Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Retratos de agonia
sido- suprimidas por serem chocantes demais. podia-se explicar essa flete uma correspondência que nâo pâra no puramente mecânico'
mudança argumentando que esses jornais entenderu- q.r" grande Á i-ug"- apunhld^ pela câmera é duplamente violenta' e as drtas
parte de seus leitores agora sabem dos horrores da guerra,
e querem violênòias r"lorçu- o mesmo contraste: o contraste entre o momento
ver a verdade. Ou podíamos argumentar que esses jãrnais acreditam fotografado e todos os demais.
que seus leitores se habituaram com iÃagens violentas, "Qturrdoemergimosdomomentofotografadoretornandoàs
e agora
os jornais competem em termos de um sensacionalismo nossas vidas, não entendemos isso; achamos que a descontinuidade
ainda mais
violento. é responsabilidade nossa. A verdade é que qualquer reação àquele
O primeiro argumento é idealista demais, o segundo cínico momento fotografado é necessariamente sentida como inadequação.
demais. os jornais agora trazem fotos de guerra violentà porque Os que estão naquela situação, sendo fotografados, os
que seguram a
seu
efeito, exceto em casos raros, não é o que se pensava antes. umjornal mao do moribundo or-t uma ferida, não estão vendo o
como o sunday Times continua a publicar fotos chocantes sobre momento como nós vimos,"itu,,.u-
e suas reações são de uma ordem inteira-
o tal
Vietnã ou a Irlanda do Norte enquanto politicamente apóia progra_
o mente diversa. Não é possível ninguém fitar pensativamente
ma responsável pela violência. É por isso que devemos plrguntàr: momento e emergir maìs forte. McCullin, cuja "contemplaçâo" é a
eue
efeito têm essas fotografias? um tempo perigosa e ativa, escreve amargamente por baixo de uma
Muito pessoas argumentariam que tais fotos nos rembram de ;p,rrio uso a câmera como uso uma escova de dentes' Ela
fotografìa:
modo chocante a realidade, a reahdáde vivida por trás das abstra- cumpre sua tarefa."
ções da teoria política, estatísticas de baixas ou toletins de notícias. lgo.u as possíveis contradições da fotografia de guerra se tor-
Tais fotografias, podem dizer ainda, são impressas sobre a
cortina rru- uf,ur"rrtes. Geralmente se presume que seu objetivo é despertar
preta que puxamos para encobrir o que escolhemos esquecer interesse. Os exemplos mais extremos - como na maior
parte do
ou nos
recusamos a conhecer. Segundo eles, McCullin serwe cãmo
um olho trabalho de McCuÍin - mostram momentos de agonia fim de a
ou
que não conseguimos fechar. Mas o que é que essas fotografias
nos despertar o maior interesse possível' Tais instantes' fotografados
fazemver? não, são descontínuos em relação a outros' Existem por si' Mas o
Elas nos informam abr-uptamente. O adjetivo mais literal que leitor que foi arrebatado pela foto pode tender a sentir essa desconti-
nuidade como sua própria inadequaçáo moral pessoal' E assim
lhes-poderíamos aplicar é impressionante. Elás nos arrebatam. (sei que
que há_pessoas que passam por cima delas, mas nada isso acontece, até seu ientimento de choque se dispersa: sua própria
há a dizer a res-
sendo
p-eito dessas pessoas.) Quando as olhamos, o instante
do sofrimento irrud"qrruçao moral pode agora chocá-lo tanto quanto os crimes
alheio nos engolfa. Ficamos dominados de desespero ou indignaçao. cometidos na guerra. Ou ele afasta esse senso de inadequação como
o desespero assume algo do sofrimento alheio que nao t.- ,ï.rtiao. algo familiar ãemais, ou pensa ern tealizat algum ato de contrição
à OXFAM
A indignação exige ação. Tentamos emergir do instante da fotografia
- o mais puro exemplo disso seria fazer uma contribuição
e retornar ás nossas vidas. Fazendo isso, o contraste é tamanho ou UNICEF.
que
retomarmos nossas vidas parece uma reação totalmente inadequada Nos dois casos, a questão da guerra que provocou aquele
ao que acabamos de ver. momento está efetivamentã despolitizada. O retrato torna-se evidên-
As fotografias mais típicas de Mccuilin registram súbitos cia da condição humana geral. Não acusa ninguém' e acusa a todo
momentos de agonia - um terro4 uma ferida, uma mãrte, um grito mundo.
de pode
desespero. Esses momentos são na verdade totalmente i"rhgãào,
do Confrontar-se com um momento de agonia fotografado
tempo normal. É saber que tais momentos são prováveis, e mascarar um confronto muito mais amplo e urgente. Habitualmente
antecipá_
-los, que torna o "tempo" na linha de frente diferente de todas aSguelTasquenosmostramestáosendocombatidasdiretamenteou
as
demais experiências de tempo. A câmera que isola um instante
de indlretamenie em "nosso" nome. O que nos é mostrado nos horrotiza.
agonia não isoÌa mais violentamente do que a experiência
do instante ô f"tt" seguinte deveria ser questionarmos nossa própria falta de
se isola a si mesma. A palavra gatirho, aplicada ã rifle ou
câmera, re- hbàrdade politi.u. Nos sistemas políticos tais como existem, não
46
Sobre o olhar
temos oportunidade legar de influenciarïnos
efetivamente a condução
das guerras realizadas em nosso
nome. Entender isso e agir de acordo
é o único meio eficaz de reagir
"" q".ï'f"tografia _ortru. Mas na
verdade a dupìa violência aJ-o-"iìã
ìotogrurudo age contra esse
E é por isso q,r" fàìo, pod"_ ser publicadas
,"11"-lj1-*ro.
lmpunemente. "r*,
1972
t,
Usos da fotografia
Para Susan Sontag
:!'i
-nl-
i1
í,,.
Quero registrar algumas de minhas reações ao livro de Susan Sontag
Sobre a Fotografia. Todas as citações que eu usar aqui são do texto
ij.i
:ii
..::
dela. Os pensamentos são por vezes meus, mas tudo se origina da
experiência de ler o livro dela.
A câmera foi inventada por Fox Talbot em 1839. Dentro de meros
30 anos a partir de sua invenção como divertimento de uma elite, a
fotografia estava sendo usada para arquivos policiais, reportagens de
gueffa, reconhecimento militar, pornografia, documentação enciclo-
pédica, álbuns de família, cartões-postais, registros antropológicos
(muitas vezes, como com os índios dos Estados Unidos, acompanha-
dos de genocídio), moralismo sentimental, tentativas inquisidoras (a
erradamente chamada "câmera franca"): efeitos estéticos, relato de
notícias e retratos formais. A primeira câmera popular barata foi
posta no mercado um pouco depois, em 1888. A velocidade com que
os usos possíveis da fotografia foram descobertos é certamente indi-
caçâo daaplicabilidade central e profunda da fotografia ao capitalismo
industrial. Marx chegou à maioridade no mesmo ano ao da invenção
da câmera.
Mas não foi senão no século xx e no período entre as duas guer-
ras mundiais que a fotografia se tornou o meio dominante e mais
"natural" de nos reportarmos às aparências. Foi então que ela substi-
tuiu o mundo como testemunho imediato. Foi o período em que a
t.'
fotografia foi considerada mais transparente, como um acesso direto
ao real: o período dos grandes mestres do testemunho desse ins-
trumento, como Paul Strand e Walker Evans. Ocorreu nos países
capitalistas o momento mais livre da fotografia: ela fora liberada das
, li.lrl '
",,
54 Sobre o olhar Usos da fotografia 55
rl,z
/l\
Se quisermos reportar uma fotograha ao contexto da experiên-
cia, experiência social, memória social, temos de respeitar as leis da
nremória. Temos de situar a foto impressa de modo que adquira algo
clo surpreendente caráter conclusivo daquilo que foi e é.
64 Sobre o olhar I tsos da fotografia 65
t978