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Fotojornalismo de guerra: manipulação ou conscientização?

Figura 1: Phan Thi Kim Phúc.

Foto: NICK UT/ASSOCIATED PRESS, 1972.

O momento acima foi fotografado em 8 de junho de 1972 pelo fotógrafo Huynh Cong "Nick"
Ut, da Associated Press (agência de notícias estadunidense). A fotografia expõe uma cena de
horror durante a Guerra do Vietnã. Nela, é possível observar uma vila (ou o que sobrou dela)
rodeada de soldados armados que andam em direção à saída dela. Ao mesmo tempo, a câmera
captura crianças aterrorizadas que correm desesperadamente em direção à câmera e contra os
soldados. Uma criança em especial é a que chama mais atenção: além de estar descalça como
as outras crianças, ela também se encontra nua, correndo com os braços abertos, e com o
corpo aparentemente ferido por um motivo que a foto em si não consegue revelar.

A foto retrata um incidente que ocorreu no Vietnã, durante o período da guerra fria, onde
um avião das forças sul-vietnamitas (apoiados pelos Estados Unidos), durante um confronto
com as forças do Vietnã do norte (apoiados pela União Soviética), lançaram uma bomba de
napalm (mistura química conhecida como fogo líquido) sobre o vilarejo da menina de apenas
9 anos, Kim Phuc. Segundo o fotógrafo, a menina saiu desesperada, correndo pelas ruas,
enquanto gritava “isso queima muito!”. Em busca de um alívio, Kim se despiu
completamente para se livrar do fogo. Kim sofreu queimaduras graves, e as lembranças do
horror do ataque a marcaram pelo resto da vida, assim como essa foto me marcou.

Segundo Susan Sontag em seu texto “Na Caverna de Platão”, esse teria sido meu primeiro
contato com a “epifania negativa”, uma revelação do horror. Me lembro de quando era
pequena e, enquanto estudava a fatídica Guerra Fria e a Guerra do Vietnã, me deparei com
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essa foto em um dos livros de história escolar. A foto quase que possuía vida própria. Quanto
mais a observava, mais tinha a sensação de que conseguia escutar os gritos das crianças, e
sentir a dor das queimaduras da menina. Eu nunca passei por um momento tenebroso como
esse, como também nunca vivi os pesadelos de uma guerra, mas, assim como Sontag descreve
seu primeiro contato com as fotografias de Bergen-Belsen e Dachau (retratos de um campo de
concentração), minha vida parecia ter sido dividida em dois momentos: um anterior a foto, e
outro com o conhecimento da dor. Quanto mais observava a foto, mais tinha a estranha
sensação de que aquele momento teria acontecido comigo também. De alguma forma, eu
também estava lá, e estava chorando desesperadamente.

Porém, ao passar dos anos, toda vez que acabava sendo exposta àquela fotografia, assim
como Susan Sontag descreve, o meu sentimento sobre ela se alterava. “Algum limite foi
atingido, e não só o do horror; senti-me irremediavelmente aflita, ferida, mas uma parte de
meus sentimentos começou a se retesar; algo morreu; algo ainda está chorando. Sofrer é
uma coisa; outra coisa é viver com imagens fotográficas do sofrimento, o que não reforça
necessariamente a consciência e a capacidade de ser compassivo.” descreve Sontag (NA
CAVERNA DE PLATÃO, 1977, p. 16). Meu olhar se transformou em dor, logo em
compaixão e, finalmente, em uma sensação de anestesia, como se meu corpo buscasse me
proteger daquele sentimento tão novo e ameaçante. Assim, a fotografia passou de uma
experiência adquirida (com a qual eu sentia compaixão) para um evento irreal que mais se
assimilava à um terrível pesadelo do que um acontecimento vivenciado por alguém.

Tal epifania negativa, com o uso da tecnologia e das redes sociais que conectam o mundo
todo, acaba se tornando comum, conforme as imagens de atrocidades e de dor se espalham
facilmente. Dessa forma, nos tornamos imunes à compaixão e às imagens de violência que
permeiam nossas vidas tão frequentemente. A exposição constante à violência, seja nos
jornais, nas redes sociais ou no mundo físico, tornam essa epifania negativa menos chocante e
trágica, possibilitando que as fotografias de guerra, hoje em dia, não causem tanta comoção e
revolta como causavam em 1973. Veja, por exemplo, as fotografias da Guerra da Ucrânia, em
2022 e 2023. Muito se falou sobre a guerra nos últimos meses de 2022: vídeos e imagens do
sofrimento dos moradores ucranianos circulavam pelo mundo inteiro. Porém, conforme a
replicação das imagens aumentou, as cenas tornaram-se irrelevantes e descartáveis. Os jornais
cessaram sua exposição, e a comunidade perdeu o interesse e a compaixão. Anestesiados. A
guerra continua (completará 16 meses em 24 de junho), e a cada dia são necessários mais
homens para “lutarem pela sua nação”, mas o horror, a epifania negativa tornou-se comum.

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Talvez, se a Guerra da Ucrânia tivesse acontecido em 1973, ou até antes, quando as imagens
não sofriam uma densa replicação e perda de sentido, a comoção seria grande o suficiente
para afetar a guerra, e até mesmo, cessá-la, como foi o caso da Guerra do Vietnã.

Figura 2:Corpos são colocados em uma vala comum nos arredores de Mariupol, Ucrânia

Foto:Evgeniy Maloletka/AP,2022.

A fotografia de Huynh Cong "Nick" Ut (assim como uma longa sequência de imagens que
pararam a guerra) e a divulgação da imprensa sobre os horrores no front de batalha, foram
essenciais para que milhares de protestantes se manifestassem na rua e alterassem o curso da
política na Casa Branca. A brutalidade era generalizada, e a foto de Nick Ut impactou com
mais força do que qualquer notícia. Aos poucos, a guerra que era para ser justa ia revelando a
impressão de ser não só uma guerra impossível de ser vencida, como de que talvez fosse uma
guerra sem senso de justiça, onde nenhum lado possuísse moralidade, e os perdedores seriam,
no final, a população.

Apenas um fato é claro e evidente em qualquer fotografia de guerra, e nessa em especial: o


sofrimento de pessoas que arcam com o conflito político do momento. Como eu havia
descrito a fotografia, nada se pode afirmar sobre quem jogou a bomba, sobre quem eram, de
fato, os soldados que aparecessem na foto, a única certeza é a mortalidade e o perigo que a
guerra em si causa independente do lado. As fotografias, em geral, não mentem, mas contam
meias-verdades. Tal fato acaba representando um perigo maior quando se trata de fotografias
de guerra. Alterando seu contexto, é possível que sejam utilizadas por qualquer lado da
história.

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Por exemplo, o fotógrafo, responsável pela fotografia da menina Kim, afirmou diversas
vezes que tanto as forças do Norte como as do Sul usaram sua fotografia como propaganda.
Os Norte-vietnamitas afirmavam que aquela foto era uma foto da América jogando uma
bomba para matar inocentes, enquanto os vietnamitas do sul afirmavam que aquela era uma
foto dos comunistas lançando mísseis. A verdade conseguia ser facilmente manipulada pelo
meio, pois “[..]mesmo quando os fotógrafos estão muito mais preocupados em espelhar a
realidade, ainda são assediados por imperativos de gosto e de consciência.” (NA CAVERNA
DE PLATÃO, 1977, p.9).

Como afirma John Berger, em seu texto “Usos da Fotografia, Para Susan Sontag"(2013), a
imagem em si não representa ameaça, a memória que obtemos com ela é vazia de contexto, o
que determina seu significado é o uso aplicado sobre ela, o contexto em que ela é aplicada.
Vejamos, por exemplo, a fotografia que antecedeu a fotografia de Nick Ut e que marcou uma
mudança de pensamento mundial sobre a Guerra do Vietnã: A imagem do exato instante da
execução sumária de Nguyen Van Lem, um jovem soldado vietcong, sem uniforme, com as
mãos algemadas às costas, pelo Brigadeiro General Nguyen Ngoc Loan, chefe de Polícia
Nacional do Vietnã do Sul.

Figura 3: Saigon execution.

Foto: Eddie Adams/AP, 1968.

Analisando a fotografia acima, é possível observar um soldado, apontando uma arma em


direção à cabeça de outro homem que se encolhe de medo. A sequência dessa imagem, releva,
também, a continuação de uma história que estaria sendo contada. Na sequência, é possível
observar o mesmo homem que estava sendo ameaçado, já caído no chão, e arma do soldado

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sendo guardada em seu corpo. A fotografia de Eddie tornou-se justamente um combustível
para que a opinião pública internacional, e principalmente a americana, chegasse à conclusão
de que nenhuma luta justificaria tal massacre. Tal descrição é a única coisa que se pode
afirmar dessas imagens. Quem era o homem que estava sendo ameaçado, se era um apoiador
do Norte ou do Sul, se era até mesmo um soldado, nada poderia se afirmar apenas com a
imagem, abrindo caminho para diversas intepretações, e para que diferentes esferas sociais a
inserissem no contexto mais benéfico.

Figura 4: Saigon execution.

Foto: Eddie Adams/AP,1968.

O fotógrafo Eddie Adams, porém, revela a história atrelada à imagem: o jovem executado
não era uma vítima somente, mas também um combatente e criminoso – ele havia sido detido
por ter matado toda a família de outro oficial sul-vietnamita. Além disso, ele também era um
soldado aliado do Sul. Não existia justiça, nem combate ao inimigo, apenas violência extrema,
e isso, era tudo que a câmera conseguia (e precisava) retratar. Como Sontag disserta “Uma
foto equivale a uma prova incontestável de que determinada coisa aconteceu. A foto pode
distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que algo existe, ou existiu, e era semelhante ao
que está na imagem” (NA CAVERNA DE PLATÃO, 1977, p.9). Uma foto, com contexto ou
sem contexto, sempre reforça e ajuda a desenvolver uma posição moral. Por isso, uma foto de
guerra, como a de Nick Ut, de Eddie Adams, ou de Evgeniy Maloletka, são sempre mais
eficazes em comover e conscientizar do que um depoimento de uma vítima da guerra, ou
histórias sobre ela.

É fato incontestável que a fotojornalismo de guerra vem perdendo seu impacto e força em
comover e revoltar, conforme a replicação das imagens e a violência se perpetuam no dia a

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dia, porém é de extrema importância que as imagens de guerra continuem a ser reproduzidas,
a fim de encontrarem um meio onde a conscientização supere a indiferença.

Acredito que a fotojornalismo de guerra cumpre seu papel tanto em conscientizar, quanto
em manipular, dependendo de quem possui a fotografia. Mas a verdade imutável da fotografia
de guerra é que ela impacta e altera a sociedade, independente do contexto que está inserida e
do significado que é atribuído a ela. Assim como Sontag afirma, em seu texto “O Mundo-
Imagem" (1977), as imagens controlam o mundo, fornecem conhecimento dissociado de
experiência, muitas vezes se tornando mais reais que o mundo em si, podendo ser utilizadas
tanta para alienar, quanto para sensibilizar.

A fotografia é a única “linguagem” entendida em toda parte do mundo e que, ao interligar


todas as nações e culturas, une a família humana. Independente da influência política —
onde as pessoas forem livres —, ela reflete fielmente a vida e os fatos, permite-nos
compartilhar as esperanças e o desespero dos outros e esclarece as condições políticas e
sociais. Tornamo-nos testemunhas oculares da humanidade e da desumanidade da espécie
humana [...] (FOTOGRAFIA CRIATIVA, HELMUT GERNSHEIM, 1962.)

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