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DECOLONIZAÇÃO, SUL GLOBAL E COLONIALIDADE

DO PODER1

Decolonialism, Global South and Coloniality of Power

Marina DE CHIARA
Universidade “L’Orientale” di Napoli
mdechiara@unior.it
https://orcid.org/0000-0003-3384-7649

Tradução de Adriana Tulio BAGGIO


Universidade Federal do Paraná
atbaggio@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5016-1289

RESUMO: Este texto é a versão em português de “Decolonizzazio-


ne, Sud del mondo e colonialità del potere”, de Marina De Chiara,
capítulo do livro Sud immaginari. Colonialità del potere, chicane
ribelli, interferenze blues, publicado na Itália em 2019 e organiza-
do pela mesma autora. O artigo apresenta os principais conceitos ad-
vindos de perspectivas críticas sobre a modernidade como produto
da empresa colonial e o sistema dela resultante, chamado por Aníbal
Quijano de colonialidade do poder, ainda em operação. Tais refle-
xões são consideradas úteis para se pensar a oposição epistemoló-
gica entre norte e sul do mundo, fratura que atua inclusive no corpo
das nações, promovendo uma forma de colonialismo interno. Nesse
sentido, De Chiara faz referência às questões italianas, especialmente
em relação à marcada divisão entre o mezzogiorno (o sul) e o norte
do país desde a Unificação (1861), às migrações internas do sul ao
norte no século XX e, mais recentemente, à migração do continen-
te africano à Itália, que tem no sul italiano o seu ponto de chegada.
Dessa forma, De Chiara mostra a produtividade de um pensamen-
to subalterno - oriundo especialmente de grupos de estudos asiáti-
cos e latino-americanos - para se pensar questões do Norte global.
PALAVRAS-CHAVE: Border theory; Colonialidade do poder; Colo-
nialismo interno; Políticas imigratórias.

ABSTRACT: This text is the Portuguese version of Marina De Chia-


ra’s “Decolonizzazione, Sud del mondo and colonialità del potere”,

1
Publicação original: DE CHIARA, Marina. Decolonizzazione, Sud del mondo e colonialità del
potere. In: DE CHIARA, Marina (org.). Sud immaginari. Colonialità del potere, chicane ribelli,
interferenze blues. Mantova: Universitas Studiorum, 2019. p. 11-32.
Revista X, v. 16, n. 1, p. 175-193, 2021. 175
a chapter of the book Sud immaginari. Colonialità del potere, chicane
ribelli, interferenze blues, published in Italy in 2019 and edited by the
same author. The article presents the main concepts that come from
critical perspectives on modernity as a product of the colonial enter-
prise and the system which is its result, called “coloniality of power”
by Aníbal Quijano - a system that is still in operation. Such reflections
are considered useful for thinking about the epistemological opposition
between the North and the South of the world, a fracture that even ope-
rates in the body of nations, promoting a form of internal colonialism.
In this sense, De Chiara refers to Italian issues, especially concerning:
the marked division between the mezzogiorno (the south) and the north
of the country that operates since Unification (1861); the Italian internal
migrations from south to north in the 20th century; and, more recently,
the migration from the African continent to Italy, which has its point of
arrival in southern Italy. In this way, De Chiara shows the productivi-
ty of the subaltern studies - especially the ones from Asian and Latin
American study groups - to think about issues of the Global North.
KEYWORDS: Border theory; Coloniality of power; Immigration po-
licies; Internal colonialism.

Dipesh Chakrabarty, autor do afortunado estudo dos anos 2000, Provincializzare


l’Europa, recorda, em um artigo publicado em 2009 no Critical Inquiry, que termos como
globalização, local, global e glocal entraram poderosamente no cenário das ciências
sociais e humanísticas nos anos 1990 (Chakrabarty, 2009).
É impossível hoje pensar nas ciências sociais sem se referir a esses termos, inseridos
no jargão da sociologia (mas não só) através de pensadores como Immanuel Wallerstein,
Talal Asad, Arif Dirlik, James Clifford, Homi Bhabha, o próprio Dipesh Chakrabarty e
muitos outros. Por esse motivo, o vocabulário clássico dos estudos culturais e dos estudos
pós-coloniais revela-se, em certo sentido, carente de noções que são, por sua vez, tidas
como palavras-chave, keywords do pensamento teórico2, dentre elas decolonização e

2
Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade, de Raymond Williams, é um texto
de 1976 (WILLIAMS, 2007). Nessa espécie de continuação ideal de Cultura e sociedade, de
1958 (WILLIAMS, 2011) - no qual o autor explorava novos termos que começavam a fazer
parte do léxico moderno, focalizando em particular os conceitos de industry, democracy, class,
culture e art -, o estudioso continua a se interrogar a respeito da ideia de englishness sem, no
entanto, contemplar o cenário terminológico pós-colonial. Isso será remediado depois por Tony
Bennett, Lawrence Grossberg e Meaghan Morris em New Keywords: A Revised Vocabulary of
Culture and Society, de 2005. Dessa revisão estranhamente ficaram de fora termos que Williams
havia inserido no seu volume, como myth, hegemony, agency, imperialism, native. Para uma
observação acurada das diferenças entre os textos, veja-se o ensaio-resenha de Marina Vitale
(2009), “Changing Vocabularies in Cultural and Postcolonial Studies”.
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globalização. São esses dois termos que, por exemplo, o antropólogo James Clifford
reconhece em sua “Introdução” a Returns: Becoming Indigenous in the Twenty-First
Century (CLIFFORD, 2013) como novos instrumentos epistemológicos, uma toolkit
[caixa de ferramentas] para uma reflexão atualizada sobre o real, ou seja, sobre como
oferecer, hoje, uma descrição realista adequada do sistema-mundo (world-system)3.
Para expandir o raio da atual reflexão crítica sobre a modernidade globalizada e
sobre o conceito de decolonização certamente contribuíram, junto a outros estudiosos,
o grupo de pesquisa South Asian Subaltern Studies [estudos subalternos] (fundado por
Ranajit Guha e composto por Gayatri Spivak, Dipesh Chakrabarty, Partha Chatterjee),
como também o grupo de pesquisa Latin American Subaltern Studies (John Beverley,
Ileana Rodríguez, José Rabasa, Walter Mignolo, Alberto Moreiras, Gabriela Nouzeilles),
em uma palavra, os intelectuais do Global South [Sul Global]4.
Trata-se de perspectivas críticas cruciais para mostrar como a modernidade
é, na realidade, produto da empresa colonial, que impôs um verdadeiro sistema, uma
gramática fundadora, definida pelo sociólogo Aníbal Quijano como colonialidade do
poder. A partir dessa e de outras instituições desconstroem-se importantes noções que
estão sedimentadas há séculos no imaginário cultural ocidental. As assim chamadas
“epistemologias de fronteira” (border theories), por exemplo, desmantelaram a noção
de “fronteira” entendida como lugar de demarcação territorial, indícios de uma nítida
separação entre culturas e povos, para mostrar, como sugerem as vozes teóricas de Gloria
Anzaldúa ou de Guillermo Gómez-Peña, a sua complexa natureza fluida, aberta, sempre
instável, porosa, onde acontecem contínuas trocas, misturas, mestiçagens entre línguas,
pessoas, culturas. Através da lente da mestiçagem cultural, mesmo um conceito sólido,
revestido de um tipo de aura “transcendental”, como aquele de “americanidade”, acaba
sendo relido em uma perspectiva decolonial, dando vida à noção de “transamericanidade”,
cunhada pelo teórico José Saldívar.
As reflexões sobre a colonialidade do poder revelaram-se úteis para indagar
também a oposição epistemológica entre norte e sul do mundo. Essa fratura de tipo colonial
atua inclusive no corpo da própria nação, uma forma de colonialismo interno que ocorreu
e ocorre na história italiana, como mostram as pesquisas sociológicas mencionadas nas

3
Em Returns (CLIFFORD, 2013) coloca também em questão o termo realismo e o significado do
qual se reveste nas ciências sociais. Ver, a propósito, De Chiara (2019b).
4
Segundo Arif Dirlik (citado por SALDÍVAR, 2012, p. 231, nota 4), o termo Global South
remonta aos anos 1970 e faz referência ao atraso político-econômico em relação à modernização
ocidental (e já manifesto no período sucessivo à Segunda Guerra Mundial) de países que se
desejaria englobar nas políticas neoliberais ocidentais (o pretenso progresso pós-capitalista).
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páginas finais deste texto. São questões que permanecem encontrando espaço nesta nossa
modernidade ainda… colonial.

MODERNIDADE COLONIAL

Se é verdade que, em âmbito teórico, há uma certa tendência em se querer


distinguir a metodologia crítica pós-colonial da metodologia crítica decolonial, esclarece-
se antes de tudo que não existem distinções nítidas e nem exclusivas5; ao contrário, dado o
compartilhado interesse pela investigação das formas socioculturais da subalternidade, as
duas perspectivas se entrecruzam continuamente, interrogando o estatuto de supremacia
euro-ocidental no mundo. O que se pode seguramente reconhecer é uma importante
diferença na geografia específica das referências teóricas os pensadores decoloniais
são majoritariamente ligados a uma matriz latino-americana e, inspirados pela teologia
da libertação, consideram o próprio trabalho como práxis de intervenção política nos
territórios e não como exercício de tipo acadêmico, coisa que, por sua vez, é imputada aos
pensadores pós-coloniais. Destes também se reprova a preponderância em se deter sobre
sistemas e sobre as implicações do domínio dos impérios coloniais europeus do século
XIX até a época atual, sem prestar a devida atenção ao acontecimento histórico que foi a
conquista das Américas no século XVI. A referência indiscutível dos teóricos pós-coloniais
seria Edward Said, com seu célebre Orientalismo, de 1978, que propunha a questão do
Outro nos termos da redução colonial do outro a uma projeção das angústias e dos desejos
do sujeito europeu. Já para os pensadores decoloniais, a relação primária a ser investigada
na base da modernidade é aquela do sujeito europeu, o conquistador/colonizador, com
o “nativo”, o ameríndio. Poder-se-ia certamente objetar a respeito de cada um desses
pontos, desmentindo completamente esses e outros argumentos que deveriam, na verdade,

5
Sobre essa questão, remeto ao texto de Walter Mignolo (2000a), “(Post)Occidentalism, (Post)
Coloniality, and (Post)Subaltern Rationality”. Veja-se também Inflexión decolonial, de Eduardo
Restrepo e Axel Rojas (2010).
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revelar-se cruciais para se distinguir as duas perspectivas6. Mas, em todo caso, é de se
auspiciar que essas ideias vindas das mais diferentes proveniências geográficas possam
sempre dialogar entre si, em nome de um conhecimento desinteressado, e sem tender a
uma competição sobre qual delas prevalece.
Nas últimas décadas, então, os dois termos - decolonização e globalização -
estão cada vez mais ao centro das reflexões críticas sociais e literárias, e são debatidos,
em particular, por meio da intervenção crítica de pensadores que sublinham a natureza
colonial do próprio conceito de modernidade. Modernidade, para esses estudiosos (alguns
dos quais, como Walter Mignolo, Enrique Dussel e Aníbal Quijano, pertencem ao projeto
Modernity/Coloniality Research Program), é uma noção inextrincavelmente ligada à
conquista da América7.
Como escrevem Walter Mignolo e Madina Tlostanova (2014), aquela modernidade
que era associada, já no sentido mesmo do termo, à ideia de renovação e de novidade,
inscrita, por exemplo, no termo “Renascimento”, coincidia substancialmente com a
colonização por parte dos europeus não só de um enorme território até então desconhecido,
as Américas, mas também com uma simultânea colonização do tempo, que relegava - em
oposição ao percurso europeu “luminoso”, racional e “progressista” indicado pelo termo
“Renascimento” - os “não modernos” a uma longa série de Idades Médias como única
temporalidade a eles consentida.
Em nome de uma pretensa neutralidade do saber do homem branco, europeu,
cristão - neutralidade que o sociólogo colombiano Santiago Castro-Gómez definiu como
o “ponto zero” de observação e conhecimento - cancelaram-se as diferenças culturais para
transformá-las em diferenças coloniais. Com a colonização das Américas, de fato, como
bem explica o intelectual peruano Aníbal Quijano (2014), astecas, maias, incas, quéchuas

6
Um possível exemplo é a importância central, nas argumentações de um dos expoentes
máximos da reflexão pós-colonial, o estudioso anglo-indiano Homi K. Bhabha, de pensadores
caribenhos (Aimé Césaire, Derek Walcott, Edouard Glissant), de teóricos chicanos, e de outros
pensadores que colocaram no centro da própria reflexão a “descoberta da América” e a relação
com o “selvagem”. Sobre esse assunto remeto aos meus capítulos “ImmagiNazione” e “Babele
nell’arcipelago antillano” no livro La Babele Postcoloniale (DE CHIARA, 2017). No meu livro
Oltre la gabbia. Ordine coloniale e arte di confine (DE CHIARA, 2018 [2005]), a primeira seção
inteira é uma viagem literária e teórica (Salman Rushdie, Robert Viscusi, Fernández Retamar,
Carlos Fuentes, Guillermo Gómez-Peña) que se desenrola em torno da centralidade da figura de
Cristóvão Colombo e da descoberta das Américas pelo pensamento da modernidade pós-colonial.
Remeto também à esplêndida análise do evento da “descoberta” de Colombo oferecida por Serge
Gruzinski (1991 [1990]) em La guerra delle immagini. Da Cristoforo Colombo a Blade Runner.
7
Para as intervenções teóricas mais significativas desses pensadores é uma referência útil a
coletânea de ensaios traduzidos em italiano, organizada por Gennaro Ascione (2014), America
latina e modernità. L’opzione decoloniale: saggi scelti.
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etc. tornaram-se simplesmente índios; na África, axante, iorubá, zulu, congo, bacongo
etc. tornaram-se simplesmente negros. Isto é, as diferenças culturais foram transformadas
em diferenças raciais, para que se pudesse construir uma hierarquia de utilidade imediata
ao nascente sistema capitalista europeu8.
Também o conhecimento, a partir do século XVII, é hierarquizado. O conhecimento
da Europa ocidental passa a se identificar “como modernidade e racionalidade”, ou
melhor, a modernidade se torna “um produto exclusivamente europeu” (QUIJANO,
2014, p. 81). Como também reforça o estudioso José Saldívar, a classificação etnorracial
das Américas e do mundo (“embalsamação das identidades”) andou lado a lado com a
classificação das línguas e dos saberes, coisa que fez da epistemologia do Renascimento
o instrumento para estabelecer saberes ou suprimi-los9.
Os saberes colocados à parte pela “razão” europeia tornam-se aqueles saberes
“subalternos” que, para conceituá-los, Saldívar chama em causa Michel Foucault e a
sua famosa definição de “saberes sujeitados” (“subjugated knowledges”): ou seja, de um
lado, os conteúdos históricos que foram sepultados ou traduzidos em uma sistematização
funcional qualquer; de outro, por “saberes sujeitados” entende-se aqueles saberes que
foram aviltados e tidos como não à altura do seu encargo ou pouco refinados; saberes
ingênuos, colocados no grau mais inferior da hierarquia, abaixo do nível requerido de

8
José Saldívar (2012, p. 8) reporta do ensaio de Quijano e Wallerstein (1992), “Americanity
as a Concept, or the Americas in the Modern World-System”, uma iluminadora definição para
se compreender o quanto as diferenças raciais são, e foram, instrumentais para forjar o tipo
de economia moderna. Esses são, na verdade, confinamentos impostos, em parte, pelo poder
colonial, mas também em parte por nós mesmos, para associar a nossa identidade a uma local
específico e um nível específico no interior do estado. Mas as identidades étnicas são sempre
construtos ligados a uma instância temporal específica e, portanto, sempre mutáveis. Em todo
caso, as principais categorias atuais de diferenciação étnica nas Américas e no mundo (Nativos
Americanos ou Indígenas, Pretos ou Negros, Brancos ou Crioulos/Europeus, Mestiços ou outros
nomes dados às assim chamadas categorias mistas) são todas categorias que não existiam antes do
sistema-mundo moderno, e constituem a Americanidade. Tornaram-se a base cultural do sistema-
mundo como um todo.
9
“Em paralelo à classificação etnorracializada das Américas e do mundo (embalsamação das
identidades), o projeto colonial nas Américas também classificou línguas e conhecimento.
A epistemologia do Renascimento europeu foi, portanto, assumida como a perspectiva
natural a partir da qual o conhecimento poderia ser descrito e suprimido” (SALDÍVAR,
2012, p. 9). Saldívar refere-se aqui ao trabalho de Walter Mignolo (2000b), Local
Histories/Global Designs: Coloniality, Subaltern Knowledges, and Border Thinking.
Citação original: “[P]arallel to the ethno-racialized classification of the Américas and the world
(the embalming of identities), the colonial project in the Américas also classified languages and
knowledge. The epistemology of the European Renaissance therefore was assumed to be the
natural perspective from which knowledge could be described and suppressed”.
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conhecimento (FOUCAULT, 198010, citado por SALDÍVAR, 2012, p. 76-77).
A modernidade então se revela abertamente como um sistema de poder de
natureza colonial, um esquema, ou matriz, que Aníbal Quijano define como patrón
de poder, ou seja, colonialidade do poder. Trata-se essencialmente de compreender o
papel central que a ideia de raça reveste na classificação social da população do mundo.
Dentro desse sistema, as novas identidades socio-históricas espelhavam as exigências do
capitalismo emergente: isto é, nessa nova classificação, os brancos eram a parte patronal
e assalariada; os negros eram a parte reduzida à escravidão, mão de obra gratuita para o
sistema capitalista; os indígenas eram a parte destinada à servidão, parte não assalariada.
Essa ligação entre raça e trabalho tornava-se um precioso instrumento da colonialidade
do poder. Escreve Quijano:

Aquele elemento fundamental específico do novo esquema de poder


mundial baseado na ideia de raça e na classificação social racial da
população mundial - que se manifestava na distribuição racial do
trabalho, na imposição de novas identidades geoculturais raciais, na
concentração do controle dos recursos produtivos e do capital como
relações sociais, incluindo o salário como privilégio da whiteness - é ao
que essencialmente aqui se refere por meio da categoria colonialidade
do poder, elemento que incide sobre toda distribuição da população
mundial. Por isso, não obstante a “raça” e as relações sociais “racistas” na
vida cotidiana da população do mundo tenham representado a expressão
mais visível da colonialidade do poder durante os últimos quinhentos
anos, a implicação histórica mais significativa foi o surgimento de um
poder mundial capitalista moderno/colonial eurocêntrico com o qual
ainda hoje convivemos (QUIJANO, 2014, p. 77, grifos no original).

Nesse sentido, como sugere o intelectual venezuelano Fernando Coronil, a


biografia do capitalismo seria totalmente reescrita, já que o colonialismo não representa
nessa história apenas um detalhe, um episódio ocorrido alhures, mas sim um elemento
intrínseco ao desenvolvimento mesmo do capitalismo. Na verdade, expor a violência
intrínseca à formação do capitalismo torna-se um ato necessário:

Como se descobrissem os estratos submersos de um palimpsesto,


recuperar essa história reconduzirá à superfície as cicatrizes do passado
cobertas pela maquiagem das histórias sucessivas e tornará mais visíveis
também as feridas ocultas do presente. Uma abordagem que privilegia
a relação constitutiva entre capitalismo e colonialismo nos permite
reconhecer os papéis fundamentais desenvolvidos pelo trabalho e pela

10
No Brasil, o texto de Foucault (2005) que apresenta o conceito “saberes sujeitados” foi publicado
no volume Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). [N. T]
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natureza colonial na formação do mundo moderno. […] [A] partir dessa
perspectiva, a modernidade capitalista aparece desde o início como
resultado de transações transcontinentais cujo caráter efetivamente
global começou apenas com a Conquista e com a colonização das
Américas (CORONIL, 2014, p. 128).

Coronil contesta as retóricas entusiastas de uma globalização entendida como feliz


integração planetária, construção de uma “vila global”, já que esse fenômeno, longe de
ser novo, é na realidade o efeito não apenas de antigos processos, como trânsitos e trocas
comerciais transcontinentais, reconectáveis séculos atrás à expansão capitalista nascida da
colonização, mas é também o efeito de migrações em escala mundial, das quais derivaram
numerosas e imprevistas trocas transculturais. Para Coronil, que insiste na passagem do
eurocentrismo àquilo que denomina globocentrismo, a globalização neoliberal cria sub-
reptícias formas de unificação, operando, na realidade, sobre assimetrias:

Contrariamente ao eurocentrismo típico dos discursos ocidentais do


passado, que opera estabelecendo uma diferença assimétrica entre o
Ocidente e os seus outros, o “globocentrismo” e os discursos dominantes
da globalização neoliberal escondem a presença do Ocidente e ocultam
a dimensão pela qual este último continua a depender da submissão dos
seus outros e da natureza (CORONIL, 2014, p. 123).

A colonialidade do poder a respeito da qual insiste Quijano, ligando-a à relação


raça x trabalho, é então desnudada, retraçando justamente uma biografia diversa do
capitalismo, como auspiciado por Coronil, a fim de que se possa melhor compreender
também a formação do saber moderno e das suas disciplinas. A colonialidade do poder
inaugurou de fato um enquadramento evolucionista da história, que colocou “todos
os não europeus, em relação aos europeus, em uma cadeia histórica contínua que vai
de ‘primitivo’ a ‘civilizado’, de ‘irracional’ a ‘racional’, de ‘tradicional’ a ‘moderno’,
de ‘mágico-mítico’ a ‘científico’”; o não europeu podia apenas aspirar, se tanto, a ser
europeizado ou “modernizado” (QUIJANO, 2014, p. 82).

BORDERLANDS: EPISTEMOLOGIAS DE FRONTEIRA E TRANSAMERI-


CANIDADE

No entanto, essas nítidas separações que a colonialidade do poder impõe às


pessoas e ao mundo todo são uma ilusão que não pode se sustentar se se consideram
as interações sempre constantes entre os povos, antigos e recentes, ocorridas por meio
das rotas comerciais, dos eventos militares, das ocupações, das usurpações, da expansão
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capitalista com suas rotas transcontinentais, das enormes migrações que vêm desde sempre
caracterizando a história do mundo. Da reflexão sobre contínuas interações culturais entre
terras e gentes, a história da americanidade pode, por exemplo, reescrever-se à luz daquilo
que José Saldívar definiu como transamericanidade.
As perspectivas teóricas que emergiram, nessas últimas décadas, das terras de
fronteira (borderlands nos EUA, ou seja, aquele território que geograficamente ocupa
o sudoeste estadunidense na fronteira com o México), junto à criatividade artístico-
literária que dela brotou - a cultura chicana (mexicana-americana) é um exemplo -
mostram claramente como os territórios de fronteira se qualificam como perfeitos espaços
experimentais sobre os quais o pensamento decolonial pode refletir de maneira mais ampla
(SALDÍVAR, 2012, p. 11). O brilhante teórico e artista performático chicano Guillermo
Gómez-Peña, por exemplo, definiu a fronteira como um verdadeiro laboratório artístico,
enquanto que em The New World (B)order, de 1996, representou os Estados Unidos como
um território que se transformou rapidamente em uma enorme zona de fronteira, uma
sociedade híbrida, uma raça mestiça; um processo que é irreversível (GÓMEZ-PEÑA,
1996, p. 67). Nessa borderización incessante dos territórios, o artista pode ver (como
sugeriu o estudioso Roger Bartra) aquilo que aos outros não é imediatamente evidente: o
fato, por exemplo, de que a América Latina não termina exatamente na fronteira com os
Estados Unidos, mas se insinuou completamente no território anglo, acabando por ocupar
todos os seus espaços, do cultural ao sociopolítico e econômico11 (BARTRA, 1993, p. 11).
Falar de borderlands significa, inevitavelmente, recuperar sobretudo o célebre
Borderlands/La Frontera. The New Mestiza, de Gloria Anzaldúa (1987), texto teórico-
poético que, no ano de sua publicação, deu um excepcional impulso à reflexão e à releitura
do conceito de fronteira12. Voz teórica de maior referência para as borderlands do sudoeste
estadunidense, Anzaldúa propôs a sua teoria da fronteira, border theory, afirmando com
orgulho programático o pertencimento a uma cultura claramente bilíngue, na qual as
contaminações e as misturas do spanglish (um misto de inglês e de espanhol) desafiam
a ideia de uma presumida originalidade e pureza das diversas culturas, conclamando a
identidade cultural como identidade híbrida, sempre na fronteira entre coisas e mundos13.
As teorias da fronteira de Gloria Anzaldúa inauguraram, como reconhece a
estudiosa chicana Alicia Gaspar de Alba, um verdadeiro modelo no campo dos estudos de

11
Dediquei uma acurada panorâmica sobre o artista na primeira parte de Oltre la gabbia. Ordine
coloniale e arte di confine (DE CHIARA, 2018 [2005]).
12
Remeto a “La frontiera e il filo spinato: Borderlands di Gloria Anzaldúa” (DE CHIARA, 2001).
13
Para aprofundar a questão do spanglish remeto a Nuevas voces sobre el Spanglish: una
investigación polifónica, volume organizado por Silvia Betti e Enrique Serra Alegre (2016).
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americanística das últimas décadas, um modelo que permite “raciocinar e escrever sobre as
múltiplas histórias, línguas, gêneros e realidades raciais que convergem naquele vastíssimo
campo de milho da vida e cultura ‘Americana’” (GASPAR DE ALBA, 2014, p. xviii).
Nas borderlands o atravessamento e a mistura entre etnias, costumes, linguagens
é uma constante, e é aqui que se manifesta mais claramente o fato de cada identidade ser
híbrida por natureza. Como também já havia insistido nos anos 1920 José Vasconcelos -
ministro da Cultura mexicano que teorizou um mundo por vir que é e será inevitavelmente
o fruto de misturas de gentes -, a mestiçagem, explica Anzaldúa, está na raiz das culturas de
todo lugar, e a figura do mestizo e da mestiza são origem e destino do mundo14. Propondo
em termos fundamentalmente feministas15 a sua visão da identidade como produto de
elementos que se mesclam desde tempos e lugares distantes, Anzaldúa recorre ao conceito
asteca de nepantilismo:

Em um estado constante de nepantilismo mental, uma palavra asteca


que significa partido ao meio, la mestiza é um produto da transferência
de valores culturais e espirituais de um grupo para outro. Ser tricultural,
monolíngue, bilíngue, ou multilíngue, falando um patois, e em um
estado de transição constante, a mestiza se depara com o dilema das
raças híbridas: a que coletividade pertence a filha de uma mãe de pele
escura? (ANZALDÚA, 2005, p. 705)16.

14
O nome de José Vasconcelos está indissoluvelmente ligado ao livro-manifesto La raza cósmica,
de 1948, no qual formula as suas teorias sobre a identidade híbrida e sobre um futuro compósito
e mestiço.
15
Em um estudo anterior dedicado às Borderlands defini esse olhar feminista como feminismo da
hibridização: “Nenhum pertencimento e todos os pertencimentos, nenhuma casa e todas as casas:
esse é o estado de viagem contínua no qual se move la mestiza, estrangeira no lugar onde se fala
uma só língua, uma só cultura, um só desejo, uma só união […] um feminismo da hibridização
que vai além de apenas se deter sobre a necessidade da diferença, para mostrar os infinitos modos
pelos quais as próprias diferenças se complicam ao se articularem entre si” (DE CHIARA, 2001,
p. 124). Sobre Borderlands, veja-se também Mappings. Feminism and the Cultural Geographies
of Encounter, de Susan Stanford Friedman (1998, p. 94). De particular interesse a introdução
escrita por Norma Cantú e Aída Hurtado (2012) para a quarta edição de Borderlands, sobre o
impacto crítico desse texto, mais de vinte anos após sua publicação, nos estudos de fronteira.
16
In a constant state of mental nepantilism, an Aztec word meaning torn be- tween ways, la
mestiza is a product of the transfer of the cultural and spiritual values of one group to another.
Being tricultural, monolingual, bilingual, or multilingual, speaking a patois, and in a state of
perpetual transition, the mestiza faces the dilemma of the mixed breed: which collectivity does
the daughter of a darkskinned mother listen to? (ANZALDÚA, 1987, p. 78). [No texto original,
a autora incluiu essa citação em inglês e sua tradução para o italiano, que aqui substituímos pela
tradução em português. N. T.]
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O pensamento de Anzaldúa é profundamente decolonial ao recusar o terrorismo
cultural imposto pela cultura branca estadunidense e ao denunciar o estado de
esquizofrenia identitária ao qual o colonizador constringe o colonizado. Esse pensamento
tornou-se imediatamente central também para o feminismo chicano, dado que Anzaldúa
relê as experiências identitárias das mulheres chicanas criadas no sul do Texas (na
fronteira entre duas culturas, a mexicana e a estadunidense), fazendo da fronteira
entre esses dois países uma potente metáfora de todos os tipos de atravessamentos e
traspassamentos: atravessamentos de limites geopolíticos, sexuais, deslocamentos
sociais, cruzamentos e alianças por afinidades remotas, em suma, atravessamentos e
correspondências necessárias para sobreviver em contextos linguísticos e culturais
múltiplos (CANTÚ; HURTADO, 2012, p. 5-6).
Reler as histórias territoriais e culturais, coletivas ou singulares, a partir da
perspectiva da fronteira e da ideia de contínua transição da identidade (nepantla) significa
abrir perspectivas transnacionais que reescrevem a história das nações insistindo na ideia de
intercâmbio contínuo entre as culturas e as linguagens e sobre a porosidade das fronteiras.
Trata-se de perspectivas que o estudioso de origem argentina Walter Mignolo definiu
como border epistemologies, epistemologias da fronteira, e que emergem precisamente
destes territórios porosos para desafiar as narrativas monolíticas e limitadamente míopes
expressas pelas histórias nacionais.
Inspirando-se justamente no olhar de fronteira inaugurado por Gloria Anzaldúa e na
esteira do pensamento de Fernando Ortiz sobre a transculturation17, José Saldívar (2012,
p. 183) impulsiona à reformulação do conceito de América para se restituir uma imagem
transgeográfica da cultura americana18. Escrevendo a palavra América com acento19, o
estudioso quer destacar a centenária presença hispânica no território estadunidense, no
Caribe e na América do Sul. Essa presença centenária sofreu um cancelamento sistemático
e um ocultamento programático por parte do poder hegemônico branco e anglófono até
se tornar um elemento praticamente estranho à ideia de América. E se o sistema colonial
inventou categorias inteiras de diferenciação étnica que antes não existiam (por exemplo,
Nativos Americanos ou Indígenas, Pretos ou Negros, Brancos ou Crioulos/Europeus,

17
O neologismo de Ortiz, que tende a substituir o termo acculturation, melhor se adapta, segundo
ele, a explicar as complexas transmutações culturais verificadas em Cuba (ORTIZ, 1995, p. 97-
98, citado por SALDÍVAR, 2012, p. 231).
18
Aqui gostaria também de sugerir a leitura dada por Serge Gruzinski (1991 [1990]) da incrível
extensão do poder e do raio de ação da “hispânica” monarquia católica entre o fim do século XVI e o
início do XVII no globo terrestre, poder que leva Gurzinski a falar dela como monarquia “planetária”.
19
Diferente da ortografia do inglês, língua em que o autor escreve, e que grafa America sem
acento. Ver exemplo na citação original na nota 10 deste texto [N. T.].
Revista X, v. 16, n. 1, p. 175-193, 2021. 185
Mestiços e outros), úteis para criar hierarquizações para fins coloniais, é preciso então
recordar que todas constituem aquele tecido compósito que é a Americanidade.
Nessa reformulação do mundo por meio de novos modos de pensar, ou seja, novas
epistemologias, indaga-se também sobre a natureza colonial inserida em linguagens que
se tende a considerar neutras, objetivas, desinteressadas. Por exemplo, as linguagens das
teorias sociais e das teorias literárias. Trata-se, na realidade, de linguagens que evocam
implicitamente as hierarquizações estabelecidas pela colonialidade do poder, que dizem
respeito, como falado antes, também ao regime epistemológico, ou seja, o campo do
saber e do conhecimento. A esse propósito, Saldívar detém-se sobre uma questão que não
se refere simplesmente ao âmbito literário, mas investe a condição mesma do saber e da
relação com o mundo. Trata-se da questão do realismo e do assim chamado “realismo
mágico”, marvelous realism, que foi a chave estilística de narradores latino-americanos
como Gabriel García Márquez, Alejo Carpentier, Juan Rulfo, e outros. É uma questão
que se repensa à luz das dinâmicas de poder que entram em jogo na definição daquilo
que se considera real e daquilo que não o é. Na esteira das intuições de Louis Althusser
(Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, de 1970), Saldívar recorda que aquilo que
é considerado “realismo” representa apenas uma versão específica da realidade, ou seja,
aquela da ideologia hegemônica, “[…] o modo ideologicamente hegemônico de conceber
e expressar nossa relação com os mundos naturais e sociais à nossa volta. Em outras
palavras, […] o realismo funciona ideologicamente: ele se oferece como reflexão neutra
do mundo quando este é apenas um dos meios de evocá-lo” (SALDÍVAR, 2012, p. 226)20.
Colocando em dúvida o conceito de “realismo mágico” como estilo que
contradistingue a literatura latino-americana (e que forneceu uma importante referência
conceitual para um tanto de teorias pós-modernas), Saldívar prefere recorrer ao termo
transmodernism, um neologismo do teórico argentino-mexicano Enrique Dussel. Dussel,
como alternativa à noção eurocêntrica de pós-modernidade, insiste sobre os cruzamentos
múltiplos e as contaminações imprevistas entre as culturas, incluindo as mais distantes no
tempo e no espaço, e coloca as “histórias” transmodernistas em estreita relação com as
filosofias da libertação do Sul Global. Em suma, está em jogo disputar o real, avançar com
outras instâncias sobre o real que não respondam àquelas já predispostas pela empresa
colonial e epistemológica eurocêntrica21.

20
“[…] the ideologically hegemonic way to conceive and express our relationship to the natural
and social worlds around us. In other words, [...] realism functions ideologically: it offers itself as
neutral reflection of the world when it is but one way to conjure the world”.
21
Sobre a relação entre transmodernismo e ética da teologia da libertação, veja-se Saldívar (2012,
p. 201).
Revista X, v. 16, n. 1, p. 175-193, 2021. 186
Um dos desafios colocados hoje às ciências sociais é, então, a possibilidade de sair
das suas coordenadas eurocêntricas, como sublinha Catherine Walsh (2014, p. 167-169),
intelectual do Equador. Por exemplo, um dos caminhos a serem percorridos por uma séria
reviravolta decolonial é a revalorização daqueles conhecimentos e saberes que por séculos
foram tidos como não conhecimentos, interrogando também o papel desempenhado pelas
universidades como sedes do saber. O exemplo do intelectual português Boaventura de
Sousa Santos, com a criação de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais, é
reportado por Catherine Walsh como modelo de uma nova modalidade do saber, aquele de
uma “epistemologia do sul” que possa restituir credibilidade aos novos movimentos sociais
contra-hegemônicos, por exemplo, aqueles dos povos indígenas22 (WALSH, 2014, p. 161).

COLONIALIDADE DO PODER E OUTROS SUIS: HISTÓRIAS ITALIANAS

As reflexões de Quijano e do grupo de pesquisa latino-americano sobre a


colonialidade do poder revelaram-se certamente úteis para abrir perspectivas diversas
sobre faixas geográficas que se encontram há séculos prisioneiras da oposição
epistemológica entre norte e sul do mundo. Com o olhar voltado à situação italiana, uma
coletânea de ensaios de 2012 retoma as intuições de Quijano sobre a relação entre raça
e trabalho. Trata-se do livro organizado por Miguel Mellino e Anna Curcio (2012), La
razza al lavoro, que indaga justamente sobre essa conjunção à luz da recente história
italiana. Nas últimas décadas, na Itália, no que diz respeito às políticas trabalhistas e
imigratórias, a narrativa nacional acabou por se revelar como a tentativa falida de compor
em unidade um território assimétrico, absolutamente não homogêneo e, sobretudo,
assinalado por um racismo silencioso que opera agora, como foi no passado, sob várias
formas. Porque justamente o racismo se esconde frequentemente sob outros nomes, não
se declara abertamente, para não contradizer a imagem que as modernas nações europeias
amam promover de si como territórios livres e liberais, emancipados e progressistas.
As inflexões “locais” da questão italiana, conjugadas às reflexões teóricas pós-coloniais
de um cenário globalizado, mostram claramente o racismo como o - para dizer com as
palavras do crítico Homi Bhabha - “suplemento” da nação e da sua narrativa.
Nas modernas dinâmicas do trabalho, radicadas em uma economia de interconexões
totalmente despreocupadas de limites territoriais, aflora de fato uma intrínseca ligação
ideológica com o racismo europeu. O racismo, formidável instrumento propulsor, já desde
o século XVIII, das empresas coloniais nas quais estavam envolvidas as várias potências

22
Sobre o indigenismo, vejam-se as reflexões em De Chiara (2019b).
Revista X, v. 16, n. 1, p. 175-193, 2021. 187
europeias, continua a funcionar, também hoje, estrategicamente, de forma mais ou menos
oculta, na definição de uma cartografia do trabalho e dos seus percursos.
No presente da política italiana reafloram velhos fantasmas racistas que já
estavam presentes nas espinhosas questões da Itália pós-unitária, cortada ao meio pelo
antimeridionalismo23; da Itália colonialista nascida do sonho imperial de Mussolini;
da Itália esvaziada primeiro pelas migrações do fim do século XIX em direção a terras
distantes e, depois, impulsionada pela correnteza de trabalhadores que se deslocavam do
Sul ao Norte nos anos 1950.
Um não nomeado racismo anima também a relação entre as políticas territoriais e
a imigração estrangeira. Aqui se explica uma das gradações do belo título da coletânea: o
racismo está em obra, no trabalho, quando se trata de estabelecer como canalizar a força
de trabalho dos imigrados que, sobretudo a partir dos anos 1980, chegaram e continuam
chegando no solo italiano. Essas novas chegadas mudaram, na Itália, o cenário trabalhista,
no sentido de que o próprio mercado de trabalho mudou completamente de rosto quando
pôde colocar o outro para trabalhar, o portador de uma outra raça. Mas essa investigação
no atual mundo do trabalho, no fundo, desnuda também a própria história do capitalismo
moderno, como sublinham Anna Curcio e Miguel Mellino em sua articulada introdução.
Nos já distantes tempos em que nascia e se consolidava o trabalho moderno, aquelas
primeiras formas do modelo capitalista-burguês da produção, do consumo e da circulação
de matérias-primas e de mercadorias eram, com efeito, inequivocamente conectadas à
organização colonial estabelecida pelas potências europeias. Essas potências coloniais
desejaram e souberam colocar as populações colonizadas para trabalhar, criando, a
partir da própria posição de hegemonia, justificativas incontestáveis para declarar o outro
naturalmente predisposto ao assujeitamento; a raça, como novo conceito em si, ligado à
ideia de uma segura rastreabilidade científica quanto à inferioridade ou superioridade de
um tipo de homem em relação a outro, fornecia um excelente instrumento, e um nome-
chave, para assinalar a priori a um povo o seu pretenso destino.
Ao negro africano, trazido como animal acorrentado ao longo das rotas atlânticas,
coube, em nome da raça, não apenas o terrível destino de ocupar o último grau da escala
que definia o que era um homem e o que não era, mas, também, de funcionar como cobaia
para o moderno laboratório capitalista do trabalho; aquelas infames plantações nas quais
os escravos negros, com a sua mão de obra gratuita, enriqueciam os escravagistas dos
estados civis do Sul do território americano, forneceram de fato um tipo de modelo ideal

23
Diz respeito à ideia preconceituosa de que o sul da Itália - pessoas, cultura, modo de vida - é
inferior ao norte [N. T.].
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para a organização do trabalho na fábrica. Mas a ideia de um lugar de reclusão forçada
e de exploração também serviu, em solo europeu, quando o delírio de Hitler demonizou
o hebreu a ponto de confiná-lo nos campos de concentração; e ainda serve, ao italiano
de hoje e aos muitos europeus que vivenciam diretamente as “invasões” de refugiados,
marginalizados em busca de trabalho, para “represar” o imigrado e condená-lo, em sua
ameaçadora veste de clandestino, a lugares que se chamam “centros”, e que assumem de
tanto em tanto novos nomes para deter, identificar e expelir.
O imigrado (como notam Giorgio Grappi e Costanza Margiotta em seus
respectivos ensaios contidos em La razza al lavoro) questiona direta e radicalmente o
conceito de cidadania ao qual, nestas últimas duas décadas, ofereceu-se respostas sub-
reptícias e criminosas até mesmo em matéria jurídica, respostas que contribuíram para
tornar a existência do imigrado vulnerável, precária, sequestrável. Sob o denominador
comum da clandestinidade, o imigrado de hoje recorda a vulnerabilidade do trabalhador
que emigrava do sul para procurar trabalho e moradia nas cidades industrializadas
do norte, como Turim, Gênova, Milão, já a partir dos nos 1950. A astúcia sádica das
políticas territoriais de então, que eram cúmplices dos discursos antimeridionalistas
difundidos há um século, contribuíam para alimentar um mercado de trabalho que, como
explica Enrica Capussotti, sempre explorou a posição de fragilidade do trabalhador. De
um lado se criava um repositório de trabalho a baixo custo, de outro nascia uma nova
figura de criminoso: o clandestino, o emigrante sem residência. O caso de Lampedusa24,
por exemplo, que já há quase vinte anos é sintomático na Itália quanto às políticas de
imigração (na imediata concretude de fazer frente aos desembarques dos refugiados e
à primeira acolhida, à defesa das fronteiras do território de chegada e ao controle das
fronteiras dos territórios de proveniência dos imigrados), tem sido analisado por Gianluca
Gatta também como paradoxo de um antimeridionalismo, aquele da Lega Nord25, que em
Lampedusa rende mais discursos26.

24
Ilha siciliana onde são frequentes os desembarques de refugiados oriundos do norte da África
[N. T.].
25
Liga Norte, em português. Partido regionalista de extrema-direita do norte da Itália [N. T.].
26
Sobre a condição dos migrantes desembarcados em Lampedusa sugiro a tocante leitura de
Angela Lanza (2014), La storia di uno è la storia di tutti. O volume contém um testemunho de
Enza Malatino e o texto da Carta de Lampedusa. Lampedusa, com os trágicos desembarques
e a memória marinha dos inumeráveis por afogamento, tornou-se recentemente também fonte
de uma verdadeira “estética lampedusana” (IANNICIELLO; QUADRARO, 2015). [A Carta de
Lampedusa é um documento elaborado em 2014 por representantes da sociedade civil, propondo
um novo paradigma para se lidar com as realidades migratórias. O documento começou a ser
elaborado depois do naufrágio em que morreram mais de 400 pessoas vindas do norte da África
quando tentavam chegar à Itália [N. T.].
Revista X, v. 16, n. 1, p. 175-193, 2021. 189
Também se encontram, porém, cenários nos quais a palavra raça carrega
outros signos: o trabalhador meridional nos anos 1960 e 1970 se organizava em lutas
operárias, emitindo uma nota dissonante nas políticas daqueles anos, assim como hoje
os movimentos antirracistas e as demandas trabalhistas dos imigrados criaram novas
sinergias e significações culturais. Chiara Bonfiglioli coloca como exemplo ainda os
novos debates nascidos nos movimentos feministas, partindo do corpo vitimizado da
“estrangeira”, sobre o qual pesa o fardo de um imaginário carregado: aquele, otimamente
ilustrado por Caterina Miele, das ex-colônias, a Líbia e a Etiópia, que o italiano fascista
quer dobrar ao prestígio da raça.
Nessa condenação partilhada pelo atraso e pelas resistências da legislação
italiana concernente às novas configurações da cidadania em um contexto decididamente
multicultural, Sandro Mezzadra recorda que já Antonio Gramsci lia o multiculturalismo
em ato como uma das emergências críticas de então, antecipando a atual necessidade
intelectual e política de se haver com questões como a da fronteira, da territorialidade,
do pertencimento identitário, da “diferença” e da hibridização cultural. A pergunta à qual
precisar-se-ia dar enfim uma séria resposta se perfila, na realidade, como uma pergunta
sobre a “pedagogia” em si, em sentido lato, de uma nação: com quais elementos, pergunta
Luca Queirolo Palmas, pode-se formar, seja na escola, seja no cotidiano, o cidadão de uma
Europa “mestiça”? Como tornar-se cidadão “responsável” depois do trauma (para retomar
as perplexidades de Renate Siebert em seu ensaio) de se descobrir ex-colonizador e racista?
As disciplinas ditas humanísticas têm um dever especial nesse percurso delicado,
mas urgente, que implica uma plena consciência das assimetrias econômicas de um país,
pois as assimetrias econômicas, em qualquer sociedade, produzem sempre, tanto ontem
como hoje, um imaginário que é feito de medo, lugares-comuns, mesmo se às vezes
fascinantes. E acaba-se então por contar uma mesma história: a da ameaça do bandido,
emblema de um sul que se subtraía, sombrio e desafiador, à unificação da Itália - que Pietro
Germi imortalizou em seu filme de 1952, O bandido da Cova do Lobo -, a da ameaça
do cigano, o “estrangeiro” absoluto, relegado às margens do viver civil, junto àqueles
mesmos aterros onde facilmente também se perde a nossa humanidade. Trata-se de uma
ameaça que continua a aparecer em cada lugar do nosso planeta, em formas diversas,
mas sempre inscritas no jogo de forças entre hegemônico e subalterno, como mostram a
estética colonial e pós-colonial; dos memoráveis “selvagens” imortalizados em narrativas
“modelo” da Europa moderna como, por exemplo, a figura de Calibã em A tempestade,
de Shakespeare, ou a figura de Sexta-Feira (Friday) no romance Robinson Crusoé, de
Daniel Defoe, o imaginário moderno nunca cessou de parir figuras “outras” sobre as

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quais projetar o lado obscuro daquilo que não se deseja, definitivamente, reconhecer
como parte de si27.

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27
Para outras perspectivas sobre a figura do “nativo” como objeto etnográfico, veja-se o já citado
Oltre la gabbia. Ordine coloniale e arte di confine (DE CHIARA, 2018 [2005]) e “Nostalgie
coloniali? Clifford racconta Ishi” (DE CHIARA, 2019b).
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