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Um Presente Irresistível@ 2021. Todos os direitos reservados.

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mesmo que de forma gratuita, sem os devidos créditos. Um Presente
Irresistível é uma obra de ficção, qualquer semelhança com pessoas
ou fatos reais é mera coincidência.
Plágio é CRIME.
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Epílogo

Um Guerreiro Irresistível
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Epílogo
Grayson Canning está atraído por sua funcionária, mas ela não
parece retribuir o sentimento. Até que um acidente de trabalho
acontece, e o CEO se vê responsável pelos cuidados de Ellen
Morris. O problema é que a mulher sob sua proteção agora jura não
ser a mesma que ele conhecia antes.
Ellen está confusa. Ao acordar no hospital após um acidade do
qual não se lembra, não reconhece nada ao seu redor e nem
consegue entender como está no século 21, quando tem certeza de
que é uma Dama de 1814. Entende menos ainda como foi parar sob
os cuidados de um homem atrevido como Grayson, que insiste em
tentar manchar sua reputação.
Um erro de percurso ou um atalho do destino para que os dois se
encontrassem? Entre viagens no tempo, sedução e descobertas, o
mistério que os envolve se torna cada vez mais complicado em meio
a um amor que não deveria existir, mas que parece disposto a
desafiar todas as lógicas do universo para sobreviver.
Existe coisa mais clichê do que estar atraído por sua
funcionária?
Grayson Canning olhou através da janela de seu escritório e
contemplou sua atração crescente por Ellen Morris. Aconteceu em
um dia normal. Depois de semanas de planejamento, a obra da Casa
Canning começaria, e a equipe dela fora contratada para conduzir o
projeto. Ellen veio junto com os responsáveis pela reforma da
mansão na Grosvenor Square.
Os meses desde que foram apresentados pela primeira vez foram
uma tortura, já que nunca havia se sentido atraído por alguém à
primeira vista. A mulher era uma mistura de cabelos loiros na altura
do ombro e olhos verde-esmeralda, com um magnetismo que não
sabia explicar e… nada além disso. Todo o interesse, a sensação de
estômago torcido e a ansiedade de vê-la pareciam unilaterais.
Grayson sentia-se atraído com ímã e, em contrapartida, Ellen…
Bem, ela não parecia sentir-se do mesmo jeito.
Ele deu um suspiro impotente enquanto refletia sobre a sua
situação em frente à grande janela de vidro de seu escritório,
observando Londres em meio a seus pensamentos. Sua figura alta
espelhava-se, o terno e os cabelos escuros fundindo-se com a vista
da cidade. Talvez seja apenas carência ou solidão, tentou
racionalizar.
A Casa Canning era um dos sonhos do pai, e o empresário decidiu
acompanhar a obra mesmo com o tempo escasso, sendo notificado
a cada proposta, projeto e contratação. Era a missão dele como
Conde de Bradford, um título que pouco importava nos tempos
atuais, mas que trazia suas responsabilidades. Grayson era o 17° da
linhagem e único sobrevivente capaz de gerir o espólio. Não que a
Casa estivesse na família por todas essas gerações. Depois de anos
vivendo em uma miséria que arruinou propriedades e contas
bancárias a cada nova taxa de herança, seu pai, Frederick Canning,
criou um império financeiro que possibilitou o retorno aos dias de
glória do título. Ele negociou cada propriedade que era da família e
estava na mão de particulares para transformá-las outra vez em
patrimônio dos Bradford. Por anos, Frederick as reformou e
transformou em locais de visitação para pagar pela manutenção das
enormes mansões, deixando para o filho o dever de fazer o mesmo
depois de sua morte.
Grayson dividia-se entre conduzir o fundo que cuidava das cinco
propriedades dos Bradford e gerir a empresa de investimentos, a
Canning Co. A mansão da Grosvenor Square era a “grande casa de
Londres”, adquirida pelo pai vinte anos antes e finalmente pronta
para receber a restauração. Foi um golpe de sorte ela não ter sido
derrubada em alguma reforma de donos anteriores. Pelos custos de
manutenção, diversas famílias da aristocracia venderam as mansões
ao longo do Mayfair, que deram lugar a construções mais modernas
em um dos metros quadrados mais caros da cidade. A Casa Canning
ficou em seu lugar, os escombros de seu tempo de glória passando
de vendedor a vendedor, com planos que nunca saíam do papel.
Com o final da obra da Bradford Hall, Frederick abriu caminho para o
início do processo de restauro, mas faleceu sem vê-lo terminar.
Aos trinta e um anos, Grayson Canning tinha mais coisas do que
muitas pessoas jamais sonhariam. Dinheiro, sucesso, uma empresa
só dele. Mas as conquistas não evitavam o vazio em seu peito. Era
um homem ocupado e solitário, sem amigos próximos ou família, e
com um trabalho estressante. Não era bom com pessoas, tímido
demais para interagir com desconhecidos e apenas falante quando
se referia aos negócios, nunca sobre ele. Havia conversado com
psicólogos e feito terapia para buscar respostas, mas tudo se
resumia a ter perdido a mãe tão cedo e o pai em um acidente em
uma viagem de negócios.
Desde que conheceu Ellen, Grayson passava mais tempo do que
deveria pensando em formas de se aproximar da restauradora. Era
impressionante vê-la trabalhar, mas uma agonia estar no mesmo
ambiente da profissional especializada em história, com grande
conhecimento e sem demostrar nenhuma vontade de tê-lo por perto.
Não era como se o detestasse, era puro desinteresse. Ele não
ousou convidá-la para jantar ou uma conversa mais informal porque
Ellen notava seus olhares, mas agia como se não existissem. A
última coisa que queria era incomodá-la, mas precisava agir, tentar
pelo menos uma vez. Grayson queria dar um ponto final para seus
sentimentos, ouvir o “não” dos lábios da mulher e deixá-la ir.
— Com licença. — Nicolas, seu assistente, bateu de forma
discreta na porta. Era um homem um pouco mais velho que o
herdeiro dos Canning, negro, baixo e com expressão afável. Apoiava
Grayson há mais de uma década, quando começou a trabalhar com
o pai na empresa de investimentos. — Chegará tarde na Casa
Canning se não sair agora. Tomei a liberdade de chamar seu
motorista.
— Obrigado, Nicolas — Grayson agradeceu e virou-se para o
funcionário, encarando-o de sua posição na janela. — Alguma ideia
sobre o que seja?
— O arquiteto solicitou sua presença. Algum documento de
autorização da obra foi finalmente emitido e a reforma do lado
externo deve começar. Acredito que é mais um marco formal do que
uma consulta.
— É bom que seja — o empresário respondeu com um suspiro de
irritação. — Os planos de obra já foram aprovados, várias pessoas
estão envolvidas e o projeto prevê a remodelagem no estilo original
da casa. Não sei nada sobre isso para precisar ser a palavra final de
algo.
— Você é o dono do dinheiro, apenas isso — o assistente apontou
em um olhar cômico. — Seu pai ficaria orgulhoso por manter os
planos. Essas reformas eram o bebê dele.
— Eu sei, mas são cansativas e não entendo nada a respeito. Sei
sobre números, fundos de investimentos e manter uma empresa.
Não entendo nada sobre acabamento ou reproduções de tecidos… A
cada pergunta da equipe da obra, sinto-me como invadindo um
espaço que não é meu.
— Vai, Grayson, é importante. Talvez só volte à Casa depois de
pronta. Já não há mais o que decidir além de iniciar a obra, certo? —
o assistente indagou e encarou seu iPad antes de voltar a dizer: —
Tive que remarcar a reunião com o financeiro por causa da ida à
Casa Canning. Preciso que esteja de volta até às três para a reunião
com a consultoria.
— Muito bem — Grayson respondeu sem um pingo de entusiasmo
e passou a mão no rosto, bagunçando o cabelo escuro no processo.
Os dias eram tomados por agendas impossíveis que nem ele mesmo
conseguia recordar sem a ajuda do assistente. — Tome conta do
forte até eu voltar. Estarei no celular se precisar de mim.
— Chefe, você deveria relaxar um pouco — Nicolas comentou em
um tom pessoal e deu um olhar preocupado para Grayson. —
Quando foi a última vez que saiu de férias? Qual a última vez que
saiu e ponto?
— Acho que está entrando em um terreno pessoal demais,
Nicolas — Grayson alertou e caminhou até a porta.
— Conheço-o há mais de dez anos, Grayson. A cada ano, você
parece mais absorto nas suas coisas e mais desconectado com o
mundo aí fora.
— Você está se tornando um romântico depois do seu noivado.
— Eu gosto de você, Grayson. Mesmo sendo meu chefe — o
homem completou com um riso de canto de boca.
— Isso deveria ser um elogio, certo? — o empresário perguntou
com um sorriso. — Muito bem. Aprecio sua preocupação, mas tenho
muitas responsabilidades.
— Suas responsabilidades não o manterão aquecido nas noites.
— Ah, por Deus, Nicolas! — Grayson exclamou e ouviu uma
gargalhada em resposta de seu assistente. Encarou seu reflexo uma
última vez através da janela, observando o terno azul-escuro bem
cortado e o contraste com os cabelos bagunçados. Pensou que veria
Ellen mais uma vez, a última em muitos meses se Nicolas tivesse
razão.
Uma hora depois, parado em uma das salas da Casa Canning,
Grayson sentia-se entediado pela conversa com o arquiteto. Mais
uma visita de praxe para anunciar o início das obras externas e
outros detalhes do interior.
A previsão para a conclusão seria de mais um ano, mas ele não
precisaria ser envolvido a menos que algum problema de percurso
acontecesse ou mais dinheiro necessitasse ser desembolsado.
Grayson se odiava por procurar Ellen com o olhar enquanto
engenheiro, arquiteto e membros da obra acompanhavam a
explicação detalhada sobre os processos de restauro. Ela não
estava ali. A mulher era uma das responsáveis pela pesquisa
histórica e estava mais envolvida em itens internos da casa do que
em detalhes que estavam sendo tratados naquela reunião, como o
tipo de piso e papel de parede, ou como seria o projeto final da sala
azul.
Apesar do trabalho ter se iniciado um ano antes, fazia apenas três
meses desde que as estruturas começaram a ser mexidas. Havia
uma quantidade obscena de papéis a serem preenchidos a fim de
seguir os códigos de construção e regulamento de edifícios e
monumentos históricos, autorizações e remodelagem para receber
visitantes. A reunião destacava que a reforma por fim tinha o
necessário para continuar a obra sem problemas. Um projeto de
restauração do nível da Casa Canning precisava de diversas etapas
a serem respeitadas. Eram meses de análise para definir como
recriar as técnicas tradicionais, o estudo do desenho da época e
toda a pesquisa histórica envolvida com a planta da construção a fim
de deixá-la o mais próximo possível do original. Como Nicolas
destacou, era um marco importante e fazia sentido o convite para tal
evento.
Quando a reunião foi encerrada, Grayson caminhou pela casa,
fascinado com o que via ao seu redor. Era impressionante observar o
projeto modificar a mansão bicentenária, de escombros para uma
propriedade digna da realeza britânica. Uma construção imponente
corroída pela ação do tempo que ganharia um recomeço. O título de
Bradford passou por altos e baixos desde sua criação, e o estado da
Casa Canning era um dos resultados da ação de seus
antepassados.
Ele a viu após subir alguns degraus da grande escadaria do salão
principal. Ellen estava concentrada em uma das pinturas, um quadro
de mais de dois metros do jovem casal de Condes no início de 1800.
Grayson não tinha traços parecidos com seu parente do período
regencial: onde existiam olhos azuis afiados, ele tinha um caramelo
quente. Stephen Canning mantinha uma expressão dura e irritada,
mas com contornos suaves, como um “bom rapaz” do século 19. O
atual Lorde Bradford tinha o maxilar marcado, sombreado por uma
barba que crescia com rapidez e covinhas que sua mãe dizia adorar.
O cabelo era igualmente escuro, mas em um tom comum demais
para parecer uma característica da família.
— Você chegou cedo! — Grayson comentou e achou um péssimo
jeito de iniciar uma conversa. Ellen pareceu se assustar com seu tom
de voz, e ele se amaldiçoou por não saber como abordá-la sem
parecer um cachorro sedento por atenção.
— Veio nos visitar! O que está achando? — a mulher indagou e
tirou seus olhos do quadro, mirando na direção do empresário.
— Vocês são os especialistas. Fico feliz de transformar a casa.
Havia muito tempo que estava abandonada — Grayson explicou e se
interrompeu, respirou fundo e sorriu, recebendo um olhar curioso de
Ellen. Estava nervoso, mas não queria parecer inseguro na frente da
restauradora. — O arquiteto me chamou, então vim cumprimentá-la.
Queria falar com você.
— Muito bem… Se quiser ver algo, posso levá-lo. É um pouco
perigoso andar por aqui sem capacete, mas podemos arranjar algum
material e mostrar o trabalho. Estamos naquela fase em que
qualquer coisa é um potencial acidente por aqui…
— Na verdade, vim aqui por outro motivo. Como disse, para falar
com você, não sobre a casa — ele disparou e se encheu de
coragem. Podia sentir o suor por debaixo de seu terno e o coração
batendo forte como reação às suas palavras seguintes: — Gostaria
de levá-la para jantar.
— Como?!
— Sei que está trabalhando para mim, mas se tiver interesse em
um encontro… Estaria muito feliz em levá-la para algum lugar longe
de toda essa poeira.
— Eu gosto da poeira. — Grayson ouviu a resposta e gemeu por
dentro, porque sabia o que viria a seguir. Havia enfiado os pés pelas
mãos, e Ellen diria o “não” que ele estava esperando. — Não acho…
que seja apropriado.
— Muito bem! — Confirmou com a cabeça, como tentando
terminar a conversa constrangedora. Grayson pigarreou e soltou o
ar, tentando dar um tom mais ameno à sua voz antes de continuar. —
Posso voltar a tentar quando isso terminar.
— Senhor Canning, não acho que…
— Me apressei, Ellen, eu sei. Não vou interrompê-la mais. Tenha
um bom dia. — desejou, envergonhado pela conversa. Precisava sair
dali o mais rápido possível.
Grayson virou-se em direção às escadas ao mesmo tempo que
resmungou impotente, repetindo suas palavras para a restauradora.
Gostaria de levá-la para jantar. Não fora invasivo e nem antiético
pela relação patrão-empregada, certo? Sempre fora sem jeito com
as mulheres, mais ocupado com os estudos e o trabalho do que com
relacionamentos. A atração por Ellen era algo além de sua zona de
conforto e não sabia como agir.
Era bom se afastar da reforma e não mais tornar a encontrá-la.
Ele queria a chance de pedir um encontro e teve sua resposta. O
último ano deixou-o mais confuso do que qualquer outra coisa em
sua vida, como se a imagem da mulher voltasse vez ou outra em sua
cabeça sem controle. Era necessário se afastar.
Ele deu uma última olhada na sala e viu a jovem mexer em
materiais, voltando a encarar o grande quadro dos Condes em uma
estrutura metálica. Grayson balançou a cabeça, como se tentasse
afastar seus pensamentos, e desceu as escadas de forma lenta. Ao
chegar no último degrau, ouviu um barulho alto de metal contra metal
e correu para cima de novo, ouvindo as outras pessoas ao seu redor
fazerem o mesmo. Era Ellen, ele sabia. Quando chegou ao topo dos
degraus, ele a viu, caindo quase em câmera lenta, longe demais de
suas mãos para que pudesse evitar que se machucasse.
— Ellen! — Grayson gritou e correu até ela. A mulher estava no
chão, tentando se movimentar com lentidão, os olhos piscando
confusos e a mão na cabeça. Não queria tocá-la e, com os dedos
tremendo, ligou para a ambulância, observando Ellen desmaiar.
A sala se encheu de pessoas, todas discutindo ao mesmo tempo
sobre o que fazer com a restauradora. O mestre de obras encarou-o
com olhar preocupado, e o empresário se agachou ao lado da jovem,
buscando pelo pulso com medo de que o acidente tivesse sido fatal.
Uma queda de pelo menos dois metros poderia gerar ferimentos
internos e ossos quebrados.
O peito de Ellen se moveu devagar, a respiração superficial, e
Grayson rezou para que a ajuda estivesse perto. Que tudo ficasse
bem…
Os paramédicos subiram a escadaria da mansão minutos depois.
Grayson sentia-se como em um túnel, ouvindo os sons abafados ao
seu redor e com os pensamentos confusos. Um homem o afastou de
Ellen e começou os primeiros socorros, checando os sinais vitais e
preparando o transporte da mulher. Sentia o pânico borbulhar de
apreensão: a casa era dele, assim como a responsabilidade pela
obra; ainda por cima, havia a convidado para um jantar. Ele a
distraiu? Era culpa dele?
— Precisamos avisar a alguém — o empresário murmurou para
ninguém em particular, e o mestre de obras, parado ao seu lado,
balançou a cabeça de forma afirmativa.
— Acho que ela não tem ninguém. Ellen mora sozinha e não tem
família. Podemos ver os contatos em seu celular…
— Ela não tinha um noivo? — O arquiteto encarou o mestre de
obras, interrompendo-o. — Eric alguma coisa. Chegamos a tomar
algumas cervejas no início da obra.
— Eles terminaram. Ela mora sozinha porque ele se mudou para
Paris, pelo menos até onde sei — o outro homem replicou e deu de
ombros. Grayson acompanhou a conversa enquanto observava os
paramédicos içarem Ellen na prancha de resgate, sem saber bem o
que fazer em seguida. Se ela não tinha ninguém, ele era o
responsável por ela, não era isso?
— Sabe onde estão as coisas dela? Devem precisar de alguma
documentação, e quero procurar algum contato em seu celular —
Grayson perguntou, vendo os socorristas caminharem em direção à
escada.
— Ali, aquela mochila é dela — o mestre de obras ofereceu. —
Posso ir com eles. O senhor não precisa ir para o hospital para
resolver esse tipo de coisa.
— Ellen é minha funcionária. Faria isso por qualquer um de vocês
— afirmou e pegou a mochila da restauradora. — Envio notícias
assim que souber de algo.
Grayson seguiu a equipe até a ambulância. Não queria mexer nas
coisas pessoais de Ellen, mas momentos desesperados exigiam
decisões importantes. Enquanto eles acomodavam a mulher, ele
entrou em seu carro para segui-los até o hospital.
Minutos depois, o veículo hospitalar abriu as portas no Saint
Bartholomew e Ellen foi levada pelos paramédicos pela porta da
emergência. O empresário estacionou e correu para a entrada do
prédio. Era um milagre ter dirigido mesmo com as mãos tremendo.
Acidentes como o da jovem o lembravam de como a vida poderia se
extinguir em um estalar de dedos, como seres humanos eram
frágeis, como havia perdido o pai em um acidente de carro em um
dia inesperado, de sol e no meio do verão inglês.
Caminhou até o balcão das enfermeiras em busca de
informações. Se Ellen fosse mesmo sozinha, seria sua
responsabilidade dali em diante. Ele cuidaria dela.
— Está tudo bem? — uma enfermeira perguntou de forma suave
quando viu Grayson passar a mão pelo cabelo mais uma vez,
tentando estabilizar seus pensamentos, e passar muitos segundos
encarando a mesa à sua frente.
— Só… só um minuto. Minha… minha funcionária acabou de dar
entrada, chama-se Ellen Morris — explicou e usou o balcão do
hospital para retirar a carteira da mulher da mochila que carregava.
Abriu-a e retirou a identidade da restauradora, informando a
enfermeira sobre a sua chegada com a ambulância.
— Você é o contato dela?
— Eu sou chefe dela. A Ellen não tem família.
— Vou checar como podemos fazer as coisas — ela respondeu
afável e apontou para as cadeiras na sala de espera. — Se puder
aguardar até alguém vir falar o estado da senhorita Morris.
Grayson balançou a cabeça, ainda desnorteado, e continuou sua
busca na bolsa da jovem. Entre o celular e um caderno, nenhum
nome saltava aos olhos. Ellen não tinha nenhum contato de
emergência cadastrado em lugar algum.
— Como se sente? — a doutora Jameson perguntou para a
mulher loira à sua frente. Ela piscou os olhos, tentando enxergar
através das luzes fortes do hospital, e franziu a testa como se o
estímulo fosse forte demais para aguentar.
A médica analisou a paciente com preocupação, observando-a
levar a mão na cabeça ao mesmo tempo que soltava um suspiro
débil com o movimento. Ferimentos na cabeça poderiam ser graves
e muitas vezes silenciosos, sem sinais externos.
— Uhhh… — a paciente gemeu e fechou os olhos com ainda mais
força, sem responder à pergunta. A profissional conferiu o prontuário
em suas mãos, vendo o nome “Ellen Morris”, e tentou mais uma vez:
— Ellen, você consegue me entender?
A mulher abriu os olhos como se fizesse esforço, o verde límpido
de sua mirada semicerrado pela iluminação. Piscou algumas vezes,
parecendo focar, e gemeu mais uma vez.
— Ah… sinto-me nauseada e… se puder me dar cataplasma,
agradeceria. Minha cabeça dói… — afirmou, e a doutora Jameson a
encarou com espanto. Cataplasma?
Aquela era a décima quinta hora de plantão de Thea Jameson, e a
profissional estava cansada e confusa sobre a reação da mulher.
Depois de quinze anos trabalhando em emergências, havia visto de
tudo, incluindo pessoas que pediam todo tipo de curandeirismo como
a senhorita Moris.
— A senhorita chegou há duas horas. Um relato de acidente em
seu local de trabalho, uma queda. Seus exames parecem normais,
mas deve ficar em observação por algumas horas. Teve sorte.
— Queda? — a mulher perguntou confusa e firmou sua visão na
médica. — Como eu me machuquei? Poderia ser gentil e chamar o
doutor? Dói-me apenas abrir os olhos.
— Eu sou a médica, senhorita — Jameson respondeu sem
paciência.
— Mulheres podem ser médicas? — a paciente indagou confusa,
e a médica encarou-a por alguns segundos antes de receber um leve
aceno de Ellen, que balançou a cabeça com dificuldade. — Peço
desculpas por minha falta de educação. Eu não… não consigo
lembrar…
A médica suspirou com impotência, perguntando-se se a paciente
poderia ser uma lunática ou alguém confuso depois de um acidente.
A doutora Jameson estava cansada de ser duvidada e de lidar com
pacientes irritantes. Não que a mulher loira estivesse agindo com
raiva ou que seu comentário fosse ofensivo de propósito, mas depois
de tantas horas de pé, sua paciência se esvaía a cada segundo.
Foram anos de esforço e prática para lidar todos os dias com uma
rotina estressante, mas nunca fora boa em lidar com pessoas.
Espere… O cérebro de Thea chamou a atenção para a última frase
da paciente.
— O que não consegue lembrar exatamente? Sabe onde está?
A paciente ouviu a pergunta e sentiu-se confusa. Era óbvio que
sabia onde estava, só que… não sabia. Soltou o ar mais uma vez
com um leve gemido pela dor forte em sua cabeça e tentou se
concentrar em tudo o que sabia sobre si mesma: quantos anos
tinha? O que mais gostava? Qual era seu nome? A mulher disse
“Ellen”, mas parecia fora do lugar… Nada se encaixava e, ao mesmo
tempo, era como um grande branco. O que estava acontecendo? Ela
respirou fundo e tentou mais uma vez, os olhos fechados como se
vasculhasse cada canto de seu cérebro, sem encontrar resposta
alguma.
— Acredito… eu… — a jovem começou e parou, buscando as
palavras adequadas. — Nada. Não consigo lembrar de como vim
parar aqui, ou de antes. Essa é sua casa?
— Muito bem, precisamos de mais exames — a médica
sentenciou sem responder à pergunta. — Acaba de acordar depois
de um par de horas desacordada e parece estar em confusão. Vou
solicitar uma tomografia para ver se isso tem a ver com alguma
lesão que deixamos passar. Pela queda, você deveria ficar em
observação por pelo menos quarenta e oito horas, mas talvez sejam
necessárias mais investigações.
— Mas estou bem? — indagou preocupada.
— Nenhuma ferida ou osso quebrado, apenas um susto. Deve
sentir algumas dores no corpo, mas não parecia ter resultado em
nada até, bem, me informar que não consegue se lembrar de nada.
Após a tomografia, vamos entender melhor o que está acontecendo
— a médica completou ao olhar para as informações no prontuário,
anotando algo em um papel à sua frente.
— Tomo-o-quê?
— É um exame para saber o que está acontecendo.
— Muito bem! Obrigada, senhorita… — ela interrompeu-se sem
saber como terminar sua frase. A mulher não se apresentou. Deveria
conversar com alguém a quem não fora apresentada? A confusão
aumentou ao olhar ao redor e ver seu estado caótico: em uma cama
de formato estranho, de cabelos soltos e com um fino lençol sobre
seu corpo. Estava de roupa de baixo fora de sua casa, e havia fios
esquisitos pendurados à parede, com um líquido claro ligado a ela.
— Pode me chamar de doutora Jameson — a médica afirmou, e
Ellen fez uma mesura com a cabeça apesar de sentir a dor forte
atrás de seus olhos. Ela era uma dama educada, mesmo com a
aflição dos espasmos perto de sua testa, e deveria agir como tal.
— O que é isso em meu braço? Um tipo de sangria?
— Isso é um soro. A medicação vai direto na veia e… — a médica
parou de falar, como se a explicação não fosse importante, e Ellen
sentiu-se impotente. Havia algo ligado ao seu corpo que ela não
sabia bem o que era.
— Obrigada por sua ajuda. Alguém me acompanha? — a jovem
indagou com um sorriso, vendo a médica tamborilar com os dedos no
objeto em suas mãos. Para ela, parecia má-educação mostrar-se
impaciente, mas não poderia censurar as regras de etiqueta quando
nem mesmo sabia onde estava. — Uma nobre nunca deve
permanecer sozinha. Onde está minha dama de companhia?
— Ah… — doutora Jameson balbuciou, como se não soubesse
responder. Talvez a mulher fosse realmente uma lunática, pensou.
— Não tenho ideia do que está falando.
— Muito bem… aqui deve ser algum tipo de exceção. Se até
mulheres podem ser médicas — a jovem loira anunciou, e a médica
deu uma expressão torcida como resposta, sem saber bem o que
dizer em seguida.
Ela anotou no prontuário informações sobre o caso de Ellen Morris
e adicionou ao histórico um possível quadro de confusão mental. A
forma que a paciente falava era diferente, não como se a ferida na
cabeça tivesse afetado sua fala, mas mais como uma forma
estranha e antiquada que ouviu apenas com sua avó ou em livros de
anos antes. O jeito que agia e as perguntas pareciam de um
personagem saído de algum filme de época e não de alguém do
século 21. Era um sintoma tão importante quando a falta de
memória.
— Há um homem esperando a senhorita, mas não sei se é o
acompanhante que está pensando. Vou avisá-lo que já pode visitá-la.
Ele está aí fora há horas — a médica informou, lembrando-se de
Grayson Canning.
— Veja só, se deve ser um pai ou irmão…!
— Consegue lembrar de algum deles? Nomes, talvez? — a
médica interrompeu, mais uma vez curiosa, tentando extrair alguma
informação da paciente.
O senhor Canning não era parente de Ellen Morris, ela sabia. Ele
era um doador importante do hospital e algumas regras estavam
sendo quebradas naquela tarde para atender à necessidade do
homem. O empresário não deveria receber informações sobre Ellen,
mas suas doações falavam mais alto no Saint Bartholomew, e não as
regras de conduta.
— Não me lembro, mas decerto também não conheço cavalheiro
algum. É indecente que ache que devo receber um homem sozinha
nesse quarto. Isso é um quarto? Não me lembro de camas serem
tão desconfortáveis! — a mulher resmungou mais uma vez, e a
doutora Jameson decidiu que era o momento de sair do quarto.
Quinze horas de plantão.
— Como acabamos de discutir, Ellen, a senhorita não lembra de
nada.
— Mas posso afirmar que não conheço nenhum homem que
deixaria tomar tais liberdades. Encontrar-me a sós em meu quarto.
Ora… — a mulher retrucou com um tom educado, porém cheio de
censura, e a médica quis rir da situação.
— Muito bem. Vou informar ao senhor Canning que…
— Canning? — a paciente perguntou em um tom baixo, e a
médica se impressionou com o olhar preocupado. Talvez ela se
lembrasse do sobrenome?
— Sim… Grayson Canning — a médica informou. — Foi ele que
chegou com a senhorita. É o seu chefe. Devo chamá-lo ou não?
— Não, por favor — a paciente pediu, e a doutora Jameson
apenas balançou em concordância.
— Vou solicitar mais exames para entendermos o que está
acontecendo. Não há lesão aparente e nem sangramentos internos.
Passo mais tarde para vê-la. — A médica cumprimentou e saiu,
deixando a paciente com olhar confuso.
Conforme avançava pelos corredores do hospital, pensava em
como informar a Grayson Canning que a jovem não gostaria de vê-lo.
Seria um momento constrangedor se o executivo decidisse que não
respeitaria a decisão, mas o estado da mulher merecia atenção. Era
um caso desafiador: nenhuma lesão e um quadro que variava entre
falta de memória e confusão mental.
Quando a doutora Jameson chegou à recepção, viu o homem de
cabelos escuros sentado em uma das cadeiras, trajando um terno de
três peças. A enfermeira o identificou como Grayson Canning, e ela
fez uma curta caminhada até parar na frente dele com um aceno.
— Senhor Canning? Sou a doutora Jameson, responsável pelo
caso de Ellen Morris no plantão. Ela acaba de acordar e está bem.
— E sobre o acidente?
— Está lúcida e bem, mas pediu para não o ver quando informei
da sua presença. Vamos realizar mais exames. Nenhum resultado
me deixou preocupada.
— Muito bem. — Grayson deu de ombros. — Mas há algo
acontecendo? Em que momento poderá ir para casa?
— O senhor está bem em apenas ficar na recepção? — a médica
questionou, curiosa por ele não demostrar irritação pela decisão da
mulher.
— Ela é minha empregada e acaba de sofrer um acidente.
Respeito o pedido de ficar sozinha. Não parecia bem quando chegou.
— Em linhas gerais, já que não posso me aprofundar ao caso com
o senhor — a médica censurou. — Ellen Morris está bem e sem
lesão aparente. Vamos fazer novos exames, pois ela acordou sem
lembranças.
— Como sem lembranças?
— De nenhum tipo. Ela diz que não consegue lembrar de nada,
nem como chegou aqui ou como se feriu. E ainda está falando
diferente, com alguns pensamentos… Digamos que acho importante
analisarmos confusão mental. Talvez a batida…
— O que quer dizer? — Grayson a interrompeu com um olhar
curioso.
— Parece saída de uma daquelas séries do século 19. Não sabia
o que era um hospital e se surpreendeu por eu ser médica.
— Ela é especializada em período regencial. Acha que tem algo a
ver?
— O acidente foi durante o trabalho?
— Sim. Ela estava analisando uma pintura do início de 1800.
— As coisas podem estar confusas em sua cabeça. Realidade e
campo de estudo… A mente é algo insondável, senhor. Vou deixá-la
descansar antes do novo exame. Talvez em algumas horas volte ao
normal, não podemos afirmar nada.
— E qual é o tratamento para esse tipo de coisa?
— Nada parece indicar gravidade em seu acidente. Sua falta de
memória é um inconveniente, mas acredito que possa tentar outros
tipos de tratamento.
— Como o quê?
— Procurar um terapeuta. Pode ser tanto uma sequela física
como uma psicológica. Não deveríamos descartar nada nesse
momento, o acidente acaba de acontecer.
— Mesmo sem memória e confundindo coisas?
— Talvez Ellen só esteja projetando sua vida em seu campo de
estudo como forma de proteção. Até alguns dias após a lesão, não
temos como saber a real extensão do problema. — A mulher
suspirou. — Não há motivos para ficar internada. Nós precisamos do
quarto para pacientes mais graves e os exames não mostraram
problema algum. Ela ficará em observação, mas apenas falta de
memória não é o suficiente para mantê-la no hospital por muitos dias.
— Não ter memória é um problema muito sério, doutora —
Grayson Canning retrucou com irritação, o maxilar cerrado. Jameson
soltou o ar com impaciência.
— Eu sei, senhor Canning — a profissional respondeu seca —,
mas não é debilitante.
— Ellen mora sozinha e não tem parentes. Se tiver algo que
possa…
— Nesse caso, o mais adequado são enfermeiras particulares ou
até mesmo uma instituição. Ela deve voltar para consultas, mas não
é preciso internação permanente. Entendo sua preocupação, mas
Ellen não terá necessidade de ficar no hospital se os exames
estiverem normais— a mulher continuou e esfregou os olhos com
cansaço. — É frustrante, mas não existem medicações para “voltar
lembranças”. Acredito que tentar relembrar fatos seja o melhor
nesse caso. É cedo para decidirmos se é algo passageiro ou não.
— Ou seja, o ideal é não ficar sozinha?
— Sim, mas temos que ver dentro das possibilidades da paciente.
O senhor deve conhecer melhor a rede de amigos e conhecidos de
Ellen. Não temos como afirmar nada até ver os resultados, mas ela
teve sorte. Acidentes assim já tiveram resultados mais trágicos.
Tornar-se uma dama do século 19 não é o pior dos problemas.
— E quando teremos certeza ou não?
— Ela vai permanecer ao menos quarenta e oito horas no hospital.
Vamos fazer exames e constatar se há algo físico afetando o
cérebro da paciente. No mais… É paciência. As coisas podem voltar
com o tempo, mas ocorrências com o cérebro são perigosas. Às
vezes são sequelas permanentes, às vezes curam-se depois de
poucos dias.
— E não há como saber qual é o caso de Ellen?
— Não — a médica afirmou, e Grayson balançou a cabeça com
irritação direcionada mais à situação do que à profissional. —
Apenas o tempo dirá quais lembranças a senhorita Morris perdeu e
quais vai recordar.
Ellen analisou as paredes, confusa pelo lugar. A mulher que se
dizia médica, para grande confusão da jovem que poderia jurar que
apenas homem exerciam tal função, informou que sua saúde estava
boa, mas seria preciso fazer outro exame. Não entendia bem as
palavras, nem que tipo de análise era necessária. Preferia não se
preocupar com isso, já que nem mesmo conseguia lembrar de coisas
simples sobre si mesma, como o formato do rosto, a cor dos olhos
ou o tom dos cabelos que pareciam estranhamente curtos para o
que a moda dizia que ela deveria usar.
Eram só mais alguns pontos na lista de coisas que não faziam
sentido para Ellen. Desde o momento que abriu os olhos no hospital,
parecia notar objetos e coisas que não sabia o nome e que tinha
certeza de que nunca vira antes, da cama desconfortável e alta às
imagens se movendo e fazendo barulho nas caixas ao lado do local
em que estava deitada.
— Podemos fazer a tomografia? — um homem perguntou à porta
do quarto de hospital, tirando Ellen de seus pensamentos. Ela o
encarou em choque e jogou um lençol sobre os ombros com pressa,
embolando-se entre os fios presos a seu braço. Ele não sentia
vergonha por ver uma dama em tão poucas vestes?
— É o exame que a médica falou? — a jovem indagou em um fio
de voz, encurvando-se sob o tecido com medo de o delineado de seu
corpo no lençol aparecer de sua posição.
— Vou levá-la na maca até a sala de exames. Consegue se
levantar? Preciso que venha até a maca e deite-se sobre ela. — Ele
apontou para o objeto. Ellen observou a tal maca em confusão, sem
entender ao certo como uma mesa com rodas poderia levá-la a
algum lugar. Ele iria empurrá-la como uma carruagem?
— O senhor poderia se virar? — pediu, e recebeu um aceno de
cabeça e um sorriso afável. Assim que o profissional se virou para
encarar a parede, a mulher se enrolou no lençol e sentou-se sobre o
objeto, ainda confusa sobre o processo do tal exame.
— Posso me virar? A senhorita está deitada?
— Agora estou — informou ao mesmo momento que o maqueiro a
encarou parecendo uma múmia enrolada no lençol. O que estava
acontecendo ali? Em seus sete anos de hospital, já tinha visto todo
tipo de coisa. Era claro que a mulher era envergonhada e queria que
nenhuma parte de si ficasse à mostra.
— Vou ajeitar seu soro e vamos para a sala, muito bem? — o
profissional avisou e começou os procedimentos, tentando se
aproximar o mínimo possível dela, que o encarava com olhos abertos
e um misto de curiosidade e temor enquanto se encolhia sob o
lençol.
— Obrigada — Ellen agradeceu, surpresa quando o homem
empurrou o objeto. Tentou se segurar nos ferros das laterais,
apertando-os até os dedos ficarem brancos. Definitivamente era uma
carruagem empurrada por uma pessoa em que era transportada
deitada. Que tipo de lugar louco era aquele? Tinha certeza de ver
pessoas sendo movimentadas de tal forma, apesar de não ter
lembranças, doentes ou desacordadas, mas ela não era nenhuma
das duas coisas. Bem… talvez estivesse e não soubesse, porque
tinha o objeto que parecia uma sangria no braço…
— Pode ficar tranquila — o homem pediu. — É seguro. Relaxe!
Ellen examinou o arredor, passando por corredores de paredes
sem adorno e pessoas vestidas de branco. Depois de alguns
segundos, o profissional parou em frente à uma porta e abriu-a,
revelando um dos objetos mais estranhos que a mulher jamais viu —
ou ao menos jurava que tinha visto.
— O que é isso? — a jovem questionou, confusa pela coisa
branca gigante, e examinou a máquina que ocupava um dos cantos
da sala, levantando o torso da maca com cuidado para não revelar o
que o lençol cobria.
— Um tomógrafo. É onde vai fazer o exame — ele explicou em um
tom calmo. — Teve um acidente e bateu sua cabeça, pelo que
soube. A médica pediu para fazer o exame. Venho buscá-la assim
que acabar. Vou ajudá-la enquanto o técnico resolve tudo, pode ser?
— O que… o que precisa ser feito?
— Deite-se ali, a cabeça virada para o buraco — ele apontou para
o aparelho, e outro homem se aproximou. O técnico chegou perto
demais, como se quisesse tocá-la.
— Posso fazer sozinha — anunciou e levantou o queixo, tentando
dar autoridade a sua fala. Foi a forma que fora ensinada. — Os
senhores podem se virar para me dar privacidade?
— Tome cuidado com o… — Ele apontou para os fios presos ao
braço e tirou-os do caminho, estendendo-os para a mulher segurar.
Ellen encarou o objeto grande na sala, colocou os pés no chão frio
e caminhou até a máquina. Depois, deitou-se em mais uma cama
estranha e puxou o lençol sobre o corpo, colocando-o até o final do
pescoço.
— Posso me virar? — o técnico perguntou, e ela respondeu com
um “sim” baixo, ainda tentando entender o que aconteceria naquele
objeto tão grande. Aquilo deveria ser um pesadelo, era a única
explicação, pensou. O homem passou os segundos seguintes
pedindo para que ajeitasse o pescoço, os ombros e os braços, até
ficar satisfeito. Por fim, cuidou do posicionamento dos fios presos ao
braço da mulher. Para alívio da jovem, ele tinha apenas um olhar
clínico.
— Não deve se mexer — o técnico informou e apontou para um
vidro a poucos metros. — Estarei naquela sala. Você ouvirá barulhos
e depois o exame começará. É rápido, mas pode ser sufocante. Não
se mexa.
O homem que a conduziu até a sala de exame saiu com o
transporte, e o técnico entrou no local indicado. Ela escutou a voz
avisando que o exame começaria e fechou os olhos quando o objeto
se movimentou, entrando ainda mais fundo no buraco. Aquilo era a
tal tomografia? Ellen ouviu os pequenos barulhos e sua respiração se
acelerou. Estava com medo de ser engolida pelo equipamento e as
luzes vermelhas à sua frente. Ela iria morrer?
— Senhor… — ela falou em um fio de voz, sem conseguir reação
do técnico. De sua posição, não conseguia nem mesmo ver o
responsável pelo exame, apenas as luzes vermelhas e o barulho
como de máquinas que viu certa vez em… ó, ela não se lembrava.
Não conseguia lembrar de nada e estava presa a um objeto gigante
que a engolia viva como um animal marinho.
Pensou em se debater para chamar atenção, mas foi ensinada a
se comportar. O homem pediu para ficar parada, logo, ela ficaria. Só
que… Ela precisava sair daquela coisa. E se as manchas vermelhas
a machucassem? E se tudo tremesse? Não confiava naquele objeto
gigante e sentia-se desconfortável.
— Senhor…? — a jovem indagou mais uma vez. Era o suficiente.
Ela arrastou-se no aparelho, subindo o torso e tentando se empurrar
para fora. Bateu com a testa na estrutura e sentiu a visão escurecer
pela dor.
Ela empurrou mais uma vez e sentou-se, para logo em seguida
perder o equilíbrio para frente e cair no chão graças ao enrosco do
lençol. Não poderia estar mais envergonhada, sentindo a cabeça
latejar ainda mais pelo novo acidente. Ellen abriu os olhos e checou o
cobertor, levantando-se com cuidado para não mostrar nenhum
pedaço de pele.
— Ei, está tudo bem? — o técnico questionou depois de abrir a
porta da saleta com rapidez e correr até ela, levantando os fios
presos no braço da mulher, que pareciam se encher de algo
vermelho. — Nós conseguimos fazer a imagem. Está bem? Sentindo
pânico? Não sabíamos que tinha claustrofobia!
— Me tire daqui, sim? Poderia chamar alguém? Não estou bem…
— Vamos levá-la para seu quarto. Você tem algum
acompanhante? Vou chamá-lo.
— Não… eu não… — começou, mas foi interrompida pelo homem
com a maca, que abriu a porta e acenou para ela. A jovem sentia as
faces pálidas e o coração batendo rápido por toda a situação.
Ellen juntou toda a dignidade que conseguiu e caminhou enrolada
no lençol para a cama com rodas, subindo como foi instruída da
primeira vez e deixando-se ser empurrada pelos corredores. Voltou
para o quarto e, quando estava alojada, ajeitou-se, agradecendo-o
no momento que ouviu a voz à porta.
— Pediu para me chamar? — um homem de cabelos escuros e
olhos caramelo perguntou da porta. Carregava flores amarelas
delicadas e tinha um sorriso cordial nos lábios.
— Não — a jovem respondeu e encarou o enfermeiro que saía
pela porta. Quem era?
— Me falaram que teve um problema com um exame e que queria
falar com seu acompanhante. Pensei…
— Ah! — ela murmurou e observou o cavalheiro. Ellen puxou o
lençol, ainda mais alto, até o queixo, sentindo-se empalidecer. — É
você o cavalheiro que a médica falou a respeito? Não o conheço,
senhor. É muito reprovável um homem visitar uma mulher. Estou com
trajes pequenos e inaceitáveis. O senhor poderia sair? Desde que
acordei nesse… nesse lugar, coisas estranhas acontecem!
— Nós nos conhecemos, Ellen — ele informou e depositou as
flores ao lado da cama, aproximando-se dela. — A médica me
alertou que não se lembra das coisas e está agindo… bem,
diferente.
— Como eu o conheço? É da família? Algum amigo de confiança?
Fomos apresentados formalmente?
— Sou Grayson Canning e você está trabalhando como
restauradora de uma casa do século 19. Minha casa.
— Como o Conde de Bradford? — ela perguntou e encarou
Grayson de forma confusa, como se não entendesse bem de onde
veio sua pergunta. Como sabia que o Lorde tinha o sobrenome
Canning? Era a segunda vez que uma apreensão tomava o peito de
Ellen ao ouvir aquele nome, como se não conseguisse explicar o
temor ao ouvir tal palavra.
— Sim. Eu sou o Conde de Bradford.
— E por que está aqui? — a jovem indagou e sua voz tremeu.
— Porque estava lá quando sofreu o acidente! Veja, tentei
procurar algum parente seu, mas acho que não tem ninguém vivo em
seu convívio. Estou aqui caso precise de algo.
— Eu preciso que saia, Lorde Bradford — ela pediu com a voz em
um tom agudo, como se estivesse a um passo da histeria. — Não
quero que alguém o veja e ache que sou uma mulher de vida fácil.
Minha reputação é impecável e não quero ser vista com um homem.
— Reputação? Ellen! — Grayson encarou-a confuso e percebeu
que a médica tinha razão. Não só falava como uma dama do século
19, mas agia como tal. Seria uma difícil recuperação. Doutora
Jameson falou em confusão mental, mas a tal ponto de confundir seu
campo de estudo e achar que estava no período regencial inglês?
Que tipo de loucura seria aquela?
— Ao que parece, o senhor é um sem-educação! Não entende
meu pedido? Onde estão seus modos? Trouxe-me para esse lugar
onde as coisas parecem estar de ponta-cabeça. Essa cama é
desconfortável, uma mulher diz que é médica, essas luzes parecem
tão fortes que podem me cegar! Como as velas foram parar aí? —
ela apontou para o teto e continuou, como se estivesse tagarelando
mais para si do que para ele: — Eu preciso ficar calma. Não sou
assim… eu…
— Ellen. Você sabe onde está?
— Fui informada que isso é um hospital.
— O lugar, sabe onde estamos?
— Não… — ela falou e apertou o lençol ainda mais sobre o
queixo. — O senhor está me deixando desconfortável.
— Estamos em Londres. Lembra-se de onde mora? Gostaria de
verificar sua casa. Sabe se tem algum animal de estimação? Já está
aqui há algumas horas…
— Londres? Nós deveríamos ir a Londres apenas na temporada…
depois de eu… depois de… não sei — ela concluiu frustrada. — É
impossível estar em Londres. Deveria estar no campo!
— Ellen… Em que ano acha que estamos? — Grayson questionou
desconfiado.
— 1814? — a jovem indagou, mais para si mesma do que para o
homem que parecia espantado com sua resposta. Ela olhou para os
lados como se as paredes pudessem ter respostas melhores do que
ela própria. — É esse o ano, não é? Tenho memórias confusas
fervilhando em minha cabeça, mas não sei ao certo onde estou.
Deveria ter uma dama de companhia e…
— Oh, Deus, Ellen… — Grayson suspirou e a interrompeu com
sua expressão consternada.
— O que ocorre?
— Não estamos em 1814. Errou por mais de duzentos anos. Você
trabalha com período regencial e por isso que conhece tudo sobre
costumes e o jeito de falar. Nada é do jeito que pensa.
— Confusa? — ela perguntou e soltou o lençol, como se estivesse
refletindo sobre as palavras. — Tenho certeza que…
— Sei que tem — Grayson a interrompeu. — Vou procurar a
médica. Eu preciso… é melhor falar com a doutora Jameson. Venho
vê-la quando puder.
— Por favor, não volte a me ver. Não quero ser comprometida! —
ela respondeu em um sussurro, quase como uma súplica, e encarou-
o, vulnerável. — Mas se puder achar alguém de minha família,
qualquer pessoa, eu agradeceria. É como se estivesse em um
pesadelo. Não sei se posso fazer isso sozinha.
— Vou ajudá-la, Ellen, prometo.
Ellen sabia que não deveria ser tão interrompida. Todo tipo de
pessoa entrou em seu quarto, inclusive durante a madrugada, para
verificar informações no pequeno aparato ao lado da cama ou mexer
nos fios ligados a seu corpo — eles se foram ao final do segundo dia
de estadia, quando ela passou a ser alimentada no quarto. A mulher
recebia uma bandeja com apenas um garfo e faca em vez do serviço
completo, pequenos potes coloridos e uma sobremesa que parecia
estranhamente palatável.
A primeira noite passou com poucas horas de sono pelo vai e vem
do quarto, e o dia seguinte foi dividido entre cochilos. Desejou ter
uma distração, como um livro, mesmo não gostando de ler. Ela olhou
para as paredes por muitas horas seguidas e recebeu a visita dos
profissionais, respondendo perguntas sobre como se sentia ou o que
se lembrava. Ao menos a dor de cabeça havia passado e não sentia
mais as dores no corpo e enjoo que surgiram após o acidente. Em
todas essas horas, esperou pela volta do Conde e a promessa de
ajudá-la. Ela sentia receio pelo nome, mas tinha confiança no
juramento do nobre.
Na terceira manhã, depois de outra noite mal dormida, a médica
informou a jovem que o período de “observação” havia acabado, que
nada nos exames era preocupante. Iria para casa mesmo não
sabendo onde morava. A ajuda do Conde precisava chegar rápido
ou, do contrário, seria uma pessoa sem teto.
— Precisará voltar para alguns exames e uma consulta de
revisão. Até sabermos a extensão da sua falta de memória e sua
mudança de comportamento, não acho sábio voltar ao trabalho.
Também acho melhor não ficar sozinha, não sabemos se alguma
sequela secundária pode aparecer — a doutora Jameson explicou.
— Pedi para um dos enfermeiros trazer as roupas com que chegou
ao hospital. Chamou alguém?
— Não. — Ela balançou a cabeça de forma negativa enquanto
tentava absorver as palavras da médica. — Há algo errado comigo?
Não entendo…
— Seus exames não mostraram nada. O que aconselho é
procurar um terapeuta ou um psicólogo. Um profissional que a ajude
a navegar nas próximas semanas e desbloqueie o que quer que
esteja evitando que se lembre do seu passado. Quando esgotarmos
todas as possibilidades, talvez sejamos capazes de descobrir o que
aconteceu com a senhorita.
— O que é um psicólogo? A navegar? Vamos a alto-mar? — Ellen
perguntou, e a mulher deu uma risada seca, como se surpreendida
pelas indagações da paciente.
— Um profissional que pode te ajudar com seus pensamentos e
os significados do que está acontecendo. Acredito que seu trabalho
e a falta de memória mudaram sua atitude. O senhor Canning relatou
a mudança…
— Já disse que não conheço esse homem! — ela resmungou,
interrompendo a doutora. — Além do mais, não vou procurar esse
tipo de profissional. Segredos podem custar muito a famílias. Não
quero que ninguém saiba sobre o que está acontecendo aqui.
— Muito bem — a mulher cortou com um suspiro alto. Para a
médica, era difícil lidar com pacientes que não entendiam que as
doenças da mente poderiam ser tão letais quanto as do corpo, e
Ellen Morris precisava de ajuda com as consequências do acidente.
— Precisamos refazer seu exame para acompanhar o estado da sua
cabeça. Não parece ter inchaço ou sangramentos, mas é importante.
A senhorita continua sem memória mesmo quase três dias depois do
acidente. Vou deixar tudo com o senhor Canning.
— Mas ele… mas eu… — Ellen gaguejou, e a profissional olhou
seu relógio.
— Tomei a liberdade de avisar ao senhor Canning, não sabia se
tinha falado com outra pessoa. Não temos seus contatos e, como
falei, não é prudente ficar sozinha. Terá que reaprender muitas
coisas se continuar a agir dessa forma… ahh… peculiar.
— A senhorita doutora fala de um jeito complicado que não
consigo entender — desabafou. — Estou morrendo, é isso? Por isso
quase fui engolida por aquela engenhoca branca?
— Não! — A mulher sorriu pela ironia da situação. — A senhorita
está bem, e o senhor Canning quer auxiliá-la. Se quer meu conselho,
deveria deixar que a ajude, pois precisará de muito apoio após sair
do hospital. Não consegue ver, mas as pessoas acharão seu jeito
esquisito.
— Ah… — a jovem gemeu em resposta, sem entender o que a
profissional quis dizer.
— Preciso ir. Mas você está bem, só necessita solucionar esse
inconveniente com a memória. Acho que ficará bem. — Ela balançou
a cabeça e olhou para o relógio outra vez. — Preciso ver outro
paciente. Vou resolver as burocracias de sua alta e peço para
alguém avisá-la quando estiver tudo pronto.
A médica saiu do quarto do hospital e deixou Ellen ali, encarando
a parede branca do local até um enfermeiro bater em sua porta e
deixar suas roupas dobradas. A mulher passou tanto tempo naquela
posição que poderia descrever com exatidão as manchas
amareladas na pintura. Assim que o homem saiu do quarto, ela se
levantou, curiosa, e mexeu nas peças, confusa com o que estava
vendo: por que tinham calças ali?
Ela se enrolou ainda mais no lençol, agradecendo por não usar
mais o aparato em seu braço, e analisou as roupas com olhar crítico.
Aquilo não era dela, tinha certeza. Caminhou até o espaço reservado
e olhou para o vaso sanitário, depositando as roupas sobre ele. A
enfermeira da primeira noite disse que era onde ela poderia fazer
suas necessidades, e Ellen relutou até sentir-se apertar. Foi quando
testou a estrutura. Parecia mais fácil do que penicos, apesar de não
saber como fazia para se livrar dos resíduos. Sozinha, descobriu o
outro aparato, parecido a uma tina, de onde saía água o suficiente
para sua higiene. Era um local de loucos.
Ellen tirou a grande camisola que usava desde que acordou no
hospital e vestiu primeiro a camisa de manga longa. Sentiu o tecido
diferente do que costumava usar. Ao pegar a calça, vestiu-a,
sentindo certa dificuldade ao fechar os botões, notando como
pareciam com peças masculinas. Encarou-se no espelho, ainda
confusa com seu reflexo, sem acreditar na rebeldia de não usar um
vestido. Parecia uma roupa de baixo com tecido entre as pernas.
Analisando o reflexo, ela sabia que havia algo de diferente, mas
não sabia apontar o que. As calças, definitivamente as calças. Na
primeira noite, quando se deparou com o espelho, analisou o rosto,
espantada por não se reconhecer naquela imagem. Os cabelos, a
cor dos olhos… nada a fazia se lembrar de quem era.
Ellen saiu do banheiro insatisfeita por sua aparência e pela
chegada eminente de Lorde Bradford. Ela jogou o lençol às suas
costas e torceu para que a túnica improvisada a protegesse de
olhares. Sentou-se na cama e esperou, sem saber o que fazer em
seguida, o olhar nas mãos, como hipnotizada por mais um pedaço de
si mesma que não reconhecia.
— Está tudo bem? — A voz do Conde de Bradford chamou
atenção de Ellen, que levantou a cabeça assustada por ter sido pega
em um momento tão vulnerável. A restauradora estava curvada e
pensativa quando o homem de cabelos escuros entrou no quarto,
encarando-a com curiosidade.
— Devolveram-me algumas roupas, mas não parecem ser minhas.
Há um par de calças, Lorde Bradford! Só mesmo nesse lugar louco
uma mulher usaria calças! — ela exclamou e colocou a mão sobre a
boca antes de encará-lo com seriedade. — Não deveria falar de tais
coisas com o senhor. Roupas femininas são um assunto pouco nobre
e deveria ser citado apenas no íntimo!
— Primeiro, pare de me chamar de “Lorde Bradford”. Ninguém me
chama assim, e meu nome é Grayson — ele pediu e parou em frente
à mulher, que o encarou com curiosidade pelo pedido inusitado.
— É desrespeitoso. O senhor tem um título e deve ser
reconhecido como tal!
— Ninguém usa mais esse tipo de cumprimento. Sinto-me como
alguém de oitenta anos indo conhecer a rainha.
— E isso é uma honra — ela afirmou, a expressão tão solene que
o homem riu em resposta. — Senhor Canning então, vou chamá-lo
assim. Sou incapaz de tratá-lo com o primeiro nome. Isso denota
uma intimidade que não quero, nem devo dar ao senhor. Já terei
minha reputação manchada por toda essa loucura dos últimos dias.
— Lá vamos nós com a reputação de novo — ele murmurou com
um sorriso. — Agora, voltando ao caso de suas roupas, posso ver?
— QUAL É O PROBLEMA DO SENHOR?! — questionou com
irritação, a voz em um tom alto que a assustou. Ela suspirou, como
se tentasse controlar sua respiração, apertando ainda mais o lençol
contra si.
Grayson podia notar que a jovem parecia tentar controlar sua ira,
como se não se desse o direito de ficar zangada, mas suas
bochechas rosadas a delatavam. Era divertido vê-la irritada apenas
pela ideia de ele ver seus tornozelos.
— Ellen, juro que é um pedido inocente…
— Primeiro invade este quarto e agora quer me ver de calças?
Não está aqui há cinco segundos e já quer ver algo censurável! —
ela continuou, interrompendo-o.
— Estive com você minutos antes do acidente. Posso identificar
se é uma roupa sua ou não. — Grayson informou em um tom
apaziguador, e Ellen encarou-o por alguns segundos.
Ela balançou a cabeça em afirmação e fechou os olhos, como se
fosse incapaz de acompanhar tal ato. Depois, puxou o lençol até sua
perna ficar exposta até parte do joelho. Ellen estava vermelha como
um tomate, como se estivesse com vergonha de tal ação.
— São suas — ele sentenciou. — Estava com essa calça verde
quando a vi, minutos antes do acidente. Você sabe como aconteceu
o acidente?
— Tem certeza de que são minhas? — a mulher indagou
assombrada. — Não sei como aconteceu. A médica disse que
machuquei a cabeça em uma queda.
— Caiu de uma escada de construção dentro da Casa Canning
em meio à reforma. Por isso é minha responsabilidade. Estava
trabalhando para mim.
— Não consigo acreditar que uma dama como eu trabalha!
— Claro que trabalha! — ele exclamou com um sorriso leve. Ela
era adorável como uma dama do século 19. — Vim buscá-la para a
levar até sua casa. Lá pode encontrar alguma roupa que seja do seu
agrado, o que acha? Suas chaves estavam em sua bolsa e consegui
o endereço em seus dados de contratação. Acho que ficará bem.
— O senhor esteve em minha casa? — ela perguntou nervosa.
— Não, estava ocupado e mandei um de meus funcionários para
ver se tinha algo urgente. Espero que não fique zangada.
— Claro que não… Se puder ser tão solicito. Não sei onde moro e
nem sei como conseguir uma carruagem para me levar até lá.
Acredito que minha dama de companhia poderá me arranjar roupas
mais adequadas quando chegar, e não essas peças masculinas. Algo
deve ter acontecido a meu guarda-roupa, pois acredito que usaria
calças apenas em uma emergência… É vergonhoso — ela sussurrou
a última palavra com constrangimento, olhando mais uma vez para o
chão em confusão.
— Já conversamos sobre isso, Ellen. Não estamos no século 19.
Mulheres podem usar calças e trabalhar. E você não tem dama de
companhia.
— Não tenho? — Ela encarou-o confusa. — E como me visto?
— Sozinha.
— Sozinha! Ora!
— Como vestiu essa roupa? — Grayson desafiou e levantou a
sobrancelha, analisando Ellen. A mulher ficou sem fala. Era verdade.
Apesar de escandalosas, aquelas roupas eram fáceis de vestir
sozinha.
— O senhor tem razão. — Ela balançou a cabeça. — A médica
disse que deixaria informações sobre meus novos exames com o
senhor.
— Vou conversar com ela e resolver sua alta. Espere que volto
para levá-la, tudo bem?
— Não é como se soubesse onde moro — a jovem completou e
fez Grayson dar uma risada. — Estarei à sua espera.
O homem saiu do quarto em busca da doutora Jameson. Quando
entrou em contato por telefone, a médica afirmou que seria o plantão
dela mais uma vez e que poderia procurá-la. Ainda estava irritado
pela falta de respostas sobre a memória comprometida de Ellen. A
restauradora parecia tão mais delicada e tímida do que a mulher que
ele costumava conhecer, confusa sobre cada coisa que via a seu
redor. Sair do ambiente controlado do hospital seria ainda mais
desafiador.
A doutora voltou a repetir a conversa do dia anterior. Ellen Morris
não parecia doente ou com algum problema físico. Apenas o tempo
e/ou ajuda especializada a faria voltar ao que era antes do acidente.
Grayson balançou a cabeça em resposta sabendo que, se Ellen
concordasse, deveriam procurar um novo especialista além da
médica do Saint Bartholomew. Não precisava de medicação ou
cuidados especiais, mas não era a mesma mulher de dias antes. O
maior problema, de acordo com a profissional, era o choque e
frustração de Ellen com coisas que eram consideradas de
conhecimento comum. Seria um longo caminho até trazê-la de 1814
para o presente.
O empresário marcou a consulta de retorno da restauradora e
voltou para o quarto, onde ela permanecia sentada como ele havia
deixado. O hospital não a deixou levar o lençol, e a mulher andava
encurvada, tentando esconder os contornos que as calças e a
camiseta deixavam expostos.
Juntos, desceram de elevador, só para que Ellen se agarrasse às
paredes achando que a construção estava caindo. Depois, ela
encarou o carro de Grayson em confusão, perguntando que tipo de
carruagem era aquela, sem cavalos e muito menor do que a média.
Parecia incomodada com tudo que via através da janela do veículo,
como se estivesse esperando que um monstro de três cabeças
aparecesse a qualquer instante, ou que acordasse de um pesadelo
ruim. Era incrível como tudo parecia uma grande novidade para a
mulher. Seriam semanas complicadas enquanto a jovem não
relembrasse quem era. Grayson suspirou ao ver o olhar de confusão
na restauradora. O que aconteceu com Ellen Morris?
— Tem certeza de que moro aqui? Parece tão pequeno — Ellen
perguntou a Grayson enquanto encarava o ambiente. Era um
pequeno apartamento em Camden, com uma sala, cozinha e quarto
que poderiam ser cruzados em apenas algumas passadas.
Ele observou-a contorcer as mãos no colo, como se quisesse
investigar o espaço e estivesse se contendo porque ele estava ali. A
restauradora conseguiu evitá-lo por dois dias inteiros, mas o
empresário soube sobre sua saúde mesmo à distância, através dos
médicos e enfermeiros do Saint Bartholomew. As horas que passou
no hospital tomaram o preço da agenda apertada do herdeiro dos
Canning, tendo que remarcar as reuniões do dia do acidente e dos
seguintes, mas não o suficiente para fazê-lo desistir de saber sobre
a saúde de Ellen Morris. Grayson se comprometeu a ajudá-la e era
isso que faria.
O executivo queria culpar seu senso de responsabilidade, mas sua
atração pela mulher ainda era um fator importante da equação. A
Ellen Morris inteligente, que fala de seu trabalho com paixão e era
segura de si, sumiu dentro da dama do século 19, apegada a regras
de etiqueta e que exibia uma fragilidade que ele nunca vira em todos
os meses que a conhecia.
— Os apartamentos em Londres são pequenos — o homem
sentenciou.
— Como se chama aquela coisa que entramos? Tanto aqui como
no hospital? Aquela que achei que estávamos caindo — a jovem
questionou, suas bochechas corando. Grayson pensou que nunca
havia visto nada mais agradável. Não conseguia lembrar de alguém
que ficasse com o rosto vermelho por qualquer motivo como Ellen.
De vergonha a raiva, parecia sempre com a expressão rosada. Era
curioso como só passou a notar tal coisa após o acidente.
— Elevador. Será um período longo até você lembrar, Ellen.
— Senhorita Morris — ela o corrigiu.
— Como quiser, senhorita Morris — o empresário completou com
um sorriso de zombaria para ver as bochechas se acenderem mais
uma vez. Pare de encará-la, Grayson… Deixe de ser tão fascinado
por ela.
— O senhor sabe se tenho um segundo nome? — a mulher
indagou em um fio de voz, como se lhe custasse questionar algo tão
íntimo. — Sou apenas Ellen Morris?
— Teria que ver em seus documentos, não faço ideia.
— É estranho para mim. Não consigo me sentir como uma “Ellen”
ou como uma “senhorita Morris”.
— Talvez tivesse um apelido? Por isso não está acostumada com
o próprio nome?
— E qual seria o apelido para Ellen?
— Elly, Nellie, El, Elle…
— Eu devo escolher? Nada me soa familiar.
— Pois posso escolher? Acho que tem cara de Nellie.
— Pois para o senhor tenho cara de senhorita Morris até
descobrir por que não me sinto à vontade com o meu sobrenome.
— Muito bem, senhorita Morris — Grayson cumprimentou em um
tom de gozação. — O que gostaria de fazer?
— Como meu nome, isso não me parece uma casa. É mesmo
pequeno — ela protestou, e herdeiro dos Canning deu um sorriso de
canto de boca. O homem também achava minúsculo, mas não queria
compartilhar tal pensamento. Grayson era o filho de pais ricos e
nunca precisou morar em um apartamento de cinquenta metros
quadrados. Não seria ele a comentar sobre o tamanho de moradias
quando era a única que a pessoa poderia comprar ou alugar.
— Bem, de acordo com o seu endereço nos registros, esse é o
apartamento — o executivo respondeu e estendeu uma mochila para
ela. — Suas coisas, incluindo a chave do apartamento, estão aqui.
Estavam comigo depois do acidente.
— Mas não reconheço nada — a jovem anunciou sem pegar a
bolsa, e Grayson a deixou sobre o sofá. O empresário acompanhava
cada pequeno movimento da mulher em dúvida se ela conseguia se
lembrar de algo ou se apenas estava curiosa sobre o apartamento
em que vivia.
— Talvez dar uma volta pela casa faça você…
Miau.
O som veio de baixo e atraiu o olhar dos dois. Grayson se
interrompeu ao encarar o gato aos seus pés e viu Nellie arregalar os
olhos para o bichinho.
— Eu tenho um gato? Nunca tive um animal de estimação, isso
não é possível! — a restauradora exclamou ao mesmo tempo que
Grayson se abaixou e encarou a coleira. Era um animal de pelo
branco e preto e de olhos amarelados.
— Bem, você tem uma gata. Você é a tutora da Mary.
—Eu tenho uma gata? — ela repetiu surpreendida.
— É o que parece. — Ele sorriu. — Acho que deveria se deitar.
Vou pedir uma comida leve para você. Acho que precisa descansar
pelos próximos dias até a próxima consulta. Sua perda de memória
ainda é algo recente e o estímulo do apartamento talvez possa
ajudá-la.
— Muito obrigada por me trazer.
— Eu vou ficar, Nellie — Grayson anunciou quando percebeu que
a mulher achava que ele iria embora. Ela arregalou os olhos em
pânico, balançando os braços como uma negativa.
— Ó, não, o senhor não deve ficar. Tem pessoas nesse local, elas
saberão! — a mulher continuou, apontando para as paredes do
prédio.
— De novo… — Grayson suspirou, e Nellie colocou as mãos na
cintura. Parecia menos ciente das calças e parou de tentar se
proteger de sua visão depois que chegaram ao apartamento.
— Eu sei que disse que ninguém se importa com homens e
mulheres sozinhos, mas eu me importo! Estarei comprometida para
sempre! Eu saberei! Preciso tirar essa roupa e conseguir alguma
normalidade. Não me reconheço nesse mundo!
— Veja, ou eu fico, ou você volta para o hospital. Não pode ficar
sozinha. Você teve um acidente grave e não reconhece as coisas
mínimas como sua casa. Quero ajudá-la. Tudo bem?
— Isso é reprovável, senhor Canning.
— Grayson — ele a corrigiu. — Não precisa me chamar de
senhor. Pode me chamar pelo primeiro nome.
— Já expliquei que isso é imoral! — Ela soltou o ar irritada e
encarou uma das paredes, como se tentasse fugir do olhar de
Grayson. Nellie se abaixou para pegar Mary, que miava a seus pés.
Parecia sem jeito com o bichinho, apertando-o em seus braços como
um bebê. A jovem suspirou e o olhou, com a voz mais calma, pedindo
mais uma vez: — Você não vai embora, não é?
— Não.
— Ninguém deve saber disso. O senhor é casado? Sua esposa
deve…
— Nenhuma esposa, Nellie. Não vou contar a ninguém, prometo.
— Ó, pare de me chamar assim! — ela ralhou, fazendo-o rir.
— É engraçado deixá-la nervosa — o homem confessou com um
sorriso tímido de canto de boca, fazendo Nellie encará-lo por alguns
segundos, como se estivesse hipnotizada por tal imagem.
— Onde posso tomar um banho? Não vi banheira em lugar algum
— ela perguntou, tentando mudar de assunto, as bochechas
vermelhas mais uma vez.
— Seu chuveiro… — ele começou e parou, encarando-a sério.
— Meu o quê?
— Chuveiro. Venha! — Grayson pediu e apontou para um
corredor. Depois de passar por duas portas erradas, abriu a porta
do banheiro e caminhou decidido para o chuveiro. Depois, abriu o
registro e esperou a água esquentar, sentindo os jatos nas mãos. O
executivo encarou Nellie, que parecia confusa e fascinada.
— Esse é o chuveiro — ele declarou. — E esse é o vaso
sanitário.
— Esse me explicaram no hospital — ela respondeu com
vergonha.
— Muito bem. Essa é a descarga. Serve para levar embora as
coisas… — o empresário disse de um jeito reticente e apertou o
botão, o barulho da corrente de água ficando alta no ambiente. Até
mesmo ele poderia ficar com vergonha por toda a situação. — O que
mais não lembra?
— Como assim?
— Você está confusa sobre o funcionamento de um banheiro. É
óbvio que não lembra de diversas coisas. Vamos, pergunte.
— Aquilo, o que é? — ela indagou mais uma vez, olhando o
interruptor e indicando com um movimento em seu queixo.
— Para a luz. É útil principalmente nas noites.
— Ahhh!
— Vou deixá-la para tomar banho. Se tiver qualquer outra dúvida
como essa, me pergunte, tudo bem? Sua cabeça está confusa e
enquanto não melhorar, quero fazer o melhor possível para sua vida.
— Não, eu preciso pegar uma roupa primeiro. Não posso sair e
correr o risco do senhor me ver… — ela se interrompeu, como se
fosse incapaz de dizer a palavra “nua” na frente do homem.
— Devem estar em seu quarto.
— Onde fica o meu quarto?
— Sei tanto do seu apartamento quanto você — Grayson
anunciou e encarou Nellie, que permanecia abraçada com a gata. Ele
entrou no corredor outra vez e abriu as portas até encontrar uma
cama de casal com a mulher logo atrás.
— Deve ser aqui. — Apontou para o armário. Nellie caminhou para
o móvel e o abriu, tendo cuidado de não soltar Mary, que parecia
tranquila em seus braços. A restauradora examinou o armário por
alguns segundos antes de se voltar para ele.
— Onde estão meus vestidos?
— Como assim? Essas são suas roupas. Você reconhece algo?
— Não usaria algo tão escandaloso como essas peças. Nenhuma
mulher decente mostraria tanto as pernas, ou o colo, ou tanta pele…
— ela continuou, puxando um pedaço de tecido para fora do móvel.
— Ellen, não sei como te ajudar.
— Talvez isso funcione — ela apontou para uma saia longa e uma
camisa que ia até os pulsos. — Não seria adequado, mas ainda
assim é aceitável.
— Aceitável? — Grayson continuou, encarando-a com descrença.
— Todas essas roupas são aceitáveis. Pessoas usam esse tipo de
roupa, não existe nada disso de “mulher decente”. Parece que a
queda te fez mais pudica.
— Essa não é a forma correta de se endereçar a uma dama —
ela anunciou. — Sem contar que é reprovável sua presença nesse
quarto e ainda mais sua insistência em não se referir a mim do jeito
correto. Eu sou filha de um… de… Deveria ter ao menos uma dama
de companhia comigo!
— Vamos lidar com uma coisa por vez. Você acabou de voltar do
hospital, precisa descansar e não tem empregados. É capaz de se
vestir, pentear-se e tomar banho sozinha. Ao menos quando largar
essa maldita gata.
— Não fale assim dela! — a jovem censurou e encarou-se no
espelho por alguns segundos antes de olhá-lo outra vez. — Foi algum
médico que cortou meu cabelo?
— Como assim?
— É impossível fazer um penteado com essas mechas curtas —
ela continuou, tentando criar um coque rígido com sua única mão
disponível, mas ele caía suavemente em sua testa a cada nova
tentativa. — Como as mulheres se penteiam com um cabelo tão
curto?
— Eu não… — Grayson se interrompeu e deu de ombros. —
Olhe, já ouvi histórias de pessoas que acordaram falando outras
línguas depois de uma pancada forte na cabeça. Você voltou como
uma dama do século 19. Não tenho respostas a seus modos porque
eu não vivi isso. Toda a sua vida antes do acidente era “aceitável”,
Nellie. Não sei mais o que explicar.
— Eu sinto que essa não sou eu — ela confessou e olhou ao
redor de seu apartamento. — Essas imagens, roupas, os objetos…
Não me sinto à vontade com essas coisas.
Grayson esticou-se no pequeno sofá. Foi a pior noite de sua vida.
Depois de escolher sua roupa e ir para o banho, Nellie trancou-se em
seu quarto. Ele pediu comida e deixou à sua porta depois de uma
batida rápida. A mulher estava fugindo dele, podia sentir. O dia
amanhecia do lado de fora e as costas do empresário ardiam. Era
curioso como terminara no papel de guardião de Nellie a ponto de ter
seus ossos moídos pelo pequeno móvel da sala da restauradora.
Depois da chegada ao hospital, o homem desavergonhadamente
usara a influência da família para saber mais do que deveria sobre o
estado de saúde de sua empregada. Pelas horas seguintes depois
do acidente, havia colocado Nicolas de sobreaviso e anunciado que
não voltaria para o trabalho naquele dia. Foi toda uma ocasião para
o assistente, mas o executivo ainda estava mexido com a imagem da
mulher caída enquanto os paramédicos a atendiam na Casa Canning
e sua agenda foi redefinida para adequar seu tempo ao hospital.
Pensava em contratar uma enfermeira e deixar Nellie sob cuidados
especiais após a alta hospitalar, mas suas decisões ruíram quando
foi avisado que Ellen Morris seria liberada do Saint Bartholomew.
Deus, o modo de agir de Nellie… Durante a noite no apartamento
de sua funcionária, antes de dormir no sofá duro, Grayson pesquisou
em seu telefone sobre confusão metal, amnésia e até transtorno
dissociativo de personalidade. Se continuasse a agir como uma
dama do período regencial, precisaria de ajuda especializada,
mesmo com ela negando-se a procurar uma. O hospital parecia não
querer intervir porque a jovem estava “bem” fisicamente — apesar de
toda a estranheza com sua vida antes do acidente e do
desconhecimento de coisas simples. Ele era a única pessoa que
parecia se importar com o bem-estar de Nellie.
Sentia que não poderia deixá-la sozinha. Ajudaria a restauradora a
se reerguer e voltar à sua vida normal porque sabia o que era
solidão. Se algo dessa magnitude acontecesse com Grayson,
também não teria ninguém para ajudá-lo. Passaria pela mão dos
profissionais da família, como médicos e advogados, mas ninguém
que tivesse paciência ou interesse genuíno em ajudá-lo sem receber
alguma recompensa financeira em retorno. Queria ser aquela pessoa
para Nellie.
Depois de uma intensa busca a respostas para o caso da mulher,
Grayson pegou no sono. Pela manhã, ligou para Nicolas e avisou que
não trabalharia naquele dia. O assistente sabia dos detalhes do
acidente e parecia impressionado que a rotina do executivo estivesse
sendo modificada pela situação.
— Estarei um pouco ausente, Nicolas, as coisas estão confusas
para Ellen. Ela jura que é uma dama do século 19 e não se lembra
de nada. Faz perguntas demais e não vai conseguir se virar sozinha
— Grayson informou ao assistente depois de narrar os
acontecimentos do dia anterior com mais calma.
— Como aqueles loucos que juram que são Napoleão?
— Ao que parece, ela não se lembra de coisa alguma além de
todas as suas regras de etiqueta de 1800. Não para de me censurar
por estar sozinho com ela porque isso vai afetar sua reputação. Ela
fala diferente, tem regras rígidas de etiqueta, não lembra da
existência de coisas simples como o que é um hospital.
— E você está fazendo isso por quê?
— Ela não tem ninguém, Nicolas. Faria isso por qualquer um,
inclusive você.
— Sei, chefe. Eu tenho meu noivo e ele ficaria feliz em tentar me
explicar o século 21 sem precisar do senhor.
— E é por isso que estou com Nellie… quer dizer, Ellen. Ninguém
está aqui para fazer isso por ela — o homem informou. — Voltarei ao
trabalho assim que possível. Estou acompanhando os e-mails e meu
telefone está disponível.
— Já a chama por um apelido, heim…
— Não seja irritante, Nicolas.
— Use como férias, chefe. Deus sabe que não tirou nenhuma
nos últimos anos. Descanso e uma mulher bonita.
— Como sabe que é uma mulher bonita?
— Porque, por mais que diga que faria isso por qualquer um, vi
você correr para a obra por qualquer pretexto. Sou muito bom em
tirar conclusões.
— Isso não é importante. Ela está vulnerável, seria como me
aproveitar dela — Grayson confessou.
— Cuide dela e da sua cabeça. Eu ligo se precisar de você —
Nicolas avisou e desligou logo em seguida.
Grayson suspirou, pensando nas palavras do assistente: como
aqueles loucos que juram que são Napoleão. Era o maior medo do
empresário, que a restauradora estivesse em algum tipo de
problema psicológico ignorado pelo hospital e engatilhado pelo
acidente na Casa Canning. Qual era a outra opção que tinha? Que a
jovem fosse mesmo uma dama do século 19? Ele conhecia a
verdadeira Ellen Morris e sabia que a personalidade era diferente.
Era como assistir a casca da mesma mulher com outra alma.
— Você passou a noite? — Grayson ouviu a voz e levantou a
cabeça. Ela tinha um tom assustado e seus olhos cresceram quando
observou o homem deitado sem camisa no sofá. As bochechas da
mulher coraram, e Nellie virou-se para o outro lado para não o
encarar.
— Disse que não podia ficar sozinha. Está melhor? Sente algo? —
ele perguntou e sentou-se no sofá, seus músculos reclamando.
Grayson passou as mãos pelos olhos caramelo e soltou um suave
bocejo. Nellie estava arrumada, penteada e pronta, como se
seguisse uma rotina todas as manhãs.
— Não. De verdade, não sinto nada, só esse vazio… — ela se
interrompeu, como se estivesse falando mais do que deveria, e
passou a mão por seu coque rígido.
Era curioso como a mulher conseguira ajeitar o cabelo de uma
forma severa, mesmo sendo curto. Nellie também usava uma saia
longa e uma camisa até os punhos, que se levantava por seu
pescoço, quase não deixando pele à mostra. Ela parecia melhor do
que após o acidente, mas muito diferente da restauradora que
conhecia.
— Conseguiu se lembrar de algo do seu passado? Sua mãe,
como se chama? — Grayson questionou e levantou-se, esticando os
braços. Nellie girou seu corpo e ficou ainda mais de costas para não
o ver sem camisa. Era gracioso.
— O senhor pode colocar uma roupa?! É indecente andar assim!
— Nellie, acalme-me — o executivo pediu e tateou sobre o sofá,
buscando a peça de roupa. Ele a vestiu e voltou a falar. — Pode virar
se quiser, estou com uma camiseta.
— Ainda tem braços demais à mostra, se pudesse julgar — ela
censurou, dando uma olhadela pelo ombro antes de virar-se de novo,
as bochechas acesas. — A etiqueta prevê camisas e casacas.
Posso ver seu cotovelo!
— Ah, a indecência do cotovelo — Grayson brincou.
— Regras foram feitas para serem seguidas, senhor. Existe um
código de etiqueta e estou… ah, Deus… na frente de um cavalheiro,
sozinha, observando seus cotovelos! Estou condenada para sempre!
— a jovem disse nervosa, com as bochechas coradas e o dedo em
riste, como se estivesse distraindo-se demais da nudez do homem
para brigar pelas regras de bom comportamento.
— Nós já tivemos essa conversa, Ellen. As regras mudam e hoje é
perfeitamente aceitável mostrar meus cotovelos, ou você usar
calças.
— Senhorita Morris! Não consegue entender!? — ela corrigiu
como uma professora irritada. — Sabe onde encontro uma modista?
Não consigo usar essas calças que estão no armário! São
monstruosas! Esse é o último bom par de saia e camisa que
consegui encontrar. E os sapatos! São impossíveis com saltos
pontiagudos…
— Isso posso concordar. Nunca entendi como algumas pessoas
podem se equilibrar em saltos tão altos — ele respondeu com
sarcasmo.
— Isso não é uma piada, senhor Canning. Se puder me ajudar…
— Não acredito que estou tendo essa discussão tão cedo. O dia
está amanhecendo e você quer falar sobre a dignidade de cotovelos
e calças. — Grayson suspirou, frustrado pela noite mal dormida. —
Vamos resolver um problema por vez, pode ser? Agora me
responda, qual é o nome de sua mãe?
— Eu… eu… não sei.
— Seu pai, talvez?
— Também não — ela replicou frustrada.
— Algo chamou sua atenção desde que saímos do hospital?
— Tudo me chama atenção. Não entendo metade das coisas que
vejo! —exclamou e sentou-se no sofá com as mãos sobre o rosto. —
É impossível me manter digna em uma situação como essa, senhor.
Tudo parece uma loucura. Acho que enlouqueci no acidente.
— Você precisa esperar para voltar à sua consulta antes de
qualquer coisa, Nellie. Mas acho importante conversar com um
psicólogo. Você age como uma dama da sociedade do século 19
desde que acordou no hospital. E parece tensa. A Ellen que observei
trabalhar nos últimos meses é relaxada, de sorriso fácil e você…
bem, tem regras demais. Algo está errado.
— O senhor não é próximo então, é isso? — ela questionou com
interesse.
— Como diz?
— Você “observava trabalhar”. Não é o tipo de relação que
terminaria com o senhor deitado em um sofá e criando um apelido.
— Não, não somos amigos. Como expliquei, sou seu chefe.
— Ah, sim. E por que age desse jeito?
— Já disse, quero ajudá-la! — ele comentou sem jeito. — É
complicado, e você não tem ninguém.
— Não quero sua caridade. Já o mantei embora, mas o senhor
não vai! — ela exclamou frustrada.
— É que desperta o pior de mim — ele respondeu com um sorriso
sarcástico. — Antes, parecia ter o controle da situação, e agora fica
com as bochechas vermelhas cada vez que olha meu cotovelo!
— Senhor Canning!
— Pode não parecer, mas sou uma pessoa fechada com os
outros. Se contasse a qualquer pessoa sobre os últimos dias,
achariam que está falando de outro Grayson Canning. Quero
oferecer minha amizade. Não tenho ninguém, Nellie. Sei como deve
ser difícil para você.
— Nem ao menos sei se não tenho mesmo ninguém — a mulher
completou e analisou os olhos suaves do homem. — Agradeço por
suas boas ações, mas entende como pode ser difícil para mim?
— Eu sei. É por isso que acho que deveria procurar o terapeuta.
— A médica também me sugeriu um profissional, mas não quero.
Ninguém deve saber o que está acontecendo, é vergonhoso!
— Acho importante…
— Não — ela o interrompeu e encarou-o com olhos sérios. — Não
vou falar com ninguém e o senhor não pode me obrigar.
— Muito bem. Vamos esperar sua consulta e continuamos essa
conversa. Por enquanto, vou tentar manter a dama da sociedade
inglesa segura. Você tem algum conhecido que queira chamar?
Consegue se lembrar de alguém? Não achei informações sobre
ninguém em suas coisas.
— Eu tenho um pai ou irmão? Preciso de alguém para me
proteger — ela gemeu. — Que tipo de lugar é esse que uma mulher
fica sozinha?
— As mulheres podem fazer o que quiserem, querida. Morar
sozinhas, trabalhar, escalar o Everest.
— Everest?
— Uma montanha. — O homem dispensou como se não quisesse
falar mais a respeito. — Vamos fazer o seguinte: procurar algum
contato entre suas coisas. Talvez você tenha algum parente que
possa te dar abrigo até suas lembranças voltarem. Sente alguma
dor?
— Não, nem mesmo a que senti quando acordei naquela cama
estranha — ela comentou e observou-o, vulnerável. — E se não
encontrarmos parente algum?
— Eu vou cuidar de você, mas não nesse apartamento. Meu
pescoço não merece esse sofá desconfortável — ele explicou. Por
mais que sentisse a conexão com a mulher, o móvel era incomodo
demais para mais uma noite de tortura. — Nós vamos para o meu
apartamento. Sua pequena caixa de sapatos não funciona para mim.
Minhas costas doem.
— ISSO É ULTRAJANTE! — Ela levantou a voz mais uma vez e,
com um suspiro, controlou o tom irritado. — Quem o senhor pensa
que é? Não vou para a casa de um homem solteiro! E talvez eu tenha
mesmo algum familiar. É impensável ir à sua moradia!
Grayson encarou Nellie e notou como a mulher parecia ter prática
em esconder seus sentimentos, como se treinasse há anos a fio para
não demostrar sua irritação apesar das palavras zangadas. Era
curioso como tal ato parecia fora de lugar para ela. Será que não
tinha costume de falar o que pensava?
— Pois é isso ou o hospital — Grayson murmurou e cruzou os
braços.
— Está me ameaçando outra vez, senhor?
— Você não pode ficar sozinha, Nellie. A médica explicou que nos
próximos dias há a possibilidade das coisas se complicarem. Pode
ter uma hemorragia interna, outras consequências. E você nem
mesmo se lembra quem é. Não vou deixá-la, se é o que está
pensando. A opção é ter algum conforto em minha casa ou continuar
nesse apartamento pequeno, dividindo espaço comigo até minhas
costas doerem demais e eu a arrastá-la porta a fora em meus
ombros.
— O senhor não se atreveria…
— E a senhorita não sabe o que a falta de sono pode fazer com
alguém — ele completou e encarou-a por alguns segundos,
esperando a mulher chegar a alguma conclusão.
— Ninguém pode descobrir sobre isso! Estarei desonrada se
descobrirem que dividi uma casa com o senhor — ela anunciou,
dando o braço a torcer. — Mas primeiro gostaria de tentar achar
algum parente. Não posso ser sozinha, posso?
— Isso é um sim? — Grayson perguntou com um sorriso sincero.
— Vamos procurar suas coisas. A casa parece ser organizada e
temos o dia todo.
— Só saio dessa casa se Mary puder ir junto.
— Você dormiu com ela em sua cama, não? — Grayson
questionou e viu as bochechas da mulher se tingirem de vermelho
mais uma vez.
— Não posso fazer isso?
— Pode fazer o que quiser, querida. Prepare sua gata. Vamos
para um lugar mais confortável.
— Não vamos procurar minhas coisas? — a restauradora indagou
confusa.
— Por mais que eu queira auxiliá-la, Nellie, minhas costas também
vão precisar de ajuda se me obrigar a permanecer mais um dia
nesse apartamento. Vamos… — Ele suspirou e analisou a estante
cheia de documentos da mulher. — Temos algumas pastas e
documentos para investigar.
Grayson procurou por cada canto do apartamento de Nellie, o que
foi fácil, já que era pequeno demais para que as coisas se
perdessem. Papéis e pastas foram retiradas de armários e uma
estante foi revirada antes de a mulher colocar os livros com cuidado
em seu lugar. Ela encarava cada item da casa de forma curiosa,
perguntando vez ou outra o que eram: televisão, eletrodomésticos,
confundindo fotos com pinturas ou querendo saber onde colocava a
lenha do fogão. Quando o empresário sugeriu que deveria perguntar
a cada dúvida, não sabia que a jovem passaria o dia apontando para
coisas e querendo saber sua funcionalidade.
Depois de algumas horas, todas as possibilidades de um parente
ou amigo próximo que pudesse cuidar da jovem foram esgotadas. Os
parentes nos documentos de Nellie estavam mortos: pai, mãe e
avós. Grayson achou algo sobre Eric, mas o mestre de obras falou
de um ex-noivo que tinha se mudado para Paris, e não existia contato
algum em redes sociais ou telefone da restauradora.
— Não há nada, Nellie. Prometo que terá um quarto só seu e
ninguém a verá. Podemos ir? — ele perguntou quando a última fileira
da estante foi recolocada no lugar.
— Não existe ninguém que possamos contactar? A casa de um
homem solteiro… — Ela suspirou, vencida. — Promete que ninguém
me verá mesmo?
— Já ofereci minha proteção e, além do mais, acho que tanto
você quanto Mary gostarão mais da minha casa. É espaçosa, teto
alto, tem três quartos e uma vista para o Tâmisa.
Grayson ainda gastou mais alguns minutos até convencer Nellie a
passar alguns dias em seu apartamento em Knightsbridge. A mulher
preparou uma maleta com roupas que considerava usáveis, como
pares de camisa de gola alta e de mangas longas, vestidos, casacos
amplos e algumas calças, que ela disse entre resmungos que estava
levando caso não conseguisse achar uma modista antes que toda a
roupa estivesse suja. Mary foi colocada na caixa de transporte e
depois de uma checagem geral do imóvel, eles deixaram Camden
para trás.
Nellie estava tão tensa quanto na volta do hospital, agarrada à
caixa de Mary enquanto Grayson tentava dirigir o mais devagar
possível. Ela repetia uma e outra vez que ninguém poderia saber da
situação dos dois, e o herdeiro dos Canning voltava a acalmá-la
sobre não revelar o acordo para ninguém. Ele sabia que para a
jovem — em especial por pensar como uma dama do século 19 —
era difícil estar no lar de um homem solteiro e quase desconhecido,
mas sabia também que era o melhor jeito para os dois: conseguiria
vigiar e acudir a mulher se necessário, sem quebrar sua coluna no
processo. Nellie foi acuada pela situação e sem direito a negar a
mudança de endereço, e por isso o empresário faria o melhor para
aceitar seus pedidos.
Juntos, subiram ao elevador do prédio, uma estrutura moderna e
metálica que se destacava na vista da cidade. Grayson morava
sozinho no imóvel há quase uma década, desde que terminou a
faculdade e passou a trabalhar na empresa do pai. Ele adorava o
espaço, mas principalmente a vista: Londres era um misto de
modernidade e história que causava confusão aos olhos
desavisados, com construções milenares dividindo espaço com
prédios novos e futurísticos.
— Tinha razão, sua casa é maior — ela exclamou quando o
empresário abriu a porta do apartamento. Nellie colocou a caixa de
Mary no chão e abriu a portinhola antes de perguntar. — Onde posso
ficar?
— Vou mostrar o quarto, mas está cedo, pode fazer outra coisa.
Preciso dar uma olhada em alguns documentos do meu trabalho,
mas não há grandes diferenças do seu apartamento para esse. O
banheiro tem as mesmas coisas, a televisão está aqui na sala e tem
alguns eletrodomésticos aqui e ali. Se tiver dúvida, é só me
perguntar.
— O senhor trabalha? Em que tipo de coisa? — ela questionou
com curiosidade. — Sei que mulheres e homens trabalham, mas
ainda é curioso, ainda mais porque o senhor é um Conde…
— Investimentos.
— Ó, sim, é algo cavalheiresco. Não esperava menos de um
nobre, mesmo agindo como age e me mantendo aqui para acabar
com minha reputação — ela censurou em um tom seco que fez
Grayson soltar uma risada. Nellie se esticou, tentando mostrar
seriedade com a reação, o que fez o homem rir ainda mais.
— Ninguém se importa com o que outro faz, Nellie. O que
precisamos fazer agora é tentar estimular sua memória. O que acha
de ir à Casa Canning?
— Agora? — ela perguntou assustada.
— Em algumas horas. Recebi alguns e-mails e ligações, já que
costumo passar muitas horas na Canning Co. e os últimos dias foram
diferentes do habitual.
— Peço desculpas se minha presença tem prejudicado sua rotina,
mas gostaria de lembrar que é o senhor que está insistindo em ficar
ao meu lado como… como um sequestrador!
— Nellie… — Grayson voltou a rir mais uma vez e colocou a mão
no rosto, tentando mostrar alguma seriedade. — Você tem sorte que
não estou te sequestrando para aquele lugar, como é o nome…
Gretna Green?
— Ó! — a jovem respondeu em choque. — O senhor pode parar!
Percebo que está apenas me provocando! Não é justo quando não
me recordo de nada!
— Tudo bem — o executivo consolou e encarou a mulher, ainda
impressionado com como essa versão de Ellen Morris o fazia sair de
sua concha. Algo sobre ser o guardião da restauradora deixava-o
mais confortável na conversa. Talvez fosse apenas ela, ele pensou.
Nellie e suas expressões de censura e choque, que o faziam
provocá-la mais e mais.
— Sobre a Casa Canning — ela suspirou —, talvez fosse melhor
esperar alguns dias. Algo sobre esse nome não me agrada e prefiro
tentar me lembrar de outras maneiras.
— É o meu nome — Grayson respondeu com um sentimento ruim
na boca.
— Mas não é sobre você, tenho certeza. — Ela balançou a
cabeça, tentando dissipar os pensamentos. — Não vou atrapalhar
sua rotina. O senhor precisa trabalhar, não?
— Não me atrapalha — Grayson garantiu. — Em alguns dias,
podemos ir a alguma loja comprar roupas, se te interessar. Vi o quão
incomodada ficou com seu guarda-roupa anterior.
— Ninguém me verá de qualquer forma, pretendo ficar em sua
casa até poder voltar para minha vida anterior. Tanto eu como Mary
ficaremos bem, e talvez consiga uma modista para visitar… Apesar
que ela saberia, e rumores são tão perigosos! Minha reputação sairá
em frangalhos dessa situação, posso apostar! Nenhum homem
quererá casar comigo depois disso tudo!
— Quando a senhorita lembrar, verá que não é um grande
problema — ele anunciou afável, e a expressão do rosto de Nellie
suavizou.
— Obrigada, senhor Canning. Apesar do censurável da situação,
tem me ajudado como poucas pessoas fariam. Não sei o que seria
de mim sem o senhor.
— Eu prometi, Nellie — o empresário falou, e viu a mulher enrugar
o rosto pelo uso do apelido. Ao menos havia parado de reprová-lo
cada vez que o homem a chamava daquela forma.
— Se pudesse me prometer que também seguirá as regras da
decência. Ainda não me recuperei de encontrá-lo sem roupa essa
manhã.
— Prometo que ficarei vestido a menos que me peça o contrário,
é bom para você?
— Ahh… — a jovem gemeu e as bochechas ficaram vermelhas de
vergonha. — Vou procurar o quarto e parar de ouvir seus disparates.
O senhor é indecente e parece se orgulhar disso!
— O segundo quarto à esquerda está vazio. Se tiver alguma
pergunta, estarei no escritório ao final do corredor — o homem
respondeu, ainda com um sorriso nos lábios. Dividir o teto com Nellie
seria divertido no final das contas, pensou.
Grayson tomou um banho rápido, fez uma troca de roupa e
começou a trabalhar. Ele ouvia os barulhos da mulher por sua casa,
achando reconfortante perceber outro ser humano entre suas
paredes. Para Nellie, aquelas horas foram de expedição: guardou
suas roupas e, com Mary grudada a seus pés, analisou os livros da
estante. Ela decidiu por um nome que conhecia — em um mar de
autores que não sabia quem eram — e se sentou no sofá, passando
algumas horas em companhia de Pamela, de Samuel Richardson.
Assim como ela, a protagonista se via na mão de um algoz que
queria que a serva abrisse mão de seus valores morais. Conforme
as páginas passavam, Nellie percebia que Grayson Canning não
tinha nada de Mr. B: apesar de aristocrata, o empresário não agia
como um patife, aproveitando-se da mocinha. Apesar de provocador,
o Conde de Bradford parecia mais seu guardião do que o cruel
protagonista da história. Nellie fechou o livro e o encarou por alguns
segundos, observando o nome do autor. Uma voz feminina ralhava
sobre aquela não ser uma leitura adequada para mocinhas da
sociedade. Em seu interior, aquilo fazia a veia rebelde de Nellie
pulsar. Abriu o livro outra vez para continuar as desventuras de
Pamela Andrews fugindo de seu malvado patrão.

— Encontrou um livro que te interessa?


— Ahh… — Nellie gemeu e derrubou o livro quando voz de
Grayson a assustou. Ela olhou ao redor, reparando que o dia estava
escuro do lado de fora. Quantas horas passou lendo as desventuras
da serva fugindo de Mr. B?
— Pamela, de Samuel Richardson.
— Ó, sim, um dos inspiradores de Jane Austen — ele anunciou.
— Creio que deve ter algum livro dela e de outras autoras do
período regencial e vitoriano. Meu pai acreditava que deveria ler um
pouco de tudo e tenho alguns clássicos na estante.
— É uma leitura revigorante, apesar de quão malvado é o Mr. B
— a jovem anunciou. — E aposto que a pobre terminará se casando
com ele pelo bem de sua virtude.
— Ah, sim, a reputação…
— O senhor poderia parar de deboche? É um assunto muito sério!
— ela respondeu e depois o encarou com curiosidade. — Estou com
fome, onde está seu cozinheiro?
— À sua frente.
— Como? — a jovem questionou confusa.
— Estou cansado e também com fome. Uma massa, que tal?
— Uma massa? — ela repetiu, e Grayson a pegou pela mão,
puxando-a até a cozinha. Ao chegar no cômodo, o homem puxou
uma cadeira, alojou a mulher ali e começou a mexer nos armários em
busca de ingredientes. Ela encarava-o com atenção enquanto ele
cortava alguns legumes e colocava o macarrão em uma panela.
— Todos os homens dessa época sabem cozinhar? Estou mais
que certa de que nobres não cozinham.
— Nem todas as pessoas sabem cozinhar — ele disse, dando
atenção para o tomate à sua frente.
— É curioso o senhor cozinhar, ainda mais com o seu título — ela
comentou. — Achei que teria um cozinheiro.
— É caro manter um cozinheiro e muita gente aprende a cozinhar,
por necessidade ou prazer.
— Para o senhor, o que foi?
— Um pouco dos dois. Vivo sozinho há muitos anos e não gostaria
de pedir comida a todo o tempo — o empresário explicou, e ela
enrugou a testa como se não entendesse bem o que ele estava
falando.
— Pedir, como entrar em contato com um cozinheiro?
— Algo assim. O jantar de ontem foi um pedido. Acho que não viu,
pois estava trancada em seu quarto.
— Sim… Peço desculpas por isso. O senhor está tentando ser um
bom anfitrião. Tenho me comportado de forma terrível.
— Você sofreu um acidente, não lembra de nada e está em um
local estranho. Entendo o que está passando. — Ele suspirou. — O
que fez durante todo o dia?
— Não muito. Espiei seus livros, olhei pela janela. Há todo tipo de
barulhos estranhos nessa cidade. E essas casas tão altas… Depois,
bem, li Pamela por muitas horas — ela respondeu com vergonha. —
Eu tenho a impressão de que era um livro censurável, que não
deveria estar lendo.
— E como a senhorita se sente sendo uma rebelde?
— Achei o Mr. B um vilão! Mais jovens deveriam ler para saber
como os homens podem ser maus!
— E pensar que achavam o livro romântico.
— Romance? Mas ele é um abusado!
— Exatamente. — Grayson riu e misturou os ingredientes, subindo
aromas na cozinha que fizeram Nellie ficar com água na boca. —
Está quase pronto.
— Já?
— Nem toda preparação precisa durar horas. Com todas as horas
trabalhadas… São como os prédios, que foram feitos para
abrigarem muito mais pessoas. As casas antigas eram enormes e
para poucos, ao contrário dessas estruturas enormes formadas de
apartamentos. Aqui vivem pelo menos quarenta famílias. Muito, não
é?
— Sim. Impressionante!
— Vou mostrá-la como funciona a televisão, pode ajudar a passar
o tempo.
— Aquilo que me mostrou em meu apartamento? A tela preta?
— Essa mesma. Tem coisas muito legais passando nela, basta
escolher. É como… é como um teatro dentro da tela.
— Parece interessante. Preciso me vestir? — a jovem perguntou
inocente.
— Ninguém vai vê-la. Será apenas você, ou eu. Gostaria da minha
companhia?
— Pode ser — ela respondeu de ombros. — Sei que é julgável,
mas gosto do senhor. É bom conversar com outra pessoa. No tal
hospital, ninguém conversava comigo, só entravam, saíam, olhavam
e espetavam coisas em meu braço.
— Pode conversar comigo. Até mesmo me interromper, se quiser.
Talvez amanhã ainda trabalhe daqui de casa, mas pelos próximos
dias devo voltar a passar o dia fora.
— Em algum clube de cavalheiros?
— Não! — ele respondeu com uma gargalhada. — No trabalho.
Um espaço específico para o que eu faço. E clube de cavalheiros
não são do mesmo jeito. As pessoas ainda vão, mas não como no
período regencial. Hoje as pessoas têm outros entretenimentos.
— E por que o senhor parece não ter nenhum? Desde que
chegamos, está trancado no escritório. Achei que cavalheiros com
título não precisassem trabalhar.
— Você é mais uma pessoa que graciosamente me aponta isso.
— O empresário deu um suspiro. — Tenho muitos funcionários e uma
empresa grande. Não tenho tempo disponível.
— Peço desculpas! — ela falou em um fio de voz. Grayson
montou dois pratos de massa enquanto contemplava a mulher em
silêncio.
— Desculpe-me se a ofendi — ele pediu e fez um sinal para ela se
aproximar da grande bancada da cozinha. O homem estendeu o
talher e deu a primeira garfada em seu macarrão. Nellie fez o mesmo
e gemeu de satisfação ao experimentar a massa.
— Não… — ela dispensou as desculpas e deu de ombros. — É
que o senhor é tão educado que me fez esquecer de manter meu
comportamento. Não devo fazer perguntas tão pessoais quanto
essas.
— Pode perguntar o que quiser, Nellie. Responderei se puder.
— Podemos… podemos ver televisão depois do jantar? Esse
prato está muito bom, aliás. O senhor sabe cozinhar!
— Claro que podemos. Eu a acompanharei, tudo bem? —
Grayson respondeu com um sorriso suave, e Nellie balançou a
cabeça em concordância, dedicando-se a seu prato e
compartilhando a refeição em um silêncio satisfatório.
Aquela foi a primeira de várias noites que Grayson e Nellie viram
filmes antes de dormir. A mulher achava tudo que acontecia naquela
pequena tela curioso, incluindo ações impróprias como damas
beijando cavalheiros ou vestidos e trajes curtos. Ela se divertia,
apesar disso. O executivo era uma companhia agradável, que saía
pelas manhãs muito cedo e retornava ao final da noite apenas para
jantar e ver televisão. Passava os dias com Mary, entre os livros da
estante e coisas curiosas que aprendia a usar.
O empresário mostrou a Nellie um celular e um computador, com
o qual ela se assustou, mas voltou a mexer quando Grayson saiu
para o trabalho. A mulher achou fascinante, e rapidamente se tornou
seu momento favorito. Dois dias depois de chegar à casa do
herdeiro dos Bradford, a jovem aprendeu a mexer na assistente
virtual e achava curioso a voz feminina explicando cada pergunta sua.
Era bom fazer as perguntas mais estúpidas sem medo de ser
julgada, pois, de acordo com Conde, não existia pessoa alguma por
trás de Alexa.
Ela não precisava ficar com vergonha da reação de Grayson
quando poderia perguntar para o pequeno aparelho e, pouco a
pouco, começou a se sentir mais dona de si, sem sentir a estranheza
ao seu redor. Passaram-se sete dias inteiros e Nellie ainda não
conseguia lembrar de nada. Para ela, que nem mesmo dor sentia
após sair do hospital, era como uma incógnita. Ela sonhava com uma
mulher de cabelo grisalho, sempre muito rígida, com uma casa de
campo e uma árvore frondosa. Era quase como se seus sonhos
tentassem contar algo sobre o passado que havia esquecido.
O nome “Ellen Morris” não fazia sentido para ela, assim como
todas as informações sobre sua profissão. Grayson continuava
insistindo sobre a visita à Casa Canning, mas algo nesse nome a
assustava, fazendo-a ter um desejo instintivo de não pisar em tal
lugar. A consulta médica seria no dia seguinte, mas Nellie achava que
não conseguiria respostas. Talvez até mesmo tivesse mais
perguntas. Era inevitável pensar que talvez nunca soubesse quem
era de verdade.
Mas a jovem estava alegre por sair pela primeira vez desde a
volta do hospital. Nellie tinha controle de seu mundo no apartamento
do senhor Canning, mas sentia falta de algo mais: desde que
acordara no hospital, estava presa às paredes de algum imóvel.
Primeiro do hospital e depois da residência do chefe, observando o
sol e as nuvens através das janelas altas, desejando passar algumas
horas fora, além de no veículo de Grayson.
Sair seria um perigo para seu segredo de dividir o teto com um
homem solteiro, mas sentia falta de raios de sol em seu rosto e o ar
gelado enchendo seus pulmões. As mulheres saíam sozinhas como
viu nos filmes com Grayson, mas ela ousaria a agir da mesma
maneira? A falta de companhia seria a primeira regra quebrada pela
dama?
— Algo chama atenção? — Grayson perguntou a Nellie quando a
viu apoiada na janela.
Apesar de ser quase seis da tarde, o sol ainda brilhava forte do
lado de fora. Com os dias mais longos, dependendo das estações do
ano, era comum que Londres anoitecesse entre oito e nove horas da
noite, deixando as ruas da cidade cheias de pessoas querendo
aproveitar o final do dia. Nellie encarava tal situação com
curiosidade, vendo o ir e vir de pessoas através dos grandes vidros
do apartamento.
— Ó… vendo o tempo lá fora. Chegou cedo!
— Não é tão cedo, eu que costumo sair do trabalho muito tarde —
ele respondeu com um sorriso sem jeito e um pouco tímido. — Tive
algum espaço livre na minha agenda e decidi voltar para casa. Fica
sozinha por horas demais.
— Não estou sozinha, tenho Mary. E é agradável conversar com a
moça. Ela tem respostas para tudo!
— Moça? — Grayson questionou com confusão, e Nellie apontou
para o objeto na sala. — A Alexa? Não é uma moça, é uma
inteligência virtual.
— Que seja! Você já me explicou isso, mas é como ouvir alguém.
— Nellie balançou as mãos como se não importasse. — É
maravilhoso receber respostas apenas por ouvir seu nome. Tem me
ajudado muito a entender o que são essas coisas da sua casa.
— Como o quê?
— Essa manhã, eu descrevi os itens da cozinha e ela me informou
seus nomes, foi muito prático. É melhor do que interrompê-lo para
perguntar.
— Já disse que pode me interromper quando quiser. Já ensinei
como usar o telefone! E gosto de sua companhia. Gosto até mesmo
da gata — o empresário zombou. — Pode me ligar se precisar.
Tentarei deixar minhas manhãs livres para conversarmos mais, que
tal? Até sabermos o que aconteceu com você, não acho saudável
ficar tanto tempo sozinha.
— Acredito que trabalhe demais, isso sim. Deveria ver um
daqueles filmes ou ler um dos livros de sua estante. Ficar trancado
em escritórios todo o tempo não deve fazer bem.
— Parece que gosta da minha companhia — ele brincou, e as
bochechas de Nellie se tingiram de vermelho.
— Ó, não quero incomodá-lo, só pensei… É um homem ocupado,
senhor. Estou bem em sua casa, apesar de querer ir lá fora — ela o
interrompeu e colocou a mão na boca, tentando devolver suas
palavras.
Para Nellie, era estranho como se sentia relaxada ao redor de
Grayson Canning. O homem tinha o poder de fazê-la falar mais do
que a etiqueta permitia, e por vezes revelava algo pessoal que nem
mesmo um homem da família deveria saber. Deus… ele a viu de
calças!
— Vamos agora, que tal? Não tenho mais nenhum compromisso
importante e sinto-me um péssimo anfitrião por deixá-la aqui sozinha.
Não me passou pela cabeça que quisesse fazer um passeio.
— Ó, não. É escandaloso andar sozinha com um homem. E deve
escurecer a qualquer momento, é ainda mais reprovável! Eu disse
que não colocaria os pés para fora dessa casa e o senhor me
prometeu!
— Já conversamos que essas coisas não existem mais. Podemos
fazer um passeio rápido e conseguir algo para jantar. Não gostaria
mesmo de ir lá fora? Se não quiser, posso entender, mas você
mesma falou que gostaria, então… — Ele deu de ombros, deixando
as palavras penduradas. Nellie encarou-o confusa, porque em seu
interior, ela gostaria, mas existiam tantos entraves para um simples
passeio.
— Eu não acho… — a mulher protestou mais uma vez.
— Ora, Nellie, vamos! Ninguém vai reconhecê-la. Ninguém mais se
importa com a vida do outro a esse nível. Se ninguém pudesse julgá-
la, o que gostaria de fazer? Sem convenções, apenas sua vontade.
— Dar uma volta do lado de fora — Nellie respondeu com um fio
de voz. — Estou cansada das paredes de seu apartamento.
— Então está decidido. Vá buscar um casaco e vamos! Podemos
comprar roupas para você, o que acha? Sei que está louca para se
livrar de suas peças antigas — Grayson completou. A mulher deu um
sorriso vacilante e caminhou para o quarto.
Ele observou-a sumir de suas vistas, sabendo que aquele era um
passo grande para ela. Conforme os dias foram passando, Nellie
parecia mais adaptada, apesar de ainda falar sobre as regras de
etiqueta do século 19. O empresário achava que até a consulta
seguinte ela estaria recuperada, mas parecia que a “dama regencial”
era algo que continuaria. A jovem não parecia dar sinais de se
lembrar de suas memórias e, apesar de relaxada, continuava a agir e
falar como alguém de séculos antes.
O celular de Grayson vibrou, tirando-o de seus pensamentos. Era
o responsável pelo portifólio da família Canning, alguém com que ele
raramente conversava. O que o homem queria?
— Olá, Geoffrey, em que posso ajudá-lo? — Grayson
cumprimentou.
— Algo de incrível aconteceu. Achamos material inédito sobre
um dos Condes. Passamos o dia separando-os, peço perdão pela
hora, mas é a primeira grande descoberta em décadas.
— Como?
— Nós mantemos todo o histórico da família catalogado, senhor.
Na última semana, achamos algumas colunas de 1814 sobre o
décimo Conde e sua esposa, e hoje tivemos a confirmação que não
havia nenhum desses textos em nosso acervo.
— Eram edições perdidas?
— Não creio. Talvez páginas perdidas, mas nossa equipe está
tratando de como catalogá-las da melhor forma possível. São
edições interessantíssimas sobre Stephen e Eleanor Canning. A
Condessa usou um vestido vermelho em um baile.
— Uhhhh… — Grayson respondeu, achando o assunto sem
importância. A curadoria dos documentos do título era muito
importante para o pai, mas para ele, era quase como se não tivesse
relação. Era apenas a responsabilidade passada de geração a
geração.
— Eu sei que não parece importar, mas, senhor, é algo novo
sobre o título. Acredito que é a primeira vez desde que iniciamos os
trabalhos a ter algo nesse sentido. Enviei informações mais
detalhadas, mas queria que soubesse caso chegue a público.
— Muito obrigado, Geoffrey.
— Foi um prazer, senhor. Podemos montar uma sessão
exclusiva em Bradford Hall ou na Casa Canning quando ficar
pronta. Há até mesmo ilustrações do vestido, senhor. Não sei como
algo assim não surgiu antes — o profissional completou, parecendo
confuso, e desligou logo em seguida.
— Tudo bem? — Nellie perguntou ao voltar à sala vestida com um
casaco, vendo Grayson guardar o celular. Seu sorriso murchou para
algo pesaroso antes de perguntar: — Teremos que mudar nossos
planos?
— Não. Apenas mais uma ligação de trabalho.
— Não lembro como os homens da minha época faziam. Seus
dias são tomados por esses aparelhinhos — ela anunciou e apontou
para o smartphone.
— Muitos homens não trabalhavam, não é? — Stephen respondeu
com uma piscada, e as bochechas de Nellie coraram com o gesto.
— Pronta?
Eles desceram até a rua, e o empresário apontou o caminho para
a mulher, andando lado a lado com uma distância que a restauradora
considerava apropriada. Nos primeiros metros, Nellie olhava para os
lados, paranoica, mas percebeu que, como o homem havia alertado,
ninguém se importava com os dois. Eles andaram pelo Knightsbridge,
aproveitando o ar fresco do bairro e as ruas movimentadas em um
silêncio confortável. O bairro ficava ao lado do Hyde Park e incluía
empreendimentos e casarões vitorianos com praças repletas de
jardim. Apesar de ter lojas e restaurantes sofisticados, era um local
arborizado e com um ambiente bom para o que ambos estavam
fazendo naquele momento: um passeio a pé.
— Está gostando do passeio? — Grayson indagou depois de
alguns minutos. Ele podia observar a satisfação da mulher por
apenas caminhar pelas ruas.
— Achei que todas as casas eram como seu local atual, mas vejo
que mantiveram algumas das casas de meu tempo.
— O seu tempo é agora, Nellie. Do jeito que fala, parece uma
viajante do tempo — ele a corrigiu.
— O que é isso?
— Alguém que consegue ir e vir de um ano. Por exemplo, você
que está aqui, mas vive sobre as regras de duzentos anos atrás.
— É impossível que alguém viaje assim, não? Pessoas
envelhecem e morrem… — ela respondeu e encarou Grayson com
confusão. — Não é?
— Sim. Só em filmes e livros que esse tipo de coisa acontece.
Meu pai amava esse tipo de coisa. Íamos juntos ao cinema para ver
qualquer filme de ficção cientifica.
— Ele morreu?
— Sofreu um acidente quando foi verificar Bradford Hall, em
Yorkshire — o empresário disse. Ela balançou a cabeça e abriu os
olhos em choque pelo nome.
— Sinto muito — a jovem murmurou. — Bradford Hall é sua casa
também?
— Uma das centenárias ligadas ao título.
— Eu tive um irmão. Adoeceu e morreu rapidamente. Foi uma
tragédia…
— Você consegue se lembrar? — Grayson a interrompeu, e Nellie
olhou confusa para ele. Eles pararam no meio da rua, encarando um
ao outro. Aquilo eram lembranças?, ela pensou.
— Não… não sei de onde essa memória veio. Não consigo
lembrar do que estou falando, do nome dele ou de que morreu. Ahhh,
senhor Canning! — ela sussurrou impotente como se buscasse a
resposta dentro de si e fosse incapaz de encontrar.
— Posso contratar um detetive e procurar, na obra todos
achavam que não tinha parentes. Talvez seja um irmão distante com
quem pouco falava ou algo assim — ele sugeriu com voz calma. A
respiração da mulher estava acelerada e ela parecia nervosa, apesar
de tentar controlar sua reação externa. Havia coisas demais dentro
daquela Ellen Morris de depois do acidente, como se não deixasse
sua verdadeira essência emergir.
— Seria bom — ela respondeu tímida e deu um sorriso silencioso,
balançando a cabeça e voltando a andar. Grayson observou a figura
alguns metros à sua frente e pensou se a jovem começara a se
lembrar. Isso o deixava inquieto. O que diria ao descobrir que ele a
levou para sua casa depois de chamá-la para um encontro e ser
negado? Pareceria um perseguidor?
Eles voltaram ao passeio silencioso e, depois de parar em uma
loja e garantir algumas peças de roupas mais pudicas para Nellie,
ambos voltaram para o apartamento. Depois de sua confissão sobre
o irmão, a mulher parecia silenciosa.
Grayson gostava da relação que ambos criaram. Era bom chegar
em casa e encontrar Nellie à sua espera, jantar com uma conversa
trivial e gastar um par de horas vendo televisão. Os últimos dias na
companhia da mulher aumentaram ainda mais a atração que sentia.
Tinha medo de criar castelos de areia em sua mente, a solidão
aumentando os sentimentos que nutria pela restauradora. Para
Grayson, a vida fora de casa parecia tão monótona como sempre:
trabalho e nenhum lazer, nada e ninguém que chamasse sua atenção
como Nellie.
Pior, como a nova Nellie.
A presença dela no apartamento era algo temporário, tentava se
lembrar o tempo todo, mas era difícil quando ela lhe dava um
daqueles sorrisos tímidos ou corava as bochechas em um delicioso
tom rosado que apertava seu peito. O empresário gostava do tom de
sua voz, da sua surpresa com coisas bobas e comentários soltos
sobre coisas sem sentido. Sentia-se puxado para uma cilada que ele
mesmo criou para si.
— Vou tomar um banho e descansar. Às vezes me sinto tão
cansada, como se tivesse feito uma caminhada vigorosa — ela
comentou assim que entraram no apartamento, sendo recepcionados
por um miado de Mary.
— Nossa caminhada não foi um exercício árduo — Grayson
apontou —, mas você sofreu um acidente grave. Sua cabeça dói?
— Nem um pouco. Acho que são essas coisas. Não reconheço
nada disso ao meu redor e preciso pensar muito para entender como
funcionam ou como devo usá-las. É exaustivo aprender coisas novas,
todas ao mesmo tempo — ela lamentou. — Acha que conseguirei
voltar à minha vida mesmo não me lembrando de nada?
— Podemos perguntar para a doutora Jameson na consulta.
Apesar de as novidades cansarem você, está se adaptando bem.
Até mesmo o computador e Alexa está usando. Você é desse tempo,
Nellie, por mais que tenha esses costumes e pensamentos.
Lembrará.
— E se não lembrar?
— Continuará com sua vida. — Ele deu de ombros. — Mas até lá,
não deve ficar sozinha e voltar para seu apartamento. É bem-vinda
enquanto… — Grayson se interrompeu, sentindo sua camisa romper
ao encontro com um de seus móveis.
— O que aconteceu?
— Minha camisa rasgou — o homem resmungou, olhando para
baixo para observar o rombo em sua roupa. Ótimo, era uma das
suas camisas favoritas.
— Me dê — ela solicitou. — Acho que vi um conjunto de agulhas
nas coisas que trouxe da outra casa.
— E você sabe costurar?
— Mulheres fazem isso, não? Eu lembro de fazer… — ela
completou, fazendo um gesto com a mão e assistindo Grayson
retirar a camisa de botões. Era um movimento errado, e Nellie sabia.
Assim que o homem tirou a camisa, a mulher avaliou seu peito
musculoso e engoliu em seco. Prometo que ficarei vestido a menos
que me peça o contrário, ele tinha dito, e ela, como uma boba, o
solicitou.
— Isso foi um jeito de me ver sem camisa! Eu disse que tiraria a
peça apenas se me pedisse — zombou com um sorriso safado.
— Grayson, pelo amor de Deus! — ela exclamou e virou as
costas para ele, arrancando uma gargalhada do homem.
— Conseguiu lembrar como é meu primeiro nome? Ver meu peito
nu fez com que ficássemos próximos o suficiente para usá-lo? — ele
provocou.
— Senhor Canning! — ela respondeu com a voz aguda. — Vou até
meu quarto achar o conjunto de costura. O senhor é um insolente!
— Mas você gosta de mim. — O executivo deu de ombros com
uma nova gargalhada, e a jovem correu pelo corredor, fazendo-o
gritar: — Não se esqueça do nosso filme!
Grayson aproveitou os minutos para tomar um banho e, quando
voltou para a sala — vestido com uma respeitável blusa de manga
longa —, encontrou Nellie com os olhos fixos em sua camisa e Mary
aos seus pés. O empresário sentou-se no mesmo sofá, alguns
lugares de distância da mulher, e observou a pequena coreografia
dela com a agulha. Nellie parecia concentrada em sua tarefa,
enrugando a testa a cada novo movimento de vai e vem da linha no
tecido. Com o dinheiro que tinha, Grayson poderia comprar dez
camisetas como aquela, mas algo em seu coração se expandia ao
ver o cuidado da mulher com a peça de roupa.
— Está pronto! — ela anunciou e levantou a camisa para uma
inspeção. — Foi um pequeno rasgo, nem dá para notar. Veja! Se
algo lembro de fazer bem, é costurar!
— Obrigado — ele sussurrou e encarou-a por alguns segundos,
seus olhos hipnotizados pela figura sorridente. — Nunca ninguém fez
esse tipo de coisa para mim.
— Não há de que, senhor Grayson — ela agradeceu e olhou o
homem. Ele se perdeu por alguns segundos nos olhos esmeralda, o
ar denso entre eles, como se algo mais estivesse acontecendo além
daquela troca de olhares.
Nellie fugiu do gesto e colocou a camisa no colo, abaixando o
olhar para suas mãos. Grayson foi tomado pelo impulso de olhá-la
mais uma vez e colocou o dedo sobre o queixo da mulher, virando-a
para ele. Os olhos pareciam curiosos, a íris verde-esmeralda com
pequenos detalhes dourados tão profundos mesmo com a luz
artificial da sala. Estava preso a ela como um ímã, incapaz de
encarar outro ponto além da restauradora. A respiração dele se
acelerou, o peito subindo e baixando com rapidez enquanto os
segundos passavam em silêncio entre eles.
Ela estava igualmente afetada. Nellie sabia que era proibido
encarar um homem daquela maneira, mas era como se não
conseguisse evitar. Cada pequena parte do rosto dele parecia
chamar sua atenção: os traços duros, os olhos cor de conhaque, os
cabelos tão escuros como a noite. Grayson Canning era o tipo de
cavalheiro que as mães avisavam suas filhas para manter distância,
com seu sorriso de canto de boca e sua veia provocadora — em
especial ao aparecer meio despido na sua frente. E a boca… Nellie
baixou os olhos para os lábios do herdeiro Bradford, sem saber ao
certo o que estava fazendo. Era como se aqueles contornos a
atraíssem e fizessem coisas dentro dela, seu coração batendo forte
apenas por encará-lo durante aqueles poucos instantes.
— Nellie? — Grayson perguntou em um fio de voz percebendo
que havia se aproximado e estava a centímetros de beijá-la.
Ela estava tão envolvida quanto ele, presa no magnetismo do
olhar e próxima como não estavam segundos antes. Ele examinou os
traços da jovem e percebeu que não era correto. Grayson sentia
como certo, a vontade de tomar seus lábios e selar com um beijo a
atração que sentia pela mulher, mas ao mesmo tempo… era o
guardião de alguém sem memória, que não parecia atraída por ele
antes do acidente. O que estava fazendo? O homem piscou algumas
vezes e balançou a cabeça, levantando-se para criar um espaço
entre eles.
— Grayson…? — Nellie sussurrou o nome como um
questionamento, substituindo os dedos dela pelo dele, como se a
ausência súbita do toque em seu queixo a deixasse confusa.
Ela deu um suspiro alto, e Grayson percebeu que a jovem também
tentava se afastar da neblina sensual que os envolveu por aqueles
momentos. O empresário se sentou mais uma vez, deixando ainda
mais espaço entre seu lugar e o dela, e deu um sorriso afável e
impessoal. Nellie tinha um ar confuso e um suave riso congelado em
sua expressão, a respiração ainda descompassada e as bochechas
avermelhadas. Mesmo com as roupas e o coque rígido, era
irresistível.
— Pensei em vermos um filme que pode te interessar — ele
informou, tentando mudar de assunto.
— Filme? Ah… sim. Acho que gosto mais das comédias. Lembro
que era o que gostava mais de ver no teatro quando minha mãe
permitia.
— Mãe? — O homem virou-se confuso. — Parece que suas
memórias não param de aparecer. Só hoje falou de sua mãe e
irmão.
— É curioso, não é? Não consigo lembrar deles, mas o
pensamento de coisas… atitudes… Às vezes é como se fosse tudo
muito claro a minha frente. O que devo ou não fazer, minha mãe,
meu irmão, mas se me pedir para falar sobre eles é como se um
branco tomasse minha mente. Juro que não estou mentindo, senhor
Canning.
— Tudo bem, Nellie. Você vai se lembrar. Parece melhor do que
quando estava no hospital.
— Como o senhor mesmo disse, devem surgir com o tempo, mas
me preocupa — ela anunciou derrotada, seus ombros caídos, o ar
envergonhado ainda estampado em seu rosto. — Que filme gostaria
de ver?
— Orgulho e Preconceito. É um…
— Livro de Jane Austen. Todos queriam lê-lo… eu acho.
— Sabe a história?
— Não cheguei a ler… eu acho — duvidou de novo. — É estranho
esse sentimento. Conheço as coisas, mas não consigo me lembrar
como elas acontecem ou o que são.
— Tudo bem, se acalme. O livro e o filme falam sobre Elizabeth
Bennett e o senhor Darcy, sobre como ele é preconceituoso pela
origem dela, e ela é orgulhosa em reconhecer que ele não era a
pessoa horrível que achava que fosse.
— Faz sentido com como as pessoas agiam — a jovem suspirou
com um riso suave e se ajeitou no sofá. — Quando quiser.
Pelas duas horas seguintes após o jantar, Grayson se divertiu com
os comentários de Nellie sobre o filme. Ela apontava animada para a
tela e dizia que era daquela forma que ele deveria se vestir, com a
bota longa e os calções justos, o que para o empresário parecia
apenas desconfortável. Ela reclamou das peças tão escuras e
lembrou que existiam vestidos de cores mais bonitas do que o cinza-
escuro de Elizabeth. Ao final, Nellie parecia satisfeita. Dizia que muito
do que viu parecia com suas lembranças confusas, principalmente a
propriedade rural dos Bennett.
Quando ela desejou boa-noite e foi para seu quarto, Grayson
pensou no momento entre os dois naquela sala. A cada dia, a jovem
parecia entrar mais em sua cabeça e tomar seus pensamentos. A
Nellie suave e tímida, mas tentadora, fazia com que a atração pela
mulher de antes fosse pálida perto dos sentimentos que começava a
sentir pela versão que achava ser uma dama do século 19. Você
passa mais tempo com ela, Grayson, é normal, pensou. Ainda
assim, era como um quebra-cabeças. Alguém poderia mudar de
personalidade dessa forma? Falar e se movimentar de forma
diferente? O empresário esperava que a consulta médica do dia
seguinte pudesse ajudá-los a entender. Todas as lembranças de
Ellen Morris pareciam confusas e faziam sentido tanto no presente
quanto no passado: os parentes, as ações, os hábitos…
Grayson apertou os olhos e sentiu uma dor de cabeça aguda
quando se levantou do sofá e percebeu: já pensava como se Nellie
fosse uma mulher vinda do passado. Respeitava cada ação peculiar
e tentava suavizar a série de problemas enfrentados por ela para se
“adequar” ao presente. A restauradora sofreu um acidente, tinha
memórias confusas, mas ele não. Ele sabia que Ellen era uma mulher
atual e não uma aristocrata do século 19, então por que continuava
tratando-a como tal? Como se meteu em uma enrascada como
aquela?
— Vai sair cedo mais uma vez? — Nicolas perguntou e levantou a
sobrancelha, fazendo piada do chefe, que estava arrumando a mesa
e guardando o notebook em uma mochila.
O assistente achava divertido ver Grayson dedicar seu tempo à
mulher e desacelerar o ritmo. Percebendo ou não, o empresário
passava mais tempo em casa e exigia menos de seu funcionário.
Nicolas e Wyatt, o noivo, se alegravam por ele não precisar ficar
pendente de um profissional que tinha uma rotina de mais de
quatorze horas por dia.
— Nellie tem a primeira consulta depois da alta e vou acompanhá-
la — ele informou e olhou para o relógio, cronometrando a viagem
até o apartamento para levar a mulher ao hospital.
— Atende à ligação de Adrian Bridger?
— Quem é esse?
— O detetive que entrou em contato essa manhã.
— Já? — Grayson indagou surpreso. Depois da noite assistindo
Orgulho e Preconceito, ele e Nellie foram para seus respectivos
quartos, mas o homem girou em sua cama até o meio da madrugada
e decidiu que contactar o detetive seria a primeira coisa a fazer na
manhã seguinte.
Ele temia estar se acostumando a ter a restauradora em sua
casa, como seus hábitos e pudores peculiares. Grayson sentia-se
confuso, sua atração aumentando mais a cada dia e a vontade de
dar um passo além quando sabia que não poderia. Enquanto Nellie
não pudesse escolher, não queria impor um relacionamento amoroso.
Por mais que ela parecesse querer o beijo na noite anterior, Ellen
Morris havia dito não antes e talvez tivesse motivos para aquilo.
Vez ou outra durante os dias que passou no apartamento,
Grayson presenciou alguma lembrança e ouviu-a citar um nome,
apenas para não saber de onde tirou tal informação. O irmão e a
mãe eram mais um dado na pilha que guardava sobre a mulher.
Precisava ir além dos documentos que encontrou na casa da jovem,
por isso contratou um profissional para analisar informações sobre a
família de Nellie e levantar possíveis parentes impossíveis de
encontrar apenas com os papéis do apartamento de Camden.
— Sim, ele está na linha — Nicolas informou e saiu da sala.
— Grayson Canning — o empresário anunciou ao pegar o telefone
em sua mesa.
— Senhor Canning, foi um levantamento mais fácil do que achei
que seria. O senhor disse que Ellen Morris acha que tem um irmão,
mas é improvável. Vou verificar se tem um amigo muito próximo,
mas é a última de seus parentes. Não há nenhum Morris vivo além
dela. Ela é filha única.
— Filha única? — ele repetiu. — Ellen parecia convincente ao falar
do homem. Nenhum irmão de criação, primo ou parente próximo que
considerasse um irmão? Ela parecia afetada ao falar da morte da
pessoa.
— O que consegui encontrar sobre Ellen Morris foi enviado para
seu e-mail. Não há muito, e seus parentes estão mortos. Consegui
mapeá-la de Liverpool para Sussex, mas ninguém está vivo. Ela é
filha única de ambos os pais. A menos que eles não tivessem
registrado a outra criança, não faria sentido a informação.
— E sobre Sussex?
— É uma família antiga e a cidade parece gostar de registros
históricos. Consegui a árvore genealógica dela desde 1753. Gilbert
e Clara Morris.
— Acredito que isso não nos ajude a encontrar alguém para
ajudá-la. Como expliquei, ela sofreu um acidente e está com
problemas de memória. Nem ela mesma pode nos ajudar nessa
busca.
— Eu sei, mas talvez ela, como pesquisadora, saiba de algo
sobre a família e isso acenda algo em sua cabeça?
— Por favor, não deixe de pesquisar sobre alguém que não tinha
relação de sangue. Deve ter alguém.
— Claro. Vou mantê-lo informado, senhor. Ainda tenho outras
coisas para investigar, como o ex-noivo chamado Eric O’Dell, mas
ele está na França agora. Faz uma especialização na Panthéon-
Sorbonne e não pisa no Reino Unido há dois anos. O contrato
anterior do apartamento da senhorita Morris estava no nome dele.
Tenho o telefone e o endereço se precisar— o homem completou.
— Continuarei a procurar por algo.
Grayson abriu o e-mail de Adrian no celular e suspirou frustrado.
Nellie era filha única e de pais falecidos. Nada do que a mulher falou
sobre o irmão fazia sentido. Talvez a queda tenha a enlouquecido?

— Alexa, como eu faço um bolo? — Nellie perguntou e ficou


maravilhada ao ouvir as descrições exatas através do pequeno
aparelhinho curioso.
Quando Nellie disse a Grayson que perguntava tudo para Alexa,
era absolutamente tudo. Descobriu o que era papel higiênico,
refrigerante, o avião que ela viu através da janela, como funcionava a
lâmpada que acendia no teto e muitas coisas mais. Os dias da jovem
eram recheados de entender coisas novas e os mecanismos delas,
buscando um sentido em sua cabeça.
Aos poucos, ela sentia como se seus hábitos estivessem sumindo.
No passeio com Grayson, viu várias mulheres usando calças e blusas
mais decotadas, os cabelos soltos e até mesmo uma maquiagem
mais ousada, e não ficou tão escandalizada quanto achou que ficaria.
Pela manhã, ela encarou algumas das calças que trouxe do
apartamento antigo, debatendo se conseguiria ou não as usar um
dia. Não parecia tão julgável aos olhos da sociedade atual. Como
Grayson mesmo falou, ninguém parecia ligar. Mesmo com vestidos
bonitos que o empresário havia comprado, ainda se sentia curiosa
sobre as outras peças e menos julgadora.
Era dia da consulta médica. Nellie estava nervosa pelo retorno a
doutora Jameson porque sabia que nada havia mudado. Continuava
sem memória, apesar de lembrar de uma coisa ou outra sobre seu
passado. Mais vozes e imagens e nada muito nítido, mas uma
certeza que ocupava seu coração.
Grayson a acharia louca se ela verbalizasse sua sensação, então
havia guardado para si: sabia que tinha vindo do passado. Não sabia
como nem por que, mas era uma dama do século 19 presa em um
mundo dois séculos depois. Quando ele falou sobre viajantes do
tempo, foi como se tudo se encaixasse. Tudo a deslumbrava, das
possibilidades que aquele mundo dava aos avanços nas vidas das
mulheres. Sabia que em 1814 seria obrigada a se casar e ter filhos,
e ali poderia ter um trabalho, usar calças e até mesmo escalar o
Everest.
Nellie seguiu a receita e o colocou no forno, precisando de ajuda
até mesmo para saber como ligava o eletrodoméstico. Ela viu um
vídeo e conseguiu sozinha. De alguma forma, se orgulhava de
realizar tal tarefa sem apoio quando precisava perguntar sobre tudo
nos primeiros dias de sua estadia no apartamento de Grayson.
Depois, se arrumou para a consulta e decidiu por deixar os cabelos
soltos. Seria a primeira vez, e sentia-se livre sem os grampos
apertando seus fios loiros contra a cabeça. Fazia sentido que as
mulheres tivessem deixado aquele hábito há tanto tempo, porque ela
sentia o latejar contra o crânio onde os pequenos objetos apertavam
os cabelos.
A mulher voltou à cozinha feliz e tirou o bolo do forno para encarar
uma massa escura e esquisita sobre a forma, fazendo uma careta
pelo resultado ruim da receita. O que fez errado?
— Ora… está de cabelo solto! — Grayson cumprimentou e
encarou o bolo à sua frente. — O que é isso?
— Deveria ser um bolo — a jovem respondeu chateada, e
Grayson soltou uma risada leve, recebendo um olhar ofendido de
Nellie. — Não ria. Eu fiz o que a Alexa pediu, mas algo não deu
certo.
— Sua amiga Alexa a traiu?
— Pare de me provocar, Grayson. Queria fazer um bolo para
você como agradecimento, mas terminamos com esse prato
chamuscado. Tem sido uma pessoa muito boa comigo nos últimos
dias.
— Podemos pedir um bolo, se quiser.
— Eu gostaria de fazer algo com as minhas mãos. Estou aqui o
dia todo. Era isso que eu fazia dos meus dias?
— Você trabalhava. Não sei se gostava de assar bolos — ele
informou e deu um suspiro, sabendo que ela resistiria mais uma vez a
sua sugestão. — O convite está de pé para ir até a Casa Canning e
ver se reconhece algo.
— Eu não acho…
— Pense a respeito, Nellie, apenas isso — o homem pediu e
mudou de assunto. — Eu recebi um relatório do detetive. Contratei
alguém para buscar seus parentes depois que saímos de seu
apartamento.
— E então?
— Ninguém, nem mesmo sobre o irmão que consegue se lembrar.
Você teve um ex-noivo que agora mora na França com quem não fala
há anos e mais ninguém. E acredite, o homem pesquisou com afinco.
— Por que diz isso?
— Ele encontrou parentes seus em Sussex do início de 1800.
— Acho que já estive nesse lugar — ela respondeu pensativa.
— Talvez estivesse procurando por informações da família, afinal,
você estudou história, não?
— Pode ser — Nellie respondeu com o olhar perdido.
— Já está pronta?
— Sim. Decidi deixar os cabelos soltos já que ninguém parece
usá-los como eu. Os grampos me machucavam — ela confessou.
— Se te machucam, serão abolidos dessa casa!
— Ah, senhor Canning!
— Você me chama de Grayson e volta para isso de “senhor
Canning”? Decida-se, mulher!
— Tudo bem… — Ela deu um sorriso leve. — Grayson. É
estranho tratá-lo pelo primeiro nome.
— Está se adaptando, querida. Verá que qualquer dia terá
vontade de usar calças.
— Eu as encarei por alguns minutos essa manhã — a jovem
confidenciou envergonhada.
— Não disse? A qualquer dia me matará deixando ver seus
cotovelos — ele completou, em um tom afetuoso como um flerte que
deixou Nellie com vergonha. — Agora, precisamos ir. Vamos nos
atrasar se não saímos agora.
Nellie se despediu de Mary e saiu com Grayson. Eles se dirigiram
ao hospital Saint Bartholomew, um passeio rápido de alguns minutos
entre Knightsbridge e a região do Mayfair. Eles passariam pela Casa
Canning, mas o empresário não queria pressionar mais a
restauradora depois da conversa. Parecia perdida e era melhor não
provocar qualquer reação quando estavam indo ao hospital. Ao
chegarem, uma enfermeira instruiu Nellie a segui-la para alguns
exames enquanto Grayson esperava na recepção. Uma hora depois,
ele foi chamado para acompanhá-la.
— Nervosa? — o executivo perguntou no momento que ambos
foram deixados em um escritório à espera da médica. Nellie falou
que voltou ao tomógrafo, dessa vez sem necessidade de chamar seu
acompanhante, e refez exames de sangue.
— Não… Isso parecia mais assustador na semana passada.
Depois de aprender tudo que aprendi, parece razoável o que fizeram
comigo enquanto estava aqui. Deveriam explicar mais as coisas. Não
tinha a obrigação de saber que aquele objeto grande não iria me
matar — ela reclamou.
A atenção dos dois foi levada até a porta quando a médica entrou
no consultório. A doutora Jameson sentou-se à mesa, seus cabelos
encaracolados enrolados em um coque profissional, e ajeitou os
óculos enquanto encarava as duas pessoas à sua frente.
— Como vai, senhorita Morris? Sente algo?
— Nada, nem mesmo dor de cabeça — Nellie revelou. — Menos a
memória. Continuo a não me lembrar de nada.
— Uhhh — a mulher bufou. — Refizemos seus exames. Nada
aconteceu. Pensava que talvez, com o passar dos dias, pudéssemos
identificar alguma lesão ou outra sequela de sua queda, mas está
tudo em perfeita ordem. Nada mudou desde o período da sua
internação.
— E então, faço o quê? — ela indagou com fragilidade.
— Pensou a respeito de procurar um terapeuta? Acho que um
médico neurologista especializado talvez também a ajude a entender
o que está acontecendo. Aqui, nós lidamos com emergências. Foi um
acidente sério que não teve consequências além da perda de
memória.
— Mas… — Nellie começou, e Grayson colocou sua mão sobre a
dela, apertando-a para dar confiança. Parecia chateada com as
palavras da médica, como se quisesse uma explicação mais
aprofundada sobre o que estava acontecendo.
— Vou indicar um bom médico que conheço e podem continuar de
lá.
— E sobre voltar a trabalhar? Acha bom para se lembrar? —
Grayson questionou.
— Dê mais duas semanas. Talvez a memória não precise ser
estimulada e volte naturalmente. É um campo que não temos muitas
explicações. Cada cérebro é único, apesar de conhecemos bem sua
anatomia. Existem casos como o de pessoas que bateram a cabeça
e perderam funções motoras e de outras que tiveram objetos
perfurante presos ao crânio e continuam do exato mesmo jeito. Sinto
por não poder ajudar — ela respondeu, dando um olhar profundo
para os dois.
Grayson concordou com a cabeça e tocou no ombro de Nellie. Ele
colocou a mão em seu braço e a conduziu para fora. Sabia que a
mulher estava afetada, pois não fez comentário algum sobre seu
toque. A restauradora parecia arrasada pela falta de respostas,
deixando-se levar pelos corredores do hospital. Quando chegaram
ao carro, ela o encarou com um suspiro e perguntou:
— Podemos ir caminhando?
— Ahh, claro, posso voltar para buscar o carro depois.
— Obrigada. Sinto que preciso caminhar para pensar — ela
confessou. — Achei que a médica daria uma solução e, em vez
disso, disse que não há o que fazer. Talvez nunca me recorde,
Grayson… O que acontecerá se for assim?
— Vai se adaptar. Já não é a mulher do primeiro dia. Talvez
encontre um novo jeito de viver. Poderia ter sequelas mais graves.
Quando a vi caída, achei que tinha morrido, Nellie. Apesar de
terrível, é bom que apenas tenha perdido a memória.
— Mas e se… — ela falou e parou, como se estivesse pensando.
— Sinto-me insegura. Não conheço ninguém além de você, e tudo
que me conta sobre minha vida não encaixa em meus pensamentos.
É como se fosse outra pessoa completamente diferente de mim.
— Falei com o detetive mais cedo. Ele está em busca de alguém.
Até agora, não encontramos uma parente ou amigo para ajudá-la.
Sinto muito, é que não tínhamos contato. Não sei dizer o que gostava
ou não…
— É difícil pela forma que me sinto deslocada.
— Sei que não quer ir, mas acho que deveríamos tentar refazer
seus passos. A Casa Canning, seu apartamento, sua universidade.
Qualquer coisa que possa ajudá-la a lembrar. Talvez uma chispa
possa acender suas memórias.
— Ah, Grayson. É tão bom comigo, não sei o que dizer — ela
comentou e observou sua mão protetora a seu redor. — Nós
deveríamos estar andando assim?
— Te incomoda? — ele perguntou com um sorriso tímido.
— Não — ela confessou. — Me conforta.
— Então não importa o que a etiqueta diz, pode ser?
— Sim — Nellie respondeu temerosa. — São muitos minutos de
caminhada? Não tenho ideia de onde estamos, só precisava sentir o
ar em meu rosto por alguns minutos.
— Um pouco mais de meia hora. Posso mantê-la aquecida!
Eles caminharam em silêncio, os braços de Grayson ao redor
dela, perdido em pensamentos. Depois de cruzar uma avenida, uma
vitrine chamou atenção de Nellie, que parou de repente, interessada
no interior. O homem a encarou com surpresa quando estampou
suas mãos na vidraça e observou com atenção um instrumento
grande e lustroso na loja de música.
— Isso é um piano?
— Sim, você toca?
— Acho que sim… — ela afirmou e examinou as mãos, como se
conseguisse reconhecer o movimento à distância, expressando um
sorriso tímido. — Nós podemos entrar?
— É claro. — Grayson suspirou e abriu a porta, dando passagem
para Nellie. — É a primeira vez que a vejo animada em fazer algo
novo desde que acordou no hospital. Quer dizer, além de Mary ou
Alexa, mas parecia mais como um aprendizado do que algo que
gostava… antes.
Ela balançou a cabeça entusiasmada e abriu passagem entre os
instrumentos até o piano, onde se sentou. Um homem de meia idade
se aproximou, mas Grayson o interceptou ao mesmo momento que a
mulher abria o piano e encarava as teclas com reverência. Seus
dedos caíram sobre as teclas, acelerando-se conforme as notas
fluíam. De olhos fechados, Nellie notou o som passar por seu peito e
sentiu-se acalentada pela primeira vez desde que abriu os olhos no
hospital. Ela sabia que a música era seu conforto e que passou muito
tempo sozinha com suas partituras, apesar de não lembrar como e
por quê.
Longos minutos depois, Grayson e o vendedor da loja estavam em
choque. A mulher loira tocou uma peça inteira de Mozart de cor,
atraindo uma pequena plateia que parecia hipnotizada ao redor do
instrumento. O empresário observava Nellie, alheia a tudo ao seu
redor, seus dedos voando através do piano. Ela era uma musicista
incrível.
— Isso foi incrível! — o vendedor exclamou, e Nellie abriu os olhos
assustada por ter sido tirada do transe. — É necessária muita
técnica para tocar a sonata número oito. A senhorita é profissional?
Atraiu uma boa plateia!
— Eu… eu não sei. Só gosto de tocar — a jovem respondeu e
deu de ombros, ainda sentada no banco do piano. — Mozart,
principalmente, e Beethoven, e Haydn. Meu professor permitia que
passasse muitas horas com minhas partituras e eu… eu… não sei
como sei.
— Interessante que a senhorita goste dos músicos do século 18.
Muitos pianistas preferem a era romântica ou até algo mais
moderno. É muito talentosa.
— Obrigada — ela respondeu com vergonha. — Acho que fazia
tempo que não tocava.
— É um talento natural. Pode tocar quando quiser. Atraiu mais
pessoas para dentro de minha loja do que se tivesse anunciado
alguma promoção — o vendedor sorriu com sinceridade. — A
senhorita estudou em que conservatório?
— Eu não estudei em lugar algum. Apenas com professores
particulares.
— Toca piano apenas por hobby? — o homem exclamou chocado.
— Veja, não sou uma pessoa de impulsos, mas a senhorita deveria
procurar uma educação formal. É raro ver talentos naturais como o
seu.
— Eu não acho…
— Tome — o homem pediu e estendeu um papel onde segundos
antes rabiscou algo. — Esse é o telefone de um colega professor do
Royal Academy of Music. Ele poderá ajudá-la a descobrir o que
fazer com seu imenso talento.
— Obrigado — Grayson interveio e guardou o papel em seu
bolso. — Quer ver algo na loja?
— Não, eu não… Podemos ir para casa? — ela pediu e se
levantou do banco. Grayson concordou, conduzindo-a para fora da
loja. A mulher parecia em choque com o que acabara de acontecer.
— Tudo bem? — ele perguntou alguns metros adiante quando viu
Nellie enrugar a testa em confusão ao mesmo tempo que dava
espiadas para trás, como se tentasse olhar o piano mais uma vez.
— É como um aperto no peito. Não tenho ideia de como consigo
fazer aquilo. — A jovem apontou em direção à loja enquanto dava
passadas rápidas. — Mas sei que amo música. Até então, as coisas
não faziam sentido. Não sou uma pessoa de ler nem de fazer outras
tarefas…
— Apesar de fazê-las bem, como costurar.
— Acho que fui obrigada a aprender e treiná-las à perfeição — ela
confessou. — Mas música… Aquilo tem um sentimento diferente.
— Talvez fosse uma musicista. Não temos como perguntar a
ninguém, infelizmente. A menos que você mantenha esse seu lado
em segredo, é pouco provável que estivesse fazendo algo a respeito
do seu talento com o piano.
— E se tive alguma educação formal e menti para o vendedor? —
ela indagou preocupada. — Detesto não lembrar de nada!
— Você deveria ligar para a indicação do vendedor da loja.
— Mas não trabalho com a Casa? Fazendo o… a…
— O restauro, eu sei. Mas você não demostrou interesse em
nada sobre o tema, mas parece obcecada por música pelo pouco
que posso ver. Acho que deveria ao menos descobrir o que pode
fazer.
— E se já fiz algo a respeito e só não lembro?
— Você teria algo em seu telefone. Suas redes sociais não têm
nada, seus contatos também não. Deveria tentar. Encare isso como
uma segunda oportunidade. Recomeçar, como nós estávamos
conversando — Grayson respondeu com um sorriso suave.
— Eleanor, comporte-se!
Ela pulou da cama e olhou para os lados à procura da dona da
voz. O que foi aquilo? Nellie se ajeitou na cama, ainda com o
coração batendo forte em seu peito quando ouviu o choramingo de
Mary aos seus pés. Com o sono agitado, a jovem conseguiu acordar
a gata. Respirava com dificuldade, ainda sentindo o impacto do
sonho/pesadelo, sem lembrar dos detalhes. Havia uma mulher rígida,
sua reprovação e tudo o que diziam para ela que não existia mais.
Vestidos amplos, carruagens, velas. A desconfiança de que era uma
mulher do passado aumentava ainda mais. Aquilo era um sonho ou
uma lembrança?
— Está bem? Ouvi você gritar — Grayson perguntou ao abrir a
porta do quarto com delicadeza.
Ele nunca foi até o cômodo feminino e parecia preocupado, ainda
mais depois do dia cansativo que ela tivera. Grayson usava apenas a
calça do pijama, o que fez o coração de Ellen pular ainda mais, pelo
nervosismo e por ver o torso nu do homem mais uma vez.
Grayson fazia coisas engraçadas no coração de Nellie. Desde que
ela acordou no hospital, sentia-o como um protetor, alguém que seus
olhos buscavam para acalmar o nervosismo, para ter forças em
alguma situação desafiadora. Ela não queria ser dependente dele,
mas sentia uma conexão especial com o empresário a cada vez que
o via. Homens e mulheres solteiros não poderiam ter tal
relacionamento, mas a cada novo dia, a jovem abafava seus
pensamentos de etiqueta em nome do que estava sentindo. Parecia
certo para ela, apesar dos instintos dizerem que era reprovável.
— Um pesadelo — a mulher revelou com um suspiro e sentou-se
à cama, trazendo Mary até seu colo. — Parecia minha mãe, mas me
chamou por outro nome.
— Como um outro nome? Um apelido?
— Ó, não. Nunca tive. — Nellie deu de ombros e arregalou os
olhos como se lembrasse de algo. — Eleanor! Era assim que me
chamava. Ela parecia rígida e cheia de regras. Não sei se é uma
lembrança, uma sensação, ou algo que inventei. Eu tenho certeza de
que estava em 1800 e não agora.
— Eleanor é parecido com seu nome. Talvez tenha sido apenas
um sonho.
— Eu sei, mas é estranho. Como se… — Ela balançou a cabeça,
confusa como se não conseguisse colocar em palavras a sua
sensação. — O que sei é que nunca tive um apelido. Posso jurar que
minha mãe dizia que apelidos não eram coisas de pessoas sérias.
Mas pode ser uma das lembranças tumultuosas, como os vestidos e
as carruagens.
— Acho que sua família era muito religiosa ou algo assim. Pode
explicar todos esses costumes. Todos têm um apelido! — ele
respondeu com calma e se sentou ao lado de Nellie na cama.
— E qual é seu apelido, Grayson? — a mulher questionou em um
tom risonho.
— Eu não tenho, mas dei um a você. Tanto que não briga mais
comigo quando a chamo de Nellie.
— Me acostumei. — Ela deu um sorriso tímido. — E como
aprendi nos últimos dias, lutar contra você é uma guerra perdida.
— Para a mulher que se negava a usar meu nome, estamos muito
próximos. — Ele riu. — E eu tenho direito a esse apelido. Você pode
ser a Ellen para todos, mas é minha Nellie.
Grayson piscou, e o coração da jovem se acelerou em meio à
escuridão. Encarando o homem entre as sombras, ela percebeu a
posição de ambos. Era madrugada, ele estava pouco vestido e ela
usava uma camisola diáfana que encontrou nas coisas de seu
apartamento. Em segredo, gostava de usar algo tão curto e
revelador para dormir. Parecia rebeldia e tinha uma sensação boa
entre os lençóis. Pele contra seda.
— Não é justo, você também merece um apelido — a jovem
brincou, e ele se aproximou mais, encarando-a tão perto que podia
sentir a sua respiração.
— Escolha e me diga. Como eu escolhi para você, Nellie.
— Tenho a sensação de que não vivi nada como isso — ela
confessou, consciente da proximidade de ambos, mudando de
assunto de repente. O ar estava denso, como se não quisessem se
afastar, transformando a camaradagem em flerte. Grayson inclinou
sua cabeça, como se não entendesse do que ela estava falando.
— Como assim? Que sensação?
— Você, a sensação que me desperta… Não consigo entender
por que meu coração se acelera, minha pele parece pinicar. Acho
que sou uma mulher perdida — ela sussurrou o final como um
segredo, encarando Grayson ao seu lado na cama. Ele estava perto,
muito perto.
— Por que diz isso?
— Talvez seja um sentimento reservado apenas para maridos,
mas no momento que olho você, quando estou a seu lado… por que
me sinto desse jeito? — ela indagou com confusão.
Grayson analisou-a, sabendo que estava à beira de um precipício.
Ele queria esperar a memória de Nellie, mas a mulher fazia tudo mais
difícil para ele. Ali, no meio da madrugada, trocando confidências,
percebeu que não conseguiria mais esperar. Que se danassem as
consequências e que ela conseguisse o perdoar depois que
recordasse a relação anterior dos dois. Ele queria Nellie para si de
uma forma que nunca se sentiu com outra pessoa, o misto de
vulnerabilidade e desejo naqueles olhos esmeralda iluminados pela
luz da lua, sussurrando coisas que ele gostaria de ter
Grayson soltou um gemido rouco, como se não aguentasse mais
esperar, e juntou sua boca à de Nellie, as mãos caindo sobre o
cabelo da mulher em uma carícia suave. Não queria assustá-la, ainda
mais depois do pesadelo, mas sentia desespero por sentir o sabor
dos lábios dela. Nellie choramingou em resposta, parecendo confusa
com o primeiro contato quando a língua de Grayson se insinuou,
acelerando o movimento entre os dois. Ela o abraçou, quase como
tomada pelo instinto, tentando corresponder aos movimentos do
homem em sua boca. Era instintivo, primitivo, quase como um feitiço
que os mantinha juntos naqueles poucos segundos.
Ele se afastou, o peito de Nellie subindo e descendo pela
respiração acelerada quando Grayson colocou a mão em sua
bochecha. Ela fechou os olhos pelo toque. O homem estava feliz. Ele
tinha o gosto dela em sua boca e sabia que ela estava tão afetada
quanto ele.
— O que foi isso? — a jovem perguntou em um fio de voz. A gata
se remexeu em seu colo e fugiu para longe.
Ele riu com o movimento e percebeu o quão espantada Nellie
estava. Ele também se sentia da mesma forma, pois nunca havia
trocado um beijo como aquele. No fundo, o empresário era quase um
celibatário que vivia para o trabalho. Grayson havia transado com
apenas uma mulher durante toda a sua vida e beijado outras quatro.
Ele se sentia esperando por algo ou alguém, o que o levou até os
trinta e um anos com nenhum relacionamento.
— Um beijo — ele disse. — Não há nada de errado com isso.
Como se sentiu ao me beijar?
— Grayson… — ela sussurrou envergonhada e, apesar de não
conseguir notar na escuridão, sabia por sua pele quente que ela
estava vermelha.
— Eu a desejo desde a primeira vez que a vi, Nellie. — O homem
sorriu e viu os olhos da mulher se acenderem em resposta. — Sei
que precisa de calma e de ajuda com sua memória. Nós tivemos um
começo difícil, antes… você nunca quis minha atenção.
— E por que sinto isso agora? Como se meu coração fosse sair
do meu peito?
— Não sei… Talvez só não tivéssemos a oportunidade. Eu gosto
de você, Nellie, muito. E sei que não é o momento, mas quero você
ao meu lado.
— Não sei o que estou sentindo — ela revelou e olhou para as
mãos, mas Grayson puxou-a pelo queixo, tentando manter seu olhar
fixo ao dela.
— Mas gosta do que fizemos? Do jeito que nos tocamos? — ele
indagou com um sorrisinho e encarou os dedos nervosos da mulher.
— Para mim também é difícil. Nunca tive um relacionamento com
ninguém. Não sei como é me sentir desse jeito, como um
adolescente na primeira paixão. Meu coração também sai do peito.
— Fico feliz — ela respondeu em um tom que fez Grayson rir. —
Não gostaria de ser a única afetada. Já sabe que luto pelo
significado do que aconteceu essa noite. É reprovável. Teríamos que
casar se alguém soubesse.
— Eu vou cortejá-la, pode ser? — ele brincou. — Por mais que
não seja dessa forma, sei que é como pensa agora. Não quero fazê-
la desconfortável, só não consigo mantê-la longe de mim. Vou tentar
ser o mais lento que puder, cada passo por vez até se acostumar à
minha presença.
— Eu gostaria — ela replicou com timidez. — Com calma.
— Sim… — Suspirou e deu um passo para fora da cama,
levantando-se e encarando Nellie de sua posição. — Talvez tenha
sido providencial o presente que consegui para você. É o que fazem,
não é? Chocolates, flores…
— Me comprou flores?
— Melhor. Um piano. Quer dizer…
— Por que você comprou um piano? — Nellie o interrompeu.
— Na verdade, não comprei. Pedi para trazer da casa de meu pai.
Ele amava tocar, mas nunca tive a disciplina para aprender. Estava
fechado em um apartamento desde que ele morreu.
— Não posso aceitar, Grayson. É de seu pai, é importante para
você.
— E ele ficaria feliz de ver alguém usá-lo. Você toca bem e fica
bonito na minha sala — Grayson respondeu e deu de ombros.
— Devo voltar para a minha casa. O que faremos quando
acontecer?
— Então terá motivos para voltar aqui e me visitar.
— Mesmo assim… é indecente que venha aqui sozinha.
— Voltamos de novo a isso? Depois de todos esses dias em
minha casa, achei que havia superado a etiqueta antiquada. Nós
acabamos de nos beijar — o empresário sussurrou, e ela escondeu
o rosto com as mãos.
— Você é impossível!
— Sabe o quê? Deveria tentar usar calças. Está tão presa às
regras. E se fizesse coisas novas?
— Mas faço coisas novas! Aprendo várias coisas todo o tempo.
— Então por que se nega a voltar a Casa Canning?
— Não me nego, apenas… apenas… — ela gaguejou, como se
não conseguisse externar resposta sobre sua dificuldade com tal
sobrenome.
— Não sabe a resposta?
— Já falei, não gosto do seu nome.
— Vamos fazer um trato. Você pode tocar para mim, e eu posso
ensiná-la a cozinhar. Vi que quer tentar com a Alexa, mas acho que
um humano faria um trabalho melhor.
— O bolo foi um acidente — a jovem disse envergonhada.
— Prometo ajudá-la a ir a todos os lugares que talvez façam sua
memória voltar.
— Muito bem. Mas podemos deixar a Casa Canning por último? A
médica deu duas semanas, não?
— Muito bem, querida. Eu vou ser seu cavaleiro. Vamos tentar
descobrir sua verdadeira história. Talvez com alguns beijos
envolvidos!
— Grayson! — ela exclamou, e ele caminhou para a porta
enquanto dava uma risada alta pela censura da mulher.
— Você descobriu uma porta que não deveria, querida. Está
aberta a temporada de roubar beijos da minha Nellie — o homem
anunciou com um sorriso e fechou a porta. — Boa noite!
Assim que se viu sozinha no quarto, Nellie se jogou contra a cama
com um sorriso nervoso e maravilhado. Com as bochechas quentes,
escondeu o rosto no travesseiro antes de soltar um suspiro, tentando
entender os minutos anteriores. O que ele a fazia sentir?

Fiel à sua palavra, Grayson a ajudou. Eles passaram a visitar


locais que eram importantes para Ellen Morris: o apartamento,
museus, a universidade. Nada parecia fazer efeito. Depois de três
dias, o executivo sugeriu à mulher que talvez pudesse passear
sozinha pela cidade. A primeira vez foi sufocante, com medo,
pessoas ao redor, e Nellie não conseguiu chegar à esquina antes de
voltar para o apartamento. Conforme os dias passavam, porém, ela
tentou ser mais ousada. Ao final das quase duas semanas, Nellie já
era capaz de passear como fez algumas vezes com Grayson. Ele a
ensinou a ouvir música pelo celular e até mesmo se sentou em um
parque com um livro por alguns minutos.
Sentiu-se tão corajosa que em um desses dias saiu de calça. Era
toda uma mudança da mulher que não aceitava usar um coque mais
frouxo por medo de ser julgada.
— Tudo bem? — Grayson perguntou ao chegar em casa. Ele se
aproximou e deu um beijo leve em seus lábios. Nellie havia se
acostumado aquilo.
Quando o empresário prometeu que continuaria roubando beijos,
ela não esperava que ele a beijasse todos os dias, pelas manhãs
como um bom-dia e à noite como um desejo de boas-vindas depois
de um dia de trabalho. Nada chegava perto do desejo daquela
madrugada, mas parecia que o homem estava fazendo o que
prometeu: cortejando-a com passeios, pequenos presentes — como
flores —, beijos e abraços. Ela se sentia à vontade com seu toque, e
às vezes buscava mais. Mas Grayson era quem escolhia os limites
daquele relacionamento. Nellie não se sentia corajosa o suficiente
para dizer o que queria ou não, mesmo que fossem mais contatos
abrasadores em vez de toques castos de lábios.
— Acabo de chegar, fui dar um passeio. O tempo parece bom
agora que não está chovendo.
— Quem diria, senhorita Morris. Andando por aí de calça, cabelos
soltos e fazendo coisas sozinhas sem sua dama de companhia.
— Pare de brincar comigo! — ela pediu com uma risada
envergonhada. — Acho que é uma influência ruim, Grayson.
— Ah, é? — ele respondeu com outro beijo. — Pois eu acho que a
senhorita tem uma veia rebelde. Acha que não sei de algumas
compras misteriosas que apareceram em minha conta?
— Deveria ter falado com você antes — ela confessou —, mas vi
algumas roupas tão bonitas. Não me lembro de ser tão fácil assim
comprar vestidos.
— Com pernas à mostra? — o empresário brincou.
— Não… Mas alguns trajes noturnos são bem reveladores.
— A senhorita está me provocando? — Grayson brincou com um
sorriso safado destacando suas covinhas. — Sabe como é difícil me
controlar perto de você, e está aqui falando sobre camisolas
diminutas? Durmo no quarto ao lado.
— Eu vou parar — ela disse com as bochechas ganhando o tom
rosado que Grayson tanto gostava. — É que estava passeando e
achei a roupa tão bonita. Até mesmo comprei uma roupinha para
Mary!
— Ao menos acertei — ele falou e voltou-se para a porta, onde
pegou uma sacola que Nellie não tinha visto. — Comprei um vestido
para você, longo já que não gosta de mostrar as pernas.
— Ah, Grayson, não precisava!
— Tenho segundas intenções, querida. Gostaria de me
acompanhar a um evento do trabalho? Não é nada demais, mas terá
dança, comidas e pessoas que trabalham comigo. Costumo ir
sozinho, mas com você em meu apartamento… — Grayson
perguntou em um tom tímido, quase solene, como se tivesse receio
de ser rejeitado.
— Posso ficar bem sozinha, se esse é seu medo.
— E se eu quisesse sua companhia? É amanhã, e sei que é muito
em cima, mas não tem compromissos e pensei… Mas não precisa.
Se não quiser…
— Seria um prazer. — A mulher deu um sorriso sincero. — Nunca
fui a bailes porque não tenho idade suficiente.
— Você tem vinte e oito anos.
— Tenho?! — Ela deu um olhar cômico. — Achava que era muito
mais nova do que isso.
— Um baile é o que faltava para a corte, não?
— E como é agora?
— Como é agora o quê? — Grayson questionou confuso.
— A corte. Eu vejo homens e mulheres juntos, beijos… É muito
mais íntimo do que acho razoável.
— As coisas mudaram muito das suas “lembranças” de 1800,
Nellie. As pessoas se conhecem e podem se casar ou não. Elas se
encontram pessoalmente, ou pela internet ou por aplicativos…
— Como assim aplicativo? Como o que tem nesse tijolinho que
carrega no bolso? — ela perguntou, interrompendo-o.
— Meu smartphone é bem pequeno, e a senhorita se diverte com
o seu por muitos minutos. — Ele riu. — Mas sim. Existem aplicativos
de namoro, encontros… Muita gente consegue relacionamentos
através deles.
— Não entendo. Você escreve uma carta e a pessoa concorda em
se casar à distância?
— Elas não se casam de primeira, querida. Apenas se
relacionam.
— Sem um compromisso formal?
— As pessoas precisam se conhecer. É terrível se casar obrigado
com um desconhecido. Hoje em dia as pessoas têm mais tempo
para se conhecer.
— Sim, é terrível — a jovem lamentou, mais para si do que para
Grayson. — E funciona?
— Sim. As pessoas se casam e, se não der certo, separam.
— Como é possível?
— Agora é possível — o homem corrigiu e deu um sorriso tímido.
— Mas eu desejo me casar com alguém que possa ficar para
sempre. Meu pai e minha mãe se amaram até o final da vida. Ela
morreu cedo, e ele nunca mais teve outra pessoa.
— Sinto muito, Grayson.
— Eles tiveram sorte — ele sussurrou e deu de ombros. —
Gostaria de ir a um desses encontros? Como os que vê pela rua?
Poderíamos ir jantar, caminhar de mãos dadas… Tem me deixado
cortejá-la, e acho que esse é o passo seguinte.
— Ora, mas é indecente! De mãos dadas!
— Mesmo comigo?
— O senhor é um provocador. Sei que está me cortejando, mas
não precisa ser vulgar. O que quererá depois? Me beijar na frente de
outras pessoas? Até lembrar de minhas memórias, não quero fazer
nada que macule meu passado.
— Como nossos beijos? — o empresário indagou, ofendido. —
Ou o que acontece da porta para dentro desse apartamento não
conta?
— Não é isso…
— Então prove, saia comigo na frente dos outros. Jantar comigo
não manchará a sua honra, posso apostar. Tem saído para caminhar
comigo, não é nada de diferente do que já fizemos antes — Grayson
disse e soltou um suspiro. — É impressionante como é a segunda
vez que não aceita.
— Como assim?
— Antes do acidente, perguntei se gostaria de jantar, e também
negou o convite.
— Gosto de sua companhia. Mas eu saberia que é mais do que
um passeio inocente. Tenho medo… Eu não sei, não posso aceitar,
Grayson. Tem sido tão doce e carinhoso…
— Mas não é o suficiente — ele murmurou chateado. — Vou
tomar um banho e relaxar.
Nellie esperou por Grayson, mas ele não voltou do quarto nem
mesmo para comer. Eles passavam as noites juntos, jantavam e viam
televisão, como um hábito desde que ela foi morar no apartamento
do empresário. Em vez disso, a mulher terminou sozinha na sala,
abraçada à Mary e pensando na conversa que tiveram.
Não conseguia apontar por que se sentia daquela maneira, mas
era como se algo faltasse para poder seguir. Sua memória, Nellie,
ela se censurou, mas no fundo sabia que era algo além daquilo,
como um divisor de águas entre quem era a verdadeira Ellen Morris
e a mulher que era agora. Para piorar a situação, a agonia de ter
certeza de que era do passado crescia a cada dia. Que ela
estivesse reaprendendo a viver era o de menos perto da sensação
de ter nascido em 1800.
Desde o beijo naquela madrugada, Nellie sabia que sentia algo por
Grayson que ia além da amizade. Ele fazia suas mãos tremerem,
seu coração bater forte no peito, e a deixava com uma sensação
estranha no estômago. Ele era bom com ela, com os outros ao seu
redor, e por mais que dissesse que era tímido, era agradável de
conviver, sempre disposto a ajudá-la. O homem também era bonito,
com seu cabelo escuro e os olhos… Ele falava que os olhos eram
cor de caramelo, mas, para ela, era ainda mais rico do que isso. Cor
de café com pequenas manchas douradas que chamavam a atenção.
Grayson tinha o maxilar forte, parecendo sempre irritado quando na
verdade estava apenas pensativo. E o sorriso que se acendia com
as covinhas escondidas entre suas bochechas… Às vezes Nellie se
perdia apenas encarando-o, pensando como um homem poderia ser
tão bonito como Grayson Canning.
No momento que ele falou sobre o encontro, ela tremeu. Nellie
queria estar ao lado dele, apesar das convenções. Andar de mãos
dadas como viu outros casais na rua, roubando beijos como se só
existissem os dois no mundo. Sentia-se atraída a ele como se não
conseguisse ficar longe, e isso era assustador.
Nellie comeu um sanduiche e foi se deitar, mas a discussão
voltava vez ou outra em sua mente, roubando seu sono e deixando-a
afetada. A jovem não dormiu bem pela sensação de ter magoado
Grayson. A ideia de que uma parede a separava dele a fazia sentir
comichões, tão perto e tão longe. A mulher sentia que deveria voltar
para seu apartamento, tentar recomeçar sua vida mesmo com a falta
de memória, mas pensar em retornar para o local diminuto lhe dava
agonia. Mais do que isso, doía pensar que nunca mais teria noites de
televisão com Grayson, ou conversas bobas sobre coisas curiosas,
passeios pela cidade enquanto o sol se punha, ou o sorriso que o
empresário usava apenas com ela.
A mulher jogou as cobertas para o lado em um arrombo de
coragem e andou em passos leves para o corredor. Ele estaria sem
camisa como sempre, e a perspectiva de vê-lo vulnerável na cama
quando queria pedir desculpas mexia com ela. Nellie suspirou ao
chegar na porta do quarto de Grayson, puxando o ar com força
como se quisesse tomar coragem.
— Grayson — sussurrou e bateu de leve na porta, mas não teve
resposta. Alguns segundos depois, ela empurrou-a, entrando nos
domínios masculinos do homem. Ele parecia tão suave entre os
lençóis claros, enrolado e de olhos fechados no centro da cama.
Nellie sorriu, percebendo que já não se escandalizava com o peito
masculino nu. Na verdade, aquilo fazia o coração da mulher disparar.
Como se o abraço de Grayson a protegesse de tudo e abrisse uma
janela para um lugar desconhecido. Depois de tantas e tantas vezes,
era como se tivesse se acostumado com as obscenidades do
homem.
— Nellie… Aconteceu alguma coisa? — Grayson perguntou com a
voz sonolenta ao abrir os olhos e encará-la parada em frente à
cama. Ela se aproximou e se sentou no colchão, encarando-o
através da escuridão.
— Queria pedir desculpas — ela sussurrou de forma tímida. — Eu
te magoei com minha negativa.
— Não — ele respondeu e esticou a mão, colocando-a sobre a
boca da mulher e fazendo-a calar. — Eu preciso pedir desculpas.
Não é sua culpa, e tem razão. Disse que ia fazer as coisas no seu
tempo. Sou um idiota em descontar em você enquanto nada está
resolvido. Não lembra de sua vida e estou aqui sugerindo encontros
e…
— Também me sinto da mesma forma — ela revelou com a voz
ainda em um tom baixo e retirou a mão, entrelaçando seus dedos
aos dela. — Mas é como se tivesse um véu sobre meus olhos. Não
sei quem sou, não sei mais o que é certo e errado. Acordei com
tantas certezas e elas estão caindo na minha frente, uma a uma…
— Como o quê?
— Como nós dois, aqui, agora. Seria um escândalo estar sozinha
com um homem no meio da madrugada. Reputações começam
assim, casamentos acontecem desse jeito — ela completou. — Mas
por que algo tão errado parece certo? Estar aqui, com você, parece
a coisa mais certa que fiz na minha vida, como se tudo antes tivesse
apenas me trazido até aqui, como se meu destino estivesse em suas
mãos.
— Não consigo esconder como me sinto ao seu lado. Algo em
mim vibra cada vez que a olho. Antes era como uma atração
irresistível, mas agora… É como uma conexão. Meu peito se aperta
apenas por estar perto de você. Não sei explicar, Nellie. — O
empresário deu um suspiro cansado. — Mas antes do acidente você
não tinha interesse algum em mim. Penso o tempo todo se não é
agradecimento misturado com confusão. Sou a única pessoa com
que você conviveu desde que acordou sem memória.
— Eu… eu me sinto da mesma forma. A conexão, o interesse —
ela confessou em um fio de voz. — Mas mulheres foram ensinadas a
nunca fazerem nada. O senhor me deixa nervosa, e não saber quem
sou me deixa ainda mais confusa. Olhe onde estamos. É madrugada
e está seminu!
— Quando está nervosa, me chama de “senhor” — ele anunciou,
e ela deu um riso suave.
—Talvez pudéssemos voltar à Casa Canning como sugeriu.
Preciso de um encerramento, como gosta de falar. Preciso esgotar
todas as possibilidades de lembrar antes de seguir minha vida…
seguir com nós dois — Nellie respondeu e apertou os dedos de
Grayson. — Me perdoe por magoá-lo.
— Já lhe disse, eu que tenho que pedir desculpas. Você deve se
recuperar e não pensar em nada mais. Fui um idiota.
— Grayson… Não sei explicar como me faz sentir. Eu quero
lembrar para ter certeza de que isso não é mais uma invenção de
minha mente — ela anunciou e soltou sua mão da dele, apoiando-a
no rosto do homem e fazendo-o fechar os olhos com o toque suave
como uma pena.
Ele soltou o ar, o coração palpitando em seu peito como um
tambor. A jovem esticou-se e deu um beijo suave nos lábios dele
antes de virar-se e correr para fora do quarto. Grayson abriu os
olhos e só enxergou o farfalhar da camisola de Ellen, ao mesmo
tempo que sorriu de forma leve.
Nellie voltou para seu quarto e, depois da conversa, conseguiu
dormir. Seu peito ainda batia forte pelo beijo roubado e demorou
alguns segundos para conciliar o sono e o relaxamento após as
palavras de Grayson. Não consigo esconder como me sinto ao seu
lado. Algo em mim vibra cada vez que a olho… É como uma
conexão. Ela pensou antes de ser roubada pelos sonhos, com um
suave sorriso nos lábios.
Ao acordar, o sol já estava alto do lado de fora. Grayson havia
partido para o trabalho e deixado um bilhete lembrando-a que o
evento de trabalho seria naquela noite. Antes da chegada do piano,
Nellie passava os dias entediada com livros ou aprendendo coisas
novas. Agora, suas horas eram uma sucessão de passeios, um
pouco de televisão, internet e prática do piano. Chegou no dia
seguinte ao que Grayson comentou sobre o instrumento do pai, tão
bonito em sua madeira escura. Ela se perdia nas teclas por horas a
fio, divertindo-se com as partituras que encontrava na internet,
sonatas e temas mais melódicos e românticos do que parecia se
lembrar de cor.
O celular de Nellie apitou no balcão da cozinha. Ela ignorava o
aparelho quase sempre, usando-o apenas em momentos
necessários ou para ouvir música em seus passeios. Era estranho
usar as teclas, ela se perdia entre as letras e demorava muito para
fazer qualquer coisa nele. Por curiosidade, olhou as fotos e as
mensagens alguns dias depois de chegar na casa de Grayson, mas
nada ali fazia sentido e a mulher deixou de lado, como roupas mais
ousadas do armário que ficaram no apartamento de Camden.
Era uma mensagem de Grayson, avisando que se atrasaria, pois
estava preso em uma reunião. Na opinião de Nellie, o homem
trabalhava demais. Estava sempre em reuniões, ao telefone,
conversando com pessoas ou fechado no escritório, digitando em
seu celular ou computador. Ele parecia tão mais relaxado quando
passava algumas horas com ela. Isso a alegrava por saber que era
diferente de toda a rotina que se impunha.
Nellie tomou um banho demorado, estilizou o cabelo em um coque
com fios soltos que aprendeu através de Alexa, e sentou-se para
esperar. O vestido que Grayson comprou era lindo, verde como seus
olhos, caindo suave pelo corpo. Embora não mostrasse suas pernas,
o tecido delineava suas curvas, revelando mais do que deveria. Em
vez de achá-lo escandaloso, a jovem gostou do que via no espelho.
Apesar de não usar maquiagem como as mulheres da televisão e da
internet, o vestido tinha um efeito diferente das peças de roupa que
usava no dia a dia. Ela se sentia bonita, bonita de verdade, como
não lembrava de se sentir.
Passava das sete da noite quando o empresário abriu a porta e
encarou-a com curiosidade enquanto a mulher estava sentada no
sofá da sala.
— Está linda, querida!
— Fiquei com medo. — Ela hesitou. — Vi algumas imagens de
mulheres com maquiagens e cabelos em penteados diferentes. Não
consigo fazer isso sozinha, mas gostei do que vi no espelho.
— Para mim, está belíssima. — Ele sorriu, destacando suas
covinhas, e acenou para o instrumento no canto da sala. — Vou me
arrumar e nós podemos ir. Terminei enrolado com um contrato e não
consegui sair cedo. Toca para mim?
— Passei o dia com o piano — a jovem respondeu envergonhada.
— Seus dedos podem terminar em carne viva se passar tantas
horas assim. Precisa se cuidar. Comeu alguma coisa? Você pode
ficar muito absorvida, Nellie.
— Não é problema, posso tocar para você. — Ela sorriu e sentou-
se ao instrumento. — Vai… Alguns minutos a mais não fazem mal.
Ele sorriu para ela e entrou no corredor em direção ao quarto.
Meia hora depois, Grayson retornou à sala para encontrar Nellie de
olhos fechados tocando no piano. Era uma música suave, e os dedos
delicados da mulher voavam pelas teclas como se não fizesse
esforço algum. Era mágico de assistir.
— É lindo — o empresário comentou, e ela parou de tocar,
encarando-o com um sorriso no rosto.
— Acho que era do que estava sentindo falta — confessou e o
encarou de cima a baixo. — Está bonito de terno, senhor Canning.
— Obrigada. Já falei que está linda. Seremos um belo par.
— Haverá muitas pessoas?
— Algumas. É uma festa beneficente. Todos os anos meu pai
realizava uma coleta de fundos para câncer de mama e mantive a
tradição. Foi do que minha mãe morreu.
— O que é?
— O corpo é formado por células e, em determinado momento,
essas células podem apresentar algum tipo de erro. Vai destruindo o
corpo a partir disso e leva à morte se o tratamento não fizer efeito.
Minha mãe lutou com o câncer por anos, mas não resistiu.
— Ó, Grayson, sinto muito.
— Estou feliz que estará lá comigo — ele revelou. — Talvez até o
fim da noite consiga roubar mais beijos.
— O senhor é tão descarado! Não é assim que se corteja!
— Mas eu prometo que você vai gostar. — Ele piscou para a
mulher, que ficou vermelha e com vergonha. — Está pronta?
Nellie e Grayson foram para o salão onde o evento estava sendo
realizado. Ficava a poucos minutos do apartamento, em
Westminster. Era um local iluminado, com sofás confortáveis e uma
banda tocando em um dos cantos. Todos usavam vestidos longos ou
ternos e, por alguns instantes, a jovem congelou, como se estivesse
sentindo algo.
— Tudo bem? — Grayson perguntou, preocupado, enquanto
ambos desciam as escadas em direção às pessoas. Ele deu um
apertão suave que chamou a atenção da mulher.
— Acho que já estive em um ambiente como esse. Pessoas
dançando, orquestra, conversa alta. Foi como uma lembrança…
— Claro que deve ter estado. Você trabalhou em universidades,
com pessoas com dinheiro. Esse tipo de evento acontece todo o
tempo.
— Deve ser isso… — Ela suspirou e olhou para os lados. — É
tudo muito bonito.
— Sim, é — ele concordou e sorriu para Nellie. — Mas você é
mais.
— Não me deixe sem jeito — a jovem falou com um sorriso
enquanto dois homens se aproximavam de ambos.
— Olá, chefe! — um homem negro cumprimentou, e Nellie olhou
para Grayson curiosa. Os homens estavam abraçados em uma pose
íntima, com um smoking preto.
— Este é meu assistente Nicolas e seu marido, Wyatt.
— Marido? — Ellen questionou com confusão.
— Sim, nós nos casamos no ano passado.
— Bem… meus parabéns — ela respondeu e, quando os homens
estenderam a mão, ela os cumprimentou de um jeito estranho, como
se não soubesse apertá-las. Nicolas encarou Grayson e sorriu,
porque o assistente sabia a verdade. Como aqueles loucos que
juram que são Napoleão?
— É um prazer finalmente conhecê-la. Nós vamos pegar uma
bebida. Bom conhecer quem aquece os pés frios do meu chefe.
— O quê? — ela indagou com curiosidade.
— Deixe-os em paz, Nicolas — Wyatt pediu com um olhar de
censura para o marido. — Nem todos têm os pés congelados como
os seus. É terrível, impossível de dormir junto sem uma meia!
— Wyatt! — o assistente reclamou em um tom mais alto, fazendo
os três gargalharem.
— É bom deixar os outros com vergonha, não? — o marido de
Nicolas brincou. — Nós vamos pegar uma bebida, nos vemos depois.
Foi um prazer conhecê-los.
Quando os homens se afastaram, Nellie continuou com o olhar
preso ao casal, que caminhava de braços entrelaçados até o bar em
um dos cantos do salão.
— Homens podem se casar com outros homens? — ela sussurrou
a pergunta para Grayson. — Antes, apenas homens e mulheres…
— Pessoas do mesmo gênero se relacionam desde que o mundo
é mundo, Nellie.
— É?
— Sim… Veja — Grayson apontou para Nicolas e Wyatt com um
sorriso. Ambos conversavam muito próximos em um abraço, os olhos
brilhantes e a expressão cúmplice. — Eles se amam. Não há nada
de errado.
— Posso ver isso. Só não lembrava que era normal.
— Tudo é normal, querida. Cada pessoa é diferente. Apesar de
pessoas preconceituosas, a sociedade evoluiu. O problema é que,
desde que você acordou, parece estar em 1800.
—Você tem razão. Parece que não conheço nada a meu redor. É
sufocante.
— Mas pode reaprender. Veja o caso de Nicolas e Wyatt. Eu te
dei uma informação, você a absorveu e seguiu em frente. Pessoas
com plena memória discriminam e colocam a vida dos outros em
perigo por crenças tortas. Não é um problema não saber, porque
você pode aprender. É um problema se manter no mesmo lugar de
estranhamento e preconceito mesmo depois de se educar. Isso vale
para qualquer coisa, até sua repulsa a calças.
— Confesso que com o passar das semanas, elas me soam cada
vez mais confortáveis.
— Pois deveria tentar usá-las mais vezes. Deveria tentar tudo o
que quiser, Nellie. Você não se lembra do seu passado, e daí? O que
o seu coração quer? O que deseja?
— Como assim?
— Você se divertiu na loja de pianos. Come todos os chocolates
que comprei às escondidas. Adora brincar com sua gata pela casa.
Antes tinha medo de sair e agora adora dar voltas sozinha pela
cidade. Talvez você nunca se lembre de quem era no passado, mas
existe todo um futuro à sua frente.
— Você tem razão. Eles fazem um casal lindo. Acho que você
deveria ter usado um traje como aquele em vez dessa gravata que
usa todos os dias — ela apontou.
— Ei, disse que eu estava bonito! — ele respondeu com um
sorriso torto.
— Mas aquele é o tipo de roupa que vivo falando para usar.
— Talvez um dia consiga me transformar, Nellie. — O empresário
suspirou com um sorriso. — Se não soubesse melhor, acharia que
está tentando me fantasiar de senhor Darcy.
— Ele era muito bonito no filme — ela respondeu com um sorriso.
— Ah, mulher… — Ele riu e puxou-a pelas mãos. — Vamos
dançar.
Grayson caminhou com a restauradora para a pista de dança
onde a orquestra executava uma música lenta. Ele a puxou aos seus
braços em um encaixe perfeito e sentiu-a estremecer pela
proximidade. Eram passos lentos e suaves, dançando de um lado
para o outro e sentindo apenas a cercania dos corpos. Ele desceu a
mão para a base da coluna de Nellie e encostou sua cabeça no
ombro dela, um abraço tão íntimo que a fez esconder o rosto no
peito do executivo.
— É bom dançar com você — ela confessou e levantou a face,
encarando-o de perto. — Não lembro de me divertir tanto com outra
pessoa como faço em sua companhia. Você é um bom partido,
Grayson Canning, apesar da tendência de falar coisas inapropriadas
e ficar sem camisa na minha frente.
— Você já se acostumou, querida — o homem comentou e piscou
para ela. — O que acha de poder voltar à sua vida antiga? Vou sentir
sua falta, mas não perguntei se gostaria.
— Não me sinto à vontade em trabalhar. É como se algo não
encaixasse, as tarefas não fossem minhas. Tudo o que falou sobre
meu trabalho soa distante e nada tem a ver comigo.
— Vamos visitar a Casa Canning amanhã e tirar isso do caminho.
O que acha?
— Sim — ela concordou. — Você tem razão. De um jeito ou de
outro, preciso decidir como tocar minha vida, com ou sem memória.
E quanto mais rápido fizer isso, melhor será.
— Isso, garota. — Ele sorriu. — Eu me orgulho de você, Nellie.
Não percebe, mas tem feito avanços. Nunca estaria aqui dançando
comigo desse jeito semanas atrás, tão despreocupada com o jeito
que as pessoas olham para nós dois.
— Eu sei. — A jovem soltou um riso cristalino e um pouco tímido.
— Você me desvirtuou, Grayson.
— Eu acho — ele respondeu e tocou o rosto dela com suavidade
— que essa veia rebelde sempre esteve aí à espera de se libertar.
— Talvez — ela disse e encarou os lábios do homem. Grayson via
desejo naquele olhar e gemeu baixo, seus dedos passeando pelo
rosto de Nellie. — Grayson… posso beijar você?
— Sempre terá o que quiser de mim, querida — o empresário
sussurrou, e ela ficou na ponta dos pés, vencendo a distância entre
eles, saboreando os lábios de Grayson à vista de todos, sem se
importar com regras de etiqueta e julgamentos.
— Como se sente com suas duas taças de champanhe? —
Grayson perguntou quando abriu a porta do apartamento, seus
dedos entrelaçados aos de Nellie e um sorriso suave no rosto.
— Bem… Não lembro de beber antes, mas parece que meu corpo
sabe melhor do que eu. Não sinto nada, nem um pouco tonta ou
enjoada. — Ela riu.
— Foi divertido, não? — ele questionou enquanto a mulher se
abaixava para saudar Mary parada à porta do apartamento.
— Sim. Por algumas horas, você até sorriu mais. Sua cara séria
assusta as pessoas. Eu amo ver suas covinhas…
— É o que me faz bom no meu trabalho! — Grayson anunciou em
um suspiro. — Mas é bom apenas dançar e me divertir. Acho que
meus músculos do rosto não sabiam o que era isso. Até Nicolas
comentou.
— Gostei dele e de Wyatt.
— São um casal bonito — ele concordou e deu um bocejo. — Vou
dormir, já passa de uma da manhã e tenho uma reunião logo cedo.
Te encontro na hora do almoço para irmos à Casa Canning, pode
ser? O plano de ir até lá ainda está de pé?
— Mas amanhã é sábado! — ela protestou. — Você deveria ter
direito a um dia sem ninguém ligando ou pedindo coisas para você.
— As desvantagens de ser um Conde… ou o dono de uma
empresa… ou alguém que cuida de um fundo de ações.
— E para que isso? — a jovem indagou confusa. — Você ganha
dinheiro, mas nunca tem tempo de aproveitar nada.
— Nunca tive motivos para querer — o executivo explicou e
hesitou, deixando as palavras caírem em um silêncio antes de
continuar. — Até agora.
— É… — ela respondeu, e suas bochechas se acenderam com
um sorriso de vergonha entre seus lábios. — Posso pedir algo?
— O que quiser.
— Posso dormir com você?
— Quem é você e o que fez com a minha Nellie? — o empresário
perguntou, congelado em sua posição depois da proposta da mulher.
— Isso vai muito além do cortejo. Você me beijou na frente daquelas
pessoas e já achei corajoso de sua parte, e agora isso… A dama do
século 19 está perdendo suas inibições!
— Gosto de estar junto de você, e Nicolas e o marido falaram…
— Sobre alguém esquentar meus pés gelados? — Ele riu.
— Também, mas sobre dividir a cama. É tão íntimo e nem mesmo
com pessoas casadas vi acontecer… eu acho — ela sussurrou. —
Gosto de estar perto de você e dividir o sofá. Gosto como me
abraça, como me consolou quando tive um pesadelo.
— É por isso que não quer dormir sozinha? Tem tido sonhos
ruins?
— Não, é mais do que isso. Você tem razão ao falar que eu
deveria me libertar. As últimas semanas serviram para mostrar que
deveria valorizar mais o que desejo em vez de ficar tentando
controlar o meu arredor. O meu cabelo, minhas roupas, os passeios
sozinha… Ninguém me censurou ou me exilou por cometer um “erro”.
A desaprovação vinha de mim mesma.
— E agora consegue deixar isso para trás?
— É claro que não. — Ela riu. — Ainda acho que devo me
comportar de certas maneiras e que outras devem ser críticas, mas
ao mesmo tempo… Gosto de tudo que aprendi, tudo o que fiz. Eu
gosto de você.
— Você sabe o que estamos fazendo aqui, Nellie? — o homem
perguntou, a voz uma oitava mais baixa, e ela balançou a cabeça
como resposta. Grayson se aproximou e pegou-a no colo, levando-a
para o quarto.
— Preciso pegar minha roupa de dormir!
— Nós já cuidamos disso. Agora preciso vê-la em meu quarto, na
minha cama… — Ele suspirou com um sorriso brilhante. — Não me
sentia assim desde quando era criança e esperava pelos presentes
de Natal.
— O que está dizendo!? — a jovem gargalhou no momento que
ele a deixou sentada à frente dele no colchão e se ajoelhou. Grayson
tirou a sandália dos pés de Nellie, que acompanhou o movimento
com curiosidade. A respiração dela se acelerou e ela ficou séria de
repente. Ele se sentia da mesma forma, encarando os olhos
esmeralda que pareciam silenciosamente pedir por mais.
— Nós vamos apenas dormir, querida. Você em meus braços,
como sempre deveria ter sido — o empresário disse e esticou a
mão, pegou o pulso de Nellie e deu um beijo suave antes de dar
atenção ao outro pé, puxando a tira da sandália com delicadeza.
— Grayson…
— Apenas dormir — o homem anunciou mais uma vez, como se
falasse mais para si mesmo do que para ela. — Você me pediu um
tempo e vou respeitá-lo. Nós vamos com calma, mesmo que isso me
mate.
O executivo levantou-se e deu um beijo leve nos lábios dela. Ele
saiu do quarto, deixando para trás uma Nellie com respiração
acelerada que não entendia o que tinha acabado de acontecer. A
jovem sentia sua pele arrepiar com a necessidade de ter Grayson
perto, mais beijos de tirar o fôlego e o toque suave de suas mãos.
Em vez disso, ficou sozinha, olhando através da janela enquanto
ouvia o barulho do chuveiro ser ligado.
Nellie sorriu e encarou sua xícara de chá, lembrando-se da noite
anterior. Depois que Grayson saiu do quarto, ela voltou para o seu e
trocou de roupa, deitando-se na cama, irritada pela fuga. Vinte
minutos depois, ele apareceu no cômodo e pegou-a no colo mais
uma vez, apenas para ajeitá-la em seu colchão, desligar a luz e
desejar boa-noite.
A restauradora olhou para o teto por alguns minutos antes de girar
o corpo para Grayson e o abraçar. Ela escutou a risada suave, mas
se negou a reconhecer a provocação. Em vez disso, deu um suspiro
satisfeito como os que Mary costumava fazer e sentiu o sono invadi-
la. Quando acordou, horas depois, ainda estava nos braços do
homem, enrolada nele como se precisasse daquele corpo para
receber calor. Mulheres direitas não fazem isso. Ela ouviu a voz da
mulher que a acompanhava nos sonhos, mas ignorou-a com
satisfação. Como dizer que o que sentia era errado?
Por longos minutos, a jovem apenas observou o peito de Grayson
subir e baixar com sua respiração profunda, os olhos fechados pelo
sono enquanto as primeiras luzes da manhã apareciam pela janela.
No momento que o alarme tocou, o homem deu um beijo suave nos
lábios dela, levantou-se e saiu apressado. Sempre correndo, sempre
ocupado. Ao ficar sozinha, Nellie voltou aos seus afazeres: a
televisão, a internet e o piano. Quando já estava perto da hora do
almoço, fez a xícara de chá. Por mais que não soubesse quem era,
sabia o que estava sentido. O amor romântico que leu em livros e viu
na televisão se assimilavam muito ao que Grayson a fazia sentir: as
mãos suando, o coração acelerado, as bochechas vermelhas e todas
as palavras que era incapaz de falar.
— Está pronta? — O dono dos pensamentos de Nellie apareceu
na cozinha. Ela balançou a cabeça e o seguiu, conversando sobre
assuntos irrelevantes. Como foi o dia, o que fez, se estava cansado.
Queria evitar uma conversa sobre a noite anterior. Tinha vergonha de
falar a respeito, mas queria repeti-la.
Grayson sorriu satisfeito por ouvir sobre a manhã preguiçosa da
restauradora. O empresário entrelaçou seus dedos nos dela e
caminhou para a garagem do prédio, pensando como se sentia
afetado apenas por estar junto a ela. Ele adorou acordar ao lado
dela, sentir os contornos macios ao seu redor e o cheiro que
dominava seus lençóis. Nellie era como um vício, e quanto mais se
aproximava, mais perto queria ficar, mesmo com todos os
pensamentos contra a ideia de um relacionamento mais profundo
sem a recuperação da memória. Ele queria estar ao lado dela, com
ou sem lembranças, mas sabia que parte importante da vida da
jovem estava adormecida junto a recordações que perdeu no
acidente. Em seu interior, Grayson tinha receio de que a mulher
calma e doce desse lugar de novo à energética restauradora que
conheceu um ano antes. Sentiria falta da doce dama dos século 19
que enrubescia por qualquer coisa.
Em um silêncio confortável, dirigiram para a Casa Canning.
Grayson estava nervoso sobre a reação da mulher. Era o último dos
lugares importantes para a vida de Ellen Morris.
— Nós estamos sozinhos — Grayson anunciou quando estacionou
e caminhou lado a lado com Nellie, que observava a grande mansão.
— No final de semana, só costuma ficar o vigia e ninguém mais.
Queria que ficasse à vontade.
— Obrigada. — Ela suspirou e olhou ao redor.
— Você costumava ficar mais lá em cima com os quadros. Estava
envolvida com a reforma da decoração enquanto a equipe trabalhava
nas estruturas. É uma mansão linda, apesar do desgaste do tempo.
— Sim, é … — Nellie murmurou perdida nos pensamentos.
A Casa era a residência dos Bradford de Londres e havia uma
escadaria na entrada principal, um teto alto com ornamentos
desbotados pelo tempo e marcas de onde ficavam quadros antigos.
Grandes pilastras adornavam a frente da casa, destacando um
dourado pálido que também existia nas paredes desgastadas. Nada
daquilo trazia lembranças para Nellie, que torcia as mãos, tentando
achar sentido no que estava vendo. Podia ver as diferenças de
arquitetura do lugar, que mesmo dilapidado parecia a residência da
nobreza britânica. Depois, subiu as escadas e achou o lugar quase
que acolhedor. Ao contrário do resto de toda a Londres de vidros e
estruturas prateadas, aquele imóvel parecia com o que entendia
como lar.
— Aqui. — Grayson acenou e entrou em um dos salões laterais à
escadaria. — Foi aqui que aconteceu o acidente. Como já faz
algumas semanas, mexeram na escada que você usava, mas todos
os materiais estão aí. Os painéis, as pilhas de papéis de referência e
os quadros.
Nellie balançou a cabeça e tentou absorver o seu arredor. Apesar
de sentir certa proximidade, não reconhecia nada, nenhuma peça de
trabalho ou item da Casa Canning. Como as visitas anteriores, era
mais uma tentativa frustrada.
Então algo chamou sua atenção.
Primeiro, ela encarou a Dama com seus cabelos escuros, mirada
tímida cor de violeta. Seu olhar caiu no colar, tão verde quanto seus
olhos, e analisou a peça com curiosidade. Aquilo era familiar. A
jovem se aproximou, mas o quadro era grande e não conseguia
chegar tão perto quanto necessário. Grudou-se à tela e levantou as
mãos, contornando o desenho quase como se pudesse sentir a joia
em seus dedos. Olhou para o lado, os olhos azuis afiados
encarando-a com força, como se transmitisse um ódio do qual nunca
foi capaz de fugir.
Nellie cambaleou, absorvendo os contornos do homem daquele
quadro. O Conde de Bradford. Ó, Deus… Ó, Deus, não. Ela deu
alguns passos para trás, ainda confusa com as coisas que surgiam
em sua mente. O colar, a Dama, o chão molhado e a relva.
A queda…
A mulher sentiu sua respiração acelerar conforme cada uma das
lembranças invadia sua cabeça, a sucessão de imagens — a
começar por sua infância até o acidente.
— Está tudo bem, Nellie? — Grayson perguntou preocupado e se
aproximou, mas ela deu um passo para trás como se não
conseguisse chegar perto. Meu Deus, dormiu nos braços dele.
— Eu… eu… — ela começou, mas sua respiração estava
acelerada demais e todas as lembranças fluíam como um rio revolto
enquanto Grayson apenas a encarava de perto.
— Você conseguiu lembrar de algo? — o empresário questionou
esperançoso.
— Ó, meu Deus, Grayson — Nellie exclamou e suas mãos
tremeram enquanto encarava o homem, em pânico ao apontar para o
Lorde Bradford da pintura. — Eu ajudei a matar o Conde. Seu
parente morreu por minha culpa!
— Nellie, o que está dizendo? — o executivo indagou confuso,
observando a mulher esconder seu rosto entre as mãos.
— Não sei bem como aconteceu, mas eu… eu…
— O que é, Nellie?
— Eu me casei com o Conde de Bradford e fugi dele… — ela
continuou, atropelando as palavras.
— Nellie, acalme-se! Você não está falando coisa com coisa. Isso
é um sonho? É o que pensou quando olhou para o quadro?
— Não… ah, Deus! Você me achará louca! — a jovem respondeu
em um suspiro. — Eu nasci em 1796. Me chamo Eleanor Elisabeth
Sterling. Sou filha de Agnes e Archibald, irmã de Augustus. Fui criada
em Sussex…
— Que espécie de conversa é essa? — Grayson interrompeu,
confuso.
— Eu vim do passado — ela continuou em um fio de voz. — E sei
que parece loucura, mas não sou desse ano, não sei usar essas
roupas, não sei esses costumes. Não sei como vim parar aqui!
— Acho que sua cabeça está confusa, Nellie. Vir aqui foi demais
para você. Não pode ter nascido em 1800.
— 1796 — ela corrigiu.
— Que seja! Você teria mais de duzentos anos!
— Eu corri para fora da casa em Yorkshire e acordei aqui!
— Nellie… — Grayson hesitou.
— Stephen tinha olhos azul-acinzentados e cabelo escuro. Era alto
e…
— Você está confundindo suas memórias com o quadro. Olhe, ele
está atrás de você. Este é Stephen Canning! — Grayson anunciou
uma oitava mais alta.
— Bradford Hall tem um jardim longo, e o quarto da Condessa, o
único lugar que fiquei mais tempo, tinha um dossel azul e dourado,
mogno escuro.
— Na internet tem fotos! Você pesquisou a mansão, como as
outras propriedades do título. Está misturando tudo! — ele afirmou e
caminhou para longe, indo e vindo da sala enquanto a restauradora
parecia desesperada, querendo que o homem acreditasse nas
palavras dela.
Tinha acontecido, Grayson pensou. Nellie enlouqueceu e foi longe
demais com a história de ser uma dama do século 19. A mulher
estava alucinando como alguém que se achava Napoleão.
— Ahhh! O pai de Stephen não era filho do Conde! Era um
bastardo! — ela tentou mais uma vez.
— Nellie, não tenho como averiguar essa informação.
— Vamos até Sussex então! Por favor… Você pode achar que é
coisa da minha cabeça. Mas não é, eu juro!
— Querida, eu…
— É claro que duvida, eu também duvidaria — ela murmurou. —
Sei que parece loucura, mas nem mesmo sei como vim parar aqui.
Era 1814 e…
— Nellie, se acalme!
— Por favor… posso provar! Juro que posso. Só não sei como
vim parar aqui.
— Está tentando me dizer que é uma viajante do tempo?
— Estou tentando dizer que eu acordei no chão da Casa Canning,
duzentos anos depois, e não pareço comigo mesma. Meus cabelos
são escuros, tenho certeza de que meus olhos não são verdes…
esse corpo — completou e analisou os dedos, chocada. Apontou
para a pintura. — Eu não sou essa mulher. Sou aquela que está ao
lado de Stephen Canning.
— ELLEN! SEU NOME É ELLEN — Grayson disse mais alto,
como se tentando tirar Nellie de seu estupor, mas ela o encarou com
olhos sem vida antes de declarar:
— Não, Grayson. Eu me chamo Eleanor Elizabeth Sterling, filha do
19° Barão de Clifton. Parece loucura, mas eu vim parar aqui, não sei
de que maneira. Minha casa é Sussex e preciso descobrir como
diabos vim parar em seu ano.
— Diabos?! — o empresário olhou confuso pela escolha de
palavras dela.
— Minha mãe me mataria pelo linguajar, mas tem horas que é
necessário uma palavra mais forte para entender como desapareci
em minha noite de núpcias para acordar dois séculos mais tarde. Eu
pedi, implorei para sumir… E agora estou aqui.
— Percebe que suas palavras não fazem sentido? — ele
sussurrou desesperado, como se tratasse de alguém em um surto.
— Grayson… — Ela suspirou derrotada. — As coisas não fazem
sentido desde o momento que abri os olhos no chão desse salão há
algumas semanas. Nenhuma palavra minha fará as coisas ficarem
piores.
Grayson sentia-se confuso com a cena na Casa Canning. Nellie
continuava frenética, andando de um lado ao outro e dizendo coisas
como ser uma dama de 1814, ter casado com o Conde e viajado no
tempo. A mulher parecia fazer esforço para encontrar algum
argumento racional, como se buscasse um meio de convencê-lo que
não era Ellen Morris, mas sim a filha de um barão do século 19.
O empresário estava preocupado. Tinha receio que a visita ao
local de trabalho causara um surto que a transformou de
desmemoriada para alguém delirante. Queria falar com a doutora
Jameson ou começar a acionar todos os contatos necessários para
fazer com que o melhor neurologista ou terapeuta do país aceitasse
ver Nellie naquela mesma tarde. Grayson tinha medo de que as
memórias da tal Eleanor fossem motivo para uma internação. Não
estava preparado para mandá-la para longe, mesmo falando
loucuras sobre uma viagem no tempo.
— Vamos para casa, você precisa descansar — ele pediu,
impotente. — Verá que o que está falando não tem sentido.
— Me dê a oportunidade, Grayson. Eu juro que sei do que estou
falando! — ela continuou com a voz quebrada, como se estivesse
segurando o choro em sua garganta, os grandes olhos verdes
encarando-o como um pedido para acreditar em sua história
fantástica.
— Não está bem, Nellie. — Ele suspirou derrotado.
— Você precisa entender… — ela pediu mais uma vez, como uma
súplica.
Grayson continuou em uma conversa em círculos. Ele tentava
dissuadi-la ao mesmo tempo que a mulher falava sobre Sussex,
repetindo vez ou outra que aquela era sua casa, e não Londres.
Explicava que poderia provar quem dizia ser, o que deixava o homem
ainda mais preocupado. Após o acidente, leu sobre transtorno
dissociativo de identidade e podia perceber que as coisas
começavam a se encaixar: Nellie não agia como Ellen, não falava, se
comportava ou se vestia como a restauradora. Pareciam duas
pessoas diferentes, como se realmente uma troca de almas tivesse
acontecido. Não, isso é impossível, o herdeiro dos Canning pensou
ao observar a jovem continuar indo de um lado para o outro do salão.
Nervosa e até um pouco desequilibrada, parecia diferente da pessoa
antes do acidente que ele conheceu. Aquilo era uma loucura.
— Por favor… Juro que procuro ajuda se não der em nada, pode
me levar para o profissional que quiser, eu aceito! Não vou reclamar.
Mas preciso ir para casa, ir para Sussex. Posso provar que não sou
quem acha que sou.
— Nellie, isso é uma loucura, entende?
— Confie em mim, Grayson. Não precisa acreditar, apenas
confie… Por favor — ela continuou com os olhos suplicantes. Depois
de mais meia hora de discussão, o executivo aceitou viajar até o
norte da Inglaterra com Nellie em seu banco do passageiro.
Por um par de horas, fizeram o trajeto em um silêncio incômodo.
Grayson era incapaz de dizer palavra alguma sobre o que tinha
acontecido na Casa Canning, enquanto Nellie parecia perdida em sua
cabeça. Pediu para ser levada para o centro velho de Eastbourne e
manteve o silêncio pelo resto do percurso.
Uma viajante do tempo.
Em que tipo de loucura se enfiou?
Não parava de repassar cada ato ou palavra da mulher e como
ele se apaixonou por alguém com um distúrbio mental. E se a doce
Nellie não fosse mais do que uma dupla personalidade e tudo que
eles viveram não fosse o que acreditava? Foi fácil demais… Ellen
Morris passou de ignorá-lo para gostar de sua presença e aceitar
seus carinhos. Eram os malditos castelos de areia construídos à
base de sua solidão.
— Estou fazendo isso porque acho que será bom para você.
Quando chegarmos e perceber que nada do que está dizendo é real,
poderá procurar ajuda especializada. Não consigo acreditar nessa
história de viagem no tempo — Grayson reclamou, tamborilando os
dedos no volante do carro, analisando o arredor, procurando pela
entrada da cidade. Ficava dentro de East Sussex e era cercada de
colinas e falésias que caíam sobre o mar.
— Onde estamos?
— Mais alguns metros e estaremos no centro velho de
Eastbourne, como pediu. E depois o quê?
— Vou guiá-lo — ela afirmou e encarou com o cenho franzido. —
As coisas parecem diferentes, mas a casa não era longe. A cidade
sempre foi movimentada porque muitos nobres gostavam do
benefício medicinal do mar. Ia com minha dama de companhia
comprar fitas e outras coisas. Posso lembrar do percurso a pé e
apontar o caminho.
— Uma loucura… — Grayson murmurou. Ele parecia repetir a
mesma palavra mais vezes nas últimas horas do que em toda a sua
vida. Avançaram mais dez minutos para dentro da cidade quando
Nellie pediu:
— Pare o carro! Vê a casa à sua esquerda?
— Sim — ele anunciou, examinando uma monstruosidade de
pedra a mais de dez metros de distância, pavimentada por uma
estrada de terra e cercas de metal.
— Bem-vindo à Cottage dos Clifton! — ela exclamou eufórica
enquanto Grayson estacionava perto do local indicado.
— Essa casa não é grande demais para ser uma cottage? Achei
que chalés costumavam ter um tamanho menor.
— Não para os antepassados do título — a mulher suspirou e
saltou, olhando a casa. Ele saiu do veículo e a encarou enquanto ela
permanecia com os olhos presos à construção. — O primeiro Barão
construiu uma casa em um estilo medieval que foi aos poucos
demolida e reconstruída para algo mais moderno. Minha mãe
detestava essa propriedade, mas desde a morte do nosso pai não
tínhamos como manter muitas casas ao mesmo tempo. Augustus fez
o possível, mas…
— Augustus é o irmão que falou da outra vez?
— Sim, ele morreu jovem. Éramos apenas eu e minha mãe antes
do casamento com o Conde. — Ela engoliu em seco.
— E qual é o passo seguinte? Chegamos à casa ancestral dos
Clifton, e agora? — o empresário perguntou em um tom cético.
— Não é a casa ancestral. Clifton Hall é a propriedade ligada ao
título, mas a Cottage é onde passávamos mais tempo. Mais barata
de manter e mais perto da cidade.
— Muito bem… — ele continuou sem jeito.
— Nós podemos visitar? Parece que está abandonada — Nellie
indagou e olhou a degradação da casa do lado de fora. Não havia
uma viva alma ao redor dos dois, como se a cidade fosse um vilarejo
fantasma. A casa era afastada, longe da área comercial de
Eastbourne, o que os protegiam dos olhares curiosos.
— Está mesmo abandonada — Grayson anunciou depois de
mexer em seu celular e fazer uma busca rápida pelo endereço. — O
título foi extinto, ninguém se responsabilizou e nenhuma instituição
adquiriu a casa. Tem uma campanha do Save Britain's Heritage.
— O que é isso?
— Um grupo que mapeia e faz campanhas para que instituições
de caridade recuperem as propriedades, como o National Trust e o
English Heritage.
— Como seu pai?
— Um trabalho muito maior do que o do meu pai. É caro manter
uma casa como essa. O governo e alguns particulares tentam… —
Grayson suspirou e se negou a continuar. — Ellen, isso é loucura
demais, não consigo…
— Agora é Ellen? — a mulher perguntou, encarando-o com
mágoa. — Pode apenas confiar em mim, por favor?
— O que faria se estivesse no meu lugar?
— Eu não sei… mas conheço quem você é, Grayson. Pode me
dar uma chance? Outras pessoas talvez só me jogassem em um
manicômio. — Ela encarou o homem com olhos suplicantes. — Nós
podemos entrar?
— Isso tecnicamente seria invasão. Além disso, está aos
pedaços. Pode acontecer um acidente. Não é seguro.
— Mas nós podemos entrar? — ela insistiu.
— Ninguém está nos impedindo — Grayson disse e deu de
ombros. Eles fariam mesmo aquilo?
— Pode falar o que quiser sobre minha mãe, mas Agnes tinha
razão sobre o primo Horace. Olhe o que ele deixou acontecer! —
Nellie exclamou quando eles se aproximaram do portão. — Era uma
casa tão bonita.
O empresário sabia que invadir uma propriedade era errado, mas
sentia-se compelido a ajudar Nellie. Quanto mais rápido acabassem
com aquilo, mais rápido conseguiria buscar ajuda para os problemas
dela. Tinha a impressão de que apesar da personalidade serena, a
mulher pularia o muro da propriedade apenas para provar um ponto
e preferia protegê-la em vez de deixá-la à própria sorte.
Ele empurrou a cerca de metal e um terreno de mato alto se abriu
na frente deles. A casa estava destruída, como se ninguém
habitasse o local há uma dezena de anos. Nellie abriu a porta da
frente em silêncio, dando passos vagarosos conforme olhava ao
redor. Era tudo feito de madeira escura, com detalhes corroídos pelo
tempo, em grandes umbrais que davam para outras partes da casa.
Ela virou à esquerda, onde uma biblioteca se abriu a seus olhos.
Livros e umidade se misturavam ao ambiente, e Grayson tinha medo
de tocar em qualquer parte da casa e vê-la desmanchar tal era a
deterioração. A jovem caminhou até a estante e mexeu em um dos
livros. Soprou e abriu a obra com cuidado, sentindo as folhas
desgrudarem. Ela tirou uma pequena imagem e sorriu.
— Minha mãe mandou retirar os retratos do meu pai. Dizia que
não queria ver mortos. Colocou tudo na ala das pinturas de barões
anteriores. Quando Augustus morreu, ela não fez o mesmo. Tinha
uma imagem grande de meu irmão perto da escadaria… — Nellie
apontou onde a marca de um quadro descansava.
A cabeça de Grayson fervilhava enquanto ela parecia compartilhar
pequenos detalhes da casa como se a conhecesse na palma de sua
mão. Nellie estendeu a pintura em miniatura para ele. Talvez vidas
passadas respondesse esse caos mais do que uma viajante no
tempo, certo?
— Deve ter alguma outra explicação — ele murmurou.
— Vamos até meu quarto. Tem um esconderijo que não sei se
alguém acharia — ela anunciou, pisando forte em direção à escada
podre. Grayson a pegou pelo seu braço, puxando-a de volta.
— Não é seguro! Por favor…
— Mas preciso ir até lá!
— Você quer que eu diga que acredito em você? Posso dizer, se
isso te acalma!
— Mas não acredita! — ela respondeu com a voz estridente e
puxou o braço, subindo a escada com passos vagarosos.
Grayson soltou um palavrão e a seguiu. Qualquer passo em falso
no segundo andar significava queda. A madeira estava estragada e
sofrendo com a agressão do tempo, sem manutenção sabe-se lá há
quantos anos.
— Para onde vamos?
— Esquerda e esquerda — ela apontou, notando o homem
seguindo-a sem questionar.
Eles encontraram uma cama de ferro enferrujada, um armário e
alguns itens no tocador. Nellie engoliu em seco, sabendo que os itens
pareciam quase intocados. Horace nunca quis a Cottage, apesar de
herdar o título. Ele permaneceu em Clifton Hall e não quis nem
mesmo ajudar na busca de um marido para Eleanor. O homem se
escondeu na grande casa com a herdeira norte-americana, antiga
noiva de Augustus, e deixou as duas mulheres se virarem.
Nellie se ajoelhou sobre um rodapé e puxou a madeira, sentindo-a
se desfazer em suas mãos. Ali estava seu tesouro.
— O que é isso?
— Minhas coisas — ela sorriu para Grayson e mostrou a caixa em
suas mãos, abrindo-a com delicadeza. — Este do retrato é
Augustus. Mamãe pediu para encomendar as miniaturas quando
estava em busca de uma esposa para meu irmão. Aqui também
tenho outros tesouros apenas meus. Uma fita que meu pai me deu,
um livreto…
— Como sabia que estava aí?
— Grayson, eu vivi aqui! — ela respondeu sem paciência e se
levantou. A garota deu alguns passos antes de sumir dos olhos dele
de repente, sendo sugada para baixo. Metade do corpo de Nellie
ficou pendurado através da madeira podre. — GRAYSON!
— Me dê sua mão! — ele pediu e se deitou no chão, puxando-a
com força como se tentasse tirá-la de um buraco no gelo.
O homem fez força, sentindo o agarre da mulher, que empurrou a
caixinha para um lugar seguro antes de se impulsionar. O corpo
voltou para cima e eles caíram para o lado, respirando com
dificuldade pelo esforço.
— Obrigada — Nellie disse sem fôlego.
— Eu falei que era perigoso!
— Preciso achar o diário de minha mãe, é no quarto ao lado —
ela anunciou, fingindo não o ouvir, e se levantou, tirando a poeira do
vestido e carregando de novo a caixa em suas mãos.
— Talvez não esteja aqui — ele sussurrou e colocou a mão no
rosto, ainda encostado na parede. Eram tantas coincidências.
Poderia acreditar? — Agnes Sterling não viveu aqui após o
casamento.
— O que quer dizer? Como sabe disso?
— Eleanor Sterling se casou com o Conde e viveu em Bradford
Hall. Depois da morte de Stephen, ela voltou a se casar com
Edmund, o irmão mais novo do Lorde, mas morreu logo depois. O
que os pesquisadores do título diziam é que não aguentou um parto,
ficou muito fraca e pereceu meses depois.
— Eu morri? — ela perguntou chocada.
— Eleanor morreu — Grayson corrigiu. — Agnes Sterling nunca
morou com a filha depois do casamento. Os últimos registros dela
são em uma pequena propriedade rural em Yorkshire.
— Em Bradford Hall?
— Ela foi isolada e não era bem-vinda, ao que os registros da
época dizem. O que quer que tenha feito, não conviveu com a filha.
Nunca viu o neto e morreu cerca de dez anos depois do casamento.
— Ó — Nellie gemeu. — Precisamos ir até lá!
— Nellie! — Grayson resmungou.
— Apenas o diário da minha mãe pode provar que o pai do Conde
era um bastardo. Sem isso, não irá acreditar em mim.
— Não sei no que acreditar — ele comentou enquanto levantava-
se com cuidado. — Deve ter alguma explicação racional para essa
caixinha ou a foto dentro do livro…
— Que eu nasci em 1796 — ela respondeu com um sorriso
cômico.
— Além disso, Nellie.
— Vou olhar o quarto de minha mãe. Poderia me levar a Yorkshire
caso não esteja lá?
— Nós combinamos…
— Que se eu não provasse a verdade deixaria me levar para um
médico — ela o interrompeu. — Ainda não provei a verdade. Mas
você está intrigado, não?
— Eu invadi uma casa por você — ele sussurrou.
— Veio até aqui, Grayson. Você quer acreditar. Sabe que não
estou mentindo. No máximo, delirando com algo que acredito de
verdade. Minha pequena caixa de segredos não é o suficiente? —
ela provocou e empurrou com delicadeza a porta ao lado para
encontrar o cômodo vazio. — Sabe se os móveis foram para essa
outra propriedade?
— Não tenho ideia. — Ele deu de ombros. — Meu pai costumava
cuidar do espólio. Não tenho conhecimento profundo do que está
incluído.
Ela balançou a cabeça e caminhou para a escada com cuidado,
com medo de outro acidente. Eles chegaram na parte baixa e
Grayson reparou que Nellie carregava as duas pinturas pequenas em
sua mão e sua caixinha de tesouros.
— Yorkshire é longe, mas ainda é cedo — ele comentou, sabendo
que a acompanharia. Ai, Grayson… a loucura que você se enfiou
por uma mulher.
— Quer mesmo ir? Lembro que foi quase um dia inteiro de
carruagem — ela perguntou. — Posso conseguir um jeito de ir se
não quiser. Acho que agora que sei quem sou, posso seguir sozinha.
— E eu não confio em deixá-la sozinha, querida — ele comentou
derrotado. — De carro é algo como quatro horas. Sei que é
importante para você.
— Obrigada, Grayson. Até mesmo eu me achei maluca quando
lembrei dessas coisas. Sei que é difícil para você acreditar.
Grayson e Nellie chegaram a Yorkshire perto das sete da noite.
Com o anoitecer acontecendo perto das nove, ainda tinham algumas
horas de luz para investigar a casa de Agnes Canning. O empresário
estava dividido entre acreditar na mulher ou achá-la uma lunática
depois do pequeno passeio à Cottage dos Clifton. Nellie conhecia a
casa de Sussex e, pelas últimas horas, havia tagarelado sobre
lembranças e coisas curiosas relativas aos itens da caixinha ou de
sua vida em 1814.
Para o homem, aquilo era uma loucura e preferia manter o silêncio
e colocar os pensamentos em ordem. Tais coisas como viajantes do
tempo não existiam, não é mesmo? Porém… se acreditasse nela,
tudo faria sentido. Dos hábitos e forma de agir ao linguajar e sotaque
diferente. O fato de a história se encaixar enlouquecia Grayson, que
durante as quase quatro horas de estrada refletiu sobre os fatos do
último dia. Não fazia nem vinte e quatro horas que Nellie esteve em
seus braços e que a roubava beijos inocentes.
Era como se a solidão brincasse com ele de novo, trazendo uma
história fantástica para um conto que deveria ser muito mais simples:
ele se apaixonou pela garota, mas agora ela poderia ser uma pessoa
com transtorno mental. Nada poderia ser verdade, com fatos criados
pela cabeça dela, incluindo o relacionamento incipiente dos dois.
Porém, se as coisas aconteceram da forma que a jovem narrava,
abriria mais portas que poderia acreditar: existia magia no mundo?
Algo tão forte que pudesse fazer duas mulheres trocarem de lugar
como Nellie alegava?
— É linda… E está tão parecida com como era antes — Nellie
anunciou quando Bradford Hall apareceu à distância. Era uma
construção suntuosa, com a fachada clara e dois andares que se
destacavam a frente de um jardim. Para a jovem, foi como ver a
propriedade pela primeira vez, o choque e a ansiedade como o dia
que chegou de carruagem nas terras do Conde para o casamento
arranjado.
— Meu pai reformou seguindo os padrões da época. A ideia era
ficar parecida. Nem de longe estava tão decadente como a Casa
Canning, mas a reforma também demorou um par de anos.
— Tenho calafrios só de olhar — ela revelou e olhou para os
dedos de forma tímida, presa em suas memórias. — Lorde Bradford
encarava-me com tanto ódio. Sentia tanto medo do que ele poderia
fazer comigo. Então corri em direção ao jardim…
— Foi como sofreu o acidente?
— Acredita em mim? — ela perguntou, interrompendo-o, e
levantou o queixo para ele, como se o desafiasse a responder. Era
curioso como a mulher tímida e sem opiniões desapareceu ao longo
das semanas.
— Algo mudará se eu falar que não acredito? — indagou jocoso, e
ela deu de ombros.
— Em algum lugar entre a saída do jardim e a entrada das
árvores, eu caí. Era uma noite escura, fria, chovia… Algo como
aquele lugar — ela apontou para a frente da mansão —, mas acho
que existiam mais árvores.
— Infelizmente isso não sobreviveu à força do tempo. Nunca
tivemos parentes afeiçoados a jardins ou coisa parecida. O pouco
que sobrou é como essas áreas externas da casa: bancos, vasos e
algumas plantas rasteiras. — Grayson suspirou e parou o carro,
ainda com o motor ligado, encarando a grande mansão. — Você
quer entrar?
— Ó, não. Esse lugar me aterroriza. É encantador, mas prefiro
manter distância. Nunca quis estar aqui. É linda por fora, mas todas
as lembranças…
— Você lutou para ter memórias e agora se sente oprimida pelo
que tinha esquecido?
— É louco e estranho estar em um outro ano, muito diferente de
tudo o que lembro. Em muitos aspectos, foi uma benção acordar
sem saber quem eu era. Tudo seria mais confuso. Todas as pessoas
que conheço estão mortas, Grayson.
— E se forem memórias falsas?
— E se não forem? — ela rebateu, e ele balançou a cabeça como
um desafio antes de voltar a dirigir através da estrada perto da
propriedade familiar. Seriam mais alguns minutos até atingir a
pequena Cottage que abrigou Agnes Sterling. Ele apertou o volante,
ainda em dúvida sobre o que pensar daquele passeio pelo interior da
Inglaterra.
— O que quis dizer sobre matar o Conde? Ele sofreu um acidente
no porto.
— Minha mãe sempre quis me casar com um homem de título
importante. Esse sempre foi o plano. “Recuperar a honra dos
Sterling”, ela vivia dizendo. Augustus, meu irmão, deveria se casar
com a herdeira norte-americana e eu deveria achar alguém com um
título melhor do que o nosso baronato. Com dinheiro e poder, nós
finalmente voltaríamos a ter o destaque de quando o título foi criado.
Era um dos mais antigos da Inglaterra. Você disse que foi extinto,
certo?
— Por falta de herdeiros — ele concordou com a cabeça. — Mas
isso não fala nada sobre a morte de Stephen Canning.
— Quando meu irmão morreu, foram-se também os sonhos da
minha mãe. Eu fui treinada para ser uma dama excepcional, com
todos os talentos necessários para cumprir minhas funções. É por
isso que sei tocar piano tão bem — ela completou com um
movimento das mãos. — Meu pai me deixou um bom dote e o primo
Horace não se opôs à minha busca por um marido. Na verdade, acho
que ele só prometeu não se meter no caminho.
— Eleanor se casou com Stephen, então o plano deu certo.
— Se acalme! — ela censurou e continuou seu relato. — Não
cheguei a ser apresentada à rainha. Mamãe tinha outros planos, e
começamos a perseguir um punhado de solteiros que considerava
adequados. O Conde foi um deles, mas não parecia interessado.
Nós o perseguimos até uma festa em uma casa de campo. Mamãe
queimou todas as suas conexões para saber se ele estaria ou não lá.
Foi como eu soube sobre Edmund Canning.
— O irmão do Conde?
— Não sei como ele e minha mãe se tornaram confidentes, mas
se uniram para um destino em comum: a fortuna do Conde.
Precisava me casar com Lorde Bradford, ter certeza de que ele iria
para seu “destino final”, e voltar a me casar com o novo nobre.
Edmund, no caso. Para garantir que a boda acontecesse, ele
entregou uma carta para minha mãe que revelava que o pai do nobre
era um bastardo. Minha mãe primeiro criou uma indiscrição, depois
chantageou Lorde Bradford, e o casamento foi marcado. É por isso
que é importante achar o diário, ela costumava relatar tantas
coisas…
— Que tipo de indiscrição? — Grayson a interrompeu.
— Eu… Bem, eu… — ela começou e parou, como se estivesse
sem jeito de falar. — Minha mãe me pediu para usar uma camisola
diáfana, tão transparente que era possível ver meu corpo através, e
me fez deitar ao lado dele. Era o escândalo perfeito.
— Algo aconteceu? — o empresário perguntou chocado,
encarando a mulher por um instante antes de voltar a colocar os
olhos na estrada.
— Edmund colocou algo na bebida do Conde. Estava dormindo
quando fui levada até ele.
— Isso tudo é tão absurdo…!
— Eu sei. Participei de um assassinato. — Ela suspirou cansada.
— Disse tantas vezes à minha mãe que não queria, mas não tive
força o suficiente para me negar. A história diz que cumpri meu papel
e me casei com Edmund, logo o Conde foi assassinado como o
planejado e nunca ninguém soube sobre o acidente.
— Você e Edmund…?
— Não! — Nellie exclamou. — Se tinha medo do Conde, tinha
pavor do irmão. Parecia como um animal peçonhento se esgueirando
pelos cantos. Eu sabia que ele queria me desonrar e tentou ficar
sozinho comigo algumas vezes, mas mamãe me manteve protegida
dele. Eram duas pessoas em busca de um resultado: a morte de
Stephen Canning.
— É uma história muito incrível para acreditar, Nellie. O que o
irmão do Conde e Agnes Sterling teriam em comum? Não há nada
que ela pudesse prometer que o convencesse a revelar algo assim.
Ele poderia ser morto por conspirar contra um nobre.
— O que quer que tenham combinado, foi o suficiente para
ambos. Eles estavam juntos e conversando na noite do casamento.
Não tenho ideia de como o Conde não percebeu que tipo de pessoa
era o irmão.
— Tem gente que ama demais a família. — Ele suspirou e deu um
sorriso trêmulo. — Faria qualquer coisa para ter os meus pais de
volta, mesmo que tivessem cometido crimes ou qualquer falha.
— É terrível de se dizer, mas eu não. Gostaria de ver Augustus,
talvez meu pai, apesar de não me lembrar de nenhum momento que
tivemos alguma relação paternal. Agora, minha mãe… Posso dizer
que fico feliz por ter colocado dois séculos de distância de Agnes
Sterling. Sofri em suas mãos e sei que isso não absolve meus
crimes. Não sei quem sou sem sua sombra.
— É claro que sabe. Você tem vivido assim nas últimas semanas
— Grayson falou e encarou a frente com um sorriso leve nos lábios.
— Veja, estamos chegando perto.
— Ela viveu tão perto de Bradford Hall!
— Mantenha seus amigos perto, e os inimigos ainda mais perto —
o executivo sussurrou. — Se Edmund nunca deixou Agnes chegar
perto da filha ou do neto, significa que eles não tiveram um acordo
para sempre.
Alguns minutos depois, Grayson estacionou em frente à pequena
casa. Era uma construção que parecia uma propriedade de caça,
com poucos cômodos e afastada o suficiente para não incomodar a
grande mansão. O empresário não sabia o que poderiam achar ali
porque, como a propriedade maior, a Cottage havia passado por
reformas. Apesar de não receber visitação, profissionais
reconstruíram as estruturas e reformaram tanto os móveis como as
partes internas.
— É triste que ela tenha terminado aqui — Nellie comentou. —
Apesar de que poderia ter um final de vida pior se tivesse sido pega
pelo assassinato do Lorde Bradford.
— Venha — Grayson ofereceu e abriu a porta, tomando cuidado
para não fazer barulho. Ele não havia notificado a ninguém sobre sua
presença na propriedade e não queria chamar atenção sobre a visita
à casa anexa a Bradford Hall. — Entre. É pequena…
— Também reformaram? — ela perguntou desanimada. — Parece
tudo tão novo.
— Infelizmente. Se tivesse algum diário escondido aqui, teriam
encontrado na reforma e notificado.
— Então por que viemos aqui, Grayson? Se sabia sobre isso, por
que me acompanhar até Yorkshire?
— É importante para você. Achei que vendo que não tinha nada
aqui poderia se convencer que… — ele parou e examinou-a com
seriedade. — Quando voltarmos a Londres, talvez com ajuda
profissional consiga superar essas memórias.
— VOCÊ É UM IDIOTA, GRAYSON CANNING! — Nellie gritou e
colocou a mão na boca, como se não estivesse acostumada a ter
essa reação. — Eu vou… vou procurar o quarto.
— Nellie, espera — Grayson pediu e a seguiu quando ela não
parou de andar. Como era uma casa pequena, o quarto estava
próximo da sala principal, separada no outro extremo pela cozinha
por um pequeno quarto onde deveria ficar algum empregado. — Só
quero o melhor para você!
— Os móveis são os dela! — a jovem exclamou ao encontrar no
quarto o armário, cama e escrivaninha da mãe. — Talvez eu saiba
onde o diário está.
— Nellie… — Grayson sussurrou com preocupação e parou à
porta, observando a mulher se abaixar na escrivaninha e tatear a
parte de baixo com cuidado.
— Quando eu era criança, mamãe pediu para que mexessem em
sua escrivaninha. Tinha medo de que as criadas encontrassem
documentos de família. “Segredos podem custar muito”, Agnes
sempre dizia. Lembro de brincar perto desse móvel e consegui abri-
lo. Vi um colar tão lindo, de pedras verdes brilhantes… — Ela
suspirou por alguns segundos. — Ganhei esse colar na noite do
casamento. Ele estava no meu pescoço quando sofri o acidente.
— E então? — Grayson questionou, esticando-se enquanto
acompanhava a garota fazer um contorcionismo sob a madeira. —
Qualquer compartimento secreto já deveria ter sido achado na
reforma. Nellie…
— Não esse — ela respondeu vitoriosa e puxou a mão de um dos
cantos do móvel. Grayson encarou chocado no momento que um
pequeno caderno preto surgiu entre as mãos de Nellie. — Precisava
de um determinado movimento para abrir e eu espiei minha mãe mais
vezes do que poderia contar para saber como fazê-lo.
— Acha que é…? — ele perguntou e engoliu em seco, curioso
com seus pensamentos. Se ela sabia sobre aquilo, significava que…
— Ó, Grayson, é a letra de minha mãe! — Nellie anunciou quando
abriu o caderno, tomando cuidado para não rasgar as páginas. Um
soluço cortou sua garganta ao ver a caligrafia familiar. Apesar dos
horrores com Agnes Sterling, Eleanor guardava algum carinho pela
mãe.
— Não chore…
— Acredita em mim? — ela disse com a voz embargada, e o
homem puxou-a para um abraço.
Nellie continuou nos braços de Grayson e passou as páginas do
objeto em suas mãos, como se lesse rapidamente o conteúdo antes
de passar para a seguinte. Eles permaneceram naquela posição por
minutos, cada um absorto em seus próprios pensamentos.
Enquanto a jovem tinha sua atenção voltada para o que estava
lendo, o executivo vivia a confusão dos últimos acontecimentos.
Aquela história era fantástica demais para apenas acreditar ou não,
e Nellie não tinha motivos para mentir. Seria ela uma viajante do
tempo? Grayson pensou com confusão. Ele já não entendia nada do
que estava acontecendo, depois de todos os esconderijos e
segredos que revelou a ele em Sussex e naquela casa.
— Olhe! — Eleanor apontou para a passagem, ainda com um
suspiro sentido, como se tentasse segurar as lágrimas para não
prejudicar o caderno em suas mãos. — Aqui está. Ela diz que
encontrou Edmund e o ofereceu um jeito de se livrar do Conde sem
que ninguém nunca pudesse saber a respeito, que garantisse que
nada fosse investigado. Vê? Diz que o antigo Lorde Bradford era um
bastardo! Eu falei, Grayson. Eu disse!
— Agnes foi a responsável pelo acidente no porto?
— Não sei. Diz que tem algo que pode ajudá-la, mas não explica
bem o que era. — Nellie suspirou com irritação. — Fala como se não
valesse nada a vida do homem. Ele era um meio para um fim.
— Para ela era, querida. Se queria riqueza… — Nellie balançou a
cabeça e estendeu o diário para Grayson. Ele passou os olhos pelo
texto, percebendo que tudo que a garota havia falado era real. O
plano, a real origem dos Canning… Aquilo poderia mudar tudo para o
título dos Bradford.
— Ela narra tantas coisas com riqueza de detalhes. Para quem
falava tanto em segredos, guardá-los em um diário não parecia
correto — a mulher comentou. — Ninguém tinha vontades maiores
que Agnes Sterling. Comandava tudo dentro da casa. Do jeito que
deveria pentear meu cabelo à forma que deveria falar com os
empregados. Por anos, controlou cada pequena parte de mim.
— Talvez quisesse apenas tirar coisas de seu peito ou precisasse
se gabar, por mais atroz que fossem seus atos — ele ofereceu a
explicação. — Tome. Eu acredito em você, mas o que fará agora?
— Acredita? — ela respondeu com um olhar de felicidade,
deixando o diário cair no chão pela emoção.
— Ainda será um longo caminho até entender o que está
acontecendo, mas não parece com maquinações de uma mente
confusa. Olhe tudo que achamos ao longo das horas… É impossível
que seja uma coincidência. Não sei como encarar isso, mas…
— Obrigada pelo voto de confiança — Nellie agradeceu e deu um
beijo leve nos lábios de Grayson. Ela podia ver seu ar confuso. Eram
informações demais de uma história que desafiava a lógica.
A mulher olhou o diário no chão e enrugou a testa com as
palavras. Agachou-se, estudando as páginas com atenção, e pegou
o diário em suas mãos, a atenção voltada para o conteúdo ali
presente.
— O que foi?
— O que falou sobre a família de Ellen ser de Sussex? — Nellie
perguntou com a página do diário aberta em suas mãos.
— Que o detetive disse que encontrou registros da família Morris.
— Agnes diz que resolveu a questão de Clara Taylor com Gilbert
Morris — Nellie explicou ao mesmo tempo que apontava para o livro
em suas mãos. — Era um nome comum?
— Clara Taylor… De onde eu vi esse nome? — Grayson
murmurou mais consigo mesmo do que com a garota.
— O que está dizendo? — Eleanor perguntou.
— Esse nome, eu já vi em algum lugar — Grayson respondeu.
Sua intuição dizia que não fora naquela propriedade. Ahh, sim! Ele
pegou seu celular e abriu a imagem, mostrando para a mulher.
— O que isso significa? — ela questionou apontando para o
documento digitalizado.
— Essa é a árvore genealógica de Ellen Morris. Clara Taylor se
tornou Clara Morris em 1809 e deu à luz a um menino chamado
Albert no ano seguinte. Qual era o problema com Clara?
— Ó, meu Deus! — Nellie exclamou depois de encarar por alguns
segundos a página anterior do diário e virá-la mais uma vez, como se
quisesse conferir o que realmente estava lendo. — Clara esperava
um filho de Augustus! Deus! Algum antepassado de Ellen é um
Sterling bastardo. Talvez seja a minha única parente viva! Não
existem outras pessoas, não é? Você procurou!
— Será esse o motivo de você estar no corpo de Ellen?
— E para onde ela foi se isso for verdade? — Nellie perguntou
com os olhos abertos em choque, como se pela primeira vez
percebesse o que estava acontecendo. — Grayson, eu troquei de
lugar com Ellen? Ela está com o Conde nesse momento? Meu
Deus… Meu Deus!
— Grayson, o que podemos fazer? — Eleanor perguntou nervosa.
Ela caminhava de um lado para o outro no chalé. — Não posso
deixar… Eu fugi com medo do Conde e condenei Ellen! Sou uma
pessoa horrível!
— Você não tem como ter certeza — ele racionalizou.
— E o que teria acontecido? Se estou aqui, com o corpo de Ellen
Morris, a vida dela, é óbvio que está no meu lugar. Ou isso ou ela…
morreu no acidente, mas não faz sentido. — Ela suspirou. — Não
pareço coerente, mas nem sequer sei o que me trouxe para cá!
— O que se lembra do acidente?
— Eu já falei. A chuva, correr, cair e me machucar. A última coisa
que pensei foi que não queria estar no mesmo lugar que o Conde ou
minha mãe, que não queria… Ó, Deus, eu desejei vir para cá! — ela
exclamou alarmada e colocou a mão sobre a boca em choque.
— Esses desejos não existem. Como uma estrela cadente ou
qualquer coisa. Simplesmente não existem.
— E nem viagens no tempo! — Nellie comentou irritada. — Nunca
ouvi falar disso até chegar aqui. Na televisão, na estante, parece um
assunto que fascina as pessoas no presente, mas ninguém falava
sobre viagens no tempo em 1814!
— Nellie, respire! — Grayson pediu. — Se você veio mesmo para
cá, a possibilidade é que você e Ellen trocaram de lugar, entendo seu
ponto. Mas talvez ela possa ter causado, já pensou nisso? Como
você pode controlar o que te trouxe aqui? Talvez você só tenha se
perdido em meio a alguma ação de Ellen.
— E o que pode me levar de volta? E se voltar da mesma forma
que cheguei? Preciso saber! Grayson, não quero voltar para lá. Aqui
posso ser feliz… — ela anunciou com a voz aguda. O executivo
puxou-a para seus braços, tentando dar algum consolo, embalando-a
em um abraço apertado.
— Nós vamos descobrir. Ninguém vai te obrigar a voltar para um
lugar que tem medo.
— O destino pode fazê-lo e nada vai impedi-lo. Não tenho ideia de
como vim parar aqui! Preciso descobrir se quero ter algum poder de
decisão.
— Nós precisamos. Não está sozinha nisso — ele falou e segurou-
a pelo rosto, depositando um beijo suave nos lábios da mulher. —
Também precisamos ir embora. Já vai anoitecer e aqui não tem luz
elétrica. Sem contar que ninguém sabe da nossa presença. Vamos
arranjar um hotel, analisar esse diário com mais calma e pensar no
que fazer. Você é uma lutadora, Nellie.
— Pode me chamar de Eleanor… É meu nome.
— Você é a minha Nellie, já falei isso para você — ele respondeu
com um sorriso carinhoso e entrelaçou seus dedos aos dela,
caminhando em direção ao carro.
— Estou morrendo de fome.
— Nós saímos com tanta pressa. Foi um dia… curioso.
— Deus! Mary está sozinha no apartamento! Estamos do outro
lado do país.
— Vou pedir alguém para verificar.
— Obrigada, Grayson. Sem você…
— Nós vamos resolver suas preocupações, uma a uma, querida.
É uma promessa.
Grayson esperou Nellie se ajeitar e deu a partida no carro à
procura de um hotel na pequena cidade rural. Conforme deixavam
para trás Bradford Hall, as casas e pequenos comércios se
delineavam pelas ruas, destacando um condado com características
de séculos antes. Talvez do tempo de Nellie, o empresário pensou.
Ele continuava confuso, mas daria um voto de confiança para a
jovem. As coisas faziam sentido apesar do ceticismo dele, e a
viagem no tempo explicava mais coisas das últimas semanas do que
todo o resto que viveram.
Um par de minutos depois, o homem estacionou em frente a uma
pousada com parede de tijolos em uma estrutura que parecia ter
sido uma mansão em um tempo anterior. Era bonita como um hotel e
seria suficiente depois das muitas horas de estrada ao longo do dia.
— Peça apenas um quarto — Nellie pediu assim que saíram do
veículo, do lado de fora da hospedaria. Grayson encarou-a com
espanto, e a mulher deu um sorriso cúmplice e um pouco
envergonhado.
— Como?
— Deus… Parece que faz um século, mas me senti bem dormindo
com você noite passada. Depois de hoje, queria descansar em seus
braços. Não quero ficar sozinha e pensar em tudo isso.
— Tudo bem — ele replicou com um sorriso discreto que
destacava suas covinhas. — Como se sente por oficialmente ser
uma dama rebelde do século 19? Uma dama rebelde do século 19
que vai dormir nos braços de um cavalheiro que não é seu marido?
Nellie abriu o sorriso maior e balançou a cabeça, negando-se a
responder. Grayson piscou para ela e estendeu a mão. Juntos,
caminharam para dentro da pequena pousada.

— É tudo tão bonito por aqui. Quase como se tivesse parado no


tempo — Nellie comentou quando terminaram de comer e Grayson
pagou a conta.
Depois de conseguir o quarto no hotel, ambos saíram para a
cidade e pararam em um pub a poucos metros da pousada. Tanto
Grayson quando Nellie estavam exaustos pelo dia: uma descoberta e
duas viagens a cada ponta do país. Por mais que estivessem
curiosos sobre o conteúdo do diário e quisessem conversar mais
sobre como Eleanor foi parar naquela realidade, havia instintos mais
básicos como a fome e o sono para alimentar. No dia seguinte as
coisas ainda estariam ali e eles estariam mais descansados para
entender os mistérios envolvendo a senhorita Sterling.
— Como sua época?
— Acho que não existiam restaurantes. Ou, se existiam, eram
pouco frequentados por damas. Havia as casas de chá com
confeitarias, mas nada como isso, uma refeição completa.
Cavalheiros comiam em clubes, isso eu sei. Augustus vivia falando
sobre coisas suntuosas que degustou enquanto esteve fora no Grand
Tour.
— Seu irmão conseguiu viajar para fora mesmo com o título
perdendo dinheiro? — Grayson perguntou chocado.
— Minha mãe fez questão. O Grand Tour era exclusivo e realizado
pelos filhos da aristocracia, e se algo pode-se dizer sobre Agnes
Sterling é que ela faria tudo pela aparência, inclusive nos endividar
para que meu irmão conhecesse Veneza — Nellie respondeu com
uma ponta de veneno na voz, como se sua vida anterior a irritasse
profundamente. O empresário encarou-a confuso, porque a mulher
era doce em quase todo o momento.
— Achei que não fizessem mais depois do começo da guerra com
Napoleão.
— Augustus não foi à França, mas passou dois anos entre
Veneza, Florença e Roma. Ele adorou, e eu, bem, fiquei em casa.
Mesmo fugindo de toda a confusão da guerra, ele ainda conseguiu
aproveitar os lugares.
— Você nunca foi além dos muros da casa em Sussex, não é? —
Grayson perguntou compreensivo.
— Apenas com minha mãe, para festas, casas de campo e, é
claro, para Clifton Hall, que também fica no condado. Por isso não
fazia sentido ir a Londres. Lembro que estava nervosa por pisar ali
pela primeira vez e de repente já estava lá? Mas era isso a minha
vida — ela concluiu e deu de ombros. — Apenas jantei com algumas
pessoas, em casas, através de convite. Nunca em locais como esse.
Se existiam em minha época, não poderia dizer.
— Fico feliz que esteja aqui, Nellie. Há tanto que pode fazer
agora, como você mesma ir à Itália.
— Itália? — ela indagou confusa.
— Ah, Nellie… Já estou me acostumando a você nesse tempo,
usando calças, que esqueço de algumas coisas. Itália é o conjunto
de alguns reinos como Veneza, Florença, Roma e outros. Todos
viraram um mesmo país. É louco como isso aconteceu depois do seu
tempo, quase no final do século 19, eu acho.
— A cada dia tenho coisas novas a aprender, por mais que
suponha que já vi tudo. Acho que será para sempre assim. — Ela
sorriu. — Mas você tem razão. Aqui e agora, eu mesma posso fazer
meu Grant Tour. É bom saber que posso viajar sozinha, não ser
obrigada a me casar com ninguém, ter um emprego! Minha mãe
morreria de vergonha!
— Você pode fazer o que quiser, querida — Grayson respondeu
com olhos afetuosos.
— Você finalmente acreditou, não é? — ela perguntou de repente,
encarando Grayson com seriedade. — Que não sou daqui, que sou
do passado — a jovem continuou, sussurrando a última parte e
olhando ao redor.
— São coisas demais. — Ele suspirou, rendido. — Ainda parece
louco, mas decidi viver com esse conhecimento. Sinto que a qualquer
momento podemos descobrir que você só bateu a cabeça e que tudo
não passa de uma grande coincidência, que como Ellen você visitou
Sussex, investigou sua família e absorveu uma história do passado.
— Mas…
— Acalme-se. — O empresário fez um movimento com as mãos,
interrompendo-a. — Ao mesmo tempo que quero buscar desculpas,
olhe o que aconteceu durante todo o dia: o esconderijo na casa de
Sussex, o diário… Tudo que ouvi de você nas últimas semanas.
— Sinto-me culpada por Ellen. Não sei como resolver.
— O que gostaria de dizer a ela?
— Que sinto muito por deixá-la com Stephen. Que fugi por medo e
condenei-a em meu lugar.
— Você não tem controle sobre como veio parar no futuro, Nellie.
— Mesmo assim. É uma culpa que vou carregar. Minha mãe
armou o plano, eu sabia de tudo. Não fiz nada para me opor à morte
de um homem! Ele parecia zangado, tinha medo de que descontasse
com os próprios punhos, sabe?
— Apesar de ainda acontecer muito, existem meios de denunciar,
conseguir justiça.
— Aqui, mas não em 1814. Entende por que me sinto culpada?
— Você pode ter nascido lá, mas seu lugar é aqui — ele consolou,
tentando aliviar o semblante derrotado da jovem. — Precisou de
duzentos anos, mas veio para mim. Sem você aqui, não teríamos nos
conhecido.
— Grayson! É sério. Eu não fui uma pessoa boa. Nunca teria as
chances do seu mundo…
— Do nosso mundo — Grayson a interrompeu. — Enquanto
estiver aqui, é seu também.
— É culpa. Sinto-me culpada por ter desejado fugir naquela noite.
Fechei os olhos e pedi tanto. Enviei uma mulher para um ano onde
ela sofreria na mão do marido sem ter como lutar de volta.
— Escreva isso, Nellie. Quando voltarmos para casa, sente-se e
escreva uma carta. Coloque seu coração nisso. É possível que Ellen
nunca leia, mas pode ajudá-la a colocar a cabeça no lugar.
— Talvez possa conversar com alguém — Eleanor completou
incerta.
— Agora quer falar com um terapeuta?
— Todos me falaram que pode me ajudar, inclusive Alexa. — Ela
riu. — Como sei meu passado, posso controlar o que dizer ou não. O
que pode me fazer parecer louca.
— Terá muitas decisões a tomar quando voltarmos para Londres.
Se quer voltar para a Casa Canning, procurar um novo emprego,
voltar para seu apartamento. Tem uma vida de opções, querida.
Nellie e Grayson caminharam de volta para o quarto alugado. O
empresário estava temeroso sobre a reação da jovem ao perceber
que, mesmo por escolha própria, ambos dividiriam uma cama. Ele se
sentia mais agitado do que Eleanor. Ela parecia serena enquanto
contava curiosidades sobre sua infância, e ele ouvia parcialmente,
nervoso pelos minutos seguintes quando estaria sozinho com ela.
— Quer dormir com seu vestido ou quer minha camiseta? — ele
perguntou assim que fechou a porta. — Não sei se será confortável.
— Está tentando me convencer a vê-lo de peito nu, senhor
Canning? — Nellie questionou brincalhona.
— Nós já entendemos que você tem um fascínio por me ver sem
camisa, senhorita Sterling.
— É engraçado quando diz meu nome. — Ela deu um sorriso
suave. — Se não se importar. O vestido aperta minha cintura e os
botões são incômodos.
— Muito bem. — Ele arrancou a peça de roupa sobre a cabeça,
estendendo-a para a mulher.
— Eu vou… vou tomar banho — ela gaguejou, apontando para o
banheiro e observando a extensão de pele exposta do homem antes
de baixar o olhar para o chão.
— Nunca é cansativo. Sua reação é sempre fascinante. — Ele riu
com satisfação e se aproximou dela, colocando o dedo embaixo do
queixo. — Você me incendeia apenas pela forma que me olha.
Dormir a seu lado, tê-la nos braços, é um tormento. Quero senti-la
nua contra mim, sua pele se arrepiando ao meu toque, seus
pequenos gemidos de prazer. Mas sei que também tem seu tempo,
Nellie.
— Me desculpe. Podemos conseguir um outro quarto se te
incomoda.
— Não é isso e você sabe — ele completou em um sussurro.
— Eu… — ela começou e parou, engolindo em seco e procurando
por palavras que pudessem demostrar o que estava sentindo. O
coração batia forte em seu peito e suas mãos suavam pela
proximidade dele. Nunca tinha se sentido dessa maneira. — O que
você me faz sentir me confunde. É reprovável, não? Uma mulher não
deveria ter a necessidade de estar perto de alguém como eu quero?
Você me causa isso. Não consigo me entender, Grayson.
— Gosto de beijá-la, tocá-la, de tê-la por perto. Mas será até
onde você queira ir. Não vou forçá-la a nada, mesmo querendo,
desejando… — ele completou e encarou os lábios da jovem com
fome, como se precisasse da boca de Nellie na sua antes que
morresse pela necessidade. — Vá trocar de roupa. Depois falamos
disso. Você não está…
Ela encurtou o caminho por ele, interrompendo-o. Eleanor se
agarrou ao homem em um movimento suave, porém meio
desesperado, como se brigasse internamente com seus sentimentos
represados. Ele saboreou os lábios de Nellie, aprofundando-se entre
eles enquanto sentia o toque leve dos dedos em seu peito. Ela
sempre teve encanto por seu torço nu e era a primeira vez que
conseguia tocá-lo. Grayson a conduzia com lentidão, como se desse
tempo para a mulher protestar pelo gesto íntimo.
Eleanor sabia que algo estava acontecendo com o empresário. O
coração do executivo batia contra seu peito, fazendo a vibração
ecoar em seu corpo. Ela também percebia algo entre as pernas
dele, crescendo onde não havia nada antes. Apesar de ter sido
criada na completa ignorância, sabia como acontecia na natureza
graças aos animais do chalé de Sussex. Os machos cobriam as
fêmeas em um processo de acasalamento, como sua dama de
companhia explicou constrangida certa vez. Era assim que acontecia
entre homens e mulheres? Ela o abraçou ainda mais, tentando
participar do beijo. Ele entendeu o movimento e acelerou, devorando
os lábios da jovem enquanto a sentia responder com timidez a cada
um dos estímulos.
Os dedos de Nellie desceram curiosos pela pele, e Grayson
gemeu em resposta. Sentia-se poderosa de conseguir uma resposta
apenas com a carícia leve. Sorriu. Ela sabia que as mulheres tinham
medo daquele momento, mas tudo que experimentava era prazer de
estar na companhia dele. Quando a cabeça de Eleanor começou a
pensar sobre como tal ato só acontecia entre casados, Grayson
girou o corpo de ambos, fazendo-os cair sobre a cama sem soltar
seus lábios do dela.
— Tudo bem? — perguntou suave quando escorregou pelo
pescoço de Nellie, distribuindo suaves beijos. Ela não podia
perceber, mas se contorcia abaixo dele, como se buscasse alívio
para seu corpo não satisfeito.
— Não sei o que esperar — Eleanor sussurrou em resposta com
seus dedos acariciando o rosto de Grayson, como se tentasse
memorizar os contornos suaves. Seus olhos tinham fogo, e ela se
inclinava para ele, empenhando-se em não perder o contato entre
eles.
— Quer parar por aqui? — Grayson indagou e deu um beijo
carinhoso em seu queixo, acompanhando cada uma das expressões
da mulher. Ele sabia que ela sentia medo e que era apegada às
tradições com que foi criada.
— Não estou preparada para tal intimidade — ela explicou, os
braços ainda presos ao pescoço de Grayson, como se não quisesse
que o homem se afastasse dela.
— Tudo bem, não precisamos fazer nada.
— Mas nós já fizemos — ela replicou com um fio de voz. — Estou
aqui, abraçada com você. Está quase nu, Grayson, e não quero
deixá-lo ir. Quero ficar aqui para sempre. Gosto de beijar você, e a
forma como fez hoje foi… Me fez querer mais disso.
— Muito bem. — Ele se esticou, dando mais um beijo. — Nós
podemos ficar aqui, não é um problema.
— Eu só… — a mulher hesitou, e Grayson encarou seus olhos
esmeralda com profundidade, esperando-a continuar. — E se eu
quisesse mais?
— Até onde você quiser ir, querida. Eu prometi.
— Tire meu vestido — ela pediu e fugiu do seu olhar com
vergonha.
— Tem certeza?
— Gosto do jeito que me olha. Gosto de olhar você sem
camiseta, eu pensei que você… Mas se não quiser…
— Seus desejos são ordens — ele respondeu com um sorriso e
desabotoou os botões da frente de forma lenta até descobrir o corpo
da mulher. Tinha toda a pele vermelha de timidez e excitação, ao
mesmo momento que ele analisava cada pedaço de Nellie. Ela
estava nua. — Sem calcinha?
— Não consegui me acostumar — ela confessou envergonhada,
fugindo do olhar dele. — Nunca usei e não me sentia confortável.
— Muito bem — Grayson disse, sem tirar os olhos dos dela. O
empresário sentia os músculos tremerem e estava tão excitado que
se perderia a qualquer momento.
— Me beija de novo?
— Onde?
— Onde? — ela indagou confusa e recebeu como resposta um
sorriso travesso.
— Eu posso beijar seus peitos se quiser… E outros lugares.
— Pode? Como nos livros?
— O que você quiser — ele completou, curioso sobre o que ela
andava lendo, e Nellie balançou a cabeça em afirmativa.
Grayson abaixou o rosto no seio esquerdo de Nellie, lambendo e
chupando com delicadeza. Como reação, a mulher puxou os cabelos
pretos do homem em sua direção, fazendo-o rir por sua urgência.
Quando foi para o outro peito, a jovem virou o rosto em direção ao
braço masculino, dando uma mordida suave, como se tentasse
manter-se quieta e não conseguisse.
— Você pode gritar, meu amor.
— Mas vão nos ouvir, eles vão saber — ela explicou sem fôlego,
os olhos acesos como duas esmeraldas.
— Somos só você e eu, Nellie. Agora e para sempre — ele
respondeu e buscou os lábios dela com sofreguidão, saboreando-a
com desespero quando sentiu a jovem colocar as pernas ao redor da
sua cintura. Apenas a calça evitava que Grayson entrasse na mulher,
uma peça de roupa separando-os do objetivo máximo.
A respiração de Eleanor acelerou ainda mais enquanto soltava
gemidos entre os beijos do executivo. Ela tentou se impulsionar
contra ele e percebeu que, de certa forma, aquele movimento
aliviava a pressão que sentia em seu peito, a necessidade tangente
dentro de si. Nellie sentia-se sendo levada a algo, os suspiros de
Grayson em seu ouvido, a pele se arrepiando a cada novo contato,
sensível em todos os sentidos até esmagá-la por completo. Eles se
abraçavam como se pudessem se fundir em um a qualquer
momento, bebendo dos lábios um do outro com loucura e ferocidade.
Nellie estava tomada por uma energia que nunca percebeu antes,
sua voz saindo sem força. Tremeu entre os braços dele, a pele se
arrepiando e a vista se transformando em uma série de pontos
pretos. Sentia-se como uma lâmpada iluminando, o prazer saindo de
seus poros da forma mais crua que poderia existir. O homem
impulsionava contra ela, cada vez mais rápido e mais duro, até
gemer baixo, em um som gutural abafado pelo ombro de Eleanor. Ele
gozou em sua cueca como um adolescente, mas não trocaria
aqueles segundos por nada. Vê-la chegar ao orgasmo, senti-la junto
a seu corpo ao atingir o clímax… Grayson queria mais daquilo.
Sempre. Para sempre.
— Está bem? — ele perguntou, e Nellie puxou o rosto dele para
dar um beijo suave nos lábios ao mesmo tempo que balançou a
cabeça sem fôlego.
— Como se chama isso que aconteceu agora? — a jovem indagou
enquanto jogava a cabeça contra o travesseiro.
— Um orgasmo — ele respondeu com um sorriso.
— Alexa falou a respeito, e li em alguns livros naquele aparelho
que você me deu…
— No Kindle?
— Isso — ela continuou sem fôlego. — Mas experimentar é
diferente de ler a respeito.
— Ora, Nellie, você está lendo romances com sexo! — ele brincou
com um sorriso e girou o corpo para abraçá-la em uma posição mais
confortável. — Não esperava por isso.
— E eu não esperava por você — ela disse em um tom sério. —
Nós podemos continuar a fazer isso?
— Nós podemos fazer o que quiser — ele explicou, encarou-a nos
olhos. — Estou atraído por você, Nellie. Eu diria mais do que isso
até. Não consigo parar de pensar em você, no seu beijo, no seu
gosto.
— Não sou feita para esse tipo de relacionamento, Grayson. Fui
criada para me manter casta até o casamento. Gosto de beijá-lo e
de estar perto de você, mas é tão estranho. Gosto de sair com você,
de caminhar por aí de mãos dadas. Mas cada vez que vamos mais
longe… — Ela hesitou antes de continuar: — Quando voltarmos a
Londres…
— Se quiser ficar em seu apartamento, está tudo bem. Quer
encontrar independência. Nunca tiraria isso de você — ele comentou
em um tom suave. — Mas não pense, nem por um minuto, que vou
deixá-la se afastar de mim.
— Mas e se eu voltar do mesmo jeito que cheguei? Se uma
manhã já não tiver mais aqui? Não vale a pena, Grayson. Quero
ficar, mas talvez não consiga.
— Você vale, meu amor — ele respondeu e colocou a palma da
mão no rosto de Nellie, com um carinho suave em sua bochecha. —
Não vou deixá-la se afastar. Nós vamos descobrir um jeito. Juntos.
— Você não tem poder algum sobre isso, nem eu mesma tenho —
ela completou em um tom triste.
— Agora não está mais sozinha. Vamos entender isso tudo, eu
prometo.
Grayson encarou Nellie deitada em sua cama e pensou que não
poderia ver nada mais perfeito. Ela estava ali, nua, com a respiração
agitada e vulnerável. A partir da noite no hotel, eles brincavam com o
corpo um do outro, reconhecendo cada reação, mas nunca indo mais
longe do que ela gostaria. Ele prometeu e cumpriria, mesmo
sofrendo por tê-la.
Desde a volta de Yorkshire, Eleanor estava disposta a dar uma
nova guinada na vida para se adaptar à rotina no presente. Para
desespero de Grayson, ela decidiu que era o momento de voltar
para o apartamento de Ellen e aprender a viver sozinha. Sentia-se
egoísta por querê-la com ele, mas seu peito enchia-se de orgulho.
Em menos de um mês, não só começou a lidar com tudo que uma
jovem mulher do século 19 jamais passaria, como ter uma conta
bancária e pagar gastos, mas também conseguiu um novo emprego.
Ela entrou em contato com o conservatório e começou aulas de
música. Os professores ficaram tão impressionados com o talento
que passaram a indicá-la para dar aulas para pianistas iniciantes.
Era a forma que “Ellen Morris” estava mudando sua carreira e
deixando de lado a formação em história.
Grayson também não sabia ao certo se ela notava que, apesar de
ainda ter hábitos diferentes, agia cada vez mais como uma moça
moderna, usando roupas mais curtas, maquiagem e o cabelo sempre
solto. Em uma noite, Eleanor confessou que se sentia livre e feliz
pelo apartamento em Camden porque, apesar de gostar da
companhia do empresário, antes parecia que dependia dele todo o
tempo. A cada nova semana desde a mudança, era mais sobre o
relacionamento dos dois do que sobre a forma com que ele a
protegia naquela nova realidade. Nellie queria proteger-se sozinha.
Ele estava feliz em atraí-la para seu imóvel, dividir um jantar e se
perder no corpo um do outro. Grayson começou as aulas de culinária
prometidas e falava com a mulher mais vezes do que poderia contar.
Nicolas adorava tirar sarro de quão apaixonado o chefe parecia e de
como passou a sair mais cedo do trabalho e não trabalhar aos finais
de semana. Ele a levava para restaurantes e passeios, ligava e
mandava mensagens, e estava sempre presente na vida da jovem.
Eles tinham algo especial, e o herdeiro dos Canning sabia que estava
apaixonado. Grayson a amava.
— Está tudo bem? — Nellie perguntou, tirando o empresário de
seus pensamentos.
— Acordei muito cedo, mas não queria perturbar você — ele
confessou com um sorriso suave, e ela beijou os lábios dele com
delicadeza.
— E seus braços não estão dormentes de me segurar?
— Eles podem cair e ainda assim não vou deixar de abraçá-la —
Grayson respondeu com uma risada.
— Tem alguma reunião cedo?
— Não. Nicolas acha que virei um molenga por querer trabalhar
em horários normais. Alguém é a culpada por estar me deixando
cansado e com vontade de fazer mais coisas além de cuidar da
empresa.
— Ora essa, achei que gostava de estar comigo.
— Eu amo… amo estar com você — ele gaguejou e encarou os
olhos esmeralda, levantando a sobrancelha em dúvida. — Por que
quer saber se preciso estar cedo no trabalho?
— Estive pesquisando por algo…
— Sobre seu passado.
— Não. Aqueles livros.
— Aqueles…? — o homem perguntou antes de perceber do que
ela estava falando. Os romances que Nellie lia no Kindle. — Ah,
aqueles livros.
— Isso — a mulher disse sem jeito e examinou o teto como se
não conseguisse olhá-lo antes de perguntar: — Posso colocar minha
boca? Como faz comigo?
— Como eu faço…? — ele questionou paralisado, tentando
entender o pedido da moça pudica. Estava falando de seu membro?
— Os livros são como uma enciclopédia de todas as coisas que
deveria saber sobre a intimidade entre homem e mulher. Eu fiquei…
curiosa — ela completou e deu de ombros com um sorriso tímido e
sensual, os dedos perigosamente baixos no abdômen de Grayson.
— Pode fazer o que quiser comigo, meu amor. Achei que
soubesse — ele anunciou, e ela encarou-o com olhos tímidos antes
de continuar sua exploração.
Nellie ficou por cima de Grayson e deu beijos suaves. Até aquele
momento, a garota não tinha visto o membro do namorado, sempre
escondido pelas calças de dormir ou de trabalho. O empresário
gostava de beijar o corpo dela e levá-la à loucura, mas em nome de
respeitar o tempo da jovem, deixava a virilidade guardada e longe de
qualquer tentação. Com os dedos tremendo, Eleanor baixou o cós do
moletom, deixando-o exposto.
— É tão diferente do meu corpo. Sinto essa coisa entre minhas
pernas… — ela confessou em um fio de voz e o rosto vermelho de
vergonha. — Como um vazio, como se fosse geleia.
— É seu corpo se preparando para me receber — ele disse com
a voz grossa, os olhos presos nos movimentos dela. Colocou os
braços para trás da cabeça, pois sabia que seu instinto era tocá-la e
era importante para Nellie que conhecesse o corpo dele sem se
sentir pressionada.
— Isso vai dentro de mim, não é? — ela questionou, analisando o
tamanho do órgão sexual de Grayson antes de encará-lo mais uma
vez. — Eu tinha noção pelos animais da fazenda e pelo que
andávamos fazendo, mas é assustador.
— Não vai machucar você. Quer dizer, na primeira vez costuma.
— Não é minha primeira vez, Grayson. O corpo de Ellen… Ela
teve um noivo, não? Com certeza não deve ser mais virgem.
— É a sua primeira vez. Você nunca sentiu um homem dentro de
você, meu amor. Ainda é virgem e vou ter todo o tempo do mundo
com você.
— Não quero que seja suave comigo.
— Sempre vou ser o que quiser — ele respondeu com um olhar
predador, e Nellie colocou seus dedos ao redor do membro de
Grayson, masturbando-o desajeitadamente, a mão subindo e
descendo pelo cumprimento.
Ele desistiu de esperar e enrolou os dedos nos dela, ensinando-a
como fazer. Precisava ser lento, mas Grayson estava pronto para
explodir. Estava excitado pela possibilidade de sentir a boca de Nellie
em seu membro, mas não sabia quanto mais aguentaria assim que
ela começasse. Ela o deixava louco.
— Você quer mesmo colocar a boca no meu pau? — ele
perguntou, e ela balançou a cabeça em uma afirmativa. O
empresário tocou o rosto dela com suavidade e mais uma vez
percebeu que estava apaixonado pela mulher. Não era um bom
momento para confessar seu amor, mas sabia que não conseguia
esconder através de seus olhos e seus atos.
Nellie se esticou, tocando os lábios de Grayson antes de colocar a
mão na extensão dele e acariciá-lo mais uma vez, fazendo-o gemer.
Depois, desceu a boca até a cabeça, beijando a pele sensível e
lambendo-o como um doce. Ele fechou os olhos, tentando controlar
sua reação, e segurou o cabelo de Eleanor, conduzindo-a a uma
batalha perdida. Sabia que duraria pouco com os carinhos dela,
sentindo sua boca quente em sua ereção. A cada segundo, era mais
forte e selvagem, notando seu limite chegar cada vez mais perto
enquanto tentava controlar os movimentos de seu quadril.
Ela também sentia o sentimento esmagador, fechando as pernas
com força para controlar as sensações que aconteciam em seu
corpo. Pele, lábios, suor e gemidos misturados pela intensidade do
prazer até Grayson encontrar sua liberação, derramando-se na boca
de Nellie. Ainda com a respiração acelerada, ele puxou-a para cima,
dando outro beijo suave. Encarou-a maravilhada: Eleanor tinha um
sorriso tímido e safado nos lábios, e ele se orgulhava de ter sido a
pessoa que colocou aquilo no rosto dela.
— É a minha vez — ele sussurrou em seu ouvido, o tom baixo e
grosso fazendo Nellie se arrepiar.
Grayson girou sobre ela, deixando-a embaixo dele, e desceu os
lábios pelo corpo nu da mulher. O homem beijou a entrada de
Eleanor, lambendo o clitóris até ouvi-la gemer. Ele era viciado
naquele som.
Ela se contorceu na cama enquanto a boca do executivo brincava
com sua pele sensível até os músculos ficarem tensos e o quadril
elevar com vontade. Eles já tinham feito aquilo antes, e Grayson
sempre ficava hipnotizado pelas reações da garota. Segurou-a pelo
quadril e afundou o dedo dentro dela em um movimento de vai e vem,
levando-a para mais perto do orgasmo. Ela tremia e gemia baixo
procurando o êxtase, fechando as mãos nos lençóis. Nellie ficou
tensa, sentindo a libertação, e soltou um gemido alto.
As reações do corpo ainda a surpreendiam mesmo depois de
tantas semanas de intimidade. Tornou-se uma aluna curiosa com a
ajuda de Alexa e do Kindle, e cada vez mais se pegava pensando
sobre seus momentos com Grayson. Ela queria ir até o fim porque
estava apaixonada. A constatação veio de uma forma simples,
poucos dias depois que voltaram de Yorkshire. Ela estava no sofá
assistindo televisão com Mary em seu colo, quando em um programa
alguém falava sobre dividir confeitos coloridos por cor, algo que
sempre ria quando o empresário fazia. Tão bobo e simples, mas foi
o suficiente.
— Ó, Mary. Acho que me apaixonei por ele — Nellie havia
sussurrado para a gata, abraçando-a no sofá enquanto encarava
suas paredes em silêncio.
Na ânsia de entender todas as mudanças de sua vida, não tentou
dissecar o sentimento e apenas decidiu vivê-lo. Eleanor desconfiava
que Grayson a amava do mesmo jeito cada vez que encarava os
olhos suaves ou as covinhas marcadas em suas bochechas. Era
bonito, idílico, e ela achava que poderia acabar a qualquer momento.
Além de se adaptar à nova vida, ela e Grayson decidiram estudar
mais sobre as possibilidades que a fizeram aparecer naquela
realidade. Apesar de ainda ver ceticismo na expressão do homem,
ele parecia buscar uma resposta que pudesse responder aquele
mistério. Eles também leram o diário inteiro em busca de respostas,
mas apesar de algumas pistas, como alguma chantagem de Edmund
sobre Augustus, nada se revelou. Eleanor se sentia cada vez mais
adaptada ao presente e queria mais do que foi no passado, incluindo
as coisas escandalosas que Grayson fazia em seu corpo.
Nellie queria ir além em tudo, incluindo no sexo, mas o empresário
sempre argumentava que a primeira vez de ambos deveria ser
especial. O que o homem não entendia é que todo instante que
passava ao lado dele era especial para ela.
— Li um livro interessante sobre paradoxo temporal— ele
anunciou e girou os corpos, puxando-a para um abraço íntimo.
Grayson ainda tinha a respiração pesada e observava com um
sorriso fácil a mulher sem fôlego coberta pela fina camada de suor.
Mais vezes do que deveria contar, ele deixou seu prazer de lado para
vê-la gozar em suas mãos, uma imagem que ficaria marcada em sua
memória mesmo que ele se esquecesse de todo o resto.
— Você quer me distrair, não é? — Ela riu. — Para não tocar em
você. Ainda está duro…
— Sua boca em mim foi o suficiente. — Ele sorriu e deu um beijo
leve. — Mas é sério sobre o livro. Não responde como veio parar
aqui, mas me fez pensar.
— Então sabe o que pode ter acontecido?
— Não sabemos o que te trouxe para o lugar de Ellen, mas
existem algumas teorias de viagem no tempo.
— Mas viajar no tempo é impossível. Quer dizer, realisticamente
impossível. Mas você me entendeu.
— Muitas pessoas estudam a teoria da coisa. É muita física e
matemática envolvida, contas e análises de campos de força. Nem
eu mesmo entendi.
— Há uma forma de não ser enviada a qualquer hora, da mesma
forma que cheguei? É possível? — Nellie perguntou e encostou sua
cabeça no peito do homem.
— Algo causou sua vinda, como um gatilho.
— Só me lembro do acidente, da dor e querer estar longe dali e
só.
—Algo nesse momento te trouxe para o presente, ou algum
momento com Ellen, mas isso não temos como saber.
— E como essa informação pode nos ajudar?
— Existem duas linhas de estudo: as coisas deveriam acontecer
da forma que aconteceram, ou você criou uma falha que pode
prejudicar o passado e o futuro.
— Como… como assim?
— No paradoxo temporal, existe a teoria de que nada pode ser
realmente modificado. Desde o início, era para vocês trocarem de
lugar e se, por acaso, você deva voltar, assim acontecerá, não
importa o que façamos. Talvez haja consequências catastróficas para
retornar ao curso natural das coisas, mas ainda assim, acontecerá,
não importa o que eu tente — ele disse com a voz lúgubre.
— Que tipo de consequências?
— Qualquer tipo. Se Ellen tentou fugir de novo e conseguiu, meus
parentes não existirão. Nada disso acontecerá e a história pegará
um atalho para chegar até aqui.
— Isso é ruim? Por que ainda estamos aqui, se ela pode ter
mudado o passado?
— Não tenho ideia. Nós estamos falando de uma viagem no tempo
hipotética. Qualquer coisa pode acontecer.
— E o outro estudo?
— Realidades paralelas. Pode existir um mundo em que você não
viajou no tempo, outro em que você permaneceu casada, outro em
que conseguiu fugir… São muitas variáveis, um universo infinito de
possibilidades.
— Isso é possível?
— Tão possível como viagem no tempo. Estamos no escuro
quando se trata de como veio parar aqui. O que precisamos
descobrir é o que a trouxe para evitar que seja levada de volta. Se o
gatilho funcionou uma vez, pode agir de novo. — Grayson deu um
beijo suave nos lábios dela e ficou sério de repente, encarando-a de
perto.
— Não me ajuda muito, não é?
— É a explicação plausível para a equipe achar documentos que
nunca tivemos acesso. Como foi possível que edições de jornais da
época passassem despercebido antes e, de repente, tivesse
menções aos Condes? Acho que Ellen está fazendo algo no
passado, Nellie.
— Sabe o quê? Acho que nós dois deveríamos estar fazendo algo
no presente — Eleanor anunciou com um sorriso malicioso e colocou
as mãos nos ombros de Grayson, empurrando-o contra o colchão.
A mulher subiu no corpo do empresário e ele soltou uma risada
divertida. Ele sabia que ela queria fugir do assunto, mas entendia.
Aquele tema também criava calafrios em sua coluna. A possibilidade
de perdê-la do dia para noite o assustava.
As mãos dela caíram sobre o peito nu do homem, e ele ficou sério
de repente, acompanhando Nellie em sua investigação pelo corpo
masculino. Doce tortura. Ela deu beijos suaves em seu queixo,
bochecha e pescoço antes de alcançar os lábios.
— De novo? — ele questionou enquanto juntava a boca na dela,
devorando os contornos de Nellie e arrastando os dentes pelo seu
lábio em uma mordida suave.
— E se eu quiser outra coisa? — ela indagou com ousadia,
ajeitando-se no colo de Grayson. O membro estava a centímetros de
seu corpo, o mais longe que foram juntos.
— Querida, preciso que saia daí a menos que tenha certeza do
que está fazendo.
— Eu tenho, Grayson. Eu disse!
— Queria que fosse algo especial, do jeito que você sonhou — ele
murmurou torturado, sem afastar os lábios dos dela.
— Está me pedindo em casamento, Grayson? — ela perguntou
suave como uma brincadeira, afastando-se dele. O homem fez uma
expressão séria, deixando-se ser analisado por Nellie. —
Grayson…?
— Eu sinto desde quando acordou do acidente que pertenço a
você — ele falou e colocou as mãos na face de Eleanor, fazendo
encará-lo enquanto os raios de sol entravam difusos pela janela. —
Falei sobre meus sentimentos tantas e tantas vezes, mas nunca fui
capaz de dizer o quanto eu te amo.
— Ó! — ela exclamou e colocou a mão na boca. — Não sei
como… Eu não…
— Está tudo bem, querida. Me basta amar você, não estou
pedindo nada em troca. Eu me disse ao longo dos dias que deveria
ser uma insanidade me apaixonar por alguém tão rápido, mas eu
sabia, querida. No momento que abriu os olhos naquele hospital, eu
era seu. Eu amo você.
— Você é um mentiroso, Grayson. Sentia-se atraído por Ellen,
não precisa mentir! — ela comentou com um sorriso suave.
— É aqui que se engana, querida. Notava uma conexão com ela,
como se precisasse estar perto, como se necessitasse estar lá
quando você chegasse — ele respondeu e apertou-a mais em seu
peito. — Amor de verdade eu conheci com você, com seu jeito doce
e tímido, com as bochechas rosadas que amo admirar, pelo jeito que
anda, fala, como trata Mary como um bebê e os pequenos sorrisos
discretos que me dá quando acha que ninguém está vendo. Eu amo
sua essência, mesmo que ela esteja no frasco de outra pessoa,
mesmo que nunca consiga saber como é em realidade. Estava
apenas esperando você chegar.
— É uma loucura o que está dizendo, nunca poderia prever que eu
viajaria até aqui para conhecer você.
— O destino trouxe você para mim, Nellie, e sou um homem
obstinado. Um amor assim não vai escapar entre meus dedos, farei
de tudo para não deixar.
— Passo os dias com medo de acordar naquele lugar sem você,
como se isso tudo fosse um sonho. Como se você não existisse —
ela confessou com o queixo tremendo de emoção.
— Você me tem, mesmo que não consigamos resolver, mesmo
que não me corresponda da mesma… mesma maneira — ele
gaguejou fugindo ao olhar dela com timidez.
— Não é isso. — Ela suspirou. — Eu me sinto da mesma forma,
apesar do medo e da censura. Se não te amasse, não estaria em
sua casa, dividindo a sua cama. A forma que fui criada não aceita
isso, Grayson. Espero que entenda o privilégio.
— Só ter você comigo já é um privilégio, Nellie.
— Não acredito que acabou de se declarar nu. Grayson Canning,
apenas você é capaz de tal coisa! Um indecente! — ela anunciou em
uma gargalhada tímida.
— Eu sei o poder que o meu peito nu tem em você, querida — ele
disse, puxando-a para mais um beijo. — Jamais duvide do quanto eu
te amo. Mesmo que… mesmo que sejamos separados, que tudo
isso acabe. Eu te amo, Nellie.
— E eu amo você, Grayson. Demais — ela completou em um
sussurro, voltando seus lábios ao dele. — Mesmo depois de tão
pouco…
— As pessoas se casavam em menos tempo em 1814, não?
— Muitas tiveram noivados longos.
— Você quer casar comigo? Mesmo que seja com um noivado
longo? — ele completou em um tom bem-humorado.
— Me peça direito, com algumas outras roupas. Agora estou
contente com o que somos.
— Amantes? — ele sugeriu.
— Apaixonados.
— Sabe, como uma mulher apaixonada às vésperas de se casar,
em algum momento você vai ter que aprender a usar calcinha. — Ele
riu. — Mas por agora, eu não vou reclamar.
— Como se não gostasse, Grayson Canning! Sua indecência faz
parte do seu charme — ela completou com uma risada.
Ele desceu os lábios sobre o dela em um beijo cheio de
significado, que se acelerou em um movimento selvagem enquanto
sentiam o corpo desnudo um do outro. A mulher fechou suas pernas
no quadril dele, colocando-as em cada lado do seu corpo. Podia
sentir o membro entre suas dobras, centímetros de se afundar em
seu lugar escondido. Nellie queria tudo. Havia algo em Grayson que a
fazia confiar e jogar a cautela pela janela.
Sabia o que ele vinha fazendo, criando as preliminares entre eles
como se ela fosse um cristal frágil que pudesse quebrar, controlando
cada movimento que faziam em busca de satisfação. O empresário
esticou a mão para a mesa de cabeceira para pegar um
preservativo. Para vergonha de Nellie, desde que começaram a ter
intimidade, Grayson explicou que daquela forma era possível evitar
gravidezes e doenças sexuais. Apesar de querer ser mãe um dia,
sentia-se satisfeita por ter um jeito de evitar filhos em um período tão
conturbado como o que viviam.
Grayson se ajeitou, puxando-a para fora de seu colo, erguendo-a
pelo quadril. Ele segurou a base de seu membro quando Nellie se
afundou com lentidão, sentindo-o enchê-la.
— Tudo bem? — ele perguntou enquanto a jovem estava parada
em seu colo, parecendo confusa pela anatomia da situação.
— Estou bem — ela murmurou e capturou a boca dele em um
beijo, movimentando o quadril de forma tímida, como se buscasse o
melhor jeito de seguir. — Melhor do que bem, eu diria.
Grayson impulsionou o quadril, empurrando contra Nellie e
testando a resposta. Ele segurou-a pela bunda, enchendo-a por
completo e fazendo movimentos lentos. Quando Eleanor gemeu
baixo contra a boca dele, o homem acelerou, entrando e saindo dela
em um vai e vem de quadris. Ela beijava o corpo do executivo,
arranhando-o e emitindo gemidos cada vez mais altos. Quando
percebeu que não era suficiente, Grayson colocou-a novamente
embaixo dele, cravando-a na cama e afundando nela com loucura.
— Grayson… — ela suspirou o nome dele entre gemidos,
apertou-o com força. Ele deixou-se ir, chegando ao êxtase junto a
Eleanor, uma sinfonia de gemidos e suor que para ambos era
perfeita.
Nellie brincou com Mary no sofá do apartamento de Grayson
enquanto ele andava de um lado para o outro com um papel em suas
mãos, lendo-o com atenção. Um entregador bateu à porta minutos
antes, solicitando uma assinatura para entregar o envelope.
Já fazia quase quatro meses desde o instante que acordou do
acidente, e sentia como se houvesse um milhão de anos desde o
momento que abriu os olhos no hospital. O relacionamento entre a
jovem o empresário era feliz e tranquilo. Apesar do apartamento no
Camden, ela passava dias com Grayson em Knightsbridge, dividindo
muitas das suas noites com o homem. Era curioso como se sentia
alegre e satisfeita com a relação sem compromisso de ambos. Ela
valorizava as horas passadas juntos, cada sorriso e beijo abrasador.
Sua mãe ficaria em choque.
Aos poucos, construiu uma vida e a cada nova semana recebia um
elogio dos professores do conservatório ou de seus alunos, na
maioria crianças, que a divertiam durante as horas que passava fora.
Como ficava poucas vezes no apartamento de Ellen, carregava Mary
para todo canto em sua caixa de transporte. Chamava um Uber pelo
celular e acessava o prédio com a chave dada por Grayson. Nellie
pensava na casa dele mais como um lar do que o imóvel de Camden,
porém também aprendeu a adorar ficar sozinha. Nunca tinha tido o
privilégio e, por menor que fosse, aquele espaço era dela, apenas
dela.
Talvez esse sentimento fosse o que Nellie tanto ansiava. Era bom
ver o que mulheres podiam fazer no presente, todas as coisas que
eram proibidas em sua época e que agora todos viam com
normalidade. Poderia dirigir se quisesse, mostrar as pernas,
conseguir um emprego e gerir o próprio dinheiro. Apesar dos
pesares, no presente era possível que uma mulher não precisasse
de um marido para cuidar da própria vida: poderia correr atrás de
seus sonhos e vontades sem uma figura masculina esperando que
ela reagisse, falasse ou pensasse de determinada maneira. Através
de Grayson, conseguiu um terapeuta e as conversas estavam
ajudando-a. Para o profissional, as regras de etiqueta eram fruto de
uma educação severa e do acidente, o que criou a “mudança radical”
de personalidade de Ellen. Era uma forma de continuar a viver
tranquila e conseguir a ajuda para um mundo tão diferente do que ela
veio.
Aos olhos das pessoas, eles eram um casal como outro qualquer:
Grayson floresceu e se abriu ao encontrar o amor e queria
demostrar seu afeto em gestos simples, como andar de mãos
dadas, ou maiores, como levá-la para locais que ela sempre quis ir,
como a Itália. Para delírio do assistente do empresário, por longos
dez dias, Nellie e o executivo passearam por Veneza, Florença e
Roma, as férias que o viciado em trabalho nunca tirou. Ela descobriu
o avião, todas as coisas que queria ver quando Augustus pôde e ela
não, e terminava suas noites ao lado de Grayson, deliciando-se com
o corpo do homem, outro prazer que descobriu amar apesar de sua
timidez em falar sobre o tema.
A única sombra nos dias edílicos de Eleanor era Ellen. A cada
nova semana, surgiam “pegadas” da Condessa de Bradford pela
história. Grayson explicou que, antes do acidente, havia poucos
dados sobre a mulher, conhecida por sua timidez, isolamento e morte
precoce. De repente, abundavam relatos do casal de Lordes em
bailes, pequenos eventos e até mesmo uma visita ao primeiro Museu
Britânico. Páginas e mais páginas descrevendo os vestidos, os
cabelos e a forma como Stephen e Eleanor Canning dançavam pelos
salões Londrinos.
Ellen estava mudando a história, podia sentir.
Nellie não a culpava, apesar de sentir certa reserva sobre o
impacto que as escolhas da mulher fariam em sua vida. Ela tinha
medo de que a história não acontecesse da mesma forma, que a
vida organizada e feliz de Eleanor mudasse, incluindo a presença de
Grayson. Os meses também trouxeram paz para o homem, que
parecia cada vez mais convencido da questão da viagem no tempo.
Depois da visita a Sussex e Yorkshire, por mais que não
compartilhasse, podia sentir a reticência dele em acreditar, mas
conforme estudavam e procuravam respostas, mais imerso ele
ficava.
— Me diz de novo por que você não vem morar aqui? — Grayson
perguntou com um sorriso leve nos lábios, observando a mulher
amada. — Até a gata parece preferir esse lugar.
— Você não me pediu novamente — ela respondeu com um
suspiro e deu de ombros. — E porque gosto de ter um espaço só
meu. É bom escapar para algum lugar quando você passa horas
trancado no escritório.
— Ah, eu parei de trabalhar tanto — ele protestou. — Consigo até
mesmo ver a luz do dia quando saio do escritório!
— Mary gosta daqui porque tem mais espaço.
— Qualquer lugar tem mais espaço que aquele apartamento —
ele retrucou e mostrou um papel para a jovem. — Recebi uma
notificação do banco, deve ser alguma burocracia. Deus sabe que
nos últimos dias não tenho dado atenção suficiente ao meu trabalho,
apesar de você achar que não.
— Está me culpando? — ela questionou ultrajada, com um ar
cômico.
— Não. É que não existiam horas extras antes de você ir para a
minha casa, tudo era trabalho — ele revelou e beijou os lábios de
Nellie. — Tem a ver com algum documento que preciso retirar no
banco. Não é nada demais. Assim que sair do trabalho, vou até lá.
— Já disse que amo você? — ela murmurou com um sorriso.
— Eu gosto de ouvir, pode continuar. — Ele riu e se sentou ao
lado dela. — Eu amo você mesmo quando me obriga a dormir na
cama de casal do apartamento de Camden. Meu colchão acha que
sou um masoquista.
— E você é um aristocrata metido a besta — ela respondeu e deu
língua para ele.
— Você não falava desse jeito antes, Nellie. Sua amizade com
Alexa é um perigo — ele concluiu, fazendo-a soltar uma gargalhada.

— Se o senhor puder assinar aqui e aqui — a mulher explicou e


apontou para o papel. — Poderei levá-lo até a caixa-forte. Estamos
um pouco empolgados por sua presença. Uma correspondência
nominal com mais de duzentos anos!
O que parecia ser um documento de trabalho se transformou em
alguma comunicação de Ellen. Nellie ficaria chateada por ele não
comentar, mas foi pego de surpresa quando descobriu que tinha uma
caixa deixada pela décima Condessa de Bradford, Eleanor Elizabeth
Canning, apenas ao chegar no banco. Nellie e ele compartilhavam a
sensação de que Ellen estava modificando o passado e uma carta
endereçada com mais de dois séculos de diferença definitivamente
era algo que chamava atenção, a começar pela funcionária curiosa.
Cada novo documento que recebia da equipe responsável pelo
espólio da família demonstrava as aventuras da nova dama, e
Grayson poderia jurar que até a expressão do quadro dos Condes
mudou na Casa Canning.
— Não é um grande mistério — o executivo disse com voz
desconfiada. — Nós temos nomes familiares e, até onde sei, sempre
fui destinado a me chamar Grayson. Um nome de família…
— É mesmo? — a profissional falou com certo desânimo, ao
mesmo tempo que apontou para um corredor para segui-la. Ela
parecia menos empolgada após a explicação, uma mentira que não
corrigiria. Sabia que era uma comunicação da restauradora e temia
por Nellie, ele e a Ellen presa no passado.
— Isso começou antes mesmo da Condessa — ele continuou,
inventando uma história rápida para mulher. — Acredito que não é a
primeira “correspondência do passado” da minha família. Podemos
ir?
— Ah, sim, claro — ela continuou e entrou em uma sala com uma
mesa de centro antes de entregar a chave ao herdeiro dos Canning.
— A Condessa providenciou tudo, inclusive o pagamento do cofre
por mais de dois séculos, mas acho que isso o senhor sabe, não?
— Claro — Grayson afirmou e pegou a chave dentada da mão da
profissional.
— Pode ficar à vontade. Aperte o botão para sair para iniciarmos
os procedimentos de segurança.
Grayson esperou a funcionária do banco sair e soltou o ar que
estava prendendo, nervoso por toda a situação. Caminhou até a
caixa 1887, o número indicado na chave em suas mãos, abaixou-se e
retirou a caixa forte. Depois, foi até a mesa e abriu o repositório,
onde encontrou uma carta endereçada ao seu nome e um colar. Era
uma das joias mais bonitas que viu na vida, um conjunto em
esmeralda com pedras pequenas e um pingente de um verde tão vivo
que lembrava os olhos de Nellie. O empresário pegou o colar nas
mãos, encarando o objeto sem entender por que a Condessa enviou
algo como aquilo para ele. O que teria de tão especial na joia?
Ele colocou a carta e a bolsa de veludo com o colar no bolso e
acionou o mecanismo de segurança. Queria analisar aquilo com
Nellie, de preferência com o diário de Agnes ao seu lado, assim
como todos os documentos que reuniram ao longo dos meses. Era
um material tão frágil que poderia destruí-lo na pressa de tentar
entendê-lo. O que quer que tivesse ali dentro era importante o
suficiente para Ellen aceitar colocá-lo em uma enrascada e precisar
explicar como uma parente sabia quem ele era duzentos anos antes
de ele nascer.
Como já era final da tarde, Nellie estava em sua casa à espera de
mais uma noite calma, como ambos tinham combinado. Ela falou
certa vez sobre um colar verde e talvez esse fosse a joia da família
Sterling. Eles tinham tanto a pensar. Assim que saiu do banco em
direção a seu carro, uma chuva forte começou e Grayson se
amaldiçoou por ter colocado os itens em seu bolso, a prova de
qualquer intempérie. Ele correu para o veículo e não teve coragem
de olhar o interior de seu paletó. Depois de alguns minutos, o
executivo estacionou no apartamento e subiu no elevador, torcendo
as mãos com aflição.
— Está cedo até para os padrões do novo Grayson — ela brincou
quando ele abriu a porta e encarou-a com seriedade. — O que
aconteceu? Por que está desse jeito? Veio mais cedo pelo aviso do
entregador?
— Eu fui ao banco — ele respondeu e deu um beijo leve nos
lábios. — Não era um documento de trabalho, e sim uma carta da
Condessa de Bradford de 1814.
— Ellen tentando se comunicar?
— Há alguns anos, fui avisado que havia um envelope em meu
nome para ser aberto, com mais de duzentos anos, guardado no
cofre de um banco e com especificações de ser aberto apenas
nessa data. Me esqueci por completo, porque faz muito tempo. Era
isso.
— O que tinha na carta?
— Vou lê-la com calma. Fiquei com medo de rasgá-la ou algo
assim. É um papel de mais de duzentos anos e preciso ser
cuidadoso. Acho que pegou um pouco de chuva enquanto vinha para
cá — ele completou e tirou o envelope do bolso, junto a uma bolsinha
de veludo. — O que me surpreendeu foi isso. Acho que preciso ler a
carta para entender por que me enviou uma joia.
— Uma joia? — Nellie perguntou, e Grayson esticou a bolsa de
veludo. Ela tirou o colar de esmeraldas de dentro, encarando-o
atônita.
— O que foi? — Grayson questionou preocupado.
— Ó, Deus… — Nellie sussurrou, sua expressão transformando-
se conforme as lágrimas começavam a cair. Ela colocou a mão
sobre os lábios e suspirou alto, soltando uma lamúria baixa. — É o
colar que minha mãe me deu antes do casamento. Uma joia da
família Sterling. Foi a última coisa que toquei quando estava caída no
jardim… eu… ó!
— Quando estávamos em Yorkshire, você falou sobre esse colar.
Por que Ellen o enviaria para cá?
— Como um sinal… meu Deus, Grayson…! Preciso voltar! Ela
deve estar sofrendo com o Conde. O que eu fiz! O QUE EU FIZ!
— Vamos ler a carta primeiro. Pode não ser nada disso!
— Claro que é! Ele era cruel, um patife, um…
— VOCÊ NÃO VAI VOLTAR — Grayson gritou, e Nellie encarou-o
com olhos chocados. Ele soltou a respiração de forma pesada e
olhou-a profundamente, baixando o tom. — Não vou perdê-la de
novo.
— Você não vai dizer o que posso ou não fazer! — ela respondeu
irritada. — Por anos, todos falaram isso para mim! Preciso fazer
algo, preciso salvar Ellen!
— E voltar para as mãos de Stephen Canning? Você vai morrer lá!
— Era o meu destino, meu maldito destino!
— Seu destino era vir para cá e ficar comigo, será que não
entende?
— O que não entendo é você querer dizer o que posso ou não
fazer depois de tudo o que aconteceu comigo. VOCÊ NÃO VAI
CONTROLAR MINHA VIDA! — ela gritou e colocou a mão no rosto,
respirando com dificuldade. Eles se encararam por alguns instantes
antes de a expressão do homem se tornar sombria.
— Me desculpe — Grayson pediu e se aproximou — É que a ideia
de te perder…
— Eu sei — ela suspirou mais calma. — Mas preciso fazer algo.
Se ela chegou ao cúmulo de enviar algo para cá…
— Tudo bem — Grayson falou e tirou o envelope do bolso,
encarando o papel fino com preocupação. — Acho melhor
esperarmos. Parece úmido.
— Preciso que entenda — ela sussurrou. — Por tempo demais,
só fui sendo levada pela maré. Ajudar Ellen é algo que posso fazer.
Não sei como, mas preciso fazer algo. Não é justo ser feliz enquanto
Ellen está lá padecendo com minha vida real.
— Eu sei, meu amor — o empresário disse e deu um beijo leve
nos lábios da jovem. — Mas não dói menos a possibilidade de
perdê-la.
— Gritei com você — ela anunciou de repente, parecendo um
pouco chocada. — Não faço esse tipo de coisa.
— Está se tornando uma mulher do século 21, querida.
— Não… finalmente estou encontrando minha voz — ela revelou e
se esticou para ele, dando um beijo em seus lábios.
— Ainda quer sair para jantar?
— Podemos ficar aqui, juntos? — ela pediu. — Vamos jantar algo
aqui. Tem tantas coisas na minha cabeça…
Durante o resto da noite, Nellie e Grayson ficaram presos nos
pensamentos sobre a carta e o colar. Ela sentia-se culpada, e o
colar de esmeraldas trouxe lembranças de uma vida que esqueceu
aos poucos. Ele sentia medo. Medo por si mesmo, por Nellie, pelo
presente e futuro que estavam construindo. Medo de tudo sumir
como castelos de areia, como uma felicidade passageira incapaz de
durar. Pelas horas seguintes, ambos ficaram em um silêncio
amigável, dividindo um jantar e algumas horas de televisão antes de
dormir, o ritual que ganhou muitos mais toques de afeto depois que
se descobriram como casal. Fizeram amor com entrega, com
palavras não ditas sobre a possibilidade de um fim próximo, o temor
pelo inesperado.
— Vamos dormir? — Grayson perguntou em um bocejo, tentando
apertar Nellie contra ele, como se tentasse fundi-la ao seu corpo,
como uma parte dele.
— Só um minuto — ela disse e se levantou, sumindo da vista do
empresário.
— O que está fazendo? — ele questionou quando a viu retornar
para a cama com o saquinho de veludo nas mãos.
— Desde que chegou com o colar, não consigo parar de pensar
como essa joia ficaria mais uma vez em meu pescoço. Apesar de
não entender as motivações de minha mãe, é como se parte da
história dos Sterling estivesse em minhas mãos de novo. Como se
me atraísse para colocar em mim de novo. É curioso?
— É sua família. É a família de Ellen também.
— Eu sei… — ela sussurrou e tirou a joia, colocando-a em seu
pescoço. — É linda, apesar de todas as memórias ruins que me traz.
Lembro do toque frio com a chuva caindo sobre mim quando tudo
escureceu. O último contato de realidade da minha vida anterior.
— Meu amor, venha aqui — Grayson pediu, e ela se aconchegou
a ele em um abraço. — Amanhã vamos ver o que conseguimos fazer
sobre Ellen. Sinto-me egoísta por não querer que vá embora…
— Eu também não quero ir — ela confessou, interrompendo-o. —
Me sinto mais feliz aqui do que em toda a minha vida.
— E eu me sinto como um sugar daddy a seu lado. Você tem
dezoito anos…
— O que é um sugar daddy?
— Alguém que se relaciona com pessoas muito mais novas. Como
eu e você.
— Ellen tinha vinte e oito anos quando trocamos, não acho que
seja uma diferença tão grande.
— Isso é sobre você, e não ela. Para os meus trinta e um anos,
dezoito faz muita diferença. Toda uma vida de diferença.
— Se você quiser fazer mesmo essa conta, tenho mais de
duzentos anos, Grayson. Nossa criação será sempre diferente, não
importa que idade você tenha. Sempre terei hábitos de séculos
atrás.
— Não me importo com isso.
— E nem eu me importo com a nossa diferença de idade — ela
suspirou. — Acha que isso é para sempre? Minha estadia aqui? Não
quero perder você.
— Nós vamos dar um jeito, meu amor. Não vou deixá-la longe de
mim, não agora que a encontrei.
— Posso ficar com o colar? Ao menos por hoje?
— Se sente confortável com ele? Não sei o que Ellen pode querer
falar enviando esse colar para cá.
— Acha que ela sabe sobre nosso parentesco? Pode ser um
sinal?
— O sinal, senhorita Eleanor Elizabeth Sterling, filha do Barão de
Clifton e minha noiva…
— Você não voltou a pedir, Grayson — ela o corrigiu.
— Minha futura noiva — ele continuou. — Podemos dormir? Tive
um dia cansativo e ainda precisei responder perguntas demais no
banco. Os funcionários estavam curiosos sobre uma carta nominal de
mais de duzentos anos. Para mim, é apenas o sinal de que devemos
dormir.
— Boa noite, Grayson…
— Boa noite, meu amor — ele desejou antes que ela se ajeitasse
em seus braços, deitando sua cabeça no peito do homem e
relaxando em seus sonhos.
Nellie sentia-se satisfeita e preocupada. O colar pesava em seu
pescoço, trazendo mais memórias do que era capaz de digerir. Era
bom ter a força de Grayson contra ela enquanto sua mente vagava
pelo século dezenove, a relação com sua mãe, Augustus, o Conde.
Eleanor não sabia por que se sentiu impelida a pegá-lo e colocá-lo
em seu pescoço. Era quase como se fosse atraída pela peça sem
explicação, uma magia que a fez usar o colar de esmeraldas mais
uma vez, tal qual seus antepassados.
No meio da madrugada, Nellie sentiu-se flutuar. Como naquela
primeira vez, após o acidente que a fez viajar no tempo. Por instinto,
sabia que estava de volta ao seu corpo anterior, vivendo a vida que
deixou para trás e afastada de Grayson. O pânico envolvia a mulher
em sua constatação, mas era como ter sido sugada pelas sombras.
Ela pediu pela oportunidade de ajudar Ellen e estava de volta ao
lugar para o qual não queria ter retornado.
Eleanor perdeu a consciência e, quando despertou de novo,
estava mais de duzentos anos antes e imóvel. Por mais que tentasse
se mover, era como se seus membros não respondessem aos seus
comandos. O que estava acontecendo? Nellie se tornou atenta a
tudo ao seu redor, ouvindo as pessoas indo e vindo e sabendo que
ficou presa a um corpo sem vida, horas longas e tortuosas em que
não conseguia fazer nada além de perceber seu arredor. Ela voltou
para o momento de sua morte?
Então, ouviu Stephen Canning, o Conde de Bradford.
Nada a preparou para a tristeza de seu tom e o lamento pela
mulher desacordada. Ele amava Ellen. Sua voz tão baixa e
emocionada lhe lembrava Grayson. Pelas horas que se seguiram,
Nellie decidiu que faria o que pudesse para se salvar e salvar a
restauradora. Ela queria retornar para o presente e descobrir como
nunca mais voltar para o passado. Precisava derrotar o paradoxo do
tempo.
Grayson se levantou da cama, as bochechas rosadas de Nellie
espremidas pelo travesseiro. Por algum motivo, ela se enrolou em
seu canto no meio da noite, abraçada ao lençol em uma posição em
que ele não tinha costume de vê-la. Observá-la trazia alguma paz
para os pensamentos tumultuosos do dia anterior. Ela já se sentia
culpada por Ellen e a carta pioraria tudo. E se fosse um pedido de
ajuda, seria capaz de deixar a mulher que amava ir?
O empresário se achava um homem justo, razoável em seus
pensamentos e decisões, mas no que dizia respeito a Nellie, era o
mais egoísta dos apaixonados. Não conseguia se ver longe de
Eleanor. Mesmo acordando cedo, decidiu esperá-la para ler a carta.
Durante as últimas semanas, eles acumularam conhecimento sobre o
que acontecia em viagens do tempo e tentaram criar um paralelo do
que realmente aconteceu com a jovem. Ele dizia para ela que era só
a busca por explicações, mas no fundo sabia que queria evitar que
voltasse para o ano de sua origem.
Nellie não acordou cedo como costumava fazer, e Grayson achou
que estaria cansada pelas revelações da noite anterior. Era uma
pessoa calma e que nunca levantava a voz, e de repente estava
gritando com ele. O executivo estava orgulhoso por ela começar a
lutar de volta, e não agir como foi criada pela mãe. Era um século
melhor para as mulheres como ela, que não precisavam encontrar
casamentos vantajosos apenas para ter uma boa condição de vida.
Quando as horas foram passando, ele observou-a na cama e
decidiu sair para fazer algumas compras no mercado. Meia hora
depois, com as sacolas nas mãos, o homem ouviu o barulho no
quarto e foi até lá.
— Meu amor, já acordou? — perguntou enquanto afastava Mary
de perto da porta. A gata de Nellie tentava fugir todo o tempo, e ele
sabia que quebraria o coração de Eleanor se ela se perdesse pelas
ruas.
Nellie não respondeu, então ele foi procurá-la pela casa. Quando
parou na porta e a viu ali, foi como se um gelo recobrisse sua
espinha. Havia algo errado, podia sentir. Aquele jeito de se mover
não era o dela, era como se outra… merda. Até aquele momento,
ainda tinha dúvidas sobre o que acontecera de verdade com a
mulher que amava, mas vendo outra pessoa na mesma “casca” que
ele costumava conviver, todo o ceticismo foi jogado pela janela:
Eleanor era quem dizia ser, e aquela no quarto definitivamente não
era ela.
O empresário abaixou no chão e deixou as sacolas, encarando a
outra com seriedade. Colocou a mão no rosto, apertando o maxilar
com contrariedade. Ellen estava de volta. Ele lutou, e tentou, e
estudou, e ainda assim Nellie partiu. Aquilo não deveria estar
acontecendo.
— Grayson…!? — ela exclamou em um tom de voz surpreso que
não era o de Eleanor. Era curioso perceber como eram diferentes,
apesar dos traços iguais. Como foi capaz de confundi-las? Com a
mesma roupa, cabelo e expressão de quando foi dormir, a jovem a
sua frente não tinha nada que o lembrasse do jeito meigo e calmo.
Nada de Nellie lembrava a Ellen original.
— Aconteceu, não é? — ele perguntou com a voz lúgubre.
— O quê?
— Vocês trocaram de novo.
— O que está dizendo?
— Você se lembra, não é? Nellie demorou a lembrar e não
sabemos se é pela viagem e…
— Lembro de quê? Não estou entendendo o que está
acontecendo! — ela anunciou irritada. — O que diz sobre trocar de
novo?
— Você lembra de quando caiu da escada na mansão Canning?
— Grayson perguntou e viu a expressão da mulher se acender.
— Sim… — A verdadeira Ellen ofegou. — Mas não me lembro de
mais nada até aqui. Parece que acordei de um sonho estranho,
esquisito… Eu estava…
— No passado — ele completou e suspirou impotente. — É
loucura, eu sei. Mas aconteceu. Há alguns meses, você trocou de
lugar com Nellie… com Eleanor.
— Não, você só pode estar…
— Ela se casou com o Conde e fugiu — ele respondeu rápido,
chamando atenção da restauradora, cuspindo o conhecimento das
últimas semanas em poucos segundos. — Disse que correu pelo
jardim, bateu a cabeça e acordou no hospital… aqui. Não em 1814.
Nós nos preocupamos muito, ela fez uma série de exames… quer
dizer, você fez uma série de exames. Nellie acordou desmemoriada
e, por mais que tentasse, agia estranho, tinha regras de etiqueta
loucas… Ela permaneceu assim até que a médica a liberou para
visitar a Casa Canning. No momento que entrou na mansão e viu a
imagem do Conde, ela se lembrou.
— O quadro?
— Ele mesmo. Ela lembrou, se achou louca, mas a fiz contar tudo
mesmo assim. Parece insanidade, mas era a única explicação…
— E você acreditou?
— Não tinha por que mentir. — Grayson deu de ombros e evitou
explicar toda a pesquisa que fizeram para descobrir o paradeiro real
da família e as dúvidas que carregou no peito por meses a fio. —
Explicava muito sobre ela ser uma Dama de 1800. Todas as regras
de etiqueta, pudores…
— Vocês dois…!? — Ellen perguntou com uma sobrancelha
levantada. Grayson respondeu com um sorriso torto, como se não
quisesse falar de sua intimidade.
— Sim. É tão engraçado, é o mesmo corpo, mas eu sei que não é
ela. Os gestos, o jeito, o tom de voz… É como se almas fossem
trocadas.
— Isso é loucura! Você teve um relacionamento com ela me
usando… como se… Eu não…
— E o que você fez com o corpo de Eleanor, Ellen? — ele
retrucou e cruzou os braços, seu olhar questionador que fez a
restauradora parar de andar pelo quarto. — Como foi o passado?
— É uma insanidade. Tenho certeza de que só trabalhei demais
com os documentos da sua família e criei toda essa memória falsa
de…
— Certeza? Nenhuma memória, nenhuma aventura…
— Ahhh! — Ellen gritou, confusa com as revelações. — Digamos
que isso é verdade. Como posso ter certeza? A história mudou nos
livros?
— A história é a mesma, pelo menos os fatos que sabemos. Quer
dizer…
— O quê? — ela questionou irritada.
— De repente, começamos a achar edições e mais edições de
jornais de fofoca falando dos Condes, de bailes de vestidos
vermelhos e de demonstrações de afeto em público — Grayson
anunciou, fazendo as bochechas de Ellen ficarem vermelhas. —
Posso apostar que a Eleanor do quadro agora é você e não minha
Nellie! A expressão dela mudou para algo muito mais ousado do que
a paz que estava ali há algumas semanas.
— E se tive acesso a estes documentos antes de vocês
saberem? E se a expressão apareceu no restauro? — ela perguntou
desafiadora. — E se a Nellie é só uma dupla personalidade, hein? A
Ellen que está aqui agora só está muito irritada com você, Grayson.
MUITO IRRITADA!
— Ontem à noite, tirei do cofre a carta e o colar que Eleanor
deixou para mim… — Ele suspirou e coçou a cabeça. — Que você
deixou para mim, eu acho.
— Isso não pode ser verdade… — a mulher soprou, tentando se
beliscar. — Ainda estou dormindo, eu juro que ainda estou dormindo.
Como provar que isso é real?
— Os jornais são um começo. Não estavam aqui antes.
— Vamos voltar alguns passos nisso e raciocinar, ok? — a
restauradora disse a um passo da histeria, fazendo um movimento
de calma com suas mãos enquanto continuava a andar de um lado
para o outro do quarto abraçada ao cobertor. — Você está me
dizendo que este sonho louco em que eu me apaixonava por um
Conde, ia a festas e usava roupas estranhas é real?
— Se apaixonou por um Conde, hein? Interessante… — Grayson
respondeu com um sorriso de canto de boca.
— E você parecia tão fascinado comigo que aproveitou qualquer
coisa para criar um relacionamento! — ela acusou.
— Eu sentia algo — ele confessou envergonhado. — Era como se
algo me conectasse a você e eu precisasse estar perto. Mas quando
Nellie acordou no hospital, foi quando tudo se acendeu na minha
cabeça.
— E você a trouxe para cá? Minha casa…
— Ela não podia ficar sozinha e não conseguimos contato com
nenhum parente. Foi a única solução que encontrei. Nós trouxemos
tudo, até a maldita gata tem um quarto só dela no final do corredor.
— Não fale assim de Mary!
— Ela não para de miar, mas Nellie gosta dela e eu faço qualquer
coisa por aquela mulher — ele explicou.
— Droga! Isso é tão confuso! Eu tenho certeza de que só fiquei
obcecada por todas as temporadas de Downton Abbey e todos os
estudos de regência, regras de etiqueta. Ninguém viaja no tempo…!
— a restauradora parou de repente e virou-se para Grayson
assustada. — O que disse do colar?
— Há alguns anos, quando eu completei dezoito anos, fui avisado
que havia um envelope em meu nome para ser aberto, de mais de
duzentos anos. Estava guardado em um cofre.
— Como?
— Este ano… A Condessa de Bradford enviou uma carta em 1814
com especificações claras de acesso. Eu só podia retirá-la essa
semana e, como estava com Nellie, recuperei a correspondência e
iria examiná-la com calma essa manhã.
— Como assim especificações de acesso?
— Eleanor sabia meu nome e informações pessoais que me
identificavam como o portador da carta. A atendente do banco achou
que era uma grande piada e ficou muito surpresa ao conseguir me
encontrar.
— O que aconteceu?
— Tinha um estojo com este colar em seu pescoço e uma carta
lacrada. Nellie o reconheceu e disse que era o colar que a mãe havia
lhe dado antes do casamento, uma relíquia de família. Ela colocou no
pescoço e dormiu com ele, e então você acordou, e sabe lá Deus
onde está Nellie. Ela tinha tanto medo… Ela fugiu do Conde e de
alguma forma voltou para ele ontem à noite.
— Não há o que temer de Stephen, ele não é essa pessoa…
— Ela fugiu, Ellen! Tem que ter um motivo! — ele retorquiu
irritado, suspirando profundamente. — Agora acredita nisso? Que o
Stephen que viveu não é capaz de machucar Nellie?
— Merda…
— Eu sei… Para onde ela foi?
— Para meu lugar, talvez? — ela indagou com a voz chocada.
— Que dia, que data… preciso saber se algo mudou — o
empresário disse com o celular em punho enquanto caminhava para
uma pilha de documentos em um canto do quarto, onde uma estande
se erguia em uma das paredes laterais.
— Era 20 de julho… mas talvez ela não tenha voltado nesse
ponto, o que acha?
— Faltaria pouco para a morte de Stephen — Grayson declarou,
e Ellen congelou.
— Quando aconteceu? — ela perguntou com a voz trêmula.
— Agosto de 1814.
— Eu tenho tão pouco tempo… Eu acho… acho que o colar é
mágico.
— O que está dizendo? — Grayson questionou confuso.
— Ouvi isso de Agnes Sterling. Todas as mulheres donas desse
colar têm um desejo. Nellie usou o dela para fugir do Conde? Foi
assim que fui parar em 1814?
— Nós não temos ideia de como ela veio parar aqui.
— É o que a Baronesa me explicou. Um desejo durante a vida e
repassá-lo para a próxima mulher Sterling. Uma vez feito, o cordão
zelará para que tudo seja perfeito…
— É uma idiotice, não existe magia! — Grayson ralhou.
— Nem viagem no tempo, mas estamos aqui os dois discutindo
isso — ela respondeu com zombaria.
— É diferente…
— Não é! Se não enlouqueci e isso existiu, estou presa no
presente quando…
— Você quer voltar, é isso?
— Stephen vai morrer! — a restauradora sussurrou. — E estou
aqui e não tenho como impedir!
— Não faz sentido o que está dizendo. Se o cordão zela por
algum desejo, por que ela voltaria? Ele não teria que fazê-la ficar?
— Você também é descendente dos Sterling, será que não…
— Acabou de falar que apenas mulheres conseguem fazer
desejos. Não tem sentido. A menos que…
— O quê!?
— Você é uma Sterling! Droga, não é assim que queria contar —
Grayson anunciou, com a expressão esquisita, torcida como se não
soubesse bem o que iria falar.
— Você está louco, Grayson? O que está falando? — ela replicou
com a voz esganiçada, por fim parando de andar e sentando-se na
cama, olhando para o executivo em confusão.
— Tenho mais informações no escritório, mas Nellie e eu
procuramos por explicações este tempo todo. Você vem de uma
linhagem bastarda de Augustus, o irmão de Eleanor. Ele era
apaixonado por uma mulher, mas Agnes já tinha providenciado o
noivado com a herdeira norte-americana. Ela se casou com um
homem de posses, mas sem títulos, e eles tiveram apenas um único
filho, seu parente.
— Como…? Eu não… Meu sobrenome é Morris, não tenho nada
a ver com Agnes, ou Eleanor, ou…
— A mãe de Nellie sabia de tudo, Ellen. Sei que é muito, mas nós
fomos até a propriedade em que Agnes Sterling morou até sua
morte. Edmund a isolou no campo depois do casamento com Eleanor
e achamos todo tipo de informações, cartas, comprovantes… Ela
casou a mulher e enviou-a para o interior. Era a única explicação
possível para vocês duas terem trocado…
— Talvez eu tenha um desejo? — ela indagou, olhando para o
colar através do espelho, e pensou nas probabilidades. — Eu posso
usá-lo para voltar, é isso?
— Ou você o usou para voltar aqui e levou Eleanor embora.
— É impossível… Isso é uma loucura. Se é verdade o que diz, eu
ainda tenho o desejo. Podemos reverter essa confusão.
— Não podemos mudar o curso do tempo!
— Sua Nellie tem dois anos de vida antes de também morrer. É
isso que quer? — a mulher indagou irritada.
— Ellen, não é justo…
— Acreditando na idiotice que está falando e pensando nos meus
sentimentos do que eu acho que é verdade, apesar de achar que
estou com um problema sério de cabeça por ter me apaixonado por
um Conde imaginário que morreu há dois séculos… Nós precisamos
fazer alguma coisa! Mas o quê?
— Abrir a maldita carta e saber o que está lá dentro, é o que acho
— ele respondeu e pegou um envelope que estava em uma mesa no
quarto, esticando-o para ela. — Aqui estão as certidões de sua
família, se tiver curiosidade…
— Acha que posso tê-lo usado por engano?
— Como… como assim? — Grayson perguntou curioso.
— Se fiz um desejo para o colar por engano… eu já não sei! — a
restauradora reagiu, soltando um gemido de impotência.
— Acho que você saberia.
— Ele vai morrer em algum acidente e eu não vou estar lá… —
ela sussurrou em um fio de voz.
— Não foi um acidente, Ellen — Grayson revelou, soltando o ar
em um sopro cansado, tentando dar tempo para ela processar as
informações, mesmo dividido pela urgência de ter Nellie de volta. —
Agnes e Edmund estiveram envolvidos na morte de Stephen. Eles
assassinaram Stephen. Encontramos cartas em que a mãe de
Eleanor revelava tudo.
— O que diz? — Ellen perguntou chocada. — Stephen será
assassinado pelo irmão?
— Eles pagaram para uma pessoa criar o acidente nas docas.
Edmund chantageou Agnes sobre coisas que o irmão de Eleanor fez.
Nunca foi provado e Edmund morreu Conde, mas se alguém
soubesse…
— PRECISO VOLTAR E IMPEDI-LOS, EU PRECISO! — Ellen
gritou e colocou as mãos no rosto, à beira de lágrimas. Grayson
observou a mulher voltar a caminhar pelo quarto, energética, como
se buscasse respostas para aquela confusão.
— Por algum motivo, Agnes achava que o título voltaria para a
família e por isso participou do plano. Ela queria vingança e ter o
baronato de Clifton de volta. Nunca descobriram o que eles fizeram e
nem ao menos investigaram a morte do Conde, o que foi estranho
para a época. Em seus diários, tinham coisas sobre matar o Barão
da época, deixar o título para o filho de Eleanor e Edmund. Ela não
estava bem quando foi isolada pelo irmão do Conde, isso posso
garantir. O Barão também morreu muitos anos depois.
— Eu sei como evitaram a investigação — ela anunciou. — Ela
dizia o tempo todo sobre o pedido do colar… É só pedir para o colar,
é isso… Porque eu quero voltar…!
— Devemos ler sua carta, Ellen. Você deixou o colar e a carta.
— Está aqui? — Ela apontou para a pilha de documentos, e
Grayson caminhou até eles, retirando um invólucro e estendendo-o
para ela.
— A carta está separada, vou buscá-la. Aqui está tudo que
achamos sobre os Sterling. Sua família estava envolvida com alguns
crimes, Ellen. É bom que seu familiar tenha sido criado longe de
Agnes ou Augustus. Nellie achava que você trocou com ela porque é
uma Sterling mulher com idade próxima à dela… A única outra
pessoa seria eu, mas há algo sobre minha família… — Ele deu de
ombros, interrompendo-se por não querer falar sobre o rumor que
corria pela família: a traição de sua vó e a origem dúbia de seu pai.
— Que não vale a pena compartilhar nesse momento.
— Você passou tempo demais estudando tudo isso — Ellen disse,
observando os documentos em suas mãos.
— Não tínhamos como saber o que aconteceu com Eleanor, então
passamos a investigar.
— Isso do meu parente não me acalma nem um pouco. Acho que
o colar tem me feito mal todo esse tempo. Depois do acidente, fiquei
doente, passei a sentir dores de cabeça. É tudo culpa desse maldito
colar! — ela falou, tentando retirar a joia do pescoço, seus nervos
não a deixando acertar o fecho enquanto derrubava os papéis no
chão, formando uma confusão ao seu redor.
— Me deixe fazer isso — Grayson pediu, abrindo o colar e
pegando-o com cuidado em suas mãos. — Se ele é mágico mesmo,
devemos fazer algo. É perigoso que ele seja deixado aqui, desse
jeito…
— Por que não me lembro da tal carta? Detesto me sentir tão
impossibilitada como estou agora. Não sei de nada, não lembrava de
nada disso… De um lado a outro, é como se não tivesse
lembranças. Aqui… no passado…
— Você ainda não a escreveu. Bem-vinda à confusão de linhas
temporais, isso tirou algumas das minhas noites — ele disse no
mesmo momento que Ellen se abaixou no chão, analisando os papéis
até encontrar uma correspondência com seu nome.
— E isso, o que é?
— Uma carta de Nellie para você.
— Para mim?
— Ela se sentia tão culpada que sugeri escrever uma carta. Nellie
tinha medo de procurar um psicólogo e acharem que ela estava
delirando sobre um passado e uma viagem no tempo… — Ele arfou,
impotente. — Não tiro a razão dela. Se não convivesse com ela,
também acharia uma loucura. Nellie escreveu uma carta para você e
falava todo o tempo de quão culpada se sentia sobre tudo.
— Posso ler? — ela indagou, esticando sua mão e pegando o
envelope com a caligrafia elegante. Sentou-se na cama no mesmo
instante que Grayson balançou a cabeça em afirmativa.
— Ela é para você, só não esperava que você a leria em algum
momento — ele respondeu, encarando-a sério. — Vou pegar a carta.
Nós precisamos de respostas e me dá medo de que Nellie esteja
presa em um passado que a aterroriza.
— Eu disse, Stephen não é um homem ruim. Ele foi chantageado
por Agnes. Se pudesse culpar alguém pela situação do casamento,
seria a mãe de Eleanor.
— Se pudesse voltar no tempo, esganaria essa mulher por tudo
que fez com Nellie — ele anunciou irritado.
— Talvez eu possa. Vou fazê-la pagar, vou evitar que tudo isso
aconteça — Ellen sussurrou, abrindo a mensagem e prestando
atenção nas palavras enquanto ouvia os passos de Grayson à
distância.
— Tudo bem? — Grayson perguntou, analisando a mulher confusa
em seu quarto. Ellen leu a carta de Nellie nos minutos que o homem
ficou longe e parecia emocionada. Ele portava o envelope lacrado
que parecia seco da chuva do dia anterior apesar do papel frágil.
— Ela se arrepende e diz que ama você — a restauradora
respondeu, olhando para o homem em confusão. — E se isso existe
mesmo, e se nós duas trocamos…
— Você ainda tem dúvidas? Ellen… você esteve em 1814, você
viveu como Eleanor, você se apaixonou pelo Conde.
— Parece tão distante, um sonho… um…
— Estaria disposta a voltar para lá? Mesmo contra a sua
natureza, contra as modernidades?
— Estar sem ele é como uma meia vida, Grayson. Você não faria
o mesmo por Eleanor? — ela indagou em um fio de voz, olhando
para ele quase em uma confissão, sabendo que no meio da loucura
sobre a viagem no tempo, o herdeiro da família Canning seria a única
pessoa a entender seus loucos pensamentos.
— Sim, mas é diferente.
— Diferente como?
— A Condessa de Bradford é condenada a casar com o irmão de
Stephen Canning e morre no parto.
— Não vou deixar Stephen morrer! Preciso voltar para impedir que
Edmund…! — Ellen ralhou, sua voz se quebrando pela dor das
lágrimas não derramadas.
— Você pode conseguir salvá-lo. Mas e seu corpo? Se não
conseguir dar luz a uma criança?
— Não quero pensar nisso.
— Você o faria, não é? — Grayson indagou sabendo a resposta.
Ele podia observar pela postura da mulher à sua frente e pelo jeito
apaixonado que falava sobre o Conde que Ellen desejava voltar a
viver a vida mesmo com as limitações do século 19.
— O quê? — ela perguntou fazendo-se de desentendida.
— Você sabe que a Condessa morreu, mas não a criança. Você
engravidaria de qualquer forma e tentaria tê-la mesmo sem a
medicina moderna, mesmo sem um hospital…
— Eu amo Stephen, Grayson, e não tenho como evitar uma
gravidez em 1814. Prefiro uma vida curta à que vivia aqui. Prefiro tê-
lo por alguns anos, meses até, do que não existir no mesmo mundo
que ele. Entende?
— Mais do que pode imaginar… — ele murmurou, sabendo que
faria o mesmo por Eleanor. Merda… Se Ellen voltasse e mudasse o
passado, talvez ele jamais existisse naquela realidade, mas estava
feliz por ter Nellie longe da opressão que ela sentia em sua vida
anterior.
— O corpo de Eleanor talvez não consiga, mas pode ser
diferente. Talvez o peso de ter participado do plano com a mãe, a
tristeza do casamento com Edmund, tudo tenha influenciado em sua
força na hora do parto. Quero acreditar que vai ser diferente, quero
voltar para que aconteça de outro jeito. É melhor do que descobrir
que tudo não passou de uma alucinação, de um problema
psicológico. Eu não… não aguentaria.
— Não perca a fé, Ellen — disse afetuoso, dando um pequeno
apertão no ombro da mulher, escondido pelo cobertor. Ela sorriu
para ele pela primeira vez, um sorriso aberto e sincero como não foi
capaz de dar pela atenção “excessiva” que o homem costumava
demonstrar para ela.
— O que pode acontecer? Não existem estudos técnicos sobre
viagem no tempo… eu acho. Não dá para saber o que dará errado.
— Bem… tudo é um campo hipotético. Andei pesquisando, mas
não consigo afirmar nada, só que as coisas podem dar certo… ou
não.
— O que isso significa?
— Se você conseguiu enviar essa carta do passado, algo deu
certo, mas talvez não dê porque estamos em um conjunto de
realidades alternativas que…
— O quê? — a restauradora interrompeu-o confusa, fazendo um
sinal com as mãos para Grayson parar a metralhadora de palavras.
— Eu não sei qual é o paradoxo temporal real, Ellen, nem o que
aconteceu entre você e a Eleanor. Existem algumas teorias, como a
de que não podemos mudar a história. Isso aconteceu do jeito que
deveria acontecer, então a carta chegou porque você conseguiu
voltar.
— Isso é bom, não é…? — ela indagou, desconfiada pelo tom de
voz de Grayson.
— Sim, a menos que consigamos mesmo mudar. Como aquele
filme Efeito Borboleta. O protagonista comete erro atrás de erro
tentando viajar no tempo para mudar algo…
— Então poderíamos ser um erro? — ela perguntou impotente. —
Estarmos mexendo na história e a modificando?
— Basicamente… causando consequências catastróficas. Por
exemplo, se você salva Stephen, destruirá mais de duzentos anos da
minha família, e pessoas que viveram com elas. É um impacto
enorme sobre muitas vidas. Estaria preparada para isso?
— Eu não sei, Grayson… Não pensei nisso antes.
— Talvez nem eu mesmo esteja aqui… Eu não nasceria, não é?
— Tem que ter uma outra opção… Ahhhhh…! — Ellen suspirou,
andando de um lado para o outro do quarto. — Eu não quero matar
ninguém, só quero salvar Stephen.
— Tecnicamente, eles nem nasceriam…
— Grayson!
— Ok… A última teoria é a de multiversos — ele anunciou, como
se tentasse lembrar de tudo que estudou nos últimos meses.
— Como o filme do Homem-Aranha!
— É… — Grayson riu. — Você é uma nerd, Ellen!
— Passei tempo demais com a televisão e minha gata, Grayson…
Estou tentando viver aqui, mesmo em um passado sem
entretenimento sob demanda.
— Bem… Talvez tenha uma realidade para Eleanor no passado,
outra para você, outra para ela aqui, outra para caso você não
consiga salvar Stephen… Uma confusão sem limites com várias
realidades paralelas e nós estejamos em uma delas.
— O que isso significa?
— Que o seu futuro, no passado ou não, ainda é aberto.
— E temos como saber o que fazer? Onde estamos? — ela
questionou, encarando Grayson com seriedade. — Isso vai dar
certo?
— Nós devemos tentar. Eu sei que podem ter consequências, mas
saber que Nellie está perdida em algum lugar, talvez sem consciência
dessa confusão… Quero tentar.
— Eu preciso tentar. Sei que você, seus parentes… — Ellen
informou, sua voz morrendo sem concluir o pensamento. — Mas ele
vai morrer, Grayson…
— Eu sei, Elly. Está tudo bem — ele respondeu lúgubre.
— Você tem a carta?
— Aqui…
— Você a leu?
— Preferi que fizéssemos juntos.
— Está pronto?
— Sem ressentimentos, mas quero minha mulher de volta. — Ele
deu um leve sorriso, abrindo o selo do envelope e rompendo o papel
de mais de duzentos anos. Desdobrou-o com cuidado, sentando-se
ao lado de Ellen para ler as instruções da Condessa.

Querido Grayson,
Há coisas que não sabe sobre mim e que pretendo manter em
silêncio. No dia do meu casamento, algo mudou em mim e me
transformou na mulher que sou hoje. Tornar-me a Condessa de
Bradford foi minha sorte e meu azar, um fardo e um prêmio difíceis
de entender. Até hoje não sei exatamente como cheguei a este
lugar. Não sei o quanto estaria disposta a revelar para fazê-lo
entender o que deve fazer quando chegar o momento, e Deus sabe
que quem quer que também esteja lendo esta carta pode achar que
perdi a cabeça. Algo grande irá acontecer, e quero que esteja
preparado para as consequências de meus atos impensados.
Talvez nunca compreenda a importância dessa carta, mas preciso
que entenda as escolhas que fiz e por que isso deve ser feito do
jeito que planejei. Estamos fazendo isso por um bem maior e não
deve contar isso a ninguém.
Eu sei, é confuso receber uma carta de alguém com séculos de
diferença, mas há mistérios que não devem ser revelados e
caminhos que precisam ser percorridos. Não vou me repetir sobre
minha história; no tempo correto, você vai saber sobre ela, mas o
que preciso contar é que, daqui de onde escrevo, descobri coisas
assustadoras e que nunca poderia imaginar. O seu papel é fazê-las
diferentes. Para você e para todos nós. Desculpe o texto cifrado,
mas não sei se quando isso chegar a suas mãos já saberá os
motivos. Talvez a leia antes contra meus desejos e volte a ela
quando for necessário, talvez a encontre no momento ideal e faça o
que é certo. Eu apenas torço e espero que as coisas voltem a
acontecer como aconteceram antes, Grayson.
Você receberá, junto à carta, um colar, passado de geração em
geração para minha família, como um amuleto da sorte. Quero que
preste atenção a cada passo do que vou pedir. O plano só ocorrerá
corretamente se as coisas acontecerem do jeito certo, ele tem o
potencial de mudar sua vida como a conhece. É incerto se as
coisas que pensei darão resultado, mas espero que o destruir seja
a nossa salvação. Está em nossas mãos fazer o que é certo, é
preciso quebrar o laço para que algo novo aconteça.
Deixe Ellen fazer seu desejo, dê tempo para ela, a jornada que
irá percorrer será longa. Destrua o colar até o final do dia, quebre
cada parte com algo afiado e pesado até fazê-lo em tantos pedaços
que será difícil reuni-lo novamente. Enterre seus restos em cantos
separados, jogue em um rio ou até mesmo queime se possível. É
algo muito poderoso que poderia cair nas mãos erradas e fazer
muitas pessoas sofrerem. Lembre-se, o desejo precisa vir do mais
fundo dos desejos… a mágica por trás deste objeto não é boba e
fácil. É preciso acreditar com todo o coração para que as coisas
aconteçam.
Não perca a fé.
Eleanor Canning, Condessa de Bradford (ou apenas Elly)

— É só isso? Destruir o colar e consigo voltar de novo? — Ellen


perguntou confusa, apontando para o papel.
— Você precisa desejar de novo e depois fazemos isso. Você tem
um dia inteiro. O que pode ser complicado nisso?
— E se eu gastei meu desejo? E se o usei com algo banal, por
engano? — a mulher disse, seu pensamento correndo na velocidade
da luz, tentando se lembrar de todas as vezes que teve o colar em
suas mãos.
— Nós precisamos tentar… você precisa tentar.
— E como vou saber se deu certo? Vai sair alguma luzinha, uma
música…? Os filmes criaram expectativa demais sobre isso!
— Eu não sei, Ellen! Talvez você devesse ter sido mais clara
quando escreveu essa carta! — ele respondeu irritado.
— Não escrevi essa carta! — ela resmungou.
— Tudo bem… — Grayson retrucou, tentando acalmar a própria
voz, expirando o ar de seus pulmões como se tentasse se
concentrar. — No paradoxo do tempo, você fez errado. Está melhor?
— Sim… — Ela bufou. — Você teria alguma roupa para me dar?
— Roupa?
— Ainda estou com essa camisola vaporosa. Eu acordei na cama
errada, ouvi sobre viagem no tempo, colar mágico, paradoxo
temporal… tudo isso em uma roupa tão curta que é possível ver
minha calcinha. Preciso de uma calça e uma camiseta e um lugar
silencioso para encarar esse colar até que ele faça meu desejo, nem
que seja na base da porrada!
— Ellen!
— O quê? Mandei a gente quebrar no paradoxo temporal, você
mesmo disse que a carta é minha. Eu crio as regras! Ou vou criar
em algum momento — ela anunciou petulante, fazendo uma careta
para Grayson.

Ellen passou as doze horas seguintes sentada com o colar,


fazendo todo tipo de pedido. Ela falou em voz alta, mentalizou,
dançou, acendeu incensos… nada parecia ter mudado. Vez ou outra
Grayson aparecia na porta do quarto, observando-a com
esperanças, e ia embora, dando espaço para o que quer que tivesse
que acontecer, funcionar. “O desejo precisa vir do mais fundo dos
desejos… a mágica por trás deste objeto não é boba e fácil. É
preciso acreditar com todo o coração para que as coisas
aconteçam”, dizia a carta. Grayson vivia a agonia de depender de
outra pessoa, impassivo sobre as consequências do sucesso de
Ellen com a joia verde esmeralda.
Tentou se distrair, mas nada afastava os pensamentos da agonia
de Eleanor em 1814. Ela não queria voltar para a data ou ver a mãe
de novo, e do dia para a noite foi enviada para o Conde. Por mais
que a restauradora garantisse que Stephen Canning era uma boa
pessoa, o executivo tinha receio, já que Nellie o considerava uma
ameaça. O alarme do celular de Grayson o tirou dos pensamentos.
Faltava quinze minutos para o prazo final e Ellen continuava sem
sucesso em sua tentativa de fazer a joia da família funcionar. Era
quase meia-noite e o colar precisava ser destruído.
— Não acontece nada, Grayson!!! Ainda estou aqui, depois de
todas estas horas. Eu não voltei… Stephen vai morrer por minha
culpa, MINHA CULPA! — a mulher gritou, e o empresário a
acompanhou em um misto de pena e pesar. Doía saber que a magia
do acessório não traria Nellie de volta. Não… algo precisava ser
feito. Ele não desistiria tão fácil. Sentia a garganta fechada e estava
a um passo de chorar, mas tentava ser confiante.
— Ellen, acalme-se. Se você escreveu esta carta, conseguiu
voltar. Deve haver alguma coisa…
— É quase meia-noite. Nós passamos o dia tentando fazê-lo
funcionar… alguma luz, uma magia, e nada! — Ela suspirou
derrotada. — Quero voltar para salvar Stephen, quero tê-lo pelo
pouco tempo que tiver, quero uma família… fazê-lo feliz.
— Nós vamos conseguir — ele sussurrou, quebrado. — Nellie
precisa voltar para mim, sem ela… eu…
— Me perdoe, Grayson, por favor… me perdoe — ela pediu entre
lágrimas. —Quero voltar, preciso voltar… eu… Tome, quebre o colar.
— Mas nada aconteceu! — ele disse com a voz embargada.
— O colar precisa ser quebrado até o final do dia, é uma das
regras. Se eu não voltar, se Nellie não voltar, ao menos teremos a
certeza de que nada mais vai acontecer.
— Mas…
— Eu estraguei tudo, o maldito paradoxo e as linhas temporais.
Nessa realidade, não consigo voltar. Nessa… — Ela parou, sua voz
quebrando de emoção. — Quebre-o, por favor… Eu não sei se sou
capaz.
Grayson se levantou em silêncio com as joias na mão. Na sala,
pegou um martelo e, colocando o colar sobre a mesa, encarou as
pedras verdes brilhantes. Com todo o ódio que tinha dentro dele,
desferiu o primeiro golpe, ouvindo o metal do colar fazer um barulho
estranho. Ele queria descontar na peça a sua frustração, batendo
mais e mais vezes até ouvir o objeto se quebrar, rachando as
pedras. Ellen fez um movimento de cabeça e pegou parte do colar
com as mãos, puxando as pedras com força e as arrebentando da
corda, machucando os dedos a cada novo movimento. Eles
passaram os minutos seguintes tendo certeza de que cada peça
daquela joia estava arrebentada, fragmentada ou lascada a ponto de
não conseguirem se unir outra vez, dividindo-o em partes e
separando-o em pequenos saquinhos que deveriam ser espalhados
por lugares diferentes.
O relógio marcou meia-noite, e Grayson e Ellen encararam-se
como se esperando que uma mágica acontecesse e a mulher fosse
transportada para o passado. Nada aconteceu. Quando o alarme
tocou de novo, eles se encararam e perceberam que nada ia mudar.
A tensão que tomava os músculos do empresário quase o partia em
dois, o peito embargado conforme segurava as lágrimas silenciosas.
Ele nunca mais veria Nellie?
— Eu falhei, Grayson… eu falhei… — Ellen disse, ajoelhando-se
no chão, sentindo a dor tomar seu peito e o choro correr livre por seu
rosto. — Trocaria qualquer coisa… qualquer coisa, apenas para vê-
lo uma última vez. Para salvá-lo. Ele não merece… Eu o amo tanto!
Grayson abaixou-se ao seu lado, escondendo o rosto entre as
mãos e suspirando dolorido. Sentia o seu coração apertar da mesma
forma com a perspectiva de nunca mais ver Eleanor. Precisava dela
como do ar para respirar, sua presença doce e calma no meio do
turbilhão de sua vida.
— Nós tentamos, Ellen — ele falou lúgubre. — Eu preciso…
preciso checar os livros para ver se algo mudou.
— Vou para minha casa — ela anunciou, respirando com
dificuldade, tentando se acalmar da crise de choro.
— Fique, durma no quarto de hóspedes, está tarde.
— Preciso ter minhas coisas a meu redor. Se eu conseguir… não
sei… — ela explicou hesitante. — Não tenho muito, e diga para
Eleanor fazer o que quiser com a casa.
— Dói muito, Ellen.
— Eu sei… Demais — ela completou, abraçando Grayson e
dividindo a dor daquela perda. Não parecia como se pudessem se
recuperar.
Grayson se arrastou da cama disposto a procurar por Ellen mais
uma vez. Depois da meia-noite, ele recolheu os sacos com pedaços
do colar e passou a madrugada espalhando os pedaços da joia por
Londres. Estava exausto, mas incapaz de ficar em seu apartamento
em Knightsbridge. Não seria justo perdê-la quando apenas tinham
se encontrado, não? O homem não sabia explicar a ligação que tinha
com Nellie, nem a forma que ela o fazia se sentir desde que surgiu
em sua vida, e sentia que sem ela as coisas não faziam sentido. Não
tinha ideia de como seguir.
Ele estava além dos próprios sentimentos, vivendo a agonia de
saber, desde que Ellen acordou no próprio corpo, que Nellie voltou
ao destino trágico de Eleanor. Sabia das consequências da volta da
restauradora a 1814, mas preferia a jovem a salvo naquela linha
temporal do que presa em uma armadilha com contagem regressiva
no passado. Não se importava que estivesse destinado a sumir
quando sua linhagem fosse modificada; um futuro melhor para
Eleanor era tudo o que conseguia pensar.
Grayson sentiu-se atraído por Ellen, mas reencontrá-la de novo só
fortaleceu a certeza no coração do homem: sempre foi Nellie. Nada o
preparou para a doçura, calma e timidez de Eleanor, seus gestos tão
contidos e a felicidade por cada aceno de liberdade. Foi o que mais
doeu quando chegou em casa naquela manhã e percebeu que elas
haviam trocado de novo, sem motivo aparente. O coração dele se
sentiu esmagado, doendo como se tivesse perdido alguma parte de
seu corpo.
Ele caminhou até a cozinha e preparou um café. Observando o
Tâmisa à distância conforme os raios do amanhecer iluminavam o
rio, refletia sobre os acontecimentos na noite anterior. Viagem no
tempo, realidades paralelas, uma jovem que nasceu duzentos anos
antes e por quem ele estava apaixonado. Grayson soube disso no
momento que a viu, realmente a viu, com os olhos curiosos no
hospital, não reconhecendo o seu arredor. Sempre foi Nellie e não
Ellen. Ele se apaixonou pela mulher e tinha medo de ela se tornar
apenas uma lembrança em sua cabeça, uma história fantástica que
nunca poderia compartilhar com mais ninguém, a solidão voltando a
ser sua companheira como antes.
A batida na porta ressoou alta e por alguns segundos teve
esperança. Talvez… Grayson largou sua xícara e correu para a
entrada do apartamento, percebendo o peso do sono acumulado das
apenas duas horas de descanso. O empresário abriu a porta com
urgência, e ela pulou sobre ele, enrolando suas pernas em seu
quadril e grudando seus lábios nos dele. Nellie. Ela chorava,
apertando-o contra seus braços, grudada como se nunca fosse
soltá-lo. O alívio percorria o corpo do homem, fazendo-o tremer,
prestes a desabar, ao mesmo tempo que era incapaz de afastá-la de
si. Grayson sentia a urgência, a dor, o nervosismo… o amor.
— Eu acordei no apartamento de Ellen… eu… eu… — Eleanor
fungou, e ele procurou seus lábios como alguém sedento e
desesperado.
— Achei que não a veria de novo — Grayson sussurrou em
resposta e fechou a porta atrás de si, mantendo-a agarrada ao seu
corpo.
— Eu dormi e não consegui acordar. Entendi o que aconteceu
quando ouvi a voz dele… Ele a ama, Grayson. Pedia para ela voltar,
chorava a seu lado. Podia ouvir tudo, só não conseguia me mover.
— E Agnes…?
— Apenas o Conde. Ele e sua voz falando com ela. Era de cortar
o coração…
— Ah, amor…
— Eu sei… — ela comentou, secando as lágrimas com os dedos.
— Não vou me afastar de você nunca mais. Terá que me aguentar!
Quanto tempo nós temos?
— Como assim?
— Se ela voltou, Ellen vai impedir a morte de Stephen e sem
isso… você não vai existir — ela respondeu, seu rosto se
contorcendo de dor, beijando-o profundamente, como se precisasse
provar sem palavras seus sentimentos.
— Pode acontecer a qualquer momento. Achei que não acordaria
essa manhã se significasse você estar de volta. Quando abri meus
olhos e ainda estava lá foi… foi devastador.
— O que aconteceu? — Nellie perguntou e se desvencilhou do
colo de Grayson, sentando-se no sofá com olhos expectantes. — Eu
estava lá e de repente já não estava mais. O que me trouxe de
volta?
— Lembra-se da carta e do colar? Pois bem, o colar era mágico e
realizava um desejo de cada mulher de sua família. Parece loucura,
mas, bem… viagem no tempo também é — Grayson respondeu e
deu de ombros. — O colar trocou vocês duas de novo como algum
tipo de punição. Ellen escreveu a carta explicando como fazê-la
retornar.
— Mágico?
— Eu sei, é uma loucura… Mas funcionou. Lembra-se de como foi
parar lá?
— Durante a noite, senti algo estranho, mas só percebi que
estava lá quando comecei a sentir as coisas ao meu redor e não
conseguia me mexer. — Ela suspirou chateada, e ele sentou-se ao
lado dela, agarrando seus dedos. — Isso significa que não voltarei
mais?
— O colar está destruído, só precisamos saber se Ellen continuou
com o que planejava — Grayson explicou e pegou o celular em seu
bolso, digitando no aparelho.
— O que está fazendo?
— Procurando por Stephen e Ellen. Está segura aqui, meu amor.
Se o colar foi o responsável por te trazer, não existe mais.
— Mas você não está seguro! — ela comentou contrariada. —
Acha que as coisas já se modificaram? Se fosse seguir a sua
teoria…
— De linhas temporais, eu sei. Mas já passou. Ellen acabou de
voltar e ainda vai modificar o passado. Mas ele já aconteceu onde
nós estamos, e conseguimos saber se ainda continua como era ou
não.
— Mas isso não significaria você não existir? — ela indagou
temerosa.
— O multiverso depende de pessoas, querida. Se ainda não
chegou o momento da morte de Stephen, eu continuo aqui. Lembra
das colunas de fofoca que foram aparecendo ao longo da pesquisa?
Era Ellen modificando 1814 — Grayson comentou e soltou um
suspiro cansado. — Talvez tenhamos pouco tempo, ou, bem, eu só
não acorde amanhã.
— Não fale isso! — ela resmungou.
— É a verdade. Não temos como prever o que vai acontecer em
seguida. Nenhum livro que estudei pode antecipar um fenômeno que
oficialmente não existe.
— Acha que vamos encontrar alguma informação?
— Aqui está… — ele respondeu e olhou para a tela do celular,
inclinando o aparelho para a mulher. — Stephen Canning morreu na
idade avançada de oitenta e dois anos. Ellen morreu poucos meses
antes. Tem uma imagem, veja!
— São eles? — ela tremeu quando Grayson mostrou a foto,
vendo o próprio rosto do passado com traços envelhecidos. — Com
quatro filhos?
— É uma foto de época, mas ao menos consigo ver um sorriso
nos lábios de Ellen. Você era muito bonita nessa vida.
— Já não me sinto essa garota. É estranho pensar que já tive
cabelos escuros — ela sussurrou com um sorriso suave. — Mas fico
feliz por eles. Só não sei…
— Há uma chance — o empresário a interrompeu, e a jovem o
encarou com olhos brilhantes em expectativa. — Não crie
esperanças, pois não sei o quão certa é essa informação. Meu pai
dizia que era fofoca de parte da família que não gostava da minha
avó.
— O que é?
— Dizem que meu pai não é filho do meu avô, mas sim fruto de
um caso de minha avó antes do casamento. Ela se casou com um
Canning para esconder a “desonra” de uma gravidez não planejada.
Como era um escândalo que colocaria em xeque o herdeiro do título,
a história foi abafada e ninguém mais falou sobre isso. É uma fofoca
de família.
— Então acha que…
— Pode ser mentira ou verdade, não temos como saber. Talvez
quando as coisas se modificarem, eu esteja com outro nome, com
outra condição social, nem mesmo na Inglaterra já que diziam que o
homem nem era daqui…
— Será que temos tempo para procurar? Deve existir algum
documento!
— Eu não quero — ele afirmou e deu um beijo suave nos lábios
dela. — Preciso aproveitar todo o tempo que nos resta e descobrir o
que fazer depois. Não aguento mais viver na agonia de um futuro.
Tenho você no meu presente. Achei que nunca mais a veria, meu
amor.
— Mas eu…
— Sei que isso te agonia — ele interrompeu e colocou o dedo nos
lábios de Nellie. — Mas é a primeira vez desde que toda essa
história começou que me sinto feliz. Antes, tinha medo de sua
memória e de como poderia não me querer ao recordar sua vida.
Depois, achei que ficaria presa no passado. Eu quero amar você
livremente.
— Tudo bem — ela respondeu com um sorriso e balançou a
cabeça em concordância.
— Quero me casar com você — ele anunciou com um sorriso. —
Me pediu para pedi-la corretamente, então aí vai: Eleanor Elizabeth
Sterling, aceita ser minha esposa?
— Como assim?
— Não era essa a resposta que eu procurava — o empresário
brincou e ficou sério, encarando Nellie nos olhos. — Se ela voltou e
conseguiu impedir a morte de Stephen, isso significa que temos duas
semanas ou um pouco mais do que isso. Não quero vivê-las sem
você.
— Não precisamos nos casar, Grayson.
— Quem diria que a garota que nem mesmo queria ficar sozinha
comigo em um mesmo cômodo agora não liga para casamentos.
— Quero estar com você, é isso que importa para mim.
— E eu quero fazer lembranças, mesmo que você não consiga
lembrar de mim depois que tudo mudar.
— Não diga isso!
— Vocês duas acordaram sem memória. Pode acontecer. — Ele
deu de ombros.
— O que fazemos agora?
— Vá se arrumar. Temos uma viagem para fazer?
— Para onde?
— Gretna Green.

Grayson e Nellie voltaram à estrada em uma viagem de quase


seis horas em direção à Escócia. O executivo estava disposto a se
casar em Gretna Green como uma espécie de homenagem à época
de Eleanor, mas também por questões práticas: tinham pouco
tempo, e na Inglaterra teriam que esperar ao menos vinte e oito dias
antes da cerimônia acontecer. Já na pequena cidade escocesa,
poderiam se unir com a bênção do ferreiro e transformar a mulher,
pelo menos por algumas semanas, em Nellie Canning.
Gretna Green se localizava na fronteira do país, às margens do
rio Sark. Ficou famosa pelos casamentos repentinos de jovens que
buscavam se unir sem a aprovação dos pais. Durante o século 19,
nobres cruzavam a Inglaterra para garantir um matrimônio legal fora
das regras de casamento da época: pessoas com menos de vinte e
um anos não podiam se casar sem consentimento da família em
território inglês depois de uma lei de 1754. Na Escócia, era
permitido, com a benção de forjadores locais que também realizavam
a cerimônia, causando fugas para além das fronteiras.
A escapada de Grayson e Nellie não tinha a ver com a aprovação
da família — e o empresário se divertia ao pensar qual seria a
reação de Agnes se soubesse da “vida em pecado” que estava
levando com a filha do antigo Barão de Clifton —, e sim com a
pressa. O dia estava nublado quando o casal estacionou em frente à
Gretna Green Famous Blacksmiths Shop. Depois de alguns minutos
de conversa, foram até a frente da bigorna, uma tradição local, e
declararam seus votos matrimoniais.
Eleanor usava um vestido simples, branco, que encontrou entre as
coisas de Ellen, e os cabelos soltos e suaves, as mechas loiras
caindo pelos ombros, decorado com flores delicadas. Grayson
trajava mais uma das suas roupas sociais e um pequeno ramo da
mesma flor em sua lapela. Apesar da simplicidade das roupas,
ambos reluziam de felicidade, o sorriso sincero nos lábios um do
outro.
— Você começa, senhorita Ellen Morris — o ferreiro e celebrante
pediu com um sotaque carregado.
— Eu, Nellie — a mulher corrigiu. Grayson sorriu para ela e piscou
em entendimento —, prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na
tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos
os dias da minha vida.
— Eu, Grayson, prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na
tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos
os dias da minha vida. — Ele pigarreou, a voz embargada, e sorriu.
— Nunca vou te deixar ir, querida. Mesmo que tudo mude.
— Mesmo que tudo mude… — ela sussurrou de volta e se esticou
para beijar os lábios do executivo com delicadeza.
— Esperem só um pouco — o homem pediu com uma risada. —
Onde está o anel?
— Nós tínhamos tanta pressa que…
— Ah, isso é um pouco irregular — o celebrante continuou com
seu sorriso suave. — Mas como esperar racionalidade dos
apaixonados?
Nellie ficou vermelha de vergonha, o que fez Grayson rir. Ele
apertou as mãos da mulher, fazendo um carinho suave enquanto
encaravam o ferreiro sorridente.
— Podemos prosseguir? — o empresário pediu.
— Claro, claro. Pelos poderes a mim concedidos, eu vos declaro
marido e mulher. Agora sim, pode beijar a noiva!
Grayson se esticou para Nellie e tocou seus lábios nos dela. Ele
sabia que tinha um prazo de validade e que todas as escolhas das
últimas semanas tinham os levado para aquele momento. Sentia a
finitude de sua existência, mas era incapaz de pensar além dos dias
que poderia ter com Eleanor. Nas horas seguintes à volta da jovem,
eles planejaram e decidiram se afastar do mundo.
Ele queria contemplar as escolhas e pensar em uma forma de
sobreviver, mas nada daquilo estava nas suas mãos. Em vez disso,
avisou para Nicolas que estava se afastando e viveu a tortura interna
de não saber o que seria em seguida, por mais que tivesse feito
contas e pesquisas. Nellie fez o mesmo e parou com as aulas de
piano, dedicando-se inteira aos dias que ainda tinham.
O homem sabia que Stephen Canning fora assassinado em 03 de
agosto, o que significava que, se Ellen voltou para o mesmo
momento que partiu, ele e Nellie tinham duas semanas ou menos
antes que tudo mudasse para sempre. Isso se existisse algum tipo
de regra sobre a viagem do tempo das duas mulheres. Não era
possível saber o que viria em seguida, se existiam realidades
alternativas, se ambos sumiriam se algo acontecesse. Era por isso
que Grayson não queria pensar em futuro.
— E agora? — ela perguntou quando entraram no carro depois da
cerimônia.
— Arranjar algumas alianças, buscar Mary e conseguir um lugar
onde só estejamos nós dois. Que tal Yorkshire?
— Vamos para Bradford Hall?
— Não! — Ele riu. — Nem eu posso mais me hospedar lá. Minha
mãe tinha uma propriedade. É linda, afastada e bucólica, acho que
irá adorar.
— Para nossos últimos dias… — ela completou e sentiu o nó na
garganta. — Não quero perder você, Grayson, não depois que o
encontrei.
— Talvez sejamos tirados um do outro sem perceber, meu amor.
Talvez não consigamos nos despedir. Entende isso? — ele comentou
e olhou para frente, como se não conseguisse encarar Nellie e o
impacto de seu olhar esmeralda. — Quero me despedir todos os
dias. Não vai sair da minha cama ou dos meus braços. Cada minuto
meu será seu, cada momento da minha vida pertence a você.
— Eu te amo, Grayson. Não esqueça disso.
— E eu amo você, Nellie. Pelo tempo que estiver nesse mundo —
ele respondeu e puxou o braço da mulher para dar um beijo suave no
pulso antes de segurar no volante mais uma vez. — Pronta para
voltar a Londres?
Grayson sentiu os dedos de Nellie taparem seus olhos e sorriu.
Faltava pouco para o anoitecer, e ela estava brincando com Mary do
lado de fora da casa, o vento gelado entrando pela janela. Ele, por
outro lado, aproveitava o final da tarde com um livro, sentado em
uma das poltronas da varanda.
— Só pode ser você, meu amor. Não tem mais ninguém aqui —
ele anunciou, e Eleanor se virou para ele com um sorriso nos lábios.
Desde que decidiram ir para Yorkshire, viviam uma vida idílica.
Pela primeira vez, Grayson se deu ao luxo de apenas ver filmes, ler
livros e se deitar sob o sol. A casa era pequena, nada perto das
suntuosidades históricas da região, mas boa o suficiente para o
casal aproveitar a extensão verde dos campos, salpicado por
pequenas flores amarelas, banhados pela temperatura amena.
Existia o sabor amargo da despedida, mas o empresário tentava
afastá-lo da mente a todo custo, focando-se nos doces momentos
com sua esposa. Adorava aquela palavra. Em Londres, conseguiram
um anel, e Grayson amava o peso do metal sobre seu dedo anelar.
Era uma promessa, voltariam a se encontrar. Depois, se
esconderam na propriedade, de onde não saíram desde o instante
que chegaram, compartilhando fotos e as pequenas lembranças que
o lugar trazia para ele como o refúgio de sua mãe.
— Por que tão pensativo? — ela perguntou com um sorriso e se
alojou no colo do homem, encarando-o com amor. Depositou o livro
que ele tinha nas mãos na mesinha próxima, antes de enlaçar os
braços no ombro de Grayson.
— Você sabe o porquê.
— Nós combinamos de não pensar a respeito.
— Mas é impossível, por mais que eu tente. — Ele bufou. — Fico
preocupado todo o tempo. Com você, comigo, até com a maldita
gata.
— Shiii! — ela pediu e colocou o dedo sobre os lábios do homem.
— Posso te fazer esquecer.
Ela o encarou com desejo e juntou sua boca na dele. Conforme
foram se acostumando com o corpo um do outro, Nellie tornou-se
mais ousada e segura de si. Ela ia atrás de seu prazer e continuava
com o hábito de não usar calcinhas. Grayson segurou o rosto da
mulher com delicadeza, aprofundando o beijo e saboreando cada
contorno dos lábios de Eleanor sem pressa, como se pudesse ficar
preso naquele momento enquanto as línguas duelavam, o corpo se
acendia e ambos gemiam de prazer.
Nellie puxou a camisa de Grayson para fora do corpo ao mesmo
tempo que o executivo deslizava o vestido da mulher, jogando-o
longe. As mãos tremiam pela rapidez, ao mesmo tempo que a
respiração se acelerava. Ela colocou cada perna em um lado e
desafivelou a bermuda do empresário com rapidez. Eleanor encarou
a ereção e se ajeitou, afundando o membro em sua entrada e se
impulsionando contra Grayson, com a urgência causada pela fome
que sentiam um pelo outro. Trocaram um beijo intenso antes de ela
lamber a curva do pescoço do homem, dando uma mordida leve que
o fez gemer contra ela. Foi rápido, intenso, sensual e prazeroso, com
o desespero que os ameaçava a cada novo minuto, a cada nova
investida até ambos gozarem nos braços um do outro.
— Quer continuar na cama? — Nellie perguntou sem fôlego.
Grayson podia sentir o sorriso nos lábios da mulher, mas ainda
permanecia com os olhos fechados, a sensação intoxicante da
proximidade dos corpos, a vibração do êxtase ainda reverberando
em seus membros. Pegou-a no colo sem responder, levando-a para
o quarto que dividiam e depositando-a na cama para mais.

As coisas mudaram pouco depois. Aconteceu uma manhã, duas


semanas depois de Ellen voltar para o passado, como previram.
Grayson abriu os olhos e não encontrou Nellie a seu lado. Estava em
outra cama, um apartamento que não era o de Knightsbridge, uma
vista para uma cidade que não reconheceu. Aquilo era um quarto de
hotel? Onde ele estava? O empresário pulou da cama à procura de
qualquer informação de onde ele estava, passando os olhos por
todas as superfícies daquele lugar. Tentava se manter positivo
pensando que ao menos estava vivo naquela realidade em vez de ter
existência terminada pela falta das gerações anteriores.
Uma carteira estava na mesa de cabeceira, e ele a abriu, vendo
sua foto igual a que sempre teve costume. Riu ao ver seus dados:
Grayson Canning não existia e, em seu lugar, outro sobrenome
aparecia em seus documentos. A história de sua família era real, ele
riu. A infidelidade de sua avó acabou por salvar sua vida e ele tinha o
sobrenome “Adams” dali em diante. De onde ele vinha e por que não
reconhecia a vista através da janela do hotel seria outra coisa a
resolver depois de encontrar Nellie. Um celular descansava sobre um
aparador onde a televisão ficava, e o homem avançou sobre o
aparelho, ligando o televisor. Assustou-se com o sotaque do canal,
passando-o para outros apenas para ter certeza: estava nos
Estados Unidos.
Depois, colocou a digital sobre a tela e percebeu o smartphone se
desbloquear. Vasculhou os contatos em busca de informações. Não
reconhecia nomes em sua agenda, parte das fotos de suas redes
sociais, e não tinha registro de Eleanor em lugar algum de seu
telefone. Nessa realidade eles não se conheceram? Suspirou
irritado, sabendo que era o mais provável. Se ele estava em um
outro país e não era mais um herdeiro Canning, dono de uma
propriedade a ser restaurada, jamais conheceu Ellen Morris. Merda.
O empresário entrou em pânico com a possibilidade de Nellie não
lembrar dele da mesma forma que ele o fazia. O efeito do colar os
influenciaria até mesmo quando a joia não existia mais?
Grayson digitou o número de celular de Ellen, o qual Nellie usava
desde que tinha acordado no hospital. Andou de um lado ao outro
com a sensação estranha no peito, como se algo estivesse prestes a
acontecer. Vamos, querida, me atenda. Ele tentou mais uma vez e
esperou. Um toque, dois toques, três…
— Alô? — um homem respondeu ao telefone, deixando Grayson
confuso.
— Ah, olá… peço desculpas. Tentava entrar em contato com Ellen
Morris, mas acho que disquei o número errado.
— É esse mesmo. É que minha esposa está no banho. Quem
gostaria de falar? — o homem respondeu solícito. Grayson sentiu
como se um soco o atingisse com a velocidade de um jato. Esposa?
Ele cortou a ligação, jogando seu telefone longe, e colocou as
mãos no rosto, pensando no que fazer. Quem diabos era aquele
homem? Era Eric? Ele tinha tantas dúvidas e não entendia por que
permanecia com as lembranças da realidade anterior. Precisava
chegar a Eleanor o mais rápido possível, precisava de respostas.
Era alguém em uma missão.
Grayson pegou o aparelho no chão, analisando o pequeno
rachado na tela. A cabeça do executivo começou a latejar, e ele se
sentou na cama, as mãos sobre o rosto em um suspiro profundo.
Não deveria entrar em pânico ou chamar atenção, pois do contrário
demoraria ainda mais a chegar até Eleanor. Precisou de poucos
minutos para confirmar seu paradeiro naquela realidade. Depois de
uma pesquisa rápida no celular, descobriu que Ellen Morris,
atualmente Ellen O’Dell, mudou-se com o marido, Eric, para Paris.
Lembrava de ter ouvido, antes, de alguns dos funcionários da obra
que a restauradora havia escolhido ficar em Londres pela Casa
Canning… o que significava que sem a mansão centenária, a mulher
seguiu o relacionamento com o ex-noivo.
Adrian Bridger, o detetive que havia contratado para descobrir
informações sobre a família de Ellen, havia informado que o homem
cursava uma especialização na Panthéon-Sorbonne, o que já era
bom o suficiente para Grayson começar sua busca. Ele embarcaria
em um avião e, ao chegar a Paris, contrataria um novo detetive para
encontrar o endereço de Nellie. Ele tinha um nome, um plano e um
possível lugar. Caso ela não se lembrasse dele, seria um problema,
porque não cogitava deixar Eleanor se afastar, mesmo que custasse
tudo o que tinha naquela vida.
O empresário guardou a carteira e o celular e correu porta afora,
andando decidido para o elevador. Era mesmo um quarto de hotel,
ele percebeu conforme atravessava os corredores, com medo de
encontrar conhecidos que o fizessem parar. Dentro da caixa
metálica, usou o GPS para descobrir que estava em Boston, um
lugar em que nunca havia ido antes. No que ele trabalhava para
estar naquela cidade? Espera, ele tinha nascido ali?
— Senhor Adams, posso ajudá-lo em algo? Senhor Adams?
Senhor Adams? — Ele ouviu uma voz assim que as portas do
elevador se abriram no lobby do hotel e passou o olhar pelo
ambiente até encontrar um rapaz correndo em sua direção.
Um homem tinha um olhar curioso, e apenas nesse momento
Grayson percebeu que estava o chamando pelo novo sobrenome.
Tinha por volta de vinte anos, era loiro, com um terno e parecia
ansioso por chamar a atenção dele.
— Uhh, olá. Preciso fazer uma saída rápida — o executivo
gaguejou, apontando para o lado de fora, e percebeu que ainda tinha
o sotaque inglês. Ao menos.
— Claro, precisa de algo para a reunião de mais tarde? Posso
conseguir para o senhor, não tem necessidade de…
— Ah, eu preciso ir. Nos falamos quando eu voltar, tudo bem? —
Grayson o interrompeu, e os olhos do rapaz se arregalaram ainda
mais quando o empresário deu mais um passo em direção à saída.
— Mas precisamos estar com a equipe em quinze minutos — ele
continuou e olhou para o relógio em seu pulso, o suor deixando sua
pele vermelha, transpirando ansiedade. Grayson parou e analisou o
homem por dois segundos, os olhos sérios mirando de cima a baixo
sem falar palavra alguma. Ele sabia ser autoritário quando era
necessário e aquele era um dos momentos.
— Avise a quem for necessário que me atrasei. Estamos
entendidos? — O homem encarou o olhar afiado de Grayson e deu
um gole em seco, nervoso, antes de balançar a cabeça em uma
afirmativa. O rapaz tentava esconder a perplexidade pela situação,
ao mesmo tempo que tentava secar o suor em sua testa.
O executivo não olhou para trás e saiu para a rua movimentada de
Boston em busca de um táxi que o levasse para o aeroporto
internacional. Durante o trajeto, não conseguia deixar de pensar nas
consequências da mudança de realidade, tentando absorver cada
novo detalhe na vida de Grayson Adams. Ele tinha uma rede de
hotéis, que curioso. Era solteiro e desconhecia cada uma das fotos
que via em seu álbum do celular. O peito do empresário perdeu uma
batida com um dos registros: o pai em um momento recente, depois
da data da morte. Ele estaria vivo?
— Senhor, chegamos — o taxista avisou, e Grayson pulou para
fora do veículo.
Depois de alguma conversa com a companhia aérea, conseguiu
uma passagem de um voo que sairia em três horas. Não era o
melhor, porque ainda contava com uma conexão em Lisboa, mas era
o mais rápido para cruzar o Atlântico em busca de sua esposa.
Continuou sua investigação até o aparelho começar a tocar sem
parar e mensagens explodirem na tela com perguntas sobre a
reunião que ele não apareceu.
Grayson desligou o celular e fechou os olhos, tentando relaxar,
mas a dor de cabeça ficava cada vez mais forte, não o deixando em
paz pelas horas seguintes. Ao se sentar no segundo avião, decidiu
por um cochilo que talvez afastasse a pressão em seu peito e o
latejar de sua têmpora, solicitando um remédio para o comissário de
bordo. Pareceu fazer efeito.
Quando abriu os olhos de novo, sentiu-se desorientado. Pessoas
levantavam-se dos lugares do avião, pegando as coisas ao redor.
Olhou para os lados e tentou ver sentido. O piloto informava a
temperatura em Paris e que haviam acabado de chegar ao Charles
de Gaulle.
Ele…
Piscou mais uma vez, a dor de cabeça fazendo-o evitar a luz do
corredor.
Ele…
O que estava fazendo em uma aeronave?
Grayson foi tomado pela histeria, querendo perguntar a cada
pessoa que encontrava como ele dormira em seu quarto de hotel em
Boston, preparando-se para a reunião com os investidores para a
nova rede de hotéis que a Adams Construtora tentava expandir do
Reino Unido, e acordara em um avião taxiando em Paris. Ele deveria
falar com Nicolas, ou Rupert, o assistente de Boston… Droga,
queria falar com o pai. Levantou-se, tomado pela urgência, e assim
que as portas se abriram, caminhou para fora, tentando entender o
que fazer a seguir. O celular tocou em seu bolso. Ele viu o nome da
família e suspirou aliviado. Dezenas de avisos de ligações e
mensagens surgiram na tela, deixando-o ainda mais confuso. O que
diabos aconteceu com ele nas últimas horas? Grayson Adams não
costumava ignorar o trabalho, principalmente para se enfiar em um
voo para Paris sem planejamento.
— Pai, que bom que consegui falar com você — ele anunciou e
colocou os dedos da mão esquerda sobre os olhos, pressionando-os
como se sentisse zonzo, a dor cada vez mais intensa. — Algo
aconteceu e eu não sei como explicar.
— O que está falando, Grayson? Filho, o senhor Brown está
irritado. Você faltou uma reunião com mais de trinta pessoas. Nosso
negócio está por um fio. Nunca faz esse tipo de coisa, o que
aconteceu?
— Não sei o que aconteceu… — ele sussurrou com a voz dolorida
e encostou-se em uma das pilastras da saída de passageiros,
apertando os olhos mais uma vez e tentando fazer sentido.
— Tente me explicar, Grayson Adams, por que diabos não está
me ligando para comemorar a assinatura do contrato.
— Porque estou em Paris. Acordei em um maldito avião e não
tenho ideia de como vim parar aqui.
— Pare de ser idiota, filho. Rupert viu você no hotel, disse que
explicou que precisava resolver algo com urgência e sumiu depois
disso. Preciso de uma explicação melhor! — o homem completou
com irritação.
— Não tenho uma… eu não lembro como vim parar aqui. Dormi no
Four Seasons e acordei em um maldito avião. Preciso de ajuda —
ele completou frágil, sentindo-se mareado e confuso. — Minha
cabeça dói, sinto-me enjoado, com uma dor no peito. Preciso de um
médico.
— Filho… — o homem disse mais suave, como percebendo a
gravidade da situação. — Precisa de ajuda para voltar? Venha para
Londres. Você não para de trabalhar e o estresse pode cobrar seu
preço. Parece que está em um ataque de pânico. Respire,
Grayson… respire.
— Acho que tive um apagão — Grayson falou em um fio de voz.
— Eu me sinto… como se tivesse urgência para chegar aqui e agora
não consigo me lembrar o porquê.
— Venha para casa, o que quer que tenha ido fazer, pode ser
resolvido depois. Você parece mal — o pai comentou sério e deu
uma risada suave para completar. — É alguma mulher, filho? É isso
que não quer me contar? Você nunca teve muito estresse com o
trabalho, mas nunca foi um especialista em relacionamentos.
— Não… — Grayson respondeu e enrugou a testa, como se
achasse que tinha mais naquela resposta do que ele sabia de
verdade. Ele não teve namoradas, sempre viveu para o trabalho e
para o negócio familiar. Por que cruzaria o Atlântico em busca de
uma desconhecida?
— Tem certeza? Estou acostumado com meu filho e o que
aconteceu hoje não tem nada a ver com sua personalidade ou a
forma que te criei. Vamos encontrar ajuda, eu prometo. Desde a tal
mulher dos sonhos…
— Não há mulheres, pai, você sabe. Apenas meu trabalho. Se eu
amasse alguém, saberia, tenho certeza — ele completou,
interrompendo-o, e encarou os dedos, como se sentisse falta de
algo. O que aconteceu naquele maldito dia?
Nellie abriu os olhos e soube que algo estava errado. Aquela não
era a propriedade que estava vivendo com Grayson, e tudo a seu
redor parecia estranho. Ela se virou na cama, girando o corpo para
ver costas masculinas desconhecidas. Um homem loiro, muito mais
magro que seu marido e que abraçava o travesseiro com força,
ocupava a maior parte da cama. Aconteceu finalmente. Tanto ela
quanto empresário sabiam que a mudança de realidade era questão
de tempo e, em seu interior, Eleanor culpava Ellen, mesmo sabendo
que faria o mesmo por quem era apaixonada.
Ela se levantou da cama de deu passos vacilantes até a sala,
encarando as janelas do lado de fora. Eleanor queria entrar no
primeiro cômodo com chave para chorar sobre a perda, mas tinha
coisas mais urgentes para resolver. Sabia que precisava se
controlar, indo pé ante pé para não chamar atenção do homem,
respirando leve apesar de estar a um passo da histeria. Aquilo que
aparecia através dos vidros da janela não era Londres, tinha certeza.
Era um apartamento menor, cheio de livros e com uma aparência de
que estava ali há pelo menos um século. Quando ouviu um miado
baixo, seu coração se acalmou e ela seguiu o som para encontrar
uma Mary dorminhoca se espreguiçando em uma pequena cama. A
mulher se abaixou para pegar a gata, abraçando-a por pelo menos
tê-la naquela realidade. Não sabia o que esperar do que sobreviveu
à mudança temporal.
Nellie ligou a televisão e foi invadida pelo som de um noticiário
francês, percebendo quem era a pessoa deitada na cama. Em algum
momento, ela e Grayson descobriram que o noivado de Ellen foi
rompido porque Eric O’Dell tinha se mudado para Paris. Isso não
deve ter acontecido, o que significava… A jovem olhou para as mãos
com horror e encontrou uma aliança diferente da que tinha antes. A
inscrição de dentro dizia apenas “Eric & Ellen”, o que a fez arrancar o
anel de seu dedo e depositá-lo na estante à sua frente como se a
joia a queimasse. O que fazer?
A respiração da mulher se acelerou enquanto encarava os lados
em busca de qualquer pista sobre quem era. Seus pensamentos iam
para Grayson e a possibilidade de ele não existir. O homem
descendia da linhagem de Edmund e Eleanor, o primeiro filho do
primeiro filho até a atualidade. Sem a morte de Stephen, todos os
nascimentos não aconteceriam e ele não viveria. Eles sabiam dessa
possibilidade quando ela chegou à porta dele naquela manhã, depois
de ficar dias presa ao corpo inerte em 1814. Ela queria se apegar à
pequena possibilidade de ele existir ali porque o contrário a
destruiria. Ó, Deus… Nellie sentiu o nó na garganta e olhou ao redor
procurando por algum aparelho de celular. Precisava buscar por ele,
saber se de algum jeito o homem apareceu naquela realidade como
outra pessoa, com outro nome. Nem mesmo sabia onde começar a
procurar.
O choro chegou à sua garganta, e Nellie apertou Mary junto a si.
Quando ouviu o barulho no quarto, acovardou-se. Olhou a seu redor
e, procurando por uma saída, abriu a primeira porta que viu. Ela
entrou no banheiro, deixou a gata do lado de fora e se sentou no
vaso, tentando se acalmar. Eleanor respirou profundamente,
sabendo que precisaria encarar o ex-noivo de Ellen no quarto e
decidir o que fazer. Ao contrário da primeira vez que acordou no
presente, sentia-se mais valente para lutar suas próprias batalhas e
sabia como viver naquele mundo. A dama confusa e tímida dera
lugar a uma jovem que sabia navegar entre tecnologias e
informações que desconhecia e provar seu lugar no mundo. Grayson
a ensinou a se libertar, e ela aproveitou a oportunidade com unhas e
dentes. Iria até o fim para encontrá-lo, para descobrir o que
aconteceu com seu marido quando Ellen modificou o passado.
Para ganhar tempo, entrou no chuveiro e tomou um banho rápido,
maldizendo-se ao perceber que não tinha peças de roupas
disponíveis ali. Nellie se enrolou na toalha e reuniu todas as suas
forças, com medo de mostrar mais do que gostaria para Eric. Não
sabia nada a respeito do homem além de que a relação entre ele e
Ellen acabara muitos anos antes.
— Bom dia — ele saudou quando ela saiu do banheiro sem nem
mesmo olhar na direção da jovem. Eleanor congelou no batente da
porta, observando-o. Eric era bonito e fazia o tipo intelectual, com
óculos de aro grosso e cabelos mais longos, quase encostando em
seu pescoço. Ele passou a mão pelos fios, parecendo ocupado com
o fogão na cozinha.
— Bom dia — ela murmurou em resposta, sem jeito, antes de
correr para o quarto. Não queria encará-lo mais do que o necessário.
Ele também não parecia se importar, mexendo no celular ao mesmo
tempo que ajeitava uma panela.
— Alguém ligou para você — ele gritou, e Nellie voltou, colocando
o rosto para fora do quarto e encarando-o com curiosidade.
— Quem… quem ligou?
— Não sei, acho que a ligação caiu. Me apresentei como seu
marido e expliquei que estava no banho, e a pessoa desligou. Estava
esperando a ligação da universidade, não? Sobre o artigo que…
— Onde está o telefone? — ela o interrompeu com urgência, não
querendo estender a conversa.
— Deixei em cima da cama — ele respondeu e voltou sua atenção
para o que estava fazendo, como se não se importasse em
continuar.
Nellie fechou a porta do quarto e vasculhou o edredom em busca
do aparelho celular. Quando o encontrou, encarou a chamada com
curiosidade. Um número dos Estados Unidos? A mulher colocou a
primeira roupa que encontrou no armário e sentou-se no colchão,
desbloqueando o aparelho com a digital e iniciando a busca. Eleanor
procurou por qualquer resultado que envolvesse Grayson ou
Frederick, o nome do pai do empresário, mas nada surgiu. De lista
de nome de bebês a usuários de rede social, era como se tivessem
sido engolidos pela terra. Buscou pelos Canning, mas tudo parecia
diferente. Outros herdeiros, outros negócios, a manutenção das
casas… Era um novo mundo que ela precisava aprender a conviver.
Ela se analisou a frente do espelho, achando curioso como sua
primeira escolha foi uma calça jeans, uma camiseta e um casaco, ao
contrário do primeiro dia do hospital em que queria um vestido como
usava em sua época. Aproximando-se mais do próprio reflexo, notou
pequenas diferenças: parecia mais magra e com os cabelos mais
longos, mas os mesmos olhos esmeralda encaravam-na através do
espelho.
— Vou para a universidade — Eric avisou, surgindo na porta do
quarto. O homem encarou-a com um suspiro. — Olha… eu sei que
as coisas estão difíceis entre nós, mas precisa agir desse jeito,
fingindo que não existo?
— Eric, eu não…
— Quando sugeri vir para Paris comigo, achei que seria um
recomeço. Você está infeliz e não vai atrás de um emprego. Quer
voltar para a Inglaterra? Você e essa maldita gata que não para de
fazer barulho? — ele perguntou com desdém. — Acho que é melhor.
Esse ano desastroso só provou que não fomos feitos para durar.
— Eu preciso ir — Nellie anunciou e apontou para a porta, não
querendo entrar naquela discussão. Ela tinha coisas mais
importantes para descobrir do que uma crise no casamento com Eric
O’Dell.
— Para onde se você não tem emprego?
— Eu vou… Estou indo à biblioteca! — ela afirmou e balançou a
cabeça, destacando o queixo erguido.
— Talvez estejamos além do possível de consertar. Já pedi
desculpas por Aimée. Foi um deslize que… — ele deixou de falar
quando a mulher não parou de caminhar. Eric encarou o chão antes
de continuar. — Vejo você mais tarde.
Eleanor entrou no quarto, procurando pelos documentos de Ellen.
Poucos minutos depois, ouviu a porta bater e percebeu que Eric saiu,
deixando-a sozinha com Mary. Ela contemplou as opções: estava em
um casamento infeliz onde foi traída. Presa na França, sem emprego
e sem saber onde encontrar Grayson, sem mesmo saber se ele
existia naquela realidade. Nellie deu um suspiro cansado, pegou a
bolsa, o celular e as chaves, anotou o endereço do apartamento e
buscou pela biblioteca pública mais próxima.
Passou as horas seguintes no computador do local, fazendo todas
as combinações possíveis com informações sobre a família de
Grayson, mas nada parecia fazer sentido. A mulher pediu ajuda para
o bibliotecário e checou algumas bases de famílias ao longo das
últimas décadas, mas nada a levava para o homem de cabelos
escuros e olhos caramelo que procurava.
Era curiosa a situação das realidades paralelas: Ellen deveria
saber falar bem francês, assim como entender, já que vivia naquele
país. O problema é que todo o idioma que Eleanor sabia era o que
sua governanta ensinou, há tantos anos que sua memória lhe traía
com as frases mais simples. A duras penas, conseguiu explicar o que
precisava, mas foi recompensada pela falta de resultados.
Faminta e cansada, Nellie olhou o relógio, não querendo desistir.
Voltar para o endereço que ela acordou e encarar um marido que
não era o dela doía por dentro. Eleanor passou as imagens, uma a
uma, página a página, olhando os resultados genéricos quando algo
chamou a atenção. Ali, no canto da vigésima nona página, em uma
foto granulada, viu o homem que amava. Ela expandiu a imagem e
sentiu o nó em sua garganta ao ler o título “Grayson Adams ao lado
do pai, Frederick Adams, e da modelo Gigi Upton, no lançamento
de novo hotel”. A mulher passou os dedos com delicadeza na tela
como se horas antes ela não estivesse nos braços dele. A tal Gigi
era namorada de seu marido? Passou a buscar por “Grayson
Adams” e devorou cada pequena informação que encontrou, desde a
rede de hotéis que dirigia até as entrevistas em que aparecia falando
sobre o negócio. Foram horas absorvendo cada pedaço de
informação.
Ela examinou as abóbadas, impressionada com o tamanho da
Biblioteca Nacional da França, a luz entrando pelas janelas conforme
encarava as paredes altas. O bibliotecário a avisou que o local
estava fechando, e Eleanor se sentiu mais positiva. Seu Grayson
existia. Era questão de tempo até reencontrá-lo, e torcia para que se
lembrasse dela. Tinha pistas e um endereço para procurá-lo e não
sabia que se ele tinha informações sobre ela além do número de
celular. Isso, claro, se fosse ele que tivesse ligado e não outra
pessoa. Grayson Adams. De alguma forma, a árvore genealógica
dos Canning fez a curva, e tanto ele como o pai estavam naquela
imagem, com outro sobrenome, mas vivos e bem.
Voltaria para o apartamento, pegaria suas coisas e partiria.
Procurou pelo endereço do apartamento no celular, no Quartier de la
Salpêtrière, e fez uma caminhada rápida até o imóvel. Ficava perto
da faculdade de Sorbonne, um bairro movimentado ao redor da vida
universitária.
Nellie abriu a porta e saudou Mary, agradecendo por não
encontrar Eric em canto algum. A mulher foi direto para a cozinha,
onde fez um sanduiche rápido enquanto pensava nos passos
seguintes. Precisava resolver todas as pendências daquela vida
enquanto procurava por Grayson na Inglaterra. Tinha o endereço da
empresa em Londres, a sede da rede de Hotéis Majestic, mas não
explicava a ligação do número desconhecido com o código de
Boston, nos Estados Unidos. Talvez se lembrasse dela e por algum
motivo já não conseguisse contato. Estava em desvantagem e
começaria de onde sabia, torcendo para que o marido se lembrasse
do relacionamento dos dois.
O reencontro a deixava ansiosa. Podia não se lembrar, estar
confuso, ter uma esposa, família… O que faria se fosse desse jeito?
Poderia voltar para o apartamento do Camden e começar de lá.
Quer dizer, se Ellen dessa realidade não tivesse vendido ou alugado
a propriedade. Procurou pelas malas, organizou suas coisas, colocou
Mary em sua caixa de viagem e esperou. Aquele casamento com
Eric era apenas um erro de percurso, mas faria de tudo para
convencer Grayson que ele era o marido dela de verdade. Ellen
parecia amar Stephen, e o ex-noivo era apenas um detalhe na vida
da restauradora, um detalhe que ela ficaria feliz em resolver e
encerrar para viver seu final feliz.
Não sabia quem era aquela mulher vivendo em Paris. A Ellen que
ouviu falar parecia forte e determinada, inteligente com sua arte e
energética demais para ser alguém que passava os dias olhando as
paredes esperando o marido chegar, vivendo um casamento falido. A
pessoa que escreveu a carta da Condessa nunca se colocaria
naquela posição e isso dava forças para Nellie. Ela encarou o relógio
mais uma vez e suspirou impaciente, as horas avançando e nada de
Eric retornar para o apartamento. Estava sem ajuda e sem apoio,
mas era uma mulher responsável por sua jornada, não era a dama
em perigo resgatada por Grayson. Era alguém que encontraria seu
homem custe o que custasse.
— O que está fazendo? — Eric perguntou, encarando-a da porta.
Ela estava tão perdida em pensamentos que não ouviu o ex-noivo de
Ellen entrar no apartamento.
— Estou indo embora, de volta para Londres. Como conversamos
de manhã.
— Nós precisamos conversar. Não pode ir assim. Achei que ainda
demoraria… não decidiria de forma tão súbita — ele disse e avançou
para chegar mais perto, e Nellie fez um movimento com as mãos
como se quisesse impedi-lo.
— Não, está decidido, estou indo embora — ela respondeu,
tentando passar a maior certeza possível. Ele tirou os óculos,
encarando-a como se analisasse os contornos de seu rosto,
procurando as palavras seguintes.
— Conversei com alguns colegas hoje. Estão interessados em
você, Elly. Acham que tenho uma esposa muito inteligente. Não
podemos tentar? Sabe como ficaria para a comunidade acadêmica
se soubessem que me deixou? Pode recomeçar a carreira aqui e
depois com calma…
— Nós conversamos pela manhã — ela o interrompeu.
— Não pode fazer isso comigo! — ele retrucou irritado.
— Você me traiu e está dizendo que não posso ir? — ela
perguntou e colocou a cabeça de lado, como se tentasse achar
sentido nas palavras do pesquisador. As narinas dele se dilataram e
ele ficou vermelho como se estivesse com raiva.
— Lá vai você de novo! — ele protestou. — Você disse que
perdoava e agora vai jogar na minha cara! Elly…
Eric avançou e pegou o braço de Nellie com força, como se
tentasse puxá-la para ele. A mulher lutou, tentando se soltar, o que
fez o homem aplicar ainda mais pressão, resmungando sobre ela
irritá-lo. Que tipo de pessoa era Eric? Eleanor sabia que formaria um
hematoma no pulso.
— Me solte, seu idiota! — ela protestou, e ele empurrou-a contra
a parede, fazendo-a bater forte contra a superfície dura antes de
cair sentada. Aquilo pareceu chamar a atenção de Eric, que a
encarou assustado, o silêncio destacando a respiração acelerada
dos dois.
— Meu Deus! Eu não…
— Vamos terminar isso de forma amigável, por favor — ela pediu
e balançou a cabeça, sentindo-a latejar. — Esse casamento acabou
antes de hoje, você sabe disso!
— Não… — Eric protestou e correu para a porta. — Você precisa
pensar melhor. Não pode fazer isso comigo. Sem você comigo, não
consigo fazer as coisas aqui! Como manter a pesquisa sem ninguém
para arrumar minhas coisas, providenciar a comida, lidar com as
contas. Não, pense um pouco! Preciso de você!
Nellie encarou com choque quando a porta bateu à sua frente e
ouviu a chave girar. Ele tinha a trancado no quarto? Que tipo de
pessoa egocêntrica era Eric que achava que a vida de Ellen deveria
girar em torno de ajudá-lo com a pesquisa? Eleanor levantou e
examinou o espaço, observando as janelas. Por alguns segundos,
pensou em sair pela estrutura, mas sabia que estavam no sétimo
andar. Qualquer pisada em falso e ela despencaria antes de
encontrar seu marido. Eleanor suspirou e pensou em tudo que
aprendeu nos últimos meses e nos direitos que as mulheres tinham.
Quando se casou com um Conde, sabia que todos fingiriam não ver
um homem violento, mas talvez com Eric, as coisas seriam mais
fáceis.
A jovem buscou o celular no bolso do casaco e tomou a decisão.
Fazendo uma busca rápida, ligou para a polícia. Viajaria para
Londres naquela mesma noite e deixaria toda aquela loucura
francesa para trás, incluindo o marido egocêntrico que achava que
ela não acionaria as autoridades.

Nellie sentia-se cansada ao chegar ao prédio do apartamento do


Camden. Já fazia muitas horas desde o momento que a polícia
chegou ao imóvel que dividia com Eric. As coisas foram rápidas:
entraram, procuraram por ela e perguntaram se gostaria de prestar
queixa depois que viram o pulso inchado com o hematoma a vista.
Ela concordou, mesmo não entendendo com perfeição o francês das
autoridades e, minutos depois, estava sentada em uma delegacia,
narrando a briga e o pedido de divórcio em inglês com a ajuda de
tradutores. Foi oferecido aconselhamento e um hotel, mas Eleanor
queria seguir para Londres de qualquer forma, então recolheu suas
coisas e comprou um voo noturno com o cartão que encontrou na
carteira de Ellen.
Depois de lutar para conseguir um transporte e subir com suas
malas, vasculhou as chaves na bolsa. Teve um pressentimento ao
ouvir um movimento na porta, que abriu quando estava parada em
frente ao tapete de boas-vindas.
— Posso ajudá-la? — uma mulher perguntou em confusão.
— Desculpe ser intrometida, mas você é dona desse
apartamento? Achei que era de Ellen Morris.
— Comprei dela através da imobiliária há alguns anos. Não tenho
contato, se é o que precisa — anunciou e encarou Eleanor com
curiosidade, analisando seu estado e suas bagagens. — Ela saiu do
país até onde sei.
— Não, tudo bem. Vou tentar outros contatos. Obrigada! — ela
agradeceu e seguiu arrastando sua mala e Mary em seu transporte,
enquanto a proprietária do imóvel parecia analisá-la.
Nellie se sentou na calçada, encarando as primeiras horas da
manhã. Estava sozinha em Londres, sem ter onde ficar, precisando
de um banho e sem nenhuma noção de onde Grayson morava.
Sentia saudades da outra realidade quando não era ela que
precisava resolver as coisas. Ser uma mulher independente era
incrível e irritante.
Eleanor Sterling deveria ter cuidado com seus desejos.
Nellie se hospedou em um hotel barato na primeira noite. Depois
de horas de sono, ela se sentou à frente de seus poucos pertences
vindos de Paris e fez uma lista sobre o que precisava resolver.
Banco, comida, um aluguel, um trabalho, Grayson. Deu ração e água
que trouxe para Mary, adicionou à lista mais alimentos para a gata e
saiu pelas ruas do Camden pronta para ir até Old Street, bairro onde
empresas como startups e hubs de investimentos tinham escritório, e
local em que a rede de Hotéis da família Adams era gerida. Foi uma
madrugada agitada, com os pensamentos confusos sobre o que
encontraria: estava por conta própria pela primeira vez na vida e
disposta a tudo para ter o empresário de volta.
Fazia mais de vinte e quatro horas da ligação dos Estados Unidos
e ela se negava a acreditar que Grayson desistiria tão fácil. O
número não atendia novas ligações e não houve novas tentativas de
comunicação. Nellie estava preocupada. A cada nova notícia que
achava sobre o homem, passava mais e mais a acreditar que não se
lembrava dela. Seu Grayson era tímido e de sorriso contido, não o
homem de terno com modelos em seus braços que encontrava a
cada nova busca na internet. Ela lia sobre a família, amigos,
possíveis namoradas, e o coração da jovem duvidava da
personalidade daquele novo Grayson.
— É… bom dia! — ela cumprimentou a recepcionista do prédio.
— Estou em busca de Grayson… Adams — ela anunciou, checando
o novo sobrenome em suas anotações.
— O senhor Adams está fora da cidade, posso ajudá-la?
— Ainda está nos Estados Unidos? — ela perguntou de forma
casual, e a mulher apenas balançou a cabeça, mais confiante porque
Nellie parecia saber mais do chefe dela. — Conseguiria marcar uma
reunião com ele? Encontrá-lo? Tenho certa urgência em contactá-lo.
— O melhor é falar com o assistente do senhor Adams…
— Tudo bem — ela suspirou derrotada. — Alguma ideia da data
da volta? Como falei, é um tema urgente.
— O senhor Adams tem uma reunião aqui na sede na semana que
vem, então com certeza estará em Londres na próxima terça. É
melhor tratar com o assistente para mais informações, não estou a
par da agenda.
— Muito bem, obrigada! — Nellie agradeceu impotente. Não sabia
onde encontrar Grayson fora de Londres, e sua única chance era
esperar pelo retorno dele à sede.
Eleanor aproveitou os dias seguintes para conseguir um novo
apartamento no Airbnb. Precisava de dinheiro e comida para se
manter, descobrir uma maneira de voltar para o conservatório e o
mais importante, como se aproximar de Grayson. Nellie dedicou o
resto da semana a tentar recolocar sua vida nos eixos, voltando à
loja de música de Knightsbridge, onde tudo começou, e mais uma
vez impressionou o vendedor de instrumentos. Ela almoçava perto do
escritório dos Adams e todo dia acompanhava o vai e vem de
pessoas no prédio, procurando algum deslumbre do seu marido de
outra vida. Foi em vão.
Quando a terça-feira chegou, a mulher estava uma pilha de
nervos. Nellie não dormiu mais do que um par de horas e acampou
na frente do escritório à espera de qualquer movimento que pudesse
sugerir que Grayson estava de volta ao país.
— Olá, o senhor Grayson Adams está de volta? — ela questionou
de forma casual para a mesma recepcionista da semana anterior.
— Não conseguiu contato com o assistente? Tem horário
marcado? — a funcionária perguntou e digitou por alguns segundos
antes de encará-la.
— Não, mas diga que é Nellie. Ele deve querer me receber.
— Hoje é um dia muito complicado, senhorita…
— Poderia tentar mesmo assim?
— Uhh… ele está em uma reunião no vigésimo andar e é
importante — a pessoa anunciou e voltou a encará-la. — Tem
certeza de que quer tentar?
— Posso esperar, mas, por favor se puder checar.
— Vou ligar para o assistente dele, só um minuto. — Ela balançou
a cabeça e a examinou enquanto colocava o telefone no ouvido.
Alguns segundos depois, falou baixo antes de fazer um movimento
negativo quase imperceptível com a cabeça. Droga.
Nellie olhou para os lados, viu um elevador e agiu sem pensar. Ela
precisava ver Grayson, custasse o que fosse, e subiu para o andar
que a recepcionista comentou. Ouviu a mulher chamá-la, levantando-
se de sua posição, mas as portas se fecharam antes que pudesse
detê-la. Ótimo, Nellie, você irá para a polícia, agora para ser presa,
pensou. Assim que as portas se abriram de novo, viu dois homens de
ternos escuros surgirem na ponta do corredor e sabia que eram
seguranças destinados a interrompê-la.
Ela correu, olhando para os lados em desespero, tomada pela
coragem de achá-lo antes que fosse detida. Nellie o viu e parou,
congelada pela visão do novo Grayson conversando com alguns
homens na porta de uma sala de reuniões. Deus… eu o encontrei.
Ela suspirou satisfeita, aproximando-se dos contornos amados até
parar na frente dele com um sorriso e lágrimas nos olhos. O
empresário olhou curioso quando ela estendeu as mãos para tocá-lo,
o resto das pessoas ao redor examinando a cena como se fosse um
grande acidente de carro prestes a acontecer.
Grayson deu um passo para trás, afastando-se de seu toque e
sem parecer afetado pelo reencontro. Quando mirou sua expressão,
ela sabia. Ele havia esquecido.
— Grayson…
— Sim? — ele respondeu com olhos curiosos.
Os segundos passaram silenciosos com a plateia acompanhando
cada movimento de ambos — incluindo os seguranças. O executivo
parecia surpreso com a invasão, analisando a mulher à sua frente.
Os olhos de Eleanor encheram-se de lágrimas por estar ao lado dele
de novo, a salvo, mesmo desmemoriado. Já Grayson, parecia
confuso. Indiferente. E isso quebrava o coração de Nellie em mil
pedaços. Não tinha um plano e esperava que ele compreendesse as
loucuras que ela diria a seguir.
— Senhor… — um dos seguranças interveio depois do silêncio,
mas Grayson fez um movimento como se esperasse ouvi-la. A
invasão de uma mulher chorosa que surgiu correndo pelos
corredores da empresa deve ter chamado sua atenção.
— Não se lembra de mim? — Nellie perguntou em um fio de voz.
— Nós nos conhecemos? — ele indagou em resposta, e Eleanor
abriu os olhos com força, tendo a confirmação de suas suspeitas. O
colar fez mais uma vítima.
— Sim, nós… Não está fingindo, certo?
— Não, senhorita. Posso ajudá-la em algo? — ele questionou
daquele jeito tímido e seco que ela aprendeu a amar, como se não
estivesse à vontade com desconhecidos. Ela era uma desconhecida.
— Como reagiria se dissesse que nós nos conhecemos? —
Eleanor explicou, e foi a vez de Grayson a encarar perplexo.
Ele olhou ao redor, e viu as pessoas quase se inclinarem com
interesse pela conversa surrealista. As coisas em sua vida estavam
atingindo graus surreais nos últimos meses, e o empresário pensava
no que viria a seguir: uma foca adestrada, uma múmia que voltava à
vida, o apocalipse? Depois de uma semana afastado do trabalho e
uma conversa com o terapeuta, estava pronto para superar o
episódio do apagão em Paris, apenas para retornar e encontrar uma
desconhecida que jurava que eles se conheciam. Bem… ela não era
uma desconhecida.
— Estamos em uma reunião de trabalho, senhorita. Se puder
adiantar seu assunto. Acho que está me confundindo com alguém —
ele anunciou baixo e puxou-a para o lado, afastando-se dos curiosos
e abaixando ainda mais a voz. — Se puder falar mais baixo. É uma
reunião importante e estamos causando um show. Não quero ser
mal-educado, mas não a conheço.
— Você secretamente gosta de programas de culinária, adora
separar os chocolates por cores, sua maior dor foi perder sua mãe,
você cuida da empresa sozinho desde que seu pai morreu…
— Meu pai está bem vivo — ele cuspiu as palavras entredentes,
percebendo que a mulher à sua frente deveria ter algum problema
mental.
Que momento inoportuno para aquilo estar acontecendo. Grayson
fora contra o pai para participar da reunião com o senhor Brown.
Frederick Adams achava que o filho precisava de férias e descanso,
mas desde muito pequeno sabia de suas obrigações. O contrato de
Boston era sua responsabilidade, um investimento de milhões
fechado depois de muitos meses de negociação e envolvimento de
um batalhão de funcionários e advogados. Não queria deixar ninguém
na mão depois de sua fuga sem explicação. Era importante pedir
desculpas e ter certeza que ninguém sairia prejudicado por seu
comportamento irracional.
Quando chegou a Londres, o pai o recepcionou e buscaram juntos
um profissional. O especialista apontou o estresse do contrato do
Hotel como motivo do apagão e aconselhou Grayson a desacelerar.
No fundo, ele achava que não era apenas isso, mas não tinha como
colocar palavras em suas sensações. Em vez disso, decidiu com o
pai que, após a assinatura do contrato com os investidores, se
afastaria por algumas semanas para tentar relaxar das pressões da
rotina exaustiva e evitar que sua saúde se deteriorasse. Aquela
reunião era sua última antes de tentar entender o que passava em
sua mente. Se fosse apenas isso, ele pensou.
Decidido a acabar com aquela cena, ele levantou os olhos para os
seguranças levarem a mulher. Por mais que estivesse curioso sobre
quem ela era, precisava encarar suas responsabilidades.
— Ó, que bom! Pensei que tudo seria como antes, mas fico feliz
— ela exclamou com uma voz que exalava desespero antes de olhar
para o teto, engolir em seco, a garganta fazendo um movimento
grande e silencioso antes de completar. — Nós nos casamos. Eu te
amo e fomos separados quando as coisas mudaram. Não lembra de
nada mesmo?
Ele estava irritado. Grayson Adams, empresário, estudado,
ocupado, passou os últimos minutos dando atenção para uma louca.
— Vou pedir para um segurança acompanhá-la. Tenho muito o que
fazer para ficar falando sobre isso.
— Nós nos casamos em uma tarde ensolarada e passamos a lua
de mel no campo. Você queria construir lembranças. Você e sua
câmera tiravam fotos a todo o tempo. O verde, as flores amarelas, a
cama azul de ferro forjado, o jarro vermelho que dizia que era da sua
mãe… A cerca quebrada que você nunca quis mexer porque foi onde
quebrou a perna quando tinha sete anos.
A pele de Grayson se arrepiou com as palavras, e ele olhou mais
uma vez para os seguranças, fazendo-os parar. O show com os
funcionários estava indo além do limite, mas aquilo era chocante
demais. Ou a mulher era uma perseguidora, ou… ou… Ele não tinha
uma explicação para ela conhecer um detalhe tão íntimo e particular
de sua vida. Como conhecia a casa de sua mãe em Yorkshire? O
homem de cabelos escuros e olhos cor de caramelo sentiu seus
olhos abrirem como pratos e passou a mão pelo rosto, pensando no
que dizer a seguir. Só faltavam mesmo as focas adestradas.
— Como sabe disso? — ele indagou chocado.
— O quê? — ela perguntou com voz de choro quando os
seguranças pararam ao lado dela.
— A casa da minha mãe. Como é capaz de descrevê-la?
— Nós estivemos lá! Posso jurar. Você não se lembra, mas…
— Chega disso! Preciso ir, e isso tudo…!
— Parece mentira, mas é verdade, eu juro. Preciso provar que…
— Encontre-me aqui dentro de duas horas — ele pediu com um
suspiro frustrado e tirou de seu bolso um cartão, esticando-o para
ela. — E tenha boas explicações sobre o que está dizendo. Invadiu a
casa de minha mãe, é isso? Terei que pedir uma ordem de restrição,
senhorita…
— É real! Não tenho como provar, mas foi — ela sussurrou.
— Vá antes que meu humor mude. Qual é seu nome?
— Nellie — ela sussurrou, e ele arregalou os olhos em choque,
encarando-a antes de se apoiar na porta. Não era possível. — Tudo
bem?
— Me encontre daqui a duas horas. Precisamos conversar — ele
respondeu com uma voz séria e mais urgente, acenando de novo
para os seguranças. Um dos homens encostou no ombro da mulher,
fazendo-a caminhar.
— Tudo bem, chefe? Coisas estranhas andam acontecendo por
aqui… — Nicolas, o assistente de Grayson, anunciou ao parar ao
lado do homem. O empresário encarou a jovem caminhar para longe,
escoltada pelos dois seguranças, e sentiu o peito explodir em
confusão.
— Preciso de um momento. Pode preparar tudo na sala e
recepcionar as pessoas? Em cinco minutos, prometo estar com
vocês.
— Muito bem… — o assistente suspirou e deu um tapinha
camarada no ombro do chefe antes de conduzir as pessoas para
uma porta à frente. Todos encaravam Grayson com curiosidade, mas
não haveria o que fazer depois da cena surpreendente que se
desenrolou segundos antes.
O executivo examinava a figura loira a alguns metros de distância,
a respiração acelerada, achando que era mais uma das pegadinhas
de seu cérebro. Sabia que era ela… Os cabelos loiros, os olhos
verde-esmeralda, o nome.
A loucura que se transformou sua vida começou meses antes,
quando ela passou a aparecer em seus sonhos, sempre doce,
convidativa, sorrindo com timidez. Ele era um homem privilegiado que
sabia o que era poder e influência, mas o quebra-cabeças da mulher
misteriosa o assombrava a cada nova noite. Conforme as semanas
foram avançando, mais ele via dela, os detalhes do rosto, o olhar
apaixonado. “Nellie”, era assim que a chamava. Ela sorria, as mãos
entrelaçadas, sua pele suave embaixo de seus dedos. Todo o
significado que nunca encontrou com outra pessoa estava ali,
naqueles instantes com Nellie.
Aquilo começou a mexer com a cabeça do empresário de tal
forma que se confessou com o pai, que sugeriu que fosse para os
Estados Unidos em busca de novos ares. Frederick adorava implicar
com Grayson sobre seu desejo por netos e como achava que o filho
precisava de uma família. Foi uma fuga permitida pela negociação do
contrato em Boston, feita para tentar tirar a obsessão de sua
cabeça. O problema é que ela não passou. Era uma conexão como
nunca sentiu antes, assim como a frustração de perdê-la todas as
noites quando abria os olhos.
Poderia culpar o estresse, os hormônios, seu estado quase casto
depois de tantas horas de trabalho. Grayson não tinha uma mulher
há tantos anos que nem mesmo se lembrava como era sentir outra
pessoa contra ele até ela… Até ter Nellie todas as noites e perdê-la
pela manhã, até esperá-la como um porto seguro, sua miragem em
forma de ninfa, o consolo de uma figura imaginária. Aos seus trinta e
um anos, ele conquistou mais coisas do que outras pessoas jamais
sonhariam e tinha mais dinheiro do que poderia contar. Isso não
evitava o vazio em seu peito. E então… depois de seu apagão e
todas a conjecturas de estar ensandecido e terminar uma país
desconhecido, ela estava ali.
Vê-la ali, parada à sua frente, dizendo suavemente “Grayson” com
lágrimas nos olhos foi como enlouquecer. Ouvir sua história fantástica
sobre como eles eram casados e ele apenas não se lembrava era
como se a insanidade o tomasse, porque queria acreditar. Era a
explicação plausível para os sentimentos confusos, as miragens, as
sensações a cada nova noite. Desde Paris, sentia-se quase em uma
realidade paralela, sete dias de loucura em que não se sentia ele
mesmo. Queria tomá-la nos braços e saber se seria do mesmo jeito
que ele sonhava todas as noites. Queria saber se ela era “sua
Nellie”.
Grayson encostou na parede com a respiração acelerada e
percebeu que seus problemas acabavam de piorar com a existência
em carne e osso de sua desconhecida. Quando as portas do
elevador se abriram e a pequena forma de ombros caídos entrou na
caixa metálica, percebeu que era quase como observar metade de
seu corpo andar para fora do corredor. Então, em um impulso,
correu em direção a ela, como se qualquer magia que tivesse ao
redor dos dois fosse a responsável por aquela conexão. Dane-se
que pela segunda vez em um pouco mais de uma semana as
pessoas ao redor dele o achassem louco, precisava desvendar
aquele quebra-cabeça.
— Espera! — ele gritou e suas mãos seguraram a porta do
elevador, abrindo-os com força. Sua ninfa de cabelos dourados o
encarou surpreendida. — Nellie… Pode conversar agora?
— Chefe, está tudo bem? — um dos homens perguntou.
— Sim — Grayson respondeu sem fôlego. — Percebi que esse
assunto é urgente.
— Ah… — o segurança replicou sem entender o que estava
acontecendo, encarando o patrão que até aquele momento era um
exemplo de ponderação.
— Se puder me acompanhar até minha sala, Nellie. Acredito que
precisamos conversar.
— Mas eu pensei… — ela comentou com olhos curiosos.
— Está ocupada?
— Não, mas você parecia ocupado.
— Não conseguiria não resolver isso agora — ele anunciou e
estendeu a mão para ela. Nellie sorriu com timidez e entrelaçou os
dedos no dele, fazendo Grayson sentir um arrepio subir em seu
braço. O empresário encarou a mulher com espanto porque
parecia… certo.
Ela saiu do elevador, que se fechou com os dois homens
encarando a cena com espanto. Ao mesmo tempo, Grayson apontou
para o corredor e caminhou até a última sala, onde fechou a porta
atrás de si. Não sabia explicar a sensação que ela trazia, mas sabia
que precisava resolver isso o mais rápido possível. Nellie despertava
uma urgência inexplicável dentro de si.
Grayson suspirou sem saber por onde começar e caminhou para
as grandes janelas, onde a vista de Londres se destacava no
horizonte. Sentia o olhar curioso da mulher às suas costas, mas
tentava se controlar, achar a razão no meio da insanidade daquele
encontro.
— Você acredita em mim? — ela perguntou em um fio de voz,
hesitante, como se tentasse escolher as melhores palavras para
abordar o tema.
— Não, mas eu sonho com você. Todas as noites há pelo menos
quatro meses. Você na casa que descreveu, chamando-a como
Nellie. É quase como se vivesse uma segunda vida quando durmo.
As coisas parecem iguais, mas são diferentes, como se por algumas
horas estivesse em outra realidade. Entende? — explicou e se virou
para ela, observando-o na outra ponta da sala. Parecia tão bonita e
delicada, a expressão curiosa como se estivesse pendente de cada
palavra que ele dizia.
— Talvez não esteja tão errado — ela murmurou com sarcasmo.
— O quê?
— Vou contar algo a você e peço a Deus que tenha a mente
aberta. Não quero que me ache louca — ela pediu e sentou-se no
sofá em um dos cantos da sala, puxando o ar como se tentasse se
controlar. Ela encarou os próprios dedos, hesitando em começar.
— Vai contar algo mais fantástico do que abordar um
desconhecido e dizer que é casada com ele? — ele brincou.
— Eu nasci em 1796, me casei com o Conde de Bradford e, por
um truque do destino, fui enviada para esse ano como uma parente
distante minha. Hoje vivo como Ellen Morris e nos conhecemos
porque era o chefe dela. Nos apaixonamos, até que a verdadeira
Ellen conseguiu mudar nossas vidas e você deixou de ser o herdeiro.
— Você tem algum problema mental? Sem julgamentos, mas… —
ele indagou e colocou a mão no rosto, ainda em sua posição perto
da janela, tentando absorver a informação. Não havia maneira de
reagir àquilo. Estava obcecado por uma doida que achava que era
uma viajante do tempo.
— Sei que é difícil de acreditar, mas desejava ser honesta com
você. Passamos por tantas coisas juntos e não queria me aproximar
sem contar nossa verdadeira história. Se quiser que eu vá embora,
posso ir… mas eu te amo, Grayson, não deixei de te amar por
nenhum segundo. Mesmo quando acordei naquele quarto em Paris.
— Paris?
— Foi você que me ligou, não é? Eric atendeu o telefone e depois
nunca mais… — Ela suspirou, pegou o celular e colocou no ouvido, a
chamada completando antes de um segundo aparelho tocar na mesa
de Grayson. — Você tem um celular com um número dos Estados
Unidos?
— Como você sabe? — ele perguntou temeroso.
— Você me ligou. Tentei tantas vezes retornar, querendo que me
atendesse… — ela explicou como se procurasse as palavras.
— Tive um problema e decidi me afastar. Nos últimos dias, não
mexi naquele telefone. Depois que tive… um… um episódio… — ele
hesitou. — As ligações e mensagens se acumularam e não tive
tempo de verificá-las.
— A minha teoria é que quando tudo mudou, você descobriu onde
eu estava e se esqueceu antes de chegar. Que tipo de episódio
teve?
— Isso não é relevante — ele respondeu e cruzou os braços,
sério. — Então você estava em Paris e eu fui atrás de você?
— Sempre foi essa pessoa, Grayson. Faria qualquer coisa por
mim. A magia do maldito colar…
— Então além de viagem no tempo, existe um colar mágico? —
ele perguntou com sarcasmo, achando as palavras da mulher
incríveis demais para fazerem sentido, ao mesmo tempo que ela o
encarava, impotente. — Entende como é difícil acreditar em algo
assim?
— Eu sei! — ela disse derrotada. — Algumas dessas coisas
fazem sentido para você, além dos sonhos?
— Não consigo lidar com isso agora. Uma esposa viajante do
tempo de uma realidade paralela. Achava que estava enlouquecendo,
mas você é ainda pior, senhorita — ele explicou e caminhou para a
porta, tentando encerrar aquele assunto. O empresário tinha mais
perguntas do que respostas, mas duvidava que conseguisse alguma
coisa daquela mulher.
— Antes eu tinha provas de quem eu era, mas com a mudança…
Não tenho ideia de como começar. Por agora, só tenho minha
palavra e sei que uma desconhecida não seria confiável. — Ela
suspirou e se levantou do sofá, alisando a calça com uma respiração
longa. Não sabia o que fazer para convencê-lo. Ao menos ele não
estava gritando coisas, como Eric. Ela estava fadada a acompanhar
a vida do homem que amava à distância pela mudança da linha
temporal.
— Sinto muito, sei que não é o que veio buscar aqui — Grayson
falou e encarou a mulher.
— Ainda assim você sente, não é? É por isso que me ouviu e não
mandou os seguranças me levarem embora.
— O quê? — ele indagou com os olhos graves acompanhando
cada movimento da jovem. Ela se aproximou dele com um sorriso
leve nos lábios, como uma despedida.
— A conexão. Ela sempre esteve ali, até mesmo quando eu a
achava indecente. Você é um homem muito especial, Grayson —
Nellie disse e colocou a palma da sua mão no rosto do executivo,
que fechou os olhos com o carinho. — Obrigada por me ouvir. Sei
que é uma história fantástica, mas precisava tentar. Iria atrás de
você até o fim do mundo. Eu te amo até a última fibra do meu ser,
mesmo que tenha se esquecido de mim.
Ela encarou-o por muitos segundos em silêncio, como se tentasse
gravar os contornos do rosto do homem a sua frente. Sentia a dor de
perdê-lo, o olhar de desconhecimento que sempre doeria em sua
alma.
— É uma história absurda. Por mais que sonhe com você, é
diferente de acreditar que esqueci que tenho uma esposa…
Maldição, que amei alguém.
— Adeus, Grayson… Quero que seja feliz — ela desejou e
encurtou a distância entre os dois, grudando seus lábios nos dele e
dando um beijo com todo o sentimento que tinha dentro de si. Ele
gemeu em resposta, suas mãos caindo em sua cabeça e puxando-a
mais para si, como se precisasse se fundir a ela, a força daquele
pequeno ato de despedida.
Então, Grayson cambaleou para trás, como se empurrado por
uma força invisível, e observou Eleanor com os olhos arregalados. A
respiração do homem se acelerou e ele colocou as mãos nos olhos,
como se não conseguisse acreditar no que estava acontecendo em
sua cabeça. Cada maldita lembrança invadiu seu cérebro, como se
acabasse de desbloquear uma tela de celular.
Era real. Cada pedaço daquela história era real e, por mais que
suas lembranças fossem um amontado de situações desconexas,
sabia que a mulher à sua frente estava contando a verdade. Que seu
amor tinha voltado para ele.
— Nellie… — ele gemeu e colocou sua mão na nuca da jovem,
puxando-a com urgência e colando seus lábios outra vez aos dele.
Saboreou os contornos da mulher, aprofundando-se em sua boca e
brincando com a língua de Eleanor em um beijo apaixonado. Sentiu-
se emergir depois de semanas nas profundezas de sua consciência,
como se finalmente visse a luz depois da escuridão. Ela era seu
farol.
— Você está bem? — a jovem perguntou depois de plantar as
mãos no peito do homem e afastá-lo com delicadeza, examinando a
expressão confusa do empresário. Ela sorriu quando reparou os
olhos suaves pelos quais era apaixonada. Graças a Deus…
— É tudo verdade — ele comentou atônito, os olhos arregalados
e um sorriso exausto. — Eu vi na minha cabeça, como um filme.
Quando sua boca tocou a minha, foi como se uma torrente de
lembranças me invadisse. Eu podia ver você, nós dois… Isso
aconteceu? Tudo o que me disse foi real! Me desculpe não acreditar
em você, eu… como é possível? Ainda lembro da minha vida aqui…
— Nós esperávamos que as coisas mudassem e não sabíamos o
que poderia passar. Quando acordei, nem ao menos sabia se existia
nessa realidade. Precisei procurar muito até achá-lo, senhor Adams.
— Quero me sentar — ele declarou e caminhou para o sofá, ainda
pensativo, como se não conseguisse acreditar em suas próprias
lembranças. — Nellie, como é possível? Não faz sentido algum.
— Precisa deixar de ser tão cético, meu amor. Você decidiu lutar
suas batalhas e, antes disso tudo, acreditava em viagens no tempo e
colares mágicos. — Ela deu uma risada suave e se sentou ao lado
do homem. — Precisa de tempo para absorver tudo, mas as coisas
aconteceram como eu contei.
— Sei que sim. Eu sei e consigo lembrar, mas não consigo
diferenciar. Isso é confuso! Lembro de você caindo, e de um
passeio, você rindo em um apartamento que não é o meu. A casa no
campo, nossas alianças… — comentou e encarou a mão em
confusão, como se buscasse a joia em seu dedo anelar.
— Quero que absorva tudo primeiro. Estava sem esperanças de
convencê-lo, se não tivesse lembrado a essa hora estaria lá fora,
sem você — Nellie falou em um fio de voz. — O importante é que te
tenho comigo.
— Nós estamos mesmo casados, não é? Como eu vi. Lembro da
cerimônia e de um ferreiro… — Ele deu uma risada baixa — Gretna
Green.
— Gretna Green — ela confirmou.
— Preciso de tempo… É como se tudo tivesse acontecido de
verdade! Lembro das coisas como lembro de minha formatura, ou da
primeira vez que andei de bicicleta. É loucura.
— Você era uma pessoa muito melhor para explicar tudo isso,
Grayson… Existem realidades paralelas e nós estamos em uma que
tudo parece ter dado certo no final, mesmo você não sendo mais um
Canning.
— Um Canning? Como a família aristocrata?
— Eu achei que se lembraria disso também. — Ela deu de
ombros, confusa.
— Não… espera, eu era um Canning?
— O décimo sétimo Conde de Bradford. — Ela riu. — Mas isso
não é importante. Você me importa mais do que um título.
— Vem cá… — ele pediu e a puxou para o colo, grudando seus
lábios nos dela antes de encostar sua testa na mulher. — Sempre foi
muito difícil para eu me relacionar com pessoas, era muito solitário e
não me conectava com ninguém. Nada foi como depois dos Estados
Unidos… depois de Paris. Sentia um buraco em meu peito como se
faltasse algo. Era você, minha Nellie… Me desculpe…
— Consegue mesmo lembrar? De cada pequena coisa, mesmo
com toda essa vida diferente?
— Eu sei o que vivi. Sei como te encontrei tão tímida no hospital,
como era fascinada por meu peito apesar de achar cotovelos
censuráveis. Lembro da primeira vez que vi você nua com os olhos
acesos — ele murmurou para ela, como se estivessem presos em
um mundo particular. — Talvez demore algum tempo até entender o
que está acontecendo, mas não quero você longe de mim. Nunca
mais. Eu te amo, Eleanor Sterling. Minha Nellie.
— Foram apenas alguns dias, mas é como uma vida de distância.
Quando pensei que você não existia, eu… — Ela parou de falar e
segurou o choro, buscando a boca de Grayson. Os lábios dela
caíram sobre os dele, saboreando devagar, como um manjar, como
a água para uma pessoa sedenta.
— E agora o quê?
— Eu me mudo com todas as minhas coisas para sua casa e
podemos voltar com a nossa vida. Mary está no apartamento
temporário com saudades suas…
— Mary, a gata? — ele perguntou, enrugando a testa e lembrando
do animalzinho. — Mas ela não me conhece!
— E se a memória dela funcionar como a sua? Talvez só precisem
de um momento juntos! — ela comentou com humor e abraçou-o
outra vez. — Deus… Grayson, não sei o que faria se não lembrasse.
Seria feliz com o piano e minhas coisas, mas faltaria você, faltaria o
amor.
— Talvez a encontrasse… talvez começássemos do zero. Quando
olhei você parada aí fora, sabia que tinha algo de especial. Uma
invasão como a sua deveria ser neutralizada rápido, mas era você, a
mulher dos meus sonhos. Ainda vai demorar um tempo para encaixar
minhas lembranças reais com as que aconteceram… — ele parou.
— Você sabe, antes.
— Se quiser, posso ir embora, dar um tempo para você…
— E como “Ellen” acordou? Ainda toca piano? Estava em Paris
com Eric?
— Ela se casou nessa vida, e tenho um divórcio para arranjar. Foi
aterrorizante acordar ao lado daquele homem, ele apertar meu pulso
e a polícia…
— O que aconteceu? — Grayson sussurrou com uma voz
ameaçadora, e ela colocou as mãos em seu rosto, tentando acalmá-
lo.
— Estou bem, meu amor. Eu juro, ele não me machucou. Mas
precisarei resolver meu divórcio antes de colocar sua aliança em meu
dedo.
— Isso não é importante. No meu coração, é minha mulher,
mesmo que eu esteja tento alguns minutos muito confusos agora. Há
uma hora, eu não era um homem casado e feliz. — Ele suspirou e
deu um beijo nos lábios dela. — Gostaria de ter nossas alianças de
novo.
— Podemos recomeçar. Agora eu e você, com a segurança de
que não vou ser levada embora a qualquer momento. Temos um
presente e um futuro inteiro à nossa frente.
— Não ache nem por um minuto que não te amo, mesmo com
toda essa confusão. Se não tivesse vindo atrás de mim, acharia um
jeito de chegar até você. Nunca te perderia tão fácil. Acho que é a
dona da minha alma.
— Como, Grayson? — ela perguntou em uma risada.
— Eu te vi nos meus sonhos. Te encontraria por qualquer esquina
de Londres, posso apostar.
— Você sempre veio até mim, me ajudou em minhas batalhas.
Agora, fui eu a nos salvar. — Ela riu e o beijou mais uma vez. — Eu
te amo tanto, Grayson.
— Senhor, acho melhor bater… — Nellie e Grayson ouviram a voz
no corredor e descolaram os lábios um do outro, olhando para a
porta do escritório.
— É meu filho, não vou bater! A cena lá fora foi estranha! Ele tem
agido… — A porta se abriu de repente e o casal levantou-se com
pressa, encarando Frederick e Nicolas com expressão culpada.
Eleanor sorriu ao reconhecer o assistente e correu para ele,
abraçando-o antes de encará-lo satisfeita ao mesmo tempo que o
homem reagia com espanto.
— Ó, Nicolas! Você está aqui também! Como está Wyatt? Deus…
fico tão feliz que também esteja aqui!
— Eu a conheço, senhora? — ele perguntou confuso ao mesmo
tempo que o pai de Grayson levantou a sobrancelha com
curiosidade, passando seu olhar da jovem para o filho.
— Ah, é… Grayson falou sobre você — ela se corrigiu, dando
palmadinhas no ombro do assistente. — É bom… é bom te
conhecer.
— Ah, claro — o funcionário respondeu, ainda encarando Nellie
como se ela tivesse três braços.
— Posso conhecer a senhorita? — Frederick indagou e encarou
Grayson com atenção. — Explicaram que foi uma cena e tanto lá
fora.
— Pai, essa é Nellie, minha noiva.
— Noiva!? — ele questionou confuso. — Do que diabos está
falando?
— Que eu vou me casar — o empresário respondeu e deu de
ombros, puxando a mulher para seus braços. — Quer dizer,
tecnicamente já estamos juntos e ela vai se mudar para meu
apartamento, mas…
— Quando isso aconteceu? Por que tão rápido? — Frederick
parou e analisou a ambos com um sorriso. — Só se… ela for a
mulher de Paris. A que você disse que não existia!
— Foi uma confusão — Nellie confessou com timidez e encarou
Frederick com um sorriso. — Não sabe a honra que é conhecer o
senhor. De verdade. Ouvi tantas coisas boas.
— E eu de ver a pessoa que colocou esse sorriso no rosto do
meu filho. Estamos bem? — ele questionou e examinou Nicolas,
Grayson e Nellie antes de balançar a cabeça. — Vou deixar os
pombinhos sozinhos, e não esqueçam que não fugirão de uma festa
de noivado. Faço questão. E, Grayson, você tem dez minutos. Nós
precisamos fazer a maldita reunião para assinar aquele contrato!
— O que o quiser, senhor Ca… Adams! — ela cumprimentou
enquanto ambos saíam da sala. Ela observou Grayson com olhos
brilhantes e gargalhou, feliz de ter conseguido resolver as coisas
mais rápido do que imaginava.
— É real, não é? — ele perguntou mais uma vez, abraçando-a. —
Não é mais um sonho meu.
— É real e para sempre, meu querido. Você tinha razão. Eu viajei
duzentos anos apenas para encontrá-lo. Não o deixaria escapar dos
meus dedos.
— Nem eu você, meu amor.
Dois anos depois

Grayson abriu a porta do apartamento e foi saudado pela música


vinda do piano. Ele tirou o paletó, afrouxou a gravata e parou no
batente da porta, encostando o corpo com suavidade para ouvir
Nellie tocar. Era quase como um ritual diário desde que ela foi morar
com ele naquela realidade. A mulher estava sentada no piano,
dedilhando uma música clássica com calma, como se apenas
brincasse com as teclas, a expressão serena e o leve sorriso nos
lábios enquanto Mary descansava a seus pés. Como ele poderia ter
se esquecido dela?
Mesmo depois de tantos meses, ainda tinha dúvidas sobre o que
aconteceu com ele entre as horas que embarcou no avião em Boston
e chegou em Paris. Foi aterrorizante para suas memórias porque ele
se lembrava de como começou e como terminou aquela manhã,
como foi tomado por uma dor de cabeça forte que o fez esquecer
Grayson Canning e que o tornou Grayson Adams. Ainda mantinha
dúvidas se foi a última vítima do colar mágico ou fruto do paradoxo
do tempo, mas, de alguma forma — e graças à vovó Adams —, tinha
conquistado uma segunda chance com Nellie.
Ele passou meses vivendo como duas vidas distintas, uma em sua
mente e uma na realidade, sentindo sua sanidade escapar a cada
dia. Apenas com o beijo de Eleanor foi como se as coisas entrassem
nos eixos, fundindo-se em uma só e preenchendo o vazio em seu
peito. Nellie brincava que foi o “poder do amor”, e talvez fosse a
única explicação lógica. Por algumas semanas, o empresário ficou
obcecado por estudar realidades paralelas, paradoxos e ler todo tipo
de pesquisa que explicasse o que aconteceu com eles dois, até certa
manhã acordar antes de Nellie, observá-la deitada em seus braços e
perceber que não precisava saber de mais do que já tinha em mãos.
Eles se pertenciam sem riscos de serem tirados um do outro por um
revés do destino. Daquela vez, era para sempre.
Grayson viveu duas vidas, apesar de não lembrar muita coisa de
como era ser o Conde de Bradford. A conexão com Eleanor o fez
lembrar de cada instante juntos e de cada detalhe de suas vidas em
conjunto, mas era incapaz de saber detalhes do título ou de
antepassados. Ambos chegaram a visitar as casas da família, mas
nenhuma lembrança surgia em sua mente. Demorou algumas
semanas para o executivo entender que aquela seria a forma
definitiva que viveria pelo resto de seus dias, ainda confuso sobre o
que era realidade ou sonho. Eleanor foi sua âncora em todos os
momentos, esperando-o do outro lado e explicando cada pequeno
detalhe sobre a vida anterior.
Ela disse que a Casa Canning estava deteriorada e que seu pai
comprou cada propriedade possível para reformá-la. Parecia que os
herdeiros atuais eram muito melhores do que ele, pois a família
Canning era tão rica quanto os Grosvenor, através de investimentos
em imóveis como centros comerciais, escritórios, industriais,
residências e centros urbanos. Nellie também explicou com carinho
sobre a troca, Ellen e como em algum lugar do passado, uma
restauradora bateu a cabeça durante uma obra e terminou
apaixonada por um nobre do século 19.
Em uma visita a Bradford Hall, mostrou fotos do casal e alguns
recortes curiosos, como as colunas de jornais da época destacando
o quão apaixonado o casal parecia mesmo depois de tantos meses
de casado. Havia detalhes de tudo: vestidos vermelhos ousados,
negócios de navio, visitas ao museu, presença em casamento de
nobres, como o Duque de Galloway…
Curiosamente, como sua vida anterior, Grayson também foi a
Eton, mas não tinha lembrança alguma de ser um herdeiro de um
título. Em vez disso, era filho do “dinheiro novo”, capaz de pagar sua
educação. Eles pesquisaram sobre os familiares de sua árvore
genealógica como Conde e, de todos os nomes que Eleanor
conseguiu lembrar de memória, apenas os pais e a avó do
empresário existiram. Nenhum familiar anterior a esse. Nellie explicou
que ele desconfiava da legitimidade do pai e, com sua presença
naquela realidade, a traição foi confirmada. O mais provável é que o
bom e velho vovô Adams tivesse um caso com sua avó e, em outra
realidade, seu pai se passou por filho de outro homem.
Também havia a opção de ter escolhido Adams em vez do
herdeiro Canning como o pai de uma gravidez inesperada, mas
Grayson se negava a cavar sobre mais segredos de família. Ele
mesmo viveria com histórias de viagens no tempo e damas do século
19 e já era suficiente para seu gosto.
Jerry Adams, o avô de Grayson nessa realidade, foi uma pessoa
trabalhadora, mas longe de ser rico, o que foi um escândalo para os
pais de sua avó. Tinha um bom emprego no Barclays, um dos bancos
mais tradicionais da Inglaterra, onde começou a subir na área de
investimentos. O pai de Grayson teve interesse pela área e a casa
grande e o conforto do emprego do banco deu lugar para uma
fortuna quando Frederick criou uma corretora e os transformou em
milionários. O investimento na rede de hotéis veio depois, com
unidades espalhadas por todo o Reino Unido e alguns outros países.
O que era um empresa pequena, tornou-se uma empreitada
milionária que dava orgulho a todos os Adams.
Grayson frequentou Oxford e entrou no negócio familiar. Ele
passou os últimos anos entre a Inglaterra, outros países da Europa e
Estados Unidos, fechando negócios e aumentando ainda mais a
empresa. Amigos, manias, locais. Nada estava em sua cabeça de
quando ele era Grayson Canning, mas tudo relacionado a Nellie era
cristalino como a luz do dia: como ela sofreu um acidente, seus
modos de séculos anteriores, sua paixão por Mary, as horas que
passou em frente ao piano. Era quase como se o amor dos dois
tivesse assegurado a conexão que mantinham e nada mais, deixando
a realidade como deveria ser, mas preservando seus sentimentos
pela mulher. Ele poderia descrever as lembranças com nitidez, mas
nada além delas. O poder do amor, no final das contas.
Era uma maravilha e uma maldição: Grayson sabia que lembrar só
traria confusão para sua vida. Pessoas que nunca viu, ações que
nunca fez, histórias que não viveu. Ao mesmo tempo, sentia pânico a
cada vez que pensava que Eleanor também poderia ter sido
esquecida em meio a tais recordações. Ela garantia que algumas
coisas da realidade anterior também estavam ali, como Nicolas, que
também foi seu assistente como o herdeiro dos Canning. Uma
coincidência que o empresário agradecia ao destino. O mesmo
destino que colocou Nellie em seu caminho…
Ela mesma tinha sua carga de problemas. Nessa realidade, a
jovem teve um divórcio para resolver, de um homem disposto a
argumentar sobre coisas que ela não lembrava. Eric, o ex-marido,
tentou todo tipo de ação legal, mas com a denúncia de violência
doméstica, eles entraram em um acordo e o pesquisador concordou
com o processo. Ainda foram longos meses até Eleanor ser uma
mulher solteira de novo… quer dizer, Ellen.
Para ela, a adaptação foi ainda pior, mas a mulher sempre agia
com graça: teve que aprender coisas bobas como a data de
aniversário da restauradora, o número de seus documentos e
detalhes pequenos que teve que adaptar ao longo do caminho. A
cada conhecido que encontrava na rua, Eleanor inventava uma
história e passava a narrar sobre a carreira nova como pianista,
sempre agindo com a leveza que ele se lembrava. Nos último anos, a
carreira de Ellen Morris, a musicista, cresceu ao mesmo tempo que
seu trabalho como restauradora foi aposentado. Ela entrou em um
conservatório e passou a fazer apresentações para grandes
públicos. A imprensa e críticos a tratavam como um talento nato, um
raro caso de uma pessoa que descobriu uma habilidade excepcional
depois de adulta.
Para encerrar toda a história de Ellen e a viagem no tempo,
refizeram a viagem para Sussex e recuperaram os tesouros de Nellie
mais uma vez. O diário de Agnes, por outro lado, era um mistério, já
que a baronesa viúva foi presa pela tentativa de assassinato de
Stephen Canning. Aquilo dava satisfação para o empresário, mesmo
não externando o sentimento em respeito à noiva. Todo o resto sobre
a viagem no tempo e Ellen tornou-se apenas uma lembrança, um
amontoado de informações e provas perdidas entre linhas temporais
e que resultou em uma vida feliz para as duas mulheres trocadas,
cada uma em um tempo, e de maneiras diferentes.
Era curioso como a vida de Eleanor se transformou em uma série
de casamentos. Primeiro, o Conde de Bradford, depois com ele, em
outra realidade, uma cerimônia sem lembranças com Eric e
finalmente o casamento com Grayson. A pessoa que conheceu era
apegada às regras de etiqueta e da sociedade, mas estava feliz por
violar a fidelidade conjugal de um casamento que não fazia sentido
para ser feliz com uma outra pessoa. Assim que o divórcio foi
finalizado, eles se casaram de novo e Nellie se tornou a senhora
Adams. Não que importasse para os dois, já que ela se mudou para
o apartamento de Knightsbridge no momento que saiu do escritório
naquela manhã.
Pouco mudou na vida de Grayson além da presença de Nellie. A
versão que costumavam contar era de que haviam se conhecido nos
Estados Unidos e uma briga — que culminou em uma viagem
intempestiva para Paris — os separou. Era difícil explicar um amor
tão profundo e rápido, e o casal preferia passar por tolos
apaixonados a explicar a real natureza da conexão que
compartilhavam. Tolos e apaixonados não era uma mentira tão
grande assim.
— Ainda vai ficar parado aí muito tempo? — ela perguntou,
girando seu corpo para ele. A curva suave de sua barriga destacava-
se através de sua camiseta. Nellie passava dos quatro meses de
gravidez.
— Gosto de observá-la.
— É mesmo? — ela respondeu e levantou-se, acariciando o
ventre com delicadeza. — Já estou com fome.
— O pequeno está fazendo maravilhas com seu apetite. Antes
passava horas tocando sem reparar em nada ao seu redor.
— Espero conseguir tocar por mais algum tempo. Sinto-me
apertada no banco do piano. Talvez esse bebê seja tão grande
quanto você — ela respondeu e mordeu o lábio, um pouco inquieta.
Grayson conhecia aquele olhar. Eleanor compartilhou que no
passado, após um parto difícil, ela morreria por um estado de saúde
delicado.
— Vai dar tudo certo, meu amor. Nós temos hospitais, médicos,
enfermeiros e todo tipo de assistência que você não teria antes. Só
teremos felicidade daqui por diante.
— Nem mesmo cogitei meu passado… quer dizer, meu não-
passado — ela brincou. — Só não sei como as mulheres de minha
época conseguiam passar por isso sem todas as facilidades de
agora, como Ellen decidiu passar por isso por Stephen.
— Eu faria o mesmo por você — confessou e sentou-se ao lado
de Eleanor no banco do piano.
— Você não iria parir sem um hospital limpo ou remédios para dor
se estivesse no passado.
— Mas de bom grado ficaria em um mundo sem antibióticos e
correndo o risco de morrer a cada pequeno acidente. Valeria a pena,
mesmo por semanas com você. Dias… horas.
— Não brinque com isso! — ela pediu e abraçou-o. — Nós nos
perdemos demais em toda essa confusão de viagens e colares
mágicos.
— E sempre nos encontramos — ele completou com um beijo. —
Para sempre.
— Para sempre — ela repetiu e aprofundou o beijo, entregando-
se para ele.
Para seu presente irresistível.

FIM
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Depois de escrever “Uma Dama Irresistível” muitas leitoras


ficaram com perguntas sobre o colar e sua origem. O conto a seguir,
“Um Guerreiro Irresistível”, ajuda a descobrir como a magia chegou
na família Sterling.
Sinopse: Tristan Sterling é um mercenário que luta com as forças
do rei Eduardo I na guerra de independência escocesa. O guerreiro
é ferido na batalha de Falkirk e seu cavalo o leva para dentro da
floresta. Nora, uma camponesa, encontra o cavaleiro e cuida de suas
feridas. Os dois são tomados por um sentimento único e avassalador
mesmo com o perigo a espreita, e para viver esse amor, terão que
enfrentar inimigos e mistérios poderosos.
Coven: grupo de bruxas. Reunião ou conjunto unido por um laço
mágico para realização de rituais e ritos. Apesar do termo ter se
tornado popular no início do século 20, designa grupos organizados
em prol da magia.
Falkirk, Escócia. 1298

— Ele está chegando — Nora sussurrou e colocou a mão no


peito, abrindo os olhos em choque. Notava o gosto de sangue na
boca e o cheiro de campo de batalha, como se estivesse
acompanhando o homem por toda a noite, a conexão crescendo
quanto mais perto ele ficava dela.
Ela se levantou de sua cama com cuidado para não acordar Caitlin
ou sua mãe, que dormiam a seu lado, o coração palpitando em seu
peito conforme pensava em Tristan. Estava ferido, podia sentir,
apertando o próprio abdômen em um reflexo e torcendo para que a
armadura do cavaleiro tivesse o protegido dos lanceiros de William
Wallace.
Nora se acostumou em tê-lo nos rincões de sua mente, como uma
sombra, e não saberia o que fazer se sua presença sumisse de
repente. Era essa noção de que ele ainda estava ali que a
confortava, pois sabia que se Tristan tivesse perecido no ataque, já
não o sentiria dentro dela.
Era uma experiência estranha que não saberia explicar. Desde
criança, percebia que o soldado se encontrava ali, com ela, vigiando
seu sono, dividindo memórias, em seus sonhos como se pudesse vê-
lo ou ouvi-lo, tão perto como sua família. A jovem nunca ousou
conversar com ele, com medo de que Tristan fosse alguma loucura
de sua cabeça, mas podia ouvir pensamentos, enxergar suas ações,
e sofria por cada novo ferimento em campo de batalha. Dividia a dor
e, de alguma forma, aliviava o corpo do guerreiro. Aconteceu ao
longo dos anos, e ela sentia em seu abdômen, como uma pontada
ardente da carne perfurada, que havia acontecido novamente. Tristan
guerreava, batalha após batalha, ano depois de ano, afligindo o
coração da mulher a cada nova ameaça. Sentia medo e fascinação,
como um relógio de areia prestes a se extinguir, como se o
mercenário sempre tivesse sido destinado a encontrá-la.
Nora sabia que o soldado estava vindo para ela, cada vez mais
próximo, enlouquecendo as sensações e pensamento, invadindo os
sonhos da escocesa mais e mais vezes, a ponto de confundir o que
era realidade com o inconsciente. O sentimento de urgência
começou quando a guerra com Eduardo I, o rei da Inglaterra, passou
a ameaçar sua comunidade, tão perto que notava o cheiro de sangue
e corpos.
Durante seus vinte anos, Nora conseguiu manter suas reações sob
controle, mas, de repente, tudo parecia confuso, roubando sua
mente em poucos segundos e deixando-a exposta a quem pudesse
ver. Sabia que, se revelasse seu segredo para a mãe ou Caitlin,
pensariam que era uma traidora, fascinada com o inimigo e disposta
a ajudá-lo em nome de uma conexão inexplicável. Isso se
acreditassem na história. Nem mesmo Nora sabia no que confiar.
Tais reações poderiam desestabilizar uma pessoa comum, e Deus
sabe que, em qualquer vila, uma pessoa que dissesse ter contato
com uma outra por pensamento seria julgada, expulsa ou talvez até
mesmo morta. Mas Nora tinha experiência com segredos: era uma
bruxa. Pertencia a um coven de protetoras que agiam para manter o
equilíbrio entre os seres, exiladas na floresta de Torwood, no
coração da Escócia. Nasceu em meio à magia, sabia sobre poderes
e como mantê-los escondidos para proteger a tradição de gerações
de mulheres regidas pela natureza.
A pequena comunidade de bruxas da floresta vivia entre a mata
densa, protegida pelos poderes e pelo desconhecimento de quem
vivia ao redor da vila escocesa. Bruxas eram acusadas de
canibalismo e prática de sangue, de fazer reuniões secretas para
festejar demônios ou poções capazes dos piores feitiços existentes.
A mãe de Nora, Margaret, ria sobre as especulações, mas a jovem
podia sentir sua hesitação sobre os julgamentos e punições que o
coven poderia sofrer caso a igreja avançasse ainda mais em sua
caça às bruxas. Por anos, o grupo conseguiu viver em paz,
escondido, protegendo suas crenças e realizando seus trabalhos,
mas a proximidade das batalhas começou a ameaçar o santuário do
coven.
Perceber Tristan próximo a ela significava que as tropas do Rei
Eduardo I avançavam para ainda mais perto na tentativa de sufocar
a guerra de independência.
Nora não sabia se o que sentia era fruto de seus poderes. Talvez
o guerreiro não tivesse os mesmos efeitos sobre si, talvez sequer
soubesse sobre a conexão que compartilhavam. O coração da
mulher disparava por notar cada dor do homem, mergulhar em seus
pensamentos e ações e perceber que ele talvez nem sequer
soubesse de sua existência. Era por meio de seus poderes que
tentava manter Tristan vivo a cada nova ferida que sentia em seu
corpo como se fosse o dele. Era impossível não o consolar ou curar
quando tudo que tinha era a conexão e o sentimento que embargava
seu peito.
Ela caminhou até a janela, encarando através das frestas a
neblina fria que cobria o redor da pequena casa. O fogo que aquecia
cômodo começava a se extinguir, sinalizando que era o início de um
novo dia. Nora jogou um xale sobre os ombros e analisou o horizonte
à espera de alguma mulher do coven chamando-a para o campo de
batalha. Era a pior parte daqueles confrontos. Com a comida sendo
ameaçada pela presença de soldados, elas partiam ao amanhecer
para buscar os “espólios de guerra” sempre que percebiam um
combate na região.
Quando o confronto se encerrava e sobravam apenas os mortos,
buscavam objetos de valor nas pessoas falecidas e trocavam por
alimentos ou outros itens de sustento na vila mais próxima. Sem a
proteção de um clã e não podendo se revelar com medo do segredo
que compartilhavam, era um método que lhes garantia sustento. Elas
saíam poucas vezes, sendo tratadas como andarilhas que deveriam
ser mantidas longe, ouvindo os comentários baixos e assustados.
— Algo está acontecendo — Nora murmurou para si mesma e
sentiu um arrepio na espinha. Sentia nos ossos que algo mudaria em
pouco tempo mesmo que ela ou o coven tentassem evitar.
William Wallace conseguiu conter os ingleses, mas milhares
cavalgavam em direção à Escócia para continuar com as batalhas.
Tristan era um deles, deslocado para o território ao norte, entre
cavaleiros e soldados pagos, pessoas que buscavam o perdão de
dívidas e crimes e muitos outros em busca de ação e pilhagem. De
uma forma ou de outra, era questão de tempo antes do coven ser
descoberto.
— Está tudo bem? — Caitlin perguntou, tirando a moça de seus
pensamentos. Ela e a irmã eram muito parecidas, pequenas, magras
e com longos cabelos castanho-avermelhados que brilhavam contra o
sol, revelando um acobreado profundo. Os olhos da mais nova eram
escuros como a noite enquanto Nora tinha um tom dourado-
esverdeado, como folhas depois do outono.
— Acho que eles estão cada vez mais perto — Nora comentou e
apontou a cabeça para fora. — Devemos ir até lá.
— É degradante, mas nossa horta já não dá conta e os animais
estão tão magros — a garota respondeu com um suspiro cansado,
ajeitando a trança sobre a roupa de dormir. — Também vou me
preparar.
— Estamos seguras? Você também consegue senti-los, irmã? Eu
posso apontar o caminho até eles, como se apenas as folhas nos
protegessem, tão perto…
Ela tinha medo do que soldados de ambos os lados poderiam
fazer em uma casa em que apenas mulheres viviam. Detestava ser
tão sensível a sentimentos e sensações. Não era como sua conexão
com Tristan, mas a jovem percebia a maldade e a tragédia que
enchiam seus pulmões.
— Consigo perceber no ar o cheiro de batalha e de crueldade —
Caitlin informou e baixou a voz, com medo de acordar a mãe. — As
mulheres querem se reunir para discutir o que podemos fazer. Nossa
casa está aqui, tudo que é nosso também. Fugir para recomeçar
quando é nossa terra…
— Ouviu esse barulho? — Nora interrompeu a irmã mais nova,
encarando-a em confusão. Era rítmico, baixo, como se um coração
batesse. Como se… Tristan.
A ruiva correu para a porta, abrindo-a de par em par e observou o
horizonte, como se esperasse o guerreiro se materializar a qualquer
momento.
— O que está fazendo, Nora? — Caitlin indagou, seguindo-a de
perto antes de mirar entre as árvores e apontar para fora, apertando
os olhos com força, como se tentasse enxergar algo a metros de
distância. — O que está…? O que é aquilo?
Nora apertou as mãos contra o xale com força, focando o olhar no
local indicado pela irmã mais nova. Ela sabia o que veria, mas ainda
assim a figura surgindo entre a neblina a surpreendeu. A silhueta do
cavalo foi a primeira coisa que distinguiu, acompanhada de algo que
parecia um saco atravessando a sela do animal. Tristan. A jovem
correu em direção ao guerreiro, a irmã chamando-a ao mesmo
tempo que tentava controlar o tom de voz com medo de quem estava
ao redor da casa. Nora não se importava, e assim que chegou perto
o suficiente, tocou o pelo do animal tentando acalmá-lo antes de
olhar para a pessoa atravessada na montaria.
Quando o cavalo parou, Nora examinou Tristan desacordado. Era
estranho vê-lo de tão de perto, a pele curtida de sol, os cabelos
escuros expostos pela falta de um elmo. Era um guerreiro inglês
como os das lendas, parecendo ameaçador mesmo com os olhos
fechados.
— É um inglês, Nora. Olhe a armadura. Deixe-o aí! — Caitlin
sussurrou enquanto a irmã tentava tirá-lo de cima do animal com
cuidado para não machucar a ele, ao cavalo ou a si mesma pelo
peso das peças de metal.
— Não vou deixar um homem morrer, sendo inglês ou não — Nora
respondeu com irritação. A garota mais jovem continuava olhando
para os lados como se esperasse que os soldados saíssem de entre
as árvores a qualquer momento. Ela também se sentia preocupada,
mas precisava tirar Tristan e suas coisas da frente da casa antes
que as mulheres da comunidade aparecessem; ou ainda pior,
soldados.
— Ele vai nos colocar em perigo, irmã!
— Por favor, Caitlin, me ajude — Nora pediu, ainda tentando tirar
o homem da montaria.
Ela queria acariciar os cabelos escuros e verificar cada parte do
corpo do cavaleiro ferido. Mas o peso de sua vestimenta, mesmo
sem o elmo e faltando partes da armadura, era demais para ela.
Caitlin tinha a testa vincada de preocupação enquanto observava a
irmã. Quando Nora tombou para trás, incapaz de aguentar o peso do
soldado, correu para ampará-la, mesmo achando a ideia de ajudar
um inglês algo estúpido. A escocesa apoiou o peso no ombro e
ajeitou o homem, compartilhando o peso do desacordado com a irmã
mais velha.
— Ah… por Deus! Como pesa! O que vai fazer?
— Vamos colocá-lo junto com os animais.
— Mamãe deve saber — a garota alertou.
— Eu sei, Caitlin. Mas ele está mal, não consegue ver? Por favor,
irmã. Vai morrer se não cuidarmos dele — Nora explicou com um tom
desesperado que fez Caitlin encará-la em confusão. Sua irmã
conhecia o desconhecido?
Caitlin concordou com a cabeça e olhou para o celeiro, torcendo
para que fossem capazes de carregá-lo com rapidez. Depois de
alguns minutos de caminhada com dificuldade, o cavaleiro foi
depositado em um espaço recoberto de folhas, o som da armadura
batendo no chão ressoando pelo silêncio da manhã, para desespero
de Caitlin.
Nora sabia que deveria avisar imediatamente a mãe, mas seu
coração estava com Tristan. Ela examinou as feições do homem,
analisando os contornos do guerreiro que esteve em sua mente por
duas décadas. Era estranho vê-lo de uma forma tão nítida quando
até aquele momento apenas o conhecia de reflexos e de sonhos que
se perdiam pela manhã. A jovem queria vê-lo acordado, os olhos de
um azul profundo, tão violetas como as flores da floresta. Um tom
tão diferente e marcante que por vezes a assombrava depois de
acordar dos sonhos com o mercenário.
Ela não conseguiu resistir, passando os dedos com delicadeza no
rosto do homem e ajeitando os cabelos para longe de sua testa, os
olhos presos a Tristan.
— Você o conhece? — Caitlin perguntou de um jeito desconfiado.
— Não — ela respondeu com sinceridade e balançou a cabeça de
forma negativa. Não queria falar mais do que o necessário, pois
sabia que revelaria seu segredo. Precisava cuidar de Tristan e
procurar por seus ferimentos.
Com cuidado, a ruiva começou a remover as peças pesadas de
roupa. Um cavaleiro levava camadas de proteção que incluíam cotas
de malha, roupa de proteção de lã e couro, além da armadura.
Apesar das peças faltantes e do enorme rombo na couraça de
Tristan — onde Nora sabia que estava ferido pela dor que sentiu ao
acordar —, era difícil para a mulher arrancar todo o metal da
armadura. A irmã mais nova acompanhou as ações da jovem de
braços cruzados, tentando ver sentido no esforço para ajudar o
soldado inglês, sem oferecer ajuda. Nora sabia que agia diferente e
que Caitlin achava-se desconfiada de sua relação com o guerreiro.
Quando a mulher atingiu a túnica de algodão, viu uma grande
mancha de sangue e tremeu, soltando o ar de seus pulmões com
força e abrindo ainda mais o tecido para verificar a carne cortada.
Os olhos encheram-se de lágrimas e, com delicadeza, examinou o
local, tendo cuidado para não o tocar além do necessário.
— Está vivo? — a garota mais nova perguntou ao analisar a
palidez da irmã.
— Sim, mas precisa de cuidados. Preciso preparar cataplasma…
— Nora… — Caitlin gemeu, encarando-a. — Você tem um
cavaleiro inglês ferido na nossa casa com a floresta povoada por
soldados escoceses. Está nos colocando em perigo, irmã. Não pode
só o deixar aí para…
— Não ouse sugerir o que acho que falará, Caitlin. Você não é
assim.
— Sou quando um homem nos ameaça. A mamãe precisa saber.
— Me dê algum tempo, irmã. Eu juro… Preciso apenas limpar as
feridas dele, não mais do que isso. Pode trazer o cavalo enquanto
preparo o emplastro?
— Vá buscar as coisas, eu cuido do animal. Deus sabe que tê-lo
aí fora já nos deixa expostas o suficiente. — Caitlin soltou o ar com
irritação. — Mas assim que possível, vou contar para nossa mãe.
Precisamos proteger o coven mais do que um soldado. Nosso voto é
por nós todas, Nora, não por um desconhecido. O melhor é chamar
os homens de Robert de Bruce e…
— Não… por favor — Nora gemeu, interrompendo-a. — Algumas
horas e será suficiente.
Caitlin torceu os lábios em irritação e viu a irmã correr para casa
em busca de ervas. A mãe costumava ficar dentro da casa na parte
da manhã enquanto elas cuidavam dos animais e da horta, e talvez
conseguisse arrumar as coisas sem chamar a atenção de Margaret.
A garota mais jovem foi até o lado de fora e buscou o cavalo,
colocando-o junto à vaca magra e às galinhas que davam poucos
ovos.
Cada grupo de mulheres do coven plantava e cuidava de alguns
animais, mas aos poucos a alimentação parecia minguar, afetada
pelo clima de morte no campo. Era por isso que as expedições aos
locais de batalha eram importantes, mesmo que as fizessem um alvo
nas vilas ao redor da floresta. Caitlin não deixaria que o cavaleiro
trouxesse desgraça para dentro de sua comunidade. Precisava falar
com Margaret.
Nora correu para a casa e preparou um unguento capaz de fazer
as feridas de Tristan regenerarem. Sabia que não podia usar seus
poderes de forma explícita, mas tinha medo de perdê-lo e se
aproveitaria que o homem estava desacordado. Sentia-o fraco em
sua mente, a respiração tão leve como se lutasse contra os
ferimentos de batalha. O cavaleiro foi atingido por um lanceiro e,
mesmo com a lesão sendo suavizada pela armadura, perdeu sangue
e horas demais em cima de um cavalo. Foi sorte chegar até ela em
vez de encontrar com soldados escoceses.
Temia por ele, temia pelos dois. O instinto de Nora dizia que as
coisas iriam mudar, e talvez o guerreiro fosse o responsável. Talvez
o encontro de ambos fosse, pensou e percebeu a apreensão chegar
ao estômago. Nunca tinha ouvido falar, mesmo em seus anos de
prática mágica, na conexão que sentia com Tristan. Tê-lo tão perto
era quase como um instante de ruptura em que o véu era rasgado e
realidade e magnetismo transbordavam no mundo, afetando a vida
de todos ao redor.
No momento que Nora voltou para o celeiro dos animais, Tristan
encontrava-se sozinho, com a respiração superficial e parecendo
pálido. Caitlin não estava em lado algum e ela temia que a irmã
avisasse as outras mulheres antes que fosse capaz de salvá-lo. Não
queria perdê-lo. A jovem retirou a camisa suja de sangue, pegou um
tecido e começou a limpar a ferida, preparando-a para a
cataplasma. Com cuidado, tocou a pele do homem, ouvindo-o gemer
de dor. Nora começou a mentalizar e dizer palavras que ajudassem
Tristan a melhorar mais rápido. Ele precisava estar bem caso
necessitasse fugir antes que alguém o descobrisse.
Ao se virar para pegar mais ervas e continuar com o curativo, um
movimento rápido a surpreendeu. Dedos longos e muito maiores que
o dela a seguraram pelo pulso e quase a fizeram derrubar o
emplastro.
— Onde estou? — ele perguntou com a voz baixa, respirando com
dor pelo movimento, sem deixar de apertar o pulso da mulher.
Tristan piscou como se fizesse esforço para enxergar melhor, o
corpo tenso pelo toque. O homem a encarou, os olhos violetas
profundos como lembrava, fazendo o coração da ruiva perder uma
batida. Ela respondeu com um sorriso trêmulo e mirou o cavaleiro,
analisando o contorno de seu rosto. Ele fazia tanto esforço para não
transparecer a dor. Era quase como uma hipnose, fazendo Nora
incapaz de afastar os olhos da expressão tumultuosa do inglês.
— Você chegou ferido e desacordado. Estou cuidando de você —
ela anunciou.
O inglês examinou a jovem de cabelos vermelhos à sua frente, a
voz trêmula e o toque gentil, como se quisesse demostrar que ele
estava em segurança. Em toda a sua vida, Tristan nunca se sentiu
daquela forma, sempre jogado de um lado ao outro, enfrentando
todo tipo de risco e inimigos. Não podia ter sonos tranquilos, muito
menos algum velado por uma ninfa ruiva de expressão suave como…
como… sua Nora. O mercenário tentou levantar o corpo em direção
à mulher, mas foi cortado pelos dedos gentis que o empurraram de
volta para o leito. Era ela, não era? Mas como poderia?
Conhecia aquele toque, aquela voz, aquele corpo, mas nunca
poderia imaginar que ele a veria, a menos que… era isso. Ele estava
morto. O guerreiro teve certeza de que encontrara seu destino
depois de tantas lutas em campos de batalha ao ser agraciado pela
presença de Nora, tão perto, cuidando de suas feridas, acalentando-
o com seus gestos delicados. Finalmente a encontrou. Não sabia
quando começou, mas aos poucos ela se tornou sua obsessão. A
jovem o visitava todas as noites, com seus longos cabelos ruivos e
mirada curiosa, tão pequena em comparação a ele, tão diferente de
todos os horrores que via durante seu crescimento. Aos vinte e cinco
anos, ele esperava estar morto, mas a sorte lhe sorriu tantas vezes
que abrir os olhos para encontrar sua ninfa significava que tinha
encontrado o mesmo destino de seus pais e irmãos.
Tristan nasceu em Sussex, filho de um mercenário que encontrou
uma boa mulher e descansou por um par de anos em uma casa de
pedra confortável construída pelo pagamento de sua lealdade ao rei
inglês. E então veio a doença que levou a mãe e a irmã mais nova de
forma tão rápida que parecia que o pai havia perdido uma parte dele
ao enterrá-las. Foi o começo do fim. Ele e seus dois irmãos mais
velhos foram treinados para serem guerreiros, vendendo sua
especialidade com armas desde os quatorze anos e juntando-se às
fileiras de tropas a cada nova batalha da coroa. Feriu-se mais vezes
do que poderia contar, mas saiu vivo de todos os confrontos que
participou, ao contrário de seus dois irmãos e o pai, que pereceram
na guerra com a França pela Gasconha.
Enterrou o resto de sua família e seguiu como um mercenário,
sozinho e vendendo seu trabalho pelo melhor preço. Juntou-se aos
cavaleiros do Conde de Lincoln e se preparou para lutar com os
escoceses. Havia algo de diferente naquela batalha, poderia sentir,
como se Nora falasse mais com ele conforme avançava para o norte.
Mais forte, mais poderosa, mais protetora. Apesar de ser um homem
pago, o que levantava desconfianças sobre a lealdade, Tristan nunca
lutou contra os ingleses. Era mais um soldado, provando seu valor e
disposto a tudo, pois não tinha para quem voltar. Sabia que era bom
com sua espada e terminou criando laços pessoais com o Lorde,
dedicando-se a ensinar os novatos do pelotão e guiá-los durante a
batalha.
Seu batalhão tomou a vanguarda, marchando ao redor do exército
escocês. Mas após se depararem com um pântano, o ataque
terminou desorganizado, com baixas inglesas pela resposta dos
arqueiros do inimigo. Não era o esperado, mas foi o suficiente para
enfraquecer a frente de batalha que culminou em um ataque dividido
em quatro batalhões comandados pelos Condes e o rei Eduardo I,
massacrando as tropas escocesas em Falkirk. Os que sobreviveram
bateram em retirada para a floresta Torwood, lutando por suas vidas
enquanto os arqueiros do monarca da Inglaterra os atacavam de
forma inclemente.
Tristan estava à frente das fileiras, como um guerreiro suicida,
tentando proteger os cavaleiros de seu batalhão. Esperava que sua
boa sorte o ajudasse e que a ninfa o guiasse para fora das garras da
morte como sempre o fizera. Nora o acalentava durante as noites, a
voz suave e o toque quente em seus sonhos. Era quase como se a
buscasse a cada batalha, levando-se ao limite para senti-la em seus
braços. E de todas as suas lutas, nenhuma a levou tão próxima
quanto Falkirk. Ele percebeu a lança entrar em sua couraça e
encarou o escocês com ódio, cravando sua espada no pescoço
exposto do homem. Sua visão começou a ficar escura ao mesmo
tempo que o corpo do inimigo tombava para trás e ele notava o
cheiro de morte ao seu redor. Inclinou a cabeça contra o cavalo e
torceu para ser levado para longe do exército inimigo.
Ele abriu os olhos novamente para encontrá-la com os dedos
delicados tentando melhorar seus ferimentos, a expressão assustada
como se não entendesse a presença dele ali, tão perto dela. Tristan
morreu para encontrá-la.
— Onde estou? — ele repetiu. — Onde meu corpo descansa?
— Está ferido, meu senhor. E fraco. Se me deixar terminar… —
ela pediu e estudou os dedos do homem fechados em seu pulso.
Tristan acompanhou o olhar e relaxou a mão, mas não a deixou ir,
acariciando a pele da mulher antes de encará-la de forma mais
suave.
— Nora… Estou morto, não é?
— Ó… — Ela olhou-o séria, o lábio inferior tremendo como se
estivesse escolhendo suas palavras. Nora soltou um suspiro antes de
colocar o unguento de lado e tocar a mão do homem com
delicadeza. — Não, não está. Você finalmente veio para mim.
— Isso… você… não é um sonho? Eu pensei… eu… — ele
tentou, confuso pela ideia de ela existir no mundo. Se ainda estava
vivo, ela existia. Tudo que viu e sentiu era verdade? — Como
cheguei até você?
— Essa manhã, sonhei com você, senti sua dor e, quando ouvi um
barulho, era você vindo para mim — Nora revelou com timidez. —
Como se sente?
— Com o corpo dolorido e como se algum lanceiro tivesse quase
me matado — ele disse, e a ruiva deu um sorriso. — Não sei como
vim parar aqui.
— Seu cavalo o trouxe. Estava desmaiado sobre ele. Preciso
terminar de cuidar das suas feridas — ela explicou e tirou os dedos
dos dele, pegando novamente a mistura de ervas. O homem deixou-
a ir, curioso.
Tristan acompanhou o trabalho de Nora, que enrolou com
delicadeza com algumas bandagens de tecido antes de voltar a olhá-
lo. Ele se ajeitou da melhor forma que pôde, recolocando a túnica de
algodão em seu tronco para se cobrir, mantendo o silêncio enquanto
ela desajeitadamente tentava ajudá-lo. Notou as bochechas acesas
de Nora enquanto a mulher examinava seu peito nu. Ele podia sentir
o coração acelerado da jovem retumbando como o dele. Apesar de
fraco, todo o corpo do cavaleiro encontrava-se desperto pela
proximidade com sua ninfa, querendo-a entre seus braços para
nunca mais deixá-la ir.
— Estamos muito longe? Não sei o que aconteceu com meus
homens. Os escoceses recuavam quando fui ferido…
— Não consigo ajudá-lo com isso, estamos dentro da floresta.
Não sei onde fica o seu acampamento. — Nora deu de ombros,
evitando olhá-lo nos olhos. Podia notar a timidez da jovem e deu um
sorriso terno pela falta de jeito da ruiva. Sentia-se do mesmo jeito.
— Sua ferida não é tão grave quanto parecia. Quer comer algo?
Trouxe pães além da cataplasma, não sabia em que momento
acordaria.
— Obrigado por me ajudar. Não sei se outra escocesa seria tão
gentil.
— É perigoso tê-lo aqui, mas eu era incapaz…
— Eu entendo. — Ele balançou a cabeça, fazendo-a calar.
Tristan analisou Nora, os olhos presos aos dela com profundidade.
Sem se controlar, esticou a mão para ela, entrelaçando os dedos de
ambos. Ele aproximou o braço da jovem e depositou um beijo suave
em seu pulso, a pele tremendo onde tocava. Depois, depositou a
outra mão na bochecha da mulher, fazendo-a fechar os olhos com a
carícia.
— Também consegue sentir, não é? — ela disse com a respiração
acelerada, aproximando-se dele.
— Pensei que era meu anjo do campo de batalha, a pessoa que
me guiava em segurança. Achava que não existia e está aqui, na
minha frente.
— O que está dizendo?
— Eu era pequeno quando começou a aparecer para mim. Na
maioria das vezes pelas noites, ao dormir. Podia ver seus cabelos
ruivos voando por um campo verde, ouvir sua voz, vê-la como se
estivesse velando seu sono… Nunca soube explicar. Quando virei um
soldado, podia ver sua mão nas batalhas, como se me apontasse o
lugar seguro, como se não me deixasse ser morto. Eu voltava por
você, porque me guiava para fora da loucura. E agora descubro que
tudo era real.
— Tristan…
— Não sei o que dizer, querida. Nunca tive ninguém e acabei de
descobrir que na verdade te tive durante a vida inteira — ele
completou e se esticou mais, tocando a testa da mulher com a sua, e
suspirou com satisfação. — Por agora, por esse momento, sinto-me
melhor do que nunca estive em minha vida. Aí fora é perigoso, mas
não aqui com você, não quando te tenho comigo.
— Desde que nasci temos essa conexão, Tristan. Não sei por que
nem como aconteceu, mas sinto você em meu coração, como se ele
batesse duas vezes, como se tivesse apenas uma alma dividida em
dois corpos — ela confessou em um fio de voz.
— Achei que era uma alucinação. Um guerreiro delirante em busca
de paz, mas você está aqui, na minha frente… — Tristan completou
e juntou seus lábios aos dela, atraindo-a para um beijo.
O homem sentiu-se cair, puxando-a para ele e aprofundando a
carícia, como se precisasse fundir-se a ela da forma mais primal que
existia. Ela gemeu em resposta, os braços esticando para o pescoço
de Tristan e enlaçando-o. As respirações se aceleravam conforme
saboreavam um ao outro, como se tivessem fome do toque, como se
precisassem daquela carícia, um sentimento de união depois de
tantos anos distantes. Era a chegada ao lar, ao local seguro que
dividiam, a conexão brilhando mais forte do que nunca e unindo
mente e coração em um beijo de tirar o fôlego.
Tristan rangeu os dentes e soltou um resmungo baixo, mas não
cedeu espaço algum entre ele e Nora. A mulher deu um sorriso leve
e se afastou, encarando-o preocupada ao mesmo tempo que levava
a mão até o abdômen ferido.
— Machuquei você? — a jovem indagou preocupada.
— Estou bem, meu amor… Me feriria mil vezes se fosse para tê-
la em meus braços — ele explicou com um sorriso tímido e fez uma
carícia leve no rosto da escocesa, vendo suas bochechas
ruborizadas pelo beijo. — Como é possível que esteja aqui… Não sei
explicar a magia que nos une. Eu a conheço de toda a minha vida,
Nora. E mesmo assim, é a primeira vez que a vejo. Como explicar?
— Também não sei, Tristan. Escondi de minha mãe e irmã porque
tinha medo de que me achassem louca, que julgassem minha
conexão com um guerreiro inglês.
— Não tenho mais família, Nora, mas agora tenho você — ele
sussurrou com delicadeza. — Não sei o que fazer. A floresta está
povoada de escoceses batendo em fuga. Essa é a casa de sua
mãe?
— Sim, moramos no meio da floresta.
— Da mesma forma que eu cheguei, eles também podem… —
Tristan falou em tom lúgubre. — Se me pegarem, também a
machucarão e isso não posso suportar. Não quero deixá-la aqui para
correr perigo caso algum deles chegue, não quero perder você
quando apenas a encontrei.
— Sempre esteve comigo, meu amor — ela respondeu com
timidez e colocou a mão no rosto do homem em uma carícia suave.
— Não esperava que aparecesse para mim. Quanto mais perto
ficava, mais percebia sua presença. Estava enlouquecendo.
— Conseguia ver tudo em minha vida?
— Apenas ver você, senti-lo… perceber sua dor, sua agonia. E os
sonhos…
— Os sonhos… — Tristan repetiu em um tom atrevido sabendo
que viam mais um do outro do que era o aceitável para um homem e
uma mulher. — Era o mesmo para mim. Não conseguia ver seu
arredor, apenas você e suas angústias, perceber sua alegria… E
então vinham as noites e tocava seu corpo, beijava sua boca. Achava
que era minha fantasia, mas não era, não é?
Ela encarou as próprias mãos com vergonha, e Tristan sorriu por
saber que estava em frente à mulher que amava. Não sabia explicar
quando começou, mas sentia o coração cheio pela jovem misteriosa
que o consolava a cada nova noite, enchendo-o de esperança e
prazer, de um sorriso capaz de iluminar todos os cantos escuros de
sua vida. Era uma loucura que ela existisse, que tudo o que trocaram
fosse uma realidade.
— Me ajuda a me levantar?
— Não, você não pode! Precisa descansar. Em alguns dias,
estará bem para partir, mas até lá precisa ficar deitado!
— Não sei se terei o luxo desse tempo. Minha presença coloca
você em perigo, Nora. Preciso descobrir um jeito rápido de chegar à
Inglaterra em segurança, de vir buscá-la… Mas meu peito dói só de
pensar em deixá-la para trás. Que tipo de feitiço é esse?
— Sua presença é um segredo, meu amor, mas pode deixar de
ser a qualquer instante. Não sei como resolver… principalmente com
minha família.
— Em um mundo perfeito, eu poderia ficar. Minha lealdade é com
você, e onde queira estar será meu lugar. — Ele suspirou derrotado
e tentou se levantar mais uma vez. — Mas nós sabemos que não
acontecerá desse jeito. Quanto mais rápido me afastar, melhor será
para todos.
— Mas é perigoso e podem pegá-lo a qualquer momento — ela
disse e, com um olhar irritado, empurrou o homem contra a cama
improvisada mais uma vez. Ele riu do movimento, agarrando os
dedos da mulher mais uma vez.
— Talvez não entenda, Nora. Mas procurei por algo que não sabia
o que era até ver você, até encontrar a mulher de cabelos vermelhos
e olhos esverdeados que vivia em minha mente. Nada mais importa
além disso. Pelo pouco tempo que tiver, vivo ou morto, terei esse
sentimento dentro do meu peito. O meu pai amou tanto minha mãe
que perdeu o sentido de viver depois que ela partiu. Não quero me
sentir da mesma forma, meu amor. Está comigo, longe ou perto.
— Mas eu… — ela tentou, mas Tristan a interrompeu.
— Pode pegar algo para mim? Preciso ir até meu cavalo, é
importante.
— O que precisa? Posso pegar o que quiser, mas, por favor, não
se levante. Não quero que sua ferida sangre novamente. Quando
chegou desacordado, fiquei tão assustada.
— Me desculpe, não queria fazê-la se sentir dessa forma.
— É como… — ela começou, mas a voz quebrou, encarando
Tristan com emoção. — Eu o amo e é assustador. Saber que te
caçarão no momento que sair por essa porta. Não me deixe, meu
amor…
— Pegue a bolsa de couro no cavalo… se ela ainda estiver aí —
ele pediu e apontou para o animal que estava quieto em um dos
cantos do celeiro, a voz embargada de emoção. — Procure por uma
bolsa pequena como uma algibeira.
Nora levantou-se e foi até o animal, vistoriando a bolsa de couro
na lateral do cavalo até encontrar o que ele pediu. A ruiva mostrou o
objeto para Tristan, que balançou a cabeça em afirmação. Ela voltou
para o homem, estendendo-a para ele.
— O Conde de Lincoln me deu de presente, há algumas semanas
— Tristan falou, apontando para a bolsa. — Não sabia o que fazer
com isso, mas não podia ser descortês com um nobre. Ele falou que
era um prêmio pelos meus serviços militares. É muito raro um
mercenário ter o tipo de relação de confiança que tenho com o Lorde
e isso era um sinal de que talvez finalmente tivesse encontrado um
lugar para ficar depois de tantas batalhas.
O cavaleiro abriu a bolsa e derramou o conteúdo em suas mãos.
Um colar de esmeraldas surgiu, brilhando mesmo com as sombras
do pequeno celeiro.
— É lindo!
— Nunca pensei em mulher alguma porque a jovem dos meus
sonhos era o suficiente para mim. É uma vida terrível e poderia
morrer a qualquer momento. Sempre me salvou, Nora, sempre foi
meu anjo. Esse colar era para ser seu — ele disse e se esticou para
ela, dando mais um beijo suave.
— Ó, Tristan — ela respondeu com um sorriso apaixonado.
— Não tenho um anel, mas tenho esse colar, meu amor. É uma
promessa. Voltarei para você. Vivo, morto, em seus sonhos, pelo
tempo que for… Sempre voltarei para você. Nunca vou te deixar — o
homem anunciou ao mesmo tempo que colocou a joia no pescoço de
Nora. Ela o abraçou, enterrando o rosto no pescoço do guerreiro,
com medo do futuro.
O barulho da porta se abrindo fez a mulher pular, dando passos
receosos para trás. Tristan se levantou de qualquer jeito, mesmo
sentindo suas feridas se repuxarem, empurrando Nora para atrás de
seu corpo. Ele era um homem grande que poderia protegê-la,
mesmo fraco e desarmado.
Duas sombras submergiram da entrada, encarando o casal com
atenção.
— Ah, Nora… não você — a jovem ouviu a voz da mãe, Margaret,
sussurrar com dor enquanto analisava a filha escondida atrás do
guerreiro inglês.
— Mãe, eu posso explicar — Nora falou e colocou a mão no braço
de Tristan, ficando ao lado do homem enquanto mirava a mãe.
Margaret examinou o casal, olhando de um para o outro como se
procurasse por respostas daquele ato de proteção.
— Vê? Eu disse! — Caitlin comentou atrás da mãe, e Nora sentiu
o inglês enrijecer a seu lado, apertando o maxilar com irritação. A
jovem olhou para ele, balançando a cabeça com leveza, fazendo-o
confiar nela. Depois, entrelaçou os dedos com o homem e esperou.
A mãe era uma mulher justa.
— Desde quanto ele está aqui? — Margaret perguntou.
— Pouco tempo. Chegou ao amanhecer, limpei e cuidei da ferida.
Nós escondemos o cavalo aqui dentro, ninguém nos viu, posso jurar.
— Mamãe vai colocar alguma racionalidade em sua cabeça, Nora.
Não podemos ficar com um inglês aqui. Devemos entregá-lo ao clã
mais próximo, abandoná-lo em alguma estrada bem longe de nós! —
a irmã mais nova falou com rapidez, confusa pela troca de olhares
entre as pessoas no pequeno cômodo.
— Caitlin! — Margaret censurou-a.
— É verdade, mãe. As mulheres estão vindo para cá para discutir
sobre a proximidade dos soldados, e agora temos um em nossas
terras. Seremos exterminadas!
— Você avisou alguma delas? — Nora questionou em choque,
chateada pela traição da irmã.
— Não, eu te disse. Vinham para cá antes de saber do seu… do
seu… Você estava em intimidades com esse homem, Nora. O que
aconteceu? — Caitlin indagou confusa, encarando Tristan, a irmã e
as mãos entrelaçadas, o olhar viajando de um para o outro como se
tentasse entender o que aconteceu nos minutos que esteve ausente
em busca da mãe.
— Caitlin tem razão, ele não deve ficar aqui. Precisará ir embora.
— Mãe, eu não… — Nora começou e se interrompeu, respirando
fundo como se buscasse palavras para explicar sua relação com
Tristan. Sentiu a mão dele apertar na sua como se percebesse seu
nervosismo. A força do homem pareceu acalmá-la, como se juntos
pudessem resolver a questão apesar da ameaça contra a vida do
guerreiro.
— Está tudo bem, Nora — Margaret falou. — Eu sei que você vai
com ele.
Mãe e filha trocaram um olhar profundo ao mesmo tempo que
Nora arregalou os olhos pelas palavras. Não tinha pensado sobre o
tema, já que tanto ela quando Tristan achavam a floresta um lugar
perigoso após a batalha, mas era o correto. Mesmo que soubesse
pouco sobre o cavaleiro, entendia em seu íntimo que só estaria feliz
e satisfeita ao lado dele. Não se via longe dele depois que descobriu
que a conexão era real. Vivo, morto, em seus sonhos, pelo tempo
que for… Sempre voltarei para você, ela pensou nas palavras de
Tristan. Sentia-se da mesma forma.
— Mãe, como pode dizer algo assim? — Caitlin choramingou,
alheia à troca de olhares das duas outras mulheres.
— Porque aconteceu com Nora, minha filha. A benção e maldição
desse coven, mais uma vez, como todas as vezes.
— O que está dizendo? — Tristan questionou, tentando se manter
de pé. Nora se aninhou nos braços do homem, aparando-o enquanto
o guerreiro encarava Margaret com gravidade.
— Há quanto tempo sabe do soldado inglês, minha filha? — a
mulher indagou com um olhar sério. — E não me diga que o
conheceu essa manhã, pois posso sentir algo mais profundo do que
isso.
— Durante toda minha vida. Eu o via em minha cabeça, em meus
sonhos. Conhecia Tristan desde… desde sempre — ela suspirou e
colocou o rosto no peito do cavaleiro, que a abraçou para perto dele
como se tentasse protegê-la.
— Era o que temia — Margaret explicou derrotada.
— Eu também sentia o mesmo, senhora. Como se tivesse uma
conexão com sua filha. Como se fosse destinada a mim e por anos
estivesse buscando… esperando por ela.
— Há essa história que ouvi algumas vezes enquanto crescia que
pode explicar — a mãe falou com calma, como se escolhesse as
palavras que iria proferir. — A cada novo século, eles se encontram
e se perdem, incapazes de serem felizes e trazendo sofrimento a
seu redor.
— O que diz? — Tristan questionou.
— A avó de vocês duas dizia que a cada século nascia um casal
que colocava nosso coven em ameaça e, por motivos diferentes,
sempre terminava separado. Quase sempre levando a desgraça
para todos nós.
— Juro que não estou tentando… — Nora tentou interromper, e
Margaret fez um sinal silencioso para deixá-la continuar.
— Shiii… eu sei — ela disse. — Nós fomos condenadas a viver na
floresta por isso. Há mais de cem anos, uma de nós se apaixonou
por um dono de terras, mas foi caçada e morta, assim como muitas
do clã. O homem se matou de tristeza, e as sobreviventes criaram
nossa comunidade em meio às árvores densas, nos protegendo dos
perigos de quem não nos entende.
— Isso é real? — Caitlin perguntou.
— Era o que sua avó dizia. A ameaça surgia a cada século na
figura de um casal apaixonado. Não importava o amor e a conexão
que compartilhavam, porque terminavam mortos pelo sentimento que
os unia. Nora, minha querida, é uma ameaça para o coven e
precisará partir.
— Mamãe… mas ele é um soldado inglês! Vamos avisar na vila!
Minha irmã não precisa sofrer por uma profecia que nem sabemos
se existe realmente — Caitlin reclamou.
— Chamar os homens de Robert de Bruce só nos colocaria no
meio de uma batalha que não é nossa. Um homem inglês em nossas
terras é uma ameaça vinda de ambos os lados. Quanto antes
partirem, melhor.
— Ele está ferido, mãe. Se pudesse passar mais algumas noites
— Nora pediu.
— É perigoso — Tristan completou com um gemido. — Deixem
Nora ficar.
— Separar vocês dois causa o mesmo tipo de consequência. Não
existe solução fácil para isso. Deverá partir, minha querida…
— Mas ele pode nos revelar! — Caitlin protestou.
— Não vai. Teremos certeza disso — Margaret afirmou. — Tenho
algumas ideias e precisarei discutir com as mulheres. Vocês ficam
até resolver isso, mas será por pouco tempo.
— Tem soldados escoceses na floresta. Protejam-na, eu não
posso, estou ferido. Se a acharem comigo, será considerada uma
traidora — Tristan implorou, os olhos cheios de água enquanto
tentava racionalizar com a senhora mais velha. — Estava
conformado em ter minha vida ceifada, mas Nora não pode se ferir…
Por favor.
— Você não entendeu, meu rapaz. Há algo mais poderoso do que
eu e você, do que o coven inteiro. Vocês se encontram e se perdem,
e o único jeito para que as coisas se resolvam é continuarem juntos.
— Mas acabou de dizer que nos separamos todas as vezes, que
nunca foi resolvido. Por favor, salve sua filha. Preciso do consolo de
que ela estará bem, senhora…
— Como pode ter certeza? Nora vai morrer aí fora! Como pode
fazer isso, mãe?! — Caitlin interferiu.
— Eu não me importo — Nora interrompeu a discussão, fazendo
todos se calarem. — Não me importo com o pouco tempo que
teremos. Tristan coloca o coven e o trabalho em perigo, e não
consigo me afastar dele. A única solução é partirmos. Sei que não
teremos chances, mas ao menos vocês duas e as outras mulheres
estarão em segurança.
— Senhora… — Tristan tentou, mas Nora apertou seus dedos aos
dele, pedindo um voto de confiança. O homem se sentia arrasado
por arrastá-la para tal decisão. A probabilidade de eles chegarem
vivos à Inglaterra com a saúde do cavaleiro debilitada e sem sua
espada era quase nula.
— Cada escolha tem uma consequência, minha querida —
Margaret concordou e olhou a filha com seriedade.
— Não é bem uma escolha — Caitlin resmungou, e Nora deu um
sorriso suave para a irmã mais nova, que apesar de impulsiva, queria
apenas ajudá-la.
— Eu sei, mãe. Quando devemos partir?
— Quando decidir no que posso ajudá-la no mundo exterior.
Abandonar o coven significa deixar sua magia para trás. A única
forma de conservar seus poderes é ficar e deixar o inglês ir. Mas não
fará isso.
— Magia? — Tristan perguntou confuso. — É isso o que
sentimos?
— A conexão que sentem não tem a ver com a magia que o coven
compartilha. Nora tem um papel em nossa comunidade e precisará
deixá-lo caso decida ir com você — Margaret informou, e o homem
encarou-a confuso, sem entender a explicação.
— Então há uma opção? — Caitlin indagou. — Ah, irmã… Vai
deixar seus poderes por um cavaleiro inglês? Vamos entregá-lo e
terminar essa história!
— Ainda se não houvesse consequências, ainda assim, não
conseguiria. Tristan está comigo desde sempre, irmã. Ele é meu, e
eu pertenço a ele. É mais forte do que consigo colocar em palavras
— Nora explicou suavemente, encarando o homem amado como se
ainda não acreditasse que ele estava a seu lado.
— Avisarei ao coven o que aconteceu. Preciso saber o que fazer
a seu respeito, Nora. A possibilidade de partir para morrer me
esmaga. Quero que as coisas sejam diferentes dessa vez… que seja
feliz.
— Mamãe! — a jovem sussurrou com a voz embargada pelo
choro e correu para a mulher, uma cópia madura das filhas, com
alguns fios prateados em seu coque. — Nunca quis mentir, só não
sabia como explicar.
— Eu sei, minha querida. É um sentimento poderoso e
esmagador. O amor é um dos poderes mais primitivos e essenciais,
o que traz equilíbrio para nossa existência. De qualquer jeito ou
forma, o que une vocês dois é potente e precisa conseguir
sobreviver. Nosso coven ficou com medo quando aconteceu. Era uma
magia diferente da nossa. Eu quero e vou fazer diferente, minha filha.
Sobreviverá e cumprirá a profecia.
— E o que vem depois? — Nora sussurrou incerta. — Se o casal
nunca fica junto, como saber o que acontecerá depois. Quem
escreveu essa profecia?
— Os antigos tinham jeitos curiosos de criar um equilíbrio no
mundo. Sentimentos ruins sempre habitaram nossa existência, assim
como outros potentes e bons, como o amor. Aceite a dádiva, minha
filha.
— Eu vou tentar, mamãe. Mas há tanto… — Nora se interrompeu,
afogando as palavras no abraço da mãe.
— E eu vou tentar salvá-los através do que nós sabemos fazer —
Margaret sentenciou em um tom cansado. — Preparem-se para
partir quando escurecer.

— Já faz muitas horas — Tristan falou, puxando Nora para mais


perto. Desde o momento que Margaret anunciou que eles deveriam
partir ao anoitecer, estavam isolados dentro do celeiro. A ruiva fez
uma pequena sacola com seus itens pessoais e voltou para o
homem, de onde não saiu mais.
— São muitas pessoas, Tristan. Entendo o receio delas. Se
aconteceu como minha mãe disse, a última vez que essa magia
surgiu, coisas ruins aconteceram ao coven.
— Não quero que você sofra — o cavaleiro revelou. — Se puder
fazer qualquer coisa para ficar… Se tiver que partir ao anoitecer, a
floresta ainda está cheia de soldados escoceses e os meus. Até
mesmo os ingleses poderão nos atacar se ver que estou
acompanhado de uma mulher local.
— Nós vamos sobreviver a isso — ela suspirou e se aconchegou
mais ao mercenário, abraçando-o com cuidado, com medo de feri-lo.
O homem se aproximou com lentidão, grudando seus lábios aos
da ruiva e saboreando-a. Ele brincou com a língua, dando pequenas
mordidas nos lábios da jovem enquanto abraçava-a mais. Tristan
desejava a Nora, mas ambos tinham decisões mais urgentes do que
se satisfazer do corpo um do outro. Eles passaram as últimas horas
falando sobre o que sabiam ou não sobre o passado e o presente
que dividiam através das visões. Tristan queria uma vida inteira, mas
aceitava como uma dádiva divina aquelas poucas horas com a mulher
amada. No momento que saíssem daquela casa, estariam correndo
risco de vida, de perder o amor que compartilharam durante toda a
vida depois de se conhecerem por tão poucas horas.
Tristan se afastou da mulher, mirando os olhos verdes na
escuridão, e deu um leve sorriso, acariciando o rosto amado. Todo o
corpo do guerreiro reclamava de dor e cada movimento era mais
difícil que o outro, mas se negava a deixá-la longe, como se naquele
pouco tempo tivesse criado um vício na jovem. Era dona de metade
de sua alma, de parte do coração que batia em seu peito, e a
perspectiva de que algo acontecesse com ela na fuga de Falkirk o
fazia sentir dor.
— Então você é uma bruxa — ele brincou, e Nora se sentou ereta
entre os braços do cavaleiro.
— Isso o assusta?
— Só conheço o termo de lendas, nem mesmo sei o significado.
— Nasci com o poder de modificar coisas, de controlar elementos.
Nossas vidas são regidas por terra, fogo, ar e água. É o que
fazemos aqui. Nada como as histórias assustadoras que as pessoas
contam.
— Tem certeza de que o que sentimos não é fruto de magia?
— As mulheres mais velhas saberiam como lidar se fosse. É mais
incontrolável do que isso. Não sei se o amor poderia ser encarado
como um elemento da natureza.
— Pois acho que respiro por você, querida. Talvez não seja um
feitiço, mas é minha feiticeira — ele respondeu com um sorriso
devasso que fez as bochechas de Nora se esquentarem.
— Não brinque com isso, Tristan. Estou tão afetada quanto você.
Também deveria ser um bruxo se assim o fosse. Talvez tenha
poderes que desconhece, meu querido.
— Talvez meu poder seja você.
— Nunca ouvi sobre essa profecia antes de hoje. Estou tão no
escuro quanto você — ela falou em um tom lúgubre. — Minha mãe
tentará nos ajudar. Ela é justa, Tristan. Apesar da reação que teve
mais cedo, me quer feliz.
— E eu gosto dela por isso, meu amor. Porque a ama — ele disse
e tocou o colar de esmeraldas no pescoço de Nora. — Não sabe o
quanto quero estar em Sussex, em minha casa. Nossa casa. Será a
senhora de uma pequena construção com cheiro de maresia. Já viu o
mar alguma vez?
— Não. Apenas os rios da floresta. Nunca fui além da vila.
— Não quero ser mais soldado. Darei um jeito quando voltar à
Inglaterra.
— Mas não é o que fez a vida toda?
— Nunca me assustei por minha vida, mas me preocupo com a
sua. A possibilidade de deixá-la sozinha me aterroriza mais do que
ser atacado e perecer pela lança de outro guerreiro. Se ousasse
sonhar, seria conosco em minha casa, compartilhando meu
sobrenome, sendo minha senhora.
— Nós vamos… Deve ter uma solução — Nora respondeu com a
voz embargada. Se ela pudesse ao menos manter seus poderes.
A porta do celeiro se abriu e uma Margaret preocupada analisou o
casal sentado em um dos cantos. As mulheres finalmente tinham ido
embora. Foi uma discussão tensa, mas todas conheciam a história
de suas ancestrais. Deixar Nora partir era o melhor jeito de conseguir
esconder a magia que habitava naquele grupo. Tal escolha deixava o
coração da mãe apreensivo e, desde a manhã, Margaret tentava
pensar em algo que pudesse salvar a filha do destino dos casais
anteriores. A resposta veio do presente do cavaleiro. Quando a
mulher viu o colar de pedras verdes no pescoço de Nora, decidiu
seguir sua intuição.
Todo o coven concordou com um presente final, e o coração
materno estava em paz sobre deixar algum legado para a filha,
mesmo com o esquecimento. Nora precisaria esquecer a
comunidade, a mãe, a irmã e tudo que aprendeu nos anos de prática
mágica. Deveria ser alguém simples que nunca viu nada de fantástico
no mundo.
— Precisamos ir? — Nora se levantou e encarou a mãe
apreensiva.
— É o momento — Margaret explicou. — Quando sair da
proteção da floresta, não se lembrará mais de nada, minha filha.
Será a última vez que me verá.
— Mãe… — Nora gemeu como um lamento e olhou para a mãe
com o queixo tremendo pelo choro não derramado.
— Tudo bem… Os filhos precisam seguir o seu destino e
esperava que algo acontecesse, mas não com você. Sentia os
ventos da mudança na floresta, como se algo poderoso se
aproximasse. Não queria que nenhuma de minhas meninas se
afastasse, mas a vida… — Ela deu de ombros e se interrompeu. —
Todos os poderes que experenciou em sua vida serão tomados de
você. Não se lembrará de nada além de que fui uma mãe amorosa e
dos laços de amizade que fez. Saberá de nossa casa, dos nossos
dias, mas será incapaz de nos achar. Seremos apenas mais uma
memória em sua vida.
— Me dói saber que precisará ser dessa forma.
— É para o bem de todos, minha querida — Margaret disse com
carinho. — Usar a magia fora da nossa comunidade só traria
confusão.
— Se pudéssemos ao menos usá-la para sair daqui. Será que…?
— Não, é impossível, mas tenho um presente — a senhora mais
velha anunciou e tocou o colar no pescoço de Nora. — Queremos te
dar proteção. Não recordará porque fará parte da magia que o colar
será portador. A profecia será ligada a essa joia, o amor de vocês
será influenciado por nossa magia.
— Como diz?
— Eu a amo, minha querida, e por isso quero dar a chance de
conseguir ir além das gerações anteriores. Você e cada uma das
mulheres de sua família terá direito a um desejo por vida. O colar
será o portador e velará por ele. Use-o como um talismã, sempre
perto de você. Se o coração da pessoa for bom, a magia se
responsabilizará pelo resto.
— Mas e se não? — Tristan perguntou curioso.
— Consequências. Um coração invejoso não tem um desejo
profundo, é fruto da ambição. O pedido se realizará, mas fará todos
os envolvidos sofrerem. Não é o tipo de magia que acreditamos e
não é o que quero que ensine para sua família.
— Eu entendi, mas serei capaz de lembrar?
— Apenas disso e nada mais. Não lembrará que um dia foi uma
bruxa, minha querida — a mãe continuou. — Mas para tudo há um
preço.
— A memória não é preço suficiente? Não a ver…?
— O tipo de conexão que compartilham faz parte do mais
primordial que existe nessa terra. Um amor sem explicação que cria
duas almas feitas para ficarem juntas. Eu disse que vocês têm se
encontrado e se perdido ao longo dos séculos…
— Isso se encerrará conosco?
— Talvez sim ou talvez não, mas os sonhos se cessarão. Toda a
conexão que compartilhavam ficará presa dentro do colar. A profecia
e a magia se ligarão em um receptáculo.
— Por quê?
— Você sofria, minha pequena… — a mulher continuou e abraçou
a jovem. — Poucas pessoas são capazes de entender o que
acontecia com vocês dois. O poder será contido no colar e, enquanto
ele existir, ninguém mais sofrerá pela perda de um amor. Não
experienciarão tudo o que sentem um pelo outro, cada detalhe sobre
esse amor estará ligado à joia.
— E como os casais se encontrariam?
— O destino sempre encontra um jeito. Não haverá sonhos ou o
conhecimento da vida do outro, apenas a sensação de vazio, como
se estivessem à espera de sua outra metade. Entende isso? Talvez
sejam levados um ao outro, talvez o colar os conecte ou talvez…
passem a vida tentando entender os sentimentos presos no peito.
— E estando separados, teriam as consequências? — Tristan
perguntou.
— Em nome de te fazer feliz, minha filha, posso ter cometido um
erro — Margaret anunciou com um sorriso triste. — Mas o futuro
ainda precisa ser escrito enquanto vocês estão aqui hoje, vivos.
Cada geração terá seu fardo, e o de vocês é conseguir sair dessa
floresta.
— Acha que o colar é o suficiente? — Tristan perguntou,
encarando o pescoço de Nora depois de Margaret deixá-los
sozinhos. Estavam organizando os últimos detalhes antes de
adentrarem a floresta de Torwood.
— Não temos nada além da magia que ele porta, meu amor.
Precisamos acreditar no objeto porque é o único poder que vai nos
ajudar caso seja necessário.
— Não entendi o que você é e o seu poder, mas nós dois… é o
mais importante. Cresci em um mundo em que bruxas não existiam,
que magia era apenas uma lenda que os mais velhos contavam.
— Eu também não lembrarei sobre minhas origens — a jovem
afirmou com melancolia e ajeitou a capa sobre os ombros, um capuz
pesado do guerreiro que usava como tentativa de disfarçá-la durante
a viagem. Nora estava assustada com as palavras da mãe, mas não
havia tempo para procurar explicações. Posso ter cometido um erro.
— Quer falar enquanto ainda tem recordações?
— Não, eu não… Fico feliz que minha magia tenha te ajudado —
ela explicou e tocou o abdômen do homem no local da ferida. — Não
sabia como reagiria se soubesse dos poderes de cura, mas tinha
medo de seu estado e quanto mais rápido melhorasse…
— Está tudo bem, meu amor — ele respondeu, interrompendo-a,
e balançou a cabeça, dando um beijo suave nos lábios da mulher. —
Pronta?
— Sim — ela anunciou e caminhou para fora do celeiro
acompanhada de Tristan, que trajava a armadura mais uma vez.
Margaret e Caitlin esperavam do lado de fora, perto do cavalo do
inglês. Nora abraçou a mãe e irmã, falando palavras de carinho,
sabendo que aqueles seriam os últimos instantes no único lugar que
conheceu como lar, com as lembranças de cada canto da pequena
casa e dos ensinamentos que adquiriu com o coven. Apenas a
fogueira no meio da sala da casa iluminava o horizonte da noite
escura, a fumaça saindo pelo buraco do teto e delineando a sombra
dos quatros parados em frente ao celeiro. Nora tocou o colar de
esmeraldas com delicadeza e deu um sorriso vacilante para Tristan,
confirmando que era a hora. Precisavam usar a escuridão como
aliada.
Ele ajeitou-a com carinho, subindo para o cavalo e puxando-a com
ele, acomodando-a e colocando seus braços ao redor do corpo da
mulher. Nora deu um último aceno antes de o homem virar o animal
em direção a floresta, fazendo o cavalo trotar. Depois de alguns
metros, Tristan gemeu baixinho, como se o movimento incomodasse
suas feridas.
— Não podemos ir mais devagar? Ainda está mal, Tristan… pode
piorar. Fiz o possível, mas temo que não foi o suficiente para uma
jornada tão longa.
— Nem pensar — o soldado soltou o ar perto do ouvido da ruiva,
apertando-a ainda mais contra ele. — Não quero exigir muito do
cavalo, mas também precisamos ser ligeiros. Mesmo em uma
velocidade rápida, ainda estaremos na Escócia no início da manhã.
— E então o quê?
— Vamos ao sul, tentar nos esconder o máximo possível. Quando
amanhecer, poderemos parar e comer algo, mas temo que, até a
Inglaterra, estaremos expostos — ele suspirou e tirou uma adaga de
sua cintura. — Tome.
— Você tem algo para se proteger, Tristan? — a ruiva indagou
preocupada, encarando a arma que o mercenário acabara de deixar
em suas mãos.
Nora analisou o peso do objeto e examinou o homem amado. Não
era momento de comentar sua inabilidade com adagas, ou armas
em geral. Ele deu aquilo para proteção da mulher, e ela deveria
tentar fazer seu melhor caso tivesse necessidade. Mas queria não
houvesse.
— Se nos atacarem, quero que fuja para mata densa e tente
voltar para sua mãe. Sei que ela falou que irá esquecer, mas a vila
fica na mesma direção, são suas melhores chances.
— Não quero deixá-lo — ela gemeu em resposta.
— É nossa melhor oportunidade. Perdi minha espada no campo
de batalha e tenho apenas uma clava. Não seria páreo para um
grupo de homens. Precisa sobreviver, meu amor. Não me perdoaria
se algo acontecesse com você.
— Nem você, Tristan. Estamos juntos.
O homem tinha os músculos duros por entre a cota de malha e
sua armadura. Tristan parecia alerta e tenso, como um guerreiro
prestes a iniciar uma batalha, atento a todos barulhos da noite. A
floresta estava infestada de escoceses fugindo depois do confronto e
Nora tinha pouco o que fazer além de observar as sombras das
árvores em busca de ameaças.
O balanço do cavalo cobrou o preço do cansaço da jovem, que
começou a se sentir sonolenta depois de alguns minutos contra o
peito de Tristan. Desde que deixaram a casa de Margaret, não
notava os sentimentos do soldado dentro de si, sua mente tomada
apenas com os próprios pensamentos como a mãe a alertou. Mas
Nora não percebia o vazio, pois o inglês estava a seu lado, tocando-
a e enchendo-a de calmaria. Talvez conseguissem sobreviver
naquela vida. Sabia que o passo seguinte seria esquecer o coven, e
por isso lutava contra a vontade de dormir até ser roubada pelo
sono, a cabeça pendurada para frente e fazendo o cavaleiro sorrir de
sua posição. Ela conhecia a magia. Ao abrir os olhos, nada seria
como antes.
O passo acelerado do cavalo e o calor do corpo do guerreiro
embalaram o sono da mulher até despertar de repente pela parada
brusca do animal. A pausa assustou a escocesa, que levantou a
cabeça e olhou ao redor, notando o início do amanhecer entre as
árvores. Havia passado muitas horas, e atingiram um descampado
de onde era possível ouvir barulhos à distância.
— Há soldados à frente — Tristan falou ao ouvido de Nora. —
Não temos o que fazer além de esperar. Ainda falta para chegarmos
e o dia está começando.
A jovem balançou a cabeça, com medo de emitir qualquer som, e
encarou o homem. Ela juntou sua boca na dele em uma carícia leve e
analisou o horizonte, atenta a qualquer barulho. Os minutos voaram
até o som de galhos se quebrando ficar cada vez mais alto e mais
perto, como se pessoas caminhassem entre as árvores com rapidez
na direção de onde estavam escondidos. Nora tremeu e sentiu
Tristan apertá-la contra o peito, tentando acalmá-la para o que viria a
seguir. Seriam pegos a qualquer momento.
O guerreiro desmontou do cavalo de forma silenciosa e, com
cuidado, conduziu o animal para mais perto de árvores longas. Nora
olhava os movimentos ainda sobre a sela, gemendo a cada barulho
que a armadura de Tristan emitia. Ao se dar por satisfeito, parou e
esticou a mão para a mulher, tocando de leve o rosto amado.
— Quando tudo acabar — ele pediu e engoliu a seco —, cavalgue
para longe. Por favor…
— Não! — ela murmurou e saltou do cavalo, tentando alcançar
Tristan. — Estamos juntos, meu amor. Não pode…!
— Por favor, Nora. Proteja-se. Vá no instante que achar que tudo
acabou. Não posso fazer mais além disso. Por favor… — ele gemeu
mais uma vez e juntou a testa com a dela em um último carinho antes
de dar alguns passos em direção à clareira.
O coração da mulher se quebrou em mil pedaços ao perceber o
que isso significava. Tristan estava se sacrificando para salvá-la. Ela
segurou a adaga com as duas mãos e tentou engolir o nó em sua
garganta quando o cavaleiro parou, apontando a clava por entre os
arbustos, e correu em direção ao inimigo. Os homens apareceram
segundos depois, os olhos arregalados por identificar a armadura do
inimigo. O mercenário conseguiu derrubar dois antes de eles
emitirem um grito de ataque e correrem para o inglês, brandindo
suas espadas. Não foi uma luta justa e o guerreiro foi derrubado de
joelhos poucos segundos depois, fazendo Nora soltar um gemido
dolorido ao ouvir a carne do homem amado ser perfurada por uma
arma afiada.
Ela levou uma das mãos à boca, mas foi tarde demais. Seu
lamento chamou atenção de um dos homens, que a procurou com
olhos curiosos através da mata. Nora arregalou os olhos e encarou o
escocês, pensando no que fazer. Tristan achava-se ali, caído, quase
inerte e com olhos suplicantes. Ele tinha pedido para fugir, cavalgar
para longe, mas era incapaz de se afastar do homem amado.
— Não está sozinho, inglês?
— Fuja… — Tristan pediu entre gemidos de dor em um tom baixo,
como se estivesse prestes a sucumbir. Três homens correram em
direção a Nora com olhares predadores, e ela sabia que não havia
escapatória.
— TRISTAN!!!
A jovem correu em direção à mata densa, seguida pelos soldados.
Um dos homens puxou-a, retirando o manto de seus ombros e
revelando os cabelos ruivos presos em uma longa trança. Um
segundo a segurou pela cintura, tirando-a do chão e voltando para o
lugar onde Tristan encontrava-se caído e desacordado. Morto.
— AHHHHH! — a ruiva deu um grito desgarrador quando
percebeu que o guerreiro não resistiu às feridas. Tinha o perdido.
Impulsionou a adaga contra o homem, sentindo a arma entrar no
corpo do escocês. O soldado jogou-a em direção a Tristan, e Nora
esticou sua mão para o inglês, percebendo a respiração se
extinguindo. Ele ainda estava vivo, mas sucumbiria a qualquer
momento. Era o fim.
— É uma traidora, mulher? — o homem perguntou em dialeto
ânglico escocês, analisando-a ao mesmo tempo que observava a
mão suja de sangue pela ferida da adaga. Emanava ódio no olhar, e
ela não tinha esperança. A não ser…
Um desejo por vida, as palavras brilharam na cabeça de Nora
enquanto o homem parecia se regozijar de seu medo, seus
companheiros a cercando como se ela fosse uma presa fácil. Nora
tinha uma oportunidade, pensou, e procurou às cegas os dedos de
Tristan ao mesmo tempo que agarrava o colar em seu pescoço e
fechava os olhos com força. Com a respiração acelerada, Nora o
agarrou e fechou os olhos.
— Que estejamos bem. Felizes e bem… Que Tristan não morra e
que estejamos seguros — a jovem murmurou várias e várias vezes,
como uma prece, até ouvir um grunhido e ser puxada para cima,
abrindo os olhos e encarando o escocês.
— Terá o que merece. Não gostamos de traidores — ele anunciou
e jogou-a no chão com força, deixando Nora tonta pela potência do
ataque, a visão ficando turva ao mesmo tempo que os sons se
apagavam.
Em seus últimos segundos, Nora já não via a clareira ou os
escoceses. Os olhos da jovem estavam travados em Tristan, caído,
sangrando, morto. Ela voltou a recitar o pedido, mesmo sem
conseguir se mover. Não vou perder você, não agora que o
encontrei, pensou quando tudo ficou preto.

— Tristan! — Nora gritou sobressaltada quando abriu os olhos e


não entendeu onde estava. Parecia um quarto confortável, com
tapeçaria e paredes em pedra e um cheiro diferente do que
conhecia. Onde estava?
Ela olhou ao redor, percebendo que se encontrava em uma cama
com dossel, sentindo o calor de uma lareira brilhando em uma das
paredes. Um movimento chamou sua atenção e ela virou a cabeça
para encontrar Tristan com um sorriso calmo entre os lábios. Ele
parecia bem, corado e sem caminhar com dificuldades, como se não
estivesse ferido pelo ataque dos escoceses. Nora observou o
homem se aproximar e sentar-se na cama, entrelaçando os dedos
aos da jovem.
— O que aconteceu? — ela questionou em um sussurro. — Como
chegamos aqui? Estávamos na floresta e de repente… Como é
possível?
— Não sei. Acordei há pouco e a encontrei aqui, em minha casa,
em minha cama. Como se os homens e suas espadas não fossem
mais do que minha imaginação.
— Essa é sua casa? A casa em Sussex?
— Sim, bem ao sul, a muitas horas de Londres — ele suspirou em
confusão. — E muitas mais da Escócia.
— Acha que o colar fez isso? — Nora indagou com hesitação e
tocou a joia em seu pescoço.
— Não consigo lembrar como a conheço, meu amor. É tudo uma
grande neblina que envolve uma lenda de um colar mágico. Eu fui
morto por escoceses e de repente acordei em minha cama, sem
feridas… Tenho certeza de que estava nos braços da morte quando
você me resgatou — Tristan anunciou e tirou a túnica de algodão,
observando a mulher com espanto enquanto via o peito sem marcas
do inglês.
— Você foi ferido, eu lembro disso! — Nora comentou e se sentou
na cama, os dedos tocando a pele do guerreiro. — Eu vi você cair!
— Não há nada, eu procurei. Nenhuma ferida ou cicatriz. É como
se não tivesse acontecido. Abri os olhos essa manhã e estava aqui,
junto a você, em minha cama, a lareira nos aquecendo e nenhum
sinal de contusão além das que já tinha.
— O perigo passou, meu amor — ela exclamou com um sorriso
leve, e Tristan a encarou com seriedade.
— Sim. Não consigo lembrar como chegamos, ou como a conheci
ou por que as esmeraldas são mágicas Acho que a confusão da
batalha me deixou… — Ele soltou o ar e balançou a cabeça. — Só
sei que as coisas são como são, que tudo o que sempre quis
finalmente está aqui, na minha frente.
— Se está tudo bem, por que está tão sério?
— Preciso me apresentar ao Conde de Lincoln ou ao rei. Não sei
como terminou a ofensiva a Falkirk ou se deverei voltar para Escócia.
— NÂO! TRISTAN! — Nora gemeu e abraçou o homem, puxando-
o para perto de seu corpo, como se encontrasse conforto na pele
quente do cavaleiro.
— Poderei ser preso se não o fizer. Só voltarei às batalhas se for
obrigado. Não tenho obrigação com ninguém, não sou vassalo e
tenho esse pequeno pedaço de terra. Com você ao meu lado, não
faz sentido ir atrás de lutas que não são minhas.
— Quanto tempo temos?
— Alguns dias — ele anunciou e procurou a boca da ruiva em um
beijo suave. — Preciso resolver algumas questões antes de partir.
— Como o quê?
— Achar um vicário para transformá-la na senhora Sterling. É o
que mais desejo, minha querida.
— E depois irei junto com você?
— Não. Enviarei uma carta ao Conde de Lincoln. Posso ser
considerado um desertor. Não quero colocá-la em perigo, meu amor.
Se algo acontecer a mim, estará protegida em minhas terras, mas na
corte… e com seu sotaque… — Tristan se interrompeu, encarando
Nora, que beijava o peito do homem com carinho, fazendo-o gemer.
— Mulher, o que está fazendo?
— Beijando você… — ela sussurrou de forma tímida.
— Precisamos de um vicário, um disposto a nos casar o mais
rápido possível. Não consigo resistir depois de tudo…
— Não é preciso — Nora respondeu. — Quando colocou esse
colar em meu pescoço, nós tínhamos um compromisso. Nos
pertencemos, Tristan.
Tristan observou a boca de Nora como se enfeitiçado e cortou a
distância entre eles, afundando os lábios nos dela. Ele começou
gentil, dando tempo para ela se acostumar, e foi recompensado pela
exigência da boca da jovem, devorando-o como se existissem
apenas os dois no mundo. O guerreiro segurou a nuca de Nora e
empurrou-a contra a cama, continuando sua exploração de beijos ao
mesmo tempo que a ruiva emitia gemidos de satisfação.
Ele puxou o vestido, arrastando a peça e a túnica de algodão em
um mesmo movimento para fora do corpo da mulher. Examinou a
jovem, nua, com meias até os joelhos e sua grande trança
espalhando fios acobreados pelos lençóis. Com delicadeza, retirou
as duas peças de lá, escorregando as meias com vagareza pelas
pernas de Nora até deixá-la à sua mercê. A ruiva observava o
homem com olhos acesos, sabendo do poder que ele tinha sobre seu
corpo. Não lembrava como nem por que, mas sabia que já havia
tocado aquele corpo, percebendo as sensações que apenas ele era
capaz de causá-la, como se embriagada pela melhor bebida da
taverna, como se o peito fosse capaz de explodir apenas com um
toque do cavaleiro inglês.
Tristan levantou-se, arrancando a calça de seu corpo e deitando
nu sobre a mulher. Pele contra pele, como se algo primitivo e
selvagem brilhasse dentro de si a cada vez que olhava Nora. Sentia
que precisava tê-la, afundar-se até fazê-la gemer, a segundos de
uma união tão íntima e poderosa.
Ele beijou os ombros da ruiva, a boca escorregando pelo corpo
até chegar aos seios de Nora. Tristan brincou com os bicos, fazendo-
a tremer ao seu toque. Ela espalhava os dedos pelo torso do
guerreiro, arranhando as unhas pelas costas enquanto abraçavam-
se, mais e mais perto. A ereção se aninhou na entrada do corpo
feminino, deslizando através da excitação, a sensação de finalmente
chegar em casa. Tristan respirava com dificuldade, os músculos
contraídos como se fosse a uma batalha, tentando se controlar
mesmo com a tentação de Nora, empurrando contra ele e levantando
os quadris para encontrá-lo.
— Precisamos ir com calma, querida — ele sussurrou, querendo
prepará-la. Ela gemeu em resposta e fechou os tornozelos no quadril
do soldado, impulsionando contra o membro do homem.
Ele desistiu de ser um cavalheiro e penetrou Nora, notando a
barreira da virgindade. Como era possível? Tinha certeza de que a
conhecia da forma mais íntima e primitiva existente. A escocesa
reclamou de dor e mordeu o peito do inglês, fazendo-o parar em um
movimento.
— Eu pensei… — a ruiva começou e se interrompeu.
— Eu também — Tristan disse e segurou-a pelo queixo,
obrigando-a a encará-lo. Viu as pupilas dilatadas de excitação, mas
sentia o incômodo.
O homem esperou até ver as linhas do rosto de Nora se
relaxarem e ela se acostumar com a intimidade que dividiam. O
guerreiro buscou a boca da mulher com carinho, tentando acalmar os
batimentos frenéticos de seu coração e querendo que ela tivesse a
mesma urgência que ele. Com lentidão, devorou os contornos da
jovem, fazendo-a distrair-se em seus braços, dando e recebendo
afeto naqueles momentos que compartilhavam.
Nora empurrou contra ele, fazendo o membro do homem ir mais
fundo. Tristan gemeu pelas sensações e procurou algum sinal de que
não estava tão excitada quanto ele, mas a ruiva parecia igualmente
embriagada pelo desejo. Deslizou pela entrada da mulher e foi mais
fundo, recebendo um gemido de satisfação como resposta.
— Melhor? — o homem perguntou e recebeu um balançar de
cabeça de resposta seguido de mais um encontro de quadris. Ele
estava tão próximo e por tão pouco.
Tristan segurou Nora, afundando os dedos na sua perna e
juntando o corpo ao dela, dentro e fora, penetrando-a com
sofreguidão. A jovem se apertou contra ele e o mordeu mais uma
vez, dessa vez por desejo, como se não conseguisse evitar.
O cavaleiro beijou-a profundamente, martelando sua ereção e
sentindo-se a ponto de chegar ao clímax. Juntos, avançaram,
acelerando os movimentos, cada vez mais frenéticos e instintivos, o
quarto se enchendo pelos sons da união. Nora soltou um grito sem
ar, notando o corpo ser tomado por algo poderoso que não poderia
ser explicado. O fogo queimou em suas veias e a sensação de
prazer tomou os poros quando ouviu Tristan gemer em seu ouvido, o
peito martelando sobre ela, como se dividissem o mesmo coração.
Ele ficou ali, dividindo o instante com a mulher até a respiração
normalizar e as batidas se acalmarem. Nora pensou que ficaria
naquele momento para sempre, compartilhando a paz ao lado de
Tristan. Que o pior tinha acabado. Eles estavam em casa.
— Eu te amo tanto que não tenho palavras — a ruiva falou com
timidez, acariciando os cabelos escuros do homem.
— Eu também a amo, tanto… Deveríamos ter esperado — o
guerreiro anunciou, os olhos violeta muito sérios. Afundou os dedos
nos cabelos ruivos da jovem, soltos da trança pela ação entre os
lençóis.
— Esperei demais por você, Tristan. Não precisávamos de mais
tempo além do que já tivemos — Nora respondeu com um sorriso, e
o homem concordou com a cabeça.
Ele não sabia como ela chegou a ele, mas entendia que não
conseguiria se ver longe. Como se fossem uma só alma, dividida em
dois.
Depois que conseguiram deixar o quarto, algumas horas após
acordarem, Nora foi apresentada aos empregados da Cottage.
Apesar de não ser perto do mar a ponto de vê-lo, o cheiro de
maresia invadia a construção, o que surpreendia a mulher que viveu a
vida em uma Escócia fria e cheia de sombras — ou ao menos era o
que lembrava, pois rapidamente Nora percebeu que tinha sensações
como ter tido uma família feliz, mas não conseguia se lembrar de
nomes, rostos ou lugares.
Sua memória era perfeita a partir da floresta de Torwood, não
conseguindo recordar nem mesmo como se apaixonou por Tristan.
Ele parecia orgulhoso apresentando-a como a senhora Sterling,
apesar de ainda precisarem procurar pela igreja. Não que ela se
preocupasse em viver em pecado com o guerreiro. Sabia que ele a
amava e cuidaria dela pelo resto da vida dos dois, o coração repleto
de amor apenas por olhar o homem amado.
No final da tarde, Tristan e seus empregados de confiança
convenceram um pároco local a oficializar o casamento. Por medo da
honra de Nora, o inglês explicou que haviam se casado na Escócia,
mas pela situação local, não tinham nada que comprovasse o enlace.
O padre foi relutante até receber algumas moedas do mercenário.
Após alguma conversa, o clérigo realizou o casamento na porta da
igreja como dizia a tradição da época.
Nora se casou com Tristan, recebendo um anel que simbolizava a
união. Passaram apenas uma noite juntos antes de o cavaleiro
precisar partir, deixando-a protegida pelos serviçais e homens que
guardavam a casa de Sussex enquanto o inglês estava longe.
Tristan retornou a Sussex semanas depois, surpreso pelos
acontecimentos. Seus anos como cavaleiro foram encerrados e
poderia ter paz ao lado de Nora em suas terras, sem precisar pisar
no campo de batalha. Eduardo I continuava na Escócia, mas tanto o
rei como o Conde liberaram o soldado para viver como um dono de
terras pelo resto de seus dias, resultado de tantos anos de serviço
militar. Daquela data em diante, o guerreiro serviria à coroa de outra
forma além da lâmina de sua espada, sagrando-se Barão de Clifton
quando o monarca retornou para a Inglaterra alguns anos depois. A
pequena casa de Sussex passou a fazer companhia a uma
propriedade ainda maior, atrelada ao título, batizada de Clifton Hall.
O desejo de Nora para que estivessem bem tornou o guerreiro um
Barão longe dos conflitos do reino, fazendo-os resistir e, com eles, o
coven. As bruxas que habitavam a floresta de Torwood sobreviveram
para continuar a prática mágica por centenas de anos. Já dinastia
dos Sterling duraria mais de seis séculos antes de ser extinta. Nora e
Tristan viveram até idade avançada, criando filhos e netos em uma
casa repleta de amor e compartilhando um segredo: um colar de
esmeralda capaz de mudar tudo, apenas uma vez, a todas as
mulheres que estivessem na família.
Mas o que surgiu por amor, transformou-se em um receptáculo de
ambição quando os descendentes do casal passaram a usar a joia
por cobiça. O que representava o desejo puro do coração de uma
Sterling privada de seus poderes, terminou por se tornar uma arma
nas mãos das gerações seguintes. O sentimento puro deu lugar à
negatividade e mesquinhez, e a poderosa ligação entre Nora e
Tristan ficou confinada no colar pela magia do coven, incapaz de
ultrapassar as barreiras da joia secular.
Porém, o que não vinha de um coração bom, tinha consequências
devastadoras. O objeto tornou-se vingativo, separando amantes em
séculos diferentes, desfazendo desejos como uma forma de
retaliação, trazendo morte e destruição para quem buscava ambição
entre suas esmeraldas enquanto a poderosa conexão definhava,
confinada às paredes da joia verde. O colar brincava com o poder,
separando quem nascia destinado ao outro, dividindo-os além do
tempo, transformando o encontro em algo impossível. Assim como a
profecia original, quando não conseguiam se encontrar, desgraças
aconteciam ao redor, esperando a reunião dos amantes.
A cada novo século, eles surgiam na Terra, mas já não sonhavam
ou sabiam um do outro. Podiam sentir a conexão que dividiam, a
sensação de solidão, como se algo faltasse até encontrar sua
metade. Não voltou a acontecer depois de Nora e Tristan. Mais de
quinhentos anos separavam os amantes quando Eleanor Sterling fez
um pedido com todo o seu coração: queria ser livre. A jovem mulher
foi enviada para sua alma gêmea e, em seu lugar, a Sterling
destinada a viver no século 21 foi trazida para encontrar seu grande
amor. Mas tudo tinha um preço, como Margaret alertou, e a magia
do coven precisou ser quebrada.
Da mesma forma que surgiu, o encanto se extinguiu e, com ele, os
sonhos e a conexão voltaram em seu esplendor, brilhando a cada
novo século a partir daquele, juntando os apaixonados em sua
profecia. A magia unida à lenda reparou o que foi quebrado, o amor
tornando-se um elemento que conferia poder a cada nova geração
que surgiria, oferecendo a chance de um final feliz em vez de o
trágico desenlace que a ligação do casal gerava a cada século.
Sem o presente de Margaret, sobrou apenas o primordial para os
apaixonados: um ao outro e todas as sensações que
compartilhavam.
Já o colar, tornou-se inútil, dividido em pedaços e perdido em uma
realidade paralela, longe dos amantes que fez de tudo para separar.
Suas peças brilhariam no fundo do Tâmisa pelo resto da eternidade,
nunca mais capaz de realizar desejo algum. Um poder que se
extinguiu por todo o sempre.
Nota da autora

Quando comecei a escrever “Uma Dama Irresistível”, nunca


imaginei que contaria a história de Nellie e Grayson, ainda mais uma
explicação para os poderes do colar mágico que uniu Stephen e Elly.
Eram almas gêmeas, separados por séculos de distância por uma
joia caprichosa que absorveu a malícia e ambição em uma magia que
só funcionava para um coração puro. Eles renasciam a cada século,
destinados um ao outro, como uma conexão que só foi retomada
depois da destruição do colar — objeto que causou caos e evitou
que os apaixonados se reunissem pela ambição das gerações dos
Sterling que não sabiam administrar o poder da joia encantada.
É por isso que Stephen não se apaixona por Nellie, por exemplo.
É por isso que Elly e Grayson eram tão solitários no presente. Eles
precisavam encontrar suas “pessoas certas”, que estavam perdidas
por séculos de distância e causando consequências por toda a
história: as mortes, a solidão, a tristeza que Elly sofreria se tivesse
ido para Paris.
Para contar a história de “Um Presente Irresistível” do jeito que eu
queria, acabei por omitir uma regra dos casamentos no Reino Unido,
incluindo a Escócia: é necessário esperar vinte e oito dias antes de
contrair casamento, mas Grayson e Nellie tinham pressa já que tudo
mudaria em poucas semanas. É por isso que escolhi citá-la, mas
fingir que em Gretna Green ela não existe, como uma representação
do que era quando os nobres fugiam para a cidade. Atualmente,
para o nosso local favorito para “fugir para se casar” é necessário
esperar entre vinte e oito e setenta dias para checagem obrigatória
de documentos e marcar a cerimônia com antecedência.
O mesmo vale para os divórcios: só é possível entrar com o
pedido depois de um ano de casamento e alegando um dos cinco
motivos: adultério, comportamento irracional (incluindo uma série de
coisas como violência doméstica, abuso verbal, embriaguez ou uso
de drogas), abandono, estar separado por mais de dois anos, ou
estar separado por mais de cinco anos. Esses dois últimos itens são
curiosos. Caso o divórcio seja amigável, pode-se pedir a separação
“sem motivo” se o casal não estiver mais junto depois de dois anos
com uma concordância em escrito de ambos. Se uma das partes
discordar, só é possível se separar legalmente depois de longos
cinco anos.
No caso de Nellie, ela usa o comportamento irracional de Eric. É o
motivo mais recorrente nos divórcios do Reino Unido, por não
precisar de um tempo mínimo para ser solicitado — 36% dos
pedidos de maridos e 51% de esposas correspondem a isso. Apesar
do nome, não é tão grave como parece. O solicitante precisa
argumentar em alguns parágrafos tais situações, incluindo algumas
curiosas como:

• O requerido prefere passar mais tempo com seu animal de


estimação do que com o peticionário.
• O requerido não dá apoio geral ao peticionário, por exemplo,
com o trabalho doméstico.
• O requerido joga videogame por longas horas e deixa o
peticionário sozinho.
• O requerido se tornou Vegano e “empurra” suas opiniões sobre o
peticionário.
• O requerido tornou-se fanático por um tópico específico por
exemplo, academia, mudanças climáticas, política e etc.

Como Grayson e Nellie passaram por muita coisa ao longo desses


dois livros, mexi meus pauzinhos de autora para dar um final melhor
ao casal. Em minha cabeça, viveram felizes por muitas décadas e
morreram velhinhos e juntos, sem mais confusões temporais e
objetos mágicos que os afastassem. Como Margaret mesmo disse:
o destino encontra um jeito, mesmo que seja através de realidades
paralelas.
Tanto quanto as leitoras, depois de escrever “Um Presente
Irresistível”, precisava de respostas, e recorri a uma lenda celta para
explicar o poder do amor como um elemento mágico em “Um
Guerreiro Irresistível”: Tristan e Isolda.
Tristan é um guerreiro que precisa buscar a noiva do tio, Isolda.
Eles tomam uma poção por engano e terminam apaixonados em um
amor mágico, avassalador e incapaz de separá-los. Porém, ela é
prometida a outro, obrigada a se casar, e Tristan decide se afastar.
Quando ele é ferido em uma batalha, manda chamar seu amor para
que cure suas feridas, mas Isolda chega tarde demais, encontrando-
o sem vida e morrendo pela dor de perder sua alma gêmea. Diz a
lenda que, de suas sepulturas, nasceram duas árvores entrelaçadas
para que nunca fossem capazes de se separar.
Nora e Tristan nasceram com uma ligação incapaz de ser
quebrada. Stephen e Elly e Grayson e Nellie também sentiam o
mesmo, cada um à sua maneira, com um magnetismo tão grande
que ultrapassou todos os obstáculos para que ficassem juntos,
mesmo com as consequências que o coven alertou agindo ao redor.
Em minha cabeça, todos viveram vidas longas e foram felizes, pois
como devem ter percebido ao longo desses dois livros, acredito no
poder do amor. Espero que tenham se divertido tanto quando eu.
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