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"imhn ffimrffiw,r Sobre o olhar

Tradução de Lya Luft


t

Retratos de agonia

As notícias do Vietnã não deram grandes manchetes nos jornais


naquela manhã. Relatou-se simplesmente que a Força Aérea Ameri-
cana estava perseguindo sistematicamente sua política de bombardear
o Norte. Ontem tinham sido 270 ataques.
Atrás dessa notícia há um acúmulo de outras informações. No
dia antes de ontem a Força Aérea Americana realizara os ataques
mais pesados do mês. Até aqui se lançaram neste mês mais bombas
do que em qualquer outro período comparável. Entre as bombas lan-
çadas há superbombas de sete toneladas, cada uma das quais arrasa
uma área de aproximadamente 8.000 metros quadrados. Junto com as
bombas grandes estão sendo lançados vários tipos de pequenas bom-
bas antipessoais. Um tipo é cheio de farpas plásticas que, entrando na
carne e instalando-se no corpo, não podem ser localizadas por raios X.
Outra é chamada a Aranha: uma bomba pequena como uma granada
com antenas quase invisíveis de 30 centímetros, que, tocadas, agem
como detonadores. Essas bombas, distribuídas no solo onde ocorre-
ram explosões maiores, destinam-se a explodir os sobreviventes que
correm paraapagar os incêndios ou ajudar os quejá estão feridos.
Não há fotografias do Vietnã nos jornais hoje em dia. Mas há uma,
tirada por Donald McCullin em Hué, em 1968, que podia ter sido
impressa junto com as notícias desta manhã. (Veja The Destruction
Business, por Donald McCullin, Londres, 1,972.) Ela mostra um
ancião agachado com uma criança nos braços, ambos sangrando pro-
fusamente com o sangue negro das fotos preto-e-branco.
No último ano, mais ou menos, tornou-se normal para certos jor-
nais de circulação de massa publicar fotos de guerra que antes teriam
44 Sobre o olhar Retratos de agonia 45

sido- suprimidas por serem chocantes demais. podia-se explicar essa flete uma correspondência que nâo pâra no puramente mecânico'
mudança argumentando que esses jornais entenderu- q.r" grande Á i-ug"- apunhld^ pela câmera é duplamente violenta' e as drtas
parte de seus leitores agora sabem dos horrores da guerra,
e querem violênòias r"lorçu- o mesmo contraste: o contraste entre o momento
ver a verdade. Ou podíamos argumentar que esses jãrnais acreditam fotografado e todos os demais.
que seus leitores se habituaram com iÃagens violentas, "Qturrdoemergimosdomomentofotografadoretornandoàs
e agora
os jornais competem em termos de um sensacionalismo nossas vidas, não entendemos isso; achamos que a descontinuidade
ainda mais
violento. é responsabilidade nossa. A verdade é que qualquer reação àquele
O primeiro argumento é idealista demais, o segundo cínico momento fotografado é necessariamente sentida como inadequação.
demais. os jornais agora trazem fotos de guerra violentà porque Os que estão naquela situação, sendo fotografados, os
que seguram a
seu
efeito, exceto em casos raros, não é o que se pensava antes. umjornal mao do moribundo or-t uma ferida, não estão vendo o
como o sunday Times continua a publicar fotos chocantes sobre momento como nós vimos,"itu,,.u-
e suas reações são de uma ordem inteira-
o tal
Vietnã ou a Irlanda do Norte enquanto politicamente apóia progra_
o mente diversa. Não é possível ninguém fitar pensativamente
ma responsável pela violência. É por isso que devemos plrguntàr: momento e emergir maìs forte. McCullin, cuja "contemplaçâo" é a
eue
efeito têm essas fotografias? um tempo perigosa e ativa, escreve amargamente por baixo de uma
Muito pessoas argumentariam que tais fotos nos rembram de ;p,rrio uso a câmera como uso uma escova de dentes' Ela
fotografìa:
modo chocante a realidade, a reahdáde vivida por trás das abstra- cumpre sua tarefa."
ções da teoria política, estatísticas de baixas ou toletins de notícias. lgo.u as possíveis contradições da fotografia de guerra se tor-
Tais fotografias, podem dizer ainda, são impressas sobre a
cortina rru- uf,ur"rrtes. Geralmente se presume que seu objetivo é despertar
preta que puxamos para encobrir o que escolhemos esquecer interesse. Os exemplos mais extremos - como na maior
parte do
ou nos
recusamos a conhecer. Segundo eles, McCullin serwe cãmo
um olho trabalho de McCuÍin - mostram momentos de agonia fim de a
ou
que não conseguimos fechar. Mas o que é que essas fotografias
nos despertar o maior interesse possível' Tais instantes' fotografados
fazemver? não, são descontínuos em relação a outros' Existem por si' Mas o
Elas nos informam abr-uptamente. O adjetivo mais literal que leitor que foi arrebatado pela foto pode tender a sentir essa desconti-
nuidade como sua própria inadequaçáo moral pessoal' E assim
lhes-poderíamos aplicar é impressionante. Elás nos arrebatam. (sei que
que há_pessoas que passam por cima delas, mas nada isso acontece, até seu ientimento de choque se dispersa: sua própria
há a dizer a res-
sendo
p-eito dessas pessoas.) Quando as olhamos, o instante
do sofrimento irrud"qrruçao moral pode agora chocá-lo tanto quanto os crimes
alheio nos engolfa. Ficamos dominados de desespero ou indignaçao. cometidos na guerra. Ou ele afasta esse senso de inadequação como
o desespero assume algo do sofrimento alheio que nao t.- ,ï.rtiao. algo familiar ãemais, ou pensa ern tealizat algum ato de contrição
à OXFAM
A indignação exige ação. Tentamos emergir do instante da fotografia
- o mais puro exemplo disso seria fazer uma contribuição
e retornar ás nossas vidas. Fazendo isso, o contraste é tamanho ou UNICEF.
que
retomarmos nossas vidas parece uma reação totalmente inadequada Nos dois casos, a questão da guerra que provocou aquele
ao que acabamos de ver. momento está efetivamentã despolitizada. O retrato torna-se evidên-
As fotografias mais típicas de Mccuilin registram súbitos cia da condição humana geral. Não acusa ninguém' e acusa a todo
momentos de agonia - um terro4 uma ferida, uma mãrte, um grito mundo.
de pode
desespero. Esses momentos são na verdade totalmente i"rhgãào,
do Confrontar-se com um momento de agonia fotografado
tempo normal. É saber que tais momentos são prováveis, e mascarar um confronto muito mais amplo e urgente. Habitualmente
antecipá_
-los, que torna o "tempo" na linha de frente diferente de todas aSguelTasquenosmostramestáosendocombatidasdiretamenteou
as
demais experiências de tempo. A câmera que isola um instante
de indlretamenie em "nosso" nome. O que nos é mostrado nos horrotiza.
agonia não isoÌa mais violentamente do que a experiência
do instante ô f"tt" seguinte deveria ser questionarmos nossa própria falta de
se isola a si mesma. A palavra gatirho, aplicada ã rifle ou
câmera, re- hbàrdade politi.u. Nos sistemas políticos tais como existem, não
46
Sobre o olhar
temos oportunidade legar de influenciarïnos
efetivamente a condução
das guerras realizadas em nosso
nome. Entender isso e agir de acordo
é o único meio eficaz de reagir
"" q".ï'f"tografia _ortru. Mas na
verdade a dupìa violência aJ-o-"iìã
ìotogrurudo age contra esse
E é por isso q,r" fàìo, pod"_ ser publicadas
,"11"-lj1-*ro.
lmpunemente. "r*,

1972
t,

Usos da fotografia
Para Susan Sontag

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-nl-

i1

í,,.
Quero registrar algumas de minhas reações ao livro de Susan Sontag
Sobre a Fotografia. Todas as citações que eu usar aqui são do texto
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..::
dela. Os pensamentos são por vezes meus, mas tudo se origina da
experiência de ler o livro dela.
A câmera foi inventada por Fox Talbot em 1839. Dentro de meros
30 anos a partir de sua invenção como divertimento de uma elite, a
fotografia estava sendo usada para arquivos policiais, reportagens de
gueffa, reconhecimento militar, pornografia, documentação enciclo-
pédica, álbuns de família, cartões-postais, registros antropológicos
(muitas vezes, como com os índios dos Estados Unidos, acompanha-
dos de genocídio), moralismo sentimental, tentativas inquisidoras (a
erradamente chamada "câmera franca"): efeitos estéticos, relato de
notícias e retratos formais. A primeira câmera popular barata foi
posta no mercado um pouco depois, em 1888. A velocidade com que
os usos possíveis da fotografia foram descobertos é certamente indi-
caçâo daaplicabilidade central e profunda da fotografia ao capitalismo
industrial. Marx chegou à maioridade no mesmo ano ao da invenção
da câmera.
Mas não foi senão no século xx e no período entre as duas guer-
ras mundiais que a fotografia se tornou o meio dominante e mais
"natural" de nos reportarmos às aparências. Foi então que ela substi-
tuiu o mundo como testemunho imediato. Foi o período em que a
t.'
fotografia foi considerada mais transparente, como um acesso direto
ao real: o período dos grandes mestres do testemunho desse ins-
trumento, como Paul Strand e Walker Evans. Ocorreu nos países
capitalistas o momento mais livre da fotografia: ela fora liberada das

, li.lrl '
",,
54 Sobre o olhar Usos da fotografia 55

limitações das Belas Artes, e se tornara o instrumento público que


podia ser usado democraticamente. ambigüidade. Mostrava um bebê recém-nascido. A legenda abaixo
Mas o momento foi breve. A verdadeira "veracidade" do novo ins- dizia " Avida começa..."
trumento encorajava seu uso deliberado como meio de propaganda. O que se usava em lugar da fotografia antes da invenção da
os nazistas estiveram entre os primeiros a usar u propugurda foto- câmera? A resposta esperada é a gravura, o desenho, a pintura. A res-
grâhca sistemática. posta mais reveladora poderia ser: a memória. O que as fotografias
fazern externamente no espaço, era anteriormente feito internamente
"Fotografias são talvez os mais misteriosos de todos com reflexão.
os objetos
que inventam e adensam o ambiente que reconhecemos como
moder- "Proust de alguma forma interpreta erradamente que as fotogra-
nos. Fotografias realmente são experiência capturada, e a câmera
éo fias são, não tanto um instrrrmento da memória, mas uma invenção e
braço ideal da consciência em seu estado de eìpírito aquisitivo."
substituição dela."
No primeiro período de sua existência, a fotografia ofereceu uma
nova oportunidade té-cnica; era um implemento. Agora, em lugar de Diferente de qualquer outra imagem visual, uma fotografia não é
oferecer novas escolhas, seu uso e suas "leituias" tornavam-se uma versão, uma imitação ou uma interpretação do seu tema, mas na
habituais, uma parte não examinada da própria percepção moderna. verdade um traço dele. Nem uma pintura ou desenho, por mais natu-
Muitas ocorrências contribuíram para sua tratrsformáção. A nova ralista que seja, pertence a seu tema assim como o faz uma fotografia.
indústria cinematográfica. A invençâo da câmera portátii de modo
-
que tirar uma foto deixava de ser um ritual e se tàrnava '.reflexo,,.
"Uma fotografia não é apenas uma imagem (como uma pintura
A é uma imagem), uma interpretação do real; é também um traço, algo
descoberta do fotojornalismo - com o qual o texto segue as fotos,
e não diretamente copiado do real, como uma pegada ou uma máscara
vice-versa. A emergência da propaganda como força econômica
crucial. mortuária."
"Através das fotografias o mundo se torna uma série de partícu-
las livres não relacionadas entre si; e a história, passado e p'resente, A percepção visual humana é um processo bem mais complexo e
são um conjunto de anedotas efaits divers. A câmera torna a iealidade seletivo do que aquele pelo qual um filme registra as coisas. Mesmo
atômica, manuseável, e opaca. É uma úsão do mundo que nega a assim, tanto as lentes da câmera quanto o olho registram imagens
inter-relação e a continuidade, mas confere a cad,a.rro-"ito o - por causa de sua sensibilidade à luz - a grande velocidade, e face a
carâ- um evento imediato. O que a câmera faz,porém, e o que o olho em si
ter de mistério."
não pode fazer, é fixar a aparência desse evento. Remove sua aparên-
A primeira revista de grande circulação apareceu nos Estados cia do fluxo de aparências e a preserva, talvez não para sempre, mas
unidos em 193ó. Pelo menos duas coisas ro ìurrçu-"nto da Life"" enquanto o filme existir. O carâter essencial dessa preservação não
f",.u- proféticas,
profecias que se rearizariamprenámente na era da depende da imagem ser estática; as primeiras cópias não editadas
televisão pós-guerra. A nova revista ilustrada rrâo .ru financiada preservam essencialmente do mesmo modo. A câmera salva um con-
ape_ junto de aparências de serem inevitavelmente recobertas por outras.
nas por suas vendas,- mas pela propaganda que trazia. Um terço
de Assim ficam preservadas, imutáveis. E antes da invenção da câmera
suas imagens era dedicada à publicidade. A segunda profecia estava
no seu título. Que é ambíguo. pode signifi.u, qú" as figuras lá dentro nada podia fazer isso, exceto, no olho da mente, a faculdade da
são sobre a vida. Mas parece prometer mais: q,r" memória.
".J.. figuras
vida. A primeira fotografia do primeiro númerã brincava -.o- sdo Não estou dizendo que a memória seja um tipo de filme. Seria
".ru uma comparação banal. Da comparação filme/memória não aprende-
mos nada sobre esta última. O que aprendemos é como foi estranho e
" Em português,Vida (N. da T.)
sem precedentes o processo da fotografia.
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Sobre o olher Usos da fotografia

A fotografia pública contemporânea habitualmente apresenta


ver conosco'
um evento, um coniunto de aparências, que nada tem a
Oferece infor-
seus leitores, ou com o signifi^cado original do evento'
tnuçao, mas informaçâo ípanada de toda a experiência
vivida' Se a
é a lembrança de
fotog.ufiu pública .ottr.iUttl para uma-lembrança'
violência se expressa
utgJitt."g"oscível e totalmente desconhecido' A
sobre a qual um
nesse estranhamento. Registra uma visão instantânea
desconhecido gritou: Olhe!
Quem é o desconhecido? Podemos responder:
o fotógrafo. Mas
imagens fotografadas' a
," p."tuÀos em todo o sistema d'e usos de
;;õ;;;; "o fotógrafo" é claramente inadequada' Nem podemos res-
porrd..' aqueles que usam as fotografias'
'--- É Ooü.re asiotografias não trazemum significado especial em si
mesmas, porque são como imagens na memória de
alguém total-
mente desconÈecido, que se prestam para qualquer uso'
O famoso cartum de Dãumier, de Nadar em seu balão'
sugere
céu sobre Paris - o vento arrancou seu
uma resposta. Nadar viaja pelo
câmera a cidade e as pessoas lá
Mas, diferente da memória, as fotografias não preserwam em si .fruper-t - e está fotografánâo com sua
mesmas o significado. Elas oferecem aparências - com toda a credi- embaixo.
bilidade e gravidade que normalmente emprestamos às aparências -
afastadas de seu significado. Significado é o resultado de entender
funções. "E funcionamento acontece no tempo, e tem de ser explicado
no tempo. Só aquilo que narra pode nos fazer entender." As fotogra-
fias por si mesmas não narram. Fotografias preseÍvam aparências
instantâneas. O hábito nos protege do choque envolúdo nessa preser-
vação. Compare-se o tempo de exposiçáo de um filme com a vida da
foto impressa, e vamos presumir que a impressão dure apenas dez
anos: a média de uma foto moderna seria de aproximadamente
20.000.000.000:1. Talvez isso possa nos recordar a violência da fissão
através da qual a câmera separa as aparências de sua função.
Agora devemos distinguir entre dois usos bem diversos da foto-
graha. Há fotos que pertencem à experiência privada, e há aquelas
usadas publicamente. A fotografia privada - o retrato de uma mãe,
de uma filha, a foto em grupo do nosso time - é apreciada e lida em
um contexto que é contínuo com aqwele do qual a câmera & removeu'
(A violência da remoção por vezes nos deixa incrédulos: "o papai era
realmente assim?") Ainda assim tal fotografia permanece rodeada
pelo significado do qual foi apartada. Um aparelho mecânico, a câme-
ra, foi usado como instrumento para contribuir para uma memória
viva. A foto é uma lembrança de uma vida sendo vivida.
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58 Sobre o olhar [Jsos dafotografia
A câmera terá substituído o olho de Deus? O declínio da religião "Nosso próprio senso de situação agora é articulado pelas inter-
de maneira per-
corresponde à ascensão da fotografia. A cultura do capitalismo teles- venções du .ã-"r.. A onipresença de câmeras sugere
eventos interessantes' eventos dignos
copiou Deus na fotografia? A transformação não seria tão surpreen- suasiva que o tempo consìste de
que todo
dente quanto pode parecer à primeira vista. á" ,"."- fotografãdos. Isso por sua vez torna fácil sentir
for seu carârer moral' deveria
evento, 'lrma vez a caminho, e seja qual
A faculdade da memória levou os homens por toda parte a per- trazida ao
guntarem se, assim como eles puderam preservar do esquecimento poder completar-se - de modo que outra coisa possa ser
certos eventos, não poderia haver outros olhos percebendo e regis- mundo: a fotogratia."
trando eventos que de outro modo não teriam testemunhas. Tais olhos
eles então atribuíam a seus ancestrais, a espíritos, a deuses ou à sua Oespetáculocriaumpresenteeternodeexpectativaimediata:a
perda da memó-
divindade singular. O que era visto por esse olho sobrenatural era memória cessa de ser necessária ou desejável. com a
julgamento'
inseparavelmente ligado ao princípio da justiça. Era possível escapar ria, também perdemos as continuidades do significado e
como Deus' e
da justiça dos homens, mas não dessa justiça mais elevada da qual À câmera nos alivia da carga da memória' Ela nos vigia
pois a câmera
nada ou pouco podia ser oculto. ügia por nós. Mas nenhum outro deus foi tão cínico'
A memória implica um certo ato de redenção. O que é lembrado registra a fim de esquecer. t 1 :-Lt
Susan Sontag làcalizamuito claramente esse deus na
história' E
foi salvo do nada. O que é esquecido foi abandonado. Se todos os
fatos são vistos instantaneamente fora do tempo por um olho sobre- o deus do capitalismo monopolista'
natural, a distinção entre lembrar e esquecer se transforma num ato
de julgamento, na execução da justiça, e assim o reconhecimento "Uma sociedade capitalista requer uma cultura baseada em ima-
a fim de
estará próximo de ser lembrado, e a condenação está na iminência gens. Precisa fornecer vàstas quantidad-es de entretenimento
de classe, raça e sexo'
de ser esquecida. Tal pressentimento, extraído da longa, dolorosa ãstimular as compras e anestesiar as feridas
experiência do homem com o tempo, se encontra sob várias formas E precisa reunir quantidades ilimitadas de informação' melhor
em quase toda cultura e religião, e, muito claramente, no cristia- ãun"i.u de explorai recursos naturais, aumentar a produtividade'
As capa-
nismo. manter a ordem, fazer guerra, dar empregos aos burocratas'
arealidade e de objetivá-
Primeiro, a secularização do mundo capitalista durante o .idud", gêmeas da cârãera, de subjetivizar
As câmeras
século xlx apagou o julgamento de Deus no julgamento da História, lu, ,"-"Ã idealmente a essas necessidades e as reforçam'
essenciais às obras de uma socie-
em nome do progresso. Democracia e ciência tornaram-se agentes definem a realidade de dois modos
espetáculo (para as massas) e como
desse julgamento. E por um breve momento a fotografia, como dade industrial avançada: como
governantes)' A produção de imagens
vimos, foi considerada uma ajuda para esses agentes. É ainda a esse oU3"to de vigilânci. ip^ru os
social é substi-
momento histórico que a fotografia deve sua reputação ética como também oferece ,r-tìd"ologiã dominante' Mudança
verdade. tuída por mudança de imagens'"
Na segunda metade do século xx o julgamento da história foi a indagar se a
abandonado por todos, exceto os desprivilegiados e despossuídos' O A teoria dela sobre o uso atual das fotografias leva
uma prática
mundo industrializado, "desenvolüdo", aterrorizado com o passado, fotografia poderia servir para uma função-diferente' Existe
cego para o futuro, vive dentro de um oportunismo que esvaziou o fotolráficá alternativa? À pergunta não deve ser respondida-ingenua-
alternativa
principio da justiça de toda a credibilidade. Tal oportunismo trans- _"i". Hoje não é possívËl nenhuma prática profissional pode acomodar
forma tudo em espetáculo - rratvreza, história, sofrimento, outras (se pensarmos na profissão de fotógrafo)' O sistema
fotografia. Mas pode ser pássível começar a usar fotografias
pessoas, catástrofes, esporte, sexo, política' E o implemento usado ;;^ïú. um futuro alterna-tivo' Esse futu-
para fazer isso - até que o ato se torne tão habitual que a imaginação, conforme uma prática
"rrà"t"çtdtã
de que precisamos agora' se quisermos manteruma
condicionada, o possa fazer sozinha- é a câmera. ro é uma esperança
capitalismo.
luta e uma resistência .orriru as sociedades e a cultura do
6l
ó0 Sobre o olhat Ilsos da fotografia

é que a maioria das fotos de


As fotografias têm sido usadas freqüentemente como arma radi- scntimental e complacente' A verdade
gcnte trata de sofrimento, e a maior
parte àesse soÊrimento é causada
cal em pôsteres, jornais, panfletos e assim por diante. Não desejo
diminuir o valor de tal publicação de carâter agitador. Mas o atual uso peÌo homem.
público sistemático da fotografia precisa ser desafiado, não simples- encontro com o inventá-
mente virando-o como um canhão e apontando-o para diferentes Susan Sontag escreve: "Nosso primeiro
uma espécie de revelação' ou a
obietivos, e sim mudando a sua prática. Como? ,'io fotãgrkico dJ horror extremo é
uma epifania negativa' Para mim'
Precisamos voltar à distinção que hz entre uso privado e público çlrototípica ."rr"ttçao "toderna: e Dachau' que encontrei por
da fotografia. No uso privado, o contexto do instante registrado fica l'oram fotografias d; ;;ú"" Belsen
em julho de 1945' Nada que eu
preserwado de modo que a fotografia vive numa continuidade. (Se iìcaso numa livraria ;" St;t Mônica
jamais me cortou tão duramente'
você tem na parede uma fotografia de Peteq provavelmente não vai vi - em fotografias o" "t "idu real -
Na verdade posso dividir minha
esquecer o que Peter significa para você.) A fotografia pública, ao con- tãro fundo, tão instantaneamente'
aquelas fotos (eu tinha doze
trârio, é arrancada de seu contexto e torna-se um objeto morto que, vida em duas partes, antes de eu ver
ernos) e depois, passassem vários anos para eu entender
exatamente por estar morlo, se presta para qualquer uso arbitrário. "-ú;;"
Na mais famosa exposição fotográfica jârealizada, The Family of plenamenté do que tratavam'"
Man (organizada por Edward Steichen em 1955), fotografias do resquícios do que aconte-
mundo inteiro foram apresentadas como se formassem um álbum de Fotografias são relíquias do passado'
p.ssado, se o passado se torna parte
família universal. A intuição de Steichen estava absolutamente cor- ceu. Se os vivos urrrr-"t i aquele
própri1
reta: o uso privado das fotografias pode ser exemplar para seu uso integral do p.o"",,o'ã" g""* fàzendo .sua Ï:t:iii' ""tu"
vivo' conti-
de readquirir um contexto
público. Infelizmente o atalho que ele tomou no trato do mundo exis- todas as fotog.tfitt*h-"'ït-
nuariam a existir lugar dË serem momentos capturados'
tente, dividido em classes, como se fosse uma família, inevitavelmente "";;;;;;- de uma- memória
tornou a exposição inteira, não necessariamente cada fotografia, algo É apenas possível q"" ; fotograú seja a profecia
humana qrr" .i,tdutl;;;il;ocial
e politicamente obtida' Tal
do.passado' por mais trágica e
memória incluiria q'-ã;;"; imagem
culpada que fbsse, ãà de suã própria continuidade' A diferença
entre os ,rro, ptittÃ* "-p'iUfito da
fotografia seria transcendida' E a
Família do Homem existiria'
Entrementes, hoje vivemos no mundo
tal qual ele é' NIas essa
direção na qual quarquer uso
p"rrir"ip."r""iu a. iáiografia indica a A tarefa de uma foto-
alternativo a^ totogrcãuït"titzl se desemolver'
dentro da memória social
grafia alternativa é1;tp;; u fotog'ufiu
que encoraja a
uma substituta
e política, em lugar de usá-la como
atiofia de qualquer memória dessas'
Atarefadeterminarátantoostiposdefotografias.tiradasquanto
o modo como são;;;;;;á;t'
Nutt"ul-"nte não pode haver fórmu-
como a fotografia pas-
las nem prâticapt;;;i;;' Mas reconhecendo
podemos definir pelo menos alguns
sou a ser usada pti" ttpiitfismo'
dos princípios de uma prâtica alternativa'
em si mesmo não tanto
Para o fotOg"io, isso significa pensar
mas antes como um registrador
como repór1", pu'u o '""o doïundo' é crucial'
para aquele, rott'iáá' t'os et'e"tos fotografados' A distinçáo
"t
Sobre o olhar I |stn da fotografia 63

O que torna essas fotografias tão trágicas e tão extraordinárias é


tlrrc, olhando para elas, nos convencemos de que não foram tiradas
;rirra agradar a generais, para atiçar a moral do público civil, para
gkrrificar soldados heróicos ou para chocar a imprensa mundial:
crnm imagens dirigidas aos soÊredores que elas mostram. E dada essa
irrtcgridade com relaçáo a seu tema, tais fotografias mais tarde se tor-
nilram, para os enlutados, um memorial dedicado aos 20 milhões de
lussos mortos na gueffa. (Ver Russian War Photographs 1941-45.
'lf'xto de A. J. P. Taylor, Londres 1978.) O horror unificador de uma
gucrra total tornou natural essa atitude de parle dos fotógrafos de
ÊLrerra (e até dos censores). Psrém os fotógrafos podem trabalhar com
urna atitude parecida em circunstâncias menos extremas.
O uso alternativo de fotografias que já existem nos conduz mais
unìa vez de volta ao fenômeno e faculdade da memória. O objetivo
tlcve ser construir um contexto para uma fotografia, constrrrí-Ìo com
palavras, constmí-lo com outras fotografias, constr-uí-lo pelo seu
Irrgar em um texto em progresso de fotos e de imagens. Como? Nor-
rurerlmente usam-se fotografias de um modo muito unilinear - elas são
rrsadas para ilustrar um argumento ou demonstrar um pensamento
cÌLle transcorre assim:

Freqüentemente também são usadas tautologicamente, de modo


c;ue a fotografia meramente repete o que está sendo dito em palavras.
A rnemória não é nada unilinear. A memória age por raios, isto é, com
trrn número enorme de associações, todas levando ao mesmo fato.
O diagrama é assim:

rl,z
/l\
Se quisermos reportar uma fotograha ao contexto da experiên-
cia, experiência social, memória social, temos de respeitar as leis da
nremória. Temos de situar a foto impressa de modo que adquira algo
clo surpreendente caráter conclusivo daquilo que foi e é.
64 Sobre o olhar I tsos da fotografia 65

O que Brecht escreveu sobre atual em um de seus poemas, é


irlrlicável a tal prática. Em lugar de instante podemos ler fotografia,
.'rrr lugar de atuar podemos ler a recriação do contexto:

"Então você devia simplesmente fazer o instante


Se destacaL sem nesse processo ocultar
Aquilo de onde você o destaca.
Dê à sua alnração
Aquela seqüência de uma-coisa-após-outra,
aquela atitude de
Elaborar aquilo que você começou. Dessa maneira
Você mostrará o fluxo de eventos e também o curso
De seu trabalho, permitindo ao espectador
Experimentar esse Agora ern muitos níveis, nascendo
Do Anterior e
Mesclando-se ao Depois, e também tendo muito Agora
Seguindo ao lado. O espectador não está apenas
No seu teatro, mas também
No mundo."

Há umas poucas grandes fotografias que praticamente conse-


gr-rem isso por si mesmas. Mas qualquer fotografia pode tornar-se um
tal "Agora", se for criado um contexto adequado para ela. Geralmente
cluanto melhor a foto, mais pleno o contexto que se pode criar.
Tal contexto substitui a fotografia no tempo - não seu próprio
tcmpo original, pois isso é impossível - mas no tempo narrado. O
tcmpo narrado se torna histórico quando é assumido pela memória
social e a ação social. O tempo nar-rado construído precisa respeitar o
processo da memória que espera estimular.
Não existe uma abordagem única de algo lembrado. O lembrado
não é como uma conclusão no fim de uma linha.
Numerosas abordagens ou estímulos convergem sobre ele e
lcvam a ele. Palavras, comparações, sinais devem criar um contexto
llara uma foto impressa em um modo comparável; quer dize4 preci-
seìm marcar e deixar abertas diversas abordagens. Deve-se construir
trm sistema radial em torno da fotografia, de modo que ela possa ser
cclntemplada em termos simultaneamente pessoais, políticos, econô-
rur icos, dramáticos, cotidianos e históricos.

t978

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