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DESPEDIDA À CLAUDIVÂNIA

de Camilo Pellegrini

CLAUDIVÂNIA está coberta por um sangue negro que escurece partes


de seu rosto, braços e mãos. ELA adentra o palco, sinistra, carregando
sua bolsa.

CLAUDIVÂNIA – O cheiro chegou primeiro? Sente a inhaca do


sangue da galinha?! Esse ranço vai grudar em mim! Nem adianta
lavar com sapólio que o cheiro fica! Aí você me pergunta, por que
isso, Claudivânia?! A desgraça da outra lá que começou!!! Pra que
apelar pra violência?! Ela pediu, meu querido!!! Olhei pra cara dela
e disse: “Não vou limpar coisa nenhuma! Me recuso!” Aí a maluca
danou a gritar: “Meu coração não aguenta! Vou ter um troço se tu
não lavar os copo d’água!” Francamente! Sujeira! Tudo com dona
Rosane é uma queda de braço. As férias, foi sufoco. Meu décimo
terceiro, um parto. Hora extra, tô esperando até hoje. Previdência,
nunca vi! Outro dia me acusou de fofoca, que falo por aí da vida
dela! Mas chega! Cansei de ser tonta! Hoje fedeu! Futuquei a
merda até empestear! Onde já se viu? Duas horas de condução pra
encarar aquela montanha de louça na pia! A cozinha inteira suja! O
fogão numa piscina de gordura! A sala imunda. Banheiro coberto
de mijo e pentelho. Cada quarto um chiqueiro. Cocô do poodle dos
inferno pra tudo que é lado. O diabo falta cagar na minha cabeça.
Tonelada de pelo. Bola de meleca no sofá. É tanta poeira. Fuligem
que vem da rua. Ranho seco. Terra. Bosta. Cerveja. Batom. Porra...
(SINISTRA) E sangue...

CLAUDIVÂNIA pega uma caixa de lencinhos umedecidos da bolsa e


começa a se limpar, coquete.

Tô te enojando?! Mas olha, tem uma coisa! Isso tudo pra mim
nunca foi problema! Adoro limpar! Gosto do cheiro bom nas coisa!
Sou boa! Deixo tudo brilhando com gosto! Fica com nojo de mim,
não, que sou limpinha! Tá bom, depois de horas dando um fim à
imundice dessa gente, eu saio pingando, deu cinco da tarde vou pro
banho, um banheirinho de nada, um fiozinho d’água. Mas me
equilibro debaixo e faço aquela faxina, dessa vez na Claudivânia
aqui. Aproveito cada pingo do chuveiro enferrujado. Depois meus
creme. Sempre um bom perfume. (SEDUTORA) Esse que eu tô é
essência de tangerina. Dá pra sentir por debaixo do sangue? Gosta?

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A pasta de dente, hortelã. A filha da dona Rosane disse que
tangerina é perfume cafona, não sabia que eu tava ouvindo. Nem
ligo, fico triste não. Sou honesta e isso ninguém me tira. Nem o
perfume mais cheiroso de Paris não disfarça cheiro de trambique. É
golpista sim! Folgada! Louca! Eu, já prontinha pra sair, perfumada,
danou cozinhar, a desgraça. Se dizer cozinheira de mão cheia
emporcalhando tudo pra escrava aqui limpar é fácil! E dali mais
copo d’água, e mais outro, marca de boca. Dá um gole d’água e
larga na pia. Ela pediu a eu ficar mais e ajudar, eu já tava com a
macaca, engrossei. Falei pra filha da puta: “Tá com a barriga no
fogão, aproveita e lava os copo quando for dar um jeito nas
panela.” A bicha endoidou. Já tava estressada com outras coisas lá!
É divórcio, taxa de incêndio, brigou com vizinho, pai pra morrer, a
filha detesta ela, uma íngua brotou no sovaco, o saco da dona
Rosane era um pulo pra estourar. Mas vai descontar em mim? Que
tenho eu a ver com a história?! Dona Rosane catou a travessa de
galinha à cabidela e virou todinha em mim. Vou passar a semana
com cheiro de molho pardo. (P) Que foi? Precisa ter medo de mim
não. Mato nem barata. Vou direto na delegacia dar queixa da
agressão. Não venho mais aqui no prédio, vai dar saudade dessa
portaria, mas guarda meu número, tá?

CLAUDIVÂNIA dá uma piscadela e sai.

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