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por
Luciane Schütte
RETROSPECTIVA - Tornar-se um peso para os seus
familiares
- Perder a autonomia e liberdade
tornar-se um esperança
- Confrontar sua finitude, assim como
frustrações por questões mal resolvidas
OPORTUNIDADE
Atos simples como tomar banho, sentar-se num vaso sanitário ou subir algum degrau na casa
requer alavancas, protetores e condutores, levando a reformas ou mesmo mudanças de
residência, acrescentando então a perda de referência e, no limite, da própria identidade.
Aceitação do envelhecer, do
adoecer e do morrer.
COMO MANTER A
DIGNIDADE ?
SEGUNDO
Dignidade começa pela aceitação Não posso mensurar o tamanho da APRENDIZADO: O
de que a morte não tem hora certa dor envolvida - o enorme
para acontecer e pode tomar sentimento de desamparo e sofrimento não é
aqueles que amamos não apenas desconhecimento dessa condição
apenas do paciente.
na velhice, mas a qualquer de cuidar. Aliás, da própria
momento. resistência a ocupar essa função Adoecimento e
de cuidado que, em algum
Me dei conta que não se trata do momento, aceitamos. Pois tudo morte é uma
adoecimento de um parente, seja que resiste, persiste. Ao soltarmos
experiência
na velhice ou não. Todo um nossa resistência a ocupar esse
sistema familiar é profundamente espaço, tudo flui melhor. sistêmica e não
04
afetado. Evoluímos nessa trajetória todos
apenas pessoal.
juntos, cada qual a seu modo.
DOR
Cuidando ao
redor de traumas
COMPAIXÃO
Meus pais se divorciaram conosco Compaixão por nós mesmos e Em nenhum desses lugares
ainda jovens, no início da fase nossas limitações como estaremos em equilíbrio. O
adulta. Momentos que me cuidadores. Compaixão radical por cuidador em equilíbrio ocupa um
marcaram nessa triste história de quem é cuidado por nós, pois, com lugar fora desse triângulo
muita frequência, o cuidado requer dramático. Ao transcender essa
discórdias alteraram minha relação
acolher momentos nos quais o que dinâmica, ele ocupa o lugar de
com ambos. Quando fui convocada
recebemos em troca são acompanhante compassivo, como
pelas circunstâncias a ser
agressões, julgamentos e o não espero fique claro no correr desse
cuidadora, havia entre nós um
texto.
longo histórico de mágoas mútuas. reconhecimento.
Para mim, cuidar seria apenas
Esse algo maior está bem
possível a partir do amor e esse Por melhor que sejam nossos
representado nas “ordens do
estigma me abalou profundamente esforços, não raro testemunhamos
amor”(1). Nessa ordem, os pais são
a princípio. no recipiente de cuidado o
“grandes” e os filhos “pequenos”.
acentuar de comportamentos
Irmãos são “iguais”. Cônjuges são
autodestrutivos ou punitivos que
No ideário do mundo eu via o “iguais”. Mesmo que filhos cuidem
colaboram para destacar nossas
amor como requisito e não me de pais, podem fazer isto desde o
diferenças e não para mitigá-las.
sentia convocada pelo amor, mas lugar de filhos. Até pequenos
Nesse espaço, a compaixão é detalhes alteram essa percepção
pelo reconhecimento. Então assim
libertadora pois nos coloca além como, por exemplo, colocar-se na
foi que iniciei minha jornada de
das estratégias trágicas daqueles altura dos olhos daqueles de quem
cuidados, movida pelo
que recebem nosso cuidado. Nos você cuida ao conversar,
reconhecimento. Reconhecia que a
coloca em contato com nossa reassegurando que essas posições
despeito da desarmonia familiar e
humanidade. Assim foi comigo, hierárquicas da ancestralidade não
dos vários estragos que causamos
assim é com muitos de nós que se alteram em sua fala, no seu
uns aos outros, ainda assim
cuidam. corpo e em suas declarações. Se
éramos família e esse valor foi meu
ele ou ela estiverem deitados, puxe
condutor.
Enquanto essa consciência uma cadeira e converse com eles
transcendente não se instala, nos ao seu lado ou mesmo abaixo de
Entendi, com o passar dos anos de
vemos de forma recorrente ou no sua linha de visão. O corpo fala.
cuidados, que o que surge de
papel de vilões, ou de vítimas ou
qualquer contexto emocional, por (1) Para saber mais, indico o livro
de heróis.
mais leve ou doloroso que seja, é “As Ordens do Amor” de Bert
uma profunda compaixão. Hellinger
04
FRONTEIRAS
Os limites do
cuidado
Podemos depender funcionalmente sem depender
internamente. Não devemos desocupar nosso lugar no
TERCEIRO
sistema familiar ao cuidar. Filhos serão sempre filhos. Pais APRENDIZADO -
serão sempre pais. Todos somos indivíduos independentes por
natureza colaborando mutuamente. Cuidar não é um
balcão de trocas.
Há que se prestar muita atenção para dinâmicas
comportamentais onde ganhos secundários reforçam a Cuidar é uma
codependência nociva entre quem cuida e quem é cuidado.
entrega ao outro
Por exemplo, um idoso que se sentia só, pode sentir um ganho
ao ter a presença constante do filho ao seu lado. Este é um em nome de algo
ganho secundário do cuidado em si. Ao curar, pode resistir
inconscientemente a declarar-se bem por conta do risco de
maior.
perder a presença do filho.
STRESS CRÔNICO
COLETIVO
Por conta disso, pausas são No geral, para alguém estar certo
fundamentais. Busque significa que o outro está errado.
distanciamentos periódicos para Em contextos de stress crônico,
ganhar perspectiva sobre isto, essa separação tende a ser QUARTO
coloque alguém em seu lugar. Um acentuada dificultando a
único dia ou dois de conciliação e a escuta empática APRENDIZADO -
entre todas as partes – de quem
distanciamento já podem abrir um
cuida e de quem recebe o cuidado.
Ganhos secundários
novo olhar para todos os
envolvidos. são uma armadilha
Na comunicação não violenta,
O QUE APRENDI?
A oferta a partir
da ferida
EMOÇÕES
Circulei nessa jornada por todos os Já formada como coach para a área baseadas nas prioridades de
sentimentos possíveis – amor, médica, acreditei que poderia fazer minha mãe me acalmavam e
raiva, desamparo, impotência, melhor por minha mãe. O que davam algum alento.
A saúde do cuidador
Foi aí que decidi ir a fundo nesse conhecimento dos cuidados paliativos. Desde o lugar de alguém
que viveu o pior e o melhor da dinâmica do cuidado, busquei tornar-me uma conselheira capaz de
dar suporte aos muitos diálogos importantes que cercam esse momento de vida em praticamente
todas as famílias. A não ser que tenhamos uma morte abrupta, todos vamos passar por um processo
lento de adoecimento e morte. Nesse contexto, o diálogo é fundamental.
Equilíbrio no cuidar
Apesar de tanto sofrimento ao nosso redor e em nós, nos furtamos a pedir ajuda, tanto pacientes
quanto familiares. Há no ato de ser cuidado e de cuidar o risco de muitas distorções de poder que
surgem de algumas crenças limitantes.
Apenas uma consciência humanitária permite que cuidador e recipiente de cuidado se sintam em
equilíbrio. Há ganhos secundários tanto numa posição quanto na outra.
GANHOS SECUNDÁRIOS
NONO
Basta serem vistos para serem - “Não posso falhar”
ressignificados. Quando não - “Não posso contar com
APRENDIZADO -
reconhecidos, seguem causando ninguém” Para sermos bons
danos. Ao final do dia, o - “Não posso demonstrar
importante é reconhecer relações
fraqueza”
cuidadores,
de carência onde a dinâmica do
cuidado supre uma necessidade, precisamos levar
Essas crenças, muito comuns,
por exemplo de presença, que agem em conjunto para levar oxigênio primeiro a
poderia ser suprida de forma mais pacientes e cuidadores a um
saudável. isolamento crescente. Para o nós mesmos. O
As distorções de poder não são
familiar cuidador em específico,
como a metáfora do avião em
autocuidado não é
apenas externas, mas internas queda, ao invés de colocar o um luxo, mas uma
também. oxigênio primeiro em nós
mesmos, colocamos em nosso ação mandatória
Há falas que me chegam com
frequência tanto de quem cuida,
parente e sucumbimos ao lado
dele sem pedir ajuda.
para um cuidar
0 4 de quem é cuidado:
quanto
eficiente.
ABRANGÊNCIA
Competências de
um familiar
cuidador
Concluí que cuidar pode ser feito a O percurso de cuidados, por sua Uma linha de acompanhamento
partir de um valor importante, vez, pode se prolongar por toda bastante presente nesse contexto
como foi o valor da família para uma vida, por exemplo, a partir do de adoecimento prolongado e
mim, mas não se resume a isso. apoio a procedimentos que deteriorante do estado de saúde é
Um cuidador, seja familiar, um passam a fazer parte da rotina do aquela de pacientes em “cuidados
membro da comunidade ou amigo paciente (como o caso de um paliativos” ou elegíveis a
próximo irá necessitar de algumas paciente idoso com diabetes tipo 2, tratamentos que visem
competências para além do amor e osteoporose, artrite reumática ou essencialmente a qualidade de
da compaixão. Necessitará hipertensão) ou podem se tornar vida e não necessariamente a cura
quando ela não é possível.
encontrar um lugar interno de bastante complexos, a depender
independência e centramento para do quadro clínico.
Seja qual for o caso, há cuidadores
focar no que realmente importa –
que mesmo podendo contratar
o bem-estar de quem ele cuida. Um parente com uma limitação
profissionais não abrem mão dos
motora pode requerer cuidados
cuidados de banho e higiene. Com
Dentre essas competências, dou rotineiros e seguir com autonomia
frequência estão identificados com
destaque para ao menos três e controle de sua própria vida e de
a imagem do herói. Outras, trata-
segmentos: seu autocuidado no correr dos dias
se de preservar a intimidade de
sem que essa condição represente
seus bem-amados ou por falta de
Competências uma ameaça à vida. Trata-se nesse
recursos. Esses necessitarão de
Conversacionais – capacidade caso, de um “cuidado de competências técnicas também.
para interagir com equipes de manutenção”.
saúde, com o próprio paciente
e os demais familiares de No entanto, há condições de saúde
forma a gerar cooperação, que representam uma ameaça à DÉCIMO
soluções e equilíbrio vida e que seguem se agravando
APRENDIZADO -
Competências por períodos que podem se
Organizacionais – para apoiar estender também por longos Diante de
na definição e execução dos meses ou anos. Essas exigirão mais
planos de cuidados e, quando do que a maestria em
adoecimentos graves,
necessário, nas questões procedimentos de rotina, com uso psíquicos ou físicos,
financeiras e materiais que de medicações adequadas para
acaso surjam problemas crônicos. Essas cabe um novo olhar.
Competências Operacionais – situações cobrarão desses É preciso estar aberto
para apoiar nas tarefas do dia a familiares cuidadores uma
dia e nas decisões relativas a sequência de tomadas de decisão a aprender novas
cada ponto do percurso de e providências que podem ser
cuidados altamente estressantes.
competências e a
delegar.
04
FOCO
Cuidados
paliativos
Conceito e preconceito
É nesse contexto que surge a área na qual atuo como conselheira e facilitadora de diálogos - os
cuidados paliativos. Trata-se de uma área de atuação da medicina voltada, como o próprio nome
diz, a paliar, ou seja, amenizar o sofrimento em todos os campos do sofrer – físico, espiritual e
psicossocial - descritos pela fundadora do movimento hospice de centros de acolhimento a pacientes
terminais, Cicely Saunders, como dimensões da “dor total”.
Cabe ao médico que acompanha o Coaches médicos, terapeutas, Quando sequer o termo é conhecido,
paciente com essas características psicólogos e assistentes sociais cabe a quem apoia esses pacientes e
comunicar se ele é elegível a esses deveriam, a meu ver, também ter seus familiares apenas indicar que o
cuidados ou não. Cabe à família e uma noção básica sobre esse assunto seja conversado com o
ao paciente, tendo noção dessa cuidado e seus impactos na vida médico responsável.
abordagem, inquirirem aos do paciente e dos familiares.
médicos sobre sua condição de A partir dessas conversas, esses
pacientes, com apoio de seus
elegibilidade a esse tipo de Vejo a importância disso em meu
familiares, podem optar por um
cuidado. próprio trabalho. Mais de uma vez
cuidado mais apropriado a seu caso.
os familiares que apoiei souberam
Infelizmente, mesmo a classe da possibilidade de opção por
Infelizmente, muitos médicos, no
médica não necessariamente cuidados paliativos através de
meu julgamento, têm receio de
domina o uso do termo e não raro conversas comigo. O termo era
chegar ao ponto de recomendar essa
me deparei em meu trabalho com novo e desconhecido para eles
abordagem que, para muitos,
médicos que entendiam o cuidado antes disso.
significa realmente que desistiram.
paliativo como aplicável “apenas
Para nós que trabalhamos na área,
quando não há mais nada a se Isso se deve em parte a incipiência
contudo, onde alguns percebem
fazer”. do modelo em muitas regiões do cuidados paliativos como fim,
mundo. De outro lado, por conta percebemos como começo de um
dos interesses econômicos, acaba tempo de cuidados humanizados,
A questão é que sendo mais presente e conhecido
em países desenvolvidos e em
holísticos e voltados a manter a
dignidade e qualidade de vida com
há sempre algo desenvolvimento, geralmente
associado a clínicas de oncologia e
suporte integrado não apenas ao
paciente, mas também aos
a se fazer! alguns poucos hospices, quando
na verdade deveria estar presente
familiares. Esses cuidados podem se
estender por anos a depender de
como uma linha de protocolo de cada caso.
04 cuidado em todas as instituições.
FUNCIONAMENTO
O ser total
Preconiza-se em cuidados paliativos que o paciente seja acompanhado por uma equipe multidisciplinar
formada não apenas por médicos, mas também por assistentes sociais, enfermeiros, fisioterapeutas,
psicólogos, capelães, terapeutas ocupacionais, terapeutas integrativos e nutricionistas, dentre outros.
Esses profissionais tratarão em conjunto as seguintes dimensões:
Atrevo-me inserir uma dimensão, ambulatorial e até mesmo nas hemodiálise, alimentação parenteral, dentre outras,
que considero crucial e que vai casas das pessoas, com o apoio de sempre podem ser uma opção do paciente mesmo
além do contexto puramente equipes de homecare em cuidados paliativos. Mas, com frequência,
social citado por Saunders. Eu a especializadas. pacientes sob esses cuidados optam por não
denomino "relacional”, associada adotar essas medidas e permitir que o processo de
a violência na comunicação em Há muita pouca compreensão ao morte se desenvolva naturalmente e sem dor, com
todos os níveis que orbitam a área redor do mundo sobre o tema e, a amenização necessária e suficiente de eventuais
sintomas que gerem desconforto.
de Saúde na relação equipe não raro, ele é entendido como
médica-paciente-familiar, eutanásia, que é a morte induzida.
Ao redor do mundo, estão presentes como padrão
incluindo toda sorte de abuso de Na verdade, em cuidados
de conduta na maior parte dos hospitais as
poder, autoridade e manipulação paliativos adotam-se os princípios
medidas baseadas nos princípios da distanásia cujo
presentes em grande medida. da ortotanásia, que encara a
foco é prolongar a vida fazendo uso para isto de
morte como um processo natural
todos os recursos, relegando o conforto e
Esses cuidados nessas dimensões que idealmente, mas não
qualidade de vida do paciente a um segundo plano.
são encontrados com mais necessariamente, deve seguir sem
frequência em hospitais dedicados medidas intrusivas e amparado
Muitos seguem dentro da distanásia por simples
a oncologia. O ideal seria que por uma equipe multidisciplinar. desconhecimento de que haveria alternativas. Por
estivesse presente em hospitais conta disso, paliativistas em todo o planeta têm se
gerais, no atendimento Medidas invasivas como preocupado em educar e informar sobre as
intubação, eletrochoque, escolhas possíveis.
04
Quando conduzido a contento, cuidados
NOVO OLHAR
paliativos contam com conselheiros
como eu que podem ter diversas
Esperança
formações de base (assistentes sociais,
psicólogos, enfermeiros etc.), com
especialização na aplicação de técnicas
conversacionais e instrumentos que
ajudam o paciente e seus familiares a Um caso que gosto de contar remonta a um exemplo dado em
definirem suas prioridades, a cuidar de meu curso de especialização em cuidados paliativos. Tratava-
sua narrativa quanto a doença, a se de uma senhora que sonhava ver o neto nascer, mas estava
valorizar memórias, a lidar com o em sua terceira recidiva de câncer e sua filha grávida de três
adoecimento e a morte desde um lugar
meses na ocasião. Apesar de sofrer com os efeitos da
de compaixão e não de combate. Sim,
quimioterapia e reconhecer que essa não lhe traria a cura,
de compaixão pois com isso evitamos a
escolheu se submeter a mais sessões, entrou em remissão e
percepção do adoecimento e da morte
como um fracasso, a perda de uma com isto conseguiu ver o neto nascer.
“guerra”, ao invés de um processo
natural da vida.
O QUE FAZEM OS
CONSELHEIROS?
ele. E isto vale trata tão somente de bom senso, de coleção de pequenas esperanças
priorizar o que realmente importa e trazem uma nova perspectiva e
para o paciente e encarar o fim como algo natural. A confortam também.
cuidam dele pessoal e pode mudar de pessoa para de abandono. Em cuidados paliativos
há uma preocupação constante em
pessoa. Cuidados distintos podem
também. fazer parte de momentos distintos,
honrar a história do paciente e dar voz
a ele e a sua família.
tudo depende das prioridades e
propósitos do paciente,
PANORAMA
Contexto
Mundial
Nem todos os países estão A verdade é que devemos O familiar que cuida a partir dessa
avançados nesse setor dos nova consciência tem como principal
nos ater aos princípios e
cuidados paliativos e, ainda que função perguntar e cuidar para que
não estejam, há um movimento
atuar com o que cada as decisões do paciente (ou de si
crescente de consciência que tem região oferece! mesmo, quando este for seu
levado familiares a adotar esses procurador médico), estejam
princípios, mesmo não havendo Não havendo a estrutura de um realmente embasadas nos princípios
uma equipe de cuidados paliativos hospice, para casos mais paliativos, que são, essencialmente:
A morte amiga
Novas profissões estão emergindo como as de “doula da morte”, que também tenho a honra de
exercer, embora sejamos poucos os formados nessa área em meu país. A maioria de nós
certificou-se pela escola Amortser (@amortser_contato), que trouxe um olhar sistêmico
fundamental nesse contexto. A morte, embora uma experiência pessoal, impacta diretamente a
todos ao redor, incluindo a própria equipe médica.
O RIO E O MAR
O cuidador na
atualidade
Essa nova consciência de cuidados A pergunta fundamental que Os familiares da atualidade estão
traz ao familiar uma série de surge a partir dessa nova na transição de um sistema
dilemas e decisões que resultam consciência é: “para quê?” centrado no saber científico para
num impacto significativo em sua um sistema centrado no paciente.
própria condição de stress. Em Outras perguntas importantes E, nesse lugar, a escolha de
última instância, cabe ao cuidador derivam desse questionamento tratamentos, procedimentos e
familiar buscar alinhar as decisões principal: exames deve ser compartilhada.
ao desejo de seu parente levando Isso traz, de um lado, a
a múltiplas negociações com Qual o resultado esperado desses oportunidade maravilhosa de
todos, tanto direto quanto exames? envolvimento do paciente em seu
indiretamente envolvidos. Esse A que decisões esses resultados próprio processo de cura ou no
stress assim gerado está presente podem levar? manejo de seus sintomas e, de
Quais os efeitos colaterais desses outro, um aumento do stress
em todo cuidador, mas apresenta
tratamentos? associado à participação na
um aumento significativo naqueles
Qual a chance de eles tomada de decisões que antes não
que acompanham pacientes com
apresentarem um resultado de fazia parte, por assim dizer, do que
doenças graves ou terminais.
cura? se esperava de um familiar
Em que esses tratamentos cuidador.
Com frequência, delegam-se as
impactam a qualidade de vida?
decisões ao médico e sua equipe.
Qual o prognóstico com e sem Em verdade, não existe um padrão
Hoje, com a informação cada vez
tratamento? universal de relacionamento
mais ao alcance e com a extensão
Quais alternativas não- médico-paciente e ele pode variar
do conceito de sustentabilidade muito conforme a cultura e o nível
farmacológicas indicadas?
para todos os setores da vida, social e econômico do paciente e
incluindo a saúde humana, o sua família. A dura verdade, ao
O cuidador deve ser, sobretudo, um
familiar que cuida não deveria ser menos em países
questionador.
apenas um observador passivo, subdesenvolvidos ou em
mas um participante ativo de um desenvolvimento, é que quanto
No passado, uma ordem médica era
processo paliativo. Quando o maior o nível socioeconômico,
simplesmente obedecida ou não, a
parente não está envolvido, caberá maior a possibilidade de o
partir do entendimento de que ele, o
ao cuidador interferir pelo seu cuidador encontrar um ambiente
médico, sabia de tudo e o paciente
bem como veremos a seguir. propício a uma participação ativa
de nada. Hoje vemos surgir uma
nas decisões de tratamentos e
abordagem ainda incipiente, mas
Com uma posição ativa, uma nova exames. Por conta disso, no ano de
crescente, de participação do
pergunta se coloca ao familiar e ela 2021, fundou-se um movimento
paciente e familiar junto ao médico e
pode levar a muitas respostas e ao mundial “cuidados paliativos para
à equipe. Isso é uma mudança boa,
manejo de muitas conversas todos”, de equanimidade de acesso
mas novos desafios surgem a partir
difíceis no correr de seu cuidar. a cuidados paliativos com foco em
daí.
reduzir essas e outras diferenças.
04
COMPORTAMENTO
Uma pesquisa realizada em 2016 que o desconhecimento é sim um Como vimos, um cuidador é muito
nos Estados Unidos atuou sobre fator gerador de sofrimento. (4) mais que presença e amor.
familiares cuidadores que se Assume responsabilidades
ocupavam não apenas dos Existem, claro, desafios para operacionais, organizacionais e
cuidados em casa, mas do implementar esse apoio em larga conversacionais para além do ato
transporte e alimentação dos escala, mas ele olha para um de cuidar fisicamente. Este, por
pacientes, além de outros cuidados problema crucial. A saúde e o bem- sua vez, pode ser delegado a um
como levar a consultas médicas ou estar dos cuidadores principais serviço de homecare, o que ainda
dar medicamentos. Participaram interessam sim à Saúde num nível assim não exime o cuidador
294 famílias de pacientes com mais global. Só nos Estados principal de toda a gestão, muitas
câncer em estado IV nas regiões do Unidos, 21,3% da população é vezes até financeira, dos cuidados.
pâncreas, pulmões, cérebro, cuidadora de algum parente. A
ovários, hematológico e cabeça e pesquisa de 2020 da National Esse contexto é, portanto,
pescoço, distribuídas em 8 centros Alliance for Caregiving mapeou um impactante a uma parcela
oncológicos. perfil notadamente feminino e de significativa da população que, não
cuidadores seniores, acima dos 49 raro, trabalha e tem outras
Exercitaram com essas famílias anos, como predominante. No obrigações além do cuidado,
uma abordagem de suporte Brasil não é muito diferente. Trata- gerando um quadro dominante de
diferenciada. Durante três se de uma contribuição ao sistema exaustão e estresse nesse grupo,
semanas, tiveram uma sessão via de saúde fundamental pois os sempre relegado a segundo plano
telefone de uma hora cada, cuidadores exercem uma média de pelo sistema tradicional de saúde.
simplesmente para educar e tirar 6 a 8 horas de cuidados ou mais,
dúvidas sobre os cuidados, o podendo ir além quando em fase
câncer de seus parentes e outras final de vida. Não é possível
questões operacionais. O resultado
foi uma queda significativa no nível bem cuidar do
de depressão e estresse desses
familiares, reforçando a tese de
(4)Para saber mais visite:
outro se
https://ascopost.com/News/43891
04 descuidando de si
CONHECIMENTO
Dispneia
Cuidadores ativos, com suporte e orientação adequada, podem conduzir as conversas de cuidado e
não simplesmente aderir aos tratamentos propostos sem que esses sejam factíveis e de fato
desejados pelo paciente.
Para tal, será necessário ao Da minha vivência pessoal e a) Uso de oxigênio ou um simples
familiar cuidador que se informe profissional acompanhando ventilador – pacientes sentem
das várias alternativas, pontos pacientes em cuidados paliativos, alívio com a simples ventilação no
positivos e negativos de novos vejo alguns pontos de decisão quarto direcionada ao rosto;
tratamentos e exames na medida quanto à execução dos cuidados na
que o quadro evolua. Obviamente, dimensão física que são com b) Cuidados com o estilo de vida e
o próprio paciente poderia exercer frequência a maior fonte de stress fisioterapia, com vistas ao
esse papel, mas nos quadros mais para todos. São eles: fortalecimento muscular quando
avançados, no geral, não há possível;
energia nem tampouco habilidade 1) Dispneia – Este é um sintoma
cognitiva para tal. particularmente angustiante e que c) Buscar se afastar dos gatilhos
leva a visitas frequentes às que levam a asma e procurar
A partir de minha experiência emergências. Cada deslocamento do reabilitação pulmonar sempre que
apoiando famílias nesse contexto, paciente é, para familiares e o possível;
me dou conta que não é um próprio paciente, fonte de stress e
paciente que adoece, na verdade é preocupação. A falta de ar pode ser d) Dar atenção especial a
todo o sistema. Esse sistema fruto da falta de condicionamento alimentação na posição deitada
envolve familiares, amigos, sua físico, fumo ou outras condições devido aos riscos de brônquio
comunidade, equipe médica e associadas ao estilo de vida. Quando aspiração com agravamento do
terapeutas, dentre outros. Cuidar em pacientes graves pode estar quadro respiratório
das relações é fundamental e, na associada a doenças pulmonares ou Dar preferência a permanecer
ausência de um conselheiro, cardíacas, dentre outras. Se sentado ao invés de deitado,
caberá ao cuidador principal associada a dores no peito, náusea dentre outras medidas.
promover a comunicação e gerir a ou desmaio, pode configurar um
execução dos acordos na medida quadro mais grave. Em processos de
de suas competências e fim de vida ela pode estar presente Manejo de sintomas
facilidades. também. Algumas alternativas não
medicamentosas para lidar com e qualidade de vida
Essa pressão sobre o esses sintomas incluem, mas não
exaurem todas as possibilidades,
andam de mãos
cuidador despreparado pode
ser avassaladora. como: dadas
04
2) Fadiga e astenia – Pacientes MANEJO DE
acometidos por doenças graves
podem se ver cansados facilmente e SINTOMAS
ter uma dificuldade maior para
recuperar a energia depois disso.
Com isto, tendem a se movimentar
cada vez menos, gerando um ciclo Astenia e
Caquexia
vicioso de perda de tônus muscular
e cansaço crescente.
Astenia, por sua vez, diz respeito ao
cansaço crônico sentido por esses
As doenças tem vários sintomas invisíveis. O cansaço constante
pacientes. Isso deixa-lhes com a
e o emagrecimento tornam visível o estado do paciente e isso
impressão de uma fadiga sem fim e
nem sempre é facilmente encarado pelo familiar que cuida..
sem recuperação possível.
Definimos a fadiga como um estado
subjetivo no qual a pessoa se sente
cada vez mais sem capacidade para
esforços físicos ou cognitivos.
Terapeutas ocupacionais são
valiosos nessas questões em
especial. Se a identidade de uma
pessoa está fortemente baseada no
que ela faz, a fadiga pode trazer
uma crise existencial que
idealmente deverá ser
acompanhada por um psicólogo ou
profissional competente como coach
médico, capelão, assistente social,
enfermeiros ou mesmo o próprio 3) Anorexia e caquexia – Anorexia, No entanto, a perda de apetite é uma
médico. Pequenas providências dentro do contexto de saúde física, é reação natural do organismo na
comumente entendida por perda de preservação de energia vital, em
podem também amenizar esse
apetite e, quando associado a um especial nos momentos finais de vida.
quadro como: distúrbio psíquico, pode levar o
indivíduo a não reconhecer sua Dificilmente é possível reverter essa
a) Caminhadas curtas ao redor da própria imagem e seguir na busca de perda de peso em casos terminais.
casa ou jardim emagrecimento.
Dor
casos, podem estar associadas a
interações medicamentosas ou
excesso de medicação. Noutros, à
reação a tratamentos como
O alívio da dor é certamente uma área de extrema prioridade
quimioterapia e radioterapia, ou,
em cuidados paliativos. Políticas públicas, falta de formação
ainda, por simples indisposição,
de profissionais e preconceitos no uso de opióides impactam
dificuldade digestiva ou como
diretamente seu uso.
resultado de sua patologia. Uma
equipe médica deverá avaliar todas
essas causas prováveis, e outras
mais, antes de decidir por
tratamentos farmacológicos e não
farmacológicos.
Como a ansiedade pode ser um dos
fatores para esse quadro, há de se
avaliar também o estado emocional
predominante e procurar dar o apoio
necessário. Em linhas gerais, é algo que
pode ser minimizado pela escolha
4) Manejo da dor – Esse é de de que opióides viciam e devem ser
correta da melhor solução, caso a caso.
certeza o principal foco em evitados a todo o custo. O que essa
Cabe ao cuidador buscar os melhores
cuidados paliativos – amenizar a crença não considera é em que
profissionais nessa área, já que existem
dor. A dor é considerada uma circunstâncias esse risco deve ser
dezenas de alternativas, cada qual
corrido. Logo, passa a se tornar parte
percepção subjetiva e muito focando em diferentes aspectos desse
do protocolo, em alguns locais,
cuidado deve se tomar ao julgar a desconforto. Desde o uso de
simplesmente evitar o uso de morfina,
dor do paciente. O correto nesses bloqueadores de serotonina até um
por exemplo, sem ao menos
casos é utilizar uma escala de dor e considerar o nível de dor relatado pelo refrigerante à base de gengibre podem
pedir ao paciente para comunicar a paciente. contribuir para a redução do mal-estar.
sua dor sendo entre 0 (nenhuma) e Porém, vale citar, ainda que tenha
10 (insuportável). O profissional preparado será capaz orientações desse tipo, ouça primeiro a
de definir para cada nível de dor o tipo equipe médica antes de adotar medidas
Ele pode também ser entrevistado pelos de medicamentos ou medicamentos por conta própria.
instrumentos corretos para que se veja mais aderentes, podendo compor o
Esse quadro pode ser agravado pela
claramente o tipo de dor (visceral, tratamento com analgésicos, não
constipação, muito comum também,
neuropática ou somática), assim como opióides, opióides, corticoides e anti-
não apenas por questões alimentares
suas características específicas inflamatórios.
em si, quando há ausência de fibras,
(presença com e sem gatilhos,
É fundamental que o cuidador
mas também pela redução do nível de
constância e amplitude durante o dia e
a noite, etc). acompanhe esse processo e as motilidade intestinal, pela proporção de
reações do paciente no correr do líquido nas fezes e lubrificação do trato
Em cima dessas informações, um tempo, incluindo tontura, náusea, intestinal. Mudanças alimentares,
profissional preparado poderá prover a fraqueza e outras mais, reportando medicamentos laxantes, exercícios e até
medicação necessária. isso ao médico responsável. Atenção a posição ao defecar podem auxiliar no
Infelizmente, em países como o Brasil, aos batimentos cardíacos, que são no tratamento da constipação. O chá de
há poucos profissionais preparados geral alterados por esse tipo de sene também pode ser usado nesses
para tal. medicação, e outros efeitos colaterais, casos, mas novamente, segundo as
como a constipação. Reavaliações da
prescrições médicas cabíveis. Caso não
O resultado é a sub-medicação, levando dor devem ser feitas periodicamente e
se defeque em 48 horas, uso de
muitas vezes à morte com dores que a eventual retirada de algum desses
supositórios e manobras que favoreçam
poderiam ser tratadas. medicamentos deve ser acompanhada
a motilidade das fezes pode ser
Além do uso errôneo de doses mal com cuidado pelo especialista.
utilizado.
dimensionadas, ainda há uma crença
SAÚDE MENTAL
Visão integrativa
Qualquer quadro de deficiência mental, demência ou delírio compromete sobretudo a capacidade de
autoconsciência e comunicação do paciente. Isto impacta diretamente o tratamento dos sintomas,
em especial a dor.
Ocorre que o cuidador atento pode observar mudanças no paciente que um profissional de saúde
talvez não reconheça de passagem. Mesmo uma simples contração do rosto pode ser um sinal, por
exemplo, de uma experiência de dor, assim como gemidos ou mesmo um olhar apreensivo.
O impacto das
narrativas no
cuidado
o caos segue e dificilmente as coisas se
Tão importante quanto estar a par dos possíveis sintomas e
tornam claras e conversadas, a não ser
dilemas de cuidados, é cuidar das narrativas que, como com a intervenção de um profissional
cuidador, nos fazemos sobre o que se passa, tal qual sua neutro para promoção do diálogo
influência sobre a narrativa dos próprios pacientes. Este é um necessário.
Espiritualidade
Não apenas a narrativa tem impacto no sofrimento psicossocial e espiritual, mas também o
modelo espiritual do paciente e do familiar cuidador. Quando há a presença de profissionais de
capelania laica, essas conversas têm lugar, quando não, cabe ao próprio cuidador se atentar
para essa perspectiva e seus impactos nos cuidados. Nesse lugar nos tornamos curiosos em
relação ao que é sagrado. Espiritualidade não é sinônimo de religiosidade.
As categorias a seguir representam os no geral, a doença como o defeito na instituições, eximindo o paciente de
modelos espirituais mais presentes e seus máquina do corpo que precisa ser sua responsabilidade pessoal sobre
respectivos impactos nas decisões de saúde: consertada. Alguns não se sentem sua própria cura.
responsáveis por sua condição de saúde e
4) Modelo Vibracional – Aqui o
1) Modelo Moral – Nesse modelo acredita- deixam aos médicos e equipe a
paciente entende que sua doença
se que a doença traz um ensinamento, responsabilidade de modificar a situação.
surgiu de algum desbalanceamento,
constrói o caráter, purifica o espírito ou Esse modelo separa o cuidado ao corpo do
bloqueio ou enfraquecimento do
simplesmente nos eleva a um nível superior cuidado psicossocial e espiritual. Cuidados
fluxo de energia. Consideram que
de consciência. paliativos são uma exceção nessa área,
somos mais do que o corpo. Esse
Um paciente que segue esse modelo procura enxergando o indivíduo como um todo. O
modelo surge em diferentes crenças
apoio na medicina, mas acredita que no impacto desse modelo na adesão a
e não apenas orientais. Para esses,
limite é a espiritualidade que define ou não tratamentos tem a ver com a postura do
a cura trata-se de um processo de
sua cura. Pode sentir-se envergonhado por paciente, que no geral minimiza a
restauração dos níveis e fluxo de
sua falta de fé, culpado ou até raivoso caso a importância de sua participação em sua
energia, favorecendo a visão
divindade não venha em seu socorro. Em própria cura.
integrada do corpo-mente-espírito.
alguns casos, como nas Testemunhas de
Com esse modelo, o paciente tende
Jeová, podem colidir com o modelo 3) Modelo Social – Esse modelo surge da
a estar mais favorável a mudanças
biomédico e científico colocando sua ideia que é normal ao corpo humano sofrer
de estilo de vida. No entanto,
doutrina ou preceitos espirituais acima das de alguma limitação. Esse movimento
tendem a sentir vergonha se não
recomendações médicas, negando, por começou nos anos 60 para garantir a
alcançam a cura a despeito de sua
exemplo, as transfusões de sangue. Por mobilidade nas cidades, como rampas para
positividade. Alguns, chegam
outro lado, mostram-se mais abertos à busca cadeiras de rodas, e se expandiu para
mesmo a rejeitar tratamentos da
de reparações e reconciliações como seu aqueles que sofrem toda e qualquer
medicina tradicional.
passado através do perdão e do diálogo, limitação ou doença com ameaça da vida.
apresentando uma capacidade ampliada de Surge aí todo um cuidado para não sofrer Há que se abrir diálogos de acolhimento
encontrar conforto espiritual. estigmas e ver, pelo contrário, os quadros neste lugar e novamente entender que é
de adoecimento grave como algo a ser o modelo do paciente, você concorde ou
2) Modelo Biomédico Científico – O cuidado acolhido e amparado pela sociedade e não, que deverá prevalecer. Isso começa
em pequenos gestos. Até na música,
em saúde na atualidade está fortemente comunidade. No entanto, ele não é útil
mantra, canto ou oração que se coloca
baseado em evidências científicas e o quando a partir desse modelo se culpa
para ouvir no quarto.
paciente que se atém a esse modelo entende, outras pessoas, governos e
04
MORTE
Acordos
Quando todos os recursos se São questões dolorosas, mas que, providências. Aqui recomenda-se o
esgotam, as conversas de fim de se conversadas em vida, poupam o registro em cartório, evitando
vida se tornam fundamentais. familiar de uma série de decisões judicialização de algo que não
delicadas e discussões familiares precisa ser judicializado, já que é
Não menos importante, está nosso que se seguem durante e após a garantido pelo Conselho Federal
preparo para a morte do parente morte do parente. No melhor dos de Medicina.
que cuidamos. Aliás, o preparo não mundos, além da conversa, pode-
é apenas do cuidador, mas do se documentar os tratamentos aos Mais do que preencher modelos
paciente também. A morte é um quais está aberto a receber num respaldados em seu país de
tabu e o sistema de saúde atual “testamento vital”. residência, é importante que esses
literalmente a esconde, sendo os documentos reflitam os valores,
protocolos padrões levar o Ainda em tempo, caberá também crenças e prioridades do paciente.
ao paciente apontar e discutir a Para isso, um profissional
paciente a uma UTI onde no geral a
indicação de alguém conhecido preparado saberá encaminhar uma
morte é vivida como um fenômeno
(que não seja da equipe médica entrevista com esse fim – clarear
individual e solitário.
nem tenha interesses materiais as diretivas em função de todas as
conflitantes) para representá-lo possibilidades.
Como doula da morte, acredito na
caso não esteja em condição de se
importância da presença de
comunicar através de um Essa entrevista pode ser
familiares durante os processos de
“mandato duradouro”. Trata-se de encaminhada pelo conselheiro em
morte ativa de seus entes
uma procuração médica cuidados paliativos, por uma doula
queridos. Acredito no poder de
orientando sobre da morte ou mesmo por um
geração de campo favorável ao advogado com formação nesse
responsabilidades e diretivas para
bem morrer nessas condições de segmento. Não havendo um
esse procurador representar o
acolhimento. Idealmente, a profissional com esse perfil,
paciente quando este não tem
escolha, como sempre, deve ser do existem inúmeros modelos a
condições cognitivas ou de
paciente. disposição na Internet. Priorize
expressão de suas vontades. Vale
aqueles com respaldo judicial local.
ressaltar que idealmente deverá
Quando perguntei a meu pai como
ser alguém com equilíbrio e
ele gostaria de ser acompanhado, Importante incluir nas diretivas o
distanciamento emocional, que
ele contou que gostaria de morrer atestado psiquiátrico quando o
aceite tal responsabilidade e tenha
como os cachorros das fazendas paciente está numa condição
disponibilidade para esse apoio.
que se afastam da casa para avançada que seja entendida como
morrer sós sob uma árvore. Não impactante em sua habilidade de
Fragilidade não resulta em
queria a presença de ninguém da definir com lucidez suas diretivas,
família e assim foi. Já minha mãe
ausência de vontade. ou ainda, por alguma condição de
preferiu estar num hospital sob demência. Por conta disso,
amparo de uma equipe médica, “Testamento Vital” e “Mandato recomenda-se realmente cuidar
Duradouro” estão no quadro de dessa documentação com
mesmo optando por não adotar
uma categoria denominada antecedência. A anuência em
nenhuma medida de ressuscitação
“diretivas antecipadas de vontade”, documento desse psiquiatra na
ou invasiva. Lá estive todos os dias
garantida pela resolução 1995 de avaliação positiva da capacidade
até sua passagem.
2012 do Conselho Federal de psíquica é fundamental.
Medicina no Brasil e mundo afora.
Há que se abrir conversas que,
Embora as diretivas antecipadas Vale ressaltar que, mesmo que
embora difíceis, são muito
sejam pouco conhecidas, trata-se documentado, a prioridade está
importantes para honrar a vontade
de documentos fundamentais para em ouvir o paciente quando este
de quem parte. Como gostaria que
fazer valer a vontade de um está em condições de se expressar.
fosse? Em hospital ou em casa?
paciente sobre seu tratamento e Ideias se alteram quando
Sedado ou não? Com ou sem
momentos finais, incluindo confrontadas com a realidade dos
tentativas de ressuscitação?
cuidados com o corpo após sua tratamentos e exames e o que for
Cremado ou enterrado depois?
partida, velório e demais dito no momento presente
sobrepõe qualquer vontade escrita
MORTE
Preparação
Além desses relatos e conversas, de morte quando esses estão abertos em profundo sono. São escolhas
para que esse momento seja vivido a conversar a respeito. Em linhas do paciente.
gerais, vejo que aqueles que se
com mais leveza, é necessário a
tornaram interessados em saber como
meu ver entender ao menos um Mesmo um paciente que não mais
se passa a morte atravessaram esses
pouco sobre o processo de morrer se comunica sinaliza que está com
espaços com mais serenidade.
em si. Ele pode ser assustador não dor. Ele pode apresentar sudorese,
apenas pelo que presenciamos, aumento do batimento cardíaco,
Nos estágios finais, a pessoa que
mas também porque nos coloca tensão no corpo, rigidez nas
está morrendo ficará mais
frente a frente com a nossa articulações, contorções ou
introspectiva. Dê espaço para que
própria finitude. A não ser que espasmos. Enfim, ao assistir
isso ocorra e evite muitas visitas.
vejamos a morte realmente como alguma inquietude dessa ordem,
Suas atividades se reduzirão
um processo natural no ciclo da solicite avaliação médica e
gradualmente e a alimentação não
medicação adequada.
vida, não teremos condições de será demandada por eles. Pode
acompanhar esse precioso haver interrupção parcial ou total
Medicações podem causar uma
momento no qual nossa presença da produção de urina. Não
lentidão na respiração, mas isso
é tudo que aquele de quem sentirão fome, nem sede. Esse é
não causa desconforto ao
cuidamos precisa. O medo da um mecanismo natural do
paciente. Alguns podem
morte tem impacto direto nessa organismo para que a morte seja
apresentar no fim de vida ruídos
decisão do cuidador de estar mais confortável. Há, no geral,
conhecidos como sororoca ou
presente ou não. perda total de apetite e sonolência
ronco da morte. Novamente, como
constante. Apenas sua presença, explicado anteriormente, não há o
Para morrer é preciso um toque suave e o silêncio já que temer e simples
encerrar as questões abertas serão reconfortantes. procedimentos posturais podem
e esse é um lugar de alterar esse quadro.
O medo pode estar presente,
redenção.
nem por isto ele é o A respiração irregular também
O foco deve estar no tempo e o condutor. pode estar presente a depender
que fazemos dele. Sendo em das condições clínicas. Isto
A maior angústia para pacientes e dependerá do nível de fraqueza do
muitos casos escasso, há que se
familiares é que a morte venha paciente, da progressão de sua
olhar para o que faz sentido para
cercada de dor. De fato, dor e doença, infecções, imobilidade e
aquele que acompanhamos e para
ansiedade podem acompanhar os outros inúmeros fatores.
o que pode ser feito mesmo
dentro de circunstâncias últimos momentos, porém há
limitadoras. Sendo a morte inúmeras alternativas para aliviar
anunciada, usufruir a vida e os esse sofrimento.
prazeres até o limite das
possibilidades. Não negue a seu Com o uso de opióides prescritos
bem-amado um gole naquela taça nos mais diversos formatos –
de vinho para matar as saudades injeções, aplicados diretamente na
de uma viagem importante. veia, oralmente, por supositório ou
Pequenas transgressões são adesivos – busca-se tratar esse
permitidas em prol de nosso maior sintoma de imediato. Ainda assim,
bem – a vida! há pacientes que recusam a
sedação e preferem passar por
Converso com os familiares que esse processo com dor. Outros
escolhem a sedação paliativa que,
acompanho para explicar-lhes a
além de reduzir a dor, os colocam
fenomenologia do processo ativo
MORTE
Processo
Acredita-se que a audição é o último sentido a se desligar. Não perca a oportunidade de dizer o
que surge em seu coração. Não tema chorar. Sua voz alcança aquele que está de partida e pode
trazer conforto. Tocar, por sua vez, pode ou não ser reconfortante. Observe a reação de seu
parente ao toque e se julgar pacificador, use o toque para dizer de seu apreço.
Mudanças na respiração
Longas pausas entre a
entrada e saída de ar
Cor azulada nos lábios,
extremidades e pernas
Resfriamento do corpo
Inquietude, confusão mental
e conversas com pessoas
invisíveis
Espasmos musculares
Perda do controle do
intestino e da bexiga
Baixo pulso, muitas vezes Ao finalizar o processo de morte,
inaudível lhe convido a simplesmente estar
ao lado do corpo. Seu ente A morte é como um
querido está partindo e esse não é
Não necessariamente é uma cena
um processo imediato. Não há
nascimento
pacífica. Por vezes o paciente é
acometido de delírios e pode providência a se tomar que exija
movimentos imediatos, então se Com ou sem a presença de um
apresentar movimentos bruscos
permita estar em “câmera lenta”. profissional da área, o familiar
que representem risco. Nessas
Viva esse momento. Ele pode ser cuidador pode optar por ritualizar a
ocasiões, se internado, poderá ser
fundamental para o preparação do corpo. Utiliza-se
amarrado ao leito e sedado.
estabelecimento de um luto ramos de lavanda, alecrim, sais de
Ocorre que esses delírios podem
reparador depois. banho e cristais em banhos ao corpo
trazer poderosos conteúdos
que podem ser uma oportunidade
emocionais sanadores. De alguma
Sua presença é seu maior importante para o familiar honrar a
forma, o subconsciente necessita
história de seu ente querido. Uma
integrar situações importantes presente
mecha de cabelo pode ser retirada e
nesses momentos de forma que
posteriormente colocada em âmbar.
haja a paz suficiente para a Caso sinta que essa experiência
Todo ritual traz sacralidade a esse
passagem. Minimize as medidas possa ir além de suas
momento. Veja o que ressoa em
intrusivas sempre que possível possibilidades, não se julgue por
você.
nessa hora. isto. Busque ajuda de outros
familiares ou amigos que possam
Durante a pandemia, devido a
Mesmo após a declaração do óbito sustentar esse espaço e,
pessoas que morreram por COVID,
por um médico que esteja eventualmente, busque o apoio de
outras possibilidades de rito se
um profissional preparado para
presente, podem ocorrer abriram. Velórios virtuais e plantio
esse fim como uma doula da
espasmos, ruídos e a liberação de das árvores favoritas foram algumas
morte que cuide, mesmo antes da
fluidos pela boca, nariz e demais das saídas encontradas. O
morte em si, do resgate de
orifícios. São movimentos normais importante é que o rito tenha lugar,
memórias e das conversas com
devido a todo o processo de seja lá qual for seu formato.
familiares e parentes. Elas
relaxamento que se segue.
preparam e conduzem esse
momento tão especial.
04
DICAS
O tripé do cuidado
Com tudo aqui apresentado, resumo nas seguintes “dicas de ouro” o que tenho a dizer aos familiares
passando por essa situação desafiadora do cuidar:
Conhecimento é
componente
fundamental
para ampliar seu
poder de decisão
consciente, com
menos stress e
mais harmonia
entre todos.
1 – AJUDA - Peça ajuda sempre! 2 – RESPEITO - Respeite os desejos 3 – DIÁLOGO - Questione, pergunte,
Sua vulnerabilidade é força pois expressos ou subentendidos busque entender as alternativas e
permite que surjam espaços de daqueles que você cuida mesmo apoie quem você cuida a entender e
reabastecimento de energia vital que esses sejam diferentes dos decidir sempre que possível for.
para seguir em frente. Você é um seus, independente da idade deles, Busque estar com profissionais de
humano cuidando de outro e mesmo que estes sofram de saúde que valorizam o diálogo. Não
humano. Sua rede de apoio pode alguma condição psiquiátrica. Você tema o diálogo, mesmo que
ser encontrada não apenas na pode seguir honrando sua essência conflituoso, com o paciente e outros
família, mas em associações, até o fim. A manutenção da familiares. O silêncio é sempre pior.
comunidade, amigos e junto a dignidade é altamente restauradora Não imponha suas vontades próprias,
profissionais especializados nesse e os interesses do paciente estão negocie. Não postergue as conversas
suporte como medical coachs, em primeiro lugar. Jamais manipule! difíceis sobre tratamentos e morte.
conselheiros e facilitadores de A fragilidade de seu recipiente de Documente o resultado desses
diálogo especializados na área cuidado não justifica invalidar o diálogos sempre que for possível,
médica. Busque apoio a você poder deste de decisão. Minimize os priorizando as diretivas antecipadas
próprio e a seu familiar. Ainda que riscos sempre que possível e, se não de vontade.
pesem questões financeiras, isso encontrar respaldo, procure pessoas
não precisa ser justificativa para com influência ou neutras que Montar sua rede de apoio, manter o
não procurar ajuda. Existem possam colaborar com as conversas respeito ao paciente e diálogo em
muitos projetos sociais de apoio a difíceis. Você não é o salvador de todos os níveis são, a meu ver, o tripé
pacientes e familiares em todo o seu parente, você é o apoiador. de sustentação de uma experiência de
mundo. Inúmeras associações cuidado vencedora. Para tal, estude e
voltadas a problemas de saúde Respeito também consigo mesmo, busque saber mais sobre a condição
específicos oferecem suporte buscando sempre um equilíbrio clínica de seu parente e sobre os
gratuito de ordem emocional, legal entre suas necessidades essenciais e documentos legais que corroboram
e de orientação prática. Se esse for daquele a quem você cuida. para sua tranquilidade na execução
seu caso, pesquise e encontre o Respeito e autocuidado. O oxigênio das vontades dele em vida e após sua
que melhor lhes atender. primeiro em você. morte.
04
Presos em nossos medos e desejos, não POSTURA
enxergamos as possibilidades que
surgem no aqui e agora. Confie, pois, no
Paz e entrega
poder do hoje. Essa simples atitude
interna muda tudo, até que em algum
momento o sofrimento se transforma
em aprendizado, liberdade e propósito.
Acredite, podemos estar no olho do furacão e com o
Olhe para o outro e olhe para si. Hora sentimento de que o mundo está desabando sobre nossas
ele, hora você. É preciso se reabastecer. cabeças, mas, ao estarmos íntegros com nossos valores e
Separar o que é seu do que é do outro. coerentes em nossas ações, os resultados serão sempre
Dance com essa realidade incerta. melhores. Há quem diga que há uma estranha serenidade no
Cuidar de alguém não é sinônimo de olho do furacão, enquanto o mundo rodopia ao redor do
esquecer de si mesmo.
centro. Seja o centro desse furacão e espere a tempestade
passar para saber o que vem depois.
Curta essa valsa do cuidado com
flexibilidade e esteja atento aos convites
e ofertas escondidas sob o manto da
dor. Convites para estabelecer novas
prioridades em sua própria vida, oferta
de muitos aprendizados. Com o tempo,
mesmo com os pés cansados de tantos
rodopios no salão, restam as boas
memórias desse estranho baile. O baile
da vida e seus ciclos sem fim.
Para mim, não haverá humanização deixando ao outro a responsabilidade
CUIDAR É UM ESPAÇO DE CURA em saúde enquanto não olharmos a de cuidar de sua participação nessa
PARA TODOS! humanização da saúde englobando os dinâmica. Soltamos e seguimos em
sistemas familiares nos quais o frente.
É chegado o momento de migrar de um paciente está inserido. A boa notícia é
modelo onde o cuidador é um que, embora incipiente, esse é um Meu maior aprendizado nessa longa
“tarefeiro” para um modelo onde o movimento já em andamento ao redor jornada foi de me esvaziar. Não
cuidador é um “apoiador ativo” de um do mundo. macular com meus julgamentos
paciente digno, pleno de recursos e aqueles que cuido ou que acompanho
íntegro. Que você seja simplesmente o Dos percursos que acompanhei e de em seus percursos de cuidado. E de
cuidador que lhe é possível ser! minha própria experiência pessoal, estar aberta a me surpreender mesmo
guardo uma lição aprendida. Da diante dos piores quadros de dor
compaixão nasce o amor, o perdão e total.
A empatia é uma capacidade
as reparações possíveis. Nesse lugar,
inerente ao ser humano. No limite, como cuidadores,
assisto emocionada a curas sistêmicas
Compaixão é simplesmente que contribuem diretamente para o precisamos apenas estar presentes na
empatia em ação. Não é algo que bem-estar do paciente e de todos os situação. Essa presença inteira,
você conquista, é algo que você envolvidos. curiosa e receptiva abre margem para
o inesperado. Neste lugar, pode surgir
simplesmente permite acontecer
Por outro lado, não há cura das o bom humor inusitado, a positividade
a partir de seus recursos internos
relações com o perdão que coloca a antes impossível e as ideias
e de suas possibilidades. extraordinárias. Afinal, enquanto há
vítima grande e o detrator pequeno.
vida, podemos manter nosso olhar
Ao invés de “eu te perdoo”, troque por
sobre a vida possível, mesmo diante
Assistir um pôr do “eu sinto muito”. Ao perdoar, somos
grandes perdoando o pequeno. Ao
de limitações. Ao olharmos apenas a
EMAIL: SCHUTTE.LUCIANE@GMAIL.COM
Luciane Schütte