleção e
negociação entre as partes (§ 6º do art. 4º) e a presença do defensor (§ 5º do art. 4º) de condução do processo penal com ferramentas como plea bargaining
permite que o mesmo recuse a proposta e a adéque ao caso concreto, o que poderá e guilty plea, seguindo a linha do utilitarismo inerente ao sistema que
causar uma forte insegurança para o delator. Este sim, momento em que seria oportuno abraça negociações entre acusação e defesa direcionadas à solução
a utilização do art. 28 do Código de Processo Penal. do litígio penal.
Na América do Norte, o sistema anglo-saxão permite acordos inimagináveis no
modelo processual adotado no Brasil. Segundo Walter Maierovitch15 :

13
DE CARLI, Carla Veríssimo. Delação premiada no brasil: do quê exatamente estamos falando?. Boletim
11
PACELLI, Eugênio. Atualização do curso de processo penal. Comentários ao CPP. Lei 12.850/13. do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n. 204, jul. de 2009. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/
Disponível em: <http://eugeniopacelli.com.br/atualizacoes/curso-de-processo-penal-17a-edicao-comentarios- boletim_artigo/3985-Delacao-premiada-no-brasil:-do-que-exatamente-estamos-falando?>. Acesso em: 8 nov.
ao-cpp-5a-edicao-lei-12-85013-2/. Acesso em: 27 de novembro de 2013. 2013.
12
A Lei 9.099/95 criou quatro categorias de medidas despenalizadoras com relação aos crimes de menor
14
CAMPOS, Gabriel Silveira de Queirós. Plea bargaining e justiça criminal consensual: entre os ideiais de
potencial ofensivo, quais sejam: composição civil, na qual extingue-se a punibilidade (art. 74, § único); funcionalidade e garantismo, Custus Legis, Revista eletrônica do Ministério Público Federal, 2012 p. 1-26.
transação penal consistente na aplicação imediata de pena alternativa (restritiva de direitos ou multa), por Disponível em: <http://www.prrj.mpf.mp.br/custoslegis/revista/2012_Penal_Processo_Penal_Campos_Plea_
proposta do Ministério Público (art. 76); a necessidade de representação da vítima nos delitos de lesões Bargaining.pdf >. Acesso em: 8 nov. 2013.
corporais culposas ou leves (art. 88); e nos crimes cuja pena mínima não seja superior a 1 (um) ano
15
MAIEROVITCH, Wálter Fanganiello. Política criminal e plea bargaining. São Paulo. Revista de Julgados e
permitem a suspensão condicional do processo (art. 89). Doutrina do Tribunal de Justiça de São Paulo, n. 04, p 13, out./ dez. 1989.
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É largamente aplicada no Processo Penal norte-americano, com os Nesse trilhar, percebe-se que a importação deste instituo cria uma figura sui
mais surpreendentes e espantosos acordos (agreement). Inúmeros generis. A delação premiada regida pela lei 12.850/13 utiliza-se do modelo de negociação
são os casos de avenças disparadas: admite-se trocar homicídio americana, cujo escopo é buscar a solução do crime e evitar o litígio, com finalidade
doloso típico por culposo; tráfico por uso de drogas; roubo qualificado diversa, tendo por único e exclusivo fundamento disponibilizar um meio de investigação
pelo emprego de arma de fogo por furto simples. Para os críticos mais às autoridades com o intuito de obterem êxito na investigação criminal das atividades
severos, trata-se de prática lúdica, quando se nota que dez crimes
ligadas à organizações criminosas.
variados são trocados pela declaração de culpabilidade (plea of guilty)
de apenas um, que pode ser até o menos grave. A plea bargaining visa, Em apurada síntese, calha anotar a lição de Valdez:
fundamentalmente, a punição, ainda que branda e socialmente injusta. O postulado regente da persecução penal nesses países: princípio da
É justificada como poderoso remédio contra a impunidade, diante do oportunidade, confere ao Ministério Público amplo poder de seleção e
elevado número de crimes a exigir colheita de prova induvidosa da de condução do processo penal com ferramentas como plea bargaining
autoria, coma consequente pletora de feitos e insuportável carga de e guilty plea, seguindo a linha do utilitarismo inerente ao sistema que
trabalho do judiciário. abraça negociações entre acusação e defesa direcionadas à solução
do litígio penal.
Entretanto, a negociação a qual se predispõe a delação premiada, difere em muito
daquela experiência norte americana, cuja solução dos litígios criminais encerra-se numa Cabe salientar que muito embora o legislador tenha buscado apagar a pecha de
evidente pactuação entre o Ministério Público e o acusado. “delator” com a nova nomenclatura de “colaboração premiada”, entende-se que não
Isto porque, muito embora acirrada a discussão sobre o tema na doutrina, obstante sua roupagem diversa traduz o mesmo instituto da delação, presente desde
é majoritária a posição de que o Ministério Público está subordinado ao princípio da os tempos mais remotos onde o Estado estimula um dos criminosos a trair o bando em
obrigatoriedade da ação penal pública, ao contrário do que se observa nos Estados busca de provas para a persecução penal.
Unidos da América em que o Órgão Acusador pauta-se pelo princípio da oportunidade. Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini relatam que ocorre a chamada delação premiada
Essa discussão entre obrigatoriedade versus oportunidade ressurgiu com todo o quando um acusado não só confessa sua participação no delito imputado (isto é, admite
vigor após a edição da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95) uma vez que algumas sua responsabilidade), senão também delata (incrimina) outro ou outros participantes
das medidas despenalizadoras, especificamente a transação penal e a suspensão do mesmo fato, contribuindo para o esclarecimento de outro ou outros crimes e sua
condicional do processo (sursis processual) à primeira vista concediam ao Parquet uma autoria.16
certa discricionariedade no exercício da ação penal. Nesse sentido entende-se que a Delação Premiada consiste numa técnica de
É que na transação penal prevista no art. 76 do aludido diploma o Ministério Público investigação, embasada na cooperação de um dos autores do delito que assume sua
poderia – poderá na redação original – propor aplicação imediata de pena restritiva de participação na expectativa de galgar um prêmio – redução de pena, perdão judicial,
direitos ou multa que, se aceita pelo acusado era de imediato aplicada e não importa em etc – e não somente aponta (delata) os demais comparsas, mas também esclarece o
reincidência tampouco terá efeitos cíveis, sendo registrada apenas para impedir nova modus operandi, a estrutura organizacional, a individualização das tarefas e auxilia na
utilização dos institutos nos cinco anos seguintes. recuperação total ou parcial do produto do crime.17
Já na suspensão condicional do processo, insculpida o art. 89, novamente a lei Firmada tais premissas, é indispensável analisar a verdadeira faceta da delação
permitiria ao MP a faculdade de, nos crimes em que a pena seja igual ou inferior a um premiada aplicada ao sistema romanístico. Consoante os argumentos introdutórios, vê-
ano, ao oferecer a denúncia, propusesse a suspensão do processo por dois a quatro se aqui mais um exemplo de direito penal de emergência: ante a atestada incapacidade
anos desde que cumpridos os requisitos lá descritos. policial para investigar as organizações criminosas, procede-se a uma verdadeira
Em que pese o caráter negocial, na prática percebeu-se que tais institutos se involução, que é expressa através da reedição de mecanismos inquisitivos.
tratavam em verdade de direitos subjetivos dos réus desde que reunidos os pressupostos
legais. Essa inclusive foi a conclusão que chegou o Supremo Tribunal Federal em
reiteradas oportunidades, culminando com a edição da Súmula 696: Reunidos os
pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se
recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão
ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.
Situação diversa é a que se apresenta no novo tratamento da colaboração
premiada, (ou seria extorsão premiada?).
16
GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl. Crime Organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/1995) e
político-criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 131-132.
17
PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada: legitimidade e procedimento. Curitiba: Juruá, 2013, p. 28;
35.
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Não seria a delação premiada uma forma abrandada de tortura18? Confessa-me A dificuldade já é imensa nos delitos de comuns, embora superada por um
ou te devoro, eis a barganha. Num sistema atual em que a prisão, não obstante ser a judiciário conivente que profere condenações com base em provas frágeis e superficiais,
exceção, externa-se, fundada num conceito abstrato de “garantia da ordem pública” e quiçá naqueles especializados nos quais a inteligência e o planejamento são as marcas
ajusta-se num passe de retórica a quem bem aprouver, aliada agora à possibilidade de primordiais, aliado ao fato de que, comumente, tais criminoso podem custear grandes
negociação, inclusive encampada pelo Delegado de Polícia, num país em que a estrutura advogados que expõe a deficiência dos meios investigatórios de modo contundente.
da Defensoria Pública está muito aquém daquela do Órgão Acusador, mostra-se um Nesse prisma em que se buscam meios de superar a falência da investigação
lugar propício para injustiças. criminal, partindo-se da premissa que a condenação é a solução da criminalidade e
Em síntese apura-se que o sistema premial aplicado aos ordenamentos jurídicos a prova testemunhal é o caminho mais curto para a condenação, não haveria melhor
de origem romanística não se coaduna com a ideia de negociação. A experiência italiana método então que a delação premiada, ou colaboração premida como determina o novo
demonstra claramente o conteúdo da delação premiada: diante das grandes máfias diploma. Transforar o réu em testemunha é sem dúvida a prova menos confiável, mas
italianas do século passado, o Estado inoperante, e sem conseguir avançar na investigação seria um mal necessário. Sem razão.
editou a Lei dos Arrependidos cuja justificativa e escopo são fundamentalmente próximos A doutrina alemã, consoante coerente exposição de Frederico Valdez, conceitua esta
àqueles aplicados no Brasil, na qual pretendia-se aliciar membros da máfia a colaborar crise na investigação, consolidada na constatação de que certos crimes não conseguem
com o Estado para o seu desmantelamento. ser devidamente esclarecidos, numa única e feliz expressão Ermittlungsnotstand 21, que
Luigi Ferraioli19 , analisando a lei dos pentiti, os arrependidos, critica a dimensão numa tradução livre representaria o “estado de necessidade na investigação”, que requer
que é dado ao órgão acusador, esclarecendo qual é o real poder de barganha do acusado: medidas especiais para sua transposição.
“É verdade que o imputado pode rechaçar estas propostas de acusação e desejar a No brazilian law está se estabelecendo um modelo temerário em que o Estado
realização do julgamento. No entanto, a entidade dos benefícios é tal que, comparada Democrático pretende resolver o problema de todo o aparato judiciário, fundado na falta
aos riscos que a condenação com o juízo público pode acarretar, até um inocente teria de pessoal, de investimento, e sobretudo numa gestão deficiente, enraizado ainda na
interesse em aceitá-la em troca de uma confissão ou da colaboração com a acusação”. própria formação acadêmica dos atores jurídicos, com a inserção de um meio investigativo
Um réu acusado de integrar uma organização criminosa, frente a realidade da típico do Estado de Emergência.
situação carcerária no Brasil, sem prazo para que possa responder o processo em Na precisa lição do Professor Jacinto Miranda: 22
liberdade, é uma presa fácil para qualquer benevolência que lhe possa ser útil, de modo A questão da delação premiada é típica de momentos crise. Não se trata
que a junção entre os fatores acima citados pode levar a violações e arbitrariedades. de uma estrutura gratuita mas de algo que vem como efeito de uma
Sem dúvida o crescimento legislativo nessa seara tem um propósito, afinal, “é sobretudo causa, sobre a qual é preciso indagar. A causa da delação premiada no
graças a ele que se pode desenvolver um conúbio perverso entre encarceramento Brasil de hoje é banal e remete ao processo e ao judiciário como um
todo. Isso parece evidente num país que enveredou pelo neoliberalismo,
preventivo e delação premiada com a acusação: o primeiro utilizado como meio de
minimizou o Estado e não disponibiliza condições efetivas de atuação
pressão sobre os imputados para obter deles a segunda”.20 de seus órgãos.
No Brasil firmou-se a crença de que a investigação criminal é o grande obstáculo Assim, ela (a crise) parece sintomática da falta de estrutura condizente,
para redução da criminalidade e por isso é necessária a “modernização”. É consabido capaz de proporcionar uma correta investigação, ou seja, aquela
que a prova no processo penal pátrio é, por excelência, a testemunhal uma vez que desenvolvida dentro dos padrões normais, isto é, aqueles fixados a
inexiste aparato tecnológico, pessoal qualificado e decentemente remunerado a fim de partir dos princípios que instauraram a modernidade e estão agora
que possa angariar provas robustas e firmes dos fatos delituosos. estampados na Constituição da República.

Desmistificada a real natureza do instituto sob enfoque, percebe-se que se trata de


mais uma medida emergencial, com o gravame de sua aplicação na seara criminal cujo
objetivo é a solução da ineficiência da investigação criminal num passe de mágica, numa
suposta negociação com o corréu, que tem um futuro previsível de injustiças e abusos,
sempre calcados na necessidade de imposta pela mídia de recrudescimento do sistema
punitivo.
18
“A lógica do prêmio, por isso, não deixa de estar embasada em um instrumento de pressão sobre o
acusado, no caso, à diferença da tortura: uma pressão de natureza premial e não agressiva, que reforça os
instrumentos à disposição do acusador. À vista disso, advém a expressão utilizada por Padovanni referindo-
se à técnica dos arrependidos como uma ‘suave inquisição’.” In: PEREIRA, Frederico Valdez. Delação 21
Segundo o Dicionário Michaelis: Ermittlungs: inquérito, averiguação, investigação, apuração. Stand: esta-
premiada: legitimidade e procedimento. Curitiba: Juruá, 2013. p.66.
do, situação. Not: necessidade, dificuldade.
19
FERRAIOLI, Luigi. Direito e razão. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 765. 22
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Fundamentos à inconstitucionalidade da delação premiada. Bole-
20
FERRAIOLI, Luigi. Direito e razão. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 765.
tim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Ano 13, n. 159, p. 7-9, fev. 2006,
REVISTA DO MPBA 108 109 REVISTA DO MPBA
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4 OS FINS JUSTIFICAM OS MEIOS? UMA ABORDAGEM CRÍTICA ACERCA DA Esse tipo de delito cria extensos vínculos, que ultrapassam fronteiras, enraizando-
DELAÇÃO se através da sociedade, da economia e da política detendo um enorme poder de
corrupção que, nas palavras de Alberto Silva Franco: “é capaz de inerciar e fragilizar os
A resposta ao aludido questionamento impõe a definição de que modelo poderes do próprio Estado”. 25
processual penal é almejado, mormente porque a chave para a solução do problema Enfim, as organizações criminosas revelam-se, no limiar do século XXI, o grande
proposto esbarra num conflito entre a necessidade de garantia dos direitos individuais e inimigo do Estado – tal qual outrora aqueles delitos de abuso da liberdade de comunicar
a eficiência do processo penal e do sistema penal como um todo. os pensamentos – e passíveis, portanto de tratamento diferenciado.
De um lado, está a posição garantista da qual extrai-se que o processo penal A legislação pátria, notadamente a Lei n° 12.850/13, se aproxima muito das teorias
deverá ser um meio a partir do qual sejam assegurado os direitos, garantias e liberdades esposadas por Gunter Jakobs na medida em que se criam duas categorias, a primeira
individuais impondo limites frente ao poder estatal. Ao revés, partindo de posição delas refere-se ao delator, que é recepcionado pelo sistema, ante a sua indispensável
diametralmente oposta, encontra-se o modelo dito funcional cujo escopo é a busca pela colaboração, sendo a segunda categoria aquela em que se enquadram os demais
eficiência do Estado na consecução das atribuições persecutórias e punitivas. membros da organização criminosa, porque não chamá-los então de inimigos? Márcio
Nesse caminhar, impende afirmar que a consecução dos objetivos do Estado Cancio Meliá em Direito Penal do Inimigo – Noções e crítica, chega a dizer que as
Democrático de Direito perpassa pelo reconhecimento de uma dimensão substancial da organizações criminosas ameaçam o próprio sistema político-institucional. 26
Constituição, deixando de lado o mero caráter procedimental desta. Assim, norteando- Há um quê maquiavélico na pergunta que encabeça este tópico. Em O Príncipe,
se pelo princípio da dignidade da pessoa humana, no qual os direitos fundamentais o próprio Maquiável faz uma afirmação que parece ser a mola propulsora para justificar
sobrepõem-se à invasão Estatal, repudia-se o modelo em que se busca a obtenção da a utilização deste instituto: “É muito justa esta minha asserção: justum enim est bellum
maior eficácia ao sistema penal. quibus necessarium, et pia arma ubi nula nisi armis spes est – justa, na verdade, é
Vislumbra-se uma contradição direta entre o atual Estado de Emergência e uma a guerra, quando necessária, e piedosas as armas quando só nas armas reside a
das funções do Estado de Direito, qual seja, a jurisdição penal, apontada por Luigi Ferraioli esperança”. 27
de modo preciso: “as práticas, de fato, todas as vezes obstaculizadas por impasse legais Destarte, afigura-se a organização criminosa como o grande inimigo a ser
e garantistas, são sempre vistas com sentimento de exceção, isto é, com a ideia de que, enfrentado pelas Autoridades. É nesse panorama, em que alguns delitos se mostram
no caso concreto, tanto mais de política ou socialmente grave e alarmante, é excepcional excepcionais e cujos meios normais de investigação não são aptos à devida persecução
em relação à regra”.23 criminal, que ressurge a delação premiada, (mais uma vez, não seria extorsão premiada?)
A crise instaurada na investigação criminal, superdimensionada pelos contornos como proposta temerária para solução. Novamente recorre-se a apurada análise sobre
que a mídia impõe, produz um clamor público para a solução. De fato, instaura-se na a lei dos pentiti de Luigi Ferraioli:
sociedade o estado de terror, a fim de que as pessoas aceitem e se convençam de Compreende-se a perfeita coerência com este esquema da lei sobre
que precisa de medidas excepcionais, tal qual a delação premiada para fazer com que os arrependidos, que indica não só um meio mas também um fim.
retornem ao seu estado de normalidade. A confissão, e sobretudo a colaboração mediante a denúncia dos
coautores, funcionam de fato como resultados não apenas processuais
O Professor Rogério Sanches, comentando a mais nova roupagem da
mas também penalmente relevantes. Com elas o acusado além da
Delação premiada, assevera: “Em verdade, a criminalidade organizada, face às suas relevância e, talvez, da importância fundamental das suas revelações,
peculiaridades, reclama uma nova visão sobre os meios de prova a serem utilizados para passa a tomar o partido da acusação e dá prova visível e certa, muio
fazer frente a seu poderio”.24 mais do que da sua culpabilidade ou de seus companheiros, da
Partindo de tal premissa, entende-se que é necessário compreender o instituto sua escolha anticriminal. Deste modo, o processo se converteu em
à luz da excepcionalidade, uma vez que as organizações criminosas vêm assumindo o lugar em que não apenas (ou nem tanto) se comprova senão que
grande papel de vilão. Dos crimes aquele mais nefasto e cuja persecução se torna mais se põe em prática diretamente em pressuposto substancial da pena;
complexa.

25
FRANCO, Alberto Silva. O Crime organizado e a legislação brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1995. p. 75.
23
FERRAIOLI, Luigi. Direito e razão. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 747.19 FERRAIOLI, 26
CANCIO MELIÁ, Manuel, JAKOBS, Günther. Direito penal do inimigo. Noções Críticas. Organização e
Luigi. Direito e razão. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 765. tradução de André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p.
24
CUNHA, Rogério Sanches e PINTO, Ronaldo Batista. Crime organizado. Comentários à nova lei sobre o 104.
Crime Organizado. Lei nº 12.850/2013. Salvador: Editora JusPODIVM, 2013. p. 39. 27
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Athena Editora, 1973, p.114. (Coleção Os Pensadores, v. IX)
REVISTA DO MPBA 110 111 REVISTA DO MPBA
A DELAÇÃO PREMIADA E A FALÊNCIA DO ESTADO NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO GARANTISMO PENAL A DELAÇÃO PREMIADA E A FALÊNCIA DO ESTADO NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO GARANTISMO PENAL

onde não apenas se prova, senão que se põe em prática diretamente e É fácil perceber que o discurso sedicioso da necessidade de se combater a
se define o caráter de “amigo” (arrependido, dissociado ou similar) ou de excepcionalidade, impõe a edição de medidas emergenciais (também excepcionais) que
“inimigo” do imputado, segundo se ponha ou não por parte da acusação
se propõem a solucionar o grande problema da criminalidade organizada, contudo a
diante da defesa, cujo papel teria sem embargo direito a representar. 28
questão aqui posta é diversa. O Estado de Direito pode utilizar-se dessa prática, e utiliza
A delação proposta pelo Estado não está calcada no arrependimento do agente, com frequência, conforme citado alhures, em todas as áreas da administração pública,
muito pelo contrário, pouco importa se a decisão de colaborar com a investigação foi contudo, na seara criminal a situação é de fato muito mais perigosa.
espontânea, induzida ou quem sabe “imposta pela situação”. Ora, na delação premiada, o acusado abandona “voluntariamente” seu estado de
Todavia, não se pode olvidar o conteúdo simbólico que a delação premiada sujeito de direito, e passa à condição de objeto da investigação. Uma testemunha, não
representa. Demonstra-se que, não obstante a falência da ressocialização, vista como outra qualquer uma vez que seu futuro depende da efetivação da sua colaboração,
diariamente em todo sistema penitenciário nacional, ainda é possível trazer de volta o desde que as finalidades constantes no termo de colaboração sejam atingidas.
criminoso – ainda que seja o inimigo – e o mostrar que o Estado de Direito pode conceder Além do mais, há na delação uma antecipação do juízo de condenação ao delator,
uma forma de perdão aquele que ajudá-lo. pois ao homologar o acordo entre a defesa e a acusação o juiz aceita a condição de
A que ponto chegaremos? Num Estado Democrático de Direito em que um dos culpado sem a instrução criminal. Assim, fere de morte a imparcialidade do magistrado
princípios norteadores de sua Carta Magna é a moralidade, como se pode aceitar e e impede o regular desenvolvimento do contraditório no processo uma vez que a versão
estimular essa barganha com o criminoso? Inexiste um conteúdo ético mínimo, através acusatória já foi aceita pelo Juízo restando agora somente a busca de outros elementos
de meios imorais utilizados para evitar a impunidade encobre-se como braço amigo e que a corroborem.
torna-se impune o delator. Eugênio Raul Zaffaroni brada insistentemente: o estado está Nunca se sabe, somente agora o legislador firmou o conceito para organizações
se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço da impunidade para criminosas, sem perder de vista que as mesmas são na verdade uma reunião de pessoas
“fazer a justiça”. 29 com o objetivo de cometer crimes, com penas superiores a 4 anos. Num país em que a
Cesare Beccaria30, ainda em meados do século XVIII, já demonstrava profunda expansão legislativa cria figuras típicas das mais bizarras, não demorará muito para que
inquietação com o instituto, sendo digna de nota a atualidade dos seus ensinamentos: usar máscara na rua transforme-se em delito, senão hediondo.
Alguns Tribunais oferecem a impunidade àquele cúmplice de delito A história é repleta de delatores famosos e sempre com consequências nefastas. Na
grave que denuncie seus companheiros. Os inconvenientes são que a Roma antiga, Marcus Junius Brutus conspirou contra Júlio César que restou apunhalado
nação autoriza a traição, detestável mesmo entre os celerados, porque pelas costas, suas últimas palavras ecoam por toda história: “Até tu, Brutus?”. Em troca
são menos fatais a uma nação os delitos de coragem que os de vileza: de 30 moedas de prata, Jesus foi traído por Judas com um beijo no rosto e levado a cruz.
porque a coragem não é frequente, já que só se espera uma força Na literatura, William Shakespeare, relata a traição a partir da história de Desdêmona,
benéfica e diretriz que faça concorrer ao bem público, enquanto a vileza
esposa de Otelo, que perdeu a vida por causa da traição de Iago.
é mais comum e contagiosa, e sempre mais se concentra em si mesma.
Ademais, o tribunal revela a sua própria incerteza, fraqueza da lei, que No Brasil de 1789, Joaquim Silvério dos Reis, delatou Tiradentes, que à época
implora a ajuda de quem a ofende. (…) organizava um levante separatista contra a Coroa Portuguesa por conta das taxas
Uma tal lei, portanto, deveria unir a impunidade ao banimento do abusiva. Enquanto o delator ganhou posses e nomeações, Tiradentes acabou enforcado
delator... Mas em vão me atormento para destruir o remorso que sinto e esquartejado. A independência do Brasil atrasou décadas acontecendo apenas em
autorizando as leis sacrossantas, monumentos de confiança pública, 1822.
base da moral humana, à traição e à dissimulação. Além disso, que Todos eram a sua época os grandes inimigos do poder estabelecido, mas quem
exemplo haveria para a nação se negasse a impunidade prometida e serão os inimigos do futuro?
por meio de filigranas legais se arrastasse ao suplício, a despeito da fé
pública, quem acorreu ao convite das leis!
5 CONCLUSÃO

Em desate, com base na análise até aqui descrita pode se compreender que
as mais novas versões legais trazem a delação como solução mágica para problemas
sistemáticos cuja solução demanda tempo, investimento e vontade política, elementos
estes ausentes na figura criada.
Embora, a nova colaboração premiada passe a impressão de um passo adiante
na justiça negociada, numa pretensa importação do instituto norte-americano da plea
28
FERRAIOLI, Luigi. Direito e razão. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 759-760. bargain, distancia-se consideravelmente do mesmo, uma vez que no sistema romanístico,
29
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Crime organizado: uma categoria frustrada. Discursos Sediciosos. Rio de a delação não é nada mais que um meio de investigação colocado à disposição da
Haneiro, Instituto Carioca de Criminologia, ano I, v. 1, p. 59, 1996 Autoridade Policial.
30
BECCARIA , Cesare. Dos Delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 124-125.
REVISTA DO MPBA 112 113 REVISTA DO MPBA
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Esse meio de investigação, por sua vez é justificado em face das peculiaridades CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
da criminalidade organizada, que sob a ótica de grande inimiga do Estado de Direito, 2003.
permite uma intervenção diferenciada, sobrepondo o ideal de um sistema garantista COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Fundamentos à inconstitucionalidade da
onde o processo é um limite à intervenção estatal, por uma noção funcional em que a delação premiada. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Ano 13, n. 159,
necessidade de eficiência é o primado. fev. 2006. Disponível em: <http://ibccrim.org.br/boletim_artigo/3160-Fundamentos-%E0-
Conceber que o uso da delação é premiada é aceitável frente a criminalidade inconstitucionalidade-da-dela%E7%E3o-premiada>.
organizada é um passo perigoso, aceitando-se um Estado de Emergência, por conta de
CUNHA, Rogério Sanches e PINTO, Ronaldo Batista. Crime Organizado. comentários à
uma política do terror, a sociedade faz concessões de suas garantias fundamentais em
nova lei sobre o Crime Organizado. Lei nº 12.850/2013. Salvador: Editora JusPODIVM,
prol de uma propagada eficiência.
2013.
Destarte, na busca por um Estado democrático de Direito, fundado na dignidade
da pessoa humana é inaceitável que seja o acusado transformado em meio de prova, DE CARLI, Carla Veríssimo. Delação premiada no brasil: do quê exatamente estamos
fazendo cair por terra garantias conquistadas com muito sacrifício sob a expectativa da falando?. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n. 204, jul. 2009. Disponível
eficácia da persecução penal. em: <http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/3985-Delacao-premiada-no-brasil:-do-
Nesse viés, identifica-se a delação tal qual uma grave violação ao mínimo ético que-exatamente-estamos-falando?>.
imposto pela Constituição, distanciando-se consideravelmente do modelo processual
FERRAIOLI, Luigi. Direito e razão. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
penal acusatório de cunho garantista, aproximando-se de um sistema funcional em que
o Estado estimula a vileza presente na traição, na vã promessa de solução da crise na FRANCO, Alberto Silva. O Crime Organizado e a Legislação Brasileira. São Paulo:
investigação criminal. Revista dos Tribunais, 1995.
As experiências históricas demonstram que os fins jamais justificarão os meios. GARCIA, Roberto Soares. Delação premiada: ética e moral, às favas. Boletim IBCCRIM,
n. 159, p. 2, fev. 2006.
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em: 27 nov. 2013. 330 do Código Penal aos casos de descumprimento de medidas protetivas de urgência
previstas na Lei Maria da Penha. Tal entendimento do STJ, além de vulnerar o princípio
PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada: legitimidade e procedimento; aspectos
da vedação à proteção deficiente, não se compatibiliza com a legislação e principiologia
controvertidos do instituto da colaboração premiada de coautor de delitos como
penal, muito menos com os ditames da Lei 11.340/2006. Ademais, a sintonia fina da
instrumento de enfrentamento do crime organizado. Curitiba: Juruá, 2013.
tipicidade penal indica a ocorrência do crime previsto no art. 359 do CPB. Possível a
PRADO, Rodrigo Murad do. Delação premiada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. prisão em flagrante.
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Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n. 159, fev. 2006. Disponível em: < http:// (...) pior do que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser dono
da luz. ¹
www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/3162-Da-delacao-premiada:-aspectos-de-direito-
processual>.
SOBRANE, Sérgio Turra. Transação penal. São Paulo: Saraiva, 2001. 1 INTRODUÇÃO
VALLE, Juliano Keller do. Crítica à delação Premiada: Uma análise através da teoria do
O Superior Tribunal de Justiça, em recentíssimas decisões, tem afastado a
garantismo penal. São Paulo: Conceito Editorial, 2012.
incidência do artigo 330 do Código Penal, que tipifica o crime de desobediência, aos
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: casos de descumprimento de medidas protetivas de urgência, fixadas judicialmente e
Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2007. previstas na Lei Maria da Penha. Algumas destas decisões chegam a afirmar que tratar-
______. Crime organizado: uma categoria frustrada. Discursos Sediciosos. Instituto se-ia de conduta atípica.
Carioca de Criminologia, Rio de Janeiro, ano I, v. 1, 1996. Tal entendimento do STJ, além de vulnerar o princípio da vedação à proteção
deficiente, postulado este já aplicado pelo Supremo Tribunal Federal em julgados atinentes
à matéria da violência doméstica e familiar contra a mulher, vide, por exemplo, ADI n.
4.424/DF e ADC n. 19/DF, não se compatibiliza também com a legislação e principiologia
penais aplicáveis à espécie, muito menos com os ditames da Lei 11.340/2006. Ademais,
a sintonia fina da tipicidade penal indica a ocorrência do crime previsto no art. 359 do
CPB e não o tipificado no artigo 330 do Código Penal.
Assim, mesmo que oferecida denúncia pelo Ministério Público pela prática do
crime de desobediência, não deve a Inicial Acusatória ser rejeitada ou não recebida, mas
simplesmente ser aplicado o instituto da emendatio libelli. Não há que se falar, pois, em
atipicidade da conduta.

*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Especialista em Direito do Estado pela
Fundação Faculdade de Direito – UFBA (Universidade Federal da Bahia). Pós-graduando em Direito Urbano e
Ambiental pela Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
Integrante do Grupo Nacional dos Membros do Ministério Público – GNMP
1
SUASSUNA, Ariano. O Santo e a porca. 29. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2014. p. 23.
REVISTA DO MPBA 116 117 REVISTA DO MPBA
DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA

Ademais, em relação à suposta não caracterização do crime de desobediência, os 2. Tendo sido cominada, com fulcro no art. 22, § 4º, da Lei n.
argumentos lançados pelo STJ, concessa maxima venia, são absolutamente frágeis, e, 11.340/2006, sanção pecuniária para o caso de inexecução de medida
por isso mesmo, não se sustentam. protetiva de urgência, o descumprimento não enseja a prática do crime
Outrossim, nem mesmo no próprio Superior Tribunal de Justiça o tema se pacificou, de desobediência. 3. Há exclusão do crime do art. 330 do Código Penal
também em caso de previsão em lei de sanção de natureza processual
existindo decisões dissonantes, a seguir citadas.
penal (doutrina e jurisprudência). Dessa forma, se o caso admitir a
O STF, também, não se manifestou sobre a questão. Assim, revela-se prematura decretação da prisão preventiva com base no art. 313, III, do Código de
a extinção destes processos sem resolução do mérito. Ademais, oferecer proteção Processo Penal, não há falar na prática do referido crime.
deficiente às mulheres vítimas de agressões domésticas ou familiares é praticar violência
institucionais contra aquelas. Ora, o primeiro argumento do STJ é o seguinte: a Lei Maria da Penha prevê sanções
específicas para os casos de descumprimento de medidas protetivas de urgência, que
seriam a multa e a possibilidade de prisão preventiva do agressor. Segundo o STJ, estas
2 DESENVOLVIMENTO duas “sanções” afastariam a incidência do tipo penal de desobediência.
Em primeiro lugar é preciso registrar que prisão cautelar não é, nem nunca foi,
O Superior Tribunal de Justiça, em decisões datadas de 2014, tem afirmado que: sanção. Prisão cautelar não é antecipação de pena, é apenas uma medida instrumental
1. O crime de desobediência previsto no art. 330, do CP, somente voltada para o processo penal. Quanto à natureza jurídica da prisão cautelar, vejamos as
se perfaz quando inexistir cumulação de sanção específica de outra lições da doutrina nacional:
natureza em caso de descumprimento de ordem judicial. 2. Na Lei Renato Brasileiro. A prisão cautelar deve estar obrigatoriamente
Maria da Penha, lex speciallis, existe previsão de prisão preventiva para comprometida com a instrumentalização do processo criminal. Trata-
aquele que descumprir a medida protetiva acauteladora da integridade se de medida de natureza excepcional, que não pode ser utilizada
da vítima (art. 313, III, do CPP). Por isso não há ensejo para a incidência como instrumento antecipado de pena, na medida em que o juízo
do crime de desobediência.22 que se faz, para a sua decretação, não é de culpabilidade mas sim de
A sexta turma do STJ definiu também que a previsão em lei de punição periculosidade. Como anota o Min. Celso de Mello, a prisão cautelar,
administrativa ou civil (prisão ou multa) para a hipótese de desobediência a ordem legal que tem função exclusivamente instrumental, não pode converter-se
em forma antecipada de punição penal.³
afasta o crime previsto no art. 330 do Código Penal, salvo quando houver expressa
cumulação. Em observância às peculiaridades do caso que lhe foi submetido, o Ministro Os Magistrados que entendem ser a prisão cautelar uma espécie de sanção são
Relator asseverou que a Lei Maria da Penha, dentre outras medidas, estabeleceu sanção qualificados, pelos garantistas, como “desvairados”. Vejamos:
pecuniária para o caso de descumprimento de medida protetiva de urgência. No caso Luiz Flávio Gomes – (...) há juízes que absurdamente estão
paradigma essa sanção foi prevista pelo Juiz do caso quando da aplicação da medida. transformando a prisão cautelar em prisão antecipada (segundo a
Assim, concluiu o Ministro, “se o juiz comina pena pecuniária para o descumprimento de clássica lição de Carnelutti). (...) Muitos presos acham-se recolhidos
preceito judicial, a parte que desafia tal ameaça não comete crime de desobediência”. há anos sem julgamento. Para além dos prejuízos materiais que esses
Vejamos dois precedentes da 6a Turma do STJ: atos desvairados vão gerar (virão muitas condenações contra o Brasil
na corte Interamericana de Direitos Humanos), deveríamos estar
STJ – HC 293.848/SP - Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS
prestando atenção nas carreiras criminais que estamos fabricando. 4
MOURA - SEXTA TURMA - DJe 16/09/2014 (...). 2. O descumprimento
de medida protetiva, no âmbito da Lei Maria da Penha, não enseja o A doutrina internacional se inclina neste mesmo sentido:
delito de desobediência, porquanto, além de não existir cominação legal Luigi Ferrajoli – 3. Usos e abusos judiciários do cárcere preventivo. A
a respeito do crime do art. 330 do Código Penal, há previsão expressa, pena antecipada e a coerção inquisitória. (...) Policialescas, de outra
no Código de Processo Penal, de prisão preventiva, caso a medida parte, são também as duas funções efetivas – de ordem punitiva e
judicial não seja cumprida. processual – desenvolvidas com prevalência pela polícia.
STJ - RECURSO ESPECIAL Nº 1.374.653 - MG (2013⁄0105718-0) – Rel. A primeira função é aquela ligada à sua natureza de pena antecipada.
Ministro - MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR - DJe: 02/04/2014 - 1. (...) primeiro se pune, e, depois, se processa, ou melhor, se pune
A previsão em lei de penalidade administrativa ou civil para a hipótese de processando. E se configura como a forma mais conspícua da mutação
desobediência a ordem legal afasta o crime previsto no art. 330 do Código do processo em pena informal (...). 5
Penal, salvo a ressalva expressa de cumulação (doutrina e jurisprudência).

3
LIMA, Renato Brasileiro. Manual de processo penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. v.1, p. 1196.
4
GOMES, Luiz Flávio (Coord.). Prisão e medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de
2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 78.
5
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
² STJ - AgRg no REsp 1445446/MS - Rel. Ministro MOURA RIBEIRO - QUINTA TURMA - DJe 06/06/2014.
2014. p. 715-716.
REVISTA DO MPBA 118 119 REVISTA DO MPBA
DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA

As críticas à prisão cautelar como sanção, pois, não poderiam ser mais incisivas, (...)
como visto acima. Todavia, o garantismo, neste particular, é curioso, já que adota uma § 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o
disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de
visão monocular. Ergo, quando se discute a necessidade de prisão a segregação cautelar
janeiro de 1973 (Código de Processo Civil).
em nenhuma hipótese pode ser considerada uma sanção. Todavia, quando se discute (…)
a necessidade de criminalização de determinada conduta a prisão cautelar é sanção, a Art. 461 do Código de Processo Civil. Na ação que tenha por objeto o
qual, de tão grave, gera, inclusive, a atipicidade de um comportamento antijurídico. cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a
A interpretação caolha supracitada somente confirma o adágio popular de que “em tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará
terra de cego quem tem um olho é Rei”. providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do
Portanto, não se poderia falar que a previsão de “sanção de prisão cautelar” adimplemento. (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
afastaria a incidência de crime específico. Mesmo porque “prisão cautelar “ não é e (...)
nem nunca foi sanção. Assim, este argumento do STJ é frágil e, por isso mesmo, não § 5o Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado
prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento,
se sustenta. Então, não poderia ser invocado, em casos deste jaez, o princípio da
determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa
proibição do non bis in idem. A invocação do princípio foi, pois, concessa maxima venia, por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e
inadequada. coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se
Mas não é só isso: O STJ falou também que é prevista expressamente a sanção necessário com requisição de força policial. (Redação dada pela Lei nº
de multa para o caso de descumprimento de medida protetiva de urgência e que isso 10.444, de 7.5.2002)
afastaria a ocorrência do crime de desobediência. Contra este argumento, existem vários. § 6o O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da
Vejamos: Primeiro: o art. 17 da Lei Maria da Penha veda, expressamente, a aplicação multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva. (Incluído
isolada da pena de multa ao agressor doméstico. vejamos: “art. 17. é vedada a aplicação, pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)
nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica É preciso frisar, por oportuno, que nem mesmo a astreintes, segundo a doutrina
ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o processual civil mais autorizada, tem caráter punitivo, sancionatório.
pagamento isolado de multa”. Portanto, a interpretação do STJ é manifestamente contra Trata-se, tão somente, de técnica de coerção.
legem. Fredie Didier Jr, Rafael Oliveira e Paula Sarno – A multa é uma medida
Neste particular, o art. 4o da Lei Maria da Penha assim prescreve, verbo ad coercitiva que pode ser imposta no sentido de compelir alguém ao
verbum: “Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se cumprimento de uma prestação. Trata-se de técnica de coerção indireta
destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência em tudo semelhante às astreintes do direito francês. (...) A multa tem
doméstica e familiar”. caráter coercitivo. Nem é indenizatória, nem punitiva (...). 6
Segundo. Não bastasse isso, a previsão de multa, citada pelo STJ, é uma norma Trata-se, mais uma vez, de argumento frágil do STJ, o qual não se sustenta de
processual, e não de natureza penal propriamente dita. Portanto, seria perfeitamente nenhuma maneira.
possível a coexistência entre uma “sanção” processual penal (uma astreintes penal) Sobre a independência e comunicabilidade entre as instâncias penal, civil e
e a tipificação da conduta como crime, levando-se em consideração o princípio da administrativa, vejamos as brilhantes lições de Emerson Garcia:
independência das instâncias, mesmo porque o art. 22 da Lei Maria da Penha faz Os atos ilícitos (...) podem acarretar a sua responsabilidade penal, civil
menção expressa ao, então em vigor, art. 461 do Código de Processo Civil de 1973, hoje e administrativa. (...) ainda que única seja a conduta, poderá o agente
revogado pelo novo CPC. O Novo CPC trata do cumprimento de obrigação de fazer ou sofrer sanções de natureza penal desde que haja a integral subsunção
de não fazer nos artigos 536 e seguintes. de seu ato a determinada norma incriminadora; administrativa, em
Ou seja, a multa acima citada é uma astreintes tipicamente processual e não restando configurado algum ilícito dessa natureza; e civil (...). 7
penal. Vejamos a legislação:
Art. 22 da Lei Maria da Penha. Constatada a prática de violência O artigo 22 da Lei Maria da Penha, por sua vez, faz expressa menção ao art. 461
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá do antigo Código de Processo Civil, de 1973, no qual, em verdade, é que se encontra a
aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as previsão genérica de aplicação de multa – astreintes. Ou seja, a multa não tem caráter
seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: penal, não é prevista nem mesmo em lei penal ou processual penal.
(…).
§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de
outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da 6
DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: direito
ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentence e coisa julgada. Salvador: JusPodvim,
comunicada ao Ministério Público. 2007. v. 2. p. 349.
7
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 588.
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Terceiro. Além disso, a “pena de multa” é inadequada para os casos de violência (...) algumas das boas coisas da vida são corrompidas ou degradadas
doméstica e familiar contra a mulher, eis que estaticamente esta modalidade de crime quando transformadas em mercadoria. Desse modo, para decidir em
é mais incidente em camadas populacionais de mais baixa renda (ou, pelo menos, são que circunstâncias o mercado faz sentido e quais aquelas em que
as pessoas que mais acorrem à Rede de Proteção para denunciar casos de agressões), deveria ser mantido a distância, temos que decidir que valor atribuir
aos bens em questão – saúde, (...) VIDA FAMILIAR, (...). É um debate
tanto que a própria Lei Maria da Penha veda a aplicação de multa isoladamente ao
que não ocorreu durante a era do triunfalismo de mercado. (...) sem
agressor doméstico. Ou seja, a pena de multa, nestes casos, revelar-se-ia para a vítima que nos déssemos conta (...) fomos resvalando da situação de ter uma
uma proteção deficiente, o que será abordado com maior profundidade a seguir. economia de mercado para a de ser uma sociedade de mercado. A
Quanto à maior incidência dos casos de violência domésticas e familiar contra a diferença é esta: uma economia de mercado é uma ferramenta – valiosa
mulher em camadas mais pobres da população brasileira, vejamos o seguinte estudo: e eficaz – de organização da atividade produtiva. Uma sociedade de
Pesquisas indicam que a violência de gênero atinge a todas as classes mercado é um modo de vida em que os valores de mercado permeiam
sociais e as estatísticas apontam que as mais sujeitais às agressões cada aspecto da atividade humana. É um lugar que as relações sociais
são as das classes mais pobres. (...) O perfil socioeconômico e o são reformatadas à imagem do mercado. O grande debate que está
nível educacional das vítimas que denunciaram as violências revelam faltando na política contemporânea diz respeito ao papel e ao alcance
mulheres de baixa renda e de baixa escolaridade. No entanto, a dos mercados. Queremos uma economia de mercado ou uma sociedade
violência doméstica e sexual não atinge apenas as mulheres pobres. de mercado? (...). Como decidir que bens podem ser postos à venda e
(2004, p. 55).8 quais deles devem ser governados por outros valores que não os de
mercado? Onde não pode prevalecer a lei do dinheiro?¹¹ (grifo nosso)
Intuitivo que assim seja, já que no Brasil, em 2014, menos de 14% da população
estava obrigada a declarar imposto de renda9. Registre-se, por oportuno, que no Brasil Ademais, mesmo que a multa supracitada tivesse natureza penal, com o que
é obrigado a declarar imposto de renda quem ganha pouco mais de 25 (vinte e cinco não concordamos, frise-se, é absolutamente comum no preceito secundário da norma
mil) reais por ano, ou seja, pouco mais de dois mil reais por mês. Somos, pois, um país penal a cumulação de sanção prisional com sanção pecuniária. Nem por isso esses tipos
de pobres, no qual mais de 86% da população sequer é obrigada a declarar imposto de penais são classificados como inconstitucionais, por ferirem o “non bis in idem”.
renda. São incontáveis os tipos penais que preveem a cumulação de sanção prisional
Assim, a maior incidência de violência doméstica nas classes mais baixas com sanção pecuniária. O próprio art. 330 do CP prevê que a pena é de prisão E (não
da população é uma contingência da realidade nacional, agravada pela deficiência ou) MULTA. Vejamos apenas três:
Perigo de contágio de moléstia grave - Art. 131 - Praticar, com o fim de
educacional brasileira, bem como pela problemática da inserção da mulher no mercado
transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz
de trabalho (Estudos indicam que “existe uma relação direta entre a denúncia e o trabalho de produzir o contágio: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
da mulher. 62% das mulheres que denunciaram trabalhavam (...). O contato com o meio (…)
externo através do trabalho é um componente desnaturalizante da violência”10 ). Enfim, a Calúnia - Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato
realidade da violência de gênero no território nacional contraindica a utilização de multa definido como crime: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e
ou de sanção pecuniária para o combate deste tipo de criminalidade. multa.
Tanto a lógica pecuniária (a lógica de mercado) é inadequada para esta espécie de (...)
delito que a Lei Maria da Penha, em outro dos seus artigos, vedou a aplicação aos casos Desobediência - Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário
a ela subsumidos da Lei n. 9.099/95. Como afirma Michael J. Sandel existem coisas que público: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
o “dinheiro não compra”, ou pelo menos não deveria comprar. As decisões do STJ, apesar da respeitabilidade da corte e de seus membros, é,
O professor de Harvard e professor-visitante de Sorbonne Michael J. Sandel nos portanto, juridicamente frágil, a qual não tem embasamento científico nenhum, concessa
fornece importante indagação sobre tal peculiaridade: maxima venia, com todo respeito de estilo.
Trata-se de mais um caso de solipsismo jurídico no Brasil. Lenio Streck, numa de
suas obras, assim leciona sobre o solipsismo:

8
BARSTED, Leila Linhares. Uma vida sem violência: o desafio das Mulheres – Observatório da Cidadania.
2004. Disponível em: < http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST60/Alessandra_Muniz_de_Campos_60.
pdf>.
9
MARTELLO, Alexandro. Menos de 15% dos brasileiros declaram Imposto de Renda. G1 Economia. 16 abr.
2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/imposto-de-renda/2014/noticia/2014/04/menos-de-15-
dos-brasileiros-declaram-imposto-de-renda.html>.
10
CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência doméstica: análise da Lei Maria da Penha, n. ¹¹ SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Rio de Janeiro:
11.340/06. 4. ed. Salvador: JusPodvim, 2012. p. 69. Civilização Brasileira, 2012. p. 16.
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10.5.3 – A hermenêutica e o combate ao solipsismo. Se a hermenêutica a Constituição não é um documento meramente ‘político’ (declarativo,
aqui trabalhada tem a função de superar as concepções objetivistas pessoal, partidarista), que conteria um finalismo político-social, do qual
acerca da interpretação da lei, não se pode olvidar a sua importância o direito seria um instrumento, mas, sim, é o conteúdo jurídico que
no enfrentamento do solipsimo judicial. (...) as propostas contidas no institucionaliza os campos com ela intercambiáveis, como a política, a
movimento do direito livre – e seus derivados mais ou menos radicais, economia e a moral. Portanto, a Constituição é o fundamento normativo;
tais como o realismo estadunidense e a jurisprudência dos interesses não, evidentemente, no sentido de fundamentum inconcussum
alemã – que reivindicam o papel criativo da interpretação judicial absolutum veritatis, e, sim, no sentido hermenêutico, com o que se pode
principalmente nos casos de lacunas, já havia representado uma crítica dizer que a autonomia do direito passa a ser a sua própria condição de
ao objetivismo exigido pelas diversas modulações do formalismo. possibilidade. Mas isso não pode significar que o jurídico seja aquilo
(...) É desse contexto que nascem os postulados daquilo que hoje que a jurisdição diga que é. Se assim se admitir, corre-se o risco de
nomeamos como protagonismo judicial. (...) Assim, a hermenêutica suprimir a democracia, substituindo-se a onipresença da vontade geral
é um poderoso remédio contra teorias que pretendam reivindicar um pelo governo dos juízes. ¹³
protagonismo solipsitas do judiciário. Esse fator, entretanto, não pode
ser entendido como uma “proibição de interpretar” (...) ou, tampouco, A linha de hermenêutica utilizada pelo STJ (ou a ausência dela), conforme
como uma tentativa de tornar o Judiciário um “poder menor”. Na
visto acima, ao menos para mim, não faz o menor sentido jurídico, concessa maxima
verdade, se trata exatamente do contrário. É justamente porque o
Judiciário possui um papel estratégico nas democracias constitucionais venia, com todo o respeito de estilo. Refutamos cada um dos argumentos do STJ e
contemporâneas – Concretizando direitos fundamentais, intervindo, não encontramos na jurisprudência da Corte qualquer explicação jurídica para a posição
portanto, quase sempre na delicada relação entre direito e política – adotada, que se sustente diante da confrontação com o direito. Todas as explicações
que é necessário pensar elementos hermenêuticos que possam gerar adotadas são facilmente refutadas e, por isso mesmo, não se sustentam.
legitimidade para as decisões judiciais (...). O STJ, com tal entendimento, substitui a “autoridade do argumento” pelo
Vale dizer, a hermenêutica possibilita aos participantes da comunidade “argumento de autoridade”, consagrando uma jurisprudência “birrenta”, que, ao invés de
política, meios para questionar a motivação das decisões de modo a julgar, prefere gerenciar processos, na feliz expressão de Tercio Sampaio Ferraz Júnior:
gerar, nessas mesmas motivações, um grau muito mais elevado de
legitimidade. Nas faculdades, a pesquisa de jurisprudência começa a se sobrepor
(...) à doutrinária. Passamos da centralidade da lei para a da jurisdição.
Portanto, para além da objetividade ingênua do positivismo primitivo, (…) O problema da justificação das decisões jurídicas ganha uma
mas aquém da subjetividade devoradora das posturas realistas, importância inédita, já que o fundamento das decisões tem tido mais
do direito livre ou da jurisprudência dos interesses e dos valores, a importância que a própria lei. Surge, assim, o constitucionalismo
hermenêutica reivindica que a interpretação tenha sentido e que isso argumentativo e de princípios, de origem anglosaxônica. (…)
seja devidamente explicitado.¹² (grifo nosso). À inconfiabilidade da lei se substitui o tirocínio do juiz.
(…) Dessa forma, o que ocorre com a aplicação do direito em face da
Em outra de suas obras, Lenio Streck assim leciona: velha e conhecida segurança jurídica? Reportagem de 2011 publicada
Parece que no Brasil compreendemos de forma inadequada o sentido da por uma revista de circulação nacional mostrava que num escritório
produção democrática do direito e o papel da jurisdição constitucional. em São Paulo, um pequeno grupo de jovens advogados era capaz de
Tenho ouvido em palestras e seminários que ‘hoje possuímos dois acompanhar cerca de 25 mil processos por ano usando um software.
tipos de juízes’: aquele que se ‘apega’ à letra fria (sic) da lei (e esse Diz se que hoje já são 300 mil. Afinal, se há um pequeno grupo de
deve desaparecer, segundo alguns juristas) e aquele que julga advogados capaz de acompanhar centenas de milhares de processos,
conforme os princípios (esse é o juiz que traduziria os valores – sic – da há certamente juízes que agem da mesma forma. Não é difícil
sociedade, que estariam por baixo da letra fria da lei). Pergunto: cumprir imaginar como são tomadas as decisões diante de uma enxurrada de
princípios significa descumprir a lei? Cumprir a lei significa descumprir informações, filtradas por “modelos” de gabinete, cuja regra maior é
princípios? (...) Obedecer à risca o texto da lei democraticamente “limpar a mesa”. Como se julgar se tornasse um gerenciar repartido
construído (já superada a questão da distinção entre direito e moral) em grupos e distribuído em funções, em que a reflexão consistente é
não tem nada a ver com a exegese à moda antiga (positivo primitivo). substituída pela consulta e cola de informações. É essa a aplicação
(...) Repito: cumprir a letra (sic) da lei significa, sim, nos marcos de assustadoramente crescente que torna exasperante a questão jurídica
um regime democrático como o nosso, um avanço considerável. (...) olhada do futuro para o passado14

13
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e (pos)positivismo: por que o ensino jurídico continua de(sin)formando
os alunos?. In: CALLEGARI, André Luís; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leionel Severo. (Org.) Constituição,
sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de pós-gradução em Direito da UNISINOS: mestrado
12
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2010. p. 177 e ss.
direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 295 et seq. 14
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Julgar ou gerenciar? Folha de São Paulo. Disponível em: <http://www1
folha.uol.com.br/opiniao/2014/09/1523485-tercio-sampaio-ferraz-junior-julgar-nao-e-gerenciar.shtml>.
REVISTA DO MPBA 124 125 REVISTA DO MPBA
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Registre-se, por honestidade intelectual, que tal interpretação do STJ é adotada Dessa forma, questiona-se porque determinadas condutas, praticadas
não somente para os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, mas para por determinadas pessoas, são escolhidas para serem objeto da atuação
todos os casos de desobediências à ordens legais de funcionários públicos. rigorosa penal, capaz de gerar estigmas perpétuos na vida de quem
A esse respeito, vejamos as lições de Cezar Roberto Bitencourt: adentra seus recintos. O chamado second code, conjunto de regras
Quanto a lei extrapenal comina sanção civil ou administrativa, de interpretação e aplicação das leis penais baseado em preconceitos
e não prevê cumulação com o art. 330 do CP, inexiste crime de e estereótipos, determina a seleção de indivíduos, sua condenação e
desobediência. Sempre que houver cominação específica para o submissão ao cárcere, local onde será despojado de seus valores e
eventual descumprimento de decisão judicial de determinada sanção, acreditará ser aquilo que lhe foi rotulado: um criminoso.16
doutrina e jurisprudência têm entendido, com acerto, que se trata de
conduta atípica, pois o ordenamento jurídico procura solucionar o In casu é justamente disto que se trata. Ora, antes da Lei Maria da Penha quem
eventual descumprimento de tal decisão no âmbito do próprio direito é que desobedecia impunemente ordem legal de agente público no Brasil? Ao preto,
privado. Na verdade, a sanção administrativo-judicial afasta a natureza pobre e da periferia nunca foi deferida tal faculdade. Para estes sempre existiu o spray
criminal de eventual descumprimento da ordem judicial. Com efeito, de pimenta, a bala de borracha e os autos de resistência. Fácil é verificar a diferença
se pela desobediência for cominada, em lei específica, penalidade de tratamento que é atribuída aos descumprimentos de ordens legais no Brasil, vide os
civil ou administrativa, não se pode falar em crime, a menos que tal exemplos de Eldorado dos Carajás ou Desocupação do Pinheirinho e dos processos onde
norma ressalve expressamente a aplicação do art. 330 do CP. Essa as “Excelências” descumprem decisões judiciais de fornecimento de medicamentos.
interpretação é adequada ao princípio da intervenção mínima do direito Ademais, me parece equivocada a invocação da ultima ratio. Ora, se sempre
penal, sempre invocado como ultima ratio. Solução idêntica ocorre
que houver cominação específica de determinada sanção, civil ou administrativa, para
com as decisões judiciais que cominem suas próprias sanções no
âmbito do direito privado, como sói acontecer nas antecipações de o eventual descumprimento de decisão judicial ou ordem legal de funcionário público a
tutela, liminares ou ações civis públicas, com apenas uma diferença: o doutrina e a jurisprudência entenderem que se trata de conduta atípica, pois o ordenamento
Judiciário, ao cominar sanções civis ou administrativas, nesses casos, jurídico, supostamente, procuraria solucionar o eventual descumprimento de tal decisão
não pode ressalvar a aplicação cumulativa da pena correspondente ao no âmbito do próprio direito privado, estar-se-ia, em verdade, transformando o direito
crime de desobediência, por faltar-lhe legitimidade legislativa.15 penal em prima ratio. Isto porque, a contrário senso, quando não houver sanção civil ou
administrativa para o descumprimento de uma ordem legal restaria caracterizado o crime
Em primeiro lugar, tal interpretação transmudaria, ilegalmente, o art. 330 do CPB de desobediência.
em uma nova espécie de norma penal em branco, já que a doutrina e a jurisprudência têm
exigido para sua incidência que uma lei específica ressalve expressamente a aplicação 2.1 PROIBIÇÃO DA PROTEÇÃO DEFICIENTE
daquele para cada caso singular de desobediência à ordem legal. A disposição penal
do art. 330 seria, pois, insuficiente por si somente. Como se fosse possível criar norma Vejamos, ainda, as consequências práticas deste entendimento do STJ num
penal em branco por interpretação jurisprudencial. exemplo hipotético, que, de propósito, muito se assemelhará a um caso concreto que
Além do mais, trata-se de interpretação bastante seletiva, capaz de causar calafrios vivenciamos como Promotor substituto da Promotoria de Justiça de Miguel Calmon: Um
aos teóricos do labelling approach (teoria do etiquetamento social). indivíduo chamado Tício agride sua esposa e sua filha com um facão, causando-lhes
O Labelling Approach (ou teoria do etiquetamento, da rotulação ou da
lesões corporais leves. Preso em flagrante delito, vê a sua prisão convertida em outras
reação social) surge nos Estados Unidos, nos anos 1960, como marco
da teoria do conflito. (...) Parte-se da ideia de que o crime não guarda medidas cautelares penais, dentre elas a proibição de se aproximar da sua esposa,
uma realidade ontológica em si. (...) O ato criminoso ou desviante é um afastamento do lar conjugal, recolhimento no período noturno, proibição de portar armas,
ato que assim foi definido por um grupo de pessoas, por uma norma inclusive brancas, etc. Insatisfeito, todavia, quebrando compromisso assinado em juízo e
social. Logo, a condição de criminoso ou desviado é também fruto da descumprindo decisão judicial, Tício se prostra em frente à casa da sua companheira, à
atuação de mecanismos de controle, ou seja, da resposta social a alguns noite, com uma faca, do tipo peixeira, senta-se no meio-fio, puxa a sua arma e em frente
atos praticados pelas pessoas selecionadas (aplicação daquelas regras à casa da vítima começa a riscar o chão, como se estivesse afiando a sua faca, tudo isso
a sujeitos específicos). (...) Questiona-se por que algumas condutas na presença da sua esposa e filha, que atemorizadas acompanham a cena da janela.
são criminalizadas, ao passo que outras, igualmente lesivas, não o são
e por que algumas pessoas são mais vulneráveis a serem selecionadas
pelo sistema do que outras, diante de condutas idênticas. (...) O crime
não mais é dado como um fato apriorístico, mas criado pela sociedade
(mais especificamente, pelos detentores do poder).

15
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 4, p. SILVA, Suzane Cristina da. Reincidência e maus antecedentes: crítica a partir da teoria do labelling
16

459. approach. Disponível em: < http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/201-Artigos>.


REVISTA DO MPBA 126 127 REVISTA DO MPBA
DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA

Ora, segundo o entendimento do STJ tal conduta é atípica. Assim, independente Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como
do temor causado às vítimas, as quais receiam, inclusive, sair de casa (com toda razão, proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também
inclusive), a esposa não poderá chamar a polícia, já que não estaríamos diante de fato um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os
direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do
típico. O Sr. Tício, por seu turno, mesmo que a polícia vá ao local, não poderá ser preso
excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos
em flagrante delito, pois sua conduta, segundo o STJ, é atípica. como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela
Ou seja, a esposa terá que esperar o Sr. Tício resolver ir embora, de livre e (Untermassverbote) - HC 104410/RS - Segunda Turma; Rel. Min.
espontânea vontade, para então procurar o Fórum, já que Tício não poderá ser preso em Gilmar Mendes; julgado em 06.03.2012.
flagrante, enquanto risca a faca em frente à casa da vítima, para, somente então, noticiar
o descumprimento da medida protetiva. Não poderá, nem mesmo, procurar a Delegacia, Vejamos também os escólios de Barros:
já que não se trata de crime, segundo o STJ. Aí, noticiando o descumprimento, o MP O princípio da proibição de proteção penal deficiente emana diretamente
terá que representar contra o acusado, requerendo a aplicação de multa a, na maioria do princípio da proporcionalidade, que estaria sendo invocado para
das vezes, um miserável. Esta, inclusive, seria a única punição para Tício, já que prisão evitar a tutela penal insuficiente, no caso em comento, o princípio nemo
cautelar não é punição, muito menos sanção, é medida acautelatória processual penal. inauditus damnari potest, protege o acusado, mas a sociedade não
pode ficar desprotegida, portanto, o Estado tem que ter mecanismos de
O entendimento do STJ, além de não possuir nenhum embasamento jurídico, é
tutela eficaz, incluindo-se os de natureza penal. 17
absolutamente violador do princípio da proibição à proteção deficiente. A mulher, vítima
de violência doméstica, é abandonada à própria sorte pelo STJ. O próprio STF já aplicou o princípio da proibição à proteção deficiente em julgado
Não bastasse isso (o que já é muito), o entendimento do STJ vulnera frontalmente relativo à violência de gênero. Nos julgamentos da ADI n. 4.424/DF e ADC n. 19/DF
a própria Lei Maria da Penha. O artigo 10 da Lei Maria da Penha prevê que: assim fora consignado: Joaquim Barbosa, em seu voto, reconheceu expressamente
Art. 10. Na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica a aplicabilidade da vedação à Proteção Deficiente na senda da violência de gênero,
e familiar contra a mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento afirmando que: “quando o legislador, em benefício desses grupos, edita uma lei que acaba
da ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis. se revelando ineficiente, é dever do Supremo Tribunal Federal, levando em consideração
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo ao dados sociais, rever as políticas de proteção”. Rosa Weber, neste mesmo julgamento,
descumprimento de medida protetiva de urgência deferida. afirmou que exigir da mulher agredida uma representação para a abertura da ação
Ora, não poderia ser diferente. Uma mulher vítima de violência doméstica deve penal se revela como atentatório à dignidade da pessoa humana: “tal condicionamento
ser salva antes de ser morta. O parágrafo único do art. 10 da Lei Maria da Penha prevê implicaria privar a vítima de proteção satisfatória à sua saúde e segurança.” Ou seja,
expressamente: “aplica-se o disposto no caput deste artigo ao descumprimento de seria deferir à mulher uma proteção deficiente, o que não seria tolerado.
medida protetiva de urgência deferida”. e o caput do art. 10 informa: “na hipótese da Desde a edição da Lei Maria da Penha diversas interpretações jurídicas têm surgido
iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, a autoridade no sentido, aparentemente, de tentar reduzir o número de ações judiciais em trâmite
policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as providências perante o Judiciário nacional, de processos criminais atinentes a delitos praticados no
legais cabíveis”. Assim, prevalecendo a tese do STJ, que não é unânime, muito menos ambiente doméstico contra a mulher.
se consolidou, já que existem dissonâncias no próprio STJ, abaixo citadas, e o STF O Judiciário nacional se habituou a ver, antes da edição da Lei Maria da Penha,
ainda não se manifestou, de atipicidade da conduta, faremos letra morta do art. 10 da 90% (noventa por cento) dos processos criminais atinentes a crimes praticados no
Lei Maria da Penha (quiçá, faremos também vítima morta). Quanto à vedação à proteção ambiente doméstico contra a mulher serem extintos na malfadada “audiência preliminar”,
deficiente, algumas considerações ainda são necessárias. em nosso sentir absolutamente inconstitucional. A estatística supra é confirmada por
O Supremo Tribunal Federal brasileiro, nesta senda, já reconheceu que o pesquisa. Vejamos:
Professora Stela Cavalcanti – “Esse arquivamento (ou desistência da
princípio da proporcionalidade encerra dois parâmetros de interpretação, pois os direitos vítima) em geral, era induzido pelo magistrado ou conciliador, através
fundamentais não configuram apenas mandamentos de garantias contra excessos do da insistência feita à vítima de aceitar o compromisso (verbal e não
Estado, mas também trazem no seu núcleo material a necessidade de que o Estado expresso) do agressor de não cometer mais o ato violento. (...) Em
tenha uma atuação mínima a garantir a sua tutela efetiva (princípio da proibição 90% dos casos os processos eram arquivados. (...) Nota de rodapé –
da proteção deficiente). Analisar os direitos fundamentais apenas sob o prisma da Nos juizados em Porto Alegre a conciliação renunciatória tem sido de
proibição do excesso é fazer um análise caolha. Assim é que, na ponderação de valores 90% conforme dados obtidos na pesquisa já mencionada. CAMPOS,
constitucionalmente equivalentes e em conflito em determinado caso concreto, o STF já se Carmen Hein de. Juizados Criminais e seu déficit teórico.”18
utilizou dos balizamentos da proibição de excesso e da proibição de proteção insuficiente
na buscar da tutela mais adequada para o resguardo dos direitos fundamentais.
17
BARROS, Francisco Dirceu. Curso de processo penal para concursos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.
Vejamos, a esse respeito, um julgado do STF:
p.187. (no prelo).
18
CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência doméstica: análise da Lei Maria da Penha,
n 11.340/06. 4. ed. Salvador: JusPodvim, 2012. p. 198.
REVISTA DO MPBA 128 129 REVISTA DO MPBA
DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA

Assim, por mais que a Lei Maria da Penha diga expressamente que não se aplica a Saúde, educação, liberdade, patrimônio, dignidade, vida? Cada pedido
Lei 9.099/95 aos casos àquela submetidos, muitos ainda insistem em oferecer transação formulado faz funcionar uma grande oficina de ideias e ações que se
encontra sobrecarregada, prestes a parar de funcionar. São quase 2
penal. Começa a crescer também corrente que defende a aplicação da suspensão
milhões de processos para pouco mais de 580 juízes, na Bahia. Os
condicional do processo a esses casos. Muitos ainda insistem em designar a audiência
juízes despacham, decidem, julgam, realizam audiências, conciliam,
prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha como se esta fosse de ocorrência obrigatória, atendem partes e advogados, trabalham em plantões noturnos,
independentemente de a mulher ter manifestado ou não desejo de se retratar, até mesmo finais de semana, muitas vezes em mais de um cartório, cumprem
em casos de lesões corporais leves. Tudo isso, aparentemente, no intuito de se reduzir metas, fazem relatórios. Também julgam crimes graves e hediondos,
o número de demandas em curso no Judiciário, já que antes tínhamos a extinção de contrariam grandes interesses, impõem limites a quem não respeita a
90% dos casos e agora temos esses processos “abarrotando” ainda mais a Justiça. Não lei. Depois que os juízes analisam os processos, os funcionários do
bastassem todos sofrimentos e humilhações impingidos às mulheres no Brasil, toda a cartório precisam executar os atos, atender as partes, fazer mandados,
discriminação a elas direcionada, agora as mulheres terão que carregar também, sobre cartas, notificações, juntar petições e cumprir as determinações dos
juízes. FALTAM JUÍZES: São cerca de 4 magistrados para cada 100.000
os seus ombros, a pecha de levarem à falência a Justiça Penal brasileira. Não nos parece
habitantes na Bahia. A ONU estabelece a média de 400 processos
justo. Essa culpa não poderá recair sobre as mulheres vítimas. Elas merecem proteção
por ano para cada juiz. (...) Não bastam caneta, conhecimento e amor
e não vitimização secundária e violência institucional. pela missão. Os juízes precisam de ferramentas para prestar a você,
É preciso lembrar que, segundo o IPEA, “2.1 milhões de mulheres são espancadas cidadão, uma justiça mais rápida, acessível e justa!20
por ano no país, 175 mil/mês, 5,8 mil/dia, 243/hora ou 4/minutos – uma a cada 15
A valorização é, sem dúvida nenhuma, um ato externo. Ou seja, o Judiciário precisa
segundos”.
ser valorizado por todos, já que é a última trincheira do cidadão perante o abuso estatal,
Segundo pesquisa do Senado, uma mulher é morta a cada duas horas no Brasil19.
por vezes até mesmo praticado pelo MP. Todavia, a valorização é também um ato interno,
Ou seja, a lógica da Lei Maria da Penha é tratar com mais rigor casos supostamente menos
que deve partir do próprio Judiciário. Neste particular, nos parecer que o entendimento
graves para evitar a reiteração delitiva e a ocorrência de crimes ainda mais gravosos.
do STJ é um posicionamento desprestigioso em relação ao ato mais importante do
Os crimes domésticos têm esse fator específico: a reincidência é grande porque vítima
Magistrado, que é uma decisão judicial. Ora, me parece anacrônico constituir crime o
e agressor, mesmo que separados, têm contatos recorrentes, seja em razão dos filhos,
descumprimento de ordem legal de um agente de trânsito ou de um oficial de justiça e
seja em razão da burocracia estatal para a partilha dos bens, etc.
ser fato atípico o descumprimento de uma determinação judicial expressa.
A Lei Maria da Penha e os seus estudiosos sabem que não é a Justiça Penal,
sozinha, que resolverá o problema desta criminalidade específica, tanto que na norma
citada somente existem dois ou três dispositivos penais propriamente ditos (todos os
2.2 DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO
outros buscam a solução holística do problema, seja na área da educação, seja na área
TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL
do tratamento para o agressor, do atendimento para a ofendida, etc), mas o Judiciário tem
papel importante e fundamental, de evitar a reiteração delitiva de gravidade crescente,
Todavia, independentemente da discussão acima, entendemos que o
bem como de responsabilizar o agressor pela sua conduta.
descumprimento de medidas protetivas de urgência constitui crime sim, proscrito no
Parece-nos que o STJ ignorou tudo isso ao entender que o descumprimento de
artigo 359 do Código Penal, existindo, inclusive, recente decisão do Superior Tribunal de
medida protetiva de urgência é fato atípico penalmente.
Justiça neste mesmo sentido.
Uma outra questão ainda me parece fundamental: A AMAB, Associação
O STJ, também em decisão recentíssima, afirmou que o descumprimento de
dos Magistrados da Bahia, recentemente lançou uma campanha, à qual aderimos
medidas protetivas de urgência fixadas pelo juízo não caracteriza o crime previsto no
completamente, de valorização dos Magistrados e do Poder Judiciário baiano. A
art. 330 do CPB, e sim o delito previsto no art. 359 do Código Penal. Vejamos a recente
campanha foi assim divulgada:
decisão do STJ, in verbis:
A JUSTIÇA QUE ATENDE A VOCÊ, CIDADÃO, EXIGE ATENÇÃO! Os STJ - HC 220392/RJ - Rel. Ministro JORGE MUSSI - QUINTA
juízes têm a missão de garantir que os direitos sejam respeitados. Para TURMA - DJe 10/03/2014 – Ementa: DESCUMPRIMENTO DE
isso, eles dedicam o seu tempo, energia, conhecimento, sensibilidade. MEDIDAS PROTETIVAS PREVISTAS NA LEI 11.340/2006. ALEGADA
Os juízes correm riscos, enfrentam pressões e trabalham com afinco CARACTERIZAÇÃO DO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 330
e imparcialidade, para resolver conflitos que aumentam a cada dia. A DO ESTATUTO REPRESSIVO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA
verdade é que, cedo ou tarde, você, como tantas outras pessoas, pode ESPECIALIDADE. INCIDÊNCIA DO TIPO ESPECÍFICO DISPOSTO
precisar da decisão de um juiz. Qual poderá ser a sua necessidade? NO ARTIGO 359. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO.

UMA mulher é morta a cada duas horas no Brasil. Jornal do Senado. 20 nov. 2013. Disponível em: <http://
19

www12.senado.gov.br/jornal/edicoes/2013/11/20/uma-mulher-e-morta-a-cada-duas-horas-no-brasil>. 20
Página da AMAB. Disponível em: <http://www.amab.com.br/images/panfleto.pdf>.
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DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA

1. Da leitura do artigo 359 do Código Penal, constata-se que nele 3 CONCLUSÃO


incide todo aquele que desobedece decisão judicial que suspende
ou priva o agente do exercício de função, atividade, direito ou Segundo o Ex-Procurador-Geral de Justiça do Estado da Bahia, o Dr. Wellington
múnus. 2. A decisão judicial a que se refere o dispositivo em César Lima e Silva, em palestra proferida na FESMIP – MP Ba, há mais de 06 anos, a
comento não precisa estar acobertada pela coisa julgada, tampouco
correta tipificação de uma conduta poderia ser comparada à tentativa de sintonização
se exige que tenha cunho criminal, bastando que imponha a
suspensão ou a privação de alguma função, atividade, direito ou perfeita de uma emissora de rádio em um aparelho analógico. O ouvinte, almejando
múnus. Doutrina. 3. A desobediência à ordem de suspensão da escutar a emissora com clareza e sem ruídos, deslocaria lentamente o “dial” do aparelho
posse ou a restrição do porte de armas, de afastamento do lar, da do seu rádio até encontrar a sintonia fina. A metáfora não poderia ser mais perfeita,
proibição de aproximação ou contato com a ofendida, bem como apesar de revelar a idade de quem a compreende, em plena era digital. A tipificação não
de frequentar determinados lugares, constantes do artigo 22 da lei é um juízo pronto e acabado, definitivo. A correta tipificação de uma conduta é uma busca,
11.340/2006, se enquadra com perfeição ao tipo penal do artigo que nesse caso desagua no art. 359 do Código Penal, apesar da jurisprudência do STJ
359 do Estatuto repressivo, uma vez que trata-se de determinação estar, aparentemente, se consolidando noutro sentido. Todavia, tal entendimento do STJ,
judicial que suspende ou priva o agente do exercício de alguns de além de vulnerar o princípio da vedação à proteção deficiente, como visto acima, não se
seus direitos.
compatibiliza com a legislação e principiologia penal, muito menos com os ditames da
O tipo penal do art. 359 do CPB assim prescreve: Lei 11.340/2006. Ademais, a sintonia fina da tipicidade penal indica a ocorrência do crime
Desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de previsto no art. 359 do CPB. Em sendo crime, possível é a prisão em flagrante.
direito - Art. 359 - Exercer função, atividade, direito, autoridade ou
múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial: Pena
- detenção, de três meses a dois anos, ou multa.
REFERÊNCIAS
Ora, as medidas protetivas são justamente suspensões judiciais do direito do
agressor de livre locomoção, de portar armas, de livre comunicação e manifestação. BARROS, Francisco Dirceu. Curso de processo penal para concursos. Rio de Janeiro:
Assim, por mais que o Ministério Público tenha oferecido Denúncia fazendo Elsevier, 2014.
referência ao art. 330 do CPB, sabe-se que o acusado defende-se dos fatos que lhe
são imputados e não da capitulação jurídica proposta na Peça Acusatória, vez que em BARSTED, Leila Linhares. Uma vida sem violência: o desafio das mulheres – Observatório
relação a esta (capitulação) existe um instituto jurídico à disposição do magistrado, que da Cidadania. 2004. Disponível em: < http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST60/
é o emendatio libelli. Assim, não seria o caso de rejeição da denúncia, por atipicidade Alessandra_Muniz_de_Campos_60.pdf>.
da conduta, e sim de, ao final do processo, aplicar-se o emendatio libelli. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo:
O art. 383 do CPP assim dispõe: “Art. 383.  O juiz, sem modificar a descrição do Saraiva, 2004. v. 04.
fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda
que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave. (Redação dada pela Lei nº CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência doméstica: análise da Lei Maria
11.719, de 2008).” da Penha, n. 11.340/06. 4. ed. Salvador: JusPodvim, 2012.
Sobre emendation libelli, pertinente trazer à colação os escólios de Rômulo de DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual
Andrade Moreira21: civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentence e coisa
Nesta hipótese, como se sabe, a peça acusatória narrou
perfeitamente o fato criminoso, tendo o Juiz “liberdade de atribuir
julgada. Salvador: JusPodvim, 2007. v. 2.
ao delito conceituação jurídica diversa da que lhe foi dada pelo FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista
acusador, mesmo para impor pena mais grave, contanto que não dos Tribunais, 2014.
substitua o fato por outro”, como já explicava Basileu Garcia.
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Julgar ou gerenciar? Folha de São Paulo. Disponível
Não se trata, pois, de hipótese de rejeição da inicial, muito menos de atipicidade em: < em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/09/1523485-tercio-sampaio-ferraz-
da conduta. junior-julgar-nao-e-gerenciar.shtml>.
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade adminsitrativa. 6. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011.
GOMES, Luiz Flávio. Prisão e medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 4 de
21
MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Reforma do Código de Processo Penal: Procedimentos. Disponível em: maio de 2011. Coordenação: Luiz Flávio Gomes, Ivan Luís Marques. São Paulo: Revista
<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3095>. dos Tribunais, 2011.
REVISTA DO MPBA 132 133 REVISTA DO MPBA
DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO FATO TÍPICO: ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL VERSUS CRIME DE DESOBEDIÊNCIA

LIMA, Renato Brasileiro. Manual de processo penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. v. 1. O DIREITO QUILOMBOLA E CONFLITO FUNDIÁRIO NA BAHIA:
REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO
MARTELLO, Alexandro. Menos de 15% dos brasileiros declaram Imposto de Renda.
G1 Economia. 16 abr. 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/imposto-de- RIO DOS MACACOS
renda/2014/noticia/2014/04/menos-de-15-dos-brasileiros-declaram-imposto-de-renda. Marli Mateus dos Santos*
html>.
EMENTA
MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Reforma do Código de Processo Penal: Procedimentos. Este artigo propõe o Direito Quilombola como novo campo do Direito Público, a partir da
Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_ análise legal do processo fundiário que excluiu sujeitos escravizados e livres desde o
leitura&artigo_id=3095>. século XIX. Neste trabalho, serão analisados com esta finalidade: a implementação da Lei
SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Rio de de Terras, em 1850; o Direito de Resistência Constitucional que historicamente ocorreu
Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. através dos quilombos coloniais e pós-coloniais; os patrimônios materiais e imateriais,
bem como os valores civilizatórios afro-brasileiros das comunidades quilombolas. Será
SILVA, Suzane Cristina da. Reincidência e maus antecedentes: crítica a partir da teoria realizada também, uma breve revisão da literatura sobre o tema e um estudo de caso
do labelling approach. Disponível em: < http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_ (Marinha do Brasil X Quilombo Rio dos Macacos), no qual se destaca a urgência em
artigo/201-Artigos>. salvaguardar os quilombolas em toda sua complexidade jurídica, cultural, histórica
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da e social, perante o poder biopolítico e necropolítico do Estado, especialmente nessas
construção do direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. situações de conflito direto na Bahia, entre as comunidades quilombolas e as Forças
Armadas brasileiras. Como base teórica para a realização deste artigo, usaremos as
______. Hermenêutica e (pos)positivismo: por que o ensino jurídico continua de(sin) pesquisas de Alex Ratts, Beatriz Nascimento, Carlos Ari Sundfeld, Felix Fischer, João
formando os alunos?. In: CALLEGARI, André Luís; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leionel José Reis, José Carlos Buzanello, José Ramos Sacchetta Mendes, Kabengele Munanga,
Severo. (Org.) Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Michel Foucault, Onete da Silva Podeleski, entre outros autores.
pós-gradução em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010. PALAVRAS-CHAVE: Direito Quilombola. Direitos Fundamentais. Direitos Humanos.
SUASSUNA, Ariano. O Santo e a porca. 29. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2014. Quilombo Rio dos Macacos. Marinha do Brasil.

UMA mulher é morta a cada duas horas no Brasil. Jornal do Senado. 20 nov. 2013. ENCRUZILHADAS INICIAIS
Disponível em: <http://www12.senado.gov.br/jornal/edicoes/2013/11/20/uma-mulher-e-
morta-a-cada-duas-horas-no-brasil>. O presente trabalho propõe-se discutir brevemente as linhas de tensão no campo
do Direito Público, pela proposição de um Direito Quilombola que atua como saber
liminar contra uma colonialidade do poder-saber, sobretudo no conflito fundiário Marinha
do Brasil X Quilombo Rio dos Macacos – caso paradigmático em que há um embate
explícito entre os “interesses” do Estado brasileiro e os Direitos Fundamentais dessa
comunidade quilombola centenária, foco de nossas abordagens críticas.
Além de situar o tema na incontornável dimensão histórica que ele atravessa
desde o surgimento dos quilombos literais e a ocorrência das sublevações negras
do período colonial ao pós-colonial, analisamos como, para além do controle e
alijamento fundiário do sujeito ex-escravizado e seus descendentes, a Marinha
tem recorrido na contemporaneidade a perversos dispositivos biopolíticos
para forçar a saída de membros das comunidades quilombolas de locais
considerados pela Segurança Nacional como estratégicos para a Defesa do país,
a exemplo de Alcântara, no Maranhão, onde existe base de lançamento de foguetes;

*
Mestre em Direito Público pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia.
Servidora do Ministério Público do Estado da Bahia no GEDEM (Grupo de Atuação Especial em Defesa das
Mulheres e LGBT). Contato: marlimateus@hotmail.com e marli.santos@mpba.mp.br
REVISTA DO MPBA 134 135 REVISTA DO MPBA
O DIREITO QUILOMBOLA E CONFLITO FUNDIÁRIO NA BAHIA: O DIREITO QUILOMBOLA E CONFLITO FUNDIÁRIO NA BAHIA:
REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS MACACOS REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS MACACOS

Marambaia, que é sede naval, situada no Rio de Janeiro e a região do Quilombo Ele observa que a crise dominou a relação de trabalho brasileiro “na maior parte do
Rio dos Macacos (Bahia), foco de nossas abordagens, onde a Marinha também reivindica século XIX, em proporção aos entraves que o legislador da época estabeleceu para
a posse do território ocupado pelos quilombolas. obstaculizar o acesso de lavradores à propriedade de terra.’’²
No caso do conflito com o centenário Quilombo Rio dos Macacos, a Marinha do Na segunda metade do século XIX no Brasil, 1850, a Assembleia Geral aprovou
Brasil tem descaracterizado ou não-reconhecido sistematicamente em seus discursos a Lei Eusébio de Queiroz, que dava fim ao tráfico de navios de escravos, sinalizando
esta comunidade como quilombola, designando seus membros como meros invasores a futura abolição da escravatura, contudo, duas semanas anterior à lei antiescravista,
infratores, cerceando o acesso de seus membros ao rio, a materiais para a (re)construção formaram-se as primeiras diretrizes fundiárias dominantes, com a promulgação da Lei
das casas abaladas pelo tempo, impedindo o cultivo da terra, incidindo de forma extrema de Terras.
mesmo em casos de violência física que ganharam repercussão nacional. A Lei de Terras, nº 601, de 18 de setembro de 1850, era limitada ao acesso de
Em virtude das especificidades das comunidades quilombolas, defendemos a pequenos agricultores à propriedade da terra. A aquisição dos terrenos era feita através
urgência do estabelecimento do campo do Direito Quilombola, uma vez que o Direito de compra e venda, não mais por posse e cessão, como nos tempos coloniais. Sacchetta
dos Povos Tradicionais, apesar de representar um avanço necessário ao Direito Público Ramos Mendes destaca que esta medida dificultou ainda mais o acesso à pequena
e aos Direitos Humanos, ele não abarca devidamente a complexidade idiossincrática propriedade rural e estimulou a expansão dos latifúndios em todo o país. Com a crise,
das comunidades quilombolas atravessadas pelo que o projeto A Cor da Cultura¹ chama muitos fazendeiros e políticos latifundiários se anteciparam para impedir que negros
de valores civilizatórios afro-brasileiros, tampouco a dimensão específica da reparação pudessem também se tornar donos de terras, estabelecendo que as terras só poderiam
necessária para este grupo que sofreu com políticas estatais de exclusão. ser adquiridas por usucapião, compra e venda ou por doação do Estado.
O Direito Quilombola aparece então, neste trabalho, como campo-devir Na mesma perspectiva crítica de Sacchetta Ramos Mendes, Onete da Silva
necessário para favorecer o exercício pleno da cidadania das comunidades quilombolas Podeleski, em seu artigo Lei de Terras 1850 ³, discute a questão fundiária brasileira em
e remanescentes de quilombo no Brasil ante a conjuntura socio-histórico-jurídica de diversos âmbitos legais do Estado, apontando que a construção da cidadania do país
exclusão a que foram/são expostos. foi forjada a partir de interesses patrimonialistas, responsáveis por distanciar a maior
camada da comunidade brasileira do acesso à terra.
O ano de 1871 foi marcado pela assinatura da Lei do Ventre Livre, declarando que
ENCRUZILHADAS FUNDIÁRIAS: LEI DE TERRAS todos os filhos de escravizados nascidos a partir daquela data estariam libertos. Em 1874
foi elaborada uma comissão do Registro Geral e de Estatística das Terras Públicas, que
Os dispositivos jurídicos forjados desde o século XIX sobre a propriedade, como logo foi abolido. Somente em 1876 foi estabelecida a Inspetoria de Terras e Colonização,
a Lei de Terras de 1850, salvaguardavam os colonos, tensionando o (não-) lugar a que permaneceu até o final do Império.
ser ocupado pelos negros escravizados e, mesmo após a abolição da escravatura, Em 1880, iniciou-se o sistema de imigração subsidiada. Em 1885 foi promulgada
marginalizavam esses sujeitos no processo de posse e regulação do espaço urbano a Lei dos Sexagenários, declarando libertos todos os escravos acima de 60 anos. Neste
originando as favelas como quilombos urbanos modernos no século XX, de acordo com caso, assim como também na Lei do Ventre Livre, descartavam-se os escravos fora da
os estudos de Beatriz Nascimento. Nesse embate biopolítico, a vida do negro escravizado cadeia produtiva, sem nenhum direito assegurado.
e depois ex-escravizado foi racionalizada pelo Estado, e o Direito de Resistência Já no dia 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea que declarava
Constitucional emergiu historicamente como poder-saber liminar de grupos minoritários o fim da escravidão do Brasil, porém essa liberdade não foi completa, visto que o Estado
como os quilombolas. brasileiro não tinha um projeto de integração social que permitisse ao ex-escravizado ter
No artigo Desígnios da Lei de Terras: imigração, escravismo e propriedade fundiária educação, habitação e trabalho para que assim se sustentasse de forma independente.
no Brasil Império, José Sacchetta Ramos Mendes analisa as primeiras décadas do processo Mais de um século depois, após a Constituição de 1988 e toda discussão que
de transição do regime escravocrata para o sistema de trabalho assalariado e o início da ocorreu no território nacional acerca da necessidade do acesso amplo à terra, inclusive
mão de obra imigrante tomando como eixo a constituição dos denominados contratos de com políticas de desoneração para os grupos minoritários, bem como a previsão legal de
parceria - diferentemente do sistema adotado nas primeiras décadas do século XIX - e o uma reforma agrária, tivemos também o sancionamento da Lei 13.043/13, determinando
mecanismo utilizado para atrair investidores para trabalhar nas lavouras de café do país. como indispensável a desobrigação do Imposto Territorial Rural (ITR) cobrado às
comunidades quilombolas.

2
MENDES, José Sacchetta Ramos; SACCHETTA, José . Desígnios da Lei de Terras: imigração, escravismo
e propriedade fundiária no Brasil Império. Caderno CRH (UFBA), v. 22, p. 173-184, 2009. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792009000100011>. Acesso em: 01
out.2015.
3
PODELESKI, Onete da Silva. Lei de Terras de 1850. Revista Santa Catarina em História, Florianópolis, p.
1
A COR da Cultura. Disponível em: <http://www.acordacultura.org.br/> 47-58.
REVISTA DO MPBA 136 137 REVISTA DO MPBA
O DIREITO QUILOMBOLA E CONFLITO FUNDIÁRIO NA BAHIA: O DIREITO QUILOMBOLA E CONFLITO FUNDIÁRIO NA BAHIA:
REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS MACACOS REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS MACACOS

Outrossim, a lei também situa que as dívidas acumuladas no transcorrer das consolidou no Brasil dos séculos XVI ao XIX, como motor da economia colonial,
cobranças do ITR apontadas como dívidas ativas serão anistiadas e não mais arrecadadas deixou marcas indeléveis mesmo na formação do Estado-nação brasileiro, a posteriori,
dos quilombolas ocupantes das terras reconhecidas e certificadas pela Fundação produzindo, neste contingente populacional, déficits significativos nos campos da
Palmares. A sanção da lei veio com a aprovação da Medida Provisória (MP) 651/14 que, educação, economia e, sobretudo, dos Direitos Fundamentais que abarcam, sobretudo,
além de discutir a causa quilombola, destaca políticas tributárias e de incentivo ao setor os quilombolas e seus herdeiros históricos, analisados aqui considerando-se o
produtivo. ímpeto de resistência desses sujeitos mesmo às leis que tentaram docilizar e anular
De fato, o discurso jurídico sobre a propriedade dos remanescentes de quilombo biopoliticamente seus corpos.
hoje é o significado de um trabalho custoso de capital simbólico4 para acumulação de O Direito de Resistência é a denominação oferecida à autêntica oposição de
uma “verdade jurídica” do que de qualquer construção teórica ortodoxa e positivista um povo a regras formais esmagadoras que não correspondem às reais aspirações
nesse sentido. As instruções normativas, os decretos, as decisões em torno de um direito de uma coletividade, podendo ser despontado pela desobediência civil ou mesmo por
quilombola e as jurisprudências somadas ao Direito de resistência reflete esse estado do uma guerra. Ou seja, é o direito de inadimplir e arrazoar decisões governamentais que
rizoma que se dissemina sem uma ideia de centro monolítico da própria trama histórica as liberdades basilares da maior parte da população cobra. De acordo com a doutrina
que a produz. Portanto, a junção desses elementos é também reflexo deste olhar socio- de Norberto Bobbio, as liberdades basilares são as que “cabem ao homem enquanto
historico-jurídico situado na fronteira do direito com a antropologia, sem perder de vista tal e não dependem do beneplácito do soberano (entre as quais, em primeiro lugar, a
os movimentos sociais e políticos nela envolvidos. liberdade religiosa)”.6
O ministro do STJ Félix Fischer, em recurso especial abaixo destacado, observa o Thoreau também se refere ao Direito de Resistência quando diz:
artigo 216 da constituição de 1988 para precisar as relações idiossincráticas com a terra Se a injustiça faz parte do necessário atrito da máquina governamental,
e com a questão ancestral para assegurar o direito fundiário quilombola: deixe estar, deixe estar: quem sabe se desgastará suavemente, a
Os quilombolas têm direito à posse das áreas ocupadas pelos própria máquina acabando por se desgastar. Se a injustiça, no entanto,
seus ancestrais até a titulação definitiva, razão pela qual a ação de tem mola, polia, corda ou manivela, talvez possais considerar se o
reintegração de posse movida pela União não há de prosperar, sob pena remédio não será pior que o mal; mas se é de tal natureza que exija
de pôr em risco a continuidade dessa etnia, com todas as suas tradições de vós ser agente de injustiça para com outra pessoa, digo-vos então,
e culturas. O que, em último, conspira contra pacto constitucional de rompei a lei. 7
1988 que assegura uma sociedade justa, solidária e com diversidade
étnica. 5
No livro Direito de Resistência Constitucional8, José Carlos Buzanello afirma
que, durante o período colonial, mais precisamente no ano de 1741, o rei de Portugal
O supracitado recurso do STJ, por exemplo, acolhe a promoção da igualdade e ordenava que fosse rigorosamente cumprido o Alvará. A determinação era a de que todos
do direito social, no alcance em que adjudica direitos territoriais aos complementares os negros que haviam fugido deveriam ser marcados, através da utilização do ferro em
de um grupo desarrimado, combinado excepcionalmente, por homens e mulheres de brasa, com a letra “F”. Quando reincidentes, sobretudo os encontrados nos quilombos,
baixa renda, alvos da discriminação. Vale salientar, que a letra da norma tem também deveriam ser mutilados, tendo uma das orelhas amputadas.
por objetivo atenuar o débito histórico com o grupo que ela contempla, tendo como A exegese realizada por Clóvis Moura em Quilombos: Resistência ao escravismo9
embasamento a dignidade da pessoa humana, bem como a proteção dos direitos nos faz refletir sobre a violência extrema legitimada pelo poder régio no período colonial,
culturais no âmbito social e ético. provocando-nos na contemporaneidade a respaldar não só o Direito de Resistência como
importante vetor da democracia, mas ancorado nos Direitos Fundamentais compreender
ENCRUZILHADAS CONSTITUCIONAIS: DIREITO DE RESISTÊNCIA a importância das Políticas Públicas de Reparação e Ações Afirmativas.
O Direito de Resistência se conecta com o Direito Constitucional, já que é ele que
Desde o momento que chegaram no país, negras e negros africanos lutaram organiza as balizas do poder político e os direitos e proteção substanciais do indivíduo.O
por sua libertação, contrapondo-se de diversas formas ao ímpeto disciplinar que problema constitucional do direito de resistência está na segurança da autodefesa da
cerceava sua humanidade. No entanto, o processo de escravização africana que se sociedade, na tutela dos direitos fundamentais e no comando das ações públicas, bem
como no amparo do acordo constitucional por parte do governante.

4
BORDIEU, Pierre. In: MICELI, Sérgio (Org). A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 6
BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. São Paulo: Campus, 1992.
2004. 7
THOREAU, Henry David. A Desobediência civil e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002. p.331.
5
STJ - RECURSO EXTRAORDINARIO PETICAO DE RECURSO ESPECIAL: RE nos EDcl no REsp 931060 8
BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência constitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002.
- Ministro FELIX FISCHER 9
MOURA, Clóvis. Quilombos: Resistência ao escravismo. São Paulo: Ática, 1993.
REVISTA DO MPBA 138 139 REVISTA DO MPBA
O DIREITO QUILOMBOLA E CONFLITO FUNDIÁRIO NA BAHIA: O DIREITO QUILOMBOLA E CONFLITO FUNDIÁRIO NA BAHIA:
REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS MACACOS REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS MACACOS

Os subsídios elementares que advertem a necessidade da presença do Direito Neste espaço, a partir dos modelos africanos, os habitantes desenvolveram um
de Resistência no Direito Constitucional aludem essencialmente às importâncias da Estado à margem com arcabouço político, econômico, social e cultural próprios. Através
dignidade humana e ao regime democrático. As importâncias constitucionais adequam da sublevação organizada africana e afrodescendente no Brasil, Palmares tornou-se
uma conjuntura axiológica para o comentário de todo o ordenamento jurídico, para dirigir símbolo máximo da cultura negro-brasileira de resistência e Zumbi, que foi um de seus
a hermenêutica constitucional e o discernimento de adequar a legitimidade dos diversos líderes, consolidou-se como ícone cultuado por diversas entidades até os dias atuais,
aparecimentos do sistema de legalidade. convencionando-se o 20 de novembro, como o Dia da Consciência Negra no território
nacional.
ENCRUZILHADAS ANTI-COLONIAIS: A SUBLEVAÇÃO QUILOMBOLA

Uma das estratégias mais significativas que caracteriza a história acerca da luta ENCRUZILHADAS QUILOMBOLAS: MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS
pela emancipação é a constituição de áreas libertadas, em pequenas comunidades rurais, MACACOS
em regiões afastadas das unidades da produção e dos aparelhos militares escravistas,
chamadas de quilombo. Esses espaços se caracterizam pela dimensão africanista de Como diversos outros grupos quilombolas no país, a comunidade negra localizada
sua luta, implantando e expandindo os valores negro-africanos no Brasil e se constituindo na região limítrofe entre Salvador e Simões Filho, intitulada Quilombo Rio dos Macacos,
num baluarte de resistência contra o escravismo e dos sistemas de valores colonialistas, formada por aproximadamente cinquenta famílias, enfrenta sérios problemas no litígio
que buscavam defender-se da dominação e repressão colonial. fundiário em que se vê envolvida, uma vez que do outro lado está o “braço forte” do
A luta pela libertação significava para os negros o rompimento da exploração Estado, a Marinha do Brasil (MB), perfazendo uma disputa modelar das contendas que
colonialista-imperialista. O Brasil foi o país em que a permanência do processo as comunidades quilombolas, sobretudo as rurais, tem enfrentado em todo território
escravocrata foi mais extensa e a sua abolição uma das mais tardias. nacional e do próprio posicionamento oficial do governo brasileiro, em especial quando
Para Clóvis Moura10 , a resistência quilombola perpassou o período colonial e integra os conflitos como parte interessada.
imperial ruindo gradativamente as estruturas da economia escravocrata. Em Quilombos Em 11 de janeiro de 2013, foi publicado no jornal A Tarde um artigo do vice-
e revoltas escravas no Brasil11, o historiador João José Reis destaca também o fato de almirante, comandante do 2º Distrito Naval, Antônio Fernando Monteiro Dias, que ilustra
que “os negros foram mestres inigualáveis da resistência pacífica, através da capoeira, as perversidades da biopolítica estatal, uma vez que a comunidade quilombola do Rio
dos batuques, do candomblé, mesmo estes sendo vistos pela classe dominante como dos Macacos não só é desacreditada pelo militar, acerca de sua identificação como
veículo para a propagação da ‘desordem’ e pujante cultura de expressão africana”.12 tal, mas é acusada de lesar o Estado e vitimizar-se de forma indevida, com o fim de
No século XVII, o Quilombo dos Palmares já se erigia como uma espécie de sensibilizar a sociedade:
república negra de contraposição à força escravocrata oficial, mais precisamente entre É portanto lamentável que esse imenso patrimônio do povo brasileiro
1630 e 1695, na Serra da Barriga, localizado entre os estados de Alagoas e Pernambuco, esteja ameaçado por algumas pessoas que se autointulam ‘quilombolas’
cuja geografia beneficiava os objetivos estratégico dos negros em sua luta para criar os e ocupam de forma predatória e irregular, uma área de mata que
pertence a União...’’ (grifo nossa).14
espaços sociais necessários à sua afirmação existencial própria da terra:
......................................................................................................
Palmares possuía a estrutura social e os valores de civilização de um Como faz parte de uma aparente estratégia para sensibilizar a opinião
reino africano, porém não teve rei, pois a maioria dos africanos que dela pública e pressionar o Estado brasileiro, representantes dessa
participavam continuavam se considerando pertencentes a seus reinos comunidade (Quilombo Rio dos Macacos) vêm empreendendo uma
de origem, especialmente o Ndongo da rainha Nzinga, que deixou seus sistemática campanha difamatória contra a MB (Marinha do Brasil),
traços no nome da cidade de Kiluanji, que é por sua vez o nome que difundindo denúncias de maus-tratos e violações supostamente
acompanha a dinastia real e a serra do Kafunji, que era o nome da irmã cometidas por militares contra seus membros. (grifo nosso).15
da rainha. 13

10
MOURA, Clóvis. Quilombos: Resistência ao escravismo. São Paulo: Ática, 1993.
11
REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, n. 28 (1995/1996), p14-39.
Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/28/02-jreis.pdf>.
12
REIS, 2008:25 REIS, João José. Domingo Sodré: Um sacerdote africano - escravidão, liberdade e 14
DIAS, Antonio Fernando Monteiro. A verdade sobre o Rio dos Macacos. A Tarde.com.br. 13 jan. 2013.
candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
Disponível em: <http://atarde.uol.com.br/materias/1477769>.
13
LUZ, Marco Aurélio. AGADÁ: dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 278. 15
Ibidem
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O DIREITO QUILOMBOLA E CONFLITO FUNDIÁRIO NA BAHIA: O DIREITO QUILOMBOLA E CONFLITO FUNDIÁRIO NA BAHIA:
REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS MACACOS REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS MACACOS

A autoridade militar tornou-se, com sua assertiva, porta-voz clássica do discurso No caso do Quilombo do Rio dos Macacos, desde questões básicas ligadas ao
nacional, ao defender o povo como bloco homogêneo, colocando-se a serviço dessa saneamento, à educação, à moradia, à saúde, à liberdade, à igualdade, que estão
entidade idealizada como monolítica, em detrimento das singularidades que compõe a previstos em tratados internacionais, constituem-se como déficits significativos que
riqueza cultural e epistemológica quilombola. Sob o argumento da existência das linhas biopoliticamente vão cerceando direitos básicos daquela comunidade, daí advém a
rizomáticas que rompem com as previsões da segurança e do cerceamento às formas de reivindicação neste trabalho de um Direito Quilombola que atente efetivamente às
circulação daqueles que foram fixados em territórios e impedidos de cruzar as fronteiras, especificidades desse contingente minoritário, com o fito de realmente assegurar seus
sejam elas subjetivas, econômicas, culturais, políticas e sociais bem como da defesa do Direitos Fundamentais, bem como a manutenção de seus patrimônios material e imaterial.
bem comum, a força de lei aparece como recurso para legitimar a desproporcionalidade Pensar no Direito Quilombola como direito liminar, a partir dos pressupostos
da força coercitiva de fuzis e de outros ardis que andam aterrorizando a comunidade argumentativos aqui expostos neste trabalho, é tentar por em xeque a ordem do discurso
centenária que habita aquelas terras antes da chegada da Marinha do Brasil (MB). que baliza o Direito Público e os Direitos Fundamentais, reivindicando a especificidade
As declarações do militar ignoram na condição de braço estatal o importante quilombola, para além dos Direitos dos Povos Tradicionais que se calcam basicamente
processo das mediações interculturais e, sobretudo, o respeito às alteridades, algo em questões de ordem fundiária. O que se almeja com a tese aqui defendida de Direito
que para Todorov16 significa a importante relação do eu com o outro, respeitando suas Quilombola é mais que isso: é projetar esses corpos aquilombados crivados de uma
singularidades. violenta subalternização histórica para além dos dispositivos biopolíticos e necropolíticos
Por fim, ressaltamos que as denúncias de repressão aos residentes do quilombo que racionalizam a vida e produzem a morte como continuum das assimetrias jurídicas
são foco de ação do Ministério Público Federal (MPF-BA). A Procuradoria direcionou que impediram e impedem a democracia plena em nosso país.
recomendação ao Comando do 2º Distrito Naval da Marinha no dia 1° de junho, com o Diante das mudanças advindas do dinamismo das necessidades humanas que
intuito de coibir “constrangimento físico e moral” à população do local. A Procuradoria decorrem na imposição de mudanças para o direito, o Estado passa a se situar numa
solicitou que o órgão militar “exerça o controle e a fiscalização efetiva dos atos praticados encruzilhada de escolhas a fazer, na qual terá de optar por um caminho, cuja opção
por oficiais subordinados” e que repreenda qualquer tipo de “prática arbitrária ou nunca será neutra, considerando-se as relações de poder que se lhe constituem. Ao
agressiva” com medidas disciplinares. A Defensoria Pública do Estado afirma que 46 Estado caberá, em tal encruzilhada, escolher, portanto, em cada decisão entre o fazer
famílias residem atualmente no local, ocupado há pelo menos 150 anos. viver e o deixar morrer.
Neste sentido, os quilombolas da comunidade Rio dos Macacos e de outras regiões
ENCRUZILHADAS FINAIS: POR UM DIREITO QUILOMBOLA do Brasil que estão na mesma condição aguardam o pronunciamento final da Justiça
sobre o conflito em que se veem envoltos com o Estado brasileiro, enquanto jazem
Diante desse panorama, uma questão se impõe: Como resolver no âmbito as famílias submetidas à força biopolítica que os cerceia pouco a pouco na violência
jurídico o problema histórico da questão fundiária quilombola no Brasil, em especial o cotidiana a que não tem como escapar dado ao controle de seus corpos e do próprio
caso Quilombo do Rio dos Macacos, foco de nosso estudo, sem violar os princípios espaço que habitam pelas Forças Armadas Brasileira.
idiossincráticos das comunidades quilombolas e os direitos fundamentais desse grupo, A exposição de tais sujeitos a este cenário etnocida, se considerarmos sua
quando há um choque direto com interesses nacionais ligados às questões de posse dimensão histórica, corresponde a uma forma nada sutil de dar continuidade ao extermínio
estratégica territorial do Estado?! de certos segmentos sociais, ação embalada e fundamentada no racismo de Estado que
Uma das hipóteses com que trabalhamos é a de uma possível constituição de o reflete, dando condições materiais para a execução do dispositivo biopolítico do fazer
espaços de convivência negociados (algo a que a Marinha do Brasil, MB, recusou-se a viver e deixar morrer.
discutir durante muito tempo no caso do Quilombo Rio dos Macacos), compreendendo Nos meandros desse sistema de centralização de terra, a violência imputada
que ambos os atores sem ignorar a tensão que os põe em choque, mediados por uma pelo Estado brasileiro tornou-se ferramenta de controle e coação das comunidades
força externa, devem estabelecer zonas de circulação e de existência que não firam quilombolas. A força bruta e o requinte de constrangimentos constituíram-se numa ordem
nem o princípio da ocupação estratégica das forças armadas, nem as particularidades legitimada, de maneira explícita, pelos aparatos de poder.
que vinculam a comunidade quilombola à terra, não podendo simplesmente serem Em outras palavras, na escolha necropolítica sobre quem tem o direito de viver
transferidos. e como se deve viver e quem deve ser deixado vulnerável aos dispositivos das mortes
Uma segunda hipótese é a de que, a partir do princípio da igualdade dinâmica, físicas e simbólicas, os quilombolas de todo o Brasil que se encontram em situação de
direito de 2ª geração, a comunidade quilombola, como produto da assimetria histórica litígio com o Estado, mas em especial os do Quilombo Rio dos Macacos que analisamos,
provocada pela força de lei no Brasil, conforme demonstramos, deve ter todos os direitos encontram-se desguarnecidos e vulneráveis à violência cotidiana que os cerceia como
fundamentais assegurados, garantindo não só a titulação, mas viabilizando a manutenção cidadãos, como seres humanos.
da comunidade através de políticas afirmativas de manutenção/fortalecimento deste
território, cuja diferença enriquece nossa múltipla constituição nacional.
TODOROV, Tzsvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés.
16

São Paulo: Martins Fontes, 2003.


REVISTA DO MPBA 142 143 REVISTA DO MPBA
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REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS MACACOS REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO MARINHA DO BRASIL X QUILOMBO RIO DOS MACACOS

Nesse sentido, no formato de Estado que se tem quando falamos de Brasil, Encontramos aqui, a valorização dos corpos de idades diversas como construção e
as populações tradicionais encontram-se inseridas no grupo de excluídos, e, por tais produção de saberes que apontam para as epistemologias negras.
razões, a resistência e o enfrentamento a essas condições de vulnerabilidade são os Por fim, a ludicidade é a celebração da vida, infelizmente cerceada pela
meios possíveis que elas encontram de refazer o cotidiano e continuarem o legado de necropolítica da Marinha, nas frases que ressoam como canto fúnebre na boca dos
sua existência, ecoando em suas vidas ainda hoje toda a força histórica da sublevação jovens da comunidade Rio dos Macacos ao serem indagados sobre o maior temor que
de seus antepassados como na voz ancestral do poeta baiano José Carlos Limeira no possuíam: “Eu tenho medo é dos Naval!”17
seu mais famoso poema intitulado Quilombos: “Por menos que conte a história/Não te Ancorado nos valores civilizatórios afro-brasileiros, o Direito Quilombola é devir
esqueço meu povo/Se Palmares não vive mais/Faremos Palmares de novo”. necessário para se pensar no exercício jurídico dentro da transversalidade epistemológica
O Estado e a União para salvaguardar os direitos dos quilombolas precisam também para contemplar os quilombolas em sua dimensão ética, estética e jurídica, com
abrir mão da desapropriação com fundamento no artigo 216 § 1º da Constituição Federal, todo o legado de sublevações históricas, erguendo agora também paliçadas para
estabelecendo estratégias e soluções para os casos de conflito com eles. Em outras aquilombamentos no campo do Direito.
palavras, defendemos a urdidura de um Direito Quilombola para os remanescentes,
como direito específico para que sejam reconhecidos formalmente e processualmente
como detentores de direitos sob a égide do princípio da igualdade dinâmica. REFERÊNCIAS
Uma vez que o Direito dos Povos Tradicionais não abarca também a complexidade
e as particularidades das comunidades quilombolas, a defesa aqui realizada neste ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva.
trabalho de um campo teórico em devir, intitulado Direito Quilombola, tomaria por base, 5. ed. Alemanha: Suhrkamp Verlag, 2006.
por exemplo, os valores civilizatórios afro-brasileiros (ancestralidade, energia vital,
corporeidade, circularidade, religiosidade, musicalidade, cooperativismo, memória, BAHIA. Tribunal Regional Federal. Ação Ordinária n° 22425-98.2010.4.01.3300. Juiz
ancestralidade, ludicidade, energia vital e oralidade). Federal Evandro Reimão dos Reis.
A ancestralidade é a estrada entre história e a memória onde o tempo pretérito APPIO, Eduardo. Direito das minorias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
torna-se imprescindível, sobretudo para a comunidade aqui estudada que a referência
territorial perlabora as experiências de um continente africano, de um Brasil colonial BARRETTO, Nelson Ramos. A revolução quilombola: guerra racial, confisco agrário e
escravizado para forjarem-se na contemporaneidade como sujeitos. urbano, coletivismo. São Paulo: Artpress, 2007.
A Energia vital (Axé) é o significado do sagrado, da existência matriz e motriz BARROS, Marco Aurélio Nunes. Controle jurisdicional de políticas públicas: parâmetros
que potencializa as crenças e costumes que perfazem o patrimônio imaterial que nos objetivos e tutela coletiva. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2008.
constitui como brasileiros. Portanto, quando a Marinha do Brasil impede a comunidade
de plantar, criar animais, construir suas casas, de transitar, o Estado obstaculariza a BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
interação do corpo negro com o mundo, na relação telúrica que a define. fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.
Quando a expressão oral impregnada de registros da existência e sentido BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. São Paulo: Campus, 1992.
é violentada chamando os remanescentes de “invasores”, executa-se uma cultura
centenária, asfixiando a história oral local e a herança direta da cultura africana que BORDIEU, Pierre. In: MICELI, Sérgio (Org). A Economia das trocas simbólicas. São
nos chega através de séculos por vias não-grafocêntricas. Além disso, os quilombolas Paulo: Perspectiva, 2004.
carregam músicas, lições e contos específicos que reforçam o patrimônio cultural BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos.
imaterial de que já falamos aqui. Decreto nº 4.887 de 20 novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para
A circularidade é um valor civilizatório afro-brasileiro, que aponta para outros identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas
valores: a coletividade, a musicalidade, a cooperatividade e a resistência histórica. por remanescentes das comunidades dos quilombos... Disponível em: <http://www.
Acorporeidade tem a importância do ser coletivo. Nessa esfera, diversos grupos ligados planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm>.
aos Movimentos Sociais lançaram a campanha de proteção/reação à violência sofrida pelos
quilombolas do Rio dos Macacos intitulada: “Somos Todos Quilombo Rio dos Macacos”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RE nos EDcl no REsp 931060. Ministro Felix
Fischer.

17
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REVISTA DO MPBA 146 147 REVISTA DO MPBA
DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL

DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL Talvez, aí, fosse pertinente se questionar se a insuficiência das teorias existentes
em torno dos direitos fundamentais, estaria a refletir nada menos que a própria natureza
Heliete Rodrigues Viana* ideal dos objetos dos direitos em comento – e aqui já aproximamos a idéia de direitos
fundamentais do âmbito de positivação dos mesmos -, ou seja, direitos à vida, à
liberdade, à igualdade, à solidariedade, à saúde, ao trabalho, à educação, enfim uma
EMENTA
gama de direitos essenciais à existência humana digna, cuja afirmação está a envolver
O presente artigo jurídico se propõe a desenvolver uma breve abordagem acerca da
não apenas a sua consagração jurídico-formal, mas acima de tudo, uma contínua
compreensão da efetividade dos direitos sociais no contexto do Estado Democrático de
superação e/ou conformação de conflitos e interesses em jogo na dinâmica da sociedade
Direito, a partir do referencial brasileiro pós Constituição de 1988 e, a partir do modelo
politicamente organizada, assim como o próprio desenvolvimento destas sociedades ao
constitucional adotado, inserir a temática do controle social como uma das modalidade
longo da história, para a sua efetiva afirmação.
de controle da administração pública, demonstrando a sua relevância.
Contudo, ainda que teorias jurídicas várias se apresentem para definir,
caracterizar e interpretar os direitos fundamentais, visando à concretização desses
PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais. Direitos sociais. Efetividade social. Controle
direitos, e que todas, de alguma forma, se propõem a expressar-se como ideais, o que
social. Políticas públicas.
se pode observar é que em determinados pontos, nucleares por assim dizer, a exemplo
da classificação, interpretação e eficácia dos direitos fundamentais, especialmente
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
no contexto da positivação dos mesmos em Leis Fundamentais, ou, como se preferir
chamar, Constituições, divergências doutrinárias inúmeras surgem, no quadrante destes
Um quarto de século já se passam desde a sua promulgação, em 5 de outubro de
pontos basilares de estudo de qualquer que seja a área do direito em exame, e que
1988, e a Constituição da República Federativa do Brasil ainda não se fez materializar
indiscutivelmente irão refletir na maior ou menor efetividade que será dada às cláusulas
naquilo que foi – e sempre será – a verdadeira aspiração de toda sociedade humana
constitucionais que encerram direitos fundamentais quando da aplicação das mesmas,
politicamente organizada: a efetividade dos direitos fundamentais e a consagração da
em particular aqueles que se consagraram com a denominação de direitos sociais. Esta,
dignidade da pessoa humana, como princípio constitucional e valor maior a ser afirmado
pois, será a questão central que se tratará no presente artigo, respeitadas, por óbvio,
material e continuamente, na medida em que justifica o conteúdo de toda a gama dos
as devidas proporções que um tema de tamanha grandeza, complexidade e relevância
direitos fundamentais consagrados ao longo da Magna Carta.
pode obter em um trabalho jurídico de dimensão desta natureza.
É inegável que, nunca, em todo o contexto da sua afirmação histórica -
Por outro lado, ainda que se propusesse o presente trabalho a tratar tão somente
especialmente a partir do século XVIII quando eclodiram no mundo ocidental as
do problema da efetividade das normas constitucionais definidoras e disciplinadoras de
revoluções burguesas, os direitos fundamentais foram tão exaustivamente reclamados
direitos sociais - e estar-se-ia cuidando de um tema de importância tal, que dispensaria
pela sociedade, e discutidos e estudados no âmbito das ciências sociais, especialmente
a associação de qualquer outro para o reconhecimento da relevância jurídica -, busca-se
as ciências jurídicas, buscando-se defini-los e caracterizá-los, seja à partir de formulações
também trazer para o espaço de discussão que aqui naturalmente se abre, a questão
doutrinárias de conteúdo, histórico, filosófico, político, social e jurídico, enquanto uma
do controle social, na forma como hoje é tratado em nosso ordenamento jurídico
universalidade; seja à partir dessas mesmas percepções, mas tomando como objeto de
constitucional e infraconstitucional, na medida em que o mesmo se apresenta como mais
análise os ordenamentos jurídicos positivados.
um recurso oferecido pelo ordenamento jurídico brasileiro para possibilitar a efetividade
E o que se observa é a construção, particularmente a partir da primeira metade do
dos direitos fundamentais, especialmente aqueles de dimensão social.
século XX, de uma gama de teorias, e aqui falamos das teorias, de base jurídica, voltadas
Assim, o presente trabalho pretende, também, contribuir para a inserção do tema
à formulação de uma doutrina específica para os direitos fundamentais, chegando-se a
do controle social, no âmbito das discussões acerca de caminhos e garantias que o
falar em uma Teoria dos Direitos Fundamentais, como expressão de um ideal teórico,
legislador constitucional e infraconstitucional traça e oferece para a efetivação dos
admitindo-se, entretanto, pela própria natureza conflituosa do tema, que toda teoria dos
direitos sociais, na medida em que o controle social impulsiona e, ao mesmo tempo,
direitos fundamentais então formulada, consegue apenas se aproximar desse ideal.¹
reflete, a amplitude da democracia.

*
Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, titular da 4ª Promotoria da Capital
¹ Cf. ALEXY, para quem “a concepção de uma teoria jurídica geral dos direitos fundamentais expressa um
ideal teórico. Ela tem como objetivo uma teoria integradora, a qual engloba, da forma mais ampla possível, os
enunciados gerais, verdadeiros ou corretos, passíveis de serem formulados no âmbito das três dimensões e
os combine de forma otimizada. Em relação a uma tal teoria, pode-se falar em uma ‘teoria ideal dos direitos
fundamentais’”, acrescentando que “toda teoria dos direitos fundamentais realmente existente consegue ser
apenas uma aproximação desse ideal”. (2011, p. 39)

REVISTA DO MPBA 148 149 REVISTA DO MPBA


DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL

1 DIREITOS SOCIAIS NO CONTEXTO DA EFICÁCIA E APLICABILIDADES DAS Esta importante noção de efetividade, serve como parâmetro para a compreensão
NORMAS CONSTITUCIONAIS do grau de eficácia social das normas constitucionais, e, em particular, das que aqui estão
em foco: normas constitucionais disciplinadoras de direitos e garantias fundamentais.
Importa, cada vez mais, para a consolidação do Estado Democrático de Direito, Sem descurar das importantes lições dos melhores autores nacionais e estrangeiros,
que se façam eficazes os direitos fundamentais e, em particular os de dimensão social, tomar-se-á, como base para o traçado do caminho de compreensão da eficácia social dos
possibilitando-se, com isso, a efetivação dos mesmos. Importante papel cabe, para tanto, direitos e garantias fundamentais, com ênfase para os direitos sociais, ainda na esteira
no contexto, a interpretação que se dá a tais direitos no conjunto do sistema jurídico em do eminente constitucionalista Luís Roberto Barroso, o estudo sistemático apresentado,
que os mesmos estão inseridos. Todavia, aqui cabem, como importante observação, as pela primeira vez em 1968, pelo consagrado jurista José Afonso da Silva.
palavras de Paulo Bonavides, no sentido de que “os direitos fundamentais, em rigor, não De acordo com José Afonso da Silva, a Constituição Federal de 1988 revelou
se interpretam; concretizam-se” ². acentuada tendência do legislador constituinte para deixar ao legislador ordinário
Em verdade, as questões concernentes aos direitos fundamentais, ainda que a integração e complementação de suas normas8 , acrescentando que, entretanto,
vistos e analisados sob o aspecto e a partir de direitos positivados em Leis Fundamentais, uma simples análise do texto constitucional mostra que a maioria dos dispositivos da
abrangem de algum modo todo o conjunto das normas jurídicas, e, em especial das Constituição acolhe normas de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata.9
normas constitucionais, em cujo sistema predominantemente se inserem e/ou se As normas constitucionais de eficácia plena, para José Afonso da Silva, seriam
fundamentam. Todavia, considerando-se a fundamentalidade de que os mesmos se aquelas que “estabelecem conduta jurídica positiva ou negativa com comando certo e
revestem, impõe-se, na esteira da melhor doutrina, o trato do tema aqui posto, sob a definido, incrustando-se, predominantemente, entre as regras organizativas e limitativas
perspectiva das teorias construídas tendo como objeto de estudo a Constituição. dos poderes estatais, e podem conceituar-se”, sob os auspícios dos ensinamentos de
Começando por tratar da questão da efetividade, porque essencial à compreensão J. H. Meirelles Teixeira que cita em seguida, como sendo aquelas que, “desde a entrada
do tema posto e das subseqüentes conclusões, inicia-se aqui com as lições de Luís nem vigor da constituição, produzem ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos
Roberto Barroso, que elevando-a à condição de princípio jurídico, assinala que “a ideia de essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador
efetividade, conquanto de desenvolvimento relativamente recente, traduz a mais notável constituinte, direta e normativamente, quis regular”.10
preocupação do constitucionalismo nos últimos tempos”³ , acrescentando que a mesma Quanto às normas constitucionais de eficácia contida prefere-se aqui, como
liga-se ao fenômeno da juridicização da Constituição, e ao reconhecimento e incremento síntese da doutrina de José Afonso da Silva, exposta na obra em referência, recorrer
de sua força normativa, merecendo capítulo obrigatório na interpretação constitucional.4 à enunciação de suas características muito didaticamente formulada pelo autor, nos
Parte, o autor, de uma breve referência e definição dos requisitos que informam os seguintes termos:
atos jurídicos – existência, validade e eficácia -, dando ênfase a este último, como mais I – São normas que, em regra, solicitam a intervenção do legislador
importante para a problemática da interpretação da Constituição, porque, segundo o ordinário, fazendo expressa remissão a uma legislação futura; mas o
mesmo, refere-se à aptidão, à idoneidade do ato para a produção dos seus efeitos, não se apelo ao legislador ordinário visa restringir-lhes a plenitude da eficácia,
inserindo, ainda, nesse âmbito, a constatação de que tais efeitos de fato se produziram.5 regulamentando os direitos subjetivos que delas decorrem para os
cidadãos, indivíduos ou grupos; II – Enquanto o legislador ordinário não
É a esse contexto de realidade que vai se integrar a noção de efetividade, ou
expedir a normação restritiva, sua eficácia será plena; nisso também
eficácia social da norma 6, a qual o autor caracterizou como sendo “a realização do diferem das normas de eficácia limitada, de vez que a interferência do
Direito, o desempenho concreto de sua função social” acrescentando ainda que a legislador ordinário, em relação a estas, tem o escopo de lhes conferir
efetividade “representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e plena eficácia e aplicabilidade concreta em positiva; III – São de
simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser aplicabilidade direta e imediata, visto que o legislador constituinte deu
da realidade social”.7 normatividade suficiente aos interesses vinculados à matéria de que
cogitam; e IV – Algumas dessas normas já contém um conceito ético
juridicizado (bons costumes, ordem pública, etc.), como valor societário
ou político a preservar, que implica a limitação de sua eficácia. 11

² BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 628.
³ BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática 8
SILVA, Jose Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros,
constitucional transformadora. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 240. 2008. p. 88-89.
4
BARROSO, loc. cit. 9
SILVA, Jose Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros,
5
Ibidem, p. 241. 2008. p. 89.
6
BARROSO, loc. cit. 10
Ibidem, p. 101.
7
BARROSO, loc. cit. 11
Ibidem, p. 104.
REVISTA DO MPBA 150 151 REVISTA DO MPBA
DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL

Por fim, tem-se as normas constitucionais de eficácia limitada, as quais José Afonso A solução proposta por José Afonso da Silva para tamanho impasse está em
da Silva prefere denominar de normas constitucionais de princípios, e que, segundo o que a aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos sociais, conforme
mesmo, seriam aquelas que dependem de outras providências para que possam surtir estabelecido no art. 5°, § 1°, da Constituição Federal, está a depender das condições
os efeitos colimados pelo legislador constituinte.¹² oferecidas pelas instituições públicas ou que estejam a exercer um múnus público, para
Dividindo as normas constitucionais de eficácia limitada em a) normas definidoras o atendimento desses direitos; podendo, todavia, o Poder Judiciário, em sendo chamado
de princípio institutivo ou organizativo e, b) normas definidoras de princípio programático, a decidir a propósito de uma situação concreta, assegurar a fruição do direito reclamado
seriam as primeiras aquelas que, na definição do autor, “contêm esquemas gerais, um pelo interessado.16
como que início de estruturação de instituições, órgãos ou entidades, pelo que também Ocorre que, conforme assinalado nas considerações introdutórias, um quarto de
poderiam chamar-se normas de princípio orgânico ou organizativo”. A caracterização século já se passa desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, e o que se
fundamental das mesmas, de acordo com José Afonso da Silva, estaria no fato de assiste é o fato de pouca ou nenhuma prioridade está sendo dada pelos legisladores e
indicarem uma legislação futura que lhes complete a eficácia e lhes dê efetiva aplicação, administradores públicos brasileiros à busca de soluções continuadas e consistentes
dando como exemplo a norma disposta no art. 18 da Constituição Federal¹³. Já as para as demandas relacionadas ao gozo e fruição, por parte de todos os cidadãos –
segundas, ou seja, as normas definidoras de princípio programático, admitindo as especialmente das minorias sociais -, de direitos e garantias individuais e sociais,
dificuldades doutrinárias para se lhes dar um conceito preciso, José Afonso da Silva, realizadoras do valor da dignidade da pessoa humana.
valendo-se mais uma vez dos ensinamentos de J.H. Meirelles Teixeira, defini-as como Parafraseando Paulo Bonavides, quando cita Tomandl e Franz Horner (1967,
sendo: 1974) é certo que não pode o nosso direito constitucional positivo realizar os fins do
aquelas normas constitucionais através das quais o constituinte, em Estado social [brasileiro] de hoje, com as técnicas do Estado de Direito de ontem.17
vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, E quando esse autor assinala que o verdadeiro problema do Direito Constitucional
limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus da nossa época está, a seu ver, em como juridicizar o Estado social, como estabelecer e
órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como
inaugurar novas técnicas ou institutos processuais para garantir os direitos sociais básicos,
paradigmas das respectivas atividades, visando à realização dos fins
sociais do Estado.14 a fim de fazê-los efetivos, poder-se-ia dizer que, insta não apenas juridicizar o Estado
social, mas “socializar” o Estado social, referindo-se aqui ao estímulo e fortalecimento
Chega-se ai, portanto, à questão crucial dos direitos sociais, enquanto espécie de do controle social – de que trataremos em seguida -, como um mecanismo capaz de
direitos fundamentais, integrantes da segunda geração, como assim os recepcionou a antecipar medidas administrativas conformadoras das demandas sociais emergentes,
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e que segundo entendimento prevenindo-se à judicialização dos problemas sociais.
dominante na doutrina, estaria, a efetivação dos mesmos, na dependência de programas
de governo e políticas públicas a serem promovidos em momento subsequente, e,
portanto, inserida a sua eficácia no contexto das normas constitucionais de eficácia 2 O CONTROLE SOCIAL: MODALIDADE DE CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO
limitada, à vista daquelas hipóteses em que a própria Constituição condiciona a edição PUBLICA E INSTRUMENTO LEGAL PARA EFETIVAÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS
de lei integradora do direito.
Embora os direitos sociais tenham sido incorporados ao nosso Texto Constitucional A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, já, como bem
de 1988, no lugar de honra dos Direitos e Garantias Fundamentais – Título II, e, lembrado pela insigne administrativista Odete Medauar, trazia, em seu art. 15, pode-se
expressamente o § 1° do art. 5°, estabeleça que as normas definidoras dos direitos e assim dizer, as sementes do instituto do controle que deve incidir sobre as atividades da
garantias fundamentais têm aplicação imediata; para além das conhecidas divergências Administração Pública18 ao afirmar que “a sociedade tem o direito de pedir conta, a todo
doutrinárias quanto à interpretação a ser dada a este último dispositivo constitucional, agente público, quanto à sua administração”.
a verdade é que, como assiná-la o publicitista pátrio, “não lhes tira essa natureza [de Recorda com propriedade a autora19, assim como a maioria dos estudiosos do
direitos fundamentais] o fato de sua realização poder depender de providências positivas direito administrativo e temas afins, que “o tema do controle também se liga à questão da
impostas às autoridades públicas pela Constituição (imposições constitucionais)”. 15 visibilidade ou transparência no exercício do poder estatal, sobretudo da Administração,
e relaciona-se em profundidade com o tema da corrupção”, se consubstanciando em um
dos mecanismos mais eficazes de sua prevenção, bem como asseguradores do melhor
desempenho por parte da Administração.

¹² Ibidem, p. 118. 16
Ibidem, p. 165.
¹³ Ibidem, p. 123. 17
Ibidem, p. 385.
14
SILVA, Jose Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. 18
Cf. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.
p. 138. 375.
15
Ibidem, p. 151. 19
MEDAUAR, loc. cit.
REVISTA DO MPBA 152 153 REVISTA DO MPBA
DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL

Partindo da configuração que lhe é atribuída por José dos Santos Carvalho Filho20, Portanto, tomando-se o controle social como uma derivação do Estado
poderíamos conceituar, num primeiro momento, o controle social como sendo aquele Democrático de Direito, que vige em nossa ordem constitucional desde fins de 1988, e
exercido sobre o Poder Público, por segmentos oriundos da sociedade – daí considerá- que tem por um de seus fundamentos o pleno exercício da democracia e da cidadania,
lo, esse autor, como uma forma de controle exógeno -, em face das inúmeras demandas em paralelo a outros princípios fundamentais, dentre os quais se destaca o da soberania
sociais, sendo ele o “resultante da articulação e da negociação dos interesses fracionados do povo, indiscutivelmente que, para assegurar a efetivação dos direitos garantidores
e específicos de cada segmento, a favor dos interesses e direitos de cidadania do da cidadania plena, mister se faz o aprimoramento dos controles administrativos; mas,
conjunto da sociedade”21. acima de tudo, a ação por meio dos mecanismos já existentes para tanto, os quais, mais
Ainda nas palavras do eminente adminstrativista22, o controle social trata-se, do que se enquadrarem como instrumentos de implementação de políticas públicas, se
indubitavelmente, de “poderoso instrumento democrático, permitindo a efetiva participação consubstanciam em verdadeiros instrumentos de realização da justiça e do bem-estar
dos cidadãos em geral no processo de exercício do poder”, apontando, todavia, mas com social.
relevante pertinência, para o grau de incipiência com que essa modalidade de controle A afirmação da cidadania ativa, com efeito, é pedra angular do Estado de
ainda vem se revelando no seio da sociedade brasileira, embora já se vislumbre “a Direito, nos moldes como o definiu o art. 1º da Constituição da República Federativa do
existência de mecanismos jurídicos que, gradativamente, vão inserindo a vontade social Brasil, capaz de assegurar ao legítimo titular da soberania condições para uma maior
como fator de avaliação para a criação, o desempenho e as metas a serem alcançadas participação na formação da vontade estatal, tornando-se, por via de conseqüência, mais
no âmbito de algumas políticas públicas”. plenamente responsável e comprometido com o destino daquilo que se consubstancia
Cumpre aqui, todavia, registrar, embora sem o intuito de perquirir as razões de em interesse público comum, dentre os quais se insere a efetivação dos direitos sociais
fundo para tanto que, não obstante os seus fundamentos e a atualidade do tema, o através, dentre outros meios, da implementação de políticas públicas e a redução dos
certo é que pouca, ou quase nenhuma, atenção vem sendo dada à temática do controle níveis de corrupção, assegurando, com isso, mais investimentos sociais, por meio dos
social nos clássicos manuais de Direito Administrativo, os quais se limitam a abordar, recursos disponíveis.
predominantemente, as conhecidas, e já densamente regulamentadas, formas de Tem-se, ao longo da Carta Constitucional em vigor, uma sequência de princípios,
controle da Administração Pública, a saber: o controle interno e externo. expressos e implícitos, além de disposições normativas em sentido estrito, que asseguram,
Tal postura, se crê, decorre da abordagem que comumente é dada ao controle ao menos em tese, a inserção da vontade social no desempenho das funções do Estado-
social, pluralizando-o tão somente nas diversas formas de controle não institucionalizadas, Legislador e do Estado-Administrador, a exemplo de: previsão de edição de lei que regule
como é o caso das manifestações de movimentos sociais, abaixo-assinados, passeatas, as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, contida
manifestações da imprensa e de cidadãos isoladamente e/ou por meio dos diversos no art. 37, § 3°; a previsão, conforme disposto no art. 194, VII, da participação social no
canais de comunicação disponíveis, v.g, websites e outras redes sociais; esquecendo- sistema da seguridade social, através do caráter democrático e descentralizado, mediante
se de uma extensa gama de preceitos normativos constitucionais e infraconstitucionais gestão quadripartite dos órgãos colegiados, com a representação dos trabalhadores, dos
que acabam por institucionalizar diversas formas de participação social nas decisões do empregadores, dos aposentados e do Governo; a previsão da participação da comunidade
Estado-Administrador, diretamente vinculadas à formulação e planejamento das políticas nas ações e na prestação dos serviços públicos de saúde, conforme estabelecido no art.
públicas e serviços públicos essenciais, bem como dos Conselhos Gestores de Políticas 198, III. E, em nível infraconstitucional, as previsões contidas, v.g., na Lei Complementar
Públicas, legalmente integrados na estrutura do Poder Executivo. n° 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que eleva a transparência ao status de
A questão mostra-se relevante, posto que urge uma mudança radical de postura, princípio da gestão fiscal responsável, assegurando, um capítulo próprio para tratar de
tanto da Administração Pública, por intermédio de agentes, que, na maior parte das instrumentos e mecanismos de garantia da transparência na gestão fiscal; na Lei nº
vezes, se tornam mais comprometidos com a obtenção de vantagens – sejam materiais, 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) que inclui, dentre os objetivos da política urbana, a
sejam pessoais -, em benefício próprio ou de terceiros a quem se vinculam, do que com gestão democrática, com a participação da comunidade na formulação, execução e
o exercício senão eficiente, ao menos honesto do múnus público; quanto da sociedade acompanhamento do plano de desenvolvimentourbano; na Lei n° 11.445/2007, que
brasileira, que comumente assiste inerte e passiva aos sucessivos desmandos e expressa, em seu art. 2°, X, como princípio, o controle social, definindo-o como sendo
escândalos de corrupção e má gestão que envolvem a máquina administrativa brasileira, um “conjunto de mecanismos e procedimentos que garantem à sociedade informações,
no âmbito de seus poderes constituídos, indistintamente; vindo a sofrer, com isso, as representações técnicas e participações nos processos de formulação de políticas, de
graves conseqüências da inoperosidade, ineficiência e irresponsabilidade no trato das planejamento e de avaliação relacionados aos serviços públicos de saneamento básico”
questões de interesse público. (art. 3°, IV); e na Lei n° 12.527/ 2011, que entrou em vigor em maio de 2012, a qual veio
garantir o acesso a informações previsto no inc. XXXIII do art. 5°, no inc. II do § 3° do art.
37 e no § 2° do art. 216 da Constituição Federal.
20
Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010.
21
BAHIA. Ministério Público do Estado da Bahia. Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça da
Cidadania. Caderno Controle Social no Sistema Único de Saúde. Salvador, 2005. p. 5.
22
CARVALHO FILHO, op. cit
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DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL

Os exemplos acima destacados, conforme assinala José dos Santos Carvalho CONCLUSÕES
Filho, “demonstram o processo de evolução do controle social, como meio democrático
de participação da sociedade na gestão do interesse público” 23. Em verdade, revela mais Para além da complexidade do tema e das divergências na compreensão e busca
do que um processo de evolução, revela um processo de conquistas da sociedade. de concretização para os direitos sociais, por parte dos seus diferentes interpretes, a
Como assegura o historiador Jayme Pinsky, de pronto, na introdução à obra sua, verdade é que a problemática da aplicação das normas constitucionais e, em especial,
ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade daquelas disciplinadoras de direitos e garantias fundamentais, em meio às quais se
perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no inserem os direitos sociais, longe está de constituir uma unanimidade.
destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos Todavia, as diferentes interpretações e teorizações em torno destes direitos e
civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, garantias, assim como as seguidas omissões do Estado, por seus diversos agentes,
aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: órgãos e instituições, não podem sacrificar a urgência de que os mesmos se revestem
o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma enquanto asseguradores de condições sociais e ambientais indispensáveis à boa
velhice tranqüila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos
qualidade de vida e à realização da vida humana.
e sociais.24
Assim sendo, considerando que a dependência de lei integradora para a efetivação
E, pode-se dizer, não somente ter tais direitos civis, mas desfrutá-los em sua de alguns dos direitos sociais; e considerando serem os mesmos dotados de eficácia
plenitude, convertendo o ter formal em substancial. aplicadora imediata, conforme estabelece o art. 5°, § 1°, da Constituição Federal, urge
O controle social, pois - seja ele exercido de forma natural, pelos cidadãos que se lance mão de todos os recursos legais disponibilizados no ordenamento jurídico
isoladamente ou por meio de associações, redes sociais e/ou manifestações políticas, para a efetivação dos direitos sociais.
seja de forma institucionalizada, v.g., por meio dos conselhos gestores de políticas Inobstante as crescentes transformações pelas quais vem passando a sociedade,
públicas, de audiências públicas nos casos e para os fins previstos em lei, por intermédio especialmente a ocidental, a partir do final do século XVIII, galgando o seu ápice no
das ações constitucionais como o mandado de injunção, ação popular, ação civil pública, século XX, com o desenvolvimento do Estado Constitucional de Direito, assentado em
torna-se, ao lado de outras formas de controle da Administração Pública, um fio condutor um modelo constitucional rígido, que produziu reflexos significativos na afirmação da
para a efetivação dos direitos sociais, capaz de assegurar, em meio ao silêncio, omissão cidadania plena, através da “constitucionalização de princípios e direitos fundamentais,
ou desvirtuamento dos atos da Administração, a afirmação da cidadania em toda a vinculando a legislação e condicionando a legitimidade do sistema político à sua tutela e
expansão dos direitos que a identificam. satisfação”27, o que possibilitou a inserção de uma dimensão substancial na democracia28;
Afinal, na clara colocação de Gustavo Binenbojm a democracia: o pleno exercício da cidadania ainda é, e ao certo por muito tempo será, um desafio.
consiste em um projeto moral de autogoverno coletivo, que pressupõe A nova ordem constitucional brasileira, acompanhando a evolução do Estado
cidadãos que sejam não apenas os destinatários, mas também os Constitucional de Direito contemporâneo definiu as bases que constituem a República
autores das normas gerais de conduta e das estruturas jurídico-políticas Federativa do Brasil sob o primado do Estado Democrático de Direito, consagrando,
do Estado. Em um certo sentido, a democracia representa a projeção dentre outros princípios fundamentais, a soberania popular, a cidadania e a dignidade da
política da autonomia pública e privada dos cidadãos, alicerçada em um pessoa humana.
conjunto básico de direitos fundamentais.25
Não obstante o tema do controle da administração pública ser matéria específica
E, na sequência, completa: “pode-se dizer, assim, que há entre direitos fundamentais do Direito Administrativo, dúvidas não pairam no sentido de que, a constitucionalização
e democracia uma relação de interdependência e reciprocidade.”26 do Direito Administrativo é caminho sem volta, impondo, cada vez mais ao Poder Público
o reconhecimento da soberania popular, e portanto sua legítima participação, como
formadora da vontade estatal.
Disso decorre a necessidade de que, cada vez mais, caminhos se abram para o
exercício, por parte do cidadão e da sociedade organizada, do controle social sobre o
Estado Administrador, a fim de assegurar, de modo pleno, consciente e responsável, a
consolidação da cidadania, bem como contribuir de modo significativo para a redução
das práticas de corrupção no âmbito da sociedade.
23
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2010. p. 1032.
24
PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla Bassanezi. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2013. p. 9.
2010. p. 1032.
25
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
27
FERRAJOLI, Luigi. O Estado de Direito entre o passado e o futuro. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (Org.)
constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 50. O Estado de Direito: historia, teoria, critica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.428.
26
BINENBOJM, loc. cit.
28
FERRAJOLI, loc. cit.
REVISTA DO MPBA 156 157 REVISTA DO MPBA
DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVAÇÃO POR MEIO DO CONTROLE SOCIAL

Embora possa revelar um aparente radicalismo, não se pode deixar de registrar, ______. Lei Complementar n. 101 de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças
mais uma vez, as palavras de Paulo Bonavides, que traduz as suas salutares preocupações públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências.
com os rumos tomados pelo Estado social brasileiro, quando afirma que “não resta dúvida Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm>. Acesso em: 20
que em determinados círculos das elites vinculadas a lideranças reacionárias está sendo maio 2014.
programada a destruição do Estado social brasileiro.”29
______.Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos.
E prossegue:
Se isso acontecer, será a perda de mais de cinquenta anos de esforços
Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.527, de 18
constitucionais para mitigar o quadro de injustiça provocado por uma de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o,
desigualdade social que assombra o mundo e humilha a consciência desta no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal... Disponível
Nação. Mas não acontecerá, se o Estado social for a própria Sociedade em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>. Acesso
brasileira concentrada num pensamento de união e apoio a valores em: 20 maio 2014.
igualitários e humanistas que legitimam a presente Constituição do Brasil.30
______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Lei
Eis aqui irrebatíveis argumentos para se dispensar maior atenção a essa n. 12.846, de 1° de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e
modalidade de controle da Administração Pública, denominada de controle social, e seu civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional
relevante papel como forte instrumento de efetivação de direitos sociais. ou estrangeira, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
E mais, o rumo e o tempo que tomará a realização da almejada justiça social ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 20 maio 2014.
dependerá, acima de tudo, não das forças reprodutoras de modelos econômicos e sociais
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas
em constante tensão, mas, acima de tudo, da primazia que dará o verdadeiro titular da
Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.
soberania do Estado – o povo -, aos valores que encerram não apenas o primado da
liberdade, consolidados no Estado de Direito liberal, mas, prioritariamente, aqueles que CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. ed. Rio de
encerram o primado da igualdade, caracterizadores do Estado de Direito social. Seria o Janeiro: Lumen Juris, 2010.
optar por retroceder ou avançar.
DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO (1789). Disponível em:
<http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/
declar_dir_homem_cidadao.pdfhttp://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Doc_Histo/
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ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. Tribunais, 2008.
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BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de Promotorias de Justiça da Cidadania. Caderno Controle Social no Sistema Único de
uma dogmática constitucional transformadora. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. Saúde. Salvador, 2005.
BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. A Cidadania Ativa: Referendo, Plebiscito e OLIVEIRA, Marcos Alcyr Brito de. Cidadania Plena: a cidadania modelando o Estado.
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SILVA, Jose Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo:
29
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 383.
Malheiros, 2008.
30
BONAVIDES, loc. cit.
REVISTA DO MPBA 158 159 REVISTA DO MPBA
EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA Trata-se de questão a ser pensada diuturnamente pelos membros do Ministério
Público que laboram na área de defesa da infância e da juventude, sobretudo quando
Moacir Silva do Nascimento Júnior* a matéria infracional está em análise, em que o foco deve ser na tutela de direitos,
sem inibir qualquer postura mais rigorosa quando ocorrerem situações graves, como
EMENTA latrocínios, estupros e outros episódios violentos e altamente repulsivos, que devem
receber o tratamento que a Sociedade espera, ou seja, com viés punitivo, desde que
Atuação do Ministério Público na área infracional. Remissão. Exclusão do Processo. observando as limitações legitimamente incluídas no ECA ao exercício de tal puder pelo
Homologação judicial imprescindível. Súmula do Superior Tribunal de Justiça. Estado.
Possibilidade de cumulação com medidas socioeducativas em meio aberto. Entendimento A audiência realizada na fase pré-processual no âmbito da Promotoria de Justiça,
do Supremo Tribunal Federal. Presença de Advogado durante a oitiva na Promotoria de portanto, figura como instrumento de inegável relevância para um melhor enfrentamento
Justiça. Possibilidade. Ausência de imposição legal. Envio imediato do caso ao órgão da questão infracional, na medida em que viabiliza a atuação rápida de agente do
Estado investido de todas as garantias e prerrogativas inerentes ao regime jurídico da
executor da medida. Assistência Social. Aplicação de medidas de proteção. Incidência Magistratura, tanto verificando oportunidades de atuação do Ministério Público no sentido
da Lei do SINASE. de assegurar o respeito a direitos fundamentais, com a inclusão em programas oficiais
de auxílio, por exemplo, quanto pela concessão de remissão ao Adolescente acusado,
PALAVRAS-CHAVE: Remissão. Exclusão do processo socioeducativo. Contraditório. seja aquela simples, seja a cumulada com medidas socioeducativas.
No presente trabalho, serão analisadas questões jurídicas de indiscutível
relevância para a atuação ministerial, com o intuito de fixar modelos operacionais capazes
de dotar a atuação do Ministério Público de uma maior eficiência e, por consequência,
INTRODUÇÃO obtendo melhores resultados especialmente naqueles procedimentos deflagrados na
esfera policial que apuram a prática de atos infracionais de menor gravidade, em que a
Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) atribua ao Ministério Público violência não está presente, ou está de forma moderada, representando mais de 60%
um grande número de tarefas a serem desenvolvidas no intuito de garantir o respeito aos (sessenta por cento) dos casos, conforme levantamento realizado pelo Ministério Público
direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, especialmente daqueles que se do Distrito Federal e dos Territórios entre os meses de março e dezembro de 2010, com
encontram em situação de risco, os atos infracionais constituem a matéria que ocupa, 504 (quinhentos e quatro) adolescentes (Perfil... 2011).
com grande frequência, a pauta principal de atividades desenvolvidas nas promotorias A experiência no desempenho das funções ministeriais atesta tanto o acerto de tal
de justiça quando o assunto é infância e juventude, haja vista a necessidade de realizar estatística quanto a necessidade de abreviar a conclusão de procedimentos deflagrados
audiências de oitiva informal, participar das de apresentação e de instrução, analisar quando o Adolescente é abordado e conduzido pela Polícia Militar a uma Delegacia de
procedimentos encaminhados pela Polícia Civil, elaborar representações, além de Polícia não especializada, em razão da prática de atos de menor gravidade, como a
fiscalizar os programas de atendimento socioeducativo. condução de veículo automotor ou a posse de drogas para consumo pessoal, e a partir
Importante observar, logo de início, que essa linha de atuação é reflexo de uma daí passa a vivenciar um universo que tende mais a dificultar a adoção de postura mais
cultura muito arraigada na Sociedade brasileira, que também afeta a Comunidade adequada ao convívio em Sociedade do que gerar uma mudança de comportamento
jurídica, a qual é insistente no tratamento de consequências e não de causas. O batido espontâneo e, por isso, efetivo. O instrumental jurídico, como todos sabem, com seus
ditado que afirmar ser melhor prevenir do que remediar parece que não consegue furar códigos e rituais vinculados a universos mais medievais do que contemporâneos,
a pedra dura da mentalidade nacional. Ora, na medida em que um adolescente, desde diferentemente daquele manuseado no âmbito de outras ciências, como a psicologia e a
a sua primeira infância, tenha seus mais básicos direitos fundamentais violados, seja do pedagogia, pouco pode contribuir para isso.
ponto de vista da saúde e da educação, ou daqueles ligados ao respeito e à convivência
familiar, nada menos surpreendente que ele desenvolva precocemente comportamentos
previstos em Lei como crime, às vezes praticando condutas marcadas pela violência DESENVOLVIMENTO
extrema.
Transcreva-se brilhante reflexão sobre o tem:
A comoção não é boa conselheira e, nesse caso, pode levar a MEDIDA SOCIOEDUCATIVA PACTUADA NA PROMOTORIA DE JUSTIÇA
decisões equivocadas com danos irreparáveis para muitas crianças
Embora esteja claramente prevista nos arts. 126, 127, 180 e 180, § 1º, dentre
e adolescentes, incidindo diretamente nas famílias e na sociedade. O outros, do ECA, a aplicação de medida socioeducativa na fase pré-processual ainda
caminho para pôr fim à condenável violência praticada por adolescentes desperta debates e faz com que se entenda, nesta quadra da história, com mais de vinte
passa, antes de tudo, por ações preventivas como educação de e cinco anos de vigência da Lei que regulamenta esse importante instrumento jurídico,
qualidade, em tempo integral; combate sistemático ao tráfico de drogas; pela possibilidade de concessão da remissão pelo Ministério Público com aplicação
proteção à família; criação, por parte dos poderes públicos e de nossas unicamente da medida de advertência, quando os dispositivos legais que regem
comunidades eclesiais, de espaços de convivência, visando a ocupação diretamente a matéria assim estão redigidos, desde a entrada em vigor do Estatuto:
e a inclusão social de adolescentes e jovens por meio de lazer sadio e
atividades educativas; reafirmação de valores como o amor, o perdão, a Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de
reconciliação, a responsabilidade e a paz. (KRIEGER, 2015) ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder
a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às
circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à
*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia.
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EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no VOTO […] A remissão é de iniciativa do Ministério Público (Estatuto,
ato infracional. art. 180, II). Todavia, a Justiça da Infância e da Juventude é competente
[…] para “conceder remissão, como forma de suspensão ou extinção do
Art. 127. A remissão não implica necessariamente o reconhecimento processo” (art. 148, II). O Ministério Público pode “conceder a remissão
ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de como forma de exclusão do processo” (Est., art. 201, II). Urge, no
antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer
entanto, a homologação judicial, quando for o caso de suspensão
das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semi-
liberdade e a internação. ou extinção do processo. Impõe-se ainda a intervenção judiciária
[…] quando implicar “aplicação de medida sócio-educativa” (Est., art.
Art. 180. Adotadas as providências a que alude o artigo anterior, o 180, III). Ainda que a lei específica não dispusesse expressamente,
representante do Ministério Público poderá: impor-se-ia sempre a presença do Magistrado, particularmente após
I - promover o arquivamento dos autos; a Constituição da República de 1988 que consagrou o contencioso
II - conceder a remissão; administrativo (art. 5º, LV). Ainda que não se trate de sanção criminal,
III - representar à autoridade judiciária para aplicação de medida encerra, sem dúvida, as características de sanção, exigindo, por isso,
sócio-educativa. o processo com a chancela do Judiciário.
Art. 181. Promovido o arquivamento dos autos ou concedida a (REsp 28.886/SP, Rel. Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO,
remissão pelo representante do Ministério Público, mediante termo SEXTA TURMA, julgado em 09/03/1993, DJ 05/04/1993, p. 5864, grifo
fundamentado, que conterá o resumo dos fatos, os autos serão nosso)
conclusos à autoridade judiciária para homologação.
§ 1º Homologado o arquivamento ou a remissão, a autoridade judiciária Os outros precedentes estão todos centrados nessa mesma discussão, qual
determinará, conforme o caso, o cumprimento da medida. seja, a atribuição de parcela jurisdicional ao Ministério Publico, com a advento da nova
ordem constitucional, a permitir que o Poder Judiciário não participasse do procedimento
Como se depreende da parte final do art. 127, a remissão não tem o condão de direcionado ao cumprimento de medida socioeducativa por Adolescente acusado da
incluir o Adolescente acusado da prática de ato infracional nas duas modalidades de prática de ato infracional. Como se vê, poucos anos foram o suficiente para que essa
medidas executadas em meio fechado, quais sejam, a semi-liberdade e a internação. tese, que se deve reconhecer, de plano, com todo o respeito àqueles que a defenderam,
Excluídas essas, cabível a pactuação de todas as outras previstas no art. 112 do mesmo insustentável do ponto de vista normativo, de outrora e principalmente de hoje, fosse
Estatuto, rol que inclui a advertência; a obrigação de reparar o dano; a prestação rechaçada pela jurisprudência do STJ. Não é ela que se busca sustentar por meio do
de serviços à comunidade; e a liberdade assistida; além de parcela das medidas de presente trabalho.
proteção previstas no art. 101 (encaminhamento aos pais ou responsável, mediante O que se defende é o incremento da atividade ministerial, por meio do oferecimento
termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporários; matrícula de propostas de remissão cumuladas com medidas socioeducativas em meio aberto
e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão que, uma vez aceitas quando da realização da oitiva informal, venham a ser levadas ao
em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; conhecimento do Poder Judiciário para que, sendo homologadas, possam produzir os
requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar efeitos jurídicos a elas inerentes, com a deflagração do respectivo processo executivo, de
ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e acordo com os preceitos normativos contidos tanto no ECA quanto na Lei nº 12.594/2012
tratamento a alcoólatras e toxicômanos). (Lei do Sinase), por meio dos órgãos públicos ou privados devidamente qualificados para
Interessante observar que, há mais de 20 (vinte) anos, foi aprovado o seguinte tanto.
enunciado da Súmula do Superior Tribunal de Justiça: “108) A aplicação de medidas Nesse sentido, expõe de forma bem fundamentada a doutrina:
socio-educativas ao adolescente, pela pratica de ato infracional, é da competência
Assim, quando o Parquet concede a remissão e nela inclui a aplicação
exclusiva do juiz”. (DJ 22/06/1994). De um dos precedentes que embasaram a edição de de medida socioeducativa para o adolescente, promove nos autos
tal verbete sumular, colhe-se a seguinte passagem do relatório e do voto proferido pelo a sua opção em não representar, submetendo este entendimento
Min. Vicente Cernicchiaro: ao Poder Judiciário, que decidirá se o homologa, determinando, ou
RELATÓRIO […] intuito de impugnar acórdão proferido pela Câmara não, ao jovem o seu cumprimento. Portanto, o fato de o cumprimento
Especial do eg. Tribunal de Justiça paulista, que excluiu da competência da medida depender da decisão judicial homologatória para receber
do Ministério Público a imposição de medida sócio-educativa de exigibilidade (art. 181, § 1º, do ECA) não obsta a que a sua aplicação
advertência a menor infrator. Sustenta que a r. decisão negou vigência seja incluída no ato remissivo promovido pelo Ministério Público. Por
aos arts. 127 e 181, §§ 1º e 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente. fim, cabe destacar o despropósito do argumento quanto à violação
Informa que a imposição de medida sócio-educativa pelo Promotor do princípio do devido processo legal quando concedida remissão, na
de Justiça só produz efeito concreto após a homologação judicial, forma de exclusão, cumulada com medida socioeducativa, já que a
resultando de acordo de vontades entre as autoridades responsáveis
autorização para tal possibilidade é extraída dos próprios termos da
pelos menores. Aduz, outrossim, que a nova Carta Política concedeu
ao Ministério Público o poder para a prática destes antos. […] previsão legislativa sobre o processo infracional. (MACIEL, 2013)

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EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

A possibilidade de cumular remissão já foi inclusive aceita pelo Supremo Tribunal Posteriormente, a representante do Ministério Público concedeu
Federal, que se pronunciou pelo seu Plenário em 26/6/2002, lavrando-se acórdão assim remissão ao adolescente, cumulada à aplicação de medida de
ementado: advertência (fls. 15v). Ato subsequente, a Juíza da Infância e da
Recurso extraordinário. Artigo 127 do Estatuto da Criança e do Juventude homologou, por sentença, a manifestação ministerial, para
Adolescente. - Embora sem respeitar o disposto no artigo 97 que produza seus regulares efeitos. Ao final da sentença, a magistrada
da Constituição, o acórdão recorrido deu expressamente pela determinou a aplicação de medida sócio-educativa de advertência ao
inconstitucionalidade parcial do artigo 127 do Estatuto da Criança e do adolescente, designando data para a audiência (fls. 16). O recorrente,
Adolescente que autoriza a acumulação da remissão com a aplicação na data agendada, compareceu ao ato e foi severamente advertido
das consequências de uma nova falta, mostrando-se arrependido
de medida sócio-educativa. - Constitucionalidade dessa norma,
e prometendo não reincidir (fls. 18). Estes os fatos, vê-se que, ao
porquanto, em face das características especiais do sistema de contrário do que foi consignado no voto condutor […] do Tribunal de
proteção ao adolescente implantado pela Lei nº 8.069/90, que mesmo Justiça do Estado de São Paulo, a imposição da medida de advertência
no procedimento judicial para a apuração do ato infracional, como o deu-se por imposição da autoridade judiciária, atendendo sugestão
próprio aresto recorrido reconhece, não se tem em vista a imposição da representante do Ministério Público. E nem poderia ser diferente,
de pena criminal ao adolescente infrator, mas a aplicação de pois a mera concessão da remissão por parte do Ministério Público,
medida de caráter sócio-pedagógico para fins de orientação e de para que se alcance a eficácia devida deve, necessariamente,
reeducação, sendo que, em se tratando de remissão com aplicação receber a homologação judicial. (RE 248018, Relator(a): Min.
de uma dessas medidas, ela se despe de qualquer característica JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 06/05/2008, DJe-
de pena, porque não exige o reconhecimento ou a comprovação 112 DIVULG 19/06/2008, grifo nosso)
da responsabilidade, não prevalece para efeito de antecedentes, Esse entendimento, como se observa dos seguintes julgados proferidos pelas
e não se admite a de medida dessa natureza que implique privação cortes estaduais, vêm sendo adotado de forma pacífica:
parcial ou total da liberdade, razão por que pode o Juiz, no curso do
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. ECA . ATO INFRACIONAL. MINISTÉRIO
procedimento judicial, aplicá-la, para suspendê-lo ou extingui-lo (artigo PÚBLICO. REMISSÃO CUMULADACOM MEDIDASOCIOEDUCATIVA.
188 do ECA), em qualquer momento antes da sentença, e, portanto, HOMOLOGAÇÃO DA MEDIDA PELO JULGADOR OU REMESSA DO
antes de ter necessariamente por comprovadas a apuração da autoria FEITO AO PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA. 1. Cabe ao órgão
e a materialidade do ato infracional. Recurso extraordinário conhecido do Ministério Público, titular da ação pública socioeducativa,
em parte e nela provido. (RE 229382, Relator(a): Min. MOREIRA conceder a remissão como forma de exclusão do processo, que
ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 26/06/2002, DJ 31/10/2002 PP- pode ser cumulativa com medida socioeducativa não privativa de
00020 EMENT VOL-02089-02 PP-00231, grifo nosso) liberdade, caso em que deve haver anuência do adolescente e
de seu representante legal, constituindo autêntica transação. 2.
Ao compor a manifestação unânime da Corte Suprema, no sentido de que é Compete ao julgador homologar a remissão, caso com ela concorde,
constitucional a previsão normativa de sujeição de adolescentes a medidas socio- ou remeter o feito ao Procurador-Geral de Justiça, a quem compete
educativas sem que ocorra a cognição jurisdicional exauriente acerca dos fatos modificar ou convalidar o ato administrativo do Dr. Promotor de Justiça.
supostamente ilícitos, o Ministro Sepúlveda Pertence pontuou que “menos gravosa Se o Chefe do Ministério Público ratificar os termos da manifestação
ministerial, a homologação será imperiosa. Inteligência do art. 181
ao menor será a advertência do que a simples sujeição a um processo para-penal de , § 2º , do ECA e Súmula nº 23 do TJRGS. RECURSO PROVIDO.
apuração de infração. Se se mantêm as características que o art. 127 empresa à remissão, (Apelação Cível Nº 70065636508, Sétima Câmara Cível, Tribunal de
a de não corresponder à afirmação da responsabilidade, nem atingir os antecedentes do Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em
menor, também entendo constitucional o dispositivo”. 22/07/2015 - destacado).
Em nova oportunidade, o Supremo Tribunal Federal afirmou expressamente APELAÇÃO. E.C.A. ATO ANÁLOGO AO DELITO DE LESÃO
ser “possível cumular a remissão concedida pelo Ministério Público, antes de iniciado CORPORAL. RECURSO DEFENSIVO. REMISSÃO PROPOSTA
PELO MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, HOMOLOGADA
o procedimento judicial para apuração de ato infracional, com a aplicação de medida
PELO MAGISTRADO DE PISO, COM APLICAÇÃO DAS MEDIDAS,
sócio-educativa”, cabendo o importante registro de que, naquele julgamento, funcionou SOCIOEDUCATIVA DE ADVERTÊNCIA E PROTETIVA DE
como parecerista o Dr. Geraldo Brindeiro, que na manifestação ministerial defendeu a VERIFICAÇÃO DE MATRÍCULA E FREQUÊNCIA OBRIGATÓRIA
tese derrotada durante o julgamento e chegou a requerer a declaração incidental de EM ESTABELECIMENTO DE ENSINO. REMISSÃO HOLOGADA
inconstitucionalidade da parte final do art. 127 do ECA e que se oficiasse ao Senado NOS TERMOS DO ARTIGO 181, § 1º C/C ARTIGO 127, AMBOS DO
Federal, nos termos do art. 52, X, da Constituição Federal, para que fosse promovida, via ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. POSSIBILIDADE
resolução, a suspensão de tal trecho normativo. DE CUMULAÇÃO COM MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS QUE NÃO
Consta do voto proferido pelo Ministro relator: REPRESENTEM RESTRIÇÃO DE LIBERDADE. APELO CONHECIDO
[…] verifico que o procedimento para apuração de ato infracional ainda E DESPROVIDO.Proposta de remissão formulada pelo órgão do
não havia iniciado, quando a Promotora de Justiça designou data para parquet, cumulada com aplicação das medidas, socioeducativa
oitiva informal do adolescente, nos termos do art. 179 do Estatuto da de advertência e protetiva de verificação de matrícula e frequência
Criança e do Adolescente (fls. 13). obrigatória em estabelecimento de ensino, nos termos dos artigos 126
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126 e 180, III, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente. [...] não Tendo em vista o perfil econômico da maior parte dos adolescentes apreendidos
se vislumbra violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa ou acusados da prática de atos infracionais, é fato comum que eles compareçam à
e do devido processo legal, vez que a remissão prevista no Estatuto
audiência de oitiva informal desacompanhados de advogado. São pessoas que não têm
Menorista pode ser aplicada em qualquer fase do procedimento, em
razão de prescindir de comprovação da materialidade e da autoria condições de arcar com os honorários legitimamente cobrados por esses profissionais
do ato infracional, sendo certo que sua concessão não implica em e dependem da assistência jurídica gratuita a ser prestada pelo Estado, por dever
reconhecimento de antecedentes infracionais. A possibilidade de constitucional, através da Defensoria Pública.
remissão cumulada com aplicação de medidas socioeducativas de A Constituição Federal, por sua vez, foi recentemente emendada para impor ao
caráter pedagógico representa matéria já apreciada pelo Supremo Estado brasileiro, tanto à União quanto aos estados e ao Distrito Federal, a instalação
Tribunal Federal, entendendo-se pela constitucionalidade do efetiva de órgãos com Defensores Públicos em todas as comarcas brasileiras.
artigo 127 do Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo
firmado o entendimento por nossos Tribunais Superiores de que Sintomática, a Emenda Constitucional nº 80/2014, de uma realidade muito bem conhecida
será viável a cumulação quando as medidas socioeducativas pelos membros do Ministério Público que atuam nas comarcas de interior. Promotores
não importarem restrição à liberdade do menor, nos termos dos de Justiça com mais de uma década de exercício da função relatam nunca terem atuado
artigos 126 e 127 do Estatuto Menorista. Precedentes. […] Desta com um Defensor Público de carreira. A estratégia administrativa, confessadamente
forma, tendo sido a proposta de remissão, cumulada com a aplicação adotada em várias unidades da federação, é equipar gradativamente a Capital e as
de medida socioeducativa de advertência, devidamente homologada principais cidades com sedes próprias, abstendo-se de criar sistemas de substituição
por decisão judicial, é cediço que foi o órgão do Poder Judiciário que
a aplicou e não o Ministério Público, como quer fazer crer a Defesa.
automática e deixando, inclusive nessas cidades, de participar de audiências criminais,
Pelo exposto VOTO pelo CONHECIMENTO e DESPROVIMENTO do como as preliminares dos Juizados Especiais. Por isso, dezenas de transações penais
apelo, mantendo integralmente a sentença que homologou a remissão são firmadas diariamente nesses órgãos sem atuação de defesa técnica e, uma vez
cumulada com a aplicação de medida socioeducativa de advertência, cumpridas, são homologadas e produzem seus efeitos jurídicos.
além da medida protetiva de matrícula e frequência obrigatória em Essa questão estrutural deve ser objeto de análise, não para adequar o plano
estabelecimento de ensino. (TJ-RJ - APL: 00089465020148190006 normativo ao dos fatos, o que seria boicotar a própria Ordem Jurídica, mas para que
RJ 0008946-50.2014.8.19.0006, Relator: DES. ELIZABETE ALVES
DE AGUIAR, Data de Julgamento: 25/02/2015, OITAVA CAMARA
se observe o risco que correm aqueles que militam em favor da tese segundo a qual
CRIMINAL, Data de Publicação: 27/02/2015 15:18 - destacado) a presença de Defensor Público nas oitivas informais realizadas na Promotoria de
RECURSO DE APELAÇÃO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO Justiça é pressuposto de validade do ato de concessão de remissão cumulada com
ADOLESCENTE. INSURGÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. medida socioeducativa em meio aberto. Tal risco consiste basicamente na inviabilidade
PROPOSTA DE REMISSÃO CUMULADA COM LIBERDADE da pactuação de tais remissões e no completo esvaziamento da respectiva audiência.
ASSISTIDA. HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO ACORDO, COM O Se não há defensores e a Lei atribuiu apenas ao juiz o poder de nomear advogado,
AFASTAMENTO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA. INOBSERVÂNCIA
conforme dicção do art. 5º, § 3º, da Lei nº 1.060/1950, dificilmente poder-se-ia utilizar
DO ART. 181, § 2º, DA LEI N. 8.069/90. DECISÃO CASSADA. “Não há
constrangimento ilegal quando a remissão é cumulada com medida de o referido instituto e o prejuízo seria arcado pelos Adolescentes que se enquadram no
liberdade assistida, pois esse instituto pode ser aplicado juntamente modelo legal de tal benefício.
com outras medidas que não impliquem restrição da liberdade do menor, Na medida em que os requisitos legais para a concessão de remissão cumulada
nos exatos termos do art. 127 do Estatuto da Criança e do Adolescente” estão presentes, cabe ao Promotor de Justiça realizar a oferta ao Adolescente,
(STJ, Ministro Og Fernandes, DJUe de 19/3/2012). Entendendo que a independentemente da defesa técnica, haja vista que não há processo, não há acusação
medida cumulativa é desproporcional ao ato infracional, em tese, formal, não há investida punitiva do Estado, mas sim a aplicação, em favor dessa pessoa,
praticado, deve o Magistrado de Primeiro Grau proceder na forma
do art. 181, § 2º, da Lei n. 8.069/90 e, assim, remeter os autos de uma medida prevista em Lei com o objetivo, sobretudo, de ajudar no seu processo de
ao Procurador-Geral de Justiça. RECLAMO PROVIDO. (TJ-SC - desenvolvimento.
APL: 20140355489 SC 2014.035548-9 (Acórdão), Relator: Moacyr de O instituto da remissão cumulada com medida socioeducativa, ao contrário do que
Moraes Lima Filho, Data de Julgamento: 10/11/2014, Terceira Câmara se pode concluir a partir da análise do verbo “conceder”, previsto no art. 126 do Estatuto,
Criminal Julgado - grifo nosso) representa espécie de negócio jurídico bilateral, sujeito, como já explicitado neste trabalho
DESNECESSIDADE DA PRESENÇA DO ADVOGADO OU DO DEFENSOR PÚBLICO e defendido por abalizada doutrina (MACIEL, 2013), à homologação judicial para que
passe a ostentar a característica da exigibilidade. Ocorre a intervenção, portanto, de
A participação de defesa técnica no momento da audiência de oitiva informal é dois agentes do Estado dotados de todas as garantias indispensáveis à análise técnica
aspecto que merece especial atenção, posto que o extremo fetichismo hoje existente em e isenta dos casos levados ao seu conhecimento, sendo incabível qualquer invocação
relação às garantias processuais no âmbito penal tende a contaminar todos os ramos do princípio da ampla defesa para tornar nula pactuação expressamente autorizada pela
da Ciência Jurídica, fazendo com que interpretações equivocadas acerca de princípios Lei.
de inegável relevância para o Estado de Direito terminem por travar procedimentos que Em seu magistério, Lenio Streck vem há muito denunciando o que denomina
devem ser dotados de uma mínima celeridade, sob pena de perecimento do direito para panprincipiologismo, que tem contaminado grande parcela da doutrina e seduzido
tutela do qual foram pensados. magistrados e membros do Ministério Público, diante da confortável liberdade de ação:
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EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

[…] não me dei conta, até pouco tempo, de que os juristas brasileiros 1. O PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA É EXERCIDO E CONFORMADO
(e nisso se incluem os neoconstitucionalistas de além mar e aquém PELO DEVIDO PROCESSO LEGAL. A OITIVA - POR PROMOTOR
mais que não abrem mão da discricionariedade judicial) contenta(va) DE JUSTIÇA - DE ADOLESCENTE, ACOMPANHADO POR
m-se com o menos, isto é, limita(va)m-se a superar as velhas formas REPRESENTANTE LEGAL, E A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO
de exegetismo, entregando, entretanto, todo o poder ao intérprete (em DE REMISSÃO COMO FORMA DE EXCLUSÃO DO PROCESSO
especial, aos juízes), a partir de uma série de fórmulas do tipo “menos- CUMULADA COM CUMPRIMENTO DE MEDIDA SÓCIO-
regras, mais-princípios, menos-subsunção, mais-ponderação”, etc. EDUCATIVA É PROCEDIMENTO TRAÇADO PELA LEI. [...] 3.
Ora, essa “delegação de poder” já estava no velho Movimento do ORDEM DENEGADA. (TJ-DF - HBC: 20080020075327 DF , Relator:
Direito Livre (que deve ser entendido em dois níveis: primeiro, na MARIA IVATÔNIA, Data de Julgamento: 19/06/2008, 2ª Turma
reivindicação da liberdade de investigação do direito, superando o Criminal, Data de Publicação: DJU 03/10/2008 Pág. : 161 DJU
deducionismo conceitualista em favor de uma espécie de sociologismo; 03/10/2008, p. 161 - grifo nosso) LEGAL, E A POSSIBILIDADE DE
segundo, e como consequência, no modo de resolver o problema das CONCESSÃO DE REMISSÃO COMO FORMA DE EXCLUSÃO
lacunas que, ao final, acaba entregando aos juízes a possibilidade DO PROCESSO CUMULADA COM CUMPRIMENTO DE MEDIDA
de corrigir os vazios legislativos, adaptando a legislação à realidade SÓCIO-EDUCATIVA É PROCEDIMENTO TRAÇADO PELA LEI.
social que, nos casos mais estremados, admitia, inclusive, decisões [...] 3. ORDEM DENEGADA. (TJ-DF - HBC: 20080020075327 DF ,
contra legem), na jurisprudência dos interesses, que representa algo Relator: MARIA IVATÔNIA, Data de Julgamento: 19/06/2008, 2ª
como um dissidência do Movimento do Direito Livre, no sentido de Turma Criminal, Data de Publicação: DJU 03/10/2008 Pág. : 161 DJU
se constituir como uma ala moderada frente aos exageros libertários, 03/10/2008, p. 161 - grifo nosso)
e se aprimorou na jurisprudência dos valores (sem considerar os
movimentos realistas no interior da common law). (STRECK, 2014)
ENVIO IMEDIATO DO CASO AO ÓRGÃO INCUMBIDO DO ATENDIMENTO
Por sorte, os tribunais pátrios não estão deixando de aplicar a sistemática legal SOCIOEDUCATIVO
consagrada no Estatuto, conforme se constata dos seguintes precedentes:
Conforme sistemática já decorrente do Estatuto, e reforçada pelas rigorosas
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO disposições da Lei do Sinase acerca da execução das medidas socioeducativas,
ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL ANÁLOGO A FURTO. inclusive as em meio aberto, a participação do Poder Judiciário é de extrema relevância
OFERECIMENTO DE REMISSÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO na matéria em análise.
COM A APLICAÇÃO DE LIBERDADE ASSISTIDA. DECISÃO Sobre o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), cumpre
QUE, DIANTE DA AUSÊNCIA DE ADVOGADO NA OUVIDA DO transcrever as lúcidas ponderações doutrinárias a seguir:
ADOLESCENTE PELO PROMOTOR DE JUSTIÇA, CONDICIONA
A HOMOLOGAÇÃO DA REMISSÃO À NOVA AUDIÊNCIA, COM A O SINASE se constitui, sem dúvidas, no grande instrumento de
PRESENÇA DE DEFENSOR. NATUREZA ADMINISTRATIVA DO mudança de paradigma do Direito Infanto-Juvenil no Brasil, ou seja, é
ATO. PRESCINDIBILIDADE DE DEFESA TÉCNICA. AUSÊNCIA DE a ferramenta indispensável para consolidar a travessia da doutrina da
PREVISÃO LEGAL. PREJUÍZO NÃO CONFIGURADO. RECURSO situação irregular para a doutrina da proteção integral. O SINASE, como
MINISTERIAL PROVIDO. Da natureza do procedimento de oitiva subsistema, está inserido no Sistema Geral de Garantias de Direitos
do adolescente pelo Ministério Público que culmina com o e interage com os demais subsistemas – segurança e justiça, saúde,
oferecimento da remissão, ato este informal e administrativo, assistência social e educação - , no sentido de construir a grande rede
decorre sua não sujeição ao contraditório e à ampla defesa. de atendimento socioeducativo, e assim, assegurar, no âmbito dos
A remissão, de outra parte, não acarreta o reconhecimento da princípios da prioridade absoluta e da incompletude institucional, os
responsabilidade do adolescente pela prática do ato infracional direitos fundamentais assegurados aos adolescentes em conflito com
tampouco vai de encontro ao enunciado da Súmula n. 108 do STJ, a lei, previstos no ECA, na Constituição Federal e nas Convenções
porquanto sua validade está condicionada à homologação judicial (art.
Internacionais, das quais o Brasil é signatário. O juiz da Infância e
181 do ECA). Assim, mostra-se despicienda a decisão que condiciona
a homologação da remissão à designação de nova audiência para Juventude não mais dispõe dos super poderes do famigerado “juiz
oitiva do adolescente acompanhado de advogado. (TJ-SC - AG: de menores” e nem é detentor de “ presumíveis” conhecimentos
20130366582 SC 2013.036658-2 (Acórdão), Relator: Rodrigo enciclopédicos, pois à luz da doutrina da proteção integral e dos
Collaço, Data de Julgamento: 10/07/2013, Quarta Câmara Criminal postulados do SINASE, é apenas mais um ator no sistema de garantias
Julgado - destacado) HABEAS CORPUS. VARA DA INFÂNCIA E de direitos. Com efeito, em regra, o juiz da Infância e Juventude deve
JUVENTUDE. REMISSAO E CUMPRIMENTO DE MEDIDA SOCIO- ser auxiliado por uma equipe interdisciplinar( arts. 150 e 151 do ECA),
EDUCATIVA DEPRECADA. ALEG AÇÃO DE VIOL AÇÃO AO e suas decisões referentes à execução da medidas socioeducativas
PRINCIPIO DA AMPLA DEFESA E DO DEVIDO PROCESSO NA devem ser fundamentadas e cumpridas em entidades em meio aberto
VARA DE ORIGEM. NÃO ASSISTÊNCIA DE ADVOGADO QUANDO – liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade -, bem
DA OITIVA DO ADOLESCENTE E DA GENITORA PELO MINISTÉRIO como em unidades de semiliberdade e internação, com a intervenção
PÚBLICO E QUE CULMINOU COM A ACEITAÇAO DA PROPOSTA de uma rede integrada por outros atores do sistema socioeducativo.
DE REMISSAO. OBEDIÊNCIA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. (BANDEIRA, 2014)
CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE.
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EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

Pactuada no âmbito do Ministério Público o cumprimento de medida socioeducativa sentido, e embora faça referência apenas à remissão concedida
pelo Adolescente, cabe o envio imediato dos autos ao Poder Judiciário para homologação, como forma de suspensão do processo, a sistemática também
que terá como opção, na hipótese de discordância, o envio ao Procurador-Geral de se aplica, obviamente, à remissão concedida como forma de
exclusão do processo, quando cumulada com medidas liberdade
Justiça. Caso concorde, determinará a instauração de processo próprio, com a finalidade
assistida ou prestação de serviços à comunidade. Assim sendo,
de autuar os documentos mencionados na Lei do Sinase: mesmo tendo sido a medida de prestação de serviços à comunidade
Art. 39. Para aplicação das medidas socioeducativas de prestação aplicada em sede de remissão, será necessário instaurar de processo
de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade ou específico de execução. Isto é salutar, inclusive, para o fim de eventual
internação, será constituído processo de execução para cada “unificação” de medidas, nos moldes do previsto no art. 45, caput, da
adolescente, respeitado o disposto nos arts. 143 e 144 da Lei nº Lei nº 12.594/2012. (DIGIÁCOMO, 2012, grifo nosso)
8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente),
e com autuação das seguintes peças:
I - documentos de caráter pessoal do adolescente existentes no
Geralmente, figuram como unidades de cumprimento das referidas medidas,
processo de conhecimento, especialmente os que comprovem sua
idade; e em cidades com mais de 60.000 (sessenta mil) habitantes, os Centros de Referência
II - as indicadas pela autoridade judiciária, sempre que houver Especializados de Assistência Social (Creas), que atuam de acordo com normatividade
necessidade e, obrigatoriamente: própria, editada no âmbito da Política Nacional de Assistência Social, considerando que,
a) cópia da representação; após a publicação da Lei Federal nº 12.435/2011, foi reconhecido o Sistema Único de
b) cópia da certidão de antecedentes;
Assistência Social (SUAS) como estrutura responsável pela implementação da Assistência
c) cópia da sentença ou acórdão; e
d) cópia de estudos técnicos realizados durante a fase de conhecimento. Social no país.
Parágrafo único. Procedimento idêntico será observado na hipótese Observem-se as esclarecedoras lições, constantes de publicação técnica
de medida aplicada em sede de remissão, como forma de suspensão especializada, sobre as medidas socioeducativas de Prestação de Serviços à Comunidade
do processo. (PSC) e de Liberdade Assistida (LA):
Art. 40. Autuadas as peças, a autoridade judiciária encaminhará, A Medida Socioeducativa de PSC não deve ser caracterizada apenas
imediatamente, cópia integral do expediente ao órgão gestor do pela perspectiva da punição, mas revestida de significado social e ético
atendimento socioeducativo, solicitando designação do programa ou – como, por exemplo, a restauração de patrimônio público (que tenha
da unidade de cumprimento da medida. sido depredado pela prática de atos infracionais), ações interativas em
instituições socioassistencias (acolhimento institucional de crianças
O art. 39, II, “a”, da Lei do Sinase, ao lado de seu parágrafo único, devem
e adolescentes ou de idosos) ou em órgãos públicos. As atividades
ser interpretados de acordo com as normas que permitem a pactuação de medida
devem possibilitar acesso a novos conhecimentos e habilidades no
socioeducativa no ato da remissão realizada no âmbito do Ministério Público, conforme
processo de aprendizagem e oportunizar relações interpessoais que
exaustiva exposição anterior. Não teria sentido elaborar representação contra alguém
sejam favoráveis ao adolescente. (SÃO PAULO, 2012, p. 33)
que se dispõe a submeter-se espontânea e imediatamente a medidas socioeducativas
Como padrão de ressocialização, estabelece aos adolescentes
de liberdade assistida ou de prestação de serviços à comunidade. Cabe à autoridade
condições à sua conduta, direcionando atividades ideais, estimulando
Judicial, portanto, em um único feito, proceder à homologação e dar início ao processo
o convívio familiar, estruturando sua vida escolar e profissional e
executivo.
propiciando elementos para inserção do adolescente na própria
Como bem explicitado pela doutrina, a origem da medida socioeducativa pouco
sociedade. A LA torna-se uma medida socioeducativa intermediária,
importa para a sua execução, pontuando que, “tenha a medida socioeducativa decorrido
com maior frequência na aplicabilidade, sem perder a característica
de sentença ou de acórdão, ou tenha sido homologada judicialmente em procedimento
de restrição relativa de liberdade. Desse modo, entende-se que
em que tenha havido remissão cumulada com medida socieducativa, o procedimento
a LA tem o seu caráter coercitivo, demarcado pela necessidade de
autônomo de execução existirá de igual maneira” (CARELLI, 2014, p. 66).
acompanhamento da vida social do adolescente (escola, trabalho e
Na mesma linha, é o posicionamento de Murillo José Digiácomo:
família) e caráter educativo, e deve se manifestar no acompanhamento
A obrigatoriedade da instauração de processo específico de execução personalizado, garantindo-se aspectos como: proteção, inserção
diz respeito à modalidade de medida em execução (liberdade
comunitária, cotidiano, manutenção de vínculos familiares,
assistida, prestação de serviços à comunidade, semiliberdade e
execução), pouco importando se a aplicação ocorreu ao término do frequência à escola e inserção no mercado de trabalho e/ou cursos
processo de conhecimento ou em sede de remissão (sendo certo profissionalizantes e formativos. (SÃO PAULO, 2012, p. 34)
que a remissão somente admite cumulação com medidas em meio
aberto). O art. 39, par. único, da Lei nº 12.594/2012 é expresso neste

REVISTA DO MPBA 170 171 REVISTA DO MPBA


EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA EFETIVIDADE DA REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

Como se vê, tais medidas contém inegável caráter educativo e, de acordo com o REFERÊNCIAS
princípio da intervenção precoce, expressamente incluído no art. 100, parágrafo único,
VI, do ECA, devem ter o início de seu processo de execução logo após o envolvimento BANDEIRA, Marcos. Tribunal de Justiça da Bahia. A positivação do Sinase no
do adolescente com o ilícito, o que pode não ocorrer acaso o processo submetido ao ordenamento jurídico brasileiro e a execução das medidas socioeducativas. Disponível
Poder Judiciário não receba o trâmite que se espera. Mesmo demandas que discutem em <http://www5.tjba.jus.br/infanciaejuventude/images/noticia/artigo_marcos_bandeira_
sinase.pdf>, 2014.
o direito à saúde, com pedidos liminares, podem permanecer por semanas ou meses
aguardando despachos judiciais, seja por acúmulo de serviço, pela ausência de titular na CARELLI, Andrea Mismotto. Comentários à Lei nº 12.594/2012: Sistema Nacional de
Vara ou por pura falta de sensibilidade ou de vocação do magistrado que nela oficia. O Atendimento Socioeducativo. Belo Horizonte: MPMG, 2014.
risco de demora na análise e deliberação judicial existe e impõe ao órgão do Ministério DIGIÁCOMO, Murillo José. O SINASE em perguntas e respostas. 2012. Disponível em:
Público uma saída muito simples para minorar os seus efeitos. <http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1198>.
Realizada a oitiva informal, dias após o ilícito, havendo concordância do Adolescente KRIEGER. Murilo Sebastião Ramos. CNBB. A Redução da Maioridade Penal. 2015.
e de seu genitor ou de sua genitora quanto à submissão a liberdade assistida ou a Disponível em: <http://cnbb.org.br/outros/dom-murilo-sebastiao-ramos-krieger/16792-a-
prestação de serviços à comunidade, concordância essa muitas vezes acompanhada reducao-da-maioridade-penal>.
de uma súplica pela atuação do Estado no caso, com a máxima urgência, em razão de MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do
não vislumbrar mais estratégias de enfrentamento do natural comportamento rebelde do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
filho, cabe ao órgão do Ministério Público encaminhá-los, por meio de ofício, instruído de SÃO PAULO. Secretaria de Desenvolvimento Social. Caderno de Orientações Técnicas
cópia integral dos autos, ao órgão encarregado da execução da medida. e Metodológicas de Medidas Socioeducativas (MSE), de Liberdade Assistida (LA) e
Essa estratégia é facilmente aplicada em cidades dotadas de um único Creas, Prestação de Serviços à Comunidade (PSC). São Paulo: Secretaria de Desenvolvimento
que pode permanecer inoperante por meses, sem realizar nenhuma execução de Social (SDS), 2012.
medida socioeducativa caso o Poder Judiciário, provocado após a oitiva informal, STRECK, Lenio. Consultor Jurídico. Que maldição estaria por trás da interpretação do
deixe acumular em suas estantes os autos encaminhados pelo Ministério Público para direito em Kelsen? 2014. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-nov-13/senso-
homologação. Quando da pactuação, o adolescente assume, com seu responsável, o incomum-maldicao-estaria-interpretacao-direito-kelsen>.
compromisso de comparecer logo depois da oitiva informal ao Creas, preferencialmente
no dia útil subsequente, apresentando-se para fins de iniciar a avaliação interdisciplinar
e adoção de outras providências para a elaboração do Plano Individual de Atendimento,
exaustivamente regulamentado a partir do art. 52 da Lei do Sinase.
Não se trata de executar a medida sem a deliberação judicial, eis que não há
dúvida quanto à produção de efeitos jurídicos somente depois do ato homologatório,
mas viabilizar o ingresso do Adolescente no Sistema Único de Assistência Social, a fim
de proporcionar inclusive o acesso aos instrumentos de inegável valor para a correção
de rumos comportamentais e adoção de posturas mais adequadas à convivência em
Sociedade. Evidentemente, essa estratégia de atuação exige o estreitamento dos
vínculos institucionais entre a Promotoria de Justiça e os demais órgãos que compõem
a rede de proteção à criança e ao adolescente da Comarca, sobretudo o executor da
medida e o judicante, esclarecendo-a da melhor forma possível.

CONCLUSÃO

Ao verificar o cabimento e pactuar a remissão cumulada com medida socioeducativa


de liberdade assistida ou de prestação de serviços à comunidade, o membro do Ministério
Público deve, independentemente da presença de Advogado ou de Defensor Público na
audiência de oitiva informal, encaminhar o feito para homologação judicial e autuação do
processo executivo, além de entregar cópia dos autos ao genitor ou responsável legal,
com ofício dirigido ao órgão de atendimento socioeducativo, onde devem comparecer
em prazo breve para início dos trabalhos necessários à elaboração do plano individual
de atendimento e eventual adoção de medidas protetivas no âmbito do Sistema Único
de Assistência Social.
REVISTA DO MPBA 172 173 REVISTA DO MPBA
A (IN) DISPENSABILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO REFERENTES A AÇÕES PENAIS
DE INICIATIVA PÚBLICA: TOQUES DOUTRINÁRIOS E RETOQUES JURISPRUDENCIAIS – A MAQUIAGEM ARGUMENTATIVA

A (IN) DISPENSABILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AUDIÊNCIAS Essa repetição acrítica, de costas para a realidade, também tem impedido um
DE INSTRUÇÃO REFERENTES A AÇÕES PENAIS DE INICIATIVA PÚBLICA: debate jurídico propositivo sobre o atual estado institucional do Ministério Público no
TOQUES DOUTRINÁRIOS E RETOQUES JURISPRUDENCIAIS – A MAQUIAGEM regime democrático brasileiro, embora haja muita preocupação com o crescimento de
ARGUMENTATIVA outras instituições, a exemplo da Defensoria Pública.
Saulo Murilo de Oliveira Mattos* A propósito, há treze anos, Rogério Bastos Arantes (2002, p. 17), em sua densa
EMENTA obra Ministério Público e Política no Brasil, já advertia que:
O presente artigo pretende analisar, a partir do status constitucional do Ministério Público, Depois de três décadas de ascensão ininterrupta, o Ministério Público
alguns entendimentos doutrinários e os posicionamentos das Cortes Superiores sobre as começou a sofrer as primeiras ameaças de diminuição de seus
consequências, no âmbito das invalidades processuais, da realização de audiências de poderes, por meio de alterações legislativas e constitucionais que têm
instruções criminais, referentes a ações penais públicas, sem a presença do Ministério sido aventadas no debate público e que já chegam a ser objeto de
Público. discussão e deliberação no Congresso Nacional.
Talvez, por isso, muitos promotores de justiça têm defendido que seja permitido,
PALAVRAS-CHAVE: Constituição Federal. Ministério Público. Instrução criminal. via emenda constitucional, ao membro do Ministério Público exercer atividade político-
Invalidades processuais. partidária, inclusive com capacidade eleitoral passiva. De acordo com o pensamento
dos defensores dessa tese, essa possibilidade representaria a esperança de que o
Ministério Público, para além dos naturais lobbys políticos, pudesse, substancialmente,
1 INTRODUÇÃO no Congresso Nacional, estabelecer pautas políticas asseguradores da viabilidade do
seu destino e vocação institucional
O que foi o ano de 1988 para o Ministério Público? Onde estariam os ventos O fato é que, aos poucos, no processo penal, diante do monoprocessualismo
dessa atmosfera política no atual ambiente institucional? Para onde irá, como e por onde doutrinário defensivo que se apoderou desse tipo de processo, a pretexto de uma
caminha o Ministério Público brasileiro? E qual a pertinência dessas perguntas para a interpretação bem peculiar – para não dizer conveniente – sobre o respeito aos
atuação do Ministério Público no processo penal? direitos fundamentais, o Ministério Público tem sido apequenado, desnaturalizado,
Essas indagações poderiam ser respondidas da seguinte forma: “após a Constituição “desinstitucionalizado”, até ser dispensado, em certas fases relevantes, do processo
de 1988, que representou os anseios democráticos da sociedade brasileira, o Ministério penal.
Público consagrou sua independência funcional, desvinculando-se, organicamente, do A PEC 37, cujos bastidores de sua rejeição política precisam ser realmente
Poder Executivo, passando a ser instituição essencial, indispensável ao desempenho esclarecidos e revelados, foi apenas uma reação sintomática de parte de uma estrutura
da função jurisdicional do Estado, como também responsável pela defesa dos direitos política e do Sistema de Justiça que, literalmente, deseja engolir, desestruturar o
indisponíveis e sociais (art. 127, da CF/88), sendo ainda, no campo criminal, o autor da Ministério Público.
ação penal pública na forma da lei (art. 129, CF/88).” Mas há muito mais no cotidiano forense. Não só nesse cotidiano, na própria
Esse é um protótipo de resposta às questões acima apresentadas, que pode ser jurisprudência nacional e, pior ainda, na sabedoria jurídica das cortes superiores. Arrisca-
encontrado com tranquilidade no universo jurídico, o qual repete, acriticamente, esse se afirmar que o Ministério Público está envolvido em contexto típico de um “Tropa de
discurso-modelo, como se o deve ser da linguagem fosse o ser da realidade. Inclusive, Elite 2”. O inimigo agora é outro, ou melhor, são outros.
não há palestra sobre o Ministério Público que não se inicie ou finalize, aos menos Ao tema, portanto.
diplomaticamente, com dizeres sobre a indispensabilidade do Ministério Público para o
Sistema de Justiça, em especial o criminal. 2 DO CASO PRÁTICO À DOUTRINA DA DISPENSABILIDADE DO MINISTÉRIO
O objeto de análise do presente artigo é a (in) dispensabilidade do Ministério PÚBLICO NA INSTRUÇÃO CRIMINAL
Público nas audiências de instrução referentes aos crimes de ação penal pública e suas
repercussões no sistema de invalidades processuais penais. Tempos atrás, tivemos a oportunidade de verificar, em processo criminal que nos
Se a sabedoria popular diz que “água mole em pedra dura tanto bate até que chegou por movimentação do destino, o seguinte pronunciamento: “em razão do excesso
fura”, essa sabedoria não tem sido útil ao Ministério Público, ao menos no processo de trabalho, deixo de comparecer à presente audiência, destacando-se, desde já, que
penal. Com efeito, a repetição doutrinária, que ultrapassa gerações jurídicas, sobre a a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça entende ser dispensável a presença do
indispensabilidade institucional do Ministério Público à jurisdicionalidade estatal já não tem Ministério Público em audiências criminais, considerando nulidade relativa a ausência do
sido mais suficiente para preservá-lo, na prática, como uma instituição verdadeiramente Ministério Público.”
essencial à regularidade constitucional do processo penal. Apesar do espanto, é preciso confessar, foi uma grande oportunidade de se
conhecer mais uma notabilidade jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, o
Tribunal da Cidadania.
* Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, titular da 4ª Promotoria de Irecê
REVISTA DO MPBA 174 175 REVISTA DO MPBA
A (IN) DISPENSABILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO REFERENTES A AÇÕES PENAIS A (IN) DISPENSABILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO REFERENTES A AÇÕES PENAIS
DE INICIATIVA PÚBLICA: TOQUES DOUTRINÁRIOS E RETOQUES JURISPRUDENCIAIS – A MAQUIAGEM ARGUMENTATIVA DE INICIATIVA PÚBLICA: TOQUES DOUTRINÁRIOS E RETOQUES JURISPRUDENCIAIS – A MAQUIAGEM ARGUMENTATIVA

Tempos depois, foi a vez de aprender com as lições dos professores Aury Perceba-se que mudamos a lei. Certo ou errado, concordemos ou
Lopes Jr e Alexandre Moraes da Rosa que, em texto publicado na Conjur, intitulado “A não. A magistratura deu de ombros, mantendo o que sempre fez. Cada
dispensabilidade do Ministério Público diante do Juiz–Faz-Tudo”, afirmaram, ao analisar vez mais a perversão na aplicação da lei no Brasil se faz presente.
julgados do Superior Tribunal de Justiça, que a ausência do Ministério Público ensejaria Com todo respeito, discordamos, em parte, do ponto de vista dos referidos
a figura do Juízo Faz-Tudo, que, em vez de fazer perguntas complementares às feitas professores. Várias são as razões para que seja considerada a indispensabilidade da
pelas partes, passa, diante de tal ausência, a substituir o Ministério Público, fazendo presença do Ministério Público nas instruções de ações penais públicas e, nem de
perguntas típicas de órgão acusatório, comprometendo a estrutura dialética do processo longe, a discussão sobre esse tema se mostra periférica, conforme a qualificaram os tais
e, irremediavelmente, sua imparcialidade. professores.
Por essa razão, e só por essa razão, o processo penal estaria maculado, “viciado” A presença da figura do acusador é essencial para a configuração da dialeticidade
de nulidade absoluta, e não nulidade relativa conforme ficou decidido no julgado n. Agravo intrínseca do sistema acusatório. Com a passagem histórica da acusação privada para a
em Recurso Especial Nº 547.295 - RS (2014/0163160-9), cujo relator foi o Ministro Néfi acusação pública e a formalização constitucional do Ministério Público como instituição
Cordeiro. que verbaliza o discurso dogmático-jurídico de acusação, é impensável, no processo
Ao analisarem esse julgado, os referidos professores ponderaram que: penal brasileiro, a concretização da ação penal pública sem o Ministério Público, e,
A decisão do ilustre ministro, com toda a vênia e respeito que por consequentemente, a realização da instrução criminal, que é a carne do processo - o
ele nutrimos, é completamente equivocada e faz um deslocamento momento que viabiliza o acertamento dos fatos - sem o promotor de justiça. Ademais,
do ponto nevrálgico do problema, para focar em questão há a função de custos legis ou constituciones do Ministério Público, relevantíssima no
completamente periférica: se a ausência do MP na audiência é processo penal.
uma nulidade absoluta ou relativa (ou seja, se é nulo ou não). Mas O Ministério Público é, pois, peça-chave da dignidade conceitual e prática do
disso não temos dúvida alguma! Não é caso de nulidade! Se o MP sistema acusatório brasileiro.
foi intimado para audiência e não compareceu, nenhuma nulidade
E o que pode causar o não comparecimento do Ministério Público à audiência de
ocorreu. Simples assim.
Mas o ponto da discussão é outro, bem mais complexo e não enfrentado
instrução?
pela decisão citada. Não se trata de discutir se a ausência do MP Além de uma deficiência fiscalizatória quanto à conformidade constitucional
na audiência gera nulidade ou não, mas sim de saber se pode juiz do processo penal de determinado caso prático, abre-se um imenso espaço para o
substituir o MP na instrução e assumir a iniciativa e gestão da aparecimento do Juiz-Inquisidor, que, a fim de evitar uma deficiência instrutória, passar
prova da acusação para depois condenar com base nessa prova, a fazer perguntas que, pelo rito procedimental vigente, caberia ao Ministério Público,
produzida por ele e não pela parte acusadora. violando-se, como já se sabe, o sistema acusatório.
É disso que se trata a discussão e cujo problema foi tergiversado Ora, na ausência do promotor de justiça, certamente o magistrado começará
e deslocado para questão periférica irrelevante. indagando as testemunhas de acusação e, depois, concederá a palavra à defesa para
O problema não está na ausência do MP na audiência, mas sim em
fazer suas perguntas. Como diferenciar, então, se o juiz estará, com essas perguntas,
questionar-se qual foi a postura do juiz neste cenário. Se o juiz manteve
juiz ou se sentou na cadeira de acusador para inquirir e voltou para
agindo de forma “puramente” instrutória ou de maneira acusatória? Não há como saber.
sua cadeira de juiz (inquisidor) para julgar. Assina-se um cheque em branco à inquisitoriedade judicial, justamente porque uma parte
Como dissemos no início e em diversos outros escritos, o juiz-ator- essencial à dialética processual penal não está presente: o Ministério Público.
inquisidor viola toda a estrutura acusatória-constitucional, colide com Assim, durante a instrução criminal, todo e qualquer ato instrutório judicial,
o devido processo legal substancial, mata o contraditório (tratamento estando ausente o promotor de justiça, será, devido a esse déficit de estrutura dialética
igualitário) e, principalmente, fulmina a imparcialidade (o imenso processual, inquisitório. É como pensamos
prejuízo que decorre dos pré-juízos, pois quem procura, procura Volte-se, então, à tese central do artigo de Aury Lopes Jr e Alexandre Moraes da
algo...ou seja, decide primeiro e depois vai atrás dos argumentos que Rosa: a atuação do juiz-inquisidor no processo penal viola, materialmente, o sistema
justificam a decisão já tomada, etc.). Sem falar no que já conhecemos
acusatório, “mas a ausência do Ministério Público na audiência criminal seria algo
de pré-julgamento a partir da teoria da dissonância cognitiva.
Enfim, o problema é outro, para muito além da mera discussão sobre
periférico, não sendo relevante saber se este fato processual geraria nulidade absoluta
se a ausência do MP na audiência gera nulidade absoluta ou relativa. ou relativa, já que, na realidade, não haveria nulidade”.
O núcleo da questão é outro, e muito, mas muito mais complexo. Mas como pode ser periférica a questão da ausência do promotor de justiça na
Ao admitir-se essa (im)postura do juiz, golpeia-se a Constituição audiência criminal se é justamente essa ausência - essa falta - que desfigura o sistema
e a Convenção Americana de Direitos Humanos; sepulta-se todo acusatório, dando infinito espaço para o aparecimento do juiz factótum, que tudo pode
o projeto de um processo penal democrático e acusatório; e, em sem nada garantir?
última análise, uma vez mais fazemos mudanças legislativas para que Como resposta, cite-se Alberto M. Binder (2003, p. 251-252), para quem:
tudo se mantenha como sempre esteve...

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A (IN) DISPENSABILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO REFERENTES A AÇÕES PENAIS A (IN) DISPENSABILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO REFERENTES A AÇÕES PENAIS
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a figura do promotor se relaciona, necessariamente, com o sistema E mais: além de pacífico, esse entendimento jurisprudencial é antiquíssimo, com
acusatório. (...) Cabe destacar que a figura do promotor está ligada, julgados da Corte Excelsa que datam do ano de 1979, a exemplo do HC 56858, de
desde seu nascimento, ao princípio acusatório, segundo o qual não
pode haver julgamento sem acusação. Antigamente, no sistema relatoria do Ministro Moreira Alves.
chamado “acusatório puro”, não poderia haver julgamento sem a Porque imperiosa, faça-se, desde já, a seguinte ressalva: pensar na existência
acusação do prejudicado, da vítima. de uma verdade real para o processo penal é algo que, por si só, já viola o sistema
Por sua vez, Geraldo Prado (2006, p. 111) fortalece essa ideia ao escrever que: acusatório. Esse princípio, que não é nem princípio na realidade, não tem qualquer
amparo constitucional. Mas a abordagem aqui pretendida não seguirá por aí.
Por igual, não se deve controverter a respeito do significado e alcance
daquilo que se entende por acusação. Não se trata, a nosso juízo, Com todas as vênias possíveis, a jurisprudência dos Tribunais Superiores foi
somente de oferecer uma petição inicial, em processo penal pelo qual firmada em grave error in judicando, pois a ausência do Ministério Público no processo
se pretenda a condenação de alguém. penal de ação penal pública é hipótese de nulidade absoluta, que não admite confirmação,
Não se resume a isso, a um só ato, de acordo com Conso, mas, sem porque viola frontalmente a garantia fundamental do devido processo penal e a própria
dúvida, acusar implica em referir-se a uma função e ainda a um dialeticidade intrínseca do sistema acusatório (arts. 5º, inciso LIV, e 129, inciso I).
órgão, a um conjunto de atos e a um determinado sujeito. Outro reparo a ser feito é que, na hipótese do promotor de justiça ter sido
Parece, então, contraditória, salvo leitura equivocada de nossa parte, a percepção intimado pessoalmente e não ter justificado sua ausência, a melhor solução, diante da
desenvolvida no texto de Aury Lopes Jr e Alexandre Moraes da Rosa sobre ser uma indisponibilidade do ato de instrução processual, seria adiá-lo, enviando-se ofício ao
questão periférica, de quinta preocupação, a presença do Ministério Público na audiência Procurador Geral de Justiça para que designe promotor para realizar a próxima audiência
criminal. (art. 10, inciso IX, “f”, da Lei n. 8.625/93), bem como à Corregedoria do Ministério Público
Surge uma conclusão inafastável: no devido processo penal constitucional para que apure eventual falta funcional.1
brasileiro, a atuação do Ministério Público nas ações penais públicas é plena, de um Diante dessa ausência, se o réu estiver preso, poderá o magistrado avaliar a
ponto a outro do processo, sendo que sua ausência sempre resultará em hipótese de possibilidade de relaxamento da prisão por excesso de prazo decorrente do adiamento
nulidade absoluta. da instrução criminal. A ausência do Ministério Público, justificada ou não, jamais poderá
Não por acaso, os professores Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes representar ofensa a direitos fundamentais de terceiros, principalmente à liberdade de ir
e Antonio Magalhaes Gomes Filhos (2004, p. 146) afirmam que “inválida, ainda, é a prova e vir.
produzida sem a presença das partes. Esse fundamental princípio é reconhecido como Na ausência do Ministério Público, toda e qualquer atuação judicial instrutória será
uma das garantias do processo em geral, extraindo-se de sua inobservância a proibição inquisitória, independentemente do nome que se queira lhe emprestar (atuação supletiva
de utilização das provas produzidas”. ou acusatória substitutiva), com graves danos à imparcialidade do juiz. O tal princípio
Feito esse registro doutrinário, serão analisados, brevemente, os posicionamentos da verdade real, com seus tentáculos instrutórios, não encontra eco constitucional para
e tendências jurisprudenciais das instâncias superiores. sobreviver em um processo penal de máxima acusatoriedade possível. Já foi dito isso.
A solução desenvolvida pela jurisprudência é totalmente impertinente, não
decorre naturalmente das regras processuais que, filtradas constitucionalmente, devem
O QUE DIZEM O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O SUPERIOR TRIBUNAL reger o processo penal brasileiro. É uma solução típica do processo civil clássico, não
DE JUSTIÇA SOBRE A (IN) DISPENSABILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS transindividual, conforme se depreende, a contrário senso, do art. 362 do Novo Código
AUDIÊNCIAS CRIMINAIS DE INSTRUÇÃO de Processo Civil, que corresponde ao artigo 453 do antigo CPC. Portanto, incompatível
com o processo penal. Por isso, é tão importante pensar numa teoria própria do processo
O curioso do tema ora analisado é o seu cariz de “simplicidade” ou “obviedade”. penal e que essa teoria não desconsidere, com o ânimo de extirpá-los, os absurdos
Diante do que dispõem o art. 127, caput, e 129, inciso I, da Constituição Federal, seria judiciários sedimentados pelas cortes superiores.
óbvio concluir que a ausência do Ministério Público em audiências criminais relativas a
ações penais públicas é típica hipótese de nulidade absoluta, de prejuízo evidente, por 1
A propósito, bastante interessante foi o raciocínio desenvolvido em parecer do Ministério Público lançado
ser violadora do devido processo penal constitucional (art. 5º, LIV, da CF/88). Mas não no RE179.272-8, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, senão veja-se: “A falta do Ministério Público
é bem assim. efetivamente colocará entrave à realização da justiça, vencível somente através de medidas administrativas ou
políticas que permitam a retomada do desencadeamento natural da atividade estatal, mediante a concorrência
Tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça têm de todos os componentes da essência orgânica que a deva impulsionar. O órgão do Ministério Público, na
entendimento pacífico de que o não comparecimento do promotor de justiça à audiência condição de agente político do Estado, não pode faltar ao ato em que sua presença seja devida, pelo singelo
criminal, uma vez intimado pessoalmente e não justificada sua ausência, não é hipótese motivo de que o Estado, do qual é, no exercício do seu mister, cérebro, voz e braços, não pode descumprir
de nulidade absoluta, e sim relativa, devendo ser alegada em tempo oportuno sob pena os deveres definidores da sua razão de existir. O Estado não pode faltar. (…) Ausente o órgão do parquet,
devidamente intimado, deve o órgão de jurisdição transferir o ato e comunicar a ocorrência ao Procurador-
de preclusão. Destacam, também, que nesses casos a atuação instrutória do magistrado Geral, requisitando a apresentação de representante do Ministério Público na nova data designada, pena de
não violaria o sistema acusatório, porque ele estaria amparado pelo art. 212 do CPP, que responsabilidade por omissão no cumprimento de atribuições conferidas ao Chefe da Instituição para “designar
membro do Ministério Público para assegurar a continuidade dos serviços, em casos de vacância, afastamento
lhe permite fazer perguntas complementares, inclusive para buscar a verdade real. temporário, ausência, impedimento ou suspeição de titular do cargo, ou com o consentimento deste.”
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A (IN) DISPENSABILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO REFERENTES A AÇÕES PENAIS A (IN) DISPENSABILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO REFERENTES A AÇÕES PENAIS
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Na realidade, a nosso juízo e interpretação, o próprio CPP apresenta sua solução: Quanto à segunda, tem-se que, no dia 13 de novembro de 2014, o Tribunal de
é hipótese de nulidade absoluta a falta de intervenção do Ministério Público na ação Justiça de Pernambuco publicou recomendação aos magistrados daquele Estado nos
penal por ele intentada (art. 564, “III”, “d”, primeira parte, do CPP). E se assim é, será seguintes termos:
nulidade absoluta a ausência do Ministério Público nas instruções criminais referentes a RECOMENDAÇÃO Nº 01, DE 13 DE NOVEMBRO DE 2014 Ementa:
ações penais públicas. Dispõe sobre a possibilidade de realização de audiências de instrução
Por fim, duas perspectivas precisam ser realçadas: a primeira é jurisprudencial e a nos processos criminais, sem a participação do representante do
segunda é de caráter “recomendatório”. Ministério Público prévia e pessoalmente intimado. CONSIDERANDO
Quanto à primeira, tem-se que, recentemente, no AgRg nos Edcl no AREsp que, nos termos do art. 37, inciso III, do Regimento Interno do
Tribunal de Justiça de Pernambuco, compete ao Conselho da
528.020/RS, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 15/09/2015,
Magistratura determinar, mediante provimento geral ou especial, as
o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela nulidade absoluta de determinado processo medidas necessárias à orientação e disciplina do serviço forense;
criminal desde a audiência de instrução, porque nessa audiência, Edição nº 213/2014 Recife - PE, terça-feira, 18 de novembro de
a par de realizada sem a presença do Ministério Público, do início ao 2014 603; CONSIDERANDO o número de comunicações recebidas
fim, o Juiz de Direito substituiu o órgão acusatório ao conduzir pelo Conselho da Magistratura relativas ao adiamento de audiências
e colher todas as provas, em atividade probatória principal e de instrução e julgamento em processos criminais em virtude da
não supletiva. Cuidando-se de ação penal condenatória, na qual ausência do representante do Ministério Público, apesar de sua
sobrelevam não apenas os interesses indisponíveis em disputa, prévia intimação pessoal para comparecer; CONSIDERANDO que,
mas valores afirmativos de um devido processo legal (tanto em sua segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a ausência
ótica procedimental quanto sob o seu viés substancial), é de suma de representante do Ministério Público na audiência de instrução
importância que se perceba, na condução da causa, a clara divisão e julgamento, por si só, não acarreta a nulidade do ato praticado,
desses papéis: um órgão que promove a acusação, mas que ao mesmo devendo a defesa alegar, oportunamente, o defeito processual, bem
tempo fiscaliza o regular desenvolvimento da relação processual; um como demonstrar os prejuízos efetivos eventualmente suportados
órgão ou profissional que defende o imputado e o acompanha durante pelo réu (RHC 27.919/RS, Rel. Ministra MARILZA MAYNARD
os atos processuais; e um órgão, imparcial, que presta a jurisdição e (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/SE), SEXTA TURMA,
que zela para que os direitos das partes sejam observados. julgado em 01/04/2014, DJe 14/04/2014; HC 217.948/PE, Rel. Ministra
A decisão acima destacada, embora revestida de ares de fundamentação MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em
constitucional que almeja preservar o sistema acusatório, tenta equilibrar o não 04/02/2014, DJe 17/02/2014); CONSIDERANDO, ainda, o princípio
equilibrável, isto é, abre espaço para a modulação dos possíveis efeitos jurídicos da celeridade processual e garantia da razoável duração do processo
consagrados no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal e as
decorrentes da ausência do Ministério Público na audiência de instrução, condicionando-
consequências negativas da demora na conclusão da instrução e
os ao atuar judicial: se for supletivo esse atuar, a nulidade será relativa; se for principal, julgamento no processo penal, notadamente em função da liberdade
substituindo a acusação, será absoluta. de ir e vir e da garantia de efetividade processual; RESOLVE :
Esse tipo de razão de decidir é extremamente perigoso, porque, em todas as recomendar aos magistrados com jurisdição criminal do Tribunal
vezes que a instrução criminal ocorrer sem a presença do Ministério Público, que é parte de Justiça do Estado de Pernambuco que realizem as audiências
no processo penal, a atuação judicante será, naturalmente, substitutiva do Ministério de instrução, sem a participação do representante do Ministério
Público. Não há outro caminho. Por força lógica da ausência de dialeticidade processual, Público, desde que tenha havido sua prévia intimação pessoal
corrói-se o sistema acusatório. Afinal, como saber, na prática, se a pergunta formulada para comparecer aos referidos atos processuais. A presente
pelo juiz foi substitutiva ou supletiva da atividade probatória da acusação? Não há como Recomendação entra em vigor na data da sua publicação. Recife,
13 de novembro de 2014. Des. Frederico Ricardo de Almeida Neves
saber.
Presidente.
Essa distinção doutrinária entre atividade judicial instrutória supletiva da acusação
e atividade instrutória substitutiva é uma diferenciação teórica, de jogo de palavras, que Essa recomendação fala por si mesma e anuncia o grau de formalização jurídica
apenas permite a injunção judicial inquisitória no processo penal, só que aromatizada a que está chegando a dispensabilidade do Ministério Público no processo penal. De
com o vocábulo “supletivo”. fato, se o Ministério Público não adotar uma postura estratégica, principalmente no
Não é possível haver modulação dos efeitos jurídicos da nulidade decorrente da campo processual impugnativo, o próximo passo será a cristalização do teor dessa
ausência do Ministério Público nas audiências de instrução de ações penais públicas. recomendação no âmbito do Código de Processo Penal, fazendo-se constar no CPP
Repita-se: será sempre, por violação à norma constitucional do devido processo legal a ausência do Ministério Público na audiência de instrução criminal como hipótese de
(art. 5º, inciso LIV, da CF/88), uma nulidade absoluta. Há de se ter cuidado com as nulidade relativa, quiçá mera irregularidade processual.
técnicas de argumentação jurídica que embasam as decisões dos nossos tribunais, as
quais, tal qual uma maquiagem rejuvenescedora, escondem velhos discursos jurídicos
não declarados oficialmente.
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CONCLUSÕES REFERÊNCIAS

A essencialidade constitucional do Ministério Público ao exercício da função ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e política no brasil. São Paulo: Sumaré,
jurisdicional é incompatível com qualquer pretensão jurisprudencial de fazê-lo dispensável 2002.
em instruções criminais de ações penais públicas. Disso decorre que o promotor de justiça
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. São Paulo: Revista
deve intervir em todos os termos da ação penal pública, como também deve intervir
dos Tribunais, 1995.
processualmente, seja através de correições parciais ou outro meios impugnativos, para
garantir sua atuação plena no processo penal. Seria uma “meta-intervenção”: intervir BINDER M., Alberto. Introdução ao direito processual penal. Tradução de Fernando Zani.
processualmente para garantir o seu exercício de intervenção na ação penal pública, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
seja como parte, seja como fiscal da lei.
LOPES JUNIOR, Aury; ROSA, Alexandre Moraes. A dispensabilidade do Ministério
A partir das regras constitucionais vigentes (art. 5, inciso LIV e art. 129, inciso I,
Público diante do juiz faz tudo. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jun-19/
da CF/88), e tendo em vista que a grande parte dos casos criminais é perseguível via
limite-penal-dispensabilidade-ministerio-publico-diante-juiz-faz-tudo>. Acesso em: 30 de
ação penal pública, não há como pensar em sistema acusatório brasileiro sem defender
jun. 2015.
a indispensabilidade do Ministério Público no processo penal.
A falta de intervenção do Ministério Público no processo penal público acusatório FERNANDES, Antonio Scarance; FILHO, Antonio Magalhães Gomes; GRINOVER, Ada
será sempre hipótese de nulidade absoluta, porque essa ausência desnatura a estrutura Pellegrini. As nulidades no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
dialética do sistema acusatório. Não cabe, portanto, modulação judicial das invalidades
PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de processo penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del
processuais decorrentes da ausência de intervenção do Ministério Público, principalmente
Rey, 2004.
na instrução criminal, que é o núcleo de confluência energética das pretensões e tensões
do processo penal do caso concreto, do dia a dia forense. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais
Por fim, as omissões injustificadas dos promotores de justiça podem encontrar penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
soluções legais e administrativas através da inteligência legal e principiológica proveniente
da Procuradoria-Geral de Justiça, notadamente em razão dos princípios institucionais da
indivisibilidade e unidade, sem prejuízo da atuação da Corregedoria Geral.
Os membros da instituição não podem esquecer os motivos pelos quais são, em
unidade plural, o Ministério Público, buscando sempre recordar, criticamente, o antes e
o depois do ano de 1988.

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JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE?! O QUE É ISSO? “R.H - VISTAS AO MINISTÉRIO PÚBLICO”

JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE?! O QUE É ISSO?! O art. 295, por sua vez, informa que a petição inicial será indeferida: I - quando
“R.H - VISTAS AO MINISTÉRIO PÚBLICO” for inepta1; II - quando a parte for manifestamente ilegítima; III - quando o autor carecer
de interesse processual; IV - quando o juiz verificar, desde logo, a decadência ou a
Saulo Murilo de Oliveira Mattos* prescrição (art. 219, § 5º); quando o tipo de procedimento, escolhido pelo autor, não
corresponder à natureza da causa, ou ao valor da ação, entre outras possibilidades.
EMENTA Então, quer-se dizer com isso que há uma pedagogia legal mínima que direciona
O presente artigo faz uma breve análise sobre a não realização do juízo de admissibilidade o juízo de admissibilidade a ser feito por Eles, os Juízes.2
da petição inicial, o que tem sido comum na prática forense, fato que desrespeita as Acontece que, a pretexto de efetivar o princípio constitucional da razoável duração
premissas básicas do processo civil; assim, destacam-se as consequências desse do processo, muitos Tribunais de Justiça têm expedido, através de suas Corregedorias,
fato em relação ao Ministério Público, relembrando a necessidade de uma fiscalização provimentos que dispõem sobre atos ordinatórios nos âmbitos cível e criminal, autorizando
do Ministério Público quanto a essa prejudicial prática processual, principalmente nas ao escrivão ou Diretor de Secretaria a praticar, independentemente de autorização
hipóteses de tutela de urgência. judicial, atos processuais sem caráter decisório e atos administrativos de movimentação
processual, entre os quais a famosa carimbada nos autos de “vistas ao Ministério Público”
PALAVRAS-CHAVE: Petição inicial. Juízo de admissibilidade. Tutela de urgência. (e.g o art. 1º, inciso IX, do provimento N. CGJ-10/2008-GSEC do TJ/BA).
Ministério Público. Até aí tudo bem, o ato de abertura de vistas ao Ministério Público, quando
possível, não possui caráter decisório, e poderá ser praticado por servidores autorizados.
Mas muitas vezes deve ser precedido por uma decisão judicial sobre alguma questão
INTRODUÇÃO processual relevante, de caráter incidental, e essa decisão não poderá ser substituída,
em hipótese alguma, por uma carimbada de abertura de vistas. Registre-se isso.
Deve ser apenas uma ilusão. Esta é a única resposta que se pode ter para a Portanto, o mal surge com toda força, e com finalidade argumentativa jurídica
remessa indiscriminada de petições iniciais autuadas, chamadas de “processo”, ao desviante do dever constitucional de fundamentar as decisões judiciais, quando tais
Ministério Público. Com um simples despacho judicial: “Ao Ministério Público” ou “ R.H - carimbadas se antecedem ao juízo de admissibilidade da inicial. Conclusão: uma
Vistas ao Ministério Público” ou um carimbo do chefe do Cartório - “Vistas”, está admitida enxurrada de petições iniciais chegam ao Ministério Público com os mais variados erros,
a tal preambular, inicial, incoativa ou qualquer outro nome estrondoso que se queira dar problemas de legitimidade processual e referentes a condições da ação, inexistência de
a esse ato postulatório que movimenta inicialmente a jurisdição. polo passivo, de procuração de advogado, ausência de documentos indispensáveis e
A boa-fé que move a ética das instituições públicas não autoriza a conclusão de tudo aquilo que possa caracterizar o não recebimento da inicial.
que muitas autoridades judiciárias, na prática, têm deixado de exercer deliberadamente O processo chega ao Ministério Público sem existir a primeira relação jurídica
o juízo de admissibilidade de quaisquer atos postulatórios simplesmente para que os processual possível, qual seja: autor-juiz; demandante-magistrado. Como pode o
processos espaireçam seus ares internos nas salas do Ministério Público. Mas o fato Ministério Público se manifestar sobre algo que não passa de papéis encadernados?
existe: não tem sido feito o juízo de admissibilidade da petição inicial, seja em processos Se a abertura de vistas ao Ministério Público deve ocorrer, só será oportuna
de guarda, adoção, alimentos, seja em ações civis públicas e outras demandas cíveis, ou após o indispensável e inicial juízo de admissibilidade do ato postulatório inaugural do
até mesmo nas clássicas ações penais públicas. demandante que apenas quer deduzir em Juízo sua pretensão, jurisdicionalizar a relação
Para que refletir sobre os pressupostos e requisitos processuais, as condições da jurídica de direito material em que se encontra envolvido.
ação e as invalidades processuais? Na prática, a Teoria Geral do Processo está sendo A violação ao devido processo legal se torna mais contumaz ainda quando
mutilada com juízos de admissibilidade implícitos, que na verdade são “não juízos de a parte autora opta por fazer algum pedido, liminarmente, sob o fundamento da
admissibilidade”, porque ao ser dado o primeiro impulso oficial ao processo com um necessidade de ser concedida uma tutela de urgência. Aí o desrespeito ao mínimo
simples despacho - “Ao MP” ou “Recebo a denúncia e cite-se o réu” - é impossível formalismo processual dá espaço para o nascimento do desespero processual dos
visualizar nessas simples e decisivas palavras qualquer juízo de admissibilidade. Nesse Juízes, que enviam o processo com toda urgência possível ao Ministério Público.
caso, não há interpretação jurídica possível que justifique essa decisão implícita.
E decisão implícita - todos sabem – é uma não decisão, um ato judicial suicida.
Não foi por acaso que o Código de Processo Civil estabeleceu que “o juiz não se exime 1
Segundo o parágrafo único do citado artigo: “Considera-se inepta a petição inicial quando:- I lhe faltar
de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da pedido ou causa de pedir; II - da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão; III - o pedido for
lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos juridicamente impossível; IV - contiver pedidos incompatíveis entre si.”
2
costumes e aos princípios gerais de direito (art. 262).” Adverte Marcelo Abelha Rodrigues (2008. p. 312) que: “com o ajuizamento da petição inicial, ocorrido o
despacho que ordena a citação do réu, alguns efeitos de ordem processual podem ser invocados. O primeiro
deles, na verdade, é de ordem procedimental, na medida em que a partir daí o processo se desenvolverá por
*
impulso oficial, ou seja, a movimentação do processo passa a seguir um rito específico desde a prática de tal
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, titular da 4ª Promotoria de Irecê ato.”
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JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE?! O QUE É ISSO? “R.H - VISTAS AO MINISTÉRIO PÚBLICO” JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE?! O QUE É ISSO? “R.H - VISTAS AO MINISTÉRIO PÚBLICO”

Não é apreciada nem a admissibilidade da inicial nem do pedido sob o epíteto de tutela Nesse particular, o automatismo que na prática tem regido o modo de se produzir
urgência. Mandem os autos ao promotor de justiça, o roteirista processual, o assessor o direito esperado pelas partes não tem dado espaço para se perceber que a intervenção
de luxo Deles, os Juízes. do Ministério Público no processo civil é uma intervenção qualificada. Não é qualquer
Surgem as lembranças da popular história da batata quente. Em quais mãos as intervenção. Não é em qualquer fase procedimental, mas sim naquele exato momento
batatas quentes irão parar? Bons tempos em que as iniciais eram prestigiadas com o estabelecido pela lei após a filtragem constitucional. A intervenção do Ministério Público
despacho “cite-se” e a discussão doutrinária se restringia sobre a recorribilidade ou não em momento procedimental inadequado pode, inclusive, ser prejudicial à concessão da
do “cite-se”. própria tutela jurisdicional que se busca zelar enquanto fiscal da Constituição.
Pois bem, como o presente artigo sugere apenas uma primeira reflexão sobre esses Considerando o quanto dito precedentemente, duas situações merecem uma
dissabores processuais que podem haver, no nascimento do processo, entre o Poder pausa reflexiva.
Judiciário e Ministério Público quanto à necessidade ou não de juízo de admissibilidade Se não foi feito o juízo de admissibilidade da inicial e, ainda assim, o processo
da inicial, será feita a seguir, a título exemplificativo, uma breve abordagem sobre essa foi remetido ao Ministério Público, deverá imediatamente retornar às portas do Poder
postura típica do sujeito processual juiz, ora criticada, quando existentes pleitos de tutela Judiciário para que Sua Excelência, o doutor Juiz, o faça. Do contrário, o promotor de
de urgência na inicial. justiça estaria se abstendo do seu dever constitucional de fiscal da lei ao permitir o
surgimento de um processo com forte probabilidade de ser “nulo”, isso se a teoria das
invalidades processuais for realmente levada a sério, pois sem o recebimento da inicial o
1 O EXEMPLO DO PEDIDO LIMINAR DE CONCESSÃO DE TUTELA DE URGÊNCIA: processo não estaria apto a existir juridicamente, segundo elucida determinada corrente
QUANDO SERÁ APRECIADO? doutrinária sobre os pressupostos de existência do processo.
Uma pequena cota no seguinte sentido já daria conta do problema: “MM. Juiz:
A premissa básica é a de que, havendo ato postulatório, deve ser realizado o juízo retorno os autos a Vossa Excelência para que exerça o juízo de admissibilidade da inicial
de admissibilidade desse ato, seja um juízo positivo ou negativo, principalmente quando nos termos dos artigos 284 e 285 do Código de Processo Civil.” Ou “MM. Juiz: Devolvo
o pedido é inaugural, já que a partir dele é que se sugere o nascimento da relação jurídica os autos. Aqui por engano”; esta última não tão recomendada pelo risco de ser mal
processual que será a base para o aparecimento de tantas outras relações jurídicas interpretada pelo seu excelentíssimo destinatário.
processuais quantas forem necessárias à resolução do caso. Assim, mais uma vez, frise- Parece que essa lógica valeria para toda e qualquer inoportuna abertura de vistas
se que todo e qualquer ato postulatório deve ser submetido a um juízo de admissibilidade ao Ministério Público.
do Poder Judiciário.3 A outra situação diz respeito à tutela de urgência, quando houvesse requerimento
Outra premissa que costuma ser esquecida é a de que o princípio da inafastabilidade de algum pleito sob a fundamentação caracterizadora de tutela de urgência (tutela
da jurisdição (art. 5º, inciso XXXVII, da CF/88) garante uma tutela jurisdicional adequada antecipada ou cautelar), principalmente se feito liminarmente, os autos não deveriam
tanto do ponto de vista material – dai-me o direito que eu postulo – como estritamente ir ao Ministério Público sem ter sido essencialmente analisado o requerimento pelo
processual – dai-me, através do devido processo constitucional, o direito que eu postulo. magistrado, sob forte risco de ser desnaturada a própria ideia da tutela de urgência e ser
Portanto, as desautorizadas inversões procedimentais ou criações pseudomodernas comprometido o objeto do requerimento formulado.
de novos procedimentos, que frequentemente ocorrem na prática, estrangulam a Repita-se: o juízo de admissibilidade pode ser tanto macro, em relação ao
legislação processual, quando não causam devastadora erosão da Teoria do Processo procedimento todo, quanto micro, para cada ato postulatório, e o pleito de tutela de
Civil. urgência não fugiria dessa regra.
Por essa linha de pensamento, toda e qualquer remessa de processos ao Ministério Então, o que se defende aqui, nessas breves linhas, é que, toda vez que houver
Público em momento procedimental inadequado pode ser adjetivada de tumultuária, requerimento de tutela de urgência, a intervenção do Ministério Público nas causas que
maleficamente subversiva, e, para não se fugir da referência constitucional, violadora do são de sua atribuição só deverá ocorrer após apreciada pelo magistrado a admissibilidade
devido processo constitucional. da tutela de urgência, seus pressupostos e requisitos, o que neste caso redundará no
imediato deferimento ou indeferimento do pedido. Isso porque ou a tutela é de urgência
ou não é de urgência. Assim, ao ser apreciada a admissibilidade desse tipo de pleito, ou
3
De acordo com Fredie Didier, em seu Pressupostos Processuais e Condições da Ação (2005. p. 23).
o juiz defere ou o juiz não defere. A intervenção ou pronunciamento do Ministério Público
“É importante ressaltar, também, que essas considerações valem para qualquer procedimento ou ato só deverá ocorrer após essa análise sob pena de aniquilamento processual da tutela de
postulatório – embora o cerne deste trabalho seja o juízo de admissibilidade do processo, entendido como urgência requerida.
o juízo a respeito do procedimento principal e da demanda originária. O que se diz aplica-se a qualquer A tutela de urgência é shakespeareana. É um tipo de tutela que entra no processo
procedimento, principal ou incidental, de primeiro grau ou recursal, de conhecimento ou executivo etc.) e a
qualquer ato postulatório, inicial ou incidental (petição inicial, contestação, recurso, pedido de produção de
gritando para si - “ser ou não ser, eis a questão”, de maneira que sua apreciação pelo Poder
prova, reconvenção, impugnação ao valor da causa, denunciação da lide, conflito de competência, exceções Judiciário, por uma questão de essência mesmo, não admite despachos dilatórios como
instrumentais etc.). “Reservo-me a ap reciar o pedido de concessão de tutela antecipada na audiência de i nstrução.”

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JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE?! O QUE É ISSO? “R.H - VISTAS AO MINISTÉRIO PÚBLICO” JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE?! O QUE É ISSO? “R.H - VISTAS AO MINISTÉRIO PÚBLICO”

A nosso juízo, esse perfil de decisão é um indeferimento subjetivamente velado. Foge Corretamente elaborada a petição inicial, caberá ao juiz da causa
das linhas de um devido processo legal. proferir um pronunciamento liminar positivo. Deste trata o art. 7º da
A realidade pode ser útil ao esclarecimento do que aqui se quer dizer. Deu-se Lei n. 12.016/2009. É preciso que se tenha claro, porém, que quando
se fala em liminar no processo do mandado de segurança está-se
entrada com uma ação de guarda com pedido liminar de busca e apreensão de uma
a cogitar, normalmente, da medida que defere tutela jurisdicional de
criança em que todos os documentos acostados aos autos apontam que ela está urgência nesse tipo de processo. O pronunciamento liminar, porém,
sob cárcere privado de sua tia, encontra-se deprimida, sem se alimentar e em outras não se limita a isso. Assim, deve-se considerar pronunciamento
tenebrosas condições. O magistrado, de posse dos autos, exara o seguinte despacho: liminar aquele provimento emanado do juiz ao prover sobre a petição
“Ao Ministério Púbico para que se manifeste sobre o pedido de busca e apreensão em inicial, ainda que não haja concessão de tutela de urgência.
24 (vinte e quatro horas)”. A realidade é mais forte e veloz do que o processo. Antes Citando André Vasconcelos Roque e Francisco Carlos Duarte, o referido autor
de consumadas as 24 (vinte e quatro) horas, a tia asfixia a criança até matá-la”. Os explica que (2013, p. 161):
autos foram desnecessariamente ao Ministério Público e a tutela de urgência perdeu seu A liminar poderá tanto ser antecipatória, hipótese em que o risco de
sentido. dano iminente recairá sobre o direito material (ex: fornecimento de
Qual prejuízo haveria se a manifestação do promotor de justiça fosse posterior à um medicamento), como cautelar, caso em que se resguardará a
análise judicial do pleito de busca e apreensão? Nenhuma, salvo à excessiva vaidade de efetivação do processo mandamental (ex: suspensão da exigibilidade
do crédito tributário questionado na impetração). Ao contrário do
quem se achasse excessivamente guardião do regime democrático.
que consta no texto da norma, portanto, não é somente o receio
A curiosidade fica por conta de que os artigos do Código de Processo Civil e de de ineficácia da medida que autoriza a concessão da liminar, mas
outras legislações pertinentes ao abordarem a tutela de urgência a remetem à análise qualquer situação de urgência, ainda que o risco de dano iminente
direta pelo Poder Judiciário, sem a necessidade de oitiva prévia do Ministério Público. venha a recair sobre o direito material alegado.
Quando a lei quis deixar consignada expressamente a intervenção prévia do Ministério Bem interessante, também, o pensamento de Marcelo Abelha Rodrigues (2008),
Público nesses casos, assim o fez. para quem:
Uma rápida conferida, portanto, em algumas hipóteses legislativas favorece a A obviedade do comentário beira o ridículo, pois tutela urgente
compreensão: tutela cautelar, tutela antecipada, alimentos provisórios, Lei Maria da designa toda e qualquer modalidade de tutela cujo móvel qualificador
é a urgência. Assim, seja a tutela conservativa, seja a satisfativa,
Penha, Lei de Mandado de Segurança, Fiança, Habeas Corpus etc. quando são movidas pelo fenômeno da urgência, possuem um laço de
O art. 273 do CPC dispõe que o juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, parentesco tal que não permite que sejam tratadas de forma diferente,
total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, tais as semelhanças que existem entre elas. As situações de urgência
existindo prova inequívoca, se convençam da verossimilhança da alegação e: I - haja não escolhem nem hora, nem local para ocorrerem. O que se sabe
fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. é que precisam se rapidamente debeladas, sob pena de o risco que
surge iminente deixar de ser concreto, tornando inútil e sem razão de
O art. 804 do CPC informa que é lícito ao juiz conceder a tutela cautelar liminarmente ser uma proteção tardia.
sem ouvir o réu.
O art. 19.§1, da Lei n. 11.340/2006 diz que as medidas protetivas de urgência Como se vê, comparando-se as diversas legislações citadas e as explicações
poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de doutrinárias sobre a tutela de urgência, nada recomenda a abertura de vistas ao Ministério
manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado. Público quando houver na petição inicial pedido liminar de concessão de tutela de
Art. 4º da Lei de Alimentos afirma que o juiz, ao despachar o pedido, fixará desde urgência. Entende-se que a essência, a natureza desse tipo de tutela requer apreciação
logo alimentos provisórios.
O art. 333 do Código de Processo Penal coloca que depois de prestada a fiança, imediata do Poder Judiciário, seja para deferir, seja para indeferir, afinal, conforme diz a
que será concedida independentemente de audiência do Ministério Público, este terá tradição jurídica, o juiz conhece a lei.
vista do processo a fim de requerer o que julgar conveniente. Na realidade esse raciocínio se aplica a qualquer pedido de tutela de urgência
O art. 7º, inciso III, da Lei de Mandado de Segurança (12.016/2009), ao tratar do feito em qualquer fase procedimental. A sumariedade da cognição, a provisoriedade,
recebimento da inicial pelo juiz, dispõe que, ao despachar a inicial, o juiz ordenará que se modificabilidade e a revogabilidade desse tipo de tutela são características que deixam
suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver fundamento relevante e do ato
impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, sendo ao magistrado um espaço confortável para proferir sua decisão, e evitar sua omissão
facultado exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o decisória que costumeiramente ocorre travestida de despachos de abertura de vistas
ressarcimento à pessoa jurídica. ao Ministério Público quando sequer ainda foi feito o juízo de admissibilidade da inicial.
E, de acordo com essa lei, o Ministério Público só intervirá após feita inicialmente O processo, ao ser remetido ao Ministério Público posteriormente a análise
a análise judicial sobre a necessidade de suspensão ou não do ato que deu motivo ao do pedido de tutela de urgência, não desqualifica a atuação ministerial. Ao contrário,
pedido de concessão de segurança.
Quanto ao pronunciamento liminar em mandado de segurança, Alexandre Freitas viabiliza que o processo seja, de fato, um processo, uma marcha rumo ao seu fim e que a
Câmara (2013, p. 157), faz uma brilhante observação sobre a base teórica que embasa fiscalização do Parquet ocorra em tempo oportuno, respeitadas as diversas necessidades
o posicionamento aqui adotado: de tutelas jurisdicionais que surgem no curso de um processo.
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CONCLUSÕES O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CURADOR ESPECIAL NAS INTERDIÇÕES:


A INCOMPATIBILIDADE DO MÚNUS DE CURADOR ESPECIAL COM O PERFIL
O juízo de admissibilidade da inicial e de todo o processo – numa perspectiva mais CONSTITUCIONAL DO PARQUET DESDE O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973
ampla – não pode ser substituído por carimbadas de abertura de vistas ao Ministério Ana Patrícia Vieira Chaves Melo*
Público. O recebimento ou não da petição inicial é um ato essencialmente judicial.
Inadmissível, ainda que no plano puramente das ideias, a chamada decisão implícita, EMENTA
uma contradição em termos. O múnus público de curador especial ao interditando é incompatível com o perfil
Ser fiscal da lei é também ser fiscal de como deve surgir um devido processo constitucional do Ministério Público, que deve atuar nas ações de interdição como
legal. O Ministério Público não pode atuar, nas causas que lhe cabe intervir, com olhos custos legis, quando não for autor. Trata-se de incumbência estranha às suas funções,
estreitamente fixados no direito material discutido. O Ministério Público é defensor primaz não prevista na Constituição Federal, além de violar a independência funcional, o
da concessão de uma tutela jurisdicional adequada, que tem como essência o respeito conceito de interesse público, o devido processo legal e seus corolários, contraditório,
às regras do devido processo legal. ampla defesa. Conclui-se que o § 1º do art. 1.182 do CPC/73 foi revogado pela CF/88. O
O juízo de admissibilidade acompanha todo o processo, e o Ministério Público novo diploma processual civil dirimiu qualquer dúvida a respeito da atuação do Parquet
não pode ser condescendente com omissões judiciais aptas a dar causa a invalidades no processo de interdição: atuará como custos legis.
processuais. Processos sem juízos de admissibilidade iniciais devem ser reenviados
imediatamente ao Poder Judiciário para que cumpra sua função constitucional. PALAVRAS-CHAVE: Curador especial. Ministério Público. Interesse público. Perfil
Os pleitos de tutelas de urgências, liminares ou não, reclamam uma apreciação constitucional. Revogação.
imediata do Poder Judiciário, independentemente de qualquer pronunciamento ministerial.
A não abertura prévia de vistas, nesses casos, permite uma prestação jurisdicional
adequada nos termos assegurados pelo art. 5º, inciso XXXVII, da Constituição Federal. 1 INTRODUÇÃO
A discricionariedade judicial para adaptar procedimentos ao caso concreto não
pode ultrapassar os limites impostos pela Teoria do Direito. O debate acerca da nomeação do Ministério Público como curador especial do
interditando, em que pese se trate de tema há muito discutido na doutrina e objeto de
análise por diversos Tribunais Pátrios, ainda permanece controverso na jurisprudência.
No âmbito do Tribunal de Justiça da Bahia, o tema somente foi trazido à baila em 2014,
REFERÊNCIAS através de diversos agravos de instrumento¹ interpostos pelo Ministério Público, nos
CÂMARA, Alexandre Freitas. Manual de mandado de segurança. São Paulo: Atlas, 2013. quais se proferiram decisões divergentes.
Não obstante seja amplamente fundamentada na doutrina pátria a não assunção
DIDIER JUNIOR, Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de do múnus de curador ao interditando pelo Ministério Público, bem como já acolhida
admissibilidade do processo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. pontualmente pelos Tribunais Superiores, é surpreendente que a magistratura de piso
e decisões isoladas do Tribunal de Justiça baiano ainda insistam em obrigar o Parquet
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; Manual do processo de
conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. a exercer tal função, o que traz à lume a importância de ser discutido o tema no
âmbito jurídico. Frise-se que o Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2014) ainda não
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: consolidou posicionamento a respeito da matéria, havendo inclusive decisão da Quarta
Revista dos Tribunais, 2008. Turma no sentido de que a função de defensor do interditando, nas ações de interdição
não ajuizadas pelo MP, deverá ser exercida pelo próprio órgão ministerial, não sendo
necessária, portanto, nomeação de curador à lide.

*
Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Pós-graduada em Direito Tributário pela
Universidade do Sul de Santa Catarina. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Aluna
do programa de pós-graduação da UFS.
1
Agravos de instrumento nº 0015132-97.2014.8.05.0000, 0010717-71.2014.8.05.0000, 0011164-
59.2014.8.05.0000, 0010709-94.2014.8.05.0000, 0009405-60.2014.8.05.0000, 0011711-84.2011.8.05.0039,
0009294-76.2014.8.05.0000, 0009338-95.2014.8.05.0000, 0008007-78.2014.8.05.0000, 0009307-
75.2014.8.05.0000, 0009527-73.2014.8.05.0000, 0011963-05.2014.8.05.0000, 0017971-95.2014.805.0000,
0017972-80.2014.805.0000, 0017973-65.2014.805.0000, 0017974-50.2014.805.0000 e 0017975-
35.2014.805.0000.
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O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CURADOR ESPECIAL NAS INTERDIÇÕES: A INCOMPATIBILIDADE DO MÚNUS DE CURADOR ESPECIAL O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CURADOR ESPECIAL NAS INTERDIÇÕES: A INCOMPATIBILIDADE DO MÚNUS DE CURADOR ESPECIAL
COM O PERFIL CONSTITUCIONAL DO PARQUET DESDE O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973 COM O PERFIL CONSTITUCIONAL DO PARQUET DESDE O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973

O presente texto colima demonstrar que a curatela especial é incumbência estranha A ampla defesa por parte do indigitado incapaz é importantíssima. Não
às funções do Ministério Público à luz do seu perfil delineado pela Constituição Federal, se pode impedir o interditando de se opor ao pedido. Em diversas
além de incompatível com os princípios constitucionais que resguardam os direitos do oportunidades decidimos casos nos quais as tentativas de interdição
interditando. por familiares tinham meros interesses escusos, de apropriação
patrimonial (VENOSA, 2013, p. 2054).
Com tal desiderato, far-se-á uma análise acerca do instituto jurídico da curatela
especial, da excepcionalidade da interdição e das garantias processuais que devem lhe Frise-se que, segundo ensinamento elementar do Direito, enquanto a “capacidade
cercar, bem como abordar-se-á a incompatibilidade do exercício de tal múnus com as se presume; a incapacidade deve ser comprovada.” (VENOSA, 2009, p. 446-447).
funções acometidas ao Ministério Público pela Constituição Federal de 1988. Com lastro Destarte, é necessário refletir acerca da gravidade da medida que a Ação de Interdição
nesse marco teórico, tratar-se-á da revogação do §1º do artigo 1.182, do Código de tem por escopo impor ao interditando, a limitar seus direitos fundamentais e implicar uma
Processo Civil de 1973 pela Carta Magna e do regramento legal do novo Código de grave restrição à livre disposição patrimonial do interdito, para, então, restar evidente a
Processo Civil a respeito da matéria. Em seguida, será abordado a que órgão incumbe, importância do processo justo, com a devida observância do contraditório e da ampla
na prática jurídica, definir a presença do interesse público a ensejar a intervenção do defesa, princípios constitucionais inerentes ao conceito de processo. A respeito dos
Parquet. princípios do contraditório e da ampla defesa, Ada Pellegrini Grinover ensina:
Em suma, será demonstrado que, antes mesmo do advento do Código de O princípio do contraditório também indica a atuação de uma garantia
Processo Civil de 2015, o Ministério Público não poderia ser nomeado curador especial fundamental de justiça: absolutamente inseparável da distribuição
nos processos de interdição, devendo atuar como fiscal da lei. da justiça organizada, o princípio da audiência bilateral encontra
expressão no brocardo romano audiatur et altera pars. Ele é tão
O curador especial, antigo curador à lide na tradição luso-brasileira,
intimamente ligado ao exercício do poder, sempre influente sobre
desempenha no processo função protetiva da esfera jurídica do incapaz
a esfera jurídica das pessoas, que a doutrina moderna o considera
sem representante legal ou com interesses colidentes com o de seu
inerente mesmo à própria noção de processo. [...] Sendo indisponível
representante e do réu preso ou revel citado com hora certa. A sua
o direito, o contraditório precisa ser efetivo e equilibrado: mesmo revel
nomeação tem por desiderato velar pela paridade de armas no processo
o réu em processo-crime, o juiz dar-lhe-à defensor (CPP, art. 261 e
(e, pois, pela mantença de um processo justo) e deve se dar pelo juiz da
263) e entende-se que, feita um defesa abaixo do padrão.” mínimo
causa, exercendo as suas funções tão somente nos autos em que fora
tolerável, o réu será dado por indefeso e o processo anulado (CINTRA;
nomeado. Não havendo na comarca ou subseção representante judicial
GRINOVER; DINAMARCO, 2010 , p. 58).
de incapazes ou ausentes, a nomeação de curador especial é de livre
escolha pelo órgão jurisdicional. Não se exige que o curador especial
seja bacharel em direito ou advogado, nada obstante seja altamente Nessa senda, a Lei 13.146/2014 – Estatuto da Pessoa com Deficiência – lastreada
recomendável que assim se afigure (MARINONI; MITIDIERO, 2011, p. no princípio da dignidade da pessoa humana, tornou a curatela extraordinária e restrita a
107-108). atos de conteúdo patrimonial ou econômico. Assim, com a entrada em vigor do referido
diploma legislativo, a pessoa com deficiência - aquela que tem impedimento de longo
Ora, desta definição, sobreleva-se a importância do curador especial para prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, nos termos do artigo 2º - não
assegurar o devido processo legal. É cediço que a nomeação do curador especial ao deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, porquanto os artigos 6º e
incapaz cinge-se aos casos em que não houver representante legal ou se os interesses 84º da Lei 13.146/2015 preceituam que a deficiência não afeta a plena capacidade civil
deste colidirem com os daquele. O dever de nomeação de curador pelo juiz exsurge, da pessoa. Entretanto, essa alteração na compreensão da pessoa com deficiência à
neste caso, segundo lição do processualista Marinoni (2011, p. 108), com o mais leve luz da dignidade da pessoa humana não implica a extinção do processo de interdição.
choque ou possibilidade de choque de interesses. Nelson Nery Júnior, por sua vez, Apenas, a curatela será mais “personalizada” e ajustada às necessidades do caso
sustenta que “a missão específica do curador especial é a de contestar a ação, que, na concreto, limitada aos atos de conteúdo econômico ou patrimonial. Nesse sentir, trilha a
verdade, se revela em função coativa, dado que sua atribuição decorre de um múnus doutrina do civilista Pablo Stolze:
público, que é o de assegurar a efetiva defesa do revel citado com hora certa ou por Em verdade, o que o Estatuto pretendeu foi, homenageando o
edital [...].” (NERY JR., 1989, p. 87). princípio da dignidade da pessoa humana, fazer com que a pessoa
Destarte, o instituto assegura ao interditando o direito mais comezinho ao com deficiência deixasse de ser “rotulada” como incapaz, para ser
contraditório e à ampla defesa. Isso porque, em se tratando de pessoa realmente considerada - em uma perspectiva constitucional isonômica - dotada
incapacitada, na ausência de sua designação, muito provavelmente não será promovida de plena capacidade legal, ainda que haja a necessidade de adoção
de institutos assistenciais específicos, como a tomada de decisão
defesa, de modo a violar a norma constitucional do devido processo legal e implicar a
apoiada e, extraordinariamente, a curatela, para a prática de atos na
nulidade do feito. A trilhar este entendimento, Silvio Sálvio Venosa assevera: vida civil. [...] Na medida em que o Estatuto é expresso ao afirmar que
a curatela é extraordinária e restrita a atos de conteúdo patrimonial ou
econômico, desaparece a figura da “interdição completa” e do” curador
todo-poderoso e com poderes indefinidos, gerais e ilimitados”.
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O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CURADOR ESPECIAL NAS INTERDIÇÕES: A INCOMPATIBILIDADE DO MÚNUS DE CURADOR ESPECIAL O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CURADOR ESPECIAL NAS INTERDIÇÕES: A INCOMPATIBILIDADE DO MÚNUS DE CURADOR ESPECIAL
COM O PERFIL CONSTITUCIONAL DO PARQUET DESDE O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973 COM O PERFIL CONSTITUCIONAL DO PARQUET DESDE O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973

Mas, por óbvio, o procedimento de interdição (ou de curatela) Disto decorre a importância da nomeação do curador especial para resguardar
continuará existindo, ainda que em uma nova perspectiva, limitada direitos fundamentais do interditando3, que serão amplamente restringidos através
aos atos de conteúdo econômico ou patrimonial, como bem acentuou da Ação de Interdição. Diante disso, seus poderes circunscrevem-se a todos aqueles
Rodrigo da Cunha Pereira.
que caberiam ao incapaz no processo, tais com a defesa, produção de provas e recurso.
É o fim, portanto, não do “procedimento de interdição”, mas sim,
do standard tradicional da interdição, em virtude do fenômeno da
Deve, obrigatoriamente, defender os interesses do interditando, postura incompatível
“flexibilização da curatela”, anunciado por Célia Barbosa Abreu. com o perfil constitucional do Ministério Público, regido, entre outros princípios, pela
Vale dizer, a curatela estará mais “personalizada”, ajustada à efetiva independência funcional. A comungar tal entendimento, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria
necessidade daquele que se pretende proteger (STOLZE, 2016). de Andrade sustentam:
§ 1º.: 3 A lei processual pressupõe que o interesse público
Na mesma senda, Humberto Theodoro Júnior trata dos reflexos do Estatuto da
preponderante, no caso, é o do interditando, no sentido de não ser
Pessoa com a Deficiência sobre o novo Código de Processo Civil: privado da regência de sua pessoa e bens (direitos fundamentais seus).
Além dessas alterações, o Estatuto declara que a deficiência não afeta
O posicionamento do MP, como fiscal da lei, deve ser no sentido
a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para exercer o direito à
de produzir todas as provas necessárias para que se preserve
guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando,
esse interesse. Na medida em que vai formando convicção no
em igualdade de oportunidades com as demais pessoas (art. 6º, VI
decorrer do processo, nada impede que opine, a final, em favor da
da Lei nº 13.146/2015). Essa disposição tem impactos diretos no
interdição. Deve o órgão do MP, contudo, ter a cautela de requerer
NCPC, na medida em que limita a interdição aos atos patrimoniais
ao juiz sempre a nomeação de defensor ao interditando, sob pena
do interdito, alterando a sistemática do art. 757, da legislação
de nulidade, pelas razões a seguir expostas. § 2.º: 4. Nomeação
processual. A extensão da curatela à pessoa e aos bens do incapaz
de defensor. Ainda sob a vigência do CPC/1973, entendíamos
que se encontrar sob a guarda e a responsabilidade do curatelado ao
revogado o contido no CPC/1973 1182 § 2º. O juiz dará advogado
tempo da interdição passa a ser exceção, e não regra (THEODORO
sempre ao interditando, quando este ou parente seu (CPC/1973
JÚNIOR, 2016, p. 525, grifo nosso).
1182 § 3º; CPC 752 § 3º) não o tenha constituído. As razões são as
Acolhida na nova legislação a excepcionalidade da interdição, de maior importância que seguem: a) a CF 5º LV garante aos litigantes em processo judicial
sobreleva-se o instituto da curatela especial. Com efeito, deve-se observar, na Ação e administrativo ampla defesa; b) a nova fisionomia jurídica do MP
de Interdição, a efetividade e plenitude do contraditório, que integra o próprio conceito (CF 127 129) impede que seus integrantes façam a representação
de processo2, sob as dimensões formal e material, consistentes, respectivamente, judicial da parte ou do interessado (CF 129 IX); c) é indispensável a
na tradicional ciência bilateral dos atos do processo e no poder de influenciar no nomeação de advogado ao réu ou interessado como órgão essencial
convencimento do magistrado. Importa invocar o escólio de Fredie Didier, a respeito à administração da justiça (CF 133); d) é obrigatória a prestação de
assistência jurídica (e não meramente judiciária) aos necessitados (CF
do aspecto substancial do contraditório e o direito a um advogado como uma de suas
5º LXXIV e 134); e) é grave a medida que procedimento visa impor
manifestações: ao interditando, limitando seus direitos fundamentais (NERY JÚNIOR;
[...] o contraditório não se efetiva apenas com a ouvida da parte; exige- ANDRADE, 2014, p. 1714, grifo nosso).
se a participação com a possibilidade conferida à parte, de influenciar
no conteúdo da decisão. [...] A dimensão substancial do contraditório Impender ressaltar que não é função do Promotor de Justiça atuar como
é fundamento para que se considere como fundamental o direito a representante judicial do incapaz, como curador à lide, porquanto totalmente incompatível
ser acompanhado por um advogado. [...] Compõe, por isso mesmo, o com as funções acometidas pela Constituição Federal de 1988.
conteúdo mínimo do devido processo legal (DIDIER, 2014, p. 56-57). Avedação ao Ministério Público da representação judicial de interesses privados reflete
a evolução da Instituição que, da atuação como “Procurador do Rei” em seus primórdios4,
assumiu a posição de defensor do interesse da sociedade, por vezes, conflitante com
2
Não se desconhece corrente doutrinária prevalecente na doutrina brasileira para a qual jurisdição voluntária
não é jurisdição, mas sim administração pública de interesses privados pelo Poder Judiciário. No entanto,
filiamo-nos à corrente perfilhada por Carnelutti, Calmon de Passos, Ovídio Batista, Fredie Didier e Leonardo
Greco, entre outros, que reconhece a natureza jurisdicional da jurisdição voluntária. Primeiro porque a 3
Direitos fundamentais compreendidos como “aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados
jurisdição é una e “falar em diversas jurisdições num mesmo Estado, significaria afirmar a existência, aí, na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado.” (SARLET, 2011, p. 29.). “[...] os direitos
de uma pluralidade de soberanias, o que não faria sentido” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2010, p. fundamentais são-nos, enquanto tais, na medida em que encontram reconhecimento nas constituições e
150). Ademais, consoante lição do processualista baiano Fredie Didier, não se pode negar a existência de deste reconhecimento se derivem consequências jurídicas”. [...] Por isso e para isso, os direito fundamentais
lide em jurisdição voluntária, embora não seja pressuposto desta. É jurisdição, ainda, porque é atividade deve ser compreendidos, interpretados e aplicados como normas jurídicas vinculativas e não como trechos
exercida por juízes, que aplicam o direito objetivo em última instância. E, mesmo que se negue o caráter ostentatórios aos jeitos das grandes “declarações de direitos.” (CANOTILHO, 2000, p. 378).
jurisdicional da jurisdição voluntária, não se pode “negar a existência de um processo, ainda que processo 4
O mais comum é invocar-se a origem do Ministério Público nos procuradores do rei do velho Direito Francês
administrativo”, pois a Constituição garante o procedimento em contraditório tanto para processo jurisdicional [...] Inegável é a influência da doutrina francesa na história do Ministério Público, tanto que, mesmo entre nós,
quanto para o administrativo. “À jurisdição voluntária aplicam-se as garantias fundamentais do processo, ainda se usa muito frequentemente a expressão parquet para referir-se à instituição.” (MAZILLI, 2012, p. 36).
necessárias à sobrevivência do Estado de Direito” (DIDIER JR., 2014, p. 128-133)
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o da Fazenda Pública, cujos interesses passaram a ser defendidos pelos respetivos O artigo 178, do Código de Processo Civil cinge a intervenção do Ministério Público
procuradores. Com efeito, assumir esse múnus, em que pese pareça pouco interferir na como custos legis às causas em que há interesse público, presumindo-o quando há
Instituição, implica retroagir conquistas de séculos do Ministério Público como Instituição. interesse de incapaz no feito e em casos de litígios coletivos pela posse da terra rural ou
Eis que a norma do artigo 129 do mesmo Diploma Constitucional expressamente urbana. Com efeito, o interesse público constitui pressuposto necessário à intervenção
veda ao Parquet a representação judicial, e, frise-se, não somente de entidades públicas. do Ministério Público, conforme leciona o processualista Marinoni:
Caso contrário, poderia exercer livremente a advocacia de interesses privados, atividade O que determina a intervenção do Ministério Público em todas as
para a qual há, igualmente, vedação expressa. Não deve sequer atuar em prol de hipóteses do artigo em comento é o interesse público primário (o
interesses públicos secundários. Como decidiu monocraticamente o Min. Eros Grau no bem comum). O interesse público secundário (o interesse da pessoa
pública), por si só, não justifica a participação como custos legis do
RE 444.652, “cabe ao Ministério Público a atuação precípua de defender a ordem
Ministério Público (art. 178, parágrafo único, CPC). (MARINONI;
jurídica e o bem comum, sem compromisso com as partes envolvidas na relação
ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 300, grifo nosso).
processual.” (STF, 2005, grifo nosso). Conforme assentado pelo Procurador de Justiça
Jorge Luiz de Almeida (ALMEIDA, 198-?, p. 240), o Ministério Público não pode assumir Neste particular, a Lei Complementar nº 40/81, em seu artigo 1°, ao disciplinar
a posição de “representação de interesse privado”, sem apartar-se de seu dever, sem as finalidades institucionais do Parquet, vincula-o à defesa dos interesses sociais
contrapor-se ao princípio jurídico que o inspirou. indisponíveis. A esse respeito, Hugo Nigro Mazzilli (1987, p. 217) leciona que “o Ministério
Ora, a atuação do Parquet como curador especial implicaria ou violação ao Público sempre age em busca de um interesse público [...] Assim, reafirme-se que o
princípio de independência funcional5 ou, ainda, aos da unidade6 e indivisibilidade7 da interesse público pelo qual deve zelar o Ministério Público há de ser uma categoria
Instituição. Ou se conceberia um Promotor de Justiça atuando concomitantemente como especial de interesse público, correlata à sua destinação institucional [...]” (grifo
curador especial e fiscal da lei, de modo que, ao ter que obrigatoriamente defender o nosso) 9. Arruda Alvim, ao discorrer sobre a atuação do Ministério Público, sustenta que
interditando, no exercício do múnus de curador especial, não teria independência para, “a compreensão da atividade do Ministério Público deve ter em vista as suas funções
posteriormente, exarar parecer pela improcedência ou procedência do pedido deduzido institucionais, constitucionalmente asseguradas [...]” (ALVIM, 2013, p. 524-525). Assim,
na Ação de Interdição, porquanto comprometido com os interesses do interditando. Ou antes mesmo do advento do Código de Processo Civil de 2015, não se poderia aplicar o §
ainda se conceberia dois membros do Ministério Público a atuar no mesmo processo, 1.º do art. 1.182 para atribuí-lo o múnus público de curador especial, em desconsideração
um como fiscal da lei e outro como curador ao interditando (WAMBIER, 2016, p. 1822- à feição constitucional do Parquet.
1823), o que viola frontalmente os princípios da unidade e indivisibilidade que regem o Nesse sentir, a lei infraconstitucional somente pode cometer atribuições ao
Ministério Público. Ministério Público que se insiram em suas finalidades institucionais. Caso contrário,
Outrossim, segundo ensinos de Vicente Greco Filho (2000, p. 108), o Parquet se distanciará de seu verdadeiro escopo e, por vezes, arriscando, ao se
no processo civil, o Ministério Público intervém na defesa de um interesse assoberbar de funções que não se ajustam ao seu perfil constitucional, omitir-se no
púbico8, elemento que caracteriza sempre a intervenção desse órgão no cível. exercício de funções que lhe foram confiadas pela Constituição, tais como a promoção
de demandas socialmente relevantes assim “como na condução do inquérito civil, na
aprovação de acordos extrajudiciais, na tomada de compromissos de ajustamento de
conduta, no atendimento ao público, as tarefas de ombudsman ou no controle externo da
atividade policial.” (MAZZILI, 2013, p. 41-42).
Destarte, quando intervém na Ação de Interdição em razão da qualidade da parte,
5
Compreendida como ausência de subordinação intelectual. “Trata-se, em verdade, de uma prerrogativa o Ministério Público sempre age em defesa da ordem jurídica, de modo que sua atuação
constitucional afeta a cada membro da Instituição, que não fica sujeito a qualquer orientação ou determinação é desvinculada da defesa do incapaz. É o que sustenta Hugo Nigro Mazzili (2012, p.
dos órgãos da Administração Superior em sua atuação funcional e deve prestar contas, apenas e tão- 98-100), ao afirmar que “Mesmo quando protetiva sua atuação, hoje o Ministério Público
somente à sua própria consciência e à ordem jurídica.” (ALVES; ZENKNER, 2014. p. 42).
6
não mais faz a representação da parte, incapaz ou não; essa tarefa deve ser cometida
“o princípio da unidade, também chamado de princípio da coesão vertical, significa dizer que o Ministério
aos seus representantes legais ou à Defensoria Pública”, posição compartilhada pelos
Público é uno. Em outras palavras, trata-se de uma instituição única, abstratamente considerada, na qual
os seus membros oficiam nos processos em nome da instituição a que são ligados, conforme a Teoria do doutrinadores Paulo Nader (2009, p. 535) , Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosevald
Órgão.” (PINHO, 2012, p. 330-331). (2010, p. 896-897).
7
“O princípio da indivisibilidade ou da coesão horizontal é decorrência lógica do princípio da unidade e
consiste na possibilidade de os membros da instituição se substituírem sem que haja prejuízo para ela ou
para sociedade.” (PINHO, 2012, p. 330)
8 9
“[...] interesse púbico é o pertinente a toda sociedade personificada no Estado. É o interesse à preservação
permanente dos valores transcendentais dessa sociedade. Não é, assim, o interesse de um, de alguns, de
um grupo ou de uma parcela da comunidade; nem mesmo é o interesse só do Estado enquanto pessoa
jurídica empenhada na consecução de seus fins. É o interesse de todos, abrangente e abstrato.” (MILARÉ,
1984, p. 138-139).
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Em comentários ao § 1º do art. 752 do novel Código de Processo Civil, Luiz A perfilhar esse entendimento, Antonio Carlos Marcato assevera:
Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero lecionam que o Ministério Público deve atuar A primeira parte do § 1º do artigo 1.182 do CPC foi derrogada, não
tão somente como custos legis e não como representante da parte, dada a vedação sendo mais admissível ao Ministério Público, como já foi afirmado
constitucional do artigo 129 da Carta Magna: anteriormente, a representação judicial da parte ou do interessado
Ministério Público. Atua como custos legis no processo de (CF 129, IX, in fine). Conseqüentemente, a representação judicial do
interdição (art. 178, II, CPC). Em nenhuma hipótese pode o interditando caberá ao curador nomeado pelo juiz, sendo ele próprio
Ministério Público funcionar como representante da parte – a advogado (v. art. 1.179); caso contrário, será necessária a constituição
tanto impede o art. 129, CF. Este papel ficará a cargo do advogado de patrono ao interditando, por iniciativa sua, de parente ou nomeação
constituído do interditando ou do curador especial (MARINONI; pelo juiz, seja porque o advogado é indispensável à administração da
ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 828, grifo nosso). justiça (CF, art. 133), seja em atenção às garantias do contraditório e
da ampla defesa (idem, art. 5º, LV) (MARCATO, 2005, p. 2746, grifo
Na mesma obra, os balizados processualistas asseveram que o interditando deve nosso).
constituir advogado para sua representação processual e, caso não o faça, o magistrado A atuação do curador especial, entretanto, não dispensa a intervenção do Ministério
deve convocar a Defensoria Pública e, ainda, não existindo tal órgão, nomear advogado Público como fiscal da lei, na defesa do interesse de toda sociedade, devendo, inclusive,
dativo: produzir as provas necessárias para fiscalizar os interesses sociais envolvidos.
O interditando, ou qualquer parente sucessível, pode constituir
Ademais, a atribuição de curador especial ou curador à lide, a partir da edição da
advogado para representação processual do interditando, para que
faça a defesa de seus direitos em juízo (art. 752, §§2.º e 3.º, CPC).
Lei Complementar nº 80/94, que regulamentou o postulado constitucional previsto no
São parentes sucessíveis aqueles mencionados no art. 1.829, artigo 134 da Constituição, passou a ser exercida pela Defensoria Pública, conforme
CC. Inexistindo advogado constituído nos autos, tem o juiz de previsão expressa constante do inciso XVI do artigo 4º do referido diploma. Assim, se
convocar a Defensoria Pública para defesa do interditando existir Defensor Público na comarca, cabe a ele exercer o múnus de curador especial.
em juízo – caso já não funcione como curadora especial do Caso não haja, deve o juiz nomeá-lo, preferencialmente entre os advogados.
interditando (art. 752, §§2.º, CPC), hipótese em que cumulará A matéria foi recentemente apreciada no Supremo Tribunal Federal pelo Ministro
ambas as funções. Não existindo Defensoria Pública, tem o juiz Joaquim Barbosa, ainda sob a vigência do Código de Processo Civil de 1973, na
de nomear advogado dativo (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, Reclamação 14064/SP, julgada em 14/09/2012, de cujo inteiro teor extraio excerto
2016, p. 828, grifo nosso).
esclarecedor:
Desarte, o Ministério Público não deverá atuar como curador do interditando, por Em verdade, o voto proferido pelo desembargador relator do acórdão
se tratar de incumbência estranha às suas funções, não prevista nos artigos 127 a 129 reclamado salientou a necessidade de observar de maneira satisfatória
da Constituição Federal, normas estas de estatura superior às existentes no Código os direitos do interditando, especialmente o direito ao contraditório e
de Processo Civil. Conclui-se, portanto, que, mesmo antes do advento do Código de à ampla defesa. Leio: Segundo o entendimento aqui manifestado,
merece acolhimento o parecer da digna Procuradoria Geral de Justiça,
Processo Civil de 2015, o artigo 1.182, §1.º, CPC foi revogado pela Constituição Federal
sendo o caso de anular-se o processo. Inicialmente e apenas para
de 1988. Diz-se revogado e não inconstitucional por se tratar de controvérsia acerca da tecer considerações sobre o tema, observa-se que, a teor do que
compatibilidade de norma anterior com norma constitucional superveniente, a ser aferida dispõe o artigo 129, IX, da Constituição da República, é vedado ao
no âmbito do direito intertemporal. Ministério Público o exercício da representação processual, razão
Neste particular, defende-se a revogação da norma processual que atribui ao pela qual pode se considerar como não recepcionado o artigo
Ministério Público a função de curador especial, à luz da teoria da simples revogação 1.182, § 1º, do Código de Processo Civil, pela Constituição Federal.
adotada pelo Supremo Tribunal Federal, na ADIN nº 2/DF, a fim de solucionar a não- Assim e em processos de interdição o órgão do parquet funciona
aplicação do direito infraconstitucional conflitante com a nova ordem constitucional. como fiscal da lei, sendo de rigor a nomeação de advogado para
Como sintetizado pelo relator da ADIN 2/DF, Ministro Paulo Brossard, “a lei só poderá ser defender o interditando, como seu curador especial. [...] Assim,
de rigor a nomeação de curador ao interditando, o qual prestigiará
inconstitucional se estiver em litígio com a Constituição sob cujo pálio agiu o legislador”.
seu interesse. Verifico, portanto, que o fundamento da decisão
A principal consequência no âmbito do controle difuso de constitucionalidade da adoção reclamada não foi a suposta inconstitucionalidade da norma
desta teoria, acolhida pela doutrina majoritária, adotada por Kelsen (2003, p. 111) e prevista no § 1 º do art. 1.182 do CPC, mas a conclusão de que os
Celso Ribeiro Bastos (2010, p. 71) é que a antinomia entre a norma infraconstitucional
anterior e a norma constitucional posterior pode ser livremente suscitada nos casos
concretos,pois diz respeito a uma simples controvérsia de direito intertemporal10. pena de absoluta nulidade da decisão emanada do órgão fracionário (turma, câmara ou seção), em respeito
à previsão do art. 97 da Constituição Federal. Esta verdadeira cláusula de reserva de plenário atua como
verdadeira condição de eficácia jurídica da própria declaração jurisdicional de inconstitucionalidade dos atos
10 do Poder Público, aplicando-se para todos os tribunais, via difusa, e para o Supremo Tribunal Federal,
“A inconstitucionalidade de qualquer ato normativo estatal só pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta
da totalidade dos membros do tribunal ou, onde houver, dos integrantes do respectivo órgão especial, sob também no controle concentrado (MORAES, 2004, p. 611).
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interesses do interditando só podem ser adequadamente É totalmente incompatível a nomeação do representante do


contemplados com a designação de curador próprio, não Ministério Público como curador à lide com as funções de ‘custos
cabendo afirmar a suficiência da atuação do Ministério Público legis’ eis que vedada pela nova ordem constitucional (PARANÁ
para esse fim. Tal premissa integrou a fundamentação da decisão (Estado). Tribunal de Justiça, 2002).
monocrática proferida pelo min. Eros Grau no RE 444.652,
na qual Sua Excelência negou seguimento àquele recurso INTERDIÇÃO – Curador especial - Atividade que se tornou
extraordinário (grifei): Trata-se de recurso extraordinário interposto incompatível com as funções do Ministério Público- Primeira parte
pelo Ministério Público do Estado do Paraná contra a decisão proferida do §1º do art. 1.182 do Código de Processo Civil – Não recepção pela
pelo Tribunal de Justiça, assim ementada (fls. 71): “AGRAVO DE Constituição Federal de 1.988 - Determinada a nomeação de curador
INSTRUMENTO - INTERDIÇÃO - FEITO - NULIDADE - DEFENSOR especial à interditanda. Recurso provido (SÃO PAULO (Estado).
NOMEADO – MINISTÉRIO PÚBLICO - INTERVENÇÃO - RECURSO Tribunal de Justiça, 2002a).
- PROVIMENTO. Se a contestação não vier por parte do curador à
lide deve o juiz substituí-lo através de nova nomeação, não podendo INTERDIÇÃO - Nomeação de curador especial ao interditando -
o processo de interdição, dela prescindir. Cabe ao Ministério Impossibilidade de atuação do Ministério Público como defensor
Público a atuação precípua de defender a ordem jurídica e o bem - Artigos 9º, parágrafo único, e 1182, § 1º, do CPC, não foram
comum, sem compromisso com as partes envolvidas na relação recepcionados pela CF/88 - Necessidade de nomeação de
processual. Observância dos arts. 1.182 e parágrafos do Código de advogado para exercer a função de curador especial - Juiz deverá
Processo Civil. Recurso. Provimento.” 2. Aduz o recorrente violação abrir vista ao defensor público, para desempenhar tal função, ou
dos artigos 127 e 129, IX, da Constituição do Brasil. 3. Verifica- nomear advogado, nos termos do convênio com a OAB-SP, se a
se que a atribuição ora pleiteada pelo Ministério Público --- atuar defensoria pública não estiver organizada na comarca – Agravo
como curador em processo de interdição --- não encontra previsão de instrumento provido (SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça,
constitucional, estando elencada tão somente na Lei Orgânica daquela 2008).
instituição (artigo 5º, III, “e”, da LC n. 75/93). 4. Observa-se, assim,
que para dissentir do aresto recorrido seria necessária a análise da INTERDIÇÃO requerida por parente representado por Advogado.
matéria infraconstitucional que disciplina a espécie. Eventual ofensa Ministério Público requer nomeação de curador especial para o suposto
à Constituição somente se daria de forma indireta, circunstância que incapaz, pois não mais funciona como curador à lide após a Constituição
impede a admissão do extraordinário (RE n. 148.512, Relator o Ministro Federal, pois o artigo 129, IX, impede referida função. Artigo 1.182, §§
Ilmar Galvão, DJ de 2.8.96; AI n. 157.906- AgR, Relator o Ministro 1.º e 2.° do Código de Processo Civil não recepcionados pela Carta
Sydney Sanches, DJ de 9.12.94; AI n. 145.680-AgR, Relator o Ministro Magna. Necessidade de nomear-se advogado como curador especial
Celso de Mello, DJ de 30.4.93). Ante o exposto, com fundamento no do interditando. Agravo provido (SÃO PAULO (Estado). Tribunal de
artigo 21, § 1º, do RISTF, nego seguimento ao recurso (BRASIL. STF, Justiça, 2002b).
2012, grifo nosso).
Curador especial - O Ministério Público, conquanto atue no feito, não
Na mesma senda, trilha a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça: o faz na qualidade de defensor da parte, mas de fiscal da lei - Recurso
Incapaz - Curador especial - Ministério Público - Art. 9º, parágrafo provido (SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça, 2009).
único do Código de Processo Civil.
A representação judicial dos incapazes não é de ser exercida por 3 A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AÇÕES DE INTERDIÇÃO À LUZ DO
membro do Ministério Público, salvo se existir norma local nesse CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 E O ATO COMPLEXO QUE ENSEJA SUA
sentido. Em processos em que figurem pessoas incapazes, a INTERVENÇÃO
atuação do Ministério Público só é obrigatória como fiscal da lei
(art. 82, II, do CPC) (BRASIL. STJ, 1999, grifo nosso). Alinhando-se à compreensão constitucional da missão institucional do Ministério
É este o entendimento sufragado por diversos Tribunais Pátrios, conforme arestos Público, o Código de Processo Civil de 2015 dispõe no artigo 752, in verbis:
a seguir colacionados: Art. 752 Dentro do prazo de 15 (quinze) dias contado da entrevista, o
INTERDIÇÃO - NOMEAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA interditando poderá impugnar o pedido.
CURADOR À LIDE. AGRAVO - INCOMPATIBILIDADE COM AS §1º O Ministério Público intervirá como fiscal da ordem jurídica.
FUNÇÕES DE ‘CUSTOS LEGIS’ - VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL - §2º O interditando poderá constituir advogado, e, caso não o faça,
ART. 129, INC. IX - AGRAVO PROVIDO. INTERDIÇÃO - NOMEAÇÃO deverá ser nomeado curador especial.
DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA CURADOR À LIDE.- AGRAVO §3º Caso o interditando não constitua advogado, o seu cônjuge,
- INCOMPATIBILIDADE COM AS FUNÇÕES DE ‘CUSTOS LEGIS’ - companheiro ou qualquer parente sucessível poderá intervir como
VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL-ART. 129, INC. IX -AGRAVO PROVIDO. assistente (BRASIL, 2015).

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O dispositivo do novo diploma processual civil dirimiu qualquer dúvida a respeito da Se só o juiz quiser, não poderá ele, tampouco o Tribunal, ordenar
atuação do Ministério Público no processo de interdição: atuará como fiscal da lei. E ao que o MP intervenha no processo, dada a independência jurídica
interditando caberá constituir advogado e, caso não o faça, o magistrado deverá nomear e funcional do órgão do MP. Incorreta a decisão que entendeu
curador especial. Na mesma senda, o artigo 1.072 do CPC revogou expressamente o poder o juiz ordenar a intervenção do MP que teria de obedecer.
(TJMG – RT 599/189). (NERY JÚNIOR, 1989, p. 394, grifo nosso)
artigo 1.170 do CC, que atribuía ao Ministério Público a função de defensor ao interditando.
Trata-se de regramento legal em consonância com o papel constitucional do Na mesma senda, Arruda Alvim assevera:
Ministério Público e, em especial, com o princípio da independência funcional que o rege. É possível concluir, então, que a participação do Ministério Público no
Com efeito, conforme já demonstrado, não poderia assumir o Parquet curador especial, processo face à existência de interesse público, demanda dualidades
uma vez que não está obrigado o representante do Ministério Público a manifestar-se, de vontades ou seja, aceitação tanto do Ministério Público quanto do
sempre, em favor do litigante incapaz. É o que ensina o processualista Theotônio Negrão, Poder Judiciário, não podendo, consequentemente, a participação ser
consoante aresto a seguir transcrito: imposta pelo juiz, até mesmo em razão do princípio da independência
Não está obrigado o representante do Ministério Público a manifestar- funcional. (ALVIM, 2013, p. 529)
se, sempre, em favor do litigante incapaz. Estando convencido de que Por conseguinte, foi acolhido pelo novo diploma processual civil a atuação do
a postulação do menor não apresenta nenhum fomento de juridicidade, Ministério Público como fiscal da lei nas ações de interdição em que não for autor. Assim,
é-lhe possível opinar pela sua improcedência. (RSTJ 180/415: 4ª t, o interditando deve constituir advogado para sua representação processual e, caso não o
REsp 135.744). No mesmo sentido: RT 705/108, 748/229, 807/266,
faça, o magistrado deve convocar a Defensoria Pública e, ainda, não existindo tal órgão,
JTJ 196/115 (NEGRÃO, 2016, p. 273).
nomear advogado dativo, a fim de resguardar os direitos fundamentais do interditando,
Surge, então, o questionamento: que órgão deverá definir a presença do interesse entre os quais o direito à ampla defesa.
público a ensejar a intervenção do Parquet?
Vicente Greco Filho (2000, p. 156) ensina que, nos casos em que a lei não
estabelece em que posição dialética do processo encontra-se o interesse público, 4 CONCLUSÃO
cabe ao órgão do Ministério Público interveniente a interpretação do interesse social
dominante para usar dos meios processuais para sua proteção, posição consentânea A incompatibilidade do múnus público de curador especial nas Ações de Interdição
com o princípio da independência funcional. com o perfil constitucional do Ministério Público é tese consentânea com os princípios
Na mesma senda, a Resolução nº 16/2010 do Conselho Nacional do Ministério do contraditório e, seu aspecto substancial, a ampla defesa; com o princípio do devido
Público, que disciplina a intervenção dos membros do Ministério Público como órgão processo legal, entendido como o direito a um processo justo e adequado que observe
interveniente no processo civil, encontra supedâneo, como um dos seus fundamentos, os direitos fundamentais do interditando; com o princípio da indispensabilidade do
na exclusividade do Ministério Público na identificação do interesse que justifique a advogado à administração da justiça; com o da independência funcional do Ministério
intervenção da Instituição na causa. Público e com o perfil constitucional de suas atribuições. Ante o advento do Código de
Gize-se que a intervenção do órgão ministerial no processo, é ato complexo11, Processo Civil de 2015, que comete ao Parquet a função de fiscal da lei, nos processo
que necessita da manifestação de dois órgãos – o Ministério Público e o Judiciário, cuja de interdição, apontando, ainda, a necessidade de nomeação de curador especial, a
vontade se funde para formar um ato único. Deste modo, somente quando as duas jurisprudência que ainda perfilhava o entendimento de que se poderia atribuir ambos os
instituições conjugarem suas vontades de forma homogênea é que se dará a intervenção. múnus ao Ministério Público não encontra amparo legal, pelo que deverá ser superada.
É o que prelecionam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery: A esse respeito, pertinente é a observação de Gurvitch (MONTORO, 1999, p. 53),
Decisão sobre a intervenção do MP. Trata-se de ato complexo. no sentido de que as normas jurídicas apenas serão Direito se estiverem orientadas no
Somente quando as duas instituições (magistratura e MP) sentido da realização da justiça, pelo que se conclui pela impossibilidade de assunção
quiserem e estiverem de acordo é que ser dará a intervenção. do múnus de curador especial pelo órgão ministerial desde o CPC/1973, não somente
Caso uma das duas não queira, não intervirá o MP. A nenhuma pela sua incompatibilidade com a Constituição Federal de 1988, bem como pela sua
delas cabe, sozinha, decidir se haverá intervenção do MP. Se contrariedade à finalidade última do Direito, a realização da Justiça.
só MP quiser, o juiz poderá indeferir sua intervenção, que será
definitiva se o Tribunal negar provimento a eventual recurso.

11
“Atos complexos são os que resultam da manifestação de dois ou mais órgãos, sejam eles singulares ou
colegiados, cuja vontade se funde para formar um ato único. As vontades são homogêneas; resultam de
vários órgãos de uma mesma entidade ou de entidades públicas distintas, que se unem em uma só vontade
para formar o ato; há identidade de conteúdo e fins.” (DI PIETRO, 2009, p. 222)
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v.
ALMEIDA, Jorge Luiz de. Formas de atuação do Ministério Público no cível. Justitia, São
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Paulo, [198-?]. Disponível em: <http://www.revistajustitia.com.br/revistas/wy16xb.pdf>.
Almedina, 2000.
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DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual
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REVISTA DO MPBA 204 205 REVISTA DO MPBA


O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CURADOR ESPECIAL NAS INTERDIÇÕES: A INCOMPATIBILIDADE DO MÚNUS DE CURADOR ESPECIAL
COM O PERFIL CONSTITUCIONAL DO PARQUET DESDE O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973

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publico/pesquisa.do?actionType=pesquisar >. Acesso em 16 maio 2016. interpretação constitucional do art. 112, I, 1ª parte, do Código Penal, rompendo-se a
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. exegese dominante indigitada “literal”, manifestamente divorciada da dogmática jurídica,
SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. AI 250.471.42/SP. Relator: Des. Natan resgatando-se, pari passu, o respeito ao princípio do estado de inocência, ao se verificar
Zelinschi de Arruda, São Paulo, 22 de agosto de 2002. Disponível em: <http://esaj.tjsp. a revogação parcial da Súmula 716 do Supremo Tribunal Federal, cuja incompatibilidade
jus.br/gcnPtl/jurisprudenciaConsultar.do >. Acesso em: 16 maio 2016. da execução provisória da pena institui um limite temporal absoluto à prisão cautelar.
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do >. Acesso em: 16 maio 2016. constitucional e sistêmica. Súmula 716 do Supremo Tribunal Federal.
______. AI 581.391-4/6-00/SP. Relator: Des. Paulo Eduardo Razuk, São Paulo,
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______. AI 622.605-4/1-00/SP. Relator: Des. José Luiz Gavião de Almeida, São 1 INTRODUÇÃO
Paulo, 28 de abril de 2009. Disponível em: <https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.
do?cdAcordao=3641088&cdForo=0&vlCaptcha=hHsDE >. Acesso em: 04 jun. 2016. Embora aparentemente seja visto como um tema demasiadamente singelo,
SARLET, Ingo Wolfgand. A eficácia dos direitos fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: sob uma perspectiva “literal” do art. 112, I, 1ª parte, do Código Penal, um estudo mais
Livraria do advogado, 2011. aprofundado da matéria revela o equívoco perpetrado com tal exegese.
STOLZE, Pablo. É o fim da interdição? JusBrasil, 2016. Disponível em: < http:// A matéria se revestiu de acentuada relevância após o Supremo Tribunal Federal
flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/304255875/e-o-fim-da-interdicao-artigo-de-pablo- consolidar o seu entendimento jurisprudencial acerca da incompatibilidade da execução
stolze-gagliano >. Acesso em: 20 abr. 2016. antecipada da pena com o princípio do estado de inocência – art. 5º, LVII, da Constituição
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: procedimentos Federal1-, o que refletiu demasiadamente na fixação do marco inicial da prescrição da
especiais. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. 2 v. pretensão executória.
WAMBIER, Teresa Arruda et. al. (Coord.). Breves comentários ao novo código de A partir de então, os Tribunais pátrios majoritariamente sufragaram a interpretação
processo civil e legislação processual em vigor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, indigitada “literal” do dispositivo legal em apreço, considerando como termo inicial
2016. da contagem do prazo da prescrição executória o marco temporal anterior à própria
VENOSA, Silvio Sálvio. Código civil interpretado. 3. ed. São Paulo: Atlas. formação do título executivo judicial, com franco prejuízo ao ius punitionis.
­­­­­­­­­­­­_______. Direito civil: direito de família. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009. O presente artigo se propõe a demonstrar a falibilidade da então dominante
interpretação intitulada “literal”, divorciada do próprio conteúdo semântico do instituto da
coisa julgada e dos demais institutos jurídicos ligados ao tema.
Nesta toada, exsurge uma imprescindível interpretação sistêmica do art. 112, I, 1ª,
do Código Penal, a fim de adequá-lo à vontade do legislador e à coerência do ordenamento
jurídico, com franco prestígio e reafirmação da incompatibilidade da execução provisória
da pena com o princípio do estado de inocência.

*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e membro do Grupo Nacional do Ministério
Público (GNMP)
1
Constituição Federal:
Art. 5º - (…) LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

REVISTA DO MPBA 206 207 REVISTA DO MPBA


A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA, A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA,
E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

2 O RECONHECIMENTO DA INCOMPATIBILIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA Interpretando “literalmente” tal dispositivo, diversos Tribunais firmaram
DA PENA COM O ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO MARCO entendimento de que o marco inicial da prescrição da pretensão executória seria o
HISTÓRICO DA PROBLEMÁTICA JURISPRUDENCIAL momento em que expirasse o prazo para interposição de recurso ou, então, o instante
em que o autor da ação penal renunciasse ao prazo recursal, conformando-se com a
É cediço que a matéria ganhou significativa expressividade após a conclusão do sentença ou acordão condenatório.
julgamento do Habeas Corpus n. 84.078/MG2 pelo Tribunal Pleno da Excelsa Corte, Ilustrando a orientação pacífica das Turmas especializadas em Direito Penal do
cuja relatoria incumbiu ao então Ministro Eros Roberto Grau, ocasião em que restou Superior Tribunal de Justiça, segue transcrita a ementa do aresto do julgamento do
assentada a “inconstitucionalidade” da execução provisória da pena, em salvaguarda ao Habeas Corpus n. 232.031/DF, do qual foi relatora para lavratura do acórdão a Ministra
direito fundamental do estado de inocência. Maria Thereza de Assis Moura, e cujo voto vencedor reiterou o entendimento da Sexta
A partir de então, inadmitida a execução provisória da sentença penal condenatória, Turma daquela Corte Superior sobre a matéria:
salvo em benefício do acusado ao qual foi negado o direito de recorrer em liberdade, por HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. PRESCRIÇÃO DA
força de prisão estritamente cautelar, ganhou relevo a questão relativa ao marco inicial PRETENSÃO EXECUTÓRIA. MARCO INICIAL. TRÂNSITO EM
da prescrição da pretensão executória, haja vista que o título judicial somente se torna JULGADO PARA A ACUSAÇÃO. ART. 112, I, DO CÓDIGO PENAL.
ORDEM CONCEDIDA.
exequível após a formação da coisa julgada.
1. Enquanto não transitada em julgado a sentença condenatória, para
Contudo, os Tribunais pátrios e, notadamente, a Quinta3 e a Sexta4 Turmas do ambas as partes, não há falar em prescrição da pretensão executória,
Superior Tribunal de Justiça, componentes da sua Terceira Seção e especializadas em eis que ainda em curso o prazo da prescrição da pretensão punitiva,
matérias de Direito Penal, firmaram entendimento de que, inobstante a pena imposta de forma intercorrente. Contudo, iniciada a contagem da prescrição,
na sentença condenatória somente seja exequível após o seu trânsito em julgado, o o marco inicial, por expressa determinação do art. 112, I, do Código
marco inicial da prescrição da pretensão executória retroage para o instante em que Penal, é o trânsito em julgado para a acusação, ainda que de forma
há o “trânsito em julgado ‘para a acusação’”, ou seja, no momento em que ocorre a retroativa.
mera preclusão para a acusação do direito de recorrer contra a sentença ou acórdão 2. Ordem concedida para, cassando o acórdão impugnado, restabelecer
condenatório. a decisão que extinguiu a punibilidade, pelo reconhecimento da
prescrição da pretensão executória5.
No bojo do voto vencedor, lavrado pela ilustre Ministra Maria Thereza de Assis
3 A REDAÇÃO DO ARt. 112, I, 1ª PARTE DO CÓDIGO PENAL E A INTERPRETAÇÃO Moura, afirma-se expressamente a adoção de uma interpretação “literal” do dispositivo,
“LITERAL” ATÉ ENTÃO DOMINANTE consoante se observa das transcrições infra, cujos fundamentos sintetizam o pensamento
ora dominante sobre a matéria:
O art. 112, I, do Código Penal possui a seguinte redação: A partir de então, por expressa determinação legal, restou superada
qualquer divergência. O legislador estabeleceu, sem qualquer margem
Código Penal – Decreto-Lei n. 2.848/40
de dúvida, que o termo inicial da prescrição da pretensão executória é
Termo inicial da prescrição após a sentença condenatória irrecorrível
a data do trânsito em julgado da condenação para a acusação.
Art. 112 - No caso do art. 110 deste Código, a prescrição começa a
Faz-se relevante aqui abordar uma peculiaridade, por vezes
correr:
causadora de confusão. É que, diante do novo texto legal, a
I - do dia em que transita em julgado a sentença condenatória,
doutrina e a jurisprudência, de forma unânime, pelo que se tem
para a acusação, ou a que revoga a suspensão condicional da pena
conhecimento, diferenciaram o início do curso da prescrição da
ou o livramento condicional; (grifos nosso)
pretensão executória e o seu marco inicial.
Isso porque, enquanto não transitada em julgado a decisão
condenatória, para ambas as partes, não há falar em prescrição da
pretensão executória, eis que ainda em curso o prazo da prescrição
2
STF, HC 84.078/MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Roberto Grau, julgado em 05/02/2009. da pretensão punitiva, de forma intercorrente.
3
Precedentes: EDcl nos EDcl no HC 246.400/GO, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Hilário Vaz, 26/08/2014; HC A partir do trânsito em julgado para as duas partes, todavia,
290266/ SP, Quinta Turma, Rel. Min, Marco Aurélio Bellizze, julgado em 18/06/2014; HC 272.137/SP, Quinta inicia-se a contagem da prescrição da pretensão executória, cujo
Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 01/10/2013; HC 289.458/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge marco inicial, por expressa disposição legal, conta-se do trânsito
Mussi, julgado em 05/06/2014; AgRg no REsp 1312492/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Regina Helena Costa, em julgado para a acusação, ainda que de forma retroativa, se for
18/03/2014. o caso.
4
Precedentes: AgRg no REsp 1344141 / DF, Sexta Turma, Rel. Des. Convocado Ericson Maranho, julgado em
23/10/2014; AgRg no RHC 26.618/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 16/09/2014;
HC 284.764 Sexta Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 27/03/2014; AgRg no REsp.
1.376.994/RS, Sexta Turma, Rel. Min. Assusete Magalhães, julgado em 27/08/2013. 5
HC 232031/DF, Sexta Turma, Rel. p/ acórdão Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 15/05/2012
REVISTA DO MPBA 208 209 REVISTA DO MPBA
A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA, A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA,
E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Assim, se apenas a Defesa recorre, após tornar-se definitivo o (...) Efetivamente, como se observa desta definição, a preclusão
julgamento do seu recurso, inicia-se o prazo da prescrição da consiste – fazendo-se um paralelo com figuras do direito material,
pretensão executória, cujo termo inicial retroage para a data em como a prescrição e a decadência – na perda de “direitos processuais”,
que a sentença havia transitado em julgado para o parquet. que pode decorrer de várias causas. Assim como acontece com o
(...) direito material, também no processo a relação jurídica estabelecida
A discussão, como visto, consiste em definir a adequada interpretação entre os sujeitos processuais pode levar à extinção de direitos
do art. 112, I, do Código Penal, bem com analisar se tal dispositivo foi processuais, o que acontece, diga-se, tão frequentemente quanto
ou não recepcionado pela Constituição Federal de 1988. em relações jurídicas de direito material. A preclusão é o resultado
A meu ver, não há como dar ao aludido dispositivo legal dessa extinção, e é precisamente o elemento (aliado à ordem legal
interpretação diversa da literal, expressamente definida pelo dos atos, estabelecida na lei) responsável pelo avanço da tramitação
legislador, a qual entendo ser compatível com a Constituição processual.6
Federal. Trata-se, pois, de fenômeno endoprocessual, instituto que tutela e limita as
(...)
condutas processuais das partes, permitindo o regular andamento do processo para que
Assim, penso que, tendo em conta a atual interpretação garantista do
princípio da não-culpabilidade, que acaba por limitar a possibilidade
este chegue ao seu bom termo.
de o Estado executar provisoriamente a pena, caberá ao legislador, E para contextualizar o instituto em referência, leciona o renomado processualista
se assim entender, alterar o marco inicial da prescrição da pretensão uruguaio Eduardo Couture que “as diversas etapas do processo devem se desenvolver
executória. Não é possível, contudo, afirmar que o art. 112 do de maneira sucessiva, sempre para frente, mediante fechamento definitivo de cada uma
Código Penal não tenha sido recepcionado pela Constituição delas, impedindo-se o regresso a momentos processuais já extintos e consumados”7.
Federal, tampouco dar a ele interpretação contrária à vontade do Lado outro, no que diz respeito à coisa julgada, há um conceito estabelecido no
legislador, expressamente definida. (grifo nosso) art. 6º, §3º, do vetusto Decreto-Lei n. 4.657/42 - Lei de Introdução às Normas do Direito
O entendimento acima transcrito é sufragado pela doutrina e jurisprudência Brasileiro, segundo o qual, “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de
majoritárias, que, no entanto, olvidam-se do cerne principal, qual seja, o próprio conceito que já não caiba recurso”.
de trânsito em julgado. Por sua vez, o novel Código de Processo Civil, recém-editado pelo Congresso
Ver-se-á, contudo, a insustentabilidade da interpretação indigitada “literal” do art. Nacional com a promulgação da Lei Federal n. 13.105/2015, assim define o conceito
112, I, do Código Penal, mormente diante da impropriedade técnica de seu conteúdo, à legal de coisa julgada:
luz da dogmática jurídica, posto que não existe o fato jurídico denominado trânsito em Novo Código de Processo Civil - Lei Federal n. 13.105/2015
julgado unicamente “para a acusação”, consoante será demonstrado a seguir. Seção V
Da Coisa Julgada

4 CONCEITOS DE PRECLUSÃO, COISA JULGADA FORMAL (TRÂNSITO EM Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna
JULGADO) E COISA JULGADA MATERIAL imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
Os preclaros Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira definem a
Salvo melhor juízo, afigura-se impossível compreender o conteúdo da expressão coisa julgada como sendo “a imutabilidade da norma jurídica individualizada contida na
“trânsito em julgado ‘para a acusação’” divorciada dos conceitos de preclusão, trânsito parte dispositiva de uma decisão judicial8, e que pode ser formal, também denominada
em julgado e coisa julgada material, cuja análise elide a possibilidade de confusão entre de trânsito em julgado, ou material.
tais institutos. O conceito de coisa julgada formal, também denominada trânsito em julgado, é
A preclusão significa a perda de um direito processual, a perda do direito de exercer confeccionado, de forma brilhante, pelos festejados processualista acima referidos:
um ato/faculdade processual, seja porque expirado o prazo legal para fazê-lo (temporal),
seja porque restou impossível exercer determinado ato, logicamente contrário à conduta
processual anteriormente praticada (lógica) ou, ainda, porque determinado ato já foi
exercido validamente, sendo impossível renová-lo ou retificá-lo (consumativa).
De forma mais detalhada, os eminentes processualistas Luiz Guilherme Marinoni 6
MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5. ed. São
e Sérgio Cruz Arenhart esclarecem o conceito de preclusão: Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 624.
7
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: Aniceto López, 1942. p. 163-
165.
8
DIDIER JUNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil.
Direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. 2. ed. Salvador:
Juspodivm, 2007. v. 4, p. 553.

REVISTA DO MPBA 210 211 REVISTA DO MPBA


A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA, A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA,
E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A coisa julgada formal é a imutabilidade da decisão judicial dentro Tais conceitos são cruciais para elidir definitivamente a impropriedade em que
do processo em que foi proferida, porquanto não possa mais ser se assenta a majoritária orientação doutrinária e jurisprudencial que, indevidamente,
impugnada por recurso – seja pelo esgotamento das vias recursais, distingue o “trânsito em julgado ‘para a acusação’” do “trânsito em julgado ‘para ambas as
seja pelo decurso do prazo do recurso cabível. Trata-se de fenômeno partes’”, posto que o fato jurídico da coisa julgada, enquanto imutabilidade do conteúdo
endoprocessual, decorrente da irrecorribilidade da decisão judicial. do dispositivo de uma decisão judicial, da norma jurídica individualizada ali contida”, é
Revela-se, em verdade, como uma espécie de preclusão – instituto
único para as partes que integram uma mesma relação jurídica.
já devidamente estudado em capítulo respectivo no v. deste curso -,
constituindo-se na perda do poder de impugnar a decisão judicial no Importante se faz, desde já, referir ao denominado dispositivo de uma decisão
processo em que foi proferida. judicial, o que remete à teoria dos capítulos de sentença, já que, não raro, a decisão
Seria a preclusão máxima dentro de um processo jurisdicional. judicial pode conter mais de um dispositivo, a exemplo da imputação de mais de uma
Também chamada de “trânsito em julgado”.9 infração penal a um único acusado ou, ainda, a imputação de um ou mais crimes a
Perceba-se que, embora sugira que a coisa julgada formal seja uma espécie de corréus.
preclusão, os citados processualistas deixam evidente a distinção de tais institutos, posto Em tais hipóteses, revela-se possível a ocorrência da coisa julgada, a imutabilidade
que a preclusão é a perda do direito de exercer um direito processual, ao passo em que de um dispositivo da decisão judicial, que vinculará as partes de uma mesma relação
a coisa julgada formal ou trânsito em julgado é, segundo a doutrina mais abalizada, uma jurídica processual, mas nunca um único polo da ação, isoladamente, pois será possível
qualidade, um efeito jurídico do conteúdo da decisão, a sua indiscutibilidade dentro do a continuidade do processo com relação aos outros dispositivos que não se revestiram
processo na qual foi proferida. do trânsito em julgado, também denominado “preclusão máxima”.
E prosseguindo com as lições dos ilustres Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga
e Rafael Oliveira, eis, ainda, o conceito de coisa julgada material:
A coisa julgada material é a indiscutibilidade da decisão judicial no 5 A INEXISTÊNCIA DE FATO JURÍDICO DENOMINADO “TRÂNSITO EM JULGADO
processo em que foi produzida e em qualquer outro. Imutabilidade ‘PARA A ACUSAÇÃO’” ENQUANTO FENÔMENO ISOLADO. NATUREZA INTER
que se opera dentro e fora do processo. A decisão judicial (em PARTES DA COISA JULGADA
seu dispositivo) cristaliza-se, tornando-se inalterável. Trata-se de
fenômeno com eficácia endo/extraprocessual. Do aprendizado extraído das lições dos precitados autores, é possível observar
Perceba-se, contudo, que a coisa julgada formal é um degrau que, quando a doutrina e a jurisprudência pátrias se referem ao “trânsito em julgado
necessário, para que se forme a coisa julgada material. Em outros ‘para a acusação’”, enquanto fato jurídico distinto do “trânsito em julgado ‘para ambas as
termos, a coisa julgada material tem como pressuposto a coisa julgada partes’”, cometem um equívoco conceitual.
formal.10
Definir um fato jurídico como próprio e denominá-lo como “trânsito em julgado ‘para
E, mais à frente, refletem os multicitados processualistas: a acusação’”, ou seja, como o momento em que uma decisão judicial não foi desafiada
Reunindo o que há de relevante nas teorias acima expostas, e pelo titular da ação penal no tempo oportuno, por conformação ou inércia, conquanto ela
partindo, como sempre, das noções básicas da teoria geral do direito, tenha sido objeto de recurso pela(s) parte(s) ré(s), significa confundir os conceitos de
entendemos que a coisa julgada é um efeito jurídico (uma situação preclusão e coisa julgada.
jurídica, portanto) que nasce a partir do advento de um fato jurídico Em verdade, quando o autor da ação penal não interpõe recurso contra uma
composto consistente na prolação de uma decisão jurisdicional sobre sentença ou acórdão condenatório, nada mais ocorre do que, senão, o fenômeno
o mérito (objeto litigioso), fundada em cognição exauriente, que se da preclusão, visto que aquela decisão judicial, porque impugnada pela(s) parte(s)
tornou inimpugnável no processo em que foi proferida. E este efeito adversária(s), poderá ou não vir a ser reformada, mas não se tornou imutável para
jurídico (coisa) julgada é, exatamente, a imutabilidade do conteúdo do
nenhuma das partes envolvidas.
dispositivo da decisão, da norma jurídica individualizada ali contida.
A decisão judicial, neste ponto, é apenas um dos fatos que compõe o
E, eventualmente anulada ou reformada a decisão judicial em virtude do êxito
suporte fático para a ocorrência da coisa julgada, que, portanto, não alcançado pela(s) parte(s) que integra(m) o polo passivo da relação jurídica processual
é um seu efeito.11 penal, nada obsta que a acusação possa interpor recurso contra o conteúdo da decisão
modificadora às instâncias superiores, a fim de restaurar a decisão primeva, total ou
9
DIDIER JUNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil.
parcialmente.
Direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. 2. ed. Salvador: Desta feita, a mera possibilidade de anulação ou reforma de determinada decisão
Juspodivm, 2007. v. 4, p. 553. judicial, ainda que uma das partes da relação jurídica processual penal a ela tenha anuído
10
DIDIER JUNIOR, loc. cit. ou se quedado ociosa, demonstra que, obviamente, não ocorreu o trânsito julgado, que é
11
Ibidem, p. 560. sinônimo de coisa julgada formal, cujo conceito, repita-se, é a indiscutibilidade da decisão
judicial dentro do mesmo processo.

REVISTA DO MPBA 212 213 REVISTA DO MPBA


A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA, A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA,
E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Neste diapasão, convém ainda observar que, enquanto pendente de apreciação Não se pode olvidar que a redação do caput do art. 112 do Código Penal é precedida
um recurso interposto por qualquer das partes (acusação ou defesa), remanesce possível categoricamente do título “Termo inicial da prescrição após a sentença condenatória
o exame ex officio de matéria de ordem pública, passível de atingir o próprio processo (in irrecorrível”.
casu, o processo penal), como bem anota Fábio Victor da Fonte Monnerat: Irrecorrível é atributo da decisão judicial (sentença ou acórdão) contra a qual
Em outras palavras, a possibilidade de conhecimento de oficio de não caiba mais recurso, deixando patente que, para o legislador, o trânsito em julgado
questões de ordem pública pelo tribunal, por atingirem todo o processo, somente se perfaz quando a decisão judicial se torna imutável, indiscutível.
e por via de consequência, toda a sentença, inclusive o capítulo não Ou seja, a interpretação dita “literal” é feita de modo compartimentado, isolado
impugnado, impede que se fale em trânsito em julgado parcial dos e equivocado, ignorando a própria acepção que o próprio Código Penal conferiu ao
capítulos da sentença.12 conceito de trânsito em julgado, já que, segundo as próprias palavras do legislador, ao
Lado outro, se é possível ao titular da ação penal interpor recurso contra a disciplinar a prescrição da pretensão executória, intitulou-a como “prescrição após a
decisão judicial que anulou ou reformou aquela que lhe é anterior e com a qual havia se sentença irrecorrível”.
conformado ou permanecido inerte, sob hipótese alguma se pode falar em trânsito em Infere-se que a interpretação do art. 112, I, 1ª parte, do Código Penal ora proposta
julgado para qualquer das partes, já que não há decisão judicial alguma revestida de sequer pode ser tachada de contra legem, porque prestigia a intenção do legislador,
imutabilidade. revelada pelo título do dispositivo legal em comento, além de adotar uma exegese
Como bem adverte o ilustre penalista Paulo Queiroz: coerente, sistemática e harmônica com a dogmática processual e, consequentemente,
com a unidade do ordenamento jurídico pátrio.
Não se deve, pois, confundir trânsito em julgado da sentença com
Indubitavelmente, ao subscrever o título “Termo inicial da prescrição após a
preclusão do direito de apelar ou recorrer, visto que a prescrição
da pretensão executória pressupõe irrecorribilidade da decisão e a sentença irrecorrível” antes do caput do art. 112 do Código Penal, o legislador definiu
consequente constituição do título executivo judicial, além da inércia o significado de “trânsito em julgado ‘para a acusação” como sendo de coisa julgada
estatal.13 material.
Afinal, em conformidade com as lições dos sábios Fredie Didier Júnior, Paula
Assim, não é difícil verificar que o trânsito em julgado, enquanto imutabilidade do Sarno Braga e Rafael Oliveira:
dispositivo de uma sentença ou acórdão condenatório, jamais poderá ser de natureza Para que determinada decisão judicial fique imune pela coisa julgada
unissubjetiva, justamente por ser inter partes, ou seja, por vincular os polos adversos de material, deverão estar presentes quatro pressupostos: a) há de ser
uma mesma relação jurídica processual. uma decisão jurisdicional (a coisa julgada é característica exclusiva
Não sem propósito, o caráter inter partes da coisa julgada está novamente dessa espécie de ato estatal); b) o provimento versar sobre o mérito
da causa (objeto litigioso); c) o mérito deve ter sido analisado em
sedimentado de forma expressa no art. 506 do Novo Código de Processo Civil – Lei
cognição exauriente; d) tenha havido a preclusão máxima (coisa
Federal n. 13.105/2015, reproduzindo quase integralmente o teor do art. 472 do antigo julgada formal).14
diploma:
Novo Código de Processo Civil – Lei Federal n. 13.105/2015 No âmbito do Direito Penal, somente é possível falar em pretensão punitiva
executória em se tratando de decisão (sentença ou acórdão) proferida(o) por órgão
Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada,
jurisdicional com competência criminal, que aprecie o mérito da(s) causa(s) de pedir e
não prejudicando terceiros.
do(s) pedido(s) contidos na denúncia, formulado(s) contra a(s) parte(s) ré(s), em cognição
(obviamente) exauriente e contra a qual não caiba mais nenhum recurso, por nenhuma
6 A VERDADEIRA ACEPÇÃO DE “TRÂNSITO EM JULGADO ‘PARA A ACUSAÇÃO’” das partes (coisa julgada formal ou trânsito em julgado).
CONTIDA NO CÓDIGO PENAL E A IMPROPRIEDADE DA INTERPRETAÇÃO DO Neste diapasão, oportuna também se faz a colação dos ensinamentos do saudoso
TEMA INTITULADA “LITERAL” e insigne Celso Ribeiro Bastos, invocados no já mencionado voto lavrado pela eminente
Ministra Maria Thereza de Assis Moura, mas que, em verdade, socorre a fundamentação
Não bastassem os fundamentos acima invocados, é possível evidenciar o manifesto ora sustentada neste artigo e desnuda a impropriedade de se denominar como “literal” a
desacerto da interpretação reputada “literal”, acatada pela doutrina e jurisprudência corrente doutrinária e jurisprudencial até então majoritárias acerca do tema:
majoritárias, a qual que se distancia da acepção legal de trânsito em julgado.

12
MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Influência dos efeitos dos recursos no cabimento e desenvolvimento da 14
execução provisória. REPRO, São Paulo, v. 165, p. 85, nov. 2008. DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil:
13 direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. 2. ed. Salvador:
QUEIROZ, Paulo. Termo inicial da prescrição da pretensão executória. Pauloqueiroz.net, São Paulo, maio
Juspodivm, 2007. v. 4, p. 554.
2012. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/termo-inicial-da-prescricao-da-pretensao-executoria/>.

REVISTA DO MPBA 214 215 REVISTA DO MPBA


A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA, A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA,
E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Contudo, há uma limitação lógica. É que se exclui a possibilidade 7 O CARÁTER PROCESSUAL DA PRECLUSÃO
de que o intérprete da lei pretenda forçar uma interpretação que,
não obstante em consonância com os termos constitucionais, viola a De tudo quanto ora se expôs, resta patente que o denominado “trânsito em julgado
literalidade daquela, vale dizer, seja contra legem, com o que se cria ‘para a acusação’”, contido no inciso I do art. 112 do Código Penal, em verdade, traduz
uma verdadeira norma paralela, porque não extraível do texto da lei instituto jurídico diverso, qual seja, a preclusão do direito de recorrer.
o conteúdo constitucional atribuído, erigindo-se o Judiciário à função
Deste modo, faz-se premente transcrever importante vaticínio do ilustre Fredie
de legislador positivo. É que o intérprete não poderá atribuir um
significado à norma que seja totalmente distante da letra desta, Didier Júnior, em passagem que diferencia a preclusão temporal da decadência e da
ou em inteira autonomia, desprezando por completo o que estiver prescrição, quando adverte acerca de sua natureza processual:
preceituado. A interpretação não se pode desvincular da norma Enquanto a prescrição relaciona-se, em princípio, aos direitos a uma
posta.15 prestação de cunho material, a preclusão temporal refere-se, tão-
somente, a faculdades/poderes de cunho processual.
Ora, não se pode denominar como “literal” a interpretação que atribui à norma
posta a acepção completamente distinta de sua literalidade, sub-rogando indevidamente Demais disso, a prescrição e decadência são institutos de direito
significado de instituto diverso (preclusão) à expressão “trânsito em julgado”, além de substantivo, enquanto preclusão é instituto de direito processual. A
ignorar o conteúdo da expressão “irrecorrível”. prescrição e decadência ocorrem extraprocessualmente – malgrado
Assim, a expressão “termo inicial da prescrição após a sentença irrecorrível”, sejam ambas reconhecidas, no mais das vezes, dentro de um
definida expressamente pelo legislador, imediatamente acima do caput do art. 112 do processo -, e suas finalidades projetam-se, também, para fora do
processo: visam à paz e à harmonia sociais, bem como a segurança
Código Penal, aliada à dogmática processual, demonstra, de modo incontroverso, que o
das relações jurídicas. Já a preclusão temporal ocorre, sempre e
“trânsito em julgado ‘para a acusação’” e o “trânsito em julgado ‘para as ambas partes’” necessariamente, no bojo do processo, e sua finalidade precípua
são exatamente a mesma coisa, em razão do já mencionado caráter subjetivo, inter restringe-se, igualmente, à esfera processual; visa, sobretudo, ao
partes, da coisa julgada. impulso do desenvolvimento, de forma segura e ordenada, para que
Em reforço, revela-se ainda apropriada a referência ao art. 105 da Lei de Execuções se chegue ao seu ato final (prestação da jurisdição).17
Penais, cujo teor deixa evidente que a execução da sentença penal condenatória
Enquanto instituto de direito processual e cuja finalidade restringe-se a tal
somente se torna possível com o seu trânsito em julgado:
seara, os efeitos extraprocessuais, a exemplo do precoce surgimento do marco inicial
Lei de Execução Penal - Lei Federal n. 7.210/84 da prescrição da pretensão executória, não podem derivar da preclusão do direito de
Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa recorrer, sobretudo quando tal direito substantivo sequer ainda existe, posto que o título
de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a
executivo judicial somente surge após a formação da coisa julgada material.
expedição de guia de recolhimento para a execução.

Demais disso, se a prescrição é conceituada como “a perda da pretensão de


8 REAFIRMAÇÃO DA INCOMPATIBILIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA.
reparação de um direito violado, em razão da inércia do seu titular, durante o lapso
TEMPORALIDADE MÁXIMA DA PRISÃO CAUTELAR. REVOGAÇÃO PARCIAL DA
temporal estipulado pela lei16”, enquanto não transitada em julgado a sentença penal
SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
condenatória, sequer é possível se falar em inação do titular da ação penal, sendo
incorreta a atribuição do marco inicial da prescrição da pretensão punitiva a período
Consoante referido alhures, ao concluir o julgamento do Habeas Corpus n. 84.078/
anterior à coisa julgada, vez que ainda não existe título judicial passível de execução.
MG, o plenário do Supremo Tribunal Federal assentou uniformemente a incompatibilidade
da execução provisória da pena com o princípio do estado de inocência.
Na oportunidade, o eminente Ministro Eros Roberto Grau vaticinou com bastante
propriedade:
Aliás a nada se prestaria a Constituição se esta corte admitisse que
alguém viesse a ser considerado culpado --- e ser culpado equivale a
suportar execução imediata de pena --- anteriormente ao trânsito em
julgado da sentença penal condenatória.

15
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor; 17
Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. p. 171. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de
16 conhecimento. 9. ed. Salvador: Juspodivm, 2008, v. 1, p. 280.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, p. 557.
REVISTA DO MPBA 216 217 REVISTA DO MPBA
A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA, A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA,
E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Quem lê o texto constitucional em juízo perfeito sabe que a Constituição Data maxima venia, autorizar a aplicação da Súmula n. 716 da Suprema Corte,
assegura que nem a lei, nem qualquer decisão judicial imponham ao no que pertine à possibilidade de progressão de regime de cumprimento de pena antes
réu alguma sanção antes do trânsito em julgado da sentença penal do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, nada mais traduz senão do que
condenatória. Não me parece possível, salvo se for negado préstimo à admitir, em caráter excepcional, a execução antecipada da pena privativa de liberdade,
Constituição, qualquer conclusão adversa ao que dispõe o inciso LVII em franco vilipêndio art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, que consagra o princípio
do seu artigo 5º. Apenas um desafeto da constituição --- lembro-me
do estado de inocência.
aqui de uma expressão de Geraldo Ataliba, exemplo de dignidade,
jurista maior, maior, muito maior do que pequenos arremedos de jurista Inexistente o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, a qual, diga-se
poderiam supor --- apenas um desafeto da Constituição admitiria que de passagem, poderá até mesmo não subsistir, pelo eventual reconhecimento de uma
ela permite seja alguém considerado culpado anteriormente ao trânsito matéria de ordem pública ou pelo provimento do recurso na instância extraordinária,
em julgado de sentença penal condenatória. Apenas um desafeto da ressoa verdadeira afronta ao princípio do estado de inocência uma progressão de regime
Constituição admitiria que alguém fique sujeito a execução antecipada de uma pena provisoriamente fixada em um título judicial ainda inexequível.
da pena de que se trate. Apenas um desafeto da Constituição. É fato incontroverso que a Lei de Execução Penal se aplica ao preso provisório,
contudo e, por óbvio, no que couber, sendo-lhe manifestamente desfavorável a
13. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente progressão de regime de pena antes da formação da culpa por trânsito em julgado da
pode ser decretada a título cautelar. Lembro, a propósito, o que afirma
sentença penal condenatória, já que, efetivamente, a pena privativa de liberdade estará
Rogério Lauria Tucci, meu colega de docência na Faculdade de Direito
no Largo de São Francisco: ‘o acusado, como tal, somente poderá ter sendo executada, de forma progressiva, antes mesmo da formação da coisa julgada.
sua prisão provisória decretada quando esta assuma natureza cautelar, Sob a égide do ordenamento erigido com a Constituição Federal, a prisão em
ou seja, nos casos de prisão em flagrante, de prisão temporária, ou de flagrante, a prisão preventiva ou a prisão temporária se revestem unicamente de natureza
prisão preventiva’. cautelar, adstritas às hipóteses previstas expressamente nos dispositivos legais que as
De forma rigorosamente coerente com o princípio do estado de inocência, o disciplinam.
Supremo Tribunal Federal, de longa data, ao interpretar o art. 147 da Lei de Execução Essa cautelaridade, porém, exige a fixação de um limite temporal para a sua
Penal – Lei Federal n. 7.210/84 -, já possuía jurisprudência firme condicionando a perduração, sendo forçoso concluir-se pela sua cessação quando há a extrapolação da
execução das penas restritivas de direito ao trânsito em julgado da sentença penal duração razoável do processo19 para a formação definitiva da culpa.
condenatória18. Nesta hipótese, há nítido constrangimento ilegal, visto que a duração do processo
Todavia, embora afirmada e pacificada a incompatibilidade da execução provisória excede a razoabilidade quando se ultrapassa o prazo para a progressão de regime de
com o art. 5º, LVII, da Constituição Federal, contraditoriamente, o Pretório Excelso cumprimento de uma pena privativa de liberdade que já deveria ter sido definida por
continua aplicando a Súmula n. 716, aprovada em 24/09/2003, enunciado este que é sentença passada em julgado.
pretérito ao julgamento do Habeas Corpus n. 84.078/MG e que possui o seguinte teor: Logo, não se estará beneficiando o acusado ao se permitir o início precoce da
Súmula n. 716 do Supremo Tribunal Federal: “Admite-se a progressão do regime de cumprimento de pena, porque efetivamente ter-se-á manifesto
progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação excesso prazal para declará-lo definitivamente culpado.
imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito Assim, alcançado lapso temporal suficiente para a progressão do regime de
em julgado da sentença condenatória”. cumprimento de uma pena privativa de liberdade cujo título judicial ainda não transitou em
Nesse sentido: STF, HC 100.587 SP, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, julgado julgado, a solução a ser adotada não deve ser a aplicação da Súmula 716 do Supremo,
em 09/08/2011; HC 118.338/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em porque a progressão de regime é ato inerente à execução de pena, a evidenciar que o
06/11/2013; HC 104.115/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 14/09/2010; transcurso daquele interstício já esgotou a cautelaridade da segregação provisória.
HC 104.761 SP, Primeira Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 15/02/2011; RHC Por conseguinte, a progressão de regime de uma prisão estritamente cautelar,
103.744/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 31/08/2010. antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, traduz ofensa ao princípio
da duração razoável do processo, de modo que a melhor solução que se apresenta,
para coibir esta execução antecipada da pena, é a revogação do decreto prisional ou,
se ainda se fizer necessária, a sua conversão em medidas cautelares distintas da prisão
preventiva, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal – Decreto-Lei n. 3.689/41,
com a consequente revogação parcial da Súmula n. 716 do Supremo Tribunal Federal.

18
Precedentes: HC 89.435/PR, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 20/03/2007; HC 88.413/
MG, Primeira Turma, Rel. Min, Cezar Peluso, julgado em 23/05/2006; HC 88.741/PR, Segunda Turma,
Rel. Min. Eros Roberto Grau, julgado em 23/05/2006; HC 85.860/PR, Segunda Turma, rel. p/ acórdão Min. 19
Constituição Federal: Art. 5º - (...) LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a
Joaquim Barbosa, julgado em 14/02/2006. razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
REVISTA DO MPBA 218 219 REVISTA DO MPBA
A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA, A (NECESSÁRIA) INTERPRETAÇÃO DO ART. 112, I, 1ª PARTE, DO CÓDIGO PENAL, SOB A ÓTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA,
E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A REVOGAÇÃO PARCIAL DA SÚMULA 716 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

9 CONCLUSÃO REFERÊNCIAS

Inegavelmente, a ora comentada complexidade e relevância do tema é evidenciada BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional - revista e ampliada.
com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que, no bojo do ARE 848107/DF, 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor; Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999.
reputou constitucional a questão e reconheceu a repercussão geral da matéria, em COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: Aniceto
virtude da séria controvérsia sobre o entendimento da matéria pelos Tribunais pátrios, López, 1942.
afetando-a a futuro julgamento, aresto que foi ementado nos seguintes termos:
EMENTA CONSTITUCIONAL. PENAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e
TERMO INICIAL PARA A CONTAGEM DA PRESCRIÇÃO NA processo de conhecimento. 9. ed. Salvador: Juspodivm, 2008. v.1.
MODALIDADE EXECUTÓRIA. TRÂNSITO EM JULGADO SOMENTE
PARA A ACUSAÇÃO. ARTIGO 112, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito
NECESSIDADE DE HARMONIZAÇÃO DO REFERIDO INSTITUTO processual civil. Direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença
PENAL COM O ORDENAMENTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL e coisa julgada. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2007. v. 2.
VIGENTE, DIANTE DOS POSTULADOS DA ESTRITA LEGALIDADE
FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral. 6. ed. Rio
E DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, INCISOS II E
LVII). QUESTÃO EMINENTEMENTE CONSTITUCIONAL. MATÉRIA de Janeiro: Lumen Juris.
PASSÍVEL DE REPETIÇÃO EM INÚMEROS PROCESSOS, A MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de
REPERCUTIR NA ESFERA DO INTERESSE PÚBLICO. TEMA COM conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
REPERCUSSÃO GERAL.
(STF, Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo n. MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Influência dos efeitos dos recursos no cabimento e
848.107, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 11/12/2014) desenvolvimento da execução provisória. REPRO, São Paulo, v. 165, p. 85, nov. 2008.
A perspectiva criada pelo futuro julgamento da matéria pelo plenário do Supremo QUEIROZ, Paulo. Termo inicial da prescrição da pretensão executória. Pauloqueiroz.
Tribunal Federal, no âmbito da repercussão geral, é de que, enfim, seja afastada a net, São Paulo, maio 2012. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/termo-inicial-da-
equivocada interpretação indigitada “literal” do art. 112, I, do Código Penal, conferindo- prescricao-da-pretensao-executoria/>.
lhe uma exegese genuinamente sistêmica e consentânea com o princípio do estado de
inocência.
Afinal, não pode subsistir a prevalência de uma interpretação dissociada da
dogmática processual, que confunde o trânsito em julgado com o instituto jurídico da
preclusão, com evidente prejuízo ao ius punitionis.
A interpretação ora proposta trilha o caminho a favor de uma efetiva reafirmação da
incompatibilidade da execução provisória da pena, devendo ser cancelada parcialmente
a Súmula 716 do Supremo Tribunal Federal, em apreço aos princípios do estado de
inocência e da duração razoável do processo.

REVISTA DO MPBA 220 221 REVISTA DO MPBA


A OMISSÃO DOS PREFEITOS NO ENFRENTAMENTO E RESOLUÇÃO DOS LIXÕES E A CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

A OMISSÃO DOS PREFEITOS NO ENFRENTAMENTO E RESOLUÇÃO DOS LIXÕES


E A CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA 2 DESENVOLVIMENTO

Thyego de Oliveira Matos* 2.1 A EDIÇÃO DA LEI 12.305/2010 – NOVOS PARADIGMAS NO TRATAMENTO DA
QUESTÃO
EMENTA
A Lei n.º 12.305/2010 foi editada com o propósito de modificar o retrato da maioria O Brasil é portador de um valioso patrimônio natural e assumiu, especialmente
das cidades brasileiras, eliminando os lixões e instituindo uma gestão ambientalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, o compromisso de protegê-lo (CF,
adequada dos resíduos sólidos. Sucede que, passados mais de quatro anos desde a art. 225).
edição da referida Lei, a realidade de muitos municípios brasileiros ainda é exatamente Até o advento da Lei n.º 10.305/2010, o país carecia de um marco normativo que
a mesma e, em muitos casos, em decorrência de uma total falta de comprometimento instituísse uma política pública voltada à regulação dos resíduos sólidos, algo essencial
dos prefeitos. Nestes cenários de total omissão, a conduta de tais agentes públicos não para qualquer sociedade que se pretenda sustentável.
é apenas ilegal, qualificando-se como ímprobas. Sobre a edição da referia Lei, oportunas as palavras de Lyssandro Norton Siqueira:1
A lacuna legislativa até então existente em nosso País dava margem
PALAVRAS-CHAVE: Meio ambiente. Dever de proteção. Omissão intencional. a grandes distorções na solução deste grave problema. Com efeito,
a ausência de uma lei, regulando uma política nacional de resíduos
Improbidade administrativa.
sólidos, deixava os entes federados com razoável liberdade para
definir prioridades, estabelecer restrições e incentivos a atividades
empreendedoras. Tal liberdade acabou por provocar um certo
1 INTRODUÇÃO desequilíbrio entre os procedimentos adotados em distintos municípios
e estados da federação.
Vivemos, cada vez mais, imersos em uma sociedade de consumo de massa, Oportunamente, portanto, foi publicada a Lei n. 12.305/2010, que
incentivados, a todo tempo, através dos espaços publicitários, à aquisição dos mais instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, dispondo sobre seus
variados bens. Dados oficiais revelam que aproximadamente quarenta milhões de princípios, objetivos e instrumentos. Foram definidas as diretrizes
brasileiros elevaram seus padrões de consumo nas últimas duas décadas. Uma das relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de resíduos sólidos;
às responsabilidades dos geradores e do poder público e aos
consequências desse novo paradigma é justamente a maior produção de resíduos.
instrumentos econômicos aplicáveis.
Após vinte e um anos maturando no Congresso Nacional, foi sancionada a Lei n.º
12.305/2010 com o propósito de modificar o retrato da maioria das cidades brasileiras, Assim, a edição da Lei n.º 12.305/2010 fez surgir um importante marco normativo
através de uma destinação ambientalmente adequada dos resíduos gerados pelos que se propõe a modificar a gestão dos resíduos sólidos, dando-lhes uma destinação
diversos seguimentos (indústria, comércio, consumidores etc.), assimilando, dentro ambientalmente adequada.
desse processo, a um só tempo, a proteção ao meio ambiente e mecanismos de inclusão Sobre a temática, oportunas as palavras do Prof. Édis Milaré:2
e promoção social. A Política Nacional de Resíduos Sólidos preencheu uma importante
Em que pese o referido diploma legal estabelecer, expressamente, que a lacuna no arcabouço regulatório nacional. Essa iniciativa é o
reconhecimento, ainda que tardio, de uma abrangente problemática
responsabilidade pela resolução dos problemas dos resíduos é “compartilhada” (Poder
ambiental que assola o País, problemática esta de proporções
Público, setor produtivo e consumidores), não se pode olvidar que cabe ao Poder Público desconhecidas, mas já com diversos episódios registrados em
um papel de protagonismo nesse processo, na medida em que as mudanças necessárias vários pontos do território nacional, e que tem origem exatamente
perpassam pela adoção de políticas públicas. na destinação e disposição inadequadas de resíduos e consequente
Sucede que, passados mais de quatro anos desde a edição da Lei n.º 12.305/2010, contaminação no solo, além da dificuldade de identificação dos
a realidade de muitos municípios brasileiros ainda é exatamente a mesma. Isto é, não agentes responsáveis.
se verificou nenhum avanço no que tange à destinação ambientalmente adequada dos Esses registros indicam a gravidade de situações de contaminação
resíduos sólidos. do solo e das águas subterrâneas, com risco efetivo à saúde pública
O presente artigo pretende discorrer sobre as condutas omissivas dos prefeitos, e à biota, além do comprometimento do uso de recursos naturais em
benefício da sociedade.
em municípios onde nada se fez desde a edição do marco legal acima mencionado, e
sua caracterização como ato de improbidade administrativa. 1
SIQUEIRA, Lyssandro Norton. Dos princípios e instrumentos da política nacional de resíduos
sólidos. Disponível em: < http://www.revistadir.mcampos.br/PRODUCAOCIENTIFICA/artigos/
lisandronortonsiqueiradosprincipioseinstrumentospoliticanacionalresiduossolidos.pdf>. Acesso em: 24 out.
*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Especialista em Direito Tributário pela 2014 .
Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Pós-graduando em Direito Urbano e Ambiental pela 2
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. A gestão ambiental em foco: doutrina jurisprudência, glossário. 7. ed.
Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 855.
REVISTA DO MPBA 222 223 REVISTA DO MPBA
A OMISSÃO DOS PREFEITOS NO ENFRENTAMENTO E RESOLUÇÃO DOS LIXÕES E A CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA A OMISSÃO DOS PREFEITOS NO ENFRENTAMENTO E RESOLUÇÃO DOS LIXÕES E A CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Com efeito, os episódios de poluição do solo têm, como característica A referida Lei, apenas para exemplificar, fixou marcos temporais para a elaboração
preponderante, o grande período de latência entre o fato causador dos Planos Municipais de Resíduos Sólidos e para a disposição final ambientalmente
e manifestação - e consequente percepção - de efeitos mais graves adequada dos resíduos sólidos (criação dos aterros sanitários em substituição aos atuais
no meio ambiente e, em algumas vezes, na saúde da população do lixões) para todos os municípios brasileiros. Tais prazos se venceram em 02 de agosto
entorno, direta ou indiretamente exposta à contaminação.
de 2012 e 02 de agosto de 2014, respectivamente.
Esse novo marco regulatório contempla princípios, objetivos e diretrizes que Lei n.º 12.305/2010
podem alterar profundamente a atual gestão e destinação dos resíduos sólidos no país, [...]
ao prever importantes instrumentos voltados à estruturação de uma gestão adequada do Art. 54.  A disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos,
observado o disposto no § 1º do art. 9º, deverá ser implantada em até
lixo e apresentando metas de redução, reutilização e reciclagem. 4 (quatro) anos após a data de publicação desta Lei. 
“Dados oficiais revelam que a geração de resíduos sólidos é um fenômeno Art. 55.  O disposto nos arts. 16 e 18 entra em vigor 2 (dois) anos após
cotidiano, diário, inevitável, ocasionando danos e degradando o meio ambiente”3. O a data de publicação desta Lei. 
Brasil, em 2009, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e
Resíduos Especiais (ABRELPE), gerou mais de 57 milhões de toneladas de resíduos, Assim, diante de um cenário de total omissão dos gestores municipais, é possível
7,7 % a mais em relação ao ano anterior, sendo que as capitais e as cidades com mais sua responsabilização com fundamento na Lei n.º 8.429/1992, traduzindo-se, tal omissão,
de 500 mil habitantes produziram cerva de 23 milhões de toneladas de resíduos.4 em conduta ímproba?
Na análise de um interregno temporal maior, observa-se que o crescimento é Nas sequências, alguns apontamentos sobre tal questionamento.
exponencial, tanto que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
no ano 2000, a quantidade de resíduos produzidos diariamente no Brasil era de 125.281 2.2 LIXO, OMISSÃO DOS PREFEITOS E A CARACTERIZAÇÃO DA CONDUTA
toneladas, ou seja, cerca de 45,7 milhões de toneladas ao ano.5 Já em 2008, segundo ÍMPROBA
dados do mesmo Instituto, a quantidade de resíduos sólidos produzidos diariamente no
Brasil era de 259.547 toneladas6. Isto é, um crescimento de mais de 100% (cem por A Lei no 8.429/1992 lançou mão, acertadamente, de cláusulas abertas para
cento) em um período de apenas oito anos. enunciar, numerus apertus, as condutas que se qualificam com ímprobas. Ao longo do
Assim, a preocupação com resíduos sólidos não é uma questão arts. 9, 10 e 11 da referida Lei, o legislador, em rol exemplificativo, indica as condutas que
regionalizada, é sim, universal, globalizada e vem sendo discutida há se qualificam como ímprobas, desde que, respectivamente, importem “enriquecimento
algumas décadas nas esferas nacional e internacional. Ademais, com ilícito, lesão ao erário ou atente contra os princípios da administração pública”.
uma preocupação ambiental preservacionista e um arcabouço jurídico
verde mais solidificado, novas regras para uma gestão integrada dos Para os fins propostos no presente trabalho, que se limita a analisar, estritamente,
resíduos sólidos surgem para transformar a realidade nacional.7 a omissão dos prefeitos em face das obrigações impostas pela Lei n.º 12.305/2010,
sem fazer qualquer injunção em possível enriquecimento ilícito ou lesão ao erário,
Em que pese a dignidade dos valores envolvidos e os valiosos fins almejados, aspectos estes que exigiriam prova específica, entende-se que tal conduta se caracteriza
muitos municípios brasileiros nada fizeram para positivar as transformações pretendidas
pela Lei n.º 12.305/2010. Isto é, não elaboraram qualquer plano de resíduos sólidos, não como atentatória aos princípios regentes da administração pública (art. 11 da Lei n.º
implementaram a coleta seletiva e a educação ambiental, não realizam monitoramento e 8.429/1992).
fiscalização ambiental etc. (art. 8o da Lei n.º 12.305/2010). Isto é, quando se verifica a omissão dos prefeitos em implementarem as medidas
necessárias para dar uma destinação ambientalmente adequada aos resíduos sólidos,
tem-se a caracterização do ato de improbidade, pois atenta contra os “princípios regentes
da atividade estatal”8.
Sucede que, em razão das graves sanções cominadas em face dos que praticam
atos de improbidade administrativa, definida, enquanto tal, como ilegalidade qualificada, é
pacífico o entendimento, tanto em sede doutrinaria quanto jurisprudencial, que ilegalidade
3
MARTINS, Juliana Xavier Fernandes; MURARI, Gabriel Garcia; BECHARA, Erika (Org.). Aspectos relevantes e improbidade não se confundem. Assim, para a configuração de um ato como sendo
da política nacional de resíduos sólidos. Lei n.º 12.305/2010. São Paulo: Atlas, 2013. p. 2. ímprobo, faz-se necessário a demonstração de elementos objetivos e subjetivos, dentro
4
ABRELPE. Panorama dos resíduos sólidos no Brasil. 2009. Disponível em: <http:// www.abrelpe.org.br/ da tipologia estabelecida pela Lei no 8.429/1992.
panorma_2009.php>. Acesso em: 24 mar. 2011
5 Nesse sentido, os escólios de José Antonio Lisbôa Neiva:9
IBGE. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2000. Disponível em: <http:// www.ibge.gov.br/home/
presidencia/noticias/27032002pnsb.shtm >. Acesso em: 15 mar. 2011.
6
IBGE. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2008. Disponível em: <http:// www.ibge.gov.br/home/
estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb2008/PNSB_2008.pdf>. Acesso em: 24 out. 2014. 8
Expressão cunhada por Emerson Garcia.
7
MARTINS, Juliana Xavier Fernandes; MURARI, Gabriel Garcia; BECHARA, Erika (Org.). Aspectos relevantes 9
NEIVA, José Antonio Lisbôa. Improbidade administrativa: legislação comentada artigo por artigo: doutrina,
da política nacional de resíduos sólidos. Lei n.º 12.305/2010. São Paulo: Atlas, 2013. p. 3. legislação e jurisprudência. 5. ed. Neterói, RJ: Impetus, 2013. p. 158.
REVISTA DO MPBA 224 225 REVISTA DO MPBA
A OMISSÃO DOS PREFEITOS NO ENFRENTAMENTO E RESOLUÇÃO DOS LIXÕES E A CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA A OMISSÃO DOS PREFEITOS NO ENFRENTAMENTO E RESOLUÇÃO DOS LIXÕES E A CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

O art. 11 exige adequada interpretação, pois não seria razoável, por Neste sentido, oportunas as palavras do Prof. Emerson Garcia:11
exemplo, entender que a simples violação ao princípio da legalidade, É voz corrente que no constitucionalismo contemporâneo o paradigma
por si só, ensejaria a caracterização de ato de ímprobo. normativo do “direito por regras” passou a coexistir com o denominado
Seria confundir os conceitos de improbidade administrativa e de “direto por princípios”. Como consequência dessa transição, constara-
legalidade. se que a norma comportamental poderá adequar-se de forma mais
Ressalta Marcelo Figueiredo que o legislador infraconstitucional peca célere às constantes modificações das relações sociais, evitando que
pelo excesso e acaba por dizer que ato de improbidade pode ser o emperramento normativo inviabilize ou comprometa o evolver social.
decodificado como “toda e qualquer conduta atentatória à legalidade, [...]
lealdade, imparcialidade etc. Como se fosse possível, de uma penada, O amplo horizonte que se apresenta à atuação estatal e a quase
equiparar coisas, valores e conceitos distintos. O resultado é o arbítrio. total inviabilidade de uma produção normativa casuística quanto aos
Em síntese, não pode o legislador dizer que tudo é improbidade”. ilícitos passíveis de serem praticados pelos agentes públicos, não
No mesmo sentido, Mariano Pazzaglini Filho:10 poderiam ser erigidos como óbice à observância dos vetores básicos
da atividade estatal, razão de ser do próprio Estado Democrático de
Ilegalidade não é sinônimo de improbidade e a prática de ato funcional Direito. Sensível a tal realidade, optou o legislador por integrar o art.
ilegal, por si só, não configura ato de improbidade administrativa. 37, § 4o, da Constituição com preceitos que permitissem a imediata
Para tipifica-lo como tal, é necessário que ele tenha origem em subsunção, e consequente coibição, de todos os atos que violassem os
comportamento desonesto, denotativo de má-fé, de falta de probidade princípios condensadores dos deveres básicos dos agentes públicos.
do agente público. A desonestidade e a desídia, pejorativos ainda comuns entre alguns
agentes públicos, ramificam-se em vertentes insuscetíveis de serem
Igualmente, o Superior Tribunal de Justiça firmou jurisprudência de que a pura previamente identificadas. Soltas as rédeas da imaginação, é
ilegalidade, por si só, não configura improbidade, exigindo algo mais: inigualável a criatividade humana, o que exige a elaboração de normas
ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. que de adequem a tal peculiaridade e permitam a efetiva proteção dos
APLICABILIDADE AOS AGENTES POLÍTICOS. CERCEAMENTO interesses tutelados, in casu, o interesse público. É este, em essência,
DE DEFESA. ANÁLISE DE PROVAS. REVOLVIMENTO DE FATOS o papel dos princípios.
E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. CONFIGURAÇAO DO DESVIO DE
FINALIDADE. Assim, entendemos que a inapetência dos prefeitos, revelada na total omissão
1. […] em implementar os desideratos fixados na Lei n.º 12.305/2010, transcende a mera
2. […] ilegalidade, por omissão, revestindo-se dos contornos suficientes à configuração de
3. A jurisprudência do STJ, inclusive de sua Corte Especial, no sentido improbidade administrativa.
de que “não se pode confundir improbidade com simples ilegalidade. Isto porque subjaz a esse non facere uma violação ao dever de proteção ambiental,
A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento
bem como ao dever de proteção à saúde, direitos de primeira grandeza, expressamente
subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do
STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade,
consagrados na Constituição Federal (arts. 19612 e 22513).
que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas Deve-se ter em mente que a Lei n.º 12.305/2010 estabelece a Política Nacional
descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de Resíduos Sólidos e fixa, para os estados, Distrito Federal e municípios, igualmente,
de culpa grave, nas do artigo 10.” (AIA 30/AM, Corte Especial, DJe a obrigação de instituir políticas públicas que possibilitem a destinação ambientalmente
de 27/09/2011). Agravo regimental improvido. AgRg no AGRAVO EM adequada dos resíduos. A ideia de política nacional, estadual e municipal revela a
RECURSO ESPECIAL Nº 184.147 - RN (2012/0111058-0) intenção de transformação da realidade atual, que deve ser buscada por todos os entes
da federação. Verdadeira norma programática.
Fixados esses parâmetros na retentiva, faz-se necessário, então, perscrutar se a Nesse norte, o princípio da proteção ambiental, consagrado no art. 225, caput, da
omissão dos prefeitos municipais, ao não implementarem as medidas preconizadas pela CF, impõe ao Poder Público o dever de defender o meio ambiente e preservá-lo para as
Lei n.º 12.305/2010, estariam dando ensejo a uma simples ilegalidade ou a uma conduta presentes e futuras gerações, valores muito caros à sociedade e que, por conseguinte,
omissiva que se pode qualificar como ímproba. não podem ser negligenciados.
Pois bem, o art. 11 da Lei 8.429/1992 estabelece:
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra 11
Expressão cunhada por Emerson Garcia.
os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen
que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e
Juris, 2011. p. 312-313.
lealdade às instituições, e notadamente: - sem grifo no original. 12
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas
Importante trazer à baila que a ideia de “legalidade” entalhada no art. 11 da Lei n.o que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
8.429/1992, acima transcrito, é uma cláusula aberta, cuja interpretação deve, sempre, serviços para sua promoção, proteção e recuperação. – sem grifo no original
13
associar-se à ideia de interesse público. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
10 preservá- lo para as presentes e futuras gerações. (grifo nosso)
PAZZAGLINI FILHO apud NEIVA, op. cit., p. 160.
REVISTA DO MPBA 226 227 REVISTA DO MPBA
A OMISSÃO DOS PREFEITOS NO ENFRENTAMENTO E RESOLUÇÃO DOS LIXÕES E A CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA A OMISSÃO DOS PREFEITOS NO ENFRENTAMENTO E RESOLUÇÃO DOS LIXÕES E A CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

O gestor púbico que deixa de agir quando a lei exige o contrário, olvidando, 3 CONCLUSÃO
intencionalmente, o dever de proteção ambiental, assume, in casu, o paradigma da
omissão censurável, traduzindo-se não apenas em conduta ilegal, mas ímproba. Embora a doutrina ainda não se debruce com profundidade sobre a responsabilidade
É uma decorrência do bem jurídico tutelado (meio ambiente ecologicamente dos gestores públicos, perante a Lei n.º 8.429/1992, que dão causa a danos ambientais,
equilibrado), direito fundamental das presentes e futuras gerações, e cuja proteção não essa aplicação, como sustentado no presente trabalho, é possível e defensável,
deve ficar ao arrepio das vicissitudes dos gestores públicos, como se pudessem, ao seu especialmente se considerarmos a dignidade dos bens jurídicos tutelados pelas normas
bel prazer, decidir se ou quando agir. ambientais.
Nesse norte de ideias, fazemos nossas as palavras de Tarcísio Henriques Filho14, A Lei n.º 8.429/1992, no seu firme e valioso propósito de tutelar a probidade
para quem “a questão ambiental, pela sua importância e conformação atual, torna administrativa do trato da coisa pública, não pode ter seu conteúdo restringido.
imprescindível a aplicação e utilização da Lei de Improbidade Administrativa aos agentes Um exemplo dessa possível aplicação se dá nos casos em que os prefeitos
públicos envolvidos nas ações públicas de proteção do meio ambiente”. nada fizeram, durante seus mandatos, para uma gestão responsável e ambientalmente
Em que pese grande parte dos autores de direito ambiental não discorrerem sobre adequada do lixo, diante das obrigações instituídas pela Lei n.º 12.305/2010.
o tema, Luíz Paulo Sirvinska15 abre um capítulo específico em sua obra doutrinária para
abordar a “ação civil de responsabilidade por improbidade administrativa em matéria
ambiental”. Neste ponto, diz o seguinte:
REFERÊNCIAS
Esta ação civil passou a ser utilizada para a proteção do meio
ambiente. É mais um instrumento processual para se somar à ação
ABRELPE. Panorama dos resíduos sólidos no Brasil 2009. Disponível em: <http://www.
direta de declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, à
ação civil pública, à ação popular, ao mandado de segurança coletivo
abrelpe.org.br/panorma_2009.php >. Acesso em: 24 mar. 2011.
e ao mandado de injunção. Em 14 de julho de 1998, o ilustrado GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 6. ed. Rio de
Promotor de Justiça, Dr. Sérgio Turra Sobrane, propôs, em caráter Janeiro: Lumen Juris, 2011.
pioneiro, a primeira ação civil de responsabilidade por improbidade
administrativa em matéria ambiental, com pedido liminar, em face da HENRIQUE FILHO, Tarcísio. Boletim Científico ESMPU, Brasília, ano 10, n. 36, p. 29-52,
então Secretária Estadual do Meio Ambiente, da Coordenadora de Edição Especial, 2011.
Licenciamento Ambiental e Proteção de Recursos Naturais (CPRN),
da Diretora do Departamento de Avaliação de Impacto Ambiental IBGE. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2000. Disponível em: <http://www.ibge.
(DAIA) e da Embraparque (Empresa Brasileira de Parques S/C Ltda.), gov.br/home/presidencia/noticias/27032002pnsb.shtm>. Acesso em: 15 mar. 2011 .
pedindo a nulidade da licença prévia irregularmente concedida à
Embraparque e a condenação por improbidade administrativa da
IBGE. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2008. Disponível em: <http://www.
Secretária, da Diretora e da Coordenadora. A empresa Embraparque ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb2008/PNSB_2008.pdf >.
pretendia construir um parque aquático na cidade litorânea de Acesso em: 24 out. 2014.
Itanhaém, no Estado de São Paulo, denominado Xuxa Water Park. MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 22. ed. São Paulo: 2014.
A ação foi julgada parcialmente procedente em primeira instância,
encontrando-se em trâmite na segunda instância. MARTINS, Juliana Xavier Fernandes; MURARI, Gabriel Garcia; BECHARA, Erika (Org.).
Não se pode perder de vista, ademais, o constante dever de reforçar, sempre, a Aspectos relevantes da política nacional de resíduos sólidos. Lei n.º 12.305/2010. São
força normativa do texto do art. 225 da Constituição Federal, no qual está expressamente Paulo: Atlas, 2013.
consignado que a “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado [...]
impondo-se ao Poder Público [...] o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. A gestão ambiental em foco: doutrina jurisprudência,
e futuras gerações” e que, para assegurar a efetividade desse direito, são relacionadas glossário. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
inúmeras incumbências ao Poder Público, além de diferentes sanções para aqueles que
atuam de forma lesiva ao meio ambiente (§§ 1o e 3o do art. 225 da CF). NASCIMENTO NETO, Paulo. Resíduos sólidos urbanos: perspectivas de gestão
intermunicipal em regiões metropolitanas. São Paulo: Atlas, 2013.

NEIVA, José Antonio Lisbôa. Improbidade administrativa: legislação comentada artigo


por artigo: doutrina, legislação e jurisprudência. 5. ed. Niterói: Impetus, 2013.

SIQUEIRA, Lyssandro Norton. Dos princípios e instrumentos


da política nacional de resíduos sólidos. Disponível em <http://
w w w. r e v i s t a d i r. m c a m p o s . b r / P R O D U C A O C I E N T I F I C A / a r t i g o s /
lisandronortonsiqueiradosprincipioseinstrumentospoliticanacionalresiduossolidos.pdf>.
14
Acesso em: 24 out. 2014.
HENRIQUE FILHO, Tarcísio. Boletim Científico ESMPU, Brasília, ano 10, n. 36, p. 29-52, Edição Especial,
2011.
15
SIRVINSKAS, Luíz Paulo apud HENRIQUE FILHO, op. cit.
REVISTA DO MPBA 228 229 REVISTA DO MPBA
POSSIBILIDADE/NECESSIDADE DE RECOMENDAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ÀS ESCOLAS PÚBLICAS PARA INCLUSÃO NOS CALENDÁRIOS
LETIVOS DAS ATIVIDADES PEDAGÓGICAS CORRESPONDENTES ÀS COMEMORAÇÕES DA SEMANA DAS FAMÍLIAS

POSSIBILIDADE/NECESSIDADE DE RECOMENDAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO evidências de numerosas pesquisa, bem como produzam mecanismos de combate à
ÀS ESCOLAS PÚBLICAS PARA INCLUSÃO NOS CALENDÁRIOS LETIVOS DAS exclusão de toda natureza, através de ações destinadas a promover o acesso à Justiça
ATIVIDADES PEDAGÓGICAS CORRESPONDENTES ÀS COMEMORAÇÕES DA como forma de garantir direito consagrado em sede constitucional, qual seja, a educação
SEMANA DAS FAMÍLIAS cidadã.
Ademais, o promotor de justiça tem o dever de zelar pelo efetivo respeito aos
Inocêncio de Carvalho Santana* direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes (art. 129, II, da CF),
promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis, dentre elas, àquelas dirigidas
EMENTA a assegurar a convivência familiar e comunitária (art. 19 do ECA); o direito à educação
Este estudo focaliza as representações sociais dos alunos do ensino médio acerca dos (art. 53 do ECA) e o acesso à justiça (art. 141 do ECA).
conceitos de entidades familiares e suas diversas formas de organização, bem como as Imbuído deste propósito, foi realizada a presente pesquisa junto a comunidade
representações sociais dos professores a respeito das causas da indisciplina e violência escolar do Colégio Amélia Amado, situada na Avenida Kennedy, s/n, Bairro São Caetano,
escolar, para daí, buscar os fundamentos fáticos e jurídicos que justifiquem a expedição município de Itabuna – Bahia, com uma amostra de 361 alunos da mencionada instituição
de Recomendação pelo Ministério Público às Escolas Públicas, no sentido destas educacional pública, durante o primeiro semestre do ano letivo 2015, período em que se
incluírem em seus calendários letivos a comemoração da semana das famílias. foram desenvolvidas as ações correspondentes ao Programa Faculdade sem Muros e
Direitos das Minorias: Aulas de Cidadania.
PALAVRAS CHAVES: Representações Sociais. Escola. Família. Justiça. Educação Na coleta de dados, aplicaram-se juntos aos sujeitos da pesquisa o processo do
Inclusiva. psicodrama, bem como outros meios lúdicos, visando apreender as representações sobre
as suas próprias famílias e o conceito construído de família através das forças externas
(Igreja, Estado, Escola…) e, nas dimensões da informação, campo das representações
INTRODUÇÃO sociais e atitudes dos sujeitos diante de casos ilustrados através de gravuras, a partir das
diversas possibilidades de constituir família.
É certo que a escola é lugar de conflitos, mas também de prevenção e mediação Os resultados apontam contradições e ambivalências entre os sentimentos e as
de conflitos (CHRISPINO; CHRISPINO, 2011), como meios de todos aprenderem a atitudes dos alunos em relação ao fenômeno. Indicam, ainda, que a representação social
conviver. Todavia, estas considerações não obscurecem o fato de que a escola é também do conceito de família, para grande parte dos sujeitos, ainda passa pela consideração do
um grupo associativo, capaz de criar profundos laços entre seus membros e de reforçar modelo tradicional, normatizada, hierarquizada, patrimonializada, sexista e patriarcal, e,
as pontes construídas por meio da comunicação entre gerações. Desse modo, a escola que dá direito a probabilidade de pensar outros modelos de família “fora da lei”, indicando
não só está unida pela coesão entre os seus membros, como também promove coesão a necessidade da capacitação de professores, funcionários, diretores no âmbito da
social ao confundir valores, sentimentos, normas, atitudes e padrões de comportamento formação inicial e continuada, para lidar adequadamente com a problemática do processo
comuns. Se não fosse, os laços sociais se romperiam ainda mais. de exclusão dos modelos não normatizados de família, ou ainda que normatizados, não
Com a família em mudanças de papéis e em processos de profunda reorganização, bem admitidos no seio social, o que produz o preconceito e a violência, no cotidiano
pergunta-se: em que grupos sociais poderíamos encontrar a convivência entre as escolar, bem ressignificar o conceito de família por parte dos operadores do direito,
gerações? Para que isso se realize, a escola precisa ter um clima agradável, através da sobretudo daqueles que operam no âmbito das varas de família e da Criança e do
admissão do respeito às diferenças, e que dessa forma, possam interagir com as famílias Adolescente.
e a comunidade e estreitar laços. O contrário significa ter os seus membros ameaçados, Doutra banda, buscou-se identificar as representações sociais dos professores,
num ambiente pouco propício à formação de valores. numa amostra de cinquenta participantes da pesquisa, a cerca das causas da indisciplina e
Conquanto as funções do operador do Direito não sejam as de um pedagogo da violência escolar, com o fito de fortalecer a necessidade/possibilidade de aproximação
(embora, também cumpra funções educativas), é relevante conhecer e ressignificar a entre as famílias e as instituições de educação, por intermédio do Ministério Público.
escola, como espaço público, mas em interdependência com a família e a justiça, numa
interação capaz de ser percebida, portanto, como um dos mais importantes agentes
socializadores da criança e do adolescente, por tratar-se de um espaço da cidadania,
conforme definido por Souza Santos (citado por Rosa, 2004, p. 31): “o espaço da
cidadania é constituído pelas relações sociais da esfera pública entre cidadãos e o
Estado” que superaram a violência e/ou que a evitaram (CALVÃO et al; 2010), segundo

*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, Professor da Universidade Estadual de
Feira de Santana/Ba, Especialista em Direito Público/UCSAL, Mestrando em Segurança Pública, Justiça e
Cidadania/UFBA e Bacharel em Psicologia/Unime.
REVISTA DO MPBA 230 231 REVISTA DO MPBA
POSSIBILIDADE/NECESSIDADE DE RECOMENDAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ÀS ESCOLAS PÚBLICAS PARA INCLUSÃO NOS CALENDÁRIOS POSSIBILIDADE/NECESSIDADE DE RECOMENDAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ÀS ESCOLAS PÚBLICAS PARA INCLUSÃO NOS CALENDÁRIOS
LETIVOS DAS ATIVIDADES PEDAGÓGICAS CORRESPONDENTES ÀS COMEMORAÇÕES DA SEMANA DAS FAMÍLIAS LETIVOS DAS ATIVIDADES PEDAGÓGICAS CORRESPONDENTES ÀS COMEMORAÇÕES DA SEMANA DAS FAMÍLIAS

1 DO PROGRAMA FACULDADES SEM MUROS E DIREITOS DAS MINORIAS: AULAS 2 DO CONTEÚDO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E SUAS DIMENSÕES
DE CIDADANIA
As representações sociais compreendem um campo de estudo que se destina a
Os dados da presente pesquisa foram colhidos na oportunidade que se desenvolveu uma crítica capaz de romper com a forma de pensamento tradicional e hegemônico e de
duas das ações do Programa Faculdades sem Muros e Direitos das Minorias: Aulas de conceber o sujeito separado do seu contexto social.
Cidadania, juntos aos alunos e professores do ensino médio e fundamental do Colégio Essa postura crítica assumida por Moscovici constitui o ponto de partida para
Dona Amélia Amado, situada na Av. Kennedy, Bairro São Caetano, no município de construção da teoria das representações, que afirma não existir separação entre o
Itabuna, com 996 alunos matriculados no ensino médio. universo interno do indivíduo e o universo externo a este.
Embora, os dados da presente pesquisa tenham coletados por meio de uma das A teoria, em tela, propõe uma articulação entre o psicológico e o social, assim,
ações do Programa Faculdades sem Muros e Direitos das Minorias: Aulas de Cidadania, considera inseparáveis sujeito, objeto e sociedade.
é necessário destacar que todas as ações do aludido programa busca a interação Moscovici (1995), diz sentir repulso diante do dualismo estabelecido entre o
da Escola, Família, Comunidade e Justiça, com o propósito de divulgar e se fazer mundo individual e o mundo social. Sua intenção é desenvolver uma psicossociologia
reconhecidas e legitimadas, todos os modelos de organização familiar, por intermédio do conhecimento que considere tanto os comportamentos individuais, quanto os fatos
do discurso da pluralidade ideológica, do princípio da dignidade humana e do exercício sociais. Não importa apenas a influência, unidirecional, dos contextos sociais sobre
da cidadania. os comportamentos individuais, mas a participação destes na construção das próprias
Ademais, ao final do ano letivo, a Diretoria da Escola beneficiada com o programa realidades sociais (SÁ, 1995).
formaliza um Termo de Ajustamento de Conduta, se comprometendo a incluir no plano Na perspectiva psicossociológica proposta por Moscovici, os indivíduos não
pedagógico dos anos vindouros a Semana das Famílias, oportunidade que se propõe são apenas processadores de informações, mas pensadores ativos que “produzem e
a desenvolver atividades pedagógicas que promovam a integração entre a Escola e as comunicam incessantemente suas próprias representações e soluções específicas para
Famílias. as questões que se colocam a si mesmo” (MOSCOVICI, 1984a, p.16 apud SÁ, 1995,
Dito isto, faz-se necessário apresentar o mencionado programa em sua inteireza, p.28).
ainda que em síntese. A teoria conduz um novo olhar aos objetos a que se propõe compreender, traz à tona
O Projeto Faculdade sem Muros e o Direito da Minoria: Aulas de Cidadania, elementos importantes para compreensão das construções sociais, além de preencher
constitui numa ação estratégica que visa promover a cidadania e o acesso à Justiça por lacunas abertas pela chamada crise dos paradigmas (DOMINGOS SOBRINHO, 1998),
meio de diálogo entre a escola pública, a família, o Ministério Público, o Poder Judiciário, contribuindo ainda para a formulação de novas hipóteses, sobre os vários problemas
e o espaço acadêmico. presentes na sociedade contemporânea.
Assim, o programa possui duas linhas de atuação: Guareschi (1996) apoiado na produção de De Rosa (1994) apresenta três níveis
1) FAMÍLIA LEGAL compreende ações de: assistência judiciária gratuita, por em que as representações sociais podem ser discutidas e/ou analisadas. Seriam eles: o
meio do ingresso de ações de mediação com o fito de regularizar as relações familiares nível meta-teórico, o nível teórico e o nível fenomenológico.
(alimentos, execução de alimentos, divórcio, guarda, tutela, adoção, retificação e O nível meta-teórico refere-se a um nível mais abstrato. Nele cabem as críticas
assentamento de registro civil, curatela), além de promover a celebração de casamentos e refutações aos postulados e pressupostos teóricos e epistemológicos da teoria em
coletivos com casais que estejam vivendo sob união estável, inclusive com a realização questão.
de solenidade matrimonial, a lavratura de escritura de união estável, bem como a O nível teórico constitui o conjunto de definições conceituais e metodológicas,
realização de exame de DNA e o devido reconhecimento voluntário de paternidade. assim como a elaboração de construtos no referente às representações sociais. Nesse
2) EU SOU GENTE: O ECA NA ESCOLA consiste em ações que assegurem a nível, a representação social é tomada como teoria.
divulgação e efetividade do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), por meio de No nível fenomenológico, a representação é tomada como um fenômeno.
formação de grupo de teatro com alunos, de capacitação dos professores no tocante Fenômeno este que se evidencia nos modos de conhecimentos, saberes do senso
ao reconhecimento das diversas formas de se instituir família, realização de ciclos para comum e nas explicações populares. Ela é um fenômeno que existe, mas do qual, muitas
debater o valor jurídico dos afetos, além de palestras na escola com a participação de vezes, nem se dá conta de sua existência. Estudá-la é imprescindível sob forma de
alunos, pais e mestres atinentes a temas diversos sugeridos pela direção da escola. entendermos e explicarmos porque as pessoas fazem o que fazem.
O Programa foi desenvolvido, inicialmente, na Comarca de Ibicaraí – Bahia pelo Em resumo, a teoria das representações sociais parte da diversidade dos indivíduos,
período compreendido entre os anos de 2000 a 2006, vem sendo desenvolvido na das atitudes e dos fenômenos, considerando sua estranheza e imprevisibilidade, para
Comarca de Itabuna – Bahia, desde o ano de 2007. No ano de 2013, houve uma edição tentar descobrir de que forma indivíduos e grupos podem construir um mundo estável e
especial, na Comarca de Camaçari – Bahia. previsível nesse contexto (MOSCOVICI, 2003).
A pesquisa objeto deste trabalho insere-se na dimensão fenomenológica de análise
e discussão das representações sociais, qual seja, a que toma as representações sociais
como objeto da realidade social e visa a identificar os elementos que as constituem, em
REVISTA DO MPBA 232 233 REVISTA DO MPBA
POSSIBILIDADE/NECESSIDADE DE RECOMENDAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ÀS ESCOLAS PÚBLICAS PARA INCLUSÃO NOS CALENDÁRIOS POSSIBILIDADE/NECESSIDADE DE RECOMENDAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ÀS ESCOLAS PÚBLICAS PARA INCLUSÃO NOS CALENDÁRIOS
LETIVOS DAS ATIVIDADES PEDAGÓGICAS CORRESPONDENTES ÀS COMEMORAÇÕES DA SEMANA DAS FAMÍLIAS LETIVOS DAS ATIVIDADES PEDAGÓGICAS CORRESPONDENTES ÀS COMEMORAÇÕES DA SEMANA DAS FAMÍLIAS

em termos de seu conteúdo propriamente dito (OLIVEIRA; WERBA, 2003). Em relação às respostas obtidas por meio da primeira atividade, o desenho
da família, pôde-se verificar que 35,7% dos alunos desenharam o modelo de família
3 DO MÉTODO anaparental (relação que possui vínculos de parentesco, mas não possui vínculo de
ascendência e descendência. É a hipótese do adolescente que vive com os avos, tios
PARTICIPANTES ou irmãos); 24,9% esboçaram a família monopárental (é a relação protegida pelo vínculo
de parentesco de ascendência e descendência. É a família constituída por um dos pais
Os participantes deste estudo foram 361 (trezentos e sessenta e um) alunos/ e seus descendentes); 22,5% traçaram a natural (grupo constituído por pais biológicos
adolescentes, com idades entre doze a dezessete anos, estudantes do ensino médio, e filhos); 15,6% traçaram a família pluriparental (é a entidade família que surge com os
além de 50 (cinquenta) professores. desfazimentos de anteriores vínculos familiares e a criação de novos vínculos, onde
pode existir a figura do padrasto, madrasta, enteados); por fim, 1,3% desenharam a
PROCEDIMENTOS E MATERIAL família homoafetiva (aquela decorrente da união de pessoas do mesmo sexo).
No tocante às respostas colhidas a partir da segunda atividade, a escolha da
O experimentador apresentou-se como promotor de justiça e professor das gravura que representa uma família, foram obtidos os seguintes resultados: 55,12%
Instituições de Ensino Superior (IES) parceiras do programa e, em companhia dos dos participantes da pesquisa escolheram gravuras que ilustravam a família natural;
alunos das IES, colaboradores da ação, os quais também foram apresentados, explicou enquanto, 19,94% escolheram gravuras que representavam a família monoparental;
que estavam realizando uma pesquisa com os jovens estudantes daquela escola pública 18,83%, gravuras que demonstravam família anaparental e 6,09%, gravuras que exibiam
e, nesta condição, selecionados pela direção da escola, haveria, além daquele encontro, o modelo de família pluriparental.
mais dois outros, com a divulgação do calendário desses futuros encontros. Já no que se refere a atividade escrita, ou seja, redigir em dez linhas acerca do
Desta forma, os alunos das faculdades parceiras, juntamente, com o coordenador tema proposto, “Para mim, Família é...” os critérios mais frequentes para a qualificação
do projeto, escritor do presente articulado, durante três encontros com os sujeitos da do grupo familiar são: o lar, a casa, o compartilhamento do espaço doméstico e a relação
pesquisa, aplicam as seguintes atividades: a) no primeiro encontro, é solicitado aos de assistência. Enquanto a atividade caracterizada pelo psicodrama, os participantes
alunos/sujeitos da investigação que cada um desenhe sua família e identifique a relação elegem critérios de hierarquia, com mais frequência, para caracterizar situações por eles
de parentesco que mantêm com os membros daquele grupo; b) no segundo encontro, os criadas e demonstrar a relação da família com a Escola.
alunos são posicionados em ciclo e os estudantes das Instituições de Ensino Superior, Por fim, os professores, através de entrevista estruturada, foram convidados
colaboradores da pesquisa, colocam, no centro, diversas gravuras que representam a responder a seguinte pergunta: Na condição de educador, em sua opinião, qual a
diversos modelos de família (família tradicional, família monoparental, anaparental, principal causa da indisciplina e violência escolar por parte dos alunos?
pluriparental, homoafetiva, dentre outras), e, em seguida, é solicitado dos alunos Dentre as respostas, encontravam-se as seguintes alternativas: (a) O aluno
adolescentes que cada um escolha uma gravura que melhor representa uma família; tem muitas informações e a escola tradicional se torna monótona, desinteressante e
c) por fim, no terceiro momento, os alunos colaboram escrevendo, em dez linhas, uma ultrapassada; (b) O aluno não se sente ameaçado por nenhuma instância de poder,
redação com o título: “Para mim família é…’’. Em seguida, os alunos são divididos em uma vez que é extremamente protegido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente; (c)
grupo e deles são solicitados que criem uma situação que envolva a família e a escola, A escola não possui autoridade para punir com mais severidade o aluno, pois o sistema
discutam uma hipótese imaginada e, uma vez debatida, ao final, representem, através de limita muito a autonomia da escola; (d) A falta de estrutura na família é a única causa, as
uma linguagem teatral, aquela situação hipotética. demais são decorrentes.
A análise dos dados foi realizada através da leitura dos resultados apresentados, Desta última fase da pesquisa, foram obtidos os seguintes resultados: 29 (vinte
logo, procurou-se destacar as tendências gerais de resposta a cada parte das atividades, e nove) professores responderam que a única causa da indisciplina e violência escolar
ou seja, os modelos de família mais desenhados, bem como, os modelos mais escolhidos é a falta de estrutura na família e as demais são decorrentes (alternativa d), o que
através das gravuras. equivale 58% dos entrevistados; 12 (doze) responderam a letra b, ou seja, entendem
Na sequência, a análise se deu através das associações entre cada desenho e que o aluno não se sente ameaçado por nenhuma instância de poder, uma vez que são
gravura, comparando com o fito de elucidar a (in)compatibilidade entre o modelo de extremamente protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o que equivale 24%
família desenhado e o representado por meio da gravura. dos entrevistados. Por fim, 09 (nove), responderam com a alternativa c, pois associam
Por fim, foram analisadas as redações, cujo tema, Para mim, Família é…, com a indisciplina e violência escolar, a falta de autonomia da escola, uma vez que esta
propósito de aferir os critérios utilizados para elaboração do conceito de família (afeto, não possui autoridade para punir com mais severidade o aluno, por força do sistema, o
hierarquia, consanguinidade, assistência material, religiosidade, dentre outros). correspondente a 18% dos participantes.

REVISTA DO MPBA 234 235 REVISTA DO MPBA


POSSIBILIDADE/NECESSIDADE DE RECOMENDAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ÀS ESCOLAS PÚBLICAS PARA INCLUSÃO NOS CALENDÁRIOS POSSIBILIDADE/NECESSIDADE DE RECOMENDAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ÀS ESCOLAS PÚBLICAS PARA INCLUSÃO NOS CALENDÁRIOS
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DISCUSSÃO dialógica e cultural. Mas este diálogo só pode se efetivar e produzir frutos se forem
criadas condições de aproximação, acolhimento, respeito e protagonismo da família
Referente à situação posta na primeira atividade, desenhar a família que se tem, junto à instituição educadora.
os resultados obtidos quando comparados com a situação favorecida pela segunda Nesse ponto, a teoria das Representações Sociais encontra campo fértil para
atividade, a escolha da gravura que representa família, foi possível observar certa atuação e pesquisa, no sentido de permitir a reflexão a respeito do que já existe sobre
discrepância nas respostas, quando os participantes tiveram que esboçar a família real família, ou seja do que está posto, bem como fornecer indícios para reconhecer que
(aquele modelo de família a qual pertence) e a família do imaginário (o modelo de família novas Representações Sociais possam ser construídas. Não podemos esquecer que
do campo ideal). as Representações Sociais envolvem crenças, valores e imagens, relacionando estes
Por outro lado, salienta que foi percebida uma incongruência entre as respostas aspectos entre si, procurando explicar de que modo estes elementos surgem na
mais frequentes emitidas para a terceira atividade, pois ao redigirem a conceito de consciência dos indivíduos.
família não se utilizam do critério de consanguinidade para assim defini-la, embora ao
eleger a família do campo imaginário, através da escolha da gravura, elegem, com mais Assim, as notícias sociais trazem ao nosso conhecimento o que acontece no
frequência, o modelo de família natural. mundo e como lidamos com estes fatos, já que, direta ou indiretamente, eles afetam o
Já, em relação, a oportunidade de representar uma situação que envolva a família comportamento e a própria Representação Social do humano.
e a escola, se utilizam, com mais frequência, do critério de hierarquia dos seus familiares Concluindo, essa pesquisa permitiu conhecer, em parte, quais são as
(pais, avós, tios, enfim, cuidadores) quando estes participam das reuniões de pais e representações sociais de família para esse grupo de alunos e as percepções dos
mestres, ao receberem as notas ou queixas dos professores por partes dos alunos por professores no tocante aos fatores causadores da indisciplina e da violência escola,
força de comportamentos inadequados. associadas às famílias dos educandos.
Independentemente da configuração familiar, tanto o Estado quanto a Escola As respostas vieram confirmar a preocupação observada durante a prática
exercem grande influência na educação dos indivíduos e, deste modo, é importante que do Programa Faculdade sem Muros e Direitos das Minorias: Aulas de Cidadania, na
estabeleçam uma relação de colaboração pautada na cooperação e respeito mútuo, que condição de promotor de justiça e professor coordenador de que o discurso teórico é
se reflita, positivamente, na vida do sujeito, sobretudo na sua autoestima e respeito às moderno e flexível, mas quando é momento de declarar abertamente o pensamento
diversas formas de organização familiar, desconstruindo e estripando preconceitos. daqueles a quem se dirigem as ações do programa, acerca da temática família, o
Na gênese destas representações, residem idealizações docentes quanto aos discurso não se sustenta, permanecendo a representação construída de que a família
alunos e suas famílias, consideradas como reserva moral e produtora de moralidade ideal é a família tradicional e que a escola encontra-se divorciada dos modelos de família
social. Isto está a indicar que a escola se mostra apta para trabalhar apenas com alunos dos discentes. Nesse ponto, é relevante desenvolver um trabalho de reflexão dos que
que já apresentam o principal valor requerido por essa instituição: um perfil econômico promovem a justiça e a educação, considerando que a atuação dos operadores do direito
e cultural que se distanciam da realidade da maioria dos discentes da escola pública e da educação irá se refletir na construção das Representações Sociais dos atores do
brasileira. Assim, os indicadores apontam que os docentes baseiam-se numa visão de processo educativo.
mundo característica da classe média, construindo imagens preconceituosas a respeito É a partir dai que se propõe a expedição de Recomendação do Ministério Público,
dos alunos das classes populares e de suas famílias, não refletindo sobre suas condições no sentido das escolas incluírem nos seus calendários letivos a semana de comemoração
materiais de existências, valores e interesses. Portanto, percepções que distanciam as e celebração das famílias, com atividades pedagógicas dirigidas a admissão e respeito
famílias dos alunos da escola. à diferença, o que certamente terá efeitos sobre as crianças/adolescentes, os pais e a
escola.
É propício a proposta da Semana da Família, principalmente se considerando que
CONSIDERAÇÕES FINAIS estamos numa época de novas configurações familiares, numa época em que não temos
mais aquela configuração tradicional. Portanto, as escolas devem fazer tentativas de se
Com base nos resultados obtidos com a aplicação dos dois instrumentos utilizados adaptar e também fazer com que as crianças/adolescentes possam se adequar à nova
na presente pesquisa, foi possível identificar representações sociais acerca de família, realidade.
pelas respostas dos alunos pesquisados, evidenciando o quanto a família, organizada Logo, jurídica e pedagogicamente, a adoção do sistema de comemorar a Semana
nos moldes tradicionais, seria a maneira mais correta de ser e estar família, conforme o da Família na escola funciona como um compromisso com a formação do sujeito.
imaginário. Dessa maneira, percebe-se que as Representações Sociais de família, para Psicologicamente, possibilita ao indivíduo conviver com a diversidade e, didaticamente
para esse grupo de alunos ainda têm, em sua maioria, uma conotação de tradicionalismo aproxima a família da escola, o que corresponde fator positivo na construção da
para que seja considerada uma família, em seu sentido pleno. aprendizagem e num ambiente escolar mais harmonioso e assim, quiçá atender aos
princípios de ordem constitucional que seria a construção de uma sociedade plural
Por outro lado, as representações sociais dos professores representam entraves pautada na democracia e na cidadania.
à construção de uma escola democrática, o que pode ser superado a partir de uma ação
REVISTA DO MPBA 236 237 REVISTA DO MPBA
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LETIVOS DAS ATIVIDADES PEDAGÓGICAS CORRESPONDENTES ÀS COMEMORAÇÕES DA SEMANA DAS FAMÍLIAS

REFERÊNCIAS PRECEDENTE JUDICIAL: IMPORTÂNCIA E EFICÁCIA JURÍDICA DO SISTEMA DE


PRECEDENTES DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Paulo Daniel S. da Silva*
Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constituicao.htm>. EMENTA
O presente trabalho tem por escopo demonstrar, de maneira sucinta, a importância da
______. Lei n. 8.086, de 13 de julho de 1990. Dispões sobre o Estatuto da Criança positivação do sistema de precedentes judiciais criado a partir da aprovação da Lei nº
e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ 13.105/2015, Novo Código de Processo Civil. Demonstra-se que há um sentimento
ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm>. generalizado, refletido no legislativo federal, da necessidade de dar maior agilidade
CHRISPINO, Alvaro; CHRISPINO, Raquel S. P. A mediação do conflito escolar. 2. ed. e efetividade às decisões judiciais, primando por garantir aos jurisdicionados maior
São Paulo: Biruta, 2011. segurança quando da constituição de relações jurídicas e isso pode ocorrer com
uma nova legislação processual. Apesar da relutância dos órgãos de classe quanto
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Ensaio: Avaliação de políticas públicas, Rio de Janeiro, v. 18, n. 68, p. 425-442, jul./set. constitucionais, como o da igualdade de tratamento perante o Poder Judiciário, sejam de
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MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. PALAVRAS-CHAVE: Precedentes judicias; jurisprudência; coerência; integridade;
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NOTAS INTRODUTÓRIAS AO SISTEMA DE PRECEDENTES DO NOVO CÓDIGO DE
SÁ, Celso Pereira A. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1996. PROCESSO CIVIL
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Desde o início da tramitação do projeto do Novo Código de Processo Civil seus
SANTOS, Boaventura de Sousa. O Estado, o direito e a questão urbana, Revista Crítica idealizadores pretendiam primordialmente a simplificação e a celeridade dos processos
de Ciências Sociais. v. 9, n. 9, 1982. judiciais. Concretizando-se tal desiderato, assegurar-se-ia, em tese, a desejada
ROSA, M.V.F.P. A Instituição como via de acesso à comunidade: da solidariedade à efetividade dos direitos.
Autonomia. 2. ed. Petrópolis: vozes, 1998. De maneira geral, o que se percebeu é que a “decisão política de instituir uma
renovação na legislação funda-se em um descontentamento geral, tanto técnico como
social com a distribuição de justiça no Brasil”1.
A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, houve uma explosão de
litigiosidade. Nas palavras de Cambi e Fogaça era de suma importância a adoção, “para
assegurar maior racionalidade e efetividade ao sistema processual, bem como ampliar
os níveis de confiança jurídica”2, a instituição um sistema de precedentes.

*
Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Pós-Graduando em Direito Processual
Civil, pela Universidade Anhanguera-Uniderp/LFG, Assistente Técnico-administrativo do Ministério Público
do Estado da Bahia.
1
MACÊDO, Lucas Buril de. A Disciplina dos Precedentes Judiciais no Direito Brasileiro: do Anteprojeto ao
Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Fredie et al (Org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3,
p. 460. (Coleção grandes temas do novo CPC).
2
CAMBI, Eduardo Augusto Salomão; FOGACA, M. V. Sistema de precedentes judiciais obrigatórios no Novo
Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Fredie et al (Org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3,
p. 337. (Coleção grandes temas do novo CPC).
REVISTA DO MPBA 238 239 REVISTA DO MPBA
PRECEDENTE JUDICIAL: IMPORTÂNCIA E EFICÁCIA JURÍDICA DO SISTEMA DE PRECEDENTES DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL PRECEDENTE JUDICIAL: IMPORTÂNCIA E EFICÁCIA JURÍDICA DO SISTEMA DE PRECEDENTES DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Aí está, possivelmente, uma das maiores inovações do Novo Código de Processo Para Didier, trata-se de um rol exemplificativo, já que “embora não conste na
Civil: a regulamentação dos precedentes judiciais. O precedente judicial seria, então, listagem da lei, os precedentes cujo entendimento é consolidado na súmula de cada
“como uma representação de um caso decidido no passado que serve de orientação um dos tribunais (ainda que não seja tribunal superior) têm forma obrigatória em relação
para uma decisão futura”3. Além disso, o precedente caracteriza-se por “sua natureza ao próprio tribunal e aos juízes a eles vinculados”7. O citato doutrinador ampara-se no
transcendental, capaz de irradiar seus efeitos para além do caso concreto que o originou”. que prevê o art. 926, CPC, que versa sobre a uniformização da jurisprudência de cada
Seguindo a mesma linha, em sentido amplo, pode-se conceituar o precedente tribunal.
judicial como “a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento Tal posicionamento foi encampado pelo Fórum Permanente de Processualistas
normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”4. Civis, através do enunciado n. 169: “Os órgão do Poder Judiciário devem obrigatoriamente
Não resta dúvida que a promoção da estabilidade no ordenamento jurídico seguir os seus próprios precedentes”.
processual pode ser alcançada com um sistema de precedentes judiciais. Garante-se, A partir da Lei 13.105/2015 (NCPC) “o direito brasileiro adotou um modelo
a partir da aplicação do, entre outros, art. 927 da Lei 13.105/2015, a não ocorrência da normativo de precedentes formalmente vinculantes que passarão a constituir fonte
jurisprudência lotérica 5. primária no nosso ordenamento”8. Trata-se, sem a menor sombra de dúvidas, de uma
Muito embora os arts. 926, 927 e 928, do NCPC não tratem expressamente do mudança paradigmática de suma importância.
sistema de precedentes, pois cuidam de jurisprudência, eles são, com certeza, a porta O quanto insculpido no art. 927 não é mero conselho, mas trata de imposições ao
de entrada para o stare decisis6. que deve ser seguido por juízes, Desembargadores e Ministros, quando da elaboração
A título de exemplo do que ora se afirma, determina o art. 926: “Os Tribunais devem de suas decisões. Com isso, identifica-se a normatividade dos precedentes; a sua
uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Está estabelecido, vinculatividade; e o seu caráter de fonte formal.
a partir de então, “um dever geral de tutelar a segurança jurídica nas decisões judiciais, Nos ensinamentos da melhor doutrina, “a finalidade desta mudança está em
marcadamente nos posicionamentos dos tribunais”. assegurar racionalidade ao direito e, ao mesmo tempo, reduzir a discricionariedade
Consequentemente à aplicação do citado dispositivo, as decisões judiciais, judicial e o ativismos subjetivista e decisionista”9. Não à toa, o art. 489, § 1º fala em
principalmente dos juízes de 1º grau, não podem ser conflitivas, muito menos “fundamentos determinantes” e “distinção e superação”.
inconsistentes, já que há o dever de respeitar os princípios da uniformidade, coerência, Não obstante a doutrina já há muito defender a compreensão dos precedentes dos
integridade e estabilidade. órgãos superiores do judiciário como decisões de observância obrigatórias por parte dos
órgãos hierarquicamente inferiores, não se pode deixar de dar a importância devida às
PRECEDENTES OBRIGATÓRIOS NO DIREITO BRASILEIRO A PARTIR DO NOVO normas estabelecidas nos art. 926, 927, 928, NCPC.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Interpretando corretamente os dispositivos acima citados, e contextualizando-
os com o NCPC, “os precedentes normativos formalmente vinculantes são as decisões
A Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, inovou o ordenamento jurídico ao passadas (casos-precedentes) que tem eficácia normativa formalmente vinculante para
estabelecer um rol de precedentes obrigatórios. juízes e tribunais”. Em resumo, os casos previstos nos incisos do art. 927, NCPC, obrigam
O art. 927 do NCPC impõe, por parte dos juízes e tribunais a observância: e, portanto, são normativos.
a) das decisões do STF, quando houver julgamento de controle concentrado de Didier10, ao classificar os precedentes obrigatórios, ensina que os mesmos são:
constitucionalidade; b) das súmulas vinculantes deste Tribunal; c) dos acórdãos precedentes oriundos de decisões em controle concentrado de constitucionalidade pelo
em incidente de assunção de competência ou de IRDR (Incidente de Resolução de STF (art. 927, I, NCPC); precedentes cuja ratio decidendi foi enunciado em súmula
Demandas Repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (art. 927, II, e IV); precedentes produzidos por incidente em julgamento de tribunal:
d) os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria casos repetitivos e assunção de competência, que seria o microssistema de formação
infraconstitucional; e) bem como em relação às orientações dos plenários ou dos órgãos concentrado de precedentes formalmente obrigatórios (art. 927, III, NCPC) e; precedentes
especiais aos quais estiverem vinculados. oriundos do plenário ou do órgão especial (art. 927, V, NCPC).

3
CAMBI, Eduardo Augusto Salomão; FOGACA, M. V. Sistema de precedentes judiciais obrigatórios no Novo
Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Fredie et al (Org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3,
p. 343. (Coleção grandes temas do novo CPC).
4
PRESGRAVE, Ana Beatriz Rebello. O precedente judicial e sua alteração: segurança jurídica e adequação 7
do direito. In: DIDIER JR., Fredie et al (Org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3, p. 441. (Coleção DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual
grandes temas do novo CPC). Civil. 13. ed. Salvador: Juspodvm, 2015. v.2, p. 461.
8
5
CAMBI; FOGAÇA, op. cit., p, 339. ZANET JR, Hermes. Precedentes Normativos formalmente vinculantes. In: DIDIER JR., Fredie et al (Org.).
6 Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3, p . 408. (Coleção grandes temas do novo CPC).
MACÊDO, Lucas Buril de. A Disciplina dos Precedentes Judiciais no Direito Brasileiro: do Anteprojeto ao 9
Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Fredie et al (Org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3, Ibidem, p. 410.
10
p. 472. (Coleção grandes temas do novo CPC). DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit, p, 463-466.
REVISTA DO MPBA 240 241 REVISTA DO MPBA
PRECEDENTE JUDICIAL: IMPORTÂNCIA E EFICÁCIA JURÍDICA DO SISTEMA DE PRECEDENTES DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL PRECEDENTE JUDICIAL: IMPORTÂNCIA E EFICÁCIA JURÍDICA DO SISTEMA DE PRECEDENTES DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Com o fito de assegurar a plena aplicabilidade do quanto disposto nos dispositivos Wambier ensina que “a liberdade que o sistema do civil law proporciona destina-
acima feridos (art. 927, do NCPC), faz-se necessário, em benefício do princípio da se ao Judiciário, e não ao juiz, individualmente considerado”15. As decisões resolvidas
legalidade, afirmar a sua normatividade. pelas Cortes Superiores devem ser seguidas pelos demais órgãos do judiciário, assim
respeitar-se-á o sistema positivado pelo novo Código de Ritos.

A VINCULATIVIDADE DOS PRECEDENTES E A INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL DOS


JUÍZES PROMOÇÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA A PARTIR DO NOVO CPC

Há nítida relutância dos órgãos de classe da magistratura, sob a justificativa Como já mencionado, idealizou-se, com a aprovação da Lei 13.105/2015 a
da independência funcional, no que se refere à observância, obrigatoriamente, dos simplificação e a celeridade dos processos judiciais. Não obstante, “dentre as razões
entendimentos dos tribunais superiores. Nesse sentido, questiona-se: “a imperativa principais que justificam a elaboração de um novo Código de Processo Civil, estão a
observância das decisões contidas no novo Código de Processo Civil, por si só, violaria promoção da segurança jurídica indispensável à proteção da igualdade substancial e da
a prerrogativa de liberdade funcional dos magistrados?”11. dignidade da pessoa humana”16.
É consenso na doutrina que o princípio da independência funcional do juiz serve É direito de todo cidadão que procura o Poder Judiciário na busca da resolução de
para, além de tudo, livrá-los de pressões institucionais ou corporativas. A liberdade seus conflitos a tranquilidade e a estabilidade das decisões. “O postulado da segurança
apregoada não é do juiz, mas do Poder Judiciário, e o direito deve ser igualmente jurídica deve ser concebido junto da proteção da confiança, como princípio constitutivo
aplicado para todos. do Estado Democrático de Direito”17. Trata-se da substancial aplicação do art. 5º, XXXVI,
Marinho pontua que “o empréstimo de efeito vinculante ao precedente judicial não da Constituição Federal do Brasil.
altera substancialmente a tarefa do juiz de interpretar a regra, para que se alcance o O objetivo da novel legislação processual é garantir certa previsibilidade quanto
melhor resultado de seu significado, adequando-o ao caso concreto”12, já que é natural à atuação do Estado-juiz. O indivíduo deve ter segurança quanto ao posicionamento do
que hajam interpretações díspares para o mesmo caso. Poder Judiciário para planejar sua conduta nas relações jurídicas e sociais constituídas.
Não se permite, portanto, com fundamento no princípio da segurança jurídica, é Para Fredie Didier Jr, o princípio da segurança jurídica “assegura o respeito não apenas
que essas interpretações divergentes sejam contemporâneas, contraditórias e aplicáveis a situações consolidadas no passado, mas também às legítimas expectativas surgidas e
a casos semelhantes, pois, agindo-se assim, o ideal de justiça estaria sendo negado. às condutas adotadas a partir de um comportamento presente”18.
Como já anteriormente afirmado, é direito dos cidadãos serem tratado igualmente, E arremata o citado doutrinador dizendo que “o respeito aos precedentes garante
sabendo de antemão qual norma lhe será aplicada pelo Poder Judiciário. ao jurisdicionado a segurança jurídica de que a conduta por ele adotada com base na
Para este doutrinador, há, de fato, “conflito e, de certa forma, transgressão à jurisprudência já consolidada não será juridicamente qualificada de modo distinto do
independência funcional dos juízes, quando adotado o modelo de teses ou precedentes que se vem fazendo”19. Para Cambi e Fogaça, “encontrar segurança jurídica significa
vinculantes”13, no entanto, trata-se de medida indispensável no sentido de se respeitar os ter direito à tranquilidade e à estabilidade na relação jurídica, às quais não podem ser
princípios da segurança jurídica e da igualdade, bens de maior grandeza se comparados modificadas sem critérios minimamente calculáveis”20.
à independência funcional dos magistrados. Para este estudioso, “a dignidade humana estará devidamente protegida e
Para a melhor doutrina, é dever dos juízes e tribunais se manifestarem de maneira respeitada quando a ordem jurídica possuir grau de estabilidade suficiente para o
institucionalizada, aplicando o direito com integridade e coerência. Para Wambier, “a cidadão depositar confiança nas instituições estatais”21 Esta estabilidade garantiria ao
liberdade dos magistrados cessa quando os Tribunais Superiores firma entendimento a jurisdicionado projetar melhor suas relações sociais.
respeito de como deve ser a decisão naquele caso: qual é a tese jurídica a ser adotada
para resolver aquela questão”14.

15
Ibidem, p. 274.
16
CAMBI, Eduardo Augusto Salomão; FOGACA, M. V. Sistema de precedentes judiciais obrigatórios no Novo
11
MARINHO, Hugo Chacra Carvalho e. A independência funcional dos juízes e os precedentes vinculantes. Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Fredie et al (Org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3,
In: DIDIER JR., Fredie et al (Org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3, p. 88. (Coleção grandes p. 340. (Coleção grandes temas do novo CPC).
17
temas do novo CPC). Ibidem, p. 340
18
12
Ibidem, p. 91. DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual
13
Ibidem, p. 95. Civil. 13. ed. Salvador: Juspodvm, 2015. v.2, p, 470.
20
14
WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. A vinculatividade dos precedentes e o ativismo judicial – paradoxo apenas Ibidem, p. 470.
21
aparente. In: DIDIER JR., Fredie et al (Org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3, p. 264. (Coleção CAMBI; FOGAÇA, op. cit. p, 340.
grandes temas do novo CPC) CAMBI; FOGAÇA, loc. cit.
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OS TRIBUNAIS E OS DEVERES GERAIS NO SISTEMA DE PRECEDENTES (art. 926, Os deveres de integridade e coerência servem para uma única finalidade: tornar
NCPC) a jurisprudência dos tribunais consistentes. Isso quer dizer que ambos são pressupostos
que podem conferir maior legitimidade à jurisprudência dos Tribunais.
O art. 926, do NCPC, ao inovar o ordenamento processual brasileiro, dispõe que Ao tratar da aplicabilidade dos deveres de coerência e integridade, no sentido de
são deveres gerais dos tribunais, dentro de um sistema de precedentes persuasivos que deve haver o abandono do famigerado livre convencimento motivado dos juízes,
e vinculantes: uniformizar sua jurisprudência, manter a jurisprudência estável, íntegra, Hermes Zaneti Jr. afirma que, bem compreendida, a jurisprudência atual nada mais é
coerente e publicizá-las. Nada mais que uma exigência de comportamento quando do que um conjunto reiterado de decisões, onde são revelados técnicas ultrapassadas, que
exercício judicial. prejudicam a racionalidade das decisões, que beneficia decisões individualizadas25.
O § 1º, do 926, acima citado, impõe aos tribunais o dever de uniformizar, no sentido Corroborando o quanto acima mencionado, observa-se que até mesmo o mesmo
de que o tribunal não pode se omitir quando houver divergência interna. Ocorre que para órgão fracionário de um tribunal, decide contrariamente às suas próprias decisões
o cumprimento deste dever os tribunais estão condicionados ao que enuncia o § 2º, do anteriores, escolhendo raciocinar pela exceção, ensejando todo tipo de subjetivismo e
art. 926, do NCPC. contradição. Há uma explícita negação ao dever de coerência.
É preciso compreender que “o objetivo é esclarecer que o correto exercício deste Ao raciocinar pela exceção, nega-se os deveres de integridade e coerência. A
dever de editar enunciados sumulares pressupõe a fidelidade do tribunal à base fática a primeira, entendida como não-contradição com as decisões anteriores; a segunda,
partir da qual a jurisprudência sumulada foi construída”22 compreendida em sentido amplo como a conformidade da decisão, com a unidade do
Para o Fórum Permanente Processualistas Civis, cabe aos tribunais manter uma ordenamento jurídico como um todo.
jurisprudência estável e as mudanças de posicionamentos devem ser adequadamente A coerência à qual os Tribunais têm o dever de aplicar, nada mais é que, do ponto
justificadas. É o que se vê do enunciado n. 316: “a estabilidade da jurisprudência do de vista externo, a concretização da aplicação do tratamento igualitário de todos os
tribunal depende também da observância de seus próprios precedentes, inclusive por jurisdicionados, o que quer dizer que casos iguais devem ser tratados igualmente. A
seus órgãos fracionários”. coerência também impõe que os tribunais, para até mesmo superar os precedentes,
Quanto ao dever de estabilidade, pode-se afirma que, estando consolidada, a precisam dialogar com os mesmos.
jurisprudência estabilizada garante igualdade de condições dos cidadãos frente ao Poder Quanto ao dever de integridade, especificamente, ele está ligado à ideia de
Judiciário. A estabilidade da jurisprudência garante que situações análogas devem ser unidade do sistema. Os tribunais ao cumprir o dever de integridade devem decidir
julgadas do mesmo modo. Agindo contrariamente a este dever haverá fortes indícios de em conformidade com o Direito, em toda a sua extensão, bem como com respeito à
injustiça. Constituição Federal.
Nas palavras de Cruz e Tucci, ao “preservar a estabilidade, orientando-se pelo Ao decidir aplicando o dever de integridade, dentro do sistema de precedentes
precedente judicial em situações sucessivas assemelhadas, os tribunais contribuem, a judiciais da Lei nº 13.105/2015, para a legitima formação de precedentes, é obrigatório
um só tempo, para a certeza do direito e para a proteção da confiança”23 que os Tribunais enfrentem todos os argumentos, tanto os favoráveis quanto os não
Os tribunais têm a obrigação de garantir que seus julgados sejam públicos, como favoráveis à tese jurídica articulada
preceitua o art. 927, § 5º, do NCPC. Os tribunais precisam, dessa forma, divulgar seus Quando Lênio Streck e Georges Abboud26 dizem que o processo civil quando
julgados preferencialmente pelo meio atualmente mais prático e universal, quer dizer, observa a integridade e coerência no seu desenvolvimento, querem dizer que o processo
pela rede mundial de computadores. deve ser associado a um jogo limpo, onde todos devem ser tratados do mesmo modo
Como anteriormente mencionado, cumprindo o quanto dispõe o art. 926, do NCPC, pelos tribunais.
os tribunais têm o dever de manter sua jurisprudência íntegra e estável.
Nas palavras de Didier Jr., “há dois deveres que, ao lado dos demais (uniformizar
a jurisprudência, mantê-la estável e divulgá-la devidamente), compõe o complexo de
situações jurídicas passivas imputadas aos tribunais”24. Não é fácil entender um sem o
outro. No entanto, tais deveres servem como instrumentos que servem para desenvolver
o sistema de precedentes judiciais, que tornam-se obrigatórios por força das mudanças
no ordenamento introduzidas pela Lei 13.105/2015.

22 25
DDIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual ZANET JR, Hermes. Precedentes Normativos formalmente vinculantes. In: DIDIER JR., Fredie et al (Org.).
Civil. 13. ed. Salvador: Juspodvm, 2015. v.2, p, 470. Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3, p . 414. (Coleção grandes temas do novo CPC)
23 26
TUCCI, José Rogério Cruz. O regime do precedente judicial no novo CPC. In: DIDIER JR., Fredie et al (Org.). STRECK, Lênio; ABBOUD, Georges. O NCPC e os precedentes – afinal, do que estamos falando In: DIDIER
Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3, p. 448. (Coleção grandes temas do novo CPC) JR., Fredie et al (Org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3, p . 175-180. (Coleção grandes temas
24
DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 477. do novo CPC)
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CONCLUSÃO REFERÊNCIAS

O legislador do Novo Código de Processo Civil percebeu que a prestação ARAUJO, José Henrique Mouta. Os precedentes vinculantes e o Novo CPC: o futuro da
jurisdicional tem sérias dificuldades no que se refere à agilidade e à efetividade. Com a liberdade interpretativa e do processo de criação do direito. In: DIDIER JR., Fredie et al
promulgação da Constituição Federal em 1988, houve uma explosão de litigiosidade já (Org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3
que o acesso ao Judiciário se tornou mais democrático.
A Lei 13.105/2015, através dos arts. 926, 927 e 928, muito embora não seja BREITENBACH, Fábio Gabriel. GOUVEIA, Lúcio Grassi de Gouveia. Sistema de
explícito, criou um sistema de precedentes judiciais de observância obrigatória. O precedentes no novo Código de Processo Civil brasileiro: um passo para o enfraquecimento
legislador, ao aprovar um novo Código de Ritos, percebeu a necessidade de dar maior da jurisprudência lotérica dos tribunais. In: ______. Precedentes. Salvador: Juspodivm,
racionalidade ao sistema processual civil. 2015. v. 3. (Coleção grandes temas do novo CPC).
Para a doutrina especializada, com o sistema de precedentes, criou-se um dever CAMBI, Eduardo Augusto Salomão; FOGACA, M. V. Sistema de precedentes judiciais
de tutelar a segurança dos jurisdicionados nas decisões judiciais e os tribunais tem um obrigatórios no Novo Código de Processo Civil. In: ______. Precedentes. Salvador:
papel importantíssimo nisso. Com o advento do art. 927, do NCPC, todos os magistrados Juspodivm, 2015. v. 3. (Coleção grandes temas do novo CPC).
devem aplicar as decisões dos tribunais superiores.
Não há que cogitar-se que a vinculatividade dos precedentes vai atingir o princípio DIDIER JR, Fredie. Sistema Brasileiro de precedentes judiciais obrigatórios e os deveres
da independência funcional dos juízes, havendo, por parte destes, muita relutância institucionais dos tribunais: uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da
quanto á observância obrigatória dos precedentes. No entanto, como ficou claro através jurisprudência. In: ______. Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3. (Coleção
das lições da melhor doutrina, o sistema não garante liberdade ao juiz, mas ao Poder grandes temas do novo CPC).
Judiciário. Por conseguinte, todos os órgãos do Judiciário devem seguir as Cortes DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de
Superiores em suas decisões. Direito Processual Civil. 13. ed. Salvador: Juspodvm, 2015. v.2, p. 461.
Não resta a menor dúvida que é direito fundamental de todo o indivíduo, ao buscar
o Judiciário para uma solução de um conflito, ter tranquilidade quanto às expectativas FRANCO, Marcelo Veiga. A teoria dos Precedentes judiciais no Novo Código de Processo
das decisões, não se sujeitando ao que se denominou de jurisprudência lotérica. Trata- Civil. In: ______. Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3. (Coleção grandes temas
se de substancial aplicação do quanto disposto no inc. XXXVI, art. 5º, da Constituição do novo CPC).
Federal. MACÊDO, Lucas Buril de. A Disciplina dos Precedentes Judiciais no Direito Brasileiro: do
É escopo da novel legislação processual a garantia de certa previsibilidade na Anteprojeto ao Código de Processo Civil. In: ______. Precedentes. Salvador: Juspodivm,
atuação do Estado-Juiz. Na visão da melhor doutrina, trata-se de proteção da dignidade 2015. v. 3. (Coleção grandes temas do novo CPC).
da pessoa humana a garantia de estabilidade da ordem jurídica.
O microssistema de precedentes para ser bem aplicado precisa ser bem MARINHO, Hugo Chacra Carvalho e. A independência funcional dos juízes e os
compreendido entre todos os operadores do direito, principalmente pelos membros do precedentes vinculantes. In: ______. Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3.
Judiciário, que necessitarão dominar técnicas de aplicação dos precedentes. Da mesma (Coleção grandes temas do novo CPC).
maneira, as universidade precisarão readequar seus currículos, no sentido de que o MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHAR, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo Curso
sistema de precedentes funcione no Brasil. de Processo Civil – Tutela dos direitos mediante procedimento comum. São Paulo:
Os Tribunais, nos últimos tempos, passaram a desempenhar papel de grande Revista dos Tribunais, 2015. v. 2.
relevância, pois, com a enxurrada de ações que chegam ao Judiciário todos os anos,
houve a necessidade de uniformização da jurisprudência. O art. 926, do NCPC, impõe MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; SILVA, Larissa Clare Pochmann da. Precedentes
aos Tribunais deveres de uniformizar e manter sua jurisprudência estável, bem como e IRDR: algumas considerações. In: ______. Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015.
íntegra e coerente. v. 3. (Coleção grandes temas do novo CPC).
São os deveres de integridade e coerência que tornarão a jurisprudência dos NUNES, Dierle; HORTA, André Frederico. Aplicação de precedentes e distinguishing no
tribunais consistentes. Não é mais possível, com o advento novo CPC, que órgãos CPC/2015: Uma breve introdução In: ______. Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015.
fracionários de um mesmo tribunal decidam contrariamente casos estritamente v. 3. (Coleção grandes temas do novo CPC).
semelhantes.
Com a aprovação da Lei 13.105, que institui o Código de Processo Civil, alinha- PRESGRAVE, Ana Beatriz Rebello. O precedente judicial e sua alteração: segurança
se o sistema processual ao modelo democrático constitucional. O NCPC representa um jurídica e adequação do direito. In: ______. Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v.
novo paradigma. Espera-se, com muito otimismo, que a novel legislação traga consigo 3. (Coleção grandes temas do novo CPC).
uma nova cultura democrática e que o sistema de precedentes judiciais de observância
obrigatória colabore para isso.
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STRECK, Lênio; ABBOUD, Georges. O NCPC e os precedentes – afinal, do que estamos A PRESCINDIBILIDADE DA LEI 9.296/96 PARA SUBSIDIAR A DECISÃO JUDICIAL
falando In: ______. Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3, p . 175-180. (Coleção EMBASADA NA LEI 12.965/2014, VISANDO O FORNECIMENTO DE REGISTROS
grandes temas do novo CPC) DE CONEXÃO E/OU REGISTROS DE ACESSO A APLICAÇÕES NA INTERNET,
PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO OU PRODUÇÃO PROBATÓRIA
TUCCI, José Rogério Cruz. O regime do precedente judicial no novo CPC. In: ______.
Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3. (Coleção grandes temas do novo CPC) Fabrício Rabelo Patury*
WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. A vinculatividade dos precedentes e o ativismo judicial
– paradoxo apenas aparente. In: ______. Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3.
(Coleção grandes temas do novo CPC)
EMENTA
ZANET JR, Hermes. Precedentes Normativos formalmente vinculantes. In: ______. O fornecimento de registros de conexão ou registros de acesso a aplicações de Internet,
Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3. (Coleção grandes temas do novo CPC) desde que imprescindíveis para fins de investigação ou instrução probatória, deverá ser
precedido de autorização judicial lastreada nos preceitos insculpidos na Lei 12.965/2014
(Marco Civil), não havendo necessidade de atendimento cumulativo aos requisitos
previstos na Lei 9.296/96, por não se tratar de fluxo de dados informáticos.

PALAVRAS-CHAVE: Decisão judicial. Prescindibilidade. Registros de Conexão.


Registros de Aplicação. Internet. Lei 12.965/2014. Marco Civil.

1 INTRODUÇÃO

O embasamento legal para subsidiar a decisão judicial para fornecimento de


registros de acesso a aplicações e registro de conexão na Internet foi tema de intensas
discussões jurídicas e doutrinárias quanto aos requisitos legais necessários para a
sua concessão. Entendia-se que, com a vigência da Lei 12.965/2014 (Marco Civil),
se encerrariam esses embates, já que a legislação aludida colocou em texto de lei o
entendimento que já estava pacificado nos Tribunais. Contudo, o fato de se tratar de
uma lei técnico-jurídica e a necessidade de aprofundamento da análise de seus termos
para sua aplicação tem suscitado dúvidas e equívocos pelos operadores do direito e por
conseguinte às decisões proferidas em Juízo, sendo fundamental o enfretamento quanto
ao tema.
A Internet é uma rede mundial de dispositivos informáticos que interligam entre si,
possibilitando comunicações sociais entre pessoas. Nesta interação, intensificada pelo
uso de redes sociais, se praticam crimes cibernéticos próprios (invasão de sistemas
informáticos, cyberterrorismo, ataques de negação de serviço, etc.) e crimes cibernéticos
impróprios (contra a honra, sexting, ciberbullyng, fraudes eletrônicas, extorsão, etc.).
Vários são os meios de comunicação disponíveis na Internet que podem ser utilizados
por alguém com intenção de prejudicar outrem, por diversos motivos.

*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia - Capital; Coordenador no Núcleo de Combate
aos Crimes Cibernéticos - Nucciber - do Ministério Público do Estado da Bahia; Coordenador da Central
de Inquéritos da Capital do Ministério Público do Estado da Bahia; Subcoordenador da Coordenadoria de
Segurança e Inteligência Institucional - CSI - do Ministério Público do Estado da Bahia; Especialista em
Ciências Criminais pela Universidade Gama Filho – UGF-RJ; Pós-Graduado em Direito Penal e Processo
Penal pela Universidade Estadual da Bahia – UNEB; Ex-Professor de Direito Penal e Processo Penal pela
Faculdade Nobre de Feira de Santana – FAN.
REVISTA DO MPBA 248 249 REVISTA DO MPBA
A PRESCINDIBILIDADE DA LEI 9.296/96 PARA SUBSIDIAR A DECISÃO JUDICIAL EMBASADA NA LEI 12.965/2014, VISANDO O FORNECIMENTO DE A PRESCINDIBILIDADE DA LEI 9.296/96 PARA SUBSIDIAR A DECISÃO JUDICIAL EMBASADA NA LEI 12.965/2014, VISANDO O FORNECIMENTO DE
REGISTROS DE CONEXÃO E/OU REGISTROS DE ACESSO A APLICAÇÕES NA INTERNET, PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO OU PRODUÇÃO PROBATÓRIA REGISTROS DE CONEXÃO E/OU REGISTROS DE ACESSO A APLICAÇÕES NA INTERNET, PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO OU PRODUÇÃO PROBATÓRIA

A legislação penal pátria não diferencia os meios (revista, jornal, rádio, televisão, processo judicial cível ou penal, requerer ao juiz que ordene o fornecimento de registros
internet etc.) para apuração e consumação do fato criminoso. Assim sendo, o crime ao responsável pela guarda destes.
cometido na Internet, praticado por autoria desconhecida, deve ser investigado com
procedimentos corretos de identificação para a consequente punição prevista no
ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, deve-se dar azo à pretensão em se obter 2 FUNDAMENTAÇÃO
os dados informáticos apenas fornecíveis pelos provedores de conexão e de aplicação,
responsáveis pela veiculação do serviço, bem como daquelas que permitem seu acesso, A Internet é um campo não mais teórico e futuro, mas totalmente atual. Dessa
a fim de que se possa localizar e punir o culpado. forma, deve-se analisar a aplicação do direito à intimidade também neste âmbito.
Antes da Lei 12.965/2014, o grande embate jurisprudencial foi justamente em A intimidade no mundo dos dispositivos informáticos não se resume a uma ideia
saber se para o fornecimento judicial destes registros, desde que imprescindíveis para de direito ao controle de dados pessoais; ao contrário, vai além desse tipo de conceito,
fins de instrução probatória e/ou investigação, haveria necessidade de atendimento da pelo fato de tais dados não estarem em circulação em redes fechadas sobre as quais se
Lei de Interceptações e Comunicações Telefônicas. possam determinar uma confidencialidade e uma regulação estrita.
Conforme as disposições da Lei nº 9.296/1996, a quebra de sigilo das comunicações A definição do direito à intimidade na Internet se transformou em um suave conceito
telefônicas ou telemáticas não será admitida quando o fato investigado constituir infração de anonimato, o qual é entendido por um direito de circular sem ser notado.
penal punida, no máximo, com pena de detenção (Art. 2º, caput e inc. III). Entretanto, Nesse ponto, leva-se em consideração o fato de que a garantia de anonimato não
a quebra de sigilo regulamentada pela aludida lei diz respeito apenas a quebra de quer dizer, de forma direta, liberdade pessoal ou, menos ainda, satisfaz o conceito de
sigilo de fluxo das comunicações, não abrangendo esta lei os dados informáticos já intimidade. A Constituição Federal estabeleceu a liberdade de expressão e a vedação ao
armazenados ou mesmo os registros de acesso ou conexão. O que não se admite na anonimato no mesmo inciso com o intuito de evitar a impunidade dos registros anônimos.
apuração do crime é a interceptação de fluxo dos dados. Porém, o objeto do pedido de A garantia do anonimato interessa à intimidade enquanto o usuário não possui o
requisição de dados cadastrais e registros acaba sendo prejudicado, pelo fato de que registro de todas as suas atividades praticadas no mundo virtual. Porém, poderá haver um
alguns operadores do direito entenderem que o referido pedido se enquadra nessa lei, efeito reverso, na medida em que não se possibilite a identificação – e logo a persecução
em decorrência da interpretação errônea nas terminologias empregadas. – daqueles que, utilizando a Internet como instrumento de publicação atinjam a vida
Como não se enquadra à comunicação de dados, pode afirmar-se que o registro privada de outras pessoas.
de conexão ou de acesso é equivalente ao registro telefônico, conforme o entendimento O anonimato absoluto, entretanto, não pode ser praticado, seja porque encontra, no
do STF:1 ordenamento jurídico vigente, vedação da Constituição. Daí a justificativa da possibilidade
[...] 2.2 Não se confundem comunicação telefônica e registros dos provedores identificarem seus usuários e guardarem as suas informações em sigilo,
telefônicos, que recebem, inclusive, proteção jurídica distinta. Não o qual poderá ser fornecido em caso de necessidade judicial.
se pode interpretar a cláusula do artigo 5º, XII, da CF, no sentido de
Cumpre esclarecer que, segundo o disposto no artigo 5º, inciso X, da Constituição
proteção aos dados enquanto registro, depósito registral. A proteção
constitucional é da comunicação de dados e não dos dados. [...] (HC
da República Federativa do Brasil são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e
91.867/PA. Relator GILMAR MENDES, STF, 2ª Turma, julgamento: a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
24.04.2012, publicação: 20.09.2012). decorrente de sua violação. Tal premissa não pode ser confundida com a inviolabilidade
do sigilo das comunicações, cuja natureza jurídica foi diferentemente regulada pela
Por conseguinte, o acesso online e em tempo real por parte das autoridades mesma Carta Magna, em seu Artigo 5º, inciso XII.
do fluxo de dados (mensagens, comunicações instantâneas, etc.) só pode acontecer Justamente visando clarear dúvidas anteriormente existentes nos Tribunais
mediante ordem judicial de juízo criminal em instrução processual penal conforme os (além de outras fundamentais regulamentações, tais como a neutralidade da rede e
ditames da Lei no 9.296/96 (Lei das Interceptações e Comunicações Telefônicas). responsabilidade dos provedores) a Lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil, veio
Mesma exigência, todavia, não é necessária quando da requisição do teor das especificar a diferença entre o fornecimento judicial dos dados cadastrais, de registro de
comunicações já cessadas e armazenadas, bem como os registros de conexão e conexão e/ou de aplicações, da dita quebra do fluxo de dados informáticos.
aplicações. A título de exemplo, o juízo cível pode requisitar o conteúdo de comunicações No primeiro caso (fornecimento dos dados cadastrais e registros), não há que
cessadas e armazenada no Facebook para instruir qualquer demanda cível, mesmo de se falar em necessidade de aplicação da Lei de Interceptações, mas tão somente da
Juizado Especial. Esta disposição está expressa no Artigo 22 da Lei 12.965/2014,que Lei 12.965/2014, já que o que se busca são dados de identificação do usuário na rede
diz que a parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em através do IP (identificação única do dispositivo informático na rede) e não o conteúdo
da conversa ou a interceptação do seu fluxo, esta sim, sujeita à regulação cumulativa da
1
SOUZA, Ionete de Magalhães; PRATES, Cláudio Juliano; DIAS, Luiz Alberti Mendes. Provas e alcance de lei 9.296/96.
decisão acerca de quebra de sigilo de dados cadastrais no juizado Criminal. Disponível em: <http://jus.com.
br/artigos/35792/provas-e-alcance-de-decisao-acerca-de-quebra-de-sigilo-de-dados-cadastrais-no-juizado-
criminal#ixzz3kxqQ7ppl>. Acesso em: 28 ago. 2015.
REVISTA DO MPBA 250 251 REVISTA DO MPBA
A PRESCINDIBILIDADE DA LEI 9.296/96 PARA SUBSIDIAR A DECISÃO JUDICIAL EMBASADA NA LEI 12.965/2014, VISANDO O FORNECIMENTO DE A PRESCINDIBILIDADE DA LEI 9.296/96 PARA SUBSIDIAR A DECISÃO JUDICIAL EMBASADA NA LEI 12.965/2014, VISANDO O FORNECIMENTO DE
REGISTROS DE CONEXÃO E/OU REGISTROS DE ACESSO A APLICAÇÕES NA INTERNET, PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO OU PRODUÇÃO PROBATÓRIA REGISTROS DE CONEXÃO E/OU REGISTROS DE ACESSO A APLICAÇÕES NA INTERNET, PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO OU PRODUÇÃO PROBATÓRIA

Entende-se por registro de conexão o histórico de diversos clientes que usam Art. 10.  A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de
dispositivos para conectar ao provedor para ter acesso a Internet. É registrado o acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de
período que cliente acessou a rede mundial, a partir do início da conexão do dispositivo dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem
na operadora até o seu encerramento, sendo este registro o conjunto de informações atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da
referentes a data e hora de início e término de uma conexão, sua duração e o endereço imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
§ 1o O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a
IP utilizado pelo terminal para o envio e recebimento de pacotes de dados (Art. 5º, inc.
disponibilizar os registros mencionados no caput, de forma autônoma
VI, da Lei 12.965/2014). Esse enquadramento é análogo ao praticado pela operadora de ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam
telefonia, pois equivale a registrar o início e o fim da ligação telefônica, não armazenando contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante
o teor da comunicação transmitida. ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo,
No que se refere ao registro de acesso a aplicações, o princípio é o mesmo do respeitado o disposto no art. 7o.
registro da conexão, já que se registra o conjunto de informações referentes à data e hora
de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço (…)
IP. (Art. 5º, inc. VIII, da Lei 12.965/2014), além da página acessada e respectivos arquivos
de mídia relacionados. Da Guarda de Registros de Acesso a Aplicações de Internet na
Provisão de Aplicações
O registro de eventos de acessos funciona como uma espécie de livro de protocolo
que registra o acesso de documento armazenado no sistema, com respectivas informações Art. 15.   O provedor de aplicações de internet constituído na forma
de data e horário de entrega e tipo de documento. Apenas a informação desse evento de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada,
de acesso nos registros do sistema é alvo para requisição, porque o documento já está profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos
instruído no pedido e há necessidade de obter registro de acesso relativo a esse evento registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente
para complementar informações ao documento para ligar vestígios deixados em etapa controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos
posterior de diligência.2 do regulamento.
Assim consta na Lei 12.965/2015: (...)
Art. 7o O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao § 3o Em qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente dos
usuário são assegurados os seguintes direitos: registros de que trata este artigo deverá ser precedida de autorização
I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e judicial, conforme disposto na Seção IV deste Capítulo.
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, Seção IV - Da Requisição Judicial de Registros
salvo por ordem judicial, na forma da lei; (neste caso, havendo
fluxo, verifica-se que a lei exige uma ordem judicial + a lei 9296/96 - Art. 22.  A parte interessada poderá, com o propósito de formar
observação nossa) conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter
III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável
armazenadas, salvo por ordem judicial; pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de
( já neste caso, como se deseja os dados já armazenados, basta acesso a aplicações de internet.
a ordem judicial, com base na Lei 12.965/2015, não se exigindo
nenhuma outra lei subsidiária, a exemplo de como se procede na Parágrafo único.  Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o
busca e apreensão de prova criminal – observação nossa) requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade:
I - fundados indícios da ocorrência do ilícito;
(…) II - justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins
de investigação ou instrução probatória; e
Da Proteção aos Registros, aos Dados Pessoais e às Comunicações III - período ao qual se referem os registros.
Privadas
Sobre o tema, assim se posiciona a jurisprudência:
APELAÇÃO CRIMINAL - QUEBRA DE SIGILO DE DADOS
TELEFÔNICOS - POSSIBILIDADE - PROCEDIMENTO NÃO
REGULAMENTADO PELA LEI 9.296/96 - RECURSO MINISTERIAL
2
SOUZA, Ionete de Magalhães; PRATES, Cláudio Juliano; DIAS, Luiz Alberti Mendes. Provas e alcance de PROVIDO. - À quebra de sigilo de dados telefônicos não se aplica a Lei
decisão acerca de quebra de sigilo de dados cadastrais no juizado Criminal. Disponível em: http://jus.com. 9.296/96, que regulamenta o procedimento de intercepção telefônica,
br/artigos/35792/provas-e-alcance-de-decisao-acerca-de-quebra-de-sigilo-de-dados-cadastrais-no-juizado- inexistindo óbice, portanto, para a sua decretação na espécie.
criminal#ixzz3kxs8XuFj>. Acesso em: 28 ago. 2015.

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A PRESCINDIBILIDADE DA LEI 9.296/96 PARA SUBSIDIAR A DECISÃO JUDICIAL EMBASADA NA LEI 12.965/2014, VISANDO O FORNECIMENTO DE A PRESCINDIBILIDADE DA LEI 9.296/96 PARA SUBSIDIAR A DECISÃO JUDICIAL EMBASADA NA LEI 12.965/2014, VISANDO O FORNECIMENTO DE
REGISTROS DE CONEXÃO E/OU REGISTROS DE ACESSO A APLICAÇÕES NA INTERNET, PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO OU PRODUÇÃO PROBATÓRIA REGISTROS DE CONEXÃO E/OU REGISTROS DE ACESSO A APLICAÇÕES NA INTERNET, PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO OU PRODUÇÃO PROBATÓRIA

(TJ-MG - APR: 10261130115049001 MG , Relator: Eduardo Machado, 1. A inicial expõe a necessidade de realização da quebra de sigilo
Data de Julgamento: 18/02/2014, Câmaras Criminais / 5ª CÂMARA de dados telemáticos para apuração de eventual infração penal,
CRIMINAL, Data de Publicação: 24/02/2014) via internet. 2. Prova que não pode ser obtida por outros meios
disponíveis e possui peculiariadade de ser a única forma eficaz e
PEDIDO DE PROVIDÊNCIA - CAUTELAR - QUEBRA DE SIGILO instrumental para a elucidação de possíveis fatos criminosos. 3.
DE DADOS CADASTRAIS RELATIVOS À TELEFONIA MÓVEL - Provimento do recurso. (TRF-3 - ACR: 7525 SP 2010.61.81.007525-
POSSIBILIDADE - PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. - O 3, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL LUIZ STEFANINI, Data de
direito do peticionário à informação dos dados cadastrais do detentor Julgamento: 24/01/2011, QUINTA TURMA)
do aparelho celular, do qual se origina mensagens ofensivas à sua
honra, no caso, deve prevalecer àquele assegurado pelo princípio HABEAS CORPUS. FINALIDADE DE TRANCAMENTO DE AÇÃO
constitucional à inviolabilidade do sigilo telefônico; seja por estar PENAL. NÃO DEMONSTRADO ATO ILEGAL QUE TRARIA RISCO
igualmente albergado pelo ordenamento jurídico ou pela aludida IMINENTE À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO DO PACIENTE.
garantia constitucional não se destinar a salvaguarda de práticas INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL APTO A
ilícitas. A quebra do sigilo dos dados telefônicos contendo os dias, os TRANCAR INQUÉRITO POLICIAL QUE AVERIGUA PRÁTICA DA
horários,os dados cadastrais da linha, a duração e o números das linha CONDUTA DO ART. 325 DO CÓDIGO ELEITORAL . DENEGAÇÃO
chamadas e recebidas, não se submete à disciplina das interceptações DA ORDEM.(…). 4. Não há que se falar em constrangimento ilegal na
telefônicas regidas pela Lei 9.296/96 (que regulamentou o inciso XII medida que a quebra do sigilo de dados cadastrais foi decretada por
do art. 5º da Constituição Federal). SIGILO DE DADOS - QUEBRA juízo competente, com decisão judicial pautada na excepcionalidade
- INDÍCIOS. Embora a regra seja a privacidade, mostra-se possível da medida. De fato, não poderia ter sido diferente, na medida em que
o acesso a dados sigilosos, para o efeito de inquérito ou persecução se tratava de perfil falso colocado no site da rede social Facebook,
criminais e por ordem judicial, ante indícios de prática criminosa. sendo impossível descobrir a autoria do delito sem a decretação da
-Concede-se a isenção das custas processuais, se o apelante é pobre medida.(…). 7. Denega-se ordem. (TRE-SP - HABEAS CORPUS : HC
na acepção legal, nos termos do art. 10, inciso II, da Lei nº 14.939/03. 27818 SP)
(TJ-MG - APR: 10390120007898002 MG , Relator: Edison Feital Leite,
Data de Julgamento: 31/07/2013, Câmaras Criminais / 4ª CÂMARA AÇAO CAUTELAR DE EXIBIÇAO. FORNECIMENTO DE ELEMENTOS
CRIMINAL, Data de Publicação: 07/08/2013) IDENTIFICADORES DO USUÁRIO DE COMPUTADOR. UTILIZAÇAO
INTERNET. DANOS. NULIDADE DA CITAÇAO. INCOMPETÊNCIA
PENAL. PROCESSUAL PENAL. PORNOGRAFIA INFANTIL VIA DO JUÍZO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. NAO
INTERNET. QUEBRA DE SIGILO DE DADOS TELEMÁTICOS. OCORRÊNCIA. VIOLAÇAO A DISPOSITIVOS LEGAIS, FALTA
1. Conforme se verifica do termo de ajustamento de conduta entre PREQUESTIONAMENTO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
o Ministério Público Federal e a Google Brasil Internet Ltda., essa [...] 5.- É juridicamente possível o pedido à empresa de telefonia
empresa se comprometeu a informar a ocorrência de eventual prática de exibição do nome do usuário de seus serviços que, utiliza-se da
de crime de pornografia infantil veiculada em página do Orkut e internet para causar danos a outrem, até por ser o único modo de
fornecer, mediante ordem judicial, as evidências dos delitos. 2. Foi o autor ter conhecimento acerca daqueles que entende ter ferido a
juntada mídia digital contendo o material em tese pornográfico, a sua reputação. Recurso Especial improvido(REsp 879181/MA, Relator
revelar a materialidade do delito do art. 241 - E do ECA. 3. Claro se Ministro Sidnei Beneti).
constata a necessidade do prosseguimento da investigação criminal
para a apuração da autoria delitiva, a ser realizada por meio da MEDIDA CAUTELAR DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS.
quebra do sigilo de dados que permitam a identificação do usuário do ADMINISTRADOR DE SISTEMA AUTÔNOMO - GESTOR DE
perfil do ORKUT, ID n. 1803939027771062904 4. Apelação provida. APLICAÇÕES DE INTERNET - DEVER DE REGISTRO DAS
(TRF-3 - ACR: 10429 SP 0010429-34.2013.4.03.6181, Relator: ATIVIDADES DE USUÁRIO(...). MARCO CIVIL DA INTERNET (LEI
DESEMBARGADOR FEDERAL ANDRÉ NEKATSCHALOW, Data de 12.965/2014)- 1. (...) ao oferecer um serviço por meio do qual se
Julgamento: 07/04/2014, QUINTA TURMA) possibilita a livre divulgação de opiniões, deve o provedor de conteúdo
ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um
PENAL - QUEBRA DE SIGILO TELEMÁTICO - AUTORIZAÇÃO desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada imagem
JUDICIAL - INDEFERIMENTO - INDÍCIOS SUFICIENTES DE PRÁTICA uma autoria certa e determinada” (STJ REsp 1417641/RJ, Relator:
DE ILÍCITO PENAL, VIA INTERNET - TERMO DE AJUSTAMENTO DE Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 25/02/2014, T3 -
CONDUTA - PROVAS PRESERVADAS PARA SEREM ENTREGUES TERCEIRA TURMA). (...).3. Recurso conhecido e não provido. (TJPR
MEDIANTE ORDEM JUDICIAL - MEIO EFICAZ PARA ELUCIDAÇÃO - 11ª C.Cível - AC - 1330794-3 - Curitiba - Rel.: Ruy Muggiati - Unânime
DOS FATOS - PROVIMENTO DO RECURSO. - - J. 13.05.2015)

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A PRESCINDIBILIDADE DA LEI 9.296/96 PARA SUBSIDIAR A DECISÃO JUDICIAL EMBASADA NA LEI 12.965/2014, VISANDO O FORNECIMENTO DE A PRESCINDIBILIDADE DA LEI 9.296/96 PARA SUBSIDIAR A DECISÃO JUDICIAL EMBASADA NA LEI 12.965/2014, VISANDO O FORNECIMENTO DE
REGISTROS DE CONEXÃO E/OU REGISTROS DE ACESSO A APLICAÇÕES NA INTERNET, PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO OU PRODUÇÃO PROBATÓRIA REGISTROS DE CONEXÃO E/OU REGISTROS DE ACESSO A APLICAÇÕES NA INTERNET, PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO OU PRODUÇÃO PROBATÓRIA

Tal questão foi objeto de deliberação no Conselho dos Procuradores e Promotores REFERÊNCIAS
de Justiça com atuação na área Criminal do Ministério Público do Estado da Bahia –
CONCRIM, quem tem por objetivo promover a integração nas diretrizes de atuação WENDT, Emerson; JORGE, Higor Vinicius Nogueira. Crimes cibernéticos. Ameaças e
de Procuradores e Promotores de Justiça criminais, promovendo o conhecimento do procedimentos de Investigação. Rio de Janeiro: Brasport, 2012.
problema criminal de forma holística, unificando e harmonizando os posicionamentos
institucionais nesta área. PRATES, Cláudio Juliano; DIAS, Luiz Alberti Mendes; SOUZA, Ionete de Magalhães.
Levado o tema das solicitações de obtenção judicial dos registros de provedores Provas e alcance de decisão acerca de quebra de sigilo de dados cadastrais no juizado
de acesso a aplicações e registros de conexão, após exposição e deliberação sob o Criminal. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/35792/provas-e-alcance-de-decisao-
tema, consolidou a posição jurídica institucional sob o tema através do Enunciado 05, acerca-de-quebra-de-sigilo-de-dados-cadastrais-no-juizado-criminal#ixzz3kxqQ7ppl>.
que diz: Acesso em: 28 ago. 2015.
Enunciado n° 05: O fornecimento de registros de conexão ou registros
de acesso a aplicações de Internet, desde que imprescindíveis para REVISTA.BR. Marco Civil, ano 06, n° 08, CGI.Br, 2015;
fins de investigação ou instrução probatória, deverá ser precedido O CGI.BR e o marco civil da internet. cgi.br. Disponível em: <http://www.cgi.br/
de autorização judicial lastreada nos preceitos insculpidos na Lei
publicacao/o-cgi-br-e-o-marco-civil-da-internet/91>. Acesso em: 12 ago. 2015
12.965/2014 (Marco Civil), não havendo necessidade de atendimento
cumulativo aos requisitos previstos na Lei 9.296/96, por não se tratar
de fluxo de dados informáticos. (decisão unânime em 21.08.2015) BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Lei nº
12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para
o uso da Internet no Brasil. Marco Civil da Internet. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L12965.htm>. Acesso em: 26 ago. 2015.
3 CONCLUSÃO
______. Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. Regulamenta o inciso XII, parte final, do
Constatada a ocorrência de um ilícito cibernético próprio ou impróprio passível art. 5° da Constituição Federal. Interceptação Telefônica. Disponível em: <http://www.
de implicação criminal e até mesmo cível, o fornecimento de registros de conexão e/ planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9296.htm>. Acesso em 26 ago. 2015
ou o registro de acesso a aplicações, além das informações contidas no cadastro do
referido serviço, é medida imprescindível para se determinar os efetivos responsáveis MILAGRE, José Antonio. F.A.Q do Cybercrime: O que fazer e como agir em casos de
pela autoria por ser a principal (ou mesmo única) forma de se chegar com segurança ao crimes na Internet. Versão: 2 – 30 abr. 2011. Disponível em: <http://www.legaltech.com.
dispositivo informático utilizado para a prática da conduta ilegal. br/faq_do_cybercrime.php>. Acesso em: 27 ago. 2015.
As terminologias e conceitos técnicos-informáticos influenciam sobremaneira na
correta interpretação da Lei 12.965/2014 e justamente por isso, tem causado decisões NIGRI, Tânia. Sigilo de dados - os limites da sua inviolabilidade. Âmbito Jurídico, Rio
judiciais equivocadas, muito embora a lei tenha consolidado entendimento pacificado Grande, IX, n. 35, dez. 2006. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/
nos Tribunais. index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1498>. Acesso em: 28 ago. 2015.
A análise técnico-jurídica do Marco Civil não deixa dúvidas de que se tratando
de obtenção de dados que não estejam em fluxo informático, mas tão somente
armazenados em forma de registros (conexão ou aplicações), não tem fundamento
jurídico a exigência dos requisitos da Lei 9.296/96, até mesmo devido a contradição entre
a expressa disposição legal no caput do Artigo 1° desta Lei e a disposição do Artigo 22
da Lei 12.965/2014, que permite o fornecimento destes registros inclusive em instrução
de causas cíveis.
Conclui-se, à luz dos argumentos trazidos, que o fornecimento de registros de
conexão ou registros de acesso a aplicações de Internet, desde que imprescindíveis para
fins de investigação ou instrução probatória, deverá ser precedido de autorização judicial
lastreada nos preceitos insculpidos na Lei 12.965/2014 (Marco Civil), não havendo
necessidade de atendimento cumulativo aos requisitos previstos na Lei 9.296/96, por
não se tratar de fluxo de dados informáticos.

REVISTA DO MPBA 256 257 REVISTA DO MPBA


O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS

O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL Também se fala da incapacidade de o modelo efetivamente proteger a saúde dos
DAS DROGAS ILÍCITAS usuários, sua proposta básica, assim como da superlotação dos presídios em virtude
da vasta gama de pessoas envolvidas nas drogas e, ainda, do desenvolvimento de
Dario José Kist * potente e rentável mercado clandestino, com notáveis efeitos no âmbito da criminalidade
secundária.
É esse o caminho percorrido na presente pesquisa, que pretende, sem pretensão
EMENTA de exaurimento do estudo, elucidar tanto quanto possível o tema abordado.
O texto aborda o proibicionismo como modelo de controle penal das drogas ilícitas.
Fornece a conceituação e os seus pressupostos, e analisa as origens históricas do 2 CONCEITUAÇÃO E PRESSUPOSTOS DO PROIBICIONISMO
modelo, bem como sua inserção em Tratados Internacionais. Apresentada, ainda,
a evolução da legislação brasileira sobre o tema das drogas ilícitas, para evidenciar O proibicionismo, no campo das drogas ilícitas1, compreende um conjunto de
a sua filiação ao modelo proibicionista. Por fim, apresentada as principais críticas ao ações perpetradas pelos Estados com o objetivo de erradicar a produção, a distribuição/
citado modelo, que recomendam a sua substituição por paradigmas alternativos de comércio e o consumo destas substâncias. Trata-se, pois, de uma estratégia estatal que
enfrentamento da questão das drogas ilícitas. dita e tem por fundamento a total e plena proibição das drogas que antes são consideradas
ilegais, utilizando-se especialmente do sistema penal para alcançar a erradicação.2
PALAVRAS-CHAVE: Drogas ilícitas. Proibicionismo. O proibicionismo é um posicionamento ideológico, de fundo moral, amplo e que
se traduz em ações políticas voltadas para a regulação de determinado fenômeno. No
campo das drogas ilícitas, como referido, atua por meio de proibições estabelecidas
1 INTRODUÇÃO com a intervenção do sistema penal, criminalizando as condutas de seus produtores,
comerciantes e consumidores, sem deixar espaço para as escolhas individuais nesse
O presente trabalho versa sobre o proibicionismo como modelo de controle penal âmbito.3
das drogas ilícitas. É resultado de pesquisa bibliográfica sobre o tema das drogas ilícitas, Essa política repressiva opera em dois níveis. Relativamente aos consumidores, a
abordando, com especificidade, o citado modelo. cominação de sanções penais é vocacionada à persuasão no sentido de absterem-se do
Inicialmente, buscou-se identificar o modelo conceitualmente, para definir as uso das drogas ilícitas. Além disso, a criminalização das ações de produção e distribuição
principais características, assim como esclarecer os seus pressupostos. Com isso, almeja limitar a disponibilidade destas substâncias no mercado de consumo.4
evidenciou-se que o proibicionismo é uma política criminal ampla, mas que, no campo Importante anotar que o proibicionismo tem como premissa básica a distinção
das drogas ilícitas, pretende a erradicação da sua produção, distribuição e consumo, com entre drogas lícitas e ilícitas; também atua com a convicção de que o único meio eficaz
o manejo dos instrumentos do Direito Penal, notadamente a pena privativa de liberdade; para enfrentar os danos produzidos pelas drogas ilegais é a repressão penal; esta, por
a justificativa principal é que elas são essencialmente maléficas e danosas. sua vez, pretende produzir a abstinência forçada dos usuários, concretos e em potencial.
Em termos históricos, o modelo em questão foi desenvolvido durante o século XX, Presume-se que a interdição, pela lei penal, sob a ameaça de pena, fará com que os
alcançando o apogeu nos anos setenta, momento em que se tornou política internacional, indivíduos alterem costumes, gostos e escolhas, deixando de consumir determinadas
em especial pela sua inserção em Tratados Internacionais, e isso pela força política dos drogas pelo fato de haverem sido catalogadas como ilegais.5
Estados Unidos da América nesse plano. 1
As drogas são substâncias que, em contato com o organismo, modificam uma ou mais de suas funções;
Analisando a legislação brasileira sobre o tema, em especial a sua evolução, naturais ou sintéticas, alteram o funcionamento do organismo, e são divididas em dois grandes grupos,
nota-se que as constantes alterações, em especial no século XX, foram determinadas segundo o critério de legalidade: drogas lícitas e ilícitas. As drogas lícitas são aquelas legalizadas, produzidas
pelo ideal de adaptação dessa legislação ao modelo proibicionista, em voga no âmbito e comercializadas livremente e que, no geral, são aceitas pela sociedade; o tabaco e o álcool são os principais
internacional. E essa situação persiste, pois a vigente Lei nº 11.343/06, na essência, exemplos de drogas lícitas. Outras, como a cocaína, a maconha, o crack, a heroína, etc., são drogas ilícitas,
pois, por lei, é proibida a sua produção, distribuição e consumo. Quanto aos efeitos que produzem, há
materializa os principais axiomas do paradigma em análise. basicamente três grupos: as estimulantes (cocaína, cafeína, anfetaminas, etc.), as depressoras (heroína,
Contudo, o modelo proibicionista no campo das drogas é objeto de severas críticas, morfina, álcool, etc.) e as perturbadoras das atividades mentais (maconha, LSD, cogumelos, etc.).
que demonstram a sua incapacidade para enfrentar esse tema de modo satisfatório. 2
A partir da década de 1970 do século XX, essa política passou a ser denominada “Guerra às Drogas”.
Ataca-se, por exemplo, uma das premissas básicas do modelo, que é a aleatoriedade na 3
O proibicionismo, enquanto ideologia politica ou religiosa, pode ser direcionado a qualquer conduta ou
eleição das drogas ilícitas, reclamando da falta de critérios técnicos ou científicos para comportamento. No início do século XX, por exemplo, foi ele quem ditou as bases para a proibição do uso do
orientar tal escolha. álcool nos Estados Unidos da América, que culminou com a edição da “Lei Seca”, em 1920.
4
WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de drogas e sistema penal: entre o proibicionismo e a redução de
danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 32.
5
* RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do
Mestre em Direito, Professor de Direito Penal e de Processo Penal na Universidade Regional da Bahia/ proibicionismo no sistema penal e na sociedade. (Doutorado) - Universidade de São Paulo - Faculdade de
Alagoinhas, Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Direito, São Paulo, 2006, p. 47.
REVISTA DO MPBA 258 259 REVISTA DO MPBA
O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS

Segundo Maria Lúcia Karan, prescindível, pois não têm importância médica, cabe ao Estado proibi-las, tendo
Globalmente inaugurada no início do século XX, a política proibicionista legitimidade para perseguir e punir quem as produz, vende ou consome.10
subiu de tom a partir da década de 1970, passando a explicitamente A segunda premissa proibicionista sustenta que a atuação ideal do Estado para
associar o sistema penal à guerra. Com efeito, em 1971, o então combater as drogas é criminalizar sua produção, circulação e consumo. Com, efeito, as
presidente norte-americano Richard Nixon declarava uma “guerra às consequências determinadas pela primeira premissa impõem ao Estado o dever de agir
drogas”, que logo se expandia para o mundo. A disseminada expressão em duas frentes: impedir a produção e o comércio dessas substâncias, para diminuir a
“guerra às drogas” deixa explícita, em sua própria denominação, a disponibilidade, e reprimir seus consumidores.
moldura bélica que dá a tônica do controle social exercitado através O apogeu dessa perspectiva pode ser vista nas Convenções da Organização das
do sistema penal nas sociedades contemporâneas.6
Nações Unidas, que serão analisadas posteriormente, que obrigam os Estados a aplicar
Em síntese, a proibição é um paradigma de política global que criminaliza a sanções penais aos produtores e vendedores dessas drogas, taxados de traficantes. Para
produção, a oferta e o consumo de algumas drogas específicas. A finalidade dessa política os consumidores, instituíram inicialmente a perspectiva de dissuasão com a utilização da
de drogas é reduzir o consumo para níveis próximos de zero, por meio da proibição da legislação penal; nas últimas décadas, passou-se a considerar o tratamento como uma
produção e do comércio. Sua característica principal é o caráter repressivo. alternativa, desde que inserido num contexto que evidencie a proibição do uso.11
Por outro lado, o modelo ou paradigma proibicionista tem como base dois Em síntese, produzir, distribuir e consumir substâncias entorpecentes produz
pressupostos fundamentais; o primeiro sustenta que o uso de drogas é dispensável e, ofensa ao bem jurídico tutelado, que é a saúde pública, pois ambas as condutas, ao se
por essência, danoso, motivos que recomendam a proibição; o segundo refere-se ao disseminarem, causam danos à coletividade, à saúde de toda a população.12 Por isso,
método de concretização da proibição, e sustenta que o Estado deve perseguir e punir pela danosidade intrínseca, devem ser reprimidas.
os produtores, vendedores e consumidores de drogas ilícitas.7
Veja-se. 3 ORIGENS HISTÓRICAS DO PROIBICIONISMO
O consumo de qualquer droga ilícita é danoso fisiológica e mentalmente; os danos
fisiológicos correspondem à deterioração da saúde em geral e, se continuado o consumo O controle penal de determinadas drogas pelo Estado concretizou-se nas primeiras
dessas drogas, pode ensejar a morte, notadamente por intoxicação acidental (overdose). décadas do século XX.
Não há padrão, quantidade ou nível seguro para o consumo dessas drogas.8 Não obstante, elas são conhecidas e consumidas pelo homem há séculos13, para
Ademais, essas drogas provocam dependência. Por ser prazeroso, é provável modificar o comportamento, o humor e a emoção, assim como para produzir estados
que o consumo de drogas leve o usuário à repetição ou à substituição por substâncias alterados de consciência. Mais especificamente, observa-se o uso médico de drogas,
mais potentes, num caminho que leva à perda do autocontrole e da capacidade de livre destinado a aliviar sintomas, distúrbios e patologias corporais e mentais; o uso religioso
escolha. E a dependência é uma patologia que afeta outros interesses, uma busca ou cerimonial, destinado a manter contato com alguma divindade; e no uso recreativo a
incessante por novas doses e uma dolorosa síndrome de abstinência quando o usuário finalidade é a diversão.
decide suspender o consumo.9 As drogas também potencializam, além da dependência,
outros transtornos mentais graves, como depressão, psicose e esquizofrenia. Crianças e
adolescentes são mais vulneráveis ao consumo dessas drogas, o que é especialmente
grave na incompletude de sua formação intelectual.
Nessa medida, identifica-se no consumo de drogas ilegais graves consequências
sociais, como o comportamento descontrolado e a deterioração dos laços sociais.Na
10
medida em que seus efeitos suspendem o julgamento normal dos indivíduos, essas FIORI, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas.
drogas levam a ações inconsequentes e, muitas vezes, violentas, agravadas pelas In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais - IBCCRIM, 2014. p. 140.
dificuldades que muitos usuários/dependentes enfrentam para a aquisição de novas 11
Ibdem, p. 141.
doses. Assim, tendo em conta esse conjunto de danos e que o consumo dessas drogas é 12
WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de drogas e sistema penal: entre o proibicionismo e a redução de
danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 32.
6 13
KARAN, Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. Disponível em: <http:// “Ao contrário do que muitos pensam, o consumo de drogas não é “algo novo, um mal contemporâneo,
www.leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20%20legislacao%20brasileira.doc?1286477113>. mas o uso da droga sempre acompanhou a história da humanidade, assim como a busca do prazer e
Acesso em: 09 maio 2015. da necessidade de satisfação dos instintos” (SILVEIRA, Dartiu Xavier; MOREIRA, Fernanda Gonçalves.
7
FIORI, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. In Reflexões preliminares sobre a questão das substâncias psicoativas. In: Panorama atual de drogas e
SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências dependência. São Paulo: Atheneu, 2006. p. 3). No mesmo sentido, “o uso de drogas pode ser considerado
Criminais - IBCCRIM, 2014. p. 140. universal, uma vez que são pouquíssimas as culturas que não se utilizam de alucinógenos, em especial pelo
8 papel que exercem nos rituais religiosos”. (GAUER, Ruth Maria Chittó. Uma Leitura Antropológica do Uso de
FIORI, loc cit. Drogas. Fascículos de Ciências Penais: Drogas - abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Sergio Antônio
9
FIORI, loc cit. Fabris Editor, v. 3, n. 2, p. 60, abr./jun., 1990).
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Ou seja, o consumo e a circulação de substâncias como cocaína, ópio, haxixe e Contudo, se os povos que tradicionalmente consumiam as substâncias psicoativas
cannabis eram legais até o início do século XX, e eram usadas para fins medicinais ou com elas se relacionavam de forma saudável e normal, o uso massivo, desafiando inclusive
recreativos. A criminalização do uso e do comércio de drogas, portanto, é relativamente a tentativa de controle moral ditado pelas Igrejas, pelos povos que desconheciam as
recente. drogas gerou uma série de desdobramentos e impactos sociais negativos, em especial
A criminalização e a tentativa de banimento das drogas taxadas de ilícitas, inclusive decorrentes do consumo excessivo, como a intoxicação aguda (overdose) e outras
como tendência internacional, foram ditadas por diversos fatores. complicações crônicas à saúde, derivadas da dependência.
De um lado, o processo de colonização das Américas, pelos ingleses e europeus, Foi nesse contexto que o uso de drogas passou a ser visto como fonte de
teve na religião e suas Instituições, como a Igreja Católica, um fator importante, contexto morbidades, desafiando medidas de saúde, como qualquer outra doença18. No campo
no qual a proscrição das substâncias alucinógenas integrou a estratégia de tornar o da psiquiatria identificou-se nos psicotrópicos propriedades capazes de conduzir o seu
catolicismo como religião oficial. Com efeito, o uso de plantas e fungos psicoativos foi consumidor à degradação moral e ao vício.19
vinculado a rituais pagãos e diabólicos, fornecendo, ao longo do tempo, um substrato moral Também é de se ponderar que o uso de substâncias psicotrópicas sempre foi
para justificar a proibição14. No mesmo contexto, teve papel decisivo o protestantismo vinculado à noção de violência, ou seja, o consumo de drogas teria o potencial de induzir
que se disseminou na América do Norte, em especial por propagar o ideal religioso da o usuário à violência.
abstinência e a recusa aos analgésicos, eutanásicos, afrodisíacos e alucinógenos.15 Ainda, motivos de ordem econômica havia. A título de exemplo, sabe-se que
Há outro aspecto de relevo: com o movimento das grandes navegações, a partir os Estados Unidos da América, na condição de protagonistas do desenvolvimento do
do século XVI os europeus tiveram contato com uma série de povos nativos e culturas capitalismo, queriam frear a economia inglesa, que tinha no comércio do ópio importante
diferentes, nas quais o uso de substâncias psicoativas era normal, além de conheceram fonte.20 Além disso, no início do século XX, estava em curso a segunda Revolução
uma grande gama de ervas e especiarias até então desconhecidas daqueles. Ou seja, Industrial, demandando um trabalhador disposto e apto a longas jornadas diárias de
a descoberta de culturas nativas de novos povos também influenciou a civilização trabalho e, nesse contexto, passaram a ser indesejáveis as substâncias entorpecentes
europeia, que descobriu novas plantas e espécimes, tais como o haxixe, o ópio, a coca como o ópio e seus derivados (morfina e heroína), pois deixavam seus usuários em
e o tabaco, além de especiarias e novos fármacos. O consumo de tais produtos foi aos estado de letargia e, assim, improdutivos.21
poucos incorporado pelos povos do “Velho Mundo”, ensejando, inclusive, um significativo Tais fatores, conjugados, fizeram com que, no final do século XIX, a proibição do
e lucrativo comércio em torno deles16, de modo que, já no século XIX, a Europa e os consumo de drogas era uma estratégia aceita de forma geral, nos principais países e
Estados Unidos conviviam com uma grande variedade de novas drogas, das quais pouco também no plano internacional.
sabiam17, utilizando-as tanto para fins medicinais, quanto recreativos. Tais fatores, conjugados, fizeram com que, no final do século XIX, a proibição do
consumo de drogas era uma estratégia aceita de forma geral, nos principais países e
também no plano internacional.
Lembre-se que uma das substâncias largamente consumidas naquela época
era o álcool e, postulando a proibição deste, nos Estados Unidos da América surgiu
um movimento político estruturado22, o que explica o destaque daquele país no projeto
proibicionista. Com efeito, em 1869 foi fundado o Partido Proibicionista, além de surgirem

14 18
É certo que a noção de necessidade da proibição de determinadas drogas generalizou-se somente a partir Ibidem, p. 23-24.
do início do século XX, contribuindo, para isso, diversos fatores; um deles foi a “demonização” das drogas, 19
ESCOHOTADO, Antônio. História general de las drogas. Madrid: Alianza Editorial, 1995. p. 362. Após terem
fomentada, por longo do tempo, por essa ideologia de matiz religiosa. as drogas surgido como promissores medicamentos, despertando grande interesse da classe científica,
15 acabaram chamando a atenção da população que foi se afastando do discurso e do controle médico para
RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do
proibicionismo no sistema penal e na sociedade. (Doutorado) - Universidade de São Paulo - Faculdade de um uso hedonista, de prazer e recreação (RODRIGUES, op. cit., p. 32, apud MUSTO, David. One hundred
Direito, São Paulo, 2006, p. 27. years of cocaine. Westport: Auburn House, 2002).
16 20
As “Guerras do Ópio” são a evidência de que o comércio de substâncias psicoativas, no caso, o ópio, era SHERRER, Sebastian. Estabelecendo controle sobre a cocaína (1910-1920). In: Drogas: é legal? Um debate
lícito, além de altamente vantajoso e lucrativo; o ópio era produzido, predominantemente, na Índia e no autorizado. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 172.
sudeste da Ásia e, na época, o maior consumidor era o povo chinês, ao passo que os ingleses dominavam a 21
ZACCONE, Orlando. Acionistas do Nada. Quem são os traficantes de drogas. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan,
manufatura, o transporte e a venda aos distribuidores na China; quando, por razões econômicas e de saúde 2007. p. 79.
pública, em 1800 e 1813 o Imperador Chinês resolveu proibir o uso, e em 1838 proibiu o comércio do ópio, os 22
RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do
ingleses deflagraram guerra contra a China e, por meio delas, consolidaram o domínio britânico no Extremo
proibicionismo no sistema penal e na sociedade. (Doutorado) - Universidade de São Paulo - Faculdade de
Oriente, além de implementarem o comércio de substâncias psicoativas em larga escala. (RIBEIRO,
Direito, São Paulo, 2006, p. 24-25. Segundo Escohotado (op. cit, p. 382). a indústria do álcool, nos Estados
Maurides de Melo. Drogas e redução de danos. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 23; RODRIGUES, op cit, p. 32-
Unidos, mostrou-se muito eficiente na disseminação do consumo dessa substância, incorporando as técnicas
37). Importante anotar que a referida guerra foi travada em favor do livre comércio do ópio.
da refrigeração e da pasteurização, além de utilizar-se dos meios de transporte em desenvolvimento; os
17
RIBEIRO, Maurides de Melo. Drogas e redução de danos. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 23. locais de uso eram os saloons, onde também havia jogos, dança e prostituição, tudo a se opor ao espírito
puritano típico daquela sociedade.
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diversas Ligas empenhadas na proibição, destacando-se, também, o desenvolvimento É importante destacar que essa política internacional de drogas, consolidada na
de trabalhos acadêmicos e científicos em Universidades, a exemplo da Federação referida Convenção, foi utilizada posteriormente para justificar a alteração das legislações
Científica pela Sobriedade, cujos integrantes ocupavam-se em estudar os efeitos do uso nacionais, o que ocorreu nos próprios Estados Unidos e também em países europeus
do álcool e propor soluções de cunho científico; também a imprensa pautou a discussão (Inglaterra, Alemanha, França, Holanda e Portugal).26
que, por isso, disseminou-se por todo o país23, gerando um contexto cultural propício à Em 1925, ocorreu a 2ª Convenção Internacional sobre Ópio, cujo principal
proibição. resultado no controle das drogas narcóticas foi determinar aos governos nacionais a
Foi assim que nos primeiros anos do século XX observou-se o surgimento de realização e informação de estatísticas anuais sobre a produção, consumo e fabrico de
uma série de legislações, em especial nos Estados Unidos da América, regulando o uso drogas à Permanent Central Opium Board, então criada. Nessa medida é identificado o
das drogas, e elas foram cunhadas de um “espírito sanitarista”. A título de exemplo, em surgimento de um sistema de nível internacional de monitoramento de drogas.
1906, naquele país, foi editada lei que determinava o detalhamento da composição dos Em 1931, foi elaborada a 1ª Convenção de Genebra, na qual também prevaleceu a
medicamentos; no mesmo ano foi proibido o hábito de fumar ópio, que somente poderia objetivo de limitar a fabricação mundial e regulamentar a distribuição dos estupefacientes
ser utilizado no tratamento de doenças. Em 1914, o Harrison Narcotic Act veiculou ou drogas narcóticas exclusivamente para finalidades médicas e científicas.
semelhante proibição para a cocaína, que somente poderia ser utilizada mediante Em 1936 foi assinada a 2ª Convenção de Genebra, na qual foi estabelecida a
prescrição médica. O movimento proibicionista em marcha na época chegou ao auge em supressão do tráfico ilícito de drogas perigosas, comprometendo-se as partes a efetivar
1920, com a proibição do consumo do álcool nos Estados Unidos, por meio da aprovação medidas para prevenir a impunidade de traficantes e a facilitar a extradição por crimes
da 18ª Emenda à Constituição, que ficou conhecida como “Lei Seca”.24 de tráfico.27
No início do século XX, observou-se também o surgimento dos debates Em 1945, depois de terminada a segunda Guerra Mundial, foi criada a Organização
internacionais sobre o controle das substâncias psicoativas, o que foi determinado pelo das Nações Unidas (ONU), cabendo a esta, a partir de então, estabelecer o concerto
aumento da percepção social sobre os efeitos do seu uso, e também pelos conflitos entre as nações; no âmbito em discussão, até hoje foram por ela patrocinadas três
acerca do comércio mundial, notadamente entre Império Chinês e a Coroa Britânica, que convenções e que ainda ostentam as diretrizes para o controle internacional de drogas.
já perduravam muito tempo e que conduziram estes países às Guerras do Ópio. A primeira delas foi a Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961, e ela fez
Nesse panorama, em 1909 ocorreu a Conferência de Xangai, fomentada pela Liga consolidar no plano internacional a política proibicionista, há tempos patrocinada pelos
das Nações, para discutir limites à produção e ao comércio de ópio e seus derivados. Estados Unidos, empenhados em controlar os entorpecentes. Nessa Convenção, foi
Prevaleceu, naquele foro, o posicionamento proibicionista dos Estados Unidos da instituído um amplo sistema internacional de controle, além de ser atribuída aos Estados
América, restringindo o negócio do ópio apenas para fins medicinais. A tendência signatários a responsabilidade pela incorporação das medidas nela previstas em suas
proibicionista inaugurada nessa Conferência representou um ideal que viria a perdurar legislações nacionais. Também foi reforçado o controle sobre a produção, distribuição
durante todo o século XX no tocante a políticas de drogas. e comércio de drogas nos países, além de ser proibido o fumo e a ingestão de ópio, a
Em 1912 ocorreu a 1ª Convenção sobre Ópio de Haia, patrocinada pelos Estados mastigação da folha de coca e o uso não médico da cannabis.
Unidos da América, interessados na implementação da política proibicionista em nível Há uma outra consequência importante dessa Convenção: ela marca o início de
internacional. O resultado dessa Convenção foi a elaboração de um documento que um movimento de militarização da segurança pública, técnica de controle internacional
exigia a limitação da produção e venda de ópio, da morfina e da cocaína, drogas de de drogas que pretendia a total erradicação, tanto da produção de determinadas
maior visibilidade nas sociedades americana e europeia do início do século XX. Também substâncias, bem como do seu consumo delas.28
foi gestada a noção de uma cooperação internacional para restringir o uso lúdico dos Daniel Nicory do Prado sintetiza:
narcóticos e permitir apenas o uso médico. Por fim, esta Convenção de Haia representou
a consolidação da postura proibicionista dos Estados Unidos no âmbito mundial, em 26
Nos EUA, destaca-se o “Harrison Act” de 1914; na França, a “Lois sur les drogues” de 1916; no Reino Unido,
especial com a ampliação do rol de substâncias proibidas.25 o “Dangerous Drug Act” de 1920.
27
No artigo II da Convenção consignou-se que “Cada uma das Altas Partes contratantes se compromete a
baixar as disposições legislativas necessárias para punir severamente, e sobretudo com pena de prisão ou
outras penas privativas de liberdade, os seguintes atos: a) fabricação, transformação, extração, preparação,
detenção, oferta, exposição à venda, distribuição, compra, venda, cessão sob qualquer título, corretagem,
remessa, expedição em trânsito, transporte, importação e exportação dos estupefacientes, contrarias às
estipulações das referidas Convenções; b) participação intencional nos atos mencionados neste artigo; c)
sociedade ou entendimento para a realização de um dos atos acima enumerados; d) as tentativas e, nas
23
RIBEIRO, Maurides de Melo. Drogas e redução de danos. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 25. condições previstas pela lei nacional, os atos preparatórios”.
28
24
ESCOHOTADO, Antônio. História general de las drogas. Madrid: Alianza Editorial, 1995. p. 417. RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do
25 proibicionismo no sistema penal e na sociedade. (Doutorado) - Universidade de São Paulo - Faculdade de
RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do
Direito, São Paulo, 2006, p. 40. Aí estavam incluídas aquelas consumidas há milênios por tribos nativas da
proibicionismo no sistema penal e na sociedade. (Doutorado) - Universidade de São Paulo - Faculdade de
América Latina, como a folha de coca no Peru e na Bolívia.
Direito, São Paulo, 2006, p. 39.
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Com a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, ficaram Por fim, trata-se de uma convenção quase que exclusivamente voltada para a
lançadas as bases da proibição e do combate a algumas drogas, repressão, com o propósito confesso de aperfeiçoar os instrumentos repressivos
eleitas como objeto de máxima atenção da comunidade internacional. existentes e introduzir novos, e contemplar âmbitos até então descuidados.
Tais bases foram desenvolvidas e aprimoradas nas convenções
subsequentes.29
Em 1972, foi assinado um Protocolo emendando a convenção para aumentar 4 PROJEÇÃO DO PROIBICIONISMO NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA
os esforços de prevenir a produção ilícita, o tráfico e o uso de narcóticos, bem como
mencionava a necessidade de se providenciar acesso a tratamento e reabilitação A criminalização de condutas relacionadas à produção, à distribuição/
de drogados, em conjunto ou em substituição à pena de prisão nos casos criminais comercialização e ao consumo das drogas ilícitas, no Brasil, vem de longa data. Mas,
envolvendo adictos. é no século XX que se observa a sua intensificação, acompanhando o movimento
Também no ano de 1972 foi realizada a Convenção sobre Substâncias internacional. Veja-se.
Psicotrópicas, caracterizada, em especial, pela inclusão das drogas psicotrópicas no Inicialmente, observa-se no título LXXXIX das Ordenações Filipinas o seguinte
rol das substâncias proibidas, pois, até então estavam sujeitas a controle internacional tipo penal sobre a posse, o comércio e a importação de certas substâncias:
apenas as drogas narcóticas relacionadas com o ópio, a cannabis e a cocaína. Foram
Nenhuma pessoa tenha em sua caza para vender, rosalgar branco,
incluídos, assim, os estimulantes, as anfetaminas, o LSD, os sedativos hipnóticos e os nem vermelho, nem amarello, nem solimão, nem água delle, nem
tranquilizantes. escamoneá, nem ópio, salvo se for Boticário examinado, e que tenha
A terceira Convenção das Nações Unidas sobre as drogas ocorreu em 1988, licença para ter Botica, e usar do Officio. E qualquer outra pessoa que
denominada Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias tiver em sua caza alguma das ditas cousas para vender, perca toda sua
Psicotrópicas30, por meio da qual o sistema internacional de controle foi ampliado e a fazenda, ametade para nossa Câmera, e a outra para quem o accusar,
repressão às substâncias entorpecentes chegou ao ápice. e seja degradado para África até nossa mercê. E a mesma pena terá
Essa Convenção foi precedida pela Conferência Internacional sobre o Uso Indevido quem as ditas cousas trouxer de fora, e as vender a pessoas, que não
e o Tráfico Ilícito de Entorpecentes, em Viena, em junho de 1987, caracterizada pela forem Boticários.
adesão da União Europeia ao debate internacional sobre a matéria, e nela foi aprovado
um plano de atividades em matéria de fiscalização do uso indevido de entorpecentes, No Código Penal do Império, de 1830, não houve abordagem específica sobre as
para a futura definição das políticas de drogas no âmbito interno de cada país. substâncias entorpecentes. Contudo, em 29 de setembro de 1851, foi editado o Decreto
A principal contribuição da Convenção da ONU de 1988, além de unificar e nº 828, que ao longo de seus 83 artigos, disciplinou a matéria atinente à saúde pública,
reforçar os instrumentos legais já existentes, foi estabelecer mecanismos para combater incluindo a venda de drogas e medicamentos.31
as organizações de traficantes por meio da ampliação das hipóteses de extradição, da O Código Penal de 1890 também não fez referência expressa às drogas; no artigo
cooperação internacional e do confisco de ativos financeiros dos traficantes. Com tais 159 havia a tipificação dos atos de expor à venda e de ministrar “substâncias venenosas”,
medidas, a pretensão foi fazer frente ao poder militar, econômico e financeiro alcançado tratando-se de crime contra a saúde pública.32
pelos grupos empenhados no tráfico ilícito desde a vigência da proibição das substâncias Em 1921, e sob a influência da antes referida Convenção de Haia de 1912, foi
psicotrópicas. editado o Decreto nº 4.294, que “Estabelece penalidades para os contraventores na
Outro objetivo dessa Convenção foi a erradicação do cultivo de plantas narcóticas, venda de cocaina, opio, morphina e seus derivados […]”. No artigo 1º constava:
bem como o aumento dos esforços contra a produção ilícita de drogas, incluindo o Vender, expôr á venda ou ministrar substancias venenosas, sem legitima
monitoramento e o controle de substâncias químicas usadas no seu preparo e manufatura. autorização e sem as formalidades prescriptas nos regulamentos
É inegável, também, que a Convenção de 1988 é o marco definitivo da sanitarios: Pena: multa de 500$ a 1:000$000. Paragrapho unico. Si
internacionalização da política americana de “guerra às drogas”; com efeito, o conceito a substancia venenosa tiver qualidade entorpecente, como o opio e
de tráfico de entorpecentes contida no artigo 3.1.a. foi contemplado nos sistemas penais seus derivados; cocaina e seus derivados: Pena: prisão cellular por
de diversos países. um a quatro anos”. (grifo nosso).

31
29
“Art. 67. “Os medicamentos compostos, de qualquer denominação que sejão, ou quaesquer outros activos,
PRADO, Daniel Nicory do. Crítica ao controle penal das drogas ilícitas. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 21. não poderão ser vendidos senão por pessoa legalmente autorisada. Os droguistas não poderão vender
Concluída e assinada em Viena/Áustria, em 20/12/1988. Foi promulgada no Brasil por meio do Decreto nº drogas ou medicamentos por peso medicinal, nem poderão vender os medicamentos compostos chamados
154, de 26/06/1991. officinaes”.
30
Concluída e assinada em Viena/Áustria, em 20/12/1988. Foi promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 32
“Art. 159. Expôr á venda, ou ministrar, substancias venenosas, sem legitima autorização e sem as
154, de 26/06/1991. formalidades prescriptas nos regulamentos sanitários”.
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Posteriormente, em 11 de janeiro de 1932, sobreveio o Decreto nº 20.930, que Facilitar, instigar por atos ou por palavras, a aquisição, uso, emprego
“Fiscaliza o emprego e o comércio das substâncias tóxicas entorpecentes, regula a sua ou aplicação de qualquer substância entorpecente, ou, sem as
entrada no país de acordo com a solicitação do Comité Central Permanente do Opio da formalidades prescritas nesta lei, vender, ministrar, dar, deter,
Liga das Nações, e estabelece penas”. guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, consumir substâncias
No artigo 1º, constava que: compreendidas no art. 1º ou plantar, cultivar, colher as plantas
São consideradas substâncias tóxicas de natureza analgésica ou mencionadas no art. 2º, ou de qualquer modo proporcionar a aquisição,
entorpecente, para os efeitos deste decreto e mais leis aplicaveis, uso ou aplicação dessas substâncias - penas: um a cinco anos de
as seguintes substâncias e seus sais, congêneres, compostos e prisão celular e multa de 1:000$000 a 5:000$000.
derivados, inclusive especialidades farmacêuticas correlatas: I - O A partir do art. 27, sob o título “Da internação e da interdição civil”, o diploma
ópio bruto e medicinal. II - A morfina. III - A diacetilmorfina ou heroina. legal em questão previu que “A toxicomania ou a intoxicação habitual, por substâncias
IV - A benzoilmorfina. V - A dilandide. VI - A dicodide. VII - A eucodal.
entorpecentes, é considerada doença de notificação compulsória, em carater reservado,
VIII - As folhas de coca. IX - A cocaina bruta. X - A cocaina. XI - A
ecgonina. XII - A “canabis indica.
à autoridade sanitária local” - art. 27. Ademais, “Não é permitido o tratamento de
toxicômanos em domicílio” - art. 28. Ainda, “Os toxicômanos ou os intoxicados habituais,
No art. 25 estava previsto o tipo penal correspondente: por entorpecentes, por inebriantes em geral ou bebidas alcoolicas, são passíveis de
Vender, ministrar, dar, trocar, ceder, ou, de qualquer modo, proporcionar internação obrigatória ou facultativa por tempo determinado ou não” – art. 29. Merece
substâncias entorpecentes; propor-se a qualquer desses atos sem as destaque, ainda, que o artigo 34 do Decreto-Lei estabelece como circunstância agravante
formalidades prescritas no presente decreto; induzir, ou instigar, por da pena o ato de “Sugerir ou procurar satisfação de prazeres sexuais, nos crimes de que
atos ou por palavras, o uso de quaisquer dessas substâncias.  Penas: trata esta lei”.
De um a cinco anos de prisão celular e multa de 1:000$0 a 5:000$0. Segundo Maria Lúcia Karan,
Com o advento da Consolidação das Leis Penais de 1932, foi alterado o art. 159 […] é especialmente com o Decreto-lei 891/38, promulgado na
do Código Penal de 1890, para substituir a expressão “substâncias venenosas” por ditadura do Estado novo, a proibição alcança maior sistematização e
“substâncias entorpecentes”: também houve um aumento na quantidade de condutas alcance. Ali é estabelecida a internação obrigatória de “toxicômanos”
proibidas, e a cominação de pena privativa de liberdade para os seus autores. e sugestivamente se prevê como circunstância agravante da pena
imponível a produtores, comerciantes e consumidores o fato do
Art. 159. Vender, ministrar, dar, trocar, ceder ou, de qualquer modo,
agente, com a conduta relacionada às drogas tornadas ilícitas, “sugerir
proporcionar, substâncias entorpecentes; propor-se a qualquer desses
ou procurar satisfação de prazeres sexuais.34
actos sem as formalidades prescriptas pelo Departamento Nacional de
Saúde Publica; induzir ou instigar por actos ou por palavras o uso de
qualquer dessas substâncias: Pena – de prisão cellular por um a cinco Com a edição do Código Penal de 1940, os dispositivos criminalizadores das
annos e multa de 1:000$ a 5:000$000”. (grifo nosso). condutas relacionadas às drogas nele se integraram, sob a denominação “Comércio
clandestino ou facilitação de uso de entorpecente”, no capítulo em que previstos os
Posteriormente, em 25 de novembro de 1938, foi editado o Decreto-Lei nº 891, “Crimes contra a saúde pública”, especificamente no artigo 281:
conhecido como “Lei de Fiscalização de Entorpecentes”.33 No artigo 1º, a exemplo do Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que
Decreto nº 20.930/32, foram listadas as substâncias entorpecentes, observando-se um a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar,
significativo aumento - de 12 (doze) previstas no Decreto nº 20.930/32, passou para 26 ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a consumo substância
entorpecente, sem autorização ou em desacordo com a determinação
(vinte e seis), divididas em dois grupos.
legal ou regulamentar. Pena: reclusão, de um a cinco anos, e multa,
O principal tipo penal consta no art. 33: de dois a dez contos de réis.

33
“O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, usando das atribuições que lhe são conferidas
pelo art. 180 da Constituição de 10 de novembro de 1937: Considerando que se torna necessário dotar o
país de uma legislação capaz de regular eficientemente a fiscalização de entorpecentes; Considerando que
é igualmente necessário que a legislação brasileira esteja de acordo com as mais recentes convenções 34
sobre a matéria: Resolve decretar a seguinte Lei de Fiscalizacao de Entorpecentes, que vai assinada por KARAN, Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. Disponível
todos os Ministros de Estado [...]”. em: <http://www.leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20-%20legislacao%20brasileira.
doc?1286477113>. Acesso em: 09 maio 2015.
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O art. 281 do Código Penal, antes de ser revogado em 1976, sofreu três alterações.35 No § 1º foram tratadas as “matérias-primas ou plantas destinadas à preparação de
Em novembro de 1964, a Lei nº 4.451 acrescentou ao tipo a ação de “plantar” entorpecentes ou de substâncias que determinem dependência física ou psíquica” (inciso
matérias primas das substâncias proibidas. I); o “cultivo de plantas destinadas à preparação de entorpecentes ou de substâncias
Em 1968, o Decreto-Lei nº 385, de 26 de dezembro daquele ano, sob a denominação que determinem dependência física ou psíquica” (inciso II); o “porte de substância
de “Comércio, posse ou facilitação destinadas à entorpecentes ou substância que entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica” (inciso III); a “aquisição
determine dependência física ou psíquica” deu “nova redação ao artigo 281 do Código de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica” (inciso
Penal”: IV); a “prescrição indevida de substância entorpecente ou que determine dependência
Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor a venda, física ou psíquica” (inciso V).
fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer No § 2º, tipificou-se o ato de “Prescrever o médico ou dentista substância
consigo, guardar, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, ou em dose evidentemente
substância entorpecente, ou que determine dependência física ou maior que a necessária ou com infração do preceito legal ou regulamentar”.
psíquica, sem autorização ou de desacôrdo com determinação legal No § 3º, criminalizou-se o “induzimento ao uso de entorpecente ou de substância
ou regulamentar: que determine dependência física ou psíquica” (inciso I), a utilização de “local destinado
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa de 10 a 50 vêzes o maior
ao uso de entorpecente ou de substância que determine dependência física ou psíquica”
salário-mínimo vigente no país.
(inciso II) e o “incentivo ou difusão do uso de entorpecente ou substância que determine
Ficou explícita, a partir deste diploma legal, a criminalização da posse para uso dependência física ou psíquica” (inciso III).
pessoal, com a cominação da mesma pena de reclusão de 1 a 5 anos, prevista para o Nos §§ 4º, 6ºe 7º, há previsão de formas qualificadas de prática do crime e no §5º
tráfico. a tipificação de “bando ou quadrilha” para o cometimento dos crimes previstos no artigo.
Em 29 de outubro de 1971, surgiu a Lei nº 5.726, para dispor “sobre medidas Observa-se, assim, que foi mantida a tipificação de condutas relacionadas à
preventivas e repressivas ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que produção, ao comércio e ao consumo, elevando a pena máxima de 5 para 6 anos de
determinem dependência física ou psíquica e dá outras providências”; trata-se da primeira reclusão; foi tipificada a quadrilha específica para o tráfico, prevendo a possibilidade de
lei específica sobre a matéria. Estabeleceu regras sobre a prevenção (artigos 1º/8º), sua formação com apenas duas pessoas, com pena de reclusão de 2 a 6 anos.
a recuperação dos infratores viciados (artigos 9º/13), o procedimento judicial (artigos Como medidas extrapenais previstas na mesma Lei nº 5.726/71, chama atenção
14/21) e, no artigo 22, novamente alterou a redação do artigo 281 do Código Penal, cujo o trancamento da matrícula do estudante encontrado com as substâncias proibidas36,
caput passou a ter a seguinte redação: bem como a perda do cargo de diretores de estabelecimentos de ensino que deixassem
de comunicar às autoridades sanitárias os casos de uso e tráfico dessas substâncias no
COMÉRCIO, POSSE OU USO DE ENTORPECENTE OU
SUBSTÂNCIA QUE DETERMINE DEPENDÊNCIA FÍSICA OU âmbito escolar.37
PSÍQUICA. Em 1976, foi editada nova legislação especial sobre a matéria, por meio da Lei nº
Art. 281. Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor à 6.368, derrogando o art. 281 do Código Penal.
venda ou oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar,
transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar de qualquer adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que
forma, a consumo substância entorpecente, ou que determine gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacôrdo prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo
com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, de 1 (um) substância entorpecente ou que determine dependência física ou
a 6 anos e multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) vêzes o maior salário- psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal
mínimo vigente no País. ou regulamentar;
Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50
(cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

36
Art. 8º. Sem prejuízo das demais sanções legais, o aluno de qualquer estabelecimento de ensino que
fôr encontrado trazendo consigo, para uso próprio ou tráfico, substância entorpecente ou que determine
dependência física ou psíquica, ou induzindo alguém ao seu uso, terá sua matrícula trancada no ano letivo.
35
Importante consignar que, nos termos do Decreto-Lei nº 159, de 10 de fevereiro de 1967, a atribuição para 37
Art. 7º. Os diretores dos estabelecimentos de ensino adotarão todas as medidas que forem necessárias à
relacionar as substâncias entorpecentes passou a ser do Diretor Nacional do Serviço de Fiscalização da prevenção do tráfico e uso, no âmbito escolar, de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência
Medicina e Farmácia do Departamento Nacional de Saúde, que deverá fazê-lo por meio de Portaria a ser física ou psíquica. Parágrafo único. Sob pena de perda do cargo, ficam os diretores obrigados a comunicar
publicada no Diário Oficial. Este Órgão, por meio da Portaria nº 08 de 1967, adotou as listas de entorpecentes às autoridades sanitárias os casos de uso e tráfico dessas substâncias no âmbito escolar, competindo a
contidas no documento da Convenção Única de Entorpecentes, de 1961. estas igual procedimento em relação àqueles.
REVISTA DO MPBA 270 271 REVISTA DO MPBA
O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem, indevidamente: Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar,
I - importa ou exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar,
expõe à venda ou oferece, fornece ainda que gratuitamente, tem em trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou
depósito, transporta, traz consigo ou guarda matéria-prima destinada fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em
a preparação de     substância entorpecente ou que determine desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão
dependência física ou psíquica; de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a
II - semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas destinadas à preparação 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
de entorpecente ou de substância que determine dependência física
ou psíquica. No § 1º foram tratadas as “matérias-primas ou plantas destinadas à preparação
§ 2º Nas mesmas penas incorre, ainda, quem: de entormulta.
I - induz, instiga ou auxilia alguém a usar entorpecente ou substância Nos diversos parágrafos deste dispositivo há outros tipos penais equiparados ao
que determine dependência física ou psíquica; tráfico.
II - utiliza local de que tem a propriedade, posse, administração, O tipo penal previsto no artigo 3439 relaciona-se aos petrechos para a preparação
guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda de drogas. No artigo 35 está tipificada a associação para o tráfico40; no artigo 36, o
que gratuitamente, para uso indevido ou tráfico ilícito de entorpecente financiamento do tráfico41; no artigo 37, a colaboração com o tráfico42; no artigo 38, a
ou de substância que determine dependência fisica ou psíquica.
prescrição culposa de drogas43 e, no artigo 39, a condução de embarcação depois da
III - contribui de qualquer forma para incentivar ou difundir o uso
ingestão de drogas, provocando dano, ainda que potencial44.
indevido ou o  tráfico ilícito de substância entorpecente ou que
determine dependência física ou psíquica. Mantendo a diferenciação de tratamento entre a posse de drogas para o tráfico
e para o consumo, a Lei estabeleceu, nos artigos 28 a 30 regras para este esta última
Nota-se, portanto, que a pena pra o tráfico de entorpecentes foi triplicada - passou situação. Conforme o art. 28,
a ser de 3 a 15 anos de reclusão. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer
Além disso, uma das principais características dessa Lei, no tocante à tipificação de consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em
condutas, foi a diferenciação de penas quanto à posse para uso pessoal, estabelecendo-a desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido
em 6 meses a 2 anos de detenção: às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de
Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, comparecimento a programa ou curso educativo.
substância entorpecente ou que determine dependência física ou
psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal Nota-se, assim, a ausência de cominação de pena privativa de liberdade para o
ou regulamentar: Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, autor destas condutas previstas no art. 28.
e pagamento de (vinte) a  50 (cinquenta) dias-multa.

Desde que editada, inúmeros projetos de lei dispunham sobre modificações da


Lei nº 6.368/76; um desses projetos originou a Lei nº 10.409/2002; contudo, diante dos
inúmeros vetos apostos pela Presidência da República, a Lei nº 6.368/76 permaneceu
disciplinando os tipos e penas, e a Lei 10.409/2002 a ela se juntou, disciplinando outros
aspectos do tema, em especial o procedimento.
Em 23 de agosto de 2006, foi promulgada a Lei nº 11.343/200638, revogando as 39
“Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar
duas anteriores. Ela contém a disciplina legal em matéria de drogas atualmente em vigor ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à
fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com
no Brasil.
determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 1.200 (mil
Os crimes estão previstos nos artigos 33 a 39. O tipo penal do tráfico de drogas e duzentos) a 2.000 (dois mil) dias-multa”.
inaugura o capítulo: 40
Art. 35.  Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos
crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei.
41
Art. 36.  Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta
Lei.
42
Art. 37.  Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação destinados à prática de
qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei.
43
Art. 38.  Prescrever ou ministrar, culposamente, drogas, sem que delas necessite o paciente, ou fazê-lo em
38
“Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção doses excessivas ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para 44
Art. 39.  Conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a dano potencial a
repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências”. incolumidade de outrem.
REVISTA DO MPBA 272 273 REVISTA DO MPBA
O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS

Assim, analisando os termos da Lei nº 11.343/06, assim com os das legislações Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei
precedentes, é fácil perceber que se trata de diplomas legais que reproduzem os são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e
dispositivos criminalizadores das convenções da Organização das Nações Unidas, liberdade provisória47, vedada a conversão de suas penas em restritivas
de direitos.48 Parágrafo único.  Nos crimes previstos no caput deste
marcadamente proibicionistas e, nesse contexto, faz do Brasil um dos inúmeros países
artigo, dar-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois
séquitos da referida política internacional. terços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico
Insta acrescentar que foram editados outros diplomas legais, aplicáveis às
drogas, e que também reforçam o cunho proibicionista, observando-se permissivo para Com tais elementos, fácil é concluir que a citada Lei dos Crimes Hediondos,
tais medidas na própria Constituição Federal que, no artigo 5º, inciso XLIII, determina assim como a atual Lei de Drogas, foram e são instrumentos contundentes da política
que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática proibicionista no Brasil.
da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos Também merece referência a Lei nº 9.034/95, posteriormente revogada pela Lei nº
como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, 12.850/13, nas quais há a disciplina sobre as organizações criminosas, ressaltando-se o
podendo evitá-los, se omitirem”. (grifo nosso).45 artigo 3º deste diploma legal, que permite o manejo de meios especiais de obtenção de
Com tal paradigma, foi editada a Lei nº 8.078/90, a Lei dos Crimes Hediondos, prova, como a colaboração premiada, a captação ambiental de sinais eletromagnéticos,
que estabeleceu regramento penal e processual penal gravoso para os autores destes ópticos ou acústicos, a ação controlada, o acesso a registros de ligações telefônicas e
crimes, podendo-se citar a vedação de liberdade provisória, de indulto e de progressão telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e
no regime de cumprimento da pena privativa de liberdade, que deveria ser cumprida a informações eleitorais ou comerciais, a interceptação de comunicações telefônicas e
integralmente no regime fechado.46 Além disso, e cumprindo o mandato de proibição telemáticas, o afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal e a infiltração policial.
constante no texto constitucional, vedou aos processados e condenados por tráfico de Ainda merece destaque a Lei nº 9.296/96, que disciplina a interceptação de
drogas a fiança, a graça e a anistia. Ainda, aumentou o prazo para a concessão do comunicações telefônicas e em sistemas de informática e telemática, assim como a Lei
livramento constitucional. nº 9.613/98, substancialmente alterada pela Lei nº 12.683/12, na qual é criminalizada a
Nesse contexto, importa assinalar que o artigo 44 da vigente Lei de Drogas, a de lavagem de capitais.
nº 11.343/06, estabeleceu que: Por fim, no contexto em análise, é necessário lembrar o teor do Decreto nº 5.144/04,
que regulamentou os §§ 1º, 2º e 3º do artigo 303 da Lei 7.565/86 - Código Brasileiro
de Aeronáutica. Este Decreto é específico sobre as aeronaves consideradas hostis ou
suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins, prevendo o art. 4o que:
A aeronave suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas
afins que não atenda aos procedimentos coercitivos descritos no art.
3º será classificada como aeronave hostil e estará sujeita à medida de
destruição”.

45 47
Daniel Nicory do Prado, após analisar as disposições que a Constituição Federal ostenta acerca das drogas No julgamento do HC nº 97256/RS, concluído no dia 01/09/2010, Relator o Min. Ayres Britto, o Pleno
ilícitas, conclui: “… a Constituição de 1988, tão elogiada pela extensão dos direitos e garantias fundamentais, do STF declarou a inconstitucionalidade incidenter tantum da expressão “vedada a conversão em penas
adota, para a questão das drogas, um regime oposto, beirando o de exceção, com restrições severas restritivas de direitos”: “HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ART. 44 DA LEI 11.343/2006:
aos direitos fundamentais mais básicos do indivíduo - liberdade, nacionalidade e propriedade - quando IMPOSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM PENA RESTRITIVA
comprovado o seu envolvimento com o tráfico ilícito de entorpecentes…. É clara a inspiração da política DE DIREITOS. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA À GARANTIA
internacional de Guerra às Drogas. Embora os tratados internacionais tenham deixado certa flexibilidade aos CONSTITUCIONAL DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (INCISO XLVI DO ART. 5º DA CF/88). ORDEM
Estados-Partes, como dito mais acima, o Brasil, ainda assim, optou pela via da repressão máxima”. PRADO, PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. (…). 5. Ordem parcialmente concedida tão-somente para remover o
Daniel Nicory do. Crítica ao Controle Penal das Drogas Ilícitas. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 26-27. óbice da parte final do art. 44 da Lei 11.343/2006, assim como da expressão análoga “vedada a conversão
46
Esta regra foi relativizada na jurisprudência com o passar dos anos, notadamente quando o Supremo em penas restritivas de direitos”, constante do § 4º do art. 33 do mesmo diploma legal. Declaração incidental
Tribunal Federal, em 23/02/2006, julgando o HC nº 82.959, a declarou inconstitucional. Essa decisão levou o de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da proibição de substituição da pena privativa de liberdade pela
legislador a editar, em 28 de março de 2007, a Lei nº 11.464, estabelecendo que “a pena por crime previsto pena restritiva de direitos; determinando-se ao Juízo da execução penal que faça a avaliação das condições
neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado” e que “A progressão de regime, no caso dos objetivas e subjetivas da convolação em causa, na concreta situação do paciente”.
48
condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, Para Maria Lúcia Karan, este Decreto instituiu, de forma oblíqua, uma verdadeira pena de morte (a morte
se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente”. Mesmo assim, a jurisprudência atual do sendo consequência praticamente certa do abate), vedada como regra geral; ademais, tal pena será
Supremo Tribunal Federal afastou a obrigatoriedade do regime inicial fechado para os crimes hediondos e imposta antecipadamente, sem processo, por mera autorização do Comandante da Aeronáutica. KARAN,
assemelhados (HC nº 111.840, julgado pelo STF em 14/06/12). Essa relativização também se percebeu com Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. Disponível em: <http://www.
relação às outras duas proibições não expressas na Constituição, a liberdade provisória e o indulto. leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20-%20legislacao%20brasileira.doc?1286477113>.
Acesso em: 09 maio 2015.
REVISTA DO MPBA 274 275 REVISTA DO MPBA
O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS

Nos termos do art. 5º, “A medida de destruição consiste no disparo Todas essas drogas psicoativas têm grande potencial de dano, seja fisiológico,
de tiros, feitos pela aeronave de interceptação, com a finalidade de seja mental. Além disso, uma parte significativa delas é bastante tóxica, gerando grande
provocar danos e impedir o prosseguimento do vôo da aeronave número de mortes acidentais todos os anos. E, o que é mais importante, os indivíduos
hostil e somente poderá ser utilizada como último recurso e após o
podem consumi-las de maneira abusiva, esporádica ou frequentemente, o que pode
cumprimento de todos os procedimentos que previnam a perda de
vidas inocentes, no ar ou em terra.49 levar tanto a comportamentos perigosos como a quadros graves de dependência.52
Isso evidencia que tanto as drogas psicoativas lícitas e livremente disponíveis
A análise da legislação brasileira sobre as drogas denota, com clareza, que o como as controladas ou totalmente ilegais são perigosas.
Brasil seguiu, desde o início do século XX, as inflexões proibicionistas gestadas no plano Por outro lado, tornando ilícitas algumas dessas drogas e mantendo outras
internacional, mantendo-se fiel, até hoje, às diretrizes da referida política. na legalidade, as convenções internacionais e leis nacionais fazem uma arbitrária
diferenciação entre as condutas de produtores, comerciantes e consumidores de umas e
outras substâncias: umas constituem crime e outras são perfeitamente lícitas; produtores,
5 CRÍTICAS AO PROIBICIONISMO comerciantes e consumidores de certas drogas são “criminosos”, enquanto produtores,
comerciantes e consumidores de outras drogas são empresários que agem em plena
5.1 ALEATORIEDADE DA SELEÇÃO DE DROGAS ILÍCITAS legalidade.
Essa diferenciação entre condutas essencialmente iguais configura uma distinção
O paradigma proibicionista atua sobre as substâncias psicoativas tornadas ilícitas, discriminatória incompatível com o princípio da isonomia.53 Sabe-se que o tratamento
como a maconha, a cocaína, a heroína, etc. Há uma distinção para outras substâncias diferenciado é admitido quando exista uma correlação lógica entre a peculiaridade
da mesma natureza e que permanecem lícitas, como o álcool, o tabaco, a cafeína, etc. diferencial acolhida e a desigualdade de tratamento conferida em função dela54. No caso
Contudo, não são utilizados critérios cientificamente confiáveis para essa distinção. em comento, não há diferença relevante entre as drogas tornadas ilícitas e as demais
Há as drogas psicoativas com aplicação médica, cuja comercialização segue regras drogas que permanecem lícitas, pois todas são substâncias que provocam alterações
rígidas de controle de receituário, como os ansiolíticos e os antidepressivos; por outro no psiquismo e podem gerar dependência e causar doenças físicas e mentais; todas
lado, há uma significativa quantidade de drogas acerca das quais o Estado se limita a são potencialmente perigosas e viciantes, e os efeitos mais ou menos danosos são
regular a produção e a comercialização, não o consumo, sendo de responsabilidade produto mais da forma como quem as usa se relaciona com elas do que de sua própria
individual as eventuais consequências do uso indevido; há, ainda, inúmeras drogas que composição -uma droga mais potente consumida com moderação pode ter efeitos menos
dispensam receituário médico, são de livre uso e comercialização, como, por exemplo,
os analgésicos.50
Há, também, os produtos que contêm substâncias psicoativas, mas sem aplicação
médica oficial, como o tabaco e as bebidas alcoólicas e estimulantes - café, chá,
energéticos, etc. Embora possam sofrem restrições diferentes em cada país, no geral,
seu comércio é legal e a decisão sobre compra e consumo é individual para os adultos.
No caso da cafeína, não há restrição nem sequer para os menores.
E há o conjunto de drogas psicoativas ilegais que, não obstante, são maciçamente 52
FIORI, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas.
consumidas por milhões de pessoas no mundo; não há um controle sobre sua In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de
comercialização, e o Estado se limita a exigir que seus cidadãos se mantenham distantes Ciências Criminais - IBCCRIM, 2014. p. 142.
para que não coloquem a si e à sociedade em risco.51 53
WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: entre o proibicionismo e a redução de
danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 35.
54
Celso Antônio Bandeira de Mello, a propósito, indica um raciocínio lógico sobre o conteúdo jurídico do
49
princípio da igualdade: em primeiro lugar, deve ser observado o elemento tomado como fator de desigualação;
Para Maria Lúcia Karan, este Decreto instituiu, de forma oblíqua, uma verdadeira pena de morte (a morte depois, deve-se reportar à correlação lógica abstrata existente entre o fator de discrímen e a disparidade
sendo consequência praticamente certa do abate), vedada como regra geral; ademais, tal pena será estabelecida no tratamento jurídico diversificado; por fim, é necessário verificar se esta correlação lógica
imposta antecipadamente, sem processo, por mera autorização do Comandante da Aeronáutica. KARAN, encontra-se em consonância com os valores do sistema constitucional. (MELLO, Celso Antonio Bandeira
Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. Disponível em: <http://www. de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 21). Não se pode
leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20-%20legislacao%20brasileira.doc?1286477113>. descuidar, ademais, da proximidade da isonomia com o princípio da proporcionalidade, que fornece ao
Acesso em: 09 maio 2015. tomador de uma decisão uma série de critérios para balizar os argumentos e bens jurídicos eventualmente
50
FIORI, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. em rota de colisão, com o objetivo de estabelecer equilíbrio, harmonia, e justa proporção entre valores
In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de confrontados (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10.
Ciências Criminais - IBCCRIM, 2014. p. 142. Segundo este autor, os analgésicos “no Brasil lideram os ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 167).
investimentos do mercado publicitário e estão, ao mesmo tempo, relacionados a milhares de mortes anuais, KARAN, Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. Disponível
seja por reações adversas e efeitos colaterais, seja por consumo abusivo”. em: <http://www.leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20-%20legislacao%20brasileira.
51
Ibidem, p. 143. doc?1286477113>. Acesso em: 09 maio 2015.
REVISTA DO MPBA 276 277 REVISTA DO MPBA
O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS

danosos do que uma droga menos potente consumida abusivamente.55 5.2 A PROIBIÇÃO POTENCIALIZA O MERCADO CLANDESTINO DAS DROGAS
Observa-se, assim, que não é utilizado critério relevante para distinguir as drogas ILÍCITAS
lícitas das ilícitas, e todos os malefícios normalmente atribuídos a estas últimas também
podem ser aplicados àquelas. E, mesmo que se utilizasse como elemento diferenciador Como já referido, a estratégia do proibicionismo quanto às drogas ilícitas determina
o potencial danoso de cada droga, isto é, o grau de lesividade da substância à saúde que o Estado seja agente ativo para impedir a sua produção, comercialização e circulação
humana, a arbitrariedade persistiria, pois algumas drogas lícitas são potencialmente e, quanto ao consumidor, para dissuadi-lo a não fazer uso delas, especialmente por meio
mais danosas, em sua própria composição, do que algumas drogas tornadas ilícitas.56 da punição criminal. Ademais, essa política vê na proibição plena e geral a única forma
E é a ausência de fundamentação para a proibição de algumas substâncias de enfrentar o problema.
que cria o infundado e falacioso pressuposto do proibicionismo, segundo o qual certas Contudo, foi sob os auspícios dessa política, no século XX, que se observou
drogas são proibidas porque são ruins e são ruins porque são proibidas, e as leis devem significativo crescimento do consumo de drogas ilícitas.60 Como observa Maurício Fiori,
continuar determinando que produzi-las, comercializá-las e consumi-las é errado e, “ainda que não se possa creditar o aumento do consumo de drogas ilegais à proibição,
portanto, punível.57 deve-se admitir que ela falhou em seus objetivos, seja de erradicá-lo, seja de contê-lo”.61
Nesse contexto, Mariana de Assis
Percebe-se, Brasil
portanto, e da
que Weigert
mesmapondera:
forma como não há possibilidade Além disso, as drogas ilícitas foram se tornando mais diversificadas e acessíveis do
de extrair dado ontológico das condutas em gênero previstas como que antes de serem proibidas. O mesmo autor acrescenta que o grande equívoco do
crime, igualmente inexiste esta referência no que diz respeito à proibicionismo é supor “que um fenômeno de tamanha complexidade possa ser contido
definição da (i)licitude de determinadas substâncias entorpecentes, por um marco regulatório tão simplório, que divide drogas tão diferentes num esquema
restando a opção no plano essencialmente político e moral.58 binário: permitidas e proibidas”.62
Umas das consequências da proibição da produção e o comércio de drogas ilícitas
Por fim, e a propósito desse tema, convém lembrar que Rosa Del Olmo refere é a fomentação de um rentável mercado criminoso em torno delas e, desenvolvendo-se
um estudo sobre a história do ópio nos Estados Unidos da América, desenvolvido pelo sem nenhum tipo de regulação, envolve a exploração de trabalho, danos ambientais63, a
criminólogo alemão Sebastian Scheerer, segundo o qual o ópio pode ser consumido pelo corrupção de agentes públicos, a violência armada para alcançar interesses e solucionar
processo de fumá-lo, comê-lo ou injetá-lo; a forma menos danosa à saúde do usuário conflitos, entre outros males.
seria a primeira, ao passo que a última, a injeção, seria a mais danosa; não obstante, Nesse contexto proibitivo, as inúmeras pessoas empenhadas no comércio de
a primeira foi criminalizada muito antes da última. A explicação: “era preciso deslocar drogas ilegais praticam vários crimes correlatos, como o tráfico e porte de armas de
a mão-de-obra chinesa - únicos fumadores na época - quando se tornou ameaçadora fogo, necessárias para o alcance dos objetivos num ambiente ilegal e, por isso, sempre
sua competição no mercado de trabalho”.59 Esse dado histórico evidencia que a eleição deflagrado; extorsões e corrupção de agentes públicos, em especial os que atuam na
de determinadas substâncias para taxa-las de ilícitas não observa parâmetro técnico- segurança pública, acompanhantes necessárias de atividade econômica que se realiza
científico, o que seria desejável. num mercado ilegal; homicídios, notadamente no contexto de manutenção e conquista de
territórios para o comércio, e também de usuários inadimplentes; a lavagem de capitais,
dada a origem ilícita dos altos ganhos com o comércio. E tudo isso é fomentado pela alta

60
Maria Lúcia Karan afirma que “nesses anos todos, as arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas
foram se tornando mais baratas, mais potentes, mais diversificadas e muito mais acessíveis do que eram
antes de serem proibidas e de seus produtores, comerciantes e consumidores serem combatidos como
55 “inimigos” nessa nociva e sanguinária guerra”. KARAN, Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a
KARAN, Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. Disponível em: <http://
direitos fundamentais. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20-%20
www.leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20-%20legislacao%20brasileira.doc?1286477113>.
legislacao%20brasileira.doc?1286477113>. Acesso em: 09 maio 2015.
Acesso em: 09 maio 2015. 61
56 FIORI, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas.
KARAN, Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. Disponível em: <http://
In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de
www.leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20-%20legislacao%20brasileira.doc?1286477113>.
Ciências Criminais - IBCCRIM, 2014. p. 145.
Acesso em: 09 maio 2015. 62
57 Ibidem.
FIORI, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. 63
In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de Com fundamento na proibição, ocorre a erradicação das plantas, quando descoberta a plantação, o que
Ciências Criminais - IBCCRIM, 2014. p. 144. é feito de manual ou química (uso de herbicidas); além de provocar o desflorestamento das áreas atingidas,
58
WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: entre o proibicionismo e a redução de leva os produtores a desflorestar novas áreas para o cultivo, geralmente em ecossistemas ainda mais frágeis.
danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 35. Também deve ser citado o despejo, sem restrições, no solo e em rios dos resíduos tóxicos resultantes do
59 processamento químico das plantas colhidas, o que é potencializado pela necessidade de os agentes evitarem
OLMO, Rosa Del. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 26. exposição.
REVISTA DO MPBA 278 279 REVISTA DO MPBA
O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS

lucratividade dessa atividade64, que desperta o interesse de muitas pessoas que, sem Nessa perspectiva, portanto, é falacioso o argumento segundo o qual a proibição
opções melhores no mercado formal de trabalho, veem nela o caminho para a realização é o único meio de proteger a saúde das pessoas.
das necessidades econômicas. Ainda no contexto da proteção à saúde, é sabido que todas as drogas psicoativas,
Ademais, e sob a perspectiva do consumidor de drogas ilícitas, é perceptível que tanto as lícitas quanto as ilícitas, têm potencial de dano, fisiológico e/ou mental, e
ele, por conta do proibicionismo, é obrigado a manter estreito contato com o crime, já que algumas são tóxicas, e os indivíduos podem consumi-las de forma abusiva, esporádica
tanto o antecedente comércio, quanto o próprio consumo, são atividades ilegais. ou frequentemente, com consequentes comportamentos perigosos e quadros de
dependência, graves ou não.
5.3 A SUPOSTA PROTEÇÃO DA SAÚDE Ou seja, todas as drogas são perigosas e, nessa medida, é legítima a preocupação
com as formas e quantidades de uso de tais substâncias, sendo aceitável e exigível o
Como visto, um dos fundamentos da proibição da produção, do comércio e do controle estatal e social.
consumo das drogas ilícitas é a proteção à saúde. Contudo, e ao contrário do que postula o paradigma proibicionista, o uso de
Contudo, é a proibição que causa maiores riscos e danos à saúde dos usuários. De substâncias psicoativas não pode ser, de forma simplificada, considerado prescindível.
fato, com a decisão de enfrentar um problema de saúde com o sistema penal, o Estado Com efeito, o consumo desses produtos, plantas e moléculas tem diversas motivações e
agrava esse próprio problema de saúde65, podendo-se elencar diversas justificativas tem importância. Segundo Maurício Fiori,
para essa assertiva. […] ajudam no enfrentamento de doenças e infecções, aliviam a dor,
De um lado, a proibição entrega o próspero mercado das drogas ilícitas a agentes apaziguam a ansiedade, melhoram o desempenho, despertam prazer,
econômicos que, atuando na clandestinidade, não estão sujeitos a qualquer controle excitam, inspiram reflexões, facilitam relações sociais e, o que talvez
nas suas atividades. E, nesse contexto, são eles que decidem sobre o potencial tóxico, seja uma combinação de cada uma dessas coisas, suspendem a forma
a qualidade, o preço e o destinatário das drogas que fornecerão; sem marco regulatório, ordinária de perceber o mundo. Por essas e muitas outras razões, os
aumentam as possibilidades de adulteração e de impureza, além do desconhecimento seres humanos as procuraram em toda a história e continuarão a fazê-
acerca do potencial tóxico das drogas por quem as vende e as consome. lo68.
De outro lado, a ilegalidade gera um consumo descuidado e não higiênico, com Nesse contexto, a política proibicionista mostra-se claramente insuficiente, pois
a consequente difusão de doenças transmissíveis. Também é notável que a proibição limita a resposta do Estado à criminalização do consumo e dos atos antecedentes -
dificulta a assistência e o tratamento, inibidos, por quem os buscaria voluntariamente, produção e comércio. Muito mais do que isso, e partindo da premissa de que as drogas
pela necessária revelação da prática prévia de uma conduta ilícita. Por fim, a proibição continuarão a existir e serem consumidas não obstante a proibição criminal, é desejável
enseja dificuldades ao emprego das drogas ilícitas com fins terapêuticos.66 que promova o autocuidado, a prevenção e a redução de danos, medidas por certo mais
Ainda, a proibição faz com que o consumidor de drogas ilícitas seja confrontado eficazes e que são ignoradas pelo proibicionismo.
com a necessidade de optar por interromper o consumo ou manter-se escravo delas;
caso se tratasse de droga legal, os serviços de saúde poderiam fornecer informações a 5.4 O AUMENTO DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA
respeito de usos mais seguros e, assim, estimular o autocuidado.67
O proibicionismo faz do Sistema de Justiça penal o principal instrumento para
concretizar seu intento de erradicar as drogas. Entretanto, sem nenhuma eficácia.
A atividade policial é direcionada contra os comerciantes varejistas, e o combate
ao tráfico de drogas é um dos principais responsáveis pelo significativo crescimento do
número de pessoas presas, fenômeno que se observa diversos países. No Brasil, os
crimes relacionados às drogas respondem pela maioria dos encarceramentos - entre
2006 e 2010, cresceu 62%, ao passo que o crescimento em relação a outros crimes foi
64
Segundo Maria Lúcia Karan, a ONU estimou o valor desse mercado em US$ 320 bilhões no ano de 2003. de apenas 8,5%.69
KARAN, Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. Disponível em: <http://
www.leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20-%20legislacao%20brasileira.doc?1286477113>.
Acesso em: 09 maio 2015.
65
KARAN, Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. Disponível em: <http://
68
www.leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20-%20legislacao%20brasileira.doc?1286477113>. FIORI, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas.
Acesso em: 09 maio 2015. In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de
66
Ibidem. Ciências Criminais - IBCCRIM, 2014. p. 143.
69
67
FIORI, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. FIORI, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas.
In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais - IBCCRIM, 2014. p. 147. Ciências Criminais - IBCCRIM, 2014. p. 147. p. 146.
REVISTA DO MPBA 280 281 REVISTA DO MPBA
O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS

É notável, também, que as Polícias voltam sua atuação primordialmente para a É muito provável que, quando essa data chegar, mais uma vez será necessário
apreensão de drogas e prisão de traficantes, com o intuito de retirar aquelas das ruas e reconhecer que se trata de estratégia que, sozinha, não tem aptidão para enfrentar a
vendo nestes o verdadeiro “inimigo” a ser combatido. questão das drogas ilícitas, e que medidas alternativas, já concebidas e aplicadas em
Não obstante, sabe-se que o agente preso é imediata e facilmente substituído alguns países, como a regulamentação e a redução de danos, sejam mais adequadas,
por outro, e que é apreendida apenas uma pequena parte das drogas ilícitas que não para alcançar a irrealizável meta da erradicação das drogas, mas para permitir uma
circulam, dando conta da ineficácia dessa política estatal que, não obstante as prisões convivência minimamente harmoniosa com elas e, acima de tudo, respeitar os direitos
superlotadas, não é capaz de reduzir de forma significativa a disponibilidade das fundamentais de quem com elas se envolve.
substâncias psicoativas proibidas.

REFERÊNCIAS
6 CONCLUSÃO
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
Conforme demonstrado, o proibicionismo é uma política criminal, uma estratégia 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
e um modelo que, aplicado às drogas ilícitas, postula a sua erradicação, combatendo
BRASIL, Mariana de Assis. Uso de drogas e sistema penal. Entre o proibicionismo e a
todas as fases: a produção, a distribuição e o consumo. Ademais, usa primacialmente as
redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
ferramentas do Direito Penal e do respectivo Sistema de Justiça para alcançar o referido
desiderato. CARVALHO, Salo de. A Política criminal de drogas no Brasil. Estudo criminológico e
Também ficou evidenciado que esse modelo, em que pese ser prevalente há dogmático. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. (Edição Digital).
muitos anos nas legislações supranacionais e nacionais, não alcançou as metas a que
se propôs70, sofrendo, na atualidade, sérios e relevantes questionamentos. FIORI, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista
É notável e curioso que, apesar do contundente fracasso, continue sendo a e as alternativas. In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva.
estratégia abraçada pelas Nações Unidas para o enfrentamento da relevante questão São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM, 2014.
das drogas. A evidência disso exsurge de manifestações oficiais, como a emitida na
Sessão Especial da Assembleia-Geral das Nações Unidas (UNGASS) de 1988, na qual GAUER, Ruth Maria Chittó. Uma leitura antropológica do uso de drogas. Fascículos
foi lançado o notório slogan “A Drug-Free World - We Can Do It”, anunciando a intenção de Ciências Penais: Drogas – Abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Sergio Antônio
de erradicar todas as drogas ilícitas até 2008. Em 2009, no encontro da Comission on Fabris Editor, v. 3, n. 2, p. 60, abr./jun., 1990.
Narcotic Drugs (CND), em Viena, uma nova justificativa foi assim exposta: se um mundo
sem drogas parece pouco factível num futuro próximo, continuar a guerra é o que garante GUILHERME, Vera M. Quem tem medo do lobo mau? A descriminalização do tráfico de
que o consumo não atinja níveis catastróficos. Assim, e contrariando expectativas de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
mudanças, foi mantida a política mundial proibicionista de guerra às drogas, adiando a
meta de erradicação para o ano de 2019. KARAN, Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais.
Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20-%20
legislacao%20brasileira.doc?1286477113>. Acesso em: 09 maio 2015.

______. Drogas: dos perigos da proibição à necessidade da legalização. Disponível


em: <http://www.leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/57_SEMIN%C3%81RIO%20
LEAP-ICC%20-%20Apresenta%C3%A7%C3%A3o.pdf?1365476879>. Acesso em: 10
70 maio 2015.
Maria Lúcia Karan informa que “dados da Drug Enforcement Agency (DEA) apontam que, em 1970 - ou seja,
antes da declaração de “guerra às drogas” -, 4 milhões de pessoas nos Estados Unidos da América, maiores
de 12 anos, tinham usado uma droga ilícita, correspondendo a 2 por cento da população de então, enquanto MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed.
em 2003 esse número era de 112 milhões, correspondendo a 46 por cento da população”, KARAN, Maria São Paulo: Malheiros, 2002.
Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. Disponível em: <http://www.leapbrasil.
com.br/media/uploads/texto/10_Drogas%20-%20legislacao%20brasileira.doc?1286477113>. Acesso em: 09 MORAIS, Renato Watanabe de. LEITE, Ricardo Savignani Alvares. VALENTE, Sílvio
maio 2015. Além disso, “A Organização das Nações Unidas (ONU) calcula que, no ano de 2008, de 149 Eduardo. Breves considerações sobre a política criminal de drogas. In: SHECAIRA,
a 272 milhões de pessoas, entre 15 e 64 anos, fizeram uso de tais substâncias proibidas”. KARAN, Maria
Lúcia. Drogas: dos perigos da proibição à necessidade da legalização. Disponível em: <http://www.leapbrasil. Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de
com.br/media/uploads/texto/57_SEMIN%C3%81RIO%20LEAP-ICC%20-%20Apresenta%C3%A7%C3%A3o. Ciências Criminais - IBCCRIM, 2014.
pdf?1365476879>. Acesso em: 10 maio 2015.
REVISTA DO MPBA 282 283 REVISTA DO MPBA
O PROIBICIONISMO COMO MODELO DE CONTROLE PENAL DAS DROGAS ILÍCITAS

OLMO, Rosa Del. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: PUBLICIDADE INFANTIL E A ATUAÇÃO (D)EFICIENTE DOS ÓRGÃOS DE
Revan, 1990. PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR

PRADO, Daniel Nicory do. Crítica ao controle penal das drogas ilícitas. Salvador: Ana Rosa Silva Mascarenhas*
Juspodivm, 2013.
PRADO, Daniel Nicory do. De drogas e democracias. Boletim IBCCRIM, São Paulo, EMENTA
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ed. Especial Drogas, out. 2012. O presente artigo apresenta o resultado de estudos sobre a publicidade infantil, seu
RASSI, João Daniel; GRECO FILHO, Vicente. Lei de drogas anotada lei n. 11.343/2006. conceito, características e princípios. Também foram trazidas a regulamentação
3. ed. São Paulo: Saraiva. (Edição Digital) existente no Brasil e a análise de alguns casos concretos de abusividade por parte dos
atores publicitários. Pretende-se, com tal estudo, questionar a necessidade de novas
RIBEIRO, Maurides de Melo. Drogas e redução de danos. São Paulo: Saraiva, 2013. regulamentações e a efetividade na atuação dos órgãos de proteção e defesa do
______. Política criminal e redução de danos. In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.) consumidor.
Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais –
IBCCRIM, 2014. PALAVRAS-CHAVE: Publicidade. Criança. Fiscalização. Regulamentação. Brasil.

RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas:


o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese (Doutorado) - 1 INTRODUÇÃO
Universidade de São Paulo - Faculdade de Direito. São Paulo, 2006.
RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Drogas e cárcere: repressão às drogas, O presente artigo objetiva analisar publicidade infantil no Brasil, descrevendo a
aumento da população penitenciária brasileira e alternativas. In: SHECAIRA, Sérgio regulamentação existente e analisando alguns casos concretos de abusividade nessa
Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências área. As constatações da forte influência da publicidade na vida e nos hábitos das
Criminais - IBCCRIM, 2014. crianças, e das suas nefastas consequências motivaram esse trabalho, que utilizará os
métodos de pesquisa bibliográfica e de estudo de caso.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Reflexões sobre as Políticas de Drogas. In: SHECAIRA, No primeiro capítulo, a publicidade será conceituada, especialmente aquela
Sérgio Salomão (Org.) Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de dirigida ao público infantil, identificando os princípios e restrições que a esta se aplicam.
Ciências Criminais – IBCCRIM, 2014. Ainda neste tópico, o controle existente sobre essa espécie de marketing será analisado.
SHERRER, Sebastian. Estabelecendo controle sobre a cocaína (1910-1920). In: Drogas: No segundo capítulo, serão feitas considerações acerca dos órgãos de proteção e
é legal? Um debate autorizado. Rio de Janeiro: Imago, 1993. defesa do consumidor no País, elencando tanto os de natureza pública quanto privada,
bem como as suas respectivas atribuições dentro do Sistema Nacional de Proteção
ZACCONE, Orlando. Acionistas do Nada. Quem são os traficantes de drogas. 3. ed. Rio e Defesa do Consumidor (SNDC). Por fim, serão analisados alguns casos concretos
de Janeiro: Revan, 2007. de atuação dos principais órgãos do SNDC, seus resultados e impactos sociais e/ou
WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de drogas e sistema penal: entre o proibicionismo jurídicos.
e a redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 32.
2 PUBLICIDADE

Neste tópico, serão apresentados conceitos de publicidade, suas características e


os princípios regentes nas relações de consumo, estabelecendo premissas para análise
da publicidade infantil e abusiva.

*
Bacharel em direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), servidora do Ministério Público do Estado da
Bahia e membro do Grupo de Pesquisa “Temas essenciais do Direito das Relações de Consumo: Publicidade,
Infrações Penais, Filosofia e Sociologia do Consumo Exagerado” – orientadora: Profª Dra Joseane Suzart
Lopes da Silva.
REVISTA DO MPBA 284 285 REVISTA DO MPBA
PUBLICIDADE INFANTIL E A ATUAÇÃO (D)EFICIENTE DOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR PUBLICIDADE INFANTIL E A ATUAÇÃO (D)EFICIENTE DOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR

Apesar de o meio publicitário empregar indistintamente os termos publicidade 2.1.1 Princípio da identificação da mensagem publicitária
e propaganda como se sinônimos fossem, a doutrina nacional distingue tais termos,
assim como o Código de Defesa do Consumidor (CDC). A publicidade é aquela “voltada O CDC, em seu artigo 36, determina que “a publicidade deve ser veiculada de tal
para difusão de uma mercadoria especifica”, tendo um objetivo comercial, enquanto a forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal”. Exige-se que a
propaganda volta-se “para a difusão de uma ideia”.1 Em outras palavras, a publicidade é identificação pelo consumidor-destinatário de que está sendo “exposto a mensagem de
um meio de marketing, que visa um fim comercial, o lucro mediato ou imediato, enquanto caráter publicitário deve ocorrer sem esforço ou exigência de capacitação técnica e no
a propaganda visa divulgar ideias, filosofias, religiões, crenças, tendências políticas, etc.2 momento de sua veiculação”.5
Esse princípio também é consagrado pelo Código Brasileiro de Autorregulamentação
2.1 CONCEITO, CARACTERÍSTICAS E PRINCÍPIOS Publicitária (CBARP), ao exigir que a atividade publicitária seja sempre ostensiva e que
o anúncio seja facilmente distinguido como tal, independente da sua forma ou meio de
O termo publicidade apresenta diferentes significados, conforme a área do veiculação6. Tal exigência apresenta como razão possibilitar que o consumidor se defenda
conhecimento que se relacione. Será utilizado, neste estudo, o conceito de publicidade dos efeitos persuasivos da publicidade, podendo escolher resistir aos argumentos
comercial, que se relaciona ao mercado de consumo e ao comércio de produtos e trazidos ou ceder a eles de forma consciente.
serviços. As publicidades denominadas ocultas, clandestinas ou camufladas, em que a
Publicidade, na definição de Philip Kotler3, é uma forma paga de apresentação função de promover o consumo de certos produtos ou serviços não está identificada de
ou promoção de ideias, produtos ou serviços por um patrocinador identificado, sendo forma clara, exibindo a (falsa) aparência de uma mensagem neutra ou não patrocinada
seu objetivo estimular e influenciar o público em relação à aquisição de determinados por um fornecedor, podem se tornar ainda mais influentes e eficazes sobre o seu receptor,
produtos ou serviços, relacionando-se, consequentemente, ao mercado de consumo. sendo vedadas pelo ordenamento nacional e enquadradas no gênero de publicidade
A publicidade comercial se caracteriza por: ser um ato de exposição pública de enganosa. São exemplos desta, a publicidade redacional, em que a mensagem
algo; apresentar um conteúdo informativo ou demonstrativo; ter fins econômicos – já publicitária se confunde facilmente com uma matéria jornalística, e o merchandising,
que busca incentivar a realização de contratos de consumo; ser onerosa, vez que se que se caracteriza pela exibição aparentemente casual de um produto ou serviço em
destina exclusivamente aos consumidores; exigir a identificação do fornecedor e denotar programas de entretenimento. Ressalte-se, porém, que tais técnicas publicitárias, por
a existência de uma relação entre fornecedor e consumidor (mesmo que não haja a si só, não violam o princípio em tela, desde que sua natureza e seu patrocinador sejam
efetiva formalização de um contrato de consumo). identificados com facilidade.7
Partindo-se de tais características, pode-se definir publicidade como “ato lícito, A técnica da publicidade subliminar – definida pelo Código da Publicidade Português
efetuado às expensas do fornecedor, que visa levar ao conhecimento do público como aquela que “mediante o recurso a qualquer técnica possa provocar no destinatário
consumidor uma imagem ou uma mensagem com um conteúdo informativo” e finalidade percepções sensoriais de que ele não chegue a tomar consciência”8 - também é proibida
econômica, destinando-se “a fomentar direta ou indiretamente a realização de negócios pelo ordenamento pátrio, constituindo inclusive ilícito civil e penal.9
jurídicos de consumo”.4
No ordenamento jurídico brasileiro, a atividade publicitária é regida por diversos 2.1.2 Princípio da veracidade
princípios, que serão expostos de forma sucinta nos próximos subtópicos.
O princípio da veracidade, para Lucia Magalhães Dias, talvez seja o princípio
de maior expressão no controle da atividade publicitária, podendo ser identificado em
praticamente todas as legislações de defesa do consumidor no mundo.10

5
PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no Código de Defesa do Consumidor.
1 São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 85.
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do 6
anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005 passim. Dispõe o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária:
2
“Artigo 9º A atividade publicitária de que trata este Código será sempre ostensiva.”
SILVA, Marcus Vinicius Fernandes Andrade da. O direito do consumidor e a publicidade. São Paulo: MP “Artigo 28 O anúncio deve ser claramente distinguido como tal, seja qual for a sua forma ou meio de veiculação.”
Editora, 2008. p. 19-21. 7
3
DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p.
KOTLER, Philip. Administração de Marketing: Análise, Planejamento, implementação e controle. 5. ed. São 67-69.
Paulo: Atlas, 1998, p. 554. In: KAMLOT, Daniel. Persuasão: A essência da propaganda. Disponível em: < 8
PORTUGAL. Código da Publicidade português (Decreto-lei 330/1990), art. 9.3.
http://www.revistamarketing.com.br/materia.aspx?m=860>. 9
4 Vide art. 37 e 67 do CDC.
MARTINEZ, Sergio Rodrigo. O ambiente conceitual da publicidade de consumo e de seu controle no Brasil. 10
Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 15, v. 15, p. 231, 2006. DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 70.
REVISTA DO MPBA 286 287 REVISTA DO MPBA
PUBLICIDADE INFANTIL E A ATUAÇÃO (D)EFICIENTE DOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR PUBLICIDADE INFANTIL E A ATUAÇÃO (D)EFICIENTE DOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR

No Brasil, o CDC tratou de consagrar o dever de veracidade pelo fornecedor e Por sua vez, no caso de descumprimento da oferta pelo anunciante, o consumidor
reprimir a publicidade enganosa, mesmo que por omissão. Segundo o art. 6º do citado pode “exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou
Código, é direito básico do consumidor “a informação adequada e clara sobre os publicidade”, conforme determina o art. 35 do CDC. Entretanto, no caso de impossibilidade
diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, de cumprimento, pode-se “aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente”, ou
composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que ainda “rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada,
apresentem”, além da “proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos monetariamente atualizada, e a perdas e danos”.
comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou
impostas no fornecimento de produtos e serviços”. 2.1.4 Princípio da não-abusividade da publicidade
O CBARP também dispõe sobre a correta apresentação dos produtos e serviços
no mercado de consumo, determinando, em seu art. 27, que “o anúncio deve conter A publicidade não pode ser abusiva, conforme o CDC.13 Entende-se, para tanto,
uma apresentação verdadeira do produto oferecido (...)”. O consumidor tem o direito publicidade abusiva como aquela que atente contra os valores éticos e morais da
de escolher determinado produto ou serviço com base em informações verdadeiras sociedade, que desrespeite o consumidor, ou que possa induzi-lo a se comportar de
e corretas sobre suas características e condições, sendo vedada a veiculação de forma prejudicial a sua saúde e segurança. Busca-se reprimir desvios que prejudicam
informações falsas ou inexatas, bem como a utilização de qualquer meio que possa o consumidor, agredindo valores entendidos como importantes pela sociedade, e não
induzir o consumidor em erro, em função da própria boa-fé objetiva, característica das atingindo diretamente o bolso do destinatário da mensagem publicitária, como, em geral,
relações de consumo. ocorre nos casos de enganosidade.
Em relação ao público infantil, o Código Consumerista define como abusiva a
2.1.3 Princípio da vinculação da oferta publicitária publicidade que se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança.
O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, por sua vez, vai mais longe,
Diferentemente da oferta clássica do Direito Civil11, no ramo consumerista a determinando que “os anúncios deverão refletir cuidados especiais em relação à segurança
oferta não precisa trazer os elementos essenciais do futuro contrato, bastando que e às boas maneiras e, ainda, abster-se de: desmerecer valores sociais positivos”; provocar
seja suficientemente precisa (normalmente informa apenas o preço ou a quantidade de qualquer tipo de discriminação; impor a noção de que o consumo enseja superioridade (e
parcelas) para ter efeito vinculante em relação ao fornecedor, passando a obrigar este a sua falta, a consequente inferioridade do sujeito); provocar situações de constrangimento
cumpri-la em seus termos e integrando o futuro contrato de consumo. aos pais ou responsáveis para coagi-los a adquirir determinado produto ou serviço;
Não se admite aqui que o fornecedor crie falsas expectativas em seus destinatários, dentre outras condutas condenáveis. Tal regulamentação privada ainda impõe que os
vigendo a máxima do “prometeu, cumpriu”, pois é consequência lógica da boa-fé vigente anúncios deverão “respeitar a dignidade, ingenuidade, credulidade, inexperiência e o
nas relações de consumo que o fornecedor anuncie apenas o que existe ou que possa sentimento de lealdade do público-alvo.”14
cumprir.12
É importante ressaltar que a oferta nem sempre é feita através de publicidade, 2.1.5 Princípio da correção do desvio publicitário
podendo se dar com a simples exposição dos produtos em vitrines ou máquinas
automáticas (de café ou salgadinhos), com a entrega de um orçamento ou no próprio Uma vez verificada a ocorrência de um desvio publicitário, o fornecedor deve
rótulo das embalagens, etc. O produto publicitário, por sua vez, nem sempre se caracteriza corrigi-lo através da contrapropaganda, objetivando desfazer o malefício da publicidade
numa oferta, pois pode apenas expor um produto, através de um merchandising, ou pode enganosa ou abusiva, veiculando, às custas do infrator, da mesma forma, frequência e
ser uma publicidade institucional (aquela que visa promover a instituição). Esse princípio, dimensão, preferencialmente no mesmo veículo, local, espaço e horário, a propaganda
todavia, abrange todas as formas de marketing e não apenas a publicidade. correta.
Alguns discutem a natureza de tal sanção e se a mesma só poderia ser imposta
pela via administrativa ou judicial, sendo o entendimento majoritário de que ela pode ser
determinada por ambas as vias, desde que respeitado o princípio do contraditório e da
ampla defesa e observado a efetividade da medida.

11
Confira art. 427 e 429 do Código Civil. 13
Verifique art. 37, caput e § 2º do CDC.
12
DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 14
CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA. Código de Autorregulamentação
76-78. Publicitária. São Paulo, 2008. Artigo 37.
REVISTA DO MPBA 288 289 REVISTA DO MPBA
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2.1.6 Princípio da não captura (abusiva) do consumidor


2.2.2 Restrições da publicidade dirigida à criança
Diversas vezes a atividade de captura do consumidor pode se mostrar abusiva e
invasiva à sua vida privada. A prática, por exemplo, de envio exagerado de mensagens A Constituição não prevê restrições específicas à publicidade infantil, mas
para celular (SMS) ou de e-mails, telefonemas de telemarketing, visitas domiciliares de determina como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança direito à
vendedores em dias e horários inapropriados, podem configurar formas abusivas de dignidade, ao respeito e à liberdade15. Desta forma, cabe ao legislador infraconstitucional
captura de clientes. editar normas e ao operador interpretá-las com vistas a garantir tais direitos. A Carta
Essas práticas tendem a tornar a vida do consumidor um constante bombardeio Magna ainda traz para as emissoras de rádio e televisão a orientação de que deem
de mensagens publicitárias e de lutas concorrenciais entre as empresas, invadindo a sua preferência, em sua programação, às “finalidades educativas, artísticas, culturais e
intimidade e seu direito de selecionar produtos quando julgar necessário. informativas”, respeitando os “valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
O ordenamento brasileiro veda tais atividades, sendo princípios da Política O ECA, por sua vez, estabelece que “a criança e o adolescente têm direito a
Nacional das Relações de Consumo: “harmonização dos interesses dos participantes das informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que
relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (grifo nosso)”16.
de desenvolvimento econômico e tecnológico” e “coibição e repressão eficientes de Essa norma é tida como “fundamento para proteção da criança e do adolescente contra
todos os abusos praticados no mercado de consumo”. conteúdo inadequado da publicidade ou da programação de rádio e televisão”.17 Logo,
tudo que for oferecido a este público, deve ser compatível e adequado com a sua
faixa etária, respeitando as fases de desenvolvimento físico e mental desses seres em
2.2 PUBLICIDADE INFANTIL formação.18
Em todo ordenamento jurídico brasileiro, há apenas uma referência específica à
Neste tópico será feita uma descrição da proteção dirigida pelo ordenamento publicidade infantil, qual seja o art. 37, § 2º do CDC, que veda a publicidade que “se
jurídico brasileiro ao público infantil e das restrições à publicidade destinada a este grupo. aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”, classificando-a como
abusiva. Caberá, então, ao julgador, na análise do caso concreto.
Saindo da esfera do monopólio normativo estatal, todavia, a regulamentação da
2.2.1 Proteção da criança no ordenamento brasileiro publicidade infantil é farta, havendo toda uma seção no CBARP tratando da publicidade
dirigida às “crianças e jovens”. Esse Código veda, por exemplo, que a publicidade:
A Constituição Federal, em seu art. 227, atribui ao Estado, à sociedade e à família provoque qualquer tipo de discriminação, gere sentimento de
o dever de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem os direitos fundamentais: superioridade, estimule comportamentos socialmente reprováveis,
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à contenha apelo imperativo de consumo, provoque situações de
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e constrangimento dos pais ou de terceiros para consumir, utilize modelos
à convivência familiar e comunitária”), protegendo-os de “toda forma infanto-juvenis para ‘para vocalizar apelo direto, recomendação ou
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e sugestão de uso ou consumo’.19
opressão. Essa ampla regulamentação privada relaciona-se com a percepção do poder
Para regulamentar esses direitos, editou-se o ECA – Estatuto da Criança e do de influência da publicidade sobre as crianças, tendo em vista o ausente ou diminuto
Adolescente-, através do qual se consagrou a doutrina da proteção integral. Esta doutrina discernimento destas para compreender a mensagem publicitária como prática comercial.
prega o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e a proteção
de seus direitos fundamentais (inerentes à pessoa humana) e especiais (decorrentes da
sua peculiar condição de ser em desenvolvimento). Em nosso ordenamento, a criança
também é protegida por outras normas, afora os tratados e convenções internacionais
em que o Brasil é signatário.

15
Confira Art. 227 da Constituição Federal de 1988.
16
Vide Art. 71 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
17
DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010, p. 183
18
HENRIQUES, Isabella Vieira Machado. Publicidade abusiva dirigida à criança. Curitiba: Juruá, 2008. p. 164-
165.
19
Conforme art. 37 do CBARP.
REVISTA DO MPBA 290 291 REVISTA DO MPBA
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Com base nessa percepção, comprovada através de pesquisas, diversos países O sistema público, estatal ou governamental, por sua vez, surgiu para coibir os
proibiriam a publicidade infantil ou restringiram por demais sua manifestação (duração, desvios de conduta e os abusos publicitários, visando a proteção do consumidor e
horário e forma de apresentação, etc.). No Brasil, todavia, desde 2001, encontra-se utilizando normas cogentes e de órgãos públicos, administrativos e judiciais, de controle.
em trâmite e sem perspectiva de aprovação, o Projeto de Lei nº 5.92120, de iniciativa Essa forma de controle apresenta desvantagens como a morosidade - devido ao excesso
do Deputado Luiz Carlos Hauly, propondo a proibição da publicidade exclusivamente de formalismo oficial-, assim como a demora do processo legislativo, que impede o
destinada à criança. rápido ajustamento às alterações sociais e do mercado, mas entre as vantagens estão a
coercitividade das decisões e a possibilidade de reparação moral e material dos danos
2.3 CONTROLE DA PUBLICIDADE causados aos consumidores. Trata-se, pois, de uma intervenção do Estado na iniciativa
privada24, segundo ensina Pasqualotto.
O fenômeno publicitário pode ser controlado de três formas, conforme leciona Já o sistema misto, como combinação dos outros dois, mostra-se mais eficiente,
Antônio Herman V. Benjamin21, quais sejam: por um sistema exclusivamente estatal, cabendo ao meio publicitário regular sua atividade e ao Estado intervir quando ocorrer
por um sistema exclusivamente privado ou por um sistema misto. No primeiro sistema uma infração das regras legais de proteção do consumidor. Ressalte-se que, neste
(exclusivamente estatal), apenas o Estado pode ditar e implementar normas de controle último caso, cada sistema constitui instâncias de controle autônomas, independentes e
da publicidade. No exclusivamente privado, somente os autores publicitários têm voz. complementares.
Enquanto o modelo misto, adotado pelo Brasil, aceita e incentiva ambas as formas de
controle, tendo organismos de autorregulamentação ao lado do Estado, através de seus
órgãos administrativos e do Poder Judiciário, exercendo o controle de tal atividade. 3 ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR
Em relação ao sistema exclusivamente privado ou autorregulamentar, afirma-
se que este pretende garantir uma ética publicitária por meio da proteção da livre O CDC informa que “integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor
concorrência e da liberdade de expressão, surgindo com o “intuito de preservar a boa (SNDC), os órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais e as entidades
imagem publicitária”22 e da necessidade deste meio profissional antecipar o controle de privadas de defesa do consumidor”. Há quem entenda, como Daniel Roberto Fink25, que
sua atividade privada de uma possível intervenção do Estado.23 Desta forma, anunciantes, os órgãos integrantes do SNDC não precisam ter como principal atividade a defesa do
agências de publicidade e veículos de comunicação social estabelecem corporativamente consumidor, desde que sua atuação tenha reflexos nessa seara, citando como exemplos
(através de um negócio jurídico) o controle da publicidade, sem qualquer intervenção ou o Banco Central do Brasil – que fixa tarifas e serviços bancários-, a SUSEP – que edita
participação estatal, criando uma associação ou sociedade de classe e estabelecendo normas sobre seguros e fiscaliza seu cumprimento- e as agências reguladoras de
um conjunto de regras, visando fiscalizar e estabelecer limites para a criação publicitária. serviços públicos.
Neste capítulo, todavia, o enfoque será dado aos órgãos e entidades privadas que
têm suas atividades essenciais voltadas à proteção da parte vulnerável da relação de
consumo.

3.1 ÓRGÃOS FEDERAIS, ESTADUAIS E MUNICIPAIS

O CDC dispõe que a coordenação política do Sistema Nacional de Defesa do


Consumidor será realizada pela Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da
Justiça – SNDC (antigo DPDC – Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor).
As suas principais atribuições são: planejamento, coordenação e execução da política de
proteção e defesa do consumidor; atendimento aos cidadãos; fiscalização das relações de
consumo; elaboração do cadastro de reclamações fundamentadas contra fornecedores
de produtos e serviços; e celebração de convênios e termos de ajustamento de conduta.
20
Acrescenta o citado PL ao art. 37 do CDC: “§ 2º-A. É também proibida a publicidade destinada a promover a
venda de produtos infantis, assim considerados aqueles destinados apenas à criança.(NR)”
21
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do
Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 228.
22
COSTA, Ester Evangelista da. O consumidor e a publicidade no direito brasileiro. Apud MARTINEZ, Sergio
Rodrigo. O ambiente conceitual da publicidade de consumo e de seu controle no Brasil. Revista de Direito 24
do Consumidor, v. 15, n. 58, p. 245, 2006. PASQUALOTTO, loc. cit.
25
23
PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no Código de Defesa do Consumidor. FINK, Daniel Roberto. In: Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 67. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 951
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As atribuições deste órgão federal são parecidas com as dos demais órgãos que compõem Embora poucos tenham conhecimento, o CONAR desenvolve certo controle da
o Sistema, tendo estes “no âmbito de suas respectivas competências, atribuição para publicidade brasileira, averiguando as possíveis infrações, recomendando a alteração
apurar e punir infrações a este Decreto [nº 2.181/97] e à legislação das relações de ou sustação de anúncios publicitários que violem a ética do ramo ou prejudiquem o
consumo”. consumidor, em especial o público infantil.
Quando há conflito de competência (leia-se: “se instaurado mais de um processo
administrativo por pessoas jurídicas de direito público distintas, para apuração de infração
decorrente de um mesmo fato imputado ao mesmo fornecedor”), o Decreto 2.181/97 4 ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS
prevê a resolução pelo SNDC, “que poderá ouvir a Comissão Nacional Permanente de
Defesa do Consumidor – CNPDC, levando sempre em consideração a competência Agora serão analisados alguns casos concretos de atuação dos órgãos de defesa
federativa para legislar sobre a respectiva atividade econômica”. do consumidor no tocante à publicidade infantil, iniciando com as decisões do CONAR –
Convém informar que o CDC estabeleceu a possibilidade de instituição de Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária.
Promotorias de Justiça, Delegacias de Polícia, Juizados Especiais e Varas Especializadas O primeiro caso é o do conhecido comercial da marca Chocolates Garoto, em que a
para a solução de litígios de consumo. A atribuição das delegacias é meramente frase “compre baton” era repetida diversas vezes. O CONAR analisou a peça publicitária,
administrativo-investigativa, cabendo-lhes a apuração de crimes tipificados pelo CDC a partir da denúncia de um consumidor, considerando abusivo o uso do “compre”, por
com o posterior encaminhamento ao MP para providências. Aos juizados especiais e ser reputado como comando imperativo de consumo dirigido ao público infanto-juvenil.
varas especializadas, cabe processar e julgar as ações individuais e coletivas de cunho Entretanto o Conselho acabou arquivando a representação sem sanção28, posto que
consumerista. o anunciante havia alterado espontaneamente o anúncio. O arquivamento dessa
O Parquet, por sua vez, além da competência penal, detém também competência representação pelo CONAR foi (e é) uma medida ineficaz, posto que a referida peça
administrativa, sendo responsável pela instauração de procedimentos investigativos publicitária abusiva foi veiculada tantas e tantas vezes que até os dias de hoje é lembrada
(inquéritos civis), expedição de recomendação, formalização de termos de ajustamento pelas crianças e jovens daquela época e sequer foi ressaltado numa contrapropaganda o
de conduta e propositura de ação civil pública, sendo sua competência restrita à defesa quão antiético é incitar a criança a persuadir os pais a comprar.
dos interesses sociais (direitos coletivos e difusos) e individuais indivisíveis, em virtude No comercial da sandália “Havaianas Princesa”29, que trazia em seu final a frase:
da dimensão ou das características do dano a ser ressarcido. 26 “Chegaram as Havaianas Princesa. Toda princesinha usa!”, o CONAR decidiu pela sua
alteração, sob o fundamento de que:
3.2 ENTIDADES PRIVADAS traz[ia] apelo persuasivo de consumo dirigido a crianças, sugerindo a
superioridade de quem usa a sandália, o que é reprovado pelo Código
Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária”. A relatora do processo
O CDC prevê a concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das
entendeu que “a forma imperativa com que se relaciona o uso da
Associações de Defesa do Consumidor, que representam a sociedade civil organizada
sandália à condição de princesa pode levar um público com menos
em entidades privadas sem fins lucrativos. Tais entidades tem legitimação para defender poder de discernimento e abstração da mensagem, como as crianças,
os interesses dos consumidores judicial e extrajudicialmente, promovendo pesquisas e a associar a sua própria condição à posse ou não do produto.
campanhas educativas, visando difundir e fortalecer os direitos destes.
Ainda existe o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária – CONAR, Associar nos infantes sentimentos de superioridade ou inferioridade ao fato de
sociedade civil sem fins lucrativos criada, no final dos anos 70, por associações de possuir ou não um determinado bem é uma prática deveras reprovável.
anunciantes, agências de publicidades e veículos de comunicação, para impedir a No caso dos Biscoitos Mabel30, um sujeito pega um pacote do biscoito, abre
censura prévia e estatal no ramo publicitário. Segundo o Conselho, sua missão é “impedir a embalagem - antes mesmo de pagar por ele - e joga o papel no chão ao final. Os
que a publicidade enganosa ou abusiva cause constrangimento ao consumidor ou a consumidores que fizeram a denúncia entenderam que a peça mostrava cena
empresas, e defender a liberdade de expressão comercial”. Há quem questione sua deseducativa. O Conselho de Autorregulamentação Publicitária, entretanto, decidiu
atuação voltada à defesa do consumidor, defendendo que o controle autorregulamentar pelo arquivamento, visto ficar evidente tratar-se de “caricatura bem-humorada, em uma
estaria relacionado muito mais a outras preocupações, tais como a concorrência leal e situação improvável”.O relator da representação ainda afirmou que: “a publicidade além
à moralidade27. de uma forma de comunicação, também é expressão criativa e diferenciada de arte. Não
podemos cercear a criatividade impondo limites e supondo que os consumidores são
alheios ao mundo em que vivemos.”
26 28
MIRAGEM, Bruno. Direito do Consumidor: fundamentos do direito do consumidor; direito material e processual Representação nº 206/06. Disponível em: <http://www.conar.org.br/2-uso-antietico-das-ferramentas-
do consumidor; proteção administrativa do consumidor; direito penal do consumidor. São Paulo: Revista dos publicitarias.pdf>
Tribunais, 2008. p. 364-365. 29

Representação nº 304/11. Disponível em: <http://www.conar.org.br/2-uso-antietico-das-ferramentas-
27 publicitarias.pdf>
BENJAMIM, Antônio Herman. In: Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do
anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 302-303. 30
Representação nº 191/13. Disponível em: <http://www.conar.org.br/processos/detcaso.php?id=3610>
REVISTA DO MPBA 294 295 REVISTA DO MPBA
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Os julgadores do CONAR apenas desprezaram o importante fato de tal publicidade ter A situação das crianças brasileiras é deveras preocupante. Cada dia, elas passam
como alvo o público infantil, ou seja, pessoas em desenvolvimento, que ainda não tem o mais e mais horas em frente à televisão ou ao computador, sendo bombardeadas de
devido discernimento do que é certo ou errado, do que é mera criatividade e humor ou informações e apelos publicitários, fazendo-as achar que a vida se resume a consumir,
realidade. a ter e a exibir o que se tem. O que também é bastante alarmante é que as práticas
O próximo caso trata-se de um outdoor com o título “Vamos para o PLAY?” e a consumistas não observam as condições econômico-financeiras dos seus destinatários,
ilustração de uma gangorra31. A mídia fez que com o PROCON-BA autuasse o motel as crianças pobres estão expostas às mesmas influências das ricas, não importando que
anunciante por publicidade abusiva, exigindo a remoção dos anúncios no prazo máximo aquelas malmente tenham comida em casa, os comerciais irão fazê-las achar que tendo
de 72h. Para os responsáveis pela fiscalização, a peça faz alusão ao acesso de crianças tal sapato ou mochila elas estarão inseridas na sociedade e/ou serão felizes. Isto leva,
ao estabelecimento, enquanto que só é permitido acesso de maiores de 18 anos. “Embora inclusive, muitos inocentes à posterior busca do dinheiro fácil, ao mundo das drogas e
no final do cartaz haja a classificação destinada, a mesma está disponibilizada com fonte do crime.
pequena e em um local de difícil visualização para os consumidores”, afirmaram os Cabe, então, a sociedade, a família e ao Estado, como bem prega a Constituição
fiscais. Federal, assegurar às crianças seus direitos, principalmente o de serem tratadas
Mais do que reprovável, é condenável utilizar elementos do mundo infantil em conforme sua condição, sua inocência e seu parco entendimento do mundo anseios
publicidade de produto ou serviço destinado exclusivamente ao público adulto, posto capitalistas.
que aguça a curiosidade dos infantes a tais produtos e serviços, podendo provocar uma
abreviação da infância, uma “adultização” e, até mesmo, uma erotização precoce.
Por último, vale a pena citar a importante atuação do PROCON do Estado de São REFERÊNCIAS
Paulo, que vem multando diversas empresas por publicidade infantil abusiva32. Algumas
foram sancionadas por estimular o consumo de alimentos considerados não saudáveis BAHIA Secretaria de Comunicação Social. Procon autua motel por praticar publicidade
através de brindes colecionáveis (Habib’s e McDonald’s), ou por promover inserção abusiva. Notícias, 15 de janeiro de 2010. Disponível em: <http://www.comunicacao.
precoce no mundo adulto (Barbie/Mattel), ou ainda por misturar fantasia e realidade, ba.gov.br/noticias/2010/01/15/procon-autua-motel-por-praticar-publicidade-abusiva>
dando vida a brinquedos inanimados (Roma Brinquedos).
BARBOSA, Mariana. Procon fecha o cerco à publicidade infantil. Folha de S. Paulo, 18
de setembro de 2012. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/66902-
5 CONCLUSÃO procon-fecha-o-cerco-a-publicidade-infantil.shtml>
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe.
Por tudo quanto exposto, conclui-se que, embora exista regulamentação legal Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
e contratual para a publicidade infantil, o que se observa nas mídias é o frequente
desrespeito a tais normas e, mais ainda, à condição de ser em desenvolvimento das BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos.
crianças. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Os publicitários perceberam que, além da falta de discernimento entre o que é Senado, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
marketing e o que não é, o que é real ou fantasia, a criança tem uma grande influência constituicaocompilado.htm>.
nas aquisições feitas pela família e pelos adultos que a cercam. Situação essa que ainda BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos Jurídicos. Lei
é agravada pela falta de tempo dos pais e familiares de se fazerem presentes na vida dos federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da criança e do adolescente. Diário
infantes, orientando-os sobre as questões da vida, fazendo-os muitas vezes compensar Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: <
essa falta com presentes e mimos. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>
______. Lei federal nº 8078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do
Consumidor. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 12 set. 1990.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm>
______. Lei federal nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Estatuto da criança e do
31
BAHIA Secretaria de Comunicação Social. Procon autua motel por praticar publicidade abusiva. Notícias, adolescente. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
15 de janeiro de 2010. Disponível em: <http://www.comunicacao.ba.gov.br/noticias/2010/01/15/procon-autua- Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>.
motel-por-praticar-publicidade-abusiva
32
BARBOSA, Mariana. Procon fecha o cerco à publicidade infantil. Folha de S. Paulo, 18 de setembro de
2012. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/66902-procon-fecha-o-cerco-a-publicidade-
infantil.shtml>
REVISTA DO MPBA 296 297 REVISTA DO MPBA
PUBLICIDADE INFANTIL E A ATUAÇÃO (D)EFICIENTE DOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR

CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA. Código de A RACIONALIDADE PENAL MODERNA E SEUS DESDOBRAMENTOS
Autorregulamentação Publicitária. São Paulo, 2008. TÉORICOS E PRÁTICOS

CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA. Regimento Saulo Murilo de Oliveira Mattos*


interno do Conselho de Ética. São Paulo, 2008. Camila Beatriz Boaventura dos Santos**
DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e direito. São Paulo: Revista dos
EMENTA
Tribunais, 2010.
O presente artigo busca discutir a teoria denominada como Racionalidade Penal Moderna,
GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Código brasileiro de defesa do consumidor: construída pelo autor Álvaro Pires, a qual consiste no sistema de pensamento que serve
comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, como suporte teórico para compreensão da lógica colonizadora do sistema penal e todas
2005. as suas formas de intervenção. Para tanto, destacamos alguns trabalhos científicos de
intelectuais que discutem a referida teoria, dialogando, por fim, alguns aspectos deste
HENRIQUES, Isabella Vieira Machado. Publicidade abusiva dirigida à criança. Curitiba:
sistema de idéias com as práticas que envolvem a instituição do Ministério Público da
Juruá, 2008.
Bahia.
KOTLER, Philip. Administração de Marketing: Análise, Planejamento, Implementação
e Controle. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 554. In: KAMLOT, Daniel Persuasão: A PALAVRAS-CHAVE: Racionalidade Penal Moderna. Direito Penal. Ministério Público do
essência da propaganda. Disponível em: < http://www.revistamarketing.com.br/materia. Estado da Bahia.
aspx?m=860>.
INTRODUÇÃO
LUBISCO, Nídia M.; VIEIRA, Sônia Chagas; SANTANA, Isnaia Veiga. Manual de estilo
acadêmico: monografias, dissertações e teses. 4. ed. Salvador: EDUFBA, 2008.
A lógica operacional do Sistema de Justiça Criminal não é o resultado impositivo de
MARTINEZ, Sergio Rodrigo. O ambiente conceitual da publicidade de consumo e de um único documento normativo. Não basta surgir uma Constituição Federal Democrática
seu controle no Brasil. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 15, n. 15, p. 231, ou uma Legislação Extravagante que não eleja a privação de liberdade como sanção
2006. prioritária às infrações penais para se afirmar, sem medo de retrocesso, que determinado
sistema se tornou mais humano.
MIRAGEM, Bruno. Direito do Consumidor: fundamentos do direito do consumidor; direito
Na linha tortuosa do tempo, as ideias vão e vêm, se estabelecem, ressurgem e
material e processual do consumidor; proteção administrativa do consumidor; direito
conduzem comportamentos.
penal do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
Por essa visão, práticas criminais da Idade Média podem estar presentes
NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Publicidade comercial: proteção e limites na Constituição em tempos atuais, chamados de Pós-Modernidade, embora haja quem pense que a
de 1988. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. Modernidade, principalmente na América Latina, ainda é uma fantasia.
O controle social também é um controle de ideias e ideais. Como o controle penal
SILVA, Marcus Vinicius Fernandes Andrade da. O direito do consumidor e a publicidade.
é uma forma de controle social, inclusive a que tem sido mais utilizada no século XXI,
São Paulo: MP Ed., 2008.
interessa saber quais ideias inspiram esse tipo de controle, cuja privação de liberdade,
PORTUGAL. Código da Publicidade português (Decreto-lei 330/1990). Disponível em: mesmo com as tentativas inovadoras dos movimentos de Direito Alternativo, Teoria Crítica
<http://www.lardocelar.com/info/leis/Decreto-Lei_n_330_90_de_23_de_Outubro.pdf>. do Direito, Justiça Terapêutica, Restaurativa, Negociada, se perpetua como sanção penal
Acesso em: 10 out. 2013. predileta do sistema penal, uma espécie de gozo sistêmico apenas alcançável com a
inflição da dor no corpo humano.
PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no Código de Defesa
As clássicas teorias da pena (retribuição, dissuasão, prevenção especial etc),
do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
apesar de nomes jurídicos diferentes, estariam centradas nessa noção de obrigação
estatal de punir, infligir uma dor, sempre estabelecer uma pena mínima privativa de
liberdade.

* Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, titular da 3ª Promotoria de Jequié.


** Assistente Técnico do Ministério Público do Estado da Bahia.
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A RACIONALIDADE PENAL MODERNA E SEUS DESDOBRAMENTOS TÉORICOS E PRÁTICOS A RACIONALIDADE PENAL MODERNA E SEUS DESDOBRAMENTOS TÉORICOS E PRÁTICOS

Conforme sugerido inicialmente, as leis, uma vez vigentes, não promovem A RACIONALIDADE PENAL MODERNA
por si sós, imediatamente a alteração/inovação do sistema criminal, embora indique,
formalmente, uma alteração do sistema normativo. As leis são apenas uma fina pele Em relação à pergunta acima formulada, utiliza-se a elaboração teórica concebida
que cobre a superfície de um corpo de justiça criminal que pulsa com uma racionalidade por Álvaro Pires, que, em seu artigo A racionalidade penal moderna, o público e os direitos
própria. Abre-se, por isso, um caminho de pesquisa para se estudar as interações entre humanos, afirma que “a racionalidade penal moderna constitui portanto um obstáculo
o sistema político, nele incluído o legislativo, e o sistema de justiça criminal. epistemológico ao conhecimento da questão penal e, ao mesmo tempo, à inovação, isto
Outra chave de pensamento que sugere uma razão para que o sistema penal, entre é, à criação de uma nova racionalidade penal e de uma outra estrutura normativa.”
marés cheias e vazantes, continue guiado pela ideia da inflição da dor como aspecto Em outro trecho, sintetiza sua concepção teórica e destaca um dos efeitos
ontológico da sanção penal é o aparecimento de movimentos libertários, dedicados à negativos dessa racionalidade:
efetivação de direitos de minorias, que defendem o recrudescimento das penas privativas O conceito de racionalidade penal comporta dois sentidos. Num sentido
de liberdade. Segundo essa hipótese, os tais progressistas seriam os tais conservadores teórico e formal, indica simplesmente um sistema de pensamento que
do Direito Penal do autor. se identifica como relativo à justiça criminal e assim se autodistingue
É a chamada esquerda punitiva, como lembra Maria Lucia Karam1. Querem dos outros sistemas, mas que para ser relativamente autônomo não
conquistar e preservar mais direitos civis com maior controle penal. Mudam-se os alvos, precisa se distinguir ponto por ponto, da mesma maneira que os seres
humanos são distintos tendo vários pontos em comum (fisiológicos,
mas não a tônica do sistema de justiça criminal.
por exemplo). Num sentido empírico e descritivo, designa uma forma
Linhas de pensamento aparentemente contraditórias, vinculadas a ideologias concreta de racionalidade que se atualizou num determinado momento
políticas de Direita ou Esquerda, contribuem para que haja mais dor através do Direito histórico. Assim, qualifico como moderna essa forma de racionalidade
Penal, sem que haja necessariamente resolução dos conflitos sociais (dimensão penal que se construiu no Ocidente a partir da segunda metade do
macrossociológica) e intersubjetivos (dimensão microssociológica). século XVIII. Assinale-se que um tal sistema de pensamento jamais
Percebe-se que os supostos rios inovadores do sistema penal desaguam no mar é inteiramente determinado por uma causalidade material externa
de práticas punitivas formais e informais, estas mais perigosas por pertencerem, em (transformações na sociedade): a justiça penal produz o seu próprio
regra, à categoria das cifras ocultas. sistema de pensamento na medida em que se constitui como um
Por isso, as ideias, valores e princípios do sistema penal moderno devem ser subsistema do sistema jurídico, no âmbito de um processo em que
o direito se diferencia no interior do direito. Dessa maneira, o direito
observados e também confrontados com as práticas dos operadores do sistema de
penal moderno será construído e percebido como um subsistema
justiça criminal (promotores, defensores, juízes e auxiliares da justiça). jurídico com identidade própria.
Qual obstáculo, então, impede uma renovação humanista do sistema de justiça Um dos efeitos da racionalidade penal moderna será o de
criminal? naturalizar a estrutura normativa inicialmente eleita pelo sistema
penal. É quando tentamos pensar o sistema penal de outra forma
que tomamos consciência da colonização que ele exerce sobre a
nossa maneira de ver as coisas. (grifo nosso).
Esses trechos são insuficientes para informar a totalidade da percepção de Álvaro
Pires, que tem desenvolvido, de forma profunda e contundente, contínua pesquisa
1
Segundo essa autora, “na história recente, o primeiro momento de interesse da esquerda pela repressão sobre o tema na Universidade de Ottawa, no Canadá, onde leciona Ciências Sociais e
à criminalidade é marcado por reivindicações de extensão da reação punitiva a condutas tradicionalmente Criminologia. Mas, ainda assim, o conteúdo que pode ser extraído dessas citações sinaliza
imunes à intervenção do sistema penal, surgindo fundamentalmente com a atuação de movimentos populares,
para a percepção crítica do autor, que destaca a carga axiológica punitiva das ideais do
portadores de aspirações de grupos sociais específicos, como os movimentos feministas, que, notadamente
a partir dos anos 70, incluíram em suas plataformas de luta a busca de punições exemplares para autores sistema penal moderno e como essa carga inviabiliza o progresso epistemológico da
de atos violentos contra mulheres, febre repressora que logo se estendendo aos movimentos ecológicos, Ciência Penal.
igualmente reivindicantes da intervenção do sistema penal no combate aos atentados ao meio ambiente, É como se a Ciência Penal sofresse de falsas quebras de paradigmas, porque
acaba por atingir os mais amplos setores da esquerda. Distanciando-se das tendências abolicionistas a aviltante lógica punitiva se atualiza de diversas formas no sistema, mesmo com
e de intervenção mínima, resultado das reflexões de criminólogos críticos e penalistas progressistas, que
legislações que pretendem efetivar direitos humanos, as quais sequer perturbam a
vieram desvendar o papel do sistema penal como um dos mais poderosos instrumentos de manutenção
e reprodução da dominação e da exclusão, características da formação social capitalista, aqueles amplos estrutura do sistema penal.
setores da esquerda, percebendo apenas superficialmente a concentração da atuação do sistema penal Essa constante promulgação de novas leis incriminadoras e encarceradoras é
sobre os membros das classes subalternizadas, a deixar inatingidas condutas socialmente negativas das uma característica da racionalidade penal moderna, que, na década de 1980, começou a
classes dominantes, não se preocuparam em entender a clara razão desta atuação desigual, ingenuamente juridicizar a opinião pública, transformada em fonte primária do direito de punir.
pretendendo que os mesmos mecanismos repressores se dirigissem ao enfrentamento da chamada
criminalidade dourada, mais especialmente aos abusos do poder político e do poder econômico.”

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A RACIONALIDADE PENAL MODERNA E SEUS DESDOBRAMENTOS TÉORICOS E PRÁTICOS A RACIONALIDADE PENAL MODERNA E SEUS DESDOBRAMENTOS TÉORICOS E PRÁTICOS

O adjetivo moderno que se atribui à racionalidade penal se refere ao marco No texto “Pensando as respostas estatais às condutas criminalizadas: um estudo
temporal dessa racionalidade, que se relaciona às principais características do sistema empírico dos debates parlamentares sobre a redução da maioridade penal (1993-2010)”,
de pensamento da justiça criminal a partir da segunda metade do século XVIII. Ricardo Cappi, faz uma leitura teórica sobre “os modos de pensar” a reação estatal às
Álvaro Pires, em outro artigo – Um caso de inovação “acidental” em matéria de condutas transgressoras, através do estudo empírico sobre os discursos parlamentares
penas: a lei brasileira de drogas –, ao analisar as hipóteses sancionatórias do art. 28 brasileiros acerca da redução da maioridade penal. Nesse sentido, afirma em relação à
da Lei n. 11.343/2006 (porte de droga para consumo pessoal), em que não se verifica racionalidade penal moderna:
a prisão privativa de liberdade, conclui que não se pode afirmar, seguramente, que, ao Não é surpreendente constatar que ela está presente, em larga
não aderir às formas clássicas de punições selecionadas pelo sistema penal, o artigo medida, nos discursos favoráveis à redução da maioridade penal:
28 da Lei de Drogas provocou, através de uma atividade legislativa intencionalmente afirma-se portanto uma maneira de pensar que promove a proteção
modificadora do sistema, uma inovação no clássico e predominante conceito de sanção da sociedade através de respostas aflitivas, pautadas na obrigação de
penal: a necessária inflição de dor pelo Estado através da imposição de uma pena castigar e na valorização da privação da liberdade – em detrimento de
formas de intervenção inovadora- perante a delinquência dos jovens.
privativa de liberdade.
Contudo, a análise mais surpreendente é outra: a RPM não está
No referido texto, faz a seguinte reflexão: ausente dos discursos que defendem a manutenção da maioridade
No nosso caso, por exemplo, o que nós observamos empiricamente penal.
como variação são as surpreendentes comunicações sobre o conceito
de pena, comunicações que circulam no sistema ou no seu ambiente. Assim, percebeu-se que, nada obstante exista aquele subgrupo de discurso em
Notemos que é possível, mas relativamente complicado, falar de ideia que se mostra favorável às formas “inovadoras” de atuação estatal para resposta à
inovadora quando ela não foi ainda selecionada, quando ela ainda não
delinquência infantil, não há investimento nas questões que valorizam essas modalidades
produziu, no sistema, o efeito de inovação em suas estruturas centrais.
Ela está mais para uma ideia alternativa, para um ponto potencial de
“alternativas”, mostrando-se tímidas, por exemplo, as respostas que tangenciam a
bifurcação que é apenas potencialmente inovador. Estamos situados aplicação das medidas socioeducativas em meio aberto ou àquelas afeitas à justiça
aqui no plano da complexidade, da contingência e da livre circulação restaurativa.
de ideias. Mas a “variação” não será necessariamente selecionada Salo de Carvalho, no artigo “As permanências autoritárias no sistema punitivo
pelo sistema para fazer parte de suas estruturas centrais Tudo isso é brasileiro e a práxis de resistência da criminologia crítica”, reflete:
uma questão de observação empírica. [...] Pensar as permanências autoritárias do sistema penal brasileiro
que emergem da matriz de continuidade público-privado colonial a
Em termos de metáfora, arrisca-se dizer que a racionalidade penal moderna é uma partir dos procedimentos e do conteúdo punitivo doméstico, implica
densa nuvem que, perenemente, esconde o sol humanista que pode haver no Direito indagar o tipo de racionalidade que sustenta estas práticas violentas,
Penal. desumanas, excludentes. Neste aspecto, é a forma mentis inquisitória,
aposta no texto do Malleus Maleficarum (1487), que parece conglobar
os vários elementos que caracterizam um sistema totalitário da gestão
do crime e da criminalidade.
A RACIONALIDADE PENAL MODERNA ENQUANTO MARCO TEÓRICO DE ALGUNS
TEXTOS JURÍDICOS BRASILEIROS Nesse texto, o autor sugere a superação da racionalidade penal moderna a partir
de uma resistência democrática com base numa práxis crítica nos termos projetados por
No Brasil, alguns trabalhos jurídicos aderiram à concepção de racionalidade penal Marx e Engels.
moderna desenvolvida por Álvaro Pires. Uns estabeleceram conexões exclusivamente Outra abordagem interessante foi a de Mariana Thorstensen Possas que, tendo
teóricas com o tema. Outros se apoiaram, para além da teoria, em interações empíricas, como marco teórico a racionalidade penal moderna, analisou, em sua pesquisa de
destacando as práticas punitivas das agências oficiais de controle da criminalidade. doutorado, as ideias sobre a pena e criação legislativa no caso da lei contra a tortura no
Por buscar compreender um conjunto de ideias que rege o sistema penal moderno, Brasil.
a racionalidade penal moderna pode ser abordada sob várias perspectivas, em contato A referida autora registrou, em artigo divulgado no 33º encontro anual da ANPOCS
com diversas áreas jurídicas. – GT8 – Crime, Violência e Punição, que sua pesquisa de doutorado:
Adiante, serão citados alguns trabalhos acadêmicos que expressamente definiram
[...] parte da observação de que o sistema político, no momento de
a racionalidade penal moderna como referencial teórico ou que, indiretamente, abordaram fazer leis em matéria criminal, reproduz ou atualiza um sistema de
o ponto de vista de Álvaro Pires sobre o sistema penal moderno. pensamento a respeito das penas, que Alvaro Pires (1998, 2001,
2006) chamou de racionalidade penal moderna. Esse sistema de
pensamento (ou de ideias), surge a partir da segunda metade do século
XVIII e se desenvolve em torno das teorias modernas da pena (teorias
da dissuasão, da retribuição, da denunciação e da reabilitação).

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A RACIONALIDADE PENAL MODERNA E SEUS DESDOBRAMENTOS TÉORICOS E PRÁTICOS A RACIONALIDADE PENAL MODERNA E SEUS DESDOBRAMENTOS TÉORICOS E PRÁTICOS

Essas teorias, que podemos chamar de “teorias práticas” (Durkheim), (RE) PENSANDO AS PRÁTICAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA
são usadas pelos diversos sistemas sociais como “teorias de decisão”, E A RACIONALIDADE PENAL MODERNA
ou seja, como teorias que auxiliam e justificam tomadas de decisão.
Um dos grandes problemas apontados por Pires (2008) é que essas
Diante da discussão ora exposta, observa-se que a Racionalidade Penal Moderna
teorias selecionaram uma maneira muito particular, que data por
sua vez do século XI, de representar a pena criminal: diante do mal
nada mais é do que um sistema de pensamento, que funciona como um suporte teórico
cometido (crime) a resposta do Estado deve ser necessariamente um para o sistema penal e todas as suas formas de intervenção. Deste modo, a obrigação
mal (pena), na mesma proporção que o mal causado. Para tanto, a de respostas aflitivas, sendo a privação de liberdade a mais expressiva, em detrimento
pena deve garantir a aplicação de uma “taxa mínima” de sofrimento às maneiras de intervenção inovadoras, constitui um caminho que a Racionalidade Penal
ao acusado. Moderna impõe.
Deste modo, a autora discute sobre a maneira de conceber a penal criminal nos Não se pode perder de vista que esse sistema de ideias é sustentado pelas teorias
casos considerados extremamente graves, como a tortura. Para tanto, analisa como os da pena que, consequentemente, influencia nas práticas dos ditos “operadores do direito”,
políticos se posicionam quanto às penas e, como eles constroem as relações entre a de modo que o sistema penal tal como se apresenta é cada vez mais naturalizado por
pena criminal e a proteção dos direitos humanos. estes.
Nesta perspectiva, a autora observa que, tanto os políticos ditos progressistas, Nesse sentido, importante se faz proporcionar pesquisas na área da Justiça
quando os conservadores, “perderam a oportunidade de se interrogarem sobre as Criminal a fim de que permita-nos conhecer em que medida a Racionalidade Penal
soluções por eles propostas, sem medo de que a própria formulação da crítica seja Moderna encontra-se arraigada nas práticas das instituições integrantes desta estrutura
interpretada como desprezo ao problema em si”. Assim, questiona-se que a exclusão da e, de certa forma, como podemos refletir outros “modos de pensar” respostas à situação
crítica sobre a pena criminal em crimes desta natureza nos conduz a permanecer presos problema.
pela “armadilha cognitiva” que representa a racionalidade penal moderna. No caso em questão, temos a instituição do Ministério Público, o qual funciona,
José Roberto Franco Xavier, por sua vez, no artigo Reformar a justiça penal a dentro do Sistema de Justiça Criminal, como um dos agentes que exerce o papel da
partir de seu sistema de pensamento: por uma sociologia das ideias penais, interessou- criminalização secundária. Esta, diferentemente da criminalização primária que está no
se pelas possibilidades de inovação do sistema penal, tendo “como quadro de referência âmbito legislativo de definição de condutas criminosas, consiste na ação punitiva exercida
para identificar tais inovações um sistema de ideias predominante no âmbito penal que sobre pessoas concretas, ocorrendo o processo pelo qual pessoas serão selecionadas
chamamos aqui de “racionalidade penal moderna””. (PIRES, 2004) e etiquetadas pelo sistema.
O autor chama atenção para o fato de que as transformações relevantes e Neste ponto, estudar como pensam os membros do Ministério Público acerca da
necessárias nas práticas penais só podem acontecer a partir da compreensão do que resposta dada ao mecanismo de seleção nos crimes contra o patrimônio em que, por
venha a ser obstáculos cognitivos, os quais impedem o sistema penal de pensar uma exemplo, o bem subtraído foi ressarcido à vítima; bem como o que se entende por Justiça
resposta para o problema para além da imposição obrigatória da pena aflitiva. Assim, Restaurativa como uma maneira de intervenção estatal ao problema; ou, ainda, no caso
descreve, com suporte na Racionalidade Penal Moderna, como as ideias penais, da justiça juvenil, quais são as formas de intervenção priorizadas para o “combate” à
constituem um verdadeiro obstáculo epistemológico a se conceber a pena de outro modo. delinqüência juvenil nas comarcas em que o Promotor exerce seu múnus nos ajuda a
Este mesmo autor também deu um enfoque empírico ao estudo da racionalidade compreender a lógica empregada por esta instituição aos etiquetados.
penal moderna ao escrever um artigo intitulado “O sistema de direito criminal e a Impende ressaltar que a instituição do Ministério Público, como um sistema que se
racionalidade penal moderna: ilustrações empíricas de dificuldades cognitivas em determina por lógicas próprias, pode ser pensada, através de suas próprias operações,
matéria de penas.” formas de atuação que fogem da concepção aflitiva e hostil que a Racionalidade Penal
Também Maíra Rocha Machado utilizou a racionalidade penal moderna Moderna imprime. Um exemplo disso pode ser visto quando a política criminal da
como um de seus referenciais teóricos em pesquisa que coordenou sobre as penas instituição passa a ser estruturada a partir do fortalecimento em ações de prevenção com
mínimas obrigatórias no âmbito do Projeto Pensando o Direito, pela Secretaria de enfoque na garantia de políticas públicas e não apenas pelo reforço do sistema penal.
Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Outro exemplo teórico-prático interessante se refere ao princípio da obrigatoriedade
Desenvolvimento (SAL/MJ/PNUD). da ação penal pública, que na doutrina do processo penal está associado ao princípio da
Esses são apenas alguns exemplos de interações acadêmicas brasileiras com a legalidade da atuação estatal.
temática da racionalidade penal moderna. Há muitos outros textos e livros escritos em Numa primeira observação, percebe-se que, apesar de todo processo doutrinário
francês, já que as obras de Álvaro Pires foram redigidas nesta língua e apresentam uma de “substancialização” do tipo penal com o desenvolvimento do princípio da insignificância,
base pura para o desenvolvimento de qualquer pesquisa sobre a racionalidade penal da tipicidade conglobante (ZAFFARONI), teoria constitucionalista do delito e até mesmo
moderna, especialmente para aqueles que se enveredaram em mestrados e doutorados de uma perspectiva político criminal da justa causa, os promotores de justiça têm
da Universidade de Ottawa no Canadá, onde leciona o referido professor. bastante dificuldade em promover arquivamentos de procedimentos investigativos com
base naqueles fundamentos, dominados que estão pela concepção clássica do princípio
da obrigatoriedade da ação penal.
REVISTA DO MPBA 304 305 REVISTA DO MPBA
A RACIONALIDADE PENAL MODERNA E SEUS DESDOBRAMENTOS TÉORICOS E PRÁTICOS

Essa aplicação acrítica do princípio da obrigatoriedade da ação penal, incrementado REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO E O REGIME JURÍDICO DAS
pelo inconstitucional in dubio pro societate, dá espaço para atuações ministeriais objeto POLÍTICAS PÚBLICAS
de escárnio pela mídia, que, frequentemente, expõe casos em que o indivíduo ficou
preso por meses ou anos em razão de um processo penal instaurado a partir de uma Clóvis Mendes Leite Reimão dos Reis*
acusação que levou à apreciação do Poder Judiciário o furto de duas galinhas ou três
latas de leite.
O Ministério Público ressente-se de uma dificuldade intencional de provocar, no
EMENTA
âmbito interno de pensamento institucional, uma releitura do princípio da obrigatoriedade
As políticas públicas são imprescindíveis na concretização dos direitos fundamentais e do
da ação penal a partir de alternativas penais e processuais penais que não resultem,
interesse público. Todavia, a delimitação do seu conceito e de seu regime jurídico ainda é
necessariamente, na aplicação de uma pena privativa de liberdade.
tema extremamente controverso. Afinal, juridicamente, o que são políticas públicas? Qual
Os próprios Tribunais Superiores construíram condicionantes relacionadas a
é o seu regime jurídico? A presente pesquisa visa responder esses questionamentos à
aspectos subjetivos do suposto autor do fato (maus antecedentes etc.) quando possível
luz da doutrina, jurisprudência e legislação nacionais.
a aplicação do princípio da insignificância, que, por definição, diz respeito somente à
caracterização substancial do fato punível.
PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas. Conceito Jurídico. Regime Jurídico.
Esses destaques da prática judicial exemplificam, conforme já foi alertado por
Álvaro Pires, o efeito colonizador que racionalidade penal moderna exerce sobre aqueles
que, enquanto instâncias formais de controle da criminalidade, estão ligados aos modos
1 INTRODUÇÃO
de pensar e fazer a justiça criminal do dia a dia.
O termo “políticas públicas” é extremamente polissêmico e interdisciplinar. A
REFERÊNCIAS delimitação de seu conceito e regime jurídico, assim, é uma tarefa que perpassa por
diversos obstáculos teóricos e práticos. Nesse sentido, questionamos: é possível o
CAPPI, R. Pensando as respostas estatais às condutas criminalizadas: um estudo estabelecimento de um conceito e de um regime jurídico das políticas públicas brasileiras?
empírico dos debates parlamentares sobre a redução da maioridade penal (1993 - 2010). O presente trabalho almeja responder esse problema científico à luz da doutrina,
Estudos Empíricos em Direito, v. 1, n. 1, p. 10-27, 2014. legislação e jurisprudência nacionais bem como por meio da utilização do método
hermenêutico e da técnica hipotético-dedutiva.
CARVALHO, Salo de. As permanências autoritárias no sistema punitivo brasileiro e a Conforme esse desiderato, destacamos, inicialmente, a concepção genérica do
práxis de resistência da criminologia crítica. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. termo “política” e os diversos obstáculos para a construção de um conceito propriamente
MACHADO, Maíra Rocha; PIRES, Álvaro; FERREIRA, Carolina Cutrupi; SCHAFFA, jurídico das políticas públicas.
Pedro Mesquita. A complexidade do problema e a simplicidade da solução: a questão Em seguida, buscamos selecionar e sistematizar os traços identificadores das
das penas mínimas. Série Pensando o Direito, v. 17, 2009. políticas públicas no direito brasileiro. A partir dessa síntese, estabelecemos um conceito
jurídico atrelado à ideia de atuação positiva do Estado na concretização dos direitos
PIRES, Álvaro. A Racionalidade Penal Moderna, o Público e os Direitos Humanos. Novos fundamentais e do interesse público no caso concreto.
Estudos. CEBRAP, n. 68, p 39-60, 35, mar. 2004. Por derradeiro, foi estabelecido a vinculação desse conceito a um regime jurídico
PIRES, Álvaro; CAUCHIE, Jean Francois. Um caso de inovação “acidental” em matéria específico. Essa tarefa foi realizada com a análise da interdependência entre o Direito
de penas: a lei brasileira de drogas. Revista Direito GV 13, v. 7, n. 1, p. 299-309, 2011. Constitucional e do Direito Administrativo bem como do protagonismo do Poder Executivo
na construção das políticas públicas brasileiras através da função administrativa do
POSSAS, M. T. Idéias sobre a pena e criação legislativa: o caso da lei contra a tortura no Estado.
Brasil. In: 33O ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 2009, Anais..., Caxambu,MG, 2009.
XAVIER, José Roberto. Reformar a justiça penal a partir de seu sistema de pensamento:
por uma sociologia das ideias penais. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro, p. 439-
463, 2015.

* Pós-Graduando em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito. Graduado em Direito pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Membro do grupo de pesquisa: “Fundamentos para uma Nova Teoria do Direito
Administrativo” da UFBA. Técnico administrativo do Ministério Público do Estado da Bahia.
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REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO E O REGIME JURÍDICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO E O REGIME JURÍDICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

2 CONCEITO JURÍDICO DE POLÍTICAS PÚBLICAS São tantos obstáculos que, segundo Maria Dallari Bucci, “é plausível considerar
que não exista propriamente um conceito jurídico de políticas públicas, pois as
2.1 OS PRINCIPAIS SIGNIFICADOS DA POLÍTICA categorias que estruturam essa expressão são próprias da ciência política e da ciência
da Administração”. As políticas públicas, assim, não seriam uma categoria jurídica
O termo “política” pode assumir duas conotações principais, que os países de autônoma, de acordo com a autora.
língua inglesa diferenciam através das expressões politics e policy. Todavia, cabe questionar esse entendimento: para se reconhecer determinado
O primeiro possui um sentido mais amplo e usual, significa a atividade humana conceito como jurídico é imprescindível que as categorias que o estruturam sejam
ligada à obtenção e manutenção dos recursos necessários para o exercício do poder próprias do Direito, ou que ele tenha importância e utilidade para o Direito diante de sua
sobre o homem. Representa a relação de poder entre o soberano (governante) e os vinculação a determinado regime jurídico?
governados em um determinado território.1 Celso Antônio Bandeira de Mello já adverte que o conceito jurídico é uma síntese,
Já a policy é uma dimensão mais concreta da política e que tem relação com uma aglutinação de elementos comuns retirados do direito positivo ou construídos pela
orientações para a decisão e ação, denotando a ideia de programas governamentais.2 doutrina a partir de traços identificados no ordenamento jurídico.8
O termo “política pública” (public policy) está vinculado a esse segundo sentido da Nesse sentido, as dificuldades apresentadas não podem servir de escusa
palavra “política”, pois trata do conteúdo concreto das decisões políticas, e do processo à missão de se buscar uma definição jurídica razoavelmente precisa das políticas
de construção e atuação dessas decisões.3 públicas, de acordo com a legislação, jurisprudência e doutrina nacionais. A construção
desse conceito, assim, destacará a importância do tema para o direito (sobretudo na
2.2 OS OBSTÁCULOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO JURÍDICO DAS concretização dos direitos fundamentais) e será atrelada a um regime jurídico específico.
POLÍTICAS PÚBLICAS
2.3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS NO DIREITO BRASILEIRO
A delimitação de um conceito jurídico para as políticas públicas é tarefa
extremamente complexa, pois esta é uma expressão relativamente nova no direito Segundo a doutrina, existem três categorias de abordagens com relação às
brasileiro4, extremamente polissêmica5, de cunho interdisciplinar6 e forte conotação políticas públicas. Cada categoria pode ser denominada de “nó conceitual”, de acordo
política.7 com Leonardo Secchi.9
1
Em síntese, são três “nós conceituais”, a saber: 1) uma abordagem estatal (state-
Bobbio defende que a política usualmente tem essa relação com o poder do homem sobre o outro. Em centered policy-making) e outra multicêntrica; 2) uma abordagem que considera a
sentido contrário, Hannah ARENDT defende a política no modelo grego, é dizer, ligado a ideia de liberdade e
organização do convívio humano. Para a autora, a força e a violência foram meios utilizados para proteger o omissão estatal também como política pública e outra que leva em consideração apenas
espaço político, mas nada tem haver com a essência da política. Vide: ARENDT, Hannah. O que é política? os atos comissivos e 3) uma abordagem estrutural (de nível estratégico) e outra que
3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 03-08; BOBBIO, Norberto. A política. In: BOBBIO, Norberto. também considera os aspectos operacionais.10
O filósofo e a política. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003, p.137 -138. No primeiro nó conceitual, segundo uma abordagem estatal (state-centered policy-
2
BOBBIO, N., MATEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 12. ed. Brasília: Editora da UnB, 2002 v.2. making) a política somente pode ser considerada como “pública” quando emanada da
3
SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: Conceitos, esquemas de análise e casos práticos. 2. ed. São Paulo: decisão de um ator estatal. Já a abordagem multicêntrica, entende que a política é
Cengage Learning, 2014. p. 01.
4 “pública” quando o problema que se tenta enfrentar é público, independentemente de ter
Embora nos EUA o tema já seja discutido desde o 2º pós-guerra, no Brasil, como nosso Estado Social
ainda está em fase de construção, os estudos sobre as políticas públicas são extremamente recentes. Foi, sido emanado pelo Estado ou por organizações não-estatais.11
sobretudo, com a nossa redemocratização pós-88 que o tema das políticas públicas começou a ganhar
maior destaque na Administração Pública Brasileira. FARAH, Marta Ferreira Santos. Administração Pública e
Políticas Públicas. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, n.45, maio∕jun. 2011, p. 831.
5
A delimitação das fronteiras do tema é complicada, pois o objeto das políticas públicas é heterogêneo,
envolvendo atores sociais pertencentes a organizações múltiplas, públicas ou privadas, e que intervém em
diversos níveis. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva,
2002. p. 251.
6
De fato, exige um conhecimento de Ciência Política, Sociologia, Filosofia, Economia, Direito, dentre outros
ramos. Nesse contexto, juristas, administradores, cientistas políticos, filósofos e economistas ainda não Para maiores informações, vide: DAVI, Kaline Ferreira. A dimensão política da Administração Pública:
conseguiram estabelecer um consenso sobre a conceituação do tema. BUCCI, Maria Dallari, Políticas Neoconstitucionalismo, Democracia e procedimentalização. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris LT, 2008.
Públicas: Reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 47. 8
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p.
7
Grande parte da atuação das políticas públicas é considerada como ato político. Todavia, entendemos que 370-372.
os denominados atos “políticos” são atos administrativos dotados de maior discricionariedade e que fazem 9
SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: Conceitos, esquemas de análise e casos práticos. 2. ed. São Paulo:
parte da atuação da Administração pública latu sensu. A nosso ver, a separação entre atos políticos e atos Cengage Learning, 2014. p.02.
administrativos não tem fundamentos jurídicos sólidos, mas derivou de uma manobra histórica do Conselho 10
Ibidem, p.02.
de Estado Francês visando a insindicabilidade dos atos praticados por Napoleão Bonaparte. 11
Ibidem, p.03-04.
REVISTA DO MPBA 308 309 REVISTA DO MPBA
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO E O REGIME JURÍDICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO E O REGIME JURÍDICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Nesse diapasão, malgrado Secchi traga os argumentos favoráveis a uma Seguimos, assim, a abordagem estatista defendida, sobretudo, por doutrinadores como
abordagem multicêntrica12, entendemos como mais apropriada uma abordagem estatal, Bucci, Rua, Grau, Comparato, Massa-Arzabe, Bercovici, Fonte e Dye.20
pois 1) as instituições estatais dão às políticas públicas maior legitimidade, universalidade O segundo nó conceitual, é baseado na afirmação capitaneada por Thomas Dye de
e coercitividade13; 2) as políticas públicas estão vinculadas historicamente a uma tradição que política pública é “tudo aquilo que os governos escolhem fazer ou não fazer”. Nessa
intervencionista do Estado Social em prol de direitos fundamentais14; 3) a abordagem concepção, a política pública também significa uma omissão, é dizer, quando o Estado
multicêntrica amplia exageradamente o conceito de políticas públicas, de modo que, não faz nada em relação ao problema isso também seria uma política pública.21 Seria
toda ação destinada a resolver um problema público seria uma política pública15 e 4) a o caso, por exemplo, da seca no agreste nordestino, em que a inação do governante
definição de um “problema público” é quase sempre nebulosa e está atrelada às vontades em enfrentar o problema poderia gerar questionamentos sobre seus interesses na
políticas e individuais dos gestores.16 manutenção do status quo.
Não desconhecemos, entretanto, que organismos não-estatais também são Essa abordagem, entretanto, apresenta uma grande desvantagem, a saber: se
fundamentais para resolução de problemas públicos. Um banco privado, v.g, que todas as omissões ou negligências dos atores governamentais fossem políticas públicas,
lança uma campanha nacional de redução da poluição ambiental, melhoria da tudo seria uma política pública. Ademais, seria impossível visualizar a implementação e
mobilidade urbana e qualidade de vida através de disponibilização de bicicletas os impactos destas. Nesses casos, o que se tem é uma falta de política pública, melhor
patrocinadas para a população, teve uma atitude fundamental para resolver problemas dizendo, uma falta de inserção do problema na agenda política.22 Por exemplo, se um
públicos.17 Todavia, não compreendemos essa ação como propriamente uma “política grupo de ambientalistas pressionasse o Executivo para criar um sistema de irrigação
pública”, mas sim uma “ação privada de interesse público”.18 Essa ação privada, contínua e sustentável no agreste nordestino, e o Executivo negasse a demanda, essa
a nosso ver, só pode tornar-se política pública se for incorporada pelo Estado.19 recusa em si não seria uma política pública.
Nesse diapasão, as políticas públicas têm a ver com ações comissivas do Estado,
sobretudo, no Brasil, em que essas políticas foram desenvolvidas sob a égide do
12
Secchi defende uma abordagem multicêntrica alegando que essa visão permite 1) um enfoque mais
intervencionismo estatal pós Constituição Federal de 1988.23 Elas denotam a ideia do
interpretativo e menos positivista; 2) evita uma pré-análise da personalidade jurídica de uma organização “Estado em ação”, é dizer, o Estado implantando um projeto de governo, através de
para saber se ela é pública ou privada e 3) amplia o conceito de política pública privilegiando os Estados programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade.24
contemporâneos em que diversos atores não-estatais enfrentam problemas públicos. Uma parte da doutrina
internacional também defende essa visão. Não concordamos, todavia, com essa abordagem pelos motivos
expostos a diante. SECHI, op.cit, p.04.
13
Segundo Dye, a legitimidade decorre da positivação estatal dessas políticas públicas no ordenamento
jurídico; a universalidade significa que com a atuação do estado, elas devem atingir a toda sociedade ou
a todo um grupo de pessoas vulneráveis que mereçam tratamento especial e a coercitividade decorre da
possibilidade de sanção estatal em casos de violação das políticas públicas. DYE, Thomas R. Understanding
public policy. Boston: Pearson, 2008. p. 12.
14
De fato, o estudo das políticas públicas (policy science) começou nos EUA com a ascensção do Welfare
State, logo após crise de 1929, sobretudo, com a implementação do New Deal. Vide: BIRKLAND, Thomas
A. An introduction to the policy process, 2005. p.33, Disponível em: <http://books.google.com.br/books?h
l=ptR&lr=&id=FVjfBQAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT30&dq=thomas+birkland+an+introduction+to+the+policy+pro 20
cess+pdf&ots=txe09UcvEM&sig=elIuD6TpX-zvuTXDgp-9jWpcvRo#v=twopage&q&f=true>. Acesso em: 10 BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.), O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari.
maio 2015. (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.; RUA, Maria das
15 Graças. Analise de Políticas Públicas: conceitos básicos, 1997; GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito
A nosso ver, Secchi amplia demais o conceito de política pública. Até mesmo por uma imposição lógica, se
pressuposto, 2011. COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas
tudo for uma política pública, nada ela realmente é.
16
públicas. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 35, n. 138, abr./jun. 1998; MASSA-ARZABE, Patrícia
O próprio Leonardo Secchi que é a favor da abordagem multicêntrica confessa essa desvantagem. Vide: Helena. Dimensão jurídica das políticas públicas, 2006; BERCOVICI, Gilberto. Planejamento e políticas
Secchi, SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: Conceitos, esquemas de análise e casos práticos. 2. ed. São públicas: por uma nova compreensão do papel do Estado, 2006; FONTE, Felipe de Melo. Políticas Públicas
Paulo: Cengage Learning, 2014. p.10. e Direitos Fundamentais: elementos de fundamentação do controle jurisdicional de políticas públicas. São
17
Isso foi o que ocorreu, por exemplo, com a campanha do Banco Itaú fornecendo bicicletas laranjas com seu Paulo: Saraiva, 2013; DYE, Thomas R. Understanding public policy, 2008.
slogan para diversos municípios gratuitamente. Nesse caso, essa atividade privada de interesse público 21
DYE, Thomas R. Understanding public policy. Boston: Pearson, 2008. p.01.
foi tão bem sucedida que foi incorporada pela Administração Pública e a partir de então começou a ser
22
implementada como política pública. Em Salvador, por exemplo, a prefeitura incorporou essa ação privada SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: Conceitos, esquemas de análise e casos práticos. 2. ed. São Paulo:
e criou o programa “Salvador Vai de Bike”. Maiores informações, consulte: http://www.salvadorvaidebike. Cengage Learning, 2014. p.06.
salvador.ba.gov.br/index.php/8-programa/1-o-programa. 23
Segundo GATTI, toda política pública está intrinsecamente ligada a uma determinada ação comissiva do
18
A expressão é de, RUA, Maria das Graças. Analise de Políticas Públicas: conceitos básicos. Washington, poder público. Vide: GATTI, Marcos. Sobre o conceito de Políticas Públicas e suas consequências para a
Indes.BID, 1997. Mimeografado. Orientação Profissional. Tese (Doutorado). USP- Faculdade de Direito, São Paulo, 2011. p. 26-30.
24
19
DUARTE, Clarice Seixas. O Ciclo das políticas públicas. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio; BERTOLIN, HÖFLING, Eloísa de Matos. Estado e políticas (públicas) sociais. Caderno Cedes, v. XXI, n. 55, p. 30 – 41,
MARTINS, Patrícia Tuma (Org.). O Direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo: Atlas, 2013. p.18. 2001.
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Vale ressaltar que esse é o entendimento da jurisprudência nacional que identifica, Por outro lado, Secchi entende que as políticas públicas podem ser decompostas em
como regra, as políticas públicas enquanto ações estatais vocacionadas à concretização mais políticas públicas que a operacionalizam. A análise partiria, assim, do nível macro
dos direitos fundamentais, notadamente os direitos sociais de cunho prestacional. até o nível mais operacional, segundo o autor.43
Inúmeros julgados sobre o tema25, por exemplo, são relacionados com direito à saúde Por exemplo, uma política pública federal de educação, visando a oferta de vagas
(concessão de tratamento médico26, melhoria no atendimento27, estocagem e entrega de em universidades públicas federais, é composta de diversas normas e regulamentos:
medicamentos e insumos28 e saneamento básico29); educação (construção e reforma de depende da implantação de vários programas como PROUNI, FIES e o REUNI e de
escolas públicas30, provimento de professores31, garantia de vaga e matrícula32, garantia atividades ainda mais operacionais como a construção de universidades novas,
de transporte para a escola33); moradia (fornecimento de abrigo34), meio ambiente contratação de professores e servidores, compra de materiais, etc. Todos esses atos,
(regularização do lixão público35); segurança pública (realização de concursos públicos normas, programas e planos seriam políticas públicas numa abordagem operacional,
e contratações de policiais36, atendimento de plantão pela brigada militar37, reforma e mas, em sentido diverso, seriam apenas “partes de um todo”, na vertente macroestrutural.
construção de presídios38) e o direito das crianças e adolescentes (manutenção de rede Filiamo-nos a abordagem macroestratégica, pois entendemos que 1) política
de assistência à saúde39, construção de delegacia especializada40, disponibilidade de pública tem a ver com a ideia de atividade, é dizer, um conjunto de atos, normas e
vaga em creche41). programas em uma sequência processualizada, planejada e vinculada por uma mesma
O terceiro e último “nó conceitual” diz respeito ao grau de operacionalidades finalidade;44 2) a abordagem operacional possibilita que qualquer suporte legal45 (lei,
das políticas públicas. Segundo uma parte da doutrina (Comparato, Bucci, Grau e portaria, decreto, etc.) que designe ações estatais em prol de resolução de problemas
Massa-Arzabe) as políticas públicas seriam as macrodiretrizes estratégicas, é dizer, um públicos, por exemplo, seja considerado uma política pública.
conjunto de programas; uma atividade. Nessa interpretação, elas são estruturantes e os No sentido operacional, v.g, a edição de uma lei seria uma política pública. Não
programas, planos, projetos, atos e normas são apenas seus elementos operativos, não concordamos com esse sentido, a lei não esgota uma política pública, mas é um elemento
podendo ser considerados políticas públicas individualmente.42 desta. Por mais que no Brasil, o termo seja utilizado para designar normas-gerais que
instituem políticas nacionais – como as políticas nacionais sobre drogas (Lei 11.343∕06);
meio ambiente (Lei 6.938∕81); turismo (Lei 11.771∕2008); saneamento básico (Lei
25
Pesquisa realizada em 10-05-2015, buscando-se o termo “políticas públicas” nos julgados nacionais, através 11.445∕07) e telecomunicações (Lei 9.472∕97) – a mera edição de um diploma legislativo
do site do “JusBrasil”. A maioria dos julgados pesquisados trazia o entendimento consolidado pelo STF e STJ
de que sobre o tema do controle judicial das políticas públicas, ressaltando que seu caráter é excepcional
não garante que o Estado praticará qualquer ação concreta para implementá-lo.46
e deve ser aplicado somente nos casos de omissão injustificada ou ineficiência do Estado na concretização
de políticas públicas constitucionalizadas e relacionadas aos direitos fundamentais dos cidadãos, pois nesse 2.3.1 Concepção Adotada
âmbito não há discricionariedade do administrador.
26
STF, ARE 727864, PR, Rel. Min. Celso de Mello, j.04-11-2014; STF ARE 820910 CE, Rel. Min. Ricardo Destarte, após ultrapassarmos os principais obstáculos conceituais do tema,
Lewandowski, j. 26-08-2014.
27
adotamos para fins dessa pesquisa, uma abordagem estatal de atuação comissiva e
STF, RE 581352 AM, Rel. Min. Celso de Mello, j. 29-10-2013; STJ REsp 744592 AM, Rel. Min.Denise Arruda,
j. 27-11-2007.
macroestratégica.
28
STJ, AgRg no AREsp 362882 RN 2013, Rel. Min.Herman Benjamin, j.23-10-2014; STJ REsp 1041197 MS,
Rel. Min. Humberto Martins.
29
TJ-SP APL 00116247220108260268, Rel. Des. Torres de Carvalho, j.04-12-2014
30
STF, ARE 845392 RS, Rel. Min. Roberto Barroso, J. 19-08-2014
31
TJ-RJ, AI 2008.002.02378, Rel. Des. Siro Darlan De Oliveira, j. 20-5-2008
32
TJ-RJ, AI 00191573220158190000, Rel. Des. Carlos Eduardo da Rosa F. Passos, j. 27-04-2015
33
TJ-RJ, AC 2008.001.24905, Rel. Des. Jésse Torres, j. 04-06-2008 43
SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: Conceitos, esquemas de análise e casos práticos. 2. ed. São Paulo:
34
TJ-SP AI 0016841222013826000, Rel. Des. Paulo Ayrosa, j. 29-08-2013 Cengage Learning, 2014. p.09.
35 44
TRF-2 AC 200650030001363 RJ, Rel. Des. Fed. Nilzete Lobato Carmo, j. 20-10-2014 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 255 e
36
STF, ARE 797321 PA, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 19-08-2014 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de
37 Informação Legislativa. Brasília, ano 35, n. 138, abr./jun. 1998. p. 44-45.
STF ARE 654823 RS, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 12-11-2013
45
38 Segundo Bucci, as políticas públicas têm distintos suportes legais. Elas podem ser expressas em disposições
TJ-RS REEX 70064262348, Rel. Des. Marilene Bonzanini, j. 20-04-2015
39
constitucionais, ou em leis, ou ainda em normas infra-legais, como decretos, portarias e até mesmo em
STF, ARE 745745 MG, Rel. Min. Celso de Mello, j. 02-12-2014 instrumentos jurídicos de outra natureza, como contratos de concessão de serviço público, por exemplo.
40
TJ-RN, AI 7882010.000078-8, Des. Aderson Silvino, j.05-10-2010. BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.), O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari.
41
TJ-SC, MS 20140019947, Des. Júlio Cesar Knoll, j.05-03-2014 (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 11.
46
42
Comparato, Grau, Massa-Arzabe e Bucci, v.g, defendem essa ideia, pois entendem que a política pública é FONTE, Felipe de Melo. Políticas públicas e direitos fundamentais: elementos de fundamentação do controle
um programa de ação que tem a ver com a ideia de atividade, é dizer, um conjunto de atos e normas. Um jurisdicional de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013; DYE, Thomas R. Understanding public policy,
único ato ou norma não é sozinho uma política pública, mas um elemento desta. 2008. p.31-33.
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A política pública, desse modo, consiste em uma atividade estatal complexa47 e Ocorre que a política pública, enquanto atividade estatal complexa e
processualizada48 que visa a concretização dos direitos e objetivos sociais juridicamente processualizada, mantém uma intrínseca relação com o Direito Administrativo, pois este
relevantes e determinados no meio politico-administrativo49, em prol do interesse público é ramo jurídico que cuida do Estado em atividade, é dizer, sua vertente executiva, sua
qualitativo50 e, sobretudo, da dignidade da pessoa humana.51 função administrativa.55
Estabelecemos, portanto, um conceito jurídico primário de políticas públicas, a Qual seria, assim, o regime jurídico predominante na realização das políticas
partir de uma aglutinação dos elementos essenciais retirados do direito positivo, da públicas: o Direito Constitucional ou o Direito Administrativo?
doutrina e a da jurisprudência nacionais. Segundo a lição de Paulo Bonavides, o Direito Constitucional é um direito “em
A utilidade desse conceito reside em atrelar a atuação político-administrativa repouso” enquanto o Direito Administrativo é um direito “em movimento.”56 Ou seja,
do Estado à concretização dos direitos fundamentais e do interesse público no caso enquanto o primeiro rege os princípios e normas fundamentais do Estado (sua estrutura,
concreto. organização e direitos fundamentais a serem respeitados e concretizados)57, o segundo
Corrobora-se, assim, com a construção de um efetivo Estado Democrático disciplina as atividades administrativas necessárias para a realização dos direitos
de Direito, pois os direitos fundamentais não são cartas de intenções, eles estão na fundamentais e a organização e o funcionamento das estruturas estatais e não estatais
Constituição para serem concretizados52, e a principal forma dessa concretização estatal encarregadas de seu desempenho.58
é através das políticas públicas. A democracia, nesse sentido, se apoia em uma defesa Isso significa que o Direito Administrativo possui uma íntima relação com o
intransigente de direitos que assegure e proteja a autonomia, a inviolabilidade e a conceito de “atividade”59, pois rege o “Estado em ação”, é dizer, a atividade processual
dignidade dos cidadãos.53 administrativa planejadora e executora dos programas constitucionais, estabelecendo
uma ligação direta entre o político e o jurídico.60
Com efeito, como adverte o jurista português Paulo Otero, de nada adianta a
3 REGIME JURÍDICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS Constituição proclamar que todos têm direito à educação e saúde, v.g, se a Administração
Pública não agir para possibilitar a construção de escolas e hospitais; a contratação de
3.1 A INSUFICIÊNCIA DO DIREITO CONSTITUCIONAL professores e médicos e a compra de meios materiais para seu efetivo funcionamento.
Sem a atividade administrativa, portanto, os direitos fundamentais e as políticas públicas
De acordo com a clássica tripartição das funções estatais, as grandes linhas das nunca passarão de meras proclamações de papel.61
políticas públicas (diretrizes e objetivos), por serem entendidas como opções políticas, Nesse sentido, Fábio Konder Comparato ressalta, por exemplo, sobre a
caberiam ao Poder Legislativo e deveriam ser regidas pelo Direito Constitucional. Ao insuficiência do Direito Constitucional em relação ao seu juízo de constitucionalidade.
Executivo caberia, por sua vez, a posterior execução dessas políticas.54 Esse juízo somente prevê o controle das leis e dos atos normativos, mostrando-se
incapaz de controlar, sozinho, a validade das atividades de concreção constitucional.62
47
Falta, portanto, ao Direito Constitucional o perfil dinâmico e concretizador que é inerente
Pelo seu aspecto macroestrutural, a política pública é um conjunto complexo de atos, normas, planos e
programas estatais. Essa atividade vai do geral para o particular, é dizer, desde o planejamento pelo Executivo,
ao Direito Administrativo Contemporâneo.
passando edição da norma, até os atos administrativos mais concretos. Fonte, op.cit, p.49
48
De acordo com Bucci, a política pública resulta da comunhão de diversos processos jurídicos: processo
eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo,
processo administrativo e processo judicial. Essa ideia é mais desenvolvida no trabalho mais recente da
autora: BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Pública. São Paulo:
Saraiva, 2013. passim.
49
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2006. p.241. 55
50
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 270.
Adotamos o entendimento de Justen Filho de que o interesse público não representa necessariamente o 56
interesse do Estado, do seu aparato administrativo, da maioria ou totalidade da população ou da sociedade BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p.44.
57
como um todo. Esses são apenas aspectos quantitativos. Entendemos que o interesse público deve ser SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed São Paulo: Malheiros, 2005. p.34.
caracterizado qualitativamente em cada caso concreto e vinculado ao respeito dos direitos fundamentais e 58
JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do direito administrativo. Revista
sobretudo, da dignidade da pessoa humana. Vide: JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 26, 1999. p. 01.
“personalização” do direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 26, p.115-136, 59
Segundo Justen Filho, o Direito administrativo rege tanto a atividade omissa (proteção dos direitos individuais)
1999. quanto comissiva do Estado (concretização dos interesses coletivos e valores humanos). Vide: JUSTEN
51
MASSA-ARZABE, Patrícia Helena. Dimensão jurídica das políticas públicas, 2006; BERCOVICI, Gilberto. FILHO, op. cit, p.01-03.
Planejamento e políticas públicas: por uma nova compreensão do papel do Estado, 2006. p. 63. 60
DAVI, op. cit., p.106.
52
SOUZA, Wilson Alves. Acesso à justiça. Salvador: Ed. 2 de julho, 2011, p 100-101; 234-237. 61
OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade.
53
NINO, Carlos Santiago. La Constitución de la Democracia Deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1999. p. 94-95. Almedina: Coimbra, 2007, p.29-30.
54 62
DAVI, Kaline Ferreira. A dimensão política da administração pública: neoconstitucionalismo, democracia e COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de
procedimentalização. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris LT, 2008. p.106. Informação Legislativa. Brasília, ano 35, n. 138, abr./jun. 1998. p.49.
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3.2 O PODER EXECUTIVO ENQUANTO POLICY MAKER E AS POLÍTICAS PÚBLICAS As políticas públicas, por sua vez, também são 1) regidas pelo regime jurídico
COMO REFLEXO DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA DO ESTADO administrativo, pois visam concretizar o interesse público e encontram-se vinculadas aos
objetivos determinados e executados pela Administração Pública; 2) função do Estado
Hodiernamente, o Poder Executivo possui uma grande normatividade com relação dentro de uma estrutura hierárquica, já que são desenvolvidas diretamente pelo Executivo
às políticas públicas, realizando-as por sua própria iniciativa, segundo as diretrizes e dentro da estrutura do ciclo de políticas públicas (policy cycle)70; 3) desempenhadas por
dentro dos limites aprovados pelo Legislativo.63 A construção dessas políticas (policy comportamentos infralegais ou infraconstitucionais, pois dependem de uma atividade de
making), assim, decorre de um processo dinâmico envolvendo todo o corpo administrativo concretização desses comandos normativos; 4) submetidas ao controle de legalidade
do Estado.64 do Judiciário, por conta da universalidade da jurisdição (Art.5º, XXXV, CRFB∕88)
Ilustra essa realidade, v.g, a formulação da Política Municipal de Meio Ambiente e 5) destinadas a satisfazer o interesse público através da concretização de direitos
e Desenvolvimento Sustentável pelo atual Prefeito de Salvador. O Poder Executivo fundamentais, sobretudo.71
Municipal elaborou o Projeto de Lei nº 166∕2015 disciplinando toda a política pública Compreendemos, assim, a política pública como uma das formas de manifestação
municipal (desde os princípios, diretrizes e objetivos até a aplicação de sanções por da função administrativa do Poder Executivo. Esse reconhecimento reafirma a importância
infração administrativa ambiental) e o encaminhou para a aprovação Câmara Legislativa do estudo do tema no campo da disciplina do Direito Administrativo Contemporâneo
de Salvador.65 contribuindo para o aprofundamento acadêmico do tema. Nesse sentido, essa seara do
Dessa forma, em um Estado Democrático (e Social) de Direito, o Poder Executivo direito incorpora novas problemáticas e possibilita novas interpretações jurídicas sobre
não apenas executa as políticas públicas, mas também é o principal responsável pela a gestão pública brasileira visando o aperfeiçoamento da Administração Pública na
sua formulação. Isso significa que é o Executivo (e não o Legislativo), em regra, o efetivação dos direitos humanos.72
formulador nato das políticas públicas (policy maker).66 Ele assume a função de maior
relevância, que é a função administrativa de idealização e concretização do programa 3.3 REGIME JURÍDICO ADOTADO: O DIREITO ADMINISTRATIVO
político (policy-making).67 CONSTITUCIONALIZADO
Nessa linha de raciocínio, segundo Larissa Beltramim, as políticas públicas são
uma espécie de função administrativa do Poder Público. Basta percebermos a correlação O Direito Administrativo tradicional ainda está apegado a uma atividade omissiva do
entre os dois conceitos: a função administrativa e as políticas públicas.68 Estado (visão liberal clássica de limitação do poder), e não a uma atividade comissiva em
A função administrativa é a função, regida pelo direito público (regime jurídico prol da concretização dos direitos fundamentais. Nesse diapasão, visando superar esse
administrativo), em que o Estado exerce, direta ou indiretamente, dentro de uma déficit teórico tradicional, o Direito Administrativo deve ser constitucionalizado, é dizer,
estrutura hierárquica e sob controle legal do Judiciário, comportamentos infralegais adotar o sistema constitucional de direitos e valores fundamentais para desempenhar
ou infraconstitucionais com a finalidade de satisfazer o interesse público, através da com sucesso as prestações positivas do Estado.73
concretização das finalidades estabelecidas no sistema do direito positivo. 69 Entendemos, assim, que, sob a lógica neoconstitucionalista74, o Direito
Administrativo Constitucionalizado é aquele que sofreu um amadurecimento teórico com
base numa filtragem constitucional, desconstruindo diversos dogmas obsoletos.

70
O ciclo das políticas públicas (Policy Cycle) consiste em um procedimento em que o gestor público deve
perceber um problema na sociedade (definição da agenda pública); formular possíveis soluções ouvindo
63 os interessados e corpo técnico administrativo (formulação das políticas públicas); escolher as atitudes que
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. p.270-272.
64
GEURTS, Thei. Public Policy Making: The 21st century perspective. Ed. Be informed, p.06-10. serão tomadas e definir os recursos e o prazo temporal da política (escolha das políticas públicas) para
65 depois começarem os atos de implementação da política pública escolhida. FONTE, Felipe de Melo. Políticas
O projeto de Lei está disponível no site da Câmara Municipal de Salvador: Disponível em: <http://www.cms. públicas e direitos fundamentais: elementos de fundamentação do controle jurisdicional de políticas públicas.
ba.gov.br/upload/Mens_5_15_-_PLE_166_15_201562175813990521.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2015. São Paulo: Saraiva, 2013. p.49-64.
66
FARAH, Marta Ferreira Santos. Administração pública e políticas públicas. Revista de Administração Pública, 71
BELTRAMIM, Larissa. Direito e gestão pública: política pública como forma de manifestação da função
Rio de Janeiro, n.45, maio∕Jun., 2011. p. 10. administrativa. Aplicabilidade do regime jurídico administrativo ao ciclo de gestão de políticas públicas no
67
Ibdem, p.17 Brasil. Dissertação (Mestrado). PUC-SP - Faculdade de Direito, São Paulo, 2007. p. 96.
68
A autora foi pioneira ao trazer especificamente essa relação entre as políticas públicas e a função administrativa 72
Ibdem, p. 97
do Estado. Concordamos com ela. Cf. BELTRAMIM, Larissa. Direito e gestão pública: política pública como 73
DAVI, 2008, p.104-109
forma de manifestação da função administrativa. Aplicabilidade do regime jurídico administrativo ao ciclo de 74
gestão de políticas públicas no Brasil. Dissertação (Mestrado). PUC-SP - Faculdade de Direito, São Paulo, Com o fenômeno do neoconstitucionalismo, segundo Marcelo Neves, direito “autofundamenta-se
2007. p.93-96. constitucionalmente”, é dizer, todas as searas jurídicas (incluindo o Direito Administrativo, por óbvio) passaram
69 a ter como parâmetro de legitimidade a Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. Desse
Esse é o conceito de Bandeira de Mello. Vide: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito modo, realizamos uma leitura do direito constitucional através de um “filtro constitucional”. Vide: NEVES,
administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 36. Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 59.
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REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO E O REGIME JURÍDICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO E O REGIME JURÍDICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Além de se preocupar com limitação do poder estatal, ele também é destinado à atuação 5 REFERÊNCIAS
positiva na concretização dos direitos fundamentais em prol da dignidade humana.75
Destarte, existe uma nítida interdependência entre o Direito Administrativo e o ARENDT, Hannah. O que é política? 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
Direito Constitucional. O Direito Administrativo depende dessa filtragem constitucional
para atualizar e “oxigenar” sua base teórica e o Direito Constitucional depende de uma BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 25. ed. São
efetiva atividade administrativa para ser posto em movimento e concretizar-se.76 Paulo: Malheiros, 2008.
Ante o exposto é, mais especificamente, esse “Direito Administrativo BERCOVICI, Gilberto. Planejamento e políticas públicas: por uma nova compreensão
Constitucionalizado” que deve reger o sistema de realização das políticas públicas do papel do Estado. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexões
brasileiras.77 Assim, todo o processo de formação e implementação das políticas sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.
públicas (policy cycle) é regido pela atividade administrativa e pelo Direito Administrativo
Contemporâneo (Constitucionalizado).78 BELTRAMIM, Larissa. Direito e gestão pública: política pública como forma de
manifestação da função administrativa. Aplicabilidade do regime jurídico administrativo
4 CONCLUSÃO ao ciclo de gestão de políticas públicas no Brasil. Dissertação (Mestrado). PUC-SP -
Faculdade de Direito, São Paulo, 2007. 130 p. il.
Diante do exposto, concluímos que: BIRKLAND, Thomas A. An introduction to the policy process, 2005. Disponível em:
1. A política pública juridicamente consiste em uma atividade administrativa <http://books.google.com.br/books?hl=ptR&lr=&id=FVjfBQAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT30&
comissiva e macro estratégica do Estado na concretização dos direitos fundamentais dq=thomas+birkland+an+introduction+to+the+policy+process+pdf&ots=txe09UcvEM&si
(sobretudo, da dignidade da pessoa humana) e do interesse público qualitativo. g=elIuD6TpX-zvuTXDgp-9jWpcvRo#v=twopage&q&f=true>. Acesso em: 10 maio 2015.
2. Com esse conceito podemos, por exclusão, dizer o que não é uma política
pública, a saber: a) uma omissão estatal (é, na verdade, uma falta de política pública); b) BOBBIO, Norberto. A política. In: O filósofo e a política. Rio de Janeiro: Contraponto,
atos mais operacionais do Estado na concretização dos direitos fundamentais (normas, 2003.
programas, planos, atos administrativos, etc.), pois são apenas “partes de um todo”, BOBBIO, Norberto; N., MATEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 12. ed. v.
elementos de uma política pública e c) a atuação de um organismo não estatal (este 2. Brasilía: Editora da UnB, 2002.
desempenha, no máximo, uma atividade privada de interesse público).
3. O regime jurídico mais adequado para as políticas públicas brasileiras é o Direito BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed São Paulo: Malheiros, 2004.
Administrativo Contemporâneo (Constitucionalizado). Esta é a seara do direito mais BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo:
atrelada à atividade estatal de concretização dos direitos fundamentais e à elaboração Saraiva, 2002.
das políticas públicas através da função administrativa do Poder Executivo (policy maker).
São essas as conclusões que derivam de tudo o que foi desenvolvido ao longo ______. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas pública. São Paulo: Saraiva,
dessa pesquisa. A partir de então, lançamos as bases para um debate acerca das 2013.
políticas públicas no âmbito jurídico do direito administrativo brasileiro. ______. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari. (Org.).
Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.
______. Políticas Públicas: Reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva,
2006.
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas
públicas. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 35, n. 138, abr./jun. 1998.

75
DAVI, Kaline Ferreira. A dimensão política da administração pública: neoconstitucionalismo,
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
p.102-104. democracia e procedimentalização. Porto Alegre: Sergio Antoni Fabris LT, 2008.
76
Nesse sentido, BONAVIDES afirma que em diversos países o Direito Administrativo e Constitucional são tão DYE, Thomas R. Understanding public policy. Boston: Pearson, 2008.
íntimos e interdependentes que chega a ser difícil se estabelecer uma distinção clara e válida entre as duas
matérias. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed São Paulo: Malheiros, 2004., p.44-45. DUARTE, Clarice Seixas. O Ciclo das políticas públicas. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio;
77
DAVI, 2008, p.60-63 BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins (Org.). O Direito e as políticas públicas no Brasil. São
78
Segundo BUCCI, a escolha das diretrizes políticas deve ser lastreada pelo interesse público qualitativo (e Paulo: Atlas, 2013.
não na vontade pessoal do gestor) e na consecução de diversos atos, contratos, regulamentos e operações
materiais encetados pela Administração Pública. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas FARAH, Marta Ferreira Santos. Administração pública e políticas públicas. Revista de
Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 267. Administração Pública, Rio de Janeiro, n.45, maio∕Jun., 2011.
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REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO E O REGIME JURÍDICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

FONTE, Felipe de Melo. Políticas públicas e direitos fundamentais: elementos de REGULAÇÃO UNIFICADA E ACESSÍVEL AO PÚBLICO – DIREITO DE
fundamentação do controle jurisdicional de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013. TODOS, ATÉ MESMO DA ADINISTRAÇÃO PÚBLICA

GATTI, Marcos. Sobre o conceito de políticas públicas e suas consequências para a Mirella Barros Conceição Brito*
orientação profissional. Tese (Doutorado). USP- Faculdade de Direito, São Paulo, 2011.
315 p. il.
Tu separarás a terra do fogo e o sutil do espesso,
GEURTS, Thei. Public Policy Making: The 21st century perspective. Ed. Be informed. docemente, com grande desvelo.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malheiros, Pois Ele ascende da terra e descende do céu
e recebe a força das coisas superiores
2011. e das coisas inferiores.
HÖFLING, Eloísa de Matos. Estado e políticas (públicas) sociais. Caderno Cedes, v. XXI, Tu terás por esse meio a glória do mundo, e toda
obscuridade fugirá de ti.
n. 55, p. 30-41, 2001. e toda obscuridade fugirá de ti.
JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do direito Jorge Ben Jor. Hermes Trimesgisto
administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 26, 1999.
______. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
EMENTA
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BUCCI, Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São protocolos para efetivo controle social e desafogamento das contínuas demandas.
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da Publicidade. Lei da Transparência.
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à juridicidade. Almedina: Coimbra, 2007.
O Sistema único de saúde, cuja noção se inseriu na Constituição de 1988 e nas
RUA, Maria das Graças. Analise de políticas públicas: conceitos básicos. Washington, normas infraconstitucionais 8.080/90 e 8142/90, impôs aos municípios maior atuação
Indes.BID, 1997. Mimeografado. nesta seara, esvaziando a antes inchada responsabilidade dos demais entes federativos.
SECCHI, Leonardo. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise e casos práticos. O mote que serviu de pressuposto básico à medida fora a crença de que os problemas
2. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2014. locais seriam mais facilmente solucionados pela gestão pública local. Ocorre que, apesar
das boas intenções da opção, a mudança estratégica, ao ser efetivada, não se pautou na
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: avaliação sistêmica necessária.
Malheiros, 2005. O fenômeno é perceptível na Bahia, em que, em rigor, se formaram verdadeira
SOUZA, Wilson Alves. Acesso à justiça. Salvador: Ed. 2o de julho, 2011. ilhas de informação, afastadas de qualquer sistema de conhecimento ou controle da
estrutura estratégica da saúde pública.
Absolutamente todos os dias, numa promotoria de justiça com atuação em direito
sanitário, veem-se negligenciadas, por conta de falhas de controle e gestão, as mais
diversas pretensões individuais, tais como assistência farmacêutica, efetiva prestação de
serviço, entre outras. Mas, seguramente, o maior e mais crítico aspecto se concretiza na
dificultosa busca de leitos apropriados para o convalescimento do paciente.

*
Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia.
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Em Irecê, comarca de entrância intermediária, no oeste do estado da Bahia, a busca 2 DA NECESSIDADE DE UNIFICAÇÃO DA INFORMAÇÃO – RESPEITO AO CIDADÃO
da população pela efetivação da referência hospitalar ocupa mais de 80% da matéria de E A ADMINISTRAÇÃO
saúde junto à 3ª Promotoria de Justiça. Não há médicos especialistas na cidade capazes
de solucionar a maior parte das demandas de média ou alta complexidade, e, deste A Administração Pública, no desempenho do serviço público, possui o Poder-
modo, quando é necessária uma intervenção médica mais criteriosa e especializada, Dever2 de controlar, regulamentar, fiscalizar e prestar de forma eficiente o adimplemento
requer-se ao estado – único possuidor da central de regulação no território – a realização de suas obrigações.
da referência ao paciente para estabelecimento hospitalar apto a solucionar a demanda Segundo a Portaria/SAS/MS nº 356, de 22 de setembro de 20003:
clínica.
O complexo regulador assistencial ligado ao sistema único de
Referência, de forma linear, compreende o acesso adequado à assistência médica,
saúde compreende a concepção que institui ao poder público o
beneficiando o paciente com a “alternativa assistencial mais adequada à necessidade do desenvolvimento de sua capacidade sistemática em responder às
cidadão por meio de atendimentos às urgências, consultas, leitos”, tal como previsto na demandas de saúde em seus diferentes níveis e etapas do processo
Portaria MS nº 1.559 de agosto de 2008. Ela é, portanto, o atendimento a uma demanda de assistência, enquanto um instrumento ordenador, orientador e
médica, realizada por uma unidade solicitante ao Centro de regulação – que poderá definidor da atenção à saúde, fazendo-o de forma rápida, qualificada e
ser Nacional ou Estadual –, de sorte a permitir que o paciente obtenha o necessitado integrada, com base no interesse social e coletivo.
tratamento clínico em unidade que mantenha recursos humanos e instrumentos A dificuldade em obter informações no campo da referência e contrarreferência4–
adequados para viabilizar as condutas médicas. regulação do Acesso Assistencial, cria verdadeiro entrave na administração da saúde
Aparentemente de simples solução, o que se percebe, na prática, é um absoluto pública. Diante da inércia estatal, o recurso ao Poder Judiciário se torna a única
desencontro de informações. Não há acesso aos protocolos clínicos necessários para o alternativa palpável. Porém, a solução afigura-se por demais imperfeita. De um lado,
efetivo cumprimento da demanda. Não há listagem dos leitos destinados aos SUS. Há, porque, com isto, termina-se por transferir – indevidamente – a responsabilidade por tais
muitas vezes, como é o caso da Bahia, mais de uma fila de regulação! Sim, por mais questões para esfera de Poder diversa da que constitucionalmente eleita para o mister.
absurdo que isto pareça, não raro são os próprios hospitais que fazem a sua gestão De outra banda, porque, dada a forma de atuação judiciária, vocacionada à solução de
regulatória, de forma pouco eficiente, isolada e individualizada. Não há respostas rápidas casos concretos e específicos – e não ao acesso universal e igualitário de recursos –,
aos centros médicos, muito menos aos demais órgãos de proteção social – aí incluído o desvirtua-se, também, os princípios essenciais à gestão democrática, ao garantir acesso
Ministério Público, ficando os pacientes, muitas vezes, mais de 6 (seis) meses na espera e atendimento independente e à revelia de qualquer protocolo de atendimento, fila de
por uma vaga em leito hospitalar. espera ou análise e cotejo das condições clínicas dos que necessitam da prestação.
O mais curioso, contudo, é que, quando há a intervenção do Ministério Público
ou da mídia, estas situações teratológicas, de grande lapso temporal sem o adequado
atendimento médico, acabam solucionadas rapidamente, em poucos dias, quando não
em questão de horas. Um verdadeiro atestado de ineficiência e falta de transparência do
serviço público prestado.
Outro mistério que se identifica na temática remete à quantidade de leitos
efetivamente disponíveis1. Não há sistema auditado que possibilite alcançar esta “Esse é um ano difícil de recursos, um ano de contingenciamento, mas esperamos que no próximo ano possamos
informação. A Central de regulação não possui meios eficientes para adimplir sua ter recursos do Ministério da Saúde para investir na ampliação da rede e, sobretudo, para podermos ampliar
a margem de contribuição do governo federal”, acrescentou. RETIRADO DE: http://www.bahianoticias.com.
obrigação, já que, muitas vezes, se baseia, única e exclusivamente, na informação
br/noticia/177156-bem-avaliado-no-governo-vilas-boas-afirma-que-sistema-da-sesab-vai-controlar-100-dos-
trazida por contato telefônico mantido com os dirigentes hospitalares – aqui, o que vale, é leitos.html
a palavra do homem, já que o Estado não proporcionou meios efetivos para o resguardo 2
Hely Lopes Meirelles, com maestria, assinala que: “se para o particular o poder de agir é uma faculdade, para o
da informação e sua auditagem, em flagrante inversão de papéis: a Central de regulação administrador público é uma obrigação de atuar, desde que se apresente o ensejo de exercitá-lo em benefício
passa a ser pedinte, quando deveria ser ordenadora, porquanto submetida às vontades da comunidade”. MEIRELLES, Hely Lopes. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros,
2001. p. 85.
daqueles operários da ponta que atuam junto aos pretendidos leitos hospitalares. 2
BRASIL. Ministério da Saúde. Diretrizes para implantação de complexos reguladores. <http://bvsms.saude.
gov.br/bvs/publicacoes/DiretrizesImplantComplexosReg2811.pdf> Acesso em: 19 ago. 2015.
1 4
O secretário de Saúde, Fábio Vilas-Boas, adiantou nesta sexta-feira (14) que o sistema de informatização da O sistema de referência e contrarreferência na saúde consiste no encaminhamento de usuários de acordo
Secretaria Estadual de Saúde (Sesab) será lançado até o final de outubro. O Hospital Geral do Estado (HGE) e o com o nível de complexidade requerido para resolver seus problemas de saúde. Referência refere-se ao
Hospital Roberto Santos serão os primeiros a contar com o sistema junto à Central de Regulação. “É um sistema ato formal de encaminhamento de um paciente atendido em um determinado estabelecimento de saúde a
que vai permitir à Regulação controlar 100% dos hospitais próprios e dos hospitais terceirizados. Teremos outro de maior complexidade, e contrarreferência refere-se ao ato formal de encaminhamento de paciente ao
controle absoluto da rede”, afirmou Vilas-Boas, apontado por deputados da base aliada como o secretário estabelecimento de origem (que o referiu) após resolução da causa responsável pela referência (20). DIAS,
mais acessível e bem avaliado do governo. O médico é um dos chefes de pasta que acompanham a visita da Camila Faria. O sistema de referência e contrarreferência na estratégia saúde da família no município de
presidente Dilma Rousseff (PT) a Salvador. O momento, segundo Vilas-Boas, pode ser frutífero para a Sesab. Bauru: perspectiva dos gestores”. Disponível em: < http://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/96410/
dias_cf_me_botfm.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 02 nov. 2015.
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O paciente é referenciado e – ao que sabemos – vai para a fila de espera. Esta, A mera efetivação daquilo que já está disciplinado seria suficiente para garantir
porém, existe tão somente para o gestor hospitalar. Para a população e seus órgãos significativo incremento da atual situação. As secretarias estaduais e municipais de
de controle, contudo, não passa de uma ficção, conceito genérico e abstrato infenso a saúde, em conjunto com o Ministério da Saúde, devem realizar diagnóstico da situação
qualquer possibilidade de aferição concreta. O Poder Judiciário, então, diante da ausência operacional da saúde em seus territórios, no fito de apontar o verdadeiro número de leitos
de informações específicas prestadas de forma segura pela Administração Pública, acaba – item que, na Bahia, é desconhecido até a presente data. Além disto, há que se publicizar,
sobrecarregado de demandas que buscam, entre outras coisas, realização de cirurgia, de forma clara e acessível, os protocolos clínicos e de regulação, possibilitando a efetiva
internação, dispensação de leitos especializados, promovendo tutela jurisdicional, muitas indicação da atuação necessária do servidor da saúde. Medidas desta ordem tornariam
vezes, que somente resguarda os interesses daqueles que possuem recursos para muito mais fácil identificar eventuais falhas e fraudes no sistema, diminuindo, ainda, as
ajuizar a demanda, olvidando dos inúmeros desabonados, embora, não raro, necessitem demandas judiciais e a consequente intervenção jurisdicional, sempre complicada diante
até mais e com maior urgência. dos rígidos limites impostos pelas diretrizes orçamentárias e pela finitude dos recursos
Vê-se, portanto, que, muitas vezes, a atuação ministerial individualizada não se estatais.
presta à promoção de justiça coletiva, mas tão somente à concreção do direito de um, Vê-se, portanto, ser plenamente factível galgar uma prestação dos serviços de
em absoluto detrimento de todos os demais – simplesmente desprezados. A ausência saúde muito mais equânime e universal, afastando não só o peso de eventuais interesses
de transparência demanda atuação concertada e coletiva na seara do direito sanitário. particulares, mas permitindo, também, o conhecimento das reais possibilidades de
Mais especificamente, é no campo da regulação que se há de buscar alternativas para solução da querela por todos os envolvidos e interessados. Possibilitar-se-ia, deste
produzir e disseminar a informação possível e suficiente – resguardados, logicamente, modo, a prestação do serviço de saúde de forma adequada, em efetiva tutela da vida da
os sigilos médicos necessários. população – e com o banimento, na Administração Pública, da possibilidade de privilégios
Há que se ressaltar que até mesmo a Administração Pública queda limitada em e favorecimentos pessoais.
seu atuar, já que somente chegam à sua esfera de controle as informações que os
operadores da ponta se prestam a repassar. Facilita-se, deste modo, o desvirtuamento 3 DA LEI DA TRANSPARÊNCIA – QUALIFICANDO O ACESSO
da atuação estatal, ao possibilitar que o coleguismo ou o conhecimento social – e não
critérios técnicos predeterminados e gerais – sirvam de baliza para garantir a proteção Além do levantamento e realização de verdadeiro diagnóstico de gestão pública,
que deveria ser destinada a todos os cidadãos, em igual e equalitária medida. é preciso, ainda, atentar ao fato de que o SUS consiste em política pública voltada à
A atuação ministerial nesta seara, nesse passo, deve se pautar pela busca da prestação do serviço público de saúde. Submete-se, deste modo, a todos os regramentos
informação uniformizada. legais que cuidam da matéria.
Em conformidade com o que dispõe o normativo que regulamenta a matéria A transparência das ações desenvolvidas por órgãos públicos é alçada, pela
e, de acordo com a Portaria/MS 1.559/20085, são atribuições dos entes federativos ordem jurídica, a patamar constitucional – art. 5º, inciso XXXII –. É indispensável ao
concomitantemente: fortalecimento da democracia, uma vez que proporciona o controle dos atos de gestão e,
com isto, melhor e mais eficiente prestação do serviço público.
Art. 10. Cabe à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal A Portaria GM/MS 1.820, de 13 de agosto de 2009, conhecida como Carta dos
exercer, em seu âmbito administrativo, as seguintes atividades:
 I - executar a regulação, o controle, a avaliação e a auditoria da Direitos dos Usuários de Saúde invoca em seu art. 2º que “toda pessoa tem direito
prestação de serviços de saúde; ao acesso a bens e serviços ordenados e organizados para garantia da promoção,
 II - definir, monitorar e avaliar a aplicação dos recursos financeiros; prevenção, proteção, tratamento e recuperação da saúde.” 6
 III - elaborar estratégias para a contratualização de serviços de saúde; Além disto, o art. 7º do mesmo diploma reza que:
 IV - definir e implantar estratégias para cadastramento de usuários, Art. 7º Toda pessoa tem direito à informação sobre os serviços de
profissionais e estabelecimentos de saúde; saúde e aos diversos mecanismos de participação.
 V - capacitar de forma permanente as equipes de regulação, controle § 1º O direito previsto no caput deste artigo, inclui a informação, com
e avaliação; e linguagem e meios de comunicação adequados, sobre:
 VI - elaborar, pactuar e adotar protocolos clínicos e de regulação. I - o direito à saúde, o funcionamento dos serviços de saúde e sobre
o SUS;
II -os mecanismos de participação da sociedade na formulação,
acompanhamento e fiscalização das políticas e da gestão do SUS;
III - as ações de vigilância à saúde coletiva compreendendo a vigilância
sanitária, epidemiológica e ambiental; e
IV -a interferência das relações e das condições sociais, econômicas,
culturais, e ambientais na situação da saúde das pessoas e da
coletividade.
5
BRASIL. Portaria MS 1559/2008. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/ 6
BRASIL. Ministério da Saúde. Carta dos direitos dos usuários da saúde. 3. ed. Brasília: Ministério da Saúde,
prt1559_01_08_2008.html>. Acesso em 19 ago. 2015>. 2011.
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Observa-se, deste modo, que o próprio sistema jurídico que organiza a prestação Ocorre, todavia, que na prestação do serviço à saúde, tal determinação legal em
do direito à saúde reconhece como direito do usuário do SUS a transparência em toda quase nada é respeitada. A regra é que o paciente, uma vez inserido no sistema de
a prestação do serviço público derivada deste sistema, ou seja, ao paciente devem regulação de acesso à assistência – hipótese fática e delimitada que ora se analisa
ser fornecidas de maneira clara, objetiva e facilitada, todas as informações que digam –, não saiba de sua posição na fila de espera de atendimento – se é que ela existe –;
respeito ao seu atendimento médico. se há vagas em hospitais referenciados para a sua patologia; quando ocorrerá a sua
Além disso, rememore-se que a Emenda constitucional nº 19/98 inaugurou transferência; ou quando será realizada sua cirurgia eletiva.
importante mudança paradigmática no que diz respeito às relações jurídicas travadas O mesmo acontece com a unidade solicitante. São ilhas burocráticas de informação,
entre Estado e sociedade, inclusive no que tange à execução das políticas públicas, sem qualquer veio de comunicação. A população, em regra, depende de atendimento via
telefone, no qual o interlocutor não repassa informações necessárias e, sob justificativa
transformando a Administração Pública em instrumento catalizador para o exercício da de que estas estariam acobertadas por dever de sigilo, permeiam de obscuridade todo
cidadania, fornecendo meios suficientes para que os cidadãos ampliem o seu papel o sistema.
fiscalizador e controlador dos resultados finais fornecidos pelo Poder Público. A resolução CIPLAN 03/81 regulamentou o sistema de referência e contrarreferência,
O mais importante pressuposto para esta alteração paradigmática, sem dúvida, é organizando a prestação do serviço à saúde em conformidade com a complexidade
o trazimento do princípio da publicidade na atividade pública como norteador do sistema da questão concreta, delineando 3 níveis de atendimento: o primário, secundário e o
terciário, todavia, não há uma verdadeira integração entre eles. As portas de entrada
jurídico administrativista, corolário imprescindível à transparência eficiente de tudo aquilo de cada um destes níveis não se comunicam com eficiência, o que ocasiona um grande
que envolve a prestação de um serviço público. caos na gerência e atuação no sistema único de saúde.
Neste viés, o princípio da publicidade tem como objetivo precípuo a realização Mônica Serrano8, com altivez, já dizia que:
social de primoroso controle da Administração Pública, e, como maior resultado a Para que se obtenha resultados positivos, deve existir uma real
execração de atos de improbidade. integração entre todas as unidades, de tal forma que um usuário do
Juarez Freitas7 vaticina sobre o assunto: nível primário (atendimento de urgência) possa ser encaminhado
com eficácia a um nível de maior complexidade (internação em um
Almeja-se, em outro dizer, que o centro de gravidade evolua para a hospital).
concretude do primado fundamental à boa administração pública, A rede de informação ao usuário, inclusive, é de vital importância, para
compreendido – com inspiração no art. 41 da Carta dos Direitos que o mesmo possua conhecimento do local para o qual deva se dirigir
Fundamentais de Nice, e sobretudo, à luz de nossa Constituição para um determinado tratamento, seja de urgência ou de rotina, para
– como o direito fundamental à administração pública eficiente e marcar uma consulta médica, exames, entre outros.
eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência,
De conhecimento notório que a Lei 12.527/2011, comumente chamada de Lei da
motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação
social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e Transparência, tornou-se verdadeiro paradigma norteador da atuação do Poder Público.
comissivas. Todo e qualquer ato que se insira na noção de gestão deverá ser levado ao conhecimento
dos administrados.
O Supremo Tribunal Federal também já se manifestou nesta mesma linha de
intelecção: A criação de rotinas e de sistemas de informática que permitam a disseminação da
A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa informação – neste caso, o quantitativo de leitos e sua disponibilidade para os pacientes,
não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República ou marcação de cirurgias ou qualquer outra providência necessária neste setor do Poder
enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário Público – há muito deixou de ser ato discricionário do Administrador. Trata-se, hoje, de
modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra verdadeira imposição legal, em garantia do direito do administrado de acesso à saúde
parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado pública9.
republicanamente administrado. O ‘como’ se administra a coisa pública Previu a referida legislação:
a preponderar sobre o ‘quem’administra – falaria Norberto Bobbio –, e Art. 3º  Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar
o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados
conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia em conformidade com os princípios básicos da administração pública
constitucional republicana. . A negativa de prevalência do princípio da e com as seguintes diretrizes: 
publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como
de grave lesão à ordem pública. (SS 3.902-AgR-segundo, Rel. Min. exceção; 
Ayres Britto, julgamento em 9/6/2011, Plenário, DJE de 3/10/2011).

8
SERRANO, Mônica de Almeida Magalhães. O Sistema Único de Saúde e suas diretrizes constitucionais. São
Paulo: Verbatim, 2009. p. 82.
9
Mônica Serrano, com propriedade, ainda lembra que: A lei orgânica da saúde, em seu artigo 7º, incisos VI,
XII e XIII, dispõe sobre o direito à divulgação de informação quanto ao potencial dos serviços de saúde e sua
7
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: utilização pelos usuários, da capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência, bem como
Malheiros, 2009. p. 36. a organização dos serviços públicos de modo a evitar a duplicidade de meios para fins idênticos. p. 82.
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II - divulgação de informações de interesse público, independentemente Se o administrador não cumprir tal determinação, incorrerá, ausente de dúvidas,
de solicitações;  em prática de ato de improbidade administrativa, já que qualquer conduta ou omissão
III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela
que dificulte a fiscalização por parte dos cidadãos e dos órgãos de proteção social atenta
tecnologia da informação; 
IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na contra o dever de lealdade, honestidade na divulgação de atos administrativos, em frontal
administração pública;  ofensa aos princípios da Moralidade, Legalidade e Publicidade11-12.
V - desenvolvimento do controle social da administração pública. 
[…]
Art. 6º  Cabe aos órgãos e entidades do poder público, observadas as 4 CONCLUSÃO
normas e procedimentos específicos aplicáveis, assegurar a: 
I - gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela De tudo quanto exposto, observa-se ser imperioso ao Ministério Público coletivizar
e sua divulgação;  as demandas individuais que buscam a sua intervenção. Na área de saúde, delimitando-
II - proteção da informação, garantindo-se sua disponibilidade,
se a efetivação do Acesso à Assistência sanitária, requer-se indicação da real situação do
autenticidade e integridade; e 
III - proteção da informação sigilosa e da informação pessoal, sistema único de saúde – principais demandas, números de leitos, existência de equipes
observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual aptas à realização do procedimento – e, principalmente, a criação de mecanismos de
restrição de acesso. controle à fila de referência e contrarreferência, harmonizando o sistema ao quanto
Da leitura do dispositivo legal, depreende-se que o sistema de informações determinado pela Constituição Federal, assim como aos demais diplomas legais que
apregoado como baliza necessária para o atuar do Poder Público deverá possuir as regulamentam a matéria.
seguintes características:
1. Amplo alcance, de forma a atingir o maior número possível de cidadãos
desejosos de informação;
2. Irrestrito, no sentido de que todas as informações não estritamente REFERÊNCIAS
compreendidas pelo sigilo devem ser não apenas acessíveis, mas utilizadas
pela Administração Pública como pauta na prestação do serviço, BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. São
3. Efetivo, comportando-se como verdadeiro sistema: conjunto de instrumentos, Paulo: Malheiros, 2000, p. 36.
prestação adequada, equipamentos, recursos humanos e tecnológicos, que BOTELHO, Ramon Fagundes. A judicialização do direito à saúde. Curitiba: Juruá, 2011.
garantam o exercício da cidadania mediante o direito à informação. BRASIL. Ministério da Saúde. Carta dos direitos dos usuários da saúde. 3. ed. Brasília:
Ministério da Saúde, 2011.
Exemplo exitoso de controle social por meio de softwares e sítios de internet
BRASIL. Portaria MS 1559/2008. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/
destinados ao levantamento de informações relacionados à saúde é o da lista de espera
saudelegis/gm/2008/prt1559_01_08_2008.html> Acesso em: 19 ago. 2015.
de transplante de órgãos, que retirou – quase que em sua integralidade – a possibilidade
de fraudes neste setor. Algumas vezes, ainda somos surpreendidos com notícias10 de
BRASIL. Ministério da Saúde. Diretrizes para implantação de complexos
atuações criminosas, que buscam o favorecimento pessoal, mas estas atuações ilegais
reguladores. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
são facilmente detectadas e punidas.
DiretrizesImplantComplexosReg2811.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2015.
O entrave das informações sigilosas deve ser suplantado pela necessidade
da informação, devendo, pois, o Estado buscar meios que garantam ao paciente o
conhecimento de suas possibilidades reais de tratamento junto ao SUS. A criação de 11
Celso Antônio Bandeira de Mello em lição irretocável diz: É de presumir que, não sendo a lei um ato meramente
um sistema de gerência, capaz de disponibilizar a informação necessária aos cidadãos/ aleatório, só pode pretender, tanto nos casos de vinculação, quanto nos casos de discrição, que a conduta
do administrador atenda excelentemente, à perfeição, a finalidade que o animou. Em outras palavras, a
pacientes é imposição normativa.
lei só quer aquele específico ato que venha a calhar à fiveleta para o atendimento do interesse público. O
comando da norma sempre propõe isto. Se o comando da norma sempre propõe isto e se uma norma é uma
imposição, o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar,
não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com
absoluta perfeição à finalidade da lei. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle
jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 36.
12
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública
qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às
instituições, e notadamente:
10
PF recebe novas denúncias contra médico acusado de frauda transplantes. G1 rio de Janeiro, 01 de ago. de I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
20108. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL708988-5606,00-PF+RECEBE+NOVAS+DE II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
NUNCIAS+CONTRA+MEDICO+ACUSADO+DE+FRAUDAR+TRANSPLANTES.html>. IV – negar publicidade aos atos oficiais;
REVISTA DO MPBA 328 329 REVISTA DO MPBA
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DIAS, Camila Faria. O sistema de referência e contrarreferência na estratégia RESERVA LEGAL EM ZONA URBANA
saúde da família no município de Bauru: perspectiva dos gestores. Disponível
Fábio Fernandes Corrêa*
em: <http://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/96410/dias_cf_me_botfm.
pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 02 nov. 2015.
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4.
ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 36 EMENTA
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para sua Importante espaço territorial ambientalmente protegido, a Reserva Legal foi inicialmente
eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. prevista para os imóveis rurais. No entanto, deve ser ela constituída nos imóveis que
possuem destinação rural, mesmo se localizados nas zonas urbanas. O dever de
LOPES, Mauricio Caldas. Judicialização da saúde. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
MEIRELLES, Hely Lopes. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, constituição da Reserva Legal aplicar-se-á também aos imóveis recém alcançados pelos
2001. perímetros urbanos, ainda que não tenham destinação rural, sob pena de desrespeito à
Lei nº 12.651/12.
SERRANO, Mônica de Almeida Magalhães. O Sistema Único de Saúde e suas diretrizes
constitucionais. São Paulo: Verbatim, 2009. PALAVRAS-CHAVE: Reserva Legal. Zona Urbana. Constituição. Proteção.

A Lei de Proteção da Vegetação Nativa, mais conhecida como Novo Código


Florestal, definiu em seu art.3º, III, Reserva Legal como a área localizada no interior de
um imóvel rural, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos
seus recursos naturais, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos
e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna
silvestre e da flora nativa.
Escrevendo sobre a Reserva Legal, Antônio Sérgio dos Anjos Mendes e Caroline
Costa Fontes da Silva corretamente pontuaram que:
é um dos institutos mais importantes do direito ambiental pátrio, o qual,
se respeitado, poderá garantir a conservação de importante percentual
do ambiente natural no meio rural e fazer cumprir a função social da
propriedade/posse, consoante estabelecido na Carta Magna de 19881.

O percentual da área de Reserva Legal varia conforme a localização da propriedade


ou posse rural mas, em regra, é de 20% (vinte por cento) da área total do imóvel rural
(art.12 da Lei nº 12.651/12). O Novo Código Florestal trouxe uma possibilidade de se ter
uma área de Reserva Legal abaixo do percentual de 20% (vinte por cento).
Conforme previsão do art.67, os imóveis rurais que detinham, em 22 de julho de
2008, área de até 4 (quatro) módulos fiscais e que possuam remanescente de vegetação
nativa em percentuais inferiores ao previsto no art.12, a Reserva Legal será constituída
com a área ocupada com a vegetação nativa existente em 22 de julho de 2008, vedadas
novas conversões para uso alternativo do solo.
A localização da área de Reserva Legal deverá levar em consideração os critérios
previstos no art.14 da Lei nº 12.651/12, em especial a formação de corredores ecológicos,
e será aprovada pelo órgão ambiental quando da inscrição do imóvel rural no Cadastro
Ambiental Rural - CAR.

*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia
1
BAHIA. Ministério Público. Reserva Legal. Série cadernos ambientais, Salvador, v. 1, p.09, 2007.
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RESERVA LEGAL EM ZONA URBANA RESERVA LEGAL EM ZONA URBANA

O art.18, §4 , do Novo Código Florestal dispõe que o registro da Reserva Legal


o
O respeitado doutrinador cita, ainda, que este é o entendimento do STF (RE 102816/
no CAR desobriga a sua averbação no Cartório de Registro de Imóveis. Salienta-se RJ, 1ª T., j. 19.06.1987) e do STJ (AgRg no REsp 679173/SC, 1ª T,. DJ 18.10.2007,
que a redação do art.83 da Lei nº 12.651/12, conferida pelo projeto de lei decorrente da p.267)2.
conversão da Medida Provisória nº 571 de 2012, foi vetado e não houve revogação do A própria Instrução Normativa nº 02/14, do Ministério do Meio Ambiente, trata da
dispositivo da Lei de Registros Públicos que possibilita a averbação da Reserva Legal obrigatoriedade da constituição da área de Reserva Legal, mediante a inscrição do imóvel
(Lei nº 6.015/73, art.167, II, item 22). A averbação é, portanto, apenas facultativa. rural no Cadastro Ambiental Rural, mesmo se localizado na zona urbana. Diz o seu artigo
Para efeitos do CAR, caso a Reserva Legal já tenha sido averbada na matrícula do 35 que quando o imóvel rural estiver localizado em zona urbana com destinação rural,
imóvel e na averbação tenha sido identificado o perímetro da área, deverá o detentor do a inscrição no CAR deverá ser feita regularmente pelo proprietário ou possuidor rural,
imóvel rural apresentar ao órgão ambiental competente a certidão de registro de imóveis considerando os índices de Reserva Legal previstos no art.12 da lei nº 12.651/12.
onde conste a averbação da Reserva Legal ou termo de compromisso já firmado nos Ainda que não tenha sido feita qualquer referência ao art.67, da Lei de Proteção
casos de posse. da Vegetação Nativa, é certo que permanece a benesse relativa à propriedade ou posse
Está bem claro na definição da Reserva Legal que se trata de um espaço rural que pode constituir sua Reserva Legal em área menor de 20% (vinte por cento).
ambientalmente protegido no interior de uma propriedade ou posse rural. Há, porém, a Para tanto, lembramos que o imóvel deveria ter, em 22 de julho de 2008, área de até
possibilidade de sua constituição em imóvel localizado na zona urbana como a seguir 4 módulos fiscais com remanescente de vegetação nativa em percentual inferior ao
veremos. previsto no art.12 da mesma lei.
A Instrução Normativa nº 02, de 05 de maio de 2014, do Ministério do Meio De igual forma, todas as demais regras existentes sobre a Reserva Legal previstas
Ambiente, visando estabelecer procedimentos relativos ao Cadastro Ambiental Rural, na Lei nº 12.651/12 podem ser aplicadas ao imóvel situado em zona urbana. Cita-se
conceituou imóvel rural, conforme disposto no art. 4º, I, da Lei nº 8.629/93, como o prédio a admissão do cômputo das Áreas de Preservação Permanente no cálculo do seu
rústico de área contínua, qualquer que seja sua localização, que se destine ou possa percentual (art.15), a instituição em regime de condomínio (art.16) e a compensação
destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial. (art.66, III).
É extraída da citada instrução normativa que a definição de imóvel rural está Em razão do crescimento das cidades e novas delimitações de seus perímetros
ligada não à sua localização em área urbana ou rural, mas sim à sua destinação ou urbanos levadas a efeito pelas legislações municipais, muitos imóveis rurais passaram a
possibilidade de destinação para a exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, integrar a zona urbana. Sobre tal circunstância, assim dispõe o art.19 da Lei de Proteção
florestal ou agroindustrial. da Vegetação Nativa:
Mesmo anterior à edição da INº 02/14, do MMA, Paulo de Bessa Antunes tratou A inserção do imóvel rural em perímetro urbano definido mediante lei
do assunto referindo-se à definição de imóvel rural do Estatuto da Terra (art.4º, I, da municipal não desobriga o proprietário ou posseiro da manutenção da
Lei nº 4.504/64). Tal conceito é muito parecido com o da Lei da Reforma Agrária (Lei nº área de Reserva Legal, que só será extinta concomitantemente ao
8.629/93) e que foi utilizada como parâmetro para a instrução normativa acima citada, registro do parcelamento do solo para fins urbanos aprovado segundo
quando emprega a expressão “qualquer que seja a sua localização”, sendo ainda a legislação específica e consoante as diretrizes do plano diretor de
plenamente válido o seu raciocínio. Diz o autor: que trata o §1º do art.182 da Constituição Federal.
Como se vê, o legislador se utilizou de uma concepção teleológica para Cumpre frisar que a “extinção” da Reserva Legal não significa, de modo algum,
a classificação do imóvel e não de uma classificação geográfica, como uma permissão para a supressão da vegetação que a compõe. Para tanto, deve ser
poderia parecer em princípio. Dessa definição deve ser extraída uma obtida uma autorização do órgão ambiental competente, que poderá estar vinculada a
consequência relevante: A mera localização de um imóvel em área
um licenciamento ambiental. Caso seja vegetação nativa de Mata Atlântica, o corte, a
rural não o transforma em rural automaticamente. A natureza jurídica
de imóvel rural exige que ele tenha como destinação a “exploração
supressão ou sua exploração podem ser realizados desde que respeitados os requisitos
extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial”. Permito-me afirmar da Lei nº 11.428/06.3
que esta é uma consequência inteiramente lógica e racional, pois o
terreno destinado à instalação de um hospital em área rural não se
transforma em rústico, haja vista que não é destinado à exploração
extrativa agrícola, mas à saúde pública. [...]. Analisando o conceito de
imóvel rural, o saudoso agrarista Rafael Augusto de Mendonça Lima
com a tradicional precisão pontificou: ‘O que importa é a possibilidade 2
ANTUNES, Paulo Bessa. In: MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme (Coord.). Novo Código Florestal.
de exploração agrícola (destinação), podendo encontrar-se o imóvel, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p.244-245.
3
quer no ambiente rural, quer dentro do perímetro urbano. Vide os seguintes dispositivos da Lei Complementar nº 140/11: “Art.13, §2º. A supressão de vegetação decorrente
de licenciamentos ambientais é autorizada pelo ente federativo licenciador”; “Art.11. A lei poderá estabelecer
regras próprias para atribuições relativas à autorização de manejo e supressão de vegetação, considerada
a sua caracterização como vegetação primária ou secundária em diferentes estágios de regeneração, assim
como a existência de espécies da flora ou da fauna ameaçadas de extinção.”  
REVISTA DO MPBA 332 333 REVISTA DO MPBA
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Ademais, os loteamentos e desmembramentos sujeitam-se às regras da Lei O citado art.19, da Lei nº 12.651/12, menciona a necessidade da manutenção da
nº 6.766/79. Esta Lei não permite o parcelamento do solo em áreas de preservação Reserva Legal do imóvel rural que passa a ser localizado no perímetro urbano. Tal termo,
ecológica (art.3º, parágrafo único, V), o que, de acordo com Alexandre Gaio, “abrange as porém, precisa ser bem interpretado para que não se incorra no equivocado entendimento
áreas de Reserva Florestal Legal”4. de que o parcelamento do solo para fins urbanos de um imóvel rural recém alcançado
Paulo Affonso Leme Machado também estende o conceito de áreas ambientais pelo perímetro urbano, e que não tinha Reserva Legal constituída, seja desobrigado da
impedidas de parcelamento do solo, nos seguintes termos: constituição desse importante espaço ambientalmente protegido.
As áreas de preservação ecológica podem abranger as áreas Pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa, a regra geral é que todo imóvel rural
chamadas de interesse especial (art.13, I) tais como ‘de proteção – inclusive o que passou a integrar a zona urbana - deve manter área com cobertura de
aos mananciais ou ao patrimônio cultural, histórico, paisagístico e vegetação nativa, a título de Reserva Legal (art.12). São poucas as exceções tanto para
arqueológico, definidas por legislação estadual ou federal’. Entretanto a sua constituição (art.12, §§6º, 7º e 8º) quanto ao percentual legal de 20% (vinte por
as áreas de preservação ecológica não se reduzem às mencionadas. cento) do imóvel (art.12, §§4º e 5º, art.13, I, e art.67).
As florestas de preservação permanente, os parques nacionais,
Tais exceções devem ser interpretadas como numerus clausus, de forma que
estaduais e municipais, as reservas biológicas, as reservas de caça, as
estações ecológicas e as áreas de proteção ambiental cujos objetivos
nenhum outro ato normativo, que regulamente a Lei nº 12.651/12 ou trate do assunto,
transcendem os do art.13, I, da Lei 6.766/1979 estão, também, pode prever outras exceções à constituição ou ao percentual da área de Reserva Legal.
abrangidas pela expressão ‘áreas de preservação ecológica.5 A obrigação da constituição da Reserva Legal não pode esvair-se pela mudança da
situação do imóvel rural, que passou a integrar o perímetro urbano e logo teve registrado
Por outro lado vale lembrar que o Novo Código Florestal prevê como um o parcelamento do seu solo para fins urbanos. A “manutenção”, referida pelo art.19 do
instrumento do poder público municipal, para o estabelecimento de áreas verdes urbanas, Novo Código Florestal, deve ser entendida como a do espaço ambientalmente protegido,
a transformação das Reservas Legais em áreas verdes nas expansões urbanas (art.25, tenha ele sido regularmente delimitado ou não, tenha ele vegetação nativa ou não.
II). Assim, não pode o proprietário ou possuidor de um imóvel rural, que atualmente
A Lei de Proteção da Vegetação Nativa considera áreas verdes urbanas os está localizado na zona urbana, ser beneficiado pela sua omissão quanto a não
espaços, públicos ou privados, com predomínio de vegetação, preferencialmente nativa, constituição da Reserva Legal. Entender de outra forma é afrontar o princípio de que
natural ou recuperada, previstos no Plano Diretor, nas Leis de Zoneamento Urbano e ninguém pode se valer da própria torpeza, caracterizado pela deliberada inobservância
Uso do Solo do Município, indisponíveis para construção de moradias, destinados da regra insculpida no art.12 da lei nº 12.651/12.
aos propósitos de recreação, lazer, melhoria da qualidade ambiental urbana, proteção Outrossim, a Reserva Legal, inicialmente prevista para áreas rurais, ganha
dos recursos hídricos, manutenção ou melhoria paisagística, proteção de bens e especial importância quando passa a fazer parte das expansões urbanas e a proteção
manifestações culturais (art.3º, XX). da vegetação que a constitui se coaduna com preceitos constitucionais, a exemplo do
Sobre as áreas verdes urbanas José Afonso da Silva lecionou que: art.225, §1º, III.
A Política dos Espaços Verdes revela-se, pois, na proteção da Natureza, Para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente
a serviço da urbanização, conexa com a proteção florestal ou parte equilibrado, incumbe ao Poder Público definir em todas as unidades da Federação,
dela, com o objetivo de ordenar a coroa florestal em torno das grandes
espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a
aglomerações, manter os espaços verdes existentes no centro das
cidades, criar áreas verdes abertas ao público, preservar áreas verdes
alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização
entre habitações – tudo visando a contribuir para o equilíbrio do meio que comprometa a integridade dos atributos que justificam sua proteção.
em que mais intensamente vive e trabalha o Homem.6 A Reserva Legal, independente de sua localização, constitui um espaço territorial
que é protegido pelo citado dispositivo da Lei Maior. Nesse sentido encontramos a lição
Assim, mesmo diante da impossibilidade da construção de moradias em áreas de Paulo Affonso Leme Machado, para quem “A Constituição inova profundamente na
verdes cabe ressaltar que, tenha sido a Reserva Legal transformada ou não em áreas proteção dos espaços territoriais, como, por exemplo, unidades de conservação, Áreas
verdes, por suas naturezas jurídicas e suas equiparações à área de preservação de Preservação Permanente – APPS e Reservas Legais Florestais.”7 José Afonso da
ecológica, a Lei nº 6.766/79 não permite os seus parcelamentos para fins urbanos, Silva8 e Édis Milaré9 também asseveram que a Reserva Legal é um espaço territorial
resguardando assim a preservação da flora nos espaços urbanos. especialmente protegido - ETEP, sendo inclusive classificado pelo último como um ETEP
em sentido amplo, juntamente com a área de preservação permanente e de uso restrito.

4 7
GAIO, Alexandre. Lei da Mata Atlântica Comentada. São Paulo: Almedina, 2014. p.48. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2013. p.170.
5 8
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 473. SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2011. p.189.
6 9
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2011. p.199. MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p.1252.
REVISTA DO MPBA 334 335 REVISTA DO MPBA
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Como a Reserva Legal pode existir no espaço urbano, também devemos nos ater Temos, ainda, uma interessante questão a ser resolvida. No Bioma Mata Atlântica
à política de desenvolvimento urbano para a sua proteção. De acordo com o art.182 da há a possibilidade de supressão de vegetação nativa para fins de loteamento ou
CF, referida politica será executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes edificação, respeitando-se determinados percentuais de preservação de remanescentes.
gerais fixadas em lei, tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções Como explicado por este subscritor no material desenvolvido em comemoração aos 10
sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. anos do Núcleo de Defesa da Mata Atlântica do MP/BA:
Sobre a vinculação da política de desenvolvimento urbano com o meio ambiente, Nos perímetros urbanos aprovados até o início da vigência da Lei nº
muito bem pontuou Marcelo Abelha Rodrigues ao comentar o art.182 da CF: 11.428/2006 (26/12/2006), para a supressão de vegetação secundária
em estágio avançado de regeneração para loteamento ou edificação,
O fato, todavia, é que, ainda que não esteja ali expresso, absolutamente
deverá ser preservado um mínimo de 50% da vegetação nativa
nenhuma política urbana pode deixar de lado as preocupações com as
da área coberta por aquela vegetação. Nos perímetros urbanos
questões ambientais, não apenas porque as cidades se desenvolvem
aprovados após a Lei nº 11.428/2006 é vedada a supressão de
sobre o solo (recurso natural), mas acima de tudo porque tantos outros
vegetação secundária em estágio avançado de regeneração para
bens ambientais – água, ar, solo, etc. – são diretamente afetados pelas
fins de loteamento ou edificação. O parcelamento do solo urbano em
transformações urbanas causadas pelo ser humano.10
área de vegetação secundária em estágio médio de regeneração,
Nesse mesmo sentido escreve José Afonso da Silva: nos perímetros urbanos aprovados até o início da vigência da Lei nº
[...] a Política Urbana tem por objetivo construir e ordenar um meio 11.428/2006, deve preservar no mínimo 30% da área total coberta
ambiente urbano equilibrado e saudável. É que a qualidade do por tal vegetação. Se o perímetro tiver sido delimitado após a Lei de
meio ambiente urbano constitui, mesmo, um ponto de convergência Proteção da Mata Atlântica, a preservação será de 50% da vegetação.13
da qualidade do meio ambiente natural (água, ar e outros recursos
naturais) e da qualidade do meio ambiente artificial (histórico-cultural).11 Não podemos esquecer que em qualquer caso de supressão de vegetação nativa
de Mata Atlântica para fins de loteamento ou edificação, o empreendedor deve destinar
Não há dúvidas de que as chamadas “árvores urbanas”, oriundas da Reserva Legal,
área equivalente à extensão da área desmatada, para conservação, com as mesmas
trazem benefícios estéticos e funcionais, garantindo o bem-estar dos moradores das
características ecológicas, sempre que possível na mesma microbacia hidrográfica em
cidades. Podem ser citados as seguintes funções ambientais por elas desempenhadas:
áreas localizadas no mesmo Município ou região metropolitana (art.26, do Decreto nº
1.Elevar a permeabilidade do solo e controlar a temperatura e a umidade do ar; 2.
6.660/2008).
Interceptar a água da chuva; 3. Proporcionar sombra; 4. Funcionar como corredor
A possibilidade de supressão de vegetação nativa de Mata Atlântica para fins
ecológico; 5. Agir como barreira contra ventos, ruídos e alta luminosidade; 6. Diminuir a
de loteamento ou edificação deve harmonizar-se com a proibição do parcelamento do
poluição do ar; 7. Sequestrar e armazenar carbono; 8. Bem estar psicológico.12
solo da Reserva Legal ou das decorrentes áreas verdes, seja porque as últimas são
Na legislação infraconstitucional temos ainda diversas referências que se aplicam
indisponíveis para construção de moradias (art.3º, XX, da Lei nº 12.651/12) ou pelo fato
à importância da existência da Reserva Legal, e sua eventual transformação em área
de que ambas são consideradas áreas de preservação ecológica (art.3º, parágrafo único,
verde, nas zonas urbanas. O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) estabeleceu normas
V, da Lei nº 6.766/79).
de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol
Na supressão de vegetação nativa de Mata Atlântica para fins de loteamento ou
do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio
edificação deverá ser preservado, como visto, 30% (trinta por cento) ou 50% (cinquenta
ambiental.
por cento) da “área total coberta por esta vegetação”. Como a Reserva Legal pode atingir
De acordo com o aludido Estatuto, a politica urbana atuará, entre outras diretrizes,
20% da “área do imóvel”, será preservado na propriedade ou posse o percentual que for
com a ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a poluição e a degradação
maior, lembrando que o art.35 da Lei nº 11.428/06 permite que a vegetação do Bioma em
ambiental e a propiciar a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural
questão pode ser computada para efeito de Reserva Legal.
(art.2º, VI, g, e XII).
Em conclusão, restou evidente a obrigação de constituir Reserva Legal em imóveis
A Lei nº 10.257/01 ainda trata de questões ambientais, que guardam relação com
situados na zona urbana e que tenham destinação rural. Da mesma forma, naqueles
a Reserva Legal, ao dispor sobre o direito de preempção sempre que o Poder Público
imóveis que se encontram sem destinação rural e que foram abrangidos pelo perímetro
necessitar de áreas verdes ou de interesse ambiental (art.26, VI e VII). Ademais, é
possível a alienação do direito de construir quando o imóvel for necessário à preservação urbano, mesmo que não tenham Reserva Legal, a sua constituição é medida que se
ambiental (art.35, II) e no estudo prévio de impacto de vizinhança devem ser incluídas impõe, não apenas em respeito à Lei nº 12.651/12, mas também visando preservar um
análises da paisagem urbana e patrimônio natural e cultural (art.37, VII). espaço territorial especialmente protegido e o bem-estar da população, em atendimento
à política de desenvolvimento urbano.

10
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2013. p.167.
11
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 226-227. 13
CORRÊA, Fábio Fernandes. Mata Atlântica: principais regras da Lei nº 11.428/2006 Salvador: Ministério
12
SÃO PAULO (Prefeitura). Manual Técnico de Arborização Urbana. São Paulo: 2015. p.12-17. Público do Estado da Bahia. Núcleo de Defesa da Mata Atlântica, 2015. p.19-20.
REVISTA DO MPBA 336 337 REVISTA DO MPBA
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REFERÊNCIAS O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO DESEMPENHO DA JURISDIÇÃO


CONSTITUCIONAL E O ATIVISMO JUDICIAL
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Marco Aurélio Nascimento Amado*
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CORRÊA, Fábio Fernandes. Mata Atlântica: principais regras da Lei nº 11.428/2006 Diante das teorias que questionam a legitimidade democrática do controle judicial
Salvador: Ministério Público do Estado da Bahia. Núcleo de Defesa da Mata Atlântica, de constitucionalidade das leis e a necessidade de se concretizar o anseio do Poder
2015. Constituinte, qual o papel do Supremo Tribunal Federal na análise das omissões
inconstitucionais, especialmente no que diz respeito aos limites deste ativismo judicial?
GAIO, Alexandre. Lei da Mata Atlântica Comentada. São Paulo: Almedina, 2014. Em que pese a existência de críticas acerca da atuação do Poder Judiciário no controle
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, da atuação legislativa e administrativa, especialmente sob o prisma da omissão (inércia),
2013. é forçoso reconhecer que a jurisdição constitucional, sob os mais variados matizes
de atuação nas diversas democracias constitucionais, tem avançado no sentido de
MENDES, Antônio Sérgio dos; SILVA, Caroline Costa Fontes da. Reserva Legal. Série se imprimir comportamento incisivo no controle da atuação dos Poderes Executivo e
Cadernos Ambientais, Salvador, v. 1, 2007. Legislativo.
MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
PALAVRAS-CHAVE: Supremo Tribunal Federal. Jurisdição constitucional. Ativismo
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental Esquematizado. São Paulo: Saraiva, judicial.
2013.
SÃO PAULO (Prefeitura). Manual Técnico de Arborização Urbana. São Paulo: 2015.
1 INTRODUÇÃO
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2011.
No Brasil, a atuação da Corte Constitucional, principalmente nos últimos anos, pelos mais
diversificados motivos (necessidade de implementação de políticas públicas, verificação
de injustificável mora do legislador infraconstitucional, etc.), tomou contornos nunca
verificados anteriormente, a implicar em nítida tensão institucional. Cada vez mais, o
Supremo Tribunal Federal brasileiro passa a atuar em espaço classicamente reconhecido
como monopólio do Executivo e, especialmente, do Parlamento, responsabilizando-se
pela resolução de questões controvertidas com decisiva influência no destino de toda a
sociedade brasileira.
O presente estudo justifica-se pela importância da atuação do Supremo Tribunal
Federal nas mais variadas situações em que a omissão inconstitucional é capaz de trazer
sérios prejuízos de ordem política, econômica e social a toda a comunidade nacional,
notadamente naquilo em que o Poder Constituinte elegeu como pilar da sociedade
brasileira: a efetivação dos direitos e garantias fundamentais.

*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Ex-Defensor Público do Estado do Ceará. Ex-
Advogado. Autor de artigos publicados no sítio virtual “Conteúdo Jurídico” (www.conteudojuridico.com.br).
Correio eletrônico: marco.amado@mp.ba.gov.br
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Trata-se de tema ainda atual, a despeito da repercussão que já ostenta na área A amplificação da jurisdição constitucional deu-se especialmente pelo incremento
jurídica e social. Os debates científicos, na maior parte das vezes acalorados, não de densidade dos direitos fundamentais, em movimento que se irradia de forma global,
conseguiram convergir sobre as balizas e tolerabilidade do ativismo. Basta atentar para conforme bem explicita Walber de Moura Agra (2005, p. 95):
o fato de ser possível identificar, sem muito esforço, a existência de teorias que infirmam O fator que mais força exerce para o alargamento da atuação da
a legitimidade democrática desta espécie de controle judicial. jurisdição constitucional é o fortalecimento dos direitos fundamentais,
que ocorre de forma global, principalmente nas democracias ocidentais.
Quanto maior for o recrudescimento dos direitos fundamentais, maior
2 A NOVA CONFIGURAÇÃO DO MODELO CONSTITUCIONAL E A AMPLIFICAÇÃO deverá ser a atuação da tutela da Carta Magna para garantir sua
DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL concretização. Ao mesmo tempo em que essa é uma de suas funções,
é uma forma de legitimar a expansão de sua atuação, além de garantir
um direcionamento para as decisões proferidas.
O movimento histórico de transvaloração (importando-se, aqui, terminologia
nietzschiana1) da jurisdição constitucional foi estabelecido no Pós – II Guerra, período em Nesse novo paradigma, vislumbra-se o desenvolvimento da missão da jurisdição
que se vivenciou a ascensão das constituições democráticas nos ordenamentos jurídicos constitucional para além da sua função apenas defensiva do ordenamento jurídico
modernos e uma verdadeira transição entre o que se tinha como Estado de Direito para o (eliminação das leis inconstitucionais). O papel a ser desempenhado torna-se muito mais
Estado Constitucional Democrático de Direito2 (ruptura dos sistemas totalitários). árduo, penoso e profundo, haja vista a necessidade de se atuar de forma ativa e criativa,
A nova configuração constitucional, que demarcou novos projetos políticos, sociais interpretando, conformando e suprindo (interpretação construtiva) as lacunas deixadas
e econômicos, a orientar programas de flagrante conteúdo ético, também precisou ser pelo gestor e legislador inertes, sobretudo nas ocasiões em que o constituinte clama por
remodelada para fazer frente às aspirações e promessas da sociedade da época. Disto, um facere (atuar legislativo ou administrativo).
desaguou verdadeira revolução do que se concebia como jurisdição constitucional, Essa nova estatura conferida às cortes constitucionais busca desencadear
delineada para superar a difícil missão de resguardar a normatividade superior da lei incessante debate acerca dos valores que a Constituição protege e a forma mais adequada
fundamental. de resguardá-los. Somente assim afigura-se possível realizar verdadeira concretização
Esse novo modelo de Constituição reclama imperatividade e observância de todo do comando constitucional, mediante diálogo permanente entre o positivado e os
o ordenamento jurídico, vinculando e limitando todos os Poderes do Estado. Agiganta-se reclamos da realidade social, política e econômica da comunidade.
o papel das cortes constitucionais, na exata medida em que, como guardiães da (última) É justamente a interação entre Constituição e realidade, promovida pela jurisdição
interpretação constitucional, lhes cabe a análise e controle de todo e qualquer ato estatal constitucional, que permitirá o alcance da desejada eficácia da norma fundamental e,
que atente contra o conteúdo formal e substancial da norma máxima, seja pela via da em especial, a cristalização de sua força normativa, nos moldes proclamados por Hesse
ação ou omissão. (1991, p. 14-23):
Retirar ou fragilizar a concepção instrumental da jurisdição constitucional redundará A norma constitucional não tem existência autônoma em face da
em inevitável e nítido retrocesso pela subversão de valores (a norma constitucional realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação
estaria submetida a uma estranha força normativa infraconstitucional), na submissão por ela regulada pretende ser concretizada na realidade (pretensão de
eficácia). (p. 14)
dos direitos e garantias fundamentais a interesses menos nobres e, finalmente, no
[...] A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um
esvaziamento da própria vontade do detentor do poder estatal: o povo. ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples
reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças
sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição
procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social.
(p. 15)
[...] A Constituição adquire força normativa na medida em que logra
realizar essa pretensão de eficácia. (p. 16)
[...] A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição
fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de
sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo
ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente. (p. 23)

Sendo assim, percebe-se a clara e ímpar importância do papel desempenhado


1
A expressão cunhada pelo “filósofo dinamite” (Umwertung aller Werte), em tradução para a língua portuguesa, pelas cortes constitucionais, na condição de intérpretes da norma constitucional, qual
tem o significado aproximado de “transmutação ou transvaloração de todos os valores”. Portanto, há a
“renovação” das “valorações dominantes e vigentes”.
seja a autorização jurídica que possuem para estampar a vontade última do constituinte,
2
A expressão, utilizada pelo Professor Dirley da Cunha (2011, p. 267), bem explicita a reverência que o
seja eliminando dispositivos que afrontem o comando máximo, seja atuando diante do
ordenamento jurídico deve manter diante da Carta Magna. vazio deixado pela inércia dos demais poderes constituídos.
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Seguindo esta nova concepção de jurisdição constitucional, inaugurada, no Insere-se, aqui, um dos limites para a atuação do Poder Judiciário, pinçado pela
Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal tem political question doctrine, ou seja, inviabiliza-se a sindicabilidade judicial nas questões
experimentado inegável expansão de seu papel no fenômeno que, segundo Luís Roberto políticas. Todavia, pode-se verificar que as hipóteses que permitem definir uma questão
Barroso (2007, p. 35), vincula-se ao evento da judicialização da vida (judicialização das como política são alargadas ou restringidas, conforme o momento histórico-político
questões políticas e sociais). vivido pela Suprema Corte. Quando o Judiciário adota uma postura de autocontenção,
as hipóteses de questões políticas são alargadas; quando adota uma postura de ativismo
3 O ATIVISMO JUDICIAL DENTRO DO PRISMA IDEOLÓGICO DA CONSTITUIÇÃO judicial, diminuem os casos em que o pronunciamento judicial é negado, em respeito à
DIRIGENTE: HIPERTROFIA DO PODER JUDICIÁRIO, NO CONTROLE DA OMISSÃO competência privativa dos demais poderes (JORGE NETO, 2008, p. 90-91).
INCONSTITUCIONAL, OU ATROFIA DOS PODERES EXECUTIVO E LEGISLATIVO? O manancial de instrumentos colocados à disposição dos legitimados para
o controle da omissão inconstitucional centraliza-se, basicamente, na ação direta
O ativismo, sem qualquer dúvida, guarda íntima relação com os reclamos da de inconstitucionalidade por omissão, no mandado de injunção e na argüição de
Constituição Dirigente, que impôs o deslocamento provisório do centro de decisão dos descumprimento de preceito fundamental.
órgãos de direção política (Legislativo e Executivo) para o Judiciário, a fim de que este Assumindo-se, aqui, posição dogmática mais vanguardista, segundo a qual deve e
Poder possa suprir, como legislador positivo, inclusive, a indigna inércia dos outros pode o Judiciário emprestar ao direito fundamental, inclusive os sociais, desfrute imediato
poderes constituídos. (afastamento da tese da reserva do possível), o Supremo Tribunal Federal tem avançado
Isto porque, conforme sintetiza Dirley da Cunha (2008, p. 655): da mera ciência ao ente omisso, acerca da mora em adotar providência legislativa ou
A Constituição Dirigente se volta à garantia do existente aliada à administrativa, para a implementação do direito reclamado no caso concreto4. Esta
instituição de um programa ou linha de direção para o futuro, sendo mudança de postura, todavia, tem reacendido os debates acerca da legitimidade deste
estas, portanto, as suas duas funções. [...]. Ela deve ser considerada, tipo de atuação, além de provocar uma revisão acerca da teoria da separação dos
portanto, como uma ordem fundamental material, que pressupõe uma poderes.
dimensão constitucional-constituinte, mista de ordem e programa de
ação. É a função programática da Constituição Dirigente. 4 O ATIVISMO JUDICIAL E A EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM FACE
O enfraquecimento dos Poderes Legislativo e Executivo abre espaço para uma DAS OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS DO ESTADO
maior atuação do órgão jurisdicional. Exemplo recente desta constatação ocorreu
no Brasil: a mora do Poder Legislativo, no aprofundamento da discussão acerca do Os direitos fundamentais sociais (prestacionais), via de regra, exigem a
reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, permitiu implementação de políticas públicas. Estas, por sua vez, cabem prioritariamente aos
que se levasse tal questão para o Altíssimo Pretório. Poderes Legislativo e Executivo (o primeiro decidirá acerca da destinação e aplicação
Apesar do judicial activism não ser bem aceito por parcela considerável da dos recursos orçamentários, ao passo em que ao segundo incumbirá a tarefa de executar
comunidade política e acadêmica (BICKEL, 1968; ELY, 1980, dentre outros), sendo os projetos sociais necessários à sociedade).
muitos os que acusam o Supremo Tribunal Federal de excesso em sua atuação, uma Vê-se, pois, que a concretização das políticas públicas significa, em análise
conclusão é inegável: se a intenção é conferir real densidade normativa aos preceitos derradeira, na tomada de opções políticas, cuja legitimidade cabe precipuamente ao
constitucionais (mesmo os programáticos), somente uma postura corajosa do Poder Executivo/Legislativo em virtude da legitimação democrática que os parlamentares e
Judiciário pode evitar que o mandamento nuclear torne-se, no dizer do Ministro Celso de gestores públicos detêm através do voto popular.
Mello, uma promessa constitucional inconseqüente3.
Verificar o efetivo respeito à Constituição reclama cautela redobrada, pois a
omissão inconstitucional revela maior dificuldade de ser observada e enfrentada. Não é
toda e qualquer omissão do poder público que conduz à inconstitucionalidade. Omissão
inconstitucional é somente aquela que consiste em uma abstenção indevida, ou seja, em
não fazer aquilo que se estava constitucionalmente obrigado a fazer, por imposição de 4
Foi o que ocorreu, por exemplo, nos julgamentos dos Mandados de Injunção 670/ES, 708/DF e 712/PA, nos
dispositivo constitucional certo e determinado, como bem destaca o Professor Dirley da quais se reconheceu o exercício do direito de greve aos agentes públicos, aplicando-se, no que couber, a
Lei 7.783/1989. Já nas demandas relativas à contagem diferenciada do tempo de serviço, em decorrência
Cunha (2008, p.123). de atividade em trabalho insalubre prevista no § 4º do art. 40 da CF, adotando como parâmetro o sistema do
regime geral de previdência social (Lei 8.213/1991, art. 57), que dispõe sobre a aposentadoria especial na
iniciativa privada, o Altíssimo Pretório, ante a prolongada mora legislativa, viabilizou a fruição desse direito,
conforme se depreende dos seguintes julgados: MI 721/DF, MI 758/DF, MI 788/DF, MI 795/DF, MI 796/DF, MI
797/DF, MI 808/DF, MI 809/DF, MI 815/DF, MI 825/DF, MI 828/DF, MI 841/DF, MI 850/DF, MI 857/DF, MI 879/
DF, MI 905/DF, MI 927/DF, MI 938/DF, MI 962/DF, MI 998/DF, MI 835/DF, MI 885/DF, MI 923/DF, MI 957/DF, MI
3 975/DF, MI 991/DF, MI 1.083/DF, MI 1.128/DF, MI 1.152/DF; MI 1.182/DF; MI 1.270/DF; MI 1.440/DF; MI 1.660/
RE 271.286-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-9-2000, Segunda Turma, DJ de 24-11-2000.
DF; MI 1.681/DF; MI 1.682/DF; MI 1.700/DF; MI 1.747/DF; MI 1.797/DF; MI 1.800/DF; MI 1.835/DF.
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Todavia, tal legitimidade democrática precípua, que cabe aos representantes Sob este prisma (garantia de direitos sociais fundamentais), verifica-se que o
máximos dos Poderes Executivo e Legislativo, não afasta a possibilidade de atuação do ativismo judicial pode ser a última trincheira de socorro do cidadão. Tal situação faz
Poder Judiciário, especialmente nos casos em que se pretende salvaguardar os direitos aumentar exponencialmente a responsabilidade do magistrado perante a sociedade.
sociais básicos (garantia do mínimo existencial e estrita observância ao encarecido A parcimônia e o necessário equilíbrio do sistema de freios e contrapesos devem ser
princípio da dignidade da pessoa humana). observados com extrema cautela.
Cláudio Pereira de Souza Neto (2003, p.45) realiza interessante análise acerca
do tema: 5 O ATIVISMO JUDICIAL E A BUSCA DO NECESSÁRIO EQUILÍBRIO
[...] se o Poder Judiciário tem legitimidade para invalidar normas
produzidas pelo Poder Legislativo, mais facilmente pode se afirmar que Conforme visto acima, há autores que criticam acidamente a atividade jurisdicional
é igualmente legítimo para agir diante da inércia dos demais poderes, criativa desempenhada pelo Poder Judiciário, notadamente pela Corte Constitucional,
quando essa inércia implicar um óbice ao funcionamento regular sob o argumento principal de que tal órgão carece de legitimidade democrática (os juízes
da vida democrática. Vale dizer: a concretização judicial de direitos
não representam o povo) para preencher os espaços normativos deixados pela inércia
sociais fundamentais, independentemente de mediação legislativa, é
um minus em relação ao controle de constitucionalidade. do Poder Legislativo, ou, ainda, pela inação do Poder Executivo nas questões materiais
e administrativas.
Portanto, nos casos de omissão inconstitucional estatal, com o escopo de Os críticos do ativismo entendem, portanto, que a irradiação do Poder Judiciário
se garantir o mínimo necessário à existência digna (realização dos direitos sociais em atuação que não lhe cabe precipuamente, sobretudo nas famigeradas discussões
fundamentais), cabe ao Poder Judiciário – excepcionalmente – intervir no sentido de interna corporis, acabaria por criar uma ditadura de juízes (paternalismo judicial)6.
garantir a aplicabilidade do direito demandado, ainda que tal intromissão implique em A delicadeza do tema já foi enfrentada pela Corte Especial do STJ, no julgamento
interferência no processo de implementação de políticas públicas (exemplo: internações do Agravo Regimental na Suspensão de Liminar número 1427 (estado do Ceará), quando
em hospitais particulares nas situações emergenciais, nos casos em que inexistir vaga se procurou fincar os contornos da atuação do Poder Judiciário nas demandas em que
em nosocômio público; o fornecimento de medicamentos de comprovada eficácia que se discute a ingerência judicial na atividade administrativa do Poder Público (puro mérito
não sejam disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde; etc.). administrativo):
No julgamento da ADPF nº 455, o Ministro Celso de Mello realçou a possibilidade Ementa: PEDIDO DE SUSPENSÃO DE MEDIDA LIMINAR.
de o Poder Judiciário se imiscuir na juridicidade de questões que envolvam políticas INTERFERÊNCIA DO JUDICIÁRIO NAATIVIDADE ADMINISTRATIVA.
públicas, a fim de assegurar o mínimo existencial humano: FLAGRANTE ILEGITIMIDADE E LESÃO À ORDEM PÚBLICA. Ao
Judiciário cabe o controle da legalidade dos atos da Administração.
Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas
O ativismo judicial pode legitimar-se para integrar a legislação onde
dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação
não exista norma escrita, recorrendo-se, então, à analogia, aos
popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre
costumes e aos princípios gerais de direito (CPC, art. 126). Mas a
reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade
atividade administrativa, propriamente tal, não pode ser pautada pelo
de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo.
Judiciário. [...].
É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou
(AgRg na SLS 1427 / CE. AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO
procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a,
DE LIMINAR E DE SENTENÇA. 2011/0185577-1 Relator(a) Ministro
a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando,
ARI PARGENDLER (1104) Órgão Julgador CE - CORTE ESPECIAL
como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de
Data do Julgamento 05/12/2011 Data da Publicação/Fonte DJe
um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível
29/02/2012. RSTJ vol. 226 p.36).
consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas
necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência
do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já
enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo
ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em
ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja 6
No particular, calha rememorar a recente liminar concedida pelo ministro Luiz Fux no Mandado de Segurança
sido injustamente recusada pelo Estado.
(MS) 31816, no qual se questionava a apreciação, pelo Congresso Nacional, do veto parcial da presidenta
Dilma Rousseff ao Projeto de Lei 2.565/2011 (convertido na Lei 12.734/2012), que trata da partilha de royalties
relativos à exploração de petróleo e gás natural. Embora a decisão monocrática não tenha sido confirmada
pelo plenário do STF, o ministro Luiz Fux manteve a posição firmada na liminar, pela qual o veto parcial
ao Projeto de Lei 2.565/2011 só poderia ser apreciado após todos os vetos pendentes de apreciação no
Congresso Nacional fossem analisados, em ordem cronológica. No mesmo sentido, em recente episódio de
5
“tensão institucional”, o ministro Gilmar Mendes, no MS 32.033, deferiu liminar que suspende a tramitação, no
STF – ADPF nº 45 MC/DF, Relator: Ministro Celso de Mello, Diário da Justiça da União, 04 maio 2004. Congresso, do PL 4470/12, que estabelece restrições à criação de novos partidos.
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Em sentido contrário, existe a corrente doutrinária que reverencia a amplificação do Em busca da supremacia e efetividade do texto constitucional, devem-se deixar
ativismo judicial, a depender do momento histórico vivenciado, a exemplo dos momentos de lado questões político-partidárias. A perniciosa omissão dos órgãos estatais (omissão
em que a sociedade perpassa por verdadeira crise de representatividade parlamentar inconstitucional) reclama jurisdição constitucional ativa, pois, somente assim, evitar-se-á
ou, ainda, quando se observa a anêmica atuação dos Poderes Legislativo e Executivo. o processo de esvaziamento material das normas constitucionais, especialmente as que
Este último entendimento busca inspiração nas lições do jurista alemão Peter destacam os direitos e garantias fundamentais.
Häberle. Segundo este constitucionalista, o círculo dos intérpretes deve ser alargado Por outro lado, não se pode aceitar que, em nome de uma maioria parlamentar
para abranger além das autoridades públicas e as partes formais do controle de ou incorreta interpretação sobre o princípio da separação dos poderes, os direitos
constitucionalidade, os cidadãos e grupos sociais que, de um modo ou de outro vivenciam fundamentais sejam suprimidos, maculando a norma que mais se deve buscar reverência
a realidade constitucional. Logo, para o jurista alemão (1997, p.13), não pode existir um dentro do Estado Democrático e Constitucional de Direito: a Carta da República.
numerus clausulus de intérpretes da Constituição. Deve, sim, o juiz constitucional fazer valer os direitos fundamentais existentes
Assim, a interpretação constitucional deverá estar voltada para a dinâmica da vida na constituição (cláusulas petrificadas), a partir da legítima provocação (princípio da
social, passando a Constituição por um contínuo e perene processo de interpretação, inércia), por intermédio dos instrumentos jurídicos pertinentes (mandado de injunção,
que deve ser realizada por todos aqueles que vivenciam a realidade da Lei Maior. A ação popular, ação civil pública, ações diretas, etc.), realizada pelos legitimados para
concretização do mandamento constitucional, seguindo este raciocínio, pode ser tanto (em um espectro mais amplo possível, a fim de dar concretude ao que Häberle
realizada pelo Poder Judiciário, ainda que, para atingir tal desiderato, deva-se suprir a denominou de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição).
omissão de outro Poder constituído.
Vê-se, pois, que a alegada tensão institucional deve ser resolvida com a busca
do necessário equilíbrio entre os Poderes constituídos, já que o Princípio da Separação
dos Poderes não pode ser visualizado de forma estática. Todavia, acaso haja o REFERÊNCIAS
descumprimento do texto maior (especialmente nas situações de inércia governamental),
a busca pela vontade de se concretizar substancialmente o mandado constitucional AGRA, Walber de Moura. A Reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal:
autoriza (e obriga!) uma atuação ativa e criativa da Corte Constitucional (guardiã última Densificação da Jurisdição Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
da Carta Magna), incorporando realmente o sistema do checks and balances.
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Este parecer ser o posicionamento do Ministro Celso de Mello7:
[...] Práticas de ativismo judicial, Senhor Presidente, embora BARROSO, Luís Roberto. A Reconstrução democrática do direito público no Brasil. In:
moderadamente desempenhadas por esta corte em momentos BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Reconstrução Democrática do Direito Público no
excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente,
o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa ______. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da
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presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos
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estatais ofensivos à Constituição, não se pode reduzir a uma posição
de pura passividade.
Politics. 2. ed. New Haven: Yale University Press, 1986.
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A lição ofertada pelo Ministro traduz a umbilical relação que se deve fincar entre o
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análise do intérprete não pode descurar de nenhum dos dois elementos.
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Como se vê, trata-se de temática que atrai grandes controvérsias no seio
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doutrinário e jurisprudencial. Não há, contudo, qualquer surpresa nisto, uma vez que, em
última senda, encontra-se em jogo o sistema de equilíbrio entre os poderes constituídos, DIAS, Jean Carlos. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Método, 2007.
em que não se permite a intromissão indevida, tampouco a sujeição de uma esfera pela v.4.
outra.
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7
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coletividade. Em que pese a Constituição ter comemorado seu 26o aniversário, no âmbito
MORO, Sergio Fernando. Desenvolvimento e efetivação judicial das normas privado a constitucionalização das relações jurídicas ainda enfrenta muitas resistências.
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PALAVRAS-CHAVE: Urbanístico. Vedação ao retrocesso e eficácia horizontal.
PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade: conceitos, sistemas e efeitos. 2.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. “Ainda vão me matar numa rua.
Quando descobrirem, principalmente,
PIOVESAN, Flávia C. Proteção Judicial contra omissões legislativas: ação direta de Que faço parte dessa gente
inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. São Paulo: Revista dos Que pensa que a rua
Tribunais, 1995. é a parte principal da cidade”1.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 1 INTRODUÇÃO
2010.
A ordenação dos espaços urbanos se traduz, a um só tempo, em um constante
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria da Constituição, democracia e igualdade. fim a ser perseguido e um desafio de difícil enfrentamento. Isto porque, de um lado,
In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; BERCOVICI, Gilberto; MORAES FILHO, José subjaz um inegável interesse social, objetivando proporcionar melhor qualidade de vida
Filomeno de; LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreto. Teoria da Constituição: estudos aos cidadãos. Do outro, por sua vez, a realidade das cidades brasileiras, em sua grande
maioria consolidadas historicamente sem qualquer planejamento, revelando arranjos
sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. urbanos que exigem enormes esforços para serem modificados.
VIANNA, Luiz Werneck et al . A Judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Nesse contexto, o presente trabalho pretende discorrer sobre alguns princípios
jurídicos, inclusive de envergadura constitucional, que ombreiam o aplicador do direito
Rio de Janeiro: Revan, 1999. diante da árdua missão de consolidar, na sociedade brasileira, novos parâmetros quanto
à disposição dos espaços urbanos, conciliando o direito individual de propriedade com
as perspectivas legais de criar cidades melhores.

*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Especialista em Direito do Estado pela Fundação
Faculdade de Direito – UFBA (Universidade Federal da Bahia). Pós-graduando em Direito Urbano e Ambiental
pela Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Integrante
do Grupo Nacional dos Membros do Ministério Público – GNMP
**
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Especialista em Direito Tributário pela
Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Pós-graduando em Direito Urbano e Ambiental pela
Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
1
LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
REVISTA DO MPBA 348 349 REVISTA DO MPBA
UMA ABORDAGEM SOBRE O RELEVANTE PAPEL DAS DECISÕES JUDICIAIS NO FORTALECIMENTO DO DIREITO URBANÍSTICO E NA MELHORIA DOS UMA ABORDAGEM SOBRE O RELEVANTE PAPEL DAS DECISÕES JUDICIAIS NO FORTALECIMENTO DO DIREITO URBANÍSTICO E NA MELHORIA DOS
ESPAÇOS URBANOS: MUDANÇAS DE PARADIGMAS HISTÓRICOS ESPAÇOS URBANOS: MUDANÇAS DE PARADIGMAS HISTÓRICOS

Essa missão, acima qualificada como árdua, decorre do traço histórico que Essa diretriz constitucional, como não poderia deixar de ser, reverberou também
preponderou no direito brasileiro, de origem essencialmente patrimonial e individualista, nos espaços urbanos, onde, do mesmo modo, a função social deve se fazer presente,
e blindou seus titulares de prerrogativas quase absolutas, em detrimento da coletividade. conformando o direito de propriedade.
Assim, os titulares do direito de propriedade exerciam sem peias o jus fruendi, utendi et Por tal razão, a propriedade em espaços urbanos, pela função social que lhe é
abutendi. inerente, não mais está disciplinada exclusivamente pelo direito civil. Sua importância,
Apenas com a promulgação de um novo marco constitucional, essa feição enquanto um dos núcleos da formação das cidade, igualmente interessa ao direito
preponderantemente individual do direito de propriedade cedeu lugar a uma função urbanístico. Nesse sentido, os escólios do Prof. José Afonso da Silva:
social, traduzindo-se em uma limitação material a tal direito, sempre que o bem comum
assim o exigir. Atualmente, a propriedade privada urbana não é considerada disciplina
Sucede que se passaram séculos sob a égide do modelo anterior e sobre ele subordinada exclusivamente ao Direito Civil. Sob fundamento
se ergueram as cidades brasileiras. A mudança, embora sempre bem vinda, tardou a constitucional, é entendida mais como matéria típica do Direito
chegar e por isso seu desafio é hercúleo. Além das inúmeras incursões materiais a cargo Urbanístico, na medida em que este qualifica os bens como bens
do Poder Público, também se faz necessário reeducar a sociedade (indivíduos) que, de urbanísticos e o solo como solo urbano, ambos destinados a cumprir
modo recorrente, ainda persiste em olhar apenas para si (seu direito individual) e insistem as funções do urbanismo como habitar, trabalhar, circular e recrear,
em modelos que não mais se conformam com os fins almejados constitucionalmente de em consonância com o plano diretor municipal.2
“garantir o bem-estar” dos que vivem em ambientes urbanos. Desse modo, é possível afirmar, hodiernamente, que no direito positivo brasileiro,
O fortalecimento dos novos paradigmas constitucionais e legais, que perpassa por o respeito à função social da propriedade urbana apenas se verifica na medida em que
uma ação firme da Administração Pública e também do Judiciário, pode, com o passar também a função social das cidades se faça observar. Eis o núcleo central da política
dos anos, corrigir, naquilo que ainda for possível, distorções histórias. urbana (Art. 182 da CF).
Feita essa breve introdução, passa-se a discorrer sobre a importância das decisões Esse núcleo, intangível, é que vai permitir a instrumentalização e uma adequada
judiciais para a concretização da mudança almejada nos espaços urbanos, consolidando, ordenação das cidades, possibilitando a intervenção direta do Estado na propriedade
na sociedade, uma nova cultura, mais fraterna/social do que individual. particular, desde que fundada na lei, sempre visando o interesse supremo da coletividade
em detrimento do particular sendo, desta forma, o principal meio para solucionar os
graves problemas que assolam as grandes cidades.
2 DESENVOLVIMENTO Os arts. 1o e 2o, caput, da Lei 10.257/2001 (Estatuto das Cidades) corroboram tudo
o que acima foi dito, cuja transcrição faz-se oportuna, ipsis litteris:
2.1 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DAS CIDADES
Art. 1o Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e
Em que pese o direito de propriedade ser um direito eminentemente individual, 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei.
destinado, essencialmente, a proporcionar ao seu titular a disposição da coisa, seus Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto
contornos jurídicos, diferentemente de outrora, estão marcados por uma inegável carga da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social
social, a partir de opção do Poder Constituinte Originário, ao consagrar, expressamente, que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo,
na Constituição da República, a função social da propriedade (CF, art. 5o, XXIII e art. 170, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio
II e III). ambiental.
É dizer, ao mesmo tempo em que a Constituição da República reconhece o direito Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
de propriedade como sendo de natureza fundamental (CF, art. 5o, caput e XXII) e princípio das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as
fundante da ordem econômica (CF, art. 170, II), não descuidou de lhe atrelar um novo seguintes diretrizes gerais. (grifo nosso)
valor, isto é, a propriedade privada deverá, sempre, atender sua função social (CF, art.
5o, XXIII e art. 170, III). Assim, a propriedade urbana e o seu exercício, consoante sua função social,
O Min. Celso de Melo, com brilho, bem discorre sobre esse novo paradigma sofrem formação e condicionamento de acordo com as normas da política urbana. Por
constitucional, que confere nova roupagem à propriedade privada no direito brasileiro. consequência, estará condicionado o seu exercício ao desenvolvimento das funções
Mais social e menos individual. urbanísticas da cidade, tais como: habitação, lazer, trabalho, circulação etc.
O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que,
sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida 2.2 A IMPORTÂNCIA DAS DECISÕES JUDICIAIS NO FORTALECIMENTO DOS NOVOS
a função social que lhe é inerente (CF, art. 5o, XXIII), legitimar-se-á a PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS. APONTAMENTOS SOBRE DECISÃO DO STJ
intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo,
para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na Em que pese a Constituição da República ter comemorado seu 26o aniversário, a
própria CR. (ADI 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em implementação de muitas mudanças propostas ainda exigirá muito esforço e tempo para
4-4-2002, Plenário, DJ de 23-4-2004.) se consolidarem.

2
SILVA, J. A. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 22.
REVISTA DO MPBA 350 351 REVISTA DO MPBA
UMA ABORDAGEM SOBRE O RELEVANTE PAPEL DAS DECISÕES JUDICIAIS NO FORTALECIMENTO DO DIREITO URBANÍSTICO E NA MELHORIA DOS UMA ABORDAGEM SOBRE O RELEVANTE PAPEL DAS DECISÕES JUDICIAIS NO FORTALECIMENTO DO DIREITO URBANÍSTICO E NA MELHORIA DOS
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O Superior Tribunal de Justiça, julgando REsp oriundo do Estado de São Paulo 4. As restrições urbanístico-ambientais, ao denotarem, a um só tempo,
(STJ - REsp 302.906/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, interesse público e interesse privado, atrelados simbioticamente,
julgado em 26/08/2010, DJe 01/12/2010), relatado pelo Min. Herman Benjamim, avivou, incorporam uma natureza propter rem no que se refere à sua relação
com maestria, os novos paradigmas que devem conduzir o judiciário na resolução das com o imóvel e aos seus efeitos sobre os não-contratantes, uma
controvérsias envolvendo propriedade privada e lides de natureza urbanística. verdadeira estipulação em favor de terceiros (individual e coletivamente
No caso concreto, ergueu-se, em área predominantemente residencial e de falando), sem que os proprietários-sucessores e o próprio
construções unifamiliares3 da cidade de São Paulo, um prédio de apartamentos de nove empreendedor imobiliário original percam o poder e a legitimidade de
andares. A obra foi impugnada mediante ação civil pública e ação de nunciação de obra fazer respeitá-las. Nelas, a sábia e prudente voz contratual do passado
nova. Enquanto os processos corriam no judiciário, os empreendedores continuaram a é preservada, em genuíno consenso intergeracional que antecipa os
obra. Quando o REsp foi julgado pelo STJ, houve, inclusive, a imputação da obrigação valores urbanístico-ambientais do presente e veicula as expectativas
de demolição do prédio. imaginadas das gerações vindouras.
No bojo da decisão, vários princípios foram suscitados e que guardam pertinência [...]
com a temática suscitada no presente artigo. Razão pela qual se transcreve, na sequência, 7. Negar a legalidade ou legitimidade de restrições urbanístico-
a ementa e alguns trechos do voto condutor. ambientais convencionais, mais rígidas que as legais, implicaria
STJ - REsp 302.906/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, recusar cumprimento ao art. 26, VII, da Lei Lehmann, o que abriria
SEGUNDA TURMA, julgado em 26/08/2010, DJe 01/12/2010). à especulação imobiliária ilhas verdes solitárias de São Paulo (e de
Ementa: PROCESSUAL CIVIL, ADMINISTRATIVO, AMBIENTAL outras cidades brasileiras), como o Jardim Europa, o Jardim América,
E URBANÍSTICO. LOTEAMENTO CITY LAPA. AÇÃO CIVIL o Pacaembu, o Alto de Pinheiros e, no caso dos autos, o Alto da Lapa
PÚBLICA. AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA. RESTRIÇÕES e a Bela Aliança (City Lapa).
URBANÍSTICO-AMBIENTAIS CONVENCIONAIS ESTABELECIDAS 8. As cláusulas urbanístico-ambientais convencionais, mais rígidas
PELO LOTEADOR. ESTIPULAÇÃO CONTRATUAL EM FAVOR DE que as restrições legais, correspondem a inequívoco direito dos
TERCEIRO, DE NATUREZA PROPTER REM. DESCUMPRIMENTO. moradores de um bairro ou região de optarem por espaços verdes,
PRÉDIO DE NOVE ANDARES, EM ÁREA ONDE SÓ SE ADMITEM controle do adensamento e da verticalização, melhoria da estética
RESIDÊNCIAS UNI FAMILIARES. PEDIDO DE DEMOLIÇÃO. urbana e sossego.
VÍCIO DE LEGALIDADE E DE LEGITIMIDADE DO ALVARÁ. IUS 9. A Administração não fica refém dos acordos “egoísticos”
VARIANDI ATRIBUÍDO AO MUNICÍPIO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO firmados pelos loteadores, pois reserva para si um ius variandi,
DA NÃO-REGRESSÃO (OU DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO) sob cuja égide as restrições urbanístico-ambientais podem ser
URBANÍSTICO-AMBIENTAL. VIOLAÇÃO AO ART. 26, VII, DA LEI ampliadas ou, excepcionalmente, afrouxadas.
6.766/79 (LEI LEHMANN), AO ART. 572 DO CÓDIGO CIVIL DE 10. O relaxamento, pela via legislativa, das restrições urbanístico-
1916 (ART. 1.299 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002) E À LEGISLAÇÃO ambientais convencionais, permitido na esteira do ius variandi de que
MUNICIPAL. ART. 334, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. é titular o Poder Público, demanda, por ser absolutamente fora do
[...] comum, ampla e forte motivação lastreada em clamoroso interesse
1. As restrições urbanístico-ambientais convencionais, público, postura incompatível com a submissão do Administrador a
historicamente de pouco uso ou respeito no caos das cidades necessidades casuísticas de momento, interesses especulativos ou
brasileiras, estão em ascensão, entre nós e no Direito Comparado, vantagens comerciais dos agentes econômicos.
como veículo de estímulo a um novo consensualismo solidarista, 11. O exercício do ius variandi, para flexibilizar restrições urbanístico-
coletivo e intergeracional, tendo por objetivo primário garantir ambientais contratuais, haverá de respeitar o ato jurídico perfeito e o
às gerações presentes e futuras espaços de convivência urbana licenciamento do empreendimento, pressuposto geral que, no Direito
marcados pela qualidade de vida, valor estético, áreas verdes e Urbanístico, como no Direito Ambiental, é decorrência da crescente
proteção contra desastres naturais. escassez de espaços verdes e dilapidação da qualidade de vida
2. Nessa renovada dimensão ética, social e jurídica, as restrições nas cidades. Por isso mesmo, submete-se ao princípio da não-
urbanístico-ambientais convencionais conformam genuína índole regressão (ou, por outra terminologia, princípio da proibição de
pública, o que lhes confere caráter privado apenas no nome, porquanto retrocesso), garantia de que os avanços urbanístico-ambientais
não se deve vê-las, de maneira reducionista, tão-só pela ótica do conquistados no passado não serão diluídos, destruídos ou
loteador, dos compradores originais, dos contratantes posteriores e negados pela geração atual ou pelas seguintes.
dos que venham a ser lindeiros ou vizinhos. 12. Além do abuso de direito, de ofensa ao interesse público ou
3. O interesse público nas restrições urbanístico-ambientais em inconciliabilidade com a função social da propriedade, outros motivos
loteamentos decorre do conteúdo dos ônus enumerados, mas determinantes, sindicáveis judicialmente, para o afastamento, pela
igualmente do licenciamento do empreendimento pela própria via legislativa, das restrições urbanístico-ambientais podem ser
Administração e da extensão de seus efeitos, que iluminam enumerados: a) a transformação do próprio caráter do direito de
simultaneamente os vizinhos internos (= coletividade menor) e os propriedade em questão (quando o legislador, p. ex., por razões de
externos (= coletividade maior), de hoje como do amanhã. ordem pública, proíbe certos tipos de restrições), b) a modificação
irrefutável, profunda e irreversível do aspecto ou destinação do bairro
ou região; c) o obsoletismo valorativo ou técnico (surgimento de novos
3
Chama-se unifamiliar a edificação destinada a abrigar apenas uma (única) família. Ao contrário dos prédios de valores sociais ou de capacidade tecnológica que desconstitui a
apartamentos, onde cada unidade abrigará uma família. Daí ser denominado plurifamiliar. necessidade e a legitimidade do ônus),
REVISTA DO MPBA 352 353 REVISTA DO MPBA
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e d) a perda do benefício prático ou substantivo da restrição. 2.3 A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS. FUNDAMENTO DE DECISÕES JUDICIAIS
13. O ato do servidor responsável pela concessão de licenças QUANDO AS REGRAS (NORMAS-REGRAS) SE MOSTREM MAIS INJUSTAS. O
de construção não pode, a toda evidência, suplantar a legislação PROTAGONISMO JUDICIAL NO PROCESSO DE EVOLUÇÃO DAS RELAÇÕES
urbanística que prestigia a regra da maior restrição. À luz dos princípios PARTICULARES DE MODO A NÃO SUBESTIMAREM AS NOVAS PREMISSAS
e rédeas prevalentes no Estado Democrático de Direito, impossível ESTIPULADAS CONSTITUCIONALMENTE PARA AS CIDADES BRASILEIRAS
admitir que funcionário, ao arrepio da legislação federal (Lei Lehmann),
possa revogar, pela porta dos fundos e casuisticamente, conforme a Como se depreende do voto do Relator, ainda que a norma legal, aparentemente,
cara do freguês, as convenções particulares firmadas nos registros confira a um particular determinado direto, o Estado-Juiz, a partir de uma análise
imobiliários. conglobante, pode e deve invocar os princípios, a fim de buscar uma decisão mais
[...] consentânea com os novos parâmetros constitucionalmente estabelecidos. Nessa linha
17. Condenará a ordem jurídica à desmoralização e ao descrédito de tirocínio, o Min. Herman Benjamim invocou, para fundamentar sua decisão, princípios
o juiz que legitimar o rompimento odioso e desarrazoado do como a vedação de retrocesso e sua aplicação em relações privadas (eficácia horizontal
princípio da isonomia, ao admitir que restrições urbanístico- dos direitos fundamentais).
ambientais, legais ou convencionais, valham para todos, à O princípio da vedação de retrocesso consagra a seguinte ideia, segundo a Min.
exceção de uns poucos privilegiados ou mais espertos. O Cármen Lúcia do STF:
descompasso entre o comportamento de milhares de pessoas [...] as conquistas relativas aos direitos fundamentais não podem ser
cumpridoras de seus deveres e responsabilidades sociais e destruídas, anuladas ou combalidas, por se cuidarem de avanços da
a astúcia especulativa de alguns basta para afastar qualquer humanidade, e não de dádivas estatais que pudessem ser retiradas
pretensão de boa-fé objetiva ou de ação inocente. segundo opiniões de momento ou eventuais maiorias parlamentares.
18. O Judiciário não desenha, constrói ou administra cidades, (escólios de Cámen Lúcia Antunes Rocha).4
o que não quer dizer que nada possa fazer em seu favor.
Nenhum juiz, por maior que seja seu interesse, conhecimento
ou habilidade nas artes do planejamento urbano, da arquitetura O princípio da vedação ao retrocesso, por seu turno, não é mera elocubração
e do paisagismo, reservará para si algo além do que o simples teórica ou doutrinaria. Ao contrário, uma vez que os tribunais brasileiros têm reconhecido,
papel de engenheiro do discurso jurídico. E, sabemos, cidades diuturnamente, a aplicabilidade deste em vários dos seus julgados. O Supremo Tribunal
não se erguem, nem evoluem, à custa de palavras. Mas palavras Federal, sobre o princípio da vedação de retrocesso, assim já decidiu:
ditas por juízes podem, sim, estimular a destruição ou legitimar STF - RE 639337 AgR/SP - J. 23/08/2011 – 2a Turma - o princípio da
a conservação, referendar a especulação ou garantir a qualidade proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de
urbanístico-ambiental, consolidar erros do passado, repeti-los caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas
no presente, ou viabilizar um futuro sustentável. 19. Recurso pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que
Especial não provido. (grifo nosso) veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do
Como se percebe, a decisão acima colacionada, superando o individualismo Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à
contatual, que prestigia interesses estritamente privados, buscou privilegiar os anseios da segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses
direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os
coletividade, pois detentora de uma legítima expectativa no sentido de que determinado níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos,
espaço público não tenha suas feições modificadas/alteradas para atender a interesses venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado.
somente particulares.
A esse respeito, faz-se mister enaltecer também os escólios do Professor Ingo
Ao proibir a edificação vertical em área de construções eminentemente horizontais, Wolfgang Sarlet:
o judiciário reconheceu o legítimo direito a um meio ambiente urbano que preserva Que o princípio da proibição do retrocesso atua como relevante fator
singulares paisagens naturais (verdes), entalhada em densa área urbana da cidade de assecuratório também de um padrão mínimo de continuidade do
São Paulo/SP. Tais paisagens verdes e seu peculiar arranjo urbano, repita-se, que se ordenamento jurídico nos parece, portanto, mais um dado elementar
destaca em meio ao mar de concreto que o cerca, dever ser preservado, pois, assim, a a ser levado em conta [...]. No embate entre o paradigma do Estado
função social da propriedade se sobrepõe. Social intervencionista e altamente regulador e a nefasta tentativa de
implantar um Estado minimalista à feição dos projetos globalizantes
do modelo econômico e da ideologia neoliberal, o correto manejo
da proibição do retrocesso na esfera dos direitos fundamentais
sociais poderá constituir uma importante ferramenta jurídica para
a afirmação do Estado necessário, do qual nos fala Juarez Freitas.

4
Apud SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa
humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista de
Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 57, p. 5-48, out./dez. 2006.
REVISTA DO MPBA 354 355 REVISTA DO MPBA
UMA ABORDAGEM SOBRE O RELEVANTE PAPEL DAS DECISÕES JUDICIAIS NO FORTALECIMENTO DO DIREITO URBANÍSTICO E NA MELHORIA DOS UMA ABORDAGEM SOBRE O RELEVANTE PAPEL DAS DECISÕES JUDICIAIS NO FORTALECIMENTO DO DIREITO URBANÍSTICO E NA MELHORIA DOS
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E NECESSÁRIO SERÁ JUSTAMENTE O ESTADO APTO A A invocação da vedação ao retrocesso pelo STJ não foi, portanto, uma inovação
ASSEGURAR NUNCA MENOS DO QUE UMA VIDA COM DIGNIDADE no ordenamento jurídico. Todavia, o que chama atenção na decisão do STJ é a invocação
PARA CADA INDIVÍDUO E, PORTANTO, UMA VIDA SAUDÁVEL deste princípio na esfera privada, na relação entre loteador e condômino. Ou seja, a
PARA TODOS OS INTEGRANTES (ISOLADA E COLETIVAMENTE invocação da vedação ao retrocesso ocorreu de forma conjunta com a eficácia horizontal.
CONSIDERADOS) DO CORPO SOCIAL. Do contrário, tal qual com Conforme sabido, a abrangência dos direitos fundamentais, hodiernamente,
lucidez nos lembra Paulo Bonavides, estaremos cada vez mais encontra-se extremamente ampliada, sujeitando não apenas os Poderes Públicos como
próximos de uma lamentável, mas cada vez menos controlável e um todo (Legislativo, Executivo e Judiciário), mas também os particulares, mesmo nas
contornável transformação de muitos Estados democráticos de relações que estes mantém entre si. Tal fenômeno é o que se denomina de eficácia
Direito em verdadeiros “estados neocoloniais”, onde estarão seguros horizontal dos direitos fundamentais.
(a exemplo dos “amigos do rei”) apenas os amigos e parceiros do A incidência dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas (eficácia
“colonizador” ou mesmo de alguma ditadura de plantão ou maioria horizontal) é matéria pacífica na doutrina, tanto nacional como alienígena7, segundo se
parlamentar ocasional, mas somente enquanto gozarem da privilegiada observa dos escólios abaixo transcritos.
condição de amigos e parceiros!5 O Prof. brasileiro Ingo Wolfgang Sarlet, em estudo sobre o tema, assim leciona:
Patryck de Araújo Ayala, Professor, Mestre e doutor em Direito pela Universidade Para além de vincularem todos os poderes públicos, os direitos
Federal de Santa Catarina, autor de diversas obras jurídicas, nacionais e internacionais, fundamentais exercem sua eficácia vinculante também na jurídico-
Procurador do Estado de Mato Grosso, em artigo escrito para obra coletiva da Organização privada, isto é, no âmbito das relações jurídicas entre particulares (p.
das Nações Unidas – ONU, assim leciona sobre os fundamentos normativos da vedação 395).
de retrocesso: Ponto de partida para o reconhecimento de uma eficácia dos direitos
fundamentais na esfera das relações privadas é a constatação de que,
3.1. Os fundamentos normativos de um imperativo de não retorno ao contrário do Estado clássico e liberal de Direito, no qual os direitos
nos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos e na fundamentais, na condição de direitos de defesa, tinham por escopo
constituição brasileira. [...] duas premissas importantes: a) Proporcionar proteger o indivíduo de ingerências por parte dos poderes públicos
bem-estar por meio de prestações existenciais com essas, exige na sua esfera pessoal e no qual, em virtude de uma preconizada
esforços progressivos, permanentes e ininterruptos do Estado; b) esses separação entre Estado e sociedade, entre público e privado, os
níveis de bem-estar nunca poderão ignorar ou desconsiderar padrões direitos fundamentais alcançavam sentido apenas nas relações entre
mínimos, porque vinculados a um imperativo de proteção coletiva indivíduos e o Estado, no Estado social de Direito não apenas o Estado
dos direitos de tal natureza. Por meio deles podem ser localizadas ampliou suas atividades e funções, mas também a sociedade cada
as fontes mais importantes para a fundamentação de um imperativo vez mais participa ativamente do exercício do poder, de tal sorte que a
de não-retorno nos níveis de proteção [...]. Sua origem concentra- liberdade individual não apenas carece de proteção contra os poderes
se no direito internacional dos direitos humanos que se vale de um públicos, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade,
efeito cliquet (MAZZUOLI, 2012) que se encontra associado àquelas isto é, os detentores de poder social e econômico, já que é nesta esfera
obrigações e compromissos definidos por meio de instrumentos que as liberdade se encontram particularmente ameaçadas (p. 398-
convencionais (especialmente os oriundos de normas imperativas de 399). Isto significa, em última análise, que as normas de direito privado
direito internacional) pelos Estados, que, desse modo, comprometem- não podem contrariar o conteúdo dos direitos fundamentais (p. 403).8
se a proteger as pessoas com cada vez melhores recursos e visando
lhes garantir sempre, cada vez mais e melhor proteção. As obrigações Assim, além da eficácia horizontal de direitos propriamente ditos, temos também
previstas no texto do artigo 2.1 do Pacto Internacional sobre os essa em relação a princípios fundamentais, como o da vedação ao retrocesso. Trata-se,
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; no artigo 26, da Convenção pois, de decisão de vanguarda, a qual merece alvíssaras.
Americana sobre Direitos Humanos; nos artigos 1, 12, e 12.1 do Isto porque a transcendência dos princípios e regras constitucionais impõe que
Protocolo Adicional de San Salvador propõem um rigidíssimo bloco de qualquer instrumento normativo vigente seja sempre interpretado em consonância
convencionalidade […] que não permitiria a desconstituição dos níveis com as disposições e com os valores consagrados na Lei Maior, os quais, indene de
de proteção que já foram atingidos. Deve-se considerar, antes de tudo, dúvidas, não podem ser ignorados ou amainados. Além disso, essa análise não pode
uma composição normativa baseada em um Estado aberto, e em uma ignorar um princípio interpretativo básico, qual seja: o da máxima efetividade das normas
ordem jurídica aberta à comunicação com outras experiências, que constitucionais, que indica a necessidade, antes de tudo, de um interpretação ampliativa.
auxiliam e contribuem para o aperfeiçoamento e o desenvolvimento Vivemos, pois, a época do constitucionalismo cumulativo9. No tocante à necessidade
da ordem nacional. Pode-se tratar semelhante fenômeno por meio do de se observar a Constituição e os valores nela consagrados, pertinente trazer a baila o
uso de um diálogo de fontes (JAYME, 1998), ou por meio de uma magistério dos Professores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
experiência de transconstitucionalismo (NEVES, 2009).6
7
Na doutrina estrangeira, ver: CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional: e teoria da Constituição. 7. ed.
5
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, Coimbra: Almedina, 2003. p. 448.
8
direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista de Direito SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 57, p. 5-48, out./dez. 2006. p. 395-403.
9
6
El principio de no regresión ambiental en el derecho comparado latinoamericano. Disponível em: < http://www. “É o que se pode designar por constitucionalismo cumulativo. Um constitucionalismo crescentemente
aida-americas.org/sites/default/files/Doc_CR_Principio_No_Regresi%C3%B3n_Ambiental. superavitário, como se dá com a ciência e a cultura, a ponto de autorizar a ilação de que, graças a ele, o
pdf>. Acesso em: 01 jan. 2014. Estado de Direito termina por desembocar num Estado de direitos”. BRITTO, Carlos Ayres. O Humanismo
como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 23.
REVISTA DO MPBA 356 357 REVISTA DO MPBA
UMA ABORDAGEM SOBRE O RELEVANTE PAPEL DAS DECISÕES JUDICIAIS NO FORTALECIMENTO DO DIREITO URBANÍSTICO E NA MELHORIA DOS UMA ABORDAGEM SOBRE O RELEVANTE PAPEL DAS DECISÕES JUDICIAIS NO FORTALECIMENTO DO DIREITO URBANÍSTICO E NA MELHORIA DOS
ESPAÇOS URBANOS: MUDANÇAS DE PARADIGMAS HISTÓRICOS ESPAÇOS URBANOS: MUDANÇAS DE PARADIGMAS HISTÓRICOS

[...] é possível inferir que, dada a sua generalidade e abstração, Constata-se, portanto, que a eficácia irradiante das normas e princípios
os princípios inspiram uma interpretação pautada nas diretrizes constitucionais impõe que as leis infraconstitucionais, e até mesmo contratos entre
constitucionais, vinculando todo o sistema jurídico infraconstitucional particulares, quando das suas respectivas aplicações, sejam reexaminadas pelo
[...] conferindo novo conteúdo (essência) às regras positivadas nos mais operador do direito com novas lentes, com “novos olhos”, que terão as cores da dignidade
diferentes diplomas normativos. [...] os princípios – e, particularmente, humana, da igualdade substantiva da justiça social e dos demais valores consagrado na
os princípios constitucionais – assumem especial relevância, atuando Carta Magna (parafraseando o professor Daniel Sarmento, alhures citado), sob pena,
como verdadeiro guia, orientando toda a interpretação, integração e
inclusive, de se incorrer no vício da inconstitucionalidade manifesta. Ademais, na seara
aplicação da ciência jurídica [...]. Com essa irradiação dos valores
constitucionais, condiciona-se ‘a interpretação das normais legais, da interpretação constitucional vigora o princípio da máxima efetividade das normas
atuando como impulsos e diretrizes para o legislador, a administração e constitucionais, o qual, necessariamente, condiciona o intérprete. Inocêncio Mártires
o Judiciário. A eficácia irradiante, nesse sentido, enseja a humanização Coelho define o princípio da máxima efetividade como uma orientação aos aplicadores
da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no da Lei Maior para que interpretem as suas normas em ordem a otimizar-lhes a eficácia,
momento de aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com mas sem alterar o seu conteúdo13. J.J. Gomes Canotilho, por seu turno, assevera que o
novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade enunciado da máxima efetividade:
substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional’, É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas
consoante a lição de Daniel Sarmento.10 constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da
actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje, sobretudo,
Este fenômeno é sintetizado também pela expressão “força normativa da invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas
Constituição”, cunhada pelo Professor Alemão Konrad Hesse, que assim leciona: deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos
direitos fundamentais).14
A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade.
Ela logra despertar ‘a força que reside na natureza das coisas’, A origem e a amplitude do princípio da máxima efetividade são mais bem
tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa que influi explicitadas por Marcelo Novelino:
e determina a realidade política e social [...]. A Constituição jurídica Como decorrência do princípio da força normativa, este postulado
não significa simples pedaço de papel, tal como caracterizada por (também conhecido como princípio da interpretação efetiva ou da
Lassalle. Ela não se afigura ‘impotente para dominar, efetivamente, a eficiência) foi desenvolvido pelo Tribunal Constitucional Federal
distribuição de poder’, tal como ensinado por Georg Jellinek e como, Alemão para conferir maior efetividade aos direitos fundamentais, os
hodiernamente, divulgado por um naturalismo e sociologismo que se quais devem ser submetidos a uma interpretação ampla. Sua atuação
pretende cético. A Constituição não está desvinculada da realidade se aproxima bastante do enunciado ‘in dúbio pro libertate’, que parte
histórica concreta de seu tempo. Todavia, ela não está condicionada, de uma presunção de liberdade a favor do cidadão.15
simplesmente, por essa realidade. Em caso de eventual conflito, a
constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais Afirma, por fim, Inocêncio Mártires Coelho:
fraca, ao contrário, existem pressupostos realizáveis (realizierbare
voraussetzungen) que, mesmo em caso de confronto, permitem De igual modo, veicula um apelo aos realizadores da Constituição
assegurar a força normativa da constituição.11 para que, em toda situação hermenêutica, sobretudo em sede de
direitos fundamentais, procurem densificar tais direitos, cujas normas,
O Professor Português J. J. Gomes Canotilho sintetiza bem a questão. Vejamos: naturalmente abertas, são predispostas a interpretações expansivas.16

O princípio da interpretação das leis em conformidade com a Essa, portanto, é uma diretriz interpretativa, sempre ampliativa e superavitária,
constituição é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como vedando-se o retrocesso.
função assegurar a constitucionalidade da interpretação) – [...].
[...] o princípio da prevalência da constituição impõe que, dentre as
várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma 3 CONCLUSÕES
interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou normas
constitucionais.12 A constitucionalização do direito privado é uma tendência atual, a qual é reforçada
quando a questão particular, de alguma maneira, tem conexão com o interesse público,
10
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008. 13
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 107.
p. 30-32. 14
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional: e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p.
11
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição: Die normative kraft der verfassung. Porto Alegre: Sergio 1224.
Fabris editor, 1991. p. 24-25. 15
NOVELINO, Marcelo. Teoria da Constituição e controle de constitucionalidade. Salvador: JusPODIVM, 2008.
12
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional: e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. p. 124.
1226. 16
COELHO, op. cit., p. 107.
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UMA ABORDAGEM SOBRE O RELEVANTE PAPEL DAS DECISÕES JUDICIAIS NO FORTALECIMENTO DO DIREITO URBANÍSTICO E NA MELHORIA DOS
ESPAÇOS URBANOS: MUDANÇAS DE PARADIGMAS HISTÓRICOS

como, por exemplo, na ordem urbanística. O traço histórico que preponderou, até 1988, A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL À CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS E O
no direito brasileiro, de origem patrimonial e individualista, blindou proprietários de JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.983 PELO
prerrogativas quase absolutas, em detrimento da coletividade. Todavia, o protagonismo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
judicial, nesta senda, tem sido relevantíssimo, reafirmando, na prática, os princípios da
função social da propriedade e da função social da cidade. Estes princípios constitucionais, Lucas Ramos de Vasconcelos*
bem como o da vedação ao retrocesso e da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, EMENTA
têm sido aplicados, pelo STJ, na relação entre particulares, privilegiando-se a perspectiva O presente artigo, a propósito do curso de ação tratando do tema no STF, objetiva abordar
coletiva, o que é de todo louvável. a incompatibilidade com a Constituição Federal da prática conhecida como vaquejada.
A partir do exame da doutrina, da legislação, da hermenêutica, de precedentes e dos
votos já proferidos, buscaremos demonstrar que tal prática configura crueldade contra os
REFERÊNCIAS animais, sendo, portanto, vedada pelo texto constitucional.

BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: PALAVRAS-CHAVE: Vaquejada. Animais. Crueldade. Inconstitucionalidade.
Fórum, 2010. “O problema não consiste em saber se os animais podem raciocinar,
tampouco interessa se falam ou não; o verdadeiro problema é este:
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional: e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: podem eles sofrer?”
Almedina, 2003.
(Jeremy Bentham)
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva,
2007. 1 INTRODUÇÃO
CONSTITUIÇÃO e o Supremo - versão completa: STF - Supremo Tribunal Federal
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=1753>. O Ministério Público Federal ajuizou ação direta de inconstitucionalidade em face
Acesso em: 12 out. 2014. da Lei n. 15.299/2003 do Estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada como prática
desportiva e cultural. Em síntese, a ação se funda na alegação de que a vaquejada viola
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: o art. 225, §1º, VII da Constituição Federal, ou seja, desrespeita a norma constitucional
Lúmen Juris, 2008. que proíbe sejam os animais submetidos a crueldade. Levada ao plenário do STF, depois
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição: Die normative kraft der verfassung. de três votos proferidos, o julgamento foi suspenso em razão de um pedido de vista.
Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1991. O presente artigo objetiva examinar o tema em discussão, de evidente relevância
e atualidade.
El principio de no regresión ambiental en el derecho comparado latinoamericano Faz-se necessário, inicialmente, traçar um panorama da ação em curso, trazendo
Disponível em: <http://www.aida-americas.org/sites/default/files/Doc_CR_Principio_No_ os fundamentos expostos na inicial e os argumentos utilizados nos votos.
Regresi%C3%B3n_Ambiental.pdf>. Acesso em: 01 jan. 2014.
Em seguida, serão apresentados os julgados do STF que trataram dos casos de
LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. briga de galo e da prática conhecida como farra do boi.
Na sequência, o texto cuidará do aparente conflito entre a liberdade de manifestação
NOVELINO, Marcelo. Teoria da Constituição e controle de constitucionalidade. Salvador: cultural e de prática desportiva de um lado, e do outro, a proibição de crueldade contra
Juspodivm, 2008. os animais.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade Chega-se, então, à conclusão pela defesa da inconstitucionalidade da lei acima
da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito apontada, ante a indubitável crueldade causada aos animais nas vaquejadas.
constitucional brasileiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. Uma advertência é importante: os direitos dos animais levam a acaloradas
57. e interessantes discussões de cunho moral. Todavia, o presente artigo não pretende
se aprofundar em questões metajurídicas, mas sim examinar o tema à luz do quanto
______. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
disposto na Constituição Federal.
2008.

SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1981.

THOMÉ, Romeu. Manual de direito ambiental. 3. ed. Salvador: Juspodvim, 2013.


*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia.
REVISTA DO MPBA 360 361 REVISTA DO MPBA
A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL À CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS E O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL À CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS E O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.983 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.983 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

2 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.983 Tendo em vista a forma como desenvolvida, a intolerável crueldade
com os bovinos mostra-se inerente à vaquejada. A atividade de
A Lei n. 15.299/2003 do Estado do Ceará tem o seguinte teor: perseguir animal que está em movimento, em alta velocidade, puxá-
Art. 1º. Fica regulamentada a vaquejada como atividade desportiva e lo pelo rabo e derrubá-lo, sem os quais não mereceria o rótulo de
cultural no Estado do Ceará. vaquejada, configura maus-tratos. Inexiste a mínima possibilidade de
o touro não sofrer violência física e mental quando submetido a esse
Art. 2º. Para efeitos desta Lei, considera-se vaquejada todo evento tratamento.1
de natureza competitiva, no qual uma dupla de vaqueiro a cavalo O voto, fazendo referências à inicial, tece contundentes considerações acerca do
persegue animal bovino, objetivando dominá-lo. sofrimento infligido aos animais. Merece destaque o seguinte trecho:
§ 1º Os competidores são julgados na competição pela destreza e O autor juntou laudos técnicos que demonstram as consequências
perícia, denominados vaqueiros ou peões de vaquejada, no dominar nocivas à saúde dos bovinos decorrentes da tração forçada no rabo,
animal. seguida da derrubada, tais como fraturas nas patas, ruptura de
§ 2º A competição dever ser realizada em espaço físico apropriado, ligamentos e de vasos sanguíneos, traumatismos e deslocamento
com dimensões e formato que propiciem segurança aos vaqueiros, da articulação do rabo ou até o arrancamento deste, resultando no
animais e ao público em geral. comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores
§ 3º A pista onde ocorre a competição deve, obrigatoriamente, físicas e sofrimento mental.2
permanecer isolada por alambrado, não farpado, contendo placas de
aviso e sinalização informando os locais apropriados para acomodação O voto aponta, ainda, que também os cavalos sofrem sérias lesões.
do público. Nessa linha de entendimento, o relator, não sem antes indicar importantes
precedentes, os quais serão examinados adiante, conclui pela inconstitucionalidade da
Art. 3º. A vaquejada poderá ser organizada nas modalidades amadora e aludida lei.
profissional, mediante inscrição dos vaqueiros em torneio patrocinado Os Ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes votaram pela improcedência da ação.
por entidade pública ou privada.
Em síntese, disseram que o caso em questão se distancia dos julgamentos dos casos de
Art. 4º. Fica obrigado aos organizadores da vaquejada adotar medidas briga de galo e da farra do boi e destacaram que o art. 215 da Constituição consagra a
de proteção à saúde e à integridade física do público, dos vaqueiros liberdade das manifestações culturais.3
e dos animais. Na sequência, o Ministro Luís Roberto Barroso pediu vista dos autos.
§ 1º O transporte, o trato, o manejo e a montaria do animal utilizado na
vaquejada devem ser feitos de forma adequada para não prejudicar a
saúde do mesmo. 3 PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
§ 2º Na vaquejada profissional, fica obrigatória a presença de uma
equipe de paramédicos de plantão no local durante a realização das Faz-se aqui um rápido histórico dos julgados do STF sobre os casos de briga de
provas.
galo e sobre a prática conhecida como farra do boi.4
§ 3º O vaqueiro que, por motivo injustificado, se exceder no trato com
o animal, ferindo-o ou maltratando-o de forma intencional, deverá ser Já em 1957, no Recurso de Habeas Corpus n. 34.936, o STF considerou ilícita a
excluído da prova. briga de galo, por não ser um simples desporto, mas prática que maltrata os animais.5

Art. 5º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 6º. Revogam-se as disposições em contrário.

Pode-se perceber que a lei tenta transmitir um caráter de proteção aos animais. Tal
1
caráter, todavia, não se sustenta minimamente, porquanto a vaquejada é uma atividade Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.983. Min. Marco Aurélio. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/
arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI_4983.pdf>. Acesso em: 16 out. 2015.
intrinsecamente cruel. 2
Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.983. Min. Marco Aurélio. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/
Na vaquejada, dois vaqueiros, cada um em um cavalo, perseguem em alta arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI_4983.pdf>. Acesso em: 16 out. 2015.
velocidade um animal bovino com o objetivo de derrubá-lo em uma área previamente 3
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=whjuQ1eWYOo>. Acesso em: 16 out. 2015.
demarcada. O Ministro Marco Aurélio, relator da ação direta de inconstitucionalidade em 4
Levantamento feito com o auxílio da seguinte obra: BARROS, Marina Dorileo; SILVEIRA, Paula Galbiatti. A
exame, muito bem assinala em seu voto: proteção jurídica dos animais não-humanos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira
de Direito Animal, v. 10, n. 18, jan-abr. 2015. Disponível em: < http://www.portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/
issue/view/1071>. Acesso em: 20 out. 2015.
5
Recurso de Habeas-Corpus, n, 34.936, São Paulo. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=88696>. Acesso em: 16 out. 2015
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A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL À CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS E O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL À CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS E O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.983 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.983 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Em 1958, no Recurso de Habeas Corpus n. 35.7626 e no Recurso Extraordinário Ronald Dworkin afirma, com muita propriedade, que a interpretação constitucional
n. 39.152, decidiu-se no mesmo sentido.7 deve observar a exigência de integridade constitucional. Diz ele que a interpretação deve
Na ação direta de inconstitucionalidade n. 2.514-7, julgada em 2005, o STF ser coerente com a estrutura da constituição e com a linha dos julgamentos anteriores.
declarou inconstitucional lei do Estado de Santa Catarina que autorizava a realização de Suas palavras são as seguintes:
brigas de galo, deixando consignado que: [...] que tal juízo seja coerente, em princípio, com o desenho estrutural
a sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível da Constituição como um todo e também com a linha de interpretação
com a Constituição do Brasil”. O relator, Ministro Eros Grau, afirmou constitucional predominantemente seguida por outros juízes no
em seu voto que “o legislador estadual ignorou o comando contido passado. Têm de considerar que fazem um trabalho de equipe junto
no inciso VII do §1º do art. 225 da Constituição do Brasil, que com os demais funcionários da justiça do passado e do futuro, que
expressamente veda práticas que submetam os animais à crueldade.8 elaboram juntos uma moralidade constitucional coerente; e devem
cuidar para que suas contribuições se harmonizem com todas as
Em 2011, o STF novamente se deparou com o tema, desta feita no julgamento da outras. (Em outro texto, eu disse que os juízes são como escritores
ação direta de inconstitucionalidade n. 1.856, proposta em face de lei do Estado do Rio que criam juntos um romance-em-cadeia no qual cada um escreve um
de Janeiro. Cumpre destacar que a decisão assentou o seguinte: capítulo que tem sentido no contexto global da história).11
A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática criminosa
tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à Não se quer dizer com isso, evidentemente, que a corte constitucional não possa
Constituição da República, que veda a submissão de animais a atos mudar seu entendimento ao longo do tempo. Todavia, aludindo à analogia utilizada por
de crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da “farra do boi” Dworkin, esse capítulo do “romance” deve ser coerente com a história.
(RE 153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente
O estudo do renomado autor é feito à luz da constituição norte-americana, mas
manifestação cultural, de caráter meramente folclórico.9
não há qualquer impedimento para que o mesmo raciocínio seja aqui aplicado. O voto
Antes, em 1997, no Recurso Extraordinário n.153.531, o STF julgou o caso da do Ministro Relator da ação em estudo confirma esse entendimento ao falar do padrão
prática conhecida como farra do boi. A ementa traz o seguinte: decisório como importante norte interpretativo:
A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos Os precedentes apontam a óptica adotada pelo Tribunal considerado
culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, o conflito entre normas de direitos fundamentais – mesmo presente
não prescinde da observância da norma do inciso VII do art. 225 da manifestação cultural, verificada situação a implicar inequívoca
Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os crueldade contra animais, há de se interpretar, no âmbito da
animais à crueldade.10 ponderação de direitos, normas e fatos de forma mais favorável à
proteção ao meio ambiente, demostrando-se preocupação maior
O STF, portanto, ante o aparente conflito com o direito de manifestação cultural,
com a manutenção, em prol dos cidadãos de hoje e de amanhã, das
sempre privilegiou a proteção aos animais. condições ecologicamente equilibradas para uma vida mais saudável
e segura.
4 PONDERAÇÃO DE VALORES, INTEGRIDADE CONSTITUCIONAL E PRINCÍPIO DA Cabe indagar se esse padrão decisório configura o rumo interpretativo
UNIDADE adequado a nortear a solução da controvérsia constante deste
processo. A resposta é desenganadamente afirmativa, ante o
Como apontado acima, a presente discussão apresenta um aparente conflito entre inequívoco envolvimento de práticas cruéis contra bovinos durante a
valores protegidos pela Constituição Federal. De um lado, a liberdade de manifestação vaquejada.12
cultural e de prática desportiva, e do outro, a proibição de crueldade contra os animais.
Nesse contexto, cabe ao intérprete fazer uma ponderação dos valores em aparente Outro ponto a considerar é o princípio da unidade da constituição, segundo o qual
conflito. o intérprete deve “promover a concordância prática entre os bens jurídicos tutelados,
preservando o máximo possível de cada um.” 13 Também sob esse prisma, a melhor
solução é pela inconstitucionalidade da lei.
6
Recurso de Habeas-Corpus n. 35.762. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=88938. Acesso em: 16 out. 2015
7
Recurso Exrtraordiunário n. 39.152, São Paulo. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=AC&docID=139233>. Acesso em: 16 out. 2015. 11
DWORKING, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo:
8
Ação Direta de Inconstitucionalidade, n. 2.514-7, Santa Catarina. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/ Martins Fontes, 2006. p. 15.
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266833>. Acesso em: 16 out. 2015. 12
Ação Direta de Inconstitucionalidade, n. 4.983, Ceará. Min. Marco Aurélio. Disponível em < http://www.
9
Ação Direta de Inconstitucionalidade, n. 1.856, Rio de Janeiro. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/ stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI_4983.pdf. Acesso em 16 out. 2015.
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628634>. Acesso em: 16 out. 2015. 13
10 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
Recurso Extraordinário, n. 153.531-8, Santa Catarina. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/ construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 304.
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=211500>. Acesso em: 16 out. 2015.
REVISTA DO MPBA 364 365 REVISTA DO MPBA
A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL À CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS E O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL À CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS E O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.983 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.983 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Isso porque a vaquejada representa manifestação que preserva e exalta a figura REFERÊNCIAS
do vaqueiro, importante personagem da cultura nordestina. Todavia, existem diversas
outras formas de preservar essa figura. Citem-se, por exemplo, cavalgadas com roupas BARROS, Marina Dorileo; SILVEIRA, Paula Galbiatti. A proteção jurídica dos animais
típicas, história oral, poesias e canções, incluindo o aboio, canto característico dos não-humanos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de
vaqueiros. Direito Animal, v. 10, n. 18, jan-abr. 2015. Disponível em: < http://www.portalseer.ufba.br/
Assim, o fim da vaquejada não impede que a cultura do vaqueiro seja preservada. index.php/RBDA/issue/view/1071>. Acesso em: 20 out. 2015.
Por outro lado, a continuação da vaquejada viola por completo a norma constitucional
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
que proíbe tratamento cruel aos animais. Portanto, a concordância prática aponta na
fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
direção da procedência da ação direta de inconstitucionalidade em estudo.
CASTRO JÚNIOR, Marco Aurélio de; VITAL, Aline de Oliveira. Direitos dos animais e
garantia constitucional de vedação à crueldade. Revista Brasileira de Direito Animal, v.
5 CONCLUSÃO 10, n. 18, jan-abr. 2015. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/
issue/view/1071>. Acesso em: 20 out. 2015.
A vaquejada configura tratamento brutal e doloroso aos animais. Seja antes de
DWORKING, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-
adentrar na área de competição, seja durante a corrida, os animais sofrem indubitável
americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
sofrimento físico e mental. Desse modo, tal prática não mais pode ser tolerada em nosso
país.
Como advertido na introdução, essa conclusão não decorre de meras convicções
morais, mas sim do texto expresso da Constituição, que proíbe sejam os animais
submetidos a crueldade, conforme art. 225, §1º, VII.
O STF historicamente tem decidido que práticas culturais e desportivas não podem
subsistir se provocam sofrimento aos animais.
No caso em exame, um dado é de extrema relevância. Como destacado acima, o
fim das vaquejadas não impede a preservação da cultura do vaqueiro, que pode ocorrer
de diversas outras maneiras. Assim, o princípio da unidade da constituição também
conduz à conclusão que essa prática cruel deve ser extirpada.
Vale salientar que não pode prosperar o argumento de que a vaquejada deve
continuar existindo porque gera emprego e renda a diversas pessoas. Muitas atividades
ilícitas geram emprego e renda e nem por isso se tornam lícitas. A rinha de galo é um
exemplo, apenas para ficar em um caso que guarda semelhança com o presente.
Não se diga também que as vaquejadas podem existir com regras que protejam
os animais. Isso não é possível, pois a vaquejada é atividade intrinsecamente cruel, que,
por natureza, causa sofrimento aos animais.
Diante dessas considerações, a conclusão inexorável é que a ação direta de
inconstitucionalidade em exame deve ser julgada procedente, pois a vaquejada configura
prática cruel contra os animais, o que é vedado pela Constituição.

REVISTA DO MPBA 366 367 REVISTA DO MPBA


ÁRVORES NATIVAS ISOLADAS: PRESERVAÇÃO E POSSIBILIDADE DE CORTE

ÁRVORES NATIVAS ISOLADAS: PRESERVAÇÃO E POSSIBILIDADE DE CORTE ente federativo, isto é, União, Estados e Municípios. Ademais, pode advir tanto do Poder
Executivo, do Legislativo ou do Judiciário. Assim, o Governador pode declarar imune de
Fábio Fernandes Corrêa* corte uma espécie arbórea existente no território do Estado ou mesmo uma decisão judicial
Fabiana Fernandes da Cunha Barbosa** pode determinar a proibição de seu corte. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente pode
Jeliane Pacheco de Almeida*** fazer o mesmo em relação a uma árvore situada no seu Município.
Em Florianópolis/SC, por exemplo, foi sancionada a Lei nº 9.722, de 22 janeiro
de 2015, que declara a Figueira Centenária da Ponte do Leal imune ao corte. O mesmo
EMENTA fez o Prefeito de Curitiba/PR que, por meio do Decreto nº 1.181/09, declarou diversas
A supressão de árvore nativa isolada na paisagem não é permitida se a espécie for árvores da área urbana imunes de corte, inclusive em imóveis particulares, elencando as
ameaçada de extinção, o poder público tiver proibido o seu corte ou ela tenha sido espécies e as suas localizações. O IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
declarada imune de corte. O decreto estadual nº 15.180/14 previu a desnecessidade de Recursos Naturais Renováveis), por sua vez, editou a Portaria nº 13/11, declarando imune
autorização para a supressão de árvore isolada, conforme ato normativo específico do de corte uma árvore da espécie Liquidambar styraciflua, identificada como “Árvore da
INEMA. Diante da inexistência de tal ato, o órgão ambiental estadual deve ser consultado Lua,” plantada na sede do Instituto na década de 80, como parte de um projeto científico.
previamente ao corte. Especificamente quanto ao Bioma Mata Atlântica, faz-se menção às árvores
isoladas ao se tratar da exploração eventual da vegetação nativa. O artigo 9º, da Lei nº
PALAVRAS-CHAVE: Árvores nativas isoladas. Supressão. Regramento jurídico. 11.428/06, permite a exploração eventual, sem propósito comercial direto ou indireto, de
espécies da flora nativa, para consumo nos imóveis rurais das populações tradicionais ou
É possível a supressão de árvores nativas isoladas?
de pequenos produtores rurais.
Essa é uma pergunta muito frequente vinda de produtores
Ao regulamentar o citado artigo, o Decreto nº 6.660/08, restringiu a exploração
rurais, principalmente diante da intenção de expansão de
eventual à vegetação secundária, em qualquer estágio de regeneração e à exploração
suas atividades agrossilvipastoris.
ou corte de árvores nativas isoladas provenientes de formações naturais, excetuadas as
O chamado Novo Código Florestal (Lei nº 12.651/12), Espécie não identificada
Foto: Natália A. Coelho espécies ameaçadas de extinção ou proibidas de corte (artigo 2º, §§ 2º e 5º).
que atualmente trata sobre a proteção da vegetação nativa, Foto: Natália A. Coelho
primeiramente estabelece que são bens de interesse comum a todos os habitantes do Na Bahia, o artigo 36, §1º, do Decreto nº 15.180/14, que dispôs sobre a gestão
País as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação nativa das florestas no Estado, estipulou que, independentemente de licenciamento ambiental
(artigo 2º). ou autorização, a supressão de árvores isoladas, com exceção de espécies protegidas
Mesmo que isoladas, as árvores nativas que compõem os espaços ambientalmente ou imunes de corte, ocorrerá na forma indicada em ato específico do INEMA (Instituto do
protegidos da Lei nº 12.651/12 – áreas de preservação permanente, de reserva legal e Meio Ambiente e Recursos Hídricos). Tal ato, até o momento, não foi editado.
de uso restrito – seguem, em regra, os respectivos regramentos jurídicos que podem São espécies protegidas aquelas constantes
permitir a supressão ou manejo florestal dessas áreas em determinadas hipóteses. do Anexo da Portaria do Ministério do Meio Ambiente
Fora desses espaços ambientalmente protegidos, a supressão de vegetação nº 443/14, que constituem a Lista Nacional Oficial de
nativa para uso alternativo do solo deve respeitar o quanto disposto nos artigos 26 a 28 Espécies da Flora Brasileira Ameaçadas de Extinção.
do Novo Código Florestal, como a prévia autorização do órgão ambiental estadual e a Não apenas no Estado da Bahia, mas em todo
reposição ou compensação florestal. território nacional, a portaria proibiu a coleta, corte,
Por outro lado, a própria Lei nº 12.651/12 também prevê, em seu artigo 70, inciso transporte, armazenamento, manejo, beneficiamento
I, que o poder público poderá proibir ou limitar o corte das espécies da flora raras, e comercialização, estipulando uma proteção integral
endêmicas, em perigo ou ameaçadas de extinção, bem como das espécies necessárias às referidas espécies.
Apesar de ser um dos instrumentos da gestão
à subsistência das populações tradicionais, delimitando as áreas compreendidas no ato,
florestal do Estado da Bahia (artigo 3º, inciso V, do
fazendo depender de autorização prévia, nessas áreas, o corte de outras espécies. Jacarandá da Bahia (Dalbergia nigra) espécie
Decreto nº 15.180/14), a lista estadual de espécies
Repetindo regra prevista no artigo 7º da revogada Lei nº 4.771/65, o Novo Código ameaçada de extinção
Foto: Natália A. Coelho da flora raras, endêmicas e ameaçadas de extinção,
Florestal também dispõe que qualquer árvore pode ser declarada imune de corte,
ainda não foi elaborada.
mediante ato do poder público, por motivo de sua localização, raridade, beleza ou De qualquer forma, resta claro que mesmo que seja uma árvore nativa isolada,
condição de porta-sementes (artigo 70, inciso II). situada ou não em espaço ambientalmente protegido, não poderá ocorrer sua supressão
O ato do “poder público”, mencionado no artigo 70, pode ser emanado por qualquer se a espécie for ameaçada de extinção, se a espécie tiver sido proibida de corte pelo
poder público ou se a própria árvore tiver sido declarada imune de corte.
*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia.
**
Assistente técnico-administrativo colaboradora da Unidade de Informações Ambientais do CEAMA. Superadas essas limitações, outra questão a ser enfrentada diz respeito ao próprio
***
Assistente técnico-administrativo colaboradora da Unidade de Informações Ambientais do CEAMA conceito de árvore isolada, já que se estivermos tratando de uma floresta, necessariamente
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ÁRVORES NATIVAS ISOLADAS: PRESERVAÇÃO E POSSIBILIDADE DE CORTE ÁRVORES NATIVAS ISOLADAS: PRESERVAÇÃO E POSSIBILIDADE DE CORTE

o seu corte, supressão e manejo deverão passar pelas regras previstas no Novo Código A distinção, inclusive, tem consequências no direito penal, pois o artigo 38
Florestal, na Lei de Proteção da Mata Atlântica ou, tratando-se de floresta pública, na Lei da Lei nº 9.605/98 define como crime, destruir ou danificar floresta considerada
nº 11.284/06. de preservação permanente, enquanto que o artigo 39 da mesma Lei tipifica a
conduta de cortar árvores em floresta considerada de preservação permanente,
sem permissão da autoridade competente.
Analisando a questão, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que
O elemento normativo ‘floresta’, constante do tipo do injusto do
artigo 38 da Lei 9605/98, é a formação arbórea densa, de alto
porte, que recobre área de terra mais ou menos extensa. O
elemento central é o fato de ser constituída por árvores de grande
porte. Dessa forma, não abarca a vegetação rasteira (STJ, Habeas
corpus nº 74.950/SP, rel. Min. Felix Fischer, j. em 21/06/2007).

Sobre o conceito de árvore, ao discorrer sobre o delito previsto no artigo 39,


Foto: Lausanne S. Almeida da Lei nº 9.605/98, Luciano Taques Ghignone cita Carlos Ernani Constantino, para
quem:
Ana Luiza Dolabela de Amorim Mazzini, em seu Dicionário Educativo de Termos a expressão ‘árvore’ é empregada, aqui, no sentido amplo e
Ambientais, define floresta como a vegetação cerrada, constituída de árvores de grande genérico, ou seja: toda a planta lenhosa, cujo caule se ramifique a
porte, cobrindo grande extensão.¹ No sítio eletrônico do Serviço Florestal Brasileiro, maior ou menor altura do solo, constitui-se em objeto material do
afirma-se que “cotidianamente, denomina-se ‘floresta’ qualquer vegetação que apresente presente delito, desde que se encontre em floresta considerada
predominância de indivíduos lenhosos, onde as copas das árvores se tocam formando de preservação permanente. 6
um dossel.” ²
Na falta de um conceito legal, poderíamos nos valer, ainda, de denominações A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo – CETESB possui interessante
existentes no âmbito internacional. Para a FAO (Organizações das Nações Unidas para balizamento para a questão. A decisão de diretoria nº 287/2013/V/C/I, de 11 de
Agricultura e Alimentação), que leva em conta aspectos de uso e ocupação do solo, são setembro de 2013, dispõe sobre o procedimento para a autorização de supressão
utilizados os termos e definições da Avaliação Global dos Recursos Florestais, que define de exemplares arbóreos nativos isolados.
floresta como a área medindo mais de 0,5 hectares com árvores maiores que 5 metros Em seu artigo 2º, os exemplares arbóreos nativos isolados foram conceituados
de altura e cobertura de copa superior a 10%, ou árvores capazes de alcançar estes como aqueles situados fora de fisionomias vegetais nativas, sejam florestais ou de
parâmetros in situ. Isso não inclui terra que está predominantemente sob uso agrícola ou Cerrado, cujas copas ou partes aéreas não estejam em contato entre si, destacando-
urbano. ³ se da paisagem como indivíduos isolados.
A UNFCC (Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), A referida decisão ainda estipula que a autorização para supressão será para,
que trata de florestas no aspecto de mudanças climáticas, trata como floresta uma área no máximo, 15 exemplares arbóreos nativos isolados por hectare. Isso após um
de no mínimo 0,05 – 1,0 hectare com cobertura de copa (ou densidade equivalente) de levantamento detalhado feito pelo interessado, com identificação das espécies,
mais de 10-30% com árvores com o potencial de atingir a altura mínima de 2-5 metros altura do fuste, indicação das coordenadas geográficas, fotos e outras informações
na maturidade in situ. Uma floresta pode consistir tanto de formações florestais fechadas pertinentes, além da recomposição de acordo com o número de exemplares do
(densas), onde árvores de vários estratos e suprimidas cobrem uma alta proporção do corte autorizado.
solo, quanto de florestas abertas. 4 Voltando ao Estado da Bahia, atualmente regendo o assunto, como mencionado
Como muito bem observado pelo Serviço Florestal Brasileiro, anteriormente, temos o artigo 36, §1º, do Decreto nº 15.180/14, que permite a supressão
por serem específicas para os fins para o qual foram criadas, essas de árvores isoladas, independentemente de licenciamento ambiental ou autorização. No
definições não conseguem abranger a complexidade das florestas no entanto, diante da falta de regulamentação do assunto por parte do INEMA, que deverá
Brasil. Nem todas as tipologias florestais e ecossistemas peculiares, trazer o conceito de exemplar arbóreo nativo isolado e parâmetros para a sua supressão
como Cerrado e Caatinga, não necessariamente preenchem os a exemplo do que fez a CETESB, o corte de árvores nativas isoladas na Bahia deve
requisitos das definições anteriores para serem consideradas florestas5 ser realizado com extrema cautela e apenas após consulta formal ao órgão ambiental
estadual.
¹ DICIONÁRIO Educativo de Termos Ambientais. Belo Horizonte, 5ª edição, 2011, p.259.
2
http://www.florestal.gov.br/snif/recursos-florestais/definicao-de-floresta. Acesso em: 25mar. 2015. 5
http://www.florestal.gov.br/snif/recursos-florestais/definicao-de-floresta. Acesso em: 25 mar. 2015.
³ Forest Resources Assessment Working Paper. Disponível em: < http://www.fao.org/docrep/017/ap862e/ 6
BAHIA. Ministério Público do Estado. Manual Ambiental Penal: comentários à lei 9.605/98. Decisões judiciais,
ap862e00.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2015. roteiros práticos, modelos de peças. Salvador: Ministério Público do Estado da Bahia, Núcleo Mata Atlântica,
http://unfccc.int/cop7/documents/accords_draft.pdf. Acesso em: 30 mar.2015.
4
2007. p.161-162.
REVISTA DO MPBA 370 371 REVISTA DO MPBA
Não é demais relembrar que, mesmo quando editado o ato do INEMA, devem
ser observadas as regras materiais mínimas sobre o assunto, isto é, impossibilidade de
supressão se a árvore tiver sido declarada imune de corte ou, ainda, se a espécie constar
das listas oficiais como ameaçada de extinção ou tiver sido proibida de corte pelo poder
público.

REFERÊNCIAS

DICIONÁRIO Educativo de Termos Ambientais. Belo Horizonte. 5. d. 2011, p.259.

http://www.florestal.gov.br/snif/recursos-florestais/definicao-de-floresta. Acesso em: 25


mar. 2015.

FOREST Resources Assessment Working Paper. Disponível em: <http://www.fao.


org/docrep/017/ap862e/ap862e00.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2015.

http://unfccc.int/cop7/documents/accords_draft.pdf. Acesso em: 30 mar. 2015.

htpp://www.florestal.gov.br/snif/recursos-florestais/definicao-de-floresta. Acesso em: 25


mar. 2015.

BAHIA. Ministério Público. Núcleo Mata Atlântica. Manual Ambiental Penal:


comentários à lei 9.605/98. Decisões judiciais, roteiros práticos, modelos de
peças. Salvador: 2007. p.161-162.

REVISTA DO MPBA 372

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