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TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE: o

olhar da Gestalt Terapia

Luciane GUISSO1

Ana Carla FABRO2


1
Mestranda em Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Psicóloga.
lucianeguisso@yahoo.com.br
2
Especialista em Gestalt Terapia pelo Comunidade Gestáltica (Florianópolis-SC), Psicóloga Clínica.
anacarlafabro@gmail.com

Recebido em: 08/05/2016 - Aprovado em: 22/08/2016 - Disponibilizado em: 18/12/2016

RESUMO:
O objetivo deste artigo é apresentar teoricamente como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
(TDAH) vem sendo compreendido na Psicologia, sob o viés da Gestalt Terapia, que concebe o homem como
um ser inerentemente relacional e que se constrói a partir de seu existir com o mundo e com o outro. Destaca-
se que, atualmente, o TDAH tem sido amplamente discutido, seja pela comunidade acadêmica, bem como
pela sociedade de um modo geral. Uma vez que o número de “diagnósticos” tem aumentado em níveis
alarmantes, diversos questionamentos têm sido realizados em torno do que realmente caracteriza este
transtorno e suas formas de tratamento. Só um jeito de ser e/ou uma construção cultural e social? O TDAH
tem mobilizado esforços e discussões em torno dos modelos tradicionais de tratamento, principalmente o
medicamentoso. Assim, a psicoterapia tem se apresentado enquanto possibilidade de intervenção que auxilia
no olhar mais abrangente em torno do diagnóstico, contemplando a expressão do sujeito enquanto ser único
que reflete comportamentos aprendidos socialmente. A Gestalt Terapia tem sido uma possibilidade de
trabalho com crianças e adolescentes diagnosticados com TDAH. Esta abordagem compreende o TDAH
enquanto um aspecto apresentado pelo sujeito em sua totalidade. Na prática clínica, o terapeuta busca
juntamente com o sujeito e a família conhecer as formas de contato interrompidas na sua vida, visando
promover o seu desenvolvimento de potencialidades e awareness através do contato no campo.
Palavras-chave: Déficit de atenção; hiperatividade; transtorno; Gestalt terapia; Psicologia.

ABSTRACT:
The aim of this article is to theoretically present how the Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD)
has been understood in Psychology under the bias of Gestalt Therapy, which conceives humans as being
inherently relational and constructed from their existence with the world and with each other. It is highlighted
that, currently, ADHD has been widely discussed, both by the academic community and by society in general.
Since the number of "diagnostics" has increased at an alarming rate, several questions have been made around
what really characterizes this disorder and its treatment forms. Just a way of being and/or a cultural and social
construction? ADHD has mobilized efforts and discussions around traditional treatment models, mainly the
one with medications. This way, psychotherapy has been presented as a possibility of intervention which
helps in the wider look around the diagnosis, contemplating the expression of the subject as a unique being
that reflects socially learned behaviors. Gestalt therapy has been a possibility of working with children and
adolescents diagnosed with ADHD. This approach comprises ADHD as an aspect presented by the subject in
its totality. In clinical practice, the therapist seeks, along with the subject and family, to know the contact
forms interrupted in their lives, aiming to promote their potential and awareness development through contact
in the field.
Keywords: Attencion deficit; hyperactivity; disorder; Gestalt therapy; Psycology.

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Introdução Muitos autores, como Moysés &

O Transtorno de Déficit de Collares (2013), apontam que se vive

Atenção e Hiperatividade (TDAH) tem em um momento da medicalização dos

sido bastante estudado e discutido pelos “supostos transtornos de

diversos segmentos da sociedade. Cada aprendizagem”. A medicalização

vez mais o debate em relação à corresponde à transformação de

perspectiva médica∕biologicista, que questões de ordem cultural, social,

historicamente tentou explicar o “dito econômica em cunho individual. Assim,

transtorno”, vem sendo ampliada. Tem- comportamentos como os descritos

se buscado desmistificar os enquanto característico do TDAH são

comportamentos próprios da idade em entendidos como características

crianças e adolescentes, bem como os individuais do sujeito. Pouco se olha

aqueles compreendidos como para o contexto ensino∕aprendizagem

característicos do TDAH. enquanto mais um fator que pode

As estatísticas apontam para um contribuir para eminência dos

aumento exacerbado de diagnósticos de comportamentos identificados e

TDAH nos últimos anos juntamente relacionados ao TDAH.

como a indicação medicamentosa. No Deste modo, este artigo tem por

Brasil, segundo os dados do Boletim de objetivo apresentar teoricamente como

Farmacoepidemiologia da Agência o TDAH vem sendo compreendido na

Nacional de Vigilância Sanitária Psicologia, sob o viés da Gestalt

(ANVISA, 2013), o consumo do Terapia. Esta abordagem tem como

medicamento metilfenidato (Ritalina), pressuposto epistemológico a

utilizado no tratamento deste transtorno, perspectiva fenomenológica∕existencial,

aumentou 75% em crianças com idade que compreende o homem como um ser

de 6 a 16 anos, entre os anos de 2009 e relacional que se constrói no contato

2011. Percebe-se, portanto, uma notória com o meio, além de apresentar uma

“banalização de tal transtorno”, que se visão holística de doença.

reflete nos índices cada vez maiores de


diagnósticos, sobretudo, por Contextualizando o TDAH
negligenciarem o contexto relacional do Atualmente tem-se verificado
estudante identificado com transtorno um aumento considerável no número de
de atenção e/ou concentração. diagnósticos relacionado os transtornos

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de aprendizagem na infância. Destaca- movimentação corporal na realização de
se que o TDAH, de forma geral, atividades ou mesmo quando está
“caracteriza-se por distúrbios motores, parada. Ela pode balançar pés e pernas
perceptivos, cognitivos e excessivamente, mudando a posição
comportamentais, expressando corporal quando sentada. Percebe-se
dificuldades globais do que “aparentemente, não tem domínio
desenvolvimento infantil” (ANTONY; sobre seu corpo (é o corpo que a
RIBEIRO, 2004, p. 127). domina), e suas ações parecem
Nas diversas observações e involuntárias, manifestando um
estudos do TDAH, pais e professores desencontro entre o sentir e o pensar”
comentam que as crianças “são capazes (ANTONY; RIBEIRO, 2005, p. 192).
de se concentrarem horas em uma Esse transtorno afeta cerca de 8
atividade que apreciam e em que são a 12% das crianças no mundo. Os dados
habilidosas (videogame, pintar, do “Centro de Controle e Prevenção de
desmontar carrinhos) e que prestam Doenças (CDC) dos Estados Unidos, de
atenção em tudo e em todos, mas são 2007, indicam que aproximadamente
incapazes de se concentrar nas aulas e 9,5% (5,4 milhões) de crianças e
tarefas escolares” (ANTONY; adolescentes americanos de 4 a 17 anos
RIBEIRO, 2005, p. 189). tinham TDAH” (BRASIL, 2012, p. 01).
A criança mostra interesse por No Brasil, estudos apontam que o
situações ou objetos e “faz uso das transtorno atinge de 3% a 5% da
funções da atenção (discriminar, população. É mais comum em meninos
selecionar, fixar) e confirma que o ato (9%) com sintomas de hiperatividade do
da atenção não é puramente cognitivo, que em meninas (3%), que apresentam
mas depende de fatores motivacionais e mais sintomas de desatenção (ROHDE
afetivos subjacentes que interferem na et al., 2000).
escolha dos objetos” (ANTONY; Em muitos casos, o TDAH vem
RIBEIRO, 2005, p. 189). sendo tratado medicamentosamente,
A hiperatividade é uma com o metilfenidato. A justificativa é
característica marcante do TDAH, que, “esse medicamento, sujeito a
sendo que a criança expressa ampla prescrição médica, promove um

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aumento da atenção e do controle de mesmo decorre de práticas de ensino
impulsos de crianças que apresentam que não contemplam o olhar para a
TDAH” (BRASIL, 2012, p. 01). singularidade presente no contexto da
Embora não existam estudos sala de aula. Conforme Antony e
conclusivos sobre a etiologia orgânica Ribeiro (2008, p. 218), “o problema
do TDAH, há a presença de reside no fato que omite ou dá
controvérsias sobre o uso da medicação. insuficiente atenção às questões social,
Tem-se questionado a “crença (...) que política, econômica, psicológica e
apregoa que várias formas de educacional que circundam este termo
sofrimento, de mal-estar, de transtornos desde o seu início”.
psíquicos têm causas
orgânico∕genéticas, devendo ser tratadas A Gestalt Terapia e a visão de
e curadas pelas práticas homem
médico∕psiquiátricas medicamentosas
No viés gestáltico, o homem é
(LEGNANI; ALMEIDA, 2009, p. 16).
visto como um ser de infinitas
Nos estudos que procuram
potencialidades para crescer e se
encontrar uma causa biológica
desenvolver, estando diariamente em
específica para o TDAH, fica claro que
construção e, portanto, inacabado. É
“evidências conclusivas de lesão ou
sempre “algo que pode vir a ser outra
disfunção neurofisiológica são pouco
coisa num momento seguinte; o homem
substanciais e continuam incertas”
é um constante vir a ser, é um ser em
(ANTONY; RIBEIRO, 2005, p. 127).
processo” (AGUIAR, 2005, p. 44).
Dessa forma, explicações simplistas e
Também é visto enquanto unidade
explicações unicausais são fadadas ao
indivisível e um ser inerentemente
fracasso, uma vez que o distúrbio tem
relacional, que se constrói e se
sido visto de forma cada vez mais
reconstrói a cada instante a partir de seu
complexa e multidimensional.
existir com o mundo e com o outro, o
Salienta-se que é fundamental
que estabelece um campo
compreender o contexto da criança, pois
organismo∕ambiente (ALVIM;
muitas vezes os sintomas são reflexos
BOMBEN; CARVALHO, 2010).
de uma situação familiar conflitiva ou

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Esse campo “constitui uma GOODMAN, 1951). Para esses autores,
unidade indissociável, uma totalidade “o contato é awareness da novidade
cujo significado emerge das inter- assimilável e comportamento com
relações entre as partes que compõem relação a esta; e rejeição da novidade
um dado todo. Tudo está interligado, inassimilável. O que é difuso, sempre o
tudo depende de um outro todo” mesmo, ou indiferente, não é um objeto
(ANTONY; RIBEIRO, 2008, p. 22). de contato” (PERLS; HEFFERLINE;
Assim, qualquer ação da pessoa no GOODEMAN, 1951, p. 44). Já a
campo não vem separada do contexto e awareness é a “tomada de consciência
todas as suas vivências e experiências se global no momento presente, atenção ao
organizam em uma teia de conjunto de percepção pessoal, corporal
relacionamentos que se interpenetram, o e emocional, interior e ambiental,
que difere da noção de causa e efeito. consciência de si e consciência
Compreende-se que a pessoa existe a perceptiva” (GINGER; GINGER, 1995,
partir das relações estabelecidas com p. 254). Correspondem ao processo de
seu mundo e com os outros. A dar-se conta do que faz e como se sente
integração da pessoa e do mundo se dá no momento presente.
por meio dos processos de ajustamento Quando as funções de contato
criativo. Esses resultam ou são uma são fluídas no campo, a pessoa irá
capacidade do homem de satisfazer as realizar contatos mais plenos com o
suas necessidades conforme as ambiente, de forma a suprir as suas
possibilidades no campo próprias demandas. É um fluxo livre de
organismo∕ambiente. formação e fechamento de figuras, que
Dois conceitos são fundamentais ocorre em um processo de contato e
dentro desta abordagem: contato e awareness, o que leva a autorregulação
awareness. Contato corresponde a organísmica. Mas se as funções de
experiência na fronteira entre o “eu” e o contato estiverem “bloqueadas ou
“não-eu”; é algo dinâmico, seletivo e distorcidas, certamente o contato (...)
criativo. Verifica-se que todo contato é com o mundo, com o outro e consigo
ajustamento criativo do organismo e mesmo se apresentará diminuído”
ambiente (PERLS; HEFFERLINE; (AGUIAR, 2005, p. 109). Neste caso,

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ocorrem as interrupções de contato e a mais presentes de interrupção de
pessoa se torna incapaz de alterar suas contato nas crianças, bem como nos
técnicas de manipulação e interação adolescentes e adultos. São elas:
com o meio (PERLS, 1988), introjeção, confluência, retroflexão,
ocasionando gestalten “abertas e deflexão e projeção.
necessidades não satisfeitas, o que gera Na introjeção o mundo é
desequilíbrio no funcionamento natural incorporado pela criança por meio da
do organismo” (ANTONY; RIBEIRO, assimilação, o que representa a forma
2008, p. 222). Para Frazão (1997, p. saudável de introjetar. Esse movimento
68), “a „awareness‟ será empobrecida, é fundamental para a construção das
levando a formas de contato fronteiras de contato iniciais da criança,
disfuncionais”. uma vez que esta necessita desta
A exposição constante da pessoa referência para organizar-se. Quando as
a situações de angústia e tensão necessidades do outro são vistas como
provocam bloqueios em seu contato únicas certezas, ocorre a inversão dos
com o meio. Esses bloqueios “são afetos: a criança experimenta a
mecanismos psicológicos com funções substituição do seu excitamento
defensivas que visam inibir a genuíno (sua necessidade) pela figura
consciência de sentimentos, do outro. A criança percebe que “dizer
pensamentos, comportamentos que não ao mundo significa desagradar às
geram ansiedade e colocam em risco a pessoas em alguns momentos, quebrar,
relação com o outro significativo” regras e não ser totalmente querida em
(ANTONY; RIBEIRO, 2008, p. 222). outros momentos” (AGUIAR, 2005, p.
Compreende-se que as interrupções de 111).
contato são também formas pelas quais Na confluência, a criança
as pessoas garantem a sua entende-se como extensão da sua mãe.
sobrevivência. Por outro lado, sabe-se Nesse tipo de relacionamento há
que as situações inacabadas que ausência de fronteira de contato, sendo
permanecem dificultam a realização de que a criança não tem um espaço para
contatos saudáveis. A seguir serão demonstrar suas reais necessidades
abordadas, resumidamente, as formas (AGUIAR, 2005). Neste caso, está

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disfuncional e não se reconhece, menina que diz que a irmã mais nova
afastando-se de si mesma. faz pipi na cama, ou o menino que diz
Referente à retroflexão, a que o coleguinha da escola é muito
criança acaba retornando para si própria bagunceiro” (AGUIAR, 2005, p. 113).
a energia que gostaria de ter aplicado no Por temer a punição e a crítica, não
outro ou que o outro lhe aplicasse. assume a responsabilidade de suas
Essas crianças, geralmente, apresentam ações (ANTONY, 2006).
doenças que não possuem “retorno Para a Gestalt Terapia, pensar
médico eficaz”, pois “na ausência de em “saúde” é falar de autorregulação
palavras e de formas permitidas de se organísmica. “Contato é saúde. Saúde é
expressarem no mundo, elas voltam contato em ação. Qualquer interrupção
para o seu corpo aquilo que percebem do contato implica uma perda na saúde”
como não tendo saída” (AGUIAR, (RIBEIRO, 1997, p. 53). Deste modo,
2005, p. 113). os comportamentos repetitivos e
Outra interrupção de contato é a estereotipados levam a criança ao
deflexão. A criança parece não “dar processo de adoecimento. Para Antony
importância ou reconhecimento” ao que e Ribeiro (2004, p. 193), a “doença
está ocorrendo. Ela emite significa bloqueios do contato
comportamentos de “fazer de conta” originados por mecanismos
que não é com ela que a palavra ou ação psicológicos com funções defensivas
está sendo dirigida, ou muda de assunto que visam inibir a consciência de
ou então afirma não saber. Para Antony sentimentos, pensamentos,
(2006), a criança deflete por não tolerar comportamentos que geram ansiedade e
ataques ao seu eu e por não conseguir colocam em risco a relação com o outro
lidar com as tensões do mundo adulto. significativo”. No olhar gestáltico,
E por fim, na projeção a criança portanto, adoecer é um processo que
aponta no outro particularidades de sua resulta de uma não harmonia relacional
personalidade que muitas vezes não entre organismo e ambiente. A “doença
consegue aceitar em si própria. Ou seja, é relacional. Não existe doença em si.
“elas nos falam de seus sintomas Doença é fenômeno como processo;
apontando-os em outras crianças: a como dado, existe em alguém, e não

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como realidade em si mesma" Estudos no enfoque da Gestalt
(RIBEIRO, 1997, p. 36). Terapia com crianças identificadas com
TDAH apontam que elas “respondem
Gestalt Terapia e TDAH ao mundo com hiperatividade,
As mudanças que vêm hiperatenção e hiperemotividade, como
ocorrendo ao longo dos anos em nossa uma totalidade em ação. (...) estas
sociedade refletem nos processos de crianças e jovens não aceitam os
atenção e hiperatividade. Certamente o modelos rígidos e métodos
contexto em que as crianças da década padronizados de ensino impostos pelas
de 60 estavam inseridas é diferente das escolas e famílias” (ANTONY;
crianças de hoje. Cada vez mais as RIBEIRO, 2008, p. 25).
crianças atuais têm suas agendas Dessa forma, a instabilidade
completas de atividades extraclasses, motora aparece como figura
permanecendo a maior parte do seu psicomotora de um fundo
tempo em ambientes fechados e desorganizado em que a hiperatividade
protegidos, restando quase nada de mostra-se como um sintoma em sua
tempo para as brincadeiras ao ar livre. A aparência, e, como todo o sintoma,
sociedade tem demandado uma atenção representa uma forma de defesa
focalizada em um mundo que (AJURIAGUERRA; MARCELLI,
predomina a atenção dispersa e 1986). O fundo desorganizado
flutuante. Assim, pode-se refletir sobre representa uma forma encontrada pela
o TDAH a partir da análise do campo, criança “hiper” de apropriar-se do
sua evolução histórica e o processo de mundo, de seu corpo e estabelecer
desenvolvimento de cada criança contato.
através de suas experiências de contato. Podem-se compreender os
Na Gestalt Terapia, o TDAH é sintomas do TDAH a partir do
compreendido como um problema de mecanismo de autorregulação, isto é,
limite de contato, ou seja, o indivíduo como uma tentativa da criança de
tem dificuldades de manter contato interagir com o mundo e lidar com as
saudável com alguém ou algo demandas do meio nos dias de hoje.
(OAKLANDER, 2008). Segundo Lázaro (2015, p. 24), nessas

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tentativas o que a criança “consegue uma harmonia organística,
manifestar é sua falta de controle manifestando-se insatisfeita. Ela vive
através do corpo, indicando uma “um processo interminável de busca da
desarmonia entre o sentir, o pensar e o própria auto-regulação, onde a
agir”. Essa autora traz em seu estudo a hiperatividade e a desatenção disfarçam
compreensão de que o TDAH está no a condição essencial da síndrome que
campo, no ritmo acelerado da sociedade reflete uma busca alienada de objetivos
moderna, sendo que as crianças que e de sentido para a existência”
apresentam seus sintomas estão (ANTONY; RIBEIRO, 2004, p.195).
procuram se autorregular. No olhar de Oaklander (2008, p.197), os
Muitas vezes, as crianças sintomas do TDAH podem ser vistos
diagnosticadas com TDAH travam como “deflexiones, defesas e
“uma luta interna na qual tem de evitaciones de emociones”.
renunciar ao seu modo de ser, aos seus É importante ressaltar que as
movimentos, ao seu espaço, às suas crianças com TDAH possuem
necessidades, em troca de satisfazer as dificuldades de seguir regras e limites.
vontades e expectativas alheias, por não Dessa forma, compreende-se a
poder ser aquilo que é” (ANTONY; necessidade da construção
RIBEIRO, 2008, p. 221). conjuntamente com as mesmas de um
O excesso de excitação na trabalho envolvendo pensar rotinas e
criança mobiliza-a constantemente para limites mais claros, conforme cada
a ação, muitas vezes de forma idade. “Los niños se angustian em um
impulsiva. Com isso, “mantém um ambiente donde no hay estructura ni
contato superficial com as coisas, limites bien definidos, y al tratar de
trocando incessantemente o foco da librarse de este sentimiento, tienden a
atenção ou ação de um objeto a outro manifestar sus conductas”
prematuramente, sem manter a (OAKLANDER, 2008, p. 198).
continuidade até o fechamento da Ademais, crianças precisam ser
gestalt” (ANTONY; RIBEIRO 2004, p. auxiliadas a reconhecer seus próprios
195). Como não se satisfaz amplamente, sentidos, como: “mirar, escuchar, tocar,
a criança tem dificuldade em adquirir oler, saborear, moverse, hacer

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afirmaciones, expresar emociones, son saudável na criança para favorecer o
todas funciones de contacto” desenvolvimento de suas
(OAKLANDER, 2008, p.205), cujo potencialidades e awareness através de
objetivo está em fortalecer e integrar na seu contato no campo.
criança o sentido de si mesmo. Lázaro Acredita-se, dentro da
(2015) afirma que quando a criança tem perspectiva da Gestalt Terapia, que a
um bom sentido do eu, ela aceita o construção de novas formas de contato
poder e o controle de seus pais, por permite a criança de “assumir
outro lado é essencial que ela tenha responsabilidade por suas escolhas e
experiências de controle e poder, dentro ações, ser capaz de criar metas e
das limitações cabíveis, o que objetivos para dar sentido a sua vida,
proporciona à criança a sensação de saber hierarquizar suas necessidades
domínio e não de disputa de poder com para poder ajustar-se criativamente ao
seus pais. meio” (ANTONY; RIBEIRO, 2004, p.
Quando as funções de contato 196).
interrompidas são atualizadas, a própria
criança se reorganiza e reestrutura sua Considerações finais
forma de relação consigo e com o meio. O TDAH corresponde a um
A criança com TDAH que não está transtorno que tem passado por diversas
aware em relação ao seu corpo e definições ao longo dos anos. Sua
sentimentos necessita que pais, origem e causa são controversas entre as
professores e profissionais da saúde diferentes áreas científicas. Nas
envolvidos desenvolvam estratégias de crianças, o TDAH tende a ser percebido
intervenção que possibilite a mesma geralmente quando esta vai para a
novas experiências de contatos, visando escola. Os educadores, na maioria dos
sempre o processo e não o conteúdo. É casos, são os agentes que chamam as
focar na experiência da criança de se famílias e encaminham o estudante para
envolver com os sentidos e o corpo, o tratamento esperado.
proporcionando a ela novas formas de Ressalta-se que as críticas em
contato com a sua realidade. Deve-se relação à exacerbação de diagnósticos e
olhar para o que apresenta-se como indicação medicamentosa têm sido

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discutidas por vários setores da uma pessoa com infinitas
sociedade. Para a Gestalt Terapia, o potencialidades e que precisa ser
TDAH tem sido pensado enquanto uma entendida e aceita em sua forma
forma de contato do sujeito com o singular de ser e estar no mundo.
ambiente. Esta abordagem
fenomenológica/existencial compreende Referências
que os sintomas são tentativas de AGUIAR, L. Gestalt terapia com
adaptação da criança ao seu meio. O crianças: teoria e prática. São Paulo:
Livro Pleno, 2005.
terapeuta gestáltico busca juntamente
com a criança desenvolver outras AJURIAGUERRA, J.; MARCELLI, D.
Manual de psicopatologia infantil.
formas de autorregulação que supram as Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
necessidades dela no meio.
ALVIM, M. B.; BOMBEN, E.;
De um modo geral, espera-se CARVALHO, N. “Pode deixar que eu
que os profissionais da saúde e da resolvo!” – retroflexão e
contemporaneidade. Revista da
educação compreendam a ocorrência Abordagem Gestáltica, v.16, n.2,
dos fenômenos em sua totalidade, ou p.183-188, 2010.

seja, levando em conta os contextos ANTONY, S. A criança em


sociais, as novas tecnologias, os novos desenvolvimento no mundo: um olhar
gestáltico. IGT na Rede, v.3, n.4, 2006.
arranjos das relações, que estão
atrelados à subjetividade de cada ANTONY, S.; RIBEIRO, J. P. Criança
hiperativa: uma visão da gestalterapia.
criança antes de quaisquer diagnósticos. Revista Psicologia – teoria e pesquisa.
Significa discernir cada situação e v.20, n.2, p.127-134, 2004.

avaliar quais as estratégias de ______. Hiperatividade: doença ou


intervenção são necessárias. essência – um enfoque da gestalt-
terapia. Psicol. Cienc. Prof.,
Por fim, ressalta-se que o tema v.25, n.2, p. 186-197, 2005.
deste trabalho não se esgota aqui,
______. Compreendendo a
merecendo ampla discussão da hiperatividade: uma visão da Gestalt-
sociedade em relação às formas como Terapia. Revista Ciências Saúde, v.19,
n.3, p.215-224, 2008.
vem sendo percebido e entendido,
sobretudo no que concerne estabelecer ANVISA. Agência Nacional de
Vigilância Sanitária. Estudo aponta
um diagnóstico. Por detrás deste, existe crescimento no consumo do
metilfenidato. 2013. Disponível em

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