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O CONCEITO DIE ERDKUNDE DE CARL RITTER MEDIADO

PELO DIÁLOGO HERDER-HEGEL

RESUMO

O pensamento geográfico de Carl Ritter (1779-1859) possui importância basilar na medida em


que representa um esforço de sistematização da Geografia enquanto ciência. A obra de Ritter
se destaca, sobretudo, pela importância que o autor dispensa ao homem, enquanto ser
histórico. O interesse deste artigo é propor a análise das bases epistemológicas que alimentam
a ideia defendida por Ritter de que tanto a natureza como o homem são portadores de uma
história, de forma que a pesquisa geográfica só pode ser empreendida a partir dos processos
que se desenrolam não apenas no espaço, mas também no tempo. Assim, o nosso objetivo é
demonstrar como a filosofia da história de Herder e o sistema filosófico de Hegel ecoaram no
conceito de Erdkunde de Carl Ritter. O conceito que reside justamente na busca das
especificidades das mais diversas áreas da superfície terrestre, que só podem ser
compreendidas através do homem enquanto partícipe de um projeto histórico teleológico

Palavras-chave: Die Erdkunde; Carl Ritter; Geografia Comparada; Herder; Hegel; História;
Teleologia.

DIE ERDKUNDE CONCEPT MEASURED BY THE HERDER-


HEGEL DIALOGUE

ABSTRACT

Carl Ritter's (1779-1859) geographic thought has fundamental importance to Modern


Geography once it represents an effort of geography systematization as a science. Ritter's work
stands most of all for the importance that the author gives to human being as historical and
cultural being. Our purpose in this paper is to analyze epistemological roots of Ritter’s ideias
about his understanding that both human being and nature hold a history. Thus geographic
research can only be undertaken from the processes that occurs not just in space, but also
through time. Carl Ritter's concept of Erdkunde lies precisely on search for the earth's surface
specificities, which can only be understood through human being as a participant in a
teleological historical project. In this work, we look for epistemological basis of Ritter’s Erdkunde
in Herder’s philosophy of history and Hegel’s philosophical system, which are indispensable for
the emergence of the modern geography in nineteenth century.

Keywords: Carl Ritter – History – Dialetic – Modern Geography

INTRODUÇÃO

A partir de 1817, Carl Ritter iniciou o processo de publicação daquela


que seria a sua obra magna, Die Erdkunde im Verhältniss zur Natur und zur
Geschichte des Menschen, que abrangeu um total de 19 volumes, sendo que
o último foi publicado postumamente ainda em 1859, logo após o seu
falecimento. Até Ritter, o vocábulo que designava a ciência geográfica era Die
Geographie, que em alemão correspondia exatamente ao seu significado grego
– grafia da Terra, descrição da natureza, ou a Naturunchunga de Kant.
Para Ritter, a ciência geográfica deveria ser designada como sendo Die
Erdkunde, cujo conceito referira-se a ciência que se preocupava em estudar a
transformações da superfície da Terra como resultado da relação dialética
entre a cultura e a natureza ao longo da história. relativas entre si e cada qual
com suas diferenciações espaço-temporais.
Na Alemanha entre o final do século XVIII e a primeira metade do século
XIX, houve um forte questionamento das teses do Iluminismo francês e do
Esclarecimento Alemão, levadas à cabo pelo movimento romântico. Pois como
destacam Lowy e Sayre (2000), os pensadores românticos criticavam a
concepção mecanicista com que os iluministas concebiam o Homem e a
Natureza, assim como transformavam os trabalhadores, as nações e as
culturas em coisas reificadas [grifo nosso] e regidas por leis mecânicas
invariáveis e passíveis de serem instrumentalizadas.
É neste cenário que emerge a reflexão geográfica de Carl Ritter.
Mesmo em um período de estruturação do pensamento científico moderno,
Ritter não foi imune ao espírito de sua época e, na esteira daqueles que
buscavam a superação da ruptura entre o homem e a natureza causada pela
razão apregoada pelo Iluminismo, Ritter defendeu uma concepção de geografia
onde as particularidades da superfície da Terra poderiam ser compreendidas a
partir de sua relação com as demais particularidades e a partir do movimento
da totalidade, a superfície da Terra.
Ritter propõe uma geografia geral e comparada. Geral no sentido de que
o objetivo da geografia seria compreender a totalidade da superfície da Terra,
englobando aí a natureza orgânica e inorgânica e a atmosfera terrestre.
Comparada na medida em que as particularidades de cada região da Terra
deveriam ser buscadas na comparação como forma de ser possível apreender
as particularidades de cada povo e sua forma de se relacionar com a natureza.
A concepção de homem enquanto parte integrante da natureza não o
reduz à apenas mais um elemento biológico na superfície da Terra, antes,
homem é sinônimo de humanidade, possuidor de uma história, de uma cultura
e de uma moral, por exemplo, que transforma a natureza pela ação da
comunidade e cria a paisagem cultural, a Erdkunde, o cerne da pesquisa
geográfica, o que dá sentido à toda a geografia. É a compreensão da relação
entre o curso da história e a superfície da terra a especificidade da geografia e
o que a distinguiria de outras áreas do conhecimento.
Para Ritter, o que tornaria a Terra em um lugar especial no conjunto da
criação seria a capacidade do ser humano de desenvolver sua capacidade
racional e desta forma tornar-se capaz de contemplar a natureza, sendo esta
compreendida como uma escada que facilitaria o acesso do homem à deus.
Quanto a racionalidade, esta permitiria que o ser humano compreendesse o
objetivo da criação divina, que seria o de treinar o homem em caráter, alma e
inteligência (RITTER, 1881, p. 236).
A superfície terrestre era considerada por Ritter como um organismo
detentor não apenas de uma história natural, mas também de uma história da
humanidade. Ritter propôs uma geografia racional que superasse o simples
atomismo, pois afinal, o devir humano era conduzido pela Providência e a
geografia auxiliaria o homem na compreensão dos mistérios divinos que
estariam escondidos na natureza. Assim, por meio da razão, a geografia se
revelaria enquanto ciência detentora de uma vocação, tal como todas as
ciências, colaborando com a história humana na busca da união do homem
com o divino (RITTER, 1881, p. 257).
Agora, inserindo a obra de Carl Ritter em seu contexto histórico-cultural,
observamos uma grande confluência de sua concepção de geografia, com a
filosofia da história de Herder e Hegel, sobretudo no que diz respeito à ideia de
que a multiplicidade de culturas e formas de vida cumpre papel importante no
desenvolvimento da história da humanidade.
Portanto, neste artigo procuramos traçar um panorama geral do
desenvolvimento da filosofia da história de Herder e da filosofia de Hegel que
caracterizam o espírito de época no qual Ritter produziu suas reflexões
geográficas, onde o conceito de Die Erdkunde foi forjado em consonância com
os interesses da filosofia do início do século XIX na Alemanha.

A compreensão da relação Homem-Natureza na Aufklärung.

Na Idade Média, o homem e a natureza foram compreendidos como


parte do grande projeto da criação divina. O cosmos e todas as coisas que nele
existiam eram considerados como expressão do desejo de deus. Logo, tudo o
que existia era reflexo da perfeição do criador e de sua obra, sendo este o
motivo da relação harmoniosa existente entre os mais variados objetos e
fenômenos da natureza.
De acordo com Randles (1999), a cosmologia medieval foi se
consolidando ao longo de séculos tendo como base a tradição judaico-cristã
associada ao modelo astronômico da antiguidade grega. Acreditava-se naquele
momento histórico, que o planeta Terra ocupava o ponto central deste sistema
o que, em termos geométricos, também era compreendido como expressão da
perfeição e harmonia da obra divina. Este modelo astronômico e tudo o que
ele representava, começou a ser descontruído no final do século XV com as
especulações a respeito da infinitude do universo, o que abriu caminho para a
Revolução Científica Moderna que, por meio do desenvolvimento da física
moderna, introduziu uma nova leitura da natureza através do mecanicismo.
De acordo com Taylor (2014), os questionamentos próprios da
Revolução Científica Moderna não se limitaram a transformar a tradicional
compreensão da natureza e do mundo externo ao homem, mas a própria
compreensão do homem foi profundamente alterada. Se durante a Idade Média
o ser humano deveria ser concebido como parte integrante do cosmos, na
Revolução Científica o este sujeito cósmico desapareceu e o homem passou a
ser interpretado sob a lógica mecanicista das relações de causa e efeito.
Na modernidade, a contemplação cedeu lugar para a descrição e o
importante era conhecer o funcionamento da coisa-em-si, conduzindo à uma
concepção científica em que imagem da máquina passou a vigorar como
estatuto epistemológico e a natureza foi transformada em objeto e
antropomorfizada (----), que para Adorno (1985) correspondeu a chamada fase
da dessacralização da natureza.
Neste processo, o protestantismo desempenhou um importante papel e
ao mesmo tempo colaborou com o Iluminismo, pois ao deslegitimar certas
práticas e concepções dogmáticas, como a transubstanciação, viabilizou a
crítica iluminista de que os rituais religiosos, particularmente os católicos,
advinham de antigas religiões tribais europeias, sendo assim, considerados
irracionais, supersticiosos e acima de tudo, escondiam a miséria humana em
prol da aristocracia e da monarquia (TAYLOR, 2014).
Ao mesmo tempo em que protestantismo funcionou como veículo de
propagação do Iluminismo pela Europa, na Alemanha, o mesmo recebeu um
toque especial, pois foi fortemente influenciado pelo luteranismo, sendo
chamado de Aufklärung ou Esclarecimento, o que trouxe importantes
consequências para o desenvolvimento do pensamento filosófico e científico na
Alemanha dos séculos XVIII e XIX (BERLIN, 2009).
A diferença básica entre a Aufklärung alemã e o iluminismo francês é
que a Aufklärung foi fundida a concepção deísta, onde deus continuou a ser
concebido como o criador do universo e sua existência não foi negada ou posta
em questão pelos Aufklärer, enquanto que os iluministas franceses pregavam o
ateísmo (BERLIN, 2009).
A corrente religiosa que predominou na Aufklärung, foi o pietismo1,
corrente que influenciou Gottfried Wilhelm Leibniz, que ao longo de sua vida
intelectual buscou compatibilizar as premissas do mecanicismo cartesiano
com a tese das causas finais, pois Leibniz acreditava que haveria uma
harmonia pré-estabelecida por deus no cosmos (RUSSEL, 2015).
Também Kant recebeu fortes influências do pietismo, pois para ele, o
homem tinha a certeza absoluta da existência de deus, o que tornava relativa a
sua liberdade, mas, ao mesmo tempo, a existência de deus seria uma verdade
que não estaria acessível à razão humana, obrigando com isto o homem agir e
viver de acordo com as regras morais (KANT, ;TAYLOR, 2014)
Para Kant, o objetivo do homem seria alcançar a liberdade radical, este
seria o caminho direcionado pela história. A liberdade absoluta não deveria
ficar restrita ao indivíduo, mas deveria alcançar toda a humanidade. Mas para
que este objetivo fosse alcançado seria necessário a formação de um Estado
cosmopolita livre e universal, que garantisse à todos os indivíduos o exercício
da liberdade.
Kant considerava que apesar do ser humano ser parte do reino animal,
ele carregava consigo algo especial, a sua capacidade racional. A razão
humana tinha um único objetivo, qual seja, a de realizar a sua própria história.

1
O pietismo foi um movimento religioso que surgiu como crítica e oposição ortodoxia luterana. O seu
criador foi Philip Jacob Spener (1635-1705) e enfatizava a conversão pessoal, a santificação, a
experiência religiosa, a diminuição na ênfase aos credos e confissões, a necessidade de renunciar ao
mundo, a fraternidade universal dos crentes e uma abertura à expressão religiosa das emoções.
Para isto, a filosofia transcendental de Kant pressupôs uma separação
entre o sujeito e a realidade, onde a liberdade moral do homem seria ampla e
irrestrita liberdade, sendo possível única e exclusivamente por conta da
ruptura entre o homem e a naturezas.
Para alcançar a liberdade o homem não deveria ser guiado pelos seus
desejos e anseios, mas sim pela sua consciência moral, fruto de suas escolhas
racionais.
[...] A natureza quis que o homem tirasse inteiramente de si
tudo o que ultrapassa a ordenação mecânica de sua existência
animal e que não participasse de nenhuma felicidade ou
perfeição senão daquele que ele proporciona a si mesmo, livre
do instinto, por meio da própria razão [...]. (KANT, 2016, p. 6)

Herder: Teoria da Expressão e Antropologia

Herder foi aluno de Kant em Königsberg entre (1762- 1764) e de


Hamann, que o apresentou que o nascente movimento Sturm und Drang
realizava à cultura da Aufklärung, como a defesa da, através da racionalidade
técnica, a natureza máquina, a não consideração da subjetividade na
construção do conhecimento e a impessoalidade, por exemplo.
Para Zammito (2002), o pensamento de Herder recebeu influência tanto
do Sturm und Drang quando de Kant. Toda a trajetória filosófica de Herder foi
dedicada à crítica da cultura da Aufklärung, sobretudo no que diz respeito à
crença de que a cultura racional do Iluminismo deveria se espalhar por todo o
mundo, criando assim uma cultura e uma história universal livre da interferência
das tradições e das crenças regionais, ideias estas que eram defendidas por
Kant.
Zammito (2002) defende que apesar das rusgas entre Kant foi
preponderante na formação de Herder, para quem a filosofia deveria ser útil,
compreensível e acessível à humanidade e as mais diferentes pessoas. Pois
para Herder a filosofia assim como a ciência Iluminista estavam distantes das
pessoas e da realidade, tornando-se pouco útil à humanidade.
A Antropologia Iluminista da época, nada mais era do que a completa
objetivação do homem tanto em relação à sua subjetividade quanto à vida em
sociedade. Herder criticou esta forma de compreensão da sociedade e do
homem e desenvolveu uma antropologia baseada nas categorias de
expressão. A teoria da expressão desenvolvida por Herder que se tornaria
influente para o movimento romântico e fundamental para o desenvolvimento
do pensamento de Hegel. Para Herder, expressão significava realizar
objetivamente algo que é sentido subjetivamente, neste sentido, a vida humana
seria considerada como resultado de uma expressão, da realização de um
propósito. Na Idade Média, o cosmos era considerado como expressão do
desejo divino, entretanto, seguindo a tradição judaico-cristã, deus seria
independente de sua obra e da materialização do seu desejo. Mas Herder não
compreendia a vida humana desta maneira, uma vez que o desejo e sua
materialização seriam inseparáveis e não podem existir separadamente. Da
mesma maneira que o homem e a natureza, não seriam ideias descritas como
“proposito”, “expressão” e “significado”, como tratados pela racionalidade da
Aufklärung conduzindo assim, à separação entre o significado e o ser.
De acordo com Taylor (2014), pautado na teoria da expressão, Herder
defendeu que cada povo e cada cultura seriam a expressão de sua própria
essência, logo, não seria possível impor à outros povos novas formas de ser e
pensar, ou seja, não seria possível realizar os objetivos da Aufklärung de criar
uma cultura universal pautada na razão, já que cada povo teria sua própria
maneira de entender as coisas, seu próprio conceito de razão, ciência, humano
e natureza, por exemplo E é esta crença na particularidade de cada povo que
conduziu Herder à sua filosofia da História.
Para os adeptos da Aufklärung a evolução da civilização atingiria um
grau tão elevado, que não seria mais necessária a História. Isto, segundo eles,
aconteceria somente quando uma determinada civilização atingisse o mais alto
nível de desenvolvimento técnico e cientifico e não mais haveria opressão
política.
Herder discordava veementemente desta visão de História da Aufklärung
pois segundo ele, tais pensadores não enxergavam os graves problemas de
sua própria época como o aumento da repressão, da belicosidade e o
imperialismo (BEISER, 1994)que vinham a reboque das transformações
materiais e sociais que estavam em curso e que fragmentavam o homem em
sua essência. Segundo Herder a História da humanidade não era progressista
e muito menos linear, tanto que em sua obra Também uma Filosofia da
História para a Formação da Humanidade, propôs uma filosofia da História que
se diferenciasse daquela do iluminismo, pois para Herder, o próprio conceito de
universal era relativo à construção cultural de uma determinada comunidade
(MAH,2007).
Para Zammito (2002) o objetivo da filosofia da história herderiana seria
evidenciar a variedade do comportamento humano, a forma de ser de cada
nação com sua própria concepção de bem-estar, estabelecida de acordo com
suas particularidades culturais e também ambientais.
Na concepção herderniana cada comunidade ou nação se caracterizaria
por possuir uma individualidade cultural e simbólica, com valores morais e
critérios próprios de julgamento; característica que segundo Herder tornava
inviável o julgamento e a análise das culturas a partir de um critério único e
universal como defendido pela Aufklärung (MAH, 2007).

A dialética da História como superação da ruptura entre o homem e a


natureza

De acordo com Taylor (2014), a radicalidade da liberdade moral kantiana


e a teoria da expressão exerceram forte influência na geração dos românticos.
Se de um lado noção de liberdade kantiana era fortemente cativante, por outro,
o seu racionalismo que trazia embutido dentro de si a separação entre o
homem e a natureza era um problema incômodo para os românticos. Pois a
moral kantiana necessariamente implicava no conflito entre os mandamentos
da consciência moral e as inclinações naturais às quais todos os humanos
estariam sujeitos (KANT, 2016).
Como os românticos defendiam o desejo de todos os seres humanos de
alcançarem a harmonia do e com o mundo (grifo nosso) por isso o interesse
desta geração pela Teoria da Expressão. De acordo com Taylor (2014), Fichte,
Schelling e Hegel procuraram unificar a teoria da expressão de Herder com a
liberdade radical kantiana, buscando superar a ruptura imposta pelo próprio
Kant entre o mundo da necessidade e o da liberdade.
valorizando a perspectiva histórica.
Fichte negou a existência de uma realidade que jamais poderia ser
conhecida, como defendia Kant. Para Fichte, isso não seria possível porque a
subjetividade estaria na base de tudo, logo o mundo dos objetos não era
independente da subjetividade, mas posto pelo Eu. Para Fichte, como o ser
humano e a natureza fazem parte de uma mesma subjetividade, é necessário
que todos os desejos e inclinações estejam voltados para objetivos espirituais e
para a comunhão com a natureza.
Como o pensamento de Fichte defendia uma completa união espiritual
com a natureza, ele acabou sendo muito sobre a geração romântico.
Entretanto, o pensamento de Fichte possuía problemas graves, já que na
medida em que o Eu precisa superar o não-Eu para se reunir espiritualmente
consigo mesmo, ele deveria superar a si mesmo, já que o não-Eu é posto pelo
Eu. Ou seja, a busca da liberdade implicaria na anulação da própria
subjetividade que estaria na base de tudo. Isto não seria possível, mesmo por
que a subjetividade precisa de algo que lhe seja exterior para que ela de fato
possa existir enquanto consciência. Só é possível existir consciência em
oposição à um mundo exterior. Quando o próprio Eu postula um não-Eu ele só
poderá superar a oposição mediante o seu próprio desaparecimento, já que é
dele mesmo que surge o conflito.
E, apesar da influência de Fichte, mesmo para a geração romântica ele
se mostrou insatisfatório porque os românticos ansiavam pela comunhão com
uma natureza que fosse externa ao homem (TAYLOR, 2014). De acordo com
Lukács (1976), Schelling se apropria da dialética fichteana do Eu e o
transforma em “um elemento objetivo da estrutura do mundo”. Schelling
procura chegar a um modo superior de conhecimento que garantisse o
conhecimento da realidade objetiva, exterior ao homem. Para Taylor (2014), o
desenvolvimento do pensamento de Schelling é repleto de meandros,
entretanto, em linhas gerais, pode-se dizer que ele partiu de Fichte, aceitando a
ideia de que a subjetividade põe o mundo e complementou esta preposição
através da crença de que esta subjetividade expressa a si mesma na natureza,
portanto a natureza seria expressão do Eu.
Apesar da natureza aparecer como produto inconsciente em Schelling,
ela também tem a tendência para realizar a vida subjetiva. Seria esta tendência
que explicaria a articulação da natureza em níveis variados, incluindo a
existência de objetos inanimados que ao longo do tempo desenvolvem-se até
chegar à natureza orgânica em um nível mais complexo. Assim como a
subjetividade da natureza está em busca do desenvolvimento de sua
consciência de forma cada vez mais plena, assim também a subjetividade
plena almeja se reunir com a natureza da qual ela precisou separar-se como
condição de seu desenvolvimento.
Taylor (2014) nos diz que Schelling parte de Schiller para completar seu
sistema. Para Schiller é através da beleza que a união entre ser humano e
natureza é concretizada, já que através do belo forma e conteúdo se unem de
forma indissociável. Schelling adota a estética enquanto lugar da unidade
recuperada entre liberdade e a natureza.
Apesar do sistema de Schelling ter sido importante para os românticos,
ele também apresentava problemas. Para Fichte, quando o Eu concebe a
natureza enquanto ponto de apoio da busca pela subjetividade, o ser humano,
que é parte da natureza permanece sendo parte do Eu, que o sujeito último.
Contudo na filosofia de Schelling isso não acontece, a natureza surge enquanto
expressão do sujeito cósmico o que conduz à concepção panteísta do
universo. Esta visão limita a importância do ser humano na história da
natureza, ele torna-se apenas uma parte muito pequena da expressão do
espírito cósmico. Mas, de acordo com Taylor (2014), não se trata simplesmente
de panteísmo, na verdade trata-se de conceber o ser humano como
microcosmo. O ser humano não seria apenas uma parte do universo, mas ele
refletiria as relações que acontecem no todo.
É graças a Schelling que Hegel passa a voltar sua atenção para as
questões da natureza, entretanto Lukács (1963) acredita que o idealismo de
Hegel não pode ser confundido com uma simples continuação do pensamento
do Schelling, já que ele nasce da crítica de Hegel à Schelling. Para Lukács
(1963) as divergências entre os dois se acentua pelas diferentes posturas que
irão assumir diante dos eventos franceses no final do século XVIII. Schelling
assume uma postura de crítica ao Iluminismo, enquanto Hegel ataca o
misticismo romântico. A princípio há uma divergência em relação ao método, já
que Schelling acredita que a intuição seria o modo de conhecimento do
absoluto, tendo a arte e a religião como as principais formas de conhecimento
(LUKÁCS, 1963). Hegel entende a postura de Schelling como irracionalista e
discorda da forma como seu pensamento se afasta da razão.
Hegel, discorda da razão absoluta de Schelling. Para Hegel seria
despropositado conceber uma razão livre de qualquer contradição. A razão
para Hegel seria uma relação entre identidade e diferenças produzidas dentro
da própria identidade, e não apenas identidade como aparece em Schelling
com a razão absoluta em que os opostos possuem a mesma raiz ontológica.
Para Hegel, são as oposições inerentes à razão a força que movem a História.
No prefácio da Fenomenologia do Espírito, Hegel se refere à filosofia de
Schelling como a “noite em que todas as vacas são pardas” em virtude da
incapacidade deste sistema em compreender a as necessidades do absoluto
pôr-se a si mesmo através do conflito e das contradições existentes entre as
partes (BORGES, 1998). As críticas de Hegel se extendem ao movimento
romântico que haviam se identificado com a filosofia da natureza de Schelling,
acusando-os de realizarem uma crítica superficial quando negavam que apesar
das contradições, o razão havia trazidos avanços para a humanidade. Hegel
defendeu que a ruptura da harmonia entre o ser humano e a natureza, à qual
os românticos buscavam retornar, teria sido condição necessária para o
desenvolvimento da racionalidade humana. O desenvolvimento da
racionalidade humana seria imprescindível para que história da humanidade
pudesse caminhar rumo à reconciliação desta ruptura.
Assim como Kant, Hegel acreditava que os seres humanos eram
especiais em comparação ao restante da natureza por sua capacidade de
desenvolverem a capacidade racional. Contudo, apesar de estar de acordo
com Kant em diversos aspectos, Hegel não compartilhava da crença kantiana
na incognoscibilidade da coisa-em-si, defendida pela filosofia transcendental.
Isso não seria viável, uma vez que o Espírito Cósmico que põe o mundo almeja
alcançar a mais plena consciência-de-si, de forma que não pode existir nada
que não deva ser revelado ao Espírito na busca de alcançar determinado
estágio de consciência.
Esta busca da consciência-de-si pelo Espírito também atinge a cada um
dos seres humanos em sua individualidade. É a busca da consciência de si que
leva o indivíduo a se distinguir de sua tribo ou comunidade colocando-se em
conflito com o grupo. Para ser livre, o ser humano deve ser seu próprio senhor
e não estar subordinado a algo que lhe seja externo, entretanto o homem
necessita da ajuda de sua comunidade para sobreviver. Logo, a consciência-
de-si não pode ser alcança no nível da individualidade, ela precisa ser
compartilhada por uma sociedade e cultura que a alimente e desenvolva
instituições que a garantam e a protejam dos interesses individuais.
Assim como o indivíduo faz parte de uma sociedade e necessita desta
sociedade em seu processo de busca pela liberdade, assim também a sua
cultura está inserida em um conjunto mais amplo, o da humanidade e o da
totalidade da natureza, onde o contato com a alteridade é ao mesmo tempo
empecilho e meio na busca da liberdade.
Existe ainda uma outra oposição apontada por Hegel, a oposição entre
os espíritos finitos e a sua participação na vida infinita. O mundo é posto por
estas oposições. As oposições entre indivíduo e sociedade, entre espírito finito
e espírito infinito, entre natureza e liberdade. De acordo com Taylor (2014), a
busca da filosofia é superar estas oposições sem, contudo, abrir mão dos frutos
desta oposição, ou seja, o desenvolvimento da racionalidade e da liberdade. É
preciso reter estes frutos alcançados com a avanço da racionalidade e ainda
assim caminhar no sentido de conquistar aquilo que almeja o ser humano, o
retorno da comunhão com a natureza. A superação das oposições só pode ser
alcançada pela dialética.
Hegel se apoiou na Teoria da Expressão para desenvolver seu sistema.
Quando Hegel aborda o espírito infinito, este espírito infinito se associa a ideia
cristã de Deus. Contudo, diferente do Deus cristão que é o criador de todas as
coisas que existem, Hegel não pode conceber que o Espírito que põe o mundo
pudesse existir antes de sua criação. Na verdade, a criação é expressão do
Espírito e ambos estão dissociados. De acordo com Taylor (2014), ao se
apoiar na Teoria da Expressão o ser humano deixa de ser concebido por Hegel
como um animal capaz de se dissociar de sua capacidade racional, assim
como em Kant. Para Hegel, o ser humano é uma totalidade, onde seus desejos
e sua consciência são expressões de sua subjetividade.
O sujeito racional só pode existir através de sua corporificação, contudo
esta corporificação o arrasta para as inclinações naturais. Logo, a razão luta
contra os problemas desta corporificação sem a qual ela não poderia viver.
Para Hegel o sujeito racional, ou seja, o ser humano, não possui apenas as
demandas de sua corporificação mas ele também possui a tendência de buscar
a racionalidade e a liberdade, por que ele também é um ser teleológico
(BORGES, 1998).
Apesar do ser humano carregar a divisão que o conduz a busca tanto da
razão quanto da liberdade, esta contradição não é eterna, como em Kant
(2016). De acordo com Borges (1998), a natureza conseguiu superar seu
estado selvagem através da razão, e é a razão que revela à consciência que
este conflito com a natureza faz parte de um plano racional onde a divisão se
faz necessária para preparar o ser humano para um nível de união mais
elevada com a natureza da qual ele se apartou. Ao compreender isso, o ser
humano já não se sente em oposição à natureza, mas se reconhece enquanto
parte de um plano maior que abrange natureza e ser humano em uma coisa só.
De acordo com Taylor (2014), assim como Kant e Fichte, Hegel opõe
sujeito e objeto. É por isso que para Fichte o Eu põe o não-Eu, por que essa é
a condição da consciência. A consciência necessita desta separação, pois ela
só pode ocorrer em oposição a um objeto, por algo que seja diferente do que
ele é. Como a consciência necessita de oposição ela necessita de algo que
esteja fora dela, logo a consciência só é possível em coisas que são finitas, por
que somente o finito é capaz de possuir oposição. É por isso que o espírito
cósmico necessita de espíritos que sejam finitos. Um Espírito cósmico infinito,
consciente de si mesmo seria algo impossível, uma vez que sendo infinito ele
englobaria a tudo, não conhecendo oposição.
É importante também que exista uma multiplicidade de seres vivos
finitos, bem como a natureza inanimada, isso porque os seres vivos necessitam
do intercâmbio com outras espécies, por esta necessidade do constante
contanto com a exterioridade.
Hegel defendia que através de seu sistema é possível comprovar que o
mundo é posto pelo Espírito porque somente através do argumento dialético
seria possível conhecer a realidade já que todas as coisas no mundo guardam
contradições. Por serem contraditórias as coisas não poderiam existir por si
mesmas, mas apenas como parte de uma realidade maior (TAYLOR, 2014).

Die Erdkunde como a razão capaz de abarcar a totalidade da superfície


terrestre

No pensamento Idealista, tanto em Hegel como em Kant, está posta


uma filosofia da história teleológica. A história da humanidade trata-se de um
processo passível de ser compreendido e interpretado pela razão e, mais do
que isso, este processo revela-se como sendo a própria história do
desenvolvimento da capacidade racional humana. A necessário que a razão se
torne universal, sendo também necessário que neste processo as culturas mais
frágeis sejam englobadas por aquelas culturas com maior predomínio de
técnicas e o maior desenvolvimento de uma ciência racional.
A questão principal do argumento de Hegel contra Kant é a de que o
conhecimento não poderia ser inatingível, na medida em que tudo o que existe
é parte de uma realidade única, ou seja, tudo é expressão da existência do
Espírito cósmico infinito. A fim de alcançar o conhecimento de si mesmo, este
Espírito cósmico necessita criar a exterioridade de si mesmo, a fim de ser
capaz de desenvolver a plena consciência-de-si.
A necessidade de alteridade não se mantém apenas na relação
existente entre natureza e sociedade, mas também entre os indivíduos finitos
que são os veículos do Espírito. O mesmo se pode dizer das diferentes
culturas, cuja tensão presente elas é primordial para o desenvolvimento do
processo histórico que se dá através da dialética. Neste sentido a variedade
cultural de formas de vida no globo é necessária e útil.
A partir de Herder, Hegel acreditava que tudo o que existe no universo é
expressão do espirito cósmico. Esta visão guarda proximidade com o
pensamento de Ritter que pretendia ver a natureza como forma de se chegar
até a vontade divina. Desta forma, Ritter também concebia a natureza como
presença divina.
O pensamento de Herder é também bastante presente em Ritter, na
medida em que o geógrafo não deixa de valorizar as mais variadas formas de
relação das sociedades com a natureza e mantém uma visão da relação entre
as sociedades e a natureza que não se expressa em dominação, mas sim,
trata-se de uma relação de dependência mútua. Ritter acredita que existe uma
harmonia na criação, e o avanço da ciência e o desenvolvimento das
sociedades também é contemplado por esta harmonia. A história se desenrola
como expressão da vontade divina.
A questão primordial de Ritter é que a geografia se insira justamente na
dialética da relação entre natureza e sociedade. A preocupação com a
organização do conhecimento geográfico produzido de forma até então não
sistematizada, tem em Ritter uma proposta que se orienta pelo movimento
histórico do desenvolvimento das civilizações, e esta relação é posta pelo
conflito que emerge da oposição entre sociedade e natureza que se manifesta
na constante transformação do meio pelo homem. Contudo, em última
instância, não existem oposições já que tudo esta permeado pela divina
providência que rege a história humana.
A leitura da obra de Ritter e a forma como ele pretende propor o estudo
geográfico da superfície terrestre em sua Erdkunde, reflete, por sua vez, uma
dialética que se desenrola no espaço. As marcas do desenvolvimento histórico
estão expressas na superfície da terra através do uso que cada povo faz da
natureza que o rodeia, e através das marcas que os mais diferentes povos
imprimem ao ambiente. A superfície da Terra é expressão das mais diferentes
culturas, assim como as mais diversas formas culturais são expressões da
multiplicidade de relevos, climas e vegetação. Enquanto organismo vivo, a
natureza inanimada também se expressa na história na humana deixando sua
marca. Para compreender este organismo, é preciso desenvolver a razão e a
ciência, entretanto esta ciência não pode limitar-se a análise atomista de cada
povo e de cada cultura. Portanto, a ciência geográfica não deve limitar-se à
enumeração e descrição das formas terrestres, mas ela deve buscar a relação
intrínseca entre estes fenômenos enquanto partes da grande totalidade viva
que é o planeta Terra (RITTER, 1865). É esta a tarefa que se propõe a
Erdkunde de Carl Ritter.
Agradecimentos

À Capes

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