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A JOVIALIDADE DE DEUS NAS


NARRATIVAS DO PENTATEUCO
Um Deus sempre presente
The joviality of god in the narratives of the pentateuch
An ever-present god

Alceu Orso, Cmf *

RESUMO: Após apresentar algumas questões referentes ao método bíblico, o autor procura
25
apresentar a crescente e diversificada percepção de Deus presente no contexto dos patriarcas,
narrada no livro do Gênesis. Eles vão descobrindo a peculiaridade deste Deus único como
salvador que salva os necessitados. Depois, usando dois textos do livro do Êxodo (2,23-25 e 3,1 –
4,17) o texto faz transparecer, de modo exemplar, a dimensão divina do Deus salvador e revela
que ele estava presente e atuante nos diversos acontecimentos libertários das escravidões. A
libertação de Israel não se esgota na liberdade, mas tem como fim o compromisso com Deus e
com os irmãos, e a consequente constituição de um povo. O atuar divino coloca Israel diante de
uma proposta existencial: a vida feliz, repleta de gratuidades. Tal vida produz uma paz interior, um
sentimento de segurança num mundo tão conturbado, que só se encontra em Deus.

PALAVRAS CHAVE: Deus, libertação, patriarcas, povo, gratuidade.

ABSTRACT: After presenting some questions referring to the biblical method, the author tries
to show the increasing as diverse perception of God present in the patriarchs’ contexts, narrated
in the book of Genesis. They discover the peculiarity of this unique God as savior who saves the
needy. Later on, making use of two texts from the book of Exodus ( 2, 23-25 and 3,1 – 4,17 ), the
text make clear, in an exemplary way, the divine dimension of the Savior God and reveals that
he was present and active in the various events of slavery libertarians. The liberation of Israel is
not limited to freedom, but has as its end the commitment to God and to the brethren, and the
consequent formation of a people. The divine action puts Israel before an existential proposal:
the happy life, full of gratuitousness. Such a life produces an inner peace, a sense of security in a
troubled world, which is found only in God.

KEYWORDS: God, liberation, patriarchs, people, gratuity.

* Mestre em Teologia Bíblica, professor e secretário do Studium Theologicum e professor da Pontifícia Universidade
de Curitiba.
1. ALGUMAS QUESTÕES

O Deus da Bíblia pode ser considerado como um ser real ou como um


personagem literário. As teologias bíblicas clássicas apresentam Deus como um
ser real. Dos novos estudos literários, que usam os métodos da análise literária,
menciono o método retórico, o método narrativo e o método semiótico no
estudo da Sagrada Escritura. Estes métodos apresentam Deus normalmente
como personagem de um livro. Daí vem a pergunta, qual a imagem de Deus
que aparece neste ou naquele livro? Por outro lado devemos afirmar que
o Deus da Bíblia é um personagem complexo, com uma gama muito vasta
e variada de aspectos conflitivos e inclusive, às vezes, contraditórios. Isto
dificulta muito a sua compreensão e a sua sistematização para escrever um
artigo ou um livro.

Na Sagrada Escritura percebemos que Deus possui um diferencial


em relação às outras religiões: o cristianismo é uma religião revelada, isto
26 significa que Deus se auto-revela ao ser humano, segundo a sua capacidade
de compreensão do mistério divino. Ou seja, é Deus que se revela ao ser
humano, e este relata na Bíblia a sua experiência segundo a sua capacidade
de compreensão.

A proposta deste meu artigo é apresentar alguns aspectos breves da


presença de Deus na narrativa dos cinco primeiros livros da Bíblia, a Toráh
(para os Judeus), o Pentateuco para a linguagem acadêmica cristã. Dividirei o
artigo em dois pontos, o primeiro alguns aspectos da jovialidade de Deus na
narrativa do livro do Gênesis, na narrativa dos patriarcas. A grande pergunta
que procurarei desenvolver é esta: qual a concepção de Deus, a imagem de
Deus que se revela no contexto da narrativa dos patriarcas? Não podemos
nos esquecer que este contexto está marcado pelo politeísmo cananeu. E num
segundo momento no livro do Êxodo, no contexto do povo de Israel escravo
no Egito e a sua libertação através de Moisés.

Podemos afirmar que cada geração tende a criar a imagem de Deus


que funcione para a sua vida, que encontre nesta imagem uma resposta e
uma luz para iluminar os seus passos na busca de uma solução para os seus
problemas cotidianos e a mudança de imagem se dá por uma evolução que
por sua vez, se realiza por que Deus se revela progressivamente, na história
humana, tudo isto de acordo com a capacidade humana de compreender esta
auto-revelação de Deus.
2. ALGUMAS IMAGENS DA JOVIALIDADE DE DEUS PRESENTE NAS
NARRATIVAS DOS PATRIARCAS NO LIVRO DO GÊNESIS

Após estas considerações iniciais, tentarei desenvolver a pergunta


colocada no meu objetivo deste artigo: qual a concepção, a imagem de Deus
presente no contexto dos patriarcas, narrada no livro do Gênesis?

Supomos que os três patriarcas de Israel – Abraão, Isaac e Jacó, eram


monoteístas que acreditavam em um só Deus. Provavelmente e possivelmente,
não foi bem assim. Sabemos, pela Sagrada Escritura, que Deus se apresentou e fez
várias promessas a Abraão (Gn 12,1-4). Abraão vivia em meio a um povo politeísta,
como é descrito pela própria Sagrada Escritura, no episódio da Assembleia de
Siquém: “Disse então Josué a todo o povo: ‘Assim diz Javé, o Deus de Israel: Além
do Rio habitavam outrora os vossos pais, Taré, pai de Abraão e de Nacor, e serviram
a outros deuses” (Js 24,2). E Abraão fez uma escolha em sua vida, seguir a um
único Deus, obedecendo a um chamado do próprio Deus, que diz: “Eu, porém,
tomei vosso pai Abraão do outro lado do Rio e o fiz percorrer toda a terra de Canaã, 27
multiplique a sua descendência e lhe dei Isaac” (Js 24,3).

Na concepção religiosa dos nômades do Antigo Oriente, a compreensão


de Deus estava vinculada aos seus chefes, os patriarcas. O deus dos nômades
estava ligado aos nomes dos ancestrais e viajavam na companhia dos clãs, neles,
deus estava com eles e era o seu deus protetor. Podemos afirmar que aquele
que caminhava com os patriarcas era Javé. Contudo, essa afirmação parece não
estar bem encaixada de um ponto de vista histórico. É um anacronismo, pois os
ancestrais pré-mosaicos de Israel (que são os patriarcas) ainda não conheciam
a fé em Javé. Mesmo porque a consciência de um Deus único será alcançada
posteriormente. A revelação do nome sagrado de Javé só se dá com Moisés, no
episódio da Sarça ardente (Ex 3,14), portanto, Abraão não conhecia esse nome.
O Deus que atua em todas as circunstâncias da história dos patriarcas é Javé.
Assim, a consciência da divindade na história dos clãs passa pela fase do nome
divino ligado ao patriarca. Isso se comprova pelas seguintes expressões: “El elyon”
Deus altíssimo (Gn 14,22); “El Shaddai” Deus todo poderoso (Gn 17,1; 28,3; 43,14;
48,3); “El Olam” o Deus eterno (Gn 21,33); “El Elohe Israel” O Deus de Israel (Gn
33,20); “El Beit-‘el” O Deus de Betel (Gn 35,7); “o Deus de Abraão e o Terrível de
Isaac” (Gn 31,42.53); “Pela força do indomável de Jacó” (ou do “Poderoso de Jacó”
Gn 49,24). Além destas expressões aparece “Deus de teus pais” (Gn 28,13; 32,10).
Ao que tudo indica, os patriarcas cultuavam e conheciam Deus pelo nome de El,
isto explica porque este título estar tão presente nos nomes e na própria cultura
do povo de Isra-EL.
Obedecendo ao chamado de Javé, Abraão parte para a busca da terra
(Gn 11,31; 12,4), prometida por Javé a ele e a sua esposa Sara. O Deus de Israel
tornava seu poder efetivo em fatos atuais no mundo real. Era vivenciado com
um imperativo no aqui e agora: “Sai e vai” (Gn 12,1). Sua primeira revelação
de si mesmo consiste em uma ordem: que Abraão deixe seu povo e viaje para
uma terra. O patriarca precisará trilhar o difícil caminho da renúncia. Três são
as renúncias que Abraão precisará fazer para responder com fidelidade ao
chamado de Deus. A terra, a parentela e a casa paterna. São três ícones de
grande força simbólica, e observe, aqui vai do maior, mais amplo para o menor.

Primeiro a terra, é o marco natural onde vive o clã, círculo mais amplo,
demarca o ambiente natural da família / clã de Abraão. Segundo a parentela,
é o lugar do nascimento de seu clã. Nele encontra afeto, solidariedade, os
costumes. Simboliza a identidade da família, a cultura em geral. Em terceiro a
casa paterna, é o domicílio familiar. É onde o homem encontra a sua realização,
razão para viver, o que dá sentido para a vida. Aqui está a tensão da fé de Abraão
que se expõe à exigência de Deus. Ao responder o chamado de Javé, Abraão
28 parte (Gn 12,4), aqui passa a ser um sem terra, sem pátria e sem parentes,
é um órgão. De agora em diante ele deverá lançar-se para o futuro, guiado
somente pela providência divina. Ele se coloca a caminho. O Deus de Abraão
é um Deus providente e zeloso que se mantém fiel às promessas feitas. E estas
promessas são renovadas inúmeras vezes. São renovadas com Isaac: “Eu farei a
tua posteridade numerosa como as estrelas do céu, eu lhe darei todas estas terras,
e por tua posteridade serão abençoadas todas as nações da terra” (Gn 26,4). E logo
a seguir são renovadas com Jacó: “Tua descendência se tornará numerosa como
a poeira do solo; estender-te-ás para o ocidente e o oriente, para o norte e o sul, e
todos os clãs da terra serão abençoados por ti e por tua descendência” (Gn 28,14).

O povo de Israel lembrava o tempo de seus patriarcas como uma era de


ouro, pois Abraão, Isaac e Jacó mantinham uma relação familiar com o seu deus.
Esse deus lhe dava conselhos de como proceder, como viver, frequentemente
acontecia alguma teofania. Isso podemos observar no episódio em que Deus
aparece na forma de três homens junto ao Carvalho de Mambré (Gn 18,1ss).
Durante a conversa com os homens, Abraão percebeu que se trata de seu Deus,
pois lhe faz a renovação da promessa: um filho. Esta promessa de Deus acontece
porque Abraão é um homem de fé e confia, plenamente em seu Deus, mesmo
na promessa aparentemente, absurda de ser pai de uma nação, pois sua mulher
se encontrava estéril (Gn 11,30) e Abraão tinha uma certa idade avançada (Gn
12,4). No entanto, Deus cumpre a sua promessa e Abraão e Sara são abençoados
com a promessa do filho, Isaac (Gn 21,1ss).
A fé de Abraão supera-se o grande momento da sua angústia, quando
Deus lhe pede que sacrifique seu único filho. Este sacrifício transformaria a vida
de Abraão em um caos, pois como seria pai de uma nação sacrificando seu único
filho? O filho da promessa é aquele que chegaria para colocar fim ao drama
vivido por Abraão e Sara. Contudo, a chegada de Issac torna-se uma ocasião para
descortinar uma história dramática na qual emerge a figura do homem de fé. Deus
se coloca ao lado da pessoa de fé. Este Deus está acima das condições naturais e
assegura a descendência. Aqui o Deus de Abraão começa a ser concebido de um
modo diferente da maioria das outras divindades. Abraão decide confiar em seu
Deus, e ele não o desaponta, no último instante Deus disse que o sacrifício fora
apenas uma prova onde Abraão se mostrou digno de tornar-se pai de uma nação
poderosa.

Abraão confiando na providência divina rompe com a lógica humana.


Começa, assim, a ganhar contornos cada vez mais nítidos a imagem de um Deus
que não é alheio à nossa história pessoal ou coletiva, ou que apenas conhece todas
as coisas e nada fizesse a favor do homem, mas esse Deus que nos acompanha e
por vezes age, intervém, sem violar a nossa liberdade e consciência. Ao obedecer, 29
Abraão prova a autenticidade de sua fé que se apoia somente em Deus.

Jacó também passa por várias epifanias, isto podemos comprovar no


episódio em que ele desce para Harã afim de conseguir uma esposa entre seus
parentes desta região (Gn 28,10-22). Certa noite sonhou que Deus se apresentava
a ele. Jacó ao acordar, consagrou essa região com um santuário e ali fez uma
promessa a Deus. Nesse fato, aparece a idéia de que Deus se manifesta em lugares
determinados, estes lugares são santos, e, portanto, tornam-se santuários de
peregrinação, pois é aí onde Deus fala ao homem. E o Deus que se manifestou a
Jacó torna-se o seu Deus pessoal, o único que ele serviria.

Os patriarcas consideram o seu Deus, Javé, e somente a Ele adoravam,


simplesmente, por que este Deus estava com eles e os defendia. Não se
preocupavam em refletir sobre a essência de Javé, mas serviam a Javé de uma
forma programática, este Deus funciona, então, Ele está conosco. A denominada
história dos patriarcas, encontramos uma imagem de um Deus que adquire
contornos cada vez mais claros. Não se trata de diversos deuses dividindo tarefas
entre si, mas delineia-se a centralidade de um único Deus, isto será afirmado no
livro do Êxodo (3,14). Nesta narrativa patriarcal diversos são os modos como Deu
se relaciona com os patriarcas. Esta relação irá colocar em evidência o atributo de
Deus como Salvador.

Se há um Deus que salva, há quem precise de salvação. O dinamismo


salvífico é de grande interessa da tradição Javista. O Javista traz uma teologia
inovadora acerca da salvação. De maneira precisa, a história do pecado está
ligada simultaneamente à história de salvação. O Javista interpretou as tradições
patriarcais numa perspectiva universalista. Em outras palavras, esta tradição
soube transformar a história de salvação do povo de Israel, de um povo particular,
numa história de salvação universal. Javé, o Deus da tradição Javista, não era
somente o Deus do povo de Israel, mas também o Deus de todos os homens e de
todos os povos.

De fato, o Deus dos patriarcas cumpriu as promessas que fez a Abraãoi (Gn
12,1-4) ao se auto-revelar, ou seja, deu a terra, que havia prometido a Abraão e
seu clã e renovada várias vezes, a descendência numerosa veio por meio de Isaac,
e a proteção de Deus estava com eles. É só lembrar o episódio da destruição de
Sodoma e Gomorra, Abraão e sua gente foram avisados e poupados por Deus,
porque havia ali pessoas justas.

Enfim a imagem de Deus que se destaca no livro do Gênesis, e mesmo


posteriormente , é a do Deus presente na vida do clã. Posteriormente o Deus dos
patriarcas é identificado no livro do Êxodo como o Deus de Abraão, o Deus de
30 Isaac, o Deus de Jacó (Ex 3,6.15) e se auto-relava a Moisés, ”Sou o que Sou” (Ex
3,14).

Finalmente Israel adora um Deus pessoal sob diversos nomes, este Deus
não é mero princípio abstrato, ou resultado da especulação sobre as suas forças
da natureza, sobre a sua essência, numa linguagem aristotélica, mas é um Deus
de pessoas e não de coisas; o Deus dos pais, de Abraão, de Isaac e de Jacó. O Deus
das promessas. Da Aliança com Abraão, Isaac, Jacó, Moisés e o seu povo.

3. ALGUMAS IMAGENS DE DEUS DA JOVIALIDADE DE DEUS


PRESENTE NA NARRATIVA DO LIVRO DO ÊXODO

A revelação é sempre um processo evolutivo que respeita circunstâncias


históricas e a capacidade do povo (das pessoas) em assimilar a mensagem divina,
segundo as circunstâncias deste ou daquele momento. Tal realidade é perceptível
na história de Israel. Desde os primórdios dos patriarcas até o momento em que
Israel se encontra na escravidão do Egito é admirável a maneira com a qual
Deus participa desta história. Isto se percebe claramente na narrativa do livro do
Gênesis. Abraão, Isaac, Jacó são clãs, constantemente precisaram da intervenção
divina. Estas famílias patriarcais tiveram suas histórias conduzidas pela providência
divina. Na medida em que a revelação acontecia, ocorria também o crescimento
destes clãs até o ponto de formarem um povo, o povo da promessa. Na atual
circunstancia desta história tem forte carga de dramaticidade, e a grande
necessidade de Israel será a presença de Deus como seu libertador.

A partir de agora o meu interesse será descobrir a maneira como se dará


a libertação da escravidão do Egito e consequentemente como irá avançar a
compreensão, o conhecimento acerca de Deus por parte de Israel, como irá
evoluir a relação entre Deus e Israel. Israel é o povo eleito por Javé.

Javé é o protagonista da história do Êxodo. Prova disso são as diversas


vezes em que Ele se manifesta e conduz a história da libertação. Nota-se que ao
longo do ciclo patriarcal o nome de Deus está associado ao próprio patriarca.
Por isso no livro do Êxodo aparece em 3, 6.16 “Eu sou o Deus de teus pais, o Deus
de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Essa associação tem a ver com o
caráter nômade dos clãs. Javé é o Deus que caminhou com os patriarcas. A
jovialidade de Deus é que Ele sempre presente nas caminhadas dos patriarcas.

Para a minha reflexão vou tomar como base dois textos do livro do
Êxodo. O primeiro texto é Ex 2,23-25. “23 Muito tempo depois morreu o rei do
Egito, e os filhos de Israel, gemendo sob o peso da servidão, clamaram; e do fundo 31
da servidão o seu clamor subiu até Deus. 24 E Deus ouviu os seus gemidos; Deus
lembrou-se da sua Aliança com Abraão, Isaac e Jacó. Deus viu os filhos de Israel.
25 Deus conheceu”. Esta perícope abre a porta, o caminho para o que se segue
Ex 3,1 – 4,17. Deus decide intervir e libertar o povo de Israel. É uma síntese do
contexto e da situação do povo de Israel e a atuação de Deus. Em Ex 2,23 começa
apresentando uma indicação de tempo, “muito tempo depois morreu o rei do
Egito”. Este rei teria sido o que desencadeou a opressão em Ex 1,8 “levantou-se
sobre o Egito um novo rei, que não conhecia José”. A ideia que passa com isso é
que pode sugerir algo de novo. Um período terminou e o outro pode começar.
O texto não menciona o nome do rei da opressão.

A opressão dominou o relato até este momento da narrativa no livro


do Êxodo (Ex 1,1-22). Agora em Ex 1,23 surgem um novo personagem, Deus: “o
seu clamor subiu até Deus”. Na narrativa até este momento Deus não agiu, não
atuou. Mas este Deus foi importante até agora para as parteiras. Elas temeram a
Deus (Ex 1,17.21). Diante da síntese do contexto e da situação do povo, o autor
bíblico emprega quatro verbos para descrever o que se passava com o povo de
Israel: “gemendo” (Ex 2,23), “clamaram” (Ex 2,13), “o seu clamor”, isto é, o grito
(Ex 2,23), “seus gemidos”, isto é, as suas queixas (Ex 2,24). Diante desta situação
o novo personagem, Deus sai do seu esconderijo, vai ao encontro do povo. Até
este momento Israel sabe que ninguém poderá salvá-lo. Moisés não conseguiu
(Ex 2,11ss). Só sobra Deus.
O nosso texto apresenta que Deus toma quatro atitudes. São verbos em
que o sujeito é Deus. A primeira atitude “Deus ouviu” (Ex 2,24), isto é, é mais do
que ouvir. Significa que Deus presta atenção. Tomou conhecimento. A segunda
atitude “Deus se lembrou” (Ex 2,24). Podemos deduzir do texto que Deus havia
se esquecido do seu povo e que agora se lembra, como se lembrou de Noé (Gn
8,1). O verbo lembrar sugere que Deus vai fazer alguma coisa. Ele se recordou da
sua aliança. A terceira atitude “Deus viu” (Ex 2,24), isto é, Deus se fixou neles. O
verbo ver lembra em primeiro lugar o ver das parteiras (Ex 1,16), o ver da mãe de
Moisés (Ex 2,2), o ver da filha do faraó (Ex 2,5-6), o ver de Moisés que percebeu
que havia injustiça (Ex 2,11-12). A quarta atitude ”Deus conheceu” (Ex 2,25). Deus
sabe. O conhecimento de Deus e a sua reação favorável aos israelitas conduzirá
a libertação. Sente compaixão. Ele se dá conta da situação miserável do povo de
Israel. Toma consciência. É interessante observar no texto bíblico que estes verbos
que descrevem a ação de Deus voltarão como refrão nos capítulos seguintes:
“ouvir”, “ver”, “conhecer”. O nome divino “Deus” aparece cinco vezes no texto em
que estamos estudando. O rei do Egito morreu. O texto indica que Deus será o
seu sucessor. Deus, que havia ficado como ator escondido no seu esconderijo,
32 agora sai do seu lugar escondido e toma a história em suas mãos. Começa uma
nova fase.

O segundo texto que vamos analisar é o encontro de Moisés com Deus


que se desencadeia na vocação e na missão de Moisés Ex 3,1 – 4,17. Há um longo
diálogo de Deus com Moisés. Deus o chamou. É um relato de vocação. Este diálogo
entre Deus e Moisés é um espelho do diálogo que nós travamos com a realidade
que nos desafia. Aqui aparecem as resistências, os pretextos que nós inventamos
para fugir do chamado / vocação. Moisés resiste várias vezes porque tem medo.
Ele disfarça os medos atrás de outros motivos e pretextos. Quais seriam estes
pretextos de Moisés apresentados pela narrativa? O primeiro: “Quem sou eu para
ir ao faraó” (Ex 3,11)? O segundo: “Qual o seu nome” (Ex 3,13)? O terceiro: “não
vão acreditar em mim”(Ex 4,1). O quarto: “eu não sou homem de falar” (Ex 4,10); O
quinto: “envie um outro” (Ex 4,13)

Esta narrativa Ex 3,1 – 4,17 podemos distinguir cinco elementos: A descrição


da necessidade (Ex 3, 7.9), a missão de Moisés (Ex 3,10.16; 4,12a), as objeções /
dificuldades que Moisés apresenta a Deus (Ex 3,11.13; 4,1.10.13), A promessa da
assistência divina (Ex 3,12a. 14-15; 4,5. 8-9.12a. 15), e sinal da presença divina (Ex
3,12; 4,3-4, 6-7. 9b)

O encontro de Moisés com Deus se dá no contexto do trabalho. Apascentava


o rebanho de seu sogro (Ex 2,18). O lugar onde se dá o aparecimento do anjo de
Deus é na montanha, Horeb (ou Sinai). Aqui temos o primeiro encontro de Moisés
com Deus, e este encontro se dá no nível do “ver”, “verei este fenomeno estranho”
(Ex 3,3). E continua “Javé viu que Moisés se aproximava para ver” (Ex 3,4). É esta
curiosidade inicial que o leva ao chamado. Temos o ver, a visão. Agora a visão se
transforma em audição (diálogo), “no meio da sarça Deus chamou Moisés” (Ex 3,4).
Deus interpela Moisés. E Moisés responde: “Eis-me aqui”.

Até este momento Deus se fez presente de duas formas: “através do anjo”
(Ex 3,2) e a outra através “da chama de fogo, no meio de uma sarça, que não se
consome” (Ex 3,3). Em seguida em Ex 3,6 este Deus se identifica: “o Deus de teus
pais”, isto é, é o Deus da família de Moisés, de Israel. Depois o “Deus dos patriarcas”,
o “Deus das promessas” e o “Deus da Aliança”. Em Ex 3,7-8 Deus está falando, aqui
temos duas observações a fazer. A primeira é um Deus que se revela. Este Deus
não é desconhecido, mas é o Deus dos pais, um Deus ligado a uma história e
comprometido com as promessas. Um Deus que vê a miséria do seu povo, que
ouve o clamor de seu povo por causa dos opressores, é um Deus que sabe,
conhece o que está se passando no povo de Israel. Diante desta situação Deus
toma a iniciativa e entra na história para resgatar o povo de Israel. A segunda
ideia é que este Deus toma uma decisão, fará algo e isto aparece pelos três verbos
“Desci”, “a fim de libertá-los” e “fazê-los subir” (Ex 3,8). 33
No entanto, agora este Deus irá revelar-se a Moisés. Ao dar-se a conhecer a
Moisés, Deus lhe confere uma missão. Será determinante para a missão de Moisés
o conhecimento do nome de Deus. Num encontro entre os dois personagens
(Deus e Moisés), acontece a revelação do nome divino: “Moisés disse a Deus.......
Qual é o seu nome? Que direi? Disse Deus a Moisés: Eu sou aquele que sou. Disse
mais: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu SOU me enviou até vós” (Ex 3,13-14).
No hebraico o verbo ser está no imperfeito (qal), indica uma ação continuada,
permanente, inacabada. Então pode ser traduzido “Eu sou (presente) o que farei
para vocês no futuro”. A ideia tem que ser num sentido ativo, dinâmico. O Deus dos
antepassados de Israel (patriarcas) de agora em diante esse Deus se chamará Javé.
Javé significa “Ele é”. Ele existe. Ele tem um nome. Tudo isto no sentido de presença
real, efetiva, existe verdadeiramente, a realidade do ser.

Diante disto Deus faz a Moisés uma promessa “Eu estarei contigo” (Ex 3,12).
É um convite para Moisés abandonar-se, entregar-se, crer na missão que Deus
lhe confiou. E dá um sinal “vocês vão servir a Deus nesta montanha” (Ex 3,12). Este
sinal é o cumprimento da promessa da saída. Começa a partir daqui o relato das
pragas (Ex 7,8 – 10,29). É uma narrativa de dramaticidade entre Deus e o faraó. O
relato das pragas mostra que é inútil e doloroso resistir a Deus. Em Ex 7,5 diz o
motivo das pratas: “saberão que os egípcios que eu sou Javé, quando estender minha
mão sobre o Egito e fizer sair do meio deles os filhos de Israel”. Quer dizer, Javé é o
Senhor, poderoso para agir. O faraó se nega a reconhecer a Javé, e este oferece
“dez oportunidades” para ratificar-se.
Em Ex 3,12 diz: vocês vão servir a Deus nesta montanha. A montanha que
o texto fala, não é qualquer montanha, é a montanha de Deus, o Horeb, ou o
Sinai. Aqui Deus fará uma aliança. A montanha de Deus é o ponto de partida para
o Deus da salvação, não somente um lugar de parada no caminho do deserto.
O Sinai se apresenta como a montanha de onde Deus vem para salvar. Ali se
realiza o encontro entre Deus e o povo (Exodo cap, 19 - 20). No livro do Êxodo, a
montanha é o cenário dos acontecimentos tão significativos como: a teofania, a
reformulação da aliança (Ex 20,22 – 23,19), a instauração do culto (Ex 25,1 – 31,18)
e a entrega da Lei (Ex 20,1ss). Portanto, o livro do Êxodo consiste na transição
da servidão para o serviço. Israel passa do serviço ao faraó para a liberdade do
serviço a Javé.

Devemos observar que o interesse fundamental da narrativa bíblica é o


sentido que o texto dá nos fatos do êxodo. É aqui que Deus se revelou ao povo,
e Deus impôs como sendo o “Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó”, isto é, “Deus
do povo de Israel”, Desse contato, encontro com Deus resultou o que deve ser
observado. É o compromisso da aliança. Portanto, a narrativa bíblica transparece
34 essa dimensão divina e revela que Deus estava presente e atuante naqueles
acontecimentos.

É notável que no período mosaico não ocorreu o aparecimento de


um novo Deus, diferente daquele que caminhara com o povo. Nas narrativas
da antiguidade o nome dos personagens ganha um destaque de grande
importância. O nome não tem somente a função de identificar e singularizar o
personagem, mas confere-lhe uma série de adjetivos e características. No que se
refere a Javé não seria exagerado dizer que a história do êxodo pode ser lida como
uma definição narrativa deste nome.

4. ALGUNS ASPECTOS CONCLUSIVOS

Para concluir esta breve reflexão sobre a jovialidade de Deus nas narrativas
do Pentateuco, feitas nos livros do Gênesis e do Êxodo, quero neste momento
apresentar algumas conclusões:

1. A presença de Deus é constante, as suas palavras e as suas ações


são decisivas no transcorrer da história dos patriarcas apresentada
nas narrativas do livro do Gênesis. Nos momentos cruciais sempre
intervém, por exemplo, no livro do Gênesis, na narrativa do paraíso,
na história de Abraão, e dos demais patriarcas. No livro do Êxodo este
Deus intervém na vida do povo de Israel, quando escravo no Egito, na
caminhada rumo à terra prometida...

2. Uma outra constatação é que houve um grande salto qualitativo na


relação de Israel com o seu Deus. Para ser mais preciso, Israel cresceu
e se estabeleceu enquanto nação, junto com este fato, cresceu a sua
consciência da presença de Deus em sua história, chegando ao ponto
em que outra coisa não poderia acontecer senão uma Aliança de
amor: “sereis minha propriedade particular...., sereis para mim um reino
de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,5-6).

3. Javé é o protagonista da história do Êxodo, é o libertador de Israel.


Inúmeras vezes, Javé se manifestou e conduziu a história da libertação.
Este Deus que tinha seu nome associado aos clãs, aos patriarcas, agora
revelou o seu nome a Moisés. Ao dar a conhecer o seu nome a Moisés,
Deus lhe confere também uma missão: Moisés será o protagonista
humano da libertação de Israel; ao mesmo tempo em que sua figura
estará relacionada ao início do javismo. Foi Moisés quem preservou os 35
elementos centrais da religião hebraica. Da escravidão do Egito Israel será
conduzido, através deste grande líder, às proximidades do monte Sinai.

4. A libertação de Israel não se esgota na liberdade, mas tem como fim o


compromisso com Deus e com os irmãos, e a consequente constituição
de um povo. Israel, em tempos de escravidão, foi resgatado por Javé
com a mediação de Moisés. A comunidade de Israel teve um papel
decisivo, ela precisou se envolver na missão salvadora de Javé. Deus
garantiu sua presença, contudo, contava com a correspondência do
povo eleito. Estas palavras registram a essência da teologia sinaítica:
“Vós sois meu povo, e eu serei vosso Deus” (Ex 6,7). É preciso que Israel
tenha uma relação de exclusividade com Deus. Javé não admite que o
povo eleito tenha outro deus diante de si (Ex 20,5).

5. Da vivência histórica do povo de Israel irá derivar uma concepção de


Deus. A presença soberana de Javé, a imagem de um Deus próximo
que se preocupa pelas realidades cotidianas de Israel. O atuar divino
coloca Israel diante de uma proposta existencial: a vida feliz. Este será
o caminho a percorrer. Israel deverá captar, compreender e cumprir a
vontade de Javé para alcançar a felicidade. É uma proposta para ser
experimentada nos fundamentos da própria história. A gratuidade da
eleição e da aliança é carregada pela presença soberana de Javé, e terá
seus desdobramentos na vida concreta do povo de Israel.
6. A vida dos patriarcas e do povo de Israel está marcada pela experiência
e pela gratuidade de Deus. O fim da dinâmica da revelação de Deus
está orientada para uma comunhão, numa relação recíproca: Deus-
povo. Esta relação se desdobra numa exigência maior de intimidade
pessoal: o Deus único compartilha sua santidade com Israel e chama
seus eleitos para uma vida santa. Israel é santo já, mas deverá deixar-se
santificar pelo seu Deus, Javé, para que transpareça a Sua santidade.
Ao mesmo tempo em que o povo é chamado a captar e compreender
a vontade divina terá que entender que esta vontade só se realizará
no já e no ainda não da história da revelação. Através de uma fé
amadurecida pelas provações e uma constante abertura à esperança,
Israel perceberá que Deus está sempre engajado e comprometido
com a vida dos eleitos. O cotidiano de Israel será sempre fecundado
pela contínua presença divina.

7. O Deus de Israel existe verdadeiramente, ao contrário do nada dos


deuses das outras nações. Tal ser de Deus é ativo e não passivo. É
36 existencialista, dinâmico. Deus verdadeiramente aquele que está com
o homem, aquele que está aí para ajudá-lo, para salvá-lo. Portanto,
Deus se revela, mas ao mesmo tempo guarda o seu mistério. Deus
é transcendente e imanente. Sabemos alguma cosia sobre Ele, mas
nunca entendemos completamente.

8. Para concluir, somente diante de Deus e com Deus o ser humano


pode ser humano. A perda desta relação leva logo e indubitavelmente
à desumanização, pois a vida sem Deus é também vida sem sua
presença e proteção. A paz interior ou, numa linguagem mais atual,
o sentimento de segurança no mundo de hoje, tão conturbado, só se
encontra em Deus.

5. BIBLIOGRAFIA PARA APROFUNDAR ESTA TEMÁTICA

1. BRIGHT, J, História de Israel, São Paulo, Edições paulinas, 1978, pgs. 51-222.
2. FOHRER, Georg, História da religião de Israel, São Paulo, Editora Academia Cristã
e Paulus, 2006, pgs. 31-128
3. GERSTENBERGER, Erhard S., Deus no Antigo Testamento, São Paulo, Aste, 1981,
pgs. 11-176.
4. METTINGER, Tryggve N. D., O significado e a mensagem dos nomes de Deus na
Bíblia, São Paulo, Editora Academia Cristã, 2008, pgs. 21-115
5. RENCKENS, H. A religião de Israel, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1969, pgs. 11-114.
6. SHREINER, J. Palavra e mensagem do Antigo Testamento, São Paulo, Editora
Teológica, 2004, pgs. 77-113.
7. VAUX, R. DE, Instituições de Israel, São Paulo, Editora Teológica, 2003, pgs. 309-
550.

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