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Jafferian VHPORIGINAL

ARTIGO & Barone LMC

A construção e a desconstrução do
rótulo do TDAH na intervenção
psicopedagógica
Vera Helena Peres Jafferian; Leda Maria Codeço Barone

RESUMO – Este trabalho tem como objetivo discutir o efeito que o


diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)
pode ter sobre o sujeito e, também, como a intervenção psicopedagógica
pode contribuir para a desconstrução do rótulo, favorecendo o sujeito
a encontrar outro caminho que não seja a repetição do destino. Trata-
se de uma análise construtiva-interpretativa a partir de fragmentos de
atendimentos psicopedagógicos retrospectivos considerados em duas
dimensões. A primeira em relação às entrevistas iniciais com os pais,
professores e pacientes, enfatizando o efeito de destino do diagnóstico. A
segunda em relação à intervenção psicopedagógica, ressaltando o efeito
de desconstrução do rótulo. A análise dos dados sugere que o diagnóstico
tem o efeito de destino na vida do sujeito que fica sem autonomia e que,
com a intervenção psicopedagógica, o mesmo se desveste do rótulo e sai
do lugar que se encontrava.

UNITERMOS: Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade/


diag­nóstico. Transtornos de Aprendizagem. Criança.

Vera Helena Peres Jafferian – Pedagoga formada Correspondência


pela Universidade Paulista (UNIP/SP), especialista Leda Maria Codeço Barone
em Psicopedagogia Clínica e Institucional pelo Ins­ Programa de Pós-Graduação em Psicologia Educacio­
tituto Sedes Sapientiae/SP e Mestre em Psicologia nal – Centro Universitário FIEO
Educacional pelo Centro Universitário Fundação Ins­ Av. Franz Voegelli, 300 –Vila Yara – Osasco, SP, Brasil –
tituto de Ensino para Osasco (UNIFIEO). Atua em CEP: 06020-190.
consultório particular e como assessora em escolas, E-mail: ledabarone@uol.com.br
São Paulo, SP, Brasil.
Leda Maria Codeço Barone – Psicanalista pela So­
cie­dade Brasileira de Psicanálise (SBP/SP); Doutora
em Psicologia Escolar pela Universidade de São
Paulo (USP); Docente do Programa de Pós-graduação
em Psicologia Educacional do Centro Universitário
Fundação Instituto de Ensino para Osasco (UNIFIEO),
São Paulo, SP, Brasil.

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A construção e a desconstrução do rótulo do TDAH na intervenção psicopedagógica

INTRODUÇÃO autores referem-se às mudanças na família, à


Acima da responsabilidade, coloca-se a sofisticação do sistema de comunicação e ao
questão do sujeito ou aquilo que deter- alto número de crianças e jovens por sala de
mina o ser do sujeito. O que faz com que aula como sendo “alguns dos potenciais fatores
eu seja o que sou? Quais determinismos que podem contribuir para o desenvolvimento
constituíram o meu destino, qual o enca- de comportamentos de risco, os quais podem ser
deamento das causas das quais eu seria precipitadamente classificados em diagnósticos
o resultado?1 psiquiátricos”2.
O eixo de reflexão deste trabalho gira em tor-
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre
no de conceitos como “profecia autorrealizado-
o efeito do diagnóstico do Transtorno de Déficit
ra” estudada por Rosenthal & Jacobson3; “ganho
de Atenção e Hiperatividade (TDAH) sobre
secundário da doença” e de “exceção” propostos
o sujeito rotulado. Parte da hipótese de que o por Freud4,5 e toma a intervenção psicopedagó-
diagnóstico, muitas vezes, é percebido como um gica levando em conta o sujeito que aprende e
rótulo que marca o destino do sujeito. O trabalho não o sintoma. Dessa maneira, reiteramos que
pretende, ainda, refletir sobre o possível efeito o objetivo do trabalho é tão somente discutir o
do atendimento psicopedagógico na desconstru- efeito do diagnóstico sobre o sujeito e da inter-
ção do rótulo. Ele toma como objeto para estudo venção psicopedagógica como desconstrução do
fragmentos de atendimentos psicopedagógicos, rótulo, e não a discussão do diagnóstico.
retrospectivos, de crianças e adolescentes, aten­
didos em consultório, diagnosticados com TDAH. O TDAH: Percurso Histórico
Tais crianças e adolescentes, normalmente Desde o século XIX, segundo Ajuriaguerra6,
diag­nosticadas por psiquiatras, neurologistas se estuda a instabilidade psicomotora, que é um
e pediatras, são encaminhados para avaliação dos sintomas presentes hoje no TDAH. Esse tema
e tratamento psicopedagógico. E, geralmente, recebeu várias denominações ao longo do tempo,
a queixa de pais e professores é de que tais tais como síndrome da criança com lesão cere-
pa­cientes têm dificuldades de atenção, não se bral, síndrome da criança hiperativa, disfunção
interessam pelas atividades escolares, são de- cerebral mínima, agitação e, mais recentemente,
sorganizados com seu material, além de serem transtorno de déficit de atenção e hiperativida-
agitados. E, normalmente, relatam que tudo isto de. O mesmo autor relata, ainda, que o termo
que acontece com seus filhos e alunos é resul- “Disfunção Cerebral Mínima (DCM)” foi criado
tado do TDAH. após várias discussões, sendo criticado por sua
Por outro lado, tais crianças e adolescentes natureza controversa e imprecisa, embora tenha
relatam que a escola é chata, que não querem sido muito utilizado e aberto caminho para as
fazer lição de casa e que gostam de jogar no terapias farmacológicas, especialmente com o
computador. Tudo isso indicando que deve haver uso do metilfenidato6.
alguma divergência entre a observação de pais Atualmente, como observam Leonardi et al.7,
e professores com a das crianças e adolescentes o TDAH é o transtorno psiquiátrico mais comum
a respeito do problema. na infância, “cuja prevalência situa-se entre 3%
Na mesma linha desta observação, Santos & a 13% em crianças com idade escolar, sendo
Vasconcelos2 comentam que a alta frequência mais frequente em membros do sexo masculino”.
dos diagnósticos de TDAH tende a conduzir a Segundo os mesmos autores, o TDAH se carac-
uma reflexão crítica do processo de avaliação e teriza por desatenção, distração, hiperatividade
intervenção no acompanhamento de crianças e e impulsividade e, por isso, é um dos principais
adolescentes no sistema de educação, nas prá- problemas observados na criança no processo
ticas educativas e na família. Ainda, os mesmos pedagógico nos últimos dez anos.

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Barkley & Murphy8 afirmam que TDAH é CID-10, define os critérios para o TDAH sob o
“o termo atual para designar um transtorno de- termo Transtorno Hipercinético13.
senvolvimental específico, observado tanto em Na publicação do DSM-V12, os critérios diag­
crianças quanto em adultos, com os sintomas nósticos do TDAH são similares aos do manual
de déficits na inibição comportamental, atenção anterior DSM-IV-TR14 e foi mantida a mesma
sustentada e resistência à distração”. lista de dezoito sintomas, divididos entre de-
Desde o DSM-II, o Manual de Diagnóstico e satenção, hiperatividade e impulsividade. Im-
Estatística das Perturbações Mentais – DSM, 2ª portante destacar que os pacientes com idade
edição, desenvolvido pela Associação Americana máxima de 17 anos têm que apresentar até seis
de Psiquiatria (APA)9, começou a se falar em dos sintomas listados no DSM-IV-TR e, os mais
hiperatividade, e na época, como era vigente a velhos, até cinco sintomas. Quanto à exigência
hipótese do transtorno da Disfunção Cerebral no manual anterior que os sintomas estivessem
Mínima (DCM), o mesmo foi classificado pela presentes até os 7 anos de idade, foi alterada
primeira vez nesse manual como “Reação Hiper- para os 12 anos no atual DSM-V, tendo em vis-
cinética da Infância”, enfatizando o papel da Hi- ta as mudanças comportamentais que podem
peratividade na DCM. Na 3ª edição do DSM10, ocorrer e que podem ser confundidas com esse
o DSM-III, surge o termo Distúrbio de Déficit transtorno de hiperatividade.
de Atenção (DDA), e na 4ª edição11, o DSM-IV,
foram separados os critérios de déficit de atenção A Literatura sobre o TDAH
dos critérios de hiperatividade e impulsividade, Na literatura, há muitos trabalhos escritos
e o distúrbio foi caracterizado como transtorno. sobre o TDAH, de diferentes teóricos, com di-
Recentemente, na 5ª edição do DSM12, o versas posições e informações a respeito, como
DSM-V, a Associação Americana de Psiquiatria Reis & Santana15, que fizeram um levantamen-
(APA) usou o termo ADHD (TDAH em portu- to bibliográfico de trabalhos de teóricos sobre
guês), como denominação dos “distúrbios de esse tema e relatam que alguns descrevem as
comportamento”, tendo em vista que as diretri- características do transtorno, outros teóricos
zes diagnósticas americanas, após várias revi- afirmam a não existência de tal transtorno por
sões de estudos a este respeito, denominaram o se tratar de uma forma de camuflar o problema
TDAH como um transtorno que parece provocar que está na escola ou em casa. As mesmas au-
uma alteração no comportamento e na capaci- toras concluem que, nos diferentes trabalhos
dade de manter a atenção. Desse modo, não se analisados, não há um consenso entre as várias
trata de uma disfunção. teorias citadas e que, por tudo isso, os debates
a respeito desse assunto devem ser sustentados,
O Diagnóstico por serem de grande relevância para a ciência e
O diagnóstico do TDAH é baseado nas ma- para um maior entendimento pela sociedade a
nifestações comportamentais dos pacientes, a respeito desse transtorno, o qual vem tomando
partir de critérios diagnósticos determinados grandes proporções, devido ao grande número
pelos Manuais de Diagnóstico e Estatístico das de crianças diagnosticadas.
Perturbações Mentais (DSM) desenvolvidos Segundo Reis & Santana15, no Brasil, estima-
pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), -se que há entre 5% e 8%, ou seja, de cada 20
atualmente na 5ª edição, o DSM-V lançado em crianças 1 tem TDAH.
201312. Há muitas crianças e adolescentes diagnos-
Há, também, diagnósticos que são basea- ticados com TDA e TDAH que são medicadas
dos na Classificação Internacional de Doenças com Ritalina (metilfenidato) e há diversos estu-
(CID), desenvolvido pela Organização Mun­ dos na literatura sobre essa medicação. Alguns
dial de Saúde (OMS), que em sua 10ª edição, o artigos que concordam com a prescrição do

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metilfenidato e sua eficácia, como as pesquisas conflitos que um aluno que não-aprende-na-­
de meta-análise realizadas com crianças, ado- escola gera”17.
lescentes e adultos com TDAH a curto e longo Assim se inicia um processo de rotulação
prazo (Schachter et al., 2001; Faraone et al., na vida dessas “crianças-que-não-aprendem”,
2004; Faraone et al., 2006 apud Leonardi et al.7). que pode vir a ser um destino na vida delas. E
E outros estudos que discordam do uso do me- o rótulo muitas vezes é atribuído rapidamente,
dicamento, como um dos trabalhos, que sugere tornando-se uma descrição exata dessa pessoa
a piora na impulsividade (Neef et al., 2005 apud e pode vir a ser um caminho sem volta, como
Leonardi et al.7). um destino, com danos que perduram na vida
No entanto, há na literatura trabalhos de do sujeito.
di­versos autores que vão trazer elementos para Como Oakes (apud Tauber21) observou “uma
pensar o sujeito com o diagnóstico de TDAH de vez que rotulamos uma pessoa, mudamos a nossa
outras maneiras e que sustentam argumenta­ opinião sobre esta pessoa. Isto afeta como nós
ções que serão abordadas neste artigo, como agimos e reagimos em relação a ela. Rotular é
Goldstein & Goldstein16, que propõem um diag­ fácil. Nós não temos como conhecer a pessoa. Nós
nóstico baseado na história de vida do sujeito apenas supomos como a pessoa é”. Essa forma
e que não o rotule; Leonardi et al.7 que, numa de pensar está na base do preconceito porque
abordagem comportamental, argumentam quando não se conhece bem alguém não se pode
sobre a etiologia desse transtorno, bem como saber o porquê de suas atitudes. Como quando
os aspectos dos comportamentos dos sujeitos um aluno que não presta atenção na aula e não
diagnosticados com TDAH; Moysés17 discute faz lições, muitas vezes, é visto pelo professor
os dados obtidos nas suas pesquisas realizadas como desinteressado e assim será tratado como
com “crianças-que-não-aprendem”. A partir tal, não mostrando suas capacidades.
da Psicanálise, Crochik & Crochick18 abordam
esse transtorno como produto da cultura em que A Profecia Autorrealizadora, o Ganho Se-
vivemos; Janin et al.19 discorrem sobre o TDAH cundário e a Exceção
e suas implicações na vida das crianças e pro- Na literatura, encontramos os estudos refe-
põem, com base em sua prática clínica, interven- rentes à “profecia autorrealizadora” (selffulfilling
ções que possibilitem a construção da autonomia prophecy), de Rosenthal & Jacobson3, que, por
desses sujeitos rotulados, e, finalmente, Levin20 meio das pesquisas realizadas com professores
argumenta sobre a hiperatividade da criança e alunos, mostram como a expectativa que o
enquanto possibilidade de ser olhada pela mãe. professor tem de seu aluno vai influenciar o ren-
dimento escolar deste sujeito nas situações esco-
O Rótulo lares e sociais. Assim, a partir do que o professor
Na pesquisa realizada com “crianças-que- espera de seu aluno, é o que será mostrado por
-não-aprendem”, Moyses17 analisa a forma como ele. Os mesmos autores, em sua pesquisa deno-
essas crianças são diagnosticadas como porta- minada “Efeito Pigmalião”, mostram, ainda, que
doras de alguma doença e que, por isso, serão o comportamento das pessoas é determinado por
rotuladas e serão reféns de doenças inexistentes regras e expectativas que podem prever como as
e de fracassos que não são seus. A mesma autora pessoas vão se comportar em dada situação. E, a
sugere que: “feito um diagnóstico, como em um partir desse comportamento que se repetirá em
passe de mágica, cessam as pressões, como se o várias situações faz com que, naturalmente, esse
diagnóstico bastasse, prescindindo do tratamen- sujeito seja rotulado por quem convive com ele,
to. O diagnóstico não é bastante para resolver o e esse rótulo poderá ocupar o lugar de destino
problema, porém é suficiente para acalmar os em sua vida.

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O conceito de profecia autorrealizadora, se- do conhecimento, mas sim do sujeito em sua


gundo Tauber21 foi usado pela primeira vez por complexidade. A aprendizagem acontece to-
Merton22, que estudou como a influência sobre mando em conta a criança, a atividade que faz
algo que se diz faz com que aconteça. E o mesmo e o psicopedagogo em diferentes momentos do
autor chama a atenção sobre a importância de processo. O psicopedagogo atua como mediador
se saber o que é essa profecia, sua definição e entre o aluno e a cultura na circulação do conhe-
de como esse “efeito Pigmalião” pode refletir na cimento, não ficando no lugar de autoridade. A
vida das pessoas. criança tem que saber que o professor sabe, mas
Dessa maneira, é importante que o profes­sor ela tem que ser a autora de seu saber.
esteja atento aos seus alunos para não criar expec- Para Pain23, aprendizagem se dá como proces-
tativas falsas baseadas em alguns comportamen- so de apropriação construtiva do conhecimento
tos deles, pois o aluno será visto pelo professor através das trocas humanas, e que ao aprender
como parece ser e não como é, assim poderá ficar reconhecemos o outro como possuidor de um
num lugar sem autonomia. As consequências saber. Mas para o sujeito adquirir esse conhe-
para esses alunos podem ser irreversíveis, mo- cimento do outro dependerá da confiança e do
dificando seu modo de se expressar socialmente vínculo que se constrói a cada encontro. Sendo
e cognitivamente. que o psicopedagogo trabalha com a aprendi-
Outra maneira de ver a questão vem da Psi- zagem, e não na transmissão do saber, assim a
canálise, no texto “as exceções” em que Freud4 partir da relação estabelecida entre paciente e
coloca que o sujeito, por apresentar alguma de- psicopedagogo o sujeito que não aprende poderá
ficiência ou má formação, culpa a natureza pelos expressar, pela linguagem, dos atos falhos e das
seus males, considerando-se assim uma exceção. associações livres, suas angústias e desejos nas
Por isso, aspira ser tratado como um eu ideal e sessões psicopedagógicas. Segundo Kupfer24,
merecedor de todas as regalias, aproveitando-se “os atos falhos são pequenas manifestações que
dessa situação mesmo que não seja construtiva emergem em nossa fala, às quais não se cos-
em sua vida. Conforme Freud cita, “sem dúvida tuma dar muita informação”. Nesse papel de
é verdade que cada um gostaria de se considerar mediador, o psicopedagogo poderá despertar no
uma exceção e reivindicar privilégios em relação paciente o desejo de aprender e de conhecer o
aos demais”4. Num outro texto sobre “o ganho novo. Pretende-se, assim, que o sujeito comece a
secundário da doença”, Freud5 defende que, se arriscar mostrando-se nas suas possibilidades
apesar da dificuldade que a doença traz, há tam- como autor de seu saber, se implicando, como
bém um ganho, pois o doente recebe a atenção ”sujeito de uma ação inteligente”23, que se apro-
e a preocupação do outro, como a criança com pria do conhecimento. E, ao tentar resolver uma
TDAH que não quer fazer as suas obrigações na situação desafiante com interesse, com alegria
escola e, por isso, os pais e professores, muitas e com autonomia sabe que estamos juntos, mas
vezes, fazem por elas. Assim, a criança coloca- não para dar respostas, e sim, para encontrar
-se no papel de exceção, parecendo obter um caminhos.
ganho secundário, por ser considerada TDAH, Na mesma linha, Janin19 propõe que, ao falar
a despeito do ônus que isso lhe traz. de aprendizagem escolar, devemos levar em
conta as condições internas da criança, a relação
O Trabalho Psicopedagógico com o professor (transferência), o método da
O trabalho psicopedagógico, do ponto de vis- escola e a valorização social da aprendizagem.
ta deste artigo, se constitui como atividade que A mesma autora sugere que, aprender é como
trata do sujeito em situação de aprendizagem. entrar em lugares desconhecidos, algo como se
Tal postura indica que este trabalho não trata apropriar e se arriscar num movimento de busca,
diretamente do sintoma e nem da transmissão de fazer perguntas, e que para querer saber deve

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haver o desejo. Janin19 considera, ainda, que, se referir ao doente que, por receber privilégios,
para aprender algo temos que prestar atenção, se acomoda no papel de doente e se fixa nele.
nos concentrarmos nesse tema, sentir curiosi- Também se discute como a intervenção psico-
dade por isso, para desarmá-lo, desvendá-lo, pedagógica pode funcionar como intervenção
quebrá-lo, para traduzi-lo em nossas próprias capaz de desconstruir o rótulo, favorecendo o
palavras, reorganizando-o e apropriando-nos sujeito a encontrar outro caminho que não seja
dele para podermos usá-lo em diferentes cir- a repetição do destino.
cunstâncias. Inicialmente, o projeto de pesquisa foi sub­
Na visão de Kupfer24, o aluno-paciente deve metido à apreciação do Comitê de Ética em
desarticular, retalhar, engolir e digerir todo o Pesquisa do Centro Universitário FIEO – Osas-
conhecimento que foi transmitido pelo educador- co/SP, o qual foi aprovado com o nº CAAE
-psicopedagogo. E esse novo conhecimento se 22156113.6.0000.5435, em 30/10/2013, pelo
entrelaça no desejo do educando dando sentido parecer nº 441.321. Os representantes legais dos
para ele, e assim “pela via de transferência, o participantes assinaram um Termo de Consenti-
aluno passará por ele, usá-lo-á, por assim dizer, mento Livre e Esclarecido apenas para autorizar o
saindo dali com um saber do qual tomou verda- uso dos dados dos atendimentos desses pacien­tes,
deiramente posse e que constituirá a base e o fun- já que o trabalho psicopedagógico realizado com
damento para futuros saberes e conhecimentos”. tais pacientes já havia sido concluído.
Visto desse modo, o trabalho psicopedagógico Os materiais utilizados nesta pesquisa foram
com crianças rotuladas preserva a relação com
os fragmentos de atendimentos dos quatro par-
o paciente, sendo que todo o trabalho acontece
ticipantes das anotações das entrevistas realiza-
no espaço psicopedagógico, e, por meio da trans­
das com os pais e com os profissionais da escola,
ferência com o paciente, durante a interven­ção
com o paciente e as anotações dos atendimentos.
psicopedagógica, ele sai de um lugar de de-
pendente do outro, quebra-se o efeito do rótulo
Procedimentos
e, aos poucos, reconhece-se como sujeito do
aprender e com autonomia. Essa ética promove a Para efeito de melhor compreensão trata-se
desconstrução do diagnóstico-rótulo no trabalho dos fragmentos coletados considerando duas di-
psicopedagógico que propomos aqui. mensões. A primeira reportando-se às entrevistas
com os pais, com a criança e com a escola, salien-
MÉTODO tando o efeito de destino dado ao diagnóstico. A
Trata-se de um estudo a partir de fragmentos segunda reportando-se à intervenção psicope-
dos atendimentos psicopedagógicos retrospec- dagógica, chamando a atenção para o efeito de
tivos de quatro pacientes, diagnosticados com desconstrução do rótulo que ela pode ter.
TDAH, atendidos em consultório particular de Para a discussão, o embasamento teórico apre­
psicopedagogia. senta-se a partir do trabalho de Rosenthal & Ja­
A pesquisa é qualitativa com uma análise cobson3, pelo conceito da profecia autorrealizado-
construtivo-interpretativa e discute o efeito que ra, e também pelas contribuições da psicanálise,
o diagnóstico pode ter sobre o sujeito, ou seja, de Freud4,5 pelo viés do sujeito, como exceção e
ele muitas vezes, à semelhança de profecia au- pelo ganho secundário da doença, e por demais
torrealizadora, conforme estudo de Rosenthal & autores que suportaram este trabalho.
Jacobson3, fixa um destino para o sujeito, que
acaba agindo conforme o que é esperado dele. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Nesse sentido, a criança muitas vezes se aco- Nos fragmentos em que há relatos referen-
moda a esse destino, experimentando o “ganho tes à fala dos professores e dos orientadores,
secundário da doença”, como coloca Freud5 ao percebe-se que o professor não escuta a criança

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e não vê o porquê dela não aprender e esse pro- de cada paciente, ajudou-os a interessarem-se
fessor só reconhece a criança a partir do rótulo pelo aprender.
que carrega. Assim, esses alunos rotulados ficam Fragmentos de relatos da psicopedagoga:
no lugar de incapazes, sem autonomia e não 1- Nas sessões seguintes, foi observado que
correspondem ao esperado pelos professores. Ana aproveitava o tempo das sessões pa­ra
E isso pode ter como consequência a “profecia brincar e fazer as atividades que eu pro­
autorrealizadora“, conforme Rosenthal & Ja­ punha, mas sem se movimentar muito
cobson3, do aluno não ser ouvido como sujeito pela sala e, quando eu falava das regras
e sim como sintoma. que ela tinha que obedecer, ela reagia
Assim, a escola teria que ter como tarefa positivamente. Isto se devia ao nosso
entrar em contato com os alunos, mas a partir vínculo que se fortalecia a cada sessão
do diagnóstico a tendência da escola é olhar e, também, por ela confiar nesse espaço
pela ótica do diagnóstico, conforme apareceu acolhedor. Assim foi combinado com a
nesta pesquisa pela fala de alguns professores professora de Ana, que ela a incentivasse
e orientadores: a tentar fazer as atividades, respeitando
• a orientadora de Ana relata: “Ana era o ritmo e o tempo dela. E, assim, Ana
desatenta e não queria ficar na sala de estava começando a mostrar também na
aula e saía da classe. Era hiperativa e escola o que já sabia. Ao agir dessa forma,
quando eu a chamava na minha sala para a professora estava abrindo espaços para
conversarmos ela não ficava sentada e se Ana começar a construir sua autonomia,
movimentava pela minha sala.” (sic) aceitando as regras e aprendendo a con-
• o professor de Lucas relata: “por ter o viver com os colegas. Ana começava a
laudo com diagnóstico do TDAH, Lucas desvestir-se do rótulo, desconstruindo-o.
tinha privilégios como não entregar os 2- A professora de José relatava que ele não
trabalhos.” (sic) aceitava regras e não tinha limites, atrapa-
• o orientador de Marcelo relata: “agora lhava a aula andando pela sala, cutucando
com o diagnóstico de TDAH ele vai ser os colegas, e não aceitava quando errava
medicado com Ritalina, e daí vai ficar e desistia de fazer a atividade. Também
mais adequado em sala de aula”. (sic) colocava que ultimamente ele estava
• a professora de José relata: “sei que ele brigando com um colega. Eu intervinha
é assim por causa do TDAH, coitadinho. colocando limites e regras, trabalhando
Mas eu o ajudo”. (sic) com canais de expressão, propondo um
Na maioria dos fragmentos, percebe-se que desenho e uma história escrita ou um
os sujeitos recebem regalias por terem o diag- jogo de regras. E quando ele fazia coisas
nóstico de TDAH e, por isso, aproveitam dessa que não eram adequadas, eu intervinha
situação, de doente, e ficam nesse lugar por na hora e conversava sobre as regras que
receberem privilégios, e não mostram o que são não foram obedecidas e das consequências
capazes, o que vem de encontro ao que Freud que aconteceriam por isso. Eu mostrava
diz sobre “o ganho secundário da doença” que para José os progressos dele ao aceitar as
o paciente não quer, inconscientemente, sair do regras do jogo, do mesmo modo que eu
lugar de doente por receio de perder os privilé- fazia com Ana. Essa intervenção fez com
gios que a doença proporciona. que eles começassem a acreditar no que
Nos relatos de fragmentos referentes à des- eram capazes, contendo sua impulsivida-
construção do rótulo do TDAH na intervenção de e elaborando o que não estava bom,
psicopedagógica, nota-se que algumas atitudes fazendo melhor. Eles tinham que viver a
da psicopedagoga, respeitando o ritmo e o tempo frustração, saber que podiam perder.

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A construção e a desconstrução do rótulo do TDAH na intervenção psicopedagógica

Desse modo, reconheceram-se nas suas pos­ CONSIDERAÇÕES FINAIS


sibilidades, saindo do lugar que estavam apri- A questão do TDAH deve ser amplamente
sionados desconstruindo o rótulo. discutida com os profissionais da escola, direto-
Tentei demonstrar pelos meus relatos que as res, orientadores e professores, tendo em vista
pessoas com o diagnóstico do TDAH apresentam que, em muitas escolas, conforme dados obtidos
geralmente uma dificuldade em aceitar regras e nesta pesquisa, o diagnóstico médico funciona
limites, que impedem uma organização neces­ como destino da criança. Isto é, o laudo médico
sária para a apropriação do conhecimento. Por- vai ser o orientador do rumo da criança na es-
tanto, a meu ver, essa é uma questão importante cola como uma profecia autorrealizadora, como
a ser trabalhada na intervenção psicopedagógica posto neste trabalho. Visto desse modo, o sujeito
com pacientes que têm este transtorno, para que rotulado não terá oportunidade de mostrar-se
eles consigam, em algum momento, sair do lu- como sujeito do aprender, por ser subjugado em
gar que estavam presos e sem autonomia, como
suas capacidades.
propõe Moyses17: “Deste modo, ao desconstruir
As observações desta pesquisa corroboram
o rótulo, poderá sair do lugar acomodado de
com o que foi proposto por Rosenthal & Ja­
“criança-que-não-aprende” fracassada e ex­
cobson3 referente às expectativas que os profes-
propriada de seu saber, e, poderá mostrar-se como
sores têm do aluno com TDAH e que refletirão
autora de seu saber”.
no modo como irão tratar os alunos em sala de
Percebe-se que essas crianças e adolescentes
aula, a partir do que os professores acreditam
rotuladas que apresentadas nesta pesquisa têm
que eles sejam. Corroboram, também, com o
a oportunidade de verem-se como autoras de seu
que Freud4,5 propôs sobre a pessoa sentir-se
saber, por meio da intervenção do psicopedago-
go, em vários momentos de jogos, de atividades como uma “exceção” e exigir regalias para se
pedagógicas e de desenhos e estórias durante conformar com a situação que vive e como ônus
o acompanhamento psicopedagógico. Assim, obtém privilégios, como no “ganho secundário
conseguem escolher pela construção de sua au- da doença”, se fixando no lugar de doente para
tonomia e não pelo determinismo do rótulo como não perder as regalias.
destino. Cabe ao psicopedagogo levar em conta o Evidencia-se, assim, a importância de os pro-
sujeito, a sua história de vida e as suas angústias. fissionais da educação e da saúde envolverem-se
Tais atitudes como ajudá-los a encontrar modos em uma ética, colocando-se num lugar onde pos-
de melhorar o que não estava adequado, como sam ver o sujeito, com suas outras capacidades
respeitar as regras propostas e aceitar os limites escondidas atrás do rótulo, colaborando para a
colocados em cada situação vivenciada; fazer a desconstrução desse rótulo que o impede de ser
reescrita de seus textos, para que houvesse senti- um sujeito autônomo. Um dado importante que
do no que escreviam e, em matemática, fazer cada pode surgir deste trabalho é que o professor não
etapa do exercício proposto propiciaram neles um se fixe tanto no sintoma e sim nas capacidades
movimento em busca do aprender. do sujeito.

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SUMMARY
The construction and the desconstruction of a label of ADHD
in the psychopedagogical intervention

The goal of this work is to discuss the effect that the diagnosis of Attention
Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) can have on the subject, as well as
how the pedagogical intervention can contribute to the deconstruction of
the label favoring the subject to find another way other than the repetition
of the destiny. It is a constructive-interpretative analysis from fragments of
retrospective psychopedagogic treatments considered in two dimensions.
The first dimension in relation to the initial interviews with the parents, the
teachers and the patients, emphasizing the target effect of the diagnosis.
The second dimension in relation to psychopedagogical intervention,
emphasizing the effect of deconstruction of the label. The data analysis
suggests that the diagnosis has an effect of destiny in the life of the subject,
who is without autonomy and that with the psychopedagogical intervention
the subject undresses label and gets out of place it was.

KEY WORDS: Attention Deficit Disorder with Hyperactivity/diagnosis.


Learning disorders. Child.

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Este artigo foi escrito a partir da pesquisa da dissertação Artigo recebido: 22/5/2015
de mestrado “O diagnóstico como destino: a criança Aprovado: 13/7/2015
com TDAH e a flexibilização necessária na clínica”
de Vera Helena Peres Jafferian, sob a orientação da
professora dra. Leda Barone, do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Educacional do Centro
Universitário Fundação Instituto de Ensino para
Osasco (UNIFIEO), Osasco, SP, Brasil.

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