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O abutre e a menina: a história de uma foto histórica

Como a foto de uma menina sudanesa observada por um abutre, em 1993, impactou o
mundo do fotojornalismo e a vida do fotógrafo que a registrou.

O avião da Organização das Nações Unidas (ONU) pousara há poucos minutos no chão
seco e arenoso do povoado de Ayod, no Sul do Sudão. Rapidamente, centenas de
pessoas, envoltas em farrapos ou mesmo nuas, debilitadas pela fome e pelo calor,
correram desordenadamente para tentar garantir o seu quinhão de comida. Em meses,
aquela era a primeira ajuda humanitária que chegava ao país. No meio da confusão, dois
fotojornalistas sul-africanos, Kevin Carter e João Silva, que também tinham chegado à
bordo da aeronave, testemunharam a desolação daquela gente. Em pouco tempo, Carter
se deparou com uma cena impressionante: uma criança esquelética, de mais ou menos
cinco anos, estava agachada, olhando para o chão. Atrás dela, a poucos metros de
distância, um abutre a observava. Ele apontou a câmera e registrou a cena. Era 11 março
de 1993 e aquela foto se tornaria uma das mais importantes da história do fotojornalismo.

A história de uma foto


O Sudão vivia uma guerra civil há décadas. O país estava dividido. De um lado, tribos
cristãs do sul viviam reunidas sob a bandeira do grupo rebelde Sudanese People’s
Liberation Army (SPLA). Do outro lado, estava o governo Cartum, dominado por nortistas
islâmicos desde a independência do país, em 1956. Nos anos 1980, o conflito entre os
dois grupos tinha se intensificado, especialmente depois que o governo adotou a lei
islâmica, a Sharia, que determinava a proibição de bebidas alcoólicas e punições por
enforcamento ou mutilação, entre outras medidas igualmente violentas. Estima-se que o
conflito tenha tirado a vida de milhões de pessoas, além de provocar uma fome
alarmante, responsável pela maior crise humanitária do século XX.

No início dos anos 1990, a ONU começou a realizar diversas campanhas para sensibilizar
a opinião pública internacional e as autoridades ocidentais para o drama da população
sudanesa. Uma dessas campanhas visou arrecadar 190 milhões de dólares. Não se
alcançou, no entanto, nem um quarto do valor. Foi nesse momento que a organização
decidiu ser mais agressiva em sua estratégia: expor ao mundo, através da fotografia, a
fome no Sudão. Para a tarefa, a ONU convidou dois fotojornalistas para estar no avião
que aterrissaria no sul do Sudão naquele 11 de março de 1993: Kevin Carter e João Silva.

Carter e Silva já eram, na época, internacionalmente famosos. Ambos faziam parte do


chamado “Clube do Bangue-Bangue”,¹ apelido que a imprensa usava para se referir a um
grupo de quatro fotojornalistas sul-africanos que vinham alcançando enorme notoriedade
mundial ao cobrir lutas e tensões raciais na África, especialmente na África do Sul. As
fotos do grupo eram compradas por diversas agências de notícias e tinham dado aos
seus autores diversos prêmios ao redor do mundo. Carter e Silva esperavam já há algum
tempo uma chance para entrar no Sudão, pois tinham interesse em fazer uma reportagem
sobre a mais recente divisão no interior da SPLA. Assim que o convite da ONU surgiu, o
aceite dos dois profissionais foi prontamente aceito.

Momento Decisivo
Quando os sudaneses em inanição começaram a se atropelar em busca dos alimentos
distribuídos pelos funcionários da ONU, Carter e Silva viram possibilidades de boas fotos
em quase todas as direções. Enquanto Silva se deteve em uma clínica médica local
utilizada para atendimento dos casos de saúde mais grave, Carter ficou à céu aberto. Foi
quando ele viu a cena da criança e fez vários cliques. Momentos depois, ainda nervoso,
colocou a mão nos ombros de Silva e disse ao colega: “Cara, você não vai acreditar no
que acabei de fotografar!”. Silva escutou a história e, segundo ele mesmo diz, teve
certeza de que seu colega tinha feito um registro poderoso, aquilo que o famoso fotógrafo
francês Henri Cartier-Bresson chamava de “momento decisivo”.²

A publicação da foto incendiou o noticiário internacional nas semanas seguintes. Na


época, a editoria internacional do The New York Times (NYT) tinha uma matéria sobre
região, mas estava encontrando enorme dificuldade em conseguir fotos para ilustrar o
texto. Os grupos em guerra no Sudão raramente permitiam a entrada de estrangeiros no
país. Inclusive a ONU encontrava sérias restrições para distribuir os alimentos da ajuda
humanitária. Foi quando surgiu a informação de que Kevin Carter tinha estado lá e feito
uma foto brilhante. Nancy Buirski, do NYT, entrou em contato com Carter e conseguiu que
a foto fosse publicada pelo jornal.

O sucesso foi imediato. Em pouco tempo, a imagem estava correndo o mundo, replicada
em todos os grandes jornais e até mesmo nas redes de televisão. Carter ganhou
visibilidade, a fome no Sudão se tornou conhecida e a ONU conseguiu, finalmente,
catapultar as doações para o país. No ano seguinte, em 1994, Kevin Carter, levou para
casa o prêmio Pulitzer de fotografia.

A foto, porém, também trouxe revezes para o fotógrafo. Buirski lembrou, anos mais tarde,
que logo que a foto foi publicada, as pessoas começaram a ligar para a redação do jornal.
Queriam saber o que havia acontecido com a menina da foto, se ela havia sobrevivido e,
principalmente se o fotógrafo havia lhe ajudado. Uma chuva de perguntas que começava
a afetar Carter. Primeiro, ele contou que havia espantado o animal e que se sentou
debaixo de uma árvore para chorar. Mas as perguntas continuavam chegando. Ele então
completou a história dizendo que a menina tinha se levantado e caminhado até a clínica
médica. A opinião pública não ficou satisfeita com a explicação. Queria saber porque
Carter não tinha levado a menina para um lugar seguro.

Debate ético e depressão


A repercussão foi forte o suficiente para iniciar um debate público sobre a atuação de
jornalistas e fotojornalistas em cenários de guerra: deveriam estes prestar assistência ou
apenas serem meros observadores, relatando ao mundo o que a guerra provocava? Os
fotógrafos do “Clube do Bangue Bangue” já tinham socorrido várias pessoas. No entanto,
não havia nenhum parâmetro, nenhuma regra, nenhum acordo tácito para aquele tipo de
situação limite. A interferência de jornalistas em zonas de guerra, na verdade, era até
mesmo extremamente perigosa: poderia transformar os próprios jornalistas em alvo. Até
hoje o tema ainda é bastante nebuloso no campo.

O questionamento em torno da foto perturbou muito Carter. Talvez outro fotografo tivesse
lidado melhor com a situação. Mas com Carter foi diferente. Antes mesmo da viagem ao
Sudão, o fotojornalista enfrentava uma série de problemas pessoais. Relacionamentos
amorosos malsucedidos, problemas com consumo excessivo de álcool e vício em mais de
um tipo de droga. Para piorar, Carter não tinha uma base familiar sólida e lhe faltava
estabilidade no emprego. Trabalhava apenas para jornais sem expressão ou como
freelancer. Mesmo quando ganhava dinheiro, como no caso de sua foto no NYT, o valor
acabava sendo gasto para pagar mais drogas ou para quitar dívidas antigas.

Boa parte de seu drama pessoal tinha advindo da pressão de trabalhar em zonas de
conflito. E além das cenas chocantes, que se tornaram parte de seu cotidiano, seu
trabalho ainda acabou lhe gerando diversos inimigos. De um lado, grandes jornalistas
invejosos do sucesso do “Clube do Bangue Bangue”; de outro, pessoas que não
entendiam como alguém podia fotografar tantas desgraças como se fosse invisível.

Após a foto do abutre, Carter continuou trabalhando em zonas guerra. Mas não por muito
tempo. No dia 27 de julho de 1994, aos 33 anos, pouco tempo depois de Nélson Mandela
se sair vitorioso na África do Sul, Carter, aos 33 anos, levou seu carro até um local de sua
infância e, utilizando uma mangueira para levar o monóxido de carbono do escapamento
para dentro do veículo, cometeu suicídio. Deixou uma triste nota que dizia estar
deprimido, sem dinheiro para pagar as contas, sem dinheiro para ajudar as crianças. Se
disse perseguido pelas lembranças de assassinatos, cadáveres, raiva e dor. Pela
lembrança de crianças feridas ou famintas. Lembranças, mas suas palavras, de “homens
malucos com o dedo no gatilho”.

O suicídio de Kevin Carter chocou seus companheiros de “Clube do Bangue-Bangue”,


que já haviam perdido, em zona de tiro, outro amigo, Ken Oosterbroek. Do grupo, restou
apenas João Silva e Greg Marinovich. O trabalho de Carter sobreviveu ao tempo. Sua foto
continua até hoje sendo um libelo contra a guerra e contra a fome no continente africano.
A prova concreta de como uma fotografia pode provocar as pessoas e entrar,
definitivamente, para a história.

Notas
(1) As histórias do “Clube do Bangue-Bangue” estão registradas no excelente livro “O
Clube do Bangue-Bangue: instantâneos de uma guerra oculta”, escrito por João Silva e
Greg Marinovich, publicado no Brasil pela Cia das Letras. A foto feita no Sudão é uma
dessas histórias.

(2) São eles: João Silva, Kevin Carter, Greg Marinovich e Ken Oosterbroek.

Referência
MARINOVICH, Greg; SILVA, João. O Clube do Bangue-Bangue: instantâneos de uma
guerra oculta. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003.

Fonte do texto:
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de Carvalho. O abutre e a menina: a história de uma foto
histórica (Artigo). In: Café História. Publicado em 27 fev de 2012. Disponível em:
https://www.cafehistoria.com.br/o-abutre-e-a-menina-a-historia-de-uma-foto-historica/.
ISSN: 2674-5917.

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