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Bases Conceituais da Energia

Uma abordagem interdisciplinar

Jeroen Schoenmaker

João Manoel Losada Moreira


Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Por Noe - Obra do próprio, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=30925150

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Prefácio
Importante: leia isto antes de usar o livro

A metáfora diz que devemos “ver as árvores e a floresta”, ou seja, devemos nos
preocupar tanto com a abordagem especializada, quanto a generalista. Fazer isso eficazmente
é uma arte. Quando se discute a abordagem interdisciplinar, muitos a confundem com um
tratamento generalista. Nesse contexto, se o tema da energia fosse uma floresta, esta seria
vasta e bastante heterogênea. Há aspectos históricos, filosóficos, físicos, químicos, biológicos,
técnicos, econômicos, políticos e sociais. Cada um desses aspectos é fonte inesgotável de
temas de estudo. Esse livro propõe ser uma trilha pela floresta da energia. Escolhemos uma
trilha rica, mas acessível, onde muitas árvores importantes serão analisadas em detalhe, ao
mesmo tempo em que poderemos observar as variadas paisagens da floresta.

Esse livro é acessível e pode ser lido com diferentes níveis de aprofundamento. As
seções principais podem ser lidas por qualquer pessoa interessada. Em vários capítulos há
seções de aprofundamento que, ou representam uma digressão em relação à “trilha principal”
presente no livro, ou exigem conhecimento de ensino médio consolidado e visam leitores em
nível universitário, mesmo que ingressantes. As seções de aprofundamento podem ser
ignoradas sem prejuízo à compreensão da parte essencial do livro.

A proposta desse livro surgiu no âmbito dos cursos interdisciplinares da Universidade


Federal do ABC (UFABC). A UFABC foi pioneira na proposta dos bacharelados interdisciplinares
e é natural que existam elementos ímpares relacionados tanto ao seu projeto pedagógico
quanto aos resultados de sua prática. Este livro é um deles.

Na grade antiga do curso de Bacharelado em Ciência e Tecnologia (BCT) havia uma


disciplina denominada “Energia: Origens, Conversão e Uso” (EOCU), cuja proposta, a de um
curso interdisciplinar em energia, era tão inovadora quanto o curso em que estava incluída.
Porém, como é natural com qualquer coisa de deva ser criada a partir do princípio, a
implantação e a execução dessa disciplina sofreram com as diferentes interpretações e
abordagens dos docentes.

Em meados de 2013, a coordenação do BCT, representada pelos o profs. Wesley Goes e


Itana Stiubiener, promoveu uma ampla discussão sobre a matriz curricular com a intenção de
realizar ajustes necessários para a melhor execução do projeto pedagógico da UFABC. Desde o
início, participei dessas reuniões com um olhar especial para a disciplina EOCU, pois, como
muitos outros integrantes dessa universidade, considero que essa é uma das disciplinas que
mais incorpora os aspectos inovadores do projeto pedagógico da UFABC. Como a discussão
envolveu toda a matriz curricular, e ocorreu em paralelo com a discussão da matriz do
Bacharelado em Ciências e Humanidades (que compartilham várias disciplinas, inclusive
EOCU), o processo levou dois anos e representou um interessante exercício de realização da
efetiva interdisciplinaridade.

Um dos pontos cruciais na discussão sobre EOCU versava sobre a utilização ou não de
elementos de cálculo diferencial e integral para a fundamentação dos conceitos abordados.
Alguns docentes, em geral ligados aos cursos de física e engenharias, defendiam que isso era
necessário para uma abordagem adequada. Outros defendiam que, uma vez que a disciplina
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não tinha recomendações (pré-requisitos) e era adotada no Bacharelado em Ciências e


Humanidades (BCH), não havia justificativa para que fosse exigido o conhecimento de cálculo,
e que a disciplina seria inviabilizada se isso fosse adotado.

Creio que a decisão final tenha sido a mais adequada para o projeto da UFABC. Na
matriz do BCT, a disciplina agora é ministrada para os alunos ingressantes, e, portanto, sem
recomendações. Por isso, ela continua figurando na matriz curricular do BCH também. O nome
da disciplina foi alterado para Bases Conceituais da Energia, no mesmo espírito das outras
disciplinas ministradas aos alunos ingressantes, como Bases Matemáticas, Bases
Computacionais e Base Experimental das Ciências Naturais. Como resultado também dessas
reuniões, fiquei com a responsabilidade de coordenar um grupo de professores, que se
voluntariaram para elaborar um material didático para a disciplina de forma a fomentar a
isonomia em sua aplicação. Esse livro é o resultado desse esforço que eu e o prof. João
Moreira realizamos.

O desafio da elaboração desse material foi enorme. Além da amplitude do tema, na sala
de aula convivem alunos que pretendem se formar em qualquer curso da UFABC. Ou seja, na
sala há alunos que integrarão os cursos das engenharias, física, biologia, filosofia, matemática,
neurociência, políticas públicas, economia etc. Isso é uma preciosidade em termos de proposta
pedagógica, mas também bastante desafiador.

Como fazer um curso formativo, evitando ser simplesmente informativo, para um


público tão diversificado? Como fazê-los compreender máquinas térmicas, sem lançar mão de
ferramentas de matemática avançada ou diagramas termodinâmicos? Como construir um
conteúdo interdisciplinar, mas com uma narrativa fluída? A elaboração desse livro teve essas
questões como guia.

Em um mundo que pode contar com uma internet amadurecida, onde o conjunto de
informações disponíveis evolui constantemente e podem ser facilmente acessadas, não nos
preocupamos com um conteúdo extensivo e diminuímos o peso das referências. Preocupamo-
nos mais em fornecer uma narrativa alternativa a partir da qual o leitor possa ter uma
compreensão de conceitos importantes em energia.

O resultado é um livro que trata de assuntos de grande sofisticação, usando de uma


abordagem alternativa, acessível para uma vasta gama de leitores. O único pré-requisito é o
interesse pelo assunto da energia e o conteúdo do ensino médio. Por isso, pode ser utilizado
por diversos cursos em diversas universidades, além do público leigo que desejar um
conhecimento mais aprofundado no assunto.

Esperamos que gostem,

Em nome dos autores,

Jeroen Schoenmaker

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1 – O que é energia?

1.1 – Uma questão fundamental

Pergunte a uma pessoa “você sabe o que é energia?” e ela provavelmente responderá
que sim. Peça para ela definir energia, e as reações podem ser as mais variadas: dar de
ombros, arregalar os olhos como quem diz “porque eu?”, ou começar uma longa digressão
sobre as mais variadas formas específicas de energia. Pois no caso, e mais fácil tratar as formas
específicas, como a “energia cinética”. É fácil entender que um trem em alta velocidade possui
muita energia, assim como uma barra de ferro em brasa. Porém é difícil definir “energia”
simplesmente. Por que isso é assim?

O conceito de energia, aproximadamente na sua forma atual, é algo recente. No resgate


histórico do conceito de energia, um personagem central foi Julius von Mayer, um médico e
físico alemão que gostava de estudar o calor, tanto em relação às máquinas como em relação
à vida. Na época, conceitos como força, potência, energia não tinham um significado muito
preciso. Em 1841 ele publicou um artigo intitulado “Sobre a Determinação Qualitativa e
Quantitativa de Forças” onde ele declara que a “energia não pode ser criada ou destruída”. Por
isso, ele é creditado como sendo o primeiro a declarar a lei de conservação de energia. Ele e
James Joule se envolveram numa disputa sobre quem possuía prioridade na demonstração
experimental do equivalente mecânico do calor.

Como acontece comumente na ciência, as ideias Mayer e Joule não foram bem
recebidas no início. Somente quando grandes figuras da sociedade científica da época, como
William Thomson (Lord Kelvin) e John Tyndall começaram a dar crédito aos trabalhos de
ambos é que o conceito de conservação da energia começou a ter maior penetração no meio
científico.

Por outro lado, é equivocado imaginar que Mayer propôs a lei de conservação de
energia a partir de um surto repentino de genialidade. Toda descoberta científica tem um
contexto, em geral bastante complexo e tema para historiadores da ciência. Leis de
conservação de outras coisas já haviam sido propostas. No séc XVII Newton formulou suas leis
da mecânica baseando-se no conceito de conservação do momento. No séc. XVIII, décadas
antes de Lavoisier pronunciar sua famosa frase “nada se perde, nada se cria, tudo se
transforma”, outros indivíduos já haviam proposto a lei de conservação de massa dos
reagentes e produtos em reações químicas.

Outro exemplo de princípio de conservação é o caso do calórico. Nicolas Sadi Carnot é


considerado o pai da termodinâmica devido a sua dedicação ao estudo das máquinas a vapor,
que na sua época já estavam presentes na Europa bombeando água de minas de carvão,
movendo barcos, locomotivas e indústrias. Ele deu grandes contribuições para a compreensão
das máquinas térmicas, as quais veremos em capítulos posteriores. Como era comum na sua
época, Carnot acreditava que o calor era uma substância denominada calórico. Nessa
concepção, sistema constituído de um corpo quente em contato com um corpo frio atingiria o
equilíbrio térmico por meio do fluxo de calórico do mais quente para o mais frio. Até hoje,
expressões que usamos, como “fluxo de calor”, é uma herança desse ponto de vista. Em seu
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livro “Reflexões Sobre o Poder Motriz do Fogo”, publicado em 1824, Carnot defende o
princípio de conservação do calórico escrevendo:

“Esse fato nunca foi questionado. Foi admitido inicialmente sem


ponderação, e verificado posteriormente por experimentos com
calorímetro em diversos casos. Negar este princípio seria arruinar
toda a teoria do calor sobre a qual ele é baseado”.

O princípio que ele tanto acreditava foi mais tarde considerado equivocado frente aos
resultados dos experimentos pioneiros de Mayer, Joule e outros, como os experimentos do
Conde Rumford (Benjamin Thompson), publicados em 1798, onde ele demonstrou o calor
produzido pela usinagem de canhões (por brocas especialmente obtusas para exacerbar o
efeito do atrito), questionando o modelo do calórico. Vale ressaltar que na época de Carnot, o
conceito de vis viva proposto por Gottfried Wilhelm Leibniz no séc XVII ainda era cogitado por
cientistas. Desde a época de Leibniz e Newton até então, a diferença entre energia cinética e
momento não estava estabelecida, e o conceito de vis viva era considerado uma alternativa ao
modelo de conservação de momento proposto por Newton. Segundo esse modelo, um objeto
em movimento era dotado de um “fluído de movimento”. Por exemplo, quando uma bola de
bilhar em movimento colide com outra bola parada, a primeira transfere vis viva para a
segunda. A segunda, agora imbuída de vis viva, passa a se movimentar também. Pode-se dizer
que as leis de conservação do calórico e vis viva era formas rudimentares de princípios de
conservação de energia térmica e energia cinética respectivamente. Dentro desse escopo,
acreditava-se que propriedades mecânicas e térmicas não tinham relação entre si. Sob a luz de
experimentos que demonstravam que energia mecânica podia se transformar em energia
térmica e vice-versa, gradualmente os conceitos de conservação de calórico e vis viva foram
sendo preteridos em favor do conceito mais abrangente de conservação de energia.

Hoje em dia a conservação de energia é um princípio praticado e aceito sem muita


reflexão. Se fosse feito uma enquete com cientistas atuais com a pergunta “você acredita na
lei da conservação da energia?”, a grande maioria diria que sim, o que é bastante razoável.
Muitos poderiam sustentá-la com um argumento muito parecido com o argumento do Carnot
sobre a conservação do calórico, o que já não é razoável. Note que a obsolescência do calórico
não implicou na ruína do trabalho de Carnot. O modelo construído por ele ainda é válido e é a
base para a teoria de máquinas térmicas ensinada das universidades. A conservação da
energia é um princípio válido. Até hoje se mostrou muito útil para a compreensão dos
fenômenos naturais e é muito difícil haver algum embasamento empírico no sentido de
desqualificar o princípio. Porém, temos que ter cautela, e não qualificar a lei de conservação
de energia como verdadeira. Observe que já não podemos dizer isso sobre a conservação de
vis viva, de calórico, e até mesmo de massa (na concepção de Lavoisier como veremos
adiante). Não podemos excluir a possibilidade de que experimentos futuros nos forcem a rever
o princípio de conservação de energia. E isso não significará a ruína de toda a física feita até
hoje, da mesma forma que a mecânica newtoniana tem seu espaço mesmo depois da
relatividade. Nesse contexto, quando lemos uma sentença do tipo “antigamente acreditava-se
que a luz era uma onda que se propaga no éter, hoje nós sabemos que, na verdade, a luz é
uma onda eletromagnética”, o autor presta um desserviço. Na sentença, está implícita a ideia
de que as hipóteses antigas eram baseadas em tolices, e que as de hoje são hipóteses
provadas e verdadeiras. Essa postura pode ser danosa para a ciência. Como já dito, as ideias de
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Mayer e Joule não foram bem recebidas inicialmente, inclusive por Kelvin. Esse tipo de rejeição
muitas vezes está relacionado com essa concepção de que a ciência expressa a verdade,
mesmo que muitos cientistas admitam que se trata de uma expressão imperfeita da verdade.
Por outro lado, esforços para a preservação de paradigmas podem ser úteis. O caso do
neutrino é um exemplo interessante. Resultados experimentais obtidos por James Chadwick
em 1914 mostraram que o espectro da radiação beta é contínuo. Tratava-se de um resultado
difícil de explicar, pois de acordo com os modelos da época, violaria o princípio de conservação
de energia. Proeminentes cientistas, como Niels Bohr, chegaram a defender a ideia de que a
conservação da energia nem sempre é válida. Por outro lado, houve um grande esforço para
preservar o princípio de conservação de energia. Nessa abordagem, o físico Wolfgang Pauli
propôs a existência do neutrino em 1930, como sendo uma partícula sem carga e com massa
muito pequena e que interagiria com a matéria em eventos extremamente raros. Pauli tinha
também outros motivos para propor o neutrino, que se mostraram inadequados mais tarde.
Experimentos anunciando a detecção do neutrino ocorreram apenas em 1956, devido às
dificuldades experimentais. Vemos aqui como a preservação de um paradigma levou à
“previsão” de uma partícula e sua descoberta décadas mais tarde.

No entanto, descaso, resistência e até mesmo hostilidade contra ideias inovadoras na


ciência são fenômenos bastante conhecidos, recorrentes e estudados pela filosofia da ciência.
É natural que haja, uma vez que a ciência é um empreendimento humano. O trabalho de
Carnot passou praticamente despercebido enquanto ele viveu. Os trabalhos de Mayer e Joule
enfrentaram resistência às suas ideias no início. Uma evidência do grande cientista que foi
Kelvin é que ele logo mudou sua postura em relação a energia e teve uma atitude aberta
diante dos novos experimentos. Não só mudou a postura como passou a usar sua influência e
advogar em favor da nova concepção. Um grande cientista é, em geral, humilde. Em um jantar
comemorando o jubileu de 50 anos de sua cadeira na Universidade de Glasgow, Kelvin
declarou:

“Uma palavra caracteriza os mais árduos esforços para o avanço


da ciência que realizei perseverantemente durante 50 anos: essa
palavra é FRACASSO”.

Em seu livro, “Lições de Física de Feynman”, o autor Richard Feynman (que é um


importante personagem na história da física), também adota uma postura humilde ao falar
sobre energia:

“É importante nos darmos conta de que em física atualmente, não


temos nenhum conhecimento sobre o que é energia”.

Feynman fez uma boa analogia para explicar a questão da energia. Uma mãe dá de
presente a seu filho 28 blocos idênticos de madeira para ele brincar. Toda noite ela conta os
blocos para verificar se a coleção está completa. Mas a situação começa a ficar complicada.
Seu filho tem uma caixa a qual ela não está autorizada a abrir (ela respeita as vontades do
filho). As vezes a contagem dos blocos está incompleta e ela suspeita que o restante pode
estar dentro da tal caixa. Por isso, toda noite ela faz a medida da massa da caixa e percebe que
a variação é sempre um múltiplo da massa de um bloco de madeira, de forma que ela pode
verificar que o restante dos blocos está de fato dentro da caixa. Mais adiante, o filho resolve

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levar alguns blocos para brincar na banheira. A água fica turva com o banho e ela não pode
enxergar se os blocos estão imersos ou não. Ela resolve então medir o nível da água antes e
depois de cada banho, e verifica que a variação do volume é sempre um múltiplo do volume
de um bloco de madeira. Portanto, a verificação do número de blocos (que se conserva) pode
ser feita contando diretamente, ou indiretamente por meio das manifestações da massa da
caixa ou do nível da banheira. Segundo Feynman, a questão da energia é semelhante, mas nós
nunca enxergamos os “blocos de energia” diretamente. A energia é manifesta indiretamente
na forma de aumento de temperatura, ou aumento de velocidade, de altura etc. O que são
esses blocos de energia nós não sabemos.

Nesse contexto, estamos mais acostumados a tratar da energia em suas formas


específicas. Na discussão aqui não queremos demonstrar ou resolver equações, mas apenas
destacar que a energia se apresenta em maneiras diferentes e que estas formas específicas
são bem formalizadas. As formas mais comuns são ilustradas na Fig. 1.1:

Fig. 1.1: Exemplos de tipos específicos de energia, onde podemos perceber que há uma formalização estabelecida.
Essa formalização não existe para a energia como um conceito unificado e geral.

A famosa equação que relaciona massa e energia foi proposta por Einstein e explica a
grande energia gerada nas reações nucleares presentes em bombas e usinas atômicas.
Segundo essa expressão, em certas reações a massa não se conserva e parte dela pode se
transformar em energia. Sendo assim, o advento da era nuclear fez com que a lei de
conservação das massas defendida por Lavoisier não seja sempre válida. Novamente, devemos
salientar que esse fato não acarretou na invalidação de toda a teoria química desenvolvida até
então. Hoje em dia, os cientistas continuam usando a estequiometria, praticamente da mesma
forma como vinham fazendo desde a época de Lavoisier. Há apenas que se prestar atenção ao

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tipo de reação em questão. Uma vez se tratando de reações nucleares, considera-se a


conservação de massa em uma forma especial.

Outras manifestações específicas de energia podem ser citadas. Existe a energia de


radiação, energia elétrica, energia química etc. Além disso, no contexto da energia, a ciência
estuda também as diferentes formas de conversão de energia. Algumas conversões são óbvias,
outras estão longe disso. Vamos discutir um caso bem simples: o pêndulo simples.

Ao longo da história, o pêndulo foi analisado de diferentes pontos de vista. Os gregos,


por exemplo, possuíam o modelo dos elementos água, ar, terra e fogo e usavam-no para
entender a natureza. Os elementos se atraíam por similaridade, e isso explicaria a queda dos
objetos maciços até o solo, o fluxo do rio até o mar e a fumaça subindo ao céu. Na época, o
modelo cumpria o seu papel tendo um poder explicativo. Nessa concepção, Aristóteles via o
pêndulo como um artefato que apresenta um processo de queda frustrada. Enquanto
manifesta um movimento descendente, a massa tenta chegar ao ponto que lhe é natural, ou
seja, o mais próximo possível do solo. Mas ao atingir esse ponto, as configurações do sistema
faziam-na afastar-se desse “ponto ideal” iniciando o processo ascendente. A massa então
procurava retornar aquele ponto mais baixo, desacelerando no processo de subida e
retomando o processo de descida. E assim o processo se repetia, com a massa sempre
procurando ficar no seu lugar natural. No fim, o processo terminava com o movimento
cessando-se com a massa atingindo o ponto mais próximo do solo.

Figura 1.2: Diagrama esquemático de um pêndulo simples ilustrando um processo de conversão de energia.

Já Galileu, em sua famosa observação dos candelabros da catedral de Pisa no séc. XVI,
compreendeu o pêndulo como um dispositivo que apresenta um movimento oscilatório com
uma frequência muito bem determinada. Por muitos séculos desde então, os pêndulos foram
considerados os instrumentos mais precisos para a marcação do tempo. Até 1929, a hora
oficial dos Estados Unidos era determinada por um relógio de pêndulo.

Podemos enxergar o pêndulo como um mecanismo que ilustra a conversão de energia


potencial gravitacional e cinética (Fig. 1.1) de forma repetitiva. Em seu ponto mais alto, a
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massa encontra-se instantaneamente imóvel, apresentando energia cinética nula e o máximo


de energia potencial gravitacional. Conforme progride na trajetória descendente, vai perdendo
energia potencial e ganhando energia cinética. No ponto de mais baixa altura, podemos dizer
que toda a energia potencial gravitacional é transformada em energia cinética, sendo que esta
última manifesta seu valor máximo nesse ponto. Conforme a massa começa a subir
novamente, o contrário ocorre até que toda a energia cinética seja novamente transformada
em energia potencial gravitacional. Sob o ponto de vista da mecânica, esse processo ocorreria
repetidamente de forma oscilatória por tempo indeterminado a não ser que outro tipo de
conversão de energia seja levado em conta: a transformação de energia cinética em outras
formas dissipativas de energia. Isso explicaria o que normalmente observamos: a diminuição
gradual da amplitude de oscilação até que o sistema entre em repouso.

Vemos que um mesmo fenômeno pode ser visto de três pontos de vista diferentes.
Discutir qual desses pontos de vista é o mais verdadeiro seria infrutífero. Faz mais sentido
analisar qual deles é mais adequado, ou mais útil em nossa tarefa de entender a natureza e
usá-la em nosso favor, como fazemos no caso da tecnologia.

A transformação de energia potencial gravitacional em energia cinética no caso do


pêndulo é bastante evidente e por isso pouco controverso, mas outras transformações não
possuem a fronteira conceitual bem definida dessa forma. Quando incluímos a questão da
transformação em energias dissipativas temos um exemplo dessa problemática. As formas
dissipativas de energia podem ser calor, vibração, turbulência, ruído etc. Dificilmente um livro
texto fará um tratamento formal sobre a transformação da energia cinética do pêndulo nas
diversas formas dissipativas da mesma forma analítica que trata a relação entre sua energia
potencial gravitacional e a energia cinética. Isso porque a complexidade da questão é tão
maior que um tratamento formal na ciência surgiu apenas recentemente com a participação
de personalidades como Clausius, Joule, Kelvin, Boltzmann e Einstein, na esteira dos trabalhos
de Mayer sobre o equivalente mecânico do calor.

O que queremos chamar a atenção nesse ponto é que estamos mais acostumados a
descrever as manifestações específicas da energia e suas transformações. Além disso, toda a
ciência é fortemente dependente do contexto. Voltando aos exemplos ilustrados na Fig. 1.1,
quando estudamos o problema de um arco que atira uma flecha, estamos mais preocupados
com a energia potencial elástica e a energia cinética adquirida pela flecha. Quando estamos
estudando o problema da queima da madeira, estamos preocupados com a energia química da
combustão e no aumento de temperatura de um corpo devido à liberação dessa energia e
eventualmente em um trabalho realizado. Em nenhum desses casos, estamos preocupados
com a transformação de massa em energia. Sabemos disso pela experiência acumulada.

Além disso, o significado de expressões idiomáticas, tais como “energia cinética” e


“energia térmica”, por exemplo, também depende do contexto. Intuitivamente sabemos que
um trem em movimento possui energia cinética e uma barra de ferro em brasa possui energia
térmica. Mas quando analisamos este último caso em uma escala microscópica, usando os
modelos desenvolvidos por Boltzmann, Einstein, Gibbs dentre outros, normalmente
justificamos a energia térmica como energia cinética dos elétrons e íons presentes na barra de
ferro. Daí a distinção entre energia térmica e cinética já não é tão clara. Ainda mais quando a
energia cinética dos íons da rede se manifesta em movimentos ondulatórios que oscilam entre
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as energias cinética e potencial. Enormes confusões podem ocorrer se relacionarmos os


termos das expressões para energia cinética e termodinâmica apenas usando uma lógica
matemática sem forte justificativa no âmbito do problema estudado.

Nesse contexto, é interessante salientar o ponto de vista defendido pelo cientista


Hungaro-britânico Michael Polanyi, na década de 50. Ele defendeu a influência do que ele
chama de conhecimento tácito (silencioso) na ciência. O conceito de “conhecimento tácito”
pode ser aplicado em diversas áreas da cognição. Por exemplo, você encontra uma pessoa na
rua e a reconhece, mesmo depois de 10 anos sem vê-la. Há estudos que mostram que há uma
quantidade incontável de fatores que interferem no reconhecimento de uma pessoa por
outra. Mesmo assim, isso ocorre em uma fração de segundo. Uma pessoa simplesmente
reconhece a outra. Como ela faz isso é um tema complexo e ainda em estudo. Como outro
exemplo, tomemos o caso de um músico profissional. Tocar bem um violão requer prática.
Dificilmente um músico sabe “como” ele toca o instrumento. Ele simplesmente o faz. Na
verdade, é demonstrado que, uma vez solicitado para prestar atenção no movimento de seus
dedos enquanto toca, o desempenho do músico piora. Melhor para ele é simplesmente deixar
fluir. Por outro lado, quanto mais específica a indagação, mais facilmente ela é respondida, por
exemplo “como você faz para produzir esse som mais abafado?”. O músico pode responder
algo do tipo “ah, basta deixar os dedos menos pressionados contra o braço do violão”.
Contudo, muitos podem contestar “Mas um músico profissional pode ensinar um estudante a
tocar. Se e ele ensina, então ele sabe como faz”. Note que o instrutor dá dicas e
demonstrações de como fazer. Resta ao estudante aprender o ofício em sua própria prática. O
conhecimento tácito explica muitas facetas da ciência. Ele explica a dificuldade de replicação
de certos experimentos, cuja realização envolve procedimentos práticos tais como
processamento de amostras, construção de instrumentação dedicada etc. Há ainda outro
aspecto relacionado com a questão do parágrafo inicial. Embora uma criança de sete anos já
tenha uma boa noção do que são coisas vivas ou mortas no mundo que a cerca, ela o faz
tacitamente. Os biólogos debatem até hoje sobre uma boa definição da vida. O mesmo ocorre
com a energia. Até certo grau, todos possuem um conhecimento tácito sobre o que é energia,
embora defini-la ainda seja um desafio. Note as manifestações específicas de energia são
descritas pela ciência, e essa descrição é dependente do contexto, vem como o significado de
cada termo das expressões matemáticas. Sobre isso, Polanyi escreve:

“...fórmulas não tem significado a não ser que se apoiem em


experiências não matemáticas. Em outras palavras, nós podemos
usar fórmulas somente depois de entendermos o mundo ao ponto
de fazermos perguntas sobre ele e ter estabelecido o suporte para
as fórmulas nas experiências que elas se prestam a explicar. O
raciocínio matemático sobre a experiência deve incluir, afora o
achado e a formatação não matemática antecedente da
experiência, a igualmente não matemática relação dos termos
matemáticos para a tal experiência e a eventual, também não
matemática, compreensão da experiência elucidada pela teoria
matemática”.

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É importante termos consciência da influência do conhecimento tácito na ciência1. Mas


isso não indica que devamos nos conformar com um conhecimento implícito. Esta forma de
conhecimento estará sempre presente e é importante. Por outro lado, o progresso da ciência e
da tecnologia está atrelado à capacidade que temos de expressar padrões naturais de forma
explícita e analítica.

No próximo capítulo, responderemos à pergunta “de onde vem a energia?”. Veremos


que há várias formas de responder. Dentre essas formas, pode se relacionar a origem da
energia com as forças fundamentais da natureza.

1.2 – Aprofundamento: E se a energia pudesse ser definida?2

Na seção anterior procuramos mostrar que a natureza da energia é um tema que


permanece em debate e em progressão. Não há uma resposta definitiva sobre a questão do
que é energia. Porém isso não impede que boa parte da comunidade científica defenda a ideia
de que existe uma definição para energia e que ofereçam propostas.

Um aspecto razoavelmente consensual é o entendimento de que a energia se conserva


e possui natureza discreta. A manifestação quantizada da energia é um dos pressupostos da
física quântica, que é uma teoria que explica uma grande quantidade de fenômenos físicos.
Além disso, há uma miríade de experimentos que corroboram os modelos implícitos nela.
Porém, tendo em vista a discussão da seção anterior, mesmo que um modelo seja
extensamente corroborado experimentalmente, temos que deixar a porta aberta para a
obsolescência deste frente a outro mais adequado às evidências futuras.

Além da característica quantizada, o que mais podemos dizer sobre a energia? Deixemos
de lado explicações comuns dos livros textos, que definem genericamente energia em termos
de trabalho, para depois definir trabalho em termos de energia. Tal estratégia de definição
circular só se justifica assumindo grande bagagem conceitual tácita. Devemos procurar encarar
o assunto abertamente e procurar uma definição mais explícita para a energia.

E se alguém fizesse a seguinte proposta:

“A energia de um sistema pode sempre ser entendida como resultante Definição


de um trabalho realizado por uma força ao longo de um caminho.” tentativa

A primeira vista é bastante razoável. Ao invés de simplesmente relacionar a energia ao


trabalho de forma genérica, a definição tentativa procura estabelecer significado em termos
de conceitos mais específicos como força e caminho. É a forma mais simples de entender o
conceito de trabalho. Por exemplo, se eu empurro um carrinho de supermercado com uma
força ao longo de uma distância , o trabalho que realizo é dado por:

1
Para saber mais sobre a influência dos aspectos “não matemáticos” e do contexto relacionado às
fórmulas e definições físicas, sugerimos a leitura da seção 12-1 “O que é uma força?” do livro “Lições de
Física de Feynman” do autor Richard Feynman.
2
Todas as seções identificadas como “aprofundamento” requerem conhecimento estabelecido no nível
do ensino médio. O leitor que tem um interesse mais qualitativo no assunto pode seguir a narrativa do
livro ignorando as seções de aprofundamento, pois seus conteúdos apenas serão necessários para a
compreensão de outras seções de aprofundamento adiante.
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= (1.1)

De partida é fácil perceber como a definição tentativa abarca a energia armazenada em


um arco e flecha, ou qualquer outro sistema massa mola. A energia armazenada é trabalho
realizado pela força que aplicamos da corda do arco ao longo de toda a tração (caminho).

Fig. 1.3: A energia potencial gravitacional de uma maçã sobre a mesa pode ser entendida como resultante da ação
de uma força ao longo de um caminho.

Também não é difícil perceber que a energia potencial gravitacional de um objeto, como
por exemplo, uma maçã sobre uma mesa (Fig. 1.3), pode ser definida como resultado da ação
de uma força por um caminho. Se a maçã está a uma altura ℎ em relação ao solo, sabemos que
a energia potencial gravitacional ( ) é dada por:

= ℎ (1.2)

onde é a massa da maçã e g é a aceleração da gravidade (Fig. 1.1). Por outro lado, sabemos
que a gravidade exerce uma força na maçã que chamamos de força peso ( ) que é dada por:

= (1.3)

de forma que podemos reescrever a energia potencial gravitacional como

= ℎ (1.4)

de onde podemos ver de forma evidente que a energia potencial gravitacional pode ser
descrita como a resultante da ação da força peso ao longo do caminho da altura ℎ. É
interessante notar que podemos ter esse entendimento da energia potencial gravitacional da
maçã, mesmo que a maçã tenha sido colocada sobre a mesa a partir de qualquer trajetória ou
até mesmo um processo mais complexo3, e não ter sido simplesmente apanhada do chão e
colocada sobre a mesa passando pela trajetória que acompanha a linha tracejada da Fig. 1.3.
Este é um exemplo da reputação que a física possui, e que está relacionada com o “poder
explicativo” de seus modelos.

3
Mesmo que, ao invés de uma maçã, haja uma xícara de café sobre a mesa, sendo que a xícara tenha
vindo do armário e o café do bule que estava na pia. Ainda assim, a energia potencial é dada pela massa
total do conjunto xícara e café vezes a altura ℎ.
13
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

O que dizer da energia cinética então? A energia cinética de uma pessoa andando de
bicicleta, por exemplo, pode ser entendida como resultante da ação de uma força ao longo de
um caminho? De nossa experiência cotidiana sabemos que, para seguirmos em velocidade
constante, devemos pedalar continuamente. Isso porque lutamos contra a resistência do ar, o
atrito com o solo, o atrito dos rolamentos etc. Como discutimos na seção anterior, essas forças
dissipativas necessitam de um modelo físico sofisticado. Mas, como fazemos comumente em
física, ainda podemos analisar a essência do problema desprezando tais fatores dissipativos.
Vamos considerar o caso em que um ciclista trafega em um piso plano numa velocidade
constate, onde desprezamos a influência de atritos e ele não está pedalando. Nesse caso,
podemos dizer que ele se movimenta por inércia. De onde vem sua energia? Se o terreno é
plano, por experiência podemos dizer que, em algum momento anterior, o ciclista partiu do
repouso e pedalou por um dado trecho até atingir a velocidade que observamos. Portanto,
podemos dizer que a energia cinética que ele apresenta é resultado do trabalho de uma força
ao longo de um caminho. Alguém poderia contestar dizendo que o movimento do ciclista
poderia ter sido resultado, não de sua pedalada, mas de um processo de várias etapas, ou de
um embalo obtido em uma ladeira próxima. Mesmo assim podemos fragmentar processo
como a soma de etapas de trabalho e, no último caso, não é difícil de demonstrar que a
energia cinética é resultado da ação de uma componente da força peso do conjunto ciclista e
bicicleta ao longo da ladeira.

Fig. 1.4: A energia cinética como resultante de uma força ao longo de um caminho.

Existem várias formas de se formalizar a relação entre energia cinética e trabalho em um


caso como esse. Podemos partir da equação de Torricelli, que se trata de uma equação de
cinemática estabelecida por Evangelista Torricelli no séc XVII, ou seja, muito antes do
estabelecimento do conceito de energia como conhecemos hoje. Vamos utilizar a equação de
Torricelli para analisarmos o trajeto em que o ciclista acelera, ou seja, a parte do trajeto onde
ele sai do repouso e pedala até atingir a velocidade final que observamos mais adiante. A
equação de Torricelli é dada por:

− =2 (1.5)

Onde e são as velocidades inicial e final do processo respectivamente, é a


aceleração e é a distância do trajeto em que o ciclista segue pedalando até atingir a
14
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

velocidade final. Como o ciclista parte do repouso, a velocidade inicial é nula. Além disso, a
partir da segunda lei de Newton ( = ) podemos deduzir que = / . Substituindo na
eq. 1.5:

=2 (1.6)

Rearranjando os termos, podemos escrever a eq. 1.6 da forma

= (1.7)

De onde mostramos que a energia cinética (Fig. 1.1) do ciclista equivale à ação de sua
força na pedalada ( ) ao longo do trajeto (caminho) . Conclusões semelhantes podem ser
obtidas para qualquer tipo de movimento, seja um carro, bola de boliche, projétil ou molécula.
Além disso, o argumentamos que o caso onde o ciclista desce a ladeira sob a ação do campo
gravitacional terrestre também pode ser analisado pelo mesmo princípio. Logo podemos usar
esse principio para movimentos causados por outros tipos de campo, como objetos atraídos
por ímãs ou carregados eletricamente.

E o que podemos dizer sobre energia térmica? Aprendemos no ensino médio que
“temperatura é o grau de agitação das moléculas”4. Logo, energia térmica é normalmente
interpretada como movimento das moléculas. Sendo assim, recorrendo ao que acabamos de
discutir sobre energia cinética, poderíamos interpretar energia térmica como sendo resultado
de ação de forças moleculares sobre cada uma das partículas de um sistema.

Usando análises semelhantes, pode-se compreender a energia elétrica produzida como


sendo resultado do trabalho realizado pela força (pressão no caso) do fluído de trabalho
movimentando as turbinas das centrais geradoras. Sem entrar nos detalhes dessa análise, pois
estudaremos as máquinas térmicas e geradores elétricos mais adiante, queremos apenas
chamar a atenção de que tal correlação pode ser feita.

Dessa forma, progredimos bastante ao tentarmos compreender energia a partir da


definição tentativa. Podemos entender ciclistas em movimento, carros, bolas de futebol,
objetos quentes, a energia elétrica, maçãs sobre a mesa, barragens de hidrelétricas a cama
elástica etc. Para muitos, isso indica que uma definição é possível. Mas existe um motivo para
não haver consenso entre os cientistas. Como acontece regularmente na física, mesmo bons
modelos podem deixar de funcionar quando se passa a analisar de uma forma mais minuciosa.
Como já mencionamos, Feynman procurou discutir a dificuldade em definir o que é uma
força5. Podemos também discutir as limitações do conceito de caminho ou trajetória. Nesse
quesito, a definição tentativa esbarra em uma das teorias mais respeitadas da ciência: a física
quântica. Segundo ela, na escala atômica, o conceito de trajetória deixa de ter sentido. O
experimento mais clássico que corrobora isso é o experimento de dupla fenda. Porém ao invés
de discutirmos esse experimento, podemos analisar uma situação mais simples: um fóton de
luz viajando no espaço. Este fóton possui uma energia bem definida pela física quântica, e
dada pela equação:

4
Discutiremos em mais detalhes sobre energia térmica no Cap. 6.
5
Veja a nota de rodapé 1.
15
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

=ℎ (1.8)

onde ℎ é a constante de Planck e é a frequência associada ao fóton. De onde vem a energia


associada a este fóton? Como de costume, questões fundamentais em física quântica são
complexas. Discutindo de forma simplificada e deixando outras questões de física moderna de
lado (como fatores relativísticos), os fótons não são acelerados da mesma forma que
pensamos do ponto de vista clássico, mas devemos dizer preferivelmente que os fótons
“interagem”, principalmente por meio de processos de absorção e geração. Por exemplo, um
fóton pode ser gerado a partir da fluorescência, ou seja, a partir da transição de um elétron
que passa de um estado mais energético para um estado de menor energia. Ao estudarmos
sobre o assunto, veremos que as energias são quantizadas e que não há uma trajetória bem
definida em que o elétron possa realizar entre os estados de energia. Se assim fosse, feriria
princípios básicos da física quântica. De forma análoga, as forças envolvidas em tais processos
são difíceis de serem equacionadas da forma como trabalhamos classicamente. Conclusões
semelhantes podem ser obtidas analisando outras interações, não só de fótons, mas de outros
sistemas de nível atômico.

Fig. 1.5: Diagrama esquemático representando a geração de um fóton devido à transição entre estados eletrônicos
de um átomo. Embora, representações como essa sejam comuns na literatura, onde os níveis energéticos são
representados por meio de órbitas com trajetórias bem determinadas, é consenso de que se trata de um abuso
diagramático, uma vez que os estados eletrônicos são mais acuradamente representados por orbitais atômicos.
Além disso, também é consenso de que a transição do elétron de um nível para o outro não ocorre em uma
trajetória bem definida como o diagrama dá a entender.

E você, leitor, tem uma proposta para definição de energia? Teste minuciosamente sua
proposta. Há muito a se aprender nesse caminho.

1.3 – Aprofundamento: Como tratamos a energia na física e na engenharia6

Até agora discutimos a dificuldade em haver uma definição objetiva da energia. É fato
que os grandes cientistas concordam de que o conceito de energia é um assunto ainda aberto
6
Como aqui tratamos de como a física e a engenharia usam o conceito de energia, expressões
paradigmáticas como “a energia térmica é a agitação das partículas” são usadas sem ressalvas. Isso
pode parecer conflitante com o conteúdo principal deste capítulo, mas não é. Uma coisa é mostrar que
não há consenso sobre as definições de energia e suas formas. Outra coisa é mostrar a utilidade de
certas definições adotadas.
16
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

para o debate e isso ocorre frequentemente para os conceitos mais fundamentais. Mas isso
não impede que a energia, principalmente em suas formas específicas (cinética, térmica,
potencial etc) seja utilizada de forma objetiva em problemas de ciência e engenharia. Aqui
nessa seção, buscaremos discutir como as formas de energia são tratadas principalmente nos
assuntos pertinentes aos aprofundamentos desse livro, que lidam bastante com diferentes
formas de energia cinética e térmica.

Antes de tudo se faz necessário definir o conceito de sistema físico, pois nessas análises
utilizaremos frequentemente expressões do tipo “o calor entra no sistema”. Trata-se de outro
conceito difícil de definir objetivamente, mas normalmente aceito tacitamente. As análises
técnicas e científicas normalmente fazem uso de uma demarcação do que é o objeto a ser
estudado. Em economia, é comum tratar de um objeto, tal qual um país ou empresa e aí
definir o que entra ou sai desse “objeto de estudo” como receita ou despesa. Em biologia, esse
objeto pode ser uma planta e pode se analisar sua relação com o meio externo por meio dos
nutrientes que entram e saem ou a presença ou não da ação da radiação solar. Em física e
engenharia ocorre algo similar, onde se separa o objeto de estudo do entorno para que a
sistematização da análise se torne possível. Isso é especialmente importante em problemas
que envolvem troca de calor, como por exemplo, o sistema tratado na Fig. 1.6, onde um bloco
desliza com atrito sobre uma mesa.

Podemos utilizar a 2ª lei de Newton e a Eq. 1.7 para identificar melhor e quantificar a
energia térmica e o calor. Considere a Fig. 1.6 que mostra um bloco de massa m movendo
sobre a superfície de uma mesa com atrito devido à ação de uma força . A força resultante
= − causa a aceleração do bloco, e é menor que devido à ação da força de atrito .
O processo de atrito causa a agitação das partículas (átomos, íons ou moléculas) que formam
do bloco e mesa na região da interface entre eles. Esta agitação é denominada energia
térmica. Considere novamente que o bloco estava em repouso quando do início da aplicação
da força , isto é que sua energia cinética inicial, , seja zero. Utilizando a Eq. 1.7 e
substituindo pela força resultante , temos que a energia cinética do bloco, , é

ã"
= = #$$$% =& − ' = − . &1.8'
2

A energia cinética final do bloco, é dada pela diferença desses dois tipos de trabalho: o da
força sobre o bloco e o da força de atrito que produziu energia térmica.

17
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 1.6: Uma força é aplicada a um bloco com massa m sobre a superfície de uma mesa com atrito. O atrito causa
uma força na direção oposta de tal forma que a força resultante seja = − .

O contorno indicado na Fig. 1.6 mostra o sistema formado pelo conjunto mesa-bloco.
Este sistema inicialmente estava a uma temperatura + , mais baixa. Após certo tempo com a
força atuando e a agitação local das moléculas transferindo para as regiões vizinhas e se
espalhar por toda a mesa e bloco, este sistema vai se encontrar em uma temperatura mais
elevada, + . O sistema mesa-bloco tinha uma quantidade de energia térmica inicial , e após
o processo passou a ter uma energia térmica final , . Como o atrito entre o bloco e a mesa é
responsável pela a agitação das moléculas do sistema bloco-mesa, o trabalho da força de atrito
é responsável por este incremento de energia térmica,

, − , = . &1.9'

A Eq. 1.8 pode então ser escrita como

ã"
= = + #$$% = + , − , &1.10'
2

Ou, lembrando que era nula,

=0 − 1+0 , − , 1, &1.11'

isto é que o trabalho realizado pela força F sobre o bloco produz um aumento na energia
cinética do bloco dentro do sistema bloco-mesa e um aumento na energia térmica do sistema
bloco-mesa. Em outras palavras vemos que houve uma transformação de trabalho em duas
formas diferentes de energia.

O sistema da Fig. 1.6 abrange o bloco e a mesa. Vimos que naquela situação o trabalho
realizado pela força de atrito entre o bloco e a mesa causou agitação entre as moléculas dos

18
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

dois corpos e eventualmente adicionou energia térmica a eles. O processo de agitação de


moléculas se iniciou localmente na região da interface entre os dois corpos devido a ação da
força de atrito. Depois a agitação destas moléculas foi sendo transferida para as moléculas
vizinhas por meio de choques ou interações das forças intermoleculares. Eventualmente todas
as moléculas dos dois corpos estavam com nível de agitação mais elevado que inicialmente ou,
em outras palavras, com um nível de energia térmica mais elevada. Houve um processo de
transferência de energia térmica no bloco e na mesa de suas regiões de maior agitação para
aquelas de menor agitação. A esta transferência de energia térmica chamamos de
transferência de calor por condução através dos dois corpos.

Consideremos agora o problema anterior com uma nova fronteira do sistema como a
mostrada na Fig. 1.7. O problema é semelhante, mas o sistema abrange o bloco e apenas a
região da interface entre a mesa e o bloco. Analisemos agora o problema do ponto de vista
deste novo sistema. A Força , externa ao sistema, atua sobre o bloco sobre a mesa e aumenta
sua energia cinética. A força de atrito entre o bloco e a mesa, interna ao sistema, agita as
moléculas desses dois corpos na região de interface entre eles. O trabalho da força atravessa a
fronteira do sistema. O bloco, que faz parte do sistema, eventualmente atinge um nível mais
elevado de energia cinética e de energia térmica. Na região da mesa dentro do sistema (a
pequena região próxima à interface entre os dois corpos) ocorre agitação de moléculas devido
da força de atrito e esta agitação é transferida para moléculas vizinhas que eventualmente
cruzam a fronteira do sistema. Há uma transferência de energia térmica ou calor através da
fronteira do sistema, mas não há transferência de massa.

Fig. 1.7: Uma força F é aplicada a um bloco com massa m sobre a superfície de uma mesa com atrito. A situação é
semelhante à da Fig. 1.4 exceto que o sistema abrange o bloco e uma pequena parte da mesa, a região próxima à
interface entre a mesa e o bloco.

Podemos analisar esses fenômenos sob outro ponto de vista considerando o sistema
indicado pelo contorno na Fig. 1.7. A força externa realizou trabalho sobre o sistema causando
3 efeitos: a variação na energia cinética do bloco, aumento da energia térmica do bloco e da
região da interface da mesa e uma transferência de calor, 3, para fora do sistema. Este calor
transferido através da fronteira do sistema irá eventualmente aumentar a energia térmica do
resto da mesa, mas do ponto de vista do sistema da Fig. 1.7 houve transferência através de sua
fronteira. A Eq. 1.11 neste caso fica

=0 − 1+0 , − , 1 + 3. &1.12'
19
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

onde a variação de energia térmica do sistema é dada por

, − , = ′ 56 0+ − + 1 &1.13'

e ’ é a soma da massa do bloco e da parte da mesa pertencente ao sistema e ambos


possuem o mesmo calor específico 56 . Neste ponto de vista a Eq. 1.12 estamos identificando o
efeito do trabalho da força com fenômenos mecânicos (mudança de energia cinética) e
fenômenos térmicos (mudança de energia térmica e transferência der calor).

Analisando o problema identificamos duas transferências de energia através da


fronteira do sistema: a primeira na forma de trabalho da força externa e a segunda na forma
de transferência de calor. Vemos que a energia do sistema pode variar devido à transferência
de trabalho e ou calor através da fronteira do sistema. Mais adiante nesse livro, veremos que
nas análises de termodinâmica, trabalho e calor sempre cruzam a fronteira dos sistemas. O
que não atravessa a fronteira do sistema se transforma eventualmente em alguma forma de
energia do sistema.

Vemos assim que podemos relacionar qualquer força com um tipo de energia, às vezes
em uma forma geral de energia ou, às vezes, em uma forma específica de energia. As forças
existentes na natureza (ou tipos de interação) estão relacionadas com energia. Por exemplo,
podemos dizer que a energia elétrica vem de forças elétricas, a energia potencial gravitacional
vem da força gravitacional dos planetas, a energia nuclear vem das forças existentes no núcleo
da matéria ou que a energia potencial elástica vem do alongamento ou compressão de uma
mola. Se um sistema está submetido a um conjunto de forças variadas podemos dizer que a
energia total de um sistema é a soma de todas as energias individuais devido a estas várias
forças. A energia total de um sistema, , é dada por

= , + + 9+ : + ;<: … &1.14'

onde 9 é a energia potencial gravitacional, : é a energia elétrica e ;<: é a energia de


origem nuclear.

Podemos generalizar a Eq. 1.12 estabelecer que o trabalho sobre um sistema pode
causar uma variação da energia total do sistema e transferência de calor

=? + 3 &1.15'

20
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

onde ? = 0 − 1 é a variação da energia total do sistema. Ou podemos escrever que

? = −3 &1.16'

e interpretarmos que a variação da energia total do sistema é igual a energia líquida que cruza
a fronteira do sistema na forma de trabalho e calor. Veremos adiante que esta equação é
semelhante a 1ª lei da Termodinâmica de conservação de energia. Apresentamos aqui, pois se
trata de uma aplicação contextualizada do princípio bastante aceito da conservação da
energia. A variação de energia total de um sistema é igual ao trabalho realizado sobre o
sistema menos o calor transferido para fora do sistema. Há várias unidades para a energia e no
Sistema Internacional utilizamos o Joule (J). Trabalho, calor e os diferentes tipos de energia
tem unidade J no Sistema Internacional.

Na Eq. 1.16 o calor saiu do sistema. Nos problemas de Termodinâmica, em geral,


estamos interessados no problema inverso, isto é, a transferência de calor para um sistema
para se produzir trabalho e variação de energia total do sistema. Isto ocorre com as máquinas
térmicas que vamos estudar mais adiante. Nós não derivamos a 1ª lei da Termodinâmica nesta
seção. Apenas analisamos um problema particular que acaba apresentando uma equação de
conservação de energia na forma da 1ª lei da Termodinâmica. A mesma análise para o
problema do bloco sobre uma mesa sem atrito levou a uma equação de conservação de
energia envolvendo trabalho e energia cinética. O importante é perceber que as equações de
conservação de energia estão associadas aos fenômenos físicos envolvidos, que podem ser
mecânicos, térmicos, eletromagnéticos ou nucleares, ou às forças que interagem no sistema.

Note que o lado direito da Eq. 1.15 está com o sinal trocado em relação a equação
mostrada na Figura 1.1. Isto é apenas convenção do que consideramos trabalho e
transferência de calor positivo ou negativo, ou seja, podemos considerar como calor positivo a
energia térmica que entra no sistema, ou o contrário. A mesma arbitrariedade se aplica para a
convenção do sinal do trabalho realizado, ou seja, podemos convencionar como positivo o
trabalho feito sobre o sistema, ou no sistema. Neste nosso exercício o trabalho é positivo e
veio de fora do sistema para dentro do sistema. Dizemos que o trabalho foi realizado sobre o
sistema. O calor também é considerado positivo e foi transferido de dentro do sistema para
fora do sistema. Em termodinâmica normalmente consideramos uma convenção de sinal
invertida.

Em vários problemas de engenharia estamos interessados na taxa temporal de


realização de trabalho, de transferência de calor ou de variação de energia. Em uma cidade há
um consumo de energia contínua e é necessário prover certa quantidade de energia por
unidade de tempo. Em um chuveiro elétrico deve-se fornecer uma quantidade de energia
térmica para água por unidade de tempo para que a água que sai continuamente esteja
aquecida em uma temperatura cômoda. Vamos definir a taxa de variação por unidade de
tempo da energia, trabalho ou calor como potência. No Sistema Internacional a unidade de
potência é Watt (W) definida como 1 W = 1 J/s. Falamos potência de forma indiscriminada
para qualquer forma de taxa de variação temporal de energia. Assim normalmente precisamos
especificar que tipo de potência estamos tratando. Por exemplo, a potência do motor é de
1000 W indicando que o motor realiza trabalho em uma taxa temporal de 1000 J/s. A potência
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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

da caldeira é de 200 kW indicando que a taxa temporal de calor fornecido pela queima de
combustível é de 200 kJ/s.

A Eq. 1.16 de conservação de energia pode também ser escrita em termos de taxas
temporais como

B = B − 3B &1.17'

onde a unidade de todos os elementos e W e o ponto sobre as grandezas , e 3 significa


que estamos tratando de taxas de variação temporal para energia total, trabalho e
transferência de calor. Na Eq. 1.17 estabelecemos que a taxa de variação temporal da energia
total do sistema é igual à potência de trabalho fornecida ao sistema menos a potência de calor
transferido do sistema. A Eq. 1.17 é a forma da equação de conservação de energia que
utilizamos para resolver problemas engenharia.

A Eq. 1.13 também pode ser escrita na forma de taxa de variação temporal. Suponha o
problema de um chuveiro no qual a água caia a uma taxa temporal (ou vazão) B (kg/s) e que
desejamos que tenha um acréscimo de temperatura ?+. O chuveiro é uma pequena máquina
térmica que produz calor por meio de uma resistência elétrica e aquece a água. Então a
potência de calor é transferida para a água que flui como certa vazão aumentando sua energia
térmica. Podemos então escrever

3B = B = B 56 ∆+. &1.18'

Verifique a unidade dos termos do lado direito da Eq. 1.18 e certifique-se que temos a unidade
de Watt.

O chuveiro é uma máquina térmica que não produz trabalho. Consideremos agora um
motor que iça um elevador e seus passageiros pelos vários andares de um prédio. Neste caso,
estamos interessados não apenas que o motor tenha capacidade de içar o peso total (elevador
+ passageiros) como, também, que faça esta operação em um prazo determinado. Estamos
interessados também em saber em quão rápido o elevador se desloca do piso térreo até o
andar mais elevado ou em saber quão rápido o motor realiza trabalho (sua potência).
Considerando que a força de içamento que o motor pode exercer seja constante, temos que a
potência de trabalho é dada por

B = EB FG B = v &1.19'

onde E é a posição vertical do elevador, EB é a taxa temporal de deslocamento vertical do


elevador ou sua velocidade e v é a velocidade do elevador, v = EB . Vemos aqui um resultado

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

interessante. Enquanto o trabalho realizado por uma força é dado pelo produto entre a força e
o deslocamento, a potência de trabalho é dada pelo produto entre a força e a velocidade de
descolamento. Verifique novamente se o lado direito da Eq. 1.19 tem unidade de Watt.

A Tabela 1.1 apresenta unidades de energia e potência que utilizamos mais


frequentemente. Dependendo das áreas algumas unidades são mais utilizadas. Veja na
internet a origem de cada uma delas e as áreas que são mais utilizadas.

Tab. 1.1: Unidades utilizadas para a energia e potência.


Energia = Nm = kgm2/s2 (SI)
Potência = W = J/s (SI)
Conversão entre outras unidades de energia
1 cal = 4,18 J
1 BTU = 1055 J
1 TEP = 4,2x1010 J
1 eV = 1,6x10-19 J
1 kWh = 3,6x106 J

Se utilizarmos a relação entre energia e trabalho realizado por forças descrito acima e
considerarmos os tipos de forças ou interações que existem na natureza podemos identificar
um conjunto bastante completo de energias existentes na natureza.

Questionário

1 – Certas coisas podem ser bem definidas. Por exemplo, embora a palavra primavera possa
ter vários significados, ela pode ser definida. Em 2017, a primavera no hemisfério sul
corresponde ao período entre 22 de setembro às 20h02min (equinócio da primavera) e 21 de
dezembro 16h28min (solstício de verão). Já o conceito de vida é controverso mesmo entre os
biólogos. Procure uma definição de energia. Pode ser de um bom site na internet ou do seu
livro de ciências do ensino médio. O que você pode dizer sobre a definição de energia sob a luz
do que foi discutido nesse capítulo?

2 – Carnot não considerava a hipótese de que o calórico e sua “lei de conservação” eram
conceitos equivocados, temendo toda a ruína da ciência térmica da época. Porém novos
experimentos fizeram com que esse modelo fosse abandonado. Outros conceitos tiveram uma
obsolescência parecida, como o vis viva, a conservação de massa (de Lavoisier), o espaço e
tempo absoluto (de Newton) e o éter (de Maxwell). Partindo desse histórico, o que você pode
dizer sobre o conceito de conservação de energia? E a conservação de carga elétrica?

3 – No tratamento informal, calor e energia térmica podem ser tratados como sinônimos.
Estritamente falando, isso é um abuso de linguagem semelhante ao se tratar massa como
peso. Explique a diferença entre calor, energia térmica e temperatura.

Questões de aprofundamento

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

4 – Da mesma forma que estabelecemos a relação entre o trabalho ao longo de um caminho e


a energia cinética para o ciclista que atinge a velocidade final pedalando (eq. 1.5 a 1.7),
demonstre que essa relação também vale para o ciclista que desce uma ladeira.

5 – Quando analisamos a energia cinética do ciclista, em um dado momento é dito: “Vamos


considerar o caso em que um ciclista trafega em um piso plano numa velocidade constate,
onde desprezamos a influência de atritos e ele não está pedalando.” A última informação é
redundante. Por quê?

6 – Quando discutimos a definição tentativa para energia, vimos que ela esbarra no conceito
de trajetória (ou caminho). Mencionamos que um dos experimentos que contesta o conceito
clássico de trajetória é o experimento de fenda dupla de Young. O que é esse experimento e
porque ele nos força a repensar o conceito de trajetória?

Crédito das figuras


1.1: Arte própria
1.2: Arte própria
1.3: Arte própria
1.4: CC0 Public Domain - Atribuição não requerida - https://pixabay.com/pt/bicicleta-moto-ciclismo-esporte-
384566/
1.5: Arte própria
1.6: Arte própria
1.7: Arte própria

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2 – Fontes de Energia

2.1 – De onde vem a energia?

No capítulo anterior discorremos em torno da questão “o que é energia?”. Outra


indagação fundamental é “de onde vem a energia?”. Vejamos que tipos de compreensão e
discernimento podemos obter a partir dessa questão analisando um caso específico. Considere
uma bola de boliche posicionada no topo do 11º andar do Bloco B (Fig. 2.1)

Figura 2.1: Energia de uma bola de boliche posicionada no topo do Bloco B.

Intuitivamente é fácil perceber que ela possui uma energia potencial. No caso de uma
queda a partir dessa posição, os estragos provocados podem ser enormes. O processo pode
até ser útil. Remetendo às formas mais primitivas de “indústria”, podemos pilar arroz a partir
do processo de queda, mesmo que repetidamente, da bola de boliche. É claro que há formas
mais apropriadas de se fazer isso, mas o que importa nessa discussão é o conceito.

Bem, aí perguntamos “de onde vem a energia?”. A maioria responderá que “é uma
energia potencial gravitacional” ou “vem da força da gravidade”. Trata-se de uma boa resposta
que nos ajuda a entender a questão. Mas como vimos no capítulo anterior, pode-se ter
diferentes boas respostas a uma mesma questão. Note que a energia associada a uma bola de
boliche posicionada no topo do Bloco B é dependente de uma configuração específica. Por
exemplo, a bola deve estar em cima, e não embaixo. Pode se dizer que o topo é uma posição
“menos provável” do que o chão. Observe que uma vez posicionada no topo, uma brisa ou um
pequeno tremor provavelmente levaria a um processo que resultaria no posicionamento da
bola no chão. O contrário não é esperado, ou seja, uma pequena brisa ou tremor não cuidaria
de levar a bola do chão para o topo. Note que a configuração do Bloco B em si também é
especial, contendo uma parede perfeitamente vertical. Se ao invés de uma edificação de
concreto, a bola fosse posicionada a uma altura ℎ sobre uma pequena montanha com uma
superfície irregular e pequeno declive, a situação prática seria bem diferente pois haveria
maior influência de agentes dissipativos no processo. A relação entre configuração e
25
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

aproveitamento da energia será tema de capítulos posteriores e envolve o conceito de


entropia.

Além disso, a pergunta “de onde vem?” contém um apelo temporal. Até agora
analisamos a situação instantaneamente. Poderemos ter outros insights se olharmos o que
ocorreu imediatamente antes da bola estar posicionada sobre o Bloco B. Como vimos, a
energia depende da configuração. E trata-se de uma configuração “pouco provável”. Como
essa configuração foi obtida? Ou, quem colocou a bola no topo do Bloco B? As câmeras do
circuito interno de monitoramento mostram que João subiu as escadas e colocou a bola lá.
Então podemos dizer que a energia potencial gravitacional da bola foi obtida graças ao esforço
físico de João. O que torna o esforço físico de João possível? Foi o pão com manteiga que ele
comeu no café da manhã. A atividade do corpo humano depende da energia química contida
nos alimentos. Se João pretender fazer uso da queda da bola para pilar arroz, por exemplo, ele
terá que repetir o processo várias vezes. Uma vez no solo, a bola terá que ser reposicionada no
topo e mais esforço de João será requerido. Salientamos isso para deixar claro que não há, até
onde sabemos, “energia de graça” e, além disso, na indústria os processos são pensados em
termos de ciclos, ou seja, um processo que se repete ao longo do tempo.

Vamos considerar a hipótese de João, ao invés de pegar as escadas, usou o elevador.


Nesse caso, sabemos que foi um motor elétrico que cuidou de subir a bola do térreo para o
11º andar. E de onde vem a energia elétrica? De forma simplificada, podemos dizer que a rede
elétrica de Santo André está ligada a central hidrelétrica de Itaipu. E de onde vem a energia de
Itaipu? A Fig. 2.2 mostra esquematicamente como funciona uma usina hidrelétrica. As
possíveis configurações de uma hidrelétrica são diversas, mas o princípio é o mesmo.

Figura 2.2: Possível configuração de uma usina hidrelétrica.

Uma central hidrelétrica típica possui um grande dique. O objetivo é obter uma grande
massa de água represada em um patamar superior, como mostra a Fig. 2.2. Uma usina
hidrelétrica aproveita a energia potencial gravitacional dessa massa de água posicionada em
um nível superior que, uma fez fluindo para o patamar inferior, adquire energia cinética que é

26
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

utilizada para mover geradores elétricos7. Para o momento, isso é o que precisamos entender
sobre usinas hidrelétricas.

Observamos que há uma similaridade entre a configuração de uma hidrelétrica e a bola


de boliche no topo do Bloco B. Em ambos os casos, podemos dizer que “se trata de uma
energia potencial gravitacional cuja origem está na força da gravidade”. Novamente, essa é
uma resposta adequada, mas não precisamos parar por aí. Note que, mais uma vez, o
funcionamento de uma hidrelétrica depende de uma “configuração específica pouco
provável”: deve haver um desnível de água. Costuma-se dizer que todo rio corre para o mar.
Implícita nessa afirmação está o conceito de que, da mesma forma que no princípio dos vasos
comunicantes, o estado mais provável é toda a água estar no mesmo nível, que é o nível do
mar. Sob esse ponto de vista, haver um desnível de água é um estado especial. Para usar a
bola de boliche industrialmente, João teria que reposicioná-la repetidamente no topo do Bloco
B. O mesmo acontece com uma hidrelétrica. No processo de geração de energia elétrica, a
água retirada do reservatório superior deve ser suprida novamente. Esse processo é
normalmente garantido pelo fluxo natural de um rio. Nesse sentido, existe a visão de que a
hidroeletricidade é “essencialmente de graça”, pois o rio já está lá e basta investir na
construção e manutenção de uma usina, associada a uma rede de distribuição, ao longo do
curso do rio. Isso faz mais sentido do ponto de vista econômico, e esse é um dos motivos pelos
quais a hidroeletricidade é uma boa alternativa de produção de energia. Porém, do ponto de
vista científico temos que analisar essa questão com mais cautela. A questão é: porque o rio
está lá? Para responder essa pergunta temos que entender o ciclo hidrológico ilustrado na Fig.
2.3.

Figura 2.3: Diagrama ilustrativo do ciclo hidrológico.

7
No tratamento dado aqui não é necessário entender o funcionamento dos geradores. Basta tomá-lo
como um dispositivo capaz de transformar energia mecânica (qualquer movimento coerente de
translação ou rotação) em energia elétrica.
27
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

A precipitação da água na forma de chuva e neve em regiões mais altas dá origem aos
rios. A água precipitada tem sua origem na evaporação da água, principalmente dos oceanos.
Vemos que todo esse ciclo só é possível devido à ação térmica da radiação solar.

Sendo assim, podemos concluir que a energia da bola de boliche no topo do Bloco B
vem do trabalho realizado pelo elevador, que ocorre por meio de um motor elétrico, cuja
energia vem de Itaipu, cuja energia vem da energia potencial gravitacional da água dos rios,
que surge da evaporação da água devido à ação do Sol. Esquematicamente

Bola no topo → motor elétrico → Itaipu → rios → evaporação da água → Sol

Mas há o outro caso em que João subiu pelas escadas. Nesse caso, a origem da energia
passa pelo alimento que ele consome, ou seja, temos que olhar a teia alimentar,
esquematizada na Fig. 2.4.

Figura 2.4: Diagrama esquemático da teia alimentar de um ecossistema de mata atlântica.

Não é necessário elaborar muito sobre a cadeia alimentar. De forma simplificada, pode-
se dizer que em sua base situam-se as plantas e vegetais. Porém melhor seria dizer que na
base estão os organismos que realizam fotossíntese. No Cap. 4 trataremos da fotossíntese e de
sua relação com a respiração com mais detalhes. No momento trataremos de apenas alguns
aspectos destes processos.

Ao subir as escadas, e em qualquer outra atividade, a energia de João está relacionada


com seu metabolismo, mais especificamente com a respiração celular. No ensino médio
aprendemos, naturalmente de uma forma simplificada, que se trata de um processo que
consome glicose (C6H12O6) e oxigênio (O2) resultando em gás carbônico (CO2), água (H2O) e
energia (ATP) para o organismo. A glicose, por sua vez, tem sua origem na fotossíntese,
expressa de maneira geral pela fórmula:

6JK + 6L K + MGN → JO LP KO + 6K
28
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Note que a fotossíntese depende da luz solar. Ou seja, podemos dizer também no caso
do uso das escadas por João, a energia que permite que a bola de boliche seja posicionada no
topo do Bloco B tem sua origem fundamental no Sol. Esquematicamente:

Bola no topo → João → respiração celular → glicose → fotossíntese → Sol

Nesse ponto, podemos lançar mão de uma hipótese interessante: será que toda a
energia que usamos, em suas variadas formas, vem fundamentalmente do Sol? Para responder
a essa pergunta, temos que discutir um pouco mais sobre a energia que usamos e sobre o que
entendemos como “fontes de energia”. Trata-se de uma questão que envolve definições um
tanto arbitrárias, mas que são necessárias para se pautar a discussão.

2.2 – Principais Fontes de Energia da Natureza

Entendemos como fonte de energia primária qualquer coisa ou processo da natureza do


qual podemos explorar energeticamente. O petróleo é considerado uma fonte de energia
primária. A gasolina, derivada do petróleo, é utilizada nos motores dos automóveis e é
considerara uma forma de energia secundária que foi obtida a partir de um centro de
transformação, a refinaria de petróleo. O vento é usado para girar turbinas eólicas e também é
considerado uma fonte de energia primária e a fazenda eólica com suas várias turbinas um
centro de transformação de energia secundária.

Em nossa sociedade, um cidadão típico tem sua casa abastecida de eletricidade. Possui
um fogão e eventualmente um chuveiro a gás. Possui um automóvel, ou se locomove de
ônibus ou trem. Possui eletrônicos que se utilizam de baterias recarregáveis. Alguns usam
lenha para o fogão ou lareira. Nesse contexto, estamos falando, de uma forma mais coloquial,
das seguintes formas de uso final de energia: eletricidade, gasolina, álcool, diesel, gás e lenha.

Vejamos o caso da rede de energia elétrica e das baterias. Ambas não são fontes de
energia, mas, portadoras de energia. Note que a bateria de um celular ou tablet depende da
rede elétrica para recarregar. Por isso, a bateria é também considerada uma portadora de
energia. A energia elétrica, uma forma de energia secundária, é gerada nas usinas, que por sua
vez requerem fontes de energia primária tais como o carvão mineral, material nuclear, gás,
rios, ventos etc.

A Fig. 2.5 esquematiza as principais formas de energia de uso final utilizadas por um
cidadão típico e as possíveis fontes de energia primária que podem proporcioná-las. Vamos
analisar o caso das fontes mais comuns: carvão, rios, gás natural, gasolina, diesel e etanol.
Destes, a gasolina e o diesel são derivados do petróleo, que juntamente com o carvão e o gás
tem uma origem comum dentro do contexto dos combustíveis fósseis, que representam cerca
de 85% do consumo energético mundial. O petróleo origina-se de matéria orgânica
(principalmente marinhos) que sofreu decomposição anaeróbica e permaneceu soterrada em
condições de alta temperatura e pressão por milhões de anos. Plantas terrestres, por sua vez,
tendem a se transformar em carvão mineral e metano por um processo semelhante.

29
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 2.5: Diagrama das principais energias de uso final e energia primária utilizadas por um cidadão típico.

Sabemos que a síntese de matéria orgânica está associada à fotossíntese, que por sua
vez, depende do Sol. Esquematicamente:

Combustíveis fósseis → matéria orgânica decomposta → fotossíntese → Sol

Pense nisso: 85% do consumo energético mundial provem essencialmente de energia


solar que ficou armazenada na forma de combustíveis fósseis por milhões de anos8, ou seja,
estamos usando energia solar de milhões de anos atrás. Esse é um bom exemplo do que a
ciência pode fazer por nós. Dar-nos fundamentos para poder enxergar a realidade sob uma
perspectiva nova.

Das fontes mais comuns elencadas na Fig. 2.5, resta analisar o caso do etanol, que não é
um combustível fóssil. Nesse caso a análise é trivial. No Brasil, obtemos o etanol combustível
por meio da fermentação da cana-de-açúcar. Esta, por sua vez é constituída a partir de
material orgânico proveniente da fotossíntese. Esquematicamente:

Etanol → cana-de-açúcar → fotossíntese → Sol

Vemos que a análise das fontes de energia mais comuns corroborou várias vezes a nossa
hipótese de que todas as fontes de energia vêm fundamentalmente do Sol. Poderíamos seguir
com outros exemplos como o vento e a madeira9. Podemos então dizer que nossa hipótese é
verdadeira? Como vimos no capítulo anterior, associar qualquer hipótese ou conceito
científico ao conceito de verdade é caminhar em campo minado. Você pode até sair ileso de
certas incursões. Mas um passo em falso pode ser desastroso. Nesse caso em específico é fácil
mostrar que nossa hipótese não sobrevive a uma análise mais aprofundada. Seria realmente
muito elegante se pudéssemos associar todas as fontes de energia que possuímos ao Sol. Mas
não podemos nos apegar muito a uma ideia ou hipótese10.

Vejamos o caso da energia nuclear. Veremos mais detalhes sobre a energia nuclear no
Cap. 4. Por agora, basta mencionar que a energia nuclear utilizada na Terra é proveniente de

8
Além do oxigênio na atmosfera como discutiremos no Cap.4.
9
Você pode descrever o resultado para esses casos?
10
Muitos cientistas cometem essa imprudência. Até mesmo laureados com prêmio Nobel. Vela o caso
de Linus Pauling e sua polêmica com Daniel Shechtman em torno dos quasicristais.
30
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

elementos pesados como o urânio e o plutônio, que são obtidos por mineração e processados
para o uso específico. O mesmo princípio é usado nas bombas atômicas. Estes elementos
sofrem decaimento radioativo e liberam energia nesse processo. Portanto, temos uma fonte
de energia que não depende do Sol e nossa hipótese já não se sustenta mais.

Outro caso bastante interessante nessa análise é a energia obtida a partir das marés.
Mas, para que possamos apreciar essa questão melhor, seria interessante salientar um
aspecto sobre o uso da energia: toda vez que usamos uma fonte de energia, nós a degradamos
de uma forma11. Note que a queima da gasolina no motor de um automóvel provoca a quebra
das ligações químicas de longas cadeias dos hidrocarbonetos, resultando em água e gás
carbônico. Ao mover um gerador de uma hidrelétrica, a água que estava no nível superior sairá
no nível inferior. O decaimento radioativo do urânio faz com que ele se transforme em outro
elemento estável no fim do processo. Outro caso interessante é o da energia eólica. Mesmo
quando usamos os ventos, nós o degradamos de alguma forma. A Fig. 2.6 ilustra bem esse
processo. Note que antes de passar pela primeira fileira de turbinas eólicas, o vento se
apresenta com uma característica bastante laminar, tornando-se turbulento depois disso. Na
foto, as condições climáticas proporcionaram o aparecimento de neblina (condensação),
tornando a turbulência visível. Ou seja, vemos que as turbinas eólicas degradam a qualidade
do vento ao utilizá-lo para a geração de energia.

Figura 2.6: Foto da fazenda eólica offshore Horns Rev da Dinamarca obtida em fevereiro de 2008. Note como a
qualidade laminar do fluxo eólico é deteriorada conforme o vento passa pelas turbinas.

Considerando esse aspecto, voltemos ao caso das marés. Sabemos que o nível do mar
nas costas do mundo todo sofre uma variação em ciclos diário e mensal que estão associados à
influência da força gravitacional exercida pelo Sol e pela Lua na Terra.

A Fig. 2.7 ilustra uma forma como o movimento das marés pode ser utilizado para a
produção de energia. Nesse caso, o movimento da maré pode ser represado, gerando um
desnível entre o mar e um reservatório. A partir daí, a geração de energia em si é análogo ao

11
Expressamos aqui um significado específico de degradação que é elaborado de forma mais técnica em
um ramo da termodinâmica denominada exergia.
31
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

discutido sobre as hidrelétricas, ou seja, o desnível propicia que um fluxo de água pode ser
formado para mover um gerador elétrico. No caso das usinas de marés, o processo pode ser
revertido para aproveitar tanto o movimento de alta quanto o movimento de baixa das marés.
Portanto, sabemos que é possível extrair energia das marés, cujo ciclo está associado à ação
gravitacional do Sol e da Lua. Uma pergunta interessante: quando produzimos energia a partir
das marés, o que é degradado? Será que isso significa que, se usarmos demais as marés para
produção de energia, a Lua e o Sol cairão na Terra? Essa pergunta pode parecer uma tolice,
mas é uma ótima pergunta. Se em outros casos, a gasolina queima, o urânio decai, a água
passa de um nível superior para um inferior, deve haver algo na energia das marés que é
degradado. Mas o que? Existe uma sutileza no efeito das marés, que normalmente passa
despercebida. Ao se descrever o fenômeno das marés, a ação gravitacional do Sol e da Lua são
destacados, mas existe outro fator necessário: a rotação da Terra é o principal fator que
influencia a cadência das marés. A questão é complexa, pois envolve muitos corpos onde os
principais são a Terra, Sol e Lua. Ademais, além dos oceanos, a Terra possui outros
componentes fluidos, como o magma. Mas há um consenso de que as marés possuem forte
influência na dissipação da energia cinética de rotação da Terra, estimada em uma taxa de
3.75 terawatts. Na atual taxa de desaceleração, o dia na Terra está ficando 0,002 s mais longo
a cada século12. Portanto, há um grande potencial energético nas marés e essa energia já está
sendo dissipada de qualquer forma. A questão é se desejamos aproveitar parte dessa energia
para nossos propósitos. Esse é o grande apelo da geração maremotriz.

Figura 2.7: Diagrama esquemático de uma possível configuração de uma usina de marés.

Por fim chegamos ao ponto da discussão onde fica bem estabelecida a centralidade da
energia do Sol na maior parte das fontes de energia que usamos na Terra. Discutimos com
certo detalhe duas exceções, que enriqueceram bastante o debate. Há pelo menos mais uma
exceção, cuja identificação e discussão ficam a cargo do leitor. Além disso, é importante
salientar que enquadrar a questão sob o ponto de vista da centralidade da energia solar é
apenas uma abordagem possível. No Cap. 1 vimos que as reações nucleares envolvem a

12
Novamente é importante salientar que se trata de um problema que envolve muitos elementos.
Sabemos que muitos terremotos em geral produzem o efeito reverso, ou seja, deixam o dia mais curto
devido à ação de compactação da Terra.
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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

transformação de massa em energia, o que faz das reações nucleares as mais energéticas
conhecidas. Poderíamos então fazer a mesma análise realizada até agora, mas ao invés da
centralidade solar, verificar se todas as fontes de energia se originam fundamentalmente de
reações nucleares. A centralidade da energia solar seria embarcada pelo argumento de que
energia irradiada pelo Sol se origina das reações de fusão nuclear do hidrogênio que ocorre em
seu núcleo. De quebra, essa abordagem também englobaria as usinas que usam da fissão
nuclear do urânio e plutônio e boa parte (80 %) da energia geotérmica. Mas ainda resta a outra
parte, além das marés. Novamente, vemos que a natureza insiste em ser ela mesma, não se
importando com os nossos pontos de vista. Outra abordagem interessante nesse contexto
seria a entrópica, mas não temos condições de incluir essa discussão nesse sentido nesse
momento.

Figura 2.8: Quadro das fontes de energia.

Para facilitar as discussões, os cientistas e engenheiros classificam as fontes de energia


primária em diferentes categorias, como energias renováveis e não renováveis conforme
apresentado na Fig. 2.8. Os combustíveis fósseis são considerados não renováveis, pois são
resultado de um processo que leva milhões de anos, ou seja, suas reservas são exploradas,
mas não há reposição. O etanol ao contrário, é considerara uma fonte renovável, pois os
estoques podem ser repostos com a fermentação de cana-de-açúcar, por exemplo. O quadro
também procura mostrar quais fontes são mais fundamentais e quais são derivadas de outras
fontes. A Fig. 2.8 contextualiza a discussão deste capítulo. Nela, fica reforçada a importância
do Sol e da fotossíntese se desejamos compreender nossas principais fontes de energia. Por
isso, o Cap. 3 é dedicado ao Sol e o Cap. 4 é dedicado à fotossíntese e à combustão.

33
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

2.3 – Energia armazenada na matéria em forma de ligações

Há ainda outra forma de indagar sobre a origem da energia, olhando sob o ponto de
vista das interações fundamentais da natureza. A liberação da energia interna da matéria, seja
na forma de energia química ou nuclear, ocorre por meio de reações. Algumas destas reações
são exotérmicas e liberam muita energia. Vamos inicialmente estudar os estados da matéria
encontrados na natureza e buscar entender as reações que podem ocorrer para liberar suas
energias internas. Há 4 tipos de estados para a matéria que encontramos na natureza que
diferem-se pelo grau de organização dos átomos presentes: plasma, gasoso, líquido e sólido. A
Fig. 2.9 apresenta esquematicamente uma visão desses estados. Vamos iniciar pelo estado
gasoso, passando pelos estados líquido e sólido e depois retornaremos para o estado plasma.

Fig. 2.9: Estados da matéria encontrados na natureza.

No estado gasoso o grau de organizações das moléculas constituintes da matéria é


muito baixo. Há choque entre as várias moléculas, mas estas não estão ligadas. O modelo de
gás ideal, por exemplo, considera que todas as moléculas estão completamente livres e por
isto ele é aplicável para qualquer gás. Cada molécula é formada a partir de ligações químicas,
mas as moléculas entre si não tem nenhuma ligação no modelo de gás ideal. No estado líquido
já ocorre ligações entre as moléculas constituintes da matéria, contudo pode ocorrer
deslizamento de planos de ligação de forma que a estrutura organizacional das moléculas não
é uniforme. No estado sólido, as moléculas ou átomos constituintes da matéria estão bem
organizados e formam redes cristalinas, conforme mostra a Fig. 2.9.

Sabemos que cedendo calor a uma substância, seus átomos ou moléculas constituintes
adquirem mais energia cinética. A energia térmica eleva a temperatura da substância de tende
a desorganizar sua estrutura. Em seu interior esta energia produz movimentos de translação
(vai e vem), depois rotação e finalmente vibração. Se continuarmos cedendo calor à substância
eventualmente suas ligações químicas são rompidas. Quando uma substância se funde ou
entra em ebulição, as ligações químicas intermoleculares se alteram, mas não as ligações
químicas moleculares. Durante a mudança de fase de uma substância do estado sólido até o
estado gasoso via aquecimento este é o processo ocorre.

Se continuarmos cedendo calor à substância eventualmente chegaremos ao estado


plasma, o quarto estado da matéria. Neste estado todas as ligações químicas moleculares e

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

atômicas são quebradas. Existe basicamente matéria ionizada em movimento: núcleos


atômicos (+) e elétrons (-). Exemplos de plasma encontrados na natureza são a chama ou fogo
e o interior do Sol. No estado gasoso temos menor interação intermolecular enquanto no
plasma temos menor interação entre núcleos atômicos e elétrons. Em estado de plasma a
temperatura da matéria é muito elevada. A temperatura no centro do Sol é de milhões de
graus Kelvin. Já na superfície solar, assumindo o modelo de corpo negro13, a temperatura é
aproximadamente 6000 K (ver Capítulo 4).

Nós podemos extrair energia da matéria nos 4 estados apresentados na Fig. 2.9 por
meio de reações específicas. Para matéria nos estados sólido, líquido e gasoso podemos
recuperar energia por meio de reações químicas e reações nucleares exotérmicas. Para a
matéria no estado plasma podemos recuperar energia por meio de reações nucleares.

2.3.1 – Reações químicas utilizadas para gerar energia

De todas as reações químicas possíveis na natureza, somente algumas viabilizam a


produção de energia para a sociedade. A razão disso é que é necessário haver a
disponibilidade de reagentes, a reação ser viável técnica e economicamente e produzir energia
em uma forma também técnica e economicamente viável. A mais conhecida é a combustão
que libera energia na forma de calor e é utilizada em uma grande variedade de aplicações e
nas usinas termelétricas baseadas nas fontes fósseis de energia.

Devido a sua importância, as reações de combustão serão tratadas com a devida


profundidade no Cap. 5 juntamente com os processos de respiração e fotossíntese.

2.3.1a – Combustíveis químicos de termelétricas: carvão, petróleo e o gás natural

Primeiramente, é interessante esclarecer que quando se fala em carvão, nos referimos


ao carvão mineral, mais comumente usado nas usinas termelétricas e siderúrgicas. Muitas
pessoas associam o termo “carvão” ao carvão vegetal, muito comum nos churrascos de fim de
semana, que são obtidos a partir da queima incompleta da madeira.

Qual é a diferença entre carvão e petróleo? Quando se lê a respeito, ambos são


descritos como resultado de material orgânico submetido a um processo de decomposição
evolvendo alta pressão e temperatura por milhões de anos. De forma simplificada, pode se
dizer que o primeiro é sólido e o segundo é líquido. Mas essa diferenciação não nos leva muito
longe. A resposta para essa questão é complexa e multifacetada

Comumente se diferencia o carvão do petróleo associando o primeiro à vegetação


terrestre e o segundo a micro-organismos marinhos como o zooplancton e algas. Porém
existem jazidas de carvão associadas a algas marinhas, algumas datadas do período pré-
cambriano, ou seja, anterior à vegetação terrestre.

13
Veremos o conceito de corpo negro no Cap. 4.
35
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Uma interessante questão é: se o petróleo é normalmente associado à decomposição de


organismos marinhos, porque há jazidas nos continentes, como no Texas? Deve-se levar em
conta que o processo de formação do petróleo leva milhões de anos. Pesquise como era a
Terra há 200 ou 300 milhões de anos atrás. A geologia terrestre evoluiu muito de lá para cá e
novos oceanos foram formados ao mesmo tempo em que regiões alagadas secaram. Além
disso, a crosta terrestre tem uma estrutura complexa, apresentando regiões porosas
permitindo o deslocamento das jazidas ao longo das eras geológicas.

Assim como o carvão, o petróleo pode se apresentar em composições e consistências


diferentes. O petróleo em si é uma mistura de várias substâncias, a maior parte delas
hidrocarbonetos (mais detalhes sobre os compostos orgânicos veremos no Cap. 4) que podem
variar desde substâncias parafínicas, naftênicas e aromáticas, bem como elementos gasosos
(muitas vezes jazidas de petróleo são acompanhadas por reservas de gás natural) cujas
composições podem variar de acordo com a jazida considerada. Para a classificação do
petróleo, os aspectos mais importantes são a densidade (leve ou pesado) e o conteúdo de
enxofre (doce ou azedo). O petróleo leve e doce é mais desejado, pois rendem maior
quantidade de gasolina no refino e atendem com facilidade as regulamentações com relação à
quantidade de enxofre.

Já a classificação do carvão está relacionada com a quantidade de carbono em sua


composição. Esse parâmetro é importante, pois quanto mais rico em carbono, maior é o poder
calorífico do carvão. As denominações são linhito (30% de carbono), sub-betuminoso (40%),
betuminoso (50 a 70%) e antracito (90%). Acima destes ainda há o grafite (100%), cuja
aplicação é diferenciada, pois seu poder calorífico é inferior ao antracito, sendo usado para
fabricação de lápis e lubrificantes sólidos, dentre outras coisas. O tipo de carvão mais comum é
o betuminoso (também chamado de hulha). O termo “betuminoso” vem de betume, que
designa uma mistura líquida inflamável de alta viscosidade e cor escura presente no carvão. O
betume também pode ser obtido do petróleo e é popularmente conhecido como piche, sendo
o principal componente do asfalto. Vemos aí uma evidência de que a distinção entre petróleo
e carvão não é definitiva.

Com o avanço da geologia, foi possível identificar as eras geológicas que mais
contribuíram para as reservas atuais de carvão. Dentre elas, se destaca o período carbonífero,
que estendeu de 360 a 300 milhões de anos atrás. Nesse período, a concentração de oxigênio
na atmosfera era de 35%, bem mais alta que a concentração atual que é de 21%. Isso permitiu
formas de vida distintas das quais conhecemos hoje. Promoveu o gigantismo de insetos e
anfíbios, por exemplo, onde uma libélula poderia ter até 70 cm de comprimento. As plantas,
por sua vez, fizeram vasto uso de lignina, uma macromolécula associada à celulose, cuja
função é dar rigidez estrutural, impermeabilidade e resistência a ataques de micro-organismos.
A relação entre casca e madeira nas árvores da época chegou a 8:1 (ou seja, a seção
transversal do tronco de uma árvore era quase toda tomada pela casca), comparado a
proporção típica atual que é de 1:4. Isso fez com que estas ficassem praticamente imunes a
ação de micro-organismos responsáveis pela decomposição e ficassem conservadas até serem
soterradas e entrassem em processo de fossilização.

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Até os dias atuais, carvão, petróleo e gás natural representam as principais fontes de
energia que tem como fundamentação as interações químicas e que são obtidas por meio de
combustão.

2.3.1b – Pilhas e Baterias

De outra forma, há reações que liberam energia na forma de elétrons e que permitem
a obtenção direta de eletricidade. Estas reações são denominadas reações eletroquímicas e as
monitoramos observando a corrente elétrica que produzem. Essas reações são utilizadas em
pilhas elétricas, baterias, acumuladores de energia e outros portadores de energia e tem
aplicações em celulares, automóveis, rádios, sistemas autônomos de energia como sistemas de
emergência e de standby. Nesta classe de reações também aparecem os dispositivos
chamados células a combustível de hidrogênio, que são importantes para gerar energia
elétrica com H2 e contornam o processo de combustão.

Como explicar a energia das pilhas e baterias? De certo é fascinante que a disposição
de diferentes substâncias químicas pode gerar energia. Como explicar isso? Quando
discutimos a Fig. 2.2 no contexto do funcionamento de uma hidrelétrica, vimos como a energia
potencial gravitacional da água pode se transformar em energia mecânica e posteriormente
em elétrica. Nesse caso, existe a atuação da força da gravidade e do campo gravitacional da
Terra. No caso das pilhas e baterias, lidamos com potenciais de origem eletromagnética.
Devido à natureza desses potenciais o entendimento é menos intuitivo. A Fig. 2. 10 procura
fazer uma comparação entre o potencial gravitacional e os potenciais importantes para
entendermos a energia de uma bateria.

Fig. 2.10: Representação dos principais potenciais de origem eletromagnética para a compreensão do
funcionamento das pilhas e baterias e sua analogia com o potencial gravitacional.

Posicionando uma massa, como uma maçã, a certa altura em relação ao solo, podemos
estabelecer uma diferença de potencial gravitacional que está fundamentada na força
gravitacional. De forma análoga, a Fig. 2.10 mostra duas placas carregadas com cargas opostas,
o que gera uma força de atração entre elas. Fundamentado nessa força elétrica,
estabelecemos uma diferença de potencial elétrica, também chamada de voltagem14. Uma

14
No Cap. 8 definimos a voltagem de uma forma mais formal.
37
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

pilha comum possui uma diferença de potencial elétrica de 1.5 Volts entre seus polos. Mas
como isso é obtido? Sabemos que, devido às interações de atração e repulsão, as cargas
elétricas tendem a se neutralizar em situações normais. Nesse sentido, as pilhas e baterias
fazem uso de substâncias específicas, que, quando dispostas da forma correta, acabam
gerando essa diferença de potencial. As perguntas que naturalmente vem é: como? E por quê?
A resposta está no fundamento da ciência química. Não são só as interações elétricas que
determinam o comportamento químico das substâncias. Se fosse assim, todos os elementos se
comportariam como os gases nobres. Por razões que somente são explicadas formalmente
com a mecânica quântica, certas configurações eletrônicas dos elementos são
energeticamente mais favoráveis e as substâncias se adequam a isso realizando ligações
químicas. Isso é simbolizado na Fig. 2.10 com a regra do octeto, que diz que uma camada
eletrônica externa com 8 elétrons é energeticamente mais favorável. Note que a regra do
octeto é apenas uma indicação de um comportamento geral e há várias exceções das quais
podemos citar o hidrogênio, o hélio e os metais de transição. Ou seja, indicamos aqui como
“regra do octeto” o potencial que a maior parte dos elementos químicos tem, em maior ou
menor grau, de realizar ligações químicas com outros elementos.

A energia da configuração das camadas eletrônicas, simbolizada pela regra do octeto,


nos ajuda a compreender a formação e estabilidade das substâncias. Como exemplo, a Fig.
2.11 ilustra dois casos que envolvem o oxigênio, que possui 6 elétrons na última camada.
Dentre uma miríade de compostos químicos envolvendo o oxigênio, mostramos aqui o caso do
oxigênio molecular e o dióxido de carbono, que serão importantes em discussões futuras.
Relembrando o que discutimos no contexto da Fig. 2.1, vimos que a bola de boliche no chão
representa uma configuração energeticamente mais favorável (e provável) do que a
configuração em que ela se encontra no topo. De forma análoga, a configuração em que os
dois átomos de oxigênio estão ligados formando a molécula, e consequentemente
satisfazendo a regra do octeto, é mais favorável do que a configuração em que estes átomos
se encontram isolados. De forma alternativa, os dois átomos de oxigênio podem se ligar a um
átomo de carbono, formando dióxido de carbono. Note que a diferença de energia entre os
estados isolado e ligado nesse último caso é maior do que no caso da molécula de oxigênio.
Veremos do Cap. 5, que esse fato explica em parte porque a reação de combustão, onde o
oxigênio é um dos reagentes e o dióxido de carbono é um dos produtos, é exotérmica. Na
combustão, a energia química é transformada em calor. O que acontece nas baterias e pilhas é
que essa energia química se transforma em potenciais elétricos que induzem as correntes
elétricas.

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 2.11: A regra do octeto nos diz que a configuração eletrônica da última camada

Vamos ilustrar isso com um caso específico, construindo uma bateria usando zinco e
cobre. Note que estes são metais de transição onde a “regra do octeto” é adaptada. Nos casos
do zinco e cobre, eles tem a tendência de ganhar ou perder os elétrons da última camada. Essa
tendência é formalmente definida por meio do potencial de oxidação, que é diferente para
cada elemento. Considere o esquema da Fig. 2.12 onde temos 2 béqueres com soluções de
sulfato de zinco e sulfato de cobre, ZnSO4 e CuSO4, em cada um. Dentro do béquer há
eletrodos de Zn e Cu ligados por um fio. Nas soluções temos íons de Zn++ e SO4-- no béquer da
direita e Cu++ e SO4--. O esquema mostrado na figura é o de uma reação de oxirredução em
que ocorre oxidação no eletrodo de Zn no béquer da esquerda e redução no eletrodo de Cu no
béquer da direita. Como o potencial de oxidação do Zn é superior ao do Cu inicia-se um
processo de oxidação deste eletrodo (corrosão) aumentando a quantidade de ions Zn++ no
béquer da direita. O eletrodo de Zn inicialmente, sem carga elétrica, começa a acumular
elétrons (carga negativa) que corre pelo fio até o eletrodo de Cu. Este atrai íons de Cu++ que
precipitam no eletrodo de cobre. O eletrodo de Zn (ânodo) libera Zn++ elétrons para a solução
retendo elétrons e o eletrodo de Cu (cátodo) recebe Cu++ neutralizando os elétrons recebidos.
Do ponto de vista da corrente no fio, o ânodo “empurra” os elétrons e o cátodo “puxa” os
elétrons. Portanto há uma diferença de potencial entre os terminais dos dois eletrodos.

Fig. 2.12: Reação eletroquímica em uma pilha.

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Note que o eletrodo de Zn perde material para a solução que tende a ficar mais
concentrada em Zn++ enquanto o eletrodo de Cu retira material da solução que tende a ficar
menos concentrada em Cu++. Se inicialmente ambas soluções estavam neutras eletricamente,
após o início do processo a da esquerda tende a ficar mais positiva, pois tem menos SO4-- que
Zn++, e a da direita tende a ficar mais negativa, pois tem menos Cu++ que SO4--. Este desbalanço
de cargas inibe a reação e para continuá-la é necessário manter ambas as soluções neutras.
Assim adiciona-se a ponte salina com uma solução KCl para fornecer íons necessários para
equalizar as cargas nas soluções. A ponte salina é um tubo em U tamponado nas pontas com
um material poroso. Íons Cl- são atraídos para a solução do béquer contendo o eletrodo de Zn
enquanto íons K+ são atraídos para a solução do béquer contendo o eletrodo de Cu. Esta
migração de íons permite manter as soluções neutras nos dois béqueres. Os íons da ponte
salina devem ser inertes e não reagirem com Zn e Cu e não atrapalharem a reação
eletroquímica nos eletrodos.

A reação de oxirredução vai ocorrer enquanto as soluções estiverem neutras, houver


Zn no eletrodo da esquerda, Cu++ na solução do béquer da direita e o fio elétrico conectar os
dois eletrodos. Dada a corrente que passa pelo fio ligando os dois eletrodos observa-se
também uma diferença de potencial 9 Q entre seus terminais. Esta diferença de potencial é
dada pela diferença do potencial de oxidação do Zn e do Cu. A Tabela 2:2 apresenta o
potencial de oxidação de alguns materiais (o potencial de redução é o negativo do potencial de
oxidação). No caso da pilha Zn-Cu a diferença de potencial obtida é
9 Q = &0,76 V – &– 0,34 V'' = 1,1 V.

Em resumo temos que na reação eletro química, os elétrons são transferidos pelos
eletrodos e fio elétrico e os íons se movem na solução denominada eletrólito. Esta recebe íons
da ponte de hidrogênio para se conseguir a neutralização de sua carga elétrica. O eletrólito é o
meio por onde circulam os íons e o eletrodo é o meio onde circulam os elétrons. Uma das
características do eletrólito é impedir a circulação dos elétrons de forma que eles possam ser
transferidos pelo fio elétrico e possam ser utilizados para realizar trabalho elétrico.

Tab. 2.2: Potencial de oxidação de alguns materiais utilizados em pilhas.


Material Potencial de oxidação
(V)
TU: TU → TU W + 1 X Y +3,04
Z[: Z[ → Z[ W + 2 X Y +0,76
JG: JG → JG W + 2 X Y -0,34
\U: \U → \U W + 2 X Y +2,25
L: L → 2L W + 2X Y 0,0

A Fig. 2.12 exemplifica uma bateria para gerar eletricidade oriunda de energia química.
Se colocarmos um dispositivo elétrico qualquer entre os terminais dos eletrodos este estará
submetido a uma diferença de potencial 9 Q e a uma corrente ]. Assim neste dispositivo pode
ocorrer a realização de trabalho elétrico para ascender lâmpadas, partir um motor de veículo,
funcionar um computador, etc. A bateria, conforme mostramos na Fig. 2.12 constitui uma
fonte de energia elétrica de origem química. Essas baterias tiveram grande popularização na
40
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sociedade para viabilizar o uso de telefones celulares, calculadoras, relógios e outros


equipamentos portáteis.

Há outros tipos de bateria utilizados para funções semelhantes como as baterias de


veículos que utilizam outros materiais (chumbo e ácido) e as alcalinas4. As baterias alcalinas
estão entre as mais fabricadas no mundo e é usada para aplicações domésticas como rádios,
brinquedos, etc. Essas baterias tem este nome porque utiliza como eletrólito hidróxido de
potássio. Os eletrodos são zinco e dióxido de manganês. Essas baterias que utilizam energia
química e depois são descartadas são chamadas de baterias primárias.

As baterias podem também ser recarregáveis para serem utilizadas novamente. Essas
baterias são chamadas de baterias secundárias, acumuladores, armazenadores de carga ou
portadores de carga. Elas re-acumulam energia por meio por meio de reações eletroquímicas
reversíveis. Vários tipos de materiais para eletrodo e eletrólito são utilizados. Os mais comuns
são chumbo-ácido, níquel-cadmio (NiCd), níquel-hidretos metálicos (NiMH), lítio-íon (Li-íon) e
lítio-íon polimérico. O desenvolvimento de baterias de Li permitiu uma redução do peso das
aplicações portáteis e tornou-se uma característica importante desses dispositivos.

2.3.1c – Células a combustível de hidrogênio

Outro dispositivo que pode gerar eletricidade a partir de reações eletroquímicas são as
células a combustível. Uma bastante conhecida é a célula de hidrogênio na qual ocorrem
reações eletroquímicas de oxidação do hidrogênio e de redução do oxigênio ou outro agente e
produz-se eletricidade. Células a combustível diferem de pilhas por utilizarem uma
alimentação de H2 e, por exemplo, O2 para gerarem eletricidade continuamente. Em pilhas e
baterias os materiais reagentes encontram-se nos dispositivos. A primeira utilização prática
das células a combustível foi feita pela NASA para gerar potência elétrica para satélites.

Nas células a combustível de hidrogênio o gás H2 é bombeado continuamente na célula


em um de seus lados e gás O2 (normalmente ar) é bombeado continuamente pelo outro. O
ânodo é coberto com um catalisador para maximizar a reação de oxidação do o hidrogênio. O
elétron é coletado pelo ânodo e o íon H+ ou próton se movimenta pelo eletrólito em direção
ao outro lado da célula. O ânodo transfere elétrons para o cátodo por meio do fio produzindo
corrente elétrica que pode ser utilizada para realizar trabalho elétrico. Do outro lado o
oxigênio é reduzido no cátodo, também coberto por um catalisador, ocorre uma reação entre
elétrons, íons H+ e O2 para produzir água. Os eletrodos são porosos para fornecerem maior
área de contato para as reações de oxidação e redução e os catalisadores normalmente
utilizados são platina sobre o ânodo e níquel sobre o cátodo.

As reações com H2 e O2 são

â[F F: 2L → 4L W + 4X Y &2.9'

5á`F F: K + 4L W + 4X Y → 2L K &2.10'

e vemos que os produtos são elétrons (corrente elétrica) e água. Células a combustível
convertem energia química de um combustível diretamente em eletricidade sem a mediação
de um ciclo de combustão. Em outras palavras, não há a conversão de calor em trabalho e,
portanto, a eficiência deste sistema não é descrita pela 2ª lei da Termodinâmica. Células de
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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

hidrogênio podem apresentar eficiências elevadas e, adicionalmente, tem a vantagem de


liberar água que é um produto amistoso ao ser humano.

Na economia do hidrogênio este gás é usado para gerar eletricidade em fontes


estacionárias e também para mover veículos. Contudo as dificuldades desta tecnologia são a
produção do gás H2 e seu transporte e armazenamento. O hidrogênio é um elemento muito
comum na natureza, entretanto sempre aparece associado a moléculas ou materiais que não o
H2. A sua produção é bastante custosa e requer grande quantidade de energia. Pode ser obtido
por meio da eletrólise da água utilizando qualquer fonte de energia elétrica ou a partir de
hidrocarbonetos das fontes fósseis. O transporte e armazenagem de H2 não são processos
simples e requerem alta pressão ou liquefação via baixíssimas temperaturas. Os maiores
desafios desta tecnologia estão ligados a estes fatores. Atualmente a maior parte do H2
utilizado pela sociedade é produzido a partir de combustíveis fósseis.

2.3.1d – Outras fontes de energia a partir das ligações químicas

Até aqui procuramos dar um entendimento sobre as origens e fontes de energia.


Ressaltando que nos próximos capítulos aprofundaremos questões mais fundamentais como
combustão, fotossíntese, respiração e mesmo temas que vão além das interações químicas
como energia nuclear, energia elétrica e máquinas térmicas. Não temos a pretensão de
esgotar o tema de fontes de energia nesse livro. Mas certas fontes de energia merecem ao
menos uma menção para que fique no radar do leitor.

Muito se fala da energia solar na forma de células fotovoltaicas. Apesar da relevância,


principalmente no assunto da sustentabilidade, o entendimento do funcionamento das células
fotovoltaicas representaria uma digressão bastante exigente para os objetivos do livro. Nesse
contexto, basta que o leitor saiba que uma célula fotovoltaica converte energia luminosa
diretamente em energia elétrica, e que o mecanismo depende da disposição e de interações
químicas entre elementos da célula.

Outras fontes de energia que valem menção são as que convertem energia térmica
diretamente em energia elétrica. Vários efeitos físico-químicos podem ser usados com esse
objetivo dentre os quais o efeito Seebeck e o efeito Peltier. Estes fenômenos estão muito
presentes em circuitos eletrônicos e tem aplicação difundida em nichos tecnológicos como
satélites e sondas submarinas etc.

2.4 – Aprofundamento: Energia interna e a conservação de energia em um sistema isolado

Após discutirmos o que é energia e diferentes formas que encontramos na natureza,


vamos utilizar um sistema bem simples para ilustrarmos como se realiza uma análise mais
tradicional de um sistema de transformação energética em engenharia. De onde retiramos a
energia que usamos para fazer todas as nossas atividades? Onde ela está armazenada (o que
chamamos de energia interna)? Por exemplo, a partir da análise que faremos do sistema
ilustrado na Fig. 2.13, veremos que a energia retirada dos rios, marés e vento está ligada a
energia cinética dos rios, mares e ar. No caso das fontes nuclear, fósseis e a biomassa, a

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energia encontra-se internalizada na matéria e dela extraímos. Contudo, os processos são


distintos.

Para responder esta questão é interessante analisarmos o sistema apresentado na Fig.


2.13. Nela uma mão puxa um bloco de massa fazendo uma força , este, inicialmente como
velocidade , se desloca verticalmente e é acelerado. A força da gravidade atua sobre a massa
do corpo exercendo uma força a para baixo contrária à força . O balanço de força sobre o
corpo é mostrada na figura assim como a 2ª lei de Newton aplicada a este sistema.

Fig. 2.13: Sistema mostrando uma mão puxando um bloco de massa m com uma força F. A polia é ideal (sem atrito).

Utilizando o mesmo procedimento do Cap. 1, Eq. 1.8, sabemos que o trabalho


realizado pela força resultante é igual à variação de energia cinética do bloco

ã"
= − #$$$% − a = − . &2.1'

onde = N − N é a diferença entre as alturas final e inicial do bloco. O segundo termo a é


o trabalho realizado pela força da gravidade, neste caso, contrário ao movimento de elevação
do bloco. Sendo a força a = , onde é a aceleração da gravidade, obtemos depois de
passar este termo para o lado direito da Eq. 2.1

= − + 0N − N 1 FG = − + N − N . &2.2'

O terceiro e quarto termos do lado direito nós reconhecemos como a energia potencial
gravitacional nos pontos N e N . A energia potencial é normalmente definida como o trabalho
realizado contra uma força conservativa levando o sistema em uma condição tal que esta força
possa atuar. Força conservativa é aquela que não tem efeitos dissipativos como o atrito, por
exemplo. As forças da gravidade, elétrica, magnética e elástica são exemplos de forças

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

conservativas e podem ser descritas por meio do conceito de energia potencial. Chamando de
9 = N de energia potencial gravitacional temos

= − +9 −9, &2.3'

mostrando que a força da mão da pessoa causou um aumento das energias cinética e
potencial gravitacional do sistema.

Entretanto, o estado final do sistema ainda não está bem descrito, pois a mão da
pessoa está contida no sistema que é isolado e certamente a realização de trabalho pela
pessoa deve ter algum impacto nela ou na sua mão. Se a mão estivesse fora do sistema
poderíamos dizer que o trabalho que atravessou sua fronteira causou variações de energia
cinética e potencial gravitacional. Mas em um sistema isolado, de onde veio esta capacidade
da mão realizar trabalho e qual é a consequência deste ato?

Para responder a esta questão definimos a energia interna do sistema, . Esta energia
interna permite o sistema realizar trabalho ou liberar calor, dependendo dos processos
envolvidos. Neste caso a pessoa tem energia interna devido a sua alimentação e os processos
metabólicos do seu corpo humano (ATP). No início do processo ela tinha uma energia interna
e após realizar o trabalho , consumiu parte de sua energia interna, ATP, ficando ao final
com , de tal forma que

= − &2.4'

com maior que pois ela despendeu energia ao realizar o trabalho . A Eq. 2.4 nos diz
que sistemas complexos armazenam energia e podem liberá-la para realização de trabalho.
Podemos generalizar dizendo que podem também liberar calor e chamamos esta energia
armazenada de energia interna.

As Eqs. 2.3 e 2.4 permitem estabelecer uma equação de conservação de energia entre
dois estados de sistemas isolados. Substituindo a Eq. 2.4 na Eq. 2.3 e rearranjando os termos
obtemos

+9 + = +9 + . &2.5'

A Eq. 2.5 estabelece que em um sistema isolado o processo descrito na Fig. 2.13 leva a uma
alteração nos diversos tipos de energias do sistema. A energia interna da pessoa (mão) é
transformada em energia cinética e energia potencial. O corpo humano, parte do sistema,
contribuiu com sua energia interna para viabilizar as alterações de energia cinética e potencial
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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

do bloco. A Eq. 2.5 também mostra que em um sistema isolado a energia total inicial é igual à
energia total final, isto é há a conservação da energia total do sistema. Se generalizarmos esta
equação para todos os casos temos uma equação de conservação de energia que é muito útil
para a solução de problemas de engenharia.

Se admitirmos que as Eqs. 2.4 e 2.5 são gerais podemos pensar em encontrar meios de
extrair energia de estruturas existentes na natureza e realizar trabalho útil para a sociedade. A
estrutura mais comum que permite armazenar energia na natureza é a matéria. A matéria, de
forma semelhante ao ser humano, contém energia armazenada em diferentes formas de
energia interna que é a soma de todas as energias microscópicas presentes no seu interior. Os
materiais combustíveis são aqueles que liberam energia interna por meio de diversos tipos de
reações. A Fig. 2.14 mostra uma estrutura atômica ou molecular e uma estrutura nuclear. A
interação dos elétrons de diversos átomos formam moléculas e estruturas metálicas,
cristalinas ou de outros tipos, as mantém unidas e ordenadas. Estas estruturas tem energia
interna que denominamos de energia química porque estão ligadas aos diversos tipos de
ligações químicas possíveis entre os átomos. As ligações químicas são interações entre os
elétrons dos vários átomos e são de origem elétrica e magnética.

Fig. 2.14: Energia interna química e nuclear que são utilizadas para a geração de energia.

A Fig. 2.14 também mostra a estrutura do núcleo atômico com dois tipos de partículas:
prótons com carga elétrica positiva e nêutrons, sem carga elétrica. Estas partículas interagem
entre si por meio da interação nuclear forte para formar os vários tipos de núcleos atômicos
que existem na natureza. A estrutura do núcleo contém energia interna denominada energia
nuclear. A reação química de combustão e a reação nuclear de fissão e fusão liberam energia
na forma de calor que pode ser utilizada para realizar trabalho útil para a sociedade.

Podemos utilizar o conceito de energia interna também para estudar sistemas de


engenharia. Se considerarmos um automóvel como um sistema isolado, de onde vem a
energia que o permite movimentar-se? A energia interna do sistema automóvel está
armazenada no tanque de combustível e esta é liberada para produzir movimento por meio
dos processos complexos desta tecnologia. Parte da energia que utilizamos na sociedade é

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

recuperada em centros de transformação (empreendimentos tecnológicos complexos) a partir


de diversos tipos de materiais (combustíveis). Esses centros de transformação possibilitam a
recuperação de sua energia interna (energia primária) transformando-a em energia secundária
útil à sociedade.

Questionário

1 – No texto, discutimos dois exemplos de fontes de energia que não se adequam à hipótese
de que tenham origem fundamental no Sol, e indicamos que há, pelo menos, mais uma fonte
bastante conhecida que não se enquadra nessa visão. Qual é essa fonte? Justifique.

2 – O que é freio regenerativo? Qual é a motivação do freio regenerativo? Quais são os


veículos que usam?

3 – De onde vem a energia do rifle de Gauss? Responda a pergunta da mesma forma que
analisamos a questão da origem da energia da bola de boliche no topo do Bloco B.
(https://www.youtube.com/watch?v=x7rvSsr2d4Q).

4 - O paraquedas é um dispositivo desenvolvido para gerar arraste. Ou seja, não permitir que a
energia potencial gravitacional do paraquedista seja toda transformada em cinética. O modelo
da Fig. 2.14 é não manobrável, muito comum no exército. Nesse modelo, a velocidade
terminal (velocidade de queda quando aberto) é segura. Pesquise na internet o recorde de
2014 conquistado por Ernesto Gainza, que aterrissou com o menor paraquedas da história. Sua
velocidade terminal é bem maior.

Fig. 2.15: Modelo de paraquedas usado comumente no exército.

Observe a aterrissagem com o paraquedas pequeno. Note que é necessária uma técnica mais
elaborada para uma aterrissagem sem ferimentos. Qual é a técnica usada pelo paraquedista
para aterrissar sem ferimentos? Discuta em termos de conversão de energia.

5 – Qual é a diferença entre o carvão vegetal e o mineral?

6 – Porque há regulamentação sobre a quantidade de enxofre nos combustíveis?

7 – Identifique o poder calorífico dos diferentes tipos de carvão. O que determina essa
diferenciação entre o poder calorífico de cada tipo? Por quê?

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

8 – Como você explica o fato de que o betume pode ser extraído tanto do petróleo quanto do
carvão?

Exercícios de revisão – Energia se conserva e se transforma

9 – Uma panela com 2 litros de água é colocada no fogão a uma temperatura inicial de 25 °C. A
chama do fogão é acesa para o aquecimento da água. Calcule a temperatura da água após a
queima de 10g de gás de cozinha. Considere que o gás de cozinha é composto de butano.
Considere que apenas 40% da energia liberada na combustão é efetivamente transferida para
a água, sendo o resto absorvida pela panela e pelo ambiente. Procure os parâmetros
necessários na internet.

10 – Um forno de micro-ondas tem 3000 W de potência. Calcule quanto tempo ele leva para
ferver 300 ml de água inicialmente a uma temperatura de 23 °C. Considere que apenas 60% da
energia elétrica usada pelo micro-ondas é transferida para a água.

11 – Em um recipiente são misturados (ou colocados em contato, pois não se misturam) 200
ml de óleo vegetal a uma temperatura de 130 °C com 300 ml de água a uma temperatura de
19 °C. Calcule a temperatura após o equilíbrio térmico. Despreze as perdas para o ambiente.
Considere a densidade do óleo 0,92 g/ml com calor específico de 1,67 J/g.K, e o calor
específico da água é 4,19 J/g.K.

12 – A eficiência de um motor automobilístico é de ~30%. Considere o seguinte: você pega seu


carro pela manhã e vai ao trabalho. Ao fim do dia você retorna à sua casa e estaciona seu carro
novamente na garagem. Pergunta: Qual é a porcentagem da energia presente na gasolina
utilizada no trajeto que foi transformada em calor? (dica: pode parecer uma questão sobre
engenharia, mas é, na realidade, uma questão sobre física. A parte de engenharia se relaciona
com a questão 2).

13 – Um carro de 450 kg, movido a gasolina encontra-se parado em um semáforo em uma


grande avenida. Assim que o sinal verde acende, o motorista pisa no acelerador, atingindo
uma velocidade de 60 km/h após 12 segundos. Considerando uma eficiência de 25 % do
motor, calcule o volume (em ml) de gasolina usado pelo motor nesse processo. Procure as
informações necessárias na internet.

14 – Considere a situação da Fig. 2.1. A bola de boliche cai. Calcule a velocidade da bola ao
atingir o solo considerando que o Bloco B tem 44 m de altura.

15 – (Desafio: problema em aberto) Estime o consumo energético em termos de potência, do


campus de sua universidade ou escola. Estime a área coberta por placas solares para abastecer
energeticamente sua escola ou universidade. Considere uma eficiência de 40 % e que o sol
esteja no zênite. Procure os dados necessários na internet.

16 – O que tem mais energia, uma banana de dinamite ou uma barra de chocolate de 100g?
OBS: Uma banana de dinamite, dessas imortalizadas em filmes de faroeste possui cerca de 1

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MJ (mega Joule) de energia. Pesquise sobre o conteúdo energético do chocolate e tire suas
conclusões.

17 – A Fig. 2.16 mostra uma esteira que simula o exercício de subir escadas. Discuta com os
colegas as semelhanças e diferenças entre os exercícios. Sob o ponto de vista energético existe
uma diferença fundamental entre subir na esteira e subir em uma escada real. Qual é essa
diferença?

Fig. 2.16: A esquerda temos um aparelho de ginástica que simula a subida de escadas e a direita temos uma escada
real.

Créditos das figuras

2.1: Arte própria


2.2: Arte própria
2.3: Por John M. Evans/USGS-USA Gov - http://ga.water.usgs.gov/edu/watercycle.html, Domínio público,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=853359
2.4: Arte própria com elementos livres para uso tirados da internet.
2.5: Arte própria
2.6: Fonte: Photograph by CHRISTIAN STEINESS - http://twistedsifter.com/2011/10/picture-of-the-day-amazing-
turbine-clouds-in-the-north-sea/
2.7: Arte própria
2.8: Arte própria
2.9: Arte própria
2.10: Arte própria
2.11: Arte própria
2.12: Arte própria
2.13: Arte própria
2.14: Arte própria
2.15: By Unknown - taken from en:wp, uploaded by RadicalBender, Public Domain,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=186488
2.16: Fonte: dir. By Marco Verch - Treadclimber / Treppenlaufband, CC BY 2.0,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=48213415
Esq: http://www.publicdomainpictures.net/view-image.php?image=27421&picture=long-stair

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3 - Energia na Sociedade

A energia é utilizada em várias atividades da sociedade, como transporte, força motriz,


iluminação, etc., e sua disponibilidade proporciona bem-estar à sociedade, pois possibilita a
realização de várias atividades importantes ao homem que não eram sequer imaginadas no
passado. A energia move o crescimento econômico e promove o desenvolvimento de uma
sociedade, permitindo que a mesma possa atingir e usufruir de um alto padrão de vida. A
geração, o transporte e o uso de energia, contudo, causam outros efeitos além dos
inicialmente pensados afetando de formas variadas o meio ambiente e também a sociedade
(poluição, mudanças climáticas, doenças ou morbidade para as populações humanas e de
animais, alterações da biodiversidade, desertificação de regiões e outros impactos). À medida
que uma sociedade se desenvolve e aumenta o uso de energia ocorrem duas coisas: aumento
do bem-estar de seus habitantes e aumento de impactos socioambientais adversos.

Devido a isto, a sociedade iniciou questionamentos importantes a respeito do uso de


energia como: 1) Quanta energia está disponível no meio ambiente para uso pela sociedade?
Quais são as fontes de energia utilizáveis e como é a cadeia de energia? 2) Quais são os
propósitos do uso de energia pela sociedade ou seus usos finais? São eles justificáveis? 3)
Quais são os impactos das várias tecnologias energéticas no meio ambiente e na sociedade?
Todos estes processos são sustentáveis? 4) Qual é o custo da energia? Ou melhor, qual seu
custo efetivo levando em conta, além dos custos de produção e distribuição, também os
custos oriundos de impactos ambientais e sociais que ela gera e que a sociedade, de uma
forma ou de outra, tem que pagar para garantir o bem estar social?

Todas essas questões são atualmente consideradas pela sociedade quando se discute a
questão de energia. Neste capítulo vamos discorrer sobre o 1º conjunto de questões. Antes de
continuar temos que fazer algumas definições de termos que foram introduzidos ou que irão
aparecer ao longo do capítulo.

3.1 - Consumo de energia e potência pela sociedade

O uso de energia e potência (energia por unidade de tempo) pela sociedade evoluiu ao
longo do tempo. Inicialmente, o ser humano vivia da coleta de alimentos e caça e gastava
muita energia para consumi-los, isto é, digeri-los e obter as calorias necessárias para sua
subsistência. A energia disponível ao ser humano era basicamente a bioquímica de seu corpo.
Com a descoberta do fogo e seu uso para assar e cozer os alimentos, estes passaram a ser
consumidos com muito mais facilidade. A quantidade de tempo e energia gastos para
consumir a mesma quantidade de alimentos e obter as calorias necessárias para sua
subsistência diminuiu bastante. Houve, pode-se dizer, um grande ganho de eficiência
energética com o uso do fogo pela sociedade. O homem caçador-coletor evoluiu até o
surgimento de cidades, ou da urbanização, por meio da revolução agrária. Iniciou-se uma série
de avanços tecnológicos como o uso de alavancas, arado, veículos com tração animal, roda etc.
Nesta época, cerca de 11000 anos atrás, a quantidade de energia disponível ao ser humano
havia aumentado bastante, pois ele contava com o fogo, tração animal, torque da alavanca,
etc.

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Houve um longo período de aprendizagem por difusão de conhecimentos simples, no


qual algumas pessoas desenvolviam novas técnicas por experimentação ou descoberta, mas
sem um rigor científico, e a grande maioria aprendia novas técnicas por observação das
técnicas utilizadas por outras pessoas. As novas descobertas vinham de um surto de
criatividade de algumas pessoas. As sociedades norte-africana e eurasiana estavam mais ou
menos em um estágio de desenvolvimento semelhante. Entre 1500 e 1700 estima-se que 80 %
das pessoas se dedicavam a agricultura e o restante 20 % trabalhavam em outras atividades
como governantes, comerciantes, educadores, sacerdotes, burocratas, artesãos produtores de
roupas, sapatos, etc. O uso de energia pela sociedade não se alterava muito aumentando com
o crescimento vegetativo da população. Algumas sociedades, entretanto, experimentaram em
seu processo de desenvolvimento a revolução científica e industrial e aí o uso de energia
começou a crescer exponencialmente.

A partir de 1500, o estabelecimento do processo de investigação científica por vários


estudiosos como Kepler, Galileu, Bacon, Newton e outros possibilitaram uma maior inquirição
e posterior compreensão do funcionamento da natureza e o desenvolvimento de máquinas
mais complexas. Os portugueses aprimoraram as naus e os instrumentos de navegação,
cruzaram os oceanos, descobriram novas terras e foram seguidos por espanhóis, franceses,
holandeses e ingleses. Também estudaram o plantio da cana de açúcar existente no oriente
médio, aprimoraram o processo e iniciaram grandes plantações nas ilhas dos Açores e em
Pernambuco. Em alguns locais, como a Escócia, o método científico de resolver problemas se
propagou pela sociedade e surgiram pequenas fábricas nas casas das pessoas. Por volta de
1700 na Escócia surgiram máquinas de fiar e tecer, metalúrgicas estabelecidas em casas de
famílias e fabricantes de pregos, fivelas, parafusos e botões em oficinas familiares.
Mineradores tentavam desenvolver máquinas para retirar água das minas de carvão cada vez
mais profundas. A Grã-Bretanha contava com um grande número de inventores, abundância
de matéria prima, produção excedente de alimentos e um conjunto de leis que favoreciam os
direitos desses novos inventores.

Em 1712 Newcomen desenvolveu uma máquina a vapor para bombear água de minas
de carvão na Escócia. Esta máquina era extremamente ineficiente. Em 1763 James Watt tinha
uma loja de consertos e reformas de instrumentos e engenhocas na cidade de Glasgow.
Prestava serviço para estaleiros, docentes da Universidade de Glasglow e fabriquetas da
região. Foi então contratato para consertar um motor de Newcomen. Consertou o motor, mas
o achou muito ineficiente, pois grande parte do vapor escapava para o meio ambiente, e
resolveu aprimorá-la. Depois de quase 10 anos trabalhando em uma nova máquina e garantir
com sócios financiadores os direitos de patente, ele conseguiu construir e vender máquinas a
vapor muito mais eficientes que as de 1712. Até 1800 ele vendeu cerca de 450 máquinas a
vapor, mas agora não só para bombear água em minas de carvão, mas para serem instaladas
em navios, locomotivas e em infinidades de pequenas fábricas que faziam atividades
repetitivas. A revolução industrial eclodira e logo foi acompanhada por outros países.

A passagem de uma organização rural (agrária) para uma urbana e industrial alterou
profundamente a sociedade devido ao uso de tecnologias modernizantes. Iniciou-se o
processo de uso de energias fósseis em detrimento das fontes renováveis até então
predominantes. O carvão teve presença marcante no século 19 e o petróleo predominou a
partir do início do século 20. A taxa de geração e uso de energia, isto é, potência gerada ou
50
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

consumida, cresceu exponencialmente. As Tabelas 1 e 2 apresentam a evolução do consumo


de potência ao longo do tempo nas sociedades agrárias e em sociedades industriais.

O crescimento da potência foi muito lento até 1700 e depois do desenvolvimento da


máquina a vapor por Savery, Newcomen e, principalmente, por Watt a taxa de consumo
explodiu, aumentou em 300 anos cerca de 6 ordens de magnitude. Nas sociedades agrárias as
fontes de energia eram primordialmente renováveis: a biomassa, hidráulica e eólica. A partir
da revolução industrial a taxa de consumo de energia se intensificou e a sociedade buscou
fontes com maior densidade energética como o carvão e o petróleo. O carvão já era usado
antes de 1700 na Europa como um material combustível mais energético que a lenha, mas
após a revolução industrial ele se tornou predominante.

Destaca-se aqui a importância da máquina a vapor para geração de potência ou geração


contínua de energia ao longo do tempo. Por exemplo, uma usina nuclear utiliza a tecnologia
das máquinas a vapor para gerar eletricidade ou propulsão de navios ou submarinos. Os
trabalhos do engenheiro de energia James Watt revolucionaram o mundo. Outro ponto
importante evidenciado pelas tabelas abaixo é que a sociedade consome energia
continuamente ao longo do tempo, isto é, potência. Há tantas atividades sendo realizadas ao
mesmo tempo no mundo atual que é necessário disponibilizar potência de forma contínua.

Tab. 3.1: Evolução do consumo de potência ao longo do tempo em sociedades agrárias e pouco urbanizadas
(Goldemberg e Lucon, 2008)*.
Tecnologia Data Potência (W)
Homem usando alavanca 3000 AC 37
Boi puxando carga 3000 AC 370
Turbina de água 1000 AC 300
Roda d’água vertical 350 AC 2240
Moinho de vento Turret 1600 10500
* Potência de chuveiro elétrico simples: 2000 W.

Tab. 3.2: Evolução do consumo de potência ao longo do tempo a partir da revolução industrial (Goldemberg e
Lucon, 2008).
Tecnologia Data Potência (W)
Bomba a vapor de Savery 1697 746
Máquina a vapor de Newcomen 1712 4.100
Máquina a vapor de Watt (terrestre) 1800 30.000
Máquina a vapor naval 1843 112.000
Turbina de água 1854 600.000
Máquina a vapor (naval) 1900 6.000.000
Máquina a vapor (terrestre) 1900 9.000.000
Turbina a vapor 1906 13.000.000
Turbina a vapor 1921 30.000.000
Turbina a vapor 1943 215.000.000
Usina a carvão 1973 1.100.000.000
Usina nuclear 1980 1.350.000.000

51
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

As fontes de energia que a sociedade moderna considera para a geração de


eletricidade, calor, acionamento de motores, etc são variadas. Devido aos impactos ambientais
causados pelo uso tão intenso de potência, como ocorre nos dias de hoje, voltou-se a
considerar as fontes renováveis e outras fontes não emissoras de gases do efeito estufa. A
matriz energética de vários países hoje é bastante variada. As fontes eólica e biomassa,
importantes na época agrária, voltaram a ter importância relevante e foram reintroduzidas
pelo desenvolvimento tecnológico e científico dos últimos 20 anos. Como é a geração e o
consumo de potência nas sociedades industriais modernas como o Brasil? Discutimos estas
questões na próxima seção.

3.2 – Energia primária e centros de transformação energética e energia de uso final

Energia primária é a energia disponível para a sociedade na sua forma natural, isto é,
como se encontra na natureza. Como exemplo de energia primária temos a energia hidráulica,
energia solar, energia eólica, biomassa (lenha, resíduos vegetais e animais), urânio, carvão,
petróleo, gás natural, energia das marés, energia geotérmica, etc. Estas formas de energia
normalmente não podem ser usadas diretamente pelo ser humano. O urânio deve ser
fissionado por nêutrons para gerar calor e eventualmente eletricidade. O petróleo deve ser
refinado para a forma de gasolina ou óleo diesel para eventualmente fazer a combustão em
um motor. Algumas, entretanto, podem ser utilizadas conforme encontramos na natureza,
como por exemplo, o gás natural.

Energia de uso final é a forma da energia apropriada para o uso pela sociedade. Esta
energia pode ter a forma de eletricidade, calor ou combustível líquido. Estes dois conceitos
mostram que para tornar viável o uso da energia primária disponível na natureza é necessário
transformá-la em uma forma final útil para as várias máquinas ou sistemas existentes na
sociedade. Os centros de transformação são sistemas industriais que transformam a energia
primária em energia secundária que já pode estar na forma de energia de uso final. Exemplos
de centros de transformação são refinarias de petróleo, plantas de gás natural, usinas
nucleares, centrais hidrelétricas, carvoarias, destilarias, etc.

Os processos de transformação de energia apresentam perdas. Por exemplo, um reator


nuclear transforma a energia nuclear contida no urânio em eletricidade por meio de uma
máquina a vapor utilizando o ciclo de Rankine15. Este ciclo em reatores PWR (reator a água
pressurizada) tem eficiência térmica de 33 %. Portanto, desconsiderando todas as outras
perdas, a potência secundária gerada na forma de eletricidade é apenas 33 % do total de
energia primária disponível no urânio.

A energia secundária é utilizada por algum sistema de uso final de energia. Por exemplo,
um chuveiro elétrico utiliza energia elétrica para gerar água quente, um automóvel utiliza
combustível líquido para gerar movimento e uma lâmpada utiliza eletricidade para gerar
luminosidade. Novamente aqui o sistema de uso final apresenta perdas16. Nem toda a energia
de uso final apresentada a uma lâmpada se transforma em energia luminosa e nem todo
combustível líquido consumido em um veículo se transforma em energia cinética. Definimos

15
No Cap. 6 entenderemos o funcionamento de uma máquina a vapor e o ciclo de Rankine.
16
No Cap. 4 entenderemos as perdas energéticas de uma lâmpada.
52
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

como energia útil aquela parte que é efetivamente utilizada para gerar o produto ou serviço
desejado após a última conversão nos próprios equipamentos ou sistemas.

A Fig. 3.1 mostra a cadeia de transformação da energia primária em energia útil para a
sociedade. Há perdas nos centros de transformação e nos sistemas de uso final de energia. Os
processos típicos que requerem energia útil são força motriz, calor de processo, aquecimento
direto, iluminação, eletroquímica e energia mecânica.

Fig. 3.1 – Processos de transformação de energia e de uso final de energia.

A Fig. 3.2 mostra o fluxo de energia desde a oferta de energias primárias até o consumo
agregado em grandes grupos de usos finais para o ano 2016. A unidade de energia utilizada é a
tonelada equivalente de petróleo (tep). 1 tep equivale a 1x107 kcal ou 4,18x107 J. A produção
total de energia primária atingiu 288,3 milhões de tep.

Dentre as principais fontes de energia primária encontram-se fontes renovável


(hidráulica e cana de açúcar) e não renovável (petróleo, gás natural, etc). Note que embora o
Brasil tenha uma geração de eletricidade fortemente baseada na fonte hídrica e combustíveis
líquidos como etanol e biodiesel, a principal fonte de energia primária é o petróleo
respondendo por 36,5 % da matriz energética do Brasil.

Quanto ao consumo pela sociedade vemos que a indústria consome 29,2 %, transporte,
28,7 % e as residências consomem 8,8 % da energia primária. Note que só nas residências
consumimos 8,8 % da energia primária total mas todos os outros consumos são feitos para
satisfazer as necessidades da sociedade como nos mover pela cidade, transportar bens para o
nosso consumo e produzir bens e serviços para o nosso bem estar. Nós em nossas residências
somos grandes consumidores de energia elétrica (uma energia secundária). Em 2016 o Brasil
consumiu 619,7 TWh de energia elétrica sendo que deste total a indústria consumiu 31,5 %,
nas residências consumimos 21,4 % e no comércio, 14,4 %.

53
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 3.2: Fluxo de energia das fontes primárias para os diversos consumos pela sociedade. Valores em 106 tep. Percentagens calculadas em relação a
oferta interna bruta de energia, 288,3 Mtep (1 tep = 1x107 kcal ou 4,18x107 J) (BEN, 2017).

3.3 – Setor energético e cadeia energética

O setor energético em uma sociedade moderna é complexo. Ele envolve uma cadeia
também complexa que inicia com a fonte de energia primária, passa pela geração de energia
em centros de transformação, pelo transporte de energia e sua distribuição até o uso final pela
sociedade. A sociedade moderna utiliza energia para diversos que vão da indústria, transporte
até o uso que fazemos em nossas residências, hospitais, escolas e escritórios.

A Fig. 3.3 mostra esta complexa cadeia. A primeira observação importante é que as
fontes primárias podem gerar diferentes formas de energia secundária. Conforme mostrado
na figura, o petróleo pode produzir combustíveis líquidos, eletricidade ou calor dependendo
do centro de transformação utilizado. O gás natural e a biomassa também.

O transporte da energia desde o centro de transformação até os centros de consumo


passa por várias etapas. A eletricidade gerada em uma hidrelétrica até a uma residência ou
indústria ou a gasolina produzida em uma refinaria até o automóvel de um cidadão envolve
várias etapas. Para chegar até o usuário final é requerido um sistema de transporte e de
distribuição de energia. Define-se como transporte a etapa entre o centro de transformação
54
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

até grandes centros consumidores como cidades e até grandes centros industriais. Define-se
como distribuição o processo de levar a energia destes últimos até os consumidores finais. Os
principais processos de transporte de energia são gasodutos, oleodutos e linhas de alta tensão
elétrica. Os principais processos de distribuição de energia são gasodutos de menor porte,
redes de distribuição elétrica ou linhas de média tensão elétrica, caminhões e trens para
combustíveis líquidos, carvão e biomassa.

Nos processos de transporte e distribuição de energia também há perdas. Nos


gasodutos e oleodutos podem ocorrer perdas por vazamentos e consumo de energia para o
bombeamento. Na transmissão e distribuição de eletricidade há perdas devido ao efeito Joule
nos cabos. Essas perdas são minimizadas fazendo este transporte via cabos de alta tensão.

Fig. 3.3: Cadeia energética com várias fontes de energia primária e 4 usos finais principais.

A Fig. 3.4 apresenta o sistema complexo de geração, transporte e distribuição de


eletricidade em uma sociedade moderna. Há transformadores para alta tensão para o
transporte de eletricidade com menores perdas e há transformadores para tensões mais
baixas para a distribuição de eletricidade até os consumidores finais. Notem que os
consumidores podem também ser geradores de energia. Por exemplo, uma indústria ou
shopping center pode ter um gerador diesel e injetar eletricidade na rede de distribuição
elétrica quando não estiver utilizando-a para consumo próprio; ou uma residência pode ter um
gerador fotovoltaico e injetar na rede o excedente de geração de eletricidade além de seu
consumo.

55
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 3.4: Etapas entre a geração e o consumo de energia elétrica em uma sociedade moderna. Neste caso a fonte de
energia é hidráulica e apresentam-se as linhas de transmissão (transporte) e distribuição de eletricidade até os
consumidores finais. Notem que os consumidores podem também ser geradores de energia.

A sociedade moderna preocupa-se com a redução das perdas na cadeia de energia.


Definimos a eficiência energética de um determinado uso final de energia como

energia de uso final ou trabalho útil


Eficiência energética = . &3.1'
energia primária

A eficiência energética neste caso leva em conta as perdas nos centros de transformação e nos
sistemas de uso final de energia. A máquina a vapor de Watt atuava no processo de
bombeamento de água a partir da energia primária (carvão). A energia útil era o trabalho de
elevação da água. A grande contribuição tecnológica de James Watt foi melhorar a eficiência
energética daquele sistema, isto é, ele conseguiu fazer o mesmo trabalho com muito menos
energia primária.

A eficiência energética é considerada atualmente muito importante para reduzir


impactos ambientais e para a racionalização econômica. Vários países adotam atualmente
programas de eficiência energética e consideram a conquista de eficiência energética como
mais uma fonte de energia, pois se a demanda econômica sobe 6 % e consegue-se uma
eficiência energética total de 1 %, torna-se necessário adicionar apenas 5 % de novas usinas de
geração de energia.

Os programas de eficiência energética iniciam estudando os rendimentos dos processos


de transformação de energia e de uso final de energia e quanto eles podem ser melhorados.
Após esses estudos determina-se a nova energia útil necessária. O conhecimento desta energia
útil permite identificar quais setores econômicos são energeticamente menos eficientes e
também determinar quais formas de energia podem ser utilizadas com maior eficiência nos
56
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

vários processos. Com base nesses estudos podem-se identificar possíveis programas de
substituição e de conservação de energia.

A Fig. 3.5(A) mostra a evolução do consumo de energia primária em sociedades mais


consumidoras entre 1980 a 2014. Notem que no Brasil, China, índia, México e Indonésia,
países em desenvolvimento, o consumo de energia tem uma taxa de crescimento elevada.
Países desenvolvidos como os EUA, Japão, Reino Unido, França e Alemanha tem um consumo
de energia primária declinante a partir de 2000. Esses países, entretanto, têm apresentado
taxas de crescimento da economia positiva entre 0 e 2 %/ano neste período e têm conseguido
dar conta do crescimento da economia aumentando a eficiência energética, isto é, esses países
produziram consumindo menos energia. O Brasil e os outros países em desenvolvimento, por
outro lado, têm uma taxa de crescimento do consumo de eletricidade mais elevada devido à
demanda da economia e também devido à demanda de seus cidadãos que desejam melhor
seu bem estar e padrão de vida. Esses países tendem a continuar demandando mais
eletricidade até atingirem um padrão de vida mais elevado. É claro que também devem
investir em eficiência energética!

Fig. 3.5: Países que mais consomem energia primária no mundo em 2014. O Brasil consumiu 323 Mtep neste ano
(EIA, 2016)

57
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

A Fig. 3.5(B) mostra o consumo de energia primária dos principais países consumidores
em 2014. Esses países são industrializados, grandes produtores de energia ou ambos. China e
EUA são os países que mais consomem energia primária. Rússia, Canadá, Irã e Arábia Saudita
são grandes exportadores de energia primária (petróleo e gás natural).

3.4 – Potencial e reservas de energia primária

Para que o Brasil possa ofertar à sociedade a quantidade de energia apresentada na Fig.
5 é necessário possuir reservas de energia primária não renovável e potencial de energia
renovável de diversas fontes ou importá-las de outros países: petróleo, gás natural, carvão,
urânio, energia hidráulica, lenha e carvão vegetal, cana de açúcar e diversos tipos de energia
renovável. A variedade de fontes de energia primária utilizada por uma sociedade é
denominada matriz energética. Vamos apresentar nesta seção o potencial e reservas de
energia primária do Brasil e os vários tipos de centros de transformação correspondentes para
viabilizar o fornecimento de energia na forma final adequada para os consumidores. Em
outras palavras vamos conhecer a matriz energética brasileira.

3.4.1 – Potencial hidrelétrico do Brasil

Grande parte da energia elétrica brasileira é gerada por usinas hidrelétricas. As


condições favoráveis de clima e relevo favorecem a geração hidrelétrica. Chuvas abundantes,
pequenas montanhas e planaltos de 100 a 1000 m favorecem a formação de rios com grandes
vazões e quedas apropriadas para a geração de hidrelétrica. As chuvas no Brasil são
abundantes exceto na região Nordeste. Estas condições fazem com que no Brasil 85 % da
eletricidade gerada em 2015 seja de origem hidrelétrica enquanto no mundo seja de 16 %. Em
2010 o potencial hidrelétrico, expresso em capacidade de geração (GW), era de 260 GW e o
potencial já utilizado era de 74 GW. A Tab. 3.3 mostra a potência instalada, o potencial
disponível e o percentual de aproveitamento em cada região do Brasil. Nota-se que nas
regiões NE, SE e S o percentual de aproveitamento é superior a 40 % enquanto na região N
este percentual é baixo, 8,1 % e no Brasil, 28,5 %.

Tab. 3.3: Potência instalada e potencial hidrelétrico do Brasil em 2010 (ref).


Região Potência Instalada (GW) Potencial (GW) Aproveitamento (%)
Norte 9 111 8,1
Nordeste 11 26 42,3
Sudeste 24 44,6 53,8
Sul 20 43,1 46,4
Centro-Oeste 10 35,3 28,3
Total 74 260 28,5

À primeira vista, estes números sugerem que temos disponível ainda um grande
potencial hidrelétrico, mas existem limitações para seu aproveitamento devido a fatores
econômicos, sociais e ambientais. O aproveitamento do potencial hidráulico nos EUA, Japão e
União Europeia chegou a aproximadamente 70 % do potencial disponível. No Brasil
observamos que grande parte do potencial disponível se encontra na região amazônica e os
grandes aproveitamentos disponíveis nas outras regiões já foram utilizados. Excetuando a
região Norte, o potencial disponível nas outras regiões é principalmente de usinas hidrelétricas

58
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

menores que 100 MW ou pequenas centrais hidrelétricas (PCH) com capacidade inferior a 30
MW.

A energia hidrelétrica é renovável e sazonal. Em épocas de chuva e grandes vazões dos


rios, a geração de eletricidade é maior e em épocas de seca, a geração é menor. Para
proporcionar uma geração de eletricidade mais estável ao longo do ano normalmente são
construídas hidrelétricas com barragens e grandes reservatórios. Assim, durante a época de
chuva acumula-se água no reservatório e gera-se menos potência do que seria possível.
Durante a seca libera-se a água acumulada e consegue-se uma geração maior do que se não
houvesse o reservatório. O resultado final é uma geração mais uniforme ao longo de todo o
ano.

3
Fig. 3.6: Vazão do Rio Madeira ao longo do ano em (m /s) nas proximidades de Porto Velho onde se encontram
usinas de Jirau e Santo Antônio (ref).

A Fig. 3.6 mostra a vazão do Rio Madeira ao longo de 12 meses (1 ano) medida em
vários anos. Nota-se uma variação ao longo do ano e uma variação entre os anos. Há uma
variação devido à sazonalidade (estações do ano) e incertezas climáticas entre os vários anos.
A variação sazonal pode ser muito grande. No caso do Rio Madeira, na época de seca, a vazão
do rio cai normalmente para cerca de 1/5 da vazão máxima. A potência nominal ou instalada
de uma usina hidrelétrica é a potência máxima que ela pode gerar. Ao longo do ano a potência
média de operação da usina é menor. A razão entre a potência média gerada ao longo de um
ano, x y , e a potência nominal, x " , é denominada fator de capacidade de uma usina, < ,
isto é,
x y
< = . &3.2'
x "

No Brasil o fator de capacidade de nossas hidrelétricas é aproximadamente 50 %. Isto significa


que ao longo do ano a potência média gerada pelas usinas hidrelétricas apresentadas na
Tabela 3.1 é aproximadamente 50 % de 74 GW ou aproximadamente 34 GW médios.

59
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

A Fig. 3.7 mostra a Usina de Itaipu com o vertedouro à esquerda, as 20 unidades


geradoras com turbinas hidráulicas à direita e o reservatório ao fundo. A potência instalada da
usina de Itaipu é 14000 MW. Quando chove muito e o volume de água acumulado no
reservatório da usina aproxima-se da sua capacidade máxima é necessário abrir comportas do
vertedouro e permitir a água fluir rio abaixo sem geração de energia evitando o
transbordamento da água sobre a barragem). Os vertedouros são abertos também para
regularizar a vazão do rio para diversos usos demandados pela sociedade como a navegação e
o fornecimento de água para cidades, pesca, etc.

Fig. 3.7: Vista da usina hidrelétrica de Itaipu mostrando o vertedouro, as 20 unidades geradoras de 700 MW e o
reservatório. A potência total instalada é 14000 MW (ref).

A Tab. 3.4 apresenta uma visão geral das usinas hidrelétricas brasileiras. O Brasil possui
grandes, médias e pequenas usinas hidrelétricas.

Tab. 3.4: Usinas hidrelétricas do Brasil em funcionamento e em construção em função da potência instalada.
Hidrelétrica Potência Instalada (MW) Localização – rio usado
Itaipú 14200 rio Paraná
Tucuruí 8370 rio Tocantins
Usinas hidrelétricas médias 100 < P < 2000 inúmeros
Pequenas hidrelétricas (PCH) P < 50 inúmeros
Santo Antônio (em construção) 3150 rio Madeira
Jirau (em construção) 3300 rio Madeira
Belo Monte (em construção) 11233 rio Xingu

3.4.2 – Potencial eólico brasileiro

As usinas eólicas tornaram-se competitivas ao longo dos últimos 20 anos com o


desenvolvimento de turbinas eólicas, eletrônica de potência e sistemas de controle
automáticos. De forma semelhante à energia hidrelétrica a energia eólica é sazonal e varia ao
longo do ano. Para a geração eólica eficiente seria necessário vento constante com velocidade
elevada (entre 7 e 10 m/s) e sem mudanças de direção. A potência de geração eólica é
proporcional ao cubo da velocidade do vento e a área varrida pelas pás da turbina. Assim,
pequenas variações de velocidade do vento causam grandes variações na geração de potência.
Como a velocidade do vento varia muito ao longo de períodos curtos como 1 dia ou 1 hora,
60
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

dizemos que a geração eólica é, também, intermitente. O fator de capacidade médio de usinas
eólicas depende de vários fatores como a velocidade do vento, turbulência, variabilidade ou
intermitência e mudança de direção. Normalmente varia entre 10 e 40 %.

A Fig. 3.8 apresenta uma turbina eólica. Seus principais componentes são a fundação, a
torre, o conjunto rotor e gerador, as pás e a eletrônica de potência e sistemas de
instrumentação e controles associados. Os sistemas de controle e instrumentação,
engrenagens e gerador encontram-se encapsulados em uma caixa denominada “nacelle”. As
turbinas eólicas são instaladas em regiões com ventos adequados. As grandes turbinas eólicas
podem gerar de 1 a 3 MW. Um parque eólico pode ter até centenas de turbinas instaladas e
ocupam grandes áreas.

Fig. 3.8: Rotor eólico ou aerogerador.

A Fig. 3.9 apresenta o mapa eólico brasileiro coletado a 50 m de altura. Observa-se a


sazonalidade deste tipo de geração. Entre dezembro e maio a geração eólica é baixa, devido
aos ventos com baixa velocidade. Entre junho e novembro a geração eólica pode ser mais
elevada devido aos ventos com maior velocidade. A região central do Brasil e a região NE tem
um potencial eólico elevado.

61
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 3.9: Mapa eólico brasileiro para a altura de 50 m (ref).

A Tab. 3.5 apresenta o potencial eólico em várias regiões brasileiras considerando


ventos tomados a 50 m de altura com velocidade acima de 7 m/s. A tabela apresenta a
velocidade média dos ventos, a área da região com tais ventos, o total de potência que pode
ser instalada, o fator de capacidade na região e a energia que pode ser gerada em (TWh/ano).
A potência nominal dos parques eólicos é dada pela sua potência de geração máxima. Observe
que o fator de capacidade aumenta para velocidades de vento maiores atingindo 35 %. Para
velocidades de vento menores que 7 m/s o fator de capacidade é reduzido, fica entre 13 % e
17 %, e a geração eólica perde economicidade. Note que o potencial eólico no Nordeste é
muito elevado e que o total brasileiro estimado para ventos acima de 7 m/s (272,1 TWh/ano)
também é muito relevante. É aproximadamente a metade do consumo brasileiro de
eletricidade em 2015.

Tab. 3.5: Potencial eólico brasileiro e fator de capacidade estimado para ventos medidos a 50 m de altura* (ref).

62
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

* A título de comparação, o consumo total de energia elétrica no Brasil em 2015 foi de 550 TWh (ref).

3.4.3 – Reservas de urânio do Brasil – energia nuclear

O urânio natural tem 2 isótopos principais, o 238U com ocorrência de 99,3 % na natureza
e o 235U com ocorrência de 0,7 %. O 235U pode ser fissionado com nêutrons térmicos (energia
em torno de 0,05 eV) produzindo 200 MeV de energia, produtos de fissão, radiação e 2 a 3
nêutrons que podem ser utilizados para fazer novas fissões (reação de fissão em cadeia)17. A
reação de fissão que ocorre em reatores nucleares como Angra 1 e Angra 2 é

(3.3)

Portanto, o 235U é o isótopo importante na energia nuclear.

O urânio é extraído, purificado e concentrado na forma de um sal de cor amarela


conhecido como “yellow cake”. Após o beneficiamento obtém-se um óxido de fórmula U3O8.
No Brasil, a mineração e beneficiamento do urânio ocorrem em Caetité no sul da Bahia. As
reservas de U3O8 somam 309 mil toneladas e correspondem a 5,9 % das reservas mundiais. A
Figura 3.10 apresenta uma vista aérea das instalações de mineração de urânio em Caetité, BA
e um trabalhador realizando ações próximo a um tambor de yellow cake. O urânio encontrado
na natureza é um material radioativo que emite radiações alfa e gama. Após a concentração
deste material o nível de radioatividade torna-se elevado e requer cuidados especiais,
especialmente para evitar a inalação ou ingestão do pó deste material.

A produção anual urânio em Caetité é de 400 t/ano e atende à demanda de urânio das
centrais nucleares de Angra 1 e Angra 2. Esta quantidade de urânio pode gerar 70 MW de
eletricidade continuamente durante 30 anos. Note que em 2015 o Brasil já gera
continuamente um pouco menos que esta quantia. O combustível nuclear que alimenta os
reatores nucleares vem na forma de pastilhas de UO2 com urânio enriquecido. O

17
Entenderemos melhor a energia nuclear no Cap. 4.
63
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

enriquecimento do urânio é um processo físico que aumenta a proporção de 235U do valor


natural para valores entre 2 e 5 % para tornar viável a reação de fissão em cadeia.

Fig. 3.10: Instalações de mineração de urânio da INB (Indústrias Nucleares do Brasil) em Caetité, BA. Ao lado vê-se
um trabalhador e um tambor com “yellow cake” (ref).

Os produtos da Eq. 3.3 são importantes. A energia liberada pela reação nuclear de fissão
é muito elevada. Enquanto uma reação de combustão de um átomo de carbono libera em
torno de 3 eV, a fissão de um núcleo de 235U libera 200 milhões de eV. O combustível nuclear
tem uma grande densidade energética. Esta energia é aproveitada na forma de calor. Um
reator nuclear, como os existentes no Brasil e mostrado na Fig. 3.11, utiliza este calor para
gerar vapor que movimenta uma turbina a vapor e gera eletricidade. Uma usina nuclear não
emite gases do efeito estufa durante sua operação. Devido a isto ela é considerada uma fonte
de energia limpa quanto a emissão de CO2.

Fig. 3.11: Usina nuclear de Angra 2 na costa do Estado do Rio de Janeiro (Eletronuclear, xxxx).

64
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Os produtos de fissão são materiais radioativos ou resíduos nucleares. Outro material


produzido nos reatores nucleares pela reação de captura de nêutrons pelo 238U é o 239Pu
(plutônio). Este material também é um combustível nuclear semelhante ao 235U e pode gerar
energia. Os produtos de fissão que podem ser utilizados na indústria ou na medicina nuclear e
o 239Pu devem ser reciclados para uso pela sociedade. O material restante constitui os rejeitos
radioativos e deve ser armazenado adequadamente. Para proteger o ser humano da radiação
os reatores nucleares e os depósitos de rejeitos radioativos são projetados com blindagens.

A reciclagem do plutônio aumenta bastante o potencial de geração da energia nuclear.


Idealmente, com reatores eficientes, o potencial pode aumentar em dezenas de vezes (ref).

3.4.4. Potencial de biomassa

A biomassa é qualquer matéria orgânica que pode ser convertida em energia mecânica,
térmica ou elétrica. Ela pode ser florestal (madeira), agrícola (cana de açúcar, arroz, soja,
palmas, mamona, etc.) e rejeitos urbanos residenciais e industriais (lixo entre outros). Os
processos típicos de aproveitamento são a combustão e processos agroindustriais modernos
para a geração de combustíveis líquidos e eletricidade. Nesse caso a indústria da biomassa
exige grandes plantações como de arroz, soja, milho ou cana de açúcar que formam a matéria
prima. O aproveitamento energético da cana de açúcar advém do suco, do bagaço e da palha
para gerar etanol e eletricidade, respectivamente. Do arroz e soja, que são alimentos,
aproveita-se a palha gerada após o beneficiamento. Os resíduos sólidos urbanos geram biogás
ou podem ser incinerados, a lenha oriunda de florestas é utilizada para gerar calor industrial,
etc.

As tecnologias utilizadas para gerar energia a partir da biomassa são variadas. As


principais são combustão direta para a obtenção de calor; a pirólise ou carbonização para
aumentar a densidade energética da biomassa, como por exemplo, a produção de carvão a
partir da lenha que tem poder calorífico duas vezes maior que o insumo; a gaseificação por
reações termoquímicas de combustíveis sólidos que geram combustíveis gasosos mais
eficientes e práticos de se usar; a digestão anaeróbica de resíduos orgânicos para a geração de
biogás que contém CO2 e CH4; a fermentação que é utilizada na agroindústria sucroalcooleira
para a produção de etanol; e a transesterificação, utilizada para a produção de biodiesel.

A biomassa é um recurso natural renovável, enquanto os combustíveis fósseis não se


renovam na escala temporal do homem. Parte da energia contida na biomassa é empregada
pelo ecossistema para sua própria manutenção e reprodução. A utilização da biomassa
eventualmente provoca a liberação de CO2 para a atmosfera, mas este composto é
previamente absorvido para a constituição das plantas. O balanço de emissões de CO2 é,
portanto, nulo.

O potencial de geração de biomassa depende da disponibilidade de tecnologia e


condições agrícolas para vasta produção de biomassa. A Fig. 3.12 mostra a produção moderna
de biomassa sendo a colheita feita de forma mecanizada e a Fig. 3.13 mostra uma usina de
etanol em Sertãozinho, SP, baseada na tecnologia de fermentação. As regiões de clima tropical
e subtropical (entre os trópicos de Capricórnio e de Câncer) são as áreas mais apropriadas para
a produção de culturas energéticas, mas há produção também em regiões de clima
temperado.
65
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

O Brasil apresenta condições interessantes para a produção de biomassa devido ao


clima, disponibilidade de grandes áreas para as plantações e a possibilidade de produzir etanol
da cana de açúcar. Esta biomassa é bastante produtiva para a produção de biocombustível.

Fig. 3.12: Produção de biomassa em grandes plantações (ANEEL, 2006).

Fig. 3.13: Exemplo de um centro de transformação de biomassa - usina de etanol em Sertãozinho, SP.

A Fig. 3.14 mostra a razão entre a energia produzida pelo a e energia consumida no
processo de produção de vários biocombustíveis. Note que a cana de açúcar proporciona 8
unidades de energia para 1 unidade consumida no processo de produção do etanol enquanto
a beterraba, o milho e o trigo proporcionam menos que 2 unidades. A Fig. 3.15 apresenta a
produção anual de biocombustíveis (maior parte de etanol e biodiesel) em vários países do
mundo. O Brasil é o segundo maior produtor mundial. O biocombustível é utilizado puro ou
misturado em veículos para a redução da emissão de gases do efeito estufa e reduzir a
poluição nas cidades.

66
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 3.14: Razão entre energia gerada e energia utilizada no processo de produção de biocombustível para várias
matérias primas. Milho é utilizado como matéria prima nos EUA, beterraba na União Europeia e cana de açúcar no
Brasil (ref).

Fig. 3.15: Produção anual de biocombustível em 2015 expressa em tep (STATISTA, 2016).

3.4.5. Potencial de energia solar

A energia solar é a fonte de várias formas de energia primária no planeta. Como vimos
no Cap. 2, o sol movimenta a cadeia hidrológica que abastece os rios, movimenta os ventos,
provê por meio da fotossíntese a energia necessária para a formação da biomassa e proveu no
passado longínquo a energia para a formação das fontes fósseis a partir da matéria orgânica
como carvão e petróleo. A fonte solar também proporciona à sociedade energia térmica e
fotovoltaica. O fluxo de radiação solar no topo da atmosfera, denominado constante solar, é
1360 W/m2, em uma distribuição espectral com maiores intensidades em comprimentos de
onda na região da luz visível18. Até atingir o solo da Terra parte da radiação é absorvida ou
refletida de volta ao espaço pelas moléculas existentes na atmosfera. Assim, o fluxo na

18
Entenderemos melhor a atuação da radiação solar na Terra no Cap. 4.
67
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

superfície da Terra é menor e depende do grau de umidade e nebulosidade da região, estação


do ano, varia durante o dia e cai a zero durante a noite.

A incidência na superfície do planeta também varia com a latitude de forma que reduz
em direção aos polos. A Fig. 3.16 mostra o fluxo de radiação solar na superfície do Brasil. No
hemisfério sul, os coletores solares devem ser posicionados virados para o Norte e ângulo de
inclinação semelhante à da latitude local. Embora a quantidade de energia solar incidente na
Terra seja imensa o fluxo de energia é relativamente pequeno (menos de 1 kW em cada m2 –
lembre-se que um chuveiro elétrico consome cerca de 3 kW).

Fig. 3.16: Fluxo de radiação solar no Brasil (UFPE, 2000).

As tecnologias de aproveitamento da energia solar são os coletores térmicos,


concentradores heliotérmicos e painéis fotovoltaicos. Os coletores térmicos podem ser usados
em residências para o aquecimento de água e são normalmente instalados nos telhados ou
paredes onde há forte incidência de radiação. As temperaturas atingidas pela água são
menores que 100 oC devido ao baixo fluxo de radiação solar. Os concentradores heliotérmicos
buscam aumentar o fluxo de radiação em um local para obter aquecimentos elevados. A
radiação é coletada em uma grande área e refletida para um ponto focal e ali concentrando
grande densidade de potência. Neste local esta potência permite a produção de vapor e
geração de eletricidade por meio de ciclos térmicos19.

A Fig. 3.17 mostra um aquecedor solar de água para uma residência disponível no
mercado. O coletor solar deve ter uma superfície escura para transformação da radiação solar
em calor. Dentro do coletor passa uma serpentina para promover o aquecimento da água. Esta
pode ser armazenada em um reservatório termicamente isolado e prover água quente durante
a noite quando não há energia solar disponível. O código de obras brasileiro já requer

19
Veremos os ciclos térmicos no Cap. 6.
68
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

aquecedores solares como uma das instalações obrigatórias para novas residências. A Fig. 3.18
mostra um conjunto residencial com aquecedores solares no telhado das casas. O
aquecimento de água quente em chuveiros elétricos no Brasil consome praticamente a
potência gerada por toda a usina de Itaipu. Estes sistemas de aquecimento de água via energia
solar constituem-se em uma grande contribuição para a eficiência energética no Brasil.

Fig. 3.17: Sistema solar para aquecimento de água que pode ser instalado no telhado de uma residência
(SOLARESOL, 2016).

Fig. 3.18: Conjunto residencial com aquecedores solares instalados no telhado de suas unidades (SOLETROL, 2016).

A terceira tecnologia, sistemas fotovoltaicos, permite a geração direta de eletricidade.


Em alguns materiais semicondutores a base de silício (Si) os elétrons recebem energia dos
fótons solares e se movem para a banda de condução gerando uma corrente e uma tensão de
alguns volts, isto é, geram eletricidade. Esses materiais são organizados em células e
conectados em série e em paralelo, formando painéis fotovoltaicos, para fornecerem tensões
e correntes mais elevadas. Um painel comercial típico tem aproximadamente 1 m2, pesa pouco
69
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

mais de 10 kg, é feito de 36 células solares capazes de produzir cerca de 17 volts em corrente
contínua e uma potência de até 140 Watts. Os modelos geralmente variam de 5 até 300 Watts
de potencia. Os painéis fotovoltaicos devem ser instalados voltados para o Sol para coletar a
maior quantidade possível de radiação. A eficiência de conversão de energia solar em
eletricidade é normalmente inferior a 25 %, mas pesquisas continuam a melhorar este índice.

A energia solar fotovoltaica tem o potencial de gerar a energia elétrica para todas as
residências do Brasil a partir de painéis instalados nos telhados das casas. A Fig. 3.19 mostra
uma casa com um painel fotovoltaico que pode gerar eletricidade para seu consumo e
potencialmente transmitir para a rede elétrica o excedente. A figura também mostra a
instalação de painéis fotovoltaicos em um galpão industrial. Uma dificuldade para a inserção
de energia fotovoltaica na matriz elétrica é o seu custo ainda elevado de instalação. Contudo,
pesquisas e ganhos de escala industrial continuam a baixar o custo desta tecnologia.

Fig. 3.19: Residência com painéis fotovoltaicos para geração de eletricidade e instalação de painéis fotovoltaicos em
um galpão industrial no ABC paulista (NEOSOLAR, 2016; BIOENERGIA, 2016).

A capacidade de gerar energia em pequenas unidades (residências) em quantidade


superior ao consumo nas unidades torna as residências fontes de eletricidade distribuídas pelo
sistema elétrico. Na Fig. 3.3 vê-se que a eletricidade é gerada em grande quantidade em uma
usina hidrelétrica (item 1) e é transmitida e distribuída pelas cidades. No caso da fonte
distribuída, a geração pode ocorrer nas unidades consumidoras das cidades e do setor rural
(itens 6, e 8). Uma usina de 700 MW pode prover eletricidade para uma cidade de 1,5 milhão
70
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

de habitantes. No caso da geração distribuída fotovoltaica, as residências da cidade poderiam


gerar a energia consumida pelos seus habitantes.

A introdução da geração distribuída fotovoltaica impõe uma mudança estrutural no


setor elétrico. As unidades consumidoras se transformam em unidades micro e mini geradoras
de eletricidade. Será necessário medir o consumo de eletricidade nas residências e também a
eletricidade gerada e injetada na rede. O residente passa a pagar pela eletricidade consumida
e também receber pela eletricidade gerada. Adicionalmente, a inclusão de inúmeras unidades
requer um controle inteligente da rede elétrica para manter a qualidade da energia gerada
(smart grids). Pode haver a organização de grupos de residências formando um pool de
geração e ganhando escala e competitividade no mercado. Estas possibilidades já ocorrem no
Brasil de forma incipiente, mas devem aumentar de forma relevante a partir do
estabelecimento de uma regulamentação apropriada.

Fig. 3.20: Potencial fotovoltaico para geração residencial por município do Brasil (EPE, 2014).

O potencial de geração fotovoltaica distribuída depende da energia solar disponível, da


área de telhados disponível para a instalação dos painéis a da eficiência na conversão da
radiação solar em eletricidade. A Fig. 3.20 apresenta o potencial de geração fotovoltaica nas
residências. Os dados para obter o potencial vieram de atlas de radiação solar no Brasil e o
censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. As áreas das residências
que recebem insolação dependem da configuração espacial e da localização. Para casas
considerou-se uma área de telhado média de 85 m2 e para apartamentos, 15 m2. Considerou-
se que desta área total somente 30 % teria uma insolação adequada. Quanto à eficiência de
conversão da radiação solar em eletricidade, considerou-se um valor médio de 12 %. Regiões
com grande fluxo de energia solar e grandes áreas de telhados tem grande potencial de
geração distribuída fotovoltaica.

71
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

3.4.6. Potencial de recursos fósseis

Os recursos naturais de fontes fósseis de energia são petróleo, carvão e gás natural.
Esses recursos são não renováveis ou exauríveis. Recursos energéticos são quantidades de
minérios, líquidos ou gás que podem ser utilizados pela sociedade como energia primária. Os
recursos energéticos são prospectados, recuperados ou extraídos e consumidos. Reservas são
recursos bem conhecidos por meio de prospecção e que podem ser recuperados a preços e
tecnologias atuais. As reservas variam ao longo do tempo, pois dependem do esforço de
prospecção e extração e também da taxa de consumo. Classificam-se as reservas como
comprovadas, indicadas ou inferidas, de acordo com o grau de certeza sobre seus volumes e a
possibilidade ou não de extração com as tecnologias disponíveis. As reservas comprovadas são
exatamente a definição acima. As reservas indicadas são recursos recuperáveis de jazidas
conhecidas e passíveis de extração a partir do melhoramento das técnicas de recuperação. As
reservas inferidas são depósitos em jazidas identificadas, porém não quantificadas, mas
apenas estimadas.

As reservas também são dimensionadas em função do consumo dos países por meio do
parâmetro duração da reserva. A duração das reservas de um energético, normalmente
expressa em anos, é dada pela razão entre o volume de reservas comprovadas e a taxa de
produção ou extração de petróleo,

{X|X} | X xX`}óMXF &•x'


z= & [F|'. &3.4'
•x
` € X X€`} çãF X xX`}óMXF & [F'

À medida que a taxa de extração aumenta as reservas são consumidas. Assim τ representa
quantos anos um país ou companhia possui de reservas de um energético se a taxa de
extração atual for mantida constante ao longo do tempo. Por exemplo, os países procuram
manter reservas de petróleo de cerca de 10 anos ao longo do tempo. Se o consumo aumenta
e as reservas diminuem, os países investem mais em prospecção de novas reservas de petróleo
para manter τ = 10 anos.

Petróleo

O petróleo vem da conversão de matéria orgânica a alta temperatura e pressão de


sedimentos ao longo de milhões de anos. Normalmente se encontra no subsolo da terra ou do
mar em profundidades variadas. Em terra (on shore), os poços podem ter de 20 a 6000 m de
profundidade. No mar (off shore), pode chegar a mais que 7000 m, como é o caso do pré-sal.
O petróleo é uma mistura de óleo cru, gás natural, água em solução e semissólidos asfálticos
pesados. É uma mistura complexa de hidrocarbonetos contendo em média 7 g de C para 1 g de
H. Há compostos leves como o CH4 até outros pesados com mais de 100 átomos de C. A
densidade do óleo varia de 0,8 a 0,95 g/cm3 sendo normalmente de cor preta. Os
hidrocarbonetos perfazem 95 a 98 % da mistura e o restante contém oxigênio, nitrogênio,
enxofre e traços de compostos organo-metálicos.

O petróleo é classificado segundo sua densidade (grau API) e também do ponto de vista
comercial. O grau API (American Petroleum Institute) expressa a densidade do óleo. Como o
óleo leve é mais interessante comercialmente, o grau API varia inversamente com a
densidade:
72
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

• Leve – grau API acima de 30o


• Médio – grau API entre 22 e 30 o
• Pesado – grau API entre 10 e 22o
• Extrapesado – grau API menor que 10o

Do ponto de vista comercial, a classificação se dá em relação à bolsa de mercadorias onde é


comercializado:

• WTI (West Texas Intermediate) negociado em Nova York – petróleo com grau
API entre 38 e 40o
• Brent (nome da antiga plataforma da Shell, Mar do Norte) negociado em
Londres – petróleo com grau API de 39,4o e teor de enxofre de 0,34 %.

A Fig. 3.21 mostra as reservas comprovadas de petróleo de vários países do mundo.


Nota-se que a distribuição de petróleo não é uniforme no mundo e isto é causa de muitas
guerras. As Fig. 3.22 e 3.23 apresentam a produção e o consumo anuais de vários países. O
Brasil apresenta um consumo ligeiramente maior que a produção de petróleo. Embora
utilizemos bastante energia renovável, somos o 6º país consumidor de petróleo no mundo.
Boa parte da produção brasileira de petróleo já é oriunda do pré-sal.

O petróleo é comercializado internacionalmente e o Brasil foi um grande importador até


meados do ano 2000. Em geral, os países do oriente médio são exportadores de petróleo por
terem grandes reservas e baixo consumo.

Fig. 3.21: Reservas de petróleo em bilhões de barris em 2014 (EIA, 2016)

73
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 3.22: Países que mais produziram petróleo e combustíveis líquidos no mundo em 2014 (EIA, 2016).

Fig. 3.23: Países que mais consumiram petróleo no mundo em 2014 (EIA, 2016).

A cadeia produtiva do petróleo também é complexa. A extração e o beneficiamento


inicial do petróleo ocorrem nos chamados poços de petróleo ou em plataformas marítimas. A
Fig. 3.24 mostra uma plataforma marítima da Petrobras na costa do Rio de Janeiro. O centro
de transformação para o petróleo é a refinaria onde se produz a energia de uso final para a
sociedade, isto é, os derivados de petróleo. O refino de petróleo é um processo de destilação
em uma torre de fracionamento de cerca de 40 m de altura. Os vários derivados de petróleo
são condensados em diferentes alturas da torre. Os mais pesados são coletados na parte de
baixo, os mais leves, na parte de cima e alguns gases são coletados no topo da torre. Os
principais produtos do refino são a gasolina bruta (automotiva e de aviões), querosene bruto,
gasóleo, composto de gases de hidrocarbonetos, óleo combustível, óleo lubrificante, parafinas
e a fração pesada de coque e asfalto. Há mais de uma dezena de refinarias no Brasil
distribuídas pelas regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Sul. A Fig. 3.25 mostra a refinaria de
petróleo Gabriel Passos em Minas Gerais.

74
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Fig. 3.24: Plataforma de petróleo P-55 da Petrobras no litoral de Campos, RJ (PETROBRAS, 2016a)

Gás Natural

O gás natural é uma mistura de gases com predominância de CH4. É formado de maneira
semelhante ao petróleo e ocorre associado a ele ou em poços contendo somente gás. Pode
também originar das profundezas da terra e neste caso não teria uma origem biológica. As
reservas mundiais principais são mostradas na Figura 2.26. No Brasil grande parte do gás
natural ocorre associada ao petróleo, como na plataforma continental, mas também em poços
de gás, como em Urucuia no Amazonas. As reservas de gás natural no Brasil são pequenas
comparadas com a de outros países no mundo. Há fontes de gás natural nos estados do Rio de
Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Norte e Amazonas.

O gás natural é um energético com vários usos finais. Ele pode ser utilizado para
aquecimento doméstico, combustível de caldeiras, combustível de veículos, na indústria e
geração de eletricidade. Ele é transportado por gasodutos ou na forma líquida (gás liquefeito)
em navios criogênicos transoceânicos e costeiros.

75
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Fig. 3.25: Refinaria de Gabriel Passos em Betim, MG (PETROBRAS, 2016b).

Parte do gás que consumimos é importado da Bolívia conforme mostra a Fig. 3.27. O
gasoduto TBG transporta gás natural da Bolívia até ao Rio Grande do Sul e também ao Rio de
Janeiro. Nesta figura é mostrada também a rede de transporte de gás existente no Brasil em
2015. Há um longo gasoduto entre Vitória (ES) até Pecem (CE), outro entre Urucuia (AM) e
Manaus (AM) e entre a Bolívia e Cuiabá (MT). Os grandes consumidores de gás natural
encontram-se ao longo dos gasodutos, sejam eles usinas termelétricas a gás natural, cidades
ou indústrias.

A quantidade de gás natural pode variar dentro gasoduto por meio do controle da
pressão de bombeamento em segmentos do gasoduto. No caso do gasoduto TBG a sua sala de
controle encontra-se na cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente na Praia do Flamengo!
Deste local o transporte e a distribuição de gás da Bolívia ao Rio Grande Sul é controlada e
também variações de quantidades são acomodadas no interior do gasoduto por meio da
pressão adequada.

76
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A Fig. 3.28 mostra uma instalação de recebimento e distribuição de gás natural típica ao
longo de um gasoduto. Na parte inferior mostra construção de um gasoduto no interior do
Brasil.

Fig. 3.26: Reservas de gás natural no mundo EM 2015. EUA, Canadá, México e Chile pertencem a OECD
(Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento) (EIA, 2016).

Fig. 3.27: Rede de gasodutos no Brasil (GASNET, 2016).

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Fig. 3.28: Instalação de recebimento e distribuição de gás natural e gasoduto em construção (ANP, 2016)

Carvão

O carvão é uma das mais importantes fontes primárias de geração de energia elétrica no
mundo e também é responsável por emissão de gases de efeito estufa, mas tem pequena
participação na matriz elétrica do Brasil. O carvão é formado a partir de material vegetal
acumulado em pântanos há milhões de anos. A turfa formada é compactada ao longo dos anos
e forma veios de carvão. Necessita-se cerca de 20 m de vegetal para se formar 1 m de carvão.
O poder calorífico aumenta com o teor de carbono presente. O carvão é classificado de acordo
com seu teor de carbono: linhito (30 % de carbono), sub-betuminoso (40 %), betuminoso (50 a
70 %) e antracito (90 % de carbono). O carvão betuminoso e o antracito são os mais
econômicos e utilizados. O carvão existe em grande abundância em vários países conforme
mostra a Fig. 3.29. Cerca de 70 % das reservas mundiais se concentram em alguns países que
são grandes emissores de gases do efeito estufa, pois o utilizam para a geração de energia
elétrica.

Fig. 3.29: Reservas de carvão no mundo em 2015 (EIA, 2016).

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A Fig. 3.30 mostra uma termelétrica a carvão no Rio Grande do Sul, próxima a região
carbonífera brasileira. A grande torre cônica ao fundo é o trocador de calor que rejeita o calor
no ciclo térmico da planta para o meio ambiente. A fumaça branca que emana dessas torres é
apenas vapor d’água. As emissões ocorrem pelas chaminés ao lado.

Fig. 3.30: Complexo termelétrico de Candiota, RS (CGTEE, 2016).

3.5. Comentários finais

A sociedade deve procurar usar a energia da forma mais eficiente possível e poupar
energia primária. A geração, transporte, distribuição e uso da energia formam uma cadeia
muito complexa e tecnológica e causam impactos ambientais variados em cada uma das
etapas. Assim os centros de transformação e as tecnologias de uso final da energia devem ser
melhorados para serem mais eficientes.

As fontes de energia primária e as tecnologias de transformação e uso de energia


evoluíram durante a história da humanidade e devem continuar a fazê-lo. Esta evolução, como
no passado, depende de novos desenvolvimentos científicos e tecnológicos. Assim, todas as
alternativas devem ser consideradas e estudadas.

A matriz energética brasileira é atualmente bastante diversificada. Na década de 70 ela


era bem mais simples. A eletricidade era gerada basicamente por hidrelétricas e os
combustíveis líquidos eram basicamente derivados de petróleo. Atualmente temos cerca de
30% da geração de eletricidade oriundas de fontes primárias como gás natural, carvão, urânio,
biomassa, eólica e solar. Já os combustíveis líquidos contam com importante contribuição do
etanol e também do biodiesel.

Questionário

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80
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4 – O Sol e a Energia Nuclear


Como vimos no Cap. 2, o Sol possui um papel muito importante em nossas fontes de
energia. O Sol movimenta a cadeia hidrológica que abastece os rios das hidrelétricas. O calor
do Sol alimenta as usinas térmicas solares e movimenta os ventos das usinas eólicas. A luz do
Sol fornece energia para os painéis fotovoltaicos. E ainda mais importante: é o Sol, por meio da
fotossíntese, que dá origem a toda a biomassa (incluindo os combustíveis fósseis). Nesse
capítulo, entenderemos melhor o que ocorre no Sol e os fenômenos relacionados.

4.1 – A natureza da luz e da radiação eletromagnética

Antes de discutirmos sobre o Sol e sua influência na Terra, é importante esclarecermos


certos aspectos da luz e, de forma mais geral, da radiação eletromagnética. A natureza da luz é
um assunto interessante e complexo. Einstein, em 1917, já famoso depois de ter publicado
seus mais influentes trabalhos em relatividade e física quântica, disse “Pelo resto da minha
vida, refletirei sobre o que é a luz”.

Um assunto muito rico para a história e filosofia da ciência é traçar a disputa entre a
visão corpuscular, adotada por personalidades como Newton, e a visão ondulatória, defendida
por Huygens, por exemplo. Atualmente, as duas visões coexistem no tratamento científico da
luz. No modelo das reações nucleares no interior do Sol, por exemplo, tratamos a luz de forma
corpuscular dentro contexto da física quântica e de partículas elementares, onde a partícula de
luz é denominada fóton. Para tratar de fenômenos como a difração da luz, é mais conveniente
tratar a luz como uma onda, tendo como base a teoria do eletromagnetismo fundamentada no
conceito dos campos elétrico e magnético desenvolvido por Maxwell na segunda metade do
séc. XIX.

No contexto atual, evita-se a discussão sobre a essência ondulatória ou corpuscular da


luz. A resposta para a pergunta “a luz é uma onda ou uma partícula?” é normalmente do tipo
“depende do fenômeno estudado a luz se manifesta como onda ou partícula”. Ou seja, a física
moderna se esquivou da questão sobre a natureza da luz (daí o desafio que Einstein pôs a si
mesmo), para se preocupar apenas com as manifestações dos fenômenos luminosos em
situações específicas.

Fig. 4.1: Representação de uma onda eletromagnética com a indicação do comprimento de onda.

Quando tratamos a luz como uma onda, costumamos dizer que ela é uma oscilação
eletromagnética (Fig. 4.1), ou seja, a luz pode ser descrita como uma oscilação do campo

81
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

elétrico associada a uma oscilação do campo magnético20. Sabemos que a luz visível
representa apenas uma pequena faixa das possíveis frequências de radiações
eletromagnéticas (Fig. 4.2).

Fig. 4.2: Diagrama esquemático mostrando as diferentes faixas de radiação eletromagnética (raios gama, raios-X,
ultravioleta, visível, infravermelho, micro-ondas, ondas de rádio) e as correspondentes frequências e
comprimentos de onda.

Em fenômenos de natureza quântica, é mais conveniente tratarmos a luz como sendo


constituída de partículas. Por exemplo, ao descrevermos o mecanismo de detecção da luz de
uma máquina fotográfica digital, dizemos que fótons de luz arrancam elétrons de um
elemento do dispositivo gerando o sinal elétrico detectado. Esse fenômeno, em que um fóton
arranca um elétron de um material, é conhecido como “efeito fotoelétrico”. Esse efeito foi
descrito de forma original por Einstein em 1905 onde ele assumiu a natureza corpuscular da
luz. Foi esse o trabalho que rendeu o prêmio Nobel de física a Einstein, e não a relatividade,
que é a sua teoria mais conhecida. Nessa concepção, a luz, e todas as formas de radiação
eletromagnética, são constituídas de fótons. A diferença entre um feixe de raios-X, de luz
visível, ou de infravermelho está na energia dos fótons constituintes. Existe uma relação direta
entre a energia associada a um fóton e o comprimento da onda eletromagnética
correspondente, fazendo a ponte de ligação entre as visões ondulatórias e corpusculares da
luz. Os fótons com menor comprimento de onda (maior frequência) são os mais energéticos.

Como vimos, a luz visível representa apenas uma pequena faixa do espectro
eletromagnético. Na Fig. 4.2 a faixa do visível aparece em destaque, onde os comprimentos de
onda e frequências estão associados a uma cor. Existem razões bem fundamentadas para essa
representação. Sendo assim, é comum afirmações do tipo “a radiação eletromagnética com
comprimento de onda de 650 nm é vermelha”, ou até mesmo, “o fóton de ‚ = 440 nm é
azul”. Estritamente falando, essas afirmações representam um abuso de linguagem. A
percepção da cor é um assunto mais relacionado com a neurociência e fisiologia do que com a

20
A expressão “campo eletromagnético” é um abuso de linguagem. Em eletromagnetismo existe apenas
“campo elétrico” e “campo magnético”. Mais correto seria falar em “fenômenos eletromagnéticos”,
pois as manifestações elétricas e magnéticas são naturalmente inter-relacionadas.
82
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

física. As afirmações acima podem ser facilmente desconstruídas. Seria mais prudente afirmar
“para ‚ = 440 nm, a radiação eletromagnética é normalmente percebida pelo ser humano
como azul”. Mesmo assim existem várias ressalvas. Primeiramente devido à questão filosófica
em torno de um conceito denominado “qualia”, que nesse caso se resume à questão “quem
garante que o meu azul é o mesmo que o seu azul?”. Essa questão ainda está em aberto. Mas
se sabe que as pessoas percebem as cores de formas diferentes, sendo o daltonismo um caso
extremo. Mas um argumento mais forte para a desconstrução de que a cor estaria associada a
um comprimento de onda pode ser resumido na questão:

Qual é o comprimento de onda associado à cor rosa? A resposta para esta questão ajuda
a compreender melhor a relação entre luz e cor.

Os displays de TVs, tablets e smartphones geram todas as cores modulando apenas a


intensidade relativa entre elementos internos dos pixels com 3 cores diferentes: vermelho,
verde e azul. Por isso esse sistema de gerenciamento de cores é chamado de RGB (do inglês
Red-Green-Blue). Não por acaso, o olho humano possui três tipos distintos de cones
receptores (elementos biológicos responsáveis pela detecção da luz no olho) cada um tendo
sensibilidade otimizada para cada uma dessas três cores (Fig. 4.3).

Fig. 4.3: Espectro de resposta dos três cones receptores do olho humano (β, γ, ρ) em função do comprimento de
onda da luz incidente.

A sequência de cores da luz visível pode ser esquematizada da seguinte forma:

Azul – Ciano – Verde – Amarelo – Vermelho

Em negrito estão apenas as cores disponíveis nos displays em sua forma primária no
sistema RGB.

As outras cores são obtidas da seguinte forma:

Amarelo – adicionando-se emissões de verde e vermelho. Note que o amarelo está


entre o verde e o vermelho no espectro.
83
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Ciano – adicionando-se emissões de azul e verde. Novamente, o ciano está entre o azul
e o verde no espectro.

Branco – as três cores acesas juntas.

Preto – as três cores apagadas.

De fato, se fótons com comprimentos de onda de 530 nm e 650 nm chegarem na retina


ao mesmo tempo, a percepção será a mesma se fótons de comprimento de onda 570 nm
atingirem a retina. Ou seja, há duas formas de se enxergar amarelo, o que já descontrói o
conceito de que uma cor é associada a um comprimento de onda.

Que cor enxergaríamos se adicionarmos azul e vermelho? Seguindo a lógica da formação


das cores amarelo e ciano, poderíamos concluir que enxergaríamos o verde, que está entre o
azul e o vermelho no espectro. Mas a evolução é sábia. A retina tem os cones sensíveis ao
verde e percebe que o fóton correspondente ao verde não está lá. Por isso, cognitivamente
“inventamos” uma nova cor, que é o rosa, também conhecido como magenta. Ou seja, a cor
rosa não aparece no espectro do arco-íris e não tem um comprimento de onda associado a ela.
Esse é outro argumento que desconstrói a noção de que cor está associada a um comprimento
de onda.

Esse processo de geração de cores é esquematizado na Fig. 4.4.

Fig. 4.4: representação do processo de geração de cores no modelo RGB.

A explicação dada aqui é bastante esquematizada. Mas com esse princípio básico é
possível gerar uma infinidade de cores e tonalidades. Softwares de imagem em geral dão as
informações sobre as intensidades relativas de RGB para a obtenção de qualquer tonalidade.

O sistema RGB (presente nos displays e projetores) é aditivo, ou seja, trabalham com
elementos que emitem luz e obtém cores por adição. Existe também o sistema de
gerenciamento de cores voltado para impressão, que é subtrativo e trabalha com pigmentos.
84
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Não por acaso, esse sistema trabalha com as cores complementares, ou seja, com o ciano,
amarelo, o magenta e o preto e é conhecido pela sigla CYMK (Cyan, Yellow, Magenta e Key).

Por fim, é interessante notar como existe uma correlação direta entre o sistema RGB de
gerenciamento de cores e a sensibilidade dos cones receptores no olho humano. O grande
poeta e cientista Johann Goethe já defendia que para entendermos a luz e a cor, devemos
estudar profundamente o olho humano. E que se desejarmos compreender o som e a música,
devemos estudar o ouvido humano. Ele tinha razão.

3.2 – A formação do Sistema Solar

O sistema solar possui uma idade de aproximadamente 4.6 bilhões de anos e se originou
do colapso gravitacional de uma nuvem de gás. Desse colapso, formou-se o Sol, que detém
99,86% da massa total, os planetas e demais elementos do sistema. Como podemos perceber,
o Sol é grande e massivo. O raio do Sol é 109 vezes o da Terra e sua massa é 330000 vezes
maior. Isso garante que em seu interior haja grande pressão e uma temperatura muito
elevada, condições necessárias para que as reações nucleares aconteçam.

Fig. 4.5: Representação esquemática da formação do sistema solar, cujo modelo mais aceito parte do colapso
gravitacional de uma nuvem de gás interestelar. Para ilustração, a primeira imagem mostra uma região da nebulosa
de Eta Carinae, conhecida por ser um b erço de novas estrelas. Na sequência, além da evolução temporal ao longo
de bilhões de anos, cada imagem também representa uma proximidade maior ao sol.

O Sol é composto por hidrogênio (91%) e hélio (8,9%) com pequenas quantidades de
metais. Essa composição é similar à composição do universo, quando consideramos apenas a
matéria ordinária, isto é, se não considerarmos a matéria escura. O fato de o hidrogênio e o
hélio serem os elementos químicos mais simples, correspondendo aos dois primeiros
elementos da tabela periódica, ao mesmo tempo os mais abundantes, nos diz bastante sobre a
origem e o destino do Universo.

4.3 – O Sol Como Um Reator Nuclear

Até o momento, o Sol é o único reator nuclear de fusão funcional nas vizinhanças da
Terra. Para entendermos melhor de onde vem a energia solar, temos que entender um pouco
sobre reações nucleares.

Qual é a diferença entre uma reação química e uma reação nuclear? Uma das diferenças
se refere à conservação de massa. Aprendemos no ensino médio que, em uma reação química,
a soma das massas dos reagentes é igual à soma das massas dos produtos. Esse princípio
85
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básico da química já estava refletido na afirmação de Lavoisier “Na natureza, nada se perde,
nada se cria, tudo se transforma” que mais tarde avançou em sofisticação com o
desenvolvimento da estequiometria das reações químicas. A principal característica de uma
reação nuclear, por sua vez, é a não conservação de massa, ou seja, parte da massa pode ser
convertida em energia ou o inverso, onde energia é convertida em massa, cuja equivalência é
descrita pela famosa equação de Einstein

= 5 (3.1)

Note que para se obter o equivalente energético da massa, deve-se multiplicá-la pelo
quadrado da velocidade da luz, que é bem grande. Em outras palavras, uma pequena
quantidade de massa se transforma em uma grande quantidade de energia. Para se ter uma
ideia, a energia liberada na explosão da bomba de Nagasaki (21 kilotons de TNT) correspondeu
a conversão de apenas 1g (isso mesmo, um grama) de matéria em energia21.

No Sol, por sua vez, cerca de quatro toneladas de matéria são convertidas em energia a
cada segundo. Isso ocorre por meio de uma reação de fusão chamada próton-próton. A Fig. 4.6
mostra esquematicamente a estrutura do Sol.

Fig. 4.6: A estrutura do Sol. 1 – Núcleo. 2 – Zona de radiação. 3 – Zona de convecção. 4 – Fotosfera. 5 –
Cromosfera. 6 – Coroa. 7 – Mancha solar. 8 – Grânulos. 9 – Proeminência solar.

A reação próton-próton (Fig. 4.7) ocorre na parte central do Sol, onde a pressão é de
340 bilhões de atmosferas e a temperatura é de 15.7 milhões de graus Celsius. Nessas
condições, a energia térmica é tão alta que desfaz as ligações interatômicas, ou seja, apesar de
haver abundância de átomos de hidrogênio, não há moléculas de hidrogênio. Mais do que isso,
a energia térmica desfaz as interações dentro do átomo, arrancando os elétrons de seus
núcleos. Dizemos que a matéria constitutiva do Sol está na forma de plasma, ou ionizada.
Assim, se desejamos descrever os processos que ocorrem no interior do Sol, os elementos
envolvidos são os elétrons e os núcleos atômicos, que são predominantemente de hidrogênio
(próton) e o hélio (partícula alfa, composta de dois prótons e dois nêutrons). Nesse contexto,
pode-se dizer que na reação próton-próton, quatro prótons (núcleos de hidrogênio) se unem
para formar uma partícula alfa (núcleo de hélio). Ou ainda mais simplificadamente e
cometendo certo abuso de linguagem, pode-se dizer que “quatro hidrogênios formam um

21
Procure na internet vídeos sobre a operação crossroads (“operation crossroads”) de 1946, onde um
teste com a mesma ogiva de Nagasaki (Fat Man) é feita no atol de Bikini.
86
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

hélio”. Nessa última frase está implícito o significado do processo de nucleossíntese estelar,
que representa vários processos que ocorrem nas estrelas dos mais variados tipos, onde
elementos mais pesados são formados a partir de elementos mais leves. A nucleossíntese
estelar explica a abundância de hélio no Universo, além da existência de outros elementos
mais pesados, como o carbono, o oxigênio, nitrogênio, magnésio, ferro etc.

Fig. 4.7: Diagrama esquemático da reação nuclear próton-próton.

A reação próton-próton ocorre em duas etapas principais, que podem ser descritas de
forma simplificada pela sequência:

1. (Quadro azul) Dois pares de prótons se unem gerando dois núcleos de deutério
(um próton e um nêutron). Para cada núcleo de deutério formado, um pósitron
(o correspondente do elétron com carga positiva) e um neutrino são liberados,
garantindo a conservação de energia e carga. O pósitron liberado é quase
imediatamente aniquilado juntamente com um elétron liberando dois fótons de
alta energia (raio gama). Cada núcleo de deutério formado reage com um
próton formando um núcleo de hélio na forma de seu isótopo mais leve (3He)
mais um fóton de raio gama.
2. (Quadro vermelho) A partir do 3He existem 4 possíveis formas de se chegar ao
4
He. A forma mais comum, que ocorre 86% das vezes, é chamado de pp I, onde
o 4He é formado a partir de dois núcleos 3He com a liberação de dois prótons. O
pp I é o representado na Fig. 4.3. As reações pp II e pp III realizam a fusão de 3He
com 4He preexistentes para formar 7Be, que participa de outras reações para
formar 4He. Na reação pp IV, uma partícula de 3He reage diretamente com um
próton para formar o 4He. Esta reação é extremamente rara, mas importante
para entender a física dos neutrinos solares de altas energias.

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

É importante salientar que a descrição acima é simplificada. O processo como um todo é


descrito pela física quântica e dividido em várias sub-etapas, cada uma delas com diferentes
probabilidades de ocorrência e apresentando etapas alternativas correspondentes. Além disso,
a reação próton-próton, apesar de ser a reação dominante no Sol, não é a única forma de
converter hidrogênio em hélio. Nas estrelas maiores que o Sol, a reação mais comum é
conhecida pela sigla CNO e envolve os elementos carbono, oxigênio e nitrogênio em um ciclo
catalítico.

Como descrevemos no início do capítulo, o aspecto mais importante da reação próton-


próton é que a massa do 4He formado é 0,7% inferior à massa dos 4 prótons iniciais. Essa
diferença é transformada em energia (fótons e neutrinos, estes últimos respondendo por
apenas 2% da energia emitida pelo Sol). Os neutrinos, assim que são formados, levam apenas
2.3 segundos para viajar do núcleo do Sol até sua superfície, uma vez que praticamente não
interagem com a matéria. Os fótons por sua vez, assim que são formados, sofrem inúmeras
interações com as partículas e elementos que compõem o Sol, levando entre 10.000 e 170.000
anos para chegar até a superfície. De lá, levam apenas 8 minutos para percorrer a distância
entre o Sol e a Terra. Para entendermos como estes fótons atuam, uma vez chegando à Terra,
devemos entender melhor sobre radiação térmica.

4.4 – Radiação Térmica

Quando falamos sobre radiação térmica, é comum termos em mente os dispositivos de


visão noturna ou a cor âmbar de objetos que estão muito quentes (Fig. 4.8). Nesse sentido
podemos fazer várias perguntas interessantes. Uma barra de gelo irradia no infravermelho?
Todos os objetos, quando aquecidos apresentam a cor âmbar? Para respondermos a essas
perguntas, devemos compreender certos aspectos da radiação térmica.

Fig. 4.8: a) Imagem térmica de uma locomotiva a vapor. O dispositivo que gerou a imagem é semelhante a uma
máquina fotográfica, mas otimizada para detecção de fótons na faixa do infravermelho. b) Foto de uma barra
metálica incandescente.

Pode-se fazer um experimento simples com uma lâmpada incandescente dimerizável


para se compreender dois dos principais aspectos da radiação térmica. A Fig. 4.9 apresenta a
lâmpada em três níveis distintos de potência. Em potência baixa (a), vemos que a
luminosidade da lâmpada é quase nula, e o filamento possui uma coloração avermelhada. Na
potência média, a luminosidade aumenta ligeiramente e a coloração se torna alaranjada. Já
em (c), observamos um drástico aumento na luminosidade, e a luz emitida passa a ser
esbranquiçada. Daí podemos depreender duas leis básicas da radiação térmica. A lei de Stefan-
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Boltzmann que se refere à potência emitida (luminosidade) e a lei de Wien, que se refere à cor
da radiação emitida.

Fig. 4.9: Experimento com uma lâmpada incandescente dimerizável onde podemos observar a potência irradiada
bem como a coloração característica em três potências diferentes: a) baixa, b) média e c) total (60W). No canto
superior direito das imagens a e c incluímos imagem com o detalhe do filamento de tungstênio. Nesse caso foi
utilizada uma lâmpada halógena, que é um tipo de lâmpada incandescente.

Vamos acompanhar a evolução da luminosidade (potência irradiada, ou seja, energia


por unidade de tempo) da lâmpada ao longo das três situações. Na situação da imagem 3.9a,
há baixa potência dissipada no filamento, e sua temperatura ainda é relativamente baixa,
girando em torno de 1000 °C. Vemos que a luminosidade do filamento é desprezível. Já na
situação da imagem 3.9b, podemos perceber certa luminosidade. Já na imagem 3.9c, quando a
potência dissipada é a potencia nominal da lâmpada (nesse caso 60W), a temperatura está em
torno dos 3000°C e podemos perceber um grande aumento da luminosidade. Isso ilustra a lei
de Stefan-Boltzmann que relaciona a energia irradiada por um corpo de acordo com sua
temperatura de acordo com a expressão:

, = ƒ+ „ (4.2)

onde , representa a potência térmica irradiada (coloquialmente por vezes nos referimos por
energia irradiada), ƒ é uma constante de proporcionalidade e + é a temperatura. Note que a
potência irradiada aumenta com a quarta potência da temperatura. Isso explica o abrupto
ganho de luminosidade entre uma situação e outra ao longo da sequência. Porém existe uma
sutileza nessa fórmula, pois a temperatura deve ser expressa na unidade Kelvin para ser válida.
Como sabemos, na natureza existe uma temperatura nula absoluta que é definida como 0 K e
que corresponde a -273,15 °C, e a natureza térmica dos corpos começa a funcionar a partir de
lá. Isso ficará mais claro mais adiante no livro, quando estudaremos a termodinâmica mais
detalhadamente. Mas em todo o caso, quando estamos falando de milhares de graus Celsius, a
conversão para Kelvin não faz muita diferença. Além disso, nossa análise foi feita visualmente,
e como sabemos, o olho humano detecta apenas uma pequena faixa do espectro
eletromagnético, por isso, perdemos parte do que está ocorrendo. Porém com um aparato
experimental dedicado a esse tipo de medida, podemos obter um quadro mais completo do
processo. Um aparato desse tipo é conhecido como espectrômetro. A Fig. 4.10 mostra
esquematicamente o procedimento adotado em uma medida de espectrometria, onde o
conceito é enfatizado e os detalhes técnicos são suprimidos.

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Fig. 4.10: Diagrama ilustrando o processo de espectrometria. Os termos UV e IV se referem a ultravioleta e


infravermelho respectivamente. O gráfico na parte inferior representa o resultado da medida.

A luz a ser analisada é separada em função do comprimento de onda dos fótons


constituintes. Isso pode ser feito por meio de um prisma em um processo refração
imortalizado por Newton quando procurou demonstrar que a luz branca é composta por todas
as cores do arco-íris, mas pode ser feito também com outras técnicas, como uma grade de
difração. Após a luz ser refratada (ou difratada), um detector é utilizado para medir a
intensidade luminosa para cada comprimento de onda. O resultado da análise é um gráfico
esquematizado na parte inferior da Fig. 4.10, que correlaciona a intensidade emitida com o
comprimento de onda.

Se pudéssemos refazer o experimento ilustrado na Fig. 4.9 usando um espectrômetro no


lugar de uma análise visual, o resultado seria parecido com o ilustrado na Fig. 4.11.

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Fig. 4.11: Sequência de imagens da lâmpada dimerizável (Fig. 4.9) acompanhado com uma curva esquematizada do
espectro resultante em cada caso.

Representando os três espectros gerados em um mesmo sistema de eixos, teríamos algo


como ilustrado na Fig. 4.12. A intensidade luminosa é proporcional à área sob a curva em cada
caso.

Fig. 4.12: Representação do comportamento geral dos espectros de irradiação do filamento de tungstênio nas
situações (a), (b) e (c) da Fig. 4.11 colocadas em um mesmo sistema de coordenadas. A linha pontilhada representa
o comportamento descrito pela lei de Wien.

Nessa análise mais criteriosa, podemos perceber as principais características da radiação


térmica. Conforme se aumenta a temperatura, a energia irradiada aumenta em todos os
comprimentos de onda, e a intensidade total (área sob a curva) aumenta drasticamente como
descrito pela lei de Stefan-Boltzmann.

A lei de Wien, por sua vez, descreve o comportamento do ponto de maior intensidade
do espectro de radiação térmica. Segundo essa lei, quanto maior a temperatura do corpo, mais
o pico de maior intensidade se desloca na direção de menores comprimentos de onda. Essa
tendência é destacada pela linha pontilhada na Fig. 4.12 e é analiticamente descrita pela
expressão:

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Q
‚ á… =, (4.2)

Onde • = 0,0028976 m.K. A essa altura, o leitor já deve ter percebido que o princípio de
funcionamento da lâmpada incandescente é aquecer um material até a uma temperatura em
que ele passa a irradiar na faixa do visível. O filamento de tungstênio é usado pois é um metal,
permitindo que seja aquecido pela passagem de corrente elétrica e suporta altas temperaturas
mantendo-se no estado sólido.

Outro fato interessante que podemos destacar da radiação térmica é que o espectro
resultante dos corpos aquecidos possui um aspecto característico. Um modelo consistente
para explicar estes espectros representou um desafio para os cientistas do início do Sec. XX,
cuja solução culminou no nascimento da física quântica. No Cap. 1 destacamos como a
hipótese do neutrino foi criada de forma a adequar o modelo de radiação beta de acordo com
a conservação de energia. Algo parecido ocorreu com o problema dos espectros de radiação
térmica no início do séc. XX. Até o final do Séc. XIX, o principal modelo, conhecido como
Rayleigh-Jeans, previa que os corpos irradiariam uma quantidade infinita de energia, e com
maior intensidade na parte mais energética do espectro (Fig. 4.13). O modelo era
evidentemente inadequado, ainda mais frente às medidas de espectrometria, já disponíveis na
época.

Fig. 4.13: Curvas calculadas para o espectro de radiação térmica dos corpos em diferentes modelos. A curva
tracejada representa a teoria clássica conhecida como lei de Rayleigh-Jeans e mostra como o comportamento
diverge para pequenos comprimentos de onda (mais tarde chamada de “catástrofe do ultravioleta”). A curva
contínua representa o modelo de Planck e mostra sua adequação aos dados experimentais (pontos).

Bem na virada do século, em 1900, Max Planck publicou um artigo com um modelo para
explicar a radiação térmica. Nesse artigo ele elaborou uma hipótese que ia de encontro com
um paradigma bastante estabelecido na ciência no qual se acreditava que a energia é uma
variável contínua. Postulando que a energia é quantizada, Planck conseguiu propor um modelo
que se mostrou bastante adequado para explicar os espectros de radiação térmica (Fig. 4.13).
Este artigo marcou o início da física quântica. Na sequência, outros trabalhos vieram a
corroborar a hipótese quântica, como o modelo de Einstein para o efeito fotoelétrico (1905) e
o modelo de Bohr para o átomo (1913).

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Podemos usar o conhecimento a respeito da radiação térmica para compreender muitos


fatos de nosso cotidiano. Por exemplo, alguém pode perguntar: por que a lâmpada
fluorescente é mais econômica que a lâmpada incandescente ou halógena? A Fig. 4.14
apresenta, de forma esquemática, gráficos obtidos com espectrometria dos três tipos de
lâmpadas. Note que uma lâmpada é concebida para gerar radiação eletromagnética (ou
fótons) na faixa do visível (luz). Na Fig. 4.14, podemos observar que o formato dos espectros é
muito similar ao descrito pelo modelo de radiação térmica (curva contínua da Fig. 4.13).
Olhemos para a curva referente a lâmpada incandescente (curva vermelha). Veja como boa
parte da energia é dissipada na região do infravermelho (‚ = 700 nm ou maior). Sabemos, da
Fig. 4.3, que a sensibilidade do olho humano responde bem somente no intervalo entre ‚ =
400 nm e 650 nm. Ou seja, a maior parte da energia irradiada pela lâmpada incandescente
corresponde a uma radiação invisível ao olho humano. Em outras palavras, a lâmpada
incandescente possui uma eficiência muito baixa em transformar a energia elétrica em luz
visível, dissipando a maior parte na forma de calor (radiação infravermelha). Nesse sentido,
alguém poderia argumentar: seguindo a lógica da radiação térmica, mais especificamente a Lei
de Wien, basta aumentar a temperatura do filamento para que o espectro de emissão passe a
ser predominantemente na faixa do visível. Bem, essa é a solução tecnológica parcialmente
atingida pela lâmpada halógena. Note que a curva de emissão (em verde) possui o máximo
deslocado para a região do visível. Se simplesmente aumentássemos a temperatura do
filamento na lâmpada incandescente comum, teríamos problemas com a evaporação do
tungstênio do filamento e deposição desse material nas paredes internas da lâmpada. Na
lâmpada halógena, que também é um tipo de lâmpada incandescente, existe a combinação do
filamento de tungstênio e um gás halógeno gerando o ciclo halógeno, que redeposita o
tungstênio evaporado de volta no filamento, aumentando sua vida útil, garantindo a
transparência das paredes da lâmpada e permitindo um design mais compacto.

O que ocorre com a lâmpada fluorescente? Note que o espectro correspondente (em
azul) é distinto dos demais e não se adequa ao modelo de radiação térmica. Isso porque a
lâmpada fluorescente não usa uma tecnologia térmica para gerar luz. Os detalhes do
funcionamento da lâmpada fluorescente fogem do escopo desse livro, pois o modelo que
descreve o processo é essencialmente quântico. Mas focando a análise no espectro
correspondente, vemos que o processo gera quase 100% dos fótons na região do visível sendo
mais eficiente.

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Fig. 4.14: Representação esquemática de curvas de espectrometria de três tecnologias diferentes de lâmpadas:
incandescente, halógena e fluorescente.

Mas agora voltemos ao assunto principal do nosso capítulo, o Sol. Se analisássemos a


radiação que vem do Sol em um espectrômetro, o resultado seria como o da Fig. 4.15.

Fig. 4.15: Espectro de radiação térmica do Sol. A curva em amarelo representa o resultado sem a absorção da
atmosfera (em um satélite no espaço). A curva em vermelho representa o espectro obtido ao nível do mar. A curva
em preto representa o espectro de radiação térmica de um corpo a 5250 °C calculado a partir do modelo de
Planck.

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A curva em amarelo representa o resultado de um espectrômetro localizado acima de


nossa atmosfera (em um satélite no espaço). A curva em vermelho representa o espectro
obtido ao nível do mar. Podemos perceber que parte da radiação solar é absorvida pela
atmosfera, e o gráfico indica os elementos químicos de nossa atmosfera responsáveis por cada
faixa de absorção. A curva em preto representa o espectro de radiação térmica de um corpo a
5250 °C calculado a partir do modelo de Planck. É com essa informação que sabemos a
temperatura na superfície do Sol (ninguém foi lá e colocou o termômetro). Note a
impressionante adequação do espectro calculado de acordo com o modelo de radiação
térmica e o espectro solar. Note também como á máxima intensidade de irradiação se
encontra bem localizada na faixa do visível. É natural concebermos que a evolução adaptou a
visão humana para detectar a faixa de radiação mais abundante vinda do Sol.

Fig. 4.16: Representação de espectros de radiação térmica, medidos por espectrômetros, de duas estrelas
distintas. A estrela representada pelo espectro em vermelho é mais fria e sua curva se aproxima do espectro
calculado a partir do modelo de Planck para um corpo em uma temperatura de 4000 K (ou 3700 °C, representado
pela linha vermelha tracejada) indicando que a superfície da estrela é da ordem de 4000 k. Ao observar essa
estrela no céu a olho nu, poderia se perceber um brilho avermelhado. Já a estrela representada pelo espectro em
azul, vista a olho nu, apresentaria um brilho azulado. A temperatura superficial dessa estrela é mais alta, uma vez
que seu espectro se aproxima mais do espectro calculado para um corpo a temperatura de 10000 K (linha azul
tracejada). Nesse caso, vemos que o formato da curva difere bastante do modelo da radiação térmica. Isso porque
os fótons mais energéticos tendem a sofrer processos de absorção no hidrogênio presente nas partes mais
externas da estrela.

Sendo o Sol uma estrela, podemos nos perguntar se o espectro de outras estrelas
também se adequam ao modelo de radiação térmica. De fato, a resposta a essa questão é bem
simples uma vez que a espectrometria das estrelas é uma medida bastante comum e é com
esse tipo de medida que se sabe a temperatura da superfície dessas estrelas. É por isso que se
diz que é possível se ter uma ideia da temperatura da estrela vendo a coloração delas. A Fig.
4.16 mostra o espectro de outras estrelas. A estrela representada pela curva em vermelho
apresenta uma temperatura em torno de 4000 K (3700 °C) e uma coloração avermelhada. Já a

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estrela representada pela curva em azul apresenta uma coloração azulada e uma temperatura
superficial em torno de 10000 K. No caso do espectro da estrela mais quente, em azul, vemos
que o formato da curva difere bastante do modelo da radiação térmica (linha tracejada). Isso
porque os fótons mais energéticos tendem a sofrer processos de absorção no hidrogênio
presente nas partes mais externas da estrela.

No contexto exposto aqui, podemos dizer que o Sol é uma gigantesca esfera com massa
em torno de 2x1030 kg (dois seguido de trinta zeros) composto principalmente por hidrogênio
e hélio. Em seu núcleo, reações nucleares de fusão geram 3,846 x 1026 W (384,6 yotta Watts)
de energia, que chegam à Terra principalmente na forma de radiação eletromagnética
(fótons). O espectro de emissão eletromagnética do Sol possui boa concordância com o
modelo de radiação térmica.

Obviamente apenas uma pequena parte da energia produzida pelo Sol chega à Terra
onde ela responsável por vários processos importantes. Porém se analisarmos em uma escala
local, o aproveitamento da energia solar depende de vários fatores, tais como, a latitude, a
estação do ano, período do dia, condições climáticas etc. A Fig. 4.17 ilustra a influência da
latitude na atuação da energia solar sob a Terra. Nas latitudes menores, ou seja, nas regiões
próximas ao equador, a incidência da radiação solar é mais direta. No verão, quando o Sol está
no zênite (a pino – situação A), a potência da radiação solar é em torno de 1120 W/m2 (Watts
por metro quadrado). Isso ao nível do mar, já contando com a absorção da atmosfera. Acima
da atmosfera, essa potência é de aproximadamente 1366 W/m2. Já para latitudes maiores
(situação B) a incidência é mais indireta e essa potência cai. Isso explica a tendência geral em
que as temperaturas caem com o aumento da latitude.

Fig. 4.17: Influência da latitude sobre a incidência da radiação solar na Terra. Na região B uma mesma quantidade
de energia é irradiada sobre uma área maior do que na região A.

A potência irradiada pelo Sol também não é constante. A Fig. 4.18 mostra que existe
uma pequena oscilação dessa potência, com um ciclo de aproximadamente 11 anos. Há uma
boa correlação entre o ciclo da potência irradiada com o índice de aparecimento de manchas e
erupções solares, indicando que a variação da irradiação está relacionada com processos
internos do Sol.

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Fig. 4.18: Ciclo de variação da potência irradiada pelo Sol, e sua correlação com outros parâmetros importantes,
como o número de manchas, número de erupções solares e fluxo de ondas de rádio.

Outro fenômeno importante relacionado com a irradiação solar sobre a Terra se refere
ao efeito estufa. A Fig. 4.19 mostra esquematicamente como, de toda a irradiação solar, uma
parte é refletida para o espaço pela atmosfera e outra parte é refletida pela superfície da
Terra.

Fig. 4.19: Diagrama esquemático da interação da radiação solar com a Terra.

Por volta da metade da radiação solar que atinge a Terra é absorvida pela superfície.
Essa absorção, juntamente com outros processos internos da Terra relacionados à energia
geotérmica, ajuda a manter a amena temperatura da superfície da Terra que conhecemos.
Apesar das diferenças locais, podemos dizer que a temperatura média da Terra é de 16°C
(289K) e, como sabemos, qualquer corpo com temperatura diferente de 0K irradia
termicamente. Nessa temperatura a Terra irradia na faixa do infravermelho (pico de irradiação
no comprimento de onda ‚ = 10000 nm), e parte dessa radiação fica retida na atmosfera
gerando o efeito estufa. De forma geral, o efeito estufa é benéfico e necessário para o
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equilíbrio da biosfera. A grande discussão atual em torno do efeito estufa se refere ao


aumento do efeito estufa, o que pode ser desastroso, não para a natureza, que já passou por
mudanças mais drásticas, mas para a humanidade.

De fato, podemos também analisar a radiação emitida pela Terra dentro do modelo de
radiação térmica. A Fig. 4.20 compara os espectros de radiação térmica do Sol e da Terra.

Fig. 4.20: Comparação entre os espectros de radiação térmica do Sol e da Terra. Para efeitos de comparação, a
intensidade do espectro da Terra foi multiplicada por 500.000.

Em primeira aproximação, podemos dizer que a temperatura média da Terra se


manteve constante ao longo dos milênios. Para a análise que queremos fazer aqui, as
variações entre as eras glaciais é desprezível. Essa constância na temperatura indica que há um
equilíbrio entre a energia que a Terra recebe do Sol e a energia que ela irradia de volta ao
espaço. Se assim não fosse, por exemplo, se a energia recebida pelo Sol fosse maior do que a
irradiada ao espaço, haveria um aumento gradual da temperatura da Terra.

Por outro lado, vemos na Fig. 4.20, que os fótons que a Terra recebe do Sol são distintos
dos que ela reflete de volta ao espaço. Recebemos do Sol, fótons de alta energia, boa parte
deles na faixa do visível, e a Terra emite fótons de baixa energia, na faixa do infravermelho.
Nesse contexto, pode se dizer que, para cada fóton que chega do Sol, a Terra emite ao espaço
20 outros fótons. Coloquialmente falando, é como se a Terra se alimentasse de uma energia de
alta qualidade e jogasse de volta ao espaço uma energia de baixa qualidade. Numa forma mais
técnica, dizemos que há um desequilíbrio entrópico, lembrando que entropia é um conceito
que veremos mais detalhadamente adiante, mas aqui o leitor já tem a oportunidade de ter um
contato contextualizado com o termo. Assim, muitos físicos defendem a ideia de que a Terra
não se alimenta da energia do Sol, mas se alimenta da alta qualidade da energia do Sol. Logo,
podemos dizer que na interação entre as radiações térmicas do Sol e a Terra, há um equilíbrio
energético, mas há um desequilíbrio entrópico.

Por fim, o leitor mais experiente, e que buscou outras fontes de consulta, pode
questionar o fato de nunca termos usado o termo “radiação do corpo negro” uma vez que esse
98
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

termo é mais comum do que “radiação térmica”. Os autores desse livro consideram que o
termo “corpo negro” representa um termo pedagogicamente desastroso para os estudantes
que estão pela primeira vez em contato com os conceitos de radiação térmica. Porém o termo
tem suas justificativas.

A radiação provinda de um corpo pode ser originada de vários processos físicos, tais
como a reflexão, absorção e transmissão de luz ou radiação incidente, bem como outros
processos térmicos. Isso explica porque uma folha de árvore é verde e o vidro transparente,
por exemplo. Mas a observação de objetos como o carvão em brasa e os metais em forjas
indica que existe algo inerente à radiação térmica. Isso fez com que cientistas como Gustav
Kirchhoff e Max Planck idealizassem um corpo ideal que manifestaria apenas os processos
térmicos. Esse corpo teria que absorver toda a radiação incidente, não deixando que nada
fosse refletido ou transmitido. Sabemos que um pigmento preto, idealmente, tem como
caraterística absorver fótons em todos os comprimentos de onda do visível. Isso fez com que
Gustav Kirchhoff imaginasse um corpo coberto por um pigmento preto feito a partir de fuligem
(lampblack), que idealmente absorveria toda a radiação incidente. Daí a relação entre a área
de estudo da radiação térmica e um “corpo negro”. Mas essa associação era imperfeita, pois
todo pigmento absorve parte da radiação e reflete outras.

Outra forma de se conceber um corpo ideal para o estudo da radiação térmica seria um
objeto que absorvesse a radiação refletida por ele mesmo, até que essa radiação atingisse o
equilíbrio térmico com o corpo. A melhor forma de se fazer isso é imaginar um corpo oco, ou
uma cavidade, com um pequeno orifício por onde entraria a radiação incidente (Fig. 4.21).
Uma vez no interior do corpo, essa radiação interagiria com as paredes do corpo por meio de
reflexão e absorção até atingir equilíbrio térmico com este.

Fig. 4.21: Idealização de um corpo negro como sendo uma cavidade com um pequeno orifício através do qual a
radiação incidente penetra e interage com o corpo.

Essa idealização até faz sentido. Porém, vimos como a teoria da radiação térmica é útil
para compreendermos a radiação solar e de uma lâmpada incandescente, por exemplo, e
reduzir estes objetos físicos à idealização da Fig. 4.21 é um exercício bastante desafiador. Por
isso, iniciar o tratamento da radiação térmica explicando o conceito de corpo negro ao
estudante pode ser pedagogicamente desastroso.
99
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

4.5 - Escalas de energia

Anteriormente, dissemos que a diferença entre um fóton de luz visível e um fóton na


faixa do infravermelho se refere a sua energia. No entanto a conexão entre a escala atômica e
a escala humana nem sempre é fácil de apreender.

No sistema internacional, usamos o Joule (J) como medida de energia, e ele é definido
normalmente em relação ao conceito de trabalho. Se considerarmos o trabalho como a ação
de uma força em um deslocamento, o Joule pode ser definido como a ação de um Newton (N)
de força ao longo de 1 metro (m). Imagine que você está segurando uma (pequena) maçã de
100g em sua mão. Um Newton corresponde a aproximadamente a força do peso da maçã em
sua mão. Deixe a maçã cair e ela terá aproximadamente 1 J de energia depois de 1 metro de
queda. Seria exatamente 1 J se a aceleração da gravidade fosse exatamente = 10 m/s2,
porém o valor de está mais próximo de 9.8 m/s2. Ou seja, se uma mesa tiver 1 m de altura, 1
J corresponde a energia que uma maçã pequena adquire ao cair da mesa até o chão.

Quando deslocamos a nossa análise para a escala atômica, é interessante que os


padrões de medida sejam adaptados. Temos que buscar outra “mesa” e outra “maçã”. No
exemplo anterior, a mesa representa uma diferença de potencial gravitacional e a maçã, um
corpo típico. Quando vamos para escala atômica, usamos a diferença de potencial elétrico que
é medida em Volts (V) e usamos como corpo de prova o elétron (que possui carga e sente uma
força elétrica na presença de campo elétrico). Denominamos de elétron-volt (eV) a energia
que um elétron adquire ao “cair” uma diferença de potencial de 1 Volt. A Tab. 4.1 procura
fazer uma correlação entre as energias dos fótons e sua conexão com elementos de nosso
cotidiano.

Tab. 4.1: Energia correspondente a certos fótons, processos da natureza e máquinas humanas.
Elemento ou processo Energia
Fóton no infravermelho com ‚ = 10000 nm – o
representante mais comum na radiação térmica da 0,124 eV
Terra.
Fótons na faixa do visível (400 nm < ‚ < 700 nm) –
1,6 a 3,4 eV
representantes mais comuns na emissão do Sol
Energia necessária para arrancar o elétron do átomo de
13,6 eV
hidrogênio (ionização do H)
Fóton na faixa do Raio-X (depende do tipo de raio-X) 100 a 100.000 eV
22
Um pernilongo voando 1 Tev (um teraelétron-volt ou 1 000.000.000.000 eV)
As colisões geradas no LHC (Large Hadron Collider) – o
13 TeV
centro de pesquisa que detectou o Bóson de Higgs

Da Tab. 4.1 podemos perceber que a Europa investiu 7.5 bilhões de euros para construir
um equipamento para realizar colisões com energia equivalente a 13 pernilongos voando.
Novamente, há que se levar em conta a qualidade da energia envolvida. Uma bola de boliche
lançada e uma bala de revolver possuem energias similares. Porém há muito mais tecnologia
envolvida na construção do revolver e sabemos dos efeitos que uma bala pode realizar.

22
http://news.berkeley.edu/2015/06/03/high-hopes-as-large-hadron-collider-pumps-protons-to-ever-
higher-energy/
100
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Tecnicamente é bastante desafiador colocar a energia equivalente a um pernilongo voando em


um próton.

4.6 – Aprofundamento: Energia Nuclear na Terra

Na seção 2.3 do Cap. 2 discutimos como podemos considerar as energias armazenadas


sob a forma de ligações. Na ocasião, focamos a análise nas ligações químicas. Agora
entraremos um pouco mais na questão das ligações e reações nucleares. No início desse
capítulo já tratamos de forma contextualizada o princípio de geração de energia nuclear que
ocorre no sol. Procuramos enfatizar o conceito de transformação de massa em energia, o que
é bem característica das reações nucleares.

A energia nuclear é uma tecnologia estabelecida e muito usada para geração de energia
elétrica. Diferente do que ocorre no sol, onde há reações de fusão, as usinas nucleares na
Terra usam a fissão de elementos pesados, geralmente o urânio. O princípio de funcionamento
das usinas nucleares é similar princípio das termelétricas comuns, que veremos no Cap. 6. Nas
usinas nucleares, as reações de fissão têm como objetivo gerar calor, substituindo a queima de
carvão normalmente usada nas termelétricas tradicionais.

Nos primeiros capítulos pudemos argumentar com certa naturalidade sobre massa e
carga elétrica, pois todos tem um conhecimento tácito sobre esses assuntos. Isso é diferente
para a ciência atômica e nuclear. Para entendermos melhor as reações nucleares, faz-se
necessário descrever um pouco sobre as partículas elementares e a formação dos núcleos
atômicos.

4.6.1 – Modelo das Partículas Elementares

Os modelos de forças nucleares e de partículas elementares estão em evolução e os


comentários feitos no Cap. 1 sobre as dificuldades para o desenvolvimento de novos modelos
para descrever fenômenos físicos são aplicáveis também nesta área. O modelo nuclear
baseado em um aglomerado de nucleons (prótons e nêutrons) é suficiente para representar as
reações nucleares de interesse para a geração de energia nuclear, mas a estrutura nuclear
conhecida hoje é muito mais complexa. O modelo nuclear com prótons e nêutrons e elétrons
ao redor em órbitas definidas por relações definidas pela mecânica quântica permite descrever
os fenômenos de emissão de radiação X para transições de elétrons de uma órbita para outra
na eletrosfera, emissões a partir do núcleo de radiação gama ou partículas alfa, beta, prótons e
nêutrons e fissão espontânea. Esse modelo também permite descrever reações nucleares que
ocorrem nos reatores nucleares de fissão e fusão, estes últimos ainda em desenvolvimento.

Por volta dos anos 1950 o desenvolvimento tecnológico de aceleradores permitiu a


produção de feixes de partículas com alta energia em laboratórios. Uma grande quantidade e
variedade de experimentos de espalhamento de feixes de partículas foram realizadas reunindo
uma enorme quantidade de dados. O desenvolvimento de computadores posteriormente
permitiu a análise desses dados. Na década de 1960 esses estudos produziram a descoberta de
um grande número de partículas instáveis indicando que algumas delas poderiam ser
formadoras dos nucleons (prótons e nêutrons). Estava claro que era necessário o
desenvolvimento de novos modelos para explicar o comportamento de todas estas partículas
descobertas. Surgiu então o modelo de quarks que postulava que várias das novas partículas
101
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

descobertas e também os nucleons eram constituídos por 3 estas partículas elementares


denominadas quarks.

Há dois tipos de partículas elementares, denominadas férmions e bósons, que têm


propriedades físicas distintas e seguem estatísticas distintas23. Os férmions obedecem ao
princípio de exclusão de Pauli, tem spin 1/2 (momento angular intrínseco de origem na
mecânica quântica) e são as partículas constituintes da matéria. Entre essas partículas estão os
léptons (elétrons entre outras partículas) e os quarks (6 partículas elementares que constituem
um grupo grande partículas entre elas os nucleons). Os bósons não obedecem ao princípio de
exclusão de Pauli, tem spin 1 e são as partículas mediadoras das 4 interações fundamentais ou
forças existentes na natureza. Isto é, são as partículas que efetivamente atuam sobre os
corpos quando submetidos a forças de campo como as oriundas do campo elétrico, campo
magnético e campo gravitacional.

A Fig. 4.22 apresenta as partículas formadoras da matéria e as partículas mediadoras das


interações (ou forças) existentes na natureza: interação nuclear forte, interação nuclear fraca,
interação eletromagnética e interação gravitacional. Nos modelos (ou teoria) de física clássica
temos as duas últimas interações na forma de forças de campo que atuam a distância e sem
contato. Nos modelos (ou teoria) de física quântica essas forças atuam por meio da troca de
partículas denominadas partículas mediadoras que buscam explicar as interações destas forças
de campo, as reações nucleares, transferências de carga e de energia.

Fig. 4.22: Partículas elementares constituintes da matéria e partículas mediadoras das interações fundamentais da
natureza. Situação em 2010.

Os quarks não são encontrados na natureza de forma isolada. Estão sempre associados
em partículas denominadas hádrons. Há muitos hádrons entre eles os nucleons que são
formados por 3 quarks. Elétrons e neutrinos são léptons. Os átomos existentes na natureza são
compostos de hádrons e léptons.

A interação forte é mediada por uma partícula chamada glúon e é responsável pela
união de quarks para formar prótons e nêutrons entre outras partículas. A geração de energia

23
Uma evidência fenomenológica de que bósons e férmions obedecem a estatísticas diferentes: quando
cruzamos dois cabos de madeira (férmions), tal qual crianças brincando de espadas, os cabos se chocam.
Quando cruzamos dois feixes de laser (bósons) eles passam um pelo outro sem colisão.
102
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

pela via nuclear está relacionada à interação forte. A interação fraca é mediada por partículas
chamadas bósons, W e Z, e atuam nos eventos de decaimento beta que ocorre nos núcleos
atômicos. Estas duas formas de interação ocorrem na escala atômica, nuclear e das partículas
fundamentais. A força eletromagnética, mediada pelo fóton, cria campos elétricos e
magnéticos que são responsáveis pelas ligações químicas, ondas eletromagnéticas e luz visível.
A força da gravidade seria mediada pelo gráviton (que ainda não foi identificado), é mais fraca
que as forças elétrica e magnética, mas são dominantes na escala de planetas e galáxias. A Fig.
4.22 também apresenta a intensidade relativa dessas forças.

Os quarks são partículas elementares definidas como sendo puntiformes, sem estrutura
interna ou estados excitados e caracterizados por massa, carga elétrica e spin. Os quarks têm
dois tipos de carga: de cor e elétrica. As cargas de cor são vermelho, azul e verde e
caracterizam a interação forte. Há 6 tipos de quarks e suas cargas elétricas são fracionárias
(-1/3 e) e (+2/3 e), onde “e” é a carga elementar do elétron. Os prótons e nêutrons (hádrons)
não são partículas elementares como pensado por volta dos anos 1930. Os nucleons são
formados por 3 quarks: os nêutrons são formados por 2 quarks down e 1 quark up e os
prótons por 2 quarks up e 1 quark down. As cargas elétricas dos quarks são fracionárias: a do
quark up é (+2/3 e) e a do quark down é (-1/3 e). Os glúons dentro dos nucleons mantêm esses
quarks ligados por meio da interação forte que vence a repulsão eletrostática entre os quarks
de cargas semelhantes. Observa-se que a atuação dos glúons (interação forte) consome parte
da massa das partículas constituintes e, portanto, a massa de um nucleon é inferior a massa
dos quarks constituintes. A interação forte é aproximadamente 100 vezes mais intensa que a
eletromagnética e tem um alcance muito pequeno, somente em dimensões nucleares. Estas
propriedades foram observadas experimentalmente na década de 1960 e nas décadas
seguintes. A situação da física nuclear e de partículas em 2018 não mudou muito desde então.

A interação fraca explica o fenômeno do decaimento beta que é a emissão de elétrons e


neutrinos a partir de um núcleo. As interações eletromagnética e gravitacional são mais
conhecidas. Já existe um modelo ou teoria que unifica as interações eletromagnética e nuclear
fraca, denominada interação eletrofraca.

4.6.2 – Núcleos Atômicos

Passemos agora a discussão do núcleo atômico e como podemos quantificar a energia


liberada nas reações nucleares. O núcleo é um conjunto de nucleons (prótons e nêutrons) e
estes, de quarks. O comportamento do núcleo parece ser ditado pela relação dos nucleons e
não dos quarks individualmente. A interação forte que une os nucleons tem um alcance que
vai além das dimensões dos nucleons de tal forma que ela atua também entre os nucleons
dentro do núcleo. Ela é forte o suficiente para vencer a repulsão eletrostática entre os prótons
que apresentam carga elétrica positiva na região do núcleo. Contudo a interação é um pouco
diferente da interação forte entre quarks, pois se tratam de sistemas de 3 partículas
interagindo entre si. De toda forma a massa do núcleo é inferior a soma das massas dos
nucleons constituintes porque a interação forte se manifesta consumindo massa dos nucleons.
É uma situação semelhante ao resultado que observamos da interação entre átomos e daquele
que observamos da interação de moléculas (estas pensadas como conjunto de átomos). As
moléculas e conjuntos de átomos formam os diversos materiais, que podem estar em
diferentes estados e apresentarem propriedades diferentes.
103
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Ainda não se conseguiu obter modelos que descrevam o comportamento dos núcleos
com bastante precisão a partir das partículas elementares. Assim, os modelos para o núcleo
baseados nas interações dos nucleons ainda predominam, contudo pesquisas importantes são
realizadas para tratá-los por meio da física das partículas elementares. Os principais modelos
são os da gota líquida, gás de Fermi, de camada e coletivo. Os dois últimos modelos são
baseados em mecânica quântica e em premissas dos modelos anteriores. O modelo coletivo é
semelhante ao de modelo de camadas, mas admite deformação da forma esférica do núcleo.
As principais características deste modelo são poço de potencial esférico isto é, o núcleo é
pensado com um poço onde se encontram os vários nucleons. Dentro do poço estão livres mas
não conseguem sair devido as paredes do poço que fisicamente chamamos barreira de
potencial. Neste modelo os nucleons formam um gás de com a estatística de Fermi com um
termo de spin orbital e pode ocorrer a deformação do núcleo.

Os dados nucleares que utilizamos sobre massas nucleares, decaimentos radioativos e


reações nucleares e energias de radiações emitidas são baseados nesses modelos e dados
experimentais. As massas nucleares são importantes porque nas reações nucleares a variação
de massa entre reagentes e produtos, ∆†, fornece a energia liberada na reação, ∆ , por meio
da equação obtida por Einstein, ? = ?†5 . Assim, nos modelos nucleares baseados na
massa dos núcleos a energia interna nuclear do sistema núcleo é dada por

&†' = †5 &4.2'

onde † é a massa do núcleo e 5 é a velocidade da luz.

Os núcleos são caracterizados pelos números de nucleons existentes no seu interior. Um


núcleo ‡ qualquer é representado por ‰ˆ‡ onde Š é o número de nucleons (prótons +
nêutrons) e Z é o número de prótons. O número de nêutrons é denominado de \ de forma
que Š = \ + Z. A massa de um núcleo com \ e Z nêutrons e de prótons, †&\, Z', é menor
que a massa dos nucleons constituintes. Isto ocorre porque parte da massa dos nucleons é
utilizada como energia de ligação da interação forte entre os prótons e nêutrons,

†&\, Z' < \ +Z 6 &4.3'

onde e 6 são as massas do nêutron e do próton. Utilizando as Eqs. 4.2 e 4.3, a energia de
ligação Œ&\, Z' ou Œ&Š, Z' é dada pela diferença entre a energia interna dos nucleons
constituintes e do núcleo formado

Œ&\, Z' = 0\ +Z 61 − 0†&\, Z'1 = •\ +Z 6 − †&\, Z'Ž 5 . &4.4'

A Fig. 4.23 apresenta a energia de ligação por nucleon em função do número de massa
dos núcleos. O núcleo do PPL que não tem energia de ligação com outros nucleons porque é
apenas um próton solitário. Entre os núcleos estáveis ou de meia-vida muito longa (milhões de
anos) mostrados na figura o núcleo mais simples é o do Deutério, PL, um isótopo do
hidrogênio e o mais complexo é o do urânio, •‘ • , este com 238 nucleons, 92 prótons e 146
nêutrons.

104
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Quanto maior é a energia de ligação por nucleon mais estável é o núcleo, pois mais
massa foi convertida em energia de ligação. Energia de ligação nula significa que não há
ligação alguma e, portanto os nucleons estão livres na natureza, isto é, são prótons e nêutrons
na natureza. Vemos que o pico ocorre quando o número de massa está em torno de 56,
indicando que núcleos nesta faixa de número de massa são os mais estáveis. Isto significa que
em média para retirar um nucleon de um núcleo de Fe ou Ni necessitamos de cerca de 8,7
MeV, para retirar um nucleon do núcleo de U necessitamos de cerca de 7,6 MeV e do
Deutério, cerca de 2,9 MeV. Núcleos com A superior ao do •‘ • são artificiais, isto é, foram
produzidos em laboratórios por meio de reações nucleares. Esses núcleos mais pesados são
instáveis porque o número de prótons é muito grande e a repulsão eletrostática é maior.

’&‰,ˆ'
Fig. 4.23: Energia de ligação por nucleon, , dado em MeV (mega eV) em função do número de massa.

A Fig. 4.23 evidencia que alguns núcleos apresentam picos de energia de ligação
quando comparados com seus vizinhos como o „LX e o POJ . Isto acontece devido ao efeito de
fechamento de camadas que tornam esses núcleos mais estáveis. É um efeito semelhante ao
fechamento dos orbitais que tornam os gases nobres menos reativos com outros elementos
químicos como já discutimos na seção 2.3 do Cap 2 quando discutimos a regra do octeto.

A Fig. 4.24 mostra os núcleos já existentes na natureza e produzidos artificialmente em


um diagrama cartesiano de Z versus \. Na lateral há uma legenda indicando a meia-vida dos
núcleos. Aqueles estáveis estão em preto e formam uma linha em zig-zag no centro da figura.
Para um dado número de prótons a figura identifica a quantidade de nêutrons que permite
formar um núcleo estável. Muitos nêutrons a menos ou a mais produzem núcleos instáveis. O
mesmo acontece para uma dada quantidade de nêutrons, pois muitos ou poucos prótons
levam a instabilidade. O maior núcleo estável encontrado na natureza é o do chumbo “‘ ‘ •.
Todos aqueles mais pesados são instáveis e decaem por alguma forma de desintegração.
Entretanto a meia-vida de muitos deles pode ser muito longa como a do •‘ • que é 4,5x109
anos. Isto se dá por efeitos de repulsão eletrostáticas que passam a exigir cada vez mais
nêutrons para viabilizar os núcleos mais pesados. Esses núcleos aparecem na natureza ao
longo da cadeia radioativa dos U e Th que eventualmente termina formando chumbo.

105
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 4.24: Distribuição de núcleos estáveis e instáveis em função do número de prótons e nêutrons. Cada pequeno
quadrado representa um núcleo. À direita pode ser verificada a meia-vida aproximada dos vários núcleos.

4.6.3 – Reações Nucleares e sua Utilização nas Usinas de Energia

As reações nucleares são tratadas de maneira semelhante às reações químicas, tendo


reagentes e produtos, contudo há também reações espontâneas que ocorrem quando os
núcleos são instáveis. O decaimento radioativo é uma reação espontânea que um núcleo
instável realiza buscando uma condição de maior estabilidade energética ou maior energia de
ligação entre seus nucleons constituintes. Examinando a Fig. 4.23 vemos que há dois caminhos
possíveis para que os núcleos atinjam maior estabilidade ou maior energia de ligação por
nucleon: desintegrando os núcleos de Š > 56 via emissão de partículas para reduzir suas
massas ou aglutinando os núcleos de Š < 56 para formar núcleos mais pesados. Já
examinando a Fig. 4.24 vemos outras possibilidades. Para um núcleo com Z prótons, notamos
que existe uma faixa de quantidade de nêutrons que leva à estabilidade. Um excesso ou falta
de nêutrons em relação a esta faixa de número de nêutrons leva a instabilidade. Vamos iniciar
discutindo o fenômeno de desintegração espontânea.

A desintegração pode ocorrer por meio da emissão de partículas que compõem o


núcleo. O núcleo é composto dos nucleons prótons e nêutrons, entretanto os nucleons são
formados por quarks que tem cargas que elétricas. Experimentos mostram que as
desintegrações mais comuns são a emissão de elétrons (radiação β-), pósitrons (radiação β+),
nêutrons (n), prótons (p) e de núcleos de „LX (partícula α). A emissão de partículas α é
comum entre os núcleos pesados porque o núcleo de He forma um sistema muito coeso como
mostra o pico de energia de ligação na Fig. 4.23. Essas emissões emitem matéria a partir do
núcleo (hádrons e léptons). Outra emissão muito observada é a de fótons (radiação γ). Como
vimos anteriormente, o fóton é o bóson da interação eletromagnética. Ela é oriunda de
interações eletromagnéticas que ocorrem dentro do núcleo e dos quarks que têm cargas
elétricas. A radiação γ não leva matéria do núcleo, mas sim energia eletromagnética. Ela
ocorre também associada às emissões de partículas visando prover uma acomodação dos
nucleons remanescentes no interior do núcleo.

106
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Nas reações nucleares, que são fenômenos da mecânica quântica, a massa não se
conserva porque ela pode se transformar em energia e vice-versa. Mas o número de nucleons,
Š, e a carga elétrica se conservam. A Tab. 4.2 mostra os decaimentos radioativos mais comuns
que um núcleo hipotético ‰ˆ‡ pode fazer. Os decaimentos ocorrem porque núcleos instáveis
tem uma probabilidade de emitir radiação para alcançar estados mais estáveis com energia de
ligação por nucleon maior. A emissão γ leva o núcleo para um estado mais estável sem causar
uma transmutação nuclear. A emissão é puramente energética na forma de um foton. As
emissões que envolvem matéria (partícula) causam transmutação nuclear variando Š, Z e \.

Na emissão ” Y o núcleo emite um elétron tendo como efeito interno ao núcleo a


transmutação de um nêutron em próton. O novo núcleo tem um incremento de 1 unidade em
Z. Na emissão ” W a emissão do pósitron transmuta um próton em nêutron e o novo núcleo
tem um decréscimo de uma unidade em Z. Em ambos os decaimentos o número de massa Š
não se altera. Na Fig. 4.24 estes decaimentos fazem com que os nucleons se desloquem ao
longo da diagonal. Dado um núcleo com um excesso de nêutrons para um dado Z,
decaimentos ” Y sucessivos levam a reduzir \ e aumentar Z em direção a núcleos mais
estáveis. Inversamente, dado um núcleo com uma falta de nêutrons para um dado Z,
decaimentos ” W sucessivos levam a aumentar \ e reduzir Z em direção a núcleos mais estáveis
a o número de nêutrons.

As outras reações são mais obvias quanto à transmutação nuclear. A emissão de


nêutrons reduz número \ e a emissão de prótons reduz Z. Para uma situação de excesso de
nêutrons as reações de emissão de nêutrons tendem a prevalecer enquanto para uma situação
de escassez de nêutrons a emissão de prótons tende a prevalecer. A emissão de partículas α
tende a acontecer em núcleos pesados onde a repulsão eletrostática é importante. Dessas
reações as mais frequentes são os dois decaimentos β e o decaimento α. A fissão espontânea
ocorre com núcleos como o U ou mais pesados. Eles são instáveis e em certas condições
praticamente se dividem em dois núcleos menores com aproximadamente a metade da massa
e emitem concomitantemente nêutrons, radiação gama e radiação beta.

Outra forma de ocorrer transmutação nuclear e emissão de radiação é por meio de


reações nucleares envolvendo o choque de partículas com núcleos. Nesse caso uma partícula
colide sobre um núcleo para promover a obtenção do produto desejado, que pode ser um
núcleo transmutado, algum tipo de radiação ou energia. A Tab. 4.3 mostra os tipos de reação
mais comuns entre uma partícula e um núcleo. Algumas propriedades nucleares são
conservadas durante as reações entre elas o número de nucleons. As reações podem ocorrer
por vários caminhos ou canais. Podemos dividir o processo em duas fases: na primeira a
partícula forma um núcleo composto devido à absorção da radiação ou partícula incidente,
este núcleo composto é excitado, porque alguns nucleons ficam em estados elevados de
energia e consequentemente instável. Na segunda fase ocorre quase que instantaneamente o
decaimento do núcleo composto via as formas descritas na Tab. 4.2, visando alcançar núcleos
mais estáveis. Portanto, reações com reagentes semelhantes podem produzir produtos muito
diversos dependendo do nível de excitação do núcleo composto e o canal subsequente que
processo se encaminhe.

107
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Tab. 4.2: Reações de decaimento radioativo (espontâneas) mais comuns.

Reação Equação Observação



‰ ∗
Emissão γ
ˆ‡ #$$% ‰ˆ‡ + — O asterisco significa um estado
excitado do núcleo ‰ˆ‡.

Emissão ” Y ˜™ A partícula ” Y é um elétron X Y .



ˆ‡ #$$% ˆWP‰‡ + ” Y
Emissão ” W ‰
˜š A partícula ” W é um pósitron X W .
ˆ‡ #$% ˆYP‰‡ + ” W

Emissão de n ‰
ˆ‡ #$$% ‰YPˆ‡ + [

Emissão de p 6

ˆ‡ #$% ‰YP
ˆYP‡ + x


Emissão α ‰
#$$% ‰Y„ A partícula α é o núcleo „LX.
ˆ‡ ˆY ‡ + œ

Fissão ••ã" ‰ ‰ Ocorre emissão de 2 produtos de



ˆ‡ #$$$% ˆŸ žP +ˆž
Ÿ
espontânea fissão, de 1 a 6 nêutrons, radiação γ
+ [XG`}F[|
e neutrinos. A energia recuperável
+ F`F[|
vem da energia cinética dos
+ [XG`}U[F
produtos.
+ X[X} U

As reações com radiação gama apenas deixam o núcleo em um estado excitado


instável, enquanto nas reações com prótons, nêutrons e fusão, o núcleo recebe nucleons. O
grau de instabilidade nos 3 últimos canais é muito maior. Na reação de fusão dois núcleos se
juntam para formar um terceiro muito maior.

A reação de fissão com nêutrons é um processo que libera energia e é utilizada em


reatores nucleares. Normalmente ocorre com núcleos pesados como o U e os produtos de
fissão tem número de massa em torno da metade. Na Fig. 4.22 os núcleos P¡““ [ X „“ •“
Z} são
•‘ •¡
exemplos de produtos da fissão do • ou do • . No processo de fissão a massa dos
produtos é menor que a massa do reagente pesado e mais próxima do pico do ¡OO X (ver Fig.
4.22 onde a energia de ligação por nucleon dos produtos de fissão é maior). Esta diferença de
massa se transforma em energia cinética dos dois produtos de fissão e de outras partículas que
emergem da reação.

Tab. 4.3: Reações de nucleares induzidas mais comuns.

Reação Equação Observação


Reação com — + ‰ˆ‡ #$% ‰ˆ‡ ∗ #$% Se o núcleo excitado ‰ˆ‡ ∗ for pouco
radiação γ energético ele pode ser formado e
}UX X X X5 U X[`F|
existir durante algum tempo. Se a
108
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

excitação for elevada pode ocorrer


qualquer reação de emissão de
partículas, inclusive fissão. Esta é
chamada foto-fissão.
Reação com x + ‰ˆ‡ #$% ‰WP ∗
ˆWP‡ #$% Os comentários são semelhantes
prótons feitos em relação à radiação γ. Estas
}UX X X X5 U X[`F|
reações acontecem em aceleradores
para que os prótons possam vencer
a repulsão eletrostática do núcleo
que também tem carga elétrica
positiva e atingir o núcleo. Se o
próton for acelerado a grandes
energias cinéticas pode haver a
destruição completa do núcleo com
a emissão de prótons, nêutrons,
partícula α, partículas elementares,
etc. Essas reações visam
especialmente o estudo das
partículas elementares.
Reação com [ + ‰ˆ‡ #$% ‰WPˆ‡ ∗ #$% Os comentários são semelhantes
nêutrons feitos em relação à radiação γ. O
}UX X X X5 U X[`F|
nêutron pode facilmente atingir o
núcleo porque é neutro
eletricamente. Um desses canais é a
fissão que é utilizada para gerar
energia elétrica em reatores
nucleares.
Reação de ‰¢ ‰£ ‰¤Ÿ ‰¤ A reação com próton é tecnicamente
ˆ¢ ‡ + ˆ£ ž #$% ˆ¤Ÿ P + ˆ¤
fusão uma reação de fusão porque ele é
tal que um núcleo de H. Normalmente um
dos produtos na reação de fusão é
Š… + Š¥ = Š6P + Š6
um nucleon. As reações mais
Z… + Z¥ = Z6P + Z6 comuns envolvem isótopos de H e
He e ocorrem nas estrelas.

A reação de fissão por nêutrons pode ser utilizada para a geração de energia de forma
autossustentável desde que nêutrons produzidos pela fissão causem novas fissões em núcleos
vizinhos. Isto ocorre de forma sustentável e viável economicamente com o •¡ • . A Fig. 4.12
mostra um exemplo típico de reação de fissão, a formação do núcleo composto e, ao final, 2
produtos de fissão e 3 nêutrons emitidos. A reação de fissão em cadeia é autossustentada
devido à emissão de nêutrons. A energia gerada surge da conversão de massa em energia
cinética dos produtos de fissão e de outros produtos da reação. Abaixo vê-se a evolução de
uma reação de fissão em cadeia com nêutrons oriundos de fissão causando novas fissões. Em
reatores nucleares, processos controlados deste tipo geram energia para a sociedade.

109
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

•¡
Fig. 4.25: Reação de fissão do • e a reação em cadeia.

A energia liberada nas reações de fissão e fusão ocorre na forma de energia cinética
dos produtos. Considerando a Eq. 2.5 (do Cap. 2) e desconsiderando energia potencial
gravitacional, temos que entre os choques que promovem reações a soma das energias
cinética e interna nuclear dos reagentes e produtos se conserva. Nessas reações os produtos
tem maior energia de ligação, como pode ser visto e menor massa (ver Fig. 4.11). Então temos
que a energia liberada é igual a energia interna dos reagentes – a energia interna dos
produtos,

− = − = 0† − † 15 . &4.5'

A energia cinética se manifesta macroscopicamente como geração de calor nos materiais ou


sistemas onde ocorrem as reações.

Questionário

1 - Qual é a correlação entre cor e comprimento de onda da radiação eletromagnética?


Qual é o comprimento de onda referente à luz rosa? Justifique.

2 - Como funciona o sistema de cores baseado em pigmentos CYMK? Por que o preto
está lá?

3 - Qual era a composição da nuvem de gás que originou o sistema solar? É exatamente
a mesma composição do Sol?

110
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

4 - Quais são as diferenças entre as reações nucleares e as reações químicas? Quais


dessas reações são mais energéticas?

5 - Qual é a relação entre a radiação térmica e a física quântica? Que hipótese inovadora
foi aventada nesse contexto?

6 - Como a coloração apresentada por um corpo segundo a radiação térmica difere da


coloração que percebemos dos objetos quando os vemos no nosso dia a dia? Explique.

7 - Do ponto de vista da radiação térmica, todos os corpos a uma mesma temperatura


(por exemplo 3000 °C) apresentam a mesma cor. Pesquise e discuta sobre essa afirmação.

8 - Expressar a temperatura do interior do Sol em Celsius ou Kelvin faz diferença?


Discuta.

9 - Muita gente entende o Sol como uma “bola de fogo”. Essa afirmação é correta?
Discuta.

10 – Na Fig. 4.18 consta a informação de que a irradiação solar na Terra corresponde a


1366 W/m2 enquanto que na Fig. 4.19 há a informação de que a irradiação solar na Terra é de
343 W/m2. Como conciliar essas duas informações?

11 - Porque as lâmpadas fluorescentes são mais eficientes do que as incandescentes?

12 – Defina o que é um corpo negro dentro do contexto de radiação térmica.

13 – Um filamento de tungstênio é aquecido a T = 2000 K. Qual é a sua cor? Depois foi


aquecido a T = 3000 K. Estime o aumento da potencia irradiada pelo filamento. O que
aconteceu com sua cor?

14 – A Tsar Bomba foi o maior artefato nuclear construído pelo homem a ser detonado,
e liberou cerca de 210 Petajoules de energia (210x1015 J). Qual é a quantidade de massa, em
Kg que foi transformada em energia? Resposta ~2,3 Kg.

Exercícios de aprofundamento

Ampliar questionário sobre a seção de aprofundamento

Créditos das Figuras

4.1: Adaptado de SuperManu - self, GFDL, CC-BY-AS -


https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Onde_electromagnetique.svg
4.2: EM_spectrum.svg:Rurykderivative work: Ruryk (talk) - EM_spectrum.svg, CC BY-SA 3.0,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=10381688
4.3: Adaptado de https://www.quora.com/Why-are-only-VIBGYOR-visible-to-naked-human-eye
4.4: By en:User:Bb3cxv - http://en.wikipedia.org/wiki/Image:RGB_illumination.jpg, CC BY-SA 3.0,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3157464
4.5: Composição feita com imagens de http://www.constellation-guide.com/carina-nebula/,
https://www.jpl.nasa.gov/spaceimages/images/largesize/PIA07335_hires.jpg,
https://www.jpl.nasa.gov/spaceimages/images/largesize/PIA22088_hires.jpg.

111
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4.6: Fonte: Pbroks13 arte própria. Licenciado via CC BY-SA 3.0.


4.7: Adaptado de https://en.wikipedia.org/wiki/Stellar_nucleosynthesis
4.8: Composição com as imagens: By Jagokogo - Own work, CC BY-SA 3.0,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=20140180 e By Taken byfir0002 | flagstaffotos.com.auCanon
20D + Tamron 28-75mm f/2.8 - Own work, GFDL 1.2, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=136199
4.9: Arte Própria
4.10: Arte Própria
4.11: Arte Própria
4.12: Arte própria
4.13: Arte própria baseada em elementos de domínio público. Radiação térmica artigo Planck 1900.
4.14: Baseado em http://www1.union.edu/newmanj/Physics100/Light%20Production/producing_light.htm
4.15: Adaptado de https://en.wikipedia.org/wiki/Sunlight
4.16: Baseado em http://spiff.rit.edu/classes/phys440/lectures/filters/filters.html, licensed under a Creative
Commons License.
4.17: Arte própria
4.18: Adaptado de https://en.wikipedia.org/wiki/Solar_cycle
4.19: Arte própria com elementos do wikimedia commons https://commons.wikimedia.org/wiki/File:SOL_EDAD.jpg
e https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Thunderstorms_over_the_Pacific_seen_from_Earth_orbit_on_STS-
64.jpg
4.20: Adaptado de http://marine.rutgers.edu/cool/education/class/josh/black_body.html
4.21: Arte própria
4.22:XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
4.23:XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
4.24:XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
4.25:XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

112
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

5 – Combustão e Fotossíntese
No Cap. 2 discutimos como a maior parte das fontes de energia depende
fundamentalmente do Sol. Há que se destacar a relação entre toda a biomassa e o Sol por
meio da fotossíntese, como mostra a Fig. 2.8. No Cap. 3 entendemos melhor os processos
nucleares que acontecem no Sol e como é a atuação solar na Terra, principalmente por meio
da radiação térmica emitida. Sob o ponto de vista da energia, para entendermos os processos
que ocorrem na Terra devemos compreender a relação que existe entre a fotossíntese e a
combustão.

De certa forma, a fotossíntese e a combustão podem ser consideradas como processos


antagônicos e complementares. Utilizando-se da energia da radiação solar, a fotossíntese é
responsável por transformar água, dióxido de carbono e uma pequena quantidade de outros
elementos em todas as substâncias orgânicas que compõem a biomassa. Por outro lado, a
combustão é o processo responsável por transformar a matéria orgânica, juntamente como o
oxigênio, em água e dióxido de carbono liberando uma quantidade de energia (Fig. 5.1). Isso
grosseiramente. Ao analisarmos esses dois processos, percebemos que a relação não é
caracterizada por um antagonismo propriamente simétrico. Primeiramente, para que tal ponto
de vista tenha certo sentido, devemos aceitar a respiração como uma forma de combustão, ou
seja, aceitar que a queima da gasolina em um motor seja classificado da mesma forma que a
queima de calorias em nosso corpo. Ao mesmo tempo em que há justificativas para isso,
também podem ser levantadas diversas diferenças para classificar a queima da gasolina como
um processo bem diferente da respiração celular.

Apesar das diferenças evidentes, é importante destacar aqui as semelhanças entre a


combustão e a respiração. Ambas são reações que fornecem energia e que partem dos
mesmos reagentes (matéria orgânica e oxigênio) e geram os mesmos produtos (dióxido de
carbono e água). As diferenças principais são: a respiração é um processo fisiológico e
complexo, que ocorre com uma taxa mais controlada. A energia resultante é essencialmente
química na forma de uma molécula complexa denominada adenosina trifosfato (ATP), sendo
mais tarde convertida em calor conforme usada pelos organismos vivos em seu metabolismo,
enquanto que a energia liberada na combustão é diretamente manifestada na forma de calor.

Mesmo considerando a respiração como uma forma de combustão, ainda assim os


processos que interconectam as esferas orgânicas e inorgânicas não se manifestam de forma
antagonicamente simétrica. Isso porque a decomposição ou degradação das substâncias
orgânicas não são feitas exclusivamente pela respiração e a combustão, mas também por
outros processos, como a fermentação. Esta última também é realizada por seres vivos, mas
sem a presença de oxigênio. Sendo assim, enquanto que a ponte da esfera inorgânica para a
esfera orgânica é feita de forma praticamente exclusiva pela fotossíntese, a ponte no sentido
contrário pode ser feita pelo menos três processos claramente distintos: respiração,
combustão e fermentação.

Uma regra geral é: todos os elementos orgânicos são gerados a partir de organismos
vivos que apresentam um conjunto de processos fisiológicos bastante complexos. Por esse
motivo, a questão da origem da vida é difícil. No contexto da busca por respostas a essa
questão, cientistas já demonstraram que é possível obter moléculas orgânicas razoavelmente
113
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

complexas a partir de processos que não são atrelados a seres vivos. Trata-se de processos que
vieram na esteira dos experimentos de Stanley L. Miller e Harold C. Urey realizados em 1953,
que procuraram demonstrar a hipótese de Alexander Ivanovic Oparin. Em suma, moléculas
orgânicas foram obtidas em condições de laboratório simulando possíveis ambientes da Terra
há bilhões de anos, com atividades vulcânicas mais intensas e uma atmosfera mais dinâmica.
Essa atmosfera seria rica em hidrogênio, vapor d’água (calor), amônia e metano, além da
presença de descargas elétricas simulando raios. Vale ressaltar que moléculas orgânicas já
foram detectadas em cometas e meteoritos e cientistas acreditam que tenham sido geradas
por processos físico-químicos análogos aos testados por Miller e Urey24.

Dito isso, é importante e ressaltar que processos de formação de moléculas orgânicas


como descritos por Miller e Urey são possíveis, porém sua ocorrência no ambiente terrestre é
estatisticamente insignificante diante da intensa atividade biológica apresentada na Terra.

Fig. 5.1: Diagrama ilustrativo da relação entre fotossíntese e combustão e sua importância na relação entre
química orgânica e inorgânica. Nesse contexto, a respiração celular é considerada uma forma de combustão. A
fermentação também é mencionada como outro processo celular responsável por decompor a matéria orgânica
sem a presença de oxigênio. Os processos especiais como o do experimento de Miller-Urey são mencionados para
evidenciar que a fotossíntese não é em princípio, a única forma de se obter elementos orgânicos a partir de
substâncias inorgânicas, explicando como essas moléculas mais complexas podem ser encontradas em cometas e
outros planetas. Porém esses processos especiais são estatisticamente desprezíveis.

Sendo assim, vemos que a ponte entre a esfera inorgânica para a orgânica é feita, na
prática, de forma exclusiva pelos organismos vivos que efetuam alguma forma de fotossíntese.

24
Sob esse ponto de vista, há elementos que são difíceis de classificar. Por exemplo, o metano é
normalmente classificado como orgânico, embora sua ocorrência em ambientes fora da Terra não seja
raro. Além disso, nos experimentos de Miller-Urey, o metano é um “bloco de construção” da matéria
orgânica, assim como a água e o dióxido de carbono.
114
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Por outro lado, a transformação da matéria orgânica em dióxido de carbono e água não ocorre
exclusivamente nos seres vivos na forma de respiração e fermentação, mas pode ocorrer de
forma independente destes por meio da combustão. Essa assimetria é destacada na Fig. 5.1 e
dá uma pista importante para a questão da relação entre a matéria orgânica e inorgânica: dos
processos independentes dos seres vivos, porque a combustão é um fenômeno comum
enquanto que a taxa de processos especiais do tipo Miller-Urey é estatisticamente
desprezível? A resposta para isso é crucial para o entendimento da vida e é fortemente
relacionado à termodinâmica, mais especificamente à questão da entropia, que veremos com
mais detalhes no Cap. 7.

5.1 – Combustão

Trataremos a combustão antes da fotossíntese, pois de certa forma a combustão é mais


aderente à abordagem da energia dada nesse livro. A queima do carvão e do gás natural está
relacionada com a maior parte da produção de energia elétrica mundial, é o princípio de
funcionamento dos motores dos automóveis e aviões, além de outros usos que nos são
bastante familiares.

No ensino médio já nos é ensinado que a combustão é uma reação química exotérmica,
ou seja, libera energia ao meio na forma de calor. Discutimos no Cap. 2 que essa energia tem
sua origem fundamental na energia solar, cujo mecanismo discutiremos em mais detalhes na
seção 5.2. Mas de acordo com as discussões feitas no Cap. 4 temos condições de compreender
muitas outras questões sobre a combustão, que são aderentes à radiação térmica. Além disso,
discutiremos aspectos que nos permitirão compreender melhor as máquinas térmicas e as leis
da termodinâmica nos Caps. 5 e 6 respectivamente.

Fig. 5.2: Sistema formado por um bastão e um bloco em duas configurações: a) os dois objetos no chão (mais
provável e menos energética) e b) o bloco apoiado sobre o bastão, com este na posição vertical (mais energética e
menos provável).

Antes de falarmos sobre combustão (e fotossíntese) propriamente, vamos apresentar


uma analogia simples. Imagine um sistema formado por um bastão comprido e um bloco. O
bloco possui massa consideravelmente maior do que a do bastão. Esse sistema pode se
apresentar em diferentes configurações sendo duas delas apresentadas na Fig. 5.2. Na
primeira (Fig. 5.2a), os dois objetos se encontram no solo. Trata-se de uma configuração
bastante provável e que apresenta baixa energia associada. A Fig. 5.2b apresenta uma
115
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

configuração em que se pode associar uma energia potencial gravitacional ao sistema, onde o
bloco se encontra apoiado sobre o bastão enquanto este último se encontra na posição
vertical. Esta configuração, por sua vez, é menos provável. Ao ver o sistema nessa
configuração, é natural que o observador assuma que alguém foi responsável pelo ajuste, uma
vez que é pouco provável que tal configuração seja resultado do acaso. Uma pequena
perturbação é suficiente para que o sistema volte para a configuração (a) resultando na
dissipação da energia potencial gravitacional, podendo esta até ser utilizada para algum fim
útil.

Note que o sistema da Fig. 5.2b é análogo ao sistema da bola de boliche sobre o prédio
do Bloco B na Fig. 2.1 quando discutimos a questão “de onde vem a energia?”. Nos Caps. 1 e 2
procuramos deixar claro que um mesmo sistema pode ser analisado de diferentes pontos de
vista. Nem seria preciso mencionar que é bem provável que a energia potencial gravitacional
associada ao sistema da Fig. 5.2b vem fundamentalmente do Sol, da mesma forma que a bola
de boliche na Fig. 2.1. Agora, podemos fazer uma pergunta ligeiramente diferente com relação
ao sistema da Fig. 5.2: a qual elemento podemos associar a energia do sistema? Alguns podem
argumentar que, como a energia potencial gravitacional é dada pelo produto ℎ, logo a
energia é associada ao bloco, uma vez que é o bloco que detém boa parte da massa do sistema
( ) e ele que está posicionado na altura ℎ. Por outro lado, outros podem argumentar que a
diferença fundamental entre a configuração da Fig. 5.2a e da Fig. 5.2b é a altura do bloco e que
isto é proporcionado pelo bastão que sustenta o bloco na altura ℎ. Assim, o elemento
essencial para a energia potencial do sistema é o bastão. Ambas as visões são válidas e
contribuem de forma complementar para a compreensão do sistema25. Veremos que algo
semelhante pode ser discutido sobre a combustão.

Normalmente quando falamos de combustão, falamos de queima. Busque pela memória


os materiais que você costuma ver pegando fogo: madeira, carvão, vela, o gás do fogão, o
álcool do churrasco etc. As vezes passamos por terrenos baldios onde há queima de móveis
velhos, objetos de plástico, pneus, etc. Além disso, quais são os materiais que devemos tomar
muito cuidado dentro de casa, para que não peguem fogo? São roupas, cortinas, tapetes,
revistas etc. O que estes materiais têm em comum? São materiais orgânicos. Nós não vemos
pedra, concreto ou barras de aço pegando fogo.

Dizemos que os reagentes da combustão são o oxigênio e o combustível sendo este


último um material orgânico com algumas exceções26. Um dos principais usos da combustão é
o motor de automóvel, que queima a gasolina para obter energia. Para ilustrar o processo da
combustão, a eq. 5.1 representa a combustão do principal componente da gasolina, o
octano27:

2J‘ LP‘ + 25K → 18L K + 16JK + X[X} U `é} U5 (5.1)

25
Essa discussão sobre o elemento essencial já estava implícito na discussão da Fig. 2.1 no Cap. 2
quando deixamos claro que a energia do sistema depende de uma configuração específica.
26
Discutiremos adiante algumas exceções, como a hidrazina e o hidrogênio.
27
A gasolina é uma mistura de substâncias, sendo a principal delas o octano. A qualidade da gasolina
depende da variedade dessa mistura e das quantidades de cada componente.
116
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

A energia térmica liberada pela reação é de aproximadamente 5,4 MJ por mol de


octano. A Fig. 5.3 representa essa reação de forma pictórica, onde fica evidente que se trata
de um rearranjo drástico, uma vez que todas as ligações dos reagentes são desfeitas para a
total recombinação na forma dos produtos. Note também que de um lado, temos 27
elementos e que resultam em 34 elementos do outro lado mostrando que o conjunto dos
reagentes possui uma estrutura mais fragmentada.

Sabemos que o oxigênio é bastante reativo. Nossos problemas diários com a ferrugem e
outros óxidos não nos deixam esquecer esse fato. Isso é o equivalente a dizer que, ao invés de
estar ligado a seu par, na maior parte dos casos o átomo de oxigênio prefere se ligar a outro
elemento. No caso da combustão do octano, os produtos formados são dióxido de carbono
(JK ) e água (L K), onde a molécula de oxigênio de desfaz para se ligar a átomos de
hidrogênio e carbono, gerando substâncias mais estáveis quimicamente. Note que nesse caso,
um hidrocarboneto é um fornecedor ideal de elementos químicos para que o oxigênio deixe
de existir na forma de gás e sejam formados dióxido de carbono e água. Ou seja, os
hidrocarbonetos fazem uma contrapartida perfeita para que o oxigênio gasoso seja
recombinado na forma de substâncias energeticamente mais favoráveis. Tendo muitos
hidrogênios e carbonos em uma única molécula, a combustão de hidrocarbonetos permite
uma reação bastante concentrada espacialmente gerando grande quantidade de energia
térmica mesmo em volumes diminutos.

Fig. 5.3: Representação pictórica da combustão completa do octano procurando evidenciar a alteração estrutural
ocorrida na reação. Note que todas as ligações químicas dos reagentes são desfeitas para resultar em total
reestruturação de ligações nos produtos.

As reações de combustão são sempre exotérmicas, o que ajuda a entender porque todas
as chamas são quentes. Porém umas chamas são mais quentes que outras. A temperatura de
uma chama depende de vários fatores, pois a dinâmica de um processo de combustão é
complexa dependendo da distribuição e qualidade do combustível, além da dinâmica de
suprimento de oxigênio, apenas para citar três fatores importantes. Porém, das reações
químicas da combustão, há reações mais energéticas do que outras. Por exemplo, enquanto o
octano gera ~5400 KJ de energia térmica por mol, a queima de um mol de metano gera 890 KJ
e um mol de etanol gera 1366 KJ. Isso quando estamos comparando a energia obtida com o

117
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

mesmo número de moléculas para combustíveis diferentes. Poderíamos fazer uma


comparação da energia obtida por peso de combustível conforme mostra a Tab. 4.1:

Tab. 5.1: comparação entre a energia liberada por peso de diferentes combustíveis.
Combustível Energia liberada na combustão completa
(MJ/kg)
Octano 44,3
Metano 50
Carvão (antracito) 32,5
Etanol 28,9

Observando a Tab. 4.1 é possível entender porque que se diz que o octano, e por
consequência a gasolina, possui densidade energética maior que o etanol. Essa é a principal
razão que faz com que um carro flex consuma menos combustível quando abastecido com
gasolina do que com etanol.

Uma sociedade fortemente dependente da energia faz com que grandes investimentos
sejam feitos em busca de petróleo, gás, carvão, além do desenvolvimento de biocombustíveis.
Os hidrocarbonetos são considerados fontes valiosas de energia. As reservas destes produtos
são tão importantes que impulsionam conflitos entre nações. Isso reforça a ideia de que a
energia da combustão esteja contida no combustível, e, de fato, esse conceito justifica muitos
modelos usados para escolhas de combustíveis para diferentes aplicações.

O que se busca é uma reação eficientemente exotérmica. Como vimos, os


hidrocarbonetos formam uma contrapartida perfeita com o oxigênio para uma reação
exotérmica eficiente. Mas estes precisam ser produzidos ou extraídos de jazidas. A visão de
que a energia está no combustível está relacionada com a logística da disponibilidade dos
reagentes da combustão. O oxigênio está sempre disponível, distribuído “democraticamente”
na atmosfera. Tomamos o oxigênio como certo, mas não podemos nos esquecer de seu valor
intrínseco.

Quando discutimos sobre a importância do oxigênio para a energia, é inevitável não


associarmos ao nosso próprio metabolismo. Precisamos de oxigênio para as nossas atividades
e quando nos exercitamos, ficamos ofegantes, pois consumimos uma taxa maior desse gás. E o
que exalamos? Dióxido de carbono e água, o que nos remete à combustão. Como já foi
mencionado, a respiração celular pode ser considerada uma forma especial de combustão (da
glicose) e pode ser expressa pela reação simplificada:

JO LP KO + 6K → 6JK + 6L K + X[X} U ¦Gí U5 (5.2)

O caráter especial da respiração como combustão se dá pela complexidade das reações


químicas envolvidas e pela forma de energia obtida, que podemos denominar de energia
química. Isso porque o principal produto da respiração celular é a produção de ATPs que é
considerada como a “moeda energética” dos organismos vivos. Conforme estes organismos
usam essa energia química em seu metabolismo, a energia é ultimamente transformada em
calor, cujo efeito também podemos sentir em nossos corpos quando nos exercitamos. Ou seja,
a respiração possui toda uma complexidade química que permite que os organismos utilizem a
energia em uma etapa intermediária antes de ser ultimamente transformada em calor. Por
118
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

motivos didáticos, deixaremos o caráter metabólico da discussão de tais reações químicas para
seção da fotossíntese.

Classificando a respiração celular como uma forma especial de combustão, vamos voltar
a discutir a combustão de forma geral e o papel do combustível e do oxigênio. Voltando ao
exemplo da Fig. 5.2 onde a energia do sistema depende tanto do bloco como do bastão, na
combustão, não podemos nos esquecer de que a reação sempre envolve o combustível e o
comburente (geralmente o oxigênio). No jargão da química, “entalpia” pode ser entendida
como energia no contexto de processos químicos. A entalpia de uma substância é fortemente
dependente de suas ligações químicas. Em relação às outras substâncias envolvidas na
combustão, o oxigênio é uma molécula que possui alta entalpia. O oxigênio é o equivalente do
bloco sobre o bastão. Alguém colocou ele lá. No caso do oxigênio, quem o colocou no
ambiente foi a fotossíntese. É seguro dizer que todas as moléculas de oxigênio que
encontramos na atmosfera foram produzidas por meio da fotossíntese. Devido a sua alta
entalpia, é improvável que possamos encontrar moléculas de oxigênio que não tenham sido
geradas por organismos vivos.

Uma das evidências experimentais que sustenta o ponto de vista de que o oxigênio é o
grande responsável pela característica fortemente exotérmica da combustão é o fato de que,
como regra geral, todas as reações de combustão geram aproximadamente 418 kJ de energia
térmica por mol de O2 consumido, seja qual for o combustível28. Várias exceções a essa regra
são explicadas dentro desse modelo. Por exemplo, o etanol cuja formação química é dada por
C2H6O possui uma densidade energética menor, pois ele já possui um átomo de oxigênio ligado
ao hidrocarboneto, “queimando” uma das possibilidades de recombinação durante o processo
de combustão. A mesma explicação pode ser dada para a queima da glicose (C6H12O6), que
apresenta apenas 72% do calor de combustão do cicloexano (C6H12). Além disso, outras formas
de reações químicas exotérmicas envolvendo hidrocarbonetos, que não envolvem oxigênio,
em geral são menos energéticas. Nos seres vivos, por exemplo, a fermentação é uma
alternativa anaeróbica à respiração celular, mas possui uma eficiência consideravelmente
menor. Ou considere, por exemplo, as duas reações a seguir, ambas envolvendo o antracito
(carvão mineral) e o hidrogênio (um combustível de foguete) com a única diferença de que
uma envolve oxigênio e a outra não:

J&|' + 2L → JL„ − 74,8 ¨©/ FM (5.3)

J&|' + 2L + 2K → JK + 2L K &M' − 965 ¨©/ FM (5.4)

A eq. 5.3 tem como resultado o metano, que é outro combustível. No caso da eq. 5.4, a
presença do oxigênio faz com que o produto seja o dióxido de carbono e a água, que, como
discutimos, são elementos bastante estáveis e resulta em uma reação mais exotérmica em
uma ordem de grandeza.

Quando discutimos fontes de energia no Cap. 2, chamamos a atenção para o fato de que
a obtenção de energia é fortemente dependente da configuração específica do sistema usado.
No caso dos combustíveis fósseis, argumentamos que tais jazidas representam energia solar
armazenada, mas também podemos dizer que as fontes de energia associadas à fotossíntese

28
Veja o artigo de Klaus Schmidt-Rohr publicado no J. Chem. Educ. 2015, 92 (2094-2099).
119
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

decorrem da separação do carbono e hidrogênio, na forma de matéria orgânica, do oxigênio


liberado para a atmosfera. Uma grande quantidade de biomassa e uma atmosfera rica em
oxigênio representa uma configuração específica e altamente improvável para um planeta.
Como já mencionamos, traços de matéria orgânica já foram detectados fora de nosso planeta,
mas acredita-se que foram produzidos por processos não relacionados à vida. Além disso, a
atmosfera de outros planetas é, em geral, rica em dióxido de carbono (planetas menores) e
hidrogênio (planetas gigantes).

Fig. 5.4: Composição das atmosferas da Terra e de seus vizinhos mais próximos, Vênus e Marte.

De fato a grande maioria dos combustíveis são materiais orgânicos. Podemos mencionar
aqui duas exceções importantes: o hidrogênio e a hidrazina.

No contexto energético, muito se fala sobre a tecnologia do hidrogênio. A reação de


combustão do hidrogênio é dada por:

2L + K → 2L K − 286 ¨©/ FM (5.5)

Em comparação com a tabela 4.1, o hidrogênio gera 142 MJ/kg29, ou seja, possui mais do
que 3 vezes a densidade energética da gasolina. Há ainda outra vantagem muito importante: o
produto da reação é água, não gerando dióxido de carbono e, portanto, não tendo o impacto
ambiental tão largamente discutido sobre a utilização de outras formas de combustível. Porém
a natureza não dispõe de quantidades significativas de hidrogênio e este deve ser produzido.
Nesse sentido, o hidrogênio não é considerado uma fonte de energia, mas um portador de
energia, uma vez que outra fonte de energia deve ser usada para viabilizar o processo de sua
produção. Os hidrocarbonetos por sua vez são considerados como fontes de energia, pois
estão disponíveis nas várias formas da biomassa, embora sob outro ponto de vista, possam ser
considerados como portadores de energia solar, sendo a fotossíntese o processo que
transforma a energia solar em biomassa. Nesse contexto, há muita pesquisa sendo feita de
forma que fontes de energia sustentáveis possam ser portabilizadas na forma do hidrogênio.

29
Quando armazenado em pressão de 691 atmosferas.
120
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Deve se tomar o cuidado para que esse processo de produção não torne inócuas as vantagens
descritas sobre o hidrogênio, ou seja, o método de sua produção deve ser eficiente e não
poluente. Isso pode ser desafiador. Por exemplo, o método de maior rendimento para a
produção de hidrogênio é a reforma a vapor do metano, o que resulta em grandes
quantidades de monóxido e dióxido de carbono. De nada adianta utilizar um combustível
limpo, obtido a partir de um processo poluente. Até agora, os métodos sustentáveis de
produção não apresentam rendimentos economicamente viáveis.

O hidrogênio não é considerado orgânico, mas de certo modo essa exclusão é limítrofe,
da mesma forma que o grafite, cuja composição é 100% carbono, também é considerado
inorgânico. A definição de composto orgânico é arbitrária e possui forte componente histórica.
Por exemplo, não está claro porque o dióxido de carbono é considerado inorgânico, uma vez
que é composto de carbono e oxigênio. Note que, dentre os materiais orgânicos, o conjunto
dos hidrocarbonetos, juntamente com todas as formas de manifestação do carvão, se
apresenta das mais diferentes formas de combinação dos elementos de carbono e hidrogênio
nas mais diferentes proporções, excluindo apenas os materiais que são 100% hidrogênio (o gás
L ) e 100% carbono (grafite e diamante). Não é de todo estranho que possamos obter uma
reação exotérmica somente envolvendo o hidrogênio e gerando água e outra reação somente
usando o grafite e obtendo dióxido de carbono. Porém esta última reação, apesar de
exotérmica não é viável como processo de combustão.

Devido às suas características, o hidrogênio vem sido usado principalmente como


combustível de foguete assim como a hidrazina.

A hidrazina é outro exemplo de combustível inorgânico. Sua reação de combustão gera


19,41 MJ/kg e é dada por:

\ L„ + K → \ + L K (5.6)

De maneira análoga podemos argumentar que a hidrazina é quase um material


orgânico. Ela faz parte de inúmeros processos orgânicos e há seres vivos que a produzem em
seu metabolismo. Embora a molécula da hidrazina não contenha carbono, é evidente a
importância de moléculas orgânicas que contém nitrogênio no metabolismo da maior parte
dos seres vivos. Note que o nitrogênio é um dos principais nutrientes para o crescimento das
plantas, juntamente com o potássio, fósforo, enxofre, cálcio e magnésio. Além disso, o
nitrogênio é abundante em nossa atmosfera o que representa outra particularidade de nosso
planeta. As razões para esse fato ainda não estão esclarecidas.

5.2 – O fogo

Focaremos agora a discussão em uma das manifestações mais fascinantes da


combustão: o fogo. Quem nunca permaneceu com amigos por horas sentado ao redor de uma
fogueira observando sua movimentação quase hipnótica? Já notaram como, em geral, todas as
fogueiras tem aspecto parecido, apresentando como coloração dominante diferentes
tonalidades entre o amarelo e o vermelho, passando pelo alaranjado e o marrom? Já notaram
que por vezes, quando algo não usual está sendo queimado, a chama pode conter tonalidades
incomuns, como o esverdeado? E porque a chama do fogão de cozinha apresenta uma chama
azulada, sendo bastante distinta da chama que normalmente observamos nas velas, lareiras e
121
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

fogueiras de acampamento? Procuraremos aqui responder a essas perguntas e veremos como


as respostas nos ajudam a usar a combustão de forma mais eficiente.

A Fig. 5.5 mostra duas chamas com aspectos bem diferentes. Ambas são fotografias de
uma vela queimando no ar, mas com uma única diferença. Na segunda imagem a foto foi feita
na estação espacial internacional (ISS), ou seja, sem a presença de gravidade. Esse exemplo
ilustra como o aspecto de uma chama pode mudar completamente devido a alteração de um
parâmetro, que poderíamos ingenuamente classificar como secundário.

O fogo é um processo dinâmico que depende de vários fatores para ocorrer. A alteração
de qualquer fator, mesmo que indireto, pode alterar bastante a evolução do processo. Para
que haja fogo são necessários três fatores principais: combustível, o comburente
(normalmente o oxigênio do ar) e calor. Mesmo um combustível poderoso como a gasolina
exposta ao ar precisa de um fósforo para iniciar o fogo. Essa pequena quantidade de energia
térmica inicial é suficiente para que certa quantidade de moléculas de combustível e oxigênio
se recombine. A partir daí, a própria energia liberada pela combustão das moléculas iniciais
provoca a recombinação de outras moléculas, em um processo que chamamos de reação em
cadeia30. É por isso que, uma vez acesa, a vela permanece acesa até que a apaguemos.

Para se apagar um incêndio, a estratégia é sempre voltada para retirar um dos três
componentes principais da chama. Ou se retira o combustível, ou o oxigênio, ou o calor.

Fig. 5.5: Diferença entre uma vela sendo queimada normalmente, e em um ambiente de gravidade zero.

Porque as chamas são em geral amareladas? A resposta para isso está relacionada com
a dinâmica do processo de combustão. A situação mostrada na Fig. 5.2 ilustra o caso da
combustão completa do octano. Mas dada a complexidade da dinâmica de uma chama, é
bastante improvável que, na região onde ocorre a combustão, haja um equilíbrio perfeito na
disponibilidade de combustível e comburente de forma que a combustão seja completa
continuamente. O desequilíbrio dessas proporções e a presença de outras impurezas na
combustão faz com que inúmeras variações das reações de combustão possam ocorrer. Nesse
cenário, um processo importante é chamado de pirólise. Imagine que um pedaço de madeira
esteja em processo de combustão. É fácil de imaginar que haja uma porção significativa desse
material que está submetida à alta temperatura, mas não está na presença de oxigênio para

30
O termo “reação em cadeia” é normalmente associado às reações nucleares das bombas atômicas,
mas elas existem também em reações mais ordinárias.
122
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

ocorrer combustão. Nesse caso, o material orgânico, rico em carbono, hidrogênio, oxigênio e
outros elementos, passa a se decompor, formando novos elementos como hidrogênio gasoso,
metano, monóxido de carbono, enquanto a massa orgânica sofre um processo de
carbonização. Em outras palavras, a pirólise é a decomposição do material orgânico devido a
efeitos térmicos. Interessante notar que formas de pirólise estão presentes em diversos
processos de cozinha, como a caramelização, fritura, tostamento, assadura etc.

Um dos principais produtos da queima incompleta é a fuligem, também conhecida como


negro de fumo. A fuligem é formada por partículas de tamanhos variados compostas
principalmente por carbono, contendo impurezas. O tamanho, bem como a composição das
partículas de fuligem, depende fortemente do combustível e do processo de queima, mas é
tipicamente da ordem de 100 nm. Esse tamanho é suficiente para que uma partícula de
fuligem presente na combustão se comporte como um corpo aquecido, cuja radiação emitida
estudamos com cuidado no Cap. 4 sobre a radiação térmica.

Fig. 5.6: Espectro de emissão óptico da chama de combustão completa do butano (fogão de cozinha e bico de
Bunsen). A coloração da curva procura correlacionar o comprimento de onda à percepção de cor ao olho humano.
Por exemplo, a radiação eletromagnética no comprimento de onda de 520 nm é percebido normalmente como
verde.

Vale ressaltar que um corpo aquecido apresenta um espectro de emissão de forma


distinta ao de uma molécula aquecida. Uma molécula é um sistema essencialmente quântico,
e este comportamento é percebido em seu espectro de emissão. A Fig. 5.6 mostra o espectro
de emissão óptico do butano em sua combustão completa. Nesse processo, na região da
chama temos a presença apenas de moléculas de butano (em fragmentação), oxigênio, água e
dióxido de carbono e o nitrogênio do ar. Note, como mostra o espectro, que as emissões
ocorrem principalmente em comprimentos de onda específicos, que definem as linhas
espectrais31 e que no Cap. 4 discutimos que correspondem a níveis de energia determinados.
Ou seja, as emissões ocorrem para níveis de energia bem definidos, o que evidencia o caráter
quântico do processo. Na Fig. 5.6, o espectro apresentado se concentra na região de luz visível.
Por motivação pedagógica, a cor da linha do espectro procura corresponder com a cor

31
No Cap. 1, no contexto da Fig. 1.4 discutimos de forma geral como níveis de energia quânticos
determinam a energia de fótons emitidos.
123
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

percebida pelo olho humano no comprimento de onda correspondente. Por exemplo, note
que os picos em torno de 450 nm estão representados em azul e o pico em 520 é representado
em verde. Observe que os picos de emissão mais intensos estão na região de menores
comprimentos de onda, principalmente na região do azul e do verde. Como resultado, a
maioria das pessoas enxerga na combustão completa do butano uma chama azulada, como a
chama de um fogão e de um bico de Bunsen bem regulado.

Como vimos, a chama da vela é resultado de uma combustão incompleta, onde fuligem
é formada. As partículas de fuligem são aquecidas pela energia da combustão e passam a
emitir radiação de acordo com o comportamento da radiação térmica de corpo negro descrito
no Cap. 4. A Fig. 5.7 mostra a comparação entre os espectros de emissão em diferentes regiões
da chama de uma vela. Na parte superior da chama, predomina a radiação térmica das
partículas de fuligem, gerando a cor amarelada característica das chamas que conhecemos.
Note que há pequena sobreposição das linhas espectrais dos elementos sódio (Na) e potássio
(K) que fazem parte da composição da cera da vela. Nas situações de queima de nosso
cotidiano, como lareiras e fogueiras, é esperado que haja combustão incompleta. Sendo assim
a coloração característica que observamos é dominada pela radiação térmica da fuligem
produzida, como vemos nesse exemplo da vela. Já o espectro obtido com a emissão da base da
vela, vemos na região do visível (destacada no eixo do comprimento de onda) o predomínio
das emissões espectrais das ligações dos hidrocarbonetos (parafina) que compõe a cera da
vela, resultando da coloração azulada da chama, de maneira análoga ao explicado para a
combustão do butano na Fig. 5.6.

Fig. 5.7: Comparação entre os espectros de emissão em diferentes porções da chama de uma vela.

E como podemos explicar chamas com cores incomuns, como as esverdeadas? Estamos
acostumados a ver chamas azuladas, pois estamos acostumados a observar a queima de
hidrocarbonetos e, como vimos na Fig. 5.7, as linhas espectrais de emissão referentes às
ligações C-H e C-C costumam coincidir com radiação no comprimento de onda na faixa azulada
do espectro óptico. Mas nas impede de adicionarmos outros elementos ou substâncias
químicas que tenham linhas espectrais em outras faixas do espectro eletromagnético
resultando em chamas com coloração distinta. Por exemplo, se o elemento químico cobre (Cu)

124
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

for introduzido na chama do bico de Bunsen, suas linhas espectrais contribuirão para que a
chama tenha uma coloração esverdeada, como mostra a Fig. 5.8.

Fig. 5.8: Teste de chama para o cobre. Note como as linhas espectrais do cobre contribuem para que a chama no
bico de Bunsen adquira uma cor esverdeada.

5.3 – A Fotossíntese

O processo de fotossíntese é comumente representado por uma simples equação:

6JK + 6L K + TGN → JO LP KO + 6K (5.7)

na qual, de forma análoga às equações que representam a combustão, apresentam os


reagentes e os produtos finais do processo. Porém no caso da combustão, o processo pode
ocorrer diretamente. Por outro lado, a eq. 5.7 pode levar um leigo a crer que basta haver um
ambiente com água e dióxido de carbono na presença de luz e obteremos açúcar e oxigênio, o
que não ocorre na prática. Nesse sentido, a eq. 5.7 não deve ser considerada uma equação de
uma reação química, mas preferivelmente uma expressão que simboliza o processo de
fotossíntese32 ou apenas como uma equação global do processo. Este é um processo
fisiológico complexo, apresentando diversas variações dependendo do tipo de organismo que
o executa.

Essa seção não tem como objetivo descrever extensivamente a fotossíntese sob o ponto
de vista fisiológico, pois o tema é vasto, assim como é a quantidade de outras fontes de
consulta para isso. Abordaremos a fotossíntese mais sob o ponto de vista energético,

32
É evidente que pode se argumentar que a equação de uma reação química sempre “simboliza” o
processo. Mas o argumento aqui é que no caso da fotossíntese, o grau de afastamento entre o processo
e a reação que o simboliza é maior.
125
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

procurando esclarecer seu papel na cadeia energética e complementando nosso


conhecimento sobre os importantes processos que determinam o nosso modo de vida.

Como discutimos no contexto da Fig. 5.2, se encontramos um bloco equilibrado sobre


um bastão, é sensato acreditarmos que tal configuração não é devido ao acaso, mas devido à
ação deliberada de alguém. Isso porque tal configuração é altamente improvável. Também
vimos que a abundância de material orgânico e uma atmosfera rica em oxigênio também faz
de nosso planeta algo bastante peculiar. A fotossíntese tem papel fundamental nisso e, sendo
assim, não chega a ser surpreendente que seja tão complexa.

Antes de seguirmos, recordemos as noções básicas da fotossíntese que temos no ensino


médio. Ao analisarmos as plantas, sabemos que a fotossíntese ocorre nos cloroplastos, onde
diferentes partes do processo da fotossíntese ocorrem em diferentes estruturas: membrana
tilacoide, lúmen, estroma etc.

Tendo recordado essas noções básicas, seguimos com nossa narrativa.

O conjunto das reações químicas que ocorrem nos organismos vivos é chamado de
metabolismo. A fotossíntese é um processo metabólico. Nesse sentido, pode-se dizer que o
entendimento da fotossíntese se baseia na compreensão das reações químicas envolvidas. De
nosso conhecimento do ensino médio podemos dizer que, a grosso modo, as reações químicas
são determinadas por influências de cargas elétricas (elétrons, íons etc) e na estranha
propriedade dos elementos químicos de apresentarem tendência de perderem ou ganharem
elétrons (a regra do octeto e assim por diante). Sob esse ponto de vista simples, mas
fundamental, podemos fazer uma análise interessante, especialmente de uma parte da
fotossíntese que costuma ser denominada de “fase luminosa” ou “reações dependentes da
luz”. Nessa fase há um conjunto de processos que pode ser representada pela fórmula:

2L K + TGN → K + 4 XMé`}F[| + 4x}ó`F[| (5.8)

na qual um observador atento pode se perguntar33 “onde foram parar os hidrogênios da


molécula de água?” Lembre-se que o hidrogênio é constituído de um elétron orbitando um
próton. Observando a eq. 5.8 novamente percebemos que os quatro hidrogênios foram
separados em suas cargas fundamentais. Ou seja, pode se dizer que a fotossíntese usa a
molécula de água pois está “interessada” nas cargas elétricas que ela pode oferecer, isto é,
elétrons e prótons. Tanto é assim que as reações da fotossíntese seguem usando apenas os
elétrons e prótons (este último pode ser interpretado como um íon especial) e liberam o
oxigênio para a atmosfera. Note que a molécula de oxigênio possui valor energético, uma vez
que é usada como reagente nas reações de combustão e respiração. Mesmo assim, a
fotossíntese é um processo tão poderoso que se dá o “luxo” de rejeitar tal molécula34. Isso
porque ela ganha cargas elétricas cujo potencial químico é incorporado nas macromoléculas
de seu processo metabólico.

33
Já o leitor atento e perspicaz em química entenderia a equação com naturalidade. Parabéns se você é
um deles!
34
Os organismos que realizam fotossíntese também respiram e, portanto, fazem uso do oxigênio, como
veremos adiante quando discutimos a eficiência da fotossíntese.
126
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

É importante ressaltar aqui que, analogamente o que dissemos sobre a eq. 5.7, a eq. 5.8
simboliza um processo complexo que se utiliza da energia dos fótons para a dissociação do
oxigênio dos prótons e elétrons (que ora formavam os átomos de hidrogênio). Para termos
ideia da complexidade do processo, iniciaremos uma pequena jornada que começa com a Fig.
5.9, que traz uma representação do fotossistema II (PSII). Nas cianobactérias e nas plantas
verdes, o PSII é responsável pela dissociação da água fazendo uso da luz.

Fig. 5.9: Representação esquemática do fotossistema II (PSII). Cada PSII contém pelo menos 99 componentes,
dentre eles 35 clorofilas a, 12 betacarotenos, além de feofitinas, plastoquinonas, bicarbonato, lipídios, o núcleo de
Mn4CaO5, dentre outros elementos. Existem outras formas estruturais do PSII. O objetivo dessa figura é que o
leitor perceba a complexidade do sistema.

Fig. 5.10: Representação da estrutura de uma das 35 clorofilas a presentes na estrutura do PSII ilustrado na Fig.
5.9.

Imbuídas na estrutura do PSII estão 35 moléculas de clorofila a, cuja função é absorver


fótons de luz e transformar a energia luminosa em química na forma de elétrons excitados.
Podemos verificar na Fig. 5.10 que a clorofila, por sua vez, também apresenta uma estrutura
razoavelmente complexa, cuja parte central da porção mais encorpada é composta por um íon
de magnésio cercado por 4 nitrogênios. Mas veja como a fotossíntese pode ser um bom tema
para nos familiarizarmos com conceitos em bioquímica. Muito provavelmente um bioquímico
não diria que no centro há um magnésio cercado por nitrogênios. Observe a Fig. 5.10
novamente. Note que cada nitrogênio, juntamente com outros 4 carbonos formam um
pequeno anel pentagonal (semelhante ao anel benzênico). Destes 4 pequenos anéis, 3 são
127
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

pirróis e sendo que o outro é uma pirrolina (o pirrol e a pirrolina diferem apenas por uma
ligação dupla entre carbonos). Estes três pirróis e a pirrolina, juntamente com mais carbonos e
hidrogênios formam um macrociclo denominado clorina (Figs. 4.10 e 4.11). Pequenas
alterações estruturais nesse macrociclo alteram as propriedades e funções destas grandes
moléculas. Uma ligação dupla entre carbonos difere a clorina da porfina, como pode ser
observada na Fig 4.11.

Fig. 5.11: Representações esquemáticas da a) clorina e b) porfina. A diferença entre as estruturas é uma ligação
dupla entre carbonos destacada em vermelho. Em c) vemos a estrutura do heme b. Note que a estrutura básica do
heme é a porfina com um íon de ferro no centro do anel heterocíclico com mais elementos orgânicos agregados. O
heme faz parte da estrutura da hemoglobina e é responsável adesão do oxigênio em nossas hemácias.

Isso é importante, pois a porfina é da família das porfirinas, e assim como as clorinas,
são onipresentes na bioquímica fisiológica na forma da grande família de tetrapirróis, e
participam do metabolismo de grande parte dos seres vivos. Por exemplo, a Fig. 5.11c mostra
a estrutura do heme b, que consiste em um átomo de ferro contido na porfirina e é o
pigmento vermelho da hemoglobina de nosso sangue (outra proteína complexa de fórmula
C2952H4664O832N812S8Fe4 cuja representação em vários aspectos lembra a Fig. 5.9) responsável
pelo transporte de oxigênio no organismo. Ou seja, a presença de ferro ou magnésio, além de
pequenas alterações estruturais no tetrapirrol, permite processos complexos dos seres vivos,
como a captação da luz pela fotossíntese ou o transporte do oxigênio na respiração.

Note que aqui estamos mostrando apenas recortes bem específicos de cada processo,
que apresentam grande complexidade. Por exemplo, a Fig. 5.12 mostra a estrutura da clorofila
b, destacando com um círculo pontilhado onde ela difere da clorofila a. Basicamente, a
diferença consiste em um aldeído (CHO) ao invés de um metil (CH3) ligado ao anel da clorina.
Essa pequena diferença na estrutura faz com que o espectro de absorção da clorofila b seja
distinto da clorofila a. A clorofila b, isoladamente, possui uma cor amarelada. Ela se encontra
em estruturas ao redor do PSII e auxilia na absorção de fótons para uso nas reações da
fotossíntese dependentes da luz, principalmente em plantas terrestres que vivem em
ambientes com pouca intensidade luminosa. Além das clorofilas a e b, existem muitos outros
tipos de clorofila presentes em diferentes organismos. Adicionalmente, a absorção da luz
depende de outros elementos além das clorofilas as quais podemos destacar os carotenoides.

128
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 5.12: Estrutura da clorofila b e comparação entre os gráficos de absorção das clorofilas a e b. Como acontece
também com os carotenoides, o espectro de absorção concentra-se nas faixas do vermelho e do azul. Portanto, a
radiação eletromagnética na região do verde não é absorvida, explicando a tonalidade esverdeada das folhas.

As clorofilas e outras enzimas sensíveis à luz formam uma estrutura que funciona como
uma antena para captação da energia luminosa. Uma vez que a interação com o fóton de luz
ocorre, um elétron é excitado e transferido por mecanismos ressonantes até uma estrutura
específica do PSII denominado P680. Basicamente, o P680 é composto de duas clorofilas a
acopladas de forma especial. A denominação “680” se deve ao fato de que seu espectro de
absorção possui um máximo no comprimento de onda de 680 nm. A partir daí, dois processos
importantes acontecem:

1. esse elétron excitado é transferido para além do PSII, em etapas, até o PSI
2. a falta deste elétron é reposta por um elétron da molécula de água, colocando
em curso a dissociação da água

O processo 2 é comumente chamado de oxidação da água, onde ela acaba perdendo


também seus prótons restando a molécula de oxigênio, como descrito na eq. 5.8. Esse
processo é feito com uma enzima denominada OEC (do inglês oxigen-evolving complex), que é
parte integrante do PSII e se localiza lateralmente centralizada e na parte inferior (conforme
perspectiva da Fig. 5.9 – veja também na Fig. 5.14). Seu funcionamento e estrutura ainda são
temas de pesquisa e acredita-se que seu núcleo possua, da mesma forma que a clorofila e o
heme, a presença de elementos metálicos, desta vez representados pelo manganês e o cálcio
conforme ilustrado na Fig. 5.13. O modelo mais aceito afirma que o núcleo do OEC atinge
estados excitados instáveis em quatro níveis diferentes, o que provoca a dissociação da água.
Desse processo de dissociação, os hidrogênios são dissociados do oxigênio, e elétrons são
separados dos prótons. Os elétrons são usados para repor os elétrons excitados do processo 1
e, assim como estes últimos, os prótons também são transferidos para além do sistema PSII
para serem utilizados em outros processos importantes da fotossíntese como veremos
adiante.

129
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 5.13: Representação de uma estrutura cristalográfica proposta para o núcleo do ORC. A estrutura e o
funcionamento do ORC ainda é tema de debate na comunidade científica.

Já o processo 1, que dá conta da transferência do elétron excitado pelo fóton no P680


para o PSI é ilustrado do ponto de vista energético na Fig. 5.14, também conhecida como
“diagrama Z”, cuja localização na célula das partes envolvidas podem ser observada na Fig.
5.15. Do P680 excitado (que representamos na figura como P680*) o elétron é transferido para
a feofitina, depois para a plastoquinona, para o complexo b6f, para a pastocianina e para o PSI.
Esse processo de transferência eletrônica fornece energia para a síntese de APTs.

Fig. 5.14: Diagrama ilustrando as reações dependentes da luz da fotossíntese. Com exceção da dissociação da água
+
destacada na elipse pontilhada e da NADP reductase, a posição vertical de cada processo reflete seu estado
energético conforme escala em elétrons-volt à esquerda.

Chegando no PSI, o elétron é novamente excitado por um fóton, chegando à um dímero


semelhante ao P680 denominado P700 (que possui o máximo no espectro de absorção no
comprimento de onda de 700 nm e cuja estrutura ainda é tema de estudos). A partir daí, em
um processo análogo ao que descrevemos para o caso do PSII, o elétron excitado do P700* é
capturado por uma sequência de proteínas que contém ferro e enxofre, passa pela ferredoxina
e chega até a enzima NADP+reductase. Esta catalisa a reação de transformação de NADP+
(Fosfato de dinucleótido de nicotinamida e adenina) em NADPH (a forma reduzida da
130
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

coenzima), cuja reação envolve também prótons livres no estroma. A produção de NADPH é
importante, pois este é utilizado como agente redutor em diversas reações fisiológicas dos
organismos vivos, como veremos adiante em outros processos da fotossíntese.

Há um fato interessante pode ser ressaltado em relação aos dímeros P680 e P700
presentes no PSII e PSI. Em seus estados excitados, o P680* e o P700* são, respectivamente, o
agente biológico de oxidação e o agente biológico de redução mais poderosos que se tem
conhecimento, o que denota como o processo evolucionário se desenrolou na direção da
conversão eficiente de energia luminosa em energia química.

Fig. 5.15: Representação esquemática das reações da fotossíntese dependentes da luz e sua relativa posição
referente à estrutura do cloroplasto.

Como vimos, da sequência de transferência eletrônica do PSII até o PSI é extraída a


energia para a produção de ATPs. Esta ocorre por meio de uma máquina enzimática
denominada ATP sintase (Fig. 5.15), que se utiliza dessa energia e dos prótons obtidos a partir
das reações que ocorrem no OEC. No início deste capítulo já mencionamos que o ATP é
considerado a moeda energética da fisiologia dos seres vivos, desde os unicelulares até os mais
complexos. Para se ter uma ideia, o corpo humano sintetiza seu próprio peso em ATPs todos
os dias, o que equivale energeticamente à sua dieta diária (~2000 kcal).

Temos então que as reações dependentes da luz, descritas no contexto das Figs. 4.14 e
4.15, transformam energia luminosa em energia química na forma de NADPHs e ATPs. Estes
são dois dos principais agentes impulsionadores de reações metabólicas, e é natural que
partilhem de subestruturas em comum. A Fig. 5.16 destaca a presença da adenosina e do
grupo fosfato em todas as estruturas, além de denotar a posição do hidrogênio quando da
redução do NADP+.

131
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

+
Fig. 5.16: Comparação entre as estruturas do NADP , NAPDH, ADP e ATP, evidenciando a presença das adenosinas
e dos grupos fosfatos.

Focamos aqui um pouco mais na complexidade do processo de absorção da luz pela


fotossíntese, pois esse é o fundamento da conversão da energia luminosa em energia química.
Porém energia química não se resume a ATPs e NADPHs. Lembre-se que no Cap. 2 atribuímos
à fotossíntese todas as formas de energia relacionadas à biomassa. Nesse sentido, temos que
buscar entender a origem das mais variadas formas de carboidrados, desde os presentes nos
seres vivos (açúcares, proteínas, gorduras, etc) até os combustíveis (gasolina, diesel, etanol
etc). Novamente, estamos falando de processos de alta complexidade. Mas o principal
processo nesse sentido é a produção de glicose pela fotossíntese, nas chamadas reações
independentes da luz.

É importante salientar que as reações independentes da luz são muitas vezes chamadas
de reações “escuras”. Essa denominação é contraproducente, pois estas reações não ocorrem
sem a presença de luz. Porém elas são classificadas separadamente das chamadas reações
dependentes da luz por não dependerem diretamente da energia dos fótons. As reações
independentes da luz são as responsáveis por absorver CO2 da atmosfera e formar as cadeias
carbônicas dos hidrocarbonetos. Por isso, usa-se também o temo de “fixação de carbono”. Elas
ocorrem no estroma dos cloroplastos.

A fixação de carbono ocorre por meio de uma sequência de reações químicas


denominada ciclo de Calvin, que se utiliza dos ATPs e NADPHs produzidos pelas reações
dependentes da luz. Essa reação é catalisada pela enzima mais abundante no planeta,
denominada ribulose-1,5-bisfosfato carboxilase oxigenase, também conhecida como RuBisCO.
Na Fig. 5.17 representamos o ciclo de Calvin de forma bastante simplificada. Sendo um
processo cíclico, as reações começam e terminam com uma molécula denominada ribulose
1,5-bifosfato (C5H12O11P2)35. O produto do ciclo é uma molécula de 3-fosfoglicerato(C3H7O7P),
considerada o bloco construtor de outras moléculas orgânicas, como a glicose. Catalisada pela

35
Sendo um processo cíclico, poderíamos fazer a mesma análise partindo de qualquer outro ponto do
ciclo.
132
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

RuBisCO, a molécula de CO2 é anexada à ribulose 1.5-bifosfato, tornando-a uma molécula com
6 carbonos. Em seguida essa molécula é quebrada em duas moléculas de 3-fosfoglicerato. Uma
delas é produto do ciclo e segue para outras rotas metabólicas. A outra passa por um processo
de recuperação, absorvendo mais duas moléculas de CO2 até tornar-se ribulose 1.5-bifosfato e
voltar ao início do ciclo. Todo o processo consome ATPs e NADPHs, tanto energeticamente,
quanto usando seus blocos constituintes, como o fosfato.

Fig. 5.17: Representação simples do ciclo de Calvin, parte principal das reações independentes da luz da
fotossíntese.

Por ser um ciclo que gera uma molécula com 3 carbonos (3-fosfoglicerato), as plantas
que se utilizam do ciclo de Calvin são chamadas de “plantas do tipo C3”, ou em outras
palavras, “plantas que usam o processo de fixação de carbono C3”.

Devido às características do RuBisCO, nem sempre as reações ocorrem da forma descrita


pelo ciclo de Calvin, resultando na fixação de dióxido de carbono. Em 25% dos casos há fixação
de oxigênio e liberação de gás carbônico em processo denominado fotorrespiração. É como se
fosse uma máquina que pode girar de duas formas, sendo que a maior parte do tempo gira de
uma forma, mas de forma aleatória, às vezes gira de outra forma. A proporção entre as taxas
das reações que seguem de acordo com o ciclo de Calvin e a fotorrespiração é fortemente
dependente das concentrações destes dois gases na atmosfera. Isso diminui a eficiência
fotossintética das plantas do tipo C3, pois o processo de fotorrespiração produz uma taxa
menor de 3-fosfoglicerato a um custo metabólico maior. Algumas plantas desenvolveram
formas especiais de fixação de carbono, denominadas C4, pois geram ácido málico (C4H6O5) ou
ácido aspártico (C4H7NO4). Existem diferentes formas de fixação C4 e em geral se baseiam na
adição de um processo anterior ao ciclo de Calvin, aumentando a concentração de dióxido de
carbono no RuBisCO, evitando a possibilidade de fotorrespiração. Como resultado, as plantas
do tipo C4 são mais eficientes no processo de fixação de carbono (transformação de energia
luminosa em biomassa), principalmente em climas mais quentes, secos, e com restrições de
133
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

nitrogênio e dióxido de carbono. Em diversas outras condições, o modo de fixação C3 se torna


mais interessante. Vale ressaltar que as principais culturas usadas para produção de etanol são
do tipo C4: a cana-de-açúcar e o milho. As plantas C4 representam certa de 3% das espécies
conhecidas, mas correspondem a 5% da biomassa e são responsáveis por 23% da fixação de
carbono no planeta. Podemos agora até compreender melhor parte da pesquisa em
biotecnologia sendo desenvolvida no momento. Por exemplo, o arroz é uma planta do tipo C3.
Há muita pesquisa tentando desenvolver uma variedade de arroz que realiza fixação do tipo
C4.

Até agora, procuramos entender como a energia luminosa é transformada em energia


química por meio da fotossíntese. Mas, afinal, qual é a eficiência da fotossíntese? Como isso se
compara a outros processos de transformação de energia luminosa, como os painéis
fotovoltaicos? As plantas são bastante distintas entre si. De acordo com a espécie, a eficiência
da fotossíntese pode variar de 0,1% até 8%. De forma geral, pode se dizer que a eficiência de
uma planta típica é da ordem de 0,1 a 1%. Plantas de colheita, como o arroz, possuem uma
eficiência entre 1 e 2%. Plantas do tipo C4 podem atingir eficiências maiores, entre 6 e 8%
sendo a mais eficiente de todas a cana-de-açúcar. Já os painéis fotovoltaicos comerciais
convertem energia luminosa em elétrica com eficiência da ordem de 20%. Há demonstrações
em laboratório de painéis fotovoltaicos com eficiência da ordem de 40%.

É evidente que nem todos os fótons que atingem as folhas das plantas são convertidos
em energia química. Só o fato de enxergarmos as folhas com a tonalidade verde já demonstra
que estas refletem parte da luz solar, na faixa do espectro que percebemos com o tom verde.
Mas a ineficiência não se resume só a isso. As perdas da fotossíntese são justificadas da
seguinte forma:

• 47% dos fótons são perdidos pois seus comprimentos de onda não
correspondem ao espectro de absorção da clorofila da planta. Veja dois desses
espectros na Fig. 5.12. Lembre-se que muitos fótons estão nas faixas do
infravermelho e do ultravioleta (além do intervalo de absorção entre o azul e o
vermelho dando a tonalidade verde da folha).
• Dos 53% dos fótons que sobram, 30% são perdidos por não atingirem de forma
eficiente as antenas dos cloroplastos.
• Dos 28.2% que são absorvidos, apenas 32% da energia correspondente é
convertida em glicose.
• Dos 9% de energia resultante, já convertidos em glicose, 35 a 40% desse açúcar
é reusado ou consumido pelo metabolismo da planta (respiração ou
fotorrespiração).
• Sobrando por volta de 5% para a eficiência da fotossíntese.

Os números acima podem variar de acordo com o tipo de planta.

Chegamos ao fim de nossa incursão pela fotossíntese onde procuramos esclarecer a


transformação da energia luminosa em biomassa. Tivemos também a intensão de mostrar que
processos metabólicos são, em geral, complexos, sofisticados, cheios de nuances e com muitas
questões a serem resolvidas. Se sua curiosidade sobre o assunto foi maior do que o

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

sentimento de sobrecarga devido à densidade do texto, há grandes oportunidades na área


para estudantes interessados e talentosos. Lembrem-se, o Brasil é uma potência agrícola.

Questionário

Combustão

1 – No texto foi dito que “Para se apagar um incêndio, a estratégia é sempre voltada para
retirar um dos três componentes principais da chama. Ou se retira o combustível, ou o
oxigênio, ou o calor.” Nos casos abaixo, identifique qual foi a estratégia usada para extinguir a
chama justificando sua resposta:

a) Sopramos uma vela


b) Abafamos uma chama com uma coberta
c) Afastamos os pedaços de madeira de uma fogueira, deixando os longe uns dos
outros.
d) Jogamos água em uma chama.

2 – A Fig. 5.18 mostra um bico de Bunsen em 4 regulagens diferentes: 1- válvula de ar fechada,


2 – válvula quase totalmente fechada, 3 válvula quase totalmente aberta, 4 – válvula
totalmente aberta. Desenhe esquematicamente os espectros esperados para as regiões das
chamas indicadas para os casos do bico de Bunsen nas situações 1 e 4. Justifique seu desenho
e identifique as regiões do visível, infravermelho e ultravioleta nos gráficos.

Fig. 5.18: chamas de um bico de Bunsen em 4 regulagens diferentes.

3 – No texto é dito que “Uma das evidências experimentais que sustenta o ponto de vista de
que o oxigênio é o grande responsável pela característica fortemente exotérmica da
combustão é o fato de que, como regra geral, todas as reações de combustão geram
aproximadamente 418 kJ de energia térmica por mol de O2 consumido, seja qual for o
combustível”. Verifique tal hipótese para o metano, butano, octano, ciclohexano e a glicose
usando os dados da tabela abaixo, usando as seguintes etapas.

a) Escreva e faça o balanceamento da reação de combustão para cada combustível.


b) Calcule a energia liberada pela reação de combustão para 1 mol de O2 consumido.

135
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

c) Compare o valor com o indicado no enunciado e discuta com seus colegas o resultado.

Combustível Fórmula Entalpia de combustão por mol de combustível


Metano CH4 - 890 kJ/mol
Butano C4H10 - 2877 kJ/mol
Octano C8H18 - 5430 kJ/mol
Ciclohexano C6H12 - 3930 kJ/mol
Glicose C6H12O6 - 2880 kJ/mol

4 – Quais são os usos práticos da pirólise?

5 - Quais são os principais componentes e os usos práticos da fuligem?

6 – Se um fogão de cozinha apresenta uma chama amarelada é sinal de que necessita de


manutenção. Por quê?

Fotossíntese

7 – Qual é a diferença entre a química orgânica e a química inorgânica? Como a fotossíntese se


relaciona com essa divisão?

8 – Por que a maior parte dos vegetais possui folhas com coloração verde?

9 – Quantos tipos de clorofilas há? Onde ocorrem e quais são as suas funções específicas?

10 – Por que a cana de açúcar é a cultura mais utilizada para a produção de etanol?

11 – Em que região se concentra a produção de cana-de-açúcar no mundo? Qual a relação


disso com sua eficiência energética?

12 – Procure pela estrutura da vitamina B12. Você é capaz de reconhecer parte da estrutura?
O que você pode dizer sobre a estrutura?

13 - Você possui animal de estimação? Estime quantos gramas de ATP seu animal sintetiza por
mês.

14 – Como dito no texto, há muita pesquisa tentando desenvolver uma variedade de arroz que
realiza fixação de carbono do tipo C4. Você sabe dizer por quê?

Créditos das Figuras:

5.1: Arte própria a partir de imagens de uso livre obtidas no wikimedia commons e pixabay.
5.2: Arte própria
5.3: Arte própria
5.4: Arte própria
5.5: By NASA -
http://exploration.nasa.gov/programs/station/images/SAME1.jpg(http://www.nasa.gov/missions/shuttle/f_firepre
vention.html), Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=5115623
5.6: Adaptado de wikimedia commons. Spectrum of a blue flame from a pocket butane torch.

136
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

5.7: Arte própria baseado em elementos de


http://exploration.nasa.gov/programs/station/images/SAME1.jpg(http://www.nasa.gov/missions/shuttle/f_firepre
vention.html), Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=5115623
5.8: Adaptado de Søren Wedel Nielsen - Own work, CC BY-SA 3.0,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=185063
5.9: https://en.wikipedia.org/wiki/File:PhotosystemII.PNG - by Curtis Neveu.
5.10: Adaptado de https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Chlorophyll-a-3D-balls.png
5.11: Baseado em elementos da wikimedia commons. By NEUROtiker,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1812151,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1019005, By Yikrazuul,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=11081791
5.12: Adaptado de https://commons.wikimedia.org/wiki/File%3AChlorophyll-b-3D-balls.png, By Jynto [CC0], via
Wikimedia Commons e https://commons.wikimedia.org/wiki/File%3AChlorophyll_ab_spectra2.PNG by Daniele
Pugliesi [GFDL (http://www.gnu.org/copyleft/fdl.html) or CC BY-SA 3.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-
sa/3.0)] Wikimedia Commons
5.13: By Pwnsey - Pymol from PDB 2wu2, CC BY-SA 3.0,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=47294160
5.14: Arte própria. Baseado em elementos da wikimedia commons.
5.15: Adaptado de Somepics - Own work, CC BY-SA 4.0,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=38088695
5.16: Baseado em elementos da Wikimedia commons. By Benjah-bmm27 - Own work, Public Domain,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1884538, Own work Jynto
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Adenosine-triphosphate-anion-3D-balls.png,
http://wiki.chemprime.chemeddl.org/articles/a/d/p/File~ADP_BallandStick.png_aa03.html
5.17: Baseado em elementos da wikimedia commons. Public Domain,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1206736
5.18: Adaptada de Arthur Jan Fijałkowski - Own work, CC BY-SA 3.0,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=279768

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

6 – Máquinas Térmicas: Conversão de Energia Térmica em Mecânica

Neste capítulo, trataremos do assunto central da termodinâmica clássica, que é a


conversão de energia térmica em mecânica. Vale lembrar que Carnot é considerado o pai da
termodinâmica e devotou seu trabalho ao entendimento das máquinas a vapor que
impulsionavam a revolução industrial da época. Além disso, o conteúdo abordado aqui é
fundamental para entendermos os motores dos automóveis, as turbinas dos aviões, os
processos das termelétricas, dentre várias outras tecnologias onipresentes.

6.1 – O que é energia térmica?

Qual é a diferença entre um copo de água quente e um copo de água fria? Por ser uma
manifestação específica da energia, a energia térmica é menos controversa em sua definição
do que a energia em si. É comum lermos nos livros que energia térmica de um corpo é
decorrente da agitação das partículas (íons, moléculas, etc) que o compõe. Esse modelo de
energia térmica tem um poder explicativo muito grande como veremos nesse capítulo e no
próximo sobre as leis da termodinâmica. Quando dizemos agitação, estamos associando
energia térmica ao movimento dessas partículas, isto é, estamos dizendo que energia térmica
é uma forma de energia cinética. Dependendo das características do corpo em questão, essa
energia pode se manifestar na forma de translação das partículas (predominante nos gases
monoatômicos), rotação das moléculas (presente também nos gases poliatômicos) e
vibracional (gases poliatômicos e parte da energia térmica dos sólidos36). Quando
consideramos as vibrações, significa que a energia não é puramente cinética, mas existe uma
componente potencial (muitos modelos vibracionais consideram sistemas análogos ao “massa
e mola”).

Considere uma bola de basebol. De acordo com a discussão do parágrafo anterior


existem duas formas de se fornecer energia cinética a essa bola. Podemos lançá-la de forma
que ela adquira translação e rotação, ou podemos aquecê-la. Note que no primeiro caso,
desprezando efeitos secundários como resistência do ar, troca de calor com a mão do
arremessador etc, a bola de move, mas permanece em equilíbrio térmico com o ambiente. Das
duas formas, a bola estará imbuída de energia cinética. Mas somente no segundo caso
consideramos é essa energia cinética se manifesta da forma térmica. Qual é a diferença?
Costumamos dizer que a característica térmica de um corpo está associada ao caráter
aleatório, ou randômico do movimento das partículas do sistema. Por outro lado, quando a
bola é lançada, todas as partículas do sistema apresentam um movimento coerente de
translação e rotação. Isso faz com que a bola possa a ser tratada como “um corpo”. Isso é o
que fazemos em mecânica, onde, em muitos casos uma bola em movimento pode ser reduzida
a “um ponto material de massa ”. Já no caso da manifestação térmica, cada partícula se
move por si de forma aleatória. Uma bola de basebol possui muitas partículas. Estamos
falando de moles de partículas, e não temos condições de seguir uma-a-uma. Por isso, a física
térmica faz tratamentos estatísticos.

36
Sendo a outra parte atribuída de forma bem simplificada ao “gás de elétrons” do sólido.
138
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

No entanto, nem todo modelo de física térmica precisa ser estatístico. Como vimos, a
termodinâmica surgiu na época em que o conceito de calórico ainda era prevalente e se
utilizava parâmetros macroscópicos como temperatura, pressão, volume etc. A física
estatística é uma área moderna da ciência, que veio na esteira dos trabalhos de
personalidades como Joule e Kelvin e teve participação de cientistas como Boltzmann, Gibbs e
Einstein. De fato, antes de publicar seus famosos trabalhos em relatividade e quântica, Einstein
publicou na área de física estatística e chegou a trocar correspondências com Boltzmann. Um
aspecto importante da agenda científica de muitos cientistas da época era demonstrar a
natureza corpuscular da matéria, uma vez que as evidências da existência do átomo eram
poucas (clivagem de cristais, movimento browniano, os experimentos em torno da hipótese de
Avogadro, por exemplo) e essa questão estava longe de ser consenso. Não por acaso,
evidências dessa essência corpuscular da natureza surgiram em grande número no início do
séc. XX, com os trabalhos da mecânica quântica como o tratamento da radiação térmica de
Planck, o modelo atômico de Bohr (na esteira de Rutherford), o efeito fotoelétrico e o modelo
estatístico para o movimento browniano, ambos de Einstein.

Por fim, vale recordar, como vimos no Cap. 4, que muitos fenômenos térmicos podem
estar relacionados com a radiação eletromagnética, no contexto da radiação térmica.

Nesse capítulo, focaremos nas manifestações macroscópicas da física térmica e


trataremos a abordagem microscópica de forma qualitativa. Mais sobre esse assunto será
tratado no Cap. 7.

6.2 – O Aproveitamento da Energia Térmica

Iniciaremos aqui uma jornada que partirá de uma bexiga inflada, passará pela máquina a
vapor e chegará às turbinas de aviões e motores de automóveis.

Quem pratica esporte, como futebol ou ciclismo, anda de carro ou ônibus, possui um
bom conhecimento tácito relacionado com movimento, inércia e energia cinética e suas inter-
relações. Por outro lado, a familiaridade tácita das pessoas da inter-relação entre calor,
pressão e movimento não é desenvolvida no mesmo nível. É por isso que a mecânica é mais
intuitiva que a física térmica. Nesse sentido, propomos que o leitor faça um experimento
muito simples, que será muito útil para a construção conceitual das máquinas térmicas,
mesmo que tacitamente.

Infle uma bexiga até o tamanho aproximado de uma maçã, de forma que você possa
segurar a bexiga praticamente envolvendo-a, como na Fig. 6.1a. Acenda o fogão, com cuidado
para não se queimar, e segurando a bexiga posicione-a sobre o fogo a uma distância de
aproximadamente meio metro (50 cm).

Você observará e sentirá três efeitos: o calor proveniente da chama do fogão, o


aumento do volume da bexiga assim como o aumento da pressão das paredes da bexiga
contra sua mão. Isso equivale a sentir “na pele” o que descreve a lei dos gases ideais:

9 = [{+ (6.1)

onde , 9 e + são a pressão do ar, o volume e a temperatura do interior da bexiga


respectivamente, [ é o número de moles, { é a constante dos gases. Na prática, a quantidade
139
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

[{ representa a quantidade de ar restrita dentro da bexiga, que é fixa. Uma vez que a bexiga
recebe calor da chama, a temperatura do ar aumenta. Como consequência, tanto o volume
quanto a pressão aumentam. Esses efeitos podem ser vistos e sentidos no experimento.

Fig. 6.1: Fotos ilustrativas do experimento da bexiga no fogão. Veja o vídeo no youtube
https://www.youtube.com/watch?v=42zj6Mimsqg&t=

Remova a bexiga da região sobre a chama e o efeito contrário é observado: a


temperatura diminui, assim como o volume e a pressão. Repita o procedimento quantas vezes
forem necessárias até adquirir familiaridade com o fenômeno.

Vemos, nesse experimento, como uma variação de temperatura de um fluído (gás) pode
gerar força (pressão) e movimento (alteração de volume). Essa é a essência das máquinas
térmicas.

O experimento do fogão correlaciona bem as variáveis macroscópicas associadas à lei


dos gases ideais. Mas o que ocorre no ponto de vista microscópico? Por simplicidade, a Fig. 6.2
ilustra a diferença de um gás monoatômico confinado em uma bexiga em baixa e alta
temperatura. Segundo a interpretação estatística, no caso mais quente, as partículas
apresentam colisões mais energéticas e frequentes, e isso é sentido como aumento da pressão
na mão e também como um aumento do volume.

Fig. 6.2: Representação microscópica das partículas de um gás confinado em uma bexiga nos estados frio e quente.

140
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

É importante notar um efeito muito interessante e sutil do ponto de vista conceitual


nesse experimento da bexiga: uma variação no comportamento aleatório na transição do
estado frio para o quente resultou em um movimento coerente radial das paredes da bexiga
no sentido de expandir seu volume. Note que esse movimento acontece em todas as direções.
Essa transição entre a manifestação aleatória (térmica) e o movimento coerente (mecânico)
pode ser acentuada se, ao invés de usarmos uma bexiga, usarmos um sistema composto por
um cilindro e um pistão (êmbolo). Nesse sistema, ilustrado na Fig. 6.3, o movimento coerente
resultante é limitado pela geometria do sistema a ocorrer apenas em uma direção e sentido,
acentuando a amplitude desse movimento.

Fig. 6.3: De forma análoga ao sistema do gás confinado na bexiga, o aumento da energia térmica das partículas do
gás resulta em colisões mais frequentes e energéticas com as paredes do cilindro e do pistão. O movimento do
pistão ocorre em apenas uma direção e sentido. A essência de uma máquina térmica está representada nessa
figura e ela será referenciada várias vezes ao longo do texto.

Em contraste com o processo expansivo, no experimento com a bexiga você pôde notar
que no momento em que ela é afastada do fogo, a temperatura diminui, bem como o volume
e a pressão exercida contra sua mão. Nesse sentido, é fácil de perceber que um processo
repetitivo de aquecimento e resfriamento do sistema cilindro-pistão resultaria em um
movimento reciprocante (“vai-vem”) do pistão, como ilustrado na Fig. 6.4.

Fig. 6.4: Representação esquemática do movimento reciprocante resultante do processo de aquecimento e


resfriamento do sistema cilindro-pistão.

Vemos então, de uma maneira bastante simples, como podemos obter um movimento
reciprocante a partir de um processo térmico cíclico de aquecimento e resfriamento. Note
que, enquanto o movimento mecânico for desejado, o processo térmico cíclico deve ser
continuado. Essa é uma característica de grande parte das máquinas térmicas. Sendo assim,
podemos perceber a grande relevância dos chamados ciclos térmicos na termodinâmica.
Nesse capítulo veremos vários desses ciclos com mais detalhes.
141
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Uma máquina térmica realizada da forma como descrita aqui implicaria em aquecer e
resfriar todo o sistema composto por cilindro, pistão e gás a cada ciclo, o que resultaria em
uma máquina bastante ineficiente. De fato, as primeiras máquinas térmicas37, desenvolvidas
por Savery e Newcomen no séc. XVIII sofriam dessa deficiência. No fim, o que importa é o
aquecimento e o resfriamento do gás, que é bem menos massivo do que o restante do sistema
e a energia térmica usada para aquecer o cilindro e o pistão não são aproveitados para a
geração do movimento mecânico38. Mais adiante nesse capítulo, veremos os
desenvolvimentos realizados com diferentes abordagens para melhorar essa eficiência.

6.3 – Do movimento reciprocante ao movimento linear

Frequentemente se diz que uma das principais funções da ciência e tecnologia é


entender e controlar os fenômenos naturais em proveito do ser humano. Na seção anterior,
vimos como obter um movimento reciprocante a partir de um processo cíclico de aquecimento
e resfriamento. Veremos nessa seção como podemos tirar proveito disso.

O movimento reciprocante em si é muito útil, sendo largamente utilizado para


tecnologias de bombeamento de fluídos gasosos e líquidos, por exemplo. Com a simples
adição de elementos como válvulas, o movimento reciprocante pode resultar em um
movimento em um único sentido (ou a atuação de uma força em um único sentido) destes
fluídos. Note como as bombas comumente usadas para encher bolas e pneus de bicicleta são
compostas basicamente por um cilindro com um pistão. A Fig. 6.5 mostra a bomba
desenvolvida por Thomas Newcomen no séc. XVIII e a bomba cabeça de cavalo ainda muito
usada na indústria petroleira.

Fig. 6.5: a) Diagrama esquemático da máquina térmica de Thomas Newcomen de 1712, muito utilizada para o
bombeamento de água de minas de carvão. b) Foto de uma bomba cabeça de cavalo (pumpjack) da indústria
petroleira.

Além das válvulas, existem outras formas de se transformar um movimento


reciprocante em um movimento em sentido único. A Fig. 6.6 mostra uma forma de converter

37
No caso eram máquinas a vapor, que possuem um funcionamento um pouco distinto do que descrito
até agora, mas possuindo basicamente os mesmos princípios. Detalharemos sobre o caso das máquinas
a vapor nas próximas páginas.
38
Note que, quando construímos uma máquina térmica simples, passo a passo, é natural que passemos
pela sequência de limitações conceituais que apareceram historicamente.
142
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

movimento reciprocante em um movimento circular, muito utilizada em diferentes


tecnologias, desde as mais históricas como as locomotivas a vapor como mais atuais, como os
automóveis.

Fig. 6.6: a) Diagrama esquemático da conversão de movimento reciprocante em circular. b) O conceito ilustrado
em (a) utilizado na locomotiva a vapor. c) Representação do mesmo conceito como ocorre nos motores de
automóveis, onde estão representados quatro cilindros, o virabrequim e o volante de inércia (disco preto). d) O
conceito ilustrado na atividade de andar de bicicleta.

Nesse contexto, é importante destacar a relevância de um conceito matemático


envolvido nas funções trigonométricas seno e cosseno. Estas funções conectam os
movimentos oscilatórios a movimentos circulares de uma forma fundamental. Tanto
movimentos circulares quanto oscilatórios, tais como o pêndulo e o sistema massa-mola (os
chamados osciladores harmônicos), podem ser descritos por meio destas funções (Fig 5.7).

Fig. 6.7: Diagrama ilustrativo da relação entre as funções trigonométricas seno e cosseno com o movimento
circular. Veja o gif animado em https://en.wikipedia.org/wiki/Sine#/media/File:Circle_cos_sin.gif

Há, porém, uma sutileza em relação aos mecanismos que transformam movimento
reciprocante em movimento circular ilustrados na Fig. 6.6, que é especialmente evidente na
Fig. 6.6a. Note que o processo é simétrico com relação ao sentido de rotação da roda, de

143
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

forma que poderia ser tanto no sentido anti-horário (como indicado na figura) como no
sentido horário. Do ponto de vista mecânico isso pode ser problemático, pois nos pontos de
máximo e mínimo deslocamento do pistão, o movimento circular pode ser revertido. Para
prevenir isso, todos os motores reciprocantes se utilizam de um elemento inercial denominado
volante de inércia.

Fig. 6.8: Foto de uma roda de oleiro. Note o volante de inércia na parte inferior.

O volante de inércia já era muito utilizado em civilizações antigas e seu princípio de


funcionamento e aplicabilidade permanecem atuais. A Fig. 6.8 mostra uma roda de oleiro,
instrumento usado para trabalhar argila na confecção de potes e jarros. Essa arte milenar
permaneceu praticamente inalterada até hoje, onde a argila é moldada sobre uma mesa
girante que pode ser observada na parte superior do equipamento mostrado na imagem. Por
meio de um eixo, essa mesa é conectada a uma grande roda maciça localizada na parte inferior
que é impulsionada com os pés de forma a adquirir o movimento rotacional desejado. A roda
inferior possui duas funções importantes: ela serve de plataforma para permitir a ação dos pés
e, por ser maciça, contribui para que o movimento seja razoavelmente uniforme mesmo que
os impulsos realizados pelos pés do operador sejam intermitentes. A roda inferior é um
volante de inércia, que é fisicamente interpretado como um acumulador de momento angular
e energia cinética.

Voltemos à discussão com relação ao sistema mostrado na Fig. 6.6a, onde discutimos
um potencial problema de uma possível reversão do sistema nos pontos de máximo e mínimo
deslocamento do pistão. É fácil de perceber que um a ação inercial de um volante de inércia
associado a esse dispositivo garantiria que este sempre gire no mesmo sentido.

Sendo assim, podemos concluir que o volante de inércia tem duas funções principais
nos sistemas de conversão do movimento reciprocante em circular:

• Garantir que o movimento circular permaneça em um único sentido


• Impor um ritmo razoavelmente homogêneo do mecanismo
144
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

A Fig. 6.9 mostra a presença do volante de inércia em dois motores com aplicações
distintas. O volante de inércia também está representado em preto no sistema mostrado na
Fig. 6.6c e de fato está presente nos motores dos carros, caminhões, ônibus etc.

Fig. 6.9: Os volantes de inércia estão bem evidentes nas fotos acima. a) uma estação de bombeamento e b) um
trator Landini antigo.

6.4 – Aprimorando a máquina térmica

Com o que vimos até agora, já temos todas as condições básicas para construir uma
máquina térmica simples, baseado no aquecimento e resfriamento cíclico de um sistema
cilindro-pistão, e transformar esse movimento reciprocante em um movimento circular (e até
mesmo linear aproveitando-se o movimento circular). Mas, como já foi discutido, esse sistema
simples seria bastante ineficiente, assim como eram ineficientes as primeiras máquinas de
Thomas Savery do séc. XVIII (Fig. 6.5a), principalmente porque desperdiçamos muita energia
térmica aquecendo e resfriando o sistema cilindro pistão como um todo. Como vimos, o
importante é que o gás do interior do sistema seja aquecido e resfriado. Ao longo da história,
diferentes propostas foram implementadas para diminuir esse problema.

Imagine se pudéssemos ter um sistema cilindro pistão mais alongado, onde uma parte
do cilindro permaneceria sempre quente e outra parte sempre fria. Bastaria apenas mover o
gás sucessivamente da parte quente para a fria para que obtivéssemos o efeito sucessivo de
expansão e contração deste. A Fig. 6.10 mostra esse conceito de uma forma mais esquemática.
Na Fig. 6.10a podemos observar dois cilindros distintos, porém conectados de forma que a
pressão dentro deles é a mesma. O cilindro da esquerda é chamando de cilindro de força, pois
nele está o pistão a partir do qual o trabalho da máquina pode ser aproveitado. O cilindro da
direita é chamado de cilindro de deslocamento onde o aquecimento e resfriamento do gás é
realizado. Na parte da direita do cilindro de deslocamento há uma chama que mantém essa
extremidade quente. A parte da esquerda não é aquecida e possui um sistema que dissipa a
parte do calor que provém da chama por meio da condução térmica do cilindro, mantendo
essa porção fria. Na situação mostrada na Fig. 6.10a, há um êmbolo (em marrom claro)
posicionado na região fria do cilindro, fazendo com que a maior parte do volume do gás esteja
na parte quente. Nessa situação, o gás adquire energia térmica da chama de forma que sua
temperatura se eleva, gerando expansão e o consequente movimento do pistão para fora do
cilindro. Quando isso ocorre, o êmbolo então é deslocado para a região quente do cilindro de
145
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

deslocamento (como mostrado na Fig. 6.10b) fazendo com que a maior parte do gás esteja na
região fria, causando a contração do gás e ocasionando o movimento do pistão para dentro39.
Note que nesse sistema, apenas o gás é aquecido e resfriado ciclicamente. As regiões quente e
fria do cilindro de deslocamento permanecem nessa condição permanentemente, não
havendo o custo energético de aquecer e resfriar o cilindro (e o pistão) a cada ciclo, tornando
essa proposta mais eficiente do que a mostrada na Fig. 6.4.

Fig. 6.10: Aprimoramento da máquina térmica inicialmente proposta na Fig. 6.4. Nessa máquina, apenas o gás de
trabalho sobre aquecimento e resfriamento, e não há o desperdício de energia térmica com o aquecimento e
resfriamento sucessivo do sistema cilindro pistão.

6.5 – O motor de Stirling

Conceitualmente falando, a Fig. 6.10 representa o motor de Stirling que funciona de


acordo com o ciclo de Stirling (a descrição dos ciclos em detalhes será feita mais adiante).
Como material suplementar deste livro, veja um vídeo no youtube40 onde o movimento
reciprocante pode ser observado em uma implementação didática do conceito da Fig. 6.10.

A Fig. 6.11 mostra uma representação esquemática mais técnica de uma configuração
possível de um motor de Stirling. Um exercício interessante é localizar os elementos presentes
na Fig. 6.10 no esquema mostrado na Fig. 6.11. Uma das características principais do motor de
Stirling é que o gás de trabalho fica sempre confinado no interior do motor e este é
ciclicamente aquecido e resfriado para a obtenção de trabalho mecânico.

39
O mecanismo com o qual este êmbolo é movido de um lado para outro é uma tecnicalidade
desimportante nesse momento.
40
https://www.youtube.com/watch?v=0hidN_R5tq0 Motor de Stirling desenvolvido pelo aluno Lucas
Gonçalves Abex como atividade complementar da disciplina Bases Conceituais da Energia.
146
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 6.11: Representação esquemática de um motor de Stirling. Essa é uma das configurações possíveis,
denominada “gama”.

A Fig. 6.12 mostra uma foto de um motor de Stirling com a configuração semelhante ao
esquema mostrado na Fig. 6.11.

Fig. 6.12: Fotografia de um motor de Stirling gama utilizado para demonstração e fabricado pela Solar Engines com
objetivo de demonstração.

A configuração mostrada na Fig. 6.11 é apenas uma de uma grande variedade, e é


denominada “gama” por ter o cilindro de força separado do cilindro de deslocamento.
Escolhemos esta para discutir o motor de Stirling por motivos didáticos. A Fig. 6.13 mostra
outras configurações comuns denominadas “alfa” e “beta”. O cilindro de força separado,
presente na configuração gama, resulta em um volume específico maior, resultando em uma
taxa de compressão um pouco menor. Ou seja, a configuração gama tende a ser menos
eficiente do que as configurações alfa e beta, mais utilizadas em situações práticas. Note que

147
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

os movimentos do pistão de força e de deslocamento estão atrelados de forma específica ao


eixo de rotação do volante de inércia. Esse ajuste é feito de forma que imediatamente antes
do processo de aquecimento, o gás de trabalho é comprimido, sofrendo a expansão máxima
imediatamente antes do processo de resfriamento. O resultado é uma aumento na eficiência
do motor.

No motor de Stirling, a fonte de calor é externa à câmara onde ocorre a expansão do gás
de trabalho. Essa característica costuma ser designada como “motor de combustão externa”,
como mostra claramente a Fig. 6.11. Isso traz uma vantagem ao motor de Stirling, pois muitos
combustíveis diferentes podem ser utilizados em muitos casos sem nenhuma adaptação do
dispositivo. Na prática, não é necessário haver uma chama, bastando haver o aquecimento da
extremidade do cilindro de deslocamento. Há propostas de se utilizar a radiação solar para
essa finalidade.

Fig. 6.13: Outras configurações comuns do motor de Stirling a) alfa e b) beta.

Outras considerações sobre o motor de Stirling serão discutidas mais adiante no


contexto comparativo com outros motores e ciclos. Em resumo, do que foi visto até agora
sobre o motor de Stirling, podemos destacar os seguintes aspectos principais:

• Podemos identificar uma “parte quente” e uma “parte fria”


• É um motor de combustão externa
• Alta versatilidade na utilização de fontes de energia térmica
• O fluído permanece sempre confinado no interior do cilindro
• O fluído permanece sempre no estado gasoso

6.6 – Turbinas

Até agora discutimos a implementação de uma máquina térmica por meio de um


sistema “cilindro-pistão”. Isso, como vimos, dá a origem a um motor reciprocante. Existe,

148
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

porém outro sistema capaz de obter trabalho mecânico a partir do deslocamento de um fluído
que é denominado turbina41. A maior parte das pessoas associa esse nome aos ruidosos
motores que equipam os aviões comerciais. Mas o que é uma turbina?

A palavra “turbina” vem do latim “turbo” que significa “vórtice”. Pode-se dizer que uma
turbina aproveita do movimento circular de um elemento, normalmente equipado com aletas
ou pás coletoras, para obter trabalho mecânico a partir do movimento de um fluído. A Fig. 6.
14 mostra dois exemplos de turbinas antigas, na forma de uma roda d’água e um moinho de
vento. Esses dois moinhos não são classificados como máquinas térmicas42, mas ilustram bem
o conceito de uma turbina.

Fig. 6.14: Exemplos de turbinas antigas. a) a roda d’água e b) o moinho de vento.

Da Fig. 6.3 até a Fig. 6.11 procuramos construir conceitualmente, passo-a-passo um


motor reciprocante térmico. Por motivos didáticos ilustramos essa construção com o motor de
Stirling. Mais adiante veremos outros casos de motores reciprocantes, como os motores de
automóveis. Aqui nessa seção, construiremos conceitualmente uma turbina térmica de forma
análoga.

A Fig. 6.15 mostra um diagrama esquemático que procura ilustrar o conceito de uma
turbina térmica de maneira semelhante à proposta feita na Fig. 6.3 para os motores
reciprocantes. Nessa figura aproveitamos o mesmo cilindro da Fig. 6.3, porém substituímos o
pistão (êmbolo) pelas lâminas de uma turbina (como as pás de um cata-vento) de forma que
estas mantenham certo volume de gás confinado. Sabemos que este confinamento não é
efetivo como no caso do êmbolo, mas mesmo assim podemos considerar que o gás está
confinado entre o cilindro e as lâminas de certa forma. Ao aquecermos o gás, ele expandirá de
forma que terá que passar pelas lâminas da turbina fazendo-a girar. Novamente vemos como a
geometria do sistema é importante fazendo com que a expansão de um gás, que em principio
ocorre em todas as direções, resulte em um fluxo em uma direção específica. Claro que a

41
A maior parte das máquinas térmicas pode ser classificada como reciprocantes ou turbinas, embora
haja máquinas com características intermediárias, como as quasiturbinas ou o motor de Wankel.
42
Embora discutimos no Cap. 2, como o ciclo hidrológico e o princípio dos ventos estão relacionados
com a energia térmica do Sol.
149
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

efetividade de uma máquina como essa seria bastante limitada, mas a Fig. 6.15 tem como
objetivo principal ilustrar o conceito de uma turbina térmica. Assim como fizemos como o
motor reciprocante, podemos acrescentar elementos ao dispositivo de forma a melhorar sua
efetividade.

Fig. 6.15: Diagrama rudimentar ilustrando o conceito de uma turbina térmica em analogia ao diagrama ilustrado na
Fig. 6.3 em relação ao motor reciprocante.

Vimos que uma turbina procura extrair trabalho mecânico a partir de um fluxo contínuo
de um fluído. No caso da Fig. 6.15, esse fluxo de gás ocorre somente enquanto a temperatura
do gás se eleva, e não temos condições de elevar essa temperatura indefinidamente. Portanto,
o próximo passo seria acrescentar uma forma de haver um fluxo contínuo na turbina. A Fig. 6.
16 apresenta uma forma de se fazer isso.

Fig. 6.16: Diagrama conceitual de uma turbina térmica onde há a introdução de um compressor de forma a
viabilizar um fluxo contínuo de gás de trabalho.

Nesse caso, temos um compressor que tem a função de captar o gás do ambiente (ar,
por exemplo) e introduzi-lo na região de alta temperatura da turbina. Não é necessário aqui
especificar o mecanismo do compressor, apenas o consideramos como um dispositivo que

150
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

“bombeia” o ar de fora para dentro do cilindro. Note que o compressor é necessário, não
sendo suficiente haver apenas uma abertura. Isso porque a região de alta temperatura é
também uma região de alta pressão e o gás tenderia a escapar pela abertura ao invés de
adentrar o cilindro na ausência do compressor.

Alguém poderia objetar, dizendo que é necessário fornecer energia para movimentar o
compressor, o que seria um contrassenso em uma máquina projetada para obtenção de
energia. De fato, a atuação do compressor consome energia, e é esse tipo de fator, além de
outros, que faz com que as máquinas térmicas não sejam 100% eficientes. Mas em uma
máquina bem desenhada, a presença da fonte de energia (a chama do desenho), que aquece a
porção quente do cilindro, garante que o trabalho mecânico obtido na turbina é maior do que
a energia utilizada no compressor.

Restringimo-nos aqui apenas em uma discussão mais conceitual de uma turbina térmica.
Nas outras sessões discutiremos sobre as implementações mais práticas desse conceito.

6.7 – A máquina a vapor

Quando mencionamos “máquina a vapor” normalmente nos vem a imagem da Maria-


Fumaça em nossas mentes. As locomotivas a vapor foram as locomotivas mais comuns até a
segunda guerra mundial. Historicamente, as máquinas a vapor foram muito importantes na
Europa possibilitando a revolução industrial, bombeando água de minas, e dessa forma
aumentando a produção de carvão mineral, facilitando o transporte com as locomotivas e
embarcações a vapor e movimentando a indústria.

Porém engana-se quem pensa que a relevância da máquina a vapor se restringe ao


passado. Atualmente, turbinas a vapor são responsáveis por cerca de 80% da produção da
energia elétrica no mundo. O Brasil é uma exceção nesse caso, dependendo das hidrelétricas
prioritariamente. Em todo caso, entender o funcionamento de máquinas a vapor é relevante e
atual.

Em princípio, a máquina a vapor se assemelha ao motor de Stirling em vários aspectos:


trabalho mecânico é obtido a partir do aquecimento e expansão de um fluído, podemos
identificar a “parte quente” e a “parte fria” da máquina, a combustão é externa e várias fontes
de energia térmica podem ser usadas, desde combustíveis fósseis, energia solar e até
nucleares.

Porém há diferenças importantes. A principal delas é que o fluído usado é o vapor, que
na maior parte dos casos é o vapor d’água. Existe um motivo forte para isso.

151
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 6.17: Essência de funcionamento da máquina a vapor. A pressão de uma atmosfera, 1 ml de água se
transforma em 1703 ml de vapor, resultando em um grande aproveitamento da expansão do fluído de trabalho.
Uma máquina térmica poderia ser construída executando ciclos de evaporação e condensação da água presente
no cilindro.

Nas sessões anteriores vimos que as máquinas térmicas se aproveitam da expansão


(contração) de um gás quando este é aquecido (resfriado) para aproveitar a energia mecânica
gerada. Nesse sentido, vamos retornar ao sistema ilustrado na Fig. 6.3, mas nesse caso, na
situação inicial em que o fluido está frio, vamos substituir o gás por um pequeno volume de
água, 1 ml por exemplo, no estado líquido. Para efeito de argumento, vamos supor que esse
volume de água esteja a uma temperatura + = 100°J ao nível do mar43. Na mesma
abordagem da Fig. 6.3, vamos fornecer energia térmica para esse sistema. Sabemos que a
água, nessas condições, inicia o processo de evaporação, mantendo-se a 100°C até que toda a
massa seja transformada em vapor. Esse processo é ilustrado na Fig. 6.17 onde podemos notar
que, devido a transformação de fase, de líquido para gasoso (vapor), a expansão volumétrica é
muito grande, atingindo 3 ordens de grandeza (1703 vezes, no caso calculado para essas
condições). Isso, mantendo-se o sistema a 100°C. Pode-se obter expansões ainda maiores
elevando-se a temperaturas em torno de 560°C, que são as temperaturas típicas das máquinas
a vapor atuais.

Da mesma forma que a Fig. 6.3 e a Fig. 6.15, a Fig. 6.17 apenas ilustra o conceito
essencial de uma máquina a vapor. Na prática, a implementação é feita de outras formas para
garantir aplicabilidade e eficiência. Uma máquina executando o processo como descrito na Fig.
6.17 seria pouco eficaz44.

43
Ou seja, a uma pressão de 1 atm, para que possamos fazer comparações com parâmetros de
referência.
44
Lembre-se que na seção 6.2 mencionamos que a máquina de Thomas Newcomen era pouco eficaz,
pois era necessário aquecer e resfriar todo o sistema “cilindro-pistão-fluído” a cada ciclo. Apesar de
termos citado essa limitação da máquina de Newcomen enquanto caminhávamos conceitualmente na
direção do motor de Stirling, ela era de fato uma máquina a vapor seu funcionamento possui aderência
com o conceito apresentado na Fig. 6.17. No contexto da discussão apresentada na seção 6.2, o
argumento é válido e foi incluído por motivos didáticos.
152
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 6.18: Aprimoramento conceitual da máquina a vapor, separando-se a parte onde se obtém energia mecânica
do reservatório onde ocorre a transformação de fase. Dois casos são apresentados: a) onde a energia mecânica é
obtida por meio de um sistema cilindro-pistão, utilizado nas locomotivas a vapor e b) onde a energia mecânica é
obtida por meio de uma turbina.

Podemos trabalhar conceitualmente na ideia apresentada na Fig. 6.17 de forma a


aproximarmos um pouco mais das máquinas a vapor atuais. Note que, quando fizemos isso no
caso da Fig. 6.3, caminhando na direção do motor de Stirling, um dos primeiros passos foi
separar o cilindro onde o gás é aquecido e resfriado do cilindro de força, o que poderia ser
feito analogamente na Fig. 6.17 da forma apresentada na Fig. 6.18.

Nesse caso, separamos a parte onde se obtém energia mecânica, que pode ser tanto
pelo sistema cilindro-pistão como por uma turbina, do reservatório onde ocorre a
transformação de fase, que podemos chamar de caldeira. Este último pode conter uma
quantidade considerável de água, portanto havendo possibilidade de grande aproveitamento
da expansão de volume do fluído. Por isso, normalmente se inclui uma válvula para que o fluxo
de vapor possa ser controlado.

Apesar de a caldeira poder armazenar uma quantidade razoável de água, ela é finita e os
sistemas da Fig. 6.18 não representam um processo contínuo, embora já caminhem nessa
direção em relação à fig. 6.17. A fig. 6.19 apresenta um sistema onde novos elementos foram
adicionados de forma a garantir um ciclo completo, conhecido como ciclo de Rankine,
garantindo que a máquina a vapor funcione enquanto houver uma fonte de calor para a
caldeira. Para isso é necessário repor na caldeira a água transferida para a turbina na forma de
vapor. Assim, após expandir pela turbina e gerar trabalho mecânico, o vapor é condensado e
armazenado na forma líquida e em baixa pressão, e esta mesma água é reconduzida à caldeira.
Mas isso não é tão simples, pois a caldeira apresenta uma alta pressão associada a sua alta
temperatura, sendo necessário um compressor para bombear a água do reservatório de baixa
pressão para a caldeira. Note que, naturalmente, chegamos ao mesmo conceito da turbina
ilustrado na fig. 6.16, onde podemos identificar uma “parte quente” e uma “parte fria” do

153
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

dispositivo. O compressor se encontra na parte fria e a expansão do fluído ocorre na parte


quente. A fig. 6.19 ilustra as máquinas térmicas responsáveis pela geração de 80% da energia
elétrica no mundo45, que são conhecidas aqui no Brasil como termelétricas.

Quando discutimos sobre turbinas, foi levantado o argumento de que o compressor


(bomba) consome energia, diminuindo a eficiência da máquina. Há uma sutileza muito
importante na máquina a vapor, que está representado na Fig. 6.19: a bomba trabalha com a
água no estado líquido que possui um volume da ordem de 1000 vezes menor do que volume
do vapor expandido na turbina (claro que depende com o que é tomado como comparação, se
é antes ou depois da turbina). Por isso, o trabalho realizado pela bomba é desprezível quando
comparada ao trabalho obtido pela turbina. Como foi dito, muito da máquina térmica depende
da perspicácia da sua concepção e construção.

Fig. 6.19: Os elementos básicos de uma máquina a vapor. O ciclo representado aqui é conhecido como ciclo de
Rankine.

O funcionamento de uma usina termelétrica, representado na Fig. 6.20 pode ser


descrito da seguinte forma: o carvão é conduzido por uma esteira (14) a partir de um
reservatório externo e moído em um pó fino por um moedor (16). Ali ele é misturado com ar
pré-aquecido proveniente do soprador de ar de combustão (20). A mistura de carvão e ar é
forçada em alta pressão dentro da câmara de combustão (caldeira) onde é queimada
rapidamente. Água de alta pureza flui em tubos alinhados verticalmente na caldeira, onde é
convertida em vapor, e é conduzida pela câmara de separação de líquido/vapor de forma que
apenas o vapor siga. O vapor então é conduzido pelo superaquecedor (19), onde a
temperatura e a pressão se elevam para 200 atm e 570 °C respectivamente. Essa temperatura
já e suficiente para que os tubos apresentem um fraco brilho avermelhado46. De lá, o vapor é
enviado para a turbina de alta pressão (11), o primeiro estágio de um sistema composto de 3
turbinas. Uma válvula reguladora de pressão (10) permite o controle manual e automático do
regime de operação da turbina. O vapor sai da turbina de alta pressão com a temperatura e

45
No caso, a energia mecânica obtida da turbina é convertida em elétrica por meio de um gerador.
Veremos como isso é feito em outro capítulo.
46
Veremos radiação térmica no Cap. 3.
154
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

pressão diminuídas, sendo conduzida de volta para o reaquecedor (21). O vapor reaquecido é
enviado para a turbina de pressão intermediária (9), e de lá passa diretamente pela turbina de
baixa pressão (6). O vapor que sai desse estágio está apenas ligeiramente acima do ponto de
condensação é levada para o condensador (8) onde em contato térmico com água fria
bombeada da torre de resfriamento (1), e é transformada em água líquida novamente, criando
uma zona de baixíssima pressão na outra extremidade do conjunto de turbinas, auxiliando o
processo de extração de trabalho mecânico. A água passa então pela bomba de extração do
condensado (7) e conduzida para o desaerador (12), de onde vai para a bomba de alimentação
(28) e pré-aquecida, primeiro pelo aquecedor de alimentação (13) depois pelo economisador
(23), antes de entrar na câmara de separação líquido/vapor. A água de resfriamento do
condensador é pulverizada dentro da torre de resfriamento (1), criando uma nuvem de vapor
antes de ser bombeada de volta para o condensador (8) no ciclo de resfriamento da água.

Fig. 6.20: Diagrama esquemático de uma estação térmica para produção de energia elétrica, ou seja, uma
termelétrica, movida a carvão neste caso. Identificação das partes: 1. Torre de resfriamento. 2. Bomba de água de
resfriamento do condensador. 3. Linha de transmissão (trifásico). 4. Transformador (trifásico). 5. Gerador elétrico
(trifásico). 6. Turbina de baixa pressão. 7. Bomba de extração do condensado. 8. Condensador. 9. Turbina de
pressão intermediária. 10. Válvula reguladora de pressão. 11. Turbina de alta pressão. 12. Desaerador. 13.
Aquecedor de alimentação. 14. Esteira de alimentação de carvão. 15. Coletor de carvão. 16. Moedor de carvão. 17.
Câmara separação liquido/vapor. 18. Coletor de cinzas. 19. Superaquecedor. 20. Soprador de ar de combustão. 21.
Reaquecedor. 22. Tubulação de admissão de ar. 23. Economisador. 24. Préaquecedor de ar. 25. Precipitador. 26.
Soprador de corrente de ar induzida. 27. Chaminé. 28. Bomba de alimentação da caldeira.

O trabalho mecânico extraído do sistema de turbinas é utilizado para mover um gerador


elétrico (5), convertendo energia mecânica em elétrica. Um transformador (4) converte essa
energia em uma forma adequada para a transmissão pela rede elétrica (3).

O gás resultante da queima na caldeira é arrastado pelo soprador de corrente de ar


induzido (26) até o precipitador eletrostático (25) e depois é liberado pela chaminé (27).
155
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 6.21: a) Usina termelétrica Drax na Inglaterra. b) Técnicos montando uma turbina a vapor.

6.8 – Turbinas a gás

Como um exemplo do cotidiano, podemos dizer que as turbinas a gás são as


responsáveis pela propulsão dos grandes aviões e dos caças de guerra, gerando um ruído forte
e bastante característico. Mas elas também podem ser utilizadas para propulsão de outros
veículos como helicópteros, tanques de guerra e até mesmo carros, além da produção de
energia elétrica. Embora seu princípio de funcionamento seja simples, compreender sua
aplicabilidade e eficácia envolve algumas sutilezas.

O objetivo de uma turbina de avião é gerar propulsão, ou seja, uma gerar força que
“empurre” o avião para frente. Considere a situação, por exemplo, em que uma bexiga é
inflada e solta em seguida. O jato e ar que sai do bico da bexiga gera a propulsão do voo
descontrolado que segue. A física da propulsão dos aviões é semelhante. O objetivo das
turbinas é gerar um jato de gás bastante intenso para trás, gerando como reação, um impulso
ao avião para frente. Daí o termo “propulsão a jato”.

Fig. 6.22: A propulsão a jato gerada pela bexiga quando inflada e solta.

No caso das turbinas a gás, essa propulsão é gerada termicamente. Vamos retornar ao
conceito de turbina apresentado na Fig. 6.15 e reapresentar essa figura de uma forma um
pouco mais contextualizado para essa seção, onde as duas aplicações principais das turbinas a
gás são ilustradas: a geração de energia elétrica e a propulsão a jato.

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 6.23: Diagrama rudimentar ilustrando o conceito de uma turbina térmica, assim como mostrado na Fig. 6.15,
contextualizado para as duas principais aplicações das turbinas a gás: geração de energia elétrica e propulsão a
jato.

No entanto, quando discutimos sobre as turbinas na seção 5.6, salientamos que elas
funcionam com um fluxo contínuo de fluido de trabalho. Nesse sentido, adicionamos um
compressor para que este estabelecesse esse fluxo, coletando ar do ambiente, comprimindo e
introduzindo na parte quente do dispositivo (Fig. 6.16).

Fig. 6.24: a) Diagrama esquemático de uma turbina a gás. b) Foto de uma turbina a gás da General Electric modelo
J85, cortada para que suas partes internas sejam vivíveis.

Observando a Fig. 6.24a é possível entender o funcionamento de uma turbina a gás. Na


parte frontal da turbina (lado esquerdo) o ar é admitido e comprimido por uma série de aletas
(o compressor no caso) que vai compactando o ar captado em volumes cada vez menores. Na
porção mais compactada, o ar possui tipicamente uma pressão de 11 a 16 vezes maior do que
a pressão externa à turbina. Na sequência, esse ar é levado até a câmara de combustão onde
combustível é queimado. Nesse momento, a temperatura aumenta e o gás se expande,
aumentando também a pressão, fazendo com que este escape como um forte jato de gás na
parte oposta do dispositivo. Esse processo, bem como toda a análise termodinâmica associada
a ele, é conhecido como ciclo de Brayton.

157
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Como discutido no contexto da Fig. 6.16, o compressor que atua na parte fria do
dispositivo necessita de energia para operar. Essa energia é obtida do próprio fluxo de gás
gerado na parte quente do dispositivo por meio de uma turbina (hélice), como indicado na Fig.
6.24a. Note que a taxa de compressão (entre 11 e 16 tipicamente) é fundamental para o
aumento da eficiência do dispositivo como um todo, mas parte da energia do fluxo de gás
produzida é consumida para o próprio funcionamento do compressor.

Há outra sutileza importante a ser considerada, não só na turbina a gás, mas em todos
os motores de combustão interna. Embora a maior parte dos textos devotados à explicação do
funcionamento destes motores foque no efeito térmico para explicar a expansão e aumento
de pressão do fluído de trabalho, existe outro fator relevante: o combustível queimado. A eq.
5.2 representa a reação típica da queima da gasolina (o caso do octano).

2J‘ LP‘ + 25K → 18L K + 16JK + X[X} U (6.2)

Em massa, o combustível representa tipicamente 7% do material contido na câmara de


combustão. Antes da combustão, o combustível está na forma de gotículas líquidas que
representam um estado bastante concentrado de matéria. Após a combustão, o combustível é
convertido em moléculas que irão compor o gás (JK e L K) que ocuparão um volume
tipicamente 2000 vezes maior que o líquido original, e 600 vezes superior descontando-se o
consumo de K do gás durante a combustão. Dessa forma, assim como no caso da máquina a
vapor, onde destacamos a relevância da transformação de fase da água de líquido para vapor
em relação ao volume ocupado, temos um efeito similar em relação ao combustível no caso
dos motores de combustão interna, onde o processo de combustão o faz ocupar um volume
ordens de grandeza superior ao que ocupava em seu estado ao ser introduzido na região de
alta pressão do dispositivo. Ou seja, a combustão possui dois papeis: fornecer energia térmica
ao fluído de trabalho e adicionar partículas a esse fluído, exacerbando o efeito de expansão
deste.

6.9 – Motores de Automóveis

Assim como as turbinas a gás, os motores dos automóveis são motores de combustão
interna e funcionam com o mesmo princípio básico: comprimem uma mistura de ar e
combustível, queimam o combustível e aproveitam a energia mecânica produzida pela
expansão do gás aquecido. Mas nesse caso, isso ocorre em um sistema cilindro-pistão ao invés
de uma turbina, resultando em um motor reciprocante.

A Fig. 6.25 mostra o diagrama esquemático do sistema cilindro-pistão típico de um


motor de combustão interna reciprocante (motor de automóvel). Esse tipo de motor é descrito
pelo ciclo de Otto, conhecido como também como motor de quatro tempos. Esses “tempos”
se referem aos processos de expansão e contração do volume definido pelo sistema cilindro-
pistão no sentido de que o ciclo precisa de uma sequência de “expansão-contração-expansão-
contração” para realizar toda a sequência. Na primeira expansão, o sistema admite a mistura
de ar e combustível. Na sequência, a contração comprime a mistura. Quando essa atinge a
condição de compressão máxima a vela realiza a ignição e há ocorre a queima do combustível.
Como discutido na seção anterior sobre as turbinas a gás, no contexto geral de motores a
combustão interna, a queima do combustível fornece calor ao gás ao mesmo tempo em que
aumenta significativamente o número de partículas desse gás gerando um considerável
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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

aumento da pressão interna do sistema. Nesse momento ocorre o terceiro “tempo” do ciclo
onde o sistema expande, aproveitando a expansão do fluído aquecido para realizar trabalho
mecânico. O último “tempo” consiste na contração do sistema, em um processo de exaustão
da mistura já queimada.

Fig. 6.25: Diagrama esquemático do sistema cilindro-pistão típico de um motor de combustão interna reciprocante
(motor de automóvel). As partes indicadas são: C – virabrequim. E – comando de válvula de exaustão. I – comando
de válvula de admissão. P – pistão. R – barra de conexão. S – vela. V – válvulas. W – aberturas para fluxo de água
de arrefecimento. Estrutura cinzenta: bloco do motor.

Estes motores têm relação com as turbinas a gás no sentido de serem também motores
de combustão interna. Mas também podemos traçar paralelos com outro motor reciprocante
estudado. Assim como o motor de Stirling, o motor dos automóveis comprime um gás e
fornece calor em seu estágio máximo de compressão, aproveitando para obter trabalho
mecânico a partir do processo de expansão do gás aquecido dentro de um sistema cilindro-
pistão.

Em geral, os motores dos carros possuem uma série de quatro cilindros para que cada
um esteja em um “tempo” distinto em um dado instante, deixando o funcionamento geral do
motor mais uniforme. Isso não exclui a possibilidade de se construir motores com diferentes
quantidades de cilindros. Motores de 3, 6, 8 e 12 cilindros também são razoavelmente
comuns.

Os motores a diesel que equipam os caminhões, ônibus e outros veículos de carga


possuem uma diferença em relação aos outros motores dos automóveis. O processo de ignição
do combustível é feito apenas com a compressão da mistura, ocorrendo de forma
independente da faísca da vela. Por isso, os motores a diesel são compreendidos a partir de
um ciclo termodinâmico distinto denominado ciclo de Diesel.

6.10 – Semelhanças e diferenças entre as máquinas térmicas

Até agora, tivemos a oportunidade de estudarmos as principais máquinas térmicas: o


motor de Stirling, as máquinas a vapor, as turbinas a gás e os motores dos automóveis. Elas
possuem muitas características em comum:

• Transformam parte da energia térmica fornecida em energia mecânica


aproveitável. Outra parte é perdida na forma de energias dissipativas resultando
em uma eficiência sempre inferior a 100%. O limite máximo da eficiência de
uma máquina térmica é determinado pela eficiência de Carnot.

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

• Dependem de um contraste térmico entre uma “parte quente” e uma “parte


fria”, embora a distinção dessas partes não seja sempre evidente no dispositivo
em questão.
• Aproveitam-se da expansão e do aumento de pressão de um fluído quando
quanto este adquire energia térmica, embora este fluído nem sempre possa ser
identificado como um gás. Nas máquinas a vapor, por exemplo, parte do
processo é realizada com o fluído no estado líquido, enquanto que nos motores
de combustão interna, o fluído é uma mistura com diferentes fases.

Podemos também destacar as principais diferenças entre as máquinas por meio de uma
tabela.

Tab. 6.1: Comparação entre características das principais máquinas térmicas.


Cilindro-Pistão Ciclo Aberto ou Combustão interna Transformação de fase do fluído
ou turbina Fechado ou externa de trabalho
Stirling Cilindro-pistão Fechado Externa Não há
Máquinas a Sim – física (evaporação-
Ambos Fechado* Externa
vapor condensação)
Turbinas a gás Turbina Aberto Interna Sim – química (combustão)
Motores de
Cilindro-pistão Aberto Interna Sim – química (combustão)
automóveis
* Nas turbinas a vapor para geração de energia elétrica, utiliza-se água de alta pureza e esta é reaproveitada em um
ciclo fechado. Nos trens a vapor (maria-fumaça) o ciclo era aberto.

6.11 – Os ciclos termodinâmicos

Paralelamente ao desenvolvimento das máquinas térmicas, houve o desenvolvimento


da ciência das máquinas térmicas. Como já foi dito, Carnot é considerado o pai da
termodinâmica, pois se dedicou a entender as máquinas a vapor que revolucionaram o
ambiente econômico da época. Ele foi revolucionário em vários aspectos, chamando a
atenção, por exemplo, da relação entre os sistemas térmicos e o ambiente, e modelando a
máquina térmica por meio de uma sequência cíclica de processos: o ciclo de Carnot.

Atualmente, o ciclo de Carnot é considerado um ciclo ideal representativo de uma


“máquina térmica perfeita”. Nesse sentido, a chamada eficiência de Carnot é considerada
como a eficiência máxima que uma máquina térmica pode adquirir dada a diferença de
temperatura entre a “parte quente” e a “parte fria” do sistema. Além disso, o ciclo de Carnot
não é associado diretamente a nenhuma máquina térmica específica.

Na esteira de Carnot, outros pesquisadores se dedicaram a estudar as máquinas


térmicas, e propuseram outros ciclos termodinâmicos. Conforme a ciência da termodinâmica
avançou, os estudos adquiriram características cada vez mais contextualizadas. Por isso, os
ciclos termodinâmicos em geral estão associados a máquinas térmicas específicas. As
máquinas a vapor, como já mencionado, são descritas pelo ciclo de Rankine, em homenagem
ao pesquisador William John Macquorn Rankine.

O objetivo dessa seção não é fazer um estudo aprofundado dos diferentes ciclos
termodinâmicos. Talvez essa seja a principal diferença entre este livro e os demais materiais
didáticos que se dedicam às máquinas térmicas. Consideramos que o estudante pode ter uma

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compreensão aprofundada do funcionamento das máquinas térmicas sem utilizar os ciclos


termodinâmicos em si como base conceitual. O entendimento dos ciclos depende de
conhecimentos em matemática e em física que não fazem parte do escopo deste livro. Mas
isso não impede que possamos aprender um pouco mais sobre a ciência das máquinas
térmicas percebendo certas características dos ciclos termodinâmicos.

Os ciclos termodinâmicos podem ser representados em diagramas que podem usar


tanto as variáveis, pressão e volume (diagrama PV), quanto temperatura e entropia (diagrama
TS). A escolha das variáveis PV ou TS dos diagramas depende das informações que se deseja
obter a partir delas, embora sejam equivalentes.

Fig. 6.26: Comparação entre as representações típicas entre os ciclos de Carnot e Rankine no diagrama TS.

A Fig. 6.26 mostra representações típicas dos ciclos de Carnot e Rankine no diagrama TS.
A primeira coisa que chama a atenção é que o ciclo de Carnot é representado por um
retângulo perfeito, indicando fortemente de que se trata de um ciclo idealizado. Somam-se a
isso outros indícios, como a falta de indicação das unidades de medida e dos valores
correspondentes nos eixos da temperatura e da entropia e qualquer outro indicador que
associe o ciclo a um contexto. Em contraste, note como o ciclo de Rankine é representado em
sobreposição ao diagrama de fases físicas da água. Sendo o ciclo que descreve as máquinas a
vapor, é bastante útil que possamos comparar as diferentes etapas do processo de forma
contextualizada em relação aos pontos em que a água líquida, gasosa ou em latência. Como
consequência, os eixos estão identificados em relação às unidades utilizadas e as intensidades
atingidas. Há correlações entre etapas do processo e partes do sistema, como a “bomba” e a
“turbina”. É interessante notar que o ciclo de Rankine é muitas vezes apresentado como a
versão “aplicada” do ciclo de Carnot uma vez que é responsável por cerca de 80% da produção
de energia elétrica no mundo.

Como dissemos na seção 5.8, as turbinas a gás são descritas pelo ciclo de Brayton. É
interessante notar que George Brayton inventou o motor de combustão interna reciprocante
de pressão constante em 1872 e o vendeu para vários usos como bombear água de minas, e
para moagem de grãos, por exemplo. Em 1878, George B. Selden inventou o primeiro
automóvel de combustão interna, usando o motor de Brayton. Houve disputa de propriedade
intelectual com Henry Ford em relação ao seu automóvel. Este último venceu, pois

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

argumentou que seu automóvel usava um motor diferente, de quatro tempos (ciclo de Otto).
Hoje em dia, motores reciprocantes baseados no ciclo de Brayton são incomuns, sendo este
ciclo associado majoritariamente às turbinas a gás.

Apesar dos ciclos termodinâmicos de Rankine, Brayton, Otto, Diesel e Stirling estarem
associados a dispositivos reais, deve se levar em conta que estes também são bastante
idealizados. A Fig. 6.27 mostra a comparação do ciclo de Otto, associado aos motores de
automóvel (exceto os movidos a Diesel que são associados ao ciclo de Diesel) e uma
representação do que seria, se as mesmas variáveis fossem medidas em laboratório com o
motor em funcionamento.

Fig. 6.27: Comparação entre a representação usual do ciclo de Otto e o que é medido em laboratório (apresentado
aqui de forma esquematizada) com um motor de combustão interna reciprocante real em funcionamento.

Note que existe uma diferença significativa entre o ciclo idealizado e o processo que
ocorre de fato. Portanto, os ciclos devem ser interpretados como um indicativo conceitual
referente aos processos das máquinas térmicas, mas de forma alguma pode ser tomado como
uma descrição fiel destes processos.

Questionário:

1 – O que é um volante de inércia? Qual é sua função nos máquinas térmicas atuais?

2 – Pesquise sobre a locomotiva a vapor (Maria-Fumaça). Que ciclo termodinâmico descreve


seu funcionamento? O ciclo é aberto ou fechado? Usa turbina ou cilindro-pistão? Identifique
as principais partes.

3 – Qual é a diferença entre um motor reciprocante e uma turbina?

4 – Considere as máquinas térmicas associadas aos ciclos de Carnot, Stirling, Rankine, Brayton,
Otto, Diesel.

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Para cada uma especifique as seguintes características

a) Combustão interna ou externa?


b) O fluído de trabalho sobre uma transformação de fase durante o ciclo? Se sim, de qual tipo,
física ou química (combustão).
c) Turbina ou pistão (ou ambos)?

5 – Dos ciclos Diesel, Otto, Rankine, Brayton e Stirling,

a) Qual é o mais utilizado para a geração de energia elétrica? Por quê?


b) Qual, ou quais são os mais utilizados para veículos automotivos? Por quê?

6 – Considere o ciclo de Otto

a) Faça um diagrama PV (Pressão em função do volume) do ciclo idealizado, identificando as


curvas das diferentes etapas do ciclo.
b) Fala um diagrama PV do ciclo como medido em laboratório.
c) Discuta os possíveis fatores que acarretam nas diferenças encontradas entre os dois
diagramas.

7 – O que todos os ciclos termodinâmicos das questões 4 e 5 têm em comum?

8 – Considere os motores a combustão interna que equipam os carros de passeio. Seu


funcionamento é descrito pelo ciclo de Otto. Quando pisamos no acelerador, o que ocorre no
motor é o aumento de admissão de ar no cilindro em cada ciclo e consequentemente o
aumento da quantidade de combustível de tal forma que a proporção entre ar e combustível
seja mantida próximo do ideal. Diz-se que a proporção em massa de ar:combustível ideal é
14,7:1. De onde vem esse número? Justifique.

9 – O ciclo de Carnot está atrelado a alguma máquina térmica específica? Explique.

10 – A figura 5.17 mostra o potencial expansivo da transformação de fase da água e ajuda a


entender a eficiência das máquinas a vapor. Justifique o volume de 1703 ml da figura por meio
dos cálculos adequados.

11 – A figura 5.21a mostra uma foto da usina termelétrica de Drax na Inglaterra. Identifique os
gases emitidos pela usina e suas respectivas chaminés.

12 – O que é eficiência de Carnot de uma máquina térmica? Como calcular? Uma termelétrica
aquece vapor até uma temperatura de 540°C. A temperatura da torre de resfriamento é de
20°C. Calcule a eficiência de Carnot dessa termelétrica.

13 – Na seção 5.11 vimos as diferenças entre a representação usual do ciclo de Otto e uma
representação do que seria medido em laboratório com o motor de combustão interna
reciprocante com faísca em funcionamento. Pesquise sobre o ciclo de Diesel e suas
representações “usual” e “real”. O que você pode concluir?

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Créditos das figuras


6.1: Arte própria
6.2: Arte própria
6.3: Arte própria
6.4: Arte própria
6.5: Diagram of the Newcomen steam engine – Domínio público – disponível em
https://en.wikipedia.org/wiki/Newcomen_atmospheric_engine "Bomba Cabeça de Cavalo" por Thiagonegris - Obra
do próprio (see also later uploaded on http://www.panoramio.com/photo/54636574 (by "Thiago." = Thiagonegris).
Licenciado sob CC BY 3.0, via Wikimedia Commons -
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bomba_Cabe%C3%A7a_de_Cavalo.jpg#/media/File:Bomba_Cabe%C3%A
7a_de_Cavalo.jpg
6.6: Arte própria
"AutoCAD drawing of a Great Western King" by AutoCAD_drawing_of_a_Great_Western_King.jpg: Stavros1Original
uploader was Stavros1 at en.wikipediaderivative work: Ariadacapo (talk) -
AutoCAD_drawing_of_a_Great_Western_King.jpg. Licensed under CC BY-SA 3.0 via Commons -
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:AutoCAD_drawing_of_a_Great_Western_King.png#/media/File:AutoCAD
_drawing_of_a_Great_Western_King.png
Cshaft.gif - domíno público – disponível em a) Fonte: http://www.atiracing.com/products/dampers/101/
Fonte: http://www.atiracing.com/products/dampers/101/ Talvez sujeita a direitos
6.7: Domínio público – disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Sine#/media/File:Circle_cos_sin.gif
6.8: Domínio público – disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Potter%27s_wheel
6.9: Licença CC-BY-SA-3.0 - https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Ashton_Frost_engine_flywheel.jpg Domínio
público – disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Ashton_Frost_engine_flywheel.jpg
6.10: Arte própria
6.11: Arte própria
6.12: Arte própria – Motor de Stirling de demonstração da empresa Solar Engines
6.13: "Alpha Stirling frame 12" by Alpha_Stirling_frame_12.png: Original uploader was Zephyris at
en.wikipediaderivative work: M0tty (talk) - Alpha_Stirling_frame_12.png. Licensed under CC BY-SA 3.0 via Commons
- https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Alpha_Stirling_frame_12.svg#/media/File:Alpha_Stirling_frame_12.svg
"Beta Stirling frame 12" by Zephyris at the English language Wikipedia. Licensed under CC BY-SA 3.0 via Commons -
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Beta_Stirling_frame_12.png#/media/File:Beta_Stirling_frame_12.png
6.14: Livre para uso. Disponível em https://www.flickr.com/photos/75894308@N03/7657361676/in/photostream/
Livre para uso. Disponível em
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/17/Netherlands%2C_Warmond%2C_windmill_%27De_Kok%2
7.JPG
6.15: Arte própria
6.16: Arte própria
6.17: Arte própria
6.18: Arte própria
6.19: Arte própria
6.20: Licensed under CC BY-SA 3.0 via Commons https://commons.wikimedia.org/wiki/File:PowerStation2.svg
6.21: Copyright Dave Pickersgill and licensed for reuse under this Creative Commons Licence available at
http://www.geograph.org.uk/reuse.php?id=3250473
"Dampfturbine Montage01" by Siemens Pressebild -
http://www.siemens.com/index.jsp?sdc_p=cfi1075924l0mno1130262ps5uz3&sdc_bcpath=1327899.s_5%2C%3A11
76453.s_5%2C&sdc_sid=31880989447&. Licensed under CC BY-SA 3.0 via Commons -
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Dampfturbine_Montage01.jpg#/media/File:Dampfturbine_Montage01.jp
g
6.22: Arte própria
6.23: Arte própria
6.24: By Jeff Dahl CC-BY-SA-3.0-2.5-2.0-1.0. Disponível em
http://cset.mnsu.edu/engagethermo/components_gasturbine.html
"J85 ge 17a turbojet engine" by Sanjay Acharya - Own work. Licensed under CC BY-SA 3.0 via Commons -
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:J85_ge_17a_turbojet_engine.jpg#/media/File:J85_ge_17a_turbojet_engi
ne.jpg

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6.25: "Four stroke engine diagram". Licensed under CC BY-SA 3.0 via Commons -
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Four_stroke_engine_diagram.jpg#/media/File:Four_stroke_engine_diagr
am.jpg
6.26: Carnot: licensed under the CC-BY-SA-4.0. available at https://commons.wikimedia.org/wiki/File:T-
s_diagram_Carnot_cycle.svg
Rankine: "Rankine cycle Ts" by English Wikipedia user Andrew.Ainsworth. Licensed under CC BY-SA 3.0 via
Commons - https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Rankine_cycle_Ts.png#/media/File:Rankine_cycle_Ts.png
6.27: Ideal "P-V Otto cycle" by Luc1992 - Own work. Licensed under CC BY-SA 4.0 via Commons -
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:P-V_Otto_cycle.svg#/media/File:P-V_Otto_cycle.svg
Medido no Laboratório: arte própria, baseado no material disponível em
http://web.mit.edu/16.unified/www/FALL/thermodynamics/notes/node26.html

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7 – As Quatro Leis da Termodinâmica


Nesse livro, a sequência dos conceitos apresentados segue basicamente a trajetória
histórica. A humanidade inventou as máquinas térmicas antes de estabelecer a ciência da
termodinâmica. Hoje essa ciência pode ser resumida em quatro leis fundamentais. Em sua
nomenclatura, as quatro leis começam com a lei zero e terminam com a terceira lei. Isso
ocorre por motivos históricos, onde a lei zero foi estabelecida por último, mas considerada
mais fundamental que as demais.

7.1 – A Primeira Lei da Termodinâmica

No Cap. 1, quando discutimos sobre a natureza da energia, vimos que antes das
máquinas térmicas e de personalidades como Mayer e Joule, o conceito de energia não estava
estabelecido. A visão mais comum entendia fenômenos mecânicos e térmicos como
pertencentes a “realidades físicas” distintas. Vimos que os conceitos de calórico (fluído de
calor) e vis viva (fluído de movimento) ainda eram populares. Mais do que isso, mesmo
conceitos dentro do escopo dos fenômenos mecânicos, como a diferenciação entre momento
(linear e angular) e energia cinética, ainda não estavam bem esclarecidos. Isso começou a
mudar com os estudos das máquinas térmicas e outras evidências experimentais, como o
aquecimento Joule em circuitos elétricos, quando os cientistas buscaram por novas formas de
explicar os fenômenos. Joule e Mayer notaram que calor poderia ser convertido em
movimento mecânico e vice versa, e passaram utilizar o conceito mais abrangente de energia,
embora a palavra “energia” já tivesse sido usada anteriormente por Thomas Young e Gustave-
Gaspard Coriolis em ocasiões mais pontuais. Nesse contexto, Mayer declarou “energia não
pode ser criada ou destruída” e é considerado o primeiro a formular a lei da conservação da
energia.

A primeira lei trata do princípio da conservação da energia no escopo da termodinâmica,


onde está explícita a relação entre trabalho e calor e a possibilidade de conversão entre essas
duas formas de energia.

A primeira lei da termodinâmica pode ser descrita pela equação:

∆ = ∆3 − (7.1)

Onde ∆ representa a variação da energia interna do sistema, ∆3 é a quantidade de


energia térmica fornecida ao sistema, e é o trabalho realizado pelo sistema. Essa equação
se baseia no conceito de “energia interna”, que não é tão intuitivo quanto os conceitos de
calor e trabalho. Por outro lado, a eq. 7.1 é resultado do trabalho empírico que se iniciou com
os pioneiros no estudo das máquinas térmicas como Rankine e Clausius, além dos trabalhos
mais fundamentais sobre a natureza do calor e do trabalho, realizados por Kelvin e Joule. Note
que por estar comprometido com o conceito de calórico, Carnot não tomou parte na
construção histórica da primeira lei.

Para entendermos melhor o significado da primeira lei, podemos retornar à nossa


análise das máquinas térmicas, especificamente ao sistema cilindro-pistão descrito na Fig. 6.3.
Representamos o mesmo sistema, porém de uma forma um pouco diferenciada na Fig. 7.1. A
situação inicial é representada na Fig. 7.1a, onde temos um gás confinado em um sistema

166
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

cilindro-pistão. Em um primeiro processo, suponhamos que certa quantidade de calor ∆3P é


adicionada ao sistema (Fig. 7.1b). Suponhamos também que o pistão seja mantido na sua
posição e, portanto, não há trabalho realizado pelo sistema. A única mudança perceptível do
sistema é o aumento da temperatura. Usando a primeira lei para esse processo podemos dizer
que:

∆ = ∆3P (7.2)

Ou seja, a variação da energia interna do sistema é igual à quantidade de calor que


inserimos no sistema.

Agora suponhamos que o calor continua continue sendo fornecido de forma que a
quantidade total não seja mais ∆3P , mas ∆3 . Nesse caso, vamos considerar a situação em
que o pistão se move, resultado em um trabalho realizado pelo sistema47. Sendo assim, o calor
fornecido ∆3 não é totalmente convertido em energia térmica do sistema, mas parte do calor
é convertida em trabalho realizado (Fig. 7.1c), ficando claro o motivo pelo qual esta energia na
forma de trabalho deve ser subtraída de ∆3 . Nesse caso, o processo é descrito pela equação:

∆ = ∆3 − +} • MℎF (7.3)

Fig. 7.1: Sistema cilindro pistão ilustrando como a primeira lei pode ser aplicada.

Em geral, pode-se considerar a energia interna do sistema como sendo a quantidade de


energia térmica nele contida. Esse é o caso quando consideramos um gás ideal em que os
elementos constituintes são pontos materiais dotados de energia cinética translacional, além
de não interagirem uns com os outros, isto é, uma partícula do gás não “sente” a presença de
outra partícula, não importa o quão próximas estejam. Porém existem sutilezas quando
lidamos com gases reais. Estes são em geral poliatômicos e, portanto, dotados de modos de
rotação e vibração além do movimento translacional. Além disso, existe um potencial de
interação entre as partículas, ou seja, quando muito próximas, uma molécula do gás tende a
repelir a outra. Como vimos no Cap. 1, energia térmica é normalmente associada ao grau de
agitação das moléculas que compõem o gás. Nesse sentido, simplesmente atribuir a energia

47
Na maior parte dos livros textos existe uma preocupação maior em formalizar os processos envolvidos
(adiabáticos, isotérmicos, isocóricos etc) bem como o conceito de trabalho realizado. Por isso, na análise
de um sistema como o ilustrado na Fig. 7.1 há toda uma preocupação em livrar o sistema de efeitos
indesejados, como o atrito e a capacidade térmica do próprio cilindro e pistão (paredes do sistema) e as
representações podem variar em sofisticação. Este livro foi concebido para alunos ingressantes,
apresentando os conceitos de maneira mais básica e formativa. Por isso, o objetivo aqui é mais
fenomenológico e menos formal.
167
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

interna do sistema à energia térmica pode não ser uma boa abordagem, uma vez que se deve
levar em conta que parte da energia interna se manifesta na energia associada ao potencial de
interação entre as partículas do gás.

A primeira lei pressupõe que calor pode ser convertido em trabalho e vice-versa. No
período clássico da termodinâmica, experimentos cuidadosos realizados por cientistas como
Kelvin, Joule, Rankine e Clausius já traziam evidências de que isso pode ocorrer. Há o
experimento bem conhecido de Joule onde uma quantidade controlada de trabalho mecânico
é utilizada para agitar uma amostra de água e o aumento da temperatura desta foi constatado
e quantificado.

Como já discutimos, somente mais tarde houve a preocupação sobre a compreensão


microscópica da termodinâmica, de onde podemos tirar questões interessantes. Como a
conversão de energia térmica em trabalho ocorre do ponto de vista microscópico? Para
respondermos a essa pergunta, precisamos primeiro estabelecer a compreensão do conceito
de pressão de um gás em uma parede sob o ponto de vista microscópico. Vamos considerar
um gás confinado em um recipiente, como um sistema cilindro pistão como na Fig. 7.1. De
forma simplificada, um gás é considerado um conjunto enorme de partículas. Nesse conjunto,
as partículas se deslocam nas mais variadas direções e também apresentam módulos de
velocidade diferentes. Nesse modelo, pode-se imaginar que inúmeras partículas se chocam
elasticamente contra as paredes do sistema a todo instante, vindas das mais variadas direções
e dotadas das mais variadas intensidades. O resultado dessas inúmeras colisões é a pressão do
gás sobre as paredes, segundo a interpretação microscópica clássica.

Agora vamos considerar esse sistema nas situações descritas pela Fig. 7.1a e 7.1c para
entendermos o que ocorre quando no processo de conversão de calor em trabalho. Estas duas
situações são reapresentadas novamente nas Fig. 7.2a e 7.2b de forma mais detalhada. Vamos
considerar primeiramente a situação da Fig. 7.2a onde o êmbolo permanece imóvel e não há
trabalho realizado pelo sistema. Como acabamos de descrever, temos um gás confinado que
exerce pressão nas paredes desse sistema. A Fig. 7.2a procura mostrar em detalhe o processo
de colisão entre uma partícula do gás e a superfície do êmbolo. Por simplicidade,
consideramos o caso de uma colisão frontal. Como a massa do êmbolo é sob o ponto de vista
prático, é infinitamente maior do que a massa da partícula, o resultado de uma colisão elástica
nesse caso é que a velocidade da partícula depois da colisão (vd) é a mesma que a velocidade
antes da colisão (va), porém elas possuem sentidos opostos48. Se o módulo da velocidade da
partícula é o mesmo antes e depois da colisão, significa que sua energia cinética também se
conserva na colisão (colisão elástica), o que significa também que a contribuição da energia
cinética desta partícula para a energia térmica do gás permanece inalterada49. Nesse sentido,
podemos dizer que as paredes são “perfeitas” e o gás nunca perde sua energia térmica e
permanece com temperatura constante indefinidamente.

48
Como se fosse uma bola de pingue-pongue colidindo frontalmente com uma parede de concreto.
49
O modelo proposto aqui é bastante simplificado e limitações podem ser apontadas. Mas grande parte
das limitações pode ser remediada com a devida sofisticação, como por exemplo, considerando que o
próprio êmbolo é composto de partículas e dotado de energia térmica, estando este em equilíbrio
térmico com o gás e o ambiente e incluindo se os devidos tratamentos estatísticos etc. O importante é
que o conceito básico permanece adequado e gostaríamos de manter o argumento simplificado.
168
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Considere agora o que ocorre da situação 6.2b, que ilustra o processo descrito no
contexto da Fig. 7.1c onde parte do calor fornecido ao sistema é convertida em trabalho. Note
que enquanto o trabalho é realizado, o êmbolo se move. É a pressão do gás, agora maior
devido ao aumento da temperatura, que empurra o êmbolo. Podemos dizer que o êmbolo se
move com velocidade ve na direção indicada na Fig. 7.2b. Nesse caso, quando uma partícula do
gás se choca frontalmente com a superfície do êmbolo, o módulo da velocidade é
significativamente menor após a colisão. Se a velocidade é menor, significa que a contribuição
da energia cinética da partícula para a energia térmica do gás é menor após a colisão. Sendo
assim, fica intuitivo perceber como a energia térmica pode ser consumida no processo de
realização de trabalho pelo êmbolo.

Fig. 7.2: Representação esquemática da compreensão microscópica da conversão de energia térmica em trabalho.

7.2 – A segunda lei da termodinâmica

A segunda lei é a mais controversa e a mais sutil das leis da termodinâmica. Veremos
vários motivos pelos quais isso é assim. Ela pode ser enunciada de várias formas e isso a torna
mais fascinante.

Apesar de ser adepto do conceito obsoleto de calórico, muitos consideram que Carnot
foi o primeiro a estabelecer uma compreensão rudimentar da segunda lei. Antes dele, os
cientistas e engenheiros focavam seus estudos nas fontes de calor, características do fluído de
trabalho e outras tecnicalidades para estudarem as máquinas térmicas, mas Carnot foi o
primeiro a considerar a máquina a vapor como um ciclo que ocorre entre dois reservatórios
térmicos, sendo um representado pela fonte de calor e outra representada pelo ambiente.
Nesse sentido, Carnot chamou a atenção para o fato de que as máquinas térmicas
inevitavelmente perdem calor para o ambiente, o que pode ser considerado uma forma
rudimentar de definição da segunda lei.

Qualquer lei física pode ser interpretada como o resultado da observação da natureza.
Mas nas leis da termodinâmica, esse aspecto é mais evidente. Suas leis descrevem aspectos

169
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bastante fenomenológicos. Não é a toa que as leis costumam ter mais de um enunciado e um
excelente exercício é demonstrar a equivalência entre esses enunciados.

O enunciado de Clausius da segunda lei é dado da forma:

“É impossível a construção de um dispositivo que, por si só, isto é, sem intervenção do


meio exterior, consiga transferir calor de um corpo para outro de temperatura mais elevada.”

O enunciado de Kelvin-Planck é dado da forma:

“É impossível a construção de um dispositivo que, por si só, isto é, sem intervenção do


meio exterior, consiga transformar integralmente em trabalho o calor absorvido de uma fonte
a uma dada temperatura uniforme.”

Note que em geral, as leis da física procuram descrever como os fenômenos ocorrem,
ou seja, coisas do tipo “qual a força resultante”, “em que ângulo de refração”, “em qual
trajetória”, etc, enquanto que a segunda lei, conforme os enunciados acima, procura descrever
o que não ocorre. Isso reforça o caráter fenomenológico da termodinâmica, no sentido de que
a declaração formal da lei indica que o proponente “nunca viu calor transferir-se
espontaneamente do corpo mais frio para o mais quente”.

O ditado “não chore pelo leite derramado” e a tradição de se quebrar um copo em um


casamento judaico tem muito em comum. O que está feito, está feito e não há como voltar
atrás. É a irreversibilidade da natureza. A segunda lei está muito relacionada com a
irreversibilidade. Mas o que queremos dizer quando nos referimos ao conceito de
irreversibilidade? Mais uma vez podemos recorrer à comparação entre a mecânica e a
termodinâmica.

Fig. 7.3: Exemplos de fenômenos mecânicos essencialmente reversíveis. a) colisão elástica entre uma bola de
bilhar e a parede da mesa, vista de cima. b) o movimento harmônico de um pêndulo simples.

A Fig. 7.3 mostra dois exemplos de fenômenos reversíveis. Em mecânica, comumente se


recorre ao jogo de bilhar para ilustrar a física de colisões elásticas. A Fig. 7.3a ilustra a colisão
de uma bola de bilhar com a parede da mesa, onde o movimento ocorre da esquerda para a
direita. Se filmássemos o processo e depois mostrássemos o filme no sentido reverso, o que
observaríamos pareceria perfeitamente normal, como uma colisão elástica de uma bola que
vem da direita e sai à esquerda. Da mesma forma, a Fig. 7.3b ilustra o movimento harmônico
170
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

de um pêndulo, e um filme em sentido reverso seria praticamente indistinguível de um filme


na sequência regular. Nesse sentido, os fenômenos mecânicos são essencialmente reversíveis.

Fig. 7.4: Exemplos de fenômenos termodinâmicos e irreversíveis. a) Um copo com uma mistura de água e gelo
entrando em equilíbrio térmico com o ambiente. b) Um copo que se quebra. c) Um gás inicialmente confinado em
uma metade de um reservatório com o auxílio de uma divisória passa a ocupar o reservatório como um todo depois
que a divisória é removida.

Já os fenômenos termodinâmicos se caracterizam pela irreversibilidade. A Fig. 7.4 ilustra


três exemplos clássicos. Considere a situação em que acrescentamos algumas pedras de gelo a
um copo com água como na Fig. 7.4a. Sabemos da experiência que, de forma mais imediata,
haverá troca de calor que resultará no derretimento do gelo e o resfriamento da água. Se
aguardarmos tempo suficiente, todo o sistema entrará em equilíbrio térmico com o entorno,
restando apenas um copo com água a temperatura ambiente. Note a relação entre esse
processo e o enunciado de Clausius para a segunda lei. Certamente, ao adicionar gelo em um
copo d’água, ninguém até hoje observou o gelo se tornar mais frio e a água se aquecer.

Conforme já mencionamos, outro processo irreversível é a quebra de um copo, ilustrado


na Fig. 7.4b. Imagine que filmássemos o derretimento do gelo no copo com água (no caso da
Fig. 7.4a) e a queda de um copo de uma mesa e sua quebra com o impacto com o solo. Se
mostrássemos os filmes no sentido reverso, os processos nos pareceriam evidentemente
anormais, denotando de forma clara o caráter irreversível dos processos termodinâmicos
típicos.

O processo da Fig. 7.4c é mais bem representado de forma esquematizada. Considere


certa quantidade de gás inicialmente confinada em uma metade de um reservatório por meio
de uma divisória. A outra metade do reservatório está vazia, ou seja, há vácuo. O processo
consiste na reacomodação do gás após a remoção da divisória. O gás passa a ocupar o volume
total do reservatório em um processo irreversível. Podemos aguardar um longo tempo, voltar
a inserir a divisória, mas o gás não voltará espontaneamente a ocupar apenas um lado do
reservatório.

É interessante notar que, apesar da irreversibilidade característica, os processos


termodinâmicos são comumente modelados a partir de processos reversíveis que ocorreriam
em condições especiais. Isso não chega a ser de todo descabido, pois os modelos mecânicos
também se usam de aproximações, desconsiderando atritos, alterações de dimensões com
carga etc.

171
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Também já destacamos aqui, sob o ponto de vista histórico, como o estudo dos
fenômenos térmicos foi essencialmente fenomenológica no início, adquirindo um caráter mais
construtivo mais adiante, com o advento da mecânica estatística. Isso porque a abordagem
corpuscular da natureza passou a ganhar força na virada do séc. XIX para o séc. XX. Basta
recordar os trabalhos de Boltzmann, que considerava os gases como um conjunto de
partículas, Mendeleiev, que ajudou a estabelecer a tabela periódica dos elementos, Thomson e
Rutherford, na descoberta do elétron e da estrutura do átomo, Planck e Einstein,
estabelecendo interpretação corpuscular da energia, etc. Nesse contexto, os fenômenos
termodinâmicos passaram a ser estudados com uma nova abordagem, onde parâmetros
macroscópicos como pressão e temperatura de um gás passaram a ser compreendidos como
resultantes da movimentação de um número muito grande de partículas que constitui o gás.
Sendo assim, quando lidamos com uma grande quantidade de uma determinada coisa, nos
valemos de tratamentos estatísticos. Por isso, essa nova abordagem ficou conhecida pelo
nome de mecânica estatística e em muitos casos é tratada como sinônimo de termodinâmica.

Nesse sentido, a segunda lei pode ser abordada tanto de forma essencialmente
termodinâmica, como essencialmente estatística. De fato, grande parte do esforço dos
pioneiros em mecânica estatística foi no sentido procurar demonstrar que seus resultados são
congruentes com os da termodinâmica, tendo sido bem sucedidos nesse objetivo.

Pode se dizer que a sequência dos processos mostrados na Fig. 7.4 tende a ir de algo
essencialmente termodinâmico para algo essencialmente estatístico. Se a análise é
termodinâmica, focamos nos processos de transferência de energia térmica como o que
acontece na Fig. 7.4a.

Ao analisar os processos irreversíveis da termodinâmica, é muito útil fazer uso do


conceito de entropia. Clausius estudou a fundo ciclo proposto por Carnot para explicar as
máquinas térmicas, e por isso, analisou criteriosamente o processo de conversão de calor em
trabalho em um sistema do tipo cilindro pistão. Vimos isso quando estudamos a primeira lei no
contexto da Fig. 7.1. Vamos considerar em detalhe a situação da Fig. 7.1c onde há calor sendo
fornecido ao sistema e parte desse calor é convertida em trabalho. Mas, assim como Carnot,
Clausius focou sua análise em uma situação especial. Imagine que o calor seja fornecido de
uma forma bastante controlada, em uma taxa bem baixa, e que o sistema tenha sido
construído de forma bastante cuidadosa de forma a evitar atritos e outras perdas. Nesse
sistema ideal, todo o calor fornecido é transformado em trabalho e o gás permanece em
temperatura constante (Fig. 7.5). O processo é concebido de forma a ocorrer lentamente, de
forma que podemos considerar que ele está sempre em equilíbrio, isto é, a distribuição de
energia térmica no sistema é homogênea ao longo de todo o processo50. Algo que é inviável de
ser realizado na prática, mas vale como ferramenta de análise.

50
Na realidade, o sistema descrito por Carnot e Clausius é ainda mais restritivo e formalizado do que o
descrito aqui. Por critérios didáticos, podemos dizer que o sistema descrito aqui se aproxima bem o
suficiente do sistema proposto por Carnot e Clausius.
172
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 7.5: Mesma situação retratada na Fig. 7.1c, porém em um contexto mais idealizado. Nesse caso, o processo
ocorre lentamente e em temperatura constante de forma que toda a energia térmica é convertida em trabalho.

Nessa situação é conveniente usarmos da definição de variação de entropia, definida


por Clausius da forma:
∆«
∆ = (7.4)
,

onde ∆3é a quantidade de calor inserido no sistema cilindro-pistão e + é a temperatura do


sistema.

Fig. 7.6: Iceberg derretendo no mar da Groenlândia.

Vamos aplicar essa definição em um sistema termodinâmico simples, o gelo derretendo


na água, como ilustrado na Fig. 7.4a, mas representado novamente em situação análoga na
Fig. 7.6 na forma do derretimento de um iceberg no mar. Para fins de argumento, vamos
considerar haja uma diferença de temperatura significativa entre o iceberg, definida como + e
o mar, definida como + . Sabemos que o processo natural é o derretimento do iceberg,
conforme este entra em equilíbrio térmico com o mar. Isso ocorre, pois há calor sendo
transferido do mar, que é o corpo mais quente, para o iceberg e temos que analisar esses dois
corpos para podermos apreciar o processo como um todo. Com relação ao iceberg, a variação
de entropia (∆ ) é dada por
∆«
∆ = (7.5)

Uma vez que a energia se conserva, a quantidade de calor recebida pelo iceberg é a
quantidade de calor cedida pelo mar, ou seja, o valor de ∆3 é o mesmo, mas o sinal é
invertido, a variação de entropia é dada por
173
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Y∆«
∆ = (7.6)
,-

E a variação total de entropia é dada por


∆« ∆«
∆ =∆ +∆ =


,-
(7.7)

Note que + < + , logo ∆ é positivo. Esse é um resultado bastante fundamental. Veja
também que o enunciado de Clausius sobre a primeira lei diz que nunca o sistema em questão
passaria espontaneamente calor do iceberg para o mar, o que resultaria em um resfriamento
do iceberg e um aquecimento do mar, além de uma variação de entropia negativa. De fato,
outra forma de se enunciar a segunda lei é: em um sistema isolado, a variação de entropia de
um processo é sempre positiva. Essa máxima tem se mostrado consistente com os mais
diversos sistemas termodinâmicos estudados, desde máquinas térmicas a reações químicas.

Acabamos de abordar a visão termodinâmica da entropia. Mas há também a visão da


mecânica estatística, defendida e estabelecida por cientistas como Ludwig Boltzmann, James
Clerk Maxwell e Josiah Willard Gibbs. Nessa visão, a entropia é proporcional ao número de
configurações, ou estados, possíveis que um sistema pode apresentar. A grande sutileza dessa
abordagem é definir o significado de “estados possíveis” de um sistema. Tratar dessa questão
aqui, sem lançar mão das ferramentas de cálculo, é um grande desafio.

Considere um gás confinado em um recipiente como na Fig. 7.4c, na situação inicial


onde a divisória prende o gás em uma metade do recipiente. Segundo a visão de Boltzmann, o
gás consiste em um número enorme de partículas com diferentes velocidades e em diferentes
posições no recipiente. Nesse contexto, o número de estados possíveis corresponde ao
número de combinações, considerando a posição e a velocidade51 de cada partícula, que o gás
como um todo pode apresentar. Ou seja, estatisticamente falando, uma determinada partícula
poderia estar no canto superior esquerdo, com uma velocidade relativamente baixa e próxima
de outra dada partícula, como da mesma forma, poderia estar no canto inferior, com uma
velocidade mais alta e longe dessa outra partícula. Dessa maneira, o leitor pode inferir a
quantidade enorme de combinações possíveis considerando as posições e velocidades
relativas entre N partículas, sendo N da ordem de moles. De fato, há modelos e técnicas para
contar o número total de estados possíveis, e este número chamamos de Ω, e a entropia é
definida da forma:

= ¨M[&Ω' (7.8)

onde é a entropia, ¨ é a constante de Boltzmann52. Note que, de forma mais específica, a


entropia é proporcional ao logaritmo do número de estados possíveis do sistema. Boltzmann
definiu dessa forma com o objetivo de linearizar um comportamento que cresce
exponencialmente com o aumento do sistema. Outro ponto importante é que a entropia

51
Na verdade o parâmetro físico em questão é o momento e não a velocidade. Como momento é a
velocidade multiplicada pela massa das partículas, se considerarmos um gás composto de partículas
iguais, o argumento permanece o mesmo.
52
Boltzmann nunca escreveu essa equação, embora ela reflita suas concepções de forma acurada.
Quem propôs essa expressão pela primeira vez foi Max Planck em 1900.
174
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

estatística se refere a um estado do sistema, e a entropia termodinâmica se refere a um


processo, quantificando sua variação.

Se a entropia fosse igual ao logaritmo do número de estados possíveis, ela não teria
dimensão alguma e seria um conceito bastante distinto da definição da entropia de Clausius
(Eq. 7.4). A constante de Boltzmann se insere na equação para garantir a relação entre as
abordagens estatística e termodinâmica. Atualmente a constante de Boltzmann é dada por:

•°
¨ = 1.38064852 × 10Y (7.9)
±

Note que ¨ apresenta unidades de Joule por Kelvin, garantindo que a entropia
estatística tem a mesma unidade da entropia termodinâmica.

A termodinâmica lida com parâmetros macroscópicos do sistema, como temperatura,


volume, pressão etc. Em mecânica estatística nos preocupamos com a descrição microscópica
destas realidades. Quando estamos contando os estados possíveis do sistema para mensurar
sua entropia, como no caso descrito para a Fig. 7.4c, fundamentalmente estamos dizendo que,
para o sistema com aquele dado volume, temperatura e pressão, temos num número muito
grande de estados microscópicos que podem corresponder àquelas condições. Ou seja, aquela
determinada partícula poderia estar de um lado ou do outro do sistema, ou com velocidade
grande ou baixa, e ainda sim este apresentaria a mesma temperatura, pressão e volume. Em
outras palavras, quanto maior a entropia (estados possíveis) de um sistema, menos
informação temos sobre o este. Daí vemos, de uma forma fundamental, a relação entre
informação e entropia, uma vertente da física estatística muito importante para a tecnologia
da informação.

A Eq. 7.8 é profunda importância e significado, pois representa a conexão entre a


mecânica e a termodinâmica. É a constante de Boltzmann e a Eq. 7.8 que dão respaldo à
afirmação de que “a temperatura está relacionada com o grau de agitação das moléculas”.
Pois de acordo com a definição de Clausius para a entropia
∆« ∆«
Se ∆ = ,
então +=
∆²
(7.10)

Ou seja, podemos atribuir uma temperatura a qualquer sistema onde compreendemos


como sua energia térmica se comporta em relação aos seus estados possíveis. E como vimos,
contamos estados possíveis considerando posição e velocidade das partículas, estabelecendo
uma relação matemática e direta entre movimento das partículas e a temperatura do sistema.

Mas, voltemos ao sistema representado na Fig. 7.4c. Dissemos que, quando a divisória é
retirada, um processo irreversível ocorre e o gás se espalha por todo o compartimento.
Dissemos também que todo processo que ocorre em um sistema isolado, a variação de
entropia é sempre positiva. Usando o modelo estatístico de Boltzmann, podemos dizer que a
entropia do sistema aumentou, pois o volume ocupado pelo gás dobrou. Sendo assim, no

175
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

cálculo de estados possíveis do sistema, cada partícula contribui com o dobro de possibilidades
em termos de posições possíveis53.

De forma análoga, quando aumentamos a temperatura de um gás, aumentamos


também sua entropia. Isso porque a maior energia térmica implica em um “grau maior de
agitação”, ou, dito de outra forma, maior energia cinética das partículas. Isso implica que no
cálculo dos estados possíveis do sistema, cada partícula possui um intervalo maior de
velocidades que ela pode possuir.

No caso da quebra do copo, note que se pode conseguir um número maior de


configurações, ou estados possíveis com o copo fragmentado do que com ele inteiro,
corroborando a visão de um processo que aumenta a entropia. E assim vamos sedimentando a
ideia de que a entropia está relacionada com o conceito de desordem de um sistema. Se você
organizar um conjunto de livros em ordem alfabética, há apenas um modo de fazer isso, agora,
se o ordenamento pode ser aleatório, existe uma grande quantidade de formas de realizá-lo.

No caso do derretimento do gelo na água, ilustrado nas Fig. 7.4a e 7.6, há uma visão
estatística para o aumento da entropia: quando a água está congelada, cada uma de suas
moléculas está fixa em uma determinada posição do retículo que forma o sólido. Com o
derretimento, as moléculas estão livres, abrindo possibilidade para ocupar diferentes posições
além da possibilidade de movimento translacional. É um caso análogo à quebra do copo, onde
temos o caso extremo em que cada caco é representado por uma molécula de água.

Ainda no caso do derretimento do iceberg, pode se aplicar uma pergunta bastante


fundamental: se a quantidade de calor é a mesma, porque a variação da entropia foi maior
para o iceberg do que para o mar? A resposta está relacionada com a contribuição dessa
quantidade de calor para o aumento da entropia. Se correlacionarmos o parâmetro físico de
entropia com as qualidades de desordem e caos, podemos fazer uma analogia com outra
forma de energia dissipativa que não o calor, mas sim, o som. Podemos correlacionar a
“temperatura ambiente”, com o “ruído ambiente”. Dessa forma, como já argumentamos,
quanto maior a temperatura, maior a entropia, da mesma maneira que, quanto maior o ruído
ambiente, maior a entropia também. Agora, imagine que você está andando por uma rua
movimentada onde o ruído ambiente seja relativamente alto. Se você espirrar, ou seja,
contribuir com a sua porção de “energia sonora”, isso pouco significará para o ruído ambiente
do lugar, e a entropia do local segue praticamente inalterada. Por outro lado, se você estiver
em uma biblioteca ou em uma sala de leitura, onde o ruído ambiente é baixo, um espirro
representa um grande distúrbio, o que implica em uma grande contribuição para a desordem
(entropia) do ambiente. Ou seja, quanto maior o ruído ambiente, menor é a contribuição de
seu espirro para o aumento da entropia. No caso do iceberg derretendo no mar, quanto maior
a temperatura do corpo, menor é o impacto entrópico do fluxo de calor e por isso a variação
de entropia no mar é menor que no iceberg.

Aqui temos uma ideia da razão pela qual a termodinâmica e a mecânica estatística são
tão fascinantes e ao mesmo tempo tão desafiadoras. Podemos descrever um fenômeno no
âmbito da segunda lei, lançando mão de abordagens diferentes, seja utilizando transferência

53
Existe um efeito secundário na temperatura do gás devido ao efeito da expansão volumétrica, mas
isso não muda a essência da análise feita aqui.
176
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

de calor, por estados possíveis do sistema, pela informação que se tem sobre o sistema, ou
pelo grau de desordem. No escopo dessa última abordagem, muitas vezes a segunda lei é
definida de forma coloquial como “em qualquer processo em um sistema isolado, o grau de
desordem sempre aumenta”. Essa definição é coloquial, pois em termodinâmica o termo
“desordem” não representa um parâmetro físico definido, da mesma forma como “pressão”
ou “volume”.

7.3 – A terceira lei da termodinâmica

Vamos descrever agora um experimento simples que poderia ser realizado com gases.
Considere uma caixa de volume V com paredes rígidas, de forma que o volume nunca se
altere. Suponha que, inicialmente, temos certa quantidade de vapor d’água acondicionada de
tal forma que sua condição inicial é T = 500 °C e P = 2,072 atm (Fig. 7.7).

Fig. 7.7: Caixa rígida de volume V contendo vapor d’água a T = 500 °C e P = 2,072 atm.

O sistema é então resfriado gradualmente enquanto são realizadas medições de


temperatura e pressão. A Fig. 7.8 faz uma representação dos dados experimentais obtidos em
um teste como esse.

Fig. 7.8: Representação dos dados experimentais obtidos com a medição da pressão e da temperatura do vapor
confinado na caixa representada na Fig. 7.7.

Como já sabemos da lei dos gases ideais, a pressão diminui com a diminuição da
temperatura, até chegar a T = 100°C e P = 1 atm54 quando sabemos que, nessas condições a o
vapor d’água condensa, ocasionando uma diminuição drástica de pressão que pode ser
observada na figura.

54
Daí a escolha das condições iniciais, de forma que o experimento se referisse a parâmetros
conhecidos das propriedades da água.
177
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Agora suponhamos que fizéssemos o mesmo experimento, iniciando com as mesmas


condições, porém usando nitrogênio ao invés de vapor d’água. Uma representação dos dados
experimentais é ilustrada na Fig. 7.9. Em primeira vista, o comportamento é similar, porém, o
nitrogênio permanece gasoso até temperaturas muito baixas. Mesmo assim, se diminuíssemos
a temperatura o nitrogênio o suficiente, este se tornaria líquido em uma temperatura em
torno de T = -205°C55, onde novamente perceberíamos uma diminuição abrupta da pressão no
interior da caixa.

Fig. 7.9: Representação dos dados experimentais obtidos com a medição da pressão e da temperatura do gás
nitrogênio confinado na mesma caixa representada na Fig. 7.7.

Porém como estamos interessados no estudo dos gases, podemos ignorar os dados que
correspondem aos estados condensados. Se realizássemos a sobreposição dos dados obtidos
para os dois gases no mesmo sistema de coordenadas (Fig. 7.10), veríamos um resultado
bastante interessante relacionado aos gases ideais: os dados se sobrepõem. Em uma
aproximação muito boa, poderíamos dizer que os dados se sobreporiam para qualquer gás,
desde que as condições iniciais sejam as mesmas. Note que isto está implícito na lei dos gases
ideais uma vez que R é conhecida como a constante universal dos gases. Mais do que isso, o
comportamento universal dos gases aponta para uma temperatura mínima absoluta se
extrapolarmos os dados para o caso de pressão nula. Foi a partir desse tipo de observação que
permitiu que Kelvin inferisse sobre a existência do zero absoluto. Hoje temos condições de
medir com boa precisão que essa temperatura mínima absoluta vale T = -273,15°C56. A escala
Kelvin de temperatura foi estabelecida em homenagem a ele e possui o mesmo incremento da
escada Celsius, porém o zero da escala coincide com a temperatura mínima absoluta.

55
Note que para pressões diferentes de 1 atm, o ponto de ebulição do nitrogênio não é o conhecido
valor de T = -195,8°C.
56
Atualmente o zero absoluto é definido nesse valor, e a escala se adapta de acordo com essa definição.
178
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 7.10: Sobreposição dos resultados experimentais para o vapor e nitrogênio, evidenciando o comportamento
universal dos gases. Esse comportamento indica a existência de uma temperatura mínima absoluta.

Vamos analisar a lei dos gases ideais de acordo com o experimento que acabamos de
descrever. Uma vez que o volume é constante, podemos reescrever a equação isolando se a
pressão em função da temperatura, da forma:

7.11

Note que o resultado é a equação de uma reta cuja abcissa é o eixo da temperatura e a
ordenada é o eixo da pressão, tal como observamos nas figuras. Note também que não há
coeficiente linear, ou seja, a reta deve cruzar o sistema de coordenadas na origem. Isso mostra
que a equação dos gases ideais foi formulada e funciona apenas na escala Kelvin conforme
mostra a Fig. 7.11.

Fig. 7.11: Gráfico da Fig. 7.10 refeitos na escala Kelvin, adequando-se à descrição da lei dos gases ideais.

A terceira lei tem relação com o zero absoluto. Basicamente ela implica que não é
possível reduzir a temperatura de um sistema até 0 K. Como a termodinâmica sempre trata de

179
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

processos, pode se dizer que temperatura de 0 K em um sistema é inatingível em um número


finito de processos57.

A terceira lei tem forte relação com a segunda lei. Como vimos, Carnot modelou as
máquinas térmicas por meio de interação de um sistema com dois reservatórios, um frio e
outro quente, de onde é possível quantificar a eficiência de uma máquina térmica ideal. Essa
eficiência ideal depende unicamente das temperaturas dos reservatórios. Se o reservatório frio
tiver temperatura 0 K, indica que a eficiência da máquina é de 100%, o que violaria o
enunciado de Kelvin-Planck da segunda lei. Nesse sentido, pode-se dizer que a terceira lei dá
respaldo para que a segunda lei seja sempre válida.

Vamos considerar novamente o caso de um sistema formado por vapor d’água. Vimos
que a entropia desse sistema é calculada contando-se as possíveis combinações de posição e
velocidade de cada partícula. Vimos também como essa entropia diminui com a diminuição da
temperatura. Suponhamos o caso em que a temperatura diminui causando a condensação do
vapor para o estado líquido. Há grande similaridade entre os estados líquidos e gasosos quanto
à forma de se avaliar a entropia do sistema. As partículas do líquido também possuem uma
distribuição de velocidades e se movimentam umas em relação às outras. A grande diferença
está nas posições possíveis, uma vez que no estado líquido o volume do sistema é
consideravelmente menor. De maneira similar ao vapor, a entropia da água no estado líquido
diminui conforme se diminui a temperatura. Se diminuirmos ainda mais a temperatura,
teremos o congelamento da água. No sólido, as partículas do sistema estão fixas de acordo
com o retículo cristalino. Nesse caso, pode se perguntar: como a energia térmica se manifesta
em um sólido? A resposta está no que chamamos de “vibrações da rede cristalina”, ou seja, os
átomos e íons que compõem o sólido oscilam em torno de suas posições de equilíbrio,
podendo apresentar vários modos de vibração entre eles. São esses diferentes modos e
amplitudes de vibração que determinam os estados possíveis do sistema, isto é, sua entropia.
Conforme a temperatura diminui ainda mais, os possíveis modos e amplitudes de vibração vão
se reduzindo, o que significa diminuição da entropia. Podemos então ser levados a acreditar
que, se o sistema for reduzido à temperatura de zero absoluto, ou seja, ao seu estado
fundamental, a entropia será zero. Coloquialmente, o termo “entropia zero” é bastante
utilizado para designar sistemas completamente conhecidos e ordenados. Mas isso é uma
força de expressão. Isso é assim, pois, tanto classicamente quanto quanticamente, os sistemas
possuem vários estados possíveis em seu estado fundamental. São as chamadas
degenerescências do sistema. E cada sistema possui um número diferente de estados
possíveis, embora em muitos casos, estes estados possam ser contados.

7.4 – A Lei Zero da Termodinâmica

A lei zero foi a última a assumir o caráter de “lei”, mas por ser mais fundamental que as
outras adquiriu essa denominação não usual de “lei zero”. Ela justifica o termômetro e o
parâmetro da temperatura.

57
A definição formal faz uso da entropia e de processos isotérmicos reversíveis.
180
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Quando se deseja medir o comprimento de uma mesa, essa informação é obtida


rapidamente com o auxílio de uma trena. Uma grande distância, como a que separa a Terra da
Lua pode ser medida em uma fração de segundo por meio de um dispositivo baseado em laser.
Já a medida de temperatura não é tão simples. Qualquer mãe, ao verificar a possibilidade de
febre, sabe o esforço que é manter uma criança quieta por alguns minutos até que o
termômetro axilar indique que a leitura pode ser feita. Tudo bem que existem os termômetros
auriculares que podem realizar medidas mais rápidas, mas são bem mais caros e ainda não
possuem a mesma confiabilidade dos termômetros axilares. Os termômetros auriculares se
baseiam em uma tecnologia alternativa, mais indireta, que pressupõe as características da
radiação térmica do tímpano, uma membrana vastamente abastecida de vasos sanguíneos.

Para se medir um parâmetro físico com acurácia, é necessário entender profundamente


o parâmetro em questão. É por isso que há grande investimento em institutos e centros de
metrologia em todo o mundo. Muitas vezes, a problemas de metrologia passam por questões
fundamentais, de difícil resolução. Até hoje se discute qual a natureza do tempo, por exemplo.
Como medir tempo então? A solução utilizada ao longo dos séculos é adotar eventos
periódicos como o solstício, o nascer do Sol, a oscilação de um pêndulo, as transições
hiperfinas de um núcleo de Césio, e contar quantas vezes eles ocorrem. Com isso
determinamos quantos anos, dias e segundos se passaram. Para a questão da medida de
tempo, a humanidade encontrou soluções muito boas. Até a definição do metro hoje depende
da medida do tempo, ou seja, das transições hiperfinas do Césio. Mas para isso, uma
compreensão muito boa do tempo teve que ser desenvolvida, a ponto de os efeitos
relativísticos causados pela gravidade terrestre no núcleo de Césio ser levado em conta na
definição de segundo.

Voltamos à pergunta feita no Cap. 1: o que é temperatura? A resposta mais comum é


que temperatura está relacionada com o grau de agitação de suas partículas, sejam estas
moléculas, átomos, íons que formam o sistema. Mas nem sempre tivemos essa visão. Antes da
mecânica estatística, já havia termômetros. Assim como ocorreu com a marcação do tempo, a
humanidade inventou soluções de acordo com a compreensão que dispunha na época. Há
muito tempo que se sabe que os corpos dilatam com o aumento da temperatura. Em 1714, o
termômetro de coluna de mercúrio foi inventado por Daniel Gabriel Fahrenheit. Da mesma
forma que o sistema cilindro-pistão restringe o movimento de expansão térmica de um gás em
uma única direção, exacerbando o efeito da expansão, Fahrenheit percebeu que poderia
amplificar a manifestação visível da expansão térmica de uma quantidade de mercúrio
confinando o volume expansível em uma coluna delgada. Até pouco tempo atrás era a
tecnologia mais utilizada para se medir temperatura em uso doméstico. A tecnologia mais
utilizada para fabricação dos termômetros axilares hoje em dia baseia-se em um princípio
parecido, ou seja, aproveitando-se de outro parâmetro físico que depende da temperatura.
Sabemos que a resistividade elétrica dos materiais em geral varia com a temperatura. Sendo
assim, dado o comportamento elétrico de um material conhecido, devemos apenas medir sua
resistividade para sabermos a temperatura.

Paralelamente ao desenvolvimento de sensores de temperatura, desenvolveu-se uma


compreensão mais sofisticada da natureza da temperatura, sendo essa associada ao
movimento incoerente, aleatório das partículas do sistema. Para apreciarmos o problema,
vamos considerar uma sala preenchida com ar a temperatura ambiente. Sabemos que o ar é
181
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

composto de moléculas diferentes, de nitrogênio, oxigênio, gás carbônico. Se associamos a


temperatura à energia cinética, é natural que perguntemos: qual é a velocidade das moléculas
que compõe o ar em temperatura ambiente? Dezenas, centenas, milhares de metros por
segundo? De forma grosseira, podemos ter uma resposta preliminar com nossa experiência do
cotidiano. Se a velocidade típica das partículas fosse da ordem de unidades ou dezenas de
metros por segundo, então se deslocássemos em relação a essas partículas em uma velocidade
comparável, apreciaríamos um aumento da sensação térmica que esse gás proporciona. Ou
seja, o ar nos pareceria mais quente ao andarmos de bicicleta ou moto, por exemplo. Portanto,
a velocidade das partículas deve ser tipicamente, pelo menos uma ordem de grandeza maior
para que esse efeito seja desprezível.

O modelo mais aceito para responder a essa questão foi desenvolvido ao fim do séc. XIX.
Foi Maxwell que introduziu os principais elementos conceituais ao modelo e fez largo uso de
argumentos heurísticos58. Apesar de ser mais sensato assumir que há uma distribuição de
velocidades das partículas de um gás ao invés de supor que todas se deslocam com a mesma
velocidade, não estava claro que distribuição seria essa. Boltzmann, além de generalizar os
resultados de Maxwell, procurou justificar com argumentos físicos. O modelo mostra uma
distribuição de probabilidades de velocidade que uma partícula pode ter em uma dada
temperatura. A distribuição de Maxwell-Boltzmann é mostrada na Fig. 7.12 a uma temperatura
de 298,15 K (25 °C) para diferentes gases nobres.

Fig. 7.12: Distribuição de velocidades de Maxwell-Boltzmann calculados para diversos gases nobres a uma
temperatura de 298,15 K (25 °C).

Para auxiliar na interpretação desse gráfico, vamos tomar como exemplo o caso do
neônio, que está representado pela curva amarela. Há um pico em = 500 m/s. Esse pico
indica que a velocidade mais provável de um átomo de Ne em um gás a uma temperatura de
25 °C é de 500 m/s. Mas isso não exclui o fato de que, em uma amostra típica, há átomos com
velocidades inferiores a 100 m/s e uma quantidade considerável de átomos com velocidades
acima de 1000 m/s. Mas o número de partículas com essas velocidades extremas é menor do
que o número de partículas com velocidades em torno de 500 m/s. Há que se levar em
consideração, que o número de partículas presentes em sistemas típicos é da ordem de moles,
ou seja, da ordem de 1023 partículas, e que sofrem uma quantidade enorme de interações a

58
Uma solução heurística introduz elementos com a principal justificativa de resolver um problema.
182
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

cada segundo. Ou seja, mesmo para velocidades que apresentem probabilidades muito
pequenas, sempre haverá grande quantidade de partículas que apresentam esses estados
menos prováveis59.

Vale ressaltar que, ao contrário da famosa distribuição gaussiana, a distribuição de


Maxwell-Boltzmann é assimétrica, tendo como limite inferior a velocidade nula, mas sem
limite superior para velocidades. Na Fig. 7.12, podemos perceber que as velocidades típicas
para os gases nobres são da ordem de centenas ou milhares de metros por segundo,
corroborando nossa hipótese preliminar de que estas deveriam ser superiores a dezenas de
metros por segundo. Note que a massa atômica da molécula de nitrogênio é 28 e do oxigênio
é 32, sendo o comportamento compatível com algo entre o neônio e o argônio. Não
percebemos o aquecimento aerodinâmico quando andamos de moto, mas o efeito é
importante quando as velocidades de deslocamento são comparáveis às partículas do ar, como
por exemplo, os aviões, e principalmente os jatos supersônicos. Um caso extremo é o dos
ônibus espaciais, que realizam a reentrada na atmosfera a partir de uma velocidade de 28000
km/h (7770 m/s) e devem ter uma preparação minuciosa em termos de revestimentos
cerâmicos para suportar a carga térmica no processo de reentrada.

Na representação da distribuição em relação às velocidades, partículas com massas


diferentes apresentam distribuições diferentes. A representação da distribuição pode ser feita
substituindo a velocidade pela energia das partículas. Nessa representação alternativa, as
distribuições associadas aos gases nobres acima coincidiriam.

Inicialmente, o modelo foi elaborado para ser aplicado aos gases ideais. Mas logo foi
incorporado em outros temas da física, como o movimento browniano, difusão e dinâmica de
reações químicas, ganhando grande aderência na comunidade científica. A distribuição
também ajuda a explicar muitos comportamentos térmicos em física do estado sólido, como a
condutividade de semicondutores por exemplo.

Fig. 7.13: Representação esquemática da distribuição de Maxwell-Boltzmann para as partículas de um líquido que
se apresenta temperatura abaixo da temperatura de ebulição. Duas temperaturas diferentes são apresentadas
onde T1<T2. A assimetria da distribuição está exagerada nessa representação.

A distribuição de Maxwell-Boltzmann ajuda a explicar a evaporação de um líquido que


se encontra abaixo da temperatura de ebulição. Se deixarmos um pequeno volume de água
59
Tomem o sentido dessa frase da forma mais coloquial. Formalmente, o termo “sempre” é abusivo. O
termo “sempre” está lá por que, na prática, é quase sempre seguro considerar dessa forma.
183
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

em um copo à temperatura ambiente, esta evaporará em questão de horas ou dias,


dependendo da quantidade e da superfície exposta ao ar. Note que existe uma energia de
ligação entre as moléculas que as mantém dentro do volume do líquido. Ao se explicar o
processo de evaporação nesse caso, considera-se que as moléculas que compõe o líquido
apresentam uma distribuição de velocidades de acordo com a distribuição de Maxwell-
Boltzmann, conforme representado na Fig. 7.13. Sendo assim, parte das partículas do líquido
possui energia cinética superior a energia de ligação que as mantém no estado líquido,
destacado na parte hachurada da figura. Pode ocorrer que parte dessas partículas se encontra
próximo à superfície do líquido e se movimentando na direção correta de forma a se
desprender do líquido, evaporando. Note que somente partículas de alta energia sofrem esse
processo, deixando apenas as partículas de baixa energia. Note que para a temperatura T2, que
é maior que T1, há mais partículas com energia suficiente para escapar do líquido, por isso, o
processo é mais rápido. A dinâmica do processo faz com que o sistema sempre apresente uma
distribuição consistente, mas a tendência é a diminuição da temperatura do fluído. Esse fato
explica a sensação gelada que sentimos quanto o álcool evapora em contato com nossa pele.

Com a discussão feita até agora, reforçamos a ideia de que a temperatura está
relacionada com uma manifestação da energia cinética das partículas que compõe o sistema.
Mas vamos retornar a discussão inicial dessa seção, sobre a medição da temperatura. Em
todos os casos, para ocorrer uma medida confiável de temperatura, o elemento sensor deve
entrar em equilíbrio térmico com o corpo de interesse. Daí os minutos que a mãe deve esperar
até poder fazer a leitura do termômetro que mede a febre de seu filho. Era assim com o
termômetro de mercúrio, é assim com o atual termômetro digital e é assim em qualquer outra
medida que se faz em laboratórios e na indústria60.

Mas o que é equilíbrio térmico afinal? Definir o equilíbrio térmico é mais desafiador do
que definir temperatura. Do experimento descrito na Fig. 7.4a, do gelo introduzido no copo
com água, sabemos por experiência que a heterogeneidade de estado físico e temperatura
tende, com o tempo, dará lugar a um sistema homogêneo, tendo todo o volume de água, a
mesma temperatura. Mas como justificar isso? Carnot acreditava que calor era a manifestação
de um fluído, o calórico, e que o equilíbrio térmico era atingido com a passagem de calórico do
corpo quente para o corpo frio, até que a distribuição desse fluído fosse a mesma. Porém
sabemos que o modelo baseado no calórico se tornou obsoleto. Hoje os modelos que tratam
da transferência de calor são bastante complexos, pois envolve diferentes mecanismos tais
como condução, convecção, irradiação, cada qual devotado para sistemas diferentes. Por
exemplo, vamos considerar a visão mais moderna de condução de calor em um objeto sólido
tal como uma barra metálica. Sabemos, também por experiência, que se uma barra metálica
possui uma extremidade mais quente que a outra, ou seja, apresenta um gradiente de
temperatura, a energia térmica fluirá da extremidade mais quente para a mais fria. A
explicação moderna para esse fenômeno vem da mecânica estatística que pressupõe uma
realidade corpuscular da matéria, assim como a própria compreensão da temperatura.
Aprendemos que uma barra de ferro, por exemplo, é composta de uma rede íons de Fe
imersos em um mar de elétrons livres. A presença dos elétrons livres explica a condutividade
elétrica, e é também explica a boa parte da condutividade térmica dos metais61. A física

60
Onde se utiliza largamente a técnica de termopares.
61
Outra contribuição, menos importante, vem das vibrações da rede cristalina.
184
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

moderna resolve esse problema tratando a barra como uma caixa contendo um gás de
elétrons. As melhores soluções provêm de tratamentos quânticos, mas pode-se dizer que a
extremidade mais quente possui elétrons mais energéticos, ou seja, possuindo um grau maior
de agitação. O movimento destes elétrons ao longo do cristal metálico, realizando interações e
transferindo essa energia para outros elétrons e para a rede em si, acabam resultando na
transferência de energia térmica de uma extremidade para outra.

A condutividade térmica entre sistemas formados por corpos sólidos e reservatórios de


gases são igualmente difíceis de descrever, mas facilmente apreendidas de forma intuitiva. Se
água gelada for introduzida em um copo de vidro à temperatura ambiente, logo entrarão em
equilíbrio térmico. O grau de agitação que as partículas do sistema se manifestem de forma
diferente no vidro e na água sendo basicamente vibracional no primeiro e uma combinação de
translacional e rotacional no segundo. Mesmo assim, podemos descrever a transferência de
energia térmica do mais quente para o mais frio por meio da interação das partículas mais
energéticas do primeiro, causando maior agitação nas partículas menos energéticas do
segundo.

A lei zero da termodinâmica se insere nessa complexidade para se justificar algo que
tomamos como certo em nosso cotidiano: o equilíbrio térmico. Uma forma de enunciar a lei
zero é: se o corpo A está em equilíbrio térmico com B e o corpo B está em equilíbrio térmico
com o corpo C, então o corpo C está em equilíbrio térmico com o corpo A.

7.5 – A Termodinâmica é diferente das outras áreas da física

A ciência é feita por pessoas, e diferentes áreas apresentam características próprias. O


próprio conceito de método científico pode diferir para áreas distintas como a biologia e a
cosmologia. Nesse sentido, mesmo dentro da grande área da física a termodinâmica possui
características que a diferencia das demais áreas. Quando estudamos ótica, nos é descrito
como as lentes delgadas defletem a luz em direção ao foco. Na física das colisões, as bolas de
bilhar de movimentam e colidem, e comparamos a situação antes e depois da colisão. Na
queda livre, apenas observamos os objetos caírem. Existe uma separação entre o cientista e o
objeto. É comum argumentarem que, na física clássica, o observador procura não interferir no
sistema e que isso se tornou impossível na escala microscópica, abrindo caminho para a
mecânica quântica. Mas a “não interferência” já não era praticada na termodinâmica. Nessa
área da física, o normal é a interação do cientista com o sistema: calor é introduzido no
container, o pistão é movimentado, a partição é removida, dois corpos são colocados em
contato térmico etc. Normalmente há uma ação do cientista entre o antes e o depois.

Outra diferença é que, em outras áreas da física, as leis descrevem o que ocorre: qual é
o comprimento de onda da radiação, qual é o ângulo de reflexão, qual é a direção resultante
da trajetória etc. Mas as leis da termodinâmica normalmente definem o que não pode ocorrer:
não há motores 100% eficientes, não é possível atingir o zero absoluto em temperatura, não é
possível reverter o processo, não é possível saber a posição e velocidade de todas as partículas
etc.

185
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

O cientista britânico Charles Percy Snow, famoso pelo seu ensaio “As Duas Culturas”,
possui uma definição bem humorada das leis da termodinâmica. Imagine que você está em um
jogo contra a natureza. Você está inserido nela, portanto o jogo já está acontecendo. Ganhar o
jogo significa dominar a natureza sob o ponto de vista da energia. Nesse contexto, a definição
das leis segundo Snow é:

Lei zero: Sua participação no jogo é obrigatória


Primeira lei: Você não pode ganhar
Segunda lei: Você não vai conseguir nem empatar
Terceira lei: O jogo nunca termina

Como já mencionado, a ciência possui características próprias de acordo com a área de


atuação. Note que a biologia gosta de separar, seja no trabalho de identificar novas espécies,
seja na administração da pesquisa. A física por sua vez, gosta de unificar, seja na descrição das
forças fundamentais, como também na administração da pesquisa. A título de exemplo, os
comitês de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes) no colégio de Ciências da Vida as Ciências Biológicas estão divididas em 4 comitês
(Ciências Biológicas I, II, III, e Biodiversidade). Já no colégio de Ciências Exatas, Tecnológicas e
Multidisciplinar, a Física e a Astronomia estão agrupados em apenas um comitê. É comum um
biólogo que trabalha com biodiversidade afirmar se sua atuação não tem aderência com a área
de biologia molecular, ao passo que é normal que físico nuclear afirme que cosmologia possui
forte aderência com sua especialidade. Além disso, muitos físicos entendem que a física
engloba a química e que a biologia é um derivado específico da física (química). Quantas vezes
ouvimos que a vida nada mais é do que um conjunto de reações físico-químicas. É claro que
tudo isso é bastante discutível, mas não deixa de ser uma ilustração de uma tendência clara: os
biólogos celebram quando uma nova espécie é identificada, e os físicos celebram quando dois
modelos são unificados. Newton é celebrado por unificar a queda dos corpos com o
movimento dos planetas e Maxwell é celebrado por unificar a eletricidade, o magnetismo e a
luz em um único modelo.

Nesse contexto a mecânica estatística é bastante apreciada, pois representa a ponte que
unifica os fenômenos térmicos com os mecânicos. Mas interpretar temperatura como o “grau
de agitação das moléculas”, apesar de representar uma ferramenta poderosa para descrever e
modelar fenômenos térmicos, ainda apresenta uma série de dificuldades do ponto de vista
teórico.

Uma das principais dificuldades é explicar a irreversibilidade dos fenômenos


termodinâmicos a partir dos pressupostos da mecânica. Desde o surgimento da mecânica
estatística até hoje há debates sobre esse assunto. Discutimos isso de forma superficial na
seção 7.2 no contexto da Fig. 7.3 e 7.4, mas o assunto merece uma análise mais detalhada.
Primeiramente por que o próprio conceito de irreversibilidade não está bem estabelecido.
Uma meta análise da literatura mostra que o conceito de irreversibilidade aparece com,
basicamente, três diferentes acepções:

• Não invariância na reversão temporal: observe os exemplos da mecânica da Fig.


7.3. Se gravássemos o fenômeno e assistíssemos no sentido reverso, não nos
pareceria estranho. O sol sempre nasce no leste e se põe no oeste. Mas não há

186
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

nada nas leis da mecânica que impeça a Terra de realizar seus movimentos de
rotação e translação no sentido contrário, fazendo com que o sol passe a nascer
no oeste. Essa invariância não ocorre com os fenômenos termodinâmicos.
• Irrecuperabilidade: Dado um processo termodinâmico, diz-se que há
recuperabilidade se existe algum outro processo (excluído a reversão temporal
no sentido de que todas as partículas do sistema fazem o mesmo caminho de
volta) que possa ser realizado para recuperar o sistema e o ambiente ao seu
estado original. Por exemplo: o processo do gelo derretendo no copo com água.
Após o derretimento, existe um processo no qual se obtém de volta o sistema
heterogêneo com gelo e água, sendo que o entorno também volte a ficar no
mesmo estado que antes do derretimento inicial?
• Não ser quase-estático: como vimos, cientistas como Carnot e Clausius
desenvolveram seus modelos considerando que seus sistemas evoluem de
forma muito lenta, a partir de pequenos incrementos, como se,
paradoxalmente, o sistema estivesse em equilíbrio a medida em que evolui
durante o processo. Para essas condições, adota-se o termo “processo quase-
estático”. Muitas vezes, argumenta-se que um processo termodinâmico é
reversível quando ocorre muito lentamente e em incrementos
infinitesimalmente pequenos. Um processo irreversível seria um processo que
não respeitasse essas condições.

Em grande parte dos casos, os textos em termodinâmica utilizam o termo “irreversível”


sem especificar qual das acepções se refere, sendo que, em muitos casos, está implícito de que
mais de uma acepção é considerada.

No que se refere à conexão entre a termodinâmica e a mecânica, a primeira acepção da


irreversibilidade é a que introduz maior complicação. Isso porque o modelo clássico para um
gás ideal considera este constituído de partículas não interagentes. O termo “não interagente”
significa que as partículas não “sentem” ou “enxergam” umas as outras por meio de um
campo, seja ele qual for. Em outras palavras, o potencial de interação entre as partículas não
se manifesta como uma forma de energia do sistema. A interação entre as partículas ocorre
apenas em colisões simples e instantâneas. Ou seja, as partículas do gás são concebidas como
esferas duras, como se fossem minúsculas bolas de bilhar, que sofrem colisão apenas quando
suas trajetórias se cruzam. Existe uma questão delicada nessa abordagem: como vimos,
Maxwell e Boltzmann tinham razões para acreditar que as partículas de um gás possuem uma
distribuição de velocidades específica, hoje conhecida como distribuição de Maxwell-
Boltzmann. Porém quando se considera que um gás é formado por partículas não interagentes
que sofrem colisões instantâneas como esferas rígidas tem-se uma distribuição que não
necessariamente segue a de Maxwell-Boltzmann. Essa questão levou Boltzmann a propor o
teorema H. Basicamente, o que Boltzmann fez foi atribuir uma natureza estatística em cada
colisão das partículas do gás, substituindo o caráter estritamente mecânico, de forma que a
distribuição de Maxwell-Boltzmann fosse sempre observada no sistema. Ou seja, introduziu
uma solução heurística para fundamentar outra solução heurística. Há soluções mais
modernas para o problema, inclusive usando tratamentos quânticos. Mas todas essas soluções
sofrem de uma inconsistência básica: elas não diferenciam o sentido temporal, ou seja, as
equações descrevem a mesma evolução do sistema se substituirmos o tempo variando

187
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

positivamente ou negativamente. Isso é fundamentalmente inconsistente com a


termodinâmica, pois, como já vimos, se filmássemos os fenômenos e depois assistíssemos o
filme no sentido contrário, estes nos pareceriam anormais.

Há outra digressão interessante relacionada à segunda lei. Após o advento da teoria da


relatividade muitos cientistas passaram a incorporar a visão de que o tempo é uma
componente de um universo quadridimensional, adquirindo um status similar às outras três
dimensões espaciais. Mesmo assim, o tempo continua a ter uma característica que a diferencia
das demais dimensões. No espaço, podemos ir para um lado ou para o outro, ir para frente ou
para trás, para cima ou para baixo. Mas o tempo, não controlamos. Conforme ele passa,
progredimos na linha do tempo, nos distanciando dos pontos do passado e nos aproximando
dos pontos no futuro. O que justifica a diferença entre o passado e o futuro? Muitos atribuem
essa diferenciação à ação da segunda lei e sua relação com a irreversibilidade. Esse ponto
ainda reserva boa dose de controvérsias.

Questionário

1 – Como a energia térmica é entendida sob o ponto de vista microscópico? Em que momento,
no contexto da história da ciência, essa forma de entender a energia térmica ganhou
predominância?

2 – O que é movimento browniano e qual a sua relação com a energia térmica?

3 – Na visão científica dominante, a energia térmica de um gás é associada à energia cinética


de suas partículas constituintes. Nesse sentido, a diferença entre uma bola que se desloca e
uma bola imóvel, porém aquecida, seria a forma (coerente ou estatística) em que a energia
cinética de suas partículas se manifesta. Nesse contexto, considere o sistema formado por um
cilindro-pistão que contém um gás. Explique a transformação de energia térmica em energia
cinética quando o gás desse sistema é aquecido.

4 – A lei dos gases ideais (eq. 6.1) leva em conta o caráter corpuscular, considerando o número
de moles (ou número de partículas) que constitui a quantidade de gás estudada. Até o início
do sec. XX, o caráter corpuscular da matéria não representava uma abordagem científica
estabelecida, embora alguns indivíduos já tenham estudado em torno da hipótese antes disso.
Pesquise sobre o experimento de Benjamin Franklin e a gota de óleo no lago. Que ano foi
realizado? Discuta como esse experimento pode ser considerado um precursor de outros
experimentos em torno da determinação da natureza corpuscular da matéria.

5 – Qual é a hipótese de Avogadro? Que ano ela foi proposta? Em 1926, Jean Baptiste Perrin
ganhou prêmio Nobel por vários experimentos quantitativos em torno da hipótese
corpuscular, inclusive a determinação da constante de Avogadro. Em que ano foi esse
experimento? Que outros experimentos ele ficou famoso por realizar?

6 – Em 1905, Einstein escreveu e publicou seu artigo sobre a relatividade especial. Assim que
terminou, deu um suspiro de satisfação (aqui é permitido romantizar um momento histórico).
Pense nisso: você pode dividir essa satisfação com ele! Toda noite antes de dormir, dê um

188
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

suspiro também. No ato desse suspiro, você insere em seus pulmões pelo menos um átomo
contido no suspiro de Einstein. A afirmação sublinhada é absurda ou plausível? Justifique.

7 – Por que os líquidos se resfriam no processo de evaporação? Essa pergunta está


intimamente relacionada com a sensação gelada resultante da evaporação de um solvente em
nossa pele.

8 – Considere um gás como sendo uma mistura de hélio e argônio a uma temperatura T. As
velocidades típicas dos átomos de hélio e argônio são iguais? Justifique com a ajuda de um
desenho.

9- Explique como Kelvin pode inferir sobre uma temperatura mínima absoluta, hoje conhecida
como zero Kelvin.

10 - Dado que n = 1 mol, qual é o volume do sistema ilustrado na Fig. 7.7?

11 - Correlacione e contextualize as leis enunciadas por C. P. Snow com os enunciados


tradicionais da termodinâmica.

12 – Qual é a relação entre a primeira lei da termodinâmica e as máquinas térmicas?

13 – Qual é a relação entre a segunda lei da termodinâmica e as máquinas térmicas?

14 - A segunda lei pode ser abordada tanto do ponto de vista da termodinâmica quanto da
mecânica estatística. Explique os conceitos de entropia e da segunda lei de acordo com essas
duas abordagens, destacando as semelhanças e as diferenças.

15 - represente a distribuição de Maxwell Boltzmann para um gás quente e outro frio. Pesquise
a respeito e discuta sobre as diferenças e semelhanças entre as distribuições. Por que os
pontos máximos de densidades de probabilidades apresentam valores diferentes?

16 – No texto sobre a distribuição de Maxwell Boltzmann foi dito “A representação da


distribuição poderia ser feita substituindo a velocidade das partículas pela energia. Nessa
representação alternativa, as distribuições associadas aos gases nobres acima (Fig. 7.12)
coincidiriam”. Justifique.

17 – Recordando o conteúdo do Cap. 4, a terra recebe energia do Sol. Existe também uma
relação entrópica entre os dois. Para cada fóton que a Terra recebe do Sol, 20 são emitidos de
volta ao espaço pela Terra. Discuta de forma mais aprofundada a relação energética e
entrópica entre a Terra e o Sol.

18 – Por que a termodinâmica tradicionalmente se ocupa do estudo dos gases, sendo estes os
principais sistemas físicos ilustrados nos livros texto?

Créditos das figuras:

7.1: Arte própria


7.2: Arte própria
7.3: Arte própria

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

7.4: a) Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=525263


b) public domain http://www.publicdomainpictures.net/view-image.php?image=44560&picture=broken-glass
c) arte própria
7.5: Arte própria
7.6: Adaptado de foto de Algkalv (Own work) [CC BY-SA 3.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)], via
Wikimedia Commons.
7.7: Arte própria
7.8: Arte própria
7.9: Arte própria
7.10: Arte própria
7.11: Arte própria
7.12: By The original uploader was Pdbailey at English WikipediaLater versions were uploaded by Cryptic C62 at
en.wikipedia.Convert into SVG by Lilyu from Image:MaxwellBoltzmann.gif. - Originally from en.wikipedia;
description page is/was here., Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3662707
7.13: Arte própria

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Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

8 – A Energia Elétrica

Neste capítulo, veremos como podemos converter energia mecânica em elétrica. Essa
forma de conversão está na essência da maior fonte de energia elétrica no Brasil, que são as
usinas hidrelétricas. Nessas usinas, a energia de movimento da água é transformada em
eletricidade. No caso da energia eólica, o movimento de massas de ar é transformado em
eletricidade. Porém ainda mais relevante que isso, cerca de 80% da energia elétrica do mundo
é produzida via turbinas a vapor que operam de acordo com o ciclo de Rankine, como vimos
no Cap. 6, onde descrevemos em detalhe como a energia térmica pode ser convertida em
mecânica. Resta-nos agora, como podemos converter energia mecânica em elétrica.

8.1 – Movimento mecânico e eletricidade

Há um experimento muito simples que pode ser realizado em sala de aula, ou até
mesmo em casa, que ilustra de uma forma bastante fundamental a relação entre energia
mecânica e a energia elétrica62. Para realizar esse experimento, é preciso apenas de um tubo
de material condutor e um ímã63. A execução do experimento é simples: mantendo-se o tubo
na vertical, deixar o ímã cair dentro dele. O resultado é fascinante: o ímã cai lentamente. Não à
toa o termo “magnetismo” muitas vezes é associado ao “sobrenatural”. Ao observar o
fenômeno, tem-se a impressão de que há alguma “magia antigravitacional” ocorrendo. Pois
claramente a morosidade da queda não pode ser atribuída aos retardadores usuais, como a
resistência ao ar ou o atrito com as paredes do tubo. Certamente, a queda do ímã dentro do
tubo pouco se parece com uma queda-livre. Ao observar-se melhor, vê-se que o ímã se
movimenta em velocidade constante dentro do tubo.

Fig. 8.1: Experimento de um tubo condutor e um ímã.

Analisando sob o ponto de vista da energia, vemos que no início do processo o ímã
possui uma energia potencial gravitacional referente à altura ℎ do tubo. Não fosse o tubo, o

62
Recomenda-se a realização desse experimento no início da aula.
63
Como qualquer experimento, os efeitos desejados serão mais evidentes com a escolha adequada do
material. O tubo não pode ser de material ferromagnético, como a maior parte dos aços, pois o ímã
simplesmente grudará no tubo. As dimensões do tubo e do ímã devem ser compatíveis, ou seja, evitar
que o diâmetro do tubo seja muito maior do que o diâmetro do ímã. Além disso, quanto mais forte o
ímã, mais evidentes os efeitos. Recomenda-se o uso dos chamados ímãs de neodímio (de composição
NdFeB), também conhecidos como super-ímãs.
191
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

processo de queda livre ao longo de toda a distância ℎ resultaria em uma grande energia
cinética ao fim do percurso à custa da perda de energia potencial. Porém isso não ocorre com
no tubo, uma vez que o ímã percorre o trajeto em uma velocidade baixa e constante. Ao final,
sua energia cinética é pequena. O que ocorreu com toda a energia potencial gravitacional? Ela
deve ter sido convertida em outra coisa.

Se realizarmos a experiência com um tubo com as mesmas dimensões, porém não


condutor, de plástico por exemplo, o ímã seguiria em queda livre, praticamente da mesma
forma, com ou sem o tubo. Isso indica que o tubo deve ser condutor, sugerindo que o
fenômeno esteja relacionado com correntes elétricas. Porém, para aprofundarmos mais na
explicação devemos entender uma pouco mais sobre a relação entre os fenômenos
magnéticos e elétricos.

8.2 – A relação entre magnetismo, eletricidade e força mecânica

Todos nós estamos bem familiarizados com a gravidade e aceitamos muito bem quando
se fala em “campo gravitacional terrestre”. A ideia é que o espaço ao redor da Terra é
influenciado por sua massa e qualquer outro corpo massivo sentirá uma força, mesmo não
tendo contato direto com ela. Não havendo contato direto, entende-se que a influência da
Terra em relação ao corpo ocorre devido à presença de um campo. Newton ficou famoso por
descrever fenômenos aparentemente desconexos, como a queda de uma maçã e a órbita da
Lua, sob o mesmo modelo da força da gravidade, embora ele pouco tenha avançado na
questão da natureza desse campo. Na teoria de relatividade geral, Einstein propôs que o
campo gravitacional é uma deformação do espaço-tempo. Mas essa não é a única forma de se
compreender a natureza do campo gravitacional, pois existem também os defensores da
teoria quântica da gravidade. Nesse ponto, não é necessário entender o que é “espaço-tempo”
ou “teoria quântica da gravidade”, mas notar que existem diferentes formas de se modelar e
descrever o campo gravitacional.

Ao tratarmos de fenômenos eletromagnéticos, fazemos uso de campos elétricos e


magnéticos64. Da mesma forma que a gravidade, também estamos familiarizados com a
atuação de campos elétricos, quando nossos pelos corporais ficam arrepiados na proximidade
de objetos carregados eletricamente, ou de campos magnéticos, quando experimentamos a
aproximação de dois ímãs que seguramos com as mãos.

Uma forma muito utilizada para representar campos se dá por meio de linhas de campo,
também conhecidas como linhas de força. Linhas desse tipo são muito úteis quando se quer
tornar mais intuitivo a compreensão de algo topológico. Em topografia por exemplo, existe um
conceito que foi incorporado da matemática que se chama “curva de nível”, que nos ajuda a
modelar com linhas a topografia de um relevo.

64
Muitas vezes lê-se o termo “campo eletromagnético”, mas o uso é mais coloquial, normalmente ao se
descrever fenômenos eletromagnéticos como a luz. Formalmente, no eletromagnetismo os campos
existem na forma de campo magnético e campo elétrico distintamente.
192
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 8.2: a) Representação de relevo em termos de curvas de nível. b) Imagem de um terreno cultivado. Note que o
processo de aragem deve seguir essencialmente paralelo às curvas de nível da topografia da área para evitar
erosão do solo.

A Fig. 8.2a mostra uma mapa de relevo em termos de suas curvas de nível. Cada linha
corresponde a uma altitude determinada. Note que as linhas sempre formam caminhos
fechados. Isso é bastante útil em termos de representação, pois podemos ter uma boa
apreciação do terreno de forma quase imediata. Quando uma ampla região não possui linhas
indica área plana enquanto que linhas bem juntas representam terrenos íngremes. Os
menores caminhos fechados representam os picos do terreno. Curvas de nível são bastante
úteis na agricultura, determinando a forma como a aragem é feita (Fig. 8.2b) de forma a evitar
prejuízos com a erosão pluvial do solo. Curvas de nível isobáricas também são bastante
utilizadas em mapas meteorológicos.

As linhas de força possuem função análoga. Elas também ajudam a indicar a distribuição
de campo ao redor de um objeto, que nem sempre é simples, de forma a ser facilmente
interpretada.

Fig 8.3: Representação por meio de linhas de força dos campos gravitacional, gerado pela Terra, e elétrico, gerado
por um elétron.

A Fig. 8.3 mostra uma representação dos campos gravitacional, gerado pela Terra, e
elétrico, gerado por um elétron por meio de linhas de força. Se uma massa (ou carga) se
aproximar da Terra (ou elétron) as linhas de força indicam a direção em que a força de
interação será exercida. Além disso, quanto mais próximas as linhas, umas das outras, mais
forte é o campo. A Fig. 8.4 foi idealizada para representar bidimensionalmente a deformação
do espaço de acordo com a teoria da relatividade geral. Note novamente a importância das
linhas para a percepção da deformação. Fazendo uma analogia aproximada, também podemos

193
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interpretar a imagem de outra forma, considerando que as linhas radiais representam


bidimensionalmente as linhas de força do campo gravitacional terrestre. As linhas ortogonais
às linhas de força (circulares) são curvas de nível do potencial gravitacional terrestre65. Isso
mostra essencialmente a diferença entre linhas de força e curvas de nível: as forças são
ortogonais a essas últimas66.

Fig. 8.4: Representação da deformação do espaço devido à presença da Terra.

No caso de uma massa ou carga isolada, a representação das linhas de força é bem
simples. Mas essa representação pode ficar mais complexa para sistemas mais sofisticados. A
Fig. 8.5 mostra as linhas de campo ao redor de quatro cargas, duas positivas e duas negativas,
em um sistema conhecido como quadrupolo.

Fig. 8.5: Linhas de força elétricas geradas por um quadrupolo.

O caso elétrico difere do gravitacional devido à carga. Massa sempre atrai massa, mas a
interação de atração ou repulsão elétrica depende da carga. Note na Fig. 8.3b que as linhas de
força apontam para o elétron, que possui carga negativa. Coloquialmente falando podemos

65
Porém nesse caso, o intervalo entre as curvas de nível consecutivas varia.
66
Compare as Figs. 7.2 e 7.4 e reflita sobre isso.
194
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dizer que as linhas de força apontam “para dentro” quando as cargas são negativas. No caso
positivo as linhas de força apontam “para fora”, como podemos observar na Fig. 8.5. Outra
forma de dizer é que as linhas de força “nascem” nas cargas positivas e “morrem” nas cargas
negativas. As linhas de força nos ajudam então a compreender as forças de atração e repulsão
entre as cargas.

Mais interessante ainda são as linhas de campo magnético. O magnetismo está


intimamente relacionado com a eletricidade. Quando um elétron se move, ele produz campo
magnético. Uma corrente elétrica passando por um fio condutor pode ser modelado como um
fluxo de elétrons em uma direção e sentido determinados, gerando um campo magnético bem
definido, conforme ilustrado na Fig. 8.6. Note que o campo circula ao redor do fio.

Fig. 8.6: Linhas de força magnéticas geradas pela corrente elétrica U em um fio condutor.

Não existe o análogo à carga para este caso, ou seja, não há monopolo magnético. Por
isso, as linhas de força magnética nunca nascem ou morrem, mas sempre se apresentam como
um caminho fechado.

Fig. 8.7: Linhas de força magnética produzidas por um ímã representadas de forma a) esquemática e b)
experimentalmente por meio de limalhas de ferro. c) e d) idem para uma espira de corrente elétrica. Note a
semelhança do padrão gerado.

A Fig. 8.7a mostra de forma esquemática linhas de força geradas por um ímã. Por ser
uma representação esquemática, é comum que os desenhos mostrem as linhas “nascendo” no
polo norte e “morrendo” no polo sul. Em uma representação formal, as linhas continuam por
dentro do corpo do ímã, formando caminhos fechados. Isso ajuda a explicar a magnetização do
ímã, uma vez que todas as linhas se fecham dentro dele, há uma grande concentração dessas
linhas em seu corpo e, portanto, um forte campo magnético. A Fig. 8.7b é uma imagem
195
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experimental que procura ilustrar o conceito de linhas de força magnética de um ímã


permanente. O experimento é feito da seguinte forma: um ímã é mantido embaixo de uma
folha de papel (ou outra superfície pouco susceptível a campos magnéticos) e limalhas de ferro
são espalhadas sobre a folha. A folha é agitada levemente. Com a agitação, há uma
acomodação das limalhas e o padrão resultante é fotografado gerando o aspecto da imagem.
Note a grande semelhança entre esse padrão e a representação das linhas de força da Fig.
8.7a.

Podemos fazer aqui uma interessante observação do ponto de vista ontológico. Michael
Faraday foi tão influenciado por esse tipo de experimento ilustrado na Fig. 8.7b que ele
modelava seus experimentos utilizando as linhas de força67. Em contrapartida, James Maxwell,
quando publicou seus trabalhos seminais em eletromagnetismo, acreditava que os campos
elétrico e magnético eram diferentes manifestações do éter. Hoje existem modelos quânticos
para os campos. Note que a contribuição de cada cientista continua sendo levada em conta,
mesmo sendo baseados em ontologias distintas e muitas vezes incompatíveis. Já vimos isso
quando discutimos sobre a teoria do calórico e a concepção atual de energia térmica no Cap.
2. Hoje aprendemos as teorias desenvolvidas por estes personagens, porém recontados de
acordo com os valores epistemológicos dominantes atuais.

A Fig. 8.7c mostra de forma esquemática as linhas de força magnéticas geradas por uma
espira de corrente elétrica. É evidente a semelhança com a representação das linhas de força
de um ímã, e isso não é coincidência. De fato, se um elemento que produz campo magnético
for ocultado dentro de uma caixa de papelão, de forma que apenas a sua manifestação seja
perceptível, não é possível distinguir se o campo é originário de um material magnetizado ou
de uma corrente elétrica. A fig. 8.7d mostra o experimento com as limalhas de ferro referente
à distribuição de linhas de força representadas em 8.7c.

Interessante notar que em um fio condutor retilíneo, as linhas de força circulam o fio
(Fig. 8.6), ao passo que se curvarmos o fio na forma de uma espira circular, as linhas de força
se alinham dentro da espira e, de forma coloquial, que se pode dizer que a corrente elétrica
circula as linhas de força (Fig. 8.7c). Na verdade, os modelos mais aceitos do eletromagnetismo
demonstram que uma coisa é consequência da outra.

O experimento do ímã caindo no tubo mostrado na Fig. 8.1 evidencia de forma bem
clara a natureza interdependente dos fenômenos elétricos e magnéticos e justifica o termo
comumente usado de “eletromagnetismo”. Muito se fala sobre a lei de “ação e reação” e o
experimento pode ser interpretado sob esse ponto de vista. Mas antes de analisarmos o
experimento em si, vamos analisar um caso mais simples, em que um ímã é aproximado de
uma espira de corrente, como mostrado na Fig. 8.8a. O fenômeno envolvido no experimento
do ímã caindo no tubo (Fig. 8.1) é praticamente o mesmo do ilustrado na Fig. 8.8, onde um ímã
é aproximado de uma espira condutora. Sabe-se, a partir de experimentos realizados com a
ajuda de um amperímetro, que há uma corrente elétrica gerada nesse caso. Em outras
palavras, a aproximação do ímã induz uma corrente elétrica na espira conforme ilustra a Fig.

67
Acreditar que, como no caso desse experimento, as limalhas se aglutinam ao longo de linhas de força
reais, seria análogo a acreditar que as estrelas se aglutinam ao longo de “linhas de força gravitacionais”
que definem os braços espirais de uma galáxia. Esses comportamentos são normalmente explicados
sem o uso de linhas de força.
196
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

8.8b. A lei que descreve esse fenômeno é hoje conhecida por “lei de indução de Faraday”, em
homenagem a Michael Faraday que foi um dos pioneiros no estudo desse fenômeno. Note
que, conforme o ímã se aproxima da espira, aumenta o número de linhas de força que passa
por dentro da espira. Para Faraday, a corrente elétrica é gerada à medida que as linhas de
campo são cortadas pela espira, ou seja, quando há um aumento da quantidade de campo
magnético passando dentro da espira. Formalmente, chamamos essa quantidade de campo
magnético de “fluxo de campo magnético”. É a variação de fluxo que gera a corrente68. Deve-
se levar em conta que a representação da Fig. 7.8 é simplificada, onde não representamos o
campo gerado pela corrente na espira. Sabemos da Fig. 8.7c e 8.7d que uma corrente elétrica
passando por uma espira gera um campo muito parecido com o campo gerado por um ímã.
Nesse caso, as linhas de campo geradas passariam por dentro da espira na direção do ímã,
gerando uma ação de repulsão entre o ímã e a espira69, ou seja, uma força que tende a resistir
à aproximação do ímã. Esta é a força que faz com que o ímã caia em velocidade reduzida e
constante no experimento do tubo e do ímã descrito na Fig. 8.1. Veremos mais adiante como
esse efeito nos ajuda a explicar uma forma de levitação magnética.

a) b)

Fig. 8.8: A lei de indução de Faraday. As figuras (a) e (b) mostram a aproximação do imã em relação à espira,
intensificando o fluxo magnético nesta última. Esse aumento do fluxo induz uma corrente na espira.

A Fig. 8.9 representa uma forma de compreender a interação eletromagnética que


ocorre no experimento descrito na Fig. 8.1.

O tubo na Fig. 8.1 pode ser entendido como uma espira alongada ao longo do seu eixo
de simetria. Assim, conforme o ímã se movimenta ao longo do tubo ele vai produzindo
continuamente correntes elétricas ao longo de diferentes sessões do tubo. Basicamente, o ímã
gera correntes elétricas na seção logo abaixo dele, praticamente da mesma forma em que
descrevemos a geração de corrente elétrica no contexto da Fig. 8.8 para o caso da espira de
corrente. Interessante notar que na parte imediatamente superior ao ímã, correntes são
geradas no sentido contrário. Lembre-se, é a variação de fluxo que gera a corrente. Na parte
superior, há uma variação no sentido de mais intenso para menos intenso. Em termos

68
Como ficará mais claro adiante, seria mais adequado dizer o aumento de fluxo induz uma tensão
(diferença de potencial elétrica ou voltagem) na espira, e essa tensão gera a corrente. A lei de indução
de Faraday correlaciona a variação de fluxo magnético com a tensão. Para o efeito prático nessa
discussão, a corrente é induzida pela aproximação do ímã. Porém é importante chamar a atenção da
forma estrita da lei, pois em uma espira aberta, a tensão se manifesta, mas a corrente não.
69
Semelhante a tentar aproximar polos iguais de dois ímãs diferentes.
197
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

magnéticos, a corrente elétrica abaixo do ímã gera um campo que repele o ímã e a corrente
acima gera um campo que atrai o ímã (veja a representação dessa interação no lado direito da
Fig. 8.9). Ambas as correntes contribuem para resistir ao movimento no ímã. Há uma relação
de equilíbrio entre a força peso do ímã, que o impele para baixo e as forças magnéticas entre o
ímã e as correntes induzidas. Se por um lado, a gravidade tende a aumentar a velocidade de
queda, esse aumento significaria uma intensificação da variação de fluxo, o que aumentaria as
correntes e as forças magnéticas. Logo, o sistema atinge um equilíbrio e o ímã se movimenta
em velocidade constante ao longo da queda dentro do tubo.

Fig. 8.9: Representação esquemática da interação eletromagnética que ocorre no experimento descrito na Fig. 8.1.
À direita uma interpretação das forças magnéticas em atuação no fenômeno representadas apenas com ímãs.
Lembrem-se, polos opostos se atraem e polos iguais se repelem.

Interessante notar o aspecto energético do processo. Conforme o ímã cai, ele vai
perdendo energia potencial gravitacional. Por outro lado, sua queda é lenta e em velocidade
constante. Logo, ele não ganha energia cinética. O que está acontecendo com a energia? Note
que correntes elétricas são geradas no tubo. Porém o tubo possui uma resistividade, ou seja,
sua condutividade não é perfeita. Assim, apesar das correntes induzidas, a reação à queda no
ímã não é perfeita e a energia vai sendo dissipada eletricamente no tubo por aquecimento
Joule70. O que aconteceria se o tubo fosse supercondutor? Veremos isso mais adiante.

Se você for procurar sobre a lei de indução de Faraday nos livros e na internet, muito
provavelmente encontrará uma ilustração muito parecida com a Fig. 8.8, ou seja, a
representação de um ímã interagindo com uma espira de corrente. Isso porque o fenômeno é
descrito pela lei de indução de Faraday que está relacionada com o fluxo de campo magnético.

70
Um material que possui resistividade elétrica, quando atravessado por uma corrente elétrica, dissipa
energia na forma de calor. Para uma dada corrente fixa, quanto maior a resistência, maior a dissipação
de calor. Essa forma de dissipação energética e chamada de dissipação Joule, em homenagem a James
Prescott Joule, que foi pioneiro no estudo desse fenômeno. O cobre é um material que possui ótima
condutividade, por isso é usado na confecção de cabos elétricos. Mas mesmo assim possui uma
resistividade não nula, apresentando dissipação Joule.
198
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Se uma variação de fluxo de campo ocorrer em um circuito condutor fechado, podemos


observar uma corrente elétrica induzida. Vimos que podemos entender o fluxo de campo
como o número de linhas de força que passa pela área interna delimitada pelo circuito.
Podemos variar esse fluxo de diversas formas: variando a intensidade do campo magnético,
variando o tamanho do circuito, ou mudando a orientação do circuito em relação ao campo,
conforme ilustra a Fig. 8.10.

Fig. 8.10: Possíveis maneiras de obter uma variação de fluxo de campo magnético em um circuito condutor
fechado de forma a gerar uma corrente induzida. Observe que na última alteração, apenas reorientar a espira em
relação ao campo fez com que o fluxo de campo variasse do seu valor total para zero. Como veremos adiante, esse
efeito é muito utilizado em motores e geradores elétricos.

A lei de indução de Faraday pode ser representada pela equação:

∆´
³=− (8.1)

onde ³ é a força eletromotriz gerada no circuito elétrico, ∆µ é a variação de fluxo magnético


que passa pelo circuito e Δ` é a variação do tempo. Note que a variação de fluxo está
relacionada com a área interna do circuito e com a intensidade do campo de forma que a ela
pode ser representada o produto da área interna do circuito (A) e a intensidade do campo
magnético (B), ou seja, ∆µ = ΔŠŒ :
∆&’‰'
³=− (8.2)

Dizemos aqui que a lei de indução de Faraday pode ser representada dessa forma, pois a
eq. 8.2 descreve de forma satisfatória apenas casos específicos, onde a área dos circuitos é
facilmente conhecida, a distribuição de campo é uniforme, assim como a orientação entre o
campo e o circuito. A eq. 8.2 é inútil para casos irregulares. A formulação mais geral de lei de
Faraday faz uso de ferramentas de cálculo diferencial e integral que não é o foco desse livro.
Além disso, existe uma ferramenta muito útil em física que trata área como um vetor. Nesse
caso, o tratamento do terceiro caso da Fig. 8.10, em que a orientação do circuito muda em

199
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

relação à direção do campo magnético pode ser elegantemente tratada com produtos
escalares entre vetores correspondentes à área do circuito e ao campo magnético.

É interessante chamar a atenção novamente para o fato de que as ilustrações da lei de


indução de Faraday normalmente fazem uso de uma espira de corrente circular. Como vimos,
isso é útil do ponto de vista didático, pois o fluxo magnético está relacionado com a área
interna do circuito e podemos determinar facilmente a área interna de um círculo. Mas isso
também ilustra o caráter utilitário de ciência, ou seja, muitas vezes a ciência é vista como um
processo em que adquirimos conhecimento sobre a natureza, de forma que podemos utilizá-la
a nosso favor. Nesse sentido, as espiras de corrente das ilustrações da lei de Faraday,
representam a quintessência de um circuito elétrico (ou parte dele), onde a corrente gerada
será utilizada para um fim prático. Mas nem sempre as correntes geradas por indução ocorrem
em um circuito determinado, é utilizada ou até mesmo desejada. A Fig. 8.11 mostra um caso
muito semelhante ao mostrado na Fig. 8.8, onde a diferença essencial é que, ao invés do ímã
se aproximar de uma espira de corrente, ela se aproxima de uma placa condutora. Ora, assim
como o caso ilustrado na Fig. 8.1 onde podemos considerar o tubo de cobre como uma espira
contínua ao longo do eixo vertical, podemos considerar uma placa condutora como uma
continuidade de circuitos elétricos distribuídos em um plano, dando possibilidades infinitas
para a mobilidade eletrônica de reagir à variação de fluxo magnético. Seguindo os mesmos
princípios físicos da lei de indução de Faraday, a variação de fluxo gerará correntes em forma
de vórtices no material condutor.

a) b)

Fig. 8.11: Correntes de Foucault induzidas em uma chapa condutora devido a aproximação de um ímã.

As correntes induzidas não percorrem um circuito determinado, por isso, dificilmente


essas correntes são aproveitadas. As correntes produzidas dessa forma são designadas pelo
termo específico de “correntes de Foucault”71, e assim como no caso da espira, surgem de
forma a gerar um campo magnético contrário ao campo do ímã, resultando em uma forma de
repulsão. Nesse caso, se o ímã ilustrado na Fig. 8.11 estiver em queda livre, essa queda seria
amortecida pelas correntes induzidas na placa condutora72. Nesse sentido, lembrando o caso
da queda do ímã no tubo ilustrado na Fig. 8.1, sendo este constituído de uma superfície
condutora contínua, é possível assumir que parte do fenômeno observado seja também

71
Nos países de língua inglesa, como os EUA, essas correntes são conhecidas como “eddy currents” que
é um termo derivado da mecânica de fluídos, onde o termo “eddy” pode ser traduzido por “vórtice”
(não é o nome de uma pessoa).
72
Veja vídeo no youtube https://www.youtube.com/watch?v=BVnslCGagnw
200
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

explicado pela geração de correntes de Foucault, e não somente as correntes induzidas que
circundam o perímetro do tubo, como mostra o esquema simplificado da Fig. 8.9. Vemos que,
tanto no caso do ímã em queda dentro do tubo, quanto o caso de um ímã em queda sobre
uma placa condutora, as correntes induzidas tem uma ação de contrabalancear a força da
gravidade, e as correntes induzidas dissipam a energia da queda. Mas agora voltamos a uma
pergunta já formulada no caso do tubo. E se o material do tubo e da placa fossem
supercondutores? Um material supercondutor não apresenta resistência elétrica e, portanto,
não há transformação de energia em calor. Nesse caso, o contrabalanço entre as forças
magnéticas e gravitacionais são estáveis e constantes. Essa é uma forma de entender porque
um ímã flutua sobre um material supercondutor e o chamado efeito Meissner73.

Fig. 8.12: Imã levitando sobre um material em estado supercondutor ilustrando o efeito Meissner.

As principais aplicações das correntes de Foucault estão relacionadas com a dissipação


de energia, como sistemas de frenagem de trens e montanhas russas. A Fig. 8.13 mostra o
sistema de frenagem Foucault de um trem bala japonês. Nesse sistema, um disco de material
condutor não ferromagnético é acoplado ao eixo das rodas do trem (em cor marrom na
figura). Envolvendo parcialmente o disco, podemos observar um eletroímã. No momento em
que o condutor do trem aciona o freio, o eletroímã é acionado gerando um campo magnético
no disco. Esse campo induz correntes de Foucault no disco dissipando a energia cinética do
trem.

Fig. 8.13: Foto de um freio do tipo Foucault em um trem bala japonês da marca Shinkansen série 700. Esse sistema
de freios foi atualmente substituído por freios regenerativos.

73
A supercondutividade possui diferentes formas e o efeito Meissner é um efeito complexo. Aqui a
explicação do efeito é apresentada apenas de forma simplificada.
201
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Até agora, vimos a relação entre magnetismo, corrente elétrica e força mecânica no
tratamento da lei de indução de Faraday. Esta trata o fenômeno focando mais no contexto de
circuitos elétricos sob a manifestação da força eletromotriz. Mas podemos focar nossa análise
no aspecto da força mecânica como na Fig. 8.14. Em uma análise preliminar, o importante é
notar que, quando cargas elétricas se movimentam (corrente elétrica) em uma região do
espaço onde existe campo magnético, há uma força resultante74, e a relação entre essas
grandezas não é trivial.

Fig. 8.14: Força de Lorentz agindo em um fio elétrico de comprimento M com corrente U passando sobre um polo de
um ímã que gera um campo Œ. Veja esse efeito demonstrado no vídeo
https://www.youtube.com/watch?v=97gncL-3RRo&t=

De forma mais detalhada, Fig. 8. 14 ilustra um fio condutor de comprimento M por onde
passa uma corrente elétrica U que se encontra muito próximo ao polo norte de um ímã.
Analisamos o caso de um fio próximo ao polo do ímã para que possamos considerar o campo
magnético Œ·¸ uniforme. Nesse caso também, consideramos que a corrente elétrica flui em uma
direção ortogonal ao campo magnético. Todas essas condições especiais são necessárias para
que possamos simplificar o modelo e dispensar cálculos mais complexos e desnecessários
conceitualmente. Podemos quantificar essa força por meio de uma lei física denominada força
de Lorentz, cuja expressão, para esse caso, é dada por

= UMΠ(8.3)

É interessante notar que em muitos casos é razoável considerar que a corrente elétrica U
é formada por uma quantidade de elétrons que formam, em conjunto, uma carga total ¦ que
se desloca no espaço com uma velocidade . Sendo assim, a força de Lorentz também pode
ser escrita da forma abaixo, indicada aqui pois se aproxima um pouco mais da forma geral da
expressão geral da força de Lorentz e será útil mais adiante:

=¦ Œ (8.4)

Indicados na Fig. 8.12 estão a direção e sentido da força resultante, bem como sua
relação com as direções e sentidos da corrente elétrica e do campo magnético. Estas relações
são previstas pela expressão geral da força de Lorentz e mostram como o eletromagnetismo

74
Salvo configurações específicas onde a força resultante é nula.
202
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

pode ser não intuitivo75. É compreensível que o leitor não se sinta confortável com a eq. 8.3.
Para muitos, trata-se de uma informação sem qualquer suporte em conhecimentos tácitos ou
prévios, mas trata-se de um fenômeno que pode ser facilmente demonstrado em um
experimento caseiro, como veremos adiante.

Fig. 8.15: Diagrama esquemático que ilustra o princípio de funcionamento de um motor elétrico. Mostramos
apenas as partes conceitualmente relevantes. Por exemplo, suprimimos parte do circuito ao qual a espira está
ligada, e fonte da corrente não é indicada, bem como os mancais e suportes que determinariam e sustentariam o
eixo de rotação do motor.

A Fig. 8.15 sofistica o sistema mostrado na Fig. 8. 14, mostrando uma espira retangular
de comprimento M, por onde passa uma corrente U. A partir do que aprendemos com a força de
Lorentz, podemos concluir que a corrente passando em sentidos opostos na parte superior e
inferior da espira resulta em forças em direções opostas gerando um torque, ocasionando o
movimento de rotação da espira76. Podemos dizer que a Fig. 8.15 mostra o principio de um
motor elétrico, onde aplicamos uma corrente elétrica em um circuito e obtemos força
mecânica como resultado77. Apesar de o princípio de um motor estar apresentado na Fig. 8.15,
este seria bastante ineficiente. Note, por exemplo, que a espira tem apenas uma volta. Se
fizéssemos uma espira com duas voltas, teríamos duas vezes a corrente U, e a força resultante
seria dobrada. Então, porque não 10 ou 100 voltas? Daí entendemos porque vemos grande
volume de cobre nos motores elétricos, normalmente na forma de enrolamentos com grande
número de voltas. Além disso, materiais magnéticos especiais podem ser incluídos para que o

75
A dedução da eq. 8.3 a partir de pressupostos mais básicos foge do escopo desse livro. Normalmente
essa dedução passa pela eq. 8.4 para depois chegar na eq. 8.3. Como já dito, um dos objetivos desse
livro é fornecer uma narrativa alternativa, que permita o aluno ingressante correlacionar o conteúdo do
livro com seu conhecimento do mundo mesmo que este ainda não seja adequadamente formalizado.
Dito de outra forma, é importante que o estudante viva intuitivamente as explicações do livro. Entender
é diferente de aceitar uma informação. Porém, quando o assunto é eletromagnetismo isso é bem mais
difícil. Por isso, a sugestão de que nesse caso, se o leitor não conseguir respaldo em seu conhecimento
previamente adquirido ou tácito, ele apenas aceite neste momento, e permita que as informações
dadas aqui se conectem à sua teia de conhecimentos posteriormente.
76
O leitor mais atento pode argumentar que o mesmo raciocínio pode ser aplicado nas laterais menores
da espira, onde a corrente sobe e desce. Nesse caso, também ocorre o aparecimento de forças em
direções opostas, porém nesse caso não há torque resultante (as forças são coplanares).
77
Veja o vídeo que mostra uma montagem simples de um motor elétrico que pode ser considerado um
experimento caseiro para corroborar a força de Lorentz descrita na eq. 8.3 e nas Figs. 8.14 e 8.15.
https://www.youtube.com/watch?v=97gncL-3RRo&t=
203
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

campo magnético Œ seja intensificado, de onde entendemos porque os motores elétricos são
tão massivos (pesados). Como regra geral, espaços vazios em um motor elétrico significam
perda de eficiência.

Fig. 8.16: Diagrama esquemático ilustrando um gerador elétrico simples. Assim como na Fig. 7.13, mostramos
apenas as partes conceitualmente relevantes.

Como já havíamos visto na Fig. 8.10, no contexto da lei de indução de Faraday, uma das
formas de se obter corrente induzida em uma espira de corrente é girá-la em relação a um
campo magnético. Nesse ponto é interessante ressaltar a comparação entre o motor e o
gerador elétrico. O princípio básico em que funcionam pode ser mostrado usando-se sistemas
muito parecidos, como pode ser verificado comparando-se a Fig. 8.16 com a Fig. 8.15. A Fig.
8.16 ilustra o princípio básico de um gerador. De forma representativa, a manivela indica que a
espira é submetida, por força externa, a uma rotação na presença do campo magnético. A
rotação da espira faz com que haja uma variação de fluxo de campo, gerando uma corrente
induzida no circuito. Note a semelhança entre o motor e o gerador (Fig. 8.15 e Fig. 8.16). No
primeiro, aplicamos corrente e obtemos força mecânica, enquanto que no segundo, aplicamos
força mecânica e obtemos corrente78. Vemos dessa forma que existe uma relação bastante
íntima entre a lei de indução de Faraday e a força de Lorentz.

8.3 – Aprofundamento: A relação entre força de Lorentz e lei de indução de Faraday

O que veremos aqui pode ser interpretado como uma evidência de que os modelos
físicos e as leis da física fazem parte do empreendimento humano. Cabe ao cientista, usando a
observação do mundo e a experimentação, verificar se o modelo é adequado ou não. Como
vimos em capítulos anteriores, muitos modelos foram criados baseados em pressupostos
como o do éter ou calórico e depois abandonados frente a novas evidências observacionais.
Outros são adaptados.

78
Existe uma sutileza para quem se especializa na área de física ou engenharia elétrica: a lei de indução
de Faraday envolve a força eletromotriz (tensão elétrica), enquanto que a força de Lorentz é
proporcional a corrente. No texto falamos apenas em correntes elétricas de forma a facilitar a
assimilação fenomenológica, uma vez que tensão e corrente elétrica são proporcionais em circuitos
simples.
204
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Pretendemos mostrar aqui a relação que existe entre a força de Lorentz e a lei de
indução de Faraday. Como já mencionamos, uma envolve a força eletromotriz e a outra a força
mecânica. Mas a análise que faremos aqui vai além de comparar essas duas leis. Chamaremos
a atenção para o aspecto da construção das leis da física. Se os modelos que geram essas leis
são bons, os resultados são consistentes entre si. Essa é uma das principais razões para o
sucesso da física.

Mas para que essa análise seja possível, se faz necessário esclarecer a relação entre
força mecânica e força eletromotriz. Essa relação foi estabelecida no séc. XIX, quando os
cientistas trabalhavam com a premissa da lei de conservação de energia, onde esta poderia se
manifestar de várias formas e ser convertida de uma forma para a outra.

Fig. 8.17: Duas placas carregadas eletricamente gerando uma diferença de potencial elétrica 9. Um objeto
carregado negativamente seria repelido pela placa negativa e atraído pela positiva, gerando uma força resultante
. Para facilitar o argumento, supomos que a carga do objeto é de 1 coulomb.

A Fig. 8.17 considera o caso de duas placas carregadas eletricamente com cargas
opostas e que estão próximas uma da outra. Sabemos que nesse caso há uma tensão elétrica ³
entre as duas placas, pois as cargas positivas e negativas se atraem. Considere um objeto
carregado negativamente posicionado entre as placas79. Pela própria natureza das interações
elétricas, esse objeto será repelido pela placa negativa e atraído pela placa positiva, gerando
uma força que atua no objeto na direção desta última. Note que se alguém quisesse levar
esse objeto da placa positiva até a carga negativa, teria que exercer trabalho mecânico de uma
força ao longo de uma distância . Pois a definição de tensão elétrica se baseia justamente
nesse trabalho realizado, sedimentando a ponte entre energia elétrica e mecânica. A tensão
elétrica ³ é o trabalho realizado para levar 1 coulomb (C) de carga de uma placa a outra, ou
seja,

³= (8.5)

Mas note que consideramos o caso especial onde a carga do objeto é de 1 C80. Existe a sutileza
de que a tensão elétrica é definida em termos de trabalho por unidade de carga ¦. Portanto,
de forma mais geral,
P
³= ¹
(8.6)

79
Suponha que a massa desse objeto é desprezível de forma que as forças gravitacionais possam ser
desprezadas. Estamos focando apenas no fenômeno elétrico.
80 18
1 coulomb equivale a uma quantidade enorme de elétrons. Para ser mais específico, 6,242×10
−5
(1,036×10 mol) de elétrons.
205
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Onde fica evidente a relação entre tensão elétrica81, trabalho (energia) e força mecânica.

Agora que essa relação está estabelecida, vamos analisar outro problema, ilustrado na
Fig. 8.18. No sistema em questão, há um condutor elétrico (como um fio de cobre) em forma
de um “c” comprido e de ângulos retos. Sobre esse fio existe uma barra condutora “ab” de
forma a fechar uma espira retangular de largura e comprimento M. A barra desliza sobre o
condutor em “c” com uma velocidade constante , de forma que o comprimento M da espira
esteja variando com o tempo. Além disso, esse circuito está sob a influência de um campo
magnético uniforme e constante Œ que é ortogonal ao plano do circuito e aponta para “fora da
página” conforme ilustração da Fig. 8.1882.

Fig. 8.18: Diagrama esquemático de um sistema formado por uma espira retangular cuja área interna varia com o
tempo e que está sob influência de um campo magnético.

Podemos analisar esse sistema sob o ponto de vista, tanto da lei de Faraday quanto da
força de Lorentz. O objetivo é mostrar que os resultados são consistentes entre si.

Do ponto de vista da lei de indução de Faraday, podemos notar que o sistema apresenta
uma espira com uma variação de fluxo magnético, de forma análoga ao caso da Fig. 8.10 onde
há uma variação do tamanho do circuito, que possui um formato retangular de largura e
comprimento M. Podemos dizer que a área do circuito Š é dado por:

Š=M (8.7)

Como a área está mudando, temos que o fluxo de campo magnético também está. Logo
uma tensão elétrica é induzida do circuito retangular dando origem a uma corrente elétrica U
ilustrada na Fig. 8.18. Usando a lei de indução de Faraday como expressa na eq. 8.2, temos:
∆&’‰' ∆&’:y'
³=− = (8.8)
∆ ∆

Dos parâmetros Œ, e M, apenas o parâmetro M varia com o tempo, então podemos


reescrever a eq. 8.8 da forma:

81
Tensão elétrica, voltagem são sinônimos. Outro sinônimo é força eletromotriz, e o exemplo discutido
ilustra bem a origem do termo.
82
A escolha dos parâmetros como um circuito retangular, um campo magnético uniforme e ortogonal,
uma velocidade constante etc, é motivada para que os cálculos sejam simples. Pode-se demonstrar o
mesmo princípio a partir de parâmetros mais gerais.
206
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

∆:
³ = −Œ (8.9)

Ou seja, a tensão induzida depende da taxa de variação do comprimento M com o tempo


definido pela razão ∆M⁄∆`. Nós sabemos que essa taxa de variação é dada pela própria
construção de nosso sistema é representada pela velocidade . Logo:

³ = −Œ (8.10)

Agora vamos analisar o sistema sob o ponto de vista da força de Lorentz deixando de
lado o desenvolvimento feito a partir da lei de Faraday que se expressa pelo desenvolvimento
das eq. 8.7 à 8.10.

Como vimos na eq. 8.4, a força de Lorentz pode modelar o caso de cargas elétricas que
se deslocam na presença de campo magnético. Ao observarmos o sistema em questão,
podemos notar que há uma coisa que se desloca com velocidade em relação ao campo
magnético: a barra condutora. Em nossa concepção, qualquer material é composto por
átomos, íons, moléculas, que possuem prótons e elétrons, ou seja, cargas elétricas. Há que se
levar em conta que, nesse caso, temos uma barra condutora (como uma barra de cobre, por
exemplo), que possui elétrons livres. Não observaríamos qualquer efeito se a barra fosse de
material isolante, pois, apesar de os prótons e elétrons estarem sob o efeito da força de
Lorentz, essa força não é suficiente para romper as ligações entre os prótons e elétrons do
material (não há elétrons livres). Sendo assim, suponha que na barra há uma quantidade de
elétrons livres que, em conjunto formem uma carga −¦. Note que, estas cargas possuem uma
velocidade em relação ao campo magnético Œ. Logo, haverá uma força Lorentz dada por:

= −¦ Œ (8.11)

Em analogia a Fig. 8.14, podemos notar que a força resultante fará com que os elétrons
se movam na barra na direção do ponto “a” para o ponto “b” dando origem a corrente elétrica
indicada da Fig. 8.18. Daí, podemos notar que tanto a lei de Faraday quanto a força de Lorentz
dão conta de fornecer uma explicação para o surgimento de uma corrente elétrica no circuito.
Porém, a compatibilidade vai além da concordância qualitativa da questão do surgimento da
corrente elétrica, dando conta também da concordância quantitativa. Isso porque sabemos a
correlação entre energia elétrica e energia mecânica dada pela eq. 8.6. Sabemos que a força
em questão é dada pela força de Lorentz expressa pela eq. 8.11 e ela atua ao longo da barra
desde o ponto “a” até o ponto “b”, cuja distância é dada por . Sendo assim,
P P
³= ¹
= − ¹ ¦ Œ = −Œ (8.12)

Note que o resultado da eq. 8.12, obtido a partir da força de Lorentz é idêntico ao
resultado da eq. 8.10, obtido a partir da lei de indução de Faraday. Isso ilustra um dos aspectos
mais belos da ciência. Dois modelos físicos distintos, manifestados em leis distintas são
utilizados para interpretar um mesmo sistema. Partindo de pressupostos estabelecidos ao fim
do séc. XIX e início do séc. XX, de que existe algo que conhecemos por energia, e que esse algo
se manifesta de diferentes formas e apresenta o princípio de conservação. E que o princípio de
conservação é operado a partir de convenções estabelecidas por esse paradigma. Temos que
esses dois modelos físicos distintos apresentam resultados compatíveis. E isso tem se

207
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

mostrado assim para diversos outros sistemas onde há conversão de energia. Muitos
resumiriam este parágrafo com a sentença: a ciência funciona!

8.4 – Aprofundamento: Materiais magnéticos

É quase impossível falar de conversão entre energia mecânica e energia elétrica sem
mencionar os materiais magnéticos. Eles são onipresentes nos motores, geradores e
transformadores elétricos. Note que desde o início desse capítulo discutimos a interação entre
ímãs, circuitos condutores, campos etc.

Há pouca compreensão dos materiais magnéticos pelo público leigo. Um ímã gruda em
uma geladeira e também em uma chave de fenda. Mas a chave de fenda não gruda na
geladeira. Da mesma forma, chaves de fenda normalmente não grudam em parafusos. Por
quê? Poucos sabem a resposta. Outra situação que as pessoas mais observadoras já podem ter
notado. Você pode grudar uma chave de fenda em um ímã, como o da parte traseira de um
alto falante. É comum que, logo após esse processo, a chave de fenda passe a atrair o parafuso
magneticamente, como se fossem ímãs83. Por que esse comportamento passa a se manifestar?
E por que ele desaparece depois de um tempo? Nessa seção, procuramos responder a essas
perguntas, além de justificar a presença dos materiais magnéticos em geradores, motores, e
transformadores.

Primeiramente é necessário entender como os cientistas e engenheiros definem as


diferentes formas do campo magnético. O campo magnético pode simplesmente estar
presente em um dado volume do espaço, como o campo magnético terrestre em um dado
ponto da vizinhança da Terra. Ou, de outra forma, o magnetismo pode ser percebido pelo
estado magnetizado de um ímã. Ou ainda, um dado material pode apresentar um estado
magnético por estar sob influência do campo magnético terrestre ou por um ímã estar em sua
vizinhança.

De forma simples, vamos considerar uma região do espaço onde há um campo


·¸ e a unidade no sistema internacional é
magnético. Denominamos esse campo pelo símbolo L
o Ampere por metro (A/m).

Fig. 8.19: Campo magnético presente em uma região do espaço onde não há material algum (vácuo). A unidade do
campo L ·¸ é dada em A/m. A linha pontilhada representa a fronteira do sistema físico (como discutido no Cap. 1)

83
Se você nunca observou esse efeito veja os vídeos no youtube
https://www.youtube.com/watch?v=54erzdvTWsU&t= e https://www.youtube.com/watch?v=K3fW-
mo_Tb4&t=
208
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Agora imagine que nessa região do espaço onde há o campo L ·¸, introduzimos um corpo
composto de um dado material. Qualquer corpo, de qualquer material que seja, reage ao
campo de alguma forma. Essa reação ao campo é chamada de magnetização, que é
··¸ e também possui a unidade de A/m no SI.
representada pelo símbolo †

·¸ . Com o processo de magnetização do


Fig. 8.20: Um corpo de um material é colocado em uma região com campo L
corpo, surge um campo † ··¸ no interior do material.

A forma mais simples de representar essa relação entre campo aplicado e magnetização
se dá por meio da expressão:

··¸ = »L
† ·¸ (8.13)

Onde » é chamada de susceptibilidade magnética do material. Embora cada material


apresente uma magnetização distinta, por experiência, os cientistas notaram que as formas de
magnetização poderiam ser divididas em tipos diferentes de magnetismo, sendo os mais
comuns o diamagnetismo, o paramagnetismo e o ferromagnetismo84. Entendendo-se essas
três formas pode-se ter uma boa compreensão da relevância dos materiais magnéticos em
inúmeras facetas da tecnologia. Aqui apresentaremos a descrição dessas formas de
magnetismo de maneira simples e fenomenológica.

A Fig. 8.21 mostra de forma esquemática a diferença entre os três principais tipos de
magnetismo. Os materiais diamagnéticos apresentam magnetização muito pequena e na
direção oposta ao campo aplicado. Em outras palavras, a susceptibilidade magnética dos
materiais diamagnéticos é negativa e muito pequena. Já a susceptibilidade dos materiais
paramagnéticos é pequena e positiva. A susceptibilidade do material ferromagnético por sua
vez, além de positiva, é ordens de grandeza maior (muito, muito maior) do que os materiais
paramagnéticos, e é esse um dos principais motivos pelos quais esses materiais são
importantes para a tecnologia das máquinas elétricas. A susceptibilidade é tão maior, que
mesmo pequenas intensidades de campo aplicado são capazes de causar intensa
magnetização do material.

84
O leitor mais informado pode sentir falta das menções ao ferrimagnetismo e ao antiferromagnetismo.
Para os efeitos desse livro, consideramos estas como “formas irmãs do ferromagnetismo” não sendo
necessário entrar no mérito da diferenciação nesse ponto. De fato, a diferenciação entre
ferromangetismo e ferrimagnetismo é recente e ocorreu devido aos trabalhos de Louis Néel em 1948, o
que mostra que do ponto de vista fenomenológico, as duas formas de magnetismo são muito
semelhantes. O mesmo pode ser dito do antiferromagnetismo.
209
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

a) Diamagnetismo b) Paramagnetismo c) Ferromagnetismo

Fig. 8.21: Diagrama esquemático ilustrando os três principais tipos de magnetismo. a) Diamagnetismo: a
magnetização é muito pequena e no sentido oposto ao campo aplicado. b) Paramagnetismo: a magnetização
pequena e no mesmo sentido do campo aplicado. c) Ferromagnetismo: a magnetização é muito grande e no
mesmo sentido do campo aplicado.

Os materiais ferromagnéticos são mais do que materiais “paramagnéticos muito bons”.


Seu comportamento de magnetização é essencialmente diferente dos demais. Enquanto as
susceptibilidades dos materiais diamagnéticos e paramagnéticos possuem comportamentos
essencialmente lineares, a susceptibilidade dos materiais ferromagnéticos, além de ser muito
maior, não é linear, e apresenta um fenômeno muito interessante denominado histerese que
veremos em detalhes mais adiante. A efetividade dos materiais ferromagnéticos em suas
aplicações tecnológicas, que vão além das máquinas elétricas, sendo também essenciais para
sensores e atuadores, sem mencionar toda a tecnologia de armazenamento de dados digitais
de computadores, pode ser resumida na engenharia de seus processos de magnetização e
histerese. Mas antes de conversarmos sobre isso, é importante definirmos outro tipo de
campo magnético. Embora fundamentalmente não seja necessário, do ponto de vista prático
faz sentido a definição desse novo campo.

Já sabemos como definir o campo no espaço e como um dado material reage ou ser
submetido a esse campo. O que mais resta? Do ponto de vista fundamental, mais nada.
·¸
Acontece que há um terceiro campo magnético denominado campo de indução magnética Œ
que representa a soma das contribuições de L ·¸ e †
··¸. Esse campo ajuda na compreensão das
máquinas elétricas, pois, como vimos é o campo considerado na lei de indução de Faraday. Por
motivos históricos, no sistema internacional sua unidade não é o A/m, mas o Tesla (T). Para
dar conta dessa diferença de unidade, a soma das contribuições de L ·¸ e †
··¸ deve ser
multiplicada por uma constante denominada permeabilidade magnética do vácuo ¼“ .

·¸ = ¼“ &L
Œ ·¸ + †
··¸' (8.14)

A definição do campo Œ ·¸ é útil, pois não importa se o magnetismo provém de um campo


externo ou da magnetização de um material, ele sempre é capaz de induzir correntes elétricas
em circuitos. Logo, as duas contribuições devem ser levadas em conta. Assim como a definição
de entalpia, que leva em conta diferentes contribuições energéticas, ajuda na compreensão de
máquinas térmicas, a definição de Œ ·¸ leva em conta diferentes contribuições de magnetismo e
ajuda no modelamento de máquinas elétricas. Mas a introdução de Œ ·¸ obriga ao aprendiz de
magnetismo a se familiarizar com outras definições e pode adicionar alguns elementos que
costumam causar certas confusões. Podemos usar a eq. 8.13 e reescrever a eq. 8.14 da forma:

Œ ·¸ + »L
·¸ = ¼“ 0L ·¸ 1 = ¼“ &1 + »'L
·¸ (8.15)

210
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Se definirmos

¼ = ¼“ &1 + »' (8.16)

Como sendo a permeabilidade magnética do material, temos

Œ ·¸
·¸ = ¼L (8.17)

O fato da eq. 8.17 ser muito parecida com a eq. 8.13 não é coincidência. Isso porque não
há fundamentalmente um novo efeito físico ocorrendo. Note que ainda estamos descrevendo
um campo no espaço e a magnetização de um material submetido a esse campo. Mas há
·¸, L
certas sutilezas relacionadas às definições dos campos Œ ·¸ e †
··¸.

Vamos rever o comportamento dos diferentes tipos de magnetismo, mas agora sob o
·¸ ao invés de †
ponto de vista do campo Œ ··¸. Vamos reanalisar o simples caso do campo
magnético presente no vácuo, como ilustrado na Fig. 8.17, uma vez que não há material
presente temos:

·¸ = ¼“ L
Œ ·¸ (8.18)

Ou seja, podemos conceber o campo no vácuo como um campo Œ ·¸, mas temos que tomar
·¸ ou L
o cuidado para alterarmos a unidade de A/m para T usando ¼“ . Uma boa forma de visualizar
isso é por meio de um gráfico da relação entre essas grandezas como mostrado na Fig. 8.22. A
relação entre os campos Œ·¸ e L
·¸ sem a presença de qualquer material é mostrado pela linha
reta cinza onde podemos considerar ¼“ como o coeficiente linear da reta. Ou, dito de outra
forma:
½’
¼ = ¼“ &1 + »' = ½¾ (8.19)

Onde nesse caso » é nulo. Agora, o que acontece com Œ ·¸ quando adicionamos diferentes
materiais magnéticos, ou seja, » não nulos à região com campo L·¸?

·¸ e L
Fig. 8.22: Gráfico correlacionando as relações entre os campos Œ ·¸ para os diferentes tipos de magnetismo.

211
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Vimos que no caso de materiais diamagnéticos, » é pequeno e negativo e apresentando


um comportamento essencialmente linear, o que resulta na linha verde da Fig. 8.22. Se o
material é paramagnético (em azul na Fig. 8.22) o resultado é análogo, com a única diferença
que » é positivo. O caso ferromagnético é representado pela linha vermelha, onde » é muito
alto e não linear.

Para entendermos um dos motivos da relevância dos materiais ferromagnéticos, vamos


reescrever a equação da lei de indução de Faraday (eq. 8.2), multiplicando por ΔL em cima e
embaixo e supondo uma área constate:

½’ ½’ ½¾ ½¾
³ = Š • ½ Ž = Š •½¾ ½ Ž = Š •¼ ½
Ž (8.20)

Portanto, materiais com alta permeabilidade magnética (¼), tais como os materiais
ferromagnéticos, potencializam a tensão elétrica induzida em um ambiente onde existe
variação temporal de campo magnético aplicado. Daí a grande utilização dos chamados “aços
elétricos”, que são materiais com altas permeabilidades magnéticas. Isso também explica
porque circuitos de corrente alternada são úteis para se construir máquinas elétricas, uma vez
que correntes elétricas variantes produzem campos magnéticos variantes. A tab. 8.1 mostra a
permeabilidade magnética típica de alguns materiais para comparação. Note que a
permeabilidade magnética depende da pureza e do processo de fabricação do material e
também do regime de campo aplicado (intensidade e frequência) no qual é medido.

Tab. 8.1: Permeabilidade magnética típica de alguns materiais. A permeabilidade relativa é normalizada para o valor
da permeabilidade magnética do vácuo ¼“ .
Meio Permeabilidade ¿ (H/m) Permeabilidade relativa ¿À
vácuo 1,256637x10-6 = ¼“ 1 (por definição)
Ar 1,00000037
Fe ~6x10-3 ~5000
Ni ~7x10-4 ~600
Aço elétrico FeSi (3% de Si) 5x10-3 ~4000
Permalloy (Fe20Ni80) 1x10-2 ~8000

Observe que, para efeitos práticos, o ar possui a mesma permeabilidade magnética que
o vácuo. Isso explica em parte a confusão que existe entre os campos Œ ·¸ e L
·¸ e a troca de
unidades entre eles, até mesmo nas comunidades especializadas.

8.5 – Aprofundamento: Histerese, armazenamento de dados e energia

Como seu computador “se lembra” (armazena) daquela foto que você baixou semana
passada? A resposta está relacionada com a histerese. Ela também é fundamental para a
tecnologia dos aços elétricos usados em motores e transformadores, mas de maneira quase
oposta. Isso porque histerese também está relacionada com a dissipação de energia. Qual é a
diferença essencial entre o aço da sua geladeira e o ímã que está grudado nela? Afinal, ambos
os materiais apresentam uma propriedade magnética especial. A resposta também está na
histerese.

212
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Quem já brincou com ímãs ou consertou alto-falantes pode ter notado um fenômeno
interessante. Os alto-falantes possuem um forte ímã em sua parte posterior. É sabido que
chaves de fenda e parafusos normalmente são constituídos de aços ferromagnéticos. Uma
chave de fenda, ao ser aproximada de um alto-falante acaba grudando nele. Logo após isso
ocorrer ela passa a atrair os parafusos como se a chave de fenda se tornasse, ela mesma, um
ímã permanente85. Por que isso ocorre?

A histerese é importante não só para os materiais magnéticos, mas também existe o


análogo elétrico para o fenômeno, sendo fundamental para a tecnologia dos materiais
piezelétricos. Além disso, podem-se fazer analogias com outras áreas, inclusive sociais. Vamos
focar aqui na histerese do ponto de vista magnético, e de uma forma fenomenológica.

Como vimos na seção anterior, todos os materiais se magnetizam de alguma forma sob
a ação de um campo magnético externo. Procuramos mostrar os diferentes tipos de
magnetização, distinguindo os materiais diamagnéticos, paramagnéticos e ferromagnéticos. O
que não mencionamos, é que certos materiais podem estar magnetizados sem a presença de
um campo externo. Esse é o caso de um ímã. Não é mesmo? Pense bem. Ele possui uma
magnetização manifesta, atraindo parafusos e grudando na geladeira, mesmo sem a presença
de outras fontes de campo magnético. Ele está permanentemente magnetizado. Isso só é
possível devido à histerese, que é uma característica dos materiais ferromagnéticos86.

Para entendermos o que é a histerese, vamos reconstruir na Fig. 8.23, passo a passo a
curva de magnetização dos materiais ferromagnéticos mostrada na Fig. 8.22 em vermelho.

Vamos considerar um material ferromagnético inicialmente desmagnetizado. Ao


aplicarmos um pequeno campo magnético LP em uma dada direção, o material se magnetiza e
apresenta uma indução ŒP , como mostrado na Fig. 8.23a. Se aumentarmos o campo aplicado
para L a magnetização aumentará e o material apresentará uma indução Œ (Fig. 8.23b).
Podemos continuar o processo até obter uma curva similar à curva vermelha da Fig. 8.22. Note
que a indução Œ aumenta indefinidamente com o aumento da intensidade do campo L pois Œ
é proporcional a soma de † e L.

Fig. 8.23: Construindo a curva de magnetização de uma amostra ferromagnética partindo do estado
desmagnetizado.

Podemos representar o mesmo processo, construindo um gráfico da magnetização †


em função do campo aplicado, que fica da forma mostrada na Fig. 8.24.

85
Se você tem ímã, chave de fenda e parafusos em casa, faça o teste. Veja também nota de rodapé 83.
86
Ou de suas “formas irmãs”, os materiais ferrimagnéticos e antiferromagnéticos.
213
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

Fig. 8.24: O mesmo processo de magnetização da Fig. 8.21, porém representado em gráficos de † em função de
L. Note que agora a magnetização de saturação é evidente em (c).

Note que a partir de um dado valor do campo aplicado, o aumento deste não implica em
um aumento da magnetização atingindo a magnetização de saturação †• (Fig. 8.24c). Isso é
uma característica dos materiais ferromagnéticos. Apesar de apresentarem alta
susceptibilidade e altas intensidades de magnetização, essa capacidade satura a partir de um
dado campo. Os valores do campo e da magnetização de saturação variam para cada amostra
e depende de muitos fatores como composição, processo de fabricação, temperatura etc.

Fig. 8.25: A obtenção de uma curva de histerese de uma amostra ferromagnética. Veja a explicação dessa curva em
vídeo https://www.youtube.com/watch?v=K3fW-mo_Tb4

Agora chegamos à questão da histerese. Suponha que, após saturar o material


magneticamente, como na situação da Fig. 8.24c, eu passe a diminuir o campo aplicado L até
zero, sempre registrando a magnetização †. A princípio, eu posso imaginar que a
magnetização diminuirá com a diminuição do campo aplicado seguindo a mesma curva de ida
(a curva de magnetização quando o campo estava aumentando). Mas isso não é o que
acontece com um material ferromagnético típico. Nesse caso, a amostra tenderá a
permanecer magnetizada em certo grau até o ponto em que, quando L chega a zero, a
amostra ainda apresenta uma magnetização remanente †Á , como destacado na Fig. 8.25a.
Isso explica porque a chave de fenda passa a atrair parafusos (a se comportar como um ímã)
depois de grudada no alto falante. Em seu estado inicial, quando está longe do alto falante, a
chave de fenda se encontra desmagnetizada. No momento em que ela gruda no ímã do alto
falante, ela passa pelo processo de magnetização descrito na Fig. 8.24. Após isso, quando ela é
novamente afastada do alto falante, o campo magnético aplicado sobre ela volta a ser nulo,
mas ela passa a apresentar uma magnetização remanente, como mostrado na Fig. 8.25a,
passando a agir como um ímã. A diferença básica entre a chave de fenda magnetizada e o ímã
do alto falante é que a primeira perderá seu estado magnetizado depois de um tempo (podem
ser horas, semanas ou milhares de anos dependendo do material) por fatores essencialmente
térmicos, enquanto que o segundo foi desenvolvido, sob o ponto de vista de engenharia de

214
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

materiais, para que nunca (em princípio) perca sua magnetização depois de sofrer o processo
de magnetização durante sua fabricação.

Na Fig. 8.25a podemos ver a essência da histerese, cujo significado da palavra está
relacionado com “atraso”. Ou seja, mesmo com o campo aplicado já ausente, o material ainda
se encontra magnetizado, como se seu estado representasse uma memória de seu estado
anterior com a presença do forte campo aplicado.

Como vimos no início deste capítulo, o campo magnético possui direção e sentido.
Assim, a amostra é magnetizada em uma direção e sentido. A magnetização remanente
apresenta a mesma direção e sentido do campo aplicado. A curva de histerese completa
envolve a magnetização da amostra em sentidos opostos, ou seja, depois de magnetizar a
amostra em um dado sentido, o campo é continuamente levado a zero e aplicado
progressivamente no sentido oposto. A Fig. 8.25b mostra a curva realizada até o ponto em que
a amostra é saturada no sentido oposto. Se o campo é novamente diminuído até zero, a
amostra apresentará uma magnetização remanente no sentido oposto ao inicial. Novamente,
é como se a amostra se lembrasse “de onde veio”.

Retornando ao exemplo da chave de fenda, o processo análogo ao ilustrado na Fig.


8.25b seria, após encostar a chave no ímã, afastar a chave de fenda, girar a chave (ou o ímã)
em 180º e reaproximar a chave, encostando-a ao ímã novamente. Na primeira aproximação, a
magnetização ocorre em um sentido. Quando a chave é afastada a magnetização remanente
se encontra nesse sentido inicial. No momento em que a chave é invertida e reaproximada,
ocorre uma reorientação total na magnetização da chave no sentido oposto e a magnetização
remanente refletirá este novo sentido de magnetização.

Fig. 8.26: Curva de histerese representada em gráfico de Œ em função de L.

A curva de histerese é concluída retornando o campo novamente a zero e saturando


novamente a amostra no sentido inicial. Note que a curva de magnetização segue uma

215
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

trajetória distinta da curva original, mostrando que o processo de magnetização depende do


estado anterior da amostra. No caso, depende se a amostra encontra-se inicialmente
desmagnetizada ou saturada no sentido oposto.

A Fig. 8.26 ilustra todo o processo de obtenção de uma curva de histerese em gráficos
da indução magnética Œ em função de L.

Devido às suas características, materiais ferromagnéticos são os materiais mais usados


atualmente para armazenamento de dados. Como é sabido, as informações são geralmente
armazenados em uma linguagem binária, representada normalmente por uma sequência de
estados denominados “0” e “1”, que são os bits de informação. Estes bits podem ser
fisicamente determinados por uma variedade de estados discretos: sem buraco ou com buraco
(CDs e DVDs), com carga ou sem carga elétrica (memória flash), com corrente e sem corrente
elétrica (processadores) etc. A parte funcional de um disco rígido de computador é um filme
fino magnético, e neste caso, os bits são correlacionados com direções opostas de
magnetização (Fig. 8.27). Note que, quanto maior a magnetização remanente do filme fino,
mais fácil se torna a leitura da informação gravada. Além disso, quanto mais larga a curva total,
ou seja, quanto mais distante o caminho de ida da curva estiver do caminho de volta, significa
maior estabilidade da informação gravada, pois maior é o campo necessário para reverter a
magnetização do material. Por isso, os filmes finos para gravação magnética são desenvolvidos
de forma a terem a maior área interna possível.

Fig. 8.27: a) Foto de um disco rígido de computador da marca Western Digital com capacidade de 500 GB, com a
mídia magnética exposta. b) Imagem de microscopia de força magnética (MFM) da superfície de um disco rígido de
computador onde os bits estão visíveis. As regiões claras e escuras representam magnetizações em sentidos
2
opostos. A imagem se refere a uma área de 7x7 µm e foi obtida pelo autor no laboratório de pesquisa
multiusuário da UFABC. OBS: o disco rígido de (b) não é o mesmo do ilustrado em (a).

Os materiais magnéticos são também largamente usados em máquinas elétricas,


representadas principalmente por geradores, transformadores e motores elétricos. A aplicação
de materiais magnéticos nessa área é diversificada e complexa, mas em geral, ao contrário dos
filmes finos para gravação magnética, os materiais desenvolvidos devem apresentar o mínimo
de histerese. Isso porque, de forma geral, a histerese representa perda de energia nas
máquinas elétricas. Pode-se demonstrar formalmente que a perda de energia é proporcional a
área interna da curva de histerese. Dessa discussão podemos depreender que há uma relação
216
Draft – Bases Conceituais da Energia – Profs. Jeroen Schoenmaker e João Moreira

fundamental entre informação, aqui contextualizado na análise sobre a memória de


computador, e dissipação de energia. Essa relação possui grande alcance na ciência,
abrangendo a termodinâmica, passando pela tecnologia da informação e está até sendo
bastante discutida atualmente no campo da cosmologia dentro do contexto de buracos negros
e do universo holográfico.

Podemos ilustrar essa relação com um experimento simples, que se identificará quem já
pegou um garfo com dentes desalinhados e tentou realinhá-los. Imagine uma barra metálica.
Sabe-se que para pequenas deformações, os metais em geral apresentam comportamentos
elásticos. Quando a deformação é maior, deformações plásticas passam a ocorrer. A Fig. 8.28
ilustra o experimento. Imagine duas situações distintas. Na primeira (Fig. 8.28a), a barra é
deformada levemente, ficando dentro do regime elástico. Nesse caso, quando a barra se
encontra novamente livre das forças de deformação, ela volta ao seu estado inicial. Como o
comportamento é elástico, não há dissipação de energia. Além disso, nada na barra indica que
ela tenha passado por essa deformação, ou seja, não há memória do processo. Na segunda
situação (Fig. 8.28b) as forças são mais significativas e a barra apresenta deformação plástica.
Quando as forças são removidas a barra permanece torta, tendo uma memória do processo.
Note que nesse caso há dissipação de energia. A histerese se comporta de forma análoga.
Quando há histerese, á dissipação de energia e memória.

Fig. 8.28: Experimento com uma barra metálica ilustrando a relação entre dissipação de energia e memória. a)
Quando a deformação se encontra dentro do regime elástico, não há memória do processo de deformação e nem
dissipação de energia. b) No caso da deformação plástica, o estado final da barra apresenta uma memória do
processo submetido, que está relacionada com a dissipação de energia. Veja o experimento realizado no vídeo
https://www.youtube.com/watch?v=K3fW-mo_Tb4

A Fig. 8.29 mostra um possível gráfico relacionando a força aplicada na barra e sua
deformação nos diferentes regimes discutidos na Fig. 8.28. Note que enquanto a barra está no
regime elástico (Fig. 8.28a e 8.29a) o gráfico não apresenta histerese. Já no regime onde há

217
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deformação plástica e energia dissipada, surge um comportamento histerético da curva (Fig.


8.28b e 8.28b).

Fig. 8.29: Diagramas de curvas de histerese relacionadas ao processo de deformação de uma barra de metal
ilustrado na Fig. 8.26. A representação nesse caso é esquemática e apela ao bom senso intuitivo do leitor e se
inspira nos estabelecidos ensaios de tração muito utilizados na engenharia de materiais. a) curva referente a
situação descrita na Fig. 8.26a onde a deformação se restringe ao regime elástico. b) curva referente a situação
descrita na Fig. 8.26b onde há deformação plástica e dissipação de energia.

Até aqui, procuramos consolidar a relação entre histerese, dissipação de energia e


memória (informação). Mas também já foi mencionado que os materiais magnéticos também
são muito utilizados em motores, geradores e transformadores. Para que não haja dissipação
de energia nas máquinas elétricas, há uma engenharia de processos na produção dos materiais
magnéticos para que estes apresentem o mínimo de histerese, como ilustra a Fig. 8.30,
comparando com o comportamento histerético dos materiais magnéticos para
armazenamento de dados. Ou seja, quando estamos interessados em tecnologias para
geração, transmissão e uso da energia elétrica, desejamos dispositivos que tenham o mínimo
de perdas.

Fig. 8.30: Aspecto geral de uma curva de histerese de um material ferromagnético usado em (a) discos rígidos de
computador e (b) em máquinas elétricas.

8.6 – Aprofundamento: Porque a permeabilidade é importante: o caso dos transformadores

Já discutimos com certa profundidade a relevância dos materiais magnéticos para as


tecnologias da informação e para as máquinas elétricas. Com relação a esta última, vamos
estudar em especial o caso dos transformadores para compreendermos melhor o papel destes
materiais.

Quando discutimos sobre a Fig. 8.22, vimos como o aumento da permeabilidade


magnética pode implicar em maior eficiência de dispositivos baseados na lei de indução de
Faraday. A Fig. 8.31 mostra outra forma de entender como a alta permeabilidade magnética
pode ajudar no funcionamento destes dispositivos. A Fig. 8.31a mostra uma região do espaço
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onde há presença de um campo magnético, representado na forma de linhas de força. Já a Fig.


8.31b ilustra que, ao colocarmos um material de alta permeabilidade magnética nessa região,
as linhas tendem a passar pelo material. Daí é possível dizer que um material de alta
permeabilidade magnética pode ser entendido como um material bastante “permeável para as
linhas de força”, ou seja, estas linhas preferem passar por regiões mais permeáveis a estas.

Fig. 8.31: a) Campo magnético em uma região do espaço representado por meio de linhas de força. b) Distorção
das linhas de força na presença de um material com alta permeabilidade magnética (µ) como, por exemplo, um
material ferromagnético. Note que o campo se intensifica dentro do material.

Vamos estudar o caso do transformador elétrico para entender como isso pode ser útil
para o funcionamento de um dispositivo. Para isso, vamos recordar o que discutimos com
relação a Fig. 8.7c e 8.7d, onde vimos que uma espira de corrente gera um campo magnético
muito parecido com o de um ímã permanente. Vamos considerar o sistema ilustrado na Fig.
8.32, onde temos à esquerda uma espira de corrente, denominada espira primária “P”, que é
alimentada por uma fonte de tensão alternada, gerando uma corrente elétrica alternada. Essa
corrente produz um campo magnético que também varia no tempo, na mesma frequência da
tensão aplicada. A Fig. 8.32 representa uma situação instantânea, onde o polo norte está para
cima. Se considerarmos a fonte de tensão a rede elétrica, teríamos uma inversão dos polos
magnéticos com uma frequência de 60 vezes por segundo (60 Hz). Isso produz uma incessante
variação da distribuição do campo magnético em toda a vizinhança da espira P.

Fig. 8.32: Acoplamento indutivo entre duas espiras de corrente. Na espira primária (P) é aplicada uma tensão
alternada. Uma tensão alternada de pequena intensidade é induzida na espira secundária que se manifesta na
forma de uma corrente elétrica alternada.

A Fig. 8.32 também ilustra uma espira de corrente secundária “S” que é colocada
próxima da espira “P”. Note que uma parte do campo magnético produzido pela espira “P”
passa por dentro da espira “S”. Porém, como o campo produzido por “P” se distribui por todo
o espaço ao redor, apenas uma pequena parte passa por “S”. Mesmo assim, esse pequeno
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campo variante é suficiente para induzir uma pequena tensão em “S”, de acordo com a lei de
indução de Faraday descrito pela eq. 8.1. Sob o ponto de vista de aplicação tecnológica, esse
efeito é fantástico: um circuito induz tensão em outro circuito independente, apenas por mera
aproximação. De fato, há inúmeras aplicações tecnológicas baseadas nesse princípio. Aqui
descreveremos os transformadores como um caso ilustrativo.

Em sua finalidade típica, os transformadores têm como função transferir toda a potência
elétrica de um circuito primário para um circuito secundário. Como vimos, o sistema ilustrado
na Fig. 8.30 transfere apenas uma pequena parte da potência elétrica e o motivo disso é que o
campo produzido pela espira “P” se espalha por todo o espaço ao redor e apenas uma
pequena parte acaba passando pela espira “S”. Por outro lado, na Fig. 8.31 vimos que
podemos dirigir a orientação das linhas de força por meio de materiais de alta permeabilidade
magnética. A Fig. 8.33 mostra como podemos usar esses materiais para a construção de um
transformador mais eficiente. Entre as espiras “P” e “S” é introduzido um material de altíssima
permeabilidade magnética, como o aço elétrico ou até mesmo o permalloy (veja tab. 8.1),
formando um caminho fechado. Como vimos na Fig. 8.7, uma das coisas fundamentais sobre o
campo magnético é que suas linhas de força sempre se apresentam em caminhos fechados. E
a Fig. 8.33 apresenta uma forma em que, idealmente, todas as linhas de força produzidas por
“P” passam por “S” percorrendo seu caminho fechado de volta para “P”. Dessa forma, todo o
fluxo magnético produzido por “P” passa também por “S” e dessa forma toda a potência
elétrica de “P” é transferida para “S”. Se o núcleo for feito de aço elétrico, sua permeabilidade
magnética é ~4000 vezes maior que a do ar. De forma aproximada, pode se dizer que apenas
0,025% (ou 1/4000) das linhas de força não passam pelo núcleo e se perdem para o ar.

Fig. 8.33: Representação esquemática do princípio de funcionamento de um transformador, ressaltando a função


do núcleo (em cinza) ao guiar as linhas de força magnéticas produzidas pela espira primária “P” até a espira
secundária “S”. O núcleo é composto de um material de altíssima permeabilidade magnética.

O nome “transformador” vem do fato de que, além de transferir potência, os


transformadores também alteram a relação entre tensão e corrente elétrica entre os circuitos
primário e secundário. Os transformadores são fundamentais para os sistemas de transmissão
de energia elétrica, os quais chamamos no dia-a-dia de “fios de alta tensão”. Por que
transmitimos energia elétrica em fios de alta tensão? A resposta simples é: para reduzir as
perdas de energia.

A energia elétrica é transportada em fios de cobre, que apresentam uma resistência


elétrica, mesmo que pequena, principalmente porque as linhas de transmissão são extensas,
podendo cruzar vários estados em alguns casos.

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Com a finalidade de realizar um raciocínio simplificado, vamos considerar que o sistema


de transmissão de energia elétrica e Itaipu até São Paulo tenha uma resistência elétrica “{”, e
que nesse sistema passe uma corrente elétrica “U”. Das regras básicas de circuitos elétricos,
podemos dizer que a energia dissipada (perdida) no processo é dada por:

 •• 6 y = {U (8.21)

Ou seja, se reduzirmos a corrente pela metade, por exemplo, a potência dissipada cai a
¼. Por isso, é interessante reduzir a corrente elétrica quando se que transmitir potência
elétrica. Por outro lado, sabemos também que a potência de um circuito elétrico, que
podemos chamar no contexto dessa discussão de potência útil é dada por:

Ú : = 9U (8.22)

Sendo apenas linearmente dependente da corrente “U” e da tensão “9”. Portanto, se


desejamos transmitir uma dada potência útil com a menor corrente possível, devemos
aumentar a tensão elétrica. Por isso, os fios de alta tensão chegam a ter centenas de milhares
de volts. Em contrapartida, por questão de segurança, não podemos ter altas tensões
presentes nas cidades e nos lares. Por isso, as tensões vão sendo gradativamente diminuídas
conforme as linhas de transmissão chegam perto das cidades e das residências. Essa função de
alteração da tensão elétrica é feita pelos transformadores. Como isso é feito? Mais uma vez, a
resposta passa por uma forma específica de uso da lei de indução de Faraday.

Partindo da representação esquemática da Fig. 8.33, podemos sofisticar um pouco mais


o dispositivo fazendo com que as espiras primária e secundária sejam formadas por
enrolamentos com número de voltas diferentes, como representado na Fig. 8.34a e ilustrado
na Fig. 8.34b como esse dispositivo pode ser realizado na prática.

Fig. 8.34: a) Diagrama esquemático de um transformador elétrico onde os enrolamentos primário e secundário
possuem número de voltas diferentes, resultando em alteração da relação entre tensão e corrente entre os
circuitos primário e secundário. b) Fotografia de uma forma possível de realizar o dispositivo esquematizado em
(a).

Vamos denominar o número de voltas dos enrolamentos primário e secundário de \6 e


\• respectivamente. A título de exemplo, vamos considerar que o enrolamento primário seja

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ligado a uma tomada doméstica, ou seja, uma fonte de tensão senoidal87 com amplitude de
110V. Na notação formal, dizemos que a tensão do circuito primário vale ³6 = 110V. Vamos
considerar também que o número de voltas do enrolamento secundário é o dobro do número
de voltas do primário, ou seja, \• = 2\6 . Se a tensão nos terminais do circuito secundário for
medida, o valor será de ³• = 220V. Há uma regra geral para a construção dos transformadores
que diz que a relação entre as tensões dos circuitos primário e secundário é igual à relação
entre o número de voltas entre eles. Ou seja, o diagrama da Fig. 8.34a mostra
esquematicamente a construção de um transformador que altera a tensão de 110V para 220V.
Vamos descrever porque isso ocorre.

A corrente elétrica no circuito primário acompanha a variação de tensão da tomada.


Como a corrente gera o campo magnético, o fluxo de campo produzido tem a mesma variação
da tensão elétrica. Mas assim como fizemos enquanto analisamos o caso simples da Fig. 8.32,
podemos considerar um momento instantâneo. A análise que descrevemos para esse
momento vale para qualquer outro. Digamos que nesse momento, o fluxo de campo
magnético total produzido pelo enrolamento primário seja ∅6 . Note, porém que o fluxo total é
construído a partir da contribuição de cada espira do enrolamento primário88, ou seja, de cada
uma das \6 voltas. Dito de outra forma:

∅6 = \6 ∅P (8.23)

onde ∅P é o fluxo gerado por uma volta do enrolamento primário. De acordo com a lei de
indução de Faraday, a taxa de variação fluxo magnético gerado no instante analisado é
proporcional a tensão do circuito primário nesse instante, ou seja:

∆∅¤
³6 = ∆
(8.24)

Pode ser reescrito como:

∆∅Ÿ
³6 = \6 (8.25)

Rearranjando os termos:

∆∅Ÿ Ť
= (8.26)
∆ Ƥ

Análise semelhante pode ser feita no enrolamento secundário. Note que a presença do
núcleo faz com que o mesmo fluxo de campo total ∅6 que ocorre no enrolamento primário é
transferido para a área interna do circuito secundário. Mas uma análise criteriosa deve ser
feita para se avaliar a variação de fluxo no circuito secundário. Em uma análise pouco
cuidadosa, alguém poderia concluir que a mesma variação de ∅6 naquele instante induz a
tensão no circuito secundário da forma:

∆∅¤
³• = ∆
(8.27) (cuidado, forma incorreta!)

87
Em uma frequência de 60 Hz no caso. O valor da frequência não é relevante. O que importa é que haja
uma variação no tempo para que a indução ocorra. Lembre-se que a lei de indução de Faraday (eq. 8.1)
envolve uma variação no tempo.
88
E claro, amplificado proporcionalmente devido a presença do núcleo ferromagnético.
222
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levando a concluir que a mesma tensão do primário será induzida no circuito secundário. Essa
análise é incorreta. Há uma sutileza aqui. Quanto se considera o núcleo, este transfere ∅6 da
região interna do circuito primário para a região interna do circuito secundário. Porém,
quando se analisa os circuitos, os fluxos totais em cada um deles são diferentes. A presença do
núcleo faz com que a grandeza fundamental que se conserva no processo de acoplamento
entre os dois circuitos é a variação de fluxo que ocorre por espira (volta) de corrente em cada
circuito. Sendo assim, o fluxo de campo total no enrolamento secundário é:

∅• = \• ∅P (8.28)

Assim, de acordo com a lei de indução de Faraday, a tensão induzida no circuito secundário é
dado por:

∆∅Ç ∆∅Ÿ
³• = ∆
= \•

(8.29)

Rearranjando temos uma equação similar à eq. 8.26:


∆∅Ÿ ÅÇ
= (8.30)
∆ ÆÇ

Comparando as eq. 8.26 e 8.30, podemos dizer que:


ÅÇ Å ÆÇ Å
= Ƥ FG = ÅÇ (8.31)
ÆÇ ¤ Ƥ ¤

onde é evidente a relação já mencionada entre as tensões nos circuitos primário e secundário
e seus respectivos números de voltas. Substituindo os valores que temos (³6 = 110V e
\• = 2\6 ) temos

³• 2\6
= FG |XÈ , ³• = 220
110 \6

demonstrando porque a tensão de 110V será transformada em 220V no exemplo estudado.

Note que, como já mencionamos, a principal função dos transformadores é transferir


potência elétrica entre os circuitos primário e secundário, alterando a relação entre tensão e
corrente. Deduzimos aqui o que acontece com a tensão. Fica a cargo do leitor, verificar o que
acontece com a relação entre a corrente elétrica nos dois circuitos no exemplo estudado.

É importante mencionar que o modelo apresentado aqui é simplificado, mas descreve


razoavelmente bem o funcionamento de transformadores reais. O funcionamento destes
depende de certos cuidados observados em sua construção, tais como o número de voltas dos
enrolamentos (que em geral é alto como se pode observar na Fig. 8.34b) e de um fantástico
trabalho de engenharia dos núcleos, desde o material utilizado até sua constituição, para que
as condições de operação assumidas pelo modelo sejam observadas no funcionamento real
em grau aceitável. Além disso, ajustes ao modelo devem ser acrescentados quando se deseja
modelar o comportamento real de um transformador de forma mais acurada.

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8.7 – Produção de energia elétrica

Terminamos onde começamos: na transformação de energia mecânica em energia


elétrica. No Cap. 6 vimos como podemos transformar energia térmica em mecânica. Neste
capítulo estudamos como transformar energia mecânica em elétrica. A maior parte da energia
elétrica mundial é produzida a partir de ciclos térmicos. O Brasil é uma exceção, onde a maior
parte vem das hidrelétricas. Em suma, não importa como se obtém energia mecânica, se a
partir de máquinas térmicas, rios, ventos, ou marés. O importante é que a maior parte da
energia elétrica é produzida a partir do movimento mecânico de um fluído de trabalho. Há
exceções como as usinas fotovoltaicas.

A Fig. 8.35 mostra um diagrama esquemático de uma hidrelétrica. Como já discutido no


Cap. 2 no escopo da Fig. 2.2, vimos como o movimento da água move turbinas que alimentam
os geradores elétricos. Esse processo é mostrado em mais detalhes na Fig. 8.35a.
Conceitualmente falando, esse capítulo nos ajuda a entender o que ocorre em uma parte
essencial das usinas de potência, que são os geradores elétricos (Fig. 8.35b). Neles, há uma
associação entre ímãs e enrolamentos elétricos, cujo movimento relativo entre eles faz com
que a energia mecânica seja transformada em elétrica de acordo com a lei de indução de
Faraday.

Fig. 8.35: a) Diagrama esquemático de uma usina hidrelétrica. b) Diagrama esquemático de um gerador elétrico
associado a uma turbina hidráulica.

Questionário

1 - Na Fig. 8.11 mostra o freio do tipo Foucault em um trem bala japonês. No texto é dito que o
freio dissipa a energia cinética do trem provocando a frenagem. Partindo do princípio que a
energia se conserva, para onde vai a energia cinética perdida pelo trem? O que ocorre nos
sistemas de frenagem tradicionais, por atrito? Discuta.

2 – Um motor elétrico pode ser considerado como o reverso de um gerador elétrico. Justifique
essa afirmação com o auxílio de desenhos esquemáticos contextualizados por meio da lei de
indução de Faraday e força de Lorentz. Como isso está relacionado com o freio regenerativo de
automóveis híbridos? Cite de forma contextualizada outro meio de transporte que utiliza dessa
forma de freio regenerativo?

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3 – Explique, com suas palavras, o que são materiais diamagnéticos, paramagnéticos e


ferromagnéticos (quais são as diferenças).

4 – Porque os materiais magnéticos, principalmente os ferromagnéticos, são importantes para


a tecnologia de máquinas elétricas?

5 – Porque a energia elétrica é transportada em fios de alta tensão? Baseie sua resposta em
termos de potência elétrica e dissipação Joule.

6 – Porque os motores elétricos em geral possuem grandes quantidades de fios elétricos


enrolados? Porque em geral são massivos? Que tipos de material existem nos motores
elétricos e por quê?

7 – O que é um transformador elétrico? Faça um desenho esquemático indicando suas


principais partes. Explique seu funcionamento. Se quisermos projetar um transformador que
converta a tensão de 110 V para 10 V, qual deve ser a relação entre o número de espiras nos
enrolamentos primários e secundários? E se a conversão fosse de 110V para 9V?

8 – Entre as equações 7.23 e 7.31 estudamos como ocorre a transformação da tensão elétrica
entre o circuito primário e o secundário no transformador ilustrado na Fig. 8.32a. Nesse
mesmo caso, o que ocorre com a relação entre as correntes observadas nos dois circuitos?
(dica: note que a relação entre o circuito primário e secundário se dá pelo número de voltas e
pela espessura do fio, como pode ser observado na Fig. 8.32b onde o número de votas menor
está à direita. A diferença da espessura do fio dá conta da alteração de corrente)

9 – A Fig. 8.29 mostra a deformação das linhas de campo quando há a presença de um


material de alta permeabilidade. Faça o esboço de um desenho no caso da presença de um
material com permeabilidade negativa. Como são chamados esses materiais?

10 – Note na Fig. 8.32b que o volume dos enrolamentos é o mesmo, embora eles tenham
número de voltas diferente. Quais são as possíveis formas de explicar porque isso ocorre?

11 – O núcleo de um transformador pode ser construído com geometrias diferentes. As mais


comuns são núcleos do tipo “C” e tipo “E” (em inglês “core type” e “shell type”). Discuta
porque essas geometrias possuem funcionalidades compatíveis. Na sua discussão,
desconsidere transformadores trifásicos, pois não abordamos esse tipo de circuito aqui.

12 – Um estudante de engenharia dedicado propôs uma nova geometria para construção de


núcleo de transformador, que, segundo ele, é eficaz em transmitir todo o fluxo magnético do
enrolamento primário para o enrolamento secundário e ainda apresenta as vantagens de ser
mais simples e apresentar menor custo de produção. A geometria é representada em cinza na
figura abaixo. Discuta porque essa geometria não possui a mesma eficiência das geometrias
“C” e “E”.

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Créditos das figuras

8.1: Arte própria


8.2: (a) By en:User:MapXpert - Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3639059
(b) Photo by Tim McCabe, USDA Natural Resources Conservation Service. (1999) Photo id: 137699 - Contour buffer
strips in Tama County changed the row pattern. Public Domain.
8.3: Arte própria
8.4: By NASA - http://www.nasa.gov/mission_pages/gpb/gpb_012.html, Public Domain,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4072432
8.5: Geek3 - Own work. CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=10510423
8.6: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Current_Magnetic_Field_wire.png
8.7: (a) By Geek3 - Own workThis plot was created with VectorFieldPlot, CC BY-SA 3.0,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=10587119
(b) By Newton Henry Black - Newton Henry Black, Harvey N. Davis (1913) Practical Physics, The MacMillan Co., USA,
p. 242, fig. 200, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=73846
c) By Geek3 - Own work. This plot was created with VectorFieldPlot, CC BY-SA 3.0,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=11621875
d) https://www.youtube.com/watch?v=V-M07N4a6-Y licenced under Creative Commons.
8.8: Arte própria
8.9: Arte própria
8.10: Arte própria
8.11: Arte própria
8.12: By Mai-Linh Doan - self photo, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2911413
8.13: By Take-y at the Japanese language Wikipedia, CC BY-SA 3.0,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=5188379
8.14: Arte própria
8.15: Arte própria
8.16: Arte própria
8.17: Arte própria
8.18: Arte própria
8.19: Arte própria
8.20: Arte própria
8.21: Arte própria
8.22: Arte própria
8.23: Arte própria
8.24: Arte própria
8.25: Arte própria
8.26: Arte própria
8.27: Foto de Evan-Amos disponível via Creative Commons 3.0. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Laptop-
hard-drive-exposed.jpg
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8.28: Arte própria


8.29: Arte própria
8.30: Arte própria
8.31: Arte própria
8.32: Arte própria
8.33: Arte própria
8.34: XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
8.35: a) Adaptado de: Tomia - Own work, CC BY 2.5, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3302749
(b) Adaptado de: U.S. Army Corps of Engineers (Vector image: Gothika, Edit: Bammesk) - U.S. Army Corps of
Engineers, ArchivedThis file was derived from: Water turbine.svg, Public Domain,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=47101602

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