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DOI: 10.5007/1807-0221.

2020v17n37p48

ATENDIMENTO ODONTOLÓGICO A PACIENTES EM FASE DE


PRÉ-TRANSPLANTE HEPÁTICO: PROPOSTA DE PROTOCOLO
Sandro Felipe dos Santos Faria Agnaldo Soares Lima
Universidade Federal de Minas Gerais Universidade Federal de Minas Gerais
fariasandro@outlook.com agnaldo@gold.com.br

Lia Silva de Castilho Rafael Paschoal Esteves Lima


Universidade Federal de Minas Gerais Universidade Federal de Minas Gerais
liasilvacastilho@gmail.com rafaelpaschoalesteves@yahoo.com.br

Maria Elisa Souza e Silva


Universidade Federal de Minas Gerais
mariaelisa1956@gmail.com
Resumo
O número de pacientes que aguardam o transplante hepático tem aumentado mundialmente. Sua avaliação e
tratamento odontológicos são recomendados antes do transplante hepático, com o objetivo de eliminar focos de
infecções bucais, evitando complicações orais e infecções generalizadas após a terapia imunossupressora.Para isso,
uma padronização de condutas clínicas odontológicas deve ser empregada para uniformização dos tipos de
tratamento para determinados diagnósticos. O objetivo deste estudo é propor um protocolo de atendimento
odontológico a pacientes candidatos a transplante hepático. Os procedimentos odontológicos realizados no projeto
de extensão “Assistência Odontológica a Pacientes Transplantados de Fígado” demonstraram que podem ser
realizados com segurança, desde que as devidas alterações da condição sistêmica sejam avaliadas, observando
exames como coagulograma e realizando a escolha da correta medicação e trabalhando em conjunto com a equipe
multidisciplinar irão garantir uma melhor qualidade de vida para os pacientes.
Palavras-chave: Transplante de Fígado. Assistência Odontológica. Saúde Bucal.

DENTAL CARE FOR PATIENTS UNDERGOING PRE-LIVER


TRANSPLANTATION: PROTOCOL PROPOSAL
Abstract
The number of patients awaiting liver transplantation has increased worldwide. Its dental evaluation and treatment
are recommended before liver transplantation, with the objective of eliminating foci of oral infections, avoiding
oral complications and generalized infections after immunosuppressive therapy. For this, a standardization of
dental clinical procedures must be used to standardize the types of treatment for certain diagnoses. The aim of this
study is to propose a dental care protocol for patients who are candidates for liver transplantation. The dental
procedures performed in the extension project “Dental Assistance to Liver Transplanted Patients”, demonstrated
that they can be performed safely, as long as the appropriate changes in the systemic condition are evaluated,
observing exams such as coagulogram and making the choice of the correct medication and working together with
the multidisciplinary team will ensure a better quality of life for patients.
Key words: Liver Transplantation. Dental Care. Oral Health.

ATENCIÓN DENTAL PARA PACIENTES SOMETIDOS A


TRASPLANTEPREVIO AL HÍGADO: PROPUESTA DE PROTOCOLO
Resumen
El número de pacientes que esperan un trasplante de hígado ha aumentado en todo el mundo. Se recomienda
evaluación y tratamiento odontológico antes del trasplante de hígado, con el fin de eliminar focos de infecciones
bucales, evitando complicaciones bucales e infecciones generalizadas tras la terapia inmunosupresora. Para ello, se
debe utilizar una estandarización de los procedimientos clínicos dentales para estandarizar los tipos de tratamiento
para ciertos diagnósticos. El objetivo de este estudio es proponer un protocolo de atención odontológica para
pacientes candidatos a trasplante hepático. Los procedimientos dentales realizados en el proyecto de extensión
“Asistencia Dental a Pacientes Trasplantados de Hígado”, demostraron que se pueden realizar de manera segura,
siempre y cuando se evalúen los cambios adecuados en la condición sistémica, observando exámenes como el
coagulograma y haciendo la elección de la medicación correcta y funcionando junto con el equipo multidisciplinar
aseguraremos una mejor calidad de vida a los pacientes.
Palabras clave: Trasplante de Hígado. Asistencia Dental. Salud Bucal.

Esta obra está licenciada sob uma Licença CreativeCommons.


Extensio: R. Eletr. de Extensão, ISSN 1807-0221 Florianópolis, v. 17, n. 37, p. 48-60, 2020.
Atendimento odontológico a pacientes em fase de pré-transplante hepático: proposta de protocolo

INTRODUÇÃO

O fígado é um órgão vital para a vida, pois participa da síntese e metabolismo de


proteínas, de colesterol e bile, produz fatores de coagulação e metaboliza medicamentos,
desintoxica metabólitos e armazena vitamina K (PERDIGÃO et al., 2012; LEVENSON e
KEENAN, 2013). Tem papel importante na hemostasia e sua função deve ser avaliada
antes de qualquer procedimento invasivo (WARD e WEIDEMAN, 2006; HELENIUS-
HIETALA et al., 2012; SILVA-SANTOS et al., 2012; RADMAND et al., 2013).
Várias são as doenças que podem comprometer as funções hepáticas, como
hepatites, doenças de depósito, abuso de álcool, doenças hereditárias e genéticas que levam
à cirrose, resultado de um processo crônico de destruição das células hepáticas. A cirrose
ocorre de maneira difusa, com formação de cicatrizes e nódulos, sendo considerada um
estágio terminal na evolução patológica do fígado (Di PROFIO et al., 2017; GBD, 2020).
O transplante é uma conduta terapêutica indicada para pacientes com doenças
crônicas ou incuráveis do fígado. Consiste na cirurgia de substituição do órgão doente por
um fígado saudável, doado de um paciente diagnosticado com morte encefálica (KIMURA
et al., 2020) ou, menos frequentemente, realizado com parte do fígado de um doador
vivo.Por ano, mais de 6.000 procedimentos de transplante hepático são realizados nos
Estados Unidos(NATIONAL DATA, 2020). No Brasil, o número de doações chegou a
13,2 por milhão de habitantes. O governo federal brasileiro de 2013 a 2015 tem aumentado
o número total e promovido a descentralização das equipes de transplante em todo o país
(MEIRELLES et al., 2015).
A avaliação odontológica é um pré-requisito recomendado, tendo em vista que a
terapia imunossupressora induzida por drogas, necessária para o sucesso de transplante de
órgãos, traz consigo o risco de infecções oportunistas. Desta forma, focos de infecções
dentais devem ser eliminados antes do transplante, com o objetivo de evitar infecções
generalizadas de origem bucal (PERDIGÃO et al., 2012; HELENIUS-HIETALA et al.,
2012; SILVA-SANTOS et al., 2012; LEVENSON e KEENAN, 2013; DIDILESCU et
al., 2020). Mais de90% dos pacientes portadores de doença hepática crônica apresentam
alterações na coagulação, o que sugere aumento do risco de hemorragia (SILVA SANTOS
et al., 2012).Procedimentos cirúrgicos são atrasados ou cancelados pelo temor de
sangramento (RADMAND et al., 2013). Por isso, os cirurgiões-dentistas devem conhecer
as particularidades dos pacientes com lesões hepáticas, candidatos ao transplante, para que

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possam realizar um tratamento odontológico com segurança (HELENIUS-HIETALA et


al., 2012; SILVA SANTOS et al., 2012; RADMAND et al., 2013).
Os objetivos do presente estudo são a apresentação de protocolo de atendimento
odontológico a pacientes candidatos a transplante hepático, considerando a evidência
científica atual, e revisar a literatura atual acerca dos cuidados ao paciente com doença
hepática crônica em fase pré-transplante durante o atendimento odontológico. Este
protocolo foi originado de uma atividade de pesquisa realizada por alunos do Projeto de
Extensão “Assistência Odontológica a Pacientes Transplantados de Fígado”, da Faculdade
de Odontologia da UFMG.

METODOLOGIA

Foi realizada pesquisa bibliográfica por estudante do projeto de extensão


“Assistência Odontológica a Pacientes Transplantados de Fígado” nas bases de dados
Pubmed e Lilacs, utilizando-se as seguintes palavras-chave: Liver Transplantation, Oral
Health, Dental Care e Chronic Liver Disease. Não houve restrição de idioma e a pesquisa
foi limitada a artigos publicados a partir do ano 2005. Os artigos foram selecionados
através da leitura do título, do resumo e/ou do texto completo considerando sua relevância
e sua adequação aos objetivos do presente trabalho. Para tanto, deveriam conter
informações sobre exames clínicos como contagem de plaquetas, avaliação da
hemoglobina/hematócrito, Tempo de Protrombina (PT), a razão normalizada internacional
(RNI) e Tempo de Tromboplastina Parcial (PTT) e suas relações com o tratamento
odontológico invasivo ou não. O uso de medicamentos em odontologia e seus possíveis
efeitos colaterais e reações adversas ao medicamento mais frequentes entre pacientes com
hepatopatias também foram levantados. Finalmente, foram levantadas as técnicas locais e
sistêmicas indicadas para o controle do sangramento durante a realização de procedimentos
invasivos nestes pacientes.

REVISÃO DA LITERATURA

A doença hepática crônica e o transplante de fígado


As cirroses secundárias às hepatites B e C, a cirrose alcoólica e a cirrose pós
esteatohepatite não-alcóolica (non-alcoholic steatohepatitis, NASH) são as condições mais

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frequentemente associadas à indicação de transplante em adultos. Em crianças, a indicação


mais comum para o transplante é a atresia biliar (GBD, 2020).
Também existem contraindicações ao transplante hepático. Fatores desfavoráveis
para a indicação à cirurgia são alterações anatômicas como tromboses venosas do sistema
porta, presença de neoplasia, a falência não corrigível de outro órgão ea reduzida
probabilidade de sobrevivência em longo prazo ou baixa qualidade de vida após o
transplante (FOX, 2014). Adicionalmente, as infecções de origem bucal têm sido
consideradas causa para o cancelamento ou adiamento da cirurgia de transplantedo orgão
(HELENIUS-HIETALA et al., 2012).No Brasil, a alocação de fígado do doador é baseada
no sistema MELD, do inglês Model for End-stage Liver Disease, desde 2006 (FREITAS et
al., 2019). Neste modelo matemático, dados de exames laboratoriais e também algumas
situações especiais determinam a pontuação de gravidade do paciente, que ordena a lista de
candidatos ao transplante.
As infecções são um motivo de preocupação após o transplante hepático (SILVA
SANTOS et al., 2012). Mais da metade dos receptores apresentam complicações
infecciosas no primeiro ano após o procedimento, e cerca de um terço apresenta infecções
graves nos anos subsequentes (ÅBERG et al., 2014).
A incidência de infecções pós-transplante é significativamente maior entre
indivíduos não submetidos ao tratamento odontológico prévio ao transplante
(HELENIUS-HIERALA et al., 2012). Pacientes com doenças hepáticas possuem maior
prevalência de petéquias, gengivite, sangramento gengival, candidíase, queilite, xerostomia e
periodontite (SILVA SANTOS et al., 2012) e um grande número de dentes extraídos e
lesões cariosas (LINS et al., 2017). A condição bucal insatisfatória tem sido associada à
elevação da pontuação do escore MELD (ÅBERG et al., 2014).
A trombocitopenia, na qual o número de plaquetas atinge valores inferiores a
150.000/mm3, é uma complicação encontrada em indivíduos com hipertensão portal
secundária a doenças crônicas do fígado ou cirrose, cujas causas incluem sequestro
esplênico de plaquetas, supressão da produção de plaquetas na medula óssea e diminuição
da atividade do fator de crescimento hematopoiético trombopoetina. A trombocitopenia
leve, caracterizada pela contagem de plaquetas entre 75.000/mm3 e 150.000/mm3, não
apresenta significado clínico e, portanto, não interfere no tratamento odontológico ou no
gerenciamento de decisões. A trombocitopenia moderada, com níveis de plaquetas entre
50.000/mm³e 75.000/mm³, é observada em aproximadamente 13% dos pacientes

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cirróticos. Quando a contagem de plaquetas atinge níveis inferiores a 50.000/mm3, a


trombocitopenia é considerada grave e pode ser associada com morbidade significativa
(AFDHAL et al., 2008).

Terapêutica medicamentosa
Em indivíduos com doença hepática devem ser consideradas alterações na dosagem
ou nos intervalos de administração de analgésicos, pois as doenças hepáticas podem alterar
o metabolismo das drogas (CRUZ PAMPLONA et al., 2011). O uso agudo ou crônico de
paracetamol em doses máximas de 2g ao dia, em indivíduos com hepatopatias, é
considerado seguro (RADMAND et al., 2013).A dipirona na dosagem de 500mg TID no
período de até 72 horas é também uma opção aceitável nesse particular grupo de
indivíduos(ZAPATER et al., 2015).Entretanto, o uso de aspirina é contraindicado em
indivíduos com alterações na hemostasia (CRUZ PAMPLONA et al., 2011).Analgésicos
narcóticos devem ser evitados devido ao risco de encefalopatia hepática (SILVA SANTOS
et al., 2012).O uso de fármacos anti-inflamatórios não esteroídes (AINES), devido ao
potencial para sangramento gastrointestinal e complicações renais em indivíduos com
cirrose, está contraindicado (RADMAND et al., 2013). Ansiolíticos, em indivíduos com
doença hepática, devem ser usados com cautela, pois o tempo de ação dessa classe pode ser
prolongado (SILVA SANTOS et al., 2012).
Quando a disfunção hepática estiver associada a alterações imunológicas,como nas
doenças autoimunes, a profilaxia antibiótica está indicada para procedimentos
invasivos(CRUZ PAMPLONA et al., 2011). A profilaxia antibiótica deve ser recomendada
considerando a extensão do procedimento e a gravidade da doença hepática. Amoxicilina,
ácido clavulânico ou cefalosporinas são indicados (RADMAND et al., 2013). A
clindamicina apresenta seu metabolismo prolongado em indivíduos com doenças hepáticas
e, portanto, poderia contribuir com a degeneração do fígado (CRUZ PAMPLONA et al.,
2011).Entretanto, ainda não existem diretrizes padrão para o uso de profilaxia antibiótica
em pacientes pré-transplante hepático.A decisão sobre a realização ou não da profilaxia
antibiótica deve ser estabelecida junto ao médico responsável.

Procedimentos invasivos
Devido ao risco hemorrágico, a avaliação pré-operatória através de exames
complementares do paciente é obrigatória, independentemente do tipo de procedimento

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odontológico que será realizado. A propedêutica deve incluir um hemograma completo,


para contagem de plaquetas e avaliação da hemoglobina/hematócrito. Tempo de
Protrombina (PT), RNI e Tempo de Tromboplastina Parcial (PTT) também devem ser
solicitados (CRUZ PAMPLONA et al., 2011) embora haja clara limitação destes exames
para prognosticar sangramento em hepatopatas.Caso haja necessidade de realização de
procedimentos cirúrgicos, deve ser realizada uma técnica cuidadosa, compressão da região
para evitar sangramentos e utilização de agentes hemostáticos locais como celulose
regenerada oxidadae ácido tranexâmico, e agentes sistêmicos como plasma, plaquetas e
vitamina K, se necessário. Qualquer procedimento odontológico invasivo pode ser
realizado com nível de plaquetas igual ou superior a 50.000/mm³. A transfusão pré-
operatória dos produtos derivados do sangue pode ser necessária com base na extensão do
procedimento odontológico e as alterações de coagulação presentes. Após a transfusão de
produtos derivados do sangue, o procedimento deve ser rapidamente realizado devido à
degradação dos fatores de coagulação e sequestro de plaquetas. A determinação da
contagem de plaquetas e/ou PT/RNI pode ser feita,se o tempo para sua obtenção não
comprometer a eficiência da transfusão realizada. Para obtenção da hemostasia,
recomenda-se ainda o uso de agentes hemostáticos locais como trombina bovina tópica,
microfibras de colágeno ou ácido aminocapróico (AFDHAL et al., 2008; SILVA SANTOS
et al., 2012; RADMAND et al., 2013).
A literatura diverge em relação aos resultados de contagem de plaquetas e/ou RNI
em relação ao índice de complicações pós-operatórias. A maioria das exodontias pode ser
realizadas sem complicações hemorrágicas. Maior incidência de sangramento é observada
em indivíduos com trombocitopenia grave (<50.000/mm³) ou em indivíduos que
apresentavam falha na síntese de fatores de coagulação (RNI> 1,5) (HELENIUS-
HIETALA et al., 2012). Encontrou-se baixo risco de sangramento após exodontias em
indivíduos com RNI ≤ 2,50 e contagem de plaquetas ≥ 30.000/mm³, sem a necessidade de
transfusões de sanguedes de que sejam realizados em ambiente hospitalar(PERDIGÃO et
al., 2012).Outros autores, entretanto, recomendam o RNI máximo de 3,5 para a realização
de procedimentos invasivos (AFDHAL et al., 2008; SILVA SANTOS et al., 2012).
As técnicas locais indicadas para o controle do sangramento são o concentrado de
fibrinogênio humano, a celulose oxidada, o ácido tranexâmico, o spray de cianoacrilato, a
anestesia intraligamentar, o ácido aminocapróico, a trombina em pó, a cola de fibrina e a
compressão do alvéolo. Para a terapia sistêmica, podem ser necessáriasinfusões de

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produtos do sangue (FFP, plaquetas, concentrado de hemácias, crioprecipitado, fator VIIa


recombinante), fluidos intravenosos, ácido tranexâmico e injeções de vitamina K(WARD e
WIEDEMAN, 2006), mas a indicação desta terapêutica deve ser baseada em avaliações
hematológicas.
A utilização de anestésico local associado a vasoconstritor do tipo epinefrina pode
contribuir para a melhora da hemostasia e tem demonstrado ser segura, desde que a dose
não exceda 7 mg/kg(CRUZ PAMPLOLNA et al., 2011).

DISCUSSÃO

Problemas pré-existentes na boca podem evoluir para um processo agudo e


aumentar a possibilidade de complicações, trazendo risco à saúde e à qualidade de vida dos
pacientes que demandam transplante de fígado. O tratamento odontológico em pacientes
candidatos a transplante tem um papel fundamental no conjunto de medidas que visam
evitar que infecções de origem bucal possam se transformar em infecções generalizadas
(PERDIGÃO et al., 2012; SILVA SANTOS et al., 2012; LEVENSON e KEENAN, 2013;
RADMAND et al., 2013). Essas contribuem para uma estadia mais prolongada no hospital,
gerando mais custos, e maior risco de insucesso do transplante.
O atendimento odontológico pré-transplante garante melhor qualidade de vida pós-
transplante aos pacientes (RADMAND et al., 2013). Com isso, o cirurgião-dentista como
parte da equipe que realiza o atendimento multidisciplinar, tem um papel importante para o
sucesso do transplante.
O tratamento odontológico de indivíduos com hepatopatias requer a realização da
coleta de toda a história clínica, identificação minuciosa dos medicamentos em uso e
verificação ou solicitação de exames laboratoriais para avaliação do hemograma e do
coagulograma. Em seguida, deve ser feito um cuidadoso exame extra e intraoral (CRUZ
PAMPLONA et al., 2011; SILVA SANTOS et al., 2012). Assim, o cirurgião-dentista irá
determinar quais os cuidados ou procedimentos serão adotados para que o tratamento
planejado possa ser adequadamente executado. Esses cuidados irão garantir preparação
correta e monitoramento das doenças bucais antes do transplante.
O fígado é fundamental no metabolismo de drogas e os pacientes com doença
hepática podem apresentar capacidade diminuída de transformação e eliminação das
mesmas. Assim, caso haja necessidade de prescrição de medicamentos, deve-se analisar

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quais classes, intervalos e dosagens são seguros para esse grupo de pacientes (CRUZ
PAMPLONA et al., 2011; RADMAND et al., 2013).
Quanto à profilaxia antibiótica, ainda não existe diretriz padrão em pacientes
candidatos a transplante hepático. Em pacientes com ascite, a profilaxia antibiótica parece
ser necessária. O médico responsável deverá ser consultado para auxiliar nessa tomada de
decisão (CRUZ PAMPLONA et al., 2011; PERDIGÃO et al., 2012; SILVA SANTOS et
al., 2012; LEVENSON e KEENAN, 2013; RADMAND et al., 2013).
Devido à complexidade da condição geral dos pacientes com doença hepática
crônica, o cirurgião-dentista deve estar atento a três aspectos essenciais:controle da
hemostasia, controleda infecção e controle da dor (RADMAND et al., 2013). Assim, deve
ser priorizado, sempre que possível, os procedimentos de alívio da dor e a abordagem dos
quadros infecciosos. Em seguida, procedimentos restauradores e/ou provisórios devem ser
realizados, devolvendo a função mastigatória e estética, habilitando o paciente ao
transplante. Alguns procedimentos restauradores definitivos poderão ser postergados para
a fase pós-transplante.
Durante o tratamento odontológico, na fase pré-transplante, o paciente deve ser
orientado, monitorado e estimulado quanto aos cuidados com a saúde bucal. Nesta fase, é
importante que o paciente incorpore e mantenha os cuidados com o controle da higiene
bucal. Esses cuidados irão reduzir o risco de infecções de origem bucal na fase pós-
transplante, o que poderia acarretar na perda do órgão (SILVA SANTOS et al., 2012).
A realização de procedimentos minimamente invasivos, como procedimentos
restauradores e protéticos, em indivíduos com hepatopatias, não está associada ao risco
considerável de hemorragia. A dificuldade reside na avaliação do risco de sangramento em
procedimentos com um moderado nível de invasão, como raspagem subgengival (SILVA
SANTOS et al., 2012).
Ainda não existe consenso na literatura sobre o valor seguro de plaquetas ou RNI
para a realização de procedimentos cirúrgicos. A experiência do Programa de Assistência
Odontológica a Pacientes Transplantados da UFMG demonstra que contagem de plaquetas
≥ 50.000/mm³ e RNI ≤ 3,5 são valores seguros para a realização de tais procedimentos.
Esses parâmetros referenciais estão em conformidade com outros estudos (AFDHAL et
al., 2008; SILVA SANTOS et al., 2012).
O uso de agente hemostático local em procedimentos cirúrgicos é de grande valor
na obtenção de hemostasia pós-operatório imediato. Entretanto, esses agentes

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hemostáticos locais podem aumentar o risco de infecção e atrasar a cicatrização (SILVA


SANTOS et al., 2012). Portanto, deve-se analisar o sangramento durante o
transoperatórioe, apenas caso seja excessivo, deve-se optar pelo uso desses agentes
hemostáticos locais.
Além do uso de agentes hemostáticos locais, pode-se utilizar a terapia sistêmica
com o objetivo de otimizar a hemostasia, essa terapia inclui infusões de produtos derivados
do sangue (PFC, plaquetas, concentrado de hemácias, crioprecipitado, fator VIIa
recombinante), ácido tranexâmico e injeções de vitamina K (AFDHAL et al., 2008;
PERDIGÃO et al., 2012; RADMAND et al., 2013).A terapia sistêmica deve ser
considerada apenas quando houver falha dos agentes hemostáticos locais. Para realizar essa
terapêutica com segurança, deve-se analisar a condição sistêmica do paciente e interações
medicamentosas.
Adicionalmente, é fundamental que o paciente, após a realização do transplante,
retorne ao cirurgião-dentista para a realização de tratamentos definitivos e para manutenção
preventiva, considerando que este fará uso de imunossupressor por um tempo prolongado.
A proposta esquematizada de protocolo para o atendimento de pacientes com
hepatopatias em fase pré-transplante de fígado é apresentada na figura 1.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A assistência odontológica ao indivíduo candidato a transplante hepático pode ser


realizada com total segurança pelo cirurgião dentista, desde que medidas simples, mas de
extrema importância, sejam executadas. É fundamental a correta interpretação dos exames
laboratoriais, assim como a prescrição de fármacos que promovam um menor dano ao
sistema hepático. A partir desta constatação, graduandos participantes do projeto de
extensão “Assistência Odontológica a Pacientes Transplantados de Fígado“ não só
atendem estes pacientes como também são capazes de elaborar e propor um protocolo de
atenção básica embasados na literatura, articulando os pilares ensino, pesquisa e extensão.
Adicionalmente, o atendimento multidisciplinar garante uma assistência segura e de
qualidade. A integração entre a odontologia e a equipe envolvida no processo de
transplante gera melhores resultados para a saúde global do paciente tanto no período pré-
transplante quanto no período pós-transplante, e melhora a sua qualidade de vida. Esta

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premissa é um exemplo da vivência da interdisciplinaridade e interprofissionalidade tão


caras à extensão universitária.
O protocolo para atendimento de pacientes de transplante hepático proposto pelo
projeto de extensão da Faculdade de Odontologia da UFMG “Assistência Odontológica a
Pacientes Transplantados de Fígado”, disponibiliza à comunidade odontológica uma fonte
atual e revisada sobre o atendimento do paciente que aguarda pelo transplante de
fígado.Essa é uma expectativa deste projeto de extensão de cumprimento das diretrizes de
impacto na sociedade e impacto na formação do estudante, possibilitando ao cirurgião-
dentista o acesso a um conjunto de informações sobre as melhores estratégias e cuidados
indispensáveis aos pacientes nesta fase. Dessa forma, oferece aos profissionais uma fonte
com informações sistematizadas, com o objetivo de ajudá-los a se sentirem mais
capacitados, seguros e aptos ao atendimento deste perfil de paciente.

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Recebido em: 06/03/2020

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Extensio: R. Eletr. de Extensão, ISSN 1807-0221 Florianópolis, v. 17, n. 37, p. 48-60, 2020.
Atendimento odontológico a pacientes em fase de pré-transplante hepático: proposta de protocolo

Aceito em: 26/11/2020

FIGURA 1 – Proposta de protocolo para atendimento odontológico a pacientes


hepatopatas

• Acolhimento.
Primeiro Contato • Coleta da história clínica e prontuário.
• Solicitação e avaliação de exames laboratoriais.
• Exame intra/extra oral e exames imaginológicos.
• Planejamento do plano de tratamento.

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Extensio: R. Eletr. de Extensão, ISSN 1807-0221 Florianópolis, v. 17, n. 37, p. 48-60, 2020.
Atendimento odontológico a pacientes em fase de pré-transplante hepático: proposta de protocolo

Início da Atenção • Controle da dor e remoção de focos infecciosos.


• Transfusão sanguínea em pacientes que apresentarem contagem
de plaquetas < 50.000/mm³. E valor limítrofe de RNI 3,5.
• Procedimentos endodônticos e cirúrgicos requerem um cuidado
especial em relação àmedicação, devendo ter como analgésicos de
primeira escolha dipirona 500mg por até 72 horas ou paracetamol com
dosagem máxima de 2g/dia. Não prescrever AINES.
• Profilaxia antibiótica apenas em casos de Ascite ou hemorragia
gastrointestinal.
• Orientação, monitoramento e estímulo quanto à saúde bucal.

• Procedimentos restauradores que devolvam ao paciente função e


estética. Nesse estágio alguns tipos de tratamentos definitivos podem ser
Atenção básica para postergados para depois do transplante.
liberação do paciente • Verificação da apreensão dos métodos de higienização oral e
estímulo àcontinuação dos mesmos.
• Orientação, monitoramento e estímulo quanto à saúde bucal.

• Realização de tratamentos restauradores definitivos e


Finalização da assistência
manutenção preventiva.
e manutenção (após
liberação médica) • Manutenção da orientação, monitoramento e estímulo quanto à
saúde bucal.

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Extensio: R. Eletr. de Extensão, ISSN 1807-0221 Florianópolis, v. 17, n. 37, p. 48-60, 2020.

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