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28 DE MARÇO DE 2016

A PERSONALIDADE ADICTIVA: RAÍZES,


RITUAIS E RECUPERAÇÃO
RAÍZES, RITUAIS, RECUPERAÇÃO

LUÍS SANTOS
TÉ ADICTIVO PERSONALITY
Craig Nakken
©1988 by Hazelden Foundation

A PERSONALIDADE ADICTIVA
Craig Nakken
©1996, ATT – Associação para o Tratamento das Toxicodependências

Primeira edição publicada pela ATT por contrato com a Hazelden Foundation.
Reservados todos os direitos

ISBN: 972-8272-16-2
Depósito Legal: 105807/96
Impressão: SIG – Soc. Industrial Gráfica
Produção Editorial: Colares Editora

Notas dos editores à tradução portuguesa


1. Uma adicção consiste no uso habitual de substâncias alteradoras do humor
(álcool, drogas) ou do comportamento (jogo, abuso de comida) que é
caracterizado pela tolerância à substância ou comportamento (um crescente
recurso à substância / comportamento torna-se necessário para obter o
mesmo efeito) e pela perda de controlo (o uso continuado apesar das suas
consequências). A dependência química consiste na adicção ao álcool e / ou
outras drogas. É uma doença progressiva e, se não for tratada, mortal.
2. A expressão “Acting out” utilizada no original inglês é descrita num dicionário
como “a representação de um papel, normalmente na vida real, com um
determinado objectivo ou propósito”; na presente tradução optou-se por uma
solução técnica: “actuar nos sentimentos”.

1
A Personalidade Adictiva
Dedicatória ........................................................................................................................ 5
Introdução.......................................................................................................................... 6
Primeira Parte: A adicção como processo ......................................................................... 7
Ampliar o campo da adicção .......................................................................................... 8
Actuar nos sentimentos .............................................................................................. 9
Conforto através da fuga .......................................................................................... 10
Lógica Emocional ......................................................................................................... 11
A adicção é mais do que uma relação de conveniência ............................................ 12
A adicção é um amor patológico e uma relação de confiança com um objecto ou
acontecimento .......................................................................................................... 13
A adicção corresponde a não sair de si mesmo ........................................................ 13
Como os adictos se tratam a si mesmos e aos outros.................................................. 14
Os objectos são previsíveis ...................................................................................... 15
Prioridades deslocadas............................................................................................. 16
Quando se formam as relações adictivas ..................................................................... 16
A Sedução na Adição ................................................................................................... 17
Intensidade confundida com intimidade .................................................................... 18
Objectos e acontecimentos que provocam a adicção ................................................... 21
Segunda Parte: Fases da adicção ................................................................................... 23
Fase um: A mudança interna ....................................................................................... 23
Como começa .......................................................................................................... 24
Relações naturais ................................................................................................. 25
O Ciclo Adictivo ..................................................................................................... 26
A Personalidade Adictiva ...................................................................................... 27
Desenvolvimento de uma personalidade adictiva .................................................. 29
Vergonha .................................................................................................................. 30
Onde a personalidade adictiva emerge..................................................................... 31
Como ganha controlo a personalidade adictiva......................................................... 32
A Ilusão do Controlo ................................................................................................. 35
Lógica Adictiva ......................................................................................................... 35
O Sistema Ilusório da Adicção .................................................................................. 37
Quando tem lugar a recuperação ............................................................................. 38
Fase dois: Mudança de estilo de vida........................................................................... 39
Comportamento do Adicto ........................................................................................ 40
Exemplos de promessas adictivas ........................................................................ 42

2
A Personalidade Adictiva
Rituais Adictivos ....................................................................................................... 42
Escolhas e Rituais................................................................................................. 45
A Comunidade e os Rituais ................................................................................... 46
Comprometimento e rituais ................................................................................... 47
Desenvolver Rituais Saudáveis ............................................................................. 48
Luta interior............................................................................................................... 49
Problemas com as pessoas ...................................................................................... 50
Como é que os outros reagem em relação ao adicto ................................................ 51
Tornar-se dependente do Adicto ........................................................................... 52
Aumentando o processo adictivo .............................................................................. 53
Ficar descontrolado ............................................................................................... 54
O esgotar da energia............................................................................................. 55
Vazio Espiritual ......................................................................................................... 56
Fase três: Colapso da vida ........................................................................................... 57
Actuar desagrega a pessoa ...................................................................................... 58
Colapso da lógica adictiva ........................................................................................ 58
A capacidade de enfrentar entra em colapso ............................................................ 59
O relacionamento com os outros desmorona-se ....................................................... 60
O Adicto: querer estar sozinho.................................................................................. 60
O Eu: Não querer estar sozinho ................................................................................ 61
Problemas com o meio ............................................................................................. 62
Sinais Físicos de Colapso ......................................................................................... 64
Pensamentos de suicídio .......................................................................................... 64
Preso na Fase Três .................................................................................................. 64
Terceira Parte: Sociedade e adicção ............................................................................... 66
Como a sociedade empurra as pessoas para a adicção .............................................. 66
O esforço para ser o primeiro ................................................................................... 66
Viver para os resultados ........................................................................................... 67
Controlo .................................................................................................................... 68
Perfeição .................................................................................................................. 69
Falta de Relações Genuínas..................................................................................... 71
Adorar objectos......................................................................................................... 73
Uma sociedade descartável ...................................................................................... 73
O que acontece quando se levam as coisas a um extremo ...................................... 74
Quarta parte: Família e adicção ....................................................................................... 75

3
A Personalidade Adictiva
Ter pais que sofrem de adicções.................................................................................. 76
Instabilidade emocional ............................................................................................ 79
Crescer numa família aditiva ........................................................................................ 81
Crescer numa família negligente .................................................................................. 83
Famílias desaprovadoras ............................................................................................. 84
Famílias inconsistentes ................................................................................................ 86
Morte de um membro da família ................................................................................... 87
Quinta Parte: Recuperar da adicção ................................................................................ 89
Desenvolver relações naturais ..................................................................................... 89
Sair de si................................................................................................................... 90
S ............................................................................................................................... 91
Intimidade ................................................................................................................. 91
Honestidade ............................................................................................................. 92
O processo de cura ...................................................................................................... 92
Novos Valores .......................................................................................................... 93
A Recuperação através do respeito pela Adicção ..................................................... 93
Ser carinhoso consigo mesmo .................................................................................. 94
Fiscalizar o Adicto Interno ......................................................................................... 94
O perigo de fazer trocas de adicções ........................................................................... 95
Honestidade e Recuperação ........................................................................................ 96
Relações e Recuperação .......................................................................................... 99
Comportamento respeitoso em relação aos outros ................................................. 101
Sentir-se apoiado.................................................................................................... 101
Ser aceite por aquilo que se é ................................................................................ 102
Definir a abstinência em recuperação ........................................................................ 102
A Culpa contra a vergonha na recuperação ............................................................... 104
Rituais e Recuperação ............................................................................................... 106
A Recuperação como Comunidade ............................................................................ 108

4
A Personalidade Adictiva
Dedicatória

À minha mulher Jane e à natureza, que ambas me ensinaram muito daquilo que sei
sobre mim, as relações, a beleza e o amor.

5
A Personalidade Adictiva
Introdução

Este livro foi escrito para ajudar os seus leitores a melhor compreenderem o
processo de adicção e o desenvolvimento da personalidade adictiva. Procura abrir
o espírito das pessoas para a profundidade e dimensões de uma das doenças mais
espalhadas e com mais custos que enfrentamos atualmente. É minha intenção dar
ao leitor uma melhor ideia da adicção, uma melhor compreensão daquilo a que as
pessoas se podem tornar adictas e daquilo que se passa dentro de quem sofre
desta doença.
No passado, o termo “adicção” teve um significado muito restrito, sendo quase
inteiramente associado ao álcool e outra drogas. Na realidade, não é de forma
nenhuma esse o caso. Existem milhões de adictos que nunca fizeram uso de
químicos alteradores do estado de humor nos seus rituais para ficarem “pedrados”1.
Há centenas de milhares de adictos à comida, ao jogo, ao sexo, adictos ao furto, ao
trabalho e às compras, e muitos outros que levam uma vida de isolamento
emocional, vergonha e desespero causados pelo estigma da sua adicção. Este livro
é escrito para eles e pelas lutas que travam para verem o seu sofrimento
compreendido e as suas adicções reconhecidas. Este livro também é escrito para
ajudar os adictos a melhor observarem as suas adicções identificadas e a prevenir
que elas se transformem noutras adicções.

1
“high” no original inglês

6
A Personalidade Adictiva
Primeira Parte: A adicção como processo

Tem havido, ao longo dos anos, muitas maneiras diferentes de descrever a adicção.
Para citar alguns exemplos, a adicção tem sido descrita como uma fraqueza moral,
uma falta de força de vontade, uma incapacidade de enfrentar o mundo, uma
doença física e uma doença espiritual. Se fizer parte da família ou for amigo de um
adicto praticante, poderá descrever a adicção de forma mais colorida. Quase todas
as descrições contêm elementos de verdade sobre a natureza da adicção.
Nas páginas que se seguem, apresento uma descrição e uma definição do que
acredito ser a adicção. Comecemos por uma premissa básica a respeito da maior
parte das pessoas: quase todos os seres humanos têm um profundo desejo de se
sentirem felizes e de encontrarem a paz do espírito e da alma. Em certas alturas da
vida grande parte de nós encontrou essa plenitude de paz e beleza, mas depois é
como se ela nos fugisse e desaparecesse, para voltar a aparecer apenas noutra
ocasião, mais tarde. Quando ela nos abandona, sentimos uma ligeira sensação de
tristeza e até mesmo uma ligeira sensação de luto. Em muitos aspectos, isto
corresponde a um dos ciclos naturais na vida. Não é um ciclo que possamos
controlar.
Há coisas que podemos fazer para nos ajudarem a atravessar estes ciclos, mas
eles são na sua maioria incontroláveis no sentido em que todos nós temos de passar
por eles. Podemos aceitar estes ciclos e aprender com eles ou lutar contra eles e
tentar ser felizes a tempo inteiro.
A adicção pode ser encarada como uma tentativa de controlar estes ciclos
incontroláveis. Quando os adictos escolhem um objecto ou um acontecimento
especial para produzirem a alteração do estado de humor que desejam alcançar,
do ponto de vista emocional acreditam que podem controlar estes ciclos. E, no início
realmente podem. A adicção é, no seu sentido mais básico, uma tentativa de
controlar e satisfazer este desejo.
A adicção tem de ser considerada como um processo progressivo. A adicção tem
de ser encarada como uma doença que passa por um desenvolvimento contínuo,
que vai desde um começo definido, embora frequentemente pouco claro, até um
ponto final.
Pode-se estabelecer uma comparação pertinente entre uma adicção e um cancro.
Para compreendermos todas as diferentes formas de cancro, é útil
compreendermos o que é que todas essas formas diversas têm em comum. Todos
os cancros têm entre si um processo semelhante – a multiplicação descontrolada
de células. Por consequência, temos de compreender aquilo que todas as adicções
e o processo de todas as adicções têm em comum: a procura descontrolada e vã
da plenitude, felicidade e paz através de uma relação com um objecto ou um
acontecimento.
7
A Personalidade Adictiva
Ao longo deste livro, emprega-se a frase “um objecto de um acontecimento”
referindo-me a um adicto que se envolve no processo de adicção. Embora exista
uma grande variedade de adicções, não importa qual for a escolhida, todo o adicto
se envolverá na relação com um objecto ou um acontecimento a fim de conseguir a
alteração de humor desejada.

 O alcoólico sente uma mudança na sua disposição ao beber copos na tasca


da esquina.
 A pessoa que tem uma adicção pela comida sofre uma alteração do humor
quando come de mais ou quando se sente a morrer de fome.
 O jogador adictivo muda de estado de humor quando aposta em jogos de
futebol que depois acompanha através da televisão.
 O adicto ao pequeno furto experimenta uma mudança de humor quando
rouba roupa num armazém.
 O adicto sexual muda de humor ao folhear livros pornográficos numa livraria.
 A pessoa que tem uma adicção pelas compras sente uma alteração na sua
disposição quando resolve comprar tudo o que lhe apetecer.
 O adicto ao trabalho sente que o seu humor muda ao ficar no emprego para
realizar mais uma tarefa, mesmo quando a sua presença é necessária em
casa.

Embora os vários objectos e acontecimentos que descrevi sejam diferentes em


muitos aspectos, eles têm em comum o facto de produzirem nos adictos que os
escolhem as alterações de humor que desejam.

Ampliar o campo da adicção

A adicção tem sido encarada de forma muito limitada. O facto do tratamento da


adicção ser um campo de estudo muito recente explica esta visão limitada. O
desenvolvimento do tratamento da adicção numa escala com alguma dimensão
começou em 1935 com o princípio dos Alcoólicos Anónimos, que se dedicaram a
uma forma específica de adicção – o alcoolismo. Em contraste, a maior parte das
outras áreas de estudo começam com um conhecimento geral do assunto que, à
medida que o tempo passa, se torna cada vez mais específico.
Os nossos conhecimentos sobre adicção começaram por uma das suas formas
particulares, estando agora a começar a ser transferidos a fim de ajudar pessoas
com outras formas de adicção. Além do mais, não foi um grupo de profissionais que
começou o tratamento da adicção, mas sim um grupo de pessoas que sofriam de

8
A Personalidade Adictiva
uma forma específica de adicção. À medida se aprendia cada vez mais sobre a
natureza da adicção graças a estes pioneiros, descobriu-se que os seus princípios
a respeito da recuperação também eram úteis para ajudar pessoas com outras
formas de adicção. À medida que estes conhecimentos eram partilhados, pessoas
com outras formas de adicção começaram a usar os seus princípios para
recuperarem. Foi assim que começaram os Jogadores Anónimos, os Adictos ao
Sexo Anónimos, os Adictos ao Furto Anónimos, os Compradores Anónimos e outros
grupos de ajuda dos Doze Passos.
Actualmente, o nosso campo de conhecimentos está a expandir-se. começamos a
levantar novas interrogações e a encontrar resposta para elas.
Porque será que certos princípios de recuperação se revelam tão eficazes para
todos estes grupos aparentemente tão diferentes? O motivo aparente é que se está
a tratar a mesma doença: a adicção. Começamos a constatar que existem muitas
formas diferentes de adicção; embora sejam diferentes, têm mais semelhanças do
que diferenças. Este livro é sobre as suas semelhanças.

Actuar nos sentimentos2

Vamos descrever rapidamente o que entendemos por “actuar nos sentimentos” visto
ser um termo que vai ser empregue frequentemente ao longo deste livro.
Chamamos actuar nos sentimentos ao facto de um adicto se envolver em
comportamentos adictivos ou em obsessões mentais adictivas.
Eis alguns exemplos:
 Adictos ao sexo que atravessam uma área da cidade em que têm grandes
probabilidades de encontrar prostitutas.
 Adictos ao jogo estudando o impresso de apostas de uma corrida.
 Adictos à comida que planeiam ir comprar comida em lojas diferentes
temendo que os empregados comecem a falar mal deles.
 Adictos às compras fazendo uma compra de última hora

Para o adicto, actuar nos sentimentos é uma forma de criar determinados


sentimentos que causam uma modificação emocional e mental na pessoa. É esta
mudança que o adicto deseja. Actuando nos sentimentos, quer seja através dos
pensamentos, quer pelo seu efectivo comportamento, o adicto aprende a criar a
sensação de estar descontraído, excitado ou controlado. O adicto pode também
criar sentimentos de medo, vergonha, aversão e ódio por si mesmo. mais importante

2
No original inglês: Acting out

9
A Personalidade Adictiva
que tudo, ele consegue obter a ilusão de estar a controlar através de actuar nos
sentimentos.
A adicção torna-se uma tentativa de encontrar um sentido emocional para a vida.
Os adictos acreditam que se estão a realizar do ponto de vista emocional. A “pedra”3
criada pelo actuar adictivo é muitas vezes descrita pelo adicto como sendo uma
ocasião em que se sentem vivos e inteiros. Isto é especialmente verdade nas fases
iniciais do processo de adicção.
O actuar nos sentimentos adictivo é uma forma de escapar às pressões e tensões
da vida quotidiana e até mesmo, por vezes, à vergonha e sofrimento criados pelo
processo adictivo.

Conforto através da fuga

A adicção e a mudança de humor criadas pelo pôr em prática constituem um


processo muito sedutor. O adicto é seduzido emocionalmente pela convicção de
que é possível uma pessoa encontrar conforto espiritual nos objectos ou nos
acontecimentos.
Podemos obter um alívio temporário através de objectos e de acontecimentos, mas
não podemos retirar deles um verdadeiro apoio. Todos nós temos de lidar com
problemas, sofrimentos, frustrações e recordações que preferíamos não ter de
enfrentar. Em determinadas alturas, todos nós usámos objectos ou acontecimentos
para evitar encarar certas coisas. A diferença entre isto e a adicção é que a adicção
é um estilo de vida em que a pessoa perde o controlo e fica encerrada numa forma
de evasão emocional da vida.
Os adictos adiam constantemente os problemas da vida como forma de se
confortarem espiritualmente. Todos nós temos em potência esta capacidade de
formar relações adictivas com um certo número de objectos e acontecimentos
diferentes, especialmente durante épocas de tensão em que uma promessa de
ajuda e conforto será bem-vinda.
Os adictos tentam confortar-se evitando a realidade e a responsabilidade, razão
pela qual a adicção é uma forma ineficaz de encontrarem apoio. A mudança de
humor criada pelo actuar nos sentimentos, apenas cria a ilusão de estarem a obter
esse apoio.

 O adicto à comida lança-se numa grande comezaina depois de ter uma


discussão com o companheiro e encontra a ilusão de paz. De momento,

3
High no original

10
A Personalidade Adictiva
sente-se cheio em vez de vazio, mas apenas por algum tempo. Durante estes
momentos, cria-se uma sensação intensa de conforto.
 O jogador mergulha na acção e sente-se excitado, confiante e seguro de si.
Desta vez sabe que aa sorte está do seu lado.

Lentamente, os adictos começam a depender do processo da adicção para se


sentirem confortados e para sentirem quem são. As suas vidas transformam-se na
procura da sua adicção.

Lógica Emocional

A adicção começa com uma ilusão emocional. Esta ilusão entranha-se no adicto
antes que as pessoas à sua roda e até mesmo ele próprio se dêem conta de que
se formou uma relação adictiva. O adicto começa a construir um sistema de defesa
a fim de proteger o seu sistema adictivo de crenças dos ataques dos outros, mas
só depois de a adicção já estar bem implantada ao nível emocional. A um nível
mental, intelectual, um adicto sabe que um objecto não pode oferecer satisfação
emocional. Os alcoólicos conhecem o velho ditado de que «não se pode fugir para
dentro de uma garrafa». Os adictos ao trabalho sabem que a vida não é só trabalho.
Os compradores adictivos compreendem que o dinheiro não traz felicidade.
A doença da adicção começa no mais profundo da pessoa. O sofrimento pelo qual
a pessoa está a passar dá-se a um nível emocional. A intimidade, positiva ou
negativa, é uma experiência emocional. Este sentimento de intimidade é
experimentado, mas não é considerado logicamente. A adicção é uma relação
emocional com um objecto ou um acontecimento, e os adictos tentam corresponder
às suas necessidades de intimidade através dessa relação. Quando é observada
dessa forma, a lógica da adicção começa a tornar-se clara.

 Quando os adictos à comida se sentem tristes, comem para se sentirem


melhor.
 Quando os alcoólicos começam a sentir que estão a perder o controlo por
causa da raiva, tomam uns copos para voltarem a controlar-se.

A adicção é muito lógica e segue realmente uma progressão lógica, mas esta
progressão está totalmente baseada naquilo a que eu chamo lógica emocional, e
não numa lógica racional. A pessoa que tenta compreender a adicção com uma
lógica racional. A pessoa que tenta compreender a adicção usando uma logica
racional ficará frustrada e será manipulada pelo adicto. É em parte por esta razão
11
A Personalidade Adictiva
que a terapia pela fala (conversa com um terapeuta ou conselheiro) é tão ineficaz
para convencer os adictos a acabarem com as suas destrutivas relações adictivas.
Podemos sintetizar a lógica emocional na frase, “Sei o que quero e quero-o
imediatamente”. As necessidades emocionais são sentidas, muitas vezes, de forma
urgente e compulsiva. Alógica emocional funciona para satisfazer esta urgência,
mesmo que não seja no melhor interesse da pessoa. Um exemplo:

 O jogador diz que já jogou tudo o que tinha a jogar esta semana. Tem um dia
complicado no trabalho. Sente-se inquieto e, por isso, olha para o boletim
das corridas só para ver como é e sentir-se mais bem-disposto, continuando
ainda a dizer a si mesmo que não joga mais nessa semana. Ao rever o
boletim de apostas, a sua lógica emocional começa a dizer-lhe que descobriu
a aposta certa. «Como é que eu não vi isto há mais tempo?» diz ele. «Era
uma loucura perder esta oportunidade!” Então, fica irritado consigo – uma
metade de si acredita na «descoberta» enquanto a outra lhe lembra a
promessa de não jogar. Dentro, cresce a pressão emocional. Visto a adicção
representar o satisfazer das necessidades emocionais e o aliviar das
pressões emocionais, ele terá finalmente de se submeter ao seu impulso,
especialmente depois de se ter convencido que era estúpido não aproveitar
aquela oportunidade.

A lógica emocional atiça uma pessoa contra si mesma. A lógica emocional pode ser
muito manhosa. No livro Alcoólicos anónimos, há uma frase que diz, «Lembre-se
que estamos a lidar com o álcool – astucioso, desconcertante, poderoso.». Penso
que esta é uma das formas mais verdadeiras de descrevera lógica emocional que
se encontra em todas as adicções: «astuciosa, desconcertante, poderosa».

A adicção é mais do que uma relação de conveniência

Geralmente, as relações das pessoas com os objectos ou os acontecimentos são


«relações de conveniência». Isto quer dizer que manipulamos objectos para nossa
própria conveniência. Estas relações com objectos destinam-se a tornar a nossa ida
mais fácil e mais confortável. A maior parte das pessoas tem relações de
conveniência com os mesmos objectos em relação aos quais os adictos se tornam
dependentes. Normalmente, são relações onde não existem laços emocionais ou
ilusão de intimidade. Contudo, para os adictos, o objecto ou acontecimento começa
a tornar-se cada vez mais importante, à medida que tentam dar satisfação às suas
necessidades emocionais e de intimidade, transformando-se realmente na sua
relação emocional primordial. Porque sentem uma alteração no seu estado de

12
A Personalidade Adictiva
humor, começam a acreditar que as suas necessidades emocionais ficam
satisfeitas. Isto é ilusão.
Consideradas de forma realista, as relações com objectos são relações de
conveniência. A partir do momento em que uma pessoa começa a procurar num
objecto ou num acontecimento sua estabilidade emocional está a lançar as bases
para uma relação afectiva com eles.
Neste ponto, quero esclarecer a minha definição de adicção, que é uma variante de
uma outra que se desenvolveu no campo da dependência de químicos. A minha
definição de adicção é a seguinte:

A adicção é um amor patológico e uma relação de confiança com um objecto ou


acontecimento

A adicção é uma relação patológica. Que quer isto dizer? Ser patológico é desviar-
se de uma condição saudável ou normal. Quando se diz que alguém está doente,
queremos dizer que essa pessoa se afastou daquilo que é considerado “normal”.
Portanto, a palavra “patológico” quer dizer “anormal”. Por consequência, a adicção
é uma relação anormal com um objecto ou um acontecimento. Todos os objectos
têm uma função normal e socialmente aceitável. A comida serve para alimentar; o
jogo serve de divertimento e prazer; as drogas ajudam a dominar as doenças.
Isto são exemplos das funções normais e aceitáveis destes objectos ou
acontecimentos. Quem quer que use estes objectos ou acontecimentos da forma
que é aceite pela sociedade será encarado como tendo uma relação normal e
saudável com eles. Numa adicção, o adicto afasta-se da função normal e aceite
pela sociedade em relação ao objecto e inicia com ele uma relação patológica ou
anormal. A comida, o jogo ou as drogas adquirem uma nova função: o adicto
desenvolve uma relação com um objecto, esperando assim satisfazer as suas
necessidades aqui reside a insanidade da adicção, pois eu as pessoas obtêm
geralmente a satisfação das suas necessidades através de ligações íntimas com
outras pessoas, consigo mesmas, com a sua comunidade, e com um poder
espiritual maior do que elas. É através de uma combinação equilibrada destas
relações que as pessoas conseguem uma satisfação emocional saudável.

A adicção corresponde a não sair de si mesmo

Estas formas normais de se atingir a intimidade supõem que se vai ao encontro da


vida. Confortamo-nos emocionalmente saindo ao encontro dos outros e voltando,
em seguida, para dentro de nós, na adicção, este movimento é quase totalmente

13
A Personalidade Adictiva
interior, ao ponto de quase desaparecer. A adicção existe dentro da pessoa.
Quando os adictos entram em contacto com as suas adicções, retiram-se. Sempre
que os adictos ficam preocupados ou actuam de forma adictiva, isso força-os a
afastarem-se, a isolarem-se dos outros. Quanto mais tempo uma doença adictiva
progride, menos a pessoa se sente capaz de ter relações significativas com os
outros.
A adicção faz com que a vida se torne muito solitária e isolada, o que cria no adicto
maior necessidade de actuar nos sentimentos. Quando o adicto sofre, irá à procura
da adicção. Quando o sofrimento cria uma necessidade emocional, o adicto volta-
se para a adicção a fim de obter alívio, tal como qualquer outra pessoa poderá
procurar alívio junto do cônjuge, do melhor amigo ou nas suas crenças espirituais.
A alteração do humor dá ao adicto a ilusão de ter satisfeito uma necessidade.

Como os adictos se tratam a si mesmos e aos outros

Algumas mudanças irão ocorrer pelo facto de a adicção ser uma doença na qual a
relação essencial se processa com objectos ou acontecimentos e não com pessoas.
Os objectos são manipulados para nosso prazer próprio, para nos tornar a vida mais
fácil; os adictos transferem lentamente este estilo de relação com os objectos para
a forma como se relacionam com as pessoas. Para o adicto praticante, as pessoas
tornam-se objectos unidimensionais para serem manipulados. À medida que o
tempo passa torna-se uma segunda natureza no adicto tratar as pessoas como
objectos.

 O adicto ao sexo encara as pessoas em primeiro lugar como objectos sexuais


e, em segundo lugar, como pessoas. As pessoas à volta do adicto cansam-
se, ficam frustradas, raivosas e, finalmente, fartas de serem tratadas como
objectos.

Tratar as pessoas como objectos conduz, na realidade, a uma maior distância e a


um maior isolamento em relação aos outros.
Os adictos tratam-se a si mesmos como tratam os outros. Ao tratarem-se a si
mesmos como objectos, os adictos sujeitam as suas emoções, a sua mente, o seu
espírito e o seu corpo a muitos e diferentes perigos. Uma grande quantidade de
adictos vive sob uma dose de tensão altamente perigosa. Continuarem a tratar-se
como objectos conduzirá muitas vezes a uma qualquer forma de colapso.

14
A Personalidade Adictiva
Os objectos são previsíveis

Através da sua relação com um objecto ou com um acontecimento, os adictos


começam a confiar na mudança de humor adictiva causada pela adicção, pois é
consistente e previsível. É esta a faceta sedutora da adicção.

 Se você for adicto à droga e se se drogar, é previsível que sinta uma


alteração no eu humor.
 Se é adicto ao jogo e começar a jogar, é previsível que se irá dar uma
mudança no seu estado de humor.
 Se é adicto à comida, é provável que irá sentir uma alteração no seu humor
quando comer demasiadamente.

O mesmo acontece com os adictos ao sexo, ao trabalho, gastantes compulsivos e


pessoas que sofram de qualquer outro tipo de adicção – a adicção fá-los
experimentar uma mudança de humor de antemão previsível.
O facto de a adicção ser de antemão previsível para os adictos torna-a digna de
confiança. Uma definição para digno de confiança é «pessoa ou coisa com quem
se pode contar». Os adictos contam que se dará uma mudança no seu humor e
essa mudança acontece.
Por outro lado, nem sempre se pode contar com as pessoas.

 Você pode estar a sentir necessidade de apoio emocional. Vai ter, então,
com o seu melhor amigo, mas descobre que, afinal, ele precisa mais desse
tipo de apoio do que você.

Para os adictos, pensando desta forma disparatada, pode ter-se mais confiança nos
objectos do que nas pessoas.
Se você tiver crescido no seio de uma família com problemas de adicção ou de
abuso, pode ser que tenha aprendido a não confiar nas pessoas. Este facto torná-
lo-á susceptível de ser atraído pela sedutora ilusão de conforto criada pela
previsibilidade da mudança de humor na adicção.

15
A Personalidade Adictiva
Prioridades deslocadas

Os adictos praticantes querem ser os primeiros e exigem ser os primeiros. As suas


vontades tornam-se prioritárias. Os objectos não têm nem vontades nem
necessidades; sendo assim, numa relação com um objecto, o adicto ocupará
sempre o primeiro lugar. Esta qualidade é muito atractiva para o adicto e também
se coaduna bem com o sistema de crenças criado pela lógica emocional. É preciso
não esquecer que os adictos praticantes não confiam nas pessoas. Um adicto confia
na adicção. Confiar nas pessoas é uma ameaça para o processo adictivo. Para o
adicto praticante, primeiro está o objecto, depois as pessoas.
Todos nós desejamos realizar-nos e procuramos relações que nos satisfaçam esse
desejo. A adicção é um problema relacionada; é uma relação destrutiva, mas
empenhada.

 Duas pessoas estão envolvidas numa relação destrutiva. Para as pessoas à


sua volta essa relação não faz sentido. No entanto, arrasta-se durante anos.

A adicção pode ser descrita da mesma forma, exceptuando o aspecto de o adicto


manter uma relação com um objecto ou acontecimento e não com uma pessoa.
Nas suas fases iniciais, a adicção é uma tentativa da pessoa para obter satisfação
emocional. Em muitos aspectos, a adicção é um processo normal que falhou. A
maior parte das amizades começam por um envolvimento emocional; a amizade
tem por base a satisfação das necessidades emocionais. A adicção é uma forma
patológica de alcançar essa satisfação.

 Um adicto ao jogo não está à procura do ganho, embora seja isso que diz
para consigo. Aquilo em que o adicto confia e de que depende é a falsa
promessa e o falso sentimento de realização produzidos pela preocupação
com o jogo e a previsível mudança de humor que daí decorre.

Quando se formam as relações adictivas

Há ocasiões, tais como as que se seguem a uma perda de qualquer tipo, em


qualquer de nós está susceptível a formar relações adictivas. Uma perda envolve
sempre sofrimento e há necessidade de substituir a relação perdida. A reforma é
um bom exemplo disto. Estudos feitos demonstram que é uma altura perigosa para

16
A Personalidade Adictiva
muitas pessoas, que podem substituir a relação de trabalho perdida por uma relação
adictiva. As pessoas envelhecem e os amigos morrem; relações que duraram muito
tempo começam a mudar; por isso, muitas pessoas de idade criam relações
adictivas, por exemplo, com a televisão, com o álcool ou outras drogas.
O que se segue é uma lista de ocasiões pode estar mais susceptível à formação de
uma relação adictiva:

 Perda de uma pessoa amada (quanto mais aa relação for próxima, mais
provável se torna a mudança).
 Perda de estatuto.
 Perda de ideais, de sonhos.
 Perda de amizades.
 Novos desafios sociais ou isolamento social (por exemplo, mudança para
uma nova comunidade).
 Deixar a família.

A Sedução na Adição

O que torna a relação adictiva tão atractiva é a alteração que produz. É garantido,
funciona sempre. Nenhuma relação humana pode dar esse tipo de garantia. É aqui
que o factor confiança da adicção faz sentido. Os adictos confiam em que sentirão
uma mudança no seu humor se tiverem determinados comportamentos.

 Ao empanturrar-se, da comida pode controlar temporariamente a sua ida e a


aneira como sente.

Desta forma, actuando nos sentimentos, o adicto experimenta um sentimento de


controlo. Isto ajuda a neutralizar o total sentimento de impotência e de incapacidade
e de se governar que o adicto está a sentir a um nível mais profundo, mais pessoal.
Há muitos aspectos sedutores no processo adictivo. A adicção é um processo em
que se cai em promessas falsas e azias: a promessa de alívio, a promessa de
segurança emocional, a falsa sensação de realização e o falso sentimento de
intimidade com o mundo.

17
A Personalidade Adictiva
 O jogador adictivo não corre atrás do acontecimento em si (jogar), mas atrás
daquilo que ele virá a representar emocionalmente: um símbolo de
realização.

Não é apenas a relação com um objecto em especial que é perigosa para os adictos
– é perigoso procurar essa forma de desonestidade. Encontrar a realização
emocional através de um objecto ou de um acontecimento é uma ilusão. É
desonesto acreditar que um objecto ou um acontecimento possa trazer alguma
coisa mais do que uma alteração de humor.
Uma desonestidade contínua deste tipo pode produzir uma relação adictiva com
outro objecto. Como é sabido de todos os adictos, os objectos podem ser facilmente
substituídos – a «pedrada» atinge-se de muitas maneiras.

 Os jogadores adictivos não procuram o ganho. Se ganhar fosse o importante,


os jogadores paravam quando estivessem a ganhar. O que eles buscam é a
acção, o instante e, afinal o perder, por isso fornece-lhes o pretexto para
recomeçarem de novo.

Um amigo meu tem uma placa na parede que descreve bem a sedução da adicção:

Enganar as pessoas é uma coisa grave,


Mas quando nos enganamos a nós próprios
Torna-se fatal.

Intensidade confundida com intimidade

No que diz respeito à emoção, os adultos conseguem intensidade misturada com


intimidade. Actuar nos sentimentos é uma experiência muito intensa para os adictos
porque envolve irem contra si mesmos.

 Para os adictos à comida, comprarem um saco de guloseimas, comer a maior


parte delas e depois fazer com que sejam vomitadas – é uma experiência
muito intensa.

18
A Personalidade Adictiva
 Para os adictos ao sexo, entrarem numa livraria pornográfica sabendo que
não saem de lá sem terem feito sexo com alguém totalmente desconhecido
e que há probabilidades de serem presos – é uma experiência muito intensa.
 Para os jogadores adictivos, verem um jogo de futebol sabendo que a equipa
que escolheram vai ter de ganhar de forma a poderem pagar a prestação da
casa em atraso – é uma experiência muito intensa.

Durante o processo de actuar nos sentimentos, os adictos podem sentir-se cheios


de energia, muito excitados, muito envergonhados e com muito medo. Seja o que
for que sintam, sentem-no muito intensamente. Os adictos sentem-se ligados a esse
momento por causa da intensidade.
A intensidade, no entanto, não é intimidade, embora os adictos as confundam
constantemente. O adicto passa por uma experiência intensa e pensa que é um
momento de intimidade.

 O alcoólico considera profunda e muito pessoal a relação que tem com os


«amigos dos copos», embora eles desapareçam quando não vão para os
copos.

Aprendi muito sobre intensidade e intimidade com a minha sobrinha de quinze anos,
que atravessa uma fase da sua vida em que confunde intensidade e intimidade.
Está «completamente apaixonada» por um rapaz da sua aula e está convencida de
que hão-de casar. Seria um exercício fútil afastá-la das suas convicções
emocionais. À sua volta, todos sabemos que é a intensidade que a induz em erro.
O que ela sente e muito intenso, mas não muito íntimo.
A adolescência é a idade com que se aprende as diferenças entre intensidade e
intimidade. Os adolescentes fazem promessas de amizade para a vida; fazem
longos planos para o futuro com os amigos, planos que vêem desvanecer-se com
o tempo. Parte da essência da intimidade tem a ver com o tempo. A intimidade não
é apenas um momento, mas sim muitos momentos ligados uns aos outros ao longo
do tempo. Os adolescentes vivem, geralmente, no momento presente. Os adictos
praticantes também vivem para o momento que passa, usando a lógica emocional.
Do ponto de vista emocional, os adictos agem como os adolescentes e, muitas
vezes, são considerados como adolescentes pelo seu comportamento e atitudes.
Afinal, grande parte dos problemas com os quis os adictos se debatem são os
mesmos problemas que os adolescentes enfrentam. A diferença é que os adictos
permanecem presos numa fase adolescente enquanto a sua doença vai
progredindo.

19
A Personalidade Adictiva
20
A Personalidade Adictiva
Objectos e acontecimentos que provocam a adicção

O que têm em comum os objectos e acontecimentos (comida, jogo, químicos e


sexo) aos quais as pessoas se podem tornar adictos? É a sua capacidade de
produzirem uma mudança do humor positiva e agradável. É aí que reside o potencial
adictivo de um objecto ou acontecimento.
Tanto o lavar pratos como o jogar são acontecimentos, mas, para a maior parte das
pessoas, o primeiro produz uma mudança na sua disposição menos agradável que
o segundo. O leite e o álcool são substância, mas as pessoas não se tornam
dependentes do leite porque ele não tem a mesma capacidade de alterar o humor
que o álcool. Portanto, a capacidade de produzir uma alteração de humor positiva
e agradável é necessária para que um objecto ou acontecimento tenham potencial
adictivo.
A possibilidade de utilização de um objecto ajuda a determinar se a pessoa irá
escolher essa forma de adicção. O jogo é proibido em muitos Estados; por isso
nesses Estados poucas pessoas se tornarão dependentes dessa actividade.
Quanto mais à mão estiverem os objectos ou os acontecimentos, maior será o
número de pessoas que irão criar uma relação adictiva com eles. A comida está
largamente disponível e comer é uma actividade com a qual muitas pessoas
estabelecerão uma relação de adicção.
Uma pessoa pode mudar a sua relação adictiva de objecto para objecto e de
acontecimento para acontecimento. Saltar de objecto para objecto cria a ilusão de
que «o problema está a ser resolvido» quando, na realidade, foi uma relação
perigosa que substituiu outra. Isto dá mais tempo ao adicto.

 Um adicto pode parar de usar speed e marijuana e limitar-se a beber.


 O alcoólico em recuperação que não aceitou a sua personalidade adictiva
pode desenvolver lentamente uma relação adictiva com a comida,
engordando 20 ou 30 quilos e ficando emocionalmente tão isolado como
quando estava a beber.

Os adictos precisam de reconhecer que, em certas ocasiões, desejarão interagir


com o mundo através das suas adicções. Quando confrontados com o stress, os
adictos podem procurar um objecto em vez de procurar uma pessoa ou o seu
próprio lado espiritual.
Uma vez a personalidade adictiva instalada, o adicto activo ou o adicto em
recuperação passará a ver o mundo de uma perspectiva diferente. Tal como em
qualquer doença grave, a adicção é uma experiência que muda as pessoas de
21
A Personalidade Adictiva
forma permanente. É por isso que é tão importante que as pessoas em recuperação
participem regularmente em reuniões dos Doze Passos e outras reuniões de auto-
ajuda; a lógica adictiva permanece bem no fundo delas e procura uma oportunidade
para se reafirmar, da mesma forma o de forma diferente. Os adictos em recuperação
continuam a ir a reuniões e a trabalhar no programa porque continuam a ser adictos.
A recuperação é a aceitação contínua da adicção e o controlo contínuo da
personalidade adictiva seja qual for a forma sob a qual ela se possa manifestar.
A adicção tem de ser encarada como um processo contínuo por causa da sua
natureza progressiva. Algumas pessoas oscilam durante muito tempo numa
fronteira ténue entre o abuso e a adicção; todos os objectos e acontecimentos que
produzem uma alteração de humor positiva e agradável podem ser objecto de uso
e abuso como parte de uma adicção. Uma adicção é diferente do abuso periódico
ou mesmo frequente. A diferença tornar-se-á muito mais clara nas páginas que se
seguem quando eu falar sobre a personalidade adictiva: as diferentes mudanças
que ocorrem no adicto, no seu mundo e nas pessoas que o rodeiam.

22
A Personalidade Adictiva
Segunda Parte: Fases da adicção

Antes de examinarmos as três fases da adicção, vamos discutir o conceito de


processo. Neste livro, eu uso um modelo de processo para definir a adicção.
Processo implica movimento, desenvolvimento e mudança.
Processo envolve movimento numa direcção particular. Envolve um começo e,
possivelmente, um fim. Um processo é uma corrente que se move de um ponto para
outro. Portanto, quando considero a adicção como um processo, refiro-me a uma
corrente, a um movimento.
O processo pode também ser encarado como uma viagem que tem um começo e
se move segundo uma direcção. Essa direcção pode nem sempre ser totalmente
cara, mas existe.
Um processo é um conjunto de experiências que indicam uma mudança particular.
A adicção é um conjunto de experiências que indicam um movimento específico
numa direcção específica, determinando uma série de mudanças que se
desenrolam dentro da pessoa. É através das manifestações comuns destas
experiências e mudanças que temos possibilidade de descrever a adicção.
À medida que a adicção se desenvolve torna-se numa forma de vida. A adicção não
é rígida., antes muda continuamente. À medida que muda provoca mudanças na
pessoa que sofre da adicção. Ao estudarmos os estádios da adicção, iremos
observar um processo específico, uma viagem específica – o processo adictivo, a
viagem da adicção.

Fase um: A mudança interna

Muito antes de alguém suspeitar ou saber que existe um problema, muitas


mudanças aconteceram, bem fundo, dentro da personalidade da pessoa. A adicção
muda a pessoa de forma permanente. No Estádio Um a personalidade será
permanentemente alterada. A adicção tem tanta força que tem o poder de alterar
permanentemente a personalidade da pessoa. E a personalidade dos outros.
Quando as pessoas entram no processo de adicção, a maioria continuará nele para
o resto da vida, ou chegará a um ponto em que com a ajuda dos outros escolherá
conscientemente um estilo de vida diferente a que se chama de «recuperação».
Como muitas outras doenças, a adicção cresce e desenvolve-se internamente muito
antes de alcançar um estádio em que é reconhecível pelo adicto e pelas outras
pessoas.

23
A Personalidade Adictiva
Como começa

A viagem começa quando a pessoa experimenta a «pedra» - a alteração de humor


– produzida por certos comportamentos com objectos ou acontecimentos.

 A viagem, para os jogadores compulsivos, começa quando sentem uma


alteração no seu humor causada pela excitação, pela «acção» de uma
primeira vitória.
 A viagem, para os compradores compulsivos, começa quando descobrem
que a sua disposição pode mudar quando fazem compras.
 A viagem, para os alcoólicos, começa quando ficam intoxicados pela primeira
vez e percebem que um objecto pode fazê-los sentir de forma diferente.
 A viagem, para os anoréxicos, começa quando experimentam a sensação de
controlo que lhes oferece o não comerem.

Todos nós, mesmo os que não somos adictos, passamos por mudança de humor
semelhantes; mas para o futuro adicto é um conhecimento novo e intenso. Na
alteração de humor existe a ilusão de controlo, a ilusão de conforto e a ilusão de
perfeição.
Para o adicto, estas experiências na mudança de humor são a maioria das vezes
muito intensas. A investigação nas áreas da adicção ao álcool e ao jogo
demonstram que as primeiras experiências do adicto são com frequência muito
agradáveis e muito intensas; portanto, a experiência de intoxicação torna-se muito
profunda.

 Nas suas experiências iniciais, os adictos ao jogo tiveram um golpe de sorte


ou estavam com alguém que teve um golpe de sorte.
 Muitos alcoólicos são capazes de descrever com grande pormenor as suas
experiências com a bebida muito tempo depois delas terem acontecido.

Para os adictos, esta intensidade confunde-se com intimidade, auto-estima,


conforto social ou com coisas variadas.
As experiências intoxicantes fazem com que a pessoa descubra que, através de
uma relação com um objecto ou um acontecimento, os seus sentimentos podem
mudar. As pessoas voltam-se para a adicção quando decidem que não gostam da
forma como estão a sentir e procuram uma experiência que lhes altere o humor.
Nem toda a gente que procura uma mudança de humor se torna um adicto. Certas

24
A Personalidade Adictiva
pessoas podem abusar de objectos ou de acontecimentos por um determinado
período e depois procuram outras formas de satisfazerem as suas necessidades.
No entanto, ao voltar-se para um objecto ou acontecimento à procura de alívio, a
pessoa depara com a ilusão essencial na qual a adicção se baseia: encontrar alívio
através de objectos.

Relações naturais

Existem relações naturais que as pessoas têm necessidade de recorrer para


obterem apoio, conforto, orientação, amor e crescimento emocional e espiritual.
1. Família e amigos. Obtemos a satisfação das nossas necessidades de
intimidade no dia a dia através das relações com a família e os amigos.
Desenvolvemos um melhor conhecimento de nós próprios através da
informação que nos fornecem essas pessoas. É também através da nossa
relação com a família e com os amigos que desenvolvemos o sentimento da
nossa importância para os outros e o sentimento de que precisam de nós, tal
como nós precisamos deles. Aprendemos como ajudar os outros e como é
que os outros nos podem ajudar. Aprendemos também o sentido da
responsabilidade, sabendo que a forma como actuamos afecta os outros e a
forma como os outros actuam nos afecta a nós. Nas nossas relações com a
família e os amigos, temos boas perspectivas de aprender a criar
dependências saudáveis.
2. Poder Superior Espiritual. No âmbito espiritual, acreditamos num poder
exterior a nós, maior do que nós. Varia de pessoa para pessoa a forma como
a espiritualidade é definida. Para certas pessoas, um Poder Superior
espiritual é um Deus pertencente a uma religião; para outras, Deus é aa
natureza ou um grupo de amigos íntimos que as apoia. Através da relação
com um Poder Superior espiritual, aprendemos a compreender e a aceitar
uma ordem natural, uma corrente natural. Aprendemos a avaliar o importante
espaço que ocupamos no mundo e entre os outros seres vivos, mas
aprendemos também que somos apenas uma parcela da humanidade. Desta
forma, aprendemos a observar o mundo e a observar-nos a nós próprios com
um sentido realista. Desenvolvemos também uma relação para a qual nos
podemos voltar quando a família ou os amigos não bastam por qualquer
razão, não podem estar presentes. Aprendemos o que é acreditar e o que é
confiar. Aprendemos a ter fé, o que significa que não precisamos de viver
apenas para o momento que passa. Aprendemos a acreditar e a confiar que
haverá momentos futuros com serenidade e sentimentos de bem-estar.
3. O Eu. Através de uma relação afectuosa connosco, aprendemos a alimentar-
nos espiritualmente – a ter a capacidade de gostarmos de nós e de nos
encararmos como um recurso para o qual nos podemos voltar nos tempos

25
A Personalidade Adictiva
difíceis. É na relação connosco que mais aprendemos sobre mudança, quer
ela seja positiva, quer negativa. Ao observarmos e interagirmos connosco
próprios, verificamos o vasto potencial de mudança que possuímos. É
através de uma relação afectuosa connosco que aprendemos a ser
afectuosos e pacientes com os outros. A relação que mantemos connosco é,
sob qualquer forma, transmitida a todas as nossas outras relações.
4. Comunidade. Através da nossa relação com as diferentes comunidades em
que vivemos (a comunidade em que habitamos, a comunidade do nosso
trabalho, e a comunidade de recuperação) aprendemos o que é a
responsabilidade em relação a nós mesmos e aos outros. Aprendemos a
encarar as relações dentro de um âmbito mais alargado; aprendemos a
contribuir; aprendemos a aceitar; aprendemos a dar e a receber a atenção
de pessoas que nunca conhecemos e aprendemos a ser independentes.

Se as pessoas não desenvolvem relações dentro destes quatro grupos, voltam-se


para outros tipos de relação. É aqui que aparece a adicção. A adicção é uma relação
com um objecto ou com um acontecimento que tem lugar dentro da pessoa. Aquilo
que todas as quatro relações naturais possuem em comum é o facto de as pessoas
terem de entrar em si mesmas, mas terem também de se debruçar para fora de si.
Nas relações naturais existe uma ligação comum acto de dar e um acto de receber.
Na adicção existe apenas o acto de tomar. As relações naturais baseiam-se numa
ligação emocional com os outros; a adicção baseia-se no isolamento emocional.

O Ciclo Adictivo

O verdadeiro começo de qualquer relação adictiva dá-se quando a pessoa procura


repetidamente a sensação de alívio com o fim de evitar sentimentos ou sensações
desagradáveis. Isto equivale a confortar-se evitando – um meio que não é natural
de satisfazer as suas necessidades emocionais. Chegados a este ponto, os adictos
começam a desistir das suas relações naturais e da consolação que elas oferecem.
Substituem essas relações pela relação adictiva.
Por consequência, os adictos procuram a serenidade por intermédio de um objecto
ou de um acontecimento. Isto é o começo do ciclo adictivo. Se fizéssemos um
diagrama da adicção veríamos um movimento para baixo em espiral, com muitos
vales e planaltos.

26
A Personalidade Adictiva
Figura 1

A = dor; B = sente a necessidade de actuar nos sentimentos; C = actua nos


sentimentos, começa a sentir-se melhor; D = sofrimento resultante de actuar nos
sentimentos; B = sente a necessidade de actuar nos sentimentos; C = actua nos
sentimentos, começa a sentir-se melhor.
Este ciclo causa uma ansiedade emocional que resulta em preocupação mental.
Para um adicto, a sensação de conforto torna-se um sinal para actuar nos
sentimentos, e não num sinal para entrar em contacto com os outros ou consigo
mesmo. muitas vezes, a dose de obsessão mental dá uma indicação a respeito da
dose de tensão que existe na vida do adicto. Algumas adicções produzem
dependência física que cria sintomas físicos quando abandonadas (como acontece
com o álcool e outras drogas). Muitos outros tipos de adictos em recuperação –
adictos ao sexo, adictos ao jogo e adictos às compras – também referem sintomas
físicos quando cessam de actuar nos sentimentos. Se isto faz parte do processo de
luto ligado ao acabar de uma relação adictiva ou se são realmente os sintomas de
privação não é claro- é provavelmente uma combinação dos dois factores. Os
adictos que pararam de actuar nos sentimentos referem que se sentem irritáveis e
nervosos, e estes sintomas podem arrastar-se por alguns meses.

A Personalidade Adictiva

O aspecto mais importante da Fase Um é a emergência da personalidade adictiva.


Penso que isto é a ideia mais importante expressa neste livro. A razão pela qual é
tão importante compreender a noção de personalidade adictiva é que, na realidade,
a pessoa cria uma relação de dependência com a sua própria personalidade
adictiva.
27
A Personalidade Adictiva
Uma vez que a personalidade adictiva esteja isolada dentro da pessoa, o objecto
ou acontecimento específico passa a ter menos importância. Quando uma
personalidade adictiva controla firmemente a situação, os adictos podem trocar (e
muitas vezes trocam) de objecto da adicção conforme as suas preferências vão
mudando ou quando começam a ter problemas com um objecto determinado. Os
adictos que trocam de objecto de adicção sabem que é uma boa forma de conseguir
que as pessoas não andem atrás deles.
É muito importante que os adictos em recuperação compreendam a personalidade
adictiva porque ela vai acompanhá-los ao longo de toda a sua vida. Esta
personalidade andará sempre à procura, em qualquer plano, de um objecto ou de
um certo tipo de acontecimento para com ele formar uma relação adictiva. Esta
personalidade dará sempre à pessoa, em qualquer plano, a ilusão de que existe um
objecto ou um acontecimento que a pode sustentar.
O termo «estar numa seca» descreve o estado de uma pessoa cuja vida está a ser
controlada por uma personalidade adictiva sem que haja intervenção de qualquer
droga. A pessoas que estão «numa seca» ainda acreditam no processo adictivo e
afastam-se das relações naturais de que necessitam para ser espiritualmente
alimentadas.

 As pessoas que estão num programa de recuperação da adicção ao álcool


precisam de compreender claramente que estão sujeitas a criar uma possível
relação de adicção a outro objecto ou acontecimento – por exemplo, a
comida. Para estas pessoas, a sobriedade adquire uma nova dimensão. Em
vez de apenas terem de controlar a sua relação com o álcool, têm também
de aprender a controlar o seu lado adictivo.

Estou a usar aqui o exemplo do álcool e da comida porque é vulgar acontecer que
um alcoólico em recuperação se torne um adicto à comida. Tenho conhecido
pessoas que, dentro dos três ou quatro anos que se seguem à saída de um centro
de tratamento do alcoolismo, aumentaram 20 ou 30 quilos e continuam tão infelizes
e isoladas como no primeiro dia que entraram para tratamento. Citando uma dessas
pessoas, «Agora como exactamente pelas mesmas razões pelas quais bebia: estou
só e tenho medo.».
Muitas destas pessoas frequentam regularmente as reuniões dos Alcoólicos
Anónimos, seguem bons programas de recuperação e as suas vidas correm muito
melhor, mas há qualquer coisa que se intromete no caminho da serenidade – outra
adicção.
É ao compreendermos a personalidade adictiva, mesmo em recuperação, que os
termos «manhosa, desconcertante, poderosa» revelam o seu verdadeiro

28
A Personalidade Adictiva
significado. É a relação adictiva dentro de si que o adicto em recuperação precisa
de destruir e não apenas a sua relação com um objecto. É neste momento que se
dá a verdadeira recuperação.

Desenvolvimento de uma personalidade adictiva

Os fundamentos de uma personalidade adictiva encontram-se em todas as


pessoas. Encontram-se no desejo normal no desejo normal de viver a vida com o
mínimo possível de sofrimento e o máximo possível de prazer. encontram-se no
nosso negativismo e na nossa desconfiança em relação aos outros e ao mundo,
quer o nosso pessimismo seja grande ou pequeno, válido ou não. Não há nada de
errado nesta parte de nós; é natural todos termos, até certo ponto, estas convicções.
É quando estas convicções controlam a maneira de viver, como acontece na
adicção, que as pessoas começam a ter problemas. Há pessoas que são mais
sensíveis à adicção. São pessoas que não sabem como ter relações saudáveis e a
quem ensinaram a não acreditar nos outros. A causa encontra-se, sobretudo, na
forma como essas pessoas foram tratadas pelos outros ao crescerem, nunca tendo
aprendido a relacionar-se.
Se você tiver crescido nua família em que os laços de intimidade entre as pessoas
eram penas palavras e não correspondiam a qualquer realidade, está muito mais
sujeito a formar uma relação adictiva. Isto acontece por duas razões. Em primeiro
lugar, foi ensinado a distanciar-se das pessoas em vez de ter sido ensinado a ligar-
se a elas. Em segundo ugar, o facto de ter crescido numa família deste tipo fez com
que ficasse com um vazio profundo e de grande solidão, que desejou ver
preenchido. A adicção proporciona a ilusão da plenitude. Se cresceu numa família
onde as pessoas eram tratadas mais como objectos do que como pessoas, já lhe
foi ensinada a lógica da adicção. O que é triste em relação a muitas destas pessoas
é que uma grande parte luta diariamente pela recuperação; para elas recuperar não
é o regresso a um eu mais saudável, mas a necessidade de desenvolver uma nova
personalidade.
A adicção é uma crença activa num estilo de vida negativo bem como a dedicação
da pessoa a esse mesmo estilo. A adicção começa e desenvolve-se quando a
pessoa abandona os meios naturais de satisfazer as suas necessidades emocionais
de relacionamento com outras pessoas, com a sua comunidade, com o seu e com
o poder espiritual que lhe é superior. O abandono repetido a que a pessoa se vota
em favor da «pedrada» da adicção leva a que a personalidade adictiva se
desenvolva e, gradualmente, ganhe poder.
O desenvolvimento de uma personalidade adictiva pode comparar-se a uma pessoa
que todas as manhãs ao levantar, e durante o dia, diz para consigo, «Para que raio
me hei-de ralar? A vida é complicada.». quanto mais as pessoas dizem isto a si

29
A Personalidade Adictiva
mesmas, mais desenvolvem o estilo de vida e a personalidade de quem desistiu da
vida. Cada vez que os adictos escolhem actuar de forma adictiva estão a dizer para
consigo uma, ou mais que uma, das seguintes afirmações:

 «Não preciso verdadeiramente das pessoas».


 «Não preciso de enfrentar nada que não queira enfrentar».
 «Tenho medo de enfrentar os problemas da vida e os meus problemas».
 «Os objectos e os acontecimentos são mais importantes do que as pessoas».
 «Posso fazer tudo o que me apetecer, quando me apetecer, e não me
importo com quem possa magoar».

Esta maneira de pensar cria um padrão através do qual a pessoa continuamente


apoia e reforça um sistema de crenças adictivas que se encontra dentro de si.
Começa a dar-se uma mudança subtil na personalidade. O facto de, na maioria dos
casos, essas mudanças serem subtis e graduais durante longos períodos aumenta
a sedução da adicção.

Vergonha

À medida que o tempo passa e uma pessoa continua a actuar nos sentimentos e
está preocupada e emocionalmente distante dos outros, a personalidade adictiva
começa a exercer mais controlo sobre a sua vida interna. Nesta fase, a pessoa que
sofre de adicção começa a sentir uma «sacudidela» interior. Isto pode manifestar-
se sob a forma de uma inquietação emocional ou de escrúpulos de consciência.
A adicção começa agora a produzir um subproduto – a vergonha. Isto acontece aos
adictos tanto num plano consciente como inconsciente, mas sobretudo a um nível
inconsciente. Quanto mais os adictos procurarem alívio através da adicção, maior
vergonha começarão a sentir e mais sentirão a necessidade de justificar junto de si
próprios a relação adictiva.
A vergonha faz perder o auto-respeito, a auto-estima, a autoconfiança, a
autodisciplina, a autodeterminação, o autocontrolo, a auto-importância e o amor por
si mesmo. de princípio, esta vergonha pode manifestar-se sob a forma de um mal-
estar geral. É o preço inicial que o adicto paga pela relação adictiva. A pessoa
começa a sentir vergonha dos sinais de falta de controlo que estão a começar a
aparecer interiormente. Pode acontecer um incidente ocasional de perda de
controlo comportamental, mas, na Fase Um, as principais formas de perda de
controlo dão-se a nível emocional e do pensamento. A pessoa tem maior tendência
a sentir-se mal por causa do afastamento interior em relação aos outros. Porque, à

30
A Personalidade Adictiva
medida que a pessoa começa lentamente a entregar-se mais a um objecto ou
acontecimento, dá-se um afastamento gradual a nível emocional das relações
íntimas com as pessoas ou com o Poder Superior.

Onde a personalidade adictiva emerge

A adicção começa a criar exactamente aquilo que a pessoa está a tentar evitar, o
sofrimento. Ao criar sofrimento, o processo cria também a necessidade de
continuação da relação adictiva. O adicto procura refúgio para o sofrimento que a
adicção provoca avançando mais além no processo adictivo. O adicto procura
felicidade e serenidade na «pedra», mas, como começou a afastar-se de si e dos
outros, não pode compreender que o sofrimento que sente ´causado pelo facto de
actuar nos sentimentos.
Muito antes de se manifestarem incidentes de perda de controlo comportamental, a
pessoa lutou e perdeu muitos combates contra o seu Adicto a nível emocional, onde
a personalidade adictiva ganha controlo. Começa a desenvolver-se aí, no nível
emocional, uma personalidade adictiva. É esta a primeira parte da personalidade de
uma pessoa que fica controlada pelo processo adictivo.
Os adictos comportam-se como crianças – se lhes sabe bem, fazem. Exploram;
seguem os seus impulsos emotivos. As emoções encontram-se em pleno núcleo do
ser da maior parte das pessoas. Isto compreende-se facilmente se nos lembrarmos
que as emoções existiram muito antes de termos palavras para as descrever ou
palavras para nos ajudar a compreendê-las.
Nesta fase, a pessoa sente-se emocionalmente ansiosa, inquieta e culpada. Estes
são alguns dos sinais internos de aviso que uma pessoa pode sentir, mas faz parte
do processo de adicção aprender a negar estes sinais de aviso. A adicção é também
um processo de negação – negação da realidade, mas, sobretudo, negação do Eu.
Esta negação tem de realizar-se para que a adicção possa progredir.
A «terapia pela fala» não tem provado ser muito eficaz no tratamento dos adictos
visto que o núcleo da doença se encontra ao nível emotivo e não ao nível do
pensamento.

31
A Personalidade Adictiva
Como ganha controlo a personalidade adictiva

Grande parte da obsessão mental do adicto provém da negação ou da recusa em


reconhecer a perda de controlo que se está a dar a nível emocional. Evitar a
realidade da situação permite que se crie mais sofrimento, o que eventualmente
despertará na pessoa a necessidade de explicar a si mesma o que está a acontecer.
Isto irá evoluir, determinando pensamentos obsessivos ou preocupação e
racionalizações. Os pensamentos obsessivos ocorrem com maior frequência e
resumem-se a uma questão permanente: Porquê? A preocupação tem a ver com o
actuar nos sentimentos e a criação de uma mudança de humor. Todos conhecemos
a afirmação, «Mude os seus pensamentos e começará a sentir-se melhor.».
Ninguém sabe isto melhor que os adictos. Se os adictos praticantes gostam da
forma como se estão a sentir, penam em actuar nos sentimentos e dá-se uma subtil
mudança de humor. De cada vez que isto acontece, a pessoa perde uma pequena
parte do controlo, que é transferida para a adicção.
Estamos a começar a compreender como se dá a perda gradual do Eu na adicção
e como é que a personalidade adictiva vai adquirindo lentamente cada vez mais
controlo. A diminuição do Eu causa um aumento da personalidade adictiva. Na
adicção, há um conflito interno quase constante entre o Eu e o Adicto. Nesta luta
quem ganha é o Adicto. É a isto que se chama «perda de controlo». Quanto mais
longo for o combate, maior será o controlo que a personalidade adictiva adquire e
estabelece. De cada vez que o Eu luta contra a Adicção, o Adicto torna-se mais
forte. Lutar e debater-se contra qualquer coisa que tem mais força que você, esgota
a sua energia. Por cada derrota dá-se uma certa perda de auto-estima. É por isso
que, na recuperação, as pessoas são ensinadas aa render-se. É aceitando que não
pode vencer a doença que a pessoa encontra força para começar a relacionar-se
com os outros.
Toda a gente tem um sonho. Pode ser tão simples como ter bons amigos, família e
uma vida tranquila. Todo o Adicto tem também um sonho. A publicidade apresenta
exemplos perfeitos dos sonhos do Adicto:

 Uma gelataria com «montanhas de chocolate e rios de açúcar».


 Cenas em que todos bebem alegremente e ninguém se queixa ou se sente
culpado.

O Eu também tem o seu sonho próprio. Na adicção, o sonho do Adicto colide com
o sonho do Eu, que começa lentamente a ocupar o segundo lugar. Isto deve-se à
perda de controlo.

32
A Personalidade Adictiva
 A relação íntima que uma pessoa desejaria ter com um amigo começa a ser
substituída por rios de chocolate ou por álcool. Os adictos acabam por fazer
e dizer coisas de uma forma que os distancia das pessoas de quem gostam.

Na relação adictiva, o Eu e o Adicto lutam por ter controlo. À medida que a Fase
Um progride:

 O Adicto desenvolve a sua maneira de sentir própria.


 O Eu desaprova as crenças do Adicto, mas aprecia a mudança de humor.
 O Adicto desenvolve a sua maneira de pensar própria.
 O Eu luta e discute com o Adicto, mas perde.
 O Adicto desenvolve a sua forma de comportamento própria.
 O Eu promete controlar o Adicto, usa a sua força de vontade para controlar
o Adicto, depois esforça-se por conter o Adicto, mas torna-se finalmente
dependente da personalidade do Adicto.

A relação adictiva é uma relação interior baseada na interacção entre o Eu e o


Adicto; é uma relação de pessoa a pessoa; baseia-se na lógica emocional; cria um
foco de atracção para o interior e isolamento; é sustentada pela alteração de humor
produzida no processo adictivo pelo actuar nos sentimentos. Quanto mais longa for
a interacção entre o Eu e o Adicto, mais forte se tornará a personalidade adictiva;
quanto mais longa for a interacção, mais se desenvolverá internamente aa relação
adictiva. Na adicção, o Adicto torna-se a personalidade dominante.
As pessoas e os membros da família muitas vezes se questionam desesperados e
interrogam os outros, «Porque é que ele se comporta desta forma? Já não se
importa connosco?». A verdade é que o Adicto interior não se importa com eles.
Com o que ele se importa é com o actuar nos sentimentos e conseguir a mudança
de humor. O Adicto também não se importa com o Eu. Uma afirmação como, «Ao
menos, se não paras por causa de mim, pára por tua causa!» cai em orelhas
moucas. A pessoa que sofre de uma adicção faz muitas vezes a mesma pergunta
muito antes de qualquer outra pessoa: «Porque é que eu me comporto desta forma?
Por não me importar?».
Tenho visto muitas famílias que se reúnem em lágrimas ao tomarem consciência de
que é o Adicto, a doença, a adicção, que odeiam e de que têm medo, e não a
pessoa. É geralmente um grande alívio para as pessoas que sofrem de uma adicção
tomarem consciência de que não são as «más pessoas» que supunham ser, de que
não são só constituídas pela sua personalidade adictiva, mas que esta é apenas
uma parte delas, que se desenvolveu como consequência da doença.

33
A Personalidade Adictiva
34
A Personalidade Adictiva
A Ilusão do Controlo

Já vimos que, com o tempo, uma personalidade adictiva desenvolve a sua própria
maneira de sentir, pensar e agir. Quando as pessoas actuam nos sentimentos ficam
«altas», sentem-se diferentes, e isso muda os seus padrões de pensamento.
Qualquer sentimento que crie desconforto torna-se num sinal para actuar
sentimentos; sinais internos desencadeadores de desconforto começam a ser sinais
internos desencadeadores de actuar sentimentos.

 Quando um adicto à comida se sente triste, o seu lado adictivo sentirá tristeza
e interpretá-la-á, não como um verdadeiro sentimento, mas como uma
sugestão para comer. Desta forma, os sentimentos da pessoa tornam-se
obsessões mentais. Na Fase Um, a pessoa escolhe repetidamente este
padrão distorcido de interpretação das sensações reais.

As pessoas muitas vezes se admiram. «Porque será que ela fez aquela escolha?».
A resposta está em que, escolhendo uma interpretação adictiva de um sentimento,
a pessoa terá a ilusão de controlar. Os adictos procuram o controlo – acreditam que
encontrarão paz e felicidade através de um controlo perfeito e total. Ser humano é
ser imperfeito. É humano ser impotente. Perseguir a ilusão de controlo é fugir da
realidade de se ser humano. Os adictos tentam ser perfeitos em vez de tentarem
ser pessoas.
Os adictos farão escolhas adictivas quando se sentem impotentes, desamparados
ou fracos. A escolha adictiva cria na pessoa a ilusão de manter o controlo e de estar
mais perto da perfeição, pelo menos por algum tempo. A ilusão de controlo é uma
oferta muito tentadora. Aceitar a realidade da nossa impotência neste mundo é algo
muito difícil de fazer.

Lógica Adictiva

Por vezes, a pessoa sente que qualquer coisa está mal, pressentindo o perigo de
fazer a escolha adictiva. Interiormente, a pessoa começa a questionar a relação
patológica que se começa a formar. É devido a este questionar que o pensamento
adictivo, ou o que eu chamo lógica aditiva, se começa a desenvolver. A lógica
adictiva desenvolve-se à medida que a pessoa tenta justificar as mudanças subtis
que estão a dar-se interiormente. A primeira pessoa a sentir a mudança é a pessoa
a quem isso está a acontecer. A pessoa pode ser a última a admitir a mudança, mas
é a primeira a experimentá-la.

35
A Personalidade Adictiva
É através do desenvolvimento da lógica adictiva que a pessoa encontra forma de
lidar com as mudanças internas.

 O adicto à comida começa a pôr em questão os impulsos internos para comer


com mais frequência. Na fase inicial, estes impulsos são postos de lado de
forma simples e rápida. Mas, à medida que a sua frequência aumenta, a
pessoa começa a justificar-se usando a lógica adictiva. «É só uma coisa que
gosto de fazer enquanto vejo televisão». «Só como assim de vez em
quando». «É melhor aproveitar porque vou começar aa fazer dieta amanhã».

A lógica adictiva não se baseia na verdade, mas sim, e totalmente, na conciliação


da relação enganadora da adicção. A lógica adictiva nega a presença de uma
relação adictiva. A pessoa acaba por acreditar que o problema está noutro lado
qualquer, ou que é grande demais para ser ultrapassado.

 Se os jogadores compulsivos consideram que têm problemas conjugais, e


não problemas de jogo, a relação adictiva continuará.
 Se os adictos à comida estiverem convencidos de que não controlam aquilo
que metem à boca, serão incapazes de fazer o que quer que seja a esse
respeito.

Certas pessoas podem perguntar:


 «porque é que eles comem até ficarem em solidão?»
 «Como é que puderam jogar as próprias casas?»
 «Como é que puderam destruir o fígado bebendo?»
 «Como é que puderam ter relações sexuais com perfeitos estranhos que lhes
poderão causar mal?»
 «como é que podem tomar uma droga que nem sequer sabem qual é?»

A resposta a estas perguntas torna-se simples através da compreensão da lógica


adictiva. A maior parte das pessoas, mesmo aquelas que sofrem de uma adicção,
tentam compreendê-lo e encontrar o sentido do comportamento adictivo usando a
lógica normal. Isso não resulta.
A lógica normal diz-nos que não está certo fazer mal ao nosso Eu; a lógica adictiva
diz que não faz mal magoar o nosso Eu, porque o Eu não é importante; o que conta
é a mudança de humor.

36
A Personalidade Adictiva
A lógica normal diz-nos que não esta certo magoar os outros; a lógica adictiva diz
que não tem importância magoar os outros porque as relações com os outros não
são importantes. O que é importante é a relação com um objecto ou com um
acontecimento.
Observando a lógica adictiva, começamos a compreender a personalidade adictiva
de uma pessoa.
Quando um alcoólico diz: «A verdade é que não me importo com o que você pensa
de eu beber.», fica-se com uma ideia da perspectiva do adicto sobre relações.
Quando um adicto diz: «Não estou a fazer mal a ninguém senão a mim próprio.»,
tem-se o verdadeiro indício de quais os sentimentos e convicções do adicto a
respeito do Eu.
Não esqueça que, na Fase Um, a personalidade adictiva parece menos assustadora
e mais amigável. Isto é a base do que é conhecido como recordação eufórica –
lembrar os aspectos agradáveis do processo adictivo e negar ou esquecer o
sofrimento. Na Fase Um, actuar sentimentos e fazer com que o humor mude
provoca divertimento, excitação, novas ideias e novos estímulos na vida da pessoa.
É apenas na Fase Dois que actuar sentimentos começa a perder alguma da sua
sedução. O objecto ou acontecimento conserva sempre a sua capacidade de alterar
o humor da pessoa, mas, com o tempo, muito do seu poder de divertimento começa
a desvanecer-se e o pôr em prática adquire o carácter de uma manutenção – a
pessoa cada vez mais actua nos sentimentos para encobrir e escapar ao sofrimento
e à frustração criados pelo processo adictivo.

O Sistema Ilusório da Adicção

Lentamente, com o tempo, a lógica adictiva vai-se transformando num sistema de


crenças – um sistema ilusório que vai passar a governar a vida da pessoa. A pessoa
lutará contra isto e tentará adiá-lo quanto possível, mas o sistema ilusório da
adicção e a personalidade adictiva acabarão por dominar.
Á medida que a doença progride, este sistema tornar-se-á mais complexo e
caracterizar-se-á pela sua rigidez. O sistema ilusório da adicção é geralmente
descrito como um muro que rodeia a pessoa. Este muro tem duas funções
principais. Em primeiro lugar, serve para manter a pessoa encerrada dentro de si
mesma, tendo apenas como possibilidade de relacionamento o Adicto no seu
interior. O mundo do adicto é um mundo de solidão; o centro de interesse e as
energias do adicto são dirigidas para o interior. Se uma pessoa tentar romper com
o mundo da adicção, ver-se-á confrontado com o sistema ilusório da adicção.

37
A Personalidade Adictiva
 O adicto pergunta a si mesmo, «Quando é que isto irá parar?». E ouve uma
promessa vã ou uma voz interior que lhe diz, «Não é assim tão mau como
isso.»

A segunda função do sistema ilusório é o de conservar afastadas as pessoas que


poderiam pôr em perigo a relação adictiva.

Figura 2

Estudos realizados mostram que durante uma crise há muitas vezes uma brecha no
sistema ilusório, e é nesta ocasião que o Eu do Adicto e as pessoas interessadas
podem estabelecer uma ligação com a pessoa que sofre de adicção ou proporcionar
ajuda. No entanto, dentro de um ou dois dias, essa brecha repara-se por si e tudo
voltará ao normal, acontecendo frequentemente a pessoa não ser capaz de se
lembrar do que aconteceu.

Quando tem lugar a recuperação

Aceitando e tomando a responsabilidade pela presença de uma personalidade


adictiva, os adictos podem começar a recuperação e escolher relações que lhes

38
A Personalidade Adictiva
permitam sair de si próprios. Uma verdadeira aceitação da existência e da força da
personalidade adictiva obriga o adicto a procurar ajuda fora de si.
O primeiro passo na recuperação consiste na aceitação das próprias
personalidades criadas pela adicção. Ao aceitarem os dois lados da sua adicção,
as pessoas criam, muitas vezes, uma porta que se abre para o exterior e que lhes
permite estabelecer relações saudáveis. Isto liberta-os da vergonha.na
recuperação, a pessoa vai precisar de tomar responsabilidade total, tanto pelo Eu,
como pelo Adicto. Faz parte da vida de um adicto praticante negar a existência de
uma personalidade adictiva. Assim, admitir a presença de uma personalidade
adictiva é a base da recuperação.
Ao reconhecer e assumir a personalidade adictiva, e, depois, ao vir e compreender
e a prestar atenção à lógica adictiva, a pessoa entra numa recuperação com
qualidade. Os programas de recuperação sublinham a importância de se ser
completamente honesto com o seu próprio eu. Isto significa ouvir e acreditar no Eu
e não no seu Adicto.
Antes de prosseguir e passar a descrever aa Fase Dois, quero citar uma breve frase
de Robert Louis Stevenson em Dr. Jekyll and Mr. Hyde, um título que as pessoas
muitas vezes usam para descrever as mudanças de personalidade do Eu para a
personalidade de Adicto. O livro contém muitos ensinamentos a respeito desta
mudança de personalidade e é uma bonita metáfora sobre o processo adictivo. Num
capítulo do livro, o Dr Jekyll descreve a perda do seu Eu.

…. Enquanto que de princíio a dificuldade não tenha sido livrar-me do corpo de


Jekyll, nos últimos tempos ela tinha-se transferido, de forma gradual, mas
decididamente para o outro lado… Estava lentamente a perder o domínio do meu
ser original, o melhor, e a ficar lentamente fundido com o meu segundo ser, o pior…

Fase dois: Mudança de estilo de vida

Uma vez a personalidade adictiva firmemente instalada, os aspectos


comportamentais da adicção tornam-se mais predominantes. O aspecto da adicção
mais comentado tem sido sempre o comportamento dos adictos que, sendo o lado
mais visível da adicção, é aquele que mais facilmente desperta a atenção. O
comportamento adictivo – tal como gastar dinheiro de forma adictiva, ir a livrarias
pornográficas ou comer demais e vomitar a comida em geral, acontece apenas após
o desenvolvimento de uma personalidade adictiva todos estes comportamentos são
sinais de que a pessoa está descontrolada a nível interno. Na Fase Dois, a pessoa
também fica descontrolada ao nível do comportamento.

39
A Personalidade Adictiva
Na Fase Um, a pessoa era capaz de conter a adicção o suficiente para que
ocorressem poucos casos de perda de controlo comportamental. No Estádio Dois,
estes casos tornam-se cada vez mais frequentes; a pessoa passa a preocupar-se
muito mais com o objecto ou acontecimento. É nesta fase que os outros começam
a aperceber-se de que qualquer coisa está errada, de que qualquer coisa não está
a correr de forma normal. As outras pessoas começam a sentir e a observar a
presença de uma personalidade adictiva.
Na Fase Um, o comportamento da pessoa mantinha-se quase sempre dentro dos
limites socialmente aceitáveis. O jogador compulsivo jogava a maior parte do tempo
dentro de limites aceitáveis; o adicto à comida comia quase sempre dentro de limite
normais; o alcoólico bebia «socialmente» a maior parte do tempo. Mas todas estas
pessoas começaram a desenvolver interiormente uma dependência mental
profunda e completamente obsessiva.
Na fase Dois, começa a desenvolver-se uma dependência comportamental. A
dependência comportamental dá-se quando a pessoa começa a pôr em prática o
sistema de crenças da adicção de uma forma ritualista e o seu comportamento se
torna cada vez mais descontrolado. Uma vez que a personalidade adictiva tenha
instalado o controlo emocional e mental, a pessoa torna-se dependente da
personalidade adictiva e não da mudança de humor, do objecto ou do
acontecimento. O sistema de crenças adictivo passa a ser o fundamento da pessoa
e desenvolve-se determinando um estilo de vida.
É nesta fase que os adictos começam a organizar as suas vidas e relações usando
a lógica adictiva para se orientarem. Na Fase Dois, a dedicação do comportamento
ao processo adictivo torna-se totalmente abrangente.

Comportamento do Adicto

O comportamento da pessoa ao entregar-se ao processo adictivo pode revestir


várias formas, determinando um estilo de vida adictivo.

 A pessoa começa a mentir aos outros mesmo quando é mais fácil dizer a
verdade.
 A pessoa começa a culpar os outros, mesmo sabendo que os outros não são
culpados.
 A pessoa começa a ritualizar o seu comportamento.
 A pessoa começa a afastar-se dos outros.

40
A Personalidade Adictiva
A pessoa não só passa a ter um mundo emocional e mental secreto onde se pode
refugiar, mas, com muita frequência, passará literalmente a ter um mundo secreto
para onde se retira a fim de viver um estilo de vida adictivo.

 É nesta fase que os adictos à comida podem começar a esconder certas


comidas ou a matar-se à fome.
 É nesta fase que os adictos ao sexo podem começar a ir às prostitutas ou a
ter relações múltiplas.
 É nesta fase que os adictos ao jogo podem abrir contas secretas no banco
ou a arranjar empregos secretos.
 É nesta fase que os alcoólicos podem começar a beber uns copos e a tomar
um cheirinho de aguardente antes de irem para casa.

Cada um destes exemplos demonstra uma dedicação do comportamento ao


processo adictivo. Cada vez que as pessoas actuam segundo estas formas, estão
a tornar-se cada vez mais dependentes da personalidade adictiva e da sua lógica e
cada vez menos de si próprios e de quem as ama.
Os adictos têm de encontrar uma razão para isto e têm de ser capazes de recusar
o medo e o sofrimento causados pelo seu comportamento inadequado. É nesta
altura que o adicto se volta para a negação, a repressão, as mentiras, as
racionalizações e outras defesas para o ajudarem a enfrentar o que está a
acontecer.
Por isso, sempre que os adictos actuam sentimentos e a seguir se justificam par
anular a gravidade dos seus actos, tornam, sem querer, a sua entrega à adicção
mais profunda. Sempre que os adictos actuam sentimentos têm de retirar-se
emocional e mentalmente para a personalidade adictiva a fim dela receberem apoio
para a sua acção. Este movimento para dentro faz com que fiquem mais isolados e
afastados do mundo e dos outros à sua volta. Perdem mais um pouco da sua
humanidade. Isto cria solidão e um anseio de sair de si e comunicar, o que se torna
internamente noutro sinal para actuarem sentimentos.
O processo adictivo tem o poder e a capacidade de criar necessidade por si. Actuar
sentimentos repetidamente, em conjunto com a obsessão mental, vão fazer surgir
outra forma de entrega à personalidade adictiva que irá estabelecer um controlo
cada vez mais firme. A perda de controlo do comportamento é a expressão da perda
de controlo interno do Eu em relação ao Adicto.

41
A Personalidade Adictiva
Exemplos de promessas adictivas

Adicto: «Traz-me o teu sofrimento, dar-te-ei alívio».


Tradução: «Traz-me o teu sofrimento, dar-te-ei a ilusão do alívio».

Adicto: «Libertar-te-ei».
Tradução: «Tomarei posse de ti».

Adicto: «Passa o tempo comigo, podes confiar em mim, não podes confiar em mais
ninguém».
Tradução: «Passa o tempo comigo, eu ensino-te a desconfiar dos outros».

Adicto: «Eu ensino-te uma forma de não teres de enfrentar problemas.»


Tradução: «Não existe tradução aqui. A afirmação é uma mentira.»

Rituais Adictivos

Os rituais são muito importantes para o processo adictivo. É na Fase Dois que o
comportamento do adicto se tornará cada vez mais ritualizado. São muitas as
razões pelas quais o Adicto cria rituais. Vejamos, em primeiro lugar, quais as
funções que os rituais geralmente desempenham e, em seguida, porque são
relevantes para o processo adictivo.
Os rituais são importantes para todos nós por várias razões. Em primeiro lugar, os
rituais ajudam a ligar-nos às nossas crenças e valores, e unem-nos a quem tem as
mesmas crenças e valores. Asseguramo-nos das nossas crenças e valores através
do uso de rituais. Sempre que estamos envolvidos num ritual, isso fortalece os
nossos laços com o que quer que seja que ele representa.
Erich Fromm afirma em Sane Society que, num ritual, a pessoa «exprime com o
corpo aquilo que pensa com a cabeça». Os rituais são afirmações de valor. Na
adicção, os rituais transformam-se em afirmações de valor sobre as crenças do
Adicto. Estes rituais podem ser, e são muitas vezes, totalmente opostos às crenças
do Eu. Assim, na adicção, a pessoa exprime com o seu corpo a lógica adictiva que
existe no seu espírito.

42
A Personalidade Adictiva
Os rituais são uma forma de linguagem – uma linguagem do comportamento. Os
rituais falam da nossa fé e dos nossos valores e crenças actuais, quer eles sejam
positivos, quer negativos.

43
A Personalidade Adictiva
 Quando vamos a um aniversário de família, os rituais ajudam a ligar-nos à
nossa família. Há muitas coisas na festa de anos que são previsíveis: quem
vai chegar a horas e quem vai chegar atrasado; quem vai dizer as graças
tolas nos momentos errados; e quem vai ter conversas sérias. O nosso
envolvimento neste ritual torna-se numa declaração para toda a gente (e
especialmente para nós) sobre o que acreditamos ser importante. Também
começamos a acreditar que a forma como agimos é a forma correcta de agir.
Mesmo se não gostarmos de ir a aniversários de família, depois de lá termos
ido achamos que era o que «devíamos» ter feito

Parte da forma como devemos agir está prescrita no próprio ritual. O ritual diz, «faça
desta maneira», e nós agimos dessa maneira. Quando o ritual é uma festa de anos,
as pessoas cantam o «Parabéns a você», sorriem, dizem graças à pessoa que faz
anos, levam presentes e comem determinadas comidas.
Quando os adictos estão envolvidos em rituais e comportamentos adictivos,
também actuam segundo normas prescritas. Pelo seu comportamento, estão a
declarar que apoiam o processo adictivo e o sistema de crenças adictivo, tal como
ir a um aniversário familiar é fazer uma declaração comportamental em apoio da
própria família ou do sistema de crenças da família.
Além de nos ligarem a crenças e valores e a outras pessoas com convicções
semelhantes, os rituais tendem a proporcionar-nos bem-estar pelo facto de se
poderem prever. Existe uma certa rigidez na maior parte dos rituais. Os rituais
baseiam-se na consistência, primeiro faz-se isto, e depois faz-se aquilo. Podemos
nem sempre nos aperceber desse bem-estar, mas ele existe quase sempre.
Reparamos mais nele quando a sequência do ritual é alterada ou parte da
sequência é omitida e notamos o nosso desconforto. Os adictos ritualizam o seu
comportamento por causa do bem-estar que lhes traz o facto de os rituais se
poderem prever. Os adictos também ritualizam as acções que envolvem
comportamentos que os entusiasmam; sentem bem-estar sabendo que a excitação
se irá dar se procederem de certas formas.
Os rituais são concebidos de modo a servirem-nos de conforto em tempos de crise
ou em épocas de conflito. Ao adoptarmos um comportamento ritualizado somos
levados a regressar às nossas crenças e, esperamos? Ao bem-estar que nelas
encontramos. Quando a nossa vida entra em turbilhão, temos tendência a procurar
coisas consistentes. Quando os céus se apresentam tempestuosos, tentamos
atingir o nosso porto de origem. Os adictos fazem o mesmo: quando enfrentam
crises e tensões correm ao encontro do bem-estar que encontram nos seus rituais.
Para os adictos, os ritos adictivos vão ligá-los não somente a uma crença ou a um
valor, mas também a um estado de espírito – um sentimento no qual vieram a ter fé
e a encontrar conforto.

44
A Personalidade Adictiva
Assim, os rituais são afirmações a respeito daquilo em que as pessoas têm fé. Os
adictos já não têm fé nas pessoas. A forma de comportamento que adoptam quando
se voltam para um objecto ou acontecimento define o seu rito adictivo. Este acto
segundo o qual se voltam para um objecto ou acontecimento transforma-se com o
tempo num rito bem definido. Cada parte do ritual é importante para o Adicto e está
concebida de forma a realçar a mudança de humor.
Os adictos também têm os seus rituais preferidos. Um adicto ao sexo com o qual
trabalhei falou do seu ritual favorito em pormenor. A sua inquietação começava no
caminho do trabalho para casa. Passava numa loja e comprava uma revista
pornográfica. Chegado a casa, preparava uma bebida e sentava-se, folheando
vagarosamente a revista. Depois de alguns copos, e quando já tinha atingido um
certo estado de excitação, ia ao armário e vestia as roupas com que actuava (tinha
dois ou três conjuntos com os quais se achava bastante atractivo sexualmente).
Então saía e ia a um bar topless tomar mais alguns copos. A seguir, deambulava
por certas zonas da cidade à procura de prostitutas. Falava com elas, discutindo o
preço cuidadosamente embora não fizesse sexo com elas. Depois, ia a uma loja de
artigos pornográficos e folheava as revistas. De volta para casa, parava na sua
sauna preferida e fazia sexo com uma das prostitutas que lá trabalhavam. Voltava
para casa, sentindo-se envergonhado e prometendo a si mesmo que nunca mais
voltaria a fazer o mesmo.
Actuava desta forma ritualista duas ou três vezes por mês. Cada parte do ritual
dependia da parte que o precedia. Cada parte tinha um determinado significado
para ele. Por exemplo, não tina relações sexuais com as prostitutas da rua porque
se considerava acima disso. De forma estranha, este aspecto do ritual ajudava-o a
sentir-se menos envergonhado em relação ao seu comportamento.

Escolhas e Rituais

É através dos nossos rituais e da fé que temos neles que esperamos resolver o
conflito interno que todos sentimos por vezes quando somos confrontados com
escolhas. Ao voltarmo-nos para os nossos rituais, estamos a fazer uma escolha.
Devo fazer isto ou aquilo? Quando a pessoa usa um ritual, isso corresponde a uma
afirmação de que fez uma escolha. A escolha pode não ajudar a resolver o
problema, mas fez-se uma escolha. Uma pessoa que tem uma adicção sente uma
grande tensão interior: «Actuo sentimentos ou não?». Esta tensão pode arrastar-
se durante dias ou semanas, de cada vez. Pode estar quase permanentemente
presente. Uma grande parte do sofrimento originado pela adicção é causado pela
tensão. O ritual adictivo alivia esta tensão porque, quando o adicto está envolvido
num ritual, o conflito fica momentaneamente resolvido: fez uma escolha. Há um
sentimento de libertação.

45
A Personalidade Adictiva
Os adictos podem então enfrentar um tipo diferente de stress ou tensão, tensão
causada pela vergonha de actuar. Mas a tensão interna causada pelo «actuar ou
não?» ficou resolvida de momento. Esta libertação de tensão é demonstrada no
exemplo dado anteriormente: um adicto ao sexo debatia interiormente todos os dias
se havia ou não de actuar ao voltar no carro para casa. A maior parte das vezes
conseguia chegar a casa sem percalços. Mas, assim que tomava a decisão de parar
naquela primeira loja e de comprar uma revista pornográfica, a partir daí aa noite já
não lhe pertencia mais. O seu Adicto tinha tomado conta dele. Sentia-se bem nesse
momento porque a luta interior tinha acabado. Tinha-se rendido à sua adicção. A
discussão, a luta entre o Eu e o Adicto estava terminada. Às vezes, desistia só para
calar essas vozes interiores. A libertação da tensão ajudava a reforçar a escolha do
processo adictivo. Interiormente, devia sentir-se melhor naquele momento por ter
escolhido uma certa forma de agir. Pode -se encontrar paz na rendição. Chamo a
isto rendição negativa.

A Comunidade e os Rituais

A comunidade à qual nos ligamos dá-nos orientação e regras de conduta. Os rituais


que praticamos hão-de ligar-nos sempre a alguma comunidade, mesmo que os
pratiquemos sozinhos. Se dissermos uma certa oração em privado, isso ajuda-nos
a criar laços com o grupo que aa usa e acredita nessa oração.
Os rituais adictivos realizam-se frequentemente em particular ou dentro de um grupo
em que não existem verdadeiros laços de afecto entre as pessoas. A maior parte
das vezes, os elos entre os participantes do grupo são a sua forma comum de actuar
sentimentos.
As relações adictivas são muito superficiais e muito privadas: o Adicto detém um
controlo total. O Adicto que está no interior da pessoa não deseja estar com outras
pessoas, preferindo estar só ou com outros adictos que conhecem, aceitam e não
têm receio dos seus ritos adictivos.

 O alcoólico bebe sozinho ou com colegas de bebedeiras.


 O rito bulímico de comer exageradamente e vomitar a segui é um acto
privado, mas, por outro lado, este ritual ainda constitui um elo em relação a
uma comunidade cujos membros são desconhecidos uns para os outros.
Talvez só se venham a encontrar quando se juntarem todos em recuperação,
para se ajudarem uns aos outros a lutarem conta o inimigo comum, a adicção
à comida.
 O adicto do jogo prefere, a maioria das vezes, estar sozinho, mas pode
reconhecer os outros adictos pela forma como actuam, pelos símbolos que

46
A Personalidade Adictiva
ostentam e os lugares que frequentam. Passam muitas vezes uns pelos
outros, reconhecendo-se mutuamente a presença de forma silenciosa; se
conversam, é a respeito do interesse comum no jogo.
 O adicto ao sexo vai ver filmes pornográficos apenas para estar sozinho num
mundo de adicção privado. Se actuar com alguém, muitas vezes isso
acontecerá sem palavras, mas com sinais adictivos a fim de comunicarem
quem irá fazer o quê no rito adictivo. A seguir, cada um deles parte,
afastando-se silenciosamente e levando consigo a vergonha da sua adicção.

A adicção é uma forma negativa de culto, um acto de culto através da ligação com
o lado negativo da pessoa, o Adicto, à custa do Eu. O Eu testemunha sempre o
ritual adictivo e sente-se muitas vezes maldisposto com aquilo que é obrigado a
observar e em que é obrigado a participar, mas o poder da doença mantém-no
cativo.

Comprometimento e rituais

O objectivo de qualquer ritual é intensificar o comprometimento da pessoa, levar a


pessoa a aprofundar uma certa perspectiva do mundo. Os rituais adictivos têm
também este mesmo objectivo, o de empurrar a pessoa mais profundamente para
o processo adictivo. Cada vez que uma pessoa actua nos sentimentos, o sistema
de crenças e de defesa da adicção fica fortalecido. As pessoas que sofrem de
adicções terão de se voltar para sistemas adictivos (usando a lógica adictiva) a fim
de encontrarem uma explicação satisfatória para as suas acções ou terão grande
dificuldade em aceitar estas acções.
A nossa cultura é formada por muitos grupos e cada grupo tem os seus próprios
rituais com regras de conduta que ajudam a ligar os seus membros entre si. Não é
diferente para os rituais adictivos. Conhecer e participar nos rituais de um grupo é
sinal de que se pertence a esse grupo. Se uma pessoa tem um certo
comportamento, então essa pessoa é membro de um certo grupo.
Existem, frequentemente, ritos de iniciação a grupos determinados. Quando era
criança, os meus amigos e eu formámos um clube secreto. Ao sermos iniciados no
clube, ensinavam-nos como fazer determinado sinal. Este sinal deveria constituir
para nós uma forma de nos reconhecermos uns aos outros (o que não era tarefa
difícil, visto que éramos só quatro). Como parte da iniciação, fizemos um voto que,
se fosse quebrado, teria consequências terríveis. Cada vez que nos víamos uns aos
outros em qualquer reunião do clube ou na rua, fazíamos o «sinal» e sentíamo-nos
especiais e integrados. O nosso compromisso com o clube ficava fortalecido.
Acreditávamos no nosso clube e na amizade que ele representava. À medida que

47
A Personalidade Adictiva
crescemos o interesse começou a desvanecer-se, o uso do «sinal» desvaneceu-
se» também, mas encontrámos outras formas de demonstrar a nossa amizade.
Estou certo de que se encontrasse algum dos meus três amigos atualmente e lhe
mostrasse o «sinal», haveria sorrisos, e seguir-se-ia uma conversa sobre as nossas
velhas recordações. Durante um momento, ficaríamos novamente ligados um ao
outro como membros do clube. O nosso ritual tinha realmente poder e esse poder
unia-nos como amigos. «O sinal» representava o nosso compromisso uns em
relação aos outros – era uma afirmação sobre a nossa relação e a sua importância
para cada um de nós.
Para os adictos, o objecto da sua relação torna-se um símbolo do seu
relacionamento com o mundo. É uma afirmação de que, nesse momento da sua
vida, estão a escolher objectos ou acontecimentos em detrimento de pessoas e
relações espirituais.
Desta forma, de cada vez que o adicto está envolvido num ritual adictivo, o objecto
ou acontecimento adquire mais poder. Como símbolo, o objecto toma um poder
cada vez maior. Os adictos são fanáticos em relação aos seus rituais.

 A comida torna-se um símbolo poderoso para o adicto à comida.


 O sexo ou qualquer coisa relacionada com o sexo tem um poder total sobre
o adicto ao sexo.
 Para o alcoólico, o uso do álcool acaba por se tornar parte do ritual sagrado,
mais forte que a própria vida.

Desenvolver Rituais Saudáveis

Todos os adictos elegem uma certa forma de ritual rígido para actuarem nos
sentimentos. É importante compreender isto porque as pessoas em recuperação
precisam de aceitar que o seu Adicto escolheu formas preferidas de actuar e que
há zonas, ocasiões e comportamentos perigosos que precisam de evitar.

48
A Personalidade Adictiva
 Se você for um adicto às compras em recuperação, e se as sextas-feiras ao
fim da tarde for o momento em que é mais provável actuar segundo os seus
ritos próprios, terá de garantir que está acompanhado de amigos seguros nos
próximos fins de tarde de sexta-feira.
 Se você for um adicto ao sexo e uma parte dos seus rituais adictivos incluíam
um passeio por determinada zona da cidade, terá necessidade de se manter
afastado dessa parte da cidade durante os tempos mais próximos.

Os rituais saudáveis ligam-nos aos outros, à família ou aos amigos, os princípios


espirituais que não são úteis ou a uma comunidade baseada na entreajuda. Neste
sentido, os rituais adictivos são rituais invertidos: o seu objectivo principal é o de
isolar a pessoa dos outros. Os rituais saudáveis ajudam a sentir-nos melhor
connosco; os rituais adictivos fazem-nos sentir pior a nosso respeito. Os rituais
saudáveis ligam-nos às pessoas que têm afecto por nós, os rituais ligam-nos ao
lado que em nós é perigoso ou ao lado perigoso dos outros. Os rituais saudáveis
ajudam-nos a ter melhores relações; os rituais adictivos destroem as relações. Os
rituais saudáveis ajudam-nos a ter orgulho em nós e nos nossos amigos; os rituais
adictivos causam vergonha. Os rituais saudáveis são como que uma comemoração
da vida; os rituais adictivos conduzem à morte.

Luta interior

Uma pessoa que sofre de adicção julga que deveria ser capaz de a controlar; por
isso, de cada vez que a pessoa actua sentimentos, o Eu sente-se mais
envergonhado. Com muita frequência, o Eu desaprova o sistema de crenças e a
forma de tratar os outros do Adicto, mas, devido à perda de controlo, é incapaz de
parar esse processo. É na Fase Dois que a pessoa começa a sentir o imenso poder
da adicção e acaba, na realidade, por se lhe render.
Na Fase Dois, a pessoa tenta estabelecer limites ao seu comportamento, o que
também não resulta. Isso provoca mais vergonha dentro da pessoa. Finalmente, a
pessoa rende-se à presença da adicção.
No entanto, antes que a rendição se verifique, a pessoa começa a esforçar-se por
conter a adicção em vez de tentar vencê-la. A parte principal da adicção ainda se
passa interiormente e uma fatia muito importante das energias da pessoa é dirigida
para dentro, para a relação adictiva. Isto causa mais isolamento. Um adicto
praticante é, no que diz respeito às emoções, um solitário e, na verdade, prefere
estar sozinho. A presença de outras pessoas especialmente de alguém que deseja
intimidade – é uma contrariedade. Mas, ao mesmo tempo, o Eu pode estar a ansiar

49
A Personalidade Adictiva
por contacto humano – alguém que possa ajudar, ouvir e interessar-se pelo que
está a acontecer.

Problemas com as pessoas

À medida que a doença progride e a pessoa se volta cada vez mais para dentro de
si, os outros à sua volta sentirão esse afastamento emocional e reagirão a ele. Isso
será o começo dos «problemas com pessoas» para o adicto.
Como a ligação emocional primordial do adicto é com um objecto ou acontecimento
e não com pessoas, muitas mudanças irão ocorrer na sua vida. Os adictos
começam a manipular as pessoas e a tratá-las como objectos, não faz sentido para
eles que os outros se ofendam. Uma personalidade adictiva é, frequentemente,
muito convencida e egocêntrica.
Lembro-me de um adicto com o qual trabalhei, que mentia à mulher a respeito do
seu comportamento e ficava furioso quando ela ousava fazer-lhe perguntas. E
perguntou-me: «Porque é que eu hei-de falar com a minha mulher se ela não
acredita no que eu lhe digo?». Esta pergunta teria justificação numa relação normal,
mas a adicção não é uma relação normal.
Para uma personalidade adictiva, a preocupação dos outros é vista como um
problema. As pessoas são consideradas bisbilhoteiras, e a sua preocupação torna-
se um obstáculo que tem de ser ultrapassado. As pessoas não são importantes a
menos que possam ser usadas para intensificar a adicção.
Outra razão pela qual os adictos encontram bem-estar tendo uma relação
emocional principal com objectos ou acontecimentos em vez de a terem com
pessoas, é porque os objectos ou acontecimentos não fazem perguntas. Os
objectos nunca se queixarão da forma como alguém actua, nem aparecem a fazer
exigências. Estes aspectos do mundo adictivo tornam-se mais e mais atractivos à
medida que a doença progride e que a desconfiança do adicto em relação aos
outros cresce.
Nesta fase, se a família ou os amigos tentam entrar em contacto com a pessoa para
saberem o que se está a passar, encontrarão pela frente uma forma qualquer de
resistência – muitas vezes uma mentira, um afastamento silencioso ou até mesmo
um ataque à sua dignidade.
Os adictos começam a desconfiar dos outros porque, na Fase Dois, projectam os
seus sistemas de crenças e valores adictivos no resto das pessoas. O sistema de
convicções da adicção acredita que toda a gente usa toda a gente (porque as
pessoas são apenas objectos) e que se deve «fazer aos outros antes que nos façam
a nós». Grande parte das pessoas que sofrem de adicção rejeitam esta forma de

50
A Personalidade Adictiva
pensar, mas não têm recursos para lutar contra ela. Não é o Eu que controla, é o
Adicto. Isto causa-lhes mais vergonha e começam muitas vezes a sentir-se vítimas,
a ter pena de si próprios e a desesperar. Ao sentir-se vítima, a pessoa procura
alguém, ou alguma coisa, para cima de quem possa atirar com as culpas, e é
geralmente alguém que lhe é próximo.
O lado mais triste de tudo isto é que, na realidade, é o Adicto quem é a vítima. Tal
como em qualquer outra doença, a adicção representa um assalto contra a pessoa,
mas o adicto nunca pensa nisto de uma forma que faça sentido. Constatar o que
está a acontecer como resultado da adicção poderia ser uma ameaça ao actuar
sentimentos. Raiva e a tensão que o adicto sente são, muito frequentemente,
projectadas contra os outros, contra eles próprios e contra o mundo inteiro.
Os ataques, o afastamento, as mentiras e a negação são, nesta altura,
comportamentos que fazem parte do actuar. É através destas formas que se cria o
sofrimento interior, que irá justificar o próximo excesso. Os amigos, a família e as
pessoas que rodeiam o adicto continuam a tentar um contacto emocional com o Eu
do adicto. Acabam por ficar de mãos vazias e, a certa altura, alteram a sua relação
com o adicto a fim de se protegerem emocionalmente. Ter uma relação com um
adicto praticante é muito doloroso e perigoso do ponto de vista emocional.

Como é que os outros reagem em relação ao adicto

Os amigos, e especialmente a família, querem compreender o que está a acontecer


com alguém de quem gostam profundamente. Nas suas tentativas de compreensão,
esforçando-se por acompanhar as mudanças, as pessoas próximas do adicto
põem-lhe um ««rótulo».
O que, na verdade, está a ser rotulado é a presença de uma personalidade adictiva.
O adicto pode ser classificado como «irresponsável», «perturbado», «tenso»,
«louco», «estranho» ou «fraco». Se as pessoas suspeitassem qual é a verdadeira
raiz doo problema, o adicto será classificado de forma mais exacta para que essa
forma reflicta o que está a acontecer. Podemos, com frequência, escutar os rótulos
que a família encontrou se a ouvirmos falar sobre o adicto. Eis uma lista de alguns
dos rótulos que as famílias usam:

«É um preguiçoso.»
«Come demais.»
«É tão irresponsável!»
«A única coisa que sabe fazer é comprar, comprar, comprar!»

51
A Personalidade Adictiva
«Não faz mais nada senão trabalhar, trabalhar, trabalhar!»
«Realmente, bebe um bocadinho demais.»
«Só pensa no sexo.»
«Já não se pode confiar nele.»

Quando o processo de classificação começa, é sinal de que a doença progrediu o


suficiente para que a família e os amigos se apercebam dela e tenham de se
proteger da personalidade adictiva. As pessoas sentem que o adicto não se importa
com os outros. Irão proteger-se, quer afastando-se dele, quer tentando controlá-lo.
Desta forma, para as famílias, o processo de classificação é uma tentativa de
controlar o que está a acontecer. Então, os adictos reagem e protegem-se a si
próprios. Ao fazê-lo, o sistema de defesa da adicção desenvolve-se ainda melhor.

Tornar-se dependente do Adicto

Para que o processo adictivo continue, o adicto tem de aprender a forma de desviar
de si mesmo a preocupação dos outros. Um dos aspectos mais perigosos do
processo de classificação é a família começar a adaptar-se à «nova pessoa» depois
de ter atribuído um novo rótulo ao adicto. Em breve, desenvolve-se uma
necessidade em relação ao adicto dentro da família, que se torna dependente de o
ter perto de si. «O Adicto» torna-se numa personagem dentro da família e começa
a servir um propósito vital. Os membros da família podem não gostar do Adicto,
mas, em determinada altura, o Adicto começa a fazer parte da família. Os membros
da família são apanhados num dilema: odeiam o Adicto, mas têm amor ao Eu dentro
da pessoa. Não é vulgar os membros da família terem consciência de que estão a
lidar com uma doença, à medida que a adicção progride no seio da família, toda a
gente a pouco e pouco se adapta a ela.
As pessoas começam a perceber que uma pessoa que sofre de uma adicção pode
ser um óptimo bode expiatório. Começam a odiar o Adicto. Se um membro da família
se sente atacado, usado e abusado pelo Adicto, torna-se fácil querer vingar-se e
responder na mesma medida. Desta forma, os membros da família começam a ficar
enredados na mesma luta em que o Adicto e o Eu se encontram presos. Todos os
membros da família poderão perguntar: «Como é que hei-de conseguir que o Adicto
actue de forma responsável e me trate com respeito?». A família tenta que isto
aconteça, mas falha porque um adicto praticamente não é respeitoso. Os membros
da família sentem-se envergonhados e culpam-se a si mesmos (exactamente o
mesmo processo que se está a dar com a pessoa que tem a adicção). Enquanto a
luta prossegue, toda a gente tenta resolver a situação, mas falha. Cada um se sente

52
A Personalidade Adictiva
cada vez pior, desiste por algum tempo e começa a sentir-se envergonhado. Depois,
volta-se à tarefa de tentar levar o adicto praticante a compreender e a agir com
respeito. O ritual começa a ficar implantado dentro da estrutura da família. Eis um
exemplo do dilema de uma família:

 Você gosta muito de um membro da sua família que sofre de uma adicção e
que não é capaz de lhe devolver o seu amor. Sofre profundas oscilações no
seu humor enquanto a pessoa de quem você gosta oscila do Eu para o
Adicto. Em certo momento, pode estar a relacionar-se bem com o Eu da
pessoa; então, diz-se qualquer coisa que desperta o Adicto. A mudança de
personalidade ocorre e, no minuto seguinte, você encontra-se a odiar a
pessoa e a tentar descobrir o que aconteceu. Terá sido qualquer coisa que
você disse? A única coisa que disse foi que gostaria de passar mais tempo
com a pessoa. Era para si uma manifestação do seu afecto por ela. Mas não
percebeu que a pessoa se estava a sentir muito envergonhada por ter
actuado na véspera à noite em vez de ter estado com a família. Por isso, o
dragão acorda e aí está o Adicto presente a proteger o seu território.

Como a pessoa que sofre de adicção começa a agir de uma maneira falsa,
começamos a não confiar nela. No nosso interior, pomos-lhe o rótulo de «falsa».
Quando no podemos confiar numa pessoa começamos, consciente ou
inconscientemente, a distanciar-nos dela. É uma forma natural de nos protegermos
– precisamos de o fazer. Quando a pessoa começa a agir em consonância com o
seu Eu, e não como um Adicto, os membros da família começam a sentir-se
envergonhados de se terem afastado dela. Decidem tentar mais uma vez, apenas
para se sentirem cada vez mais traídos. Isto arrasta-se indefinidamente até que um
membro da família não aguenta mais e desiste de tentar manter qualquer relação
com a pessoa. Mas, sempre que os membros da família sentem a presença do Eu
da pessoa, terão um forte desejo de contacto com ela, mas, também, uma sensação
de vergonha por não o quererem fazer.

Aumentando o processo adictivo

Uma personalidade adictiva encontra mais liberdade para agir irresponsavelmente


dentro do rótulo negativo que fica amarrado a ela durante o processo adictivo. A
permissividade faz sempre parte de um rótulo negativo. Os adictos também se
classificam de forma negativa e isso introduz muita vergonha nas suas vidas. O
processo de classificação é assustador tanto para o adicto como para a família
envolvida porque é um reconhecimento do perigo com que agora convivem

53
A Personalidade Adictiva
quotidianamente. O processo de classificação é apenas uma das alterações que se
vão dando no adicto e nas pessoas que o rodeiam.
Outra situação que se está a dar é o completar do sistema ilusório. É através da
interacção desonesta com os outros que o sistema ilusório do adicto fica completo.
Na Fase Dois, o sistema ilusório e o sistema de defesa são usados repetidamente
pelo adicto, que cada vez deposita maior confiança neles. O adicto começa a sentir-
se mais confiante na sua capacidade de manipular os outros, mas o Eu do adicto
sente-se mais envergonhado, perdido e isolado. Os adictos sentem-se como
estranhos dentro de si mesmos. Ninguém conhece tão bem como aquele que sofre
de adicção o que é o sofrimento, a raiva e o desespero de se estar emocional e
espiritualmente divorciado de si próprio. É devido ao mal-estar contínuo provocado
por este desespero emocional e espiritual que o Eu se socorre do Adicto para
encontrar alívio.
São os profundos sentimentos de medo, raiva, dor e sofrimento causados pelo
processo adictivo que façam com que os adictos se precipitem mais intensamente
na sua adicção a o procurarem alívio. Uma vez, numa feira, vi um rapaz de seis
anos perdido na barraca dos espelhos. Chorava e gritava descontroladamente,
correndo freneticamente para o interior do labirinto ao tentar encontrar a saída.
Alguém teve de ir àquela casa do terror salvá-lo e consolá-lo. As pessoas que
sofrem de adicção sentem de forma muito semelhante à deste rapazinho.
A dor e a raiva lubrificam o processo adictivo e são os principais subprodutos da
adicção, tanto para o adicto como para os que o rodeiam.
À medida que o sofrimento e a tensão aumentam, o adicto sente mais uma
justificação para actuar. Por causa disto e porque, com o decorrer do tempo, se
adaptam à modificação de humor produzida pela sua actuação, sentem
necessidade de o fazer com maior frequência e maior intensidade.

Ficar descontrolado

Os adictos desenvolvem aquilo a que se chama «tolerância», o que significa que


simplesmente se acostumam à mudança no humor produzida no actuar. Por causa
desta tolerância e do aumento do nível da raiva e do sofrimento, os adictos
começam a actuar mais frequentemente e de forma mais perigosa na Fase Dois.

 Os adictos à comida que se excedem muitas vezes, e cada vez se sentem


pior, podem decidir que é normal comerem tudo o que lhes apetece. A seguir,
tomam um laxativo de forma a não aumentarem de peso. Sentem vergonha

54
A Personalidade Adictiva
por estarem descontrolados, e comem mais numa tentativa de se sentirem
melhor.

Para os adictos, as situações em que se comportam descontroladamente são muito


assustadoras pois confirmam qualquer coisa que há muito sentiam no seu interior:
estão descontrolados. Estas situações são, muitas vezes, seguidas de uma
quantidade de promessas de pararem de actuar sentimentos e começarem a
«portar-se como deve ser». Estas promessas são feitas com o fito de se
convencerem que se controlam ou que, pelo menos, virão a controlar-se no futuro.
O adicto vão fundo de si, reúne tudo o que resta da sua força de vontade e «porta-
se bem» durante todo o tempo que lhe é possível. Mas, logo que o medo ou a
vergonha se desvanecem ou se enterram suficientemente fundo, o Adicto volta a
ter o controlo total do Eu e a pessoa volta a actuar.
Por vezes, actuar pode ser uma forma de lidar com a vergonha. Depois de situações
em que actua disparatadamente, o adicto sente necessidade de lhes encontrar um
sentido e volta-se para o seu sistema ilusório e para a sua lógica adictiva a fim de
encontrar uma resposta. Usando a lógica adictiva, a pessoa encontra forma de
justificar o que está a acontecer. Toda a lógica da adicção se baseia na protecção
da personalidade adictiva e do comportamento ligado ao actuar sentimentos.

 O jogador adictivo acredita que os seus problemas financeiros não se devem


ao jogo, mas talvez a uma informação errada ou ao facto de a prestação da
casa ser demasiado elevada.
 A pessoa que faz pequenos roubos em lojas acredita que os seus problemas
derivam da família e das suas emoções perturbadas e não de roubar.

Por causa do sistema ilusório é muito difícil, senão quase impossível, os adictos
perceberem as verdadeiras razões do seu sofrimento. Acreditam que é porque as
pessoas não os compreendem ou porque o mundo é um lugar em que é difícil viver.

O esgotar da energia

O controlo, que faz parte da atracção do estilo de vida adictivo, consiste em crer
que controlamos o nosso mundo próprio. Ironicamente, é a procura de controlo pelo
adicto que fará com que o possua em menor quantidade. Viver num mundo de
objectos ou acontecimentos, a procura sempre crescente de controlo, o aumentar
da vergonha – tudo leva a um maior isolamento emocional e produz uma enorme e

55
A Personalidade Adictiva
psicológica. A adicção consome uma grande quantidade de energia emocional e
psicológica.
Para viverem um estilo de vida adictivo, os adictos na Fase Dois canalizam as suas
energias de forma diferente. Uma maior quantidade de energia é dirigida para o
processo adictivo. As actividades e as pessoas que eram importantes no passado
tornam-se agora menos importantes. A pessoa que sofre de adicção acha difícil
viver duas vidas. Por isso, alguma coisa tem de desaparecer. O tempo com a
família, os antigos amigos e passatempos são postos de lado para dar espaço à
adicção. A energia que, de forma afectuosa, já tinha sido dirigida para os outros e
para o Eu é agora utilizada para sustentar uma relação adictiva. A adicção exigirá
constantemente mais e, como a pessoa é impotente e perdeu o controlo, terá de
ceder à exigência.
Mais uma vez se dá a batalha quase constante entre o Eu e o Adicto. Devo actuar
sentimentos ou não?... Não tem mal actuar!... Está certo actuar!... Vou arranjar
problemas!... Não me ralo se arranjar problemas!
Este tipo de conversa continua indefinidamente dentro da pessoa. O Eu tenta
controlar o Adicto. Parar a luta significa actuar. Muitas pessoas em recuperação
referem ter actuado apenas para se verem livres durante um breve período da luta
interna entre o devo e o não devo. Esta luta para controlar a adicção representa um
enorme dispêndio de energias. Al como qualquer outra doença progressiva, a
adicção irá apoderar-se de mais energia, poder de concentração, e capacidade de
funcionar da pessoa, eliminando a possibilidade de ela ser um ser humano
«normal».

Vazio Espiritual

À medida que a personalidade adictiva adquire mais controlo e que os adictos


perdem mais capacidade de influenciar os seus próprios pensamentos e
comportamento, vai-se dando uma morte espiritual. A minha definição de espiritual
significa estar ligado de uma forma que faça sentido ao mundo que nos rodeia.
O sentimento de pertencer e de ser uma parte do mundo perde-se à medida que a
adicção progride. A sensação de se conhecer a si mesmo e à sua própria
importância afasta-se para cada vez mais longe.
A adicção é em grande parte uma doença espiritual. Toda a gente tem a capacidade
de se ligar com a alma e o espírito dos outros. Por ser a adicção um assalto contra
o Eu, ela é também um ataque directo ao espírito ou à alma da pessoa que sofre de
adicção. O espírito da pessoa produz vida; o objectivo da adicção é a morte
espiritual.

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A Personalidade Adictiva
Quanto mais a adicção avança, mais isolada espiritualmente fica a pessoa. Este é
o aspecto mais triste e mais assustador da adicção. O pôr do sol, os sorrisos, o riso,
o apoio dos outros e mais coisas que alimentam os nossos espíritos acabam por ter
menos significado que o actuar nos sentimentos se torna mais importante. Coo a
adicção bloqueia a capacidade de a pessoa entrar verdadeiramente em contracto
com o seu espírito, existem poucas possibilidades de ela entrar em contacto com o
espírito dos outros. As relações com os outros tornam-se mais superficiais à medida
que a doença progride. Os adictos permanecem isolados ou escolhem a presença
de outros adictos que lhes oferecem camaradagem e provocam neles pouco ou
nenhum receio de confrontação.
Com o avanço da adicção a morte espiritual torna-se cada vez mais profunda. Isto
pode ser o aspecto mais perigoso da adicção. Para que haja recuperação, terá de
haver um renovar do empenho da pessoa em alimentar o seu próprio espírito.
Quanto mais a pessoa se afastar do Eu, tanto mais difícil será estabelecer uma
relação que a cure. No início do processo adictivo, a pessoa recorreu à adicção na
tentativa de alimentar a vida, o espírito e o Eu no processo de procura da perfeição.
Muitos adictos em recuperação agarram-se firmemente ao aspecto espiritual da
recuperação porque muitos deles ficam extremamente gratos por lhes serem
devolvidos dons tão preciosos: o Eu, a consciência espiritual e a capacidade de
entrarem em contacto com os outros de uma forma que tenha significado e que os
conforte.

Fase três: Colapso da vida

A Fase Três ocorre porque a adicção realiza com êxito o seu trabalho de produzir
dor, medo, vergonha, solidão e raiva. A adicção cria esses sentimentos para que o
Adicto possa adquirir controlo sobre o Eu. Cria a necessidade de obter alívio,
prometendo que o alívio virá com a modificação do humor.
Ao chegar à Fase Três, a personalidade adictiva detém um controlo total. Esta
personalidade não se preocupa com o que acontece aos outros, nem com o que
acontece à pessoa que sofre de adicção. O que lhe interessa é realizar e manter o
controlo completo da pessoa e do que o rodeia. O que lhe interessa é ficar «alta»
actuando sentimentos.
Chamei Fase do Colapso da Vida à Fase Três porque nele a pessoa começa
literalmente a sucumbir sob a tremenda tensão causada pela dor, raiva e medo
sempre crescentes, que resultam de um contínuo actuar.
A adicção é de todas as doenças uma das que produz mais tensão e as pessoas
só podem aguentar uma certa tensão, até chegar a um ponto em que as suas vidas
e personalidades começam a desagregar-se. Há um momento em que a pessoa

57
A Personalidade Adictiva
sucumbe no aspecto emocional, espiritual e, finalmente, físico, sob a tensão e o
sofrimento causados pela adicção.

Actuar desagrega a pessoa

Chegando à Fase Três, já não produz muito prazer. a preocupação e o actuar ainda
produzem uma modificação no humor, mas há muito sofrimento a que se tem de
fugir. Embora a pessoa se sinta mais distante desse sofrimento enquanto actua, a
sua presença é sentida de forma quase permanente.
O aspecto mágico da adicção – a embriaguez, a pedrada – começa a desfazer-se
sob a tensão porque a pessoa está a viver debaixo de uma sobrecarga emocional.
O actuar pode começar a ser sentido como mais aborrecido e ritualizado. Muitos
adictos em recuperação referem que, nesta fase, a sua preocupação com o actuar
e viver num mundo de fantasia produzia tanto ou mais prazer e alívio do que o
próprio actuar.
Ao chegarem à Fase Três, os adictos começam a comportar-se de uma forma que
nunca julgaram possível. O comportamento é levado a um tal extremo que acaba,
de facto, por assustar o adicto. Nesta Fase, os aspectos ameaçadores e que põem
em perigo a vida provocados pelo processo adictivo tornam-se óbvios, não só para
o adicto, mas também para a família e amigos. Um dos grandes perigos nesta fase,
é que o adicto está completamente entregue ao processo de adicção e não será
capaz de quebrar este ciclo com uma forma qualquer de intervenção.

Colapso da lógica adictiva

Na Fase Três, a lógica adictiva pode também começar a falhar. O comportamento


da pessoa já nem sequer faz sentido para ela e, por isso, a pessoa desiste de tentar
dar-lhe sentido e cai num estilo de vida intensamente baseado no ritual adictivo.
Assim, os adictos agarram-se a um estilo de vida muito rígido: começam a sentir-se
desconfortáveis com tudo o que não lhes seja familiar. A adicção implica um estilo
de vida muito centrado na própria pessoa e a falta de flexibilidade acrescenta um
certo grau de bem-estar à vida do adicto. Todos nós conhecemos a paz e a
segurança que encontramos nos rituais e objectos familiares – especialmente em
épocas de tensão. Isto também é verdade para o adicto, que poderá odiar actuar
sentimentos, mas encontra segurança nisso. Assim, em alturas de tensão, faz um
recuo rápido a fim de actuar.
As situações novas tornam-se um pesadelo para o adicto. A vida encontra-se
totalmente controlada pelo sistema de crenças adictivo. A lógica adictiva torna-se

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A Personalidade Adictiva
muito simples neste estádio. Consiste em «pedrar» e existir. Nesta fase, o adicto
apenas conviverá com pessoas e ideias que aumentem o estilo de vida adictivo,
qualquer outra coisa é deixada em suspenso.

A capacidade de enfrentar entra em colapso

Resolver os problemas emocionais é um acto contrário ao processo adictivo. A


totalidade do processo adictivo está dependente de problemas não resolvidos e das
tensões que eles produzem. Sentimentos e problemas por resolver constituem uma
desculpa para actuar em qualquer altura. Lembremo-nos de uma panela de pressão
cuja válvula de segurança não tem a pressão suficiente para soltar o vapor. Em
breve, qualquer coisa terá de ceder. Essencialmente, é o que está a acontecer ao
adicto. Na Fase Três, o adicto tem tantos sentimentos por resolver que começa a
atingir um ponto de grande fraqueza emocional. Os recursos de que dispõe para
enfrentar situações não lhe proporcionam a segurança suficiente para lidar com as
pressões que se vão criando. A pessoa começa a sucumbir emocionalmente.
A pessoa pode começar a chorar descontroladamente à mais pequena razão. Um
adicto em recuperação com quem falei, contou-me que chorava sem controlo de
cada vez que via o sol nascer. Mais tarde tomou consciência de que chorava todas
as manhãs porque se apavorava ao pensar em ter de viver nem que fosse só mais
um dia uma vida de Adicto.
Neste ponto do processo adictivo, as pessoas podem ter ataques de fúria sem que,
aparentemente, haja qualquer razão para eles. A sua raiva vai-se acumulando e
tornando compacta até ao ponto de já não ser raiva, mas sim fúria – fúria
incontrolável, por vezes.
A paranóia surge quando o adicto começa a pôr questões a tudo e todos. «Porquê?»
torna-se a pergunta mais angustiante que aparece constantemente dentro da
pessoa. Isto pode levar àquilo que geralmente se chama «ansiedade flutuante» que
atinge os adictos em fase avançada e que pode durar por alguns momentos ou
persistir durante dias. Aqueles que experimentam esta ansiedade sentem que o
mundo inteiro se voltou contra eles e que ninguém se importa com eles ou, até
mesmo, ainda gosta deles. Este aspecto da doença da adicção pode ser muito
exasperante para o adicto.

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A Personalidade Adictiva
O relacionamento com os outros desmorona-se

Nesta altura, o facto de a ligação emocional mais importante do adicto se processar


com um objecto ou acontecimento e não com as pessoas já cobrou o seu preço.
Muitos adictos começam a sentir-se menos seguros na sua interacção com os
outros, mesmo a nível social. As pessoas com adicções começam frequentemente
a pôr em questão a sua capacidade de estar com os outros. Começam a sentir-se
como se as pessoas pudessem ver através de si.
Um adicto relaciona-se com os outros manipulando-os e usando-os a fim de
satisfazer as necessidades adictivas. Para fazer, isto é, necessária uma certa dose
de autoconfiança: a capacidade de ser assertivo ou a capacidade de parecer
desamparado para conseguir que os outros se ocupem dele. Na Fase Três, os
adictos começam a sentir-se muito inseguros e começam, muitas vezes, a perder
alguma da sua capacidade de manipular. Encontram pessoas que se ocupam deles,
mas, essas pessoas fazem-no muitas vezes por pena ou por obrigação, não por
serem manipuladas. Muitas das pessoas que rodeiam o adicto compreendem o seu
estilo de manipulação e reagem menos em relação a ele, ou ficam saturadas com
ele e afastam-se. Muitas vezes, grande parte do sofrimento dessas pessoas é
provocado pelas suas relações com o adicto pelo que tomam a decisão emocional
de não acreditar mais na pessoa. Para eles, o adicto está emocionalmente morto.
A fim de protegerem os seus sentimentos, recusam-se a continuar a considerar o
adicto como uma pessoa.
Na Fase Três, os adictos encontram-se muitas vezes apenas rodeados por pessoas
que ficam com eles pelo seu sentimento de responsabilidade ou por piedade, ou
porque se sentiriam demasiado culpadas se o abandonassem, ou porque têm receio
que o adicto possa sofrer algum mal se se forem embora. Isto torna-se uma
chantagem emocional, pois que os adictos também tentam fomentar sentimentos
de piedade, medo e culpa nos outros para que eles se mantenham por perto.

O Adicto: querer estar sozinho

Nesta fase avançada da adicção, os adictos podem afastar-se completamente dos


outros e tornarem-se verdadeiros solitários. Afinal, o ritual adictivo do actuar
sentimentos é, com muita frequência, um acto solitário realizado sem ninguém por
perto ou na presença de outros adictos.

 Os adictos à comida empanturram-se na maior parte das vezes sozinhos.


 O processo do jogo é uma estratégia particular, interior.
 Fazer pequenos roubos em lojas é um acto privado.

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A Personalidade Adictiva
 Os adictos ao sexo retiram-se para um mundo privado, muitas vezes
ocupado apenas por outros adictos ao sexo, ou mesmo por mais ninguém.

É natural que, à medida que uma personalidade adictiva se desenvolve e adquire


mais controlo na vida de uma pessoa, a capacidade de relacionamento usada para
manter as relações pessoais comece a enfraquecer.
Na Fase Três existe pouca coisa na vida da pessoa que seja permanente e não faça
parte da adicção. A pessoa tornou-se completamente receosa da intimidade e
mantém-se afastada de qualquer manifestação dela. Os adictos acreditam com
frequência que são os outros a causa dos seus problemas. Pensam que as pessoas
não os podem compreender. Portanto, as pessoas devem ser evitadas.

O Eu: Não querer estar sozinho

Bem dentro da pessoa adicta, a solidão e o isolamento criam um núcleo que anseia
por ligação emocional com os outros. Os adictos têm medo de acabar sozinhos. No
seu desespero, apresentam uma característica infantil: esforçam-se por manter o
contacto com os outros agarrando-se à família ou aos amigos e ficam
frequentemente perturbados se lhes parece que as outras pessoas se estão a
afastar deles.

 Quando alguém sai de casa, o adicto tem de saber onde a pessoa vai.
Provavelmente, perguntará à pessoa, «Quando é que voltas?». E, «Tens
mesmo de sair?».

O Eu da pessoa agarra-se à família e aos amigos neste estilo emocionalmente


dependente.
Os adictos comportam-se como se estivessem a dizer às pessoas para se
manterem afastadas, mas, quando as pessoas se vão realmente embora, ficam
muito perturbados. Podem-se ouvir do adicto frases como estas:

 «Não me podes deixar, só te tenho a ti!»


 «Desculpa, estou arrependido, prometo que isto vai ser melhor.»
 «Dá-me só mais uma oportunidade, prometo que vou mudar.»
 «Está bem, então vai-te embora! Também ninguém quer saber de mim.»

61
A Personalidade Adictiva
Os adictos entram em pânico quando a família ou os amigos mostram qualquer
raiva ou sofrimento, mesmo quando não está relacionada com eles. Será que isto
vai fazer com que me abandonem? É o pensamento do Eu. O Adicto quer estar
sozinho, mas o Eu tem um medo terrível de estar só. Muitas vezes, nesta fase, as
únicas pessoas que fazem parte da vida do adicto são membros da família. O Adicto
não estranha isto, porque estar com os outros foi sempre um fardo para ele.

Problemas com o meio

Os adictos estão sempre a experimentar os limites do que os rodeia. Podem ter


problemas com o emprego à medida que a adicção começa a interferir com um
maior número de aspectos na sua vida. Nesta fase, o comportamento dos adictos
tornou-se de tal forma incontrolável que talvez se vejam a braços com problemas
legais. Uma parte da excitação provocada pelo actuar sentimentos pode envolver
agir contra a lei e observar até que ponto é que se pode ir. Os adictos podem
precisar de dinheiro para manter a sua adicção e recorrem a actividades ilegais para
o obterem (isto aplica-se especialmente ao caso do jogo adictivo).
Deste modo, muitos adictos começam a ter problemas financeiros. Gastam grandes
quantidades de dinheiro para sustentar a adicção, e esta ameaça o seu sustento.

 Os americanos gastam perto de 4 biliões de dólares por ano em pornografia


e será exacto afirmar que uma boa percentagem dessa verba é gasta pelos
adictos ao sexo.
 Mais de 50 por cento do álcool que se vende é comprado por 10 por cento
das pessoas que compram bebidas alcoólicas.

Os adictos criam problemas no meio em que vivem porque os seus comportamentos


ao actuarem podem exceder em muito os limites que a cultura em que estão
inseridos podem aceitar.

 O alcoólico pode ser preso por beber e conduzir.


 O adicto ao sexo pode ser preso por frequentar prostitutas ou pode ser
despedido por ter comportamentos inaceitáveis.
 A pessoa que faz pequenos furto em lojas pode ser presa.
 A família do adicto à comida pode exigir que ele procure aconselhamento.

62
A Personalidade Adictiva
63
A Personalidade Adictiva
Sinais Físicos de Colapso

A doença da adicção pode progredir até um ponto em que a pessoa começa a


apresentar sinais físicos de colapso. A adicção produz muita tensão e, depois de
anos e anos de tensão emocional e psicológica, a pessoa começa a apresentar
problemas físicos. Em todas as formas de adicção, os sistemas emocional e
psicológico da pessoa encontram-se a maior parte do tempo muito
sobrecarregados. Imagine-se a tensão que passa sobre o coração e outros órgãos
do corpo. Diferentes adicções afectarão, com o passar do tempo, diferentes partes
do corpo – o fígado do alcoólico, a garganta do bulímico ou as doenças sexualmente
transmissíveis na promiscuidade sexual. Muitas vezes, os adultos não tomam
suficiente cuidado com o corpo – é um objecto para ser usado e abusado. Não há
nenhuma maneira de calcular todos os danos físicos que a adicção causa aos
adictos, às famílias e aos amigos.

Pensamentos de suicídio

Nesta fase do processo de adicção uma pessoa pode seriamente admitir, tentar ou
até mesmo cometer realmente o suicídio. Existem duas razões para isso:
1. O sofrimento interior é tão grande que a pessoa quer acabar com ele, mas a
promessa de encontrar alívio através da adicção já não funciona. Os adictos
querem que o sofrimento pare, mas não acreditam ser capazes de o parar.
Um adicto já no acredita no seu Eu. O suicídio começa a fazer sentido,
especialmente quando usam a lógica adictiva.
2. Os adictos ficam com tanta vergonha do seu lado adictivo e odeiam-no de tal
modo, que querem acabar com a relação adictiva seja a que preço for – ao
ponto de cometerem um acto de homicídio contra o Adicto. Ninguém odeia
mais o Adicto do que a pessoa que sofre de adicção.

Preso na Fase Três

Os adictos não podem quebrar o processo adictivo; permanecem, portanto, na Fase


Três até que surja qualquer forma de intervenção. Aqueles que tentam quebrar o
processo de adicção descobrem que a única coisa que conhecem é a adicção e
regressam ao estilo de vida adictivo. Para recuperarem, os adictos aprendem um
novo estilo de vida. Trocam, lentamente, o estilo de vida adictivo por um novo estilo
onde existem relações com as pessoas. Estas relações aumentam a satisfação
pessoal e permitem crescer.

64
A Personalidade Adictiva
O mundo do adicto baseia-se num fluxo para o interior. Para recuperar, a pessoa
tem de aprender a virar-se para fora e manter este fluxo para o exterior. Para os
adictos na Fase Três, é impossível fazer isso sem ajuda. As pessoas com adicções
estão em desvantagem porque não sabem como sair de si. É por isso que a pessoa
se conservará numa relação adictiva até se dar uma forma qualquer de intervenção.
Há muitas formas diferentes de intervenção, a qual consiste numa tentativa de
quebrara relação adictiva. Algumas têm êxito, outras não. Tal como grande parte
das relações, a adicção pode ser reatada mesmo que tenha estado suspensa por
longos períodos. Quantas veze já assistimos a uma pessoa acabar uma relação
apenas para estabelecer um tipo idêntico de relação com uma pessoa diferente?
Os adictos em recuperação devem ter presente que a adicção devem ter presente
que a adicção não é apenas uma forma de interacção com o próprio Eu e com o
mundo. Para recuperar, a pessoa terá não só de cessar a dependência emocional
interior, mas também de se voltar para o Eu e para os outros. Ao fazer isto, a pessoa
pode descobrir uma nova forma de viver, que poderá ser admirável e
entusiasmante, embora vulnerável às lutas e ao medo.

65
A Personalidade Adictiva
Terceira Parte: Sociedade e adicção

A nossa sociedade tem uma grande influência naquilo que somos e nos problemas
com que nos defrontamos enquanto seres humanos. A nossa sociedade sustenta
certas crenças e valores e tornou-se defensora de muita coisa. Por exemplo, a
América defende a liberdade e a democracia (embora os altos níveis de adicção
possam estar a roubar a liberdade e a eliminar a possibilidade da de escolha a
muitos americanos). Porque a nossa sociedade representa certos valores e
crenças, também nos diz qual o tipo de relações que devemos ter com os outros e
com os objectos que nos rodeiam.
Todos nós vivemos inseridos em dois grupos principais, em duas culturas principais,
e somos por eles influenciados: a nossa sociedade e as nossas famílias. Nesta
secção, vamos observar em primeiro lugar como a nossa sociedade influencia os
seus membros e pode impeli-los para as adicções. Na Quarta Parte, verificaremos
como as famílias podem influenciar os seus membros no sentido da adicção.

Como a sociedade empurra as pessoas para a adicção

É importante lembrarmo-nos de que somos indivíduos e, como tal, responsáveis


pelas escolhas que fazemos. Embora a nossa sociedade possa ter muitos valores
que são compatíveis com os valores da adicção, também tem valores que se opõem
ao processo adictivo. Como sociedade, acreditamos na esperança, na sociedade
para com os outros e no livre arbítrio. Isso são exemplos de alguns valores sociais
que são contrários ao processo da adicção. Vamos ter necessidade de reconhecer
os nossos valores não adictivos e vamos precisar de desafiar os nossos valores
adictivos se, como sociedade, quisemos tornar-nos menos adictivos. Examinemos
agora os valores e crenças que a nossa sociedade sustenta e que ajudam a
empurrar os seus membros para a adicção.

O esforço para ser o primeiro

A nossa sociedade vive obcecada com o «ser como deve ser e parecer como deve
ser». A nossa sociedade está obcecada com o «ser o primeiro». Há uma incitação
constante a tornarmo-nos melhores, a sermos os melhores. Ser o segundo não é
mau, mas esperamos ter mais sorte da próxima vez. Há um anúncio de televisão
em que um grupo de pessoas espera pelos resultados de um teste a um produto.
Depois de terem anunciado o vencedor alguém pergunta, «E quem é o segundo?».

66
A Personalidade Adictiva
O locutor olha a pessoa na cara e diz, «O que é que isso interessa?». A única coisa
que conta é ser o máximo.
Não acho que haja nada de errado em lutarmos e nos esforçarmos por ser os
melhores. O meu trabalho como terapeuta tem a ver com isso. Somos responsáveis
perante nós e perante os outros por nos tornarmos melhores. Mas o que está em
causa não é o nosso aperfeiçoamento que a sociedade considera ser mais
importante – aquilo a que ela dá valor é sermos o primeiro. Ser o melhor é o mais
apreciado de tudo. Como membros da sociedade, sermos qualquer coisa que seja
menos de primeiro despertos em nós uma vergonha escondida. A verdade com a
qual todos temos de conviver é que podemos não conseguir ser número um. A maior
parte de nós fica no meio, quer seja a jogar ténis, quer como mãe, pai, marido,
mulher, namorado ou amigo. Mesmo aqueles que conseguem a primeira posição
em determinada área da sua vida, não ultrapassam a média em muitos outros
domínios. Não há nada de errado, mau ou vergonhoso no facto de a maior parte de
nós sermos seres humanos medianos, mas a nossa sociedade não põe isto em
destaque.
O perigo com a obsessão em se ser o número um é que isso faz parte dos valores
adictivos. Quando estamos preocupados em ser os primeiros, somos levados e
levamos os outros a extremos e a cometer excessos, por consequência, afastamos
as pessoas da moderação e do seu centro de equilíbrio. Em resumo, forçamo-nos
a viver como equilibristas sobre um arame – não andamos sobre ele apenas de vez
em quando, o que pode ser útil, mas vivemos nele.

Viver para os resultados

Como sociedade, estamos obcecados com os resultados. Isto é outro valor adictivo.
A adicção tem a ver com os resultados e consequências; os adictos vivem
obcecados com o resultado. Na adicção, o mais importante de tudo é a «pedra», a
modificação do humor, quer isso seja alcançado actuando nos sentimentos, quer
através da preocupação com isso. O adicto está centrado nos resultados. Quando
o resultado é o mais importante de tudo, aquilo que não merece atenção ou que é
posto de lado é o processo. O processo diz respeito à maneira como se alcança um
determinado ponto. Se uma pessoa fechar os olhos ao processo, está a ignorar ou
a pôr de lado a sua consciência. Muitos de nós não conseguimos ignorar a nossa
consciência, por isso aprendemos a negá-la. Ao aprendermos a negação, estamos
a aprender a ser adictos. A negação é uma componente básica que se encontra em
qualquer adicção. Na adicção, as pessoas têm de aprender a pôr de lado a sua
consciência à custa de grandes prejuízos para si mesmas e para os outros. Uma
pessoa sem consciência é como um barco sem leme. Por isso, quando como

67
A Personalidade Adictiva
sociedade dizemos aos seus membros que o mais importante é o resultado,
estamos ao mesmo tempo a ensinar-lhes a negar a consciência.
Como sociedade a forma de nós alcançarmos os nossos objectivos é muito
importante. A forma como cada indivíduo alcança os seus objectivos é também
muito importante porque é no processo de realização individual que a pessoa
encontra valores, crenças e vida espiritual. Portanto, é a maneira como agimos, e
não aquilo que alcançamos que determina se seremos felizes e teremos relações
benéficas para nós.
Como sociedade, empregamos pouco tempo a discutir o processo; queremos saber
qual é aa meta. Para um adicto, gastar tempo com problemas de consciência é um
desperdício de tempo. O que interessa é actuar e ficar pedrado. Não interessa quem
fica atropelado.

 Para os jogadores adictivos, o que é importante é apostar, é a acção. Não


tem importância se a família está com problemas por causa de eles jogarem.
«Vão ficar contentes quando eu ganhar montes de dinheiro», diz o Adicto ao
Eu esforçando-se por sossegar os escrúpulos de consciência.

Na verdade, não vai um salto muito grande desde «atropelar as pessoas para
avançar» até «atropelar as pessoas para ficar pedrado».

Controlo

Outro valor da adicção que é igualmente um valor importante para a sociedade é


que para ambas o controlo é fundamental. Espera-se de nós que nos controlemos
em todas as ocasiões. Alguém definiu uma vez um adicto como sendo uma pessoa
que prefere controlar-se a ser feliz. A questão do controlo, de forma muito
semelhante à nossa obsessão com os resultados, é ser um elo entre os valores da
sociedade e os valores adictivos. O controlo também diz respeito aos resultados
porque, se você estiver controlado, deverá ser capaz de controlar os resultados.
Não ter controlo é mal visto: a pessoa é muitas vezes considerada como fraca, sem
valor e pouco digna de respeito.
A atitude da nossa sociedade em relação às pessoas de idade e ao envelhecimento
é um exemplo de como julgamos a pessoa pelo aspecto do controlo. Como
sociedade, olhamos muitas vezes para os idosos como «diminuídos». Achamos que
nem sempre são capazes de estar à altura das situações, que nem sempre têm
controlo sobre si. Achamos, muitas vezes, que eles não têm muito para nos
oferecer. Parecemos recear as pessoas de idade como parte desta sociedade

68
A Personalidade Adictiva
temos medo de envelhecer, e lançamo-nos na nossa obsessão pela juventude como
se fosse possível proteger-nos do processo natural de nos tornarmos velhos. Mais
do que noutras sociedades, temos tendência a abandonar as pessoas à medida que
elas vão envelhecendo. Muitas sociedades conservam os seus idosos em posições
honrosas. São essencialmente considerados como guardiães do processo,
depositários da forma como as coisas devem ser feitas. Frequentemente, são
considerados como educadores dos jovens. Ensinam contando histórias, muitas
vezes a sua própria história – histórias com metáforas e moral. Na nossa sociedade,
rápida e centrada nos resultados, as pessoas de idade são muitas vezes vistas
como uma desvantagem. A sua presença parece fazer-nos andar mais lentamente
e nós não gostamos disso, excepto talvez aos Domingos ou nos piqueniques de
família. Por isso, tentamos tornar os idosos descartáveis.
As pessoas de idade podem tornar-nos presente que o processo é importante.
Muitas delas olham para trás para a sua vida e examinam não só o que realizaram,
mas também a forma como viveram essa vida. Observaram o mundo e o seu próprio
corpo envelhecer; muitas aprenderam que o controlo é uma ilusão.
Na melhor das hipóteses, o controlo é uma percentagem. Acreditar no controlo
absoluto é acreditar e perseguir uma ilusão. Isso vai criar sofrimento dentro da
pessoa e também naqueles que a rodeiam. O sofrimento é uma componente chave
na adicção. Na adicção, dá-se a ilusão sedutora de que a pessoa pode ter um
controlo absoluto. As pessoas que sofrem de adicções têm problemas na sua vida
e sofrem; como qualquer outra pessoa, procuram alívio. Por isso, actuam nos
sentimentos, sentem a modificação no humor e têm a sensação de que controlam
e que os seus problemas estão resolvidos. Por momentos, cria-se a ilusão de que
controlam e de que tudo corre melhor. Nada pode estar mais longe da verdade.
Como sociedade, estimulamos o problema do controlo absoluto sempre que
dizemos que os membros têm de ser o número um.

Perfeição

Outro valor da sociedade que é simultaneamente um valor adictivo é a nossa crença


na perfeição. Instigamo-nos, e aos outros, a ser perfeitos custe o que custar. A
nossa obsessão em termos o corpo perfeito é um bom exemplo disto. Não
queremos que os nossos corpos sejam saudáveis, queremos que sejam perfeitos.
Desde as revistas de modas até os concursos de beleza todos julgam o corpo da
mulher e esperam que seja «perfeito». O corpo do homem está também a começar
a ser julgado. Todos os concorrentes têm de ser perfeitos em todos os aspectos.
Toda a gente tem de ter o corpo dos dezanove anos. As pessoas consideram este
valor social inofensivo, mas não é. Está a custar vidas.

69
A Personalidade Adictiva
 O anoréxico morre na sua ânsia da perfeição.
 A bulimia pode destruir os órgãos internos das suas vítimas.

Quem sabe quantas pessoas já se mataram por sentirem que não eram capazes de
alcançar a perfeição?
A adicção tem a ver com a procura do mito da perfeição, quer seja a procura da
perfeição do corpo quer a procura do todo-poderoso dinheiro, que representa o
equivalente masculino do corpo perfeito (alguns acreditam que todos deveriam ser
capazes de fazer montes de dinheiro). «.
A perfeição é uma imagem, e toda a gente tem uma imagem diferente do significado
da perfeição. A perfeição é um mito que empregamos para nos consumirmos a nós
e aos outros. É um mito porque é inatingível. Embora cada pessoa tenha uma
imagem diferente da perfeição, espera-se que toda a gente seja perfeita da mesma
forma. Na nossa sociedade, a definição de perfeição parece atingir sempre o
exagero, ser excessiva. Os adictos acreditam nela e forçam-se por serem perfeitos.

 O viciado no trabalho luta para chegar «ao topo».


 O bulímico luta para ter um corpo «perfeito».
 O anoréxico morre de fome para ter um corpo «perfeito».

A maior parte das vezes o «topo» é definido por outras pessoas e não vem do
interior da própria pessoa. Lutar por ser perfeito afasta-nos de nós. Assemelha-nos
a máquinas, - a uma máquina de beleza ou a uma máquina de fazer dinheiro.
Quando transformamos as pessoas em objectos, afastamo-las da sua humanidade.
Quando consideramos uma pessoa perfeita, deixamos de a tratar como humana.
Uma paciente com quem trabalho é considerada muito bonita dentro dos padrões
sociais estabelecidos. Costuma contar como isso representa uma desvantagem
para ela quando quer fazer amigos ou deseja que sejam honestos com ela. As
outras mulheres ficam intimidadas com o seu aspecto, enquanto os homens tentam
conquistá-la. Poucas pessoas a tratam de forma normal, a maioria trata-a coo um
objecto.
Os seres humanos não são criaturas perfeitas nem nunca o serão. Se dissermos a
nós mesmos e aos outros que temos de lutar para ser perfeitos, estamos a preparar
para nós e para os outros uma vida de tensão, frustração e dor. Estaremos a
separar-nos – e aos outros – da humanidade – onde a nossa força e o nosso espírito
se encontram. Tentar ser perfeito cria solidão, e quando nos sentimos sozinhos
ficamos mais sensíveis ao processo de adicção.

70
A Personalidade Adictiva
Quando tentamos ser deuses, falhamos; quando tentamos ser humanos somos
bem-sucedidos logo desde o princípio. Nunca podemos tornar-nos deuses, mas
podemos aprender a tornar-nos melhores pessoas. No livro Alcoólicos Anónimos há
um capítulo que descreve como funciona um programa dos Alcoólicos Anónimos.
Nesse capítulo, há uma frase que afirma, «O nosso programa é um programa de
progresso espiritual e não de perfeição.». Os autores, usando de sabedoria,
incluíram esta frase para advertir as pessoas que se concentrem no progresso e no
processo, e não nos resultados. Ao lutarem para ser perfeitas, as pessoas causam
muito sofrimento. A tensão de uma vida dedicada à perfeição faz com que muitas
procurem o alívio sedutor que se encontra no processo de adicção. A perfeição é
um valor adictivo; o progresso é um valor espiritual.
Muitas pessoas andam por aí consumindo-se e sentindo vergonha porque não são
perfeitas. Um rapaz de dezanove anos veio ter comigo por andar com pensamentos
suicidas. Tinha tido dois «bons menos» nas notas trimestrais (o resto eram «bons
mais»). Dois bons menos e queria acabar com a vida por não ter atingido a perfeição
durante um período do ano escolar. Tinha assimilado completamente o mito de que
nada que seja inferior à perfeição é aceitável.
O perigo de querermos atingir a perfeição é o que nos acontece quando somos
confrontados com o facto de, como seres humanos, sermos imperfeitos. Muitas
vezes, é esta a ocasião em que nos voltamos para as relações adictivas a fim de
nos ajudarem a pensar que podíamos ser perfeitos ou nos ajudarem a enfrentar o
vazio de descobrirmos que somos apenas humanos. Optamos por sentir vergonha
por termos falhado. Temos tendência a não contar a ninguém os nossos falhanços
ou os nossos desapontamentos. O rapaz que mencionei seria um candidato de
primeira para se voltar para qualquer objecto que lhe provocasse alívio para o seu
desgosto e lhe desse a ilusão de poder alcançar a perfeição.

Falta de Relações Genuínas

Vivemos numa sociedade transitória e apressada; como resultado, dá-se pouco


ênfase às relações. Numa sociedade em que os resultados, e não os processos,
são importantes, as pessoas têm tendência a considerar os outros como objectos.
Isto pode causar desconfiança em relação aos outros. Numa sociedade em que
existe o objectivo social de «Ficar rico processando os outros», não é de espantar
que encontremos pessoas que não confiam e têm medo de criar relações.
Na nossa sociedade, as relações entre certas pessoas parecem ter adquirido as
características de objectos descartáveis. As pessoas têm esperança que as
relações corram bem, mas põem-nas de lado se não funcionam. Quando as elações
com as pessoas se tornam suspeitas, as relações com objectos ou acontecimentos
tornam-se muito mais atractivas.

71
A Personalidade Adictiva
72
A Personalidade Adictiva
Adorar objectos

Encorajamo-nos a acumular o máximo de objectos que podemos. Um certo estatuto


social está ligado a esses objectos; podemos, portanto, dizer com que género de
pessoas estamos a lidar através dos objectos que as rodeiam. É mais fácil termos
relações com objectos do que com pessoas. Os objectos não lhe exigem nada; os
objectos não discutem ou discordam de si. Estão junto de si para o servir. O grande
problema com o facto de a nossa relação principal se passar com um objecto é que
ele não nos traz grande satisfação no que diz respeito às nossas necessidades
emocionais e íntimas. As pessoas acabam por se sentir interiormente muito sós e
pensar que precisam de mais objectos quando aquilo por que anseiam é por
relações humanas.

Uma sociedade descartável

Alguns de nós vivem, até certo ponto, acreditando que a sociedade e o mundo estão
prestes a ser destruídos a qualquer momento. Uma quantidade apreciável de jovens
acredita realmente que nunca atingirá a velhice por causa da destruição nuclear.
Vivemos permanentemente na nossa sociedade debaixo de uma grande tensão por
causa disso. É sabido que certas pessoas ficam paralisada devido à ameaça da
destruição nuclear. A adicção tem que ver com essa sensação. É difícil imaginar o
efeito que essa ameaça produz em nós e como pode ajudar a levar as pessoas a
criar relações adictivas. Há um problema social muito importante que a União
Soviética e os Estados Unidos têm em comum: altos níveis de alcoolismo. Se
tratarmos a nossa terra, a nossa vida, a vida dos nossos filhos e a terra das outras
pessoas, as suas vidas e as vida dos seus filhos como se fossem descartáveis,
estamos a empurrar-nos e a empurrá-los a eles para a adicção. A adicção é um
processo em que o adicto e os que o rodeiam se tornam descartáveis. A lógica que
afirma que teremos mais segurança produzindo cada vez mais armas é idêntica à
lógica adictiva que diz que é bom tomar mais um químico que irá contribuir para nos
matar. Esta lógica trata a humanidade como se ela fosse descartável.
Acabámos de considerar o nosso mundo como um objecto ara ser usado, em vez
de um planeta cheio de vida com o qual todos nós temos uma relação íntima. As
culturas nativas americanas sublinham o facto de, antigamente, estar em relação
com a natureza e de que essa relação era sagrada. Estas culturas ensinam que
fazemos parte do mundo e que o mundo faz parte de nós. Desta forma ensinam-
nos que o mais importante nas relações é o respeito mútuo. Segundo estes ideais,
é impossível seja para quem for alguma vez estar só. Mesmo quando não está
ninguém por perto, a natureza está sempre à nossa volta.

73
A Personalidade Adictiva
Se, dentro da nossa cultura, ensinamos as pessoas que as relações são
importantes, estamos a ensinar-lhes também a forma de orientarem as suas acções.
De modo a terem relações de respeito consigo mesmos e com os outros, as pessoas
têm de ser capazes de disciplinar os seus próprios impulsos. A adicção dá-se bem
na nossa sociedade porque a adicção está orientada para a confiança nos objectos
e nos acontecimentos, e não nas pessoas.

O que acontece quando se levam as coisas a um extremo

Outro valor da nossa sociedade que condiz bem com as regras da adicção é a forma
como valorizamos o excesso. Se um é bom, então dois ainda é melhor.

 Muitos adictos às drogas têm dito ao tomarem uma mão cheia de pastilhas,
«se uma é boa, duas ainda são melhores».
 Muitos adictos à comida já têm dito o mesmo ao chegar a sua vez no balcão
da pastelaria.
 Muitos gastadores adictivos disseram o mesmo ao pagarem uma coisa
qualquer que sabem que irá acabar guardada dentro de um armário.

O excesso torna-se um símbolo de estatuto social na nossa sociedade. A adicção


diz respeito ao excesso. O adicto adora estar bem abastecido. Desde garrafas
escondidas a contas secretas no banco, tentam sempre possuir o máximo que
puderem. Os adictos têm um receio terrível que as coisas se esgotem. É, na
realidade, um receio do abandono. Os adictos abandonaram muitas coisas na vida
– valores, amigos e respeito por si mesmo. o seu maior receio é que o seu objecto
o abandone, embora isso não seja possível. Os objectos não podem abandonar as
pessoas, as pessoas é que abandonam os objectos.
Existem muitas semelhanças entre o processo adictivo e aquilo que a nossa
sociedade actualmente defende. Pode ser por isto que a percentagem de adicções
é tão alta. No entanto, como se disse no princípio desta secção, a nossa sociedade
também tem valores que se opõem ao processo adictivo. Parecemos começar a
estar fartos da adicção e estamos a começar a lutar contra esta doença. Estamos a
realizar isso, recuperando os nossos aspectos espirituais e, esperemos, os da
nossa sociedade considerada como um todo. Uma vez, um amigo meu definiu a
adicção como sendo «responder à nossa chamada espiritual indo à morada
errada». Talvez que nós, como indivíduos e como grupo, estejamos finalmente
agora a começar a aparecer na morada certa.

74
A Personalidade Adictiva
Quarta parte: Família e adicção

Perguntam-me muitas vezes, «São as famílias que tornam as pessoas adictas?»


A minha resposta é: «Não tenho a certeza.». Pessoalmente, inclino-me mais a crer
que as famílias não são a causa da adicção. Na realidade, não se sabe o que causa
a adicção, embora certas pessoas lhe possam dizer que sabem.
O que sabemos mesmo é que há certos factores e certos tipos de famílias que
podem ajudar a empurrar a pessoa para a adicção. Inclino-me a abordar a questão
de saber como as pessoas se tornam adictos da seguinte forma: estabeleço uma
comparação com a maneira como o ambiente em que se vive e o nível de poluentes
que nele se encontram podem tornar a pessoa mais susceptível a determinadas
doenças. Se viver numa área em que os níveis de poluição atmosférica são muito
altos e for vulnerável a problemas respiratórios (quer eles sejam devidos a uma
predisposição genética, quer a quaisquer outras razões), terá muito mais hipóteses
de contrair doenças respiratórias. Quanto mais tempo viver num ambiente poluído,
maior será o risco que corre. Encaro a influência da família e da sociedade desta
forma. A nossa sociedade tem certas atitudes, valores, crenças e comportamentos
que podem empurrar a pessoa com tendências adictivas para a adicção. Passa-se
o mesmo com as famílias. Há certas atitudes, valores, crenças e comportamentos
que certas famílias adoptam que empurram os seus membros para a adicção ou
para a co dependência. As famílias apresentam diferentes níveis destas certas
atitudes, valores, crenças e comportamentos poluídos. Consoante estes níveis, os
membros da família terão uma maior ou menor probabilidade de desenvolver a
doença a que chamamos adicção.
Outro exemplo disso é o facto de, como ambos os meus pais tiveram cancro, os
meus irmãos e eu termos uma maior probabilidade de desenvolver cancro ao
envelhecermos; o que não significa que o teremos, mas que teremos mais
probabilidades que isso aconteça do que uma pessoa que nasceu numa família sem
qualquer história de cancro. Isto é muito semelhante ao que acontece com as
pessoas que cresceram numa família adictiva; tem mais probabilidades de
desenvolver uma adicção. É genético ou adquirido? Por agora, não sabemos. Com
toda a probabilidade, chegar-se-á à conclusão que é devido a uma combinação de
ambos os factores.
O objectivo deste capítulo é o de observar os diferentes tipos de famílias e os
factores que nelas se encontram que levam os seus membros a formar relações
adictivas com objectos ou acontecimentos.

75
A Personalidade Adictiva
Ter pais que sofrem de adicções

Se cresceu numa família em que um dos pais era um adicto, tem uma certa
probabilidade de desenvolver uma adicção, se ambos os seus pais eram adictos,
essa probabilidade aumenta muitíssimo. As famílias em que existem pais adictivos
têm tendência a produzir quer co dependentes (pessoas que cuidam de adictos)
quer adictos. Os membros de famílias adictivas conhecem e vivem em extremos.

 As famílias de alcoólicos terão mais facilmente filhos que acabam a beber


abusivamente ou filhos que não bebem de todo.

Figura 3

Por outras palavras, as famílias adictivas produzem filhos que acabarão nos termos
opostos de um processo contínuo. Poderá ser útil imaginar a família como um
círculo. A doença da adicção aparece e introduz-se no círculo. O sofrimento da
adicção começa a fazer com que as pessoas se separem umas das outras. Esta
fractura criará evidentemente quer adictos quer co dependentes à medida que os
membros da família desenvolvem formas diferentes de encarar a adicção.
Os membros da família são forçados a desenvolver certos meios de lidar com esta
intromissão. O adicto e o co dependente desenvolvem padrões internos para
lidarem com a situação que, aparentemente, parecem opostos, mas que, na
realidade, são muito semelhantes. Ambos se tornaram dependentes de uma ilusão.

76
A Personalidade Adictiva
Os adictos ficam dependentes da ilusão de que podem escapar ao sofrimento da
família através de um objecto ou de um acontecimento; os co dependentes
acreditam na ilusão de que podem parar o sofrimento se conseguirem que o adicto
deixe de actuar nos sentimentos.
Há também o perigo de que cada um dos lados se torne, eventualmente,
dependente do outro. Quando os filhos destas famílias estiverem prontos a fundar
as suas próprias famílias, têm tendência a procurar a sua contrapartida.

 Um co dependente casa com um adicto.


 Um adicto casa com um co dependente.

Assim se forma o ciclo da adicção nas gerações. Os membros da família


aprenderam a linguagem da adicção; na altura de formarem relações fora da família,
procuram pessoas que falem a mesma linguagem. Esta procura selectiva não se dá
a um nível consciente – tem lugar a um nível muito mais profundo, a nível emocional.

 Quando eu estava na Europa, sentado à mesa de um café, ouvi umas


pessoas a falarem inglês. Senti-me imediatamente atraído por elas. Até
tinham uma pronúncia que me parecia familiar não pode evitar começar a
conversar com elas. De momento, uma certa solidão que tinha estado
escondida dentro de mim desapareceu. Encontrava-me outra vez com
pessoas que conheciam e falavam a minha língua. Senti que eles me
conheciam e que eu os conhecia a eles. Senti que estava com pessoas que
me compreendiam e compreendiam as minhas maneiras, os meus valores e
atitudes. Não queria afastar-me deles porque sabia que a minha solidão
voltaria.

77
A Personalidade Adictiva
Figura 4

Certos pacientes frustrados perguntaram-me, «Porque é que eu continuo a ligar-me


a adictos?». A minha resposta é, «Porque falam a mesma língua».
Ao crescer numa família adictiva, uma pessoa observa e aprende em primeira mão
comportamentos adictivos ou a lógica adictiva. É essa a linguagem que lhe ensinam;
na família, a aprendizagem faz-se ao observarmos e interagirmos com os membros
da família.
Se os seus pais forem adictos, estarão a ensinar-lhe os valores e a lógica adictivos
ao mesmo tempo que a sua relação com eles se processa. Não lhe podem ensinar
outra coisa. Os adictos ensinam a adicção. Podem falar-lhe de outras coisas, mas
as suas acções ensinam-lhe a adicção.
Os pais adictivos estão constantemente a mudar de atitude dentro da família. Em
dado momento podem ser pais extremamente carinhosos e atentos e, no minuto
seguinte, actuarem como crianças irresponsáveis. Numa família adictiva, a criança,
especialmente quando é pequena, acompanha a mudança do pai ou da mãe, na
tentativa de ficar ligada a ele ou a ela. Por isso, numa família adictiva, a criança
comporta-se em determinado momento como criança e, no momento seguinte, a
mesma criança pode estar a agir como um pai ou uma mãe responsável. Crescer
dentro de um sistema adictivo cria muito sofrimento psíquico devido a estas
constantes mudanças.

78
A Personalidade Adictiva
Instabilidade emocional

Outra alteração importante que ocorre dentro da família dá-se a nível emocional. De
manhã tudo parece estar maravilhoso, mas, ao cair da noite, uma nuvem de
desespero cobre a casa. Ou, pode haver ocasiões em que existe amor a mais? De
uma forma que quase sufoca os membros da família, como se os pais estivessem
a tentar compensar o horrível comportamento da noite anterior. Estas mudanças
constantes e a falta de estabilidade, quer a nível do comportamento quer a nível
emocional, fazem com que os membros da família se sintam perdidos e inseguros.
As crianças de famílias adictivas perguntam frequentemente a si próprias em que
ponto estão em comparação com outras. Crescem a desejar sempre uma família
normal. Sentem-se diferentes e sentem dúvidas sobre si, confusão, e uma grande
necessidade de saber o que é normal. São estas dúvidas, esta confusão, a falta de
consistência que contribuem para levar os filhos dos adictos a criar as suas próprias
relações adictivas. Poderão tornar-se adictos a objectos ou comportamentos
diferentes daqueles a que os seus pais eram adictos porque farão tudo para se
parecerem com eles.

 O filho de um alcoólico poderá não beber, mas em vez disso criar uma
adicção à comida.

A consistência ajuda as pessoas a sentirem-se seguras; as crianças necessitam,


portanto, de uma base emocional consistente a partir da qual se possam
desenvolver. A inconsistência numa família adictiva faz com que os seus membros
sintam incerteza e insegurança a seu próprio respeito. As crianças sentem-se
inseguras em relação a si mesmas e inseguras em relação ao mundo que as rodeia
pois não sabem quando é que os ventos da emoção podem mudar e o amor e
carinho do momento presente irão ser substituídos por rebaixamentos e insultos.
Isto cria um sentimento de pavor dentro deles. Tenho trabalhado com adultos que
vêm de famílias que sofrem de adicção. Falam de um sentimento de condenação
que parece acompanhá-los constantemente. Este sentimento interior piora quando
tudo se passa bem. Tem a certeza de que algo de mal se irá passar.

 A pessoa pensa que uma relação com outra pessoa vai terminar mesmo
quando não existe qualquer razão que justifique essa ideia.
 A pessoa tem a certeza que vai ser despedida do emprego embora tenha
sido promovida apenas há dois meses.

79
A Personalidade Adictiva
Estes sentimentos fatalistas vêm-lhe de viver numa família em crise, que é
exactamente o que é uma família adictiva. O sentimento de fatalidade vem de uma
época em que a fatalidade era uma realidade. As épocas boas numa família adictiva
não são de confiar. São seguidas por crises e por perigo para as pessoas a nível
emocional. Os membros da família encontram-se em perigo até a adicção ser
tratada e suspensa.
Os membros das famílias que sofrem de adicção procuram distracções ou formas
de ficarem anestesiados em relação aos problemas. Tentam ficar como mortos. É
nesta ocasião que podem dar começo à sua própria viagem adictiva.

 A mãe e o pai estão a discutir à volta da velha disputa de dívidas causadas


pelo jogo. Você desejava que ela terminasse, mas não pode fazer com que
eles parem e, por isso, corre para a televisão, liga-a e entretém-se como
pode. Ou foge para o seu quarto e imagina e promete a si mesmo que,
quando for mais velho, vai ser rico de forma a que ninguém o possa magoar.
Você começou a compartilhar os procedimentos dos seus pais. Tal como
eles, está a tentar entorpecer o seu sofrimento ou está a perseguir uma
fantasia tentando que esse sofrimento passe.

Juntamente com estas inconsistências mais importantes, a pessoa que cresce


numa família que sofre de adicção aprende um tipo de lógica insensata – a lógica
adictiva.

 É obrigado a ouvir enquanto os membros da família tentam encontrar


justificações para o seu comportamento como se não fosse nada. Por dentro,
sente-se ficar louco ao assistir aos seus pais destruindo-se a si próprios. Diz
para consigo que é uma loucura, mas depois olha à sua volta e vê outros
membros da família agindo como se o que se passa não tivesse grande
importância.

Os membros da família vão-se abaixo sucessivamente, enquanto outros nem


sequer se podem dar a esse luxo. Interior e exteriormente, as pessoas põem em
questão os comportamentos insensatos do adicto e de outros membros da família.
São confrontadas com o que passa para o exterior como aparentemente razoável,
mas que é na realidade uma completa mentira.

80
A Personalidade Adictiva
 Aí está você, num ambiente de insanidade e, ainda para mais, sendo
ensinado a mentir e a dizer que um problema não existe. Mentir é negar
abertamente a realidade. Você pergunta: «Porque é que o pai está cheio de
raiva a berrar connosco?» Dizem-lhe, «O pai apenas teve um dia mau no
emprego.». a verdade é que o pai está bêbado. Dentro de pouco tempo,
certos amigos podem dizer-lhe: «Deve ser difícil para ti quando o teu pai fica
assim.». Você faz o possível para que as preocupações deles diminuam
contando-lhes até que ponto o pai detesta o emprego que tem e como tudo
se tornaria normal se arranjasse um trabalho diferente.

Nas famílias que sofrem de adicção, tal como em quase todas as famílias, as
crianças aprendem a não trair a família. Mas as famílias adictivas põem grande
ênfase nisto. Transmitem muitas mensagens sobre a importância da família e sobre
a existência de segredos que todas as famílias têm e que não devem ser contados
aos outros. As famílias com adicções têm de ensinar os seus membros a mentir
pois isto faz parte da adicção.

 Ao ser ensinado a mentir, você põe-se contra si próprio. O seu lado saudável
sabe que isso é uma loucura, mas como sinal que pertence à família e da
sua lealdade para com ela diz que não é tão mau como parece.

A fim de sobreviverem dentro de um sistema adictivo, as crianças aprendem a negar


as reacções saudáveis que as avisam que correm perigo; têm de continuar a
aumentar essas desonestas que lhes permitem aguentar a situação visto a
insanidade e a doença continuarem a progredir.

Crescer numa família aditiva

Todas as crianças que crescem dentro de um sistema adictivo, crescem dentro de


um sistema abusivo. A adicção é um forma de abuso em relação à criança porque
põe obstáculos ao seu desenvolvimento. As necessidades do adicto passam à
frente das necessidades de desenvolvimento da criança.
Distingo duas categorias de abuso. O abuso intencional acontece quando uma
pessoa magoa intencionalmente os outros, quer a pessoa se arrependa depois ou
não. O abuso intencional pode ser físico, verbal, emocional e sexual. O abuso não
intencional é devido a acontecimentos tais como crescer numa família adictiva, a
morte de um dos pais quando a criança ainda é pequena, a pobreza e outras
ocorrências que sucedem por acaso. As pessoas não podem escolher a família em
81
A Personalidade Adictiva
que nascem. Nesta secção, vamos analisar principalmente o abuso intencional e
como ele impele as pessoas a formarem relações adictivas.
Se for educado numa família onde existe abuso físico, verbal, emocional ou sexual,
você aprende que não conta. As suas necessidades não são importantes.
Importantes são as necessidades do pai abusador ou da mãe abusadora. As suas
necessidades como criança – ser protegida, receber amor e alimento espiritual, ser
tratado como ser humano – são postas de lado. As necessidades do pai ou da mãe
abusadores vêm sempre em primeiro lugar. Ensinaram-lhe que é apenas um
objecto, um objecto que está a ser usado para satisfazer as necessidades de outra
pessoa. Desta forma, está a aprender o processo de objectificação que faz parte da
adicção. Os adictos tratam os outros como objectos, e é exactamente isso que
acontece à criança num lar abusivo. Não tem importância o facto de o abuso ser
cometido contra si ou se é obrigado a assistir a outras pessoas serem vítimas de
abusos.

 Se for educado numa família em que o pai dá sovas à mãe ou numa família
em que a mãe dá sovas ao pai, é obrigado a ver pessoas tratarem outras
como objectos e não como seres humanos. A sua humanidade está a ser
negada. Ensinam-lhe que as pessoas são objectos para serem usados e
manipulados em benefício próprio. Ensinam-lhe que as pessoas devem
ensinaram ser controladas isto terá um impacto muito importante no
desenvolvimento do seu Eu. Está a ser ensinado que o seu Eu não conta.
Com o decorrer do tempo, irá desenvolver uma baixa autoestima e pouca
confiança em si.

Também lhe ensinaram através do exemplo a ter um deficiente controlo dos


impulsos. A adicção é uma doença do controlo dos impulsos. Ao observarem os
seus pais a começarem a bater, gritar ou abusar sexualmente dos outros para
dominarem a sua angústia emocional, você aprende a ser indisciplinado quando se
tratar dos seus próprios impulsos emocionais. Ensinam-lhe a reagir; irá percorrer a
sua vida, não com um sentimento de consistência, mas esperando que as coisas
aconteçam de forma a poder reagir contra elas. Aprende, não a tomar iniciativas,
mas a esperar que as coisas aconteçam.
Crescer numa família adictiva também lhe ensina a desconfiar das pessoas. As
pessoas abusivas são pessoas perigosas. Podem provocar e provocam um grande
sofrimento nas outras pessoas. A nossa confiança desenvolve-se dentro da família;
se crescer numa família na qual o maior perigo para si decorre da própria família,
onde é que irá desenvolver a sua confiança? O pai e a mãe têm obrigação de
oferecer aos filhos um ambiente de segurança em casa no qual se possam
desenvolver. Todos nós temos impulsos violentos. Ao observarmos os nossos pais

82
A Personalidade Adictiva
controlarem ou não esses impulsos, aprendemos a forma de lidar com os nossos
próprios impulsos violentos. O pai e a mãe têm obrigação de ser tão honestos e
dignos de confiança quanto lhes for possível. Se os seus pais são as duas pessoas
no undo em quem deveria poder confiar mais e bulham um com o outro e abusam
de si, então em quem poderá ter confiança?
Confiar ou não confiar é uma questão para a qual obtemos resposta enquanto novos
e que aprendemos na nossa casa. Faz parte da linguagem que aprendemos; faz
parte da visão do mundo que nos oferecem. Mais uma vez, o mais triste ao
crescermos num lar em que há abusos é que, quando chega a altura de partir,
procuramos geralmente pessoas com a mesma concepção do mundo e que falem
a mesma linguagem.
Assim, os membros de uma família destruindo o corpo e a alma uns aos outros é
extremamente doloroso. O sofrimento é um ingrediente essencial do processo
adictivo.

 Eis um jovem indo embora de um lar em que se cometem abusos. Foi tratado
como um objecto durante anos. Aprendeu a ter pouco controlo nos seus
impulsos. Ensinaram-lhe a desconfiar das pessoas e leva consigo uma
enorme carga de sofrimento psicológico. Está preparado para o tipo de
promessas que a adicção contém e para o alívio que a alteração de humor
lhe oferece.

Para mim constitui uma surpresa o facto de nem todas as crianças saídas de
famílias em que há abusos criarem adicções.

Crescer numa família negligente

A negligência é também uma forma de abuso, mas vamos analisá-la em separado


porque pode representar uma forma de abuso mais subtil. As pessoas que são
educadas numa família negligente muitas vezes não se vêem a si próprias como
sendo vítimas de abuso. Crescer numa família em que há negligência tende a deixar
as pessoas emocionalmente subdesenvolvidas.
Para que a criança se desenvolva é necessário informação, interacção e alimento
espiritual. Nas famílias negligentes as criança não rebem isto. Ocupam espaço, mas
nunca têm a certeza de serem especiais, mas nunca têm a certeza de serem
importantes. O Eu no interior destas pessoas torna-se subdesenvolvido. A sua auto-
estima não se desenvolve até atingir um nível saudável. Assim, as pessoas deixam
os lares em que existe negligência mais susceptíveis de serem atraídas pelo

83
A Personalidade Adictiva
elemento sedutor que se encontra no processo de adicção. Os acontecimentos
intensos, as pessoas fortes e os objectos potentes são, tendencialmente, elementos
sedutores para elas. É como se essas coisas ou essas pessoas detivessem uma
certa verdade à qual os outros se querem agarrar; é como se essas pessoas ou
esses objectos pudessem preencher um vazio.
Muitas pessoas que foram educadas em famílias negligentes aprenderam a ser
passivas, a sentir-se interiormente mortas, e irão frequentemente procurar alguém
ou alguma coisa que as faça sentir vivas. Têm tendência a suscitar poder nos outros
e nos objectos e a ver poder neles, mas não em si próprios. Um paciente meu foi
educado numa família negligente e tem uma adicção ao jogo. Explicou que aquilo
de que gostava na sua adicção era de como se sentia vivo ao praticá-la. Costumava
pôr camisas coloridas e dar nas vistas; ia às corridas e sentia-se vivo e seguro de
si, depois do que tinha de voltar áquilo a que chamava o seu «mundo interior
aborrecido e vazio». Era quase como se a sua adicção lhe permitisse fazer um
intervalo na passividade que tinha aprendido na sua família de origem.
A adicção, tal como a negligência, é um problema relacional. As pessoas que são
educadas numa família passiva e negligente têm mais probabilidades de seguir os
outros e de procurar pessoas que lhes digam como agir. Procuram a vida e a
excitação que estiveram ausentes ao crescerem. Na adicção, há a alteração de
humor que produz um sentimento de se ter razão e de excitação. O adicto
caracteriza-se muitas vezes pela excitação e por estar sempre convencido da sua
rectidão. As pessoas que são educadas em lares onde existe negligência são muito
sensíveis a este falso sentimento de confiança e excitação. Ficam bastante
deprimidas quando acabam de actuar nos sentimentos e a sua passividade volta.

Famílias desaprovadoras

A família desaprovadora é aquela em que os seus membros nunca fazem nada


certo ou suficientemente bom.

 Há famílias em que a criança chega a casa com cinco bons mais e um bom
menos no boletim de notas e se limita a ouvir uma prelecção sobre a
necessidade de ser aplicada se quiser progredir. «Lembra-te que há um
mundo difícil lá fora.»
 Há famílias que adoptam os olhares reprovadores, as reticências, as
humilhações, os longos dias de silêncio total por causa de um
comportamento que não foi totalmente satisfatório.
 Há famílias cuja troça constante quase roça a tortura emocional.
 Há famílias em que uma criança nunca se sente segura.

84
A Personalidade Adictiva
As famílias desaprovadoras são aquelas cujos membros são ensinados a não tomar
responsabilidades, produzem uma grande quantidade de adictos porque ensinam
às crianças o processo da adicção. Um dos principais subprodutos da adicção a
vergonha; outro, é não se tomar responsabilidade pelas acções e atitudes próprias.
As famílias desaprovadoras vitimam os seus membros de forma rotineira e
sistemática; desta forma, os membros da família são ensinados a ser vítimas ou a
fazer dos outros vítimas.
As famílias desaprovadoras fazem com que os seus membros fiquem
emocionalmente cheios de raiva e, ao mesmo tempo, adquirem um profundo
sentimento de tristeza. Os membros da família são ensinados a não serem
vulneráveis porque a vulnerabilidade torna a pessoa sensível ao ataque. As famílias
desaprovadoras ensinam aos seus membros que não devem ser «apanhados no
meio», porque estar no meio, de acordo com as suas teorias, é como estar no centro
de um quarto cheio de inimigos – significa que se pode ser atacado por todos os
lados. Portanto, os membros da família voltam as costas de encontro a uma parede
e esperam por serem atacados. As pessoas educadas em famílias desaprovadoras
querem ficar nos restaurantes de costas voltadas para a parede, só assim se
sentem completamente seguros.
Os membros das famílias desaprovadoras sentem a tensão do seu sistema familiar,
isso traduz-se muitas vezes numa desconfiança generalizada a todos os seres
humanos.
Uma das minhas pacientes, educada numa família em que a desaprovação era
constante, afirma que a única razão por que ainda está viva é por causa do afecto
e da amizade demonstrados pelo único membro da família que não a envergonhava
– o cão da família que era o único com quem podia falar, chorar e que, apesar disso,
continuava a aceitá-la. Deu-se um facto interessante quando descobriu numa
sessão de família com os irmãos que três de entre os quatro tinham tido uma relação
idêntica com o cão da família. Isto é um exemplo da grande desconfiança em
relação às pessoas que pode ser induzida nas crianças educadas numa família
desaprovadora. Desta forma, os membros destas famílias podem desenvolver uma
vida secreta, um lado secreto só deles. Isto ajuda a impeli-los para o processo
adictivo. Todos os adictos têm uma desconfiança generalizada em relação às
pessoas e conservam um lado secreto só deles. Os adictos estão envolvidos em
comportamentos que não desejam contar aos outros.
Envergonhar uma pessoa é abusar dela, mas como este comportamento não inclui
gritar, bater ou abusar sexualmente da pessoa é muitas vezes considerado
aceitável. Quando os membros de uma família desaprovadora se encontram com
pessoas que pertencem a famílias que não têm esse costume em relação aos seus
familiares, dá-se frequentemente uma espécie de choque cultural. Aquelas pessoas
podem agir de uma forma que pensam ser perfeitamente normal, mas, no entanto,
85
A Personalidade Adictiva
os outros ficam aterrados. Embora todos nós já tenhamos passado por ter sido
envergonhados, envergonhar alguém não é normal – é deitar abaixo uma pessoa
para à custa dela se ter um sentimento de superioridade. É um ataque ao Eu da
pessoa. A parte mais perigosa do ritual desaprovador é que ele é quase sempre
realizado com o pretexto de ajudar ou em nome da honestidade. A pessoa que
envergonha os outros raramente se responsabiliza pela maldade do seu
comportamento. Tal como no exemplo anterior a respeito do boletim de notas, os
pais pensarão provavelmente a seu próprio respeito que estão a tentar ajudar e
fazer progredir os filhos. Se lhes chamarem a atenção para o seu comportamento,
a maior parte das vezes recusarão ver aa sua mesquinhez.
As crianças de famílias desaprovadoras muitas vezes acreditam que são más e que
são responsáveis pela infelicidade dos pais. As crianças acham que isto é o pior
erro que podem cometer. Passará a ser o seu maior segredo – se as pessoas
realmente me conhecessem não gostavam de mim – e desenvolvem um estilo de
vida destinado a provar que são más pessoas ou um estilo de vida baseado em
manter a sua vergonha secreta para toda a gente. Serão elas os adultos que se
sentem totalmente esmagados ou que estão sempre na defensiva se fazem
qualquer coisa mal ou se alguém aponta um erro que tenham cometido. São
candidatos perfeitos para a adicção. Possuem a raiva e o sofrimento profundos para
os quais é necessário alívio. Desconfiam das pessoas e encontram conforto nas
relações com objectos. Aprenderam a não se responsabilizar por nenhuma das suas
acções negativas: se o fizessem isso significaria, para eles, que eram pessoas
«más». Há um livro muito interessante sobre a forma como as famílias e a vergonha
estão relacionadas com o processo de adicção. Recomendo-o particularmente a
qualquer pessoa que tenha tido uma família reprovadora e que sofria de adicção. O
livro intitula-se Facing Shame, Families in Recovery por Merle Fossum e marylin J.
Mason.

Famílias inconsistentes

Crescer numa família em que ambos os pais são loucos ou se comportam como tal
é, com frequência, como tentar jogar ao berlinde no convés de um barco em
andamento. Como as regras, comportamentos e formas de ver o mundo mudam
quotidianamente, não há nada a que a criança se agarre e de que alimente o seu
espírito de forma a desenvolver-se. As crianças precisam de consistência na sua
vida. Nas famílias emocionalmente inconsistentes, aquilo de que a criança está
privada é da oportunidade de ter uma relação consistente. Em alguns dos outros
tipos de família que observámos existe uma relação consistente; mas pode ser uma
relação consistentemente má e doentia. A família emocionalmente inconsistente
nunca permite que se forme uma relação com alguma profundidade – todas as
tentativas para que isso aconteça são sabotadas. As pessoas que vêm deste tipo

86
A Personalidade Adictiva
de família sentem-se quase sempre inseguras das suas capacidades sociais e de
relacionamento. Têm tendência a ser pessoas muito dependentes. É como se
estivessem amarradas à busca dos pais que nunca tiveram. Desta forma, sentem-
se atraídas pela consistência que se encontra na adicção. Os adictos sabem onde
se encontra o seu objecto. Essas pessoas são atraídas pelo sentimento de
segurança e de confiança que muitos adictos sentem ao actuar nos sentimentos,
especialmente nos estádios iniciais do processo de adicção.
Essas pessoas são também sensíveis à pressão dos seus iguais. Se acabarem por
se juntar a um grupo onde ser adicto a um objecto ou acontecimento é a norma, é
provável que se tornem adictos também.
As pessoas educadas em famílias inconsistentes parecem sofrer de um sentimento
de solidão muito profundo. Foram ensinadas a não confiar nem contar com as
pessoas. Anseiam por contacto e intimidade com as pessoas, mas também
desconfiam delas. Como noutro tipo de famílias, isto influência os seus membros a
terem relações com objectos ou acontecimentos em que encontrem a ilusão de se
realizarem.
Os pais inconsistentes dizem frequentemente aos filhos que o seu comportamento
é normal e que o resto do mundo é que é doido. A criança é ensinada a não acreditar
nos seus sentimentos ou na sua intuição. Os seus sentimentos podem dizer-lhe que
o que se passa na sua família não é normal, mas os pais dizem-lhe continuamente
que não se passa nada de mal. Assim, são forçados a escolher entre os pais e eles
próprios.
Neste género de situação, as crianças muito novas escolherão a versão da
realidade dada pelos pais, pois que a sua sobrevivência depende disso. Isto ajuda-
os a não dar pelas inconsistências que se encontram na adicção. Um paciente que
eu acompanhava vinha de uma família muito louca e inconsistente e contava como
se sentia atraído pela consistência que encontrava no alcoolismo e como as crises
periódicas que tinha de aguentar nunca o tinham preocupado por serem muito
menos frequentes e nunca terem a mesma intensidade das que eram habituais na
sua família. Nunca se assustava demasiadamente com as suas periódicas perdas
temporárias de consciência, que não tinham comparação com a ocorrência um
pouco rotineira de, ao chegar a casa, encontrar a mãe a tentar matar-se.

Morte de um membro da família

Quero recordar os leitores que aqui, na Parte Quatro deste livro, não estou a
descrever as causas da adicção. Estive a tentar descrever tipos de famílias em que
os membros parecem ter níveis mais altos de adicção. Como clínico, trabalhei com
um grande número de adictos cujo pai ou mãe morreu quando eram muito novos ou

87
A Personalidade Adictiva
que tiveram o pai, a mãe ou um irmão com uma doença crónica enquanto cresciam.
Embora muitas vezes as famílias possam dar muito amor e alimento espiritual,
parece haver qualquer coisa neste tipo de problemas que empurra a pessoa para o
processo de adicção.
Muitas destas famílias também acabaram por desenvolver uma «regra do silêncio»
em relação à doença crónica ou ao parente falecido. É como se o luto não fosse
permitido. Como resultado, os membros da família nunca aprendem a expressar ou
a soltar os seus sentimentos de frustração ou de perda. A adicção parece oferecer-
lhes uma forma de escape ou uma forma eficaz de adormecer os seus sentimentos.
Devido ao facto que, nestas circunstâncias, os membros da família suportam,
poderá haver uma menor energia positiva. Especialmente em famílias que têm uma
pessoa com uma doença crónica, parece acontecer que uma grande parte dos
recursos emocionais da família são gastos a lidar com a doença, de uma forma
muito semelhante a crescer numa família adictiva. A adicção oferece a estas
pessoas outra maneira de lidar com a situação.

88
A Personalidade Adictiva
Quinta Parte: Recuperar da adicção

Algumas pessoas dizem que os adictos são pessoas egocêntricas. Discordo


completamente. Os adictos são antes pessoas centradas no Adicto à custa do Eu.
O processo de recuperação da doença da adicção encontra-se na renovação do
Eu. Para nós recuperarmos, temos de nos dedicar ou de voltar a dedicar-nos ao Eu.
Por outras palavras, o Eu tem de se tornar cada vez mais importante.
A recuperação é o processo de nos centrarmos no Eu, nas medalhas que são
oferecidas aos adictos em recuperação nos aniversários da sua abstinência podem
ler-se as palavras: «Sê verdadeiro contigo mesmo.». isto é o princípio da
recuperarão: atenção ao Eu e relacionamento com o Eu.
No adicto praticante existe uma relação entre o Eu e o Adicto, no adicto em
recuperação existe uma relação entre o Eu e os outros. O que muda? De que forma
são as duas relações diferentes entre si? O elemento chave é aquele que se
encontra em qualquer relação íntima: honestidade. O Adicto é incapaz da
honestidade que alimenta e sustém o Eu. Assim, é através da honestidade que
começa e se desenvolve uma relação duradoura com o Eu e com os outros. A
honestidade cria a confiança e a confiança cria a segurança. A recuperação
depende da segurança. Para crescermos, precisamos de um ambiente seguro para
o Eu. Os adictos em recuperação criam esta segurança ao admitirem honesta e
respeitosamente o perigo em que vivem.
Admitem e aceitam a personalidade adictiva que faz parte deles:

 «Olá. Chamo-me Maria e sou alcoólica.»


 «Olá. Chamo-me João e sou adicto sexual.»
 «Olá. Chamo-me Júlia e sou uma jogadora compulsiva.»

Nas reuniões de grupo, os adictos apresentam-se como aquilo que na verdade são.
Admitindo honestamente que são adictos, podem começar a relacionar-se com o
Eu e com as outras pessoas. Por outro lado, a negação traz com que o Adicto
cresça, e o perigo para o Eu e para os outros aumente.

Desenvolver relações naturais

A confiança é a base de qualquer relação, quer a relação seja connosco ou com os


outros. Se a relação não tiver por base a confiança torna-se numa luta. O mesmo

89
A Personalidade Adictiva
se aplica à relação que mantemos connosco. A confiança dá-nos a possibilidade de
nos curarmos e a liberdade de entrarmos em contacto com os outros.
Os grupos dos Doze Passos e outros grupos de auto-ajuda precisam de ser locais
de descanso seguros., onde se possa parar e sentir segurança. Concedendo-nos o
tempo de repouso e deixando que a cura comece a fazer-se, podemos principiar
novamente a relacionar-nos com as pessoas de forma saudável. Abrandarmos a
nossa marcha e adoptar mos um andamento humano são também elementos
essenciais para que se possam estabelecer relações. Imagine como seria entabular
uma conversa com peões a partir de um carro que se deslocasse a 70 quilómetros
por hora. Impossível. Mas, se abrandar a velocidade e parar, poderá falar com as
pessoas fora do carro. A maior parte dos adictos move-se a tal velocidade que entrar
em contacto com qualquer coisa fora dos seus «círculos» se torna impossível. O
que causa medo é que, quando os adictos olham pelo espelho retrovisor, vêem o
seu Adicto sentado no banco de trás perguntando: «Não podes fazer com que isto
ande mais depressa?».
Nalguns casos, os adictos em recuperação precisam de aumenta a velocidade de
forma a acompanhar o andamento do mundo que os rodeia, em vez de se manterem
sentados num veículo parado vendo toda a gente passar por eles. A recuperação é
um processo de reentrada no mundo.

Sair de si

Uma vez que os adictos tenham passado pelas fases de admitirem honestamente
e aceitarem verdadeiramente a sua doença, estão prontos a estabelecer relações
fora de si próprios. É importante compreender que os dois passos mencionados têm
de ser dados a fim de que os adictos se possam tornar dignos de confiança para os
outros. Se os adictos não forem de confiança para que se possa conviver com eles,
acabarão muitas vezes por se ligar a pessoas que são tão pouco dignas de
confiança como eles próprios. Uma vez começada uma relação segura com nós
mesmos, (não é necessário que esteja firme, basta que tenha começado), a pessoa
está pronta para principiar a virar-se para o exterior. As outras pessoas já podem
ter tentado ajudar o adicto, mas agora é ele que pode debruçar-se para fora à
procura de ajuda. Pode desafiar a corrente interior da adicção. Ir à procura da família
ou dos adictos de um Poder Superior ou da comunidade, é uma escolha pessoal.
Na realidade, os adictos precisam de formar relações íntimas com todos este
grupos, mas deviam centrar-se em primeiro lugar numa área determinada.

90
A Personalidade Adictiva
S
Muitas pessoas começam a recuperação partindo de uma relação com o Eu para
começar uma relação com um Poder Superior Espiritual. No primeiro estádio da
recuperação, lidar com as pessoas é muitas vezes demasiadamente assustador. A
relação da pessoa com o seu Eu está ainda muito frágil para que possa estabelecer
relações profundamente empenhadas com os amigos ou com a família. Por isso,
formar uma relação com um Poder Superior Espiritual torna-se com frequência um
ponto de partida natural quando a pessoa se começa a aventurar no mundo exterior.
Os adictos em recuperação principiam a notar o Poder Superior nos outros. As
pessoas em recuperação falam muitas vezes a respeito do perigo que
representavam para si mesmas e para os outros quando praticavam activamente a
sua adicção. Falam também da sua relação com um Poder Superior, que as ajudou
a tornarem-se dignas da confiança dos outros.
Nas reuniões de grupo, as pessoas sorriem e entreajudam-se, não desejando em
troca receber mais do que simples respeito da parte dos outros. Sempre me
espantou muito ver como os novos membros que entram num grupo podem ser
cumpridores e atentos. Observando as pessoas que partilham da sua dignidade
entre elas, os adictos começam a sentir a presença de um poder que lhes é superior.
Começam a desejar fazer parte desse intercâmbio. Começam a sentir-se e a ver-
se outra vez como pessoas, e não como objectos projectados de crise em crise.

Intimidade

Ao acreditar no processo de cura, a pessoa estabelece uma relação com um Poder


Superior que olha por ela. A adicção apresenta, tal como na maioria das doenças,
um poder maior do que o nosso, mas a recuperação tem também um poder maior
do que o nosso. A diferença principal reside no facto de, enquanto uma se baseia
na desonestidade e destruição, a outra se basear na solicitude e na honestidade.
À medida que os adictos em recuperação se apercebem das formas naturais como
as outras pessoas se alimentam espiritualmente, começam a querer ter relações
com outros a um nível íntimo. Começam a pôr em questão a crença adictiva que
diz, «Não se deve confiar nas pessoas – tu és muito diferente – não és como eles.».
Os adictos em recuperação descobrem que são como os outros. Todos nós somos
únicos, mas ao mesmo tempo semelhantes, especialmente dentro de uma
comunidade de pares. Os adictos em recuperação começam a tomar consciência
de que encontraram gente que podem compreender, gente que é capaz de os
compreender a eles. Por isso, as elações íntimas começa a adquirir muito sentido.

91
A Personalidade Adictiva
Honestidade

Mais ou menos por esta altura, o Adicto no interior da pessoa começa a ter medo e
começa a dizer à pessoa, «Estas pessoas são falsas.» ou, «Olha – vês como é uma
pessoa cheia de raiva e controladora? É melhor não confiares nela.». Mas depois,
a pessoa volta a uma reunião na semana seguinte e vê essas pessoas a falarem de
si próprias sem qualquer vergonha. Reconhecem e admitem o seu lado adictivo de
forma honesta e respeitosa. O objectivo dessas pessoas é o de se
responsabilizarem por si e não o de negarem a sua responsabilidade. A honestidade
das pessoas que rodeiam o adicto em recuperação desafia o sistema de crenças
adictivo.
Ao confiarem no processo natural de cura, os adictos em recuperação aventuram-
se mais um pouco para o exterior e começam a partilhar coisas sobre si. Podem
estar a observar atentamente, esperando ser rebaixados ou metidos ao ridículo (e
o seu lado adictivo com esperanças de que isso aconteça). Isso não acontece. Em
vez disso, as pessoas reagem de forma natural. Dizem, «Pois, eu sei como é que
te sentes. É horrível, mas vai passar. É bom ouvir-te falar de ti.». as pessoas nestes
grupos esforçam-se por aprender a ouvir os outros. As reações naturais começam
a desabrochar. No seu íntimo, o adicto em recuperação começa a sentir-se
ligeiramente ligado àqueles que corresponderam. Começa a sentir-se ligado aos
que no grupo partilham uma experiência semelhante.

O processo de cura

Lentamente, os adictos em recuperação estabelecem relações que se baseiam em


ajudar os outros em vez de usar os outros. Se uma pessoa em recuperação quiser
realmente usar alguém, será claro a esse respeito, «Preciso de ti para me ajudares
a ficar sóbrio, por isso faz favor volta» é uma afirmação que se ouve muitas vezes
nas reuniões de grupo.
As pessoas dão umas às outras o seu número de telefone e dizem, por exemplo,
«Se sentires que precisas de beber, telefona-me». Os adictos em recuperação
começam a sentir-se de novo importantes, cria-se o sentido de auto-estima. Tomam
consciência de que têm qualquer coisa para dar que pode ajudar os outros. Quando
vão às reuniões os outros ficam contentes de os ver. Provavelmente, as famílias
estão contentes de o verem ir a reuniões, mas ainda desconfiadas a seu respeito.
Nas reuniões, as pessoas ajudam toda a gente a tomar consciência de que a
reacção das suas famílias é natural e lógica. «Porque é que haviam de confiar em
vocês? Conhecem melhor do que ninguém o vosso Adicto e como vocês podem ser
mesquinhos. Nós temos confiança em vocês. Têm comparecido regularmente e têm
participado activamente nas reuniões e parecem desejosos de recuperar. Por isso,

92
A Personalidade Adictiva
dêem tempo às vossas famílias – elas têm necessidade disso.». Através deste tipo
de diálogo, os adictos em recuperação começam a ter novamente a experiência da
lógica natural. O que as pessoas do grupo têm para dizer faz sentido e, com o
tempo, toda a gente pode constatar que funciona. O grupo está a apender o
processo de cura natural que se encontra nas relações honestas.

Novos Valores

Através das suas relações com outras pessoas nas reuniões, os adictos em
recuperação sentem que se renovar. Começam também a relacionar-se com os
princípios e conceitos existentes na recuperação – princípios e conceitos tais como
admitir, aceitar, ser honesto, acreditar, entregar, ser solicito, pedir aquilo de que têm
necessidade, examinar-se a si próprios, rezar, meditar e despertar para o sentido
espiritual. Todos estes princípios passam a fazer parte do Eu do adicto em
recuperação. Princípios como mentir, esconder e negar tinham-se tornado parte do
Adicto. À medida que os adictos em recuperação aprendem a forma de ter relações
segundo conceitos e princípios saudáveis, o Eu renova-se. Os adictos em
recuperação começam a sentir-se felizes e porque se estão a tornar pessoas que
merecem novamente respeito. Estão a ser pessoas honestas, com valores que
jogam a seu favor.

A Recuperação através do respeito pela Adicção

À medida que os adictos em recuperação ganham força interior, podem começar


um processo de auto-exame que é necessário para sustentar as relações acabadas
de formar e para recuperarem as relações que se perderam por causa do processo
de adicção. Como parte deste auto-exame, os adictos em recuperação são
continuamente forçados (de uma forma afectuosa) a falar no inferno para o qual o
processo de adicção os arrastou a eles e às suas famílias. Ao contarem as suas
histórias aos seus iguais, os adictos em recuperação começam a ganhar respeito
ao poder da sua adicção e do Adicto que vive dentro de si.
Diz-se que um bom general pode odiar o inimigo, mas terá sempre grande respeito
por ele. Ao contarem repetidamente as suas histórias e ao ouvirem as dos outros,
os adictos criam respeito pela adicção, o suficiente (espera-se) para os ajudar a
trabalhar seriamente na sua recuperação.

93
A Personalidade Adictiva
Ser carinhoso consigo mesmo

Na adicção, qualquer espécie de auto-exame acaba em auto-abuso. Nos grupos de


recuperação, os adictos aprendem que se se tratam mal a si próprios, continuam a
agir como Adictos. Aproximando-se de si e dos outros com dignidade e respeito,
aprendem a perder esse hábito. É uma forma de viver com sobriedade baseada na
recuperação; pode ser uma lição difícil, que levará para muitos algum tempo a
aprender, especialmente para aqueles que cresceram rodeadosde adicções.

Fiscalizar o Adicto Interno

Na recuperação, há ocasiões em que muitas pessoas podem continuar a sentir e a


ouvir o Adicto que está no seu interior. Se o Adicto começar aa falar alto demais ou
a tornar-se muito tentador, os adictos em recuperação podem ir ter com as suas
novas relações e a segurança que nelas encontraram. A adicção é «astuciosa,
desconcertante e poderosa!». O Adicto não desiste facilmente. A maior parte das
vezes, o Adicto instala-se e faz comentários mal-humorados que são bem
arquitectados e causam dúvidas à pessoa.
Uma das coisas que as pessoas precisam de fazer ao longo da recuperação é
fiscalizar o seu Adicto. O Adicto que está no seu interior procurará outros objectos
ou acontecimentos para formar uma relação adictiva.

 Os alcoólicos em recuperação podem encontrar-se, ao fim de dois ou três


anos, com mais 20 ou 30 quilos.
 Os adictos sexuais em recuperação podem começar a beber ou a ir às
corridas demasiadas vezes.
 Os adictos ao jogo podem começar a tomar umas bebidas enquanto jogam.
 Os adictos ao sexo podem começar a usar laxantes regularmente a fim de
controlar o seu peso.

Isto traz parte do aspecto «astucioso» da adicção a que todos os adictos em


recuperação precisam de prestar atenção. O Adicto interior tem uma adicção
favorita, mas também lhe servem outras formas de adicção. As adicções
secundárias podem tornar-se em adicções primárias se a pessoa não fiscalizar o
Adicto.

94
A Personalidade Adictiva
O perigo de fazer trocas de adicções

Pode-se pôr demasiado ênfase no objecto da adicção. Os adictos em recuperação


precisam de analisar não apenas a razão por que escolhem um objecto de adicção
especial, mas também precisam de examinar como é que se interrelacionam com o
mundo segundo formas adictivas. Terão de examinar a sua lógica adictiva, as suas
crenças, valores e rituais adictivos. Precisam de analisar continuamente estas
questões até conseguirem conhecer o seu lado adictivo e descobrir formas de
contrariar os seus impulsos adictivos.
No Livro Azul, Alcoólicos Anónimos, há uma frase que diz: «Sentimos que a
eliminação da bebida é apenas o começo.». A recuperação não diz só respeito a
parar de actuar nos sentimentos, diz também respeito à eliminação da
personalidade adictiva que se desenvolve durante a adicção. Se as pessoas não
reconhecem e não mudam as suas personalidades adictivas, voltarão,
provavelmente, a actuar sentimentos de uma forma qualquer. Podem ter aprendido
o suficiente para não voltarem ao seu objecto preferido, mas podem encontrar outro
objecto que lhes permita realizar a mudança de humor de que necessitam para
escaparem às emoções desagradáveis e indesejáveis. Se os adictos não tratarem
da sua personalidade adictiva e se acontecer trocarem de objecto de adicção, há
grandes probabilidades de voltarem ao seu objecto ou acontecimento preferido.
Na área do tratamento do alcoolismo existe o termo «bebedeira seca» para
descrever o estado das pessoas que pararam de beber, mas não enfrentaram a sua
personalidade adictiva. Andam infelizes e tratam toda a gente da mesma forma que
tratavam quando bebiam. Portanto, a recuperação não se limita apenas a cortar a
relação que uma pessoa tem com um objecto ou acontecimento, embora isso tenha
a maior importância. A recuperação consiste, em primeiro lugar, em virmos a
conhecer a nossa personalidade adictiva e em darmos os passos necessários para
nos vermos livres das atitudes, crenças valores e comportamentos adictivos.
As pessoas que estão «numa seca» têm maiores probabilidades de virem a beber
novamente. Têm também maiores probabilidades de trocar de objecto de adicção.
Talvez deixem de beber, mas engordem 20 ou 30 quilos a comer «comida de
plástico»4 em ocasiões em que antes se teriam embebedado. Conseguem manter-
se assim porque é mais aceitável na nossa cultura ter uma adicção à comida do que
à bebida. A vida e as relações deles podem estar num caos, mas muitas pessoas
dirão, «pelo menos não estão a beber». Embora isto seja verdade, eles continuam
a levar um estilo de vida adictivo e correm o risco de recomeçar a beber.
As pessoas trocam de adicção para manterem o processo adictivo a funcionar. Os
adictos podem ter problemas com um objecto; para o resolverem voltam-se para um
novo objecto ou acontecimento. É bastante semelhante a sair de uma má

4
«Junk food» no original

95
A Personalidade Adictiva
experiência com um casamento e saltar logo para outro. Um paciente com quem eu
trabalhava tinha sido casado quatro vezes. De todas as vezes, a mulher era uma
adicta: duas alcoólicas, uma adicta à comida e outra adicta ao sexo que continuou
a ter relações extraconjugais todo o tempo que durou o casamento. Este padrão
continuou até ele confessar o que ganhava em escolher adictos para cônjuges: um
sentimento de superioridade. Cresceu junto de uma mãe que era alcoólica e a única
lógica que aprendeu foi a lógica adictiva. Vivendo ao lado de uma pessoa que
estava sempre com problemas, não tinha de resolver os seus. Admitiu que tinha
medo de ter uma relação de igual para igual. Não foi senão quando admitiu e aceitou
esta e outras facetas de si meso foi capaz de estabelecer relações de vários tipos.
Lembro-me de fazer uma avaliação a um homem que referiu ter tido um problema
com whisky. Desistiu do whisky, mas começou então a ter problemas com o gin.
Desistiu do gin. A seguir arranjou um problema com o vinho e teve de abandoná-lo.
Quando eu o vi, estava a pôr em questão a forma como usava, a cerveja e queria
falar com alguém antes de se tornar um alcoólico.
Os adictos trocam os objectos da sua adicção para continuarem com o processo
adictivo e com a ilusão que não têm um problema. Os adictos procuram a alteração
do seu estado de humor e, muitas vezes, a forma como alcançam tem pouca
importância.
Como é que os adictos em recuperação sabem se estão a começar a agir de forma
adictiva com outros objectos ou acontecimentos? Se começarem a usar outros
objecto ou acontecimentos para substituírem relações ou os princípios de um
programa de recuperação, estarão a começar a agir de forma adictiva. Estão a
privar-se do processo de cura que se concretiza quando conversam sobre os seus
problemas com os outros. Falando com as outras pessoas sobre os seus
comportamentos, os adictos em recuperação podem aferir se as suas acções são
normais e úteis ou adictivas e perigosas. Muitas pessoas em recuperação acabam
por aceitar que o seu Adicto os acompanhará sempre e que poderão controlar
eficazmente a adicção com a ajuda de um programa de recuperação. Aceitam que
a sua doença lhes provocou alterações permanentes, como todas as doenças
graves provocam. Os adictos podem recuperar, mas nunca se curam.

Honestidade e Recuperação

Para que a recuperação seja autêntica, a pessoa em recuperação terá em dada


altura de dedicar a vida a alcançar a honestidade., que é o oposto da adicção. A
honestidade tem de ser a espinha dorsal do programa de recuperação da pessoa.
Para recuperar, tem de se admitir a existência de um problema e, em seguida, ser-
se honesto a respeito da necessidade de ajuda. A honestidade é o começo da

96
A Personalidade Adictiva
recuperação e é também o combustível que mantém a recuperação em
funcionamento.
Os adictos praticantes receiam a honestidade. Os adictos em recuperação podem
nem sempre gostar da honestidade, mas aceitam as críticas honestas e aprendem
a transformar as suas fraquezas em força.
A honestidade é especialmente importante para os adictos porque contraria o
processo adictivo. Na adicção, a negação e a desonestidade fazem com que as
pessoas se tornem mais distantes de si próprias e dos outros. Na realidade, a
desonestidade causa isolamento; acontece com muita frequência que apenas o
adicto sabe que está a ser desonesto e que se sente forçado a voltar para o seu
interior e a afastar-se dos outros.
A honestidade diz respeito à nossa ligação connosco e com os outros; permite-nos
ter relações íntimas. A honestidade nem sempre garante a intimidade, mas permite
que uma relação se torne mais profunda.
A honestidade em relação à própria pessoa aos outros tem de incluir compreensão
e compaixão. Como terapeuta, tenho assistido a coisas cruéis feitas em nome da
honestidade, e, por causa disso, acabei por concluir que a honestidade não pode
permitir a crueldade. A honestidade e a vingança não têm nada em comum.
A honestidade passa-se no interior; pode por isso ser dirigida para o exterior. A
honestidade não se destina a encontrar alguém a quem se possa atirar as culpas,
embora nos sistemas adictivos seja muitas vezes encarada desta forma. A
honestidade sobretudo respeito à forma como se encara o mundo e à partilha disso
com os outros. Desta forma, a honestidade refere-se ao modo como nós, como
indivíduos, somos diferentes uns dos outros. O que é honesto para mim pode ser,
e muito provavelmente é, diferente do que é honesto para si. Acontece isto porque
todos nós temos antecedentes e perspectivas diferentes. Portanto, a honestidade é
na verdade a fiscalização que a pessoa exerce sobre si própria, a que se segue o
compartilhar da pessoa com os outros. Se estivermos a tentar ser honestos
dedicaremos pouco tempo, se é que algum, a tentar descobrir se os outros estão a
ser honestos, o que na maior parte dos casos é uma perda de tempo. Se alguém
for geralmente uma pessoa desonesta, isso acabará por se revelar; a
desonestidade, tal como a honestidade é um estilo de vida. Um estilo de vida
verdadeiramente honesto cria discrepâncias, e à medida que a desonestidade
avança essas discrepâncias tornar-se-ão óbvias até que se tornarão públicas. É o
que sucede na adicção.
As pessoas honestas esforçam-se por serem abertas e autênticas. Orgulham-se de
si mesmas de uma forma muito genuína. Querem conhecer-se melhor de forma a
poderem progredir. Os adictos em recuperação precisam de adoptar o conceito de
honestidade porque este lhes permite continuarem a recuperação. Se forem
honestos, os adictos em recuperação poderão procurar ajuda quando quiserem

97
A Personalidade Adictiva
actuar nos sentimentos. Se forem honestas, as pessoas em recuperação tomarão
consciência dos seus problemas suficientemente a tempo de poderem fazer
qualquer coisa a seu respeito e antes que eles se transformem em desculpas para
actuar.
A honestidade é franca. Verificamos isso quando as pessoas se apresentam em
muitos grupos de auto-ajuda. «Olá, chamo-me _____ e sou um adicto». Este tipo
de honestidade representa um ponto de partida. A pessoa retrata-se a si própria
sem qualquer espécie de fraude ou vergonha.
A honestidade não faz juízos nem lança culpas. Pode manter um sentimento de
culpa, mas não de vergonha. Diz respeito a factos – factos pessoais. «Vejo as
coisas desta maneira» ou «Creio que as coisas se passam desta forma». A
honestidade é um acto em que se partilha as nossas convicções e ideias. Com os
outros ou connosco sem que se emita um juízo sobre elas. O bom ou o mau da
questão é deixado de fora.
A honestidade corresponde também a um acto de crescimento – muda á medida
que nós mudamos. Aquilo que parece verdadeiro hoje, pode não ser verdadeiro
amanhã. Ao lutarmos com problemas de honestidade somos forçados a crescer e
a enfrentar as nossas discrepâncias próprias. Ser honesto é não rejeitar as nossas
inconsistências pessoais quando as descobrimos. A honestidade é olhar para
dentro e, por vezes, para fora, a fim de descobrirmos as nossas crenças e os nossos
valores.
Para muitos de nós, a honestidade é difícil de aprender porque ao longo da vida nos
ensinam certos tipos de desonestidade, especialmente em relação às nossas
emoções. «Os rapazes não choram.» «As raparigas não têm raivas.» Isto são dois
exemplos de mentiras que aprendemos. Não são verdades – são opiniões. Os
outros oferecem-nos frequentemente as suas convicções pessoais e dizem-nos que
essas convicções são factos. Muita gente arranja problemas quando tenta
convencer os outros a acreditar que as suas opiniões pessoais são factos. É fácil
pensarmos que sabemos tudo sobre uma pessoa ou que sabemos o que é melhor
para ela. Isto acontece muito facilmente nas relações, mas nem sempre é útil.
Na adicção, as pessoas tornam-se apegadas a um estilo de vida desonesto. Nas
primeiras fases da recuperação, as pessoas sentem muitas vezes o impulso de
serem desonestas, mas os seus programas de recuperação dizem-lhes para
abandonarem velhas crenças e serem honestas e confiarem nas pessoas.
A honestidade é uma tarefa difícil para a maior parte das pessoas no princípio da
recuperação. É como aprender uma língua nova. Uma vez que estejamos
familiarizados com a nova linguagem da honestidade, começa a tornar-se divertido
e excitante e começamos a achá-la normal.

98
A Personalidade Adictiva
Nos primeiros estádios da recuperação, muitas pessoas pensam que a honestidade
significa contar tudo a toda a gente, mas a honestidade não é contarmos a história
da nossa vida a alguém que acabámos de encontrar no autocarro. A honestidade é
selectiva e isso leva tempo a aprender. A honestidade é abrirmo-nos com os outros,
mas seria disparatado fazermos isso com certas pessoas. Não daríamos a nossa
morada a um ladrão, nem lhe daríamos também a morada e qualquer outra pessoa.
A honestidade quando é partilhada com alguém em quem se confia é uma dádiva.
A maior parte da recuperação insiste na honestidade sobre nós mesmos, o que
conduz à aceitação da nossa pessoa. Na recuperação, as pessoas aprendem que
são vítimas das suas próprias mentiras. Para recuperarem, as pessoas têm de
desistir do mito da perfeição. Muitas pessoas tornam-se desonestas por causa
desse mito. Se você acreditar que tem de ser perfeito, torna-se desonesto quando
negar as suas imperfeições. Se lhe parecer que existem imperfeições a mais, pode
perder a esperança. Na recuperação, as pessoas aprendem a trabalhar em direcção
ao progresso, não à perfeição. Aprendem que é normal ser-se imperfeito e que está
certo serem honestas consigo e com os outros sobre este assunto.
A honestidade é também ver o mundo tal como ele é. Vivemos num mundo que tem
tanto de beleza como de horror. A honestidade pode motivar-nos a olharmos par as
coisas de forma realista. Vendo as coisas tal como elas são, algumas pessoas ficam
suficientemente desgostadas para tentarem fazer com que elas mudem. Uma
pessoa em recuperação é alguém que reclama poder pessoal. Os adictos sabem
muito a respeito do que significa serem impotentes, tendo sido apanhados por uma
doença que os manteve sob controlo. Os adictos em recuperação aprendem muito
sobre a forma de reclamar o seu poder pessoal e a forma como podem provocar
mudanças nas suas vidas estando em ligação com os outros e com espírito de amor.

Relações e Recuperação

A beleza da recuperação encontra-se nas relações. É através da formação de


relações saudáveis que os adictos são capazes de ultrapassar a sua doença. Nesta
altura, desejo reafirmar a minha definição de adicção. A adicção é um amor
patológico e uma relação de confiança com um objecto ou um acontecimento. Os
adictos em recuperação têm de se dedicar a aprender como é que podem
corresponder às suas necessidades de amor, de confiança e às suas necessidades
emocionais através das relações saudáveis com as outras pessoas e com a sua
própria espiritualidade.
Para muitas pessoas em recuperação, é nos grupos de auto-ajuda que se
estabelecem as primeiras relações que as realizam. Muitos destes grupos baseiam-
se nos Doze Passos dos Alcoólicos Anónimos. A primeira palavra do Primeiro Passo
de qualquer destes programas de Doze Passos (por exemplo, Famílias Anónimas,

99
A Personalidade Adictiva
Emoções Anónimas, Adictos à comida Anónimos ou Narcóticos Anónimos5) é o que
eu penso ser o mais importante de tudo: «Nós». Ao usar a palavra «Nós», os Doze
Passos começam a destruir a relação doentia entre o Adicto e o Eu e começam a
ligar o Eu com os outros. À medida que isto acontece, as pessoas tomam
consciência de que as suas necessidades emocionais podem ser satisfeitas através
dos outros. Se a relação doentia entre o Adicto e o Eu não for quebrada e substituída
por relações saudáveis com os outros, os adictos voltarão a maior parte das vezes
a uma adicção ou substituirão a adicção por outra relação adictiva com um objecto
ou acontecimento.
Em recuperação, as pessoas precisam de desenvolver relações saudáveis com
outros adictos em recuperação, com o seu lado espiritual, com a família e os amigos
e, eventualmente, com a comunidade em que vivem. É através destas relações
naturais que as pessoas vêm a conhecer-se e aprendem a satisfazer as suas
necessidades emocionais de formas não adictivas. É através dos outros que os
adictos em recuperação desenvolvem a capacidade de se sentir bem e satisfeitos
consigo.
No princípio do processo de recuperação, as relações são muitas vezes encaradas
como qualquer coisa em que não se deve confiar. No processo de adicção, os
adictos usam as pessoas como objectos. As capacidades de cura que encontram
nas relações saudáveis começam a reconfortar os adictos. É isto que na maioria
dos casos os adictos sempre desejaram: relações reconfortantes.
Quase todas as pessoas anseiam por relações que as reconfortem e as alimentem,
relações que as façam sentir importantes e orgulhosas pelo facto de fazerem parte
delas.
Os adictos acreditam muitas vezes que ao incapazes de ter relações que funcionem.
Tentaram, mas as suas relações nunca parecem funcionar. As relações não podem
funcionar por causa do processo de adicção. Finalmente, os adictos acabam por se
ver a si próprios como incapazes de serem amados por alguém. Ao formarmos
relações saudáveis e íntimas, descobrimos a capacidade de amar e sermos
amados. É através destas relações que temos a sensação de sermos especiais.
As pessoas começam a reviver ao estabelecerem relações. Os adictos em
recuperação fazem muitas vezes o impossível para ajudarem os outros adictos a
recuperar. Já tenho visto homens de aspecto forte e rude a apoiarem
carinhosamente um frágil membro do seu grupo e a deixar que ele chore no seu
ombro, dizendo-lhe que já não tem mais nada a temer porque agora tem amigos.
Através das relações aprendemos a forma de enfrentar os problemas da vida.
Grande parte dos principais problemas na vida são resolvidos no contexto das
relações. Alguns elementos básicos de uma relação saudável são:

5
Há mais de cem tipos diferentes de programas de Doze Passos a funcionar actualmente no mundo.

100
A Personalidade Adictiva
1. Mostrar um comportamento respeitoso em relação à outra pessoa.
2. Sentir-se apiado pela outra pessoa.
3. Ser-se aceite por aquilo que se é, e não por aqui que a outra pessoa gostaria
que fossemos.
4. Preocupar-se em cuidar da humanidade da outra pessoa.

Comportamento respeitoso em relação aos outros

Numa relação, tem de se tratar a outra pessoa como sendo importante porque essa
pessoa é um ser humano. É preciso esforçarmo-nos por criar um sentimento de
segurança, e o respeito ajuda a realizar isso. O respeito ajuda a criar confiança
numa relação com os outros e connosco. Se as pessoas se tratarem a si mesmas
e tratarem os outros respeitosamente começam a confiar e a acreditar em si
próprias.
Para que qualquer relação funcione, é necessário que haja respeito mútuo. Este
respeito tem de ser demonstrado tanto em palavras como em acções. Não é
suficiente dizer que se respeita uma pessoa. Tem de se agir de forma respeitosa.
Se se diz a uma pessoa que ela é respeitadora, isso é uma afirmação sobre a forma
como a pessoa actua. É uma afirmação a propósito da forma como a pessoa tenta
interagir com os outros. Significa honestidade. A honestidade baseada no respeito
é a forma como concedemos dignidade aos outros e mostra-lhes como estamos a
ser honestos em relação a nós. Mas o respeito não tem apenas que ver com o ser
honesta; diz também respeito à forma como somos honestos – ser honestos com
dignidade em relação aos outros.

Sentir-se apoiado

Dentro de uma relação saudável há apoio activo à outra pessoa. Cada uma das
pessoas esforçar-se-á por ajudar o outro a obter aquilo que necessita e que deseja
da vida. Desta forma, cada uma das pessoas se encontra envolvida na vida do
outro, fazendo perguntas para saber o que é importante na vida desse outro.
Em muitas relações fala-se muito de apoio, mas não se dá por ele. Numa relação
saudável, a fala é sempre seguida pela acção. As pessoas não se sentem usadas;
sentem-se valorizadas e importantes aos olhos dos outros. Por consequência, há
pouca desconfiança.
Uma forma muito importante de apoiar uma pessoa numa relação é de a manter
afastada da nossa maldade. Todos nós temos uma certa mesquinhez dentro de nós.
Nas relações que dão apoio as pessoas não se agridem física ou verbalmente.

101
A Personalidade Adictiva
Podemos sentir que nos estamos a tornar mesquinhos, mas, numa relação
saudável, pomos a relação à frente de qualquer sentimento passageiro do poder
que possamos imaginar obter sendo mesquinhos em relação ao outro. Esforçamo-
nos por ter uma relação forte em vez de procurarmos ter poder sobre a outra pessoa.
Isto não significa que nas relações saudáveis as pessoas não se zanguem, mas
discutem segundo as regras do respeito mútuo. As discussões acabam resolvendo
problemas e não os criando. Na adicção, os desacordos são uma forma de tentar
conseguir o que queremos ou de tentar que o nosso ponto de vista prevaleça, e não
uma forma de resolver problemas.

Ser aceite por aquilo que se é

Numa relação saudável está implícito que é insensato tentar controlar a outra
pessoa porque isso leva a distanciamentos e ressentimentos. Tentar controlar outra
pessoa cria um género de interacção do tipo «Eu sou melhor que tu» «Como sou
melhor do que tu, tenho de ter controlo sobre ti». É este o tipo de lógica que se
encontra na adicção. Este género de relações acabam em lutas de poder, em que
a pessoa que fala mais alto e que é mais mesquinha com frequência conseguirá ter
mais poder.
Nas relações saudáveis, as diferenças individuais são respeitadas e aplaudidas. As
diferenças e as diferentes visões do mundo são consideradas como vantagens e
não como desvantagens. Desta forma, as capacidades de cada pessoa são
respeitadas e recorre-se a elas quando se torna necessário. As funções de
comando dentro da relação alternam consoante são precisas diferentes
capacidades e competências para resolver as situações com que a relação se
confronta.
Numa relação saudável, não se fazem tentativas de moldar a outra pessoa segundo
uma certa imagem que formámos do que é «melhor» para ela. Presume-se que
cada pessoa é especialista no que a si mesmo diz respeito e que é impossível haver
alguém que a conheça melhor do que ela própria se conhece.

Definir a abstinência em recuperação

Acredito firmemente na abstinência total. Definir a abstinência total é mais fácil em


certas adicções do que noutras. É mais fácil, por exemplo, definir o que é
abstinência total em adicções tais como as que dizem respeito ao álcool e outras
drogas, ou a um acontecimento como o jogo. É mais difícil definir o que é a
abstinência nalgumas outras adicções, tais como a adicção à comida, ao sexo, ao

102
A Personalidade Adictiva
dinheiro, às compras, ao dinheiro ou ao trabalho. Não se pode esperar que as
pessoas se tornem assexuadas ou deixem de comer.
Assim, definir a abstinência consistirá em definir os comportamentos e rituais
usados no processo de actuar nos sentimentos. A pessoa precisa de se
comprometer e manter a abstinência em relação a esses comportamentos e rituais.
Os adictos em recuperação têm de ser muito claros e específicos, e completamente
honestos consigo mesmos e com os outros, quando decidem o que representa para
si o comportamento adictivo. Algumas pessoas recaem porque definem a
abstinência de forma demasiado vaga.

 Os adictos ao sexo podem dizer para com eles que não está certo
frequentarem prostitutas, mas continuam a permitir-se ver filmes com
conteúdo sexual muito forte mesmo sabendo que isso pode provocar a sua
adicção.

Algumas pessoas elaboram as suas definições de abstinência de forma


demasiadamente rígida, como se quisessem castigar-se – o que pode ter origem na
vergonha. Isto também não resulta. Na realidade, a pessoa acabará com muita
frequência por se irritar com essas restrições excessivamente apertadas e revoltar-
se contra elas. E por isso que é muito importante estabelecer um contrato de
abstinência realista.
Planear um contrato de abstinência é uma coisa que não se deve fazer sozinho.
Faz-se melhor com um conselheiro, um padrinho ou outra pessoa com uma
recuperação sólida. Muitas que estão envolvidas em programas de Doze Passos
dão uma grande importância aos padrinhos. A ideia é ter alguém que, num ambiente
são, o ajude a descobrir quais são os objectos ou acontecimentos que usou e o
conduziram à adicção e quais os comportamentos que que criavam uma alteração
de humor.

 Para o alcoólico, a abstinência pode não significar apenas não beber, pode
significar também não ir a bares, não viajar sozinho durante um certo período
e não ir a cocktails.

A abstinência significa não apenas evitar o objecto da adicção da pessoa, mas


também definir todos os acontecimentos que aumentaram o processo de adicção e
desenvolver estratégias para que ela se possa proteger desses acontecimentos e
comportamentos.

103
A Personalidade Adictiva
Definir a abstinência é um processo que representa examinar os rituais adictivos
que causam ou aumentam a alteração do humor. Definir estes rituais pode tornar-
se um passo perigoso dentro da recuperação por causa do perigo que representa a
preocupação. Ao debruçar-se muito sobre aquilo que que causa excitação no
Adicto, a pessoa pode reentrar no processo adictivo. É por isso que é importante
para a pessoa estabelecer uma definição com alguém que saiba de adicção e tenha
tempo para a acompanhar e ajudar em quaisquer dificuldades que possam surgir.
Uma vez que os adictos tenham definido o que a abstinência significa para eles,
precisam de partilhar publicamente essa informação com todos aqueles que
escolheu para os ajudar a manter a sua abstinência. Ao falarem sobre este assunto
com o seu sistema de apoio, o contrato de abstinência das pessoas tornar-se-á mais
claro e mais real para elas. Este contrato de abstinência deveria ser periodicamente
reavaliado, especialmente no primeiro ano de recuperação, adicionando-lhes
quaisquer comportamentos que possam pôr a recuperação em perigo.

A Culpa contra a vergonha na recuperação

Porque a adicção cria e instila vergonha, muitas pessoas entram em recuperação


com um profundo sentimento de vergonha em relação a algumas coisas que fizeram
durante a sua adicção. Outras das pessoas que entram em recuperação podem não
sentir qualquer vergonha, achando que não há nada de mal naquilo que fizeram. No
entanto, num determinado momento do seu processo de recuperação, estas
pessoas com frequência passam por um período em que se irão sentir muito
envergonhadas ao olharem com mais honestidade para as suas acções no
passado.
A adicção diz respeito à vergonha. Quanto mais vergonha, melhor para o processo
adictivo.
A vergonha pode ser uma ratoeira para as pessoas de duas maneiras:
1. As pessoas podem acabar por se sentir tão deprimidas que começam a
acreditar que não há nada que possam fazer a respeito dos seus problemas;
2. As pessoas podem pôr-se numa atitude defensiva ao tentarem escapar ao
seu sentimento interior de vergonha. Ficam consumidas pelas defesas que
criam. Não são capazes de ouvir nem de deixar que ninguém ultrapasse
essas defesas. Frequentemente, são estas pessoas que se deixaram levar
pelo mito de ser perfeitas.

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A Personalidade Adictiva
A recuperação não tem a ver com a vergonha. A vergonha julga as acções e as
aparências da pessoa par a condenar como indigna. A vergonha torna-se mais num
julgamento contra a pessoa do que contra as suas acções. A vergonha é corrosiva.
A recuperação deixa, contudo, um espaço para a culpa. As pessoas em
recuperação precisam de aprender a diferença entre a culpa e a vergonha. A culpa
permite que se corrija (ou pelo menos que se pense sobre) a acção mal feita.
Permite às pessoas readquirirem a sua dignidade e o seu sentido de respeito por si
mesmas. Pelo contrário, a vergonha não permite que nada disto aconteça.
A culpa significa que você cometeu uma acção errada ou que não foi boa nem para
si nem para os outros. A vergonha significa que você está errado. Com a culpa, se
tiver procedido de uma forma que não foi boa, ser-lhe-á permitido corrigir a acção e
tudo será perdoado e esquecido. Na vergonha não existe perdão e nada é
esquecido. As famílias desaprovadoras podem manter esta luta anos a fio.
A recuperação consiste no processo de admitir-se a nossa adicção e a nossa
impotência perante ela. A recuperação é um processo de rendição às realidades do
passado e do presente. A recuperação é um processo de reclamar a
responsabilidade pelas nossas acções. A responsabilidade é uma pedra angular da
recuperação. Os adictos em recuperação sentem culpa por terem uma doença;
sentem-se culpados por serem adictos e agirem como tal. Tudo isto tem de ser
admitido. Pode ser difícil aceitar estas questões sem se cair na vergonha.
Os adictos em recuperação têm de reclamar a sua responsabilidade pelas acções
passadas, mas têm ao mesmo tempo de evitar ficar com vergonha por causa delas.
Podem sentir-se mal consigo mesmas por causa da forma como agiram e por causa
das pessoas a quem fizeram mal. Isto faz parte da recuperação; faz parte de se ter
uma consciência. Mas têm de se manter afastados da convicção de que são
pessoas más.
Durante a sua adicção, a maior parte dos adictos sente tanta vergonha que ela se
torna familiar. Não gostam da vergonha, mas é útil ao processo adictivo: se
pensarem que são pessoas más, podem tirar a conclusão de que não são
responsáveis pelas suas acções porque as pessoas más praticam más acções. Isto
é a lógica adictiva.
Por causa disso, os adictos em recuperação precisam de mudar a perspectiva que
têm de si próprios. Em vez de se verem como pessoas más, têm de se ver como
pessoas que faz com que actuem de forma adictiva. A doença não se pode curar,
mas pode ser tratada se as pessoas que a têm estiverem dispostas a trabalhar pela
recuperação. Continuam a ser responsáveis pelo sofrimento e pela raiva que
tiverem causado, mas têm agra um ponto a partir do qual podem começar a sua
recuperação: tomam consciência de que não são pessoas más; em vez disso,
compreendem que cometeram más acções em relação aos outros e isso afecta a
sua consciência. A vergonha não permite que a pessoa recupere.

105
A Personalidade Adictiva
As pessoas que sentem vergonha continuam a agir mal, pelo menos
ocasionalmente, a fim de se convencerem de que são más pessoas. São estas
pessoas que, nos programas de recuperação, ocasionalmente estragam tudo e se
comportam como mártires. No seu íntimo, continuam a considerar-se más pessoas.
O sentimento de culpa ensina as pessoas a tomar responsabilidade pelas suas
acções. Uma grande parte do processo de recuperação baseia-se nisso. Os adictos
em recuperação aprendem a fiscalizar as suas acções, e quando actuam de forma
prejudicial não ficam com vergonha, não se escodem nem se põem na defensiva;
reconhecem o seu comportamento e procuram remediá-lo.
Remediar não significa dizer, «Desculpe». Significa reconhecer e pensar, por causa
da maneira como agi, há uma injustiça na nossa relação. Agora preciso de descobrir
junto da pessoa que ofendi o que é necessário fazer para que a relação se torne
outra vez equilibrada.

 Se uma pessoa durante o período da sua adicção tivesse passado o tempo


a gritar e a enfurecer-se com o seu cônjuge, remediar o seu comportamento
não significaria apenas dizer «Desculpa!». Significava admitir junto do
cônjuge, «Fiz isto e fiz aquilo que sei que te causou grande pena e
frustração». E depois, perguntar, «O que é que precisas que eu faça para
remediar isso?». A seguir faria com que o seu cônjuge tivesse dito (dentro de
limites realistas porque os adictos fizeram com que algumas pessoas
ficassem com muita raiva) como um acto de reparação.

Assim, responsabilizando-se pelos seus actos, os adictos em recuperação podem


readquirir algumas das relações que perderam por causa da sua adicção. Somos
todos humanos e todos nos comportamos mal de tempos a tempos. A culpa ensina
as pessoas a verem-se com olhos realistas, mas a vergonha é uma distorção da
realidade.

Rituais e Recuperação

Os rituais são tão importantes para o processo de recuperação como para o


processo adictivo. As pessoas em recuperação precisam de desenvolver rituais
positivos e que os enriqueçam. Estes rituais devem ser do tipo que os ajude a
ligarem-se com outras pessoas em recuperação, com os princípios da recuperação,
com o seu centro espiritual pessoal e com o espírito das pessoas que as rodeiam.
Os rituais positivos dizem respeito à ligação, identificação, empenhamento, e ao
facto de todos nós precisarmos de nos sentirmos unidos a qualquer coisa. Os rituais

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A Personalidade Adictiva
da adicção têm sobretudo a ver com a separação; os rituais da recuperação dizem
respeito ao relacionamento.
Muitas das pessoas com que tenho trabalhado praticam um ritual simples que
consiste em lerem um pouco todas as manhãs ou todas as noites sobre recuperação
e meditarem depois sobre o que acabaram de ler. Este rito pessoal liga-os ao
processo de recuperação. Permite-lhes comprometerem-se quotidianamente com a
recuperação.
A recuperação envolve escolhas; a adicção tem a ver com não se ter escolha. As
pessoas em recuperação precisam e continuamente escolhem a recuperação. Os
rituais da recuperação são comportamentos que ajudam as pessoas a exercitar as
suas escolhas. Os rituais devem se tanto públicos como privados, tal como a
adicção tanto é pública como privada. Nos rituais, as pessoas dedicam-se a
comportamentos consistentes e habituais. Ao desenvolverem rituais de
recuperação, os adictos ligam-se pelo hábito a novas crenças e valores que são o
oposto daqueles que se encontram na adicção. Prendem-se, assim, a um processo
de crescimento; comprometem-se a cuidar e a alimentar espiritualmente a si e aos
outros. Os rituais são afirmações um forma de linguagem, um compromisso. Através
dos rituais, os adictos em recuperação aprendem a desenvolver e a dedicar-se a
um estilo de vida de atenção a si próprios.
À medida que as pessoas em recuperação desenvolvem os seus próprios rituais de
recuperação, estão a aprender a actuar de certas formas. A recuperação tem na
verdade um código de conduta: deve tratar de si e dos outros de maneira
respeitadora e que ofereça alimento espiritual. Tem de se ajudar a si mesmo e aos
outros sempre que a ajuda for necessária, se puder ser feita de forma positiva. Este
código de conduta encontra-se nos rituais de recuperação. Guardar tempo para
reflectir, arranjar tempo para visitar e ouvir os outros, rezar regularmente dentro de
qualquer sítio que se tenha escolhido, tudo isto são comportamentos que se
ritualizam na recuperação. Todos os rituais de recuperação se baseiam em ligar a
pessoa aos aspectos do nosso mundo dos quais podemos obter melhoria, alimento
espiritual e amor.
À medida que o tempo passa, a pessoa em recuperação encontrará muito conforto
nos rituais de recuperação. Eu estava a trabalhar com uma paciente que se
encontrava inserida num programa de Doze Passos. Ela tinha de fazer algumas
viagens de negócios que incluíam ir a diferentes países estrangeiros. Foi às
reuniões do programa de Doze Passos nesses países e encontrou muito bem-estar
e serenidade o ver-se envolvida nos mesmos rituais do que no seu grupo habitual
a milhares de quilómetros de distância. Ela não compreendia as línguas que falavam
os membros estrangeiros desses grupos de Doze Passos, mas compreendia
totalmente os seus rituais de recuperação. Foi capaz de encontrar consolação e
alimento espiritual na previsível regularidade desses rituais, enquanto renovava o
seu compromisso para com a recuperação.

107
A Personalidade Adictiva
Os rituais dizem respeito à fé e à vida. Dedicando-se aos rituais, os adictos em
recuperação ligam-se aos outros e começam novamente a ter fé nos outros e em si
mesmos. Voltando-se para os seus rituais em ocasiões de stress, os adictos em
recuperação são capazes de reduzir a tensão espiritual que sentem interiormente.

A Recuperação como Comunidade

Muitas pessoas vêm a depender de forma saudável do «nós» de um programa de


recuperação. É através do nós do processo de grupo que as pessoas sentem
confiança em que podem recuperar da sua doença, não sozinhas, mas dentro de
uma comunidade de recuperação.
Faz muito sentido que o «nós» seja a primeira palavra do Primeiro Passo de
qualquer programa de Doze Passos. Os adictos em recuperação encontram
conforto na presença de outras pessoas, em vez de sentirem receio delas.
Começam a ficar centrados no «nós» em vez de se centrarem na adicção.
Consideram se os amigos apoiariam determinado comportamento ou acção.
Tomam decisões sobre como actuar perguntando a si mesmos se se sentiriam bem
ou não falando sobre isso com os amigos. Pedem de empréstimo uma consciência
colectiva até desenvolverem uma consciência pessoal que trabalhe para eles. Por
outras palavras, aprendem a ter uma relação interdependente com a sua
comunidade.
Em vez de se sentirem totalmente sozinhos no mundo, os adictos em recuperação
começam a considerar-se como parte de uma comunidade mundial. Tornam.se não
só parte da comunidade de Doze Passos, mas também parte da comunidade em
que vivem. Aprendem a ser cidadãos – primeiro cidadãos da comunidade de Doze
Passos, depois cidadãos de uma comunidade mais alargada. Poderão fazer
trabalho voluntário, fazer donativos a projectos que o mereçam, conversar com os
vizinhos e votar. Sentem o «nós» dentro de si e ficam felizes por fazerem de novo
parte do mundo.

 Um adicto em recuperação oferece-se como voluntário para fazer coisas pela


sua comunidade. Onde terá aprendido isso? Talvez tenha começado na
ocasião em que se ofereceu para chegar mais cedo a uma reunião e fazer
café para o grupo. Lembra-se de coo isso lhe soube bem. Recorda as
palavras do programa de Doze Passos que dizem que não se pode ficar com
nada sem dar qualquer coisa em troca. Recorda as histórias dos membros
fundadores dos Alcoólicos Anónimos que, quando o impulso para beber se
manifestava, tentavam ajudar outros alcoólicos em dificuldades. Aprendeu
que ao ajudar os outros a pessoa se ajuda a ser mais humano.

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A Personalidade Adictiva
Assim, com o tempo, o «nós» do programa expande-se à comunidade envolvente
e ao mundo.
Em determinada altura, durante o processo e recuperação, é de esperar que a
família e os amigos comecem a ter confiança no adicto em recuperação. Voltar a
depositar confiança no adicto em recuperação acontecerá mais cedo se a família e
os amigos se dedicarem a examinar a forma como a adicção os afectou. É
igualmente importante que os adictos em recuperação comecem a tratar a família e
os amigos com dignidade. Se não a família e os amigos com dignidade e respeito
não estão a praticar a recuperação.
É através das relações pessoais que os adictos adquirem a prática quotidiana de
como serem pessoas respeitadoras e que estão a recuperar. É fácil fazer isto uma
ou duas vezes nas reuniões, mas a cura permanente dá-se quando os adictos em
recuperação aprendem, praticam e adoptam atitudes respeitadoras na sua própria
casa, no seu trabalho e quando estão consigo mesmos. Um adicto em recuperação
pode desejar perguntar-se, «Estarei a agir de uma forma a respeito da qual me
sentisse bem falando sobre isso com os meus amigos?». «Estarei a ouvir pessoas
de minha família com tanta compreensão como ouço os do meu grupo?».
A adicção ataca as relações no inteiro da família com grande intensidade porque é
aí que uma intensidade profunda e duradoura pode ser cultivada. É aí que o amor
e o respeito se tornam mais do que simples palavras. É no interior de uma família
que a pessoa encontra o seu verdadeiro Eu. É dentro da família que o Eu se
desenvolve ou não cresce. É aí que a recuperação se transforma num estilo de vida.
É tornando-se membros respeitáveis de uma família que se completa o percurso da
adicção em direcção à recuperação. Isto pode ser uma tarefa muito difícil. Dentro
da família existe, com frequência, muita raiva, medo e desconfiança devido à
adicção da pessoa. O padrão de antigos comportamento serão uma tentação para
o adicto em recuperação. Podem existir outras pessoas na família que sejam adictos
praticantes e que recusem tratar o membro que está em recuperação com respeito.
Não importa como são tratados ou considerados pelos outros, os adictos em
recuperação aprendem a tomar a responsabilidade por si mesmos e a recuperação
torna-se o programa do dia-a-dia. Quando a recuperação se processa deste modo,
muitas pessoas sentem o seu espírito despertar. Quando os adictos em
recuperação tomam consciência de que são capazes de ter relações com o Eu, com
u Poder Superior espiritual, com os amigos, a família e a comunidade, sentem-se
realizados. Sentem o pleno poder de cura das relações. Adquiriram tudo o que um
programa de recuperação e o relacionamento têm para lhes oferecer.
O objectivo de uma pessoa em recuperação é o de se tornar especialista em formar
relações que façam sentido. Um programa de recuperação, e os princípios e a
solidariedade que encontram nesse programa, oferecem aos adictos em

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A Personalidade Adictiva
recuperação as bases para terem relações com sentido. Através da prática diária
destes princípios, adquirem a disciplina interior que lhes permite terem relações
respeitosas.
Os adictos em recuperação podem escolher o trabalho de recuperação através do
qual irão aprender a disciplinar-se ou podem escolher não se tornarem
disciplinados. Para terem relações com o Eu, com um Poder Superior espiritual,
com a família, os amigos e a comunidade, os adictos em recuperação precisam
escolher tornar-se disciplinados. Quando digo «disciplinados» isso não significa que
seja de forma dura e difícil (a forma adictiva), mas sim de forma aplicada e
compassiva. A recuperação é uma escolha e um privilégio. É um bonito aspecto da
recuperação ser-nos concedido o poder de escolha. Quando os adictos escolhem
tornar-se pessoas em recuperação e se comportam como pessoas em recuperação,
estão a ensinar-se a si mesmos o que é a responsabilidade, o cuidado e o alimento
espiritual que devem ter com a sua própria pessoa.
Está escrito numa das Escrituras: ««Dou-lhes a vida. Dou-lhes a morte. Escolho a
vida.». É este o significado de recuperar da adicção.

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A Personalidade Adictiva
Alcoolismo e adictos não são as únicas vítimas da adicção. Há dezenas de milhares
de pessoas que são adictas ao jogo ou ao sexo, trabalham, comem ou gastam
compulsivamente e as quais podem nunca ter usado substâncias químicas
alteradoras de humor como parte dos rituais para apanhar uma pedra. O isolamento
emocional, a vergonha e o desespero das suas vidas, no entanto, são testemunhos
do poder d adicção.
A Personalidade Adictiva: Raízes, Rituais e Recuperação aborda a profundidade
e a dimensão da adicção ao longo da sua relação com o indivíduo. Indo para além
da definição que limita a adicção ao âmbito do álcool e outras drogas, Craig Nakken,
um especialista em dependência química, descreve os denominadores comuns a
todas as adicções, e como, ao longo do tempo, se desenvolve a personalidade
adictiva.
A Personalidade Adictiva examina como começam as adicções, como a nossa
sociedade empurra as pessoas para a adicção, e o que acontece dentro da pessoa
que se tornou adictas e você uma das milhares de pessoas adictas a qualquer coisa,
este novo grande livro vai substanciar a sua luta e dar legitimidade ao seu
sofrimento. Mais importante ainda: mostra qual pode ser o caminho para a
recuperação.

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A Personalidade Adictiva
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