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Um Presente Irresistivel - Karen Santos
Um Presente Irresistivel - Karen Santos
Um Guerreiro Irresistível
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Epílogo
Grayson Canning está atraído por sua funcionária, mas ela não
parece retribuir o sentimento. Até que um acidente de trabalho
acontece, e o CEO se vê responsável pelos cuidados de Ellen
Morris. O problema é que a mulher sob sua proteção agora jura não
ser a mesma que ele conhecia antes.
Ellen está confusa. Ao acordar no hospital após um acidade do
qual não se lembra, não reconhece nada ao seu redor e nem
consegue entender como está no século 21, quando tem certeza de
que é uma Dama de 1814. Entende menos ainda como foi parar sob
os cuidados de um homem atrevido como Grayson, que insiste em
tentar manchar sua reputação.
Um erro de percurso ou um atalho do destino para que os dois se
encontrassem? Entre viagens no tempo, sedução e descobertas, o
mistério que os envolve se torna cada vez mais complicado em meio
a um amor que não deveria existir, mas que parece disposto a
desafiar todas as lógicas do universo para sobreviver.
Existe coisa mais clichê do que estar atraído por sua
funcionária?
Grayson Canning olhou através da janela de seu escritório e
contemplou sua atração crescente por Ellen Morris. Aconteceu em
um dia normal. Depois de semanas de planejamento, a obra da Casa
Canning começaria, e a equipe dela fora contratada para conduzir o
projeto. Ellen veio junto com os responsáveis pela reforma da
mansão na Grosvenor Square.
Os meses desde que foram apresentados pela primeira vez foram
uma tortura, já que nunca havia se sentido atraído por alguém à
primeira vista. A mulher era uma mistura de cabelos loiros na altura
do ombro e olhos verde-esmeralda, com um magnetismo que não
sabia explicar e… nada além disso. Todo o interesse, a sensação de
estômago torcido e a ansiedade de vê-la pareciam unilaterais.
Grayson sentia-se atraído com ímã e, em contrapartida, Ellen…
Bem, ela não parecia sentir-se do mesmo jeito.
Ele deu um suspiro impotente enquanto refletia sobre a sua
situação em frente à grande janela de vidro de seu escritório,
observando Londres em meio a seus pensamentos. Sua figura alta
espelhava-se, o terno e os cabelos escuros fundindo-se com a vista
da cidade. Talvez seja apenas carência ou solidão, tentou
racionalizar.
A Casa Canning era um dos sonhos do pai, e o empresário decidiu
acompanhar a obra mesmo com o tempo escasso, sendo notificado
a cada proposta, projeto e contratação. Era a missão dele como
Conde de Bradford, um título que pouco importava nos tempos
atuais, mas que trazia suas responsabilidades. Grayson era o 17° da
linhagem e único sobrevivente capaz de gerir o espólio. Não que a
Casa estivesse na família por todas essas gerações. Depois de anos
vivendo em uma miséria que arruinou propriedades e contas
bancárias a cada nova taxa de herança, seu pai, Frederick Canning,
criou um império financeiro que possibilitou o retorno aos dias de
glória do título. Ele negociou cada propriedade que era da família e
estava na mão de particulares para transformá-las outra vez em
patrimônio dos Bradford. Por anos, Frederick as reformou e
transformou em locais de visitação para pagar pela manutenção das
enormes mansões, deixando para o filho o dever de fazer o mesmo
depois de sua morte.
Grayson dividia-se entre conduzir o fundo que cuidava das cinco
propriedades dos Bradford e gerir a empresa de investimentos, a
Canning Co. A mansão da Grosvenor Square era a “grande casa de
Londres”, adquirida pelo pai vinte anos antes e finalmente pronta
para receber a restauração. Foi um golpe de sorte ela não ter sido
derrubada em alguma reforma de donos anteriores. Pelos custos de
manutenção, diversas famílias da aristocracia venderam as mansões
ao longo do Mayfair, que deram lugar a construções mais modernas
em um dos metros quadrados mais caros da cidade. A Casa Canning
ficou em seu lugar, os escombros de seu tempo de glória passando
de vendedor a vendedor, com planos que nunca saíam do papel.
Com o final da obra da Bradford Hall, Frederick abriu caminho para o
início do processo de restauro, mas faleceu sem vê-lo terminar.
Aos trinta e um anos, Grayson Canning tinha mais coisas do que
muitas pessoas jamais sonhariam. Dinheiro, sucesso, uma empresa
só dele. Mas as conquistas não evitavam o vazio em seu peito. Era
um homem ocupado e solitário, sem amigos próximos ou família, e
com um trabalho estressante. Não era bom com pessoas, tímido
demais para interagir com desconhecidos e apenas falante quando
se referia aos negócios, nunca sobre ele. Havia conversado com
psicólogos e feito terapia para buscar respostas, mas tudo se
resumia a ter perdido a mãe tão cedo e o pai em um acidente em
uma viagem de negócios.
Desde que conheceu Ellen, Grayson passava mais tempo do que
deveria pensando em formas de se aproximar da restauradora. Era
impressionante vê-la trabalhar, mas uma agonia estar no mesmo
ambiente da profissional especializada em história, com grande
conhecimento e sem demostrar nenhuma vontade de tê-lo por perto.
Não era como se o detestasse, era puro desinteresse. Ele não
ousou convidá-la para jantar ou uma conversa mais informal porque
Ellen notava seus olhares, mas agia como se não existissem. A
última coisa que queria era incomodá-la, mas precisava agir, tentar
pelo menos uma vez. Grayson queria dar um ponto final para seus
sentimentos, ouvir o “não” dos lábios da mulher e deixá-la ir.
— Com licença. — Nicolas, seu assistente, bateu de forma
discreta na porta. Era um homem um pouco mais velho que o
herdeiro dos Canning, negro, baixo e com expressão afável. Apoiava
Grayson há mais de uma década, quando começou a trabalhar com
o pai na empresa de investimentos. — Chegará tarde na Casa
Canning se não sair agora. Tomei a liberdade de chamar seu
motorista.
— Obrigado, Nicolas — Grayson agradeceu e virou-se para o
funcionário, encarando-o de sua posição na janela. — Alguma ideia
sobre o que seja?
— O arquiteto solicitou sua presença. Algum documento de
autorização da obra foi finalmente emitido e a reforma do lado
externo deve começar. Acredito que é mais um marco formal do que
uma consulta.
— É bom que seja — o empresário respondeu com um suspiro de
irritação. — Os planos de obra já foram aprovados, várias pessoas
estão envolvidas e o projeto prevê a remodelagem no estilo original
da casa. Não sei nada sobre isso para precisar ser a palavra final de
algo.
— Você é o dono do dinheiro, apenas isso — o assistente apontou
em um olhar cômico. — Seu pai ficaria orgulhoso por manter os
planos. Essas reformas eram o bebê dele.
— Eu sei, mas são cansativas e não entendo nada a respeito. Sei
sobre números, fundos de investimentos e manter uma empresa.
Não entendo nada sobre acabamento ou reproduções de tecidos… A
cada pergunta da equipe da obra, sinto-me como invadindo um
espaço que não é meu.
— Vai, Grayson, é importante. Talvez só volte à Casa depois de
pronta. Já não há mais o que decidir além de iniciar a obra, certo? —
o assistente indagou e encarou seu iPad antes de voltar a dizer: —
Tive que remarcar a reunião com o financeiro por causa da ida à
Casa Canning. Preciso que esteja de volta até às três para a reunião
com a consultoria.
— Muito bem — Grayson respondeu sem um pingo de entusiasmo
e passou a mão no rosto, bagunçando o cabelo escuro no processo.
Os dias eram tomados por agendas impossíveis que nem ele mesmo
conseguia recordar sem a ajuda do assistente. — Tome conta do
forte até eu voltar. Estarei no celular se precisar de mim.
— Chefe, você deveria relaxar um pouco — Nicolas comentou em
um tom pessoal e deu um olhar preocupado para Grayson. —
Quando foi a última vez que saiu de férias? Qual a última vez que
saiu e ponto?
— Acho que está entrando em um terreno pessoal demais,
Nicolas — Grayson alertou e caminhou até a porta.
— Conheço-o há mais de dez anos, Grayson. A cada ano, você
parece mais absorto nas suas coisas e mais desconectado com o
mundo aí fora.
— Você está se tornando um romântico depois do seu noivado.
— Eu gosto de você, Grayson. Mesmo sendo meu chefe — o
homem completou com um riso de canto de boca.
— Isso deveria ser um elogio, certo? — o empresário perguntou
com um sorriso. — Muito bem. Aprecio sua preocupação, mas tenho
muitas responsabilidades.
— Suas responsabilidades não o manterão aquecido nas noites.
— Ah, por Deus, Nicolas! — Grayson exclamou e ouviu uma
gargalhada em resposta de seu assistente. Encarou seu reflexo uma
última vez através da janela, observando o terno azul-escuro bem
cortado e o contraste com os cabelos bagunçados. Pensou que veria
Ellen mais uma vez, a última em muitos meses se Nicolas tivesse
razão.
Uma hora depois, parado em uma das salas da Casa Canning,
Grayson sentia-se entediado pela conversa com o arquiteto. Mais
uma visita de praxe para anunciar o início das obras externas e
outros detalhes do interior.
A previsão para a conclusão seria de mais um ano, mas ele não
precisaria ser envolvido a menos que algum problema de percurso
acontecesse ou mais dinheiro necessitasse ser desembolsado.
Grayson se odiava por procurar Ellen com o olhar enquanto
engenheiro, arquiteto e membros da obra acompanhavam a
explicação detalhada sobre os processos de restauro. Ela não
estava ali. A mulher era uma das responsáveis pela pesquisa
histórica e estava mais envolvida em itens internos da casa do que
em detalhes que estavam sendo tratados naquela reunião, como o
tipo de piso e papel de parede, ou como seria o projeto final da sala
azul.
Apesar do trabalho ter se iniciado um ano antes, fazia apenas três
meses desde que as estruturas começaram a ser mexidas. Havia
uma quantidade obscena de papéis a serem preenchidos a fim de
seguir os códigos de construção e regulamento de edifícios e
monumentos históricos, autorizações e remodelagem para receber
visitantes. A reunião destacava que a reforma por fim tinha o
necessário para continuar a obra sem problemas. Um projeto de
restauração do nível da Casa Canning precisava de diversas etapas
a serem respeitadas. Eram meses de análise para definir como
recriar as técnicas tradicionais, o estudo do desenho da época e
toda a pesquisa histórica envolvida com a planta da construção a fim
de deixá-la o mais próximo possível do original. Como Nicolas
destacou, era um marco importante e fazia sentido o convite para tal
evento.
Quando a reunião foi encerrada, Grayson caminhou pela casa,
fascinado com o que via ao seu redor. Era impressionante observar o
projeto modificar a mansão bicentenária, de escombros para uma
propriedade digna da realeza britânica. Uma construção imponente
corroída pela ação do tempo que ganharia um recomeço. O título de
Bradford passou por altos e baixos desde sua criação, e o estado da
Casa Canning era um dos resultados da ação de seus
antepassados.
Ele a viu após subir alguns degraus da grande escadaria do salão
principal. Ellen estava concentrada em uma das pinturas, um quadro
de mais de dois metros do jovem casal de Condes no início de 1800.
Grayson não tinha traços parecidos com seu parente do período
regencial: onde existiam olhos azuis afiados, ele tinha um caramelo
quente. Stephen Canning mantinha uma expressão dura e irritada,
mas com contornos suaves, como um “bom rapaz” do século 19. O
atual Lorde Bradford tinha o maxilar marcado, sombreado por uma
barba que crescia com rapidez e covinhas que sua mãe dizia adorar.
O cabelo era igualmente escuro, mas em um tom comum demais
para parecer uma característica da família.
— Você chegou cedo! — Grayson comentou e achou um péssimo
jeito de iniciar uma conversa. Ellen pareceu se assustar com seu tom
de voz, e ele se amaldiçoou por não saber como abordá-la sem
parecer um cachorro sedento por atenção.
— Veio nos visitar! O que está achando? — a mulher indagou e
tirou seus olhos do quadro, mirando na direção do empresário.
— Vocês são os especialistas. Fico feliz de transformar a casa.
Havia muito tempo que estava abandonada — Grayson explicou e se
interrompeu, respirou fundo e sorriu, recebendo um olhar curioso de
Ellen. Estava nervoso, mas não queria parecer inseguro na frente da
restauradora. — O arquiteto me chamou, então vim cumprimentá-la.
Queria falar com você.
— Muito bem… Se quiser ver algo, posso levá-lo. É um pouco
perigoso andar por aqui sem capacete, mas podemos arranjar algum
material e mostrar o trabalho. Estamos naquela fase em que
qualquer coisa é um potencial acidente por aqui…
— Na verdade, vim aqui por outro motivo. Como disse, para falar
com você, não sobre a casa — ele disparou e se encheu de
coragem. Podia sentir o suor por debaixo de seu terno e o coração
batendo forte como reação às suas palavras seguintes: — Gostaria
de levá-la para jantar.
— Como?!
— Sei que está trabalhando para mim, mas se tiver interesse em
um encontro… Estaria muito feliz em levá-la para algum lugar longe
de toda essa poeira.
— Eu gosto da poeira. — Grayson ouviu a resposta e gemeu por
dentro, porque sabia o que viria a seguir. Havia enfiado os pés pelas
mãos, e Ellen diria o “não” que ele estava esperando. — Não acho…
que seja apropriado.
— Muito bem! — Confirmou com a cabeça, como tentando
terminar a conversa constrangedora. Grayson pigarreou e soltou o
ar, tentando dar um tom mais ameno à sua voz antes de continuar. —
Posso voltar a tentar quando isso terminar.
— Senhor Canning, não acho que…
— Me apressei, Ellen, eu sei. Não vou interrompê-la mais. Tenha
um bom dia. — desejou, envergonhado pela conversa. Precisava sair
dali o mais rápido possível.
Grayson virou-se em direção às escadas ao mesmo tempo que
resmungou impotente, repetindo suas palavras para a restauradora.
Gostaria de levá-la para jantar. Não fora invasivo e nem antiético
pela relação patrão-empregada, certo? Sempre fora sem jeito com
as mulheres, mais ocupado com os estudos e o trabalho do que com
relacionamentos. A atração por Ellen era algo além de sua zona de
conforto e não sabia como agir.
Era bom se afastar da reforma e não mais tornar a encontrá-la.
Ele queria a chance de pedir um encontro e teve sua resposta. O
último ano deixou-o mais confuso do que qualquer outra coisa em
sua vida, como se a imagem da mulher voltasse vez ou outra em sua
cabeça sem controle. Era necessário se afastar.
Ele deu uma última olhada na sala e viu a jovem mexer em
materiais, voltando a encarar o grande quadro dos Condes em uma
estrutura metálica. Grayson balançou a cabeça, como se tentasse
afastar seus pensamentos, e desceu as escadas de forma lenta. Ao
chegar no último degrau, ouviu um barulho alto de metal contra metal
e correu para cima de novo, ouvindo as outras pessoas ao seu redor
fazerem o mesmo. Era Ellen, ele sabia. Quando chegou ao topo dos
degraus, ele a viu, caindo quase em câmera lenta, longe demais de
suas mãos para que pudesse evitar que se machucasse.
— Ellen! — Grayson gritou e correu até ela. A mulher estava no
chão, tentando se movimentar com lentidão, os olhos piscando
confusos e a mão na cabeça. Não queria tocá-la e, com os dedos
tremendo, ligou para a ambulância, observando Ellen desmaiar.
A sala se encheu de pessoas, todas discutindo ao mesmo tempo
sobre o que fazer com a restauradora. O mestre de obras encarou-o
com olhar preocupado, e o empresário se agachou ao lado da jovem,
buscando pelo pulso com medo de que o acidente tivesse sido fatal.
Uma queda de pelo menos dois metros poderia gerar ferimentos
internos e ossos quebrados.
O peito de Ellen se moveu devagar, a respiração superficial, e
Grayson rezou para que a ajuda estivesse perto. Que tudo ficasse
bem…
Os paramédicos subiram a escadaria da mansão minutos depois.
Grayson sentia-se como em um túnel, ouvindo os sons abafados ao
seu redor e com os pensamentos confusos. Um homem o afastou de
Ellen e começou os primeiros socorros, checando os sinais vitais e
preparando o transporte da mulher. Sentia o pânico borbulhar de
apreensão: a casa era dele, assim como a responsabilidade pela
obra; ainda por cima, havia a convidado para um jantar. Ele a
distraiu? Era culpa dele?
— Precisamos avisar a alguém — o empresário murmurou para
ninguém em particular, e o mestre de obras, parado ao seu lado,
balançou a cabeça de forma afirmativa.
— Acho que ela não tem ninguém. Ellen mora sozinha e não tem
família. Podemos ver os contatos em seu celular…
— Ela não tinha um noivo? — O arquiteto encarou o mestre de
obras, interrompendo-o. — Eric alguma coisa. Chegamos a tomar
algumas cervejas no início da obra.
— Eles terminaram. Ela mora sozinha porque ele se mudou para
Paris, pelo menos até onde sei — o outro homem replicou e deu de
ombros. Grayson acompanhou a conversa enquanto observava os
paramédicos içarem Ellen na prancha de resgate, sem saber bem o
que fazer em seguida. Se ela não tinha ninguém, ele era o
responsável por ela, não era isso?
— Sabe onde estão as coisas dela? Devem precisar de alguma
documentação, e quero procurar algum contato em seu celular —
Grayson perguntou, vendo os socorristas caminharem em direção à
escada.
— Ali, aquela mochila é dela — o mestre de obras ofereceu. —
Posso ir com eles. O senhor não precisa ir para o hospital para
resolver esse tipo de coisa.
— Ellen é minha funcionária. Faria isso por qualquer um de vocês
— afirmou e pegou a mochila da restauradora. — Envio notícias
assim que souber de algo.
Grayson seguiu a equipe até a ambulância. Não queria mexer nas
coisas pessoais de Ellen, mas momentos desesperados exigiam
decisões importantes. Enquanto eles acomodavam a mulher, ele
entrou em seu carro para segui-los até o hospital.
Minutos depois, o veículo hospitalar abriu as portas no Saint
Bartholomew e Ellen foi levada pelos paramédicos pela porta da
emergência. O empresário estacionou e correu para a entrada do
prédio. Era um milagre ter dirigido mesmo com as mãos tremendo.
Acidentes como o da jovem o lembravam de como a vida poderia se
extinguir em um estalar de dedos, como seres humanos eram
frágeis, como havia perdido o pai em um acidente de carro em um
dia inesperado, de sol e no meio do verão inglês.
Caminhou até o balcão das enfermeiras em busca de
informações. Se Ellen fosse mesmo sozinha, seria sua
responsabilidade dali em diante. Ele cuidaria dela.
— Está tudo bem? — uma enfermeira perguntou de forma suave
quando viu Grayson passar a mão pelo cabelo mais uma vez,
tentando estabilizar seus pensamentos, e passar muitos segundos
encarando a mesa à sua frente.
— Só… só um minuto. Minha… minha funcionária acabou de dar
entrada, chama-se Ellen Morris — explicou e usou o balcão do
hospital para retirar a carteira da mulher da mochila que carregava.
Abriu-a e retirou a identidade da restauradora, informando a
enfermeira sobre a sua chegada com a ambulância.
— Você é o contato dela?
— Eu sou chefe dela. A Ellen não tem família.
— Vou checar como podemos fazer as coisas — ela respondeu
afável e apontou para as cadeiras na sala de espera. — Se puder
aguardar até alguém vir falar o estado da senhorita Morris.
Grayson balançou a cabeça, ainda desnorteado, e continuou sua
busca na bolsa da jovem. Entre o celular e um caderno, nenhum
nome saltava aos olhos. Ellen não tinha nenhum contato de
emergência cadastrado em lugar algum.
— Como se sente? — a doutora Jameson perguntou para a
mulher loira à sua frente. Ela piscou os olhos, tentando enxergar
através das luzes fortes do hospital, e franziu a testa como se o
estímulo fosse forte demais para aguentar.
A médica analisou a paciente com preocupação, observando-a
levar a mão na cabeça ao mesmo tempo que soltava um suspiro
débil com o movimento. Ferimentos na cabeça poderiam ser graves
e muitas vezes silenciosos, sem sinais externos.
— Uhhh… — a paciente gemeu e fechou os olhos com ainda mais
força, sem responder à pergunta. A profissional conferiu o prontuário
em suas mãos, vendo o nome “Ellen Morris”, e tentou mais uma vez:
— Ellen, você consegue me entender?
A mulher abriu os olhos como se fizesse esforço, o verde límpido
de sua mirada semicerrado pela iluminação. Piscou algumas vezes,
parecendo focar, e gemeu mais uma vez.
— Ah… sinto-me nauseada e… se puder me dar cataplasma,
agradeceria. Minha cabeça dói… — afirmou, e a doutora Jameson a
encarou com espanto. Cataplasma?
Aquela era a décima quinta hora de plantão de Thea Jameson, e a
profissional estava cansada e confusa sobre a reação da mulher.
Depois de quinze anos trabalhando em emergências, havia visto de
tudo, incluindo pessoas que pediam todo tipo de curandeirismo como
a senhorita Moris.
— A senhorita chegou há duas horas. Um relato de acidente em
seu local de trabalho, uma queda. Seus exames parecem normais,
mas deve ficar em observação por algumas horas. Teve sorte.
— Queda? — a mulher perguntou confusa e firmou sua visão na
médica. — Como eu me machuquei? Poderia ser gentil e chamar o
doutor? Dói-me apenas abrir os olhos.
— Eu sou a médica, senhorita — Jameson respondeu sem
paciência.
— Mulheres podem ser médicas? — a paciente indagou confusa,
e a médica encarou-a por alguns segundos antes de receber um leve
aceno de Ellen, que balançou a cabeça com dificuldade. — Peço
desculpas por minha falta de educação. Eu não… não consigo
lembrar…
A médica suspirou com impotência, perguntando-se se a paciente
poderia ser uma lunática ou alguém confuso depois de um acidente.
A doutora Jameson estava cansada de ser duvidada e de lidar com
pacientes irritantes. Não que a mulher loira estivesse agindo com
raiva ou que seu comentário fosse ofensivo de propósito, mas depois
de tantas horas de pé, sua paciência se esvaía a cada segundo.
Foram anos de esforço e prática para lidar todos os dias com uma
rotina estressante, mas nunca fora boa em lidar com pessoas.
Espere… O cérebro de Thea chamou a atenção para a última frase
da paciente.
— O que não consegue lembrar exatamente? Sabe onde está?
A paciente ouviu a pergunta e sentiu-se confusa. Era óbvio que
sabia onde estava, só que… não sabia. Soltou o ar mais uma vez
com um leve gemido pela dor forte em sua cabeça e tentou se
concentrar em tudo o que sabia sobre si mesma: quantos anos
tinha? O que mais gostava? Qual era seu nome? A mulher disse
“Ellen”, mas parecia fora do lugar… Nada se encaixava e, ao mesmo
tempo, era como um grande branco. O que estava acontecendo? Ela
respirou fundo e tentou mais uma vez, os olhos fechados como se
vasculhasse cada canto de seu cérebro, sem encontrar resposta
alguma.
— Acredito… eu… — a jovem começou e parou, buscando as
palavras adequadas. — Nada. Não consigo lembrar de como vim
parar aqui, ou de antes. Essa é sua casa?
— Muito bem, precisamos de mais exames — a médica
sentenciou sem responder à pergunta. — Acaba de acordar depois
de um par de horas desacordada e parece estar em confusão. Vou
solicitar uma tomografia para ver se isso tem a ver com alguma
lesão que deixamos passar. Pela queda, você deveria ficar em
observação por pelo menos quarenta e oito horas, mas talvez sejam
necessárias mais investigações.
— Mas estou bem? — indagou preocupada.
— Nenhuma ferida ou osso quebrado, apenas um susto. Deve
sentir algumas dores no corpo, mas não parecia ter resultado em
nada até, bem, me informar que não consegue se lembrar de nada.
Após a tomografia, vamos entender melhor o que está acontecendo
— a médica completou ao olhar para as informações no prontuário,
anotando algo em um papel à sua frente.
— Tomo-o-quê?
— É um exame para saber o que está acontecendo.
— Muito bem! Obrigada, senhorita… — ela interrompeu-se sem
saber como terminar sua frase. A mulher não se apresentou. Deveria
conversar com alguém a quem não fora apresentada? A confusão
aumentou ao olhar ao redor e ver seu estado caótico: em uma cama
de formato estranho, de cabelos soltos e com um fino lençol sobre
seu corpo. Estava de roupa de baixo fora de sua casa, e havia fios
esquisitos pendurados à parede, com um líquido claro ligado a ela.
— Pode me chamar de doutora Jameson — a médica afirmou, e
Ellen fez uma mesura com a cabeça apesar de sentir a dor forte
atrás de seus olhos. Ela era uma dama educada, mesmo com a
aflição dos espasmos perto de sua testa, e deveria agir como tal.
— O que é isso em meu braço? Um tipo de sangria?
— Isso é um soro. A medicação vai direto na veia e… — a médica
parou de falar, como se a explicação não fosse importante, e Ellen
sentiu-se impotente. Havia algo ligado ao seu corpo que ela não
sabia bem o que era.
— Obrigada por sua ajuda. Alguém me acompanha? — a jovem
indagou com um sorriso, vendo a médica tamborilar com os dedos no
objeto em suas mãos. Para ela, parecia má-educação mostrar-se
impaciente, mas não poderia censurar as regras de etiqueta quando
nem mesmo sabia onde estava. — Uma nobre nunca deve
permanecer sozinha. Onde está minha dama de companhia?
— Ah… — doutora Jameson balbuciou, como se não soubesse
responder. Talvez a mulher fosse realmente uma lunática, pensou.
— Não tenho ideia do que está falando.
— Muito bem… aqui deve ser algum tipo de exceção. Se até
mulheres podem ser médicas — a jovem loira anunciou, e a médica
deu uma expressão torcida como resposta, sem saber bem o que
dizer em seguida.
Ela anotou no prontuário informações sobre o caso de Ellen Morris
e adicionou ao histórico um possível quadro de confusão mental. A
forma que a paciente falava era diferente, não como se a ferida na
cabeça tivesse afetado sua fala, mas mais como uma forma
estranha e antiquada que ouviu apenas com sua avó ou em livros de
anos antes. O jeito que agia e as perguntas pareciam de um
personagem saído de algum filme de época e não de alguém do
século 21. Era um sintoma tão importante quando a falta de
memória.
— Há um homem esperando a senhorita, mas não sei se é o
acompanhante que está pensando. Vou avisá-lo que já pode visitá-la.
Ele está aí fora há horas — a médica informou, lembrando-se de
Grayson Canning.
— Veja só, se deve ser um pai ou irmão…!
— Consegue lembrar de algum deles? Nomes, talvez? — a
médica interrompeu, mais uma vez curiosa, tentando extrair alguma
informação da paciente.
O senhor Canning não era parente de Ellen Morris, ela sabia. Ele
era um doador importante do hospital e algumas regras estavam
sendo quebradas naquela tarde para atender à necessidade do
homem. O empresário não deveria receber informações sobre Ellen,
mas suas doações falavam mais alto no Saint Bartholomew, e não as
regras de conduta.
— Não me lembro, mas decerto também não conheço cavalheiro
algum. É indecente que ache que devo receber um homem sozinha
nesse quarto. Isso é um quarto? Não me lembro de camas serem
tão desconfortáveis! — a mulher resmungou mais uma vez, e a
doutora Jameson decidiu que era o momento de sair do quarto.
Quinze horas de plantão.
— Como acabamos de discutir, Ellen, a senhorita não lembra de
nada.
— Mas posso afirmar que não conheço nenhum homem que
deixaria tomar tais liberdades. Encontrar-me a sós em meu quarto.
Ora… — a mulher retrucou com um tom educado, porém cheio de
censura, e a médica quis rir da situação.
— Muito bem. Vou informar ao senhor Canning que…
— Canning? — a paciente perguntou em um tom baixo, e a
médica se impressionou com o olhar preocupado. Talvez ela se
lembrasse do sobrenome?
— Sim… Grayson Canning — a médica informou. — Foi ele que
chegou com a senhorita. É o seu chefe. Devo chamá-lo ou não?
— Não, por favor — a paciente pediu, e a doutora Jameson
apenas balançou em concordância.
— Vou solicitar mais exames para entendermos o que está
acontecendo. Não há lesão aparente e nem sangramentos internos.
Passo mais tarde para vê-la. — A médica cumprimentou e saiu,
deixando a paciente com olhar confuso.
Conforme avançava pelos corredores do hospital, pensava em
como informar a Grayson Canning que a jovem não gostaria de vê-lo.
Seria um momento constrangedor se o executivo decidisse que não
respeitaria a decisão, mas o estado da mulher merecia atenção. Era
um caso desafiador: nenhuma lesão e um quadro que variava entre
falta de memória e confusão mental.
Quando a doutora Jameson chegou à recepção, viu o homem de
cabelos escuros sentado em uma das cadeiras, trajando um terno de
três peças. A enfermeira o identificou como Grayson Canning, e ela
fez uma curta caminhada até parar na frente dele com um aceno.
— Senhor Canning? Sou a doutora Jameson, responsável pelo
caso de Ellen Morris no plantão. Ela acaba de acordar e está bem.
— E sobre o acidente?
— Está lúcida e bem, mas pediu para não o ver quando informei
da sua presença. Vamos realizar mais exames. Nenhum resultado
me deixou preocupada.
— Muito bem. — Grayson deu de ombros. — Mas há algo
acontecendo? Em que momento poderá ir para casa?
— O senhor está bem em apenas ficar na recepção? — a médica
questionou, curiosa por ele não demostrar irritação pela decisão da
mulher.
— Ela é minha empregada e acaba de sofrer um acidente.
Respeito o pedido de ficar sozinha. Não parecia bem quando chegou.
— Em linhas gerais, já que não posso me aprofundar ao caso com
o senhor — a médica censurou. — Ellen Morris está bem e sem
lesão aparente. Vamos fazer novos exames, pois ela acordou sem
lembranças.
— Como sem lembranças?
— De nenhum tipo. Ela diz que não consegue lembrar de nada,
nem como chegou aqui ou como se feriu. E ainda está falando
diferente, com alguns pensamentos… Digamos que acho importante
analisarmos confusão mental. Talvez a batida…
— O que quer dizer? — Grayson a interrompeu com um olhar
curioso.
— Parece saída de uma daquelas séries do século 19. Não sabia
o que era um hospital e se surpreendeu por eu ser médica.
— Ela é especializada em período regencial. Acha que tem algo a
ver?
— O acidente foi durante o trabalho?
— Sim. Ela estava analisando uma pintura do início de 1800.
— As coisas podem estar confusas em sua cabeça. Realidade e
campo de estudo… A mente é algo insondável, senhor. Vou deixá-la
descansar antes do novo exame. Talvez em algumas horas volte ao
normal, não podemos afirmar nada.
— E qual é o tratamento para esse tipo de coisa?
— Nada parece indicar gravidade em seu acidente. Sua falta de
memória é um inconveniente, mas acredito que possa tentar outros
tipos de tratamento.
— Como o quê?
— Procurar um terapeuta. Pode ser tanto uma sequela física
como uma psicológica. Não deveríamos descartar nada nesse
momento, o acidente acaba de acontecer.
— Mesmo sem memória e confundindo coisas?
— Talvez Ellen só esteja projetando sua vida em seu campo de
estudo como forma de proteção. Até alguns dias após a lesão, não
temos como saber a real extensão do problema. — A mulher
suspirou. — Não há motivos para ficar internada. Nós precisamos do
quarto para pacientes mais graves e os exames não mostraram
problema algum. Ela ficará em observação, mas apenas falta de
memória não é o suficiente para mantê-la no hospital por muitos dias.
— Não ter memória é um problema muito sério, doutora —
Grayson Canning retrucou com irritação, o maxilar cerrado. Jameson
soltou o ar com impaciência.
— Eu sei, senhor Canning — a profissional respondeu seca —,
mas não é debilitante.
— Ellen mora sozinha e não tem parentes. Se tiver algo que
possa…
— Nesse caso, o mais adequado são enfermeiras particulares ou
até mesmo uma instituição. Ela deve voltar para consultas, mas não
é preciso internação permanente. Entendo sua preocupação, mas
Ellen não terá necessidade de ficar no hospital se os exames
estiverem normais— a mulher continuou e esfregou os olhos com
cansaço. — É frustrante, mas não existem medicações para “voltar
lembranças”. Acredito que tentar relembrar fatos seja o melhor
nesse caso. É cedo para decidirmos se é algo passageiro ou não.
— Ou seja, o ideal é não ficar sozinha?
— Sim, mas temos que ver dentro das possibilidades da paciente.
O senhor deve conhecer melhor a rede de amigos e conhecidos de
Ellen. Não temos como afirmar nada até ver os resultados, mas ela
teve sorte. Acidentes assim já tiveram resultados mais trágicos.
Tornar-se uma dama do século 19 não é o pior dos problemas.
— E quando teremos certeza ou não?
— Ela vai permanecer ao menos quarenta e oito horas no hospital.
Vamos fazer exames e constatar se há algo físico afetando o
cérebro da paciente. No mais… É paciência. As coisas podem voltar
com o tempo, mas ocorrências com o cérebro são perigosas. Às
vezes são sequelas permanentes, às vezes curam-se depois de
poucos dias.
— E não há como saber qual é o caso de Ellen?
— Não — a médica afirmou, e Grayson balançou a cabeça com
irritação direcionada mais à situação do que à profissional. —
Apenas o tempo dirá quais lembranças a senhorita Morris perdeu e
quais vai recordar.
Ellen analisou as paredes, confusa pelo lugar. A mulher que se
dizia médica, para grande confusão da jovem que poderia jurar que
apenas homem exerciam tal função, informou que sua saúde estava
boa, mas seria preciso fazer outro exame. Não entendia bem as
palavras, nem que tipo de análise era necessária. Preferia não se
preocupar com isso, já que nem mesmo conseguia lembrar de coisas
simples sobre si mesma, como o formato do rosto, a cor dos olhos
ou o tom dos cabelos que pareciam estranhamente curtos para o
que a moda dizia que ela deveria usar.
Eram só mais alguns pontos na lista de coisas que não faziam
sentido para Ellen. Desde o momento que abriu os olhos no hospital,
parecia notar objetos e coisas que não sabia o nome e que tinha
certeza de que nunca vira antes, da cama desconfortável e alta às
imagens se movendo e fazendo barulho nas caixas ao lado do local
em que estava deitada.
— Podemos fazer a tomografia? — um homem perguntou à porta
do quarto de hospital, tirando Ellen de seus pensamentos. Ela o
encarou em choque e jogou um lençol sobre os ombros com pressa,
embolando-se entre os fios presos a seu braço. Ele não sentia
vergonha por ver uma dama em tão poucas vestes?
— É o exame que a médica falou? — a jovem indagou em um fio
de voz, encurvando-se sob o tecido com medo de o delineado de seu
corpo no lençol aparecer de sua posição.
— Vou levá-la na maca até a sala de exames. Consegue se
levantar? Preciso que venha até a maca e deite-se sobre ela. — Ele
apontou para o objeto. Ellen observou a tal maca em confusão, sem
entender ao certo como uma mesa com rodas poderia levá-la a
algum lugar. Ele iria empurrá-la como uma carruagem?
— O senhor poderia se virar? — pediu, e recebeu um aceno de
cabeça e um sorriso afável. Assim que o profissional se virou para
encarar a parede, a mulher se enrolou no lençol e sentou-se sobre o
objeto, ainda confusa sobre o processo do tal exame.
— Posso me virar? A senhorita está deitada?
— Agora estou — informou ao mesmo momento que o maqueiro a
encarou parecendo uma múmia enrolada no lençol. O que estava
acontecendo ali? Em seus sete anos de hospital, já tinha visto todo
tipo de coisa. Era claro que a mulher era envergonhada e queria que
nenhuma parte de si ficasse à mostra.
— Vou ajeitar seu soro e vamos para a sala, muito bem? — o
profissional avisou e começou os procedimentos, tentando se
aproximar o mínimo possível dela, que o encarava com olhos abertos
e um misto de curiosidade e temor enquanto se encolhia sob o
lençol.
— Obrigada — Ellen agradeceu, surpresa quando o homem
empurrou o objeto. Tentou se segurar nos ferros das laterais,
apertando-os até os dedos ficarem brancos. Definitivamente era uma
carruagem empurrada por uma pessoa em que era transportada
deitada. Que tipo de lugar louco era aquele? Tinha certeza de ver
pessoas sendo movimentadas de tal forma, apesar de não ter
lembranças, doentes ou desacordadas, mas ela não era nenhuma
das duas coisas. Bem… talvez estivesse e não soubesse, porque
tinha o objeto que parecia uma sangria no braço…
— Pode ficar tranquila — o homem pediu. — É seguro. Relaxe!
Ellen examinou o arredor, passando por corredores de paredes
sem adorno e pessoas vestidas de branco. Depois de alguns
segundos, o profissional parou em frente à uma porta e abriu-a,
revelando um dos objetos mais estranhos que a mulher jamais viu —
ou ao menos jurava que tinha visto.
— O que é isso? — a jovem questionou, confusa pela coisa
branca gigante, e examinou a máquina que ocupava um dos cantos
da sala, levantando o torso da maca com cuidado para não revelar o
que o lençol cobria.
— Um tomógrafo. É onde vai fazer o exame — ele explicou em um
tom calmo. — Teve um acidente e bateu sua cabeça, pelo que
soube. A médica pediu para fazer o exame. Venho buscá-la assim
que acabar. Vou ajudá-la enquanto o técnico resolve tudo, pode ser?
— O que… o que precisa ser feito?
— Deite-se ali, a cabeça virada para o buraco — ele apontou para
o aparelho, e outro homem se aproximou. O técnico chegou perto
demais, como se quisesse tocá-la.
— Posso fazer sozinha — anunciou e levantou o queixo, tentando
dar autoridade a sua fala. Foi a forma que fora ensinada. — Os
senhores podem se virar para me dar privacidade?
— Tome cuidado com o… — Ele apontou para os fios presos ao
braço e tirou-os do caminho, estendendo-os para a mulher segurar.
Ellen encarou o objeto grande na sala, colocou os pés no chão frio
e caminhou até a máquina. Depois, deitou-se em mais uma cama
estranha e puxou o lençol sobre o corpo, colocando-o até o final do
pescoço.
— Posso me virar? — o técnico perguntou, e ela respondeu com
um “sim” baixo, ainda tentando entender o que aconteceria naquele
objeto tão grande. Aquilo deveria ser um pesadelo, era a única
explicação, pensou. O homem passou os segundos seguintes
pedindo para que ajeitasse o pescoço, os ombros e os braços, até
ficar satisfeito. Por fim, cuidou do posicionamento dos fios presos ao
braço da mulher. Para alívio da jovem, ele tinha apenas um olhar
clínico.
— Não deve se mexer — o técnico informou e apontou para um
vidro a poucos metros. — Estarei naquela sala. Você ouvirá barulhos
e depois o exame começará. É rápido, mas pode ser sufocante. Não
se mexa.
O homem que a conduziu até a sala de exame saiu com o
transporte, e o técnico entrou no local indicado. Ela escutou a voz
avisando que o exame começaria e fechou os olhos quando o objeto
se movimentou, entrando ainda mais fundo no buraco. Aquilo era a
tal tomografia? Ellen ouviu os pequenos barulhos e sua respiração se
acelerou. Estava com medo de ser engolida pelo equipamento e as
luzes vermelhas à sua frente. Ela iria morrer?
— Senhor… — ela falou em um fio de voz, sem conseguir reação
do técnico. De sua posição, não conseguia nem mesmo ver o
responsável pelo exame, apenas as luzes vermelhas e o barulho
como de máquinas que viu certa vez em… ó, ela não se lembrava.
Não conseguia lembrar de nada e estava presa a um objeto gigante
que a engolia viva como um animal marinho.
Pensou em se debater para chamar atenção, mas foi ensinada a
se comportar. O homem pediu para ficar parada, logo, ela ficaria. Só
que… Ela precisava sair daquela coisa. E se as manchas vermelhas
a machucassem? E se tudo tremesse? Não confiava naquele objeto
gigante e sentia-se desconfortável.
— Senhor…? — a jovem indagou mais uma vez. Era o suficiente.
Ela arrastou-se no aparelho, subindo o torso e tentando se empurrar
para fora. Bateu com a testa na estrutura e sentiu a visão escurecer
pela dor.
Ela empurrou mais uma vez e sentou-se, para logo em seguida
perder o equilíbrio para frente e cair no chão graças ao enrosco do
lençol. Não poderia estar mais envergonhada, sentindo a cabeça
latejar ainda mais pelo novo acidente. Ellen abriu os olhos e checou o
cobertor, levantando-se com cuidado para não mostrar nenhum
pedaço de pele.
— Ei, está tudo bem? — o técnico questionou depois de abrir a
porta da saleta com rapidez e correr até ela, levantando os fios
presos no braço da mulher, que pareciam se encher de algo
vermelho. — Nós conseguimos fazer a imagem. Está bem? Sentindo
pânico? Não sabíamos que tinha claustrofobia!
— Me tire daqui, sim? Poderia chamar alguém? Não estou bem…
— Vamos levá-la para seu quarto. Você tem algum
acompanhante? Vou chamá-lo.
— Não… eu não… — começou, mas foi interrompida pelo homem
com a maca, que abriu a porta e acenou para ela. A jovem sentia as
faces pálidas e o coração batendo rápido por toda a situação.
Ellen juntou toda a dignidade que conseguiu e caminhou enrolada
no lençol para a cama com rodas, subindo como foi instruída da
primeira vez e deixando-se ser empurrada pelos corredores. Voltou
para o quarto e, quando estava alojada, ajeitou-se, agradecendo-o
no momento que ouviu a voz à porta.
— Pediu para me chamar? — um homem de cabelos escuros e
olhos caramelo perguntou da porta. Carregava flores amarelas
delicadas e tinha um sorriso cordial nos lábios.
— Não — a jovem respondeu e encarou o enfermeiro que saía
pela porta. Quem era?
— Me falaram que teve um problema com um exame e que queria
falar com seu acompanhante. Pensei…
— Ah! — ela murmurou e observou o cavalheiro. Ellen puxou o
lençol, ainda mais alto, até o queixo, sentindo-se empalidecer. — É
você o cavalheiro que a médica falou a respeito? Não o conheço,
senhor. É muito reprovável um homem visitar uma mulher. Estou com
trajes pequenos e inaceitáveis. O senhor poderia sair? Desde que
acordei nesse… nesse lugar, coisas estranhas acontecem!
— Nós nos conhecemos, Ellen — ele informou e depositou as
flores ao lado da cama, aproximando-se dela. — A médica me
alertou que não se lembra das coisas e está agindo… bem,
diferente.
— Como eu o conheço? É da família? Algum amigo de confiança?
Fomos apresentados formalmente?
— Sou Grayson Canning e você está trabalhando como
restauradora de uma casa do século 19. Minha casa.
— Como o Conde de Bradford? — ela perguntou e encarou
Grayson de forma confusa, como se não entendesse bem de onde
veio sua pergunta. Como sabia que o Lorde tinha o sobrenome
Canning? Era a segunda vez que uma apreensão tomava o peito de
Ellen ao ouvir aquele nome, como se não conseguisse explicar o
temor ao ouvir tal palavra.
— Sim. Eu sou o Conde de Bradford.
— E por que está aqui? — a jovem indagou e sua voz tremeu.
— Porque estava lá quando sofreu o acidente! Veja, tentei
procurar algum parente seu, mas acho que não tem ninguém vivo em
seu convívio. Estou aqui caso precise de algo.
— Eu preciso que saia, Lorde Bradford — ela pediu com a voz em
um tom agudo, como se estivesse a um passo da histeria. — Não
quero que alguém o veja e ache que sou uma mulher de vida fácil.
Minha reputação é impecável e não quero ser vista com um homem.
— Reputação? Ellen! — Grayson encarou-a confuso e percebeu
que a médica tinha razão. Não só falava como uma dama do século
19, mas agia como tal. Seria uma difícil recuperação. Doutora
Jameson falou em confusão mental, mas a tal ponto de confundir seu
campo de estudo e achar que estava no período regencial inglês?
Que tipo de loucura seria aquela?
— Ao que parece, o senhor é um sem-educação! Não entende
meu pedido? Onde estão seus modos? Trouxe-me para esse lugar
onde as coisas parecem estar de ponta-cabeça. Essa cama é
desconfortável, uma mulher diz que é médica, essas luzes parecem
tão fortes que podem me cegar! Como as velas foram parar aí? —
ela apontou para o teto e continuou, como se estivesse tagarelando
mais para si do que para ele: — Eu preciso ficar calma. Não sou
assim… eu…
— Ellen. Você sabe onde está?
— Fui informada que isso é um hospital.
— O lugar, sabe onde estamos?
— Não… — ela falou e apertou o lençol ainda mais sobre o
queixo. — O senhor está me deixando desconfortável.
— Estamos em Londres. Lembra-se de onde mora? Gostaria de
verificar sua casa. Sabe se tem algum animal de estimação? Já está
aqui há algumas horas…
— Londres? Nós deveríamos ir a Londres apenas na temporada…
depois de eu… depois de… não sei — ela concluiu frustrada. — É
impossível estar em Londres. Deveria estar no campo!
— Ellen… Em que ano acha que estamos? — Grayson questionou
desconfiado.
— 1814? — a jovem indagou, mais para si mesma do que para o
homem que parecia espantado com sua resposta. Ela olhou para os
lados como se as paredes pudessem ter respostas melhores do que
ela própria. — É esse o ano, não é? Tenho memórias confusas
fervilhando em minha cabeça, mas não sei ao certo onde estou.
Deveria ter uma dama de companhia e…
— Oh, Deus, Ellen… — Grayson suspirou e a interrompeu com
sua expressão consternada.
— O que ocorre?
— Não estamos em 1814. Errou por mais de duzentos anos. Você
trabalha com período regencial e por isso que conhece tudo sobre
costumes e o jeito de falar. Nada é do jeito que pensa.
— Confusa? — ela perguntou e soltou o lençol, como se estivesse
refletindo sobre as palavras. — Tenho certeza que…
— Sei que tem — Grayson a interrompeu. — Vou procurar a
médica. Eu preciso… é melhor falar com a doutora Jameson. Venho
vê-la quando puder.
— Por favor, não volte a me ver. Não quero ser comprometida! —
ela respondeu em um sussurro, quase como uma súplica, e encarou-
o, vulnerável. — Mas se puder achar alguém de minha família,
qualquer pessoa, eu agradeceria. É como se estivesse em um
pesadelo. Não sei se posso fazer isso sozinha.
— Vou ajudá-la, Ellen, prometo.
Ellen sabia que não deveria ser tão interrompida. Todo tipo de
pessoa entrou em seu quarto, inclusive durante a madrugada, para
verificar informações no pequeno aparato ao lado da cama ou mexer
nos fios ligados a seu corpo — eles se foram ao final do segundo dia
de estadia, quando ela passou a ser alimentada no quarto. A mulher
recebia uma bandeja com apenas um garfo e faca em vez do serviço
completo, pequenos potes coloridos e uma sobremesa que parecia
estranhamente palatável.
A primeira noite passou com poucas horas de sono pelo vai e vem
do quarto, e o dia seguinte foi dividido entre cochilos. Desejou ter
uma distração, como um livro, mesmo não gostando de ler. Ela olhou
para as paredes por muitas horas seguidas e recebeu a visita dos
profissionais, respondendo perguntas sobre como se sentia ou o que
se lembrava. Ao menos a dor de cabeça havia passado e não sentia
mais as dores no corpo e enjoo que surgiram após o acidente. Em
todas essas horas, esperou pela volta do Conde e a promessa de
ajudá-la. Ela sentia receio pelo nome, mas tinha confiança no
juramento do nobre.
Na terceira manhã, depois de outra noite mal dormida, a médica
informou a jovem que o período de “observação” havia acabado, que
nada nos exames era preocupante. Iria para casa mesmo não
sabendo onde morava. A ajuda do Conde precisava chegar rápido
ou, do contrário, seria uma pessoa sem teto.
— Precisará voltar para alguns exames e uma consulta de
revisão. Até sabermos a extensão da sua falta de memória e sua
mudança de comportamento, não acho sábio voltar ao trabalho.
Também acho melhor não ficar sozinha, não sabemos se alguma
sequela secundária pode aparecer — a doutora Jameson explicou.
— Pedi para um dos enfermeiros trazer as roupas com que chegou
ao hospital. Chamou alguém?
— Não. — Ela balançou a cabeça de forma negativa enquanto
tentava absorver as palavras da médica. — Há algo errado comigo?
Não entendo…
— Seus exames não mostraram nada. O que aconselho é
procurar um terapeuta ou um psicólogo. Um profissional que a ajude
a navegar nas próximas semanas e desbloqueie o que quer que
esteja evitando que se lembre do seu passado. Quando esgotarmos
todas as possibilidades, talvez sejamos capazes de descobrir o que
aconteceu com a senhorita.
— O que é um psicólogo? A navegar? Vamos a alto-mar? — Ellen
perguntou, e a mulher deu uma risada seca, como se surpreendida
pelas indagações da paciente.
— Um profissional que pode te ajudar com seus pensamentos e
os significados do que está acontecendo. Acredito que seu trabalho
e a falta de memória mudaram sua atitude. O senhor Canning relatou
a mudança…
— Já disse que não conheço esse homem! — ela resmungou,
interrompendo a doutora. — Além do mais, não vou procurar esse
tipo de profissional. Segredos podem custar muito a famílias. Não
quero que ninguém saiba sobre o que está acontecendo aqui.
— Muito bem — a mulher cortou com um suspiro alto. Para a
médica, era difícil lidar com pacientes que não entendiam que as
doenças da mente poderiam ser tão letais quanto as do corpo, e
Ellen Morris precisava de ajuda com as consequências do acidente.
— Precisamos refazer seu exame para acompanhar o estado da sua
cabeça. Não parece ter inchaço ou sangramentos, mas é importante.
A senhorita continua sem memória mesmo quase três dias depois do
acidente. Vou deixar tudo com o senhor Canning.
— Mas ele… mas eu… — Ellen gaguejou, e a profissional olhou
seu relógio.
— Tomei a liberdade de avisar ao senhor Canning, não sabia se
tinha falado com outra pessoa. Não temos seus contatos e, como
falei, não é prudente ficar sozinha. Terá que reaprender muitas
coisas se continuar a agir dessa forma… ahh… peculiar.
— A senhorita doutora fala de um jeito complicado que não
consigo entender — desabafou. — Estou morrendo, é isso? Por isso
quase fui engolida por aquela engenhoca branca?
— Não! — A mulher sorriu pela ironia da situação. — A senhorita
está bem, e o senhor Canning quer auxiliá-la. Se quer meu conselho,
deveria deixar que a ajude, pois precisará de muito apoio após sair
do hospital. Não consegue ver, mas as pessoas acharão seu jeito
esquisito.
— Ah… — a jovem gemeu em resposta, sem entender o que a
profissional quis dizer.
— Preciso ir. Mas você está bem, só necessita solucionar esse
inconveniente com a memória. Acho que ficará bem. — Ela balançou
a cabeça e olhou para o relógio outra vez. — Preciso ver outro
paciente. Vou resolver as burocracias de sua alta e peço para
alguém avisá-la quando estiver tudo pronto.
A médica saiu do quarto do hospital e deixou Ellen ali, encarando
a parede branca do local até um enfermeiro bater em sua porta e
deixar suas roupas dobradas. A mulher passou tanto tempo naquela
posição que poderia descrever com exatidão as manchas
amareladas na pintura. Assim que o homem saiu do quarto, ela se
levantou, curiosa, e mexeu nas peças, confusa com o que estava
vendo: por que tinham calças ali?
Ela se enrolou ainda mais no lençol, agradecendo por não usar
mais o aparato em seu braço, e analisou as roupas com olhar crítico.
Aquilo não era dela, tinha certeza. Caminhou até o espaço reservado
e olhou para o vaso sanitário, depositando as roupas sobre ele. A
enfermeira da primeira noite disse que era onde ela poderia fazer
suas necessidades, e Ellen relutou até sentir-se apertar. Foi quando
testou a estrutura. Parecia mais fácil do que penicos, apesar de não
saber como fazia para se livrar dos resíduos. Sozinha, descobriu o
outro aparato, parecido a uma tina, de onde saía água o suficiente
para sua higiene. Era um local de loucos.
Ellen tirou a grande camisola que usava desde que acordou no
hospital e vestiu primeiro a camisa de manga longa. Sentiu o tecido
diferente do que costumava usar. Ao pegar a calça, vestiu-a,
sentindo certa dificuldade ao fechar os botões, notando como
pareciam com peças masculinas. Encarou-se no espelho, ainda
confusa com seu reflexo, sem acreditar na rebeldia de não usar um
vestido. Parecia uma roupa de baixo com tecido entre as pernas.
Analisando o reflexo, ela sabia que havia algo de diferente, mas
não sabia apontar o que. As calças, definitivamente as calças. Na
primeira noite, quando se deparou com o espelho, analisou o rosto,
espantada por não se reconhecer naquela imagem. Os cabelos, a
cor dos olhos… nada a fazia se lembrar de quem era.
Ellen saiu do banheiro insatisfeita por sua aparência e pela
chegada eminente de Lorde Bradford. Ela jogou o lençol às suas
costas e torceu para que a túnica improvisada a protegesse de
olhares. Sentou-se na cama e esperou, sem saber o que fazer em
seguida, o olhar nas mãos, como hipnotizada por mais um pedaço de
si mesma que não reconhecia.
— Está tudo bem? — A voz do Conde de Bradford chamou
atenção de Ellen, que levantou a cabeça assustada por ter sido pega
em um momento tão vulnerável. A restauradora estava curvada e
pensativa quando o homem de cabelos escuros entrou no quarto,
encarando-a com curiosidade.
— Devolveram-me algumas roupas, mas não parecem ser minhas.
Há um par de calças, Lorde Bradford! Só mesmo nesse lugar louco
uma mulher usaria calças! — ela exclamou e colocou a mão sobre a
boca antes de encará-lo com seriedade. — Não deveria falar de tais
coisas com o senhor. Roupas femininas são um assunto pouco nobre
e deveria ser citado apenas no íntimo!
— Primeiro, pare de me chamar de “Lorde Bradford”. Ninguém me
chama assim, e meu nome é Grayson — ele pediu e parou em frente
à mulher, que o encarou com curiosidade pelo pedido inusitado.
— É desrespeitoso. O senhor tem um título e deve ser
reconhecido como tal!
— Ninguém usa mais esse tipo de cumprimento. Sinto-me como
alguém de oitenta anos indo conhecer a rainha.
— E isso é uma honra — ela afirmou, a expressão tão solene que
o homem riu em resposta. — Senhor Canning então, vou chamá-lo
assim. Sou incapaz de tratá-lo com o primeiro nome. Isso denota
uma intimidade que não quero, nem devo dar ao senhor. Já terei
minha reputação manchada por toda essa loucura dos últimos dias.
— Lá vamos nós com a reputação de novo — ele murmurou com
um sorriso. — Agora, voltando ao caso de suas roupas, posso ver?
— QUAL É O PROBLEMA DO SENHOR?! — questionou com
irritação, a voz em um tom alto que a assustou. Ela suspirou, como
se tentasse controlar sua respiração, apertando ainda mais o lençol
contra si.
Grayson podia notar que a jovem parecia tentar controlar sua ira,
como se não se desse o direito de ficar zangada, mas suas
bochechas rosadas a delatavam. Era divertido vê-la irritada apenas
pela ideia de ele ver seus tornozelos.
— Ellen, juro que é um pedido inocente…
— Primeiro invade este quarto e agora quer me ver de calças?
Não está aqui há cinco segundos e já quer ver algo censurável! —
ela continuou, interrompendo-o.
— Estive com você minutos antes do acidente. Posso identificar
se é uma roupa sua ou não. — Grayson informou em um tom
apaziguador, e Ellen encarou-o por alguns segundos.
Ela balançou a cabeça em afirmação e fechou os olhos, como se
fosse incapaz de acompanhar tal ato. Depois, puxou o lençol até sua
perna ficar exposta até parte do joelho. Ellen estava vermelha como
um tomate, como se estivesse com vergonha de tal ação.
— São suas — ele sentenciou. — Estava com essa calça verde
quando a vi, minutos antes do acidente. Você sabe como aconteceu
o acidente?
— Tem certeza de que são minhas? — a mulher indagou
assombrada. — Não sei como aconteceu. A médica disse que
machuquei a cabeça em uma queda.
— Caiu de uma escada de construção dentro da Casa Canning
em meio à reforma. Por isso é minha responsabilidade. Estava
trabalhando para mim.
— Não consigo acreditar que uma dama como eu trabalha!
— Claro que trabalha! — ele exclamou com um sorriso leve. Ela
era adorável como uma dama do século 19. — Vim buscá-la para a
levar até sua casa. Lá pode encontrar alguma roupa que seja do seu
agrado, o que acha? Suas chaves estavam em sua bolsa e consegui
o endereço em seus dados de contratação. Acho que ficará bem.
— O senhor esteve em minha casa? — ela perguntou nervosa.
— Não, estava ocupado e mandei um de meus funcionários para
ver se tinha algo urgente. Espero que não fique zangada.
— Claro que não… Se puder ser tão solicito. Não sei onde moro e
nem sei como conseguir uma carruagem para me levar até lá.
Acredito que minha dama de companhia poderá me arranjar roupas
mais adequadas quando chegar, e não essas peças masculinas. Algo
deve ter acontecido a meu guarda-roupa, pois acredito que usaria
calças apenas em uma emergência… É vergonhoso — ela sussurrou
a última palavra com constrangimento, olhando mais uma vez para o
chão em confusão.
— Já conversamos sobre isso, Ellen. Não estamos no século 19.
Mulheres podem usar calças e trabalhar. E você não tem dama de
companhia.
— Não tenho? — Ela encarou-o confusa. — E como me visto?
— Sozinha.
— Sozinha! Ora!
— Como vestiu essa roupa? — Grayson desafiou e levantou a
sobrancelha, analisando Ellen. A mulher ficou sem fala. Era verdade.
Apesar de escandalosas, aquelas roupas eram fáceis de vestir
sozinha.
— O senhor tem razão. — Ela balançou a cabeça. — A médica
disse que deixaria informações sobre meus novos exames com o
senhor.
— Vou conversar com ela e resolver sua alta. Espere que volto
para levá-la, tudo bem?
— Não é como se soubesse onde moro — a jovem completou e
fez Grayson dar uma risada. — Estarei à sua espera.
O homem saiu do quarto em busca da doutora Jameson. Quando
entrou em contato por telefone, a médica afirmou que seria o plantão
dela mais uma vez e que poderia procurá-la. Ainda estava irritado
pela falta de respostas sobre a memória comprometida de Ellen. A
restauradora parecia tão mais delicada e tímida do que a mulher que
ele costumava conhecer, confusa sobre cada coisa que via a seu
redor. Sair do ambiente controlado do hospital seria ainda mais
desafiador.
A doutora voltou a repetir a conversa do dia anterior. Ellen Morris
não parecia doente ou com algum problema físico. Apenas o tempo
e/ou ajuda especializada a faria voltar ao que era antes do acidente.
Grayson balançou a cabeça em resposta sabendo que, se Ellen
concordasse, deveriam procurar um novo especialista além da
médica do Saint Bartholomew. Não precisava de medicação ou
cuidados especiais, mas não era a mesma mulher de dias antes. O
maior problema, de acordo com a profissional, era o choque e
frustração de Ellen com coisas que eram consideradas de
conhecimento comum. Seria um longo caminho até trazê-la de 1814
para o presente.
O empresário marcou a consulta de retorno da restauradora e
voltou para o quarto, onde ela permanecia sentada como ele havia
deixado. O hospital não a deixou levar o lençol, e a mulher andava
encurvada, tentando esconder os contornos que as calças e a
camiseta deixavam expostos.
Juntos, desceram de elevador, só para que Ellen se agarrasse às
paredes achando que a construção estava caindo. Depois, ela
encarou o carro de Grayson em confusão, perguntando que tipo de
carruagem era aquela, sem cavalos e muito menor do que a média.
Parecia incomodada com tudo que via através da janela do veículo,
como se estivesse esperando que um monstro de três cabeças
aparecesse a qualquer instante, ou que acordasse de um pesadelo
ruim. Era incrível como tudo parecia uma grande novidade para a
mulher. Seriam semanas complicadas enquanto a jovem não
relembrasse quem era. Grayson suspirou ao ver o olhar de confusão
na restauradora. O que aconteceu com Ellen Morris?
— Tem certeza de que moro aqui? Parece tão pequeno — Ellen
perguntou a Grayson enquanto encarava o ambiente. Era um
pequeno apartamento em Camden, com uma sala, cozinha e quarto
que poderiam ser cruzados em apenas algumas passadas.
Ele observou-a contorcer as mãos no colo, como se quisesse
investigar o espaço e estivesse se contendo porque ele estava ali. A
restauradora conseguiu evitá-lo por dois dias inteiros, mas o
empresário soube sobre sua saúde mesmo à distância, através dos
médicos e enfermeiros do Saint Bartholomew. As horas que passou
no hospital tomaram o preço da agenda apertada do herdeiro dos
Canning, tendo que remarcar as reuniões do dia do acidente e dos
seguintes, mas não o suficiente para fazê-lo desistir de saber sobre
a saúde de Ellen Morris. Grayson se comprometeu a ajudá-la e era
isso que faria.
O executivo queria culpar seu senso de responsabilidade, mas sua
atração pela mulher ainda era um fator importante da equação. A
Ellen Morris inteligente, que fala de seu trabalho com paixão e era
segura de si, sumiu dentro da dama do século 19, apegada a regras
de etiqueta e que exibia uma fragilidade que ele nunca vira em todos
os meses que a conhecia.
— Os apartamentos em Londres são pequenos — o homem
sentenciou.
— Como se chama aquela coisa que entramos? Tanto aqui como
no hospital? Aquela que achei que estávamos caindo — a jovem
questionou, suas bochechas corando. Grayson pensou que nunca
havia visto nada mais agradável. Não conseguia lembrar de alguém
que ficasse com o rosto vermelho por qualquer motivo como Ellen.
De vergonha a raiva, parecia sempre com a expressão rosada. Era
curioso como só passou a notar tal coisa após o acidente.
— Elevador. Será um período longo até você lembrar, Ellen.
— Senhorita Morris — ela o corrigiu.
— Como quiser, senhorita Morris — o empresário completou com
um sorriso de zombaria para ver as bochechas se acenderem mais
uma vez. Pare de encará-la, Grayson… Deixe de ser tão fascinado
por ela.
— O senhor sabe se tenho um segundo nome? — a mulher
indagou em um fio de voz, como se lhe custasse questionar algo tão
íntimo. — Sou apenas Ellen Morris?
— Teria que ver em seus documentos, não faço ideia.
— É estranho para mim. Não consigo me sentir como uma “Ellen”
ou como uma “senhorita Morris”.
— Talvez tivesse um apelido? Por isso não está acostumada com
o próprio nome?
— E qual seria o apelido para Ellen?
— Elly, Nellie, El, Elle…
— Eu devo escolher? Nada me soa familiar.
— Pois posso escolher? Acho que tem cara de Nellie.
— Pois para o senhor tenho cara de senhorita Morris até
descobrir por que não me sinto à vontade com o meu sobrenome.
— Muito bem, senhorita Morris — Grayson cumprimentou em um
tom de gozação. — O que gostaria de fazer?
— Como meu nome, isso não me parece uma casa. É mesmo
pequeno — ela protestou, e herdeiro dos Canning deu um sorriso de
canto de boca. O homem também achava minúsculo, mas não queria
compartilhar tal pensamento. Grayson era o filho de pais ricos e
nunca precisou morar em um apartamento de cinquenta metros
quadrados. Não seria ele a comentar sobre o tamanho de moradias
quando era a única que a pessoa poderia comprar ou alugar.
— Bem, de acordo com o seu endereço nos registros, esse é o
apartamento — o executivo respondeu e estendeu uma mochila para
ela. — Suas coisas, incluindo a chave do apartamento, estão aqui.
Estavam comigo depois do acidente.
— Mas não reconheço nada — a jovem anunciou sem pegar a
bolsa, e Grayson a deixou sobre o sofá. O empresário acompanhava
cada pequeno movimento da mulher em dúvida se ela conseguia se
lembrar de algo ou se apenas estava curiosa sobre o apartamento
em que vivia.
— Talvez dar uma volta pela casa faça você…
Miau.
O som veio de baixo e atraiu o olhar dos dois. Grayson se
interrompeu ao encarar o gato aos seus pés e viu Nellie arregalar os
olhos para o bichinho.
— Eu tenho um gato? Nunca tive um animal de estimação, isso
não é possível! — a restauradora exclamou ao mesmo tempo que
Grayson se abaixou e encarou a coleira. Era um animal de pelo
branco e preto e de olhos amarelados.
— Bem, você tem uma gata. Você é a tutora da Mary.
—Eu tenho uma gata? — ela repetiu surpreendida.
— É o que parece. — Ele sorriu. — Acho que deveria se deitar.
Vou pedir uma comida leve para você. Acho que precisa descansar
pelos próximos dias até a próxima consulta. Sua perda de memória
ainda é algo recente e o estímulo do apartamento talvez possa
ajudá-la.
— Muito obrigada por me trazer.
— Eu vou ficar, Nellie — Grayson anunciou quando percebeu que
a mulher achava que ele iria embora. Ela arregalou os olhos em
pânico, balançando os braços como uma negativa.
— Ó, não, o senhor não deve ficar. Tem pessoas nesse local, elas
saberão! — a mulher continuou, apontando para as paredes do
prédio.
— De novo… — Grayson suspirou, e Nellie colocou as mãos na
cintura. Parecia menos ciente das calças e parou de tentar se
proteger de sua visão depois que chegaram ao apartamento.
— Eu sei que disse que ninguém se importa com homens e
mulheres sozinhos, mas eu me importo! Estarei comprometida para
sempre! Eu saberei! Preciso tirar essa roupa e conseguir alguma
normalidade. Não me reconheço nesse mundo!
— Veja, ou eu fico, ou você volta para o hospital. Não pode ficar
sozinha. Você teve um acidente grave e não reconhece as coisas
mínimas como sua casa. Quero ajudá-la. Tudo bem?
— Isso é reprovável, senhor Canning.
— Grayson — ele a corrigiu. — Não precisa me chamar de
senhor. Pode me chamar pelo primeiro nome.
— Já expliquei que isso é imoral! — Ela soltou o ar irritada e
encarou uma das paredes, como se tentasse fugir do olhar de
Grayson. Nellie se abaixou para pegar Mary, que miava a seus pés.
Parecia sem jeito com o bichinho, apertando-o em seus braços como
um bebê. A jovem suspirou e o olhou, com a voz mais calma, pedindo
mais uma vez: — Você não vai embora, não é?
— Não.
— Ninguém deve saber disso. O senhor é casado? Sua esposa
deve…
— Nenhuma esposa, Nellie. Não vou contar a ninguém, prometo.
— Ó, pare de me chamar assim! — ela ralhou, fazendo-o rir.
— É engraçado deixá-la nervosa — o homem confessou com um
sorriso tímido de canto de boca, fazendo Nellie encará-lo por alguns
segundos, como se estivesse hipnotizada por tal imagem.
— Onde posso tomar um banho? Não vi banheira em lugar algum
— ela perguntou, tentando mudar de assunto, as bochechas
vermelhas mais uma vez.
— Seu chuveiro… — ele começou e parou, encarando-a sério.
— Meu o quê?
— Chuveiro. Venha! — Grayson pediu e apontou para um
corredor. Depois de passar por duas portas erradas, abriu a porta
do banheiro e caminhou decidido para o chuveiro. Depois, abriu o
registro e esperou a água esquentar, sentindo os jatos nas mãos. O
executivo encarou Nellie, que parecia confusa e fascinada.
— Esse é o chuveiro — ele declarou. — E esse é o vaso
sanitário.
— Esse me explicaram no hospital — ela respondeu com
vergonha.
— Muito bem. Essa é a descarga. Serve para levar embora as
coisas… — o empresário disse de um jeito reticente e apertou o
botão, o barulho da corrente de água ficando alta no ambiente. Até
mesmo ele poderia ficar com vergonha por toda a situação. — O que
mais não lembra?
— Como assim?
— Você está confusa sobre o funcionamento de um banheiro. É
óbvio que não lembra de diversas coisas. Vamos, pergunte.
— Aquilo, o que é? — ela indagou mais uma vez, olhando o
interruptor e indicando com um movimento em seu queixo.
— Para a luz. É útil principalmente nas noites.
— Ahhh!
— Vou deixá-la para tomar banho. Se tiver qualquer outra dúvida
como essa, me pergunte, tudo bem? Sua cabeça está confusa e
enquanto não melhorar, quero fazer o melhor possível para sua vida.
— Não, eu preciso pegar uma roupa primeiro. Não posso sair e
correr o risco do senhor me ver… — ela se interrompeu, como se
fosse incapaz de dizer a palavra “nua” na frente do homem.
— Devem estar em seu quarto.
— Onde fica o meu quarto?
— Sei tanto do seu apartamento quanto você — Grayson
anunciou e encarou Nellie, que permanecia abraçada com a gata. Ele
entrou no corredor outra vez e abriu as portas até encontrar uma
cama de casal com a mulher logo atrás.
— Deve ser aqui. — Apontou para o armário. Nellie caminhou para
o móvel e o abriu, tendo cuidado de não soltar Mary, que parecia
tranquila em seus braços. A restauradora examinou o armário por
alguns segundos antes de se voltar para ele.
— Onde estão meus vestidos?
— Como assim? Essas são suas roupas. Você reconhece algo?
— Não usaria algo tão escandaloso como essas peças. Nenhuma
mulher decente mostraria tanto as pernas, ou o colo, ou tanta pele…
— ela continuou, puxando um pedaço de tecido para fora do móvel.
— Ellen, não sei como te ajudar.
— Talvez isso funcione — ela apontou para uma saia longa e uma
camisa que ia até os pulsos. — Não seria adequado, mas ainda
assim é aceitável.
— Aceitável? — Grayson continuou, encarando-a com descrença.
— Todas essas roupas são aceitáveis. Pessoas usam esse tipo de
roupa, não existe nada disso de “mulher decente”. Parece que a
queda te fez mais pudica.
— Essa não é a forma correta de se endereçar a uma dama —
ela anunciou. — Sem contar que é reprovável sua presença nesse
quarto e ainda mais sua insistência em não se referir a mim do jeito
correto. Eu sou filha de um… de… Deveria ter ao menos uma dama
de companhia comigo!
— Vamos lidar com uma coisa por vez. Você acabou de voltar do
hospital, precisa descansar e não tem empregados. É capaz de se
vestir, pentear-se e tomar banho sozinha. Ao menos quando largar
essa maldita gata.
— Não fale assim dela! — a jovem censurou e encarou-se no
espelho por alguns segundos antes de olhá-lo outra vez. — Foi algum
médico que cortou meu cabelo?
— Como assim?
— É impossível fazer um penteado com essas mechas curtas —
ela continuou, tentando criar um coque rígido com sua única mão
disponível, mas ele caía suavemente em sua testa a cada nova
tentativa. — Como as mulheres se penteiam com um cabelo tão
curto?
— Eu não… — Grayson se interrompeu e deu de ombros. —
Olhe, já ouvi histórias de pessoas que acordaram falando outras
línguas depois de uma pancada forte na cabeça. Você voltou como
uma dama do século 19. Não tenho respostas a seus modos porque
eu não vivi isso. Toda a sua vida antes do acidente era “aceitável”,
Nellie. Não sei mais o que explicar.
— Eu sinto que essa não sou eu — ela confessou e olhou ao
redor de seu apartamento. — Essas imagens, roupas, os objetos…
Não me sinto à vontade com essas coisas.
Grayson esticou-se no pequeno sofá. Foi a pior noite de sua vida.
Depois de escolher sua roupa e ir para o banho, Nellie trancou-se em
seu quarto. Ele pediu comida e deixou à sua porta depois de uma
batida rápida. A mulher estava fugindo dele, podia sentir. O dia
amanhecia do lado de fora e as costas do empresário ardiam. Era
curioso como terminara no papel de guardião de Nellie a ponto de ter
seus ossos moídos pelo pequeno móvel da sala da restauradora.
Depois da chegada ao hospital, o homem desavergonhadamente
usara a influência da família para saber mais do que deveria sobre o
estado de saúde de sua empregada. Pelas horas seguintes depois
do acidente, havia colocado Nicolas de sobreaviso e anunciado que
não voltaria para o trabalho naquele dia. Foi toda uma ocasião para
o assistente, mas o executivo ainda estava mexido com a imagem da
mulher caída enquanto os paramédicos a atendiam na Casa Canning
e sua agenda foi redefinida para adequar seu tempo ao hospital.
Pensava em contratar uma enfermeira e deixar Nellie sob cuidados
especiais após a alta hospitalar, mas suas decisões ruíram quando
foi avisado que Ellen Morris seria liberada do Saint Bartholomew.
Deus, o modo de agir de Nellie… Durante a noite no apartamento
de sua funcionária, antes de dormir no sofá duro, Grayson pesquisou
em seu telefone sobre confusão metal, amnésia e até transtorno
dissociativo de personalidade. Se continuasse a agir como uma
dama do período regencial, precisaria de ajuda especializada,
mesmo com ela negando-se a procurar uma. O hospital parecia não
querer intervir porque a jovem estava “bem” fisicamente — apesar de
toda a estranheza com sua vida antes do acidente e do
desconhecimento de coisas simples. Ele era a única pessoa que
parecia se importar com o bem-estar de Nellie.
Sentia que não poderia deixá-la sozinha. Ajudaria a restauradora a
se reerguer e voltar à sua vida normal porque sabia o que era
solidão. Se algo dessa magnitude acontecesse com Grayson,
também não teria ninguém para ajudá-lo. Passaria pela mão dos
profissionais da família, como médicos e advogados, mas ninguém
que tivesse paciência ou interesse genuíno em ajudá-lo sem receber
alguma recompensa financeira em retorno. Queria ser aquela pessoa
para Nellie.
Depois de uma intensa busca a respostas para o caso da mulher,
Grayson pegou no sono. Pela manhã, ligou para Nicolas e avisou que
não trabalharia naquele dia. O assistente sabia dos detalhes do
acidente e parecia impressionado que a rotina do executivo estivesse
sendo modificada pela situação.
— Estarei um pouco ausente, Nicolas, as coisas estão confusas
para Ellen. Ela jura que é uma dama do século 19 e não se lembra
de nada. Faz perguntas demais e não vai conseguir se virar sozinha
— Grayson informou ao assistente depois de narrar os
acontecimentos do dia anterior com mais calma.
— Como aqueles loucos que juram que são Napoleão?
— Ao que parece, ela não se lembra de coisa alguma além de
todas as suas regras de etiqueta de 1800. Não para de me censurar
por estar sozinho com ela porque isso vai afetar sua reputação. Ela
fala diferente, tem regras rígidas de etiqueta, não lembra da
existência de coisas simples como o que é um hospital.
— E você está fazendo isso por quê?
— Ela não tem ninguém, Nicolas. Faria isso por qualquer um,
inclusive você.
— Sei, chefe. Eu tenho meu noivo e ele ficaria feliz em tentar me
explicar o século 21 sem precisar do senhor.
— E é por isso que estou com Nellie… quer dizer, Ellen. Ninguém
está aqui para fazer isso por ela — o homem informou. — Voltarei ao
trabalho assim que possível. Estou acompanhando os e-mails e meu
telefone está disponível.
— Já a chama por um apelido, heim…
— Não seja irritante, Nicolas.
— Use como férias, chefe. Deus sabe que não tirou nenhuma
nos últimos anos. Descanso e uma mulher bonita.
— Como sabe que é uma mulher bonita?
— Porque, por mais que diga que faria isso por qualquer um, vi
você correr para a obra por qualquer pretexto. Sou muito bom em
tirar conclusões.
— Isso não é importante. Ela está vulnerável, seria como me
aproveitar dela — Grayson confessou.
— Cuide dela e da sua cabeça. Eu ligo se precisar de você —
Nicolas avisou e desligou logo em seguida.
Grayson suspirou, pensando nas palavras do assistente: como
aqueles loucos que juram que são Napoleão. Era o maior medo do
empresário, que a restauradora estivesse em algum tipo de
problema psicológico ignorado pelo hospital e engatilhado pelo
acidente na Casa Canning. Qual era a outra opção que tinha? Que a
jovem fosse mesmo uma dama do século 19? Ele conhecia a
verdadeira Ellen Morris e sabia que a personalidade era diferente.
Era como assistir a casca da mesma mulher com outra alma.
— Você passou a noite? — Grayson ouviu a voz e levantou a
cabeça. Ela tinha um tom assustado e seus olhos cresceram quando
observou o homem deitado sem camisa no sofá. As bochechas da
mulher coraram, e Nellie virou-se para o outro lado para não o
encarar.
— Disse que não podia ficar sozinha. Está melhor? Sente algo? —
ele perguntou e sentou-se no sofá, seus músculos reclamando.
Grayson passou as mãos pelos olhos caramelo e soltou um suave
bocejo. Nellie estava arrumada, penteada e pronta, como se
seguisse uma rotina todas as manhãs.
— Não. De verdade, não sinto nada, só esse vazio… — ela se
interrompeu, como se estivesse falando mais do que deveria, e
passou a mão por seu coque rígido.
Era curioso como a mulher conseguira ajeitar o cabelo de uma
forma severa, mesmo sendo curto. Nellie também usava uma saia
longa e uma camisa até os punhos, que se levantava por seu
pescoço, quase não deixando pele à mostra. Ela parecia melhor do
que após o acidente, mas muito diferente da restauradora que
conhecia.
— Conseguiu se lembrar de algo do seu passado? Sua mãe,
como se chama? — Grayson questionou e levantou-se, esticando os
braços. Nellie girou seu corpo e ficou ainda mais de costas para não
o ver sem camisa. Era gracioso.
— O senhor pode colocar uma roupa?! É indecente andar assim!
— Nellie, acalme-me — o executivo pediu e tateou sobre o sofá,
buscando a peça de roupa. Ele a vestiu e voltou a falar. — Pode virar
se quiser, estou com uma camiseta.
— Ainda tem braços demais à mostra, se pudesse julgar — ela
censurou, dando uma olhadela pelo ombro antes de virar-se de novo,
as bochechas acesas. — A etiqueta prevê camisas e casacas.
Posso ver seu cotovelo!
— Ah, a indecência do cotovelo — Grayson brincou.
— Regras foram feitas para serem seguidas, senhor. Existe um
código de etiqueta e estou… ah, Deus… na frente de um cavalheiro,
sozinha, observando seus cotovelos! Estou condenada para sempre!
— a jovem disse nervosa, com as bochechas coradas e o dedo em
riste, como se estivesse distraindo-se demais da nudez do homem
para brigar pelas regras de bom comportamento.
— Nós já tivemos essa conversa, Ellen. As regras mudam e hoje é
perfeitamente aceitável mostrar meus cotovelos, ou você usar
calças.
— Senhorita Morris! Não consegue entender!? — ela corrigiu
como uma professora irritada. — Sabe onde encontro uma modista?
Não consigo usar essas calças que estão no armário! São
monstruosas! Esse é o último bom par de saia e camisa que
consegui encontrar. E os sapatos! São impossíveis com saltos
pontiagudos…
— Isso posso concordar. Nunca entendi como algumas pessoas
podem se equilibrar em saltos tão altos — ele respondeu com
sarcasmo.
— Isso não é uma piada, senhor Canning. Se puder me ajudar…
— Não acredito que estou tendo essa discussão tão cedo. O dia
está amanhecendo e você quer falar sobre a dignidade de cotovelos
e calças. — Grayson suspirou, frustrado pela noite mal dormida. —
Vamos resolver um problema por vez, pode ser? Agora me
responda, qual é o nome de sua mãe?
— Eu… eu… não sei.
— Seu pai, talvez?
— Também não — ela replicou frustrada.
— Algo chamou sua atenção desde que saímos do hospital?
— Tudo me chama atenção. Não entendo metade das coisas que
vejo! —exclamou e sentou-se no sofá com as mãos sobre o rosto. —
É impossível me manter digna em uma situação como essa, senhor.
Tudo parece uma loucura. Acho que enlouqueci no acidente.
— Você precisa esperar para voltar à sua consulta antes de
qualquer coisa, Nellie. Mas acho importante conversar com um
psicólogo. Você age como uma dama da sociedade do século 19
desde que acordou no hospital. E parece tensa. A Ellen que observei
trabalhar nos últimos meses é relaxada, de sorriso fácil e você…
bem, tem regras demais. Algo está errado.
— O senhor não é próximo então, é isso? — ela questionou com
interesse.
— Como diz?
— Você “observava trabalhar”. Não é o tipo de relação que
terminaria com o senhor deitado em um sofá e criando um apelido.
— Não, não somos amigos. Como expliquei, sou seu chefe.
— Ah, sim. E por que age desse jeito?
— Já disse, quero ajudá-la! — ele comentou sem jeito. — É
complicado, e você não tem ninguém.
— Não quero sua caridade. Já o mantei embora, mas o senhor
não vai! — ela exclamou frustrada.
— É que desperta o pior de mim — ele respondeu com um sorriso
sarcástico. — Antes, parecia ter o controle da situação, e agora fica
com as bochechas vermelhas cada vez que olha meu cotovelo!
— Senhor Canning!
— Pode não parecer, mas sou uma pessoa fechada com os
outros. Se contasse a qualquer pessoa sobre os últimos dias,
achariam que está falando de outro Grayson Canning. Quero
oferecer minha amizade. Não tenho ninguém, Nellie. Sei como deve
ser difícil para você.
— Nem ao menos sei se não tenho mesmo ninguém — a mulher
completou e analisou os olhos suaves do homem. — Agradeço por
suas boas ações, mas entende como pode ser difícil para mim?
— Eu sei. É por isso que acho que deveria procurar o terapeuta.
— A médica também me sugeriu um profissional, mas não quero.
Ninguém deve saber o que está acontecendo, é vergonhoso!
— Acho importante…
— Não — ela o interrompeu e encarou-o com olhos sérios. — Não
vou falar com ninguém e o senhor não pode me obrigar.
— Muito bem. Vamos esperar sua consulta e continuamos essa
conversa. Por enquanto, vou tentar manter a dama da sociedade
inglesa segura. Você tem algum conhecido que queira chamar?
Consegue se lembrar de alguém? Não achei informações sobre
ninguém em suas coisas.
— Eu tenho um pai ou irmão? Preciso de alguém para me
proteger — ela gemeu. — Que tipo de lugar é esse que uma mulher
fica sozinha?
— As mulheres podem fazer o que quiserem, querida. Morar
sozinhas, trabalhar, escalar o Everest.
— Everest?
— Uma montanha. — O homem dispensou como se não quisesse
falar mais a respeito. — Vamos fazer o seguinte: procurar algum
contato entre suas coisas. Talvez você tenha algum parente que
possa te dar abrigo até suas lembranças voltarem. Sente alguma
dor?
— Não, nem mesmo a que senti quando acordei naquela cama
estranha — ela comentou e observou-o, vulnerável. — E se não
encontrarmos parente algum?
— Eu vou cuidar de você, mas não nesse apartamento. Meu
pescoço não merece esse sofá desconfortável — ele explicou. Por
mais que sentisse a conexão com a mulher, o móvel era incomodo
demais para mais uma noite de tortura. — Nós vamos para o meu
apartamento. Sua pequena caixa de sapatos não funciona para mim.
Minhas costas doem.
— ISSO É ULTRAJANTE! — Ela levantou a voz mais uma vez e,
com um suspiro, controlou o tom irritado. — Quem o senhor pensa
que é? Não vou para a casa de um homem solteiro! E talvez eu tenha
mesmo algum familiar. É impensável ir à sua moradia!
Grayson encarou Nellie e notou como a mulher parecia ter prática
em esconder seus sentimentos, como se treinasse há anos a fio para
não demostrar sua irritação apesar das palavras zangadas. Era
curioso como tal ato parecia fora de lugar para ela. Será que não
tinha costume de falar o que pensava?
— Pois é isso ou o hospital — Grayson murmurou e cruzou os
braços.
— Está me ameaçando outra vez, senhor?
— Você não pode ficar sozinha, Nellie. A médica explicou que nos
próximos dias há a possibilidade das coisas se complicarem. Pode
ter uma hemorragia interna, outras consequências. E você nem
mesmo se lembra quem é. Não vou deixá-la, se é o que está
pensando. A opção é ter algum conforto em minha casa ou continuar
nesse apartamento pequeno, dividindo espaço comigo até minhas
costas doerem demais e eu a arrastá-la porta a fora em meus
ombros.
— O senhor não se atreveria…
— E a senhorita não sabe o que a falta de sono pode fazer com
alguém — ele completou e encarou-a por alguns segundos,
esperando a mulher chegar a alguma conclusão.
— Ninguém pode descobrir sobre isso! Estarei desonrada se
descobrirem que dividi uma casa com o senhor — ela anunciou,
dando o braço a torcer. — Mas primeiro gostaria de tentar achar
algum parente. Não posso ser sozinha, posso?
— Isso é um sim? — Grayson perguntou com um sorriso sincero.
— Vamos procurar suas coisas. A casa parece ser organizada e
temos o dia todo.
— Só saio dessa casa se Mary puder ir junto.
— Você dormiu com ela em sua cama, não? — Grayson
questionou e viu as bochechas da mulher se tingirem de vermelho
mais uma vez.
— Não posso fazer isso?
— Pode fazer o que quiser, querida. Prepare sua gata. Vamos
para um lugar mais confortável.
— Não vamos procurar minhas coisas? — a restauradora indagou
confusa.
— Por mais que eu queira auxiliá-la, Nellie, minhas costas também
vão precisar de ajuda se me obrigar a permanecer mais um dia
nesse apartamento. Vamos… — Ele suspirou e analisou a estante
cheia de documentos da mulher. — Temos algumas pastas e
documentos para investigar.
Grayson procurou por cada canto do apartamento de Nellie, o que
foi fácil, já que era pequeno demais para que as coisas se
perdessem. Papéis e pastas foram retiradas de armários e uma
estante foi revirada antes de a mulher colocar os livros com cuidado
em seu lugar. Ela encarava cada item da casa de forma curiosa,
perguntando vez ou outra o que eram: televisão, eletrodomésticos,
confundindo fotos com pinturas ou querendo saber onde colocava a
lenha do fogão. Quando o empresário sugeriu que deveria perguntar
a cada dúvida, não sabia que a jovem passaria o dia apontando para
coisas e querendo saber sua funcionalidade.
Depois de algumas horas, todas as possibilidades de um parente
ou amigo próximo que pudesse cuidar da jovem foram esgotadas. Os
parentes nos documentos de Nellie estavam mortos: pai, mãe e
avós. Grayson achou algo sobre Eric, mas o mestre de obras falou
de um ex-noivo que tinha se mudado para Paris, e não existia contato
algum em redes sociais ou telefone da restauradora.
— Não há nada, Nellie. Prometo que terá um quarto só seu e
ninguém a verá. Podemos ir? — ele perguntou quando a última fileira
da estante foi recolocada no lugar.
— Não existe ninguém que possamos contactar? A casa de um
homem solteiro… — Ela suspirou, vencida. — Promete que ninguém
me verá mesmo?
— Já ofereci minha proteção e, além do mais, acho que tanto
você quanto Mary gostarão mais da minha casa. É espaçosa, teto
alto, tem três quartos e uma vista para o Tâmisa.
Grayson ainda gastou mais alguns minutos até convencer Nellie a
passar alguns dias em seu apartamento em Knightsbridge. A mulher
preparou uma maleta com roupas que considerava usáveis, como
pares de camisa de gola alta e de mangas longas, vestidos, casacos
amplos e algumas calças, que ela disse entre resmungos que estava
levando caso não conseguisse achar uma modista antes que toda a
roupa estivesse suja. Mary foi colocada na caixa de transporte e
depois de uma checagem geral do imóvel, eles deixaram Camden
para trás.
Nellie estava tão tensa quanto na volta do hospital, agarrada à
caixa de Mary enquanto Grayson tentava dirigir o mais devagar
possível. Ela repetia uma e outra vez que ninguém poderia saber da
situação dos dois, e o herdeiro dos Canning voltava a acalmá-la
sobre não revelar o acordo para ninguém. Ele sabia que para a
jovem — em especial por pensar como uma dama do século 19 —
era difícil estar no lar de um homem solteiro e quase desconhecido,
mas sabia também que era o melhor jeito para os dois: conseguiria
vigiar e acudir a mulher se necessário, sem quebrar sua coluna no
processo. Nellie foi acuada pela situação e sem direito a negar a
mudança de endereço, e por isso o empresário faria o melhor para
aceitar seus pedidos.
Juntos, subiram ao elevador do prédio, uma estrutura moderna e
metálica que se destacava na vista da cidade. Grayson morava
sozinho no imóvel há quase uma década, desde que terminou a
faculdade e passou a trabalhar na empresa do pai. Ele adorava o
espaço, mas principalmente a vista: Londres era um misto de
modernidade e história que causava confusão aos olhos
desavisados, com construções milenares dividindo espaço com
prédios novos e futurísticos.
— Tinha razão, sua casa é maior — ela exclamou quando o
empresário abriu a porta do apartamento. Nellie colocou a caixa de
Mary no chão e abriu a portinhola antes de perguntar. — Onde posso
ficar?
— Vou mostrar o quarto, mas está cedo, pode fazer outra coisa.
Preciso dar uma olhada em alguns documentos do meu trabalho,
mas não há grandes diferenças do seu apartamento para esse. O
banheiro tem as mesmas coisas, a televisão está aqui na sala e tem
alguns eletrodomésticos aqui e ali. Se tiver dúvida, é só me
perguntar.
— O senhor trabalha? Em que tipo de coisa? — ela questionou
com curiosidade. — Sei que mulheres e homens trabalham, mas
ainda é curioso, ainda mais porque o senhor é um Conde…
— Investimentos.
— Ó, sim, é algo cavalheiresco. Não esperava menos de um
nobre, mesmo agindo como age e me mantendo aqui para acabar
com minha reputação — ela censurou em um tom seco que fez
Grayson soltar uma risada. Nellie se esticou, tentando mostrar
seriedade com a reação, o que fez o homem rir ainda mais.
— Ninguém se importa com o que outro faz, Nellie. O que
precisamos fazer agora é tentar estimular sua memória. O que acha
de ir à Casa Canning?
— Agora? — ela perguntou assustada.
— Em algumas horas. Recebi alguns e-mails e ligações, já que
costumo passar muitas horas na Canning Co. e os últimos dias foram
diferentes do habitual.
— Peço desculpas se minha presença tem prejudicado sua rotina,
mas gostaria de lembrar que é o senhor que está insistindo em ficar
ao meu lado como… como um sequestrador!
— Nellie… — Grayson voltou a rir mais uma vez e colocou a mão
no rosto, tentando mostrar alguma seriedade. — Você tem sorte que
não estou te sequestrando para aquele lugar, como é o nome…
Gretna Green?
— Ó! — a jovem respondeu em choque. — O senhor pode parar!
Percebo que está apenas me provocando! Não é justo quando não
me recordo de nada!
— Tudo bem — o executivo consolou e encarou a mulher, ainda
impressionado com como essa versão de Ellen Morris o fazia sair de
sua concha. Algo sobre ser o guardião da restauradora deixava-o
mais confortável na conversa. Talvez fosse apenas ela, ele pensou.
Nellie e suas expressões de censura e choque, que o faziam
provocá-la mais e mais.
— Sobre a Casa Canning — ela suspirou —, talvez fosse melhor
esperar alguns dias. Algo sobre esse nome não me agrada e prefiro
tentar me lembrar de outras maneiras.
— É o meu nome — Grayson respondeu com um sentimento ruim
na boca.
— Mas não é sobre você, tenho certeza. — Ela balançou a
cabeça, tentando dissipar os pensamentos. — Não vou atrapalhar
sua rotina. O senhor precisa trabalhar, não?
— Não me atrapalha — Grayson garantiu. — Em alguns dias,
podemos ir a alguma loja comprar roupas, se te interessar. Vi o quão
incomodada ficou com seu guarda-roupa anterior.
— Ninguém me verá de qualquer forma, pretendo ficar em sua
casa até poder voltar para minha vida anterior. Tanto eu como Mary
ficaremos bem, e talvez consiga uma modista para visitar… Apesar
que ela saberia, e rumores são tão perigosos! Minha reputação sairá
em frangalhos dessa situação, posso apostar! Nenhum homem
quererá casar comigo depois disso tudo!
— Quando a senhorita lembrar, verá que não é um grande
problema — ele anunciou afável, e a expressão do rosto de Nellie
suavizou.
— Obrigada, senhor Canning. Apesar do censurável da situação,
tem me ajudado como poucas pessoas fariam. Não sei o que seria
de mim sem o senhor.
— Eu prometi, Nellie — o empresário falou, e viu a mulher enrugar
o rosto pelo uso do apelido. Ao menos havia parado de reprová-lo
cada vez que o homem a chamava daquela forma.
— Se pudesse me prometer que também seguirá as regras da
decência. Ainda não me recuperei de encontrá-lo sem roupa essa
manhã.
— Prometo que ficarei vestido a menos que me peça o contrário,
é bom para você?
— Ahh… — a jovem gemeu e as bochechas ficaram vermelhas de
vergonha. — Vou procurar o quarto e parar de ouvir seus disparates.
O senhor é indecente e parece se orgulhar disso!
— O segundo quarto à esquerda está vazio. Se tiver alguma
pergunta, estarei no escritório ao final do corredor — o homem
respondeu, ainda com um sorriso nos lábios. Dividir o teto com Nellie
seria divertido no final das contas, pensou.
Grayson tomou um banho rápido, fez uma troca de roupa e
começou a trabalhar. Ele ouvia os barulhos da mulher por sua casa,
achando reconfortante perceber outro ser humano entre suas
paredes. Para Nellie, aquelas horas foram de expedição: guardou
suas roupas e, com Mary grudada a seus pés, analisou os livros da
estante. Ela decidiu por um nome que conhecia — em um mar de
autores que não sabia quem eram — e se sentou no sofá, passando
algumas horas em companhia de Pamela, de Samuel Richardson.
Assim como ela, a protagonista se via na mão de um algoz que
queria que a serva abrisse mão de seus valores morais. Conforme
as páginas passavam, Nellie percebia que Grayson Canning não
tinha nada de Mr. B: apesar de aristocrata, o empresário não agia
como um patife, aproveitando-se da mocinha. Apesar de provocador,
o Conde de Bradford parecia mais seu guardião do que o cruel
protagonista da história. Nellie fechou o livro e o encarou por alguns
segundos, observando o nome do autor. Uma voz feminina ralhava
sobre aquela não ser uma leitura adequada para mocinhas da
sociedade. Em seu interior, aquilo fazia a veia rebelde de Nellie
pulsar. Abriu o livro outra vez para continuar as desventuras de
Pamela Andrews fugindo de seu malvado patrão.
Querido Grayson,
Há coisas que não sabe sobre mim e que pretendo manter em
silêncio. No dia do meu casamento, algo mudou em mim e me
transformou na mulher que sou hoje. Tornar-me a Condessa de
Bradford foi minha sorte e meu azar, um fardo e um prêmio difíceis
de entender. Até hoje não sei exatamente como cheguei a este
lugar. Não sei o quanto estaria disposta a revelar para fazê-lo
entender o que deve fazer quando chegar o momento, e Deus sabe
que quem quer que também esteja lendo esta carta pode achar que
perdi a cabeça. Algo grande irá acontecer, e quero que esteja
preparado para as consequências de meus atos impensados.
Talvez nunca compreenda a importância dessa carta, mas preciso
que entenda as escolhas que fiz e por que isso deve ser feito do
jeito que planejei. Estamos fazendo isso por um bem maior e não
deve contar isso a ninguém.
Eu sei, é confuso receber uma carta de alguém com séculos de
diferença, mas há mistérios que não devem ser revelados e
caminhos que precisam ser percorridos. Não vou me repetir sobre
minha história; no tempo correto, você vai saber sobre ela, mas o
que preciso contar é que, daqui de onde escrevo, descobri coisas
assustadoras e que nunca poderia imaginar. O seu papel é fazê-las
diferentes. Para você e para todos nós. Desculpe o texto cifrado,
mas não sei se quando isso chegar a suas mãos já saberá os
motivos. Talvez a leia antes contra meus desejos e volte a ela
quando for necessário, talvez a encontre no momento ideal e faça o
que é certo. Eu apenas torço e espero que as coisas voltem a
acontecer como aconteceram antes, Grayson.
Você receberá, junto à carta, um colar, passado de geração em
geração para minha família, como um amuleto da sorte. Quero que
preste atenção a cada passo do que vou pedir. O plano só ocorrerá
corretamente se as coisas acontecerem do jeito certo, ele tem o
potencial de mudar sua vida como a conhece. É incerto se as
coisas que pensei darão resultado, mas espero que o destruir seja
a nossa salvação. Está em nossas mãos fazer o que é certo, é
preciso quebrar o laço para que algo novo aconteça.
Deixe Ellen fazer seu desejo, dê tempo para ela, a jornada que
irá percorrer será longa. Destrua o colar até o final do dia, quebre
cada parte com algo afiado e pesado até fazê-lo em tantos pedaços
que será difícil reuni-lo novamente. Enterre seus restos em cantos
separados, jogue em um rio ou até mesmo queime se possível. É
algo muito poderoso que poderia cair nas mãos erradas e fazer
muitas pessoas sofrerem. Lembre-se, o desejo precisa vir do mais
fundo dos desejos… a mágica por trás deste objeto não é boba e
fácil. É preciso acreditar com todo o coração para que as coisas
aconteçam.
Não perca a fé.
Eleanor Canning, Condessa de Bradford (ou apenas Elly)
FIM
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