Você está na página 1de 25

Universidade Presbiteriana

Neurociência
Aplicada à
Educação e
Aprendizagem 2
módulo

Cognição Social e Aprendizagem


Trilha 5 Alterações de cognição
social na infância
Sumário

1 Introdução ao estudo da trilha de aprendizagem p. 4


2 Cognição Social e Saúde Mental na Infância p. 7
3 Cognição social nos Transtornos do
Neurodesenvolvimento p. 13
4 Síntese p. 20
5 Referências p. 22
4
Introdução ao
estudo da trilha de
aprendizagem

Até o momento, apresentamos neste componente o conceito


e as características da cognição social, a importância do
processamento de emoções e da teoria da mente, bem como
o desenvolvimento destas habilidades ao longo da infância e
as estruturas e circuitarias cerebrais associadas à cognição
social.
• E o que acontece quando estas habilidades, tão
importantes e necessárias à nossa sobrevivência e
sucesso nas interações sociais, não se desenvolvem de
forma típica?
• Apesar da existência de marcos gerais do
desenvolvimento socioemocional, será que não há
variações?
• Ou será que o fato de nascermos com uma
predisposição genética, neurobiológica, para
respondermos aos eventos sociais, é suficiente para
garantir um bom desenvolvimento social e emocional?
• E quando a interação genética e ambiente parece não
ser suficiente para promover uma boa compreensão e
respostas aos eventos sociais e emocionais?

Considerando que há um grupo de crianças com prejuízos


variados no desenvolvimento da cognição social e o impacto
na saúde mental de modo geral, vamos discutir nesta trilha de
aprendizagem alguns dos principais quadros na infância que
cursam com alterações em aspectos gerais ou específicos
da cognição social e o quanto prejuízos nesta habilidade
pode ser um importante fator de risco associado a pobres
desfechos ao longo da vida.
5 Fatores de risco são variáveis que, quando presentes,
! aumentam a probabilidade de um desfecho negativo na vida
do indivíduo. Por exemplo: atraso no desenvolvimento da
linguagem oral é fator de risco para aquisição da leitura;
atraso no desenvolvimento da teoria da mente é fator
de risco para dificuldades na interação com pares e na
interpretação de textos. Por outro lado, temos os fatores de
proteção. São variáveis que, quando presentes, aumentam
a probabilidade de um desfecho positivo ou diminuem os
efeitos negativos dos fatores de risco. Exemplo: a leitura
mediada pelos pais pode favorecer tanto a aquisição da
linguagem oral quanto a teoria da mente, promovendo o
vocabulário e o uso de termos que denotem inferências a
estados mentais dos personagens.

Nesta trilha, vamos aprofundar nosso conhecimento a


respeito de condições na infância, que, em decorrência
de processos atípicos de neurodesenvolvimento ou
mesmo devido a falhas ambientais, apresentam prejuízos
significativos na aquisição e no uso da cognição social. Assim,
gostaria de iniciar destacando que a cognição social é uma
das principais preditoras de saúde mental tanto na infância
quanto ao longo da vida do indivíduo.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2004


apud BRASIL, 2017), saúde mental refere-se a:

Um estado de bem-estar em que


o indivíduo percebe suas próprias
habilidades, pode lidar com o
estresse normal da vida, pode
trabalhar de maneira produtiva e
frutífera e é capaz de contribuir
com sua comunidade.

Vejam que a regulação emocional, um dos principais


componentes da cognição social, é mencionada de forma
indireta na própria definição de saúde mental, uma vez que
esta implica capacidade de “lidar com o estresse normal da
6 vida”. Além disso, “contribuir com a sua comunidade” também
implica comportamentos pró-sociais, como oferecimento de
ajuda, conforto, pensar no bem-estar do grupo. Imaginem que
todos estes comportamentos seriam difíceis de ser emitidos
sem o desenvolvimento adequado da capacidade de perceber
e regular as emoções, atribuir estados mentais, perceber
pistas sociais em contextos específicos etc.

Em 2015, um estudo publicado na revista World Psychiatric


apontou que saúde mental é o uso das habilidades individuais
em harmonia com os valores universais da sociedade,
permitindo ao indivíduo desempenhar funções sociais.
Trata-se, portanto, de um relacionamento harmonioso entre
corpo e mente que contribui para o estado de equilíbrio
interno. Para os autores deste estudo, algumas habilidades
são essenciais para este estado de equilíbrio interno, tais
como processamento de emoções, empatia e flexibilidade
cognitiva (GALDERISI et al., 2015). E aqui vemos, mais uma
vez, a importância da cognição social como um dos principais
preditores de saúde mental.
7
Cognição Social e
Saúde Mental na
Infância

Resultados oriundos de estudos internacionais e nacionais


apontam dados alarmantes sobre a prevalência de
transtornos mentais na infância e adolescência. Uma revisão
da literatura internacional feita por Polanczyk e colaboradores
(2015) indicou uma prevalência média de 13% de problemas
de saúde mental em crianças e adolescentes. Isso implica
em mais de 200 milhões de indivíduos entre 5 e 19 anos.
Essa porcentagem inclui transtornos de ansiedade (o mais
prevalente), seguidos por transtornos disruptivos (Transtorno
Opositor Desafiante, Transtornos de Conduta), Transtorno
de Déficit de Atenção e Hiperatividade e Transtornos
depressivos. A figura 1 ilustra os principais achados deste
estudo em relação a problemas de saúde mental (PSM) na
infância e adolescência.

PSM na infância e adolescência

Ansiedade

Transtornos
depressivos

TDAH

Transtornos
disruptivos

Figura 1 - Principais Outros


problemas de saúde
mental na infância e
adolescência. Fonte:
Elaborado pelo autor.
8 A preocupação aumenta, uma vez que alguns quadros
clínicos de alta prevalência na população não foram incluídos
nestes 13%, tais como o Transtorno do Espectro Autista, com
prevalência estimada em torno de 1% na população mundial
(FOMBONNE, 2019). Também não estão incluídos transtornos
alimentares, psicoses e transtorno obsessivo-compulsivo,
quadros que também acometem crianças e adolescentes.

No Brasil, a situação não é diferente. Um estudo realizado


em 4 grandes regiões do país, também indicou uma
prevalência de 13% de PSM na infância e adolescência, sendo
os transtornos de ansiedade também aqueles de maior
prevalência (PAULA et al., 2015).

+ Saiba mais sobre o tema em:


• POLANCZYK, G. V. et al. Annual Research Review: A
meta-analysis of the worldwide prevalence of mental
disorders in children and adolescents. Journal of child
psychology and psychiatry, 56(3), p. 345-365, 2015.
• PAULA, C. S. et al. Prevalence of psychiatric
disorders among children and adolescents from four
Brazilian regions. Brazilian Journal of Psychiatry,
37(2), p. 178-179, 2015.

E a situação é ainda mais alarmante quando boa parte destas


crianças e jovens não recebem tratamentos adequados,
implicando em problemas significativos de saúde pública.
Apesar de alguns movimentos na área da educação e da
psicologia se mostrarem preocupados com a medicalização e
com o uso do modelo médico para explicar os PSM na infância
e adolescência (CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA,
GRUPO INTERINSTITUICIONAL QUEIXA ESCOLAR, 2010),
estudos baseados no método científico mostram que mesmo
em cidades grandes, tais como São Paulo e Porto Alegre,
mais de 80% das crianças que de fato apresentam algum PSM
não recebem tratamento (FATORI et al., 2019).

Como podemos observar, os Transtornos de Ansiedade


são o PSM mais prevalente na infância e adolescência. Estes
9 são caracterizados por preocupações e medos excessivos,
ou seja, trata-se de um prejuízo no processamento de uma
emoção básica e universal. O medo é a resposta emocional
diante de uma ameaça iminente. No entanto, a ameaça pode
ser real ou percebida. A ansiedade é a antecipação do medo,
ou seja, uma preocupação com uma ameaça futura. A seguir,
alguns exemplos de quadros de ansiedade que descrevem
prejuízos importantes no processamento do medo (APA,
2014).

• Ansiedade de separação: medo persistente e excessivo de que


algo terrível aconteça ao se separar das figuras de apego/apoio.

• Transtorno de ansiedade social: evitação, medo da avaliação


negativa por pares.
Quadro 1 - Exemplos
de quadros de • Transtorno de ansiedade generalizada: excessivas e múltiplas
ansiedade. Fonte: preocupações persistentes, irracionais, queixas somáticas,
perfeccionistas, inseguras e conformistas.
Elaborado pelo autor.

Esses quadros ocorrem devido aos prejuízos funcionais na


vida dos indivíduos em função da persistência de sintomas
(muitas vezes, físicos), associados ao medo ou a antecipação
da ameaça. Porém, é importante ressaltar que o medo é uma
resposta emocional comum e em diferentes idades pode
apresentar conteúdos distintos (quadro 2).

Idade Características comuns

Até um ano Medo de ruídos e de pessoas estranhas.

2 a 5 anos Medo de criaturas imaginárias, escuro e alguns


animais.
Quadro 2 - Medos Período Medo de se machucar fisicamente e de fenômenos
comuns de acordo escolar da natureza (tempestades, raios, trovões).
com diferentes Na Medo de problemas de saúde, medo de falha em
idades. Fonte: adolescência tarefas de desempenho, medo de ser socialmente
incompetente.
Elaborado pelo autor.

Além da ansiedade, os Transtornos Depressivos também


estão associados a prejuízos no processamento emocional. A
principal característica na depressão é o humor deprimido.
Este se expressa como tristeza, vazio, desesperança, choro
10 constante. É possível notar diminuição de interesse ou
prazer, mudança de peso e de apetite, bem como no padrão
sono, fadiga, perda de energia, sentimento de inutilidade
ou culpa excessiva, falta de concentração, dificuldade de
tomar decisão, pensamentos recorrentes de morte, ideação
suicida ou tentativas. Em crianças, é bastante comum a
presença de humor irritável (APA, 2014). Além de alterações
no processamento da tristeza, o padrão de humor irritável
também indica prejuízos no processamento de outra emoção
básica, a raiva.

Alterações no processamento da raiva estão presentes em


diversos quadros na infância, para além dos Transtornos
depressivos, como é o caso dos Transtornos Disruptivos:

Crianças com Transtorno de Oposição e Desafio facilmente


perdem a calma, são sensíveis e facilmente incomodadas,
raivosas e ressentidas, questionam autoridade, desafiam, se
recusam a obedecer, incomodam deliberadamente e culpam
os outros pelo seu mau comportamento (APA, 2014). Achados
de neuroimagem apontam alterações no funcionamento
do córtex pré-frontal (associado ao controle, regulação
das emoções), amígdala e ínsula (regiões associadas ao
processamento automático de emoções básicas e contágio
emocional). Sabe-se que o tratamento, nesses casos, inclui
treinamento de gerenciamento parental, treinamento baseado
na orientação para a escola, e terapia comportamental
cognitiva. Para manejo da agressão grave e o tratamento dos
distúrbios comórbidos, deve-se indicar um profissional da
saúde mental (GHOSH; RAY; BASU, 2017).

Já no Transtorno de Conduta (TC) há violação de direitos


básicos, normas e regras como agressão a pessoas ou
animais, destruição de propriedades, furto e falsidade (APA,
2014). Afeta cerca de 3% das crianças em idade escolar e é
duas vezes mais prevalente em meninos do que em meninas.
A etiologia é bastante complexa, mas sabe-se que parte das
crianças e adolescentes com TC possui traços insensíveis
e às vezes não emocionais, como déficits de empatia e
11 no processamento de uma emoção complexa, aprendida
socialmente, a culpa. Estudos de neuroimagem mostram
menor volume de substância cinzenta em regiões límbicas,
como amígdala, ínsula e também no córtex orbitofrontal.
Trata-se de anormalidades funcionais em circuitos cerebrais
responsáveis pelo processamento e regulação da emoção,
bem como na tomada de decisão baseada em reforço, ou seja,
dificuldade em adiar gratificação (FAIRCHILD et al., 2019).

Há ainda alterações no processamento da raiva em crianças


com Transtorno Explosivo Intermitente (TEI). Uma
condição que ocorre a partir dos 6 anos de idade, na qual
a criança não consegue controlar a agressividade,
explosões de raiva desproporcionais e não premeditadas,
que causam sofrimento. Estas explosões ocorrem numa
frequência de pelo menos 3 vezes ao ano (APA, 2014).
Neste caso, os níveis extremos de raiva e agressividade são
patológicos e estão na essência do transtorno. Falta controle
subjetivo diante de forte sentimento negativo (e até certo
ponto, positivo) após as explosões. Esse sentimento de
descontrole também se reflete em vários déficits cognitivo-
afetivos, incluindo vieses atribucionais hostis, pobre
regulação da emoção e aumento da impulsividade quando
experimentam afeto negativo. No entanto, demonstram uma
capacidade normal de empatia, apesar do sintoma comum de
agressão (COCCARO & McCLOSKEY, 2019).

Diferentemente do TEI, cujas explosões de raiva são muito


intensas, não premeditadas pela criança, mas esporádicas, há
o Transtorno Disruptivo da Desregulação do Humor que se
caracteriza por explosões de raiva frequentes (pelo menos
três vezes por semana), persistentes, em vários ambientes.

Além das alterações no processamento de emoções


nos transtornos disruptivos e de humor, boa parte do
conhecimento sobre desenvolvimento e alterações na
cognição social é oriunda dos estudos com indivíduos com
Transtornos do Neurodesenvolvimento, principalmente o
Transtorno do Espectro do Autismo.
12 Os transtornos do Neurodesenvolvimento são um grupo de
! condições com início no período de desenvolvimento, com
manifestação precoce, com déficits globais ou específicos
que acarretam prejuízos no funcionamento pessoal, social,
acadêmico ou profissional (APA, 2014).

As alterações de cognição social são frequentes nos


transtornos do Neurodesenvolvimento (TN) e muitas
vezes auxiliam na identificação, bem como no diagnóstico
diferencial. Dentro do guarda-chuva dos TN, estão os
seguintes quadros:

Deficiências
Intelectuais

Transtorno
do Espectro
Autista

Transtornos da
Comunicação

Transtornos do
Neurodesenvovimento
Transtornos da
Coordenação

TDAH

Figura 2 -
Transtornos do
Neurodesenvolvi- Transtorno
mento. Fonte: Específico da
Aprendizagem
Elaborado pelo autor.

O próximo tópico abordará os prejuízos de cognição social


mais comuns observados em alguns TN.
13
Cognição social
nos Transtornos do
Neurodesenvolvimento

Deficiência intelectual (DI): crianças com DI apresentam


prejuízos cognitivos gerais, ou seja, um rebaixamento nas
capacidades mentais e isso inclui prejuízos na cognição
social. Geralmente a cognição social é compatível com o
rebaixamento cognitivo geral. Por isso, não é considerada
um prejuízo específico, ou seja, não é uma área de fraqueza
(habilidade aquém das demais). Se comparada a outras
pessoas da mesma idade, crianças com deficiência intelectual
leve são mais imaturas em suas relações sociais. Podem
estar presentes dificuldades de perceber pistas sociais. A
linguagem e a comunicação tendem a ser mais concreta.
Pode haver prejuízos na regulação emocional e compreensão
limitada de risco em situações sociais, pobre capacidade de
julgamento social com aumento à credulidade, ou seja, risco
de manipulação pelos outros (APA, 2014).

Nos Transtornos da Comunicação, há uma categoria


específica, o Transtorno da Comunicação Social:
caracterizado por prejuízos no uso social da comunicação
verbal e não-verbal, nos quais o indivíduo apresenta
dificuldades no uso da linguagem com finalidade social
(por exemplo: fazer saudações e compartilhar informações).
Há prejuízos na adaptação ao contexto ou às necessidades
do ouvinte, com dificuldades no ajuste e uso de regras para
conversar e de sinais para regular a interação. Geralmente
apresentam dificuldades em compreender aspectos
implícitos da comunicação, tais como aquilo que está
implícito, inferências, ambiguidades e metáforas
(APA, 2014). Tanto em crianças com ou sem Transtorno
da Comunicação social, existem variações na linguagem
pragmática. Um estudo investigou o que explicaria tais
14 variações, e os resultados mostraram que, além de aspectos
formais, a capacidade de mentalização também possui
uma contribuição significativa para a pragmática (uso
social da comunicação). Essa relação se particulariza
com a contingência (situação, contexto) do discurso e a
compreensão da ironia (MATTHEWS; BINEY; ABBOT-
SMITH, 2018). Este é um aspecto mais complexo da Teoria da
Mente, consolidado a partir dos 6 anos de idade (SOUZA &
VELLUDO, 2016).

Transtorno de déficit de Atenção e hiperatividade: apesar


das alterações de cognição social não serem consideradas
os prejuízos cardinais do transtorno, muitos estudos apontam
que existem alterações significativas no desenvolvimento da
cognição social em crianças com TDAH.

Há déficits de Teoria da Mente e reconhecimento de


emoções em faces e voz, principalmente na identificação
de raiva e medo. Em crianças, os prejuízos tendem a ser mais
proeminentes em relação aos adultos com transtorno (BORA
& PANTELIS, 2016).

Um estudo foi realizado com crianças entre 7 a 13 anos


utilizando testes que avaliam domínios específicos da
cognição social, reconhecimento de afeto e teoria da mente.
Os pais preencheram questionários sobre linguagem
pragmática e empatia, sintomas comportamentais e
funcionamento adaptativo. As crianças com TDAH tiveram
um desempenho significativamente pior nas medidas
de Teoria da Mente e reconhecimento afetivo. Além
disso, receberam avaliações mais baixas em termos
de linguagem pragmática e empatia por seus pais, em
comparação a crianças com desenvolvimento típico. As
alterações da cognição social explicaram parte dos problemas
de comportamento relatados pelos pais (PARKE et al., 2018).

Além de características básicas de percepção social/


emocional, sabe-se que pessoas com TDAH apresentam
déficits de regulação emocional, mesmo na ausência de
15 outras comorbidades. Tais déficits acarretam prejuízos
no funcionamento social. Embora aspectos distintos,
prejuízos na Teoria da mente tendem a explicar, pelos menos
parcialmente, os prejuízos na regulação emocional nestes
pacientes. Estes foram achados de um estudo com 200
adolescentes entre 11 e 17 anos de idade, com e sem TDAH
(ÖZBARAN; KALYONCU; KÖSE, 2018).

TDAH, psicoestimulantes e cognição social

! Um ponto interessante discutido na literatura é se


medicamentos de primeira linha utilizados para o tratamento
do TDAH poderiam contribuir para melhora da cognição
social.

Levi-Shachar e colaboradores (2020) exploraram o possível


efeito dos estimulantes (como o metilfenidato) sobre a
ocitocina, um neuropeptídeo que regula o comportamento
social. O objetivo foi verificar o efeito pró-social do
metilfenidato em crianças com TDAH em comparação com
controles saudáveis. Os pesquisadores utilizaram uma dose
única de metilfenidato e uma dose placebo nas crianças e
verificaram o efeito em uma tarefa de Teoria da Mente e nos
níveis de ocitocina salivar no início e após uma interação
interpessoal. As crianças com TDAH obtiveram desempenho
significativamente pior em tarefas de Teoria da Mente em
relação às crianças com desenvolvimento típico. No entanto,
após a administração do metilfenidato, seu desempenho
se normalizou e não foram mais encontradas diferenças
entre os grupos. Os níveis de ocitocina salivar no início do
estudo não diferiram entre crianças com e sem TDAH. No
entanto, após a interação pai-filho, os níveis de OT foram
significativamente maiores no grupo controle em comparação
às crianças com TDAH. A administração do metilfenidato
atenuou essa diferença de tal forma que, após a interação
pai-filho, as diferenças nos níveis de ocitocina entre crianças
com e sem TDAH não foram mais encontradas. No grupo com
TDAH, os níveis de ocitocina diminuíram na administração
de placebo. No entanto, a administração de metilfenidato em
16 crianças com TDAH foi associada a um aumento nos níveis
de ocitocina após a interação pai-filho. Os autores desse
estudo concluíram que a ocitocina pode desempenhar
um papel como mediadora de déficits sociais em crianças
com TDAH. Os estimulantes podem melhorar a Teoria da
Mente e as funções sociais em crianças com TDAH por
meio de seu impacto na ação da ocitocina.

Outro estudo comparou o desempenho de crianças com e


sem TDAH em um questionário de autorrelato sobre empatia e
em uma tarefa de Teoria da Mente que avalia reconhecimento,
compreensão de gafes e crença falsas em histórias cujos
personagens podem ou não ter cometido alguma gafe.
As crianças com TDAH realizaram a avaliação com e sem
metilfenidato com a finalidade de comparar características
da cognição social, com e sem medicamento. As crianças
com TDAH referiram níveis significativamente mais baixos
de empatia em relação às crianças com desenvolvimento
típico. Os escores na tarefa de gafes foram significativamente
menores em crianças com TDAH e melhoraram, após a
administração do metilfenidato. Tal melhora foi semelhante ao
nível de Teoria da mente observado em crianças sem TDAH
(MAOZ et al., 2019).

Transtornos do Espectro do Autismo: desde que o autismo


foi descrito pela primeira vez em meados do século XX,
sabe-se que uma das alterações centrais nesta condição é o
déficit na interação social recíproca. Subjacente às alterações
observadas nas interações sociais, bem como no aspecto
social da comunicação, estão alguns déficits cognitivos, entre
eles o prejuízo na cognição social. Há uma vasta literatura
sobre alterações em indivíduos com TEA, especialmente
a Teoria da Mente. Estes ocorrem independentemente
da presença de deficiência intelectual. Mas, há uma
heterogeneidade em termos de apresentação e níveis de
gravidade dos déficits de Teoria da Mente decorrentes da
heterogeneidade de genótipos associados ao quadro e da
múltipla influência gene-ambiente na causa do transtorno
(MECCA & DIAS, 2017).
17 Um dos maiores desafios é compreender as alterações de
cognição social em função da sua grande variabilidade.
Por muito tempo se falou sobre a alteração de aspectos
básicos da cognição social nos TEA, tais como a imitação.
Entretanto, evidências recentes questionam a afirmação
de que o TEA é uma condição caracterizada por déficits de
imitação.

Estudos de imitação automática, em que a observação da


ação de outra pessoa indica a tendência de produzir uma ação
idêntica, revelam que os indivíduos com TEA apresentam
capacidade relativamente preservada de imitar ações simples
de mãos e dedos, bem como expressões faciais emocionais.
Os déficits na imitação voluntária e não automática que
podem ser observados são provavelmente devido a fatores
inespecíficos, como controle de atenção, memória de
trabalho e/ou compreensão pragmática da linguagem. Além
disso, a evidência disponível não é capaz de apoiar déficits de
neurônios-espelho (HAPPÉ; COOK; BIRD, 2017).

! Diversos estudos apontam que pessoas com TEA


apresentam déficits específicos na motivação social.
A teoria da motivação social postula que o ponto de
partida para as diferenças sociocognitivas no TEA é que
os estímulos e atividades sociais são intrinsecamente
menos motivadores. Por exemplo, Van Etten e Carver
(2015) sugeriram que a motivação social reduzida explica
os déficits de imitação relatados. Tal teoria implica que os
sistemas de recompensa têm uma organização modular,
na qual a motivação social pode ser seletivamente
prejudicada, enquanto o processamento de outros fatores
motivacionais (por exemplo, recompensas alimentares ou
monetárias) é poupado. Se existe um sistema específico
de recompensa social, no entanto, ainda é uma questão de
debate.

A atenção deliberada/voluntária (ou endógena) aos


estímulos sociais também tem sido muito discutida nas
teorias sobre os déficits sociais nos TEA (CHAWARSKA et
18 al., 2016). Parece haver uma redução na orientação para
estímulos sociais (devido à motivação social reduzida ou
problemas de desengajamento da atenção), decorrentes
da exposição reduzida a oportunidades de aprendizagem
relevantes causadas por déficits de teoria da mente. Por
isso, há diversas intervenções que se concentram em
aumentar a atenção aos estímulos sociais e estabelecer uma
atenção compartilhada (HAPPÉ; COOK; BIRD, 2017).

Saiba mais em HAPPÉ, F.; COOK, J. L.; BIRD, G. The


structure of social cognition: In (ter) dependence of
sociocognitive processes. Annual review of psychology, v.
68, p. 243-267, 2017.

Um dos debates atuais também se refere a alterações no


sistema implícito da Teoria da Mente nos TEA. A hipótese de
que há dois sistemas diferentes para a Teoria da Mente foi
pautada pela observação de que, embora crianças típicas
com idade inferior a 4 anos, em média, não passem em testes
explícitos clássicos de crença falsa, bebês de 18 meses
passam em tarefas que possuem paradigmas de crença
falsa implícita, baseados no comportamento de fixação do
olhar, ou seja, são capazes de antecipar a resposta de um
personagem ao olhar de forma automática para o local no qual
um personagem pensa que um objeto está. Indivíduos com
ASD que foram capazes de passar testes de compreensão
de crença falsa não mostraram comportamento de fixação
automática do olhar consistente com a Teoria da Mente
implícita (SENJU et al. 2009).

Esse conjunto de resultados de estudos com crianças com


TEA indicam que existem alterações em processos básicos
de informação social e emocional, tais como na motivação
e orientação para informações socialmente relevantes, bem
como na atenção compartilhada e em aspectos automáticos
e não deliberados da Teoria da Mente. Estas alterações
podem explicar parte dos sintomas precoces observados
em crianças pequenas, que indicam riscos para autismo.
O Quadro 1 apresenta os principais sinais de risco para
19 TEA, considerados como bandeiras vermelhas e que são
decorrentes de falhas no desenvolvimento de aspectos
básicos da cognição social.

• dificuldade de se antecipar ao ser pego no colo;

• baixa qualidade no contato visual;

• interesse limitado ou ausente em jogos interativos;

• não sente desconforto em estar sozinho;

• resposta inconsistente quando chamado pelo nome;

• não olha para objetos que são manipulados por outras


pessoas ou para atividades que os outros realizam;

• maior desconforto ao ser tocado;

• referencial social mais limitado (procura menos pelos


seus cuidadores);

Quadro 3 - Sinais • diminuição ou ausência de sorriso social e baixa


variação nas expressões faciais;
de risco para
TEA associados • pouco interesse em brincadeiras funcionais e
a prejuízos na simbólicas (usar objetos de forma imaginativa para
brincar; se engajar em brincadeiras de faz-de-conta);
cognição social.
Fonte: Elaborado • dificuldade com imitação.
pelo autor.

+ Saiba mais sobre o Um estudo conduzido no Programa de Pós-Graduação em


assunto em ORSATI, Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana
F. T. et al. Percepção Mackenzie mostrou que pacientes com TEA gastam menos
de faces em crianças
tempo olhando para regiões de rostos humanos que dão
e adolescentes com
transtorno invasivo pistas sociais (tais como olhos e boca) quando comparados a
do desenvolvimento. crianças e adolescentes com desenvolvimento típico.
Paidéia (Ribeirão
Preto), v. 19, n. 44, p. Ao gastar menos tempo fixando os olhos em regiões tão
!
349-356, 2009.
importantes, as crianças com TEA podem não captar as
informações corretamente. Consequentemente podem não
as interpretar e reagir de modo adequado.
20
Síntese

Esta trilha teve por objetivo apresentar as principais


alterações de cognição social presentes em diferentes
quadros na infância e adolescência. Apesar de muitos
estudos na área, e muitas vezes certa falta de consenso
sobre o desenvolvimento da cognição social em cada um dos
quadros e quais são os prejuízos específicos observados
em cada um, há certos direcionamentos que nos ajudam a
entender as principais características associadas a cada
quadro.

Conhecer estes aspectos nos permite não apenas identificá-


los, mas também fazer os encaminhamentos necessários aos
profissionais da área de saúde mental. E, mais importante
ainda, possibilita pensarmos em estratégias e possibilidades
de intervenção, com atividades, dicas, apoios e instruções
direcionadas com finalidade de reduzir os déficits
observados.

Ao notar alterações de comportamento, faça algumas


perguntas sobre a criança, tais como:
• A criança apresenta atenção social adequada para
captar as informações sociais e emocionais?
• O ambiente social parece não ser muito motivador para
a criança?
• A criança demonstra interesse em compartilhar
interesses com outras? Ou responde de forma rápida
e automática quando outras tentam compartilhar seus
interesses com ela?
• A criança imita comportamentos do outro de forma
deliberada?
• Existem preocupações ou medo em excesso?
• A criança se sente insegura quando se separa de
figuras de apoio?
• Há dificuldades na formação de vínculos?
21 • A criança não consegue lidar com frustrações?
• A criança reconhece/nomeia emoções em si e nos
outros?
• Faz uso de termos que denotam estados mentais
(pensou, achou, sentiu)?
• Há reação emocional diante da emoção do outro?
• A criança percebe a intenção na ação do outro?
• A expressão emocional é compatível com a situação?
• Notam-se exageros nas reações na criança?
• A criança parece não demonstrar emoções em
diferentes situações?
• Pensa antes de agir?
• A criança sente culpa quando percebe que fez algo de
errado?
• Demonstra perda de interesse/alegria em atividades
que antes eram prazerosas?

As respostas a estas perguntas podem auxiliar


no planejamento de ações que visem melhoras no
desenvolvimento social e emocional da criança.
22
Referências

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION - APA. DSM-5:


Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais.
Artmed Editora, 2014.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. “Saúde mental no


trabalho” é tema do Dia Mundial da Saúde Mental 2017,
comemorado em 10 de outubro. 2017. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/ultimas-noticias/2523-saude-
mental-no-trabalho-e-tema-do-dia-mundial-da-saude-
mental-2017-comemorado-em-10-de-outubro>. Acesso em:
29 mar. 2021.

CHAWARSKA, K. et al. Multilevel differences in spontaneous


social attention in toddlers with autism spectrum disorder.
Child development, v. 87, n. 2, p. 543-557, 2016.

COCCARO, E. F.; MCCLOSKEY, M. S. Phenomenology of


impulsive aggression and intermittent explosive disorder. In:
Intermittent Explosive Disorder. Academic Press, 2019, p.
37-65.

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA, GRUPO


INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (Orgs.).
Medicalização de Crianças e Adolescentes - conflitos
silenciados pela redução de questões sociais a doenças de
indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.

FAIRCHILD, G. et al. Conduct disorder. Nature Reviews


Disease Primers, v. 5, n. 1, p. 1-25, 2019.

FATORI, D. et al. Use of mental health services by children


with mental disorders in two major cities in Brazil.
Psychiatric services, 70(4), p. 337-341, 2019.
23 FOMBONNE, É. Current issues in epidemiogical studies of
autism. Psicologia: teoria e prática, 21, n. 3, p. 405-417,
2019.

GALDERISI, S. et al. Toward a new definition of mental health.


World Psychiatry, 14(2), p. 231, 2015.

GHOSH, A.; RAY, A.; BASU, A. Oppositional defiant disorder:


Current insight. Psychology Research and Behavior
Management, 10, Article p. 353-367, 2017.

LEVI-SHACHAR et al. The effect of methylphenidate on


social cognition and oxytocin in children with attention deficit
hyperactivity disorder. Neuropsychopharmacol. 45, p. 367–
373, 2020.

MAOZ, H. et al. Theory of mind and empathy in children with


ADHD. Journal of attention disorders, 23(11), p. 1331-1338,
2019.

MATTHEWS, D; BINEY, H.; ABBOT-SMITH, K. Individual


differences in children’s pragmatic ability: a review of
associations with formal language, social cognition, and
executive functions. Language Learning and Development,
14(3), p. 186-223, 2018.

MECCA, T. P.; DIAS, N. M. Cognição Social nos Transtornos


do Espectro do Autismo. In: BOSA, C. A.; TEIXEIRA, M. C. T. V.
(Orgs.). Autismo: Avaliação psicológica e neuropsicológica.
São Paulo: Hogrefe, 2017, p. 119-134.

ORSATI, F. T. et al. Percepção de faces em crianças e


adolescentes com transtorno invasivo do desenvolvimento.
Paidéia (Ribeirão Preto), v. 19, n. 44, p. 349-356, 2009.

ÖZBARAN, B.; KALYONCU, T.; KÖSE, S. Theory of mind


and emotion regulation difficulties in children with ADHD.
Psychiatry research, 270, p. 117-122, 2018.
24 PARKE, E. M. et al. Social cognition in children with ADHD.
Journal of attention disorders, p. 1087054718816157, 2018.

PAULA, C. S. et al. Prevalence of psychiatric disorders


among children and adolescents from four Brazilian regions.
Brazilian Journal of Psychiatry, 37(2), p. 178-179, 2015.

POLANCZYK, G. V. et al. Annual Research Review: A meta-


analysis of the worldwide prevalence of mental disorders in
children and adolescents. Journal of child psychology and
psychiatry, 56(3), p. 345-365, 2015.

SENJU, A. et al. Mindblind eyes: an absence of spontaneous


theory of mind in Asperger syndrome. Science, v. 325, n.
5942, p. 883-885, 2009.

SOUZA, D. H., VELLUDO, N. B. O desenvolvimento da teoria


da mente. In: MECCA, T. P.; DIAS, N. M.; BERBERIAN, A. A.
(Orgs.). Cognição social: Teoria, pesquisa e aplicação. São
Paulo: Editora Memnon, 2016, p. 42-53.

VAN ETTEN H. M.; CARVER L. J. Does impaired social


motivation drive imitation deficits in children with autism
spectrum disorder? Rev. J. Autism Dev. Disord. 2(3), p.
310–319, 2015.
Universidade Presbiteriana

Você também pode gostar