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Renegado

(Renegade)
DIANA PALMER

O chefe de polícia Cash Grier leva a sério sua missão: manter a lei e a ordem nas ruas de
Jacobsville, mesmo que para isso tenha de enfrentar políticos influentes e corruptos.
Desde cedo, Cash teve de aprender que nada, nem ninguém, deve ser avaliado apenas pela
aparência. E quando se trata da encantadora Tippy Moore, o cuidado é redobrado.
Apesar da vida glamourosa como modelo e atriz, Tippy tem traumas profundos, além de ser
insegura em relação aos homens.
Quando Cash começa a acreditar que Tippy pode ser a mulher com que sempre sonhou, um
terrível acontecimento o torna novamente um homem descrente e amargo. Mas ele é desafiado pelo
destino para reavaliar seus sentimentos... e salvar o verdadeiro amor de sua vida!

Digitalização: Mariana N.
Revisão: Carmita
Com enredo inteligente, muita ação e personagens inesquecíveis, Diana Palmer
hipnotiza os leitores ao contar uma história que captura a essência do romance, por meio
de diálogos inteligentes, personagens fascinantes e fortes emoções.

Tradução: Cristina Vaz de Carvalho

HARLEQUIN
BOOKS™

Rio de Janeiro 2006

Uma das dez maiores escritoras de romances dos Estados Unidos, ao lado de Danielle
Steel e Barbara Delisnky, Diana Palmer tem o dom de contar histórias sensuais cheias de
charme e bom humor - sua marca registrada. Com mais de 95 romances publicados em
todo o mundo e fãs-clubes espalhados em diversos países, Diana com frequência recebe
prêmios pelo expressivo número de vendas de seus livros ou pelo conjunto de sua obra.
Atualmente, a autora mora com a família na cidade de Cornelia, estado da Georgia.

"Ninguém se compara a Diana Palmer quando o assunto é servir um romance puro e sem
gelo. Adoro essas histórias."
Javne Ann Krentz, autora best seller do New York Times

"Ninguém faz melhor."


Linda Howard

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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Palmer, Diana
P198r Renegado / Diana Palmer; tradução de Cristina Vaz de Carvalho - Rio de
Janeiro: HR, 2006. 336p.

Tradução de: Renegade


ISBN 85-7687-213-7

1. Romance americano. I. Carvalho, Cristina Vaz de. II. Título.

CDD - 813
06-3028 CDU - 821.111(73)-3

Título original norte-americano RENEGADE


Copyright © 2004 by Diana Palmer
Criação de capa: Folio Design
Editoração eletrônica: Abreu's System Ltda.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, sem


autorização prévia por escrito da editora, sejam quais forem os meios empregados.
Todos os personagens neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas
ou mortas é mera coincidência.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa cedidos pela Harlequin


Enterprises II B.V. para

EDITORA HR LTDA.
Rua Argentina 171, parte, São Cristóvão
Rio de Janeiro, RJ - 20921-380
Impresso no Brasil

ISBN 85-7687-213-7
Visite nosso site: www.harlequinbooks.com.br

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Capítulo Um

Era preguiçosa, aquela manhã de segunda-feira. Não acontecia muita coisa na


Delegacia de Polícia de Jacobsville, no Texas. Três guardas fardados tomavam café à
mesa de refeições da sala de espera. Um delegado passara por lá para entregar um
documento. Um cidadão preenchia a queixa contra um acusado, trazido naquele
momento por um dos guardas. A secretária, que geralmente ficava na recepção, não
estava.
— Isso mesmo. Isso mesmo! Eu não devia trabalhar aqui. Há vagas lá no
supermercado Poupa Muito. Vou lá agora mesmo me inscrever.
As cabeças voltaram-se para a cena pouco comum da secretária do chefe de
polícia gritando a plenos pulmões. Ouviu-se uma resposta rápida e abafada e, em
seguida, o som de metal caindo no chão. Com barulho.
Uma adolescente furiosa, de cabelo espetado, saia curta e blusa recortada e
salpicada de brilhos, entrou no saguão batendo o pé, os olhos faiscando, os brincos
enormes tilintando como alarmes. Os homens fardados rapidamente abriram caminho. Ela
foi até a mesa de trabalho, apanhou a bolsa estufada por estar cheia e dirigiu-se para a
porta da frente.
Um homem alto, bonitão, fardado como chefe de polícia, entrou no saguão no
exato momento em que ela chegou à porta. Ele tinha o cabelo e as roupas cheios de pó
de café, restos de fita adesiva e dois Post-it, além de um lenço de papel em cima do
sapato preto, grande e muito bem engraxado. Havia outro Post-it pendurado no rabo-de-
cavalo.
— Será que eu falei alguma coisa? — Cash Grier pensou alto.
A adolescente, cujo batom era negro, igual ao esmalte das unhas, resmungou por
entre os dentes e passou pela porta de vidro, batendo-a atrás de si.
Os guardas fardados tentaram, com esforço, não rir. Em muitos, aquilo soou como
uma tosse reprimida. O homem que preenchia o formulário de queixa quase engasgou.
Cash encarou-os.
— Podem deixar. Podem rir. Arrumo outra secretária na hora que eu quiser!
Judd Dunn, o subchefe, dava gargalhadas apoiado no balcão, piscando os olhos
negros.
— Já é a segunda, depois que você foi nomeado.
— Trabalhava num supermercado, antes de vir para cá — murmurou Cash,
retirando as coisas grudadas e o café da farda impecável. — Só arranjou esse emprego
por causa do tio dela, Ben Brady, que é o prefeito em exercício, e me falou que eu nunca
iria arrumar verba para os coletes à prova de bala se não desse o emprego para ela. — O
chefe de polícia deu um suspiro de irritação. — Sujeito estranho. Não teria assumido se o
prefeito Jack Herman não tivesse sofrido o ataque cardíaco e precisasse diminuir o ritmo
de trabalho. Tenho de agüentar esse Brady até maio, quando convocam as eleições para
eleger o substituto de Herman.
Judd ouvia, sem comentários, Cash, de cara fechada, continuar o discurso.
— A eleição municipal não vem tão cedo, como eu gostaria — Cash rosnou. —
Brady fica me enchendo com esses casos de entorpecentes e não quer saber das idéias
que eu tenho para as melhorias aqui na delegacia. Dizem que Eddie Cane vai sair
candidato a prefeito para concorrer com ele.
— Foi o melhor prefeito que já tivemos, acho que ele vai ganhar — disse Judd.

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— Problema é termos de esperar até maio para votar para Brady sair. — Cash
desequilibrou-se ao tirar o Post-it do rabo-de-cavalo. — Se ele indicar outra secretária
para o lugar dessa, eu entrego o cargo.
— Vai ter de encontrar outra, e logo, antes que ele apareça com uma candidata —
Judd arriscou. — Duvido que alguém no seu juízo perfeito vá querer trabalhar para você.
— Boto um anúncio no jornal e vai chover mulheres aqui, brigando pela
oportunidade de ficar na mesma sala que eu! — Cash gabou-se.
— Acho melhor você sair um pouco para se acalmar — Judd recomendou. —
Daqui a pouco vem o feriado de Natal. — Encarou Cash intencionalmente. — Poderia
fazer uma viagem.
Cash ergueu uma sobrancelha.
— Já viajei no mês passado com você, para aquela estréia de filme em Nova York.
— Tippy falou que você podia voltar quando quisesse — Judd lembrou, com um
sorriso perverso, referindo-se à modelo Tippy Moore que virou atriz. — O irmão dela, o
mais novo, gostou de você. Ele deve estar em casa no feriado, de licença do colégio
militar.
Cash relutava em fazer a viagem. A modelo de fato ficara mais próxima a partir do
momento em que ele tomou consciência de que não era a mulher fútil, a aventureira que
pensara. A vulnerabilidade dela o atraíra muito mais do que a paquera ostensiva.
— Acho que eu podia ligar para ela e perguntar se o convite ainda está de pé —
disse ele.
— Isso mesmo — retrucou Judd, batendo no ombro do outro. — Você pode pegar
o próximo vôo e eu me sento na sua mesa e viro chefe!
Cash ficou desconfiado.
— Isso tem alguma coisa a ver com aquele carro de patrulha que você está
tentando me convencer? O conselho municipal tem reunião na semana que vem...
— Vão adiar por causa do feriado — Judd garantiu. — Eu nunca ia tentar
convencer o conselho municipal sobre o carro de patrulha se você não quisesse.
Sinceramente.
Cash não acreditou no brilho passageiro daquele sorriso. Judd era como ele.
Raramente sorria, a menos que estivesse zangado ou tramando algo.
— Muito menos contratar uma secretária antes de você voltar — Judd acrescentou,
sem olhar Cash nos olhos.
— Ah, é isso — disse Cash imediatamente. — É isso. Você já tem uma pessoa. Vai
me apunhalar com uma coronel do Exército reformada, ou outra teórica da conspiração,
como a secretária que tínhamos quando meu primo Chet Blake era o chefe?
— Não conheço mercenárias desempregadas — disse Judd em tom inocente.
— Nem aposentadas?
Encolheu os ombros.
— Uma ou duas. Eb Scott tem uma prima...
— Não!
— Você nem foi apresentado...
— E nem vou ser! Eu sou o chefe. Entendeu? — Apontou para o distintivo. —
Minha batalha é contra o crime. Não contra as velhas!
— Ela não é velha. Não muito.
— Se você contratar alguém antes de eu voltar, eu o demito no instante em que o
avião aterrissar! Aliás, não vou sair da cidade! — Cash ameaçou.
Judd deu de ombros.
— Como quiser. — Observou as unhas limpas. — Ouvi falar que a irmã do diretor
de planejamento elogiou você. Ela pode pedir uma indicação ao prefeito em exercício.
Cash sentiu-se acuado. O diretor de planejamento, homem agradável e educado,
tinha uma irmã querida que também estava interessada em Cash. Tinha 36 anos, era

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divorciada duas vezes, usava blusas transparentes e estava com 50 quilos acima do
peso. O diretor de planejamento a idolatrava. Ele era também o melhor dentista da
redondeza. Mesmo um especialista em operações especiais, como Cash, não conseguia
lidar com tanta pressão em uma cidade pequena.
— Quando a coronel pretende começar? — Cash indagou com os lábios
semicerrados.
Judd estourou em uma gargalhada.
— Não conheço coronéis que queiram trabalhar para você, mas vou ficar de olhos
bem abertos... — Desviou-se a tempo de um pontapé. — Ei, sou guarda! Se me agredir, é
falta grave!
— É nada — murmurou Cash, virou as costas e dirigiu-se para sua sala. —
Legítima defesa.
— Meus advogados vão entrar em contato com você — Judd gritou atrás dele.
Cash levantou a mão e fez um gesto obsceno.

Todavia, quando voltou à segurança do escritório, com a lata de lixo vazia e no


lugar, o chão limpo, pensou no que Judd dissera. Talvez houvesse um ligeiro atraso.
Alguns dias de folga o teriam deixado menos... irritável. Os dois filhinhos de Judd e Crissy
o lembravam, dolorosamente, da vida que perdera.
Além disso, Tippy Moore tinha um irmão de nove anos, chamado Rory, que
idolatrava Cash. Já fazia muito tempo que ninguém lhe demonstrava consideração.
Estava acostumado à curiosidade, ao respeito, até ao medo. Principalmente ao medo. O
menino não tinha nenhuma figura masculina na vida, a não ser os amigos do colégio
militar. O que custava passar um pouco de tempo com ele? Afinal, não precisava contar a
eles a história da sua vida. Vacilou, pensando no único momento honesto de seu
passado.
Sentou-se à mesa e pegou um pequeno caderno de endereços no bolso. Havia
nele um número de telefone de Nova York. Apanhou o celular e teclou.
Tocou duas vezes. Três. Quatro. Sentiu uma decepção amarga. Ia desligar. De
repente, uma voz quente, suave, estava na linha.
— Residência dos Moore — sussurrou a voz. — No momento não posso atender.
Por favor, deixe seu recado e o número do seu telefone. Ligo de volta assim que puder.
Soou um sinal.
— Aqui é Cash Grier — disse ele.
Começou a ditar o número quando uma voz ofegante atendeu:
— Cash!
Riu baixinho para si mesmo. Percebeu que ela mergulhara no telefone antes que
desligasse. Sentiu-se lisonjeado.
— Sim, sou eu. Olá, Tippy.
— Como vai? — perguntou. — Ainda está em Jacobsville?
— Ainda aqui. Só que agora sou chefe de polícia. Judd deixou a Polícia Estadual
do Texas, os Texas Rangers, e está trabalhando comigo, é o subchefe — acrescentou
com relutância.
Tippy tivera um caso com Judd, da mesma forma que ele, certa vez, tivera um caso
com a mulher de Judd, Christabel.
— Quantas mudanças — ela suspirou. — E como vai Christabel?
— Muito feliz — respondeu. — Ela e Judd tiveram gêmeos.
— É, eu soube deles no Dia de Ação de Graças — ela confessou. — Uma menina
e um menino, não é?
— Jared e Jessamina — disse ele, sorrindo.

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Os gêmeos cativaram o coração do padrinho no minuto em que pôs os olhos neles,
ainda no hospital. É claro que Jessamina era a preferida de Cash, e ele não fazia segredo
disso.
— Jessamina é uma bonequinha. A cabeça cheia de cabelos bem pretos e de
olhos azul-escuros. Isso vai mudar, é claro.
— E como é Jared? — ela sondou, divertida com o encantamento dele pela
menina.
— Parece com o pai — replicou Cash. — Jared pode ser deles, mas Jessamina é
minha. Já falei com eles. Mais de uma vez. — Ele suspirou. — Mas não adianta, é claro,
não vão dá-la para mim.
Ela deu uma risada. Era como o som de sinos de prata em uma noite de verão. A
voz era uma de suas grandes qualidades.
— Como vai você?
— Estou trabalhando em mais um filme — disse ela. — Suspendemos as filmagens
para que todos pudessem passar o Natal com a família. Estou bem. Tem muito esforço
físico no filme, e eu estou fora de forma. Vou ter de me esforçar para parecer mais
atlética.
— Que tipo de esforço físico? — Ele quis saber.
— Dar cambalhota, pular do trampolim, cair de lugares altos, artes marciais, esse
tipo de coisa — disse ela, em tom cansado. — Estou cheia de hematomas. Rory vai ter
um ataque quando me vir. Ele diz que não vou conseguir nada, pegando pesado na
minha idade.
— Na sua idade? — perguntou ele, pois sabia que tinha apenas 26 anos.
— Já estou velha — disse ela. — Você não sabia? Desse ponto de vista, eu devia
estar andando de bengala!
— Imagine eu — resmungou ele, percebendo em silêncio que era 12 anos mais
velho do que ela. — Ele vem para casa no Natal?
— Claro. Vem para casa todo feriado. Moro num lugar muito gostoso aqui, perto da
rua Cinco, em Low East Village, perto de uma livraria e uma cafeteria. É muito agradável,
para uma cidade grande.
— Gosto de um pouco mais de espaço.
— Você pode tê-lo aqui. — Ela hesitou. — Está com algum problema?
Ele estranhou.
— O que você quer dizer?
— Precisa que eu faça alguma coisa para você? — ela insistiu.
Ele nunca recebera um oferecimento. Não sabia como prosseguir com esse tipo de
diálogo.
— Tudo bem comigo — Cash resumiu.
— Então, por que você ligou...?
— Não foi porque eu quisesse alguma coisa — ele retrucou, em tom mais áspero
do que pretendia. — Não pensou que eu pudesse ligar só para saber como você está?
— Não mesmo — ela admitiu. — Não tive uma boa impressão do pessoal de
Jacobsville, quando fomos filmar aí. Principalmente de você.
— Isso foi antes de Christabel levar o tiro — Cash lembrou-a. — Você me fez
mudar de idéia numa fração de segundo, quando tirou aquele suéter caro que estava
usando, sem pensar duas vezes, e fez pressão com ele no ferimento. Conquistou muitos
amigos naquele dia.
— Obrigada — disse ela, com timidez.
— Escute, eu pensei em passar uns dias em Nova York, antes do Natal — disse
ele. — Está de pé aquela proposta? Eu podia levar você e Rory para passear pela cidade.
Pôde ouvir a agitação na voz dela:
— Uau! Rory ia adorar.

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— Ele está aí?
— Não. Tenho que tomar o trem para Maryland e apanhá-lo no colégio. Eles não o
liberam sem a assinatura do responsável. Resolvemos desse jeito para minha mãe parar
de usá-lo para me extorquir dinheiro. — Ela falava com amargura. — Ela sabe que ganho
bem e quer uma parte. Ela e o namorado fariam qualquer coisa para pôr a mão no
dinheiro para gastar com drogas.
— O que acha de eu apanhá-lo e levá-lo para Nova York para você?
Ela hesitou.
— Você... faria isso?
— Claro.Tiro uma cópia da minha carteira de identidade e passo por fax para o
colégio. Você liga para eles e confirma quem sou eu. Rory vai me reconhecer.
— Seria a maior emoção da vida dele — ela confessou. — Não fala em outra coisa
desde que vocês se encontraram na estréia do meu filme, no mês passado.
— Também gostei dele. Ele é honesto.
— Ensinei a ele que a honestidade era a parte mais importante do caráter — disse
ela. — Já fui tão enganada na minha vida, que é a coisa que eu mais valorizo — Tippy
acrescentou calmamente.
— Sei como você se sente. Bem, eu pretendia sair daqui no dia 19. Diga-me como
chegar ao colégio militar — ele acrescentou —, o endereço do seu apartamento e a hora
que devemos chegar. Eu faço o resto!

Judd ficou muito animado com o entusiasmo e a mudança de humor de Cash,


depois que o amigo mais velho falou com Tippy.
— Você não sorriu muito nos últimos dias — disse Judd. — É bom ver que agora
se lembrou como é.
— O irmão de Tippy está no colégio militar — disse Cash. — Vou apanhá-lo no
caminho e levá-lo para lá.
— Seu caminhão consegue chegar a Nova York? — Judd falou em tom de
reprovação, referindo-se à grande caminhonete preta que Cash dirigia pela cidade.
Era bonita — barata — e um pouco usada.
Cash pareceu hesitar, de modo estranho.
— Eu tenho um carro — disse ele. — Está numa garagem de Houston. Não o dirijo
muito, mas faço manutenção. Serve para as emergências.
— Agora eu fiquei curioso — disse Judd.— Que tipo de carro?
— É só um carro — respondeu Cash, encolhendo os ombros, envergonhado
demais para contar a Judd que tipo de carro era, na verdade. Nunca falava sobre sua
situação financeira. — Nada de último tipo. Escute, tem certeza de que você vai dar conta
do serviço enquanto eu estiver fora?
— Já fui um Texas Ranger.
Cash sorriu fazendo careta.
— É, mas aqui é serviço pesado.
Saiu dali a tempo de evitar o troco.
— Espere só — Judd ameaçou, revirando os olhos. — Vou contratar a secretária
mais horrorosa deste lado do rio Brazos!
— Você é bem capaz disso — Cash suspirou. — Bem, pelo menos me arranje uma
que não seja tão folgada, pode ser?
— Por que foi mesmo que ela se demitiu?
Cash tornou a suspirar.
— A roqueira punk ficou ofendida por eu não dar autorização para mexer no meu
arquivo. Não queria contar para ela que o meu filhote de píton está guardado ali
temporariamente, então falei que tinha material confidencial sobre discos voadores lá

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dentro.
— Foi aí que ela derrubou a lata de lixo na sua cabeça — Judd concluiu.
Cash balançou a cabeça.
— Não, isso foi depois. Eu falei que o arquivo ficava trancado por um bom motivo,
e que era melhor ela não chegar perto. E saí para falar com um guarda. Quando saí, ela
pegou uma lixa de unhas, dessas de metal, e forçou a fechadura. Mikey, o píton, tinha
escapulido da gaiola e estava em cima das pastas, quando ela puxou a gaveta. Berrou
como uma condenada. Quando corri para ver o que estava acontecendo, ela jogou as
algemas em mim! E me acusou de botar uma armadilha no arquivo só para ela fazer
papel de idiota.
— Isso explica o berro que ouvi — Judd concordou. — Eu lhe falei que não era boa
idéia guardar a gaiola de Mikey dentro do arquivo.
— Era só por um tempo. Bill Harris me deu de manhã e eu não tive tempo de levar
para casa. Deixei lá até o final do expediente, para não meter medo nas pessoas que
entram no meu escritório. Com certeza, vou levá-lo para casa hoje à tarde — disse ele
com indignação —, para não ficar mais traumatizado do que já está!
— A sobrinha do prefeito em exercício tem medo de cobras. Imagine só — Judd
meditou.
— Não é preciso muita imaginação — Cash foi obrigado a concordar.
— Você não deu motivo para nos processar, espero — o amigo insistiu.
Cash sacudiu a cabeça.
— Só disse que o pai de Mikey estava no outro arquivo e perguntei se ela gostaria
de conhecê-lo. Foi aí que ela se demitiu.
Sorriu, satisfeito.
— Se você demitir alguém, o município tem que pagar o seguro-desemprego. Se
pedirem demissão, não precisa. Então, eu a ajudei a pedir demissão de livre e
espontânea vontade — ele acrescentou fazendo careta.
— Que cafajeste — disse Judd, prendendo o riso.
— Não foi por minha culpa. Ela era muito oferecida. Achava que se foi o tio quem
arranjou o emprego para ela, podia levantar a blusa e mostrar os peitos e me seduzir —
ele afirmou com irritação. Franziu a testa. — Quem sabe eu dou queixa por assédio
sexual?
— Ah, ia se dar muito bem com Ben Brady — disse Judd, zombando dele.
— Estou farto de ser caçado na minha mesa pelas secretárias.
— Elas são assistentes administrativos — Judd corrigiu. — E não secretárias.
— Ora, dá um tempo!
— É por isso que quero que vá para Nova York.
— Tenho um bicho de estimação para cuidar — Cash protestou.
— Pode deixar Mikey com Billl Harris de novo, antes de viajar. Ele não vai se
incomodar de cuidar do seu bebê enquanto estiver fora. Você precisa de uma folga.
Sinceramente.
Cash engoliu em seco e pôs as mãos grandes no bolso.
— Desta vez, eu concordo com você. — Ele hesitou. — Se o tio dela ligar
perguntando por que ela saiu...
— Não digo uma palavra sobre a cobra. Só vou dizer que você está com
problemas mentais porque é perseguido dia e noite pelos alienígenas — disse Judd com
condescendência.
Cash fuzilou-o com o olhar e voltou ao trabalho.

No final do dia seguinte, Cash apresentou-se no escritório do comandante da


Cannae Military Academy, em Annapolis, estado de Maryland. O nome do colégio era

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inusitado, pois lembrava a gigantesca derrota da poderosa Roma para o guerrilheiro
cartaginense Aníbal.
O comandante, Gareth Marist, era conhecido dele. Serviram juntos, anos antes,
durante a Operação Tempestade no Deserto, no Iraque.
Deram um aperto de mãos como irmãos, que de fato eram, no íntimo. Poucos
homens já passaram o que aqueles dois haviam passado, quando foram para trás das
linhas inimigas. Gareth escapara. Cash, não.
— Rory me falou muito de você — disse Gareth —, sem eu saber quem era. Sente-
se aqui! Que bom ver você outra vez. Está trabalhando na polícia, não é?
Cash concordou com um aceno de cabeça, deixando-se cair com elegância em
uma cadeira em frente à mesa do homem fardado que tinha mais ou menos a sua idade,
porém era mais alto e com uma calvície despontando.
— Sou chefe de polícia em uma cidade pequena, no Texas.
— É difícil deixar a vida militar — disse-lhe Gareth. — Eu não consegui. Então,
arranjei uma indicação para cá, o que foi ótimo para mim. Gosto de formar os soldados do
futuro. Falando nisso, o jovem Rory tem um bom potencial — ele acrescentou. — É muito
inteligente e não tem medo dos rapazes com o dobro do tamanho dele. Nem os valentões
mexem com ele. — Deu uma risadinha.
Cash sorriu com uma careta.
— Não tem medo de dizer o que pensa, isso eu garanto.
— E a irmã dele — disse Gareth, com um longo assovio. — Se eu não fosse um
homem bem casado, com dois lindos filhos, rastejava de joelhos atrás de Tippy Moore.
Ela é linda mesmo e ama esse garoto — disse ele, espontaneamente. — Quando o trouxe
aqui pela primeira vez, estava morta de medo. Tinha tido problemas com a mãe dela, mas
ficou firme. Mostrou-me os papéis que davam a ela ampla custódia sobre o garoto e fez
questão de que soubéssemos que não era para deixar a mãe pôr as mãos nele. Nem o
que se dizia ser o pai. — Ele observou o outro cuidadosamente. — Não sei se você sabe
por quê.
— Pode ser — respondeu Cash —, mas eu não conto segredos.
— Eu me lembro — Gareth replicou e deu um sorriso implacável. — Você não caiu
nem sob tortura. Eu só conheci um outro sujeito que conseguiu isso, e era do SAE, o
Serviço Aéreo Especial britânico.
— Estava lá comigo — disse Cash. — Um cara da pesada. Voltou direto para a
unidade dele, depois que fugimos, como se nada tivesse acontecido.
— E você também.
Cash não gostava de falar nisso. Mudou de assunto.
— Como vai indo Rory, em termos acadêmicos?
— Muito bem. Está entre os dez por cento melhores da turma — disse Gareth. —
Ele é oficial, também. — Ele sorriu. — A gente sempre pode apontar quem tem
capacidade de liderança. Aparece cedo.
— Aparece mesmo. — Ergueu a cabeça. — Nenhum problema financeiro para
mantê-lo aqui? — ele concluiu.
O comandante suspirou.
— Neste momento, não — disse ele. — Apesar de a renda de Tippy ser variável,
você compreende. Tivemos que esticar os prazos de pagamento algumas vezes...
— Se houver outras vezes, você poderia me dizer, sem contar para Tippy? — Tirou
um cartão de visitas da carteira e o deslizou pela madeira lustrosa da mesa do
comandante. — Pense em mim como fazendo parte da família de Rory.
Gareth vacilou.
— Grier, isso aqui é danado de caro — ele começou. — Com salário de policial...
— Olhe no estacionamento o que eu vim dirigindo.
— Há muitos carros lá — o outro homem falou enquanto se levantava para chegar

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à janela.
— Você vai reparar.
Fez-se uma pausa, depois um assovio, quando ele viu o belo Jaguar vermelho,
feito sob encomenda. Voltou-se para Cash.
— É seu?
Cash assentiu.
— Comprei à vista — ele completou em tom proposital.
O outro deixou escapar um suspiro.
— Sorte dos diabos. Eu dirijo uma SUV da Honda. — Voltou para a mesa. —
Posso deduzir que essas operações especiais pagam bem.
— Não, que nada — Cash discordou. — Mas eu peguei pesado em outro trabalho,
antes das operações especiais — ele acrescentou. — E não falo sobre isso. Nunca.
— Desculpe.
— Sem problemas. Foi há muito tempo, mas investi bem, como está vendo. — Ele
sorriu. — Que tal chamar Rory agora?
O comandante sabia quando um encontro estava encerrado. Sorriu de volta.
— Tudo bem.

Rory entrou ofegante na sala do comandante, corado de agitação. Dois garotos


atravessaram com ele o saguão, mas pararam fora da sala e ficaram espiando.
— Sr. Grier — Rory cumprimentou, abrindo um sorriso largo. — Nossa, que bom
que o senhor veio me buscar! A mana e eu, em geral, tomamos o trem!
— Vamos de carro — disse Cash, sorrindo com alguma reserva. — Detesto trem.
— Ah, eu gosto, ainda mais do vagão-restaurante — anunciou Rory. — Estou
sempre com fome.
— Nós paramos para comer antes de pegar a estrada para Nova York — Cash
prometeu ao garoto. — Pronto para sair?
— Sim, senhor, deixei minha mochila lá fora no saguão! A mana extrapolou — ele
acrescentou alegremente. — Fez faxina no apartamento, lustrou toda a mobília. Limpou
até o quarto de hóspedes, para o senhor ter um lugar para ficar!
— Obrigado, mas prefiro ter um espaço meu — disse Cash à vontade. — Reservei
um quarto num hotel perto do apartamento.
O comandante deu uma risadinha quando ouviu isso. O Cash que ele conhecera
sempre fora preso às formalidades. Não passaria a noite no apartamento de uma mulher
solteira, mesmo que fosse considerado aceitável.
— Minha irmã me falou que era quase certo o senhor não ficar no apartamento —
disse Rory, para surpresa geral. — Mas ela queria que o senhor achasse que é boa dona-
de-casa. Também treinou na cozinha, fazendo estrogonofe. Judd Dunn contou para ela
que o senhor gosta.
— É o meu prato preferido — Cash confessou, impressionado.
Rory riu, fazendo careta.
— Meu também, mas que bom que o senhor gosta.
— Tenho de assinar para ele sair? — perguntou Cash a Gareth.
— Tem, sim. Vamos sair e cuidar das formalidades. Danbury, tenha um bom fim de
semana — disse o comandante a Rory.
Cash ficou chocado ao ouvir o sobrenome do garoto. Ele achava que o último
nome da criança era Moore, como Tippy.
Rory percebeu a surpresa e deu uma risada.
— O nome de verdade de Tippy também é Danbury. Moore era o sobrenome da
nossa avó. Tippy passou a usar quando começou como modelo.
Aquilo era curioso. Cash imaginava o porquê, mas não era hora de começar a

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fazer uma investigação. Assinou os papéis para a saída de Rory, levou algum tempo
cumprimentando os amigos fascinados e acompanhou o garoto até o carro.
Rory parou, imóvel, ao ver Cash apertar um botão e o porta-malas do reluzente
Jaguar vermelho abrir-se.
— Este é o seu carro? — exclamou Rory.
— Este é o meu carro — disse Cash, sorrindo. Jogou a sacola do garoto na mala e
fechou-a. — Embarque, rapaz, e vamos embora.
— Sim, senhor! — replicou Rory, acenando freneticamente para os dois garotos
encantados à porta do escritório. Na verdade, os garotos grudaram o nariz no vidro
quando Cash roncou para fora do estacionamento e ganhou a rua.

Capítulo Dois

Cash passou no hotel para se registrar, antes de levar Rory ao apartamento de


Tippy em Manhattan, no baixo East Village.
Tippy esperava na porta, depois de atender pelo porteiro eletrônico e permitir Cash
e Rory subirem ao seu apartamento, no segundo andar. Parecia uma pessoa comum, de
jeans e suéter amarelo, com os longos cabelos ruivo-dourados caindo-lhe pelas costas.
Com roupa descontraída e o mínimo de maquiagem, se é que havia alguma, não tinha a
aparência da mulher elegante e bela de quem Cash se lembrava, na estréia do filme, um
mês antes.
Estava sorridente e agitada ao abrir a porta.
— Entrem — disse ela rapidamente. — Espero que estejam com muita fome. Fiz
estrogonofe de carne.
Cash ergueu as sobrancelhas.
— Meu prato preferido. Como é que você soube? — ele acrescentou, com olhar
provocativo.
Ela pigarreou.
— É o meu preferido também — Rory deu uma gargalhada, vindo em seu auxílio.
— Ela sempre faz para mim, no dia em que eu chego em casa.
Cash riu discretamente.
— Isso me coloca no meu devido lugar. Ela olhou em torno dele.
— Não tem bagagem? — perguntou ela. — Eu arrumei o quarto de hóspedes.
— Obrigado, mas reservei um quarto no Hilton, no centro da cidade — disse ele
com um sorriso caloroso. — Gosto de ter um espaço meu.
— Ah. Está bem. — Riu, constrangida, antes de se virar, sem jeito, para abraçar
Rory. — Que ótimo ter você em casa nas férias! — disse ela. — Também ouvi falar que
tirou boas notas.
— Tirei, sim — ele garantiu.
— E ficou detido por causa de uma briga — a irmã ponderou.
Ele fingiu que tossia.
— Um garoto maior me xingou de uma coisa que eu não gostei.
— É?
Ela cruzou os braços e continuou encarando-o, sem piscar.
Os olhos de Rory faiscavam.

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— Ele me chamou de bastardo.
Desta vez, foram os olhos dela que se acenderam.
— Espero que você o tenha derrubado com um soco.
Ele escancarou um sorriso.
— Soquei mesmo. Mas agora ficou meu amigo.
Olhou de lado para Cash, que assistia à cena com interesse.
— Ninguém nunca o enfrentou. Tinha tudo para ser o maior valentão, mas eu o
salvei desse destino horrível.
Cash soltou uma gargalhada.
— Muito bem.
Tippy jogou os cabelos para trás.
— Vamos comer. Eu não almocei — ela completou, mostrando o caminho de uma
cozinha pequena, mas acolhedora. A mesa estava posta com uma toalha bordada, sobre
a qual havia pratos coloridos, xícaras e talheres elegantes. Apanhou uma jarra de leite na
geladeira e encheu dois copos de pé, de cristal.
— Tem mais um copo? — perguntou Cash, parando ao lado de uma cadeira. — Eu
gosto de leite.
Olhou-o, espantada.
— Eu ia lhe oferecer um uísque.
O rosto dele se contraiu.
— Não tomo bebida forte. Nunca.
Ficou confusa.
— Ah.
Virou as costas, confusa. Só dissera bobagens, desde que ele havia entrado porta
adentro. Sentia-se uma idiota. Apanhou outro copo igual e encheu-o de leite até a borda.
Era um homem tão desconcertante.
Esperou até que ela levasse a comida à mesa e se sentasse. Só então tomou seu
lugar. A gentileza a fez sentir-se à vontade.
— Está vendo? — disse a Rory. — Não há nada de errado com as boas maneiras.
Sua mãe deve ter sido uma pessoa encantadora — disse ela, dirigindo-se a Cash.
Cash tomou um gole de leite antes de responder.
— Sim. Era mesmo.
E não se prolongou além da breve concordância.
Tippy engolia com dificuldade. Aquilo seria um castigo, se ele ficasse de boca
fechada a noite inteira. Lembrou-se de Christabel Gaines ter lhe contado, certa vez, sobre
Cash, que o casamento dos pais dele se desfizera por causa de uma modelo.
Aparentemente, esta lembrança ainda era dolorosa.
— Rory, vamos rezar — murmurou ela com rapidez, somando outro choque à
coleção de Cash.
Todos baixaram a cabeça. Ela a ergueu um minuto depois e dirigiu a Cash um
olhar dúbio.
— Tradição é uma coisa importante. Nós não tínhamos por onde começar, então
Rory e eu resolvemos fazer algumas por nossa conta. Esta é uma delas.
Ele apanhou a travessa quando ela fez um sinal com a cabeça e serviu-se de
estrogonofe.
— E as outras?
Sorriu timidamente. Isto a fazia parecer mais jovem. Não usava maquiagem,
apenas um batom claro. Os cabelos pareciam frescos e limpos, balançando em torno dos
ombros.
— Todo ano colocamos mais um enfeite na árvore de Natal e penduramos um
picles na árvore.
O garfo dele parou no ar.

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— Um quê?
— Um picles, Cash — replicou Rory. — É um costume alemão, para dar sorte.
Nosso avô, do lado materno, era alemão. — Terminou de mastigar a carne e engoliu com
leite. — Sua família era o quê, Cash?
— Marcianos, eu acho — respondeu Cash, com seriedade.
Tippy ergueu as sobrancelhas.
— Sei. — Rory deu um risinho. Cash deu um riso largo e forçado.
— Minha mãe era da Andaluzia, na Espanha — disse ele com um sorriso. — A
família do meu pai era de índios Cherokee e suíços.
— Que combinação — Tippy comentou, observando-o.
Olhou para ela com curiosidade.
— Seus antepassados devem ter sido irlandeses ou escoceses — disse ele,
reparando na cor do cabelo dela.
— Acho que sim — ela concordou, mas sem olhá-lo nos olhos.
— Nossa mãe é ruiva — Rory interferiu. — Tippy é natural também, mas muita
gente acha que ela pinta o cabelo.
Tippy tomou um longo gole de leite e ficou calada.
— Eu pensei em pintar o meu de roxo, mas meu primo, que era meu chefe na
época, disse que poderia escandalizar as pessoas. — Cash suspirou. — Foi mais ou
menos nessa época que ele me fez tirar o brinco — ele completou, com expressão
aborrecida.
Tippy quase se engasgou com o leite.
— Usava brinco? — exclamou Rory com satisfação.
— Um simples, de ouro — Cash admitiu. — Eu trabalhava para o governo naquela
época. Meu chefe era tão politicamente correto que pedia desculpas às formigas quando
pisava nelas. — Balançou a cabeça com ênfase. — É uma história real.
Tippy enxugou os olhos. Dava tantas gargalhadas que quase chorava de rir. Havia
alguns anos que não se sentia tão alegre ao lado de alguém. Entre o começo difícil e
aquelas risadas havia um longo caminho.
— Ela nunca ri — comentou Rory com uma careta. — Muito menos nos locais de
filmagem. Ela detesta os fotógrafos, por causa de um que a fez se sentar de biquíni numa
pedra e ela foi bicada por um gavião.
— Aquele pássaro idiota me atacou cinco vezes — Tippy admitiu. — Da última vez,
arrancou um tufo de cabelos.
— Devia contar para ele o que os pombos fizeram com você naquele filme, na Itália
— Rory sugeriu.
Ela estremeceu delicadamente.
— Estou tentando me esquecer disso. Eu gostava de pombos.
— Adoro pombos — disse Cash, abrindo um sorriso largo. — Vocês não imaginam
como eles ficam deliciosos empanados com massa folhada e fritos em azeite de oliva.
— Que selvageria! — exclamou Tippy.
— Está certo, eu também como cobras e lagartos, e não sou a pomba da paz.
Rory só faltava rolar pelo chão.
— Nossa, Cash, este vai ser o melhor Natal que já tivemos!
Tippy ficou tentada a concordar com ele. O homem à sua frente conservava pouca
semelhança com o oficial hostil que ela conhecera quando filmara em Jacobsville, no
Texas. Todos diziam que Cash Grier era misterioso e perigoso. Ninguém dissera que
tinha um enorme senso de humor.
Ao notar que ela estava confusa, Cash inclinou-se em direção a Rory e cochichou
em voz alta:
— Ela está confusa. Lá no Texas contaram que eu guardava segredos militares
sobre discos voadores num arquivo trancado.

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— Já ouvi falar em ETs — murmurou Tippy sem esboçar qualquer sorriso.
— Eu não guardo ETs no meu arquivo — disse ele, indignado. No minuto seguinte,
seus olhos escuros começaram a piscar. — Esses eu guardo num armário lá em casa.
Rory dava risadinhas. Tippy ria também.
— E eu achava que os atores eram malucos — Tippy observou, com um suspiro.

Após o almoço, Cash anunciou que ia levá-los ao parque. Tippy trocou de roupa —
um terninho verde-esmeralda —, fez uma trança no cabelo e deu um toque de
maquiagem em seu rosto oval.
O apartamento localizava-se em uma rua calma e arborizada. Era um bairro de
transição entre o quase perigoso e a classe média. Podia-se notar os melhoramentos,
principalmente no prédio de Tippy, com grades pretas de ferro batido nas escadas de
pedra até o apartamento dela no segundo andar.
No auge da fase de modelo, tinha tido dinheiro para jogar fora e, por um breve
período, morou em Park Avenue. Mas depois de um ano, quando os trabalhos de modelo
ficaram escassos, precisou se ater ao orçamento. Foi então que se mudou para lá, pouco
antes de iniciar a filmagem em Jacobsville que, inesperadamente, constituiu novo ponto
de partida em sua carreira. Agora talvez pudesse pagar por um lugar melhor, mas
apegara-se à vizinhança e à rua pacata em que vivia. Logo na esquina, havia uma livraria
e, ao lado, um minimercado. Havia também uma cafeteria tradicional, que servia o melhor
café da redondeza. Era um local delicioso na primavera. Agora, com a chegada do
inverno, as árvores estavam nuas e toda a cidade era fria e cinzenta.
O Jaguar vermelho de Cash estava parado bem em frente às escadas que
conduziam ao bloco de apartamentos. Ela levou um susto ao vê-lo, mas nada comentou.
Rory se instalou no banco de trás, deixando o da frente paraTippy se sentar ao lado de
Cash.
— Achei que o Central Park era perigoso — observou Rory enquanto caminhavam
pela calçada, após o curto percurso, apreciando as bonitas charretes à espera de clientes.
— Vai deixar seu carro estacionado lá? — ele acrescentou, espiando o belo automóvel.
Cash encolheu os ombros.
— O Central Park está muito mais seguro atualmente. E quem passar pela minha
cascavel de estimação não vai conseguir dirigir o carro.
— Sua o quê...? — exclamou Tippy, olhando em torno dos próprios pés.
Ele sorriu, fazendo careta.
— Meu sistema de alarme. É como eu o chamo. Tenho um sistema de
monitoramento eletrônico instalado num ponto do motor. Se alguém tentar fazer uma
ligação direta no carro, ou arrombá-lo, em dez minutos a polícia o encontra. Mesmo na
cidade de Nova York — ele completou com ar presunçoso.
— Não admira que você tenha tanta confiança — disse Rory. — É mesmo uma
beleza de carro, Cash — acrescentou o garoto, ansioso.
— Sem dúvida — Tippy observou. — Eu sei dirigir, mas é pouco prático ter carro
nesta cidade — disse ela, mostrando a quantidade de táxis subindo e descendo pelas
ruas. — Em geral, quando faço os trabalhos de modelo, não posso perder tempo
procurando lugar para estacionar. São muito poucos. Táxi e metrô vão mais rápido
quando a gente está com pressa.
— Vão, sim — ele concordou.
Passou os olhos por ela, fascinado com a beleza natural, acentuada pela quase
ausência de maquiagem.
— Onde você está filmando? — indagou Cash.
— Aqui na cidade, a maior parte — disse ela. — É uma comédia, com toques de
espionagem. Tenho de lutar com um agente estrangeiro numa cena e correr atrás de um

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homem armado em outra. — Deu um sorriso forçado. — Começamos a filmar antes do
feriado de Natal, e estou cheia de hematomas, por causa da coreografia do coordenador
de lutas. Tive até de aprender aiquidô para o filme.
— É uma arte marcial muito útil — Cash observou. — Foi uma das primeiras
modalidades que eu aprendi.
— Quantas você sabe? — perguntou Rory imediatamente.
Cash deu de ombros.
— Caratê, tae kwon do, o coreano hapkido, kung fu e outras disciplinas que não
estão nos livros. Nunca se sabe quando se vai precisar recorrer a esses treinamentos.
Ajuda no trabalho policial, agora que eu não fico mais sentado atrás de uma mesa o
tempo todo.
— Judd falou que você trabalhava em Houston, na Procuradoria — disse Tippy.
Ele concordou com um aceno de cabeça.
— Eu era especialista em crime cibernético. Não era o desafio que eu procurava.
Gosto de coisas menos rotineiras e estruturadas.
— O que você faz em Jacobsville? — Rory quis saber.
Cash deu uma risadinha.
— Corro das minhas secretárias — respondeu ele, envergonhado. — Pouco antes
de eu ligar para sua irmã para combinar de passar o feriado aqui, a última se demitiu e
jogou a lata de lixo na minha cabeça. — Fez uma careta e mostrou os cabelos escuros. —
Até hoje estou catando café no cabelo.
Tippy arregalou os olhos verdes. Parou e encarou Cash. Não acreditava que
estivesse dizendo a verdade. Lembrava-se da maneira eficiente com que impediu o
assistente de direção, em seu primeiro filme, de tocá-la, quando ela se recusou a permitir
essa intimidade.
Rory achava graça.
— É mesmo?
— Ela não foi feita para trabalhar na polícia — disse ele. — Não conseguia falar ao
telefone e digitar ao mesmo tempo, então o serviço não andava.
— Por que...? — Tippy puxou.
— ... ela esvaziou a lata de lixo em mim? — Cash terminou por ela. — Sei lá! Eu
falei para não forçar a fechadura do meu arquivo, mas ela não me deu pelota. Por acaso é
culpa minha se Mikey, o filhote de jibóia, pulou da gaveta para cima dela? Assustou o
coitado. Ele sofre dos nervos.
Os dois pararam, olhando para ele.
Cash suspirou.
— Não é engraçado como as cobras deixam as pessoas nervosas? — ele
filosofou.
— Você tem uma cobra chamada Mikey? — exclamou Tippy.
— Cag Hart tinha uma jibóia albina, que ele doou para um viveiro quando se casou.
Lá, uma fêmea teve uma ninhada dessas coisinhas fofas, e eu pedi uma para mim. No dia
em que ele me deu Mikey, não tive tempo de levá-lo para casa, então guardei no arquivo,
temporariamente, numa gaiola plástica com água e um poleiro. Funcionou muito bem até
que a minha secretária arrombou a fechadura. Foi uma pena, porque Mikey tinha fugido e
havia se sentado em cima das pastas, na gaveta do arquivo.
— O que ela fez? — indagou Rory.
Ficou de mau humor.
— Assustou o coitado do bichinho — ele resmungou. — Tenho certeza de que ele
vai ficar traumatizado para o resto da...
— E depois? — interrompeu Rory.
Ergueu as sobrancelhas escuras.
— Depois ela começou a gritar até ficar roxa, pegou as minhas algemas e jogou

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em cima de mim, entende?
Tippy apenas o encarava, piscando os olhos verdes.
— Foi então que ela jogou a lata de lixo na minha cabeça. Essa foi demais. Tinha o
cabelo espetado, usava batom e esmalte pretos, tinha piercings com aneizinhos de prata
para todo lado. Mas o Mikey, aos poucos, vai superar o trauma. Agora está morando na
minha casa.
Tippy não conseguia falar de tanto rir.
Rory sacudiu a cabeça.
— Uma vez eu quase tive uma cobra.
— Como foi? — perguntou Cash.
— Ela não me deixou sair da loja de bichos com a cobra — Rory lamentou-se,
apontando para a irmã.
— Não gosta de cobras, hein? — o policial resmungou, olhando de lado para
Tippy.
— Não é porque eu tivesse medo, mas porque ele não ia poder levar para a escola
e eu saio muito, não tenho como cuidar de bicho de estimação. Mas se você precisa
mesmo de secretária, assim que eu terminar o filme, ponho um piercing no nariz e repico
meu cabelo, para começar. — Ela disse a piada com expressão séria.
Os dentes perfeitos de Cash mostraram-se para ela.
— Não sei, não. Você consegue digitar e mascar chiclete ao mesmo tempo?
— Ela não sabe digitar uma palavra. E tem medo de cobra, sim... — Rory começou
com entusiasmo.
— Pode parar por aí — murmurou Tippy, com uma olhadela para o irmão. — E não
passe para o lado dele — ela avisou. — A não ser que você queira que eu conte para ele
os seus pontos fracos!
Rory ergueu as mãos.
— Desculpe. Desculpe mesmo. Sinceramente.
Ela franziu os lábios cheios.
— Tudo bem.
— Olhe! É o sujeito da gaita de foles! Mana, me dê 50 centavos, pode ser? —
exclamou Rory, indicando com a cabeça o homem com saiote escocês parado em frente
a um hotel próximo ao parque, com a gaita de foles.
Tocava Segura na mão de Deus.
Tippy puxou de um maço uma nota e entregou-a a Rory.
— Vá lá. Esperamos por você aqui — disse ela, com um sorriso generoso.
Cash o viu se afastar e pousou os olhos na gaita de foles.
— Ele toca bem — disse Cash.
— Rory quer uma gaita de foles, mas eu duvido que o comandante o deixe tocar no
dormitório.
— Concordo. — Cash sorriu pensativo, ao ouvir a melodia conhecida. — Ele vem
sempre aqui? — indagou ele.
— Nós o vemos por aqui — respondeu Tippy displicentemente. — É um dos mais
simpáticos, entre os artistas de rua. Sem-teto, é claro. Dou a ele um dinheirinho, quando
tenho trocados, para ele comprar um cobertor ou um café quente. Muitos aqui na
vizinhança são generosos com ele. Tem talento, não acha?
— Tem, sim. Sabe quem é ele? — acrescentou Cash, impressionado com a
preocupação dela com um estranho.
— Sei pouco. Dizem que a família inteira morreu, mas não se sabe como, nem
quando... nem mesmo por quê. Ele não conversa muito com as pessoas — murmurou ela,
vendo Rory estender-lhe a nota e receber em troca um sorriso débil, quando a gaita parou
de ser tocada por um momento. — Nova York tem uma enorme população de rua. A
maioria dessas pessoas sabe fazer alguma coisa, dá um jeito de ganhar dinheiro. Você os

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vê dormindo em caixas de papelão, revirando as latas de lixo atrás de restos. — Balançou
a cabeça. — E somos considerados o país mais rico do mundo.
— Ia se espantar de ver como vivem as pessoas nos países do Terceiro Mundo —
ele ponderou.
Ela ergueu os olhos.
— Eu tinha uma foto, tirada na Jamaica, perto de Montego Bay — Tippy lembrou-
se.— Havia um hotel cinco estrelas num outeiro, com papagaios nas gaiolas, uma piscina
enorme e todo o conforto que você possa imaginar. Lá embaixo, a uns 50 metros de
distância, ficava uma favela com casas feitas de chapas de metal ondulado, na lama, e as
pessoas moravam ali.
Os olhos escuros se contraíram. Ele assentiu lentamente.
— Estive no Oriente Médio. Muita gente lá vive em casas de barro, sem
eletricidade, água corrente, sem o menor conforto. Fazem as próprias roupas e viajam em
carroças puxadas por burros. Ficariam chocados com nosso padrão de vida.
A respiração dela desceu ao fundo dos pulmões.
— Não faço idéia.
Ele olhou para a cidade ao seu redor.
— Em todos os lugares por onde andei, fui bem recebido. As famílias mais pobres
estavam sempre prontas para dividir o pouco que tinham. Na maioria, são boa gente.
Gente boa.— Olhou para ela. — Mas têm inimigos ferozes.
Tippy olhou as cicatrizes no rosto magro e forte.
— O comandante de Rory contou que torturaram você — ela lembrou com
suavidade.
Ele concordou com a cabeça, e os olhos escuros procuraram os dela.
— Não converso sobre isso. Ainda tenho pesadelos, depois de tantos anos.
Ela o analisava com curiosidade.
— Eu também tenho pesadelos — respondeu ela com ar distante.
O olhar dele a sondava, buscando respostas para o quebra-cabeça que ela
representava.
— Você viveu muito tempo com um velho ator, que todo mundo conhecia como
sendo o homem mais devasso de Holywood — disse ele, abruptamente.
Ela volveu os olhos na direção de Rory, sentado em um banco, ouvindo a gaita de
foles que recomeçara a tocar. Cruzou os braços com firmeza, ao peito, e não o encarou.
Cash adiantou-se à frente dela, chegou bem perto. Era estranho, mas não a
amendrontava. Correspondeu ao olhar dele, indagativo. Quase a cercava, tamanha a
intensidade.
— Conte para mim — disse ele, delicadamente.
Aquela delicadeza era irresistível. Respirou profundamente e, com dificuldade,
avançou:
— Fugi de casa com 12 anos. Iam me dar para adoção, e fiquei apavorada, com
medo de que minha mãe me expulsasse de novo... de vingança, por eu ter dado queixa
na polícia, dela e do namorado, depois que ele... — Hesitou.
— Vamos — ele incentivou.
— Depois que me estuprou repetidas vezes — disse ela com raiva, sem olhar para
ele. — Eu não queria voltar e morar com ela, não queria passar fome. Então fui para as
ruas de Atlanta, porque não tinha como ganhar dinheiro para viver.
O rosto contraiu-se com a recordação. A expressão de Cash estava petrificada.
Suspeitava de algo desse tipo, com base nos trechos da vida dela que conseguira
pesquisar.
Prosseguiu com serenidade:
— O primeiro homem que apareceu era bonito e animado. Quis me levar para a
casa dele. — Fechou os olhos. — Eu estava com fome, com frio e morta de medo. Não

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queria ir com ele. Mas tinha um olhar tão bom... — Engoliu em seco.
"Ele me levou para o seu hotel. Tinha uma suíte enorme, luxuosa como se fosse de
um rei. Quando entramos, riu porque eu estava nervosa e prometeu que não ia me
machucar, só queria me ajudar. Eu estava com tanto medo que derramei um copo de
água na minha blusa. — Sorriu. — Vou me lembrar, para o resto da vida, de como ele
ficou chocado. Eu usava cabelos curtos e não tinha o corpo muito cheio, naquele tempo,
mas a blusa molhada... — Ela ergueu os olhos para Cash, que ouvia atentamente. — Mas
é claro que ele não estava interessado em mim desse ponto de vista...
Os lábios de Cash abriram-se em uma respiração súbita e explosiva.
— Cullen Cannon, o amante internacional, era gay? — indagou ele com espanto.
Ela assentiu.
— Era. Mas escondia isso com a ajuda das mulheres amigas. Era um homem
delicado e gentil — ela recordou-se, com ar pensativo. — Eu pretendia sair, mas ele não
permitiu. Disse que se sentia sozinho. A família o rejeitara. Não tinha ninguém. Então eu
fiquei. Comprou roupas para mim, colocou-me de volta na escola, construiu um escudo
entre mim e o meu passado, de modo que minha mãe não pudesse me encontrar.
Os olhos encheram-se de lágrimas ao continuar a história.
— Eu o amava — ela sussurrou. — Teria dado a ele qualquer coisa. Mas tudo o
que queria era cuidar de mim. — Deu uma risada. — Mais tarde, quando me colocou na
escola de modelos em Nova York, talvez gostasse de passar a impressão de ter uma
moça bonita vivendo com ele. Não sei. Mas fiquei lá até ele morrer.
— Saiu na mídia que morreu de ataque cardíaco.
Ela sacudiu a cabeça.
— Morreu de Aids. Já no final, seus filhos biológicos vieram vê-lo e enterraram o
passado. Ficaram ressentidos comigo, no começo, desconfiados de que eu estivesse com
ele por dinheiro. Mas acho que acabaram por entender que eu era louca por ele. —
Sorriu. — Quiseram que eu ficasse com o apartamento dele quando morreu, quiseram me
dar um dinheiro da herança. Não aceitei. Sabe, eu cuidei dele no último ano de vida.
— Foi por isso que você não trabalhou de modelo durante um ano, até lhe
oferecerem o primeiro contrato para um filme. Disseram que você sofreu um acidente e
precisava se recuperar — disse Cash.
Ficou envaidecida por ele ter guardado tanta coisa, depois de tê-la odiado,
literalmente, quando esteve em Jacobsville.
— Isso mesmo — disse Tippy. — Ele não queria que soubessem o que aconteceu.
Nem naquela época.
— Coitado.
— Foi o melhor homem que eu já conheci — disse ela tristemente. — Até hoje levo
flores ao seu túmulo. Ele me salvou.
— E o homem que a estuprou? — indagou ele, indelicado.
Ela olhou para Rory, que conversava com o homem que tocava a gaita de foles. E
com expressão atormentada:
— Minha mãe disse que era o pai de Rory — ela desviou a conversa.
Agora, a respiração dele era audível.
— E você ama Rory.
Voltou-se para ele.
— Do fundo do coração — Tippy concordou. — Minha mãe ainda está com o pai
de Rory, Sam Stanton, às vezes. Os dois são viciados. Sam e minha mãe brigam, ele a
espanca e ela chama a polícia. Mas ele sempre volta.
— Como você ficou com Rory? — perguntou Cash.
— O delegado de polícia que me salvou na última noite que passei em casa,
quando Sam me estuprou, me ligou quando Rory tinha apenas quatro anos de idade. Eu
ainda vivia com Cullen, ele era rico e poderoso. Cullen foi comigo ver Rory no hospital,

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depois de apanhar muito do pai. Minha mãe ficou encantada com Cullen — ela recordou
friamente. — E, assim, depois que Rory teve alta, ela o levou ao hotel onde nós
morávamos. Cercando, atrás de dinheiro. Cullen se ofereceu para comprar o menino. E
ela o vendeu para nós — ela acrescentou com indiferença. — Por 50 mil dólares.
— Meu Deus — ele dardejou. — Achei que já tinha visto de tudo.
— Rory está comigo desde então — disse ela.
— Você nunca engravidou...?
Ela sacudiu a cabeça.
— Menstruei tarde. A primeira vez com 15 anos. Que sorte, hein? — Afastou as
mechas de cabelo ruivo. — Sorte mesmo.
— Mas agora sua mãe quer o Rory de volta.
— O dinheiro acabou há alguns anos. Ela tem que conseguir dinheiro para as
drogas trabalhando numa loja, e não gosta disso. Sam só trabalha quando está disposto
e, mesmo assim, não acho que faça coisas dentro da lei. Meu advogado pagou à minha
mãe, no ano passado, quando ela ameaçou ir aos jornais sensacionalistas falar da
maneira "brutal" como eu a tratava — Tippy debochou. — "Rica artista de cinema deixa a
mãe na miséria, enquanto anda de limusine." — Sorriu com cinismo. — Percebe o
cenário?
— Ao vivo e em cores — ele concordou com frieza.
— Agora ela resolveu que quer Rory de volta. Mandou o pai dele ir à escola militar
para tirá-lo de lá. Rory contou ao comandante o que o outro tinha feito, com ele e comigo,
e o comandante chamou a polícia. O canalha sumiu antes de chegarem lá.
— Ponto para o comandante.
— Mas isso não configura seqüestro. Eu pagaria qualquer coisa para ter Rory de
volta, e eles sabem disso. Não tenho dormido bem, ultimamente — ela acrescentou. — O
pai de Rory tem um primo que mora aqui perto, num lugar horrível. São muito chegados, e
o primo está metido em tudo que é ilegal.
Cash fazia uma ginástica mental.
— Rory se preocupa com o pai ou a mãe?
— Ele detesta nossa mãe — replicou ela. — E não sabe que Sam Stanton é o pai
verdadeiro.
— Você não lhe contou? — Cash sondou.
— Não tive coragem — ela explicou. — Ele levou uma surra violenta de Sam. O
psicólogo disse que vai ficar com trauma para o resto da vida por isso.
— E você?
— Já vivi o bastante para ser forte, com deslizes eventuais. Mas, na maioria das
vezes, fico firme — murmurou ela.
— Não muito firme, só por enquanto — ele comentou. — Mas vai ser, se você ficar
do meu lado bastante tempo.
Olhou para ele com um sorriso de indagação.
— Vou ficar?
Ele encolheu os ombros.
— Depende de você. Tenho umas esquisitices.
— Eu também. E uns probleminhas — ela ressaltou.
Pôs as mãos nos bolsos e encarou-a, com os sons do trânsito de Nova York ao
fundo.
— Não gosto muito de compromisso. Não estou fazendo promessas. Quero ficar
com você enquanto estiver aqui. E ponto final.
— Você não quer mesmo compromisso.
Concordou com a cabeça.
Ela procurou pelo olhar escuro.
— Não acho você repulsivo — disse ela com indiferença. — Isto para mim é novo.

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Mas tenho minhas próprias marcas. Sei representar a mulher fatal quando tenho homens
por perto. Mas é tudo mentira. Nunca fiz sexo por vontade própria.
Ele assoviou.
— É muito peso para um homem. Ela concordou.
Ele sorriu suavemente.
— Então, estamos de volta ao namoro de antigamente.
Provocou nela uma risada.
— Não pensei nisso.
— Vamos começar devagar — disse ele, notando a súbita reaparição de Rory. —
Leva tempo — ele comentou quando o garoto voltou sorridente.
— Ele queria saber sobre a escola militar. Sabe por quê? Foi soldado no Vietnã. —
Rory fez uma careta. — Que triste, hein, terminar assim.
Os olhos de Cash anuviaram-se, enquanto observava o homem, que acenou com a
mão e voltou a sua gaita. Cash acenou de volta.
— Muitos ex-combatentes terminam assim — ele comentou, calmamente.
— Você, não — disse Rory com orgulho.
Cash sorriu e passou os dedos pelos cabelos.
— Não. Eu, não. Que tal irmos à Estátua da Liberdade? Está fechada hoje, e não
vamos subir, mas podemos ver de fora. Está a fim?
— Leve-me lá! — Rory deu uma gargalhada.
Cash segurou a mão fina de Tippy e cruzou os dedos nos dela, reparando que
estavam frios e tremiam um pouco. Como se passasse uma corrente elétrica entre eles.
Tippy respirava pesadamente. Ergueu os olhos arregalados, fascinados, sentindo o chão
oscilar sob seus pés. Mágica!
Ele procurou pelo olhar dela.
— Primeira lição, página 1, pegar a mão — ele sussurrou quando Rory parou para
ver uma vitrine.
Ela ria sem parar. Soava como se tocassem sinos de prata.

Capítulo Três

O dia que passou nos cartões-postais da cidade, pensou Tippy mais tarde, foi um
dos melhores de sua vida. Ele parecia conhecer Nova York como a palma da mão e quis
compartilhar esses trechos da história com Tippy e Rory.
— Como você sabe tanta coisa daqui? — quis saber Rory quando voltaram para o
apartamento de Tippy, no final da tarde.
— Meu melhor amigo, durante o treinamento, era de Nova York — ele
confidenciou. — Um poço de informação!
Tippy riu.
— Tenho uma amiga que sabe tudo sobre Nassau — disse ela. — Ela é modelo e
está agora na Rússia, com tantos outros lugares para se ir!
— Ela é modelo de quê?
Tippy lançou-lhe um olhar malicioso.
— Moda praia.
— Está brincando.

21
— Não estou, não! Os poderosos acharam que ficava sensual posar com o Kremlin
ao fundo, de botas e casaco de peles.
— Ia se dar mal, se fosse aqui, não acha? — perguntou ele.
— É pele falsa — ela assinalou, rindo. — Mas uma pele falsa muito cara, e parece
de verdade.
— Que tal um sanduíche, Cash? — Rory gritou da cozinha.
— Para mim, não, obrigado, Rory. Vou voltar ao hotel para me arrumar. Tive um
dia cheio, hoje.
— Eu também, Cash — disse Rory com sinceridade. — Você vai voltar amanhã?
— Vai? — Tippy repetiu.
O olhar passeou pela expressão deles, indo da curiosidade de Rory para Tippy
radiante.
— Por que não? — ele refletiu, sorridente. — Posso dar um giro pelos museus, se
vocês agüentarem.
— Adoro os museus! — disse Rory com entusiasmo.
— Desde que eu não precise posar — Tippy suspirou. — Tenho trauma de posar
com uma perna levantada, inclinada para trás, na frente de uma escultura de Rodin,
durante horas.
— Imagino que seja aquela em que estou pensando — disse Cash de modo
arrastado, com uma risadinha, e ficou vermelho.
— Com certeza é a que está com todas as pessoas vestidas — ela mentiu.
Ele sacudiu a cabeça.
— Como quiser — disse ele. — A que horas vocês acordam no feriado?
— Às oito — disse Rory.
Tippy assentiu.
— Não somos de fazer noitadas por aqui. Um está acostumado com a disciplina
militar, que começa quando o dia clareia, e a outra tem de se levantar antes de o sol raiar
para o trabalho nas filmagens — ela declarou, com bom humor.
— Então, às oito. Sei onde fica a padaria — disse ele. — Eles têm pão doce com
canela, com amêndoas, sonhos com creme...
— Não posso comer doce — retrucou Rory com tristeza. Apontou para Tippy. —
Ela não tem força de vontade. Tudo que é doce e entra pela porta não sai mais.
Tiipy deu uma gargalhada.
— Isso mesmo. Passei boa parte da vida brigando com a balança. Comemos só
ovos com bacon no café-da-manhã. Pura proteína. Nada de pão.
— Lembra o treinamento básico. — Ele suspirou. — Está bem. Podemos tomar
café-da-manhã aqui? Mas é melhor fazer café — ele acrescentou com seriedade. — Não
vou tomar café-da-manhã sem café, nem que eu precise trazer o meu numa caneca com
canudo, dessas de bebê.
— Caneca de bebê? —Tippy provocou.
— Eu fico sexy com uma caneca de bebê — ele replicou, e o sorriso em seus
lábios era genuíno.
Fazia muito tempo que ele sorrira para uma mulher com sinceridade. Bem, exceto
para Christabel Gaines. Mas agora ela estava casada com seu melhor amigo.
— Bem, vou comer um sanduíche antes de ir para a cama — Rory lembrou. — Boa
noite, Cash! Até amanhã!
— Negócio fechado — respondeu Cash.
Segurou a mão macia de Tippy e levou-a até a porta com ele.
— Vou ver se está em cartaz alguma coisa boa, um musical ou balé, se você
quiser...
— Gosto muito dos dois — exclamou ela.
— Orquestra sinfônica? — perguntou ele, testando.

22
Ela concordou com a cabeça, entusiasmada.
— Acho que não vou morrer se tiver de usar um terno — ele suspirou.
— Você levou Christabel Gaines para ver um balé em Houston, eu me lembro —
disse ela, com uma ponta de ciúmes que não conseguiu disfarçar.
Aquilo o surpreendeu. Os olhos negros sondaram os olhos claros dela, até estes se
perturbarem sob a intensidade do olhar.
— Christabel Dunn, naquele tempo. Levei, sim. Ela nunca tinha ido a um na vida.
— Achei que fosse mimada como uma princesa — Tippy comentou. — Mas estava
errada, esse tempo todo. Ela é uma mulher especial. Sorte de Judd.
— Sorte, mesmo — ele teve que concordar. Christabel ainda era um ponto sensível
para ele. — São loucos pelos gêmeos.
— Os bebês são muito lindos — disse ela. — Rory era uma gracinha, mesmo com
quatro anos. — Sorriu pensativamente. — Cada dia com uma criança é uma aventura.
— Não sei dizer.
Ergueu os olhos, surpresa com a expressão em seu rosto magro e rígido.
Ele desviou o olhar.
— Tenho de ir. Vejo você de manhã.
Soltou a mão e deixou-a ali, de pé. Ela adivinhou que algo em seu passado deixara
marcas profundas, algo que tinha a ver com crianças. Judd lhe contara que Cash já fora
casado uma vez, mas só isso. Ele era confuso. Mas a atraía como nenhum outro homem,
antes.

Cash chegou pontualmente às oito, na manhã seguinte, com um bule prateado em


uma das mãos e um saco de papel na outra.
— Já fiz café — disse rapidamente.
Ergueu o bule.
— Café com leite, com toque de baunilha — disse ele, girando-o sob o nariz dela.
— Minha única fraqueza. Bem, a não ser esta outra — ele agitou o saco de papel.
— O que tem aí dentro? — indagou Tippy, seguindo-o até a mesa já posta para o
café, onde Rory esperava para começar a refeição.
— Brioches recheados — disse ele. — Sinto muito. Não posso passar sem açúcar.
Penso que é um dos quatro principais grupos de alimentos, junto com chocolate, sorvete
e pizza.
Rory estourou em uma gargalhada. E Tippy também.
— Um espanto — disse ela, dirigindo à figura poderosa uma prolongada
observação. — Parece que você nunca provou na vida nem açúcar nem gordura.
— Malho todos os dias — ele confidenciou. — Não tenho escolha. Essas fardas
são costuradas no corpo, você sabe como é — teve a ousadia de dizer —, têm de
ressaltar os músculos.
Passou os olhos pelos bíceps, bem delineados sob a camisa de malha que usava
com calças escuras, no momento em que ele jogou a jaqueta de couro preto sobre uma
poltrona, a caminho da cozinha.
— Sem comentários? — Cash debochou.
Ela suspirou.
— Só estava reparando nos músculos — murmurou ela secamente.
Rory pediu licença e foi ao banheiro. Cash segurou a saia comprida de Tippy e
puxou-a para perto da cadeira em que estava sentado.
— Se fizer tudo direitinho, pode ser que um dia eu tire a camisa para você ver —
ele ronronou.
Ela não sabia se ria ou se protestava. Ele era imprevisível.
— Agora não, é claro — ele acrescentou. — Não sou desse tipo de homem!

23
Desta vez, ela caiu na risada. Os olhos se iluminaram, faiscando como esmeraldas.
Ele também riu e fez careta.
— Olhe aqui. Pegue um brioche. Eu trouxe para todos nós.
Ela pôs a mão no pacote, consciente dos olhos escuros pousados em seu rosto.
— Você tem uma pele bonita, mesmo sem maquiagem — ele observou, com
profundidade na voz. — Parece seda.
Ela virou a cabeça. Encontrou o olhar dele, abertamente, e seu coração disparou.
Ele era muito sensual.
— Em que você está pensando? — murmurou ele.
— Sou capaz de apostar que já sabe tudo sobre as mulheres — Tippy confessou
com voz rouca.
Os olhos dele se apertaram.
— E você não sabe quase nada sobre os homens.
Ela se emocionou.
— Eu não queria — disse ela delicadamente.
Seu olhar encontrou a boca larga, bem-feita.
— Tenha cuidado — disse ele com calma. — Sou muito reservado, há muito
tempo.
— Você não iria me magoar — ela sussurrou, audaciosa, procurando o olhar dele.
— Eu queria... ah, queria tanto!
— Você queria... o quê? — Ele incentivou, contraindo o queixo quando o aroma do
corpo dela penetrou em suas narinas. Estava tão próxima que dava para ver uma veia
pulsando na gola da blusa. Teve vontade de tomá-la nos braços, beijá-la até aquela boca
linda ficar intumescida.
Ela sentia a mesma fome. Olhava para a boca de Cash e imaginava como ficaria
se fosse beijada da maneira que representara os beijos com o colega de elenco, no filme
que fizeram no rancho Dunn. Quase sentia a boca rija de Cash. O corpo estava dilatado,
dolorido. Com uma sede que nenhuma água poderia saciar.
A respiração provocava ruído pela garganta, e os lábios se abriram.
— Eu queria...
O som da descarga do vaso sanitário quebrou o encantamento. Ela se levantou,
esquecendo-se do brioche e foi até a pia lavar as mãos, pois precisava ocupá-las com
algo.
Rory voltou, totalmente inocente de os ter interrompido, e apanhou um brioche. Um
minuto depois, Tippy serviu café para si mesma e suco de laranja para Rory, sentando-se
à mesa como se nada tivesse ocorrido.

Foram ao American Museum of Natural History em primeiro lugar, para ver a nova
exposição de dinossauros no quarto andar. Havia uma fila enorme, por causa das
exposições especiais, em uma das quais era possível assistir a um filme e, em outra,
havia uma loja de objetos ligados a Albert Einstein. Ficaram na fila mais de uma hora, até
conseguirem comprar os ingressos.
Rory ia de um fóssil a outro, subindo corajosamente um lance de escadas para
chegar à altura do esqueleto mais alto, de modo que visse de cima para baixo as
omoplatas sólidas e as juntas dos quadris.
— Ele adora dinossauros — Tippy assinalou, perambulando em volta, ao lado de
Cash.
Ela usava saia longa de veludo verde, botas e blusa de seda branca sob o casaco
de couro preto. Os cabelos espalhavam-se pelos ombros; chamava a atenção dos
homens e também das mulheres, apesar de estar apenas com uma suave maquiagem.
Ao seu lado, Cash sentia-se orgulhoso da companhia. Era realmente bela, pensou,

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e isso tinha pouca relação com a aparência externa. Era precioso seu interior, aquilo que
valia a pena.
— Também gosto de dinossauros — ele comentou. — Vim aqui há muitos anos,
mas perdi os dinossauros porque a exposição havia sido remanejada. São
impressionantes.
Ela se inclinou para poder ler uma placa.
— Você não está usando os óculos — ele reparou.
Ela riu timidamente.
— Sou um desastre ambulante quando uso — Tippy resumiu. — Limpo-os com o
que estiver à mão. As lentes ficam arranhadas, e já tive que trocar duas vezes.
— Existem umas lentes novas que não arranham tanto — ele lembrou.
— É, foi desse tipo que eu coloquei. Infelizmente, não são à prova de estabanados.
— Ela ergueu um ombro bonito. — Gostaria de usar lentes de contato, mas não me
adaptei. Meus olhos ficam irritados.
Levantou a mão grande e magra, segurou um chumaço de cabelos dela, sentindo a
suavidade com o tato; fazendo isso, trouxe-a para mais perto de si.
— Seus cabelos têm vida — disse ele com delicadeza. — Nunca vi essa cor
parecer tão natural.
— É natural — replicou ela, e os joelhos fraquejaram diante da inesperada
proximidade. Ele cheirava a colônia e sabonete... cheiro de limpeza, atraente. Pôs as
mãos na camisa dele, sentiu o músculo aquecido e a almofadada sensação dos pêlos sob
suas mãos. Teve vontade de levantar a camisa e tocá-lo, ali mesmo, com uma
intensidade que a fez perder o fôlego. Nunca na vida sentira desejo tão ardente.
— E nada em você é artificial? — ela testou.
— Nada no físico — ele concordou.
Os olhos escuros procuraram os verdes, e ali ficaram por mais tempo do que ele
pretendia. Sentiu o rosto travado. Tinha quase certeza de que o coração dela disparara. E
ela não conseguiu evitar o movimento. Ele era muito masculino. Tudo o que havia de
feminino dentro dela reagia ao toque dele.
— Não acredito nas mulheres.
— Você já foi casado — ela lembrou.
Concordou com a cabeça. Os dedos se enroscaram na mecha de cabelos. Tinha
um olhar assombrado pelo passado.
— Eu a amava. Achei que ela também. — Ele deu uma risada gélida. — Com
certeza, amava o que eu podia comprar para ela.
Tippy sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha.
— Há tanta coisa no seu passado, de que você não fala — disse ela
delicadamente. — Você é muito misterioso, do seu jeito.
— É difícil eu confiar em alguém — disse Cash. — Se as pessoas chegam muito
perto, podem machucar a gente.
— E a solução é manter as pessoas a uma braçada de distância? — retrucou ela.
— Não é o que você faz? — ele devolveu. — A não ser por Rory, e um pouco Judd
Dunn, não me lembro de tê-la visto em companhia de alguém. Principalmente se for
homem.
Engoliu em seco.
— Tenho lembranças terríveis dos homens. A exceção é Cullen, e não havia
contato físico. Gostava das mulheres como amigas, mas as achava repulsivas,
fisicamente.
— Você o amou?
— A meu modo, amei — disse ela, surpreendendo-o. — Foi uma das duas únicas
pessoas, na minha vida, que me fizeram bem sem esperar algo em troca. — O sorriso era
cínico. — Você não imagina quantas propostas a gente recebe nesse meu tipo de

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trabalho. Levam anos aperfeiçoando as cantadas.
— Não pode criticar os homens por tentarem, Tippy — ele afirmou bruscamente. —
Você é o sonho de perfeição de qualquer um.
O coração bateu forte.
— Até o seu? — ela indagou em tom de brincadeira. Mas não estava brincando.
Queria que ele a quisesse. Jamais quisera algo tão intensamente.
Ele soltou a mecha de cabelos.
— Desisti das mulheres anos atrás.
— Não se sente sozinho? — Ela quis saber.
— Você se sente? — retrucou ele.
Ela suspirou, observando as feições fortes.
— Sinto um frio na barriga — disse ela com voz rouca. — Uma ou duas vezes por
ano aparece alguém simpático. Mas nenhum quer conversar comigo, me conhecer. Só
me querem na cama.
Ele arregalou os olhos.
— Você consegue...?
O olhar baixou até o peito dele, com os músculos delineados pela camisa de malha
justa.
— Não sei — respondeu ela honestamente. — Eu não... tentei.
— Quer tentar?
Ela mordeu o lábio inferior e franziu a testa, olhando fixamente para o dinossauro,
sem vê-lo.
— Tenho 26 anos. Não me arrisco em assuntos do coração, estou bem assim.
Tenho Rory, minha carreira. Acho que tenho tudo de que preciso.
— Isso é viver a vida pela metade.
— Você também — ela acusou, erguendo os olhos para ele.
— Tenho um motivo melhor do que o seu — disse ele friamente.
— Mas não vai me contar qual é — ela adivinhou. — Não confia em mim.
Enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta e desviou os olhos dela.
— Fui casado uma vez, anos atrás. Eu me apaixonei pela primeira vez na vida e
estava louco para dividir tudo com minha mulher. Ela me contou que estava grávida.
Fiquei nas nuvens. Quis contar para ela o que fiz a vida inteira, antes de me casar. — O
olhar dele ficou frio. — Contei. E ela ah sentada, ouvindo. Estava muito calma. Não disse
uma palavra. Só ouviu, como se estivesse entendendo. Ficou um pouco pálida, mas não
seria nada de mais. Fiz coisas horríveis nesse meu tipo de trabalho. Terríveis mesmo. —
Desviou o rosto do dela. — Precisei viajar a trabalho por uns dias. Ela se despediu de
mim com muita naturalidade, sem confusão. Voltei com uns presentinhos para ela e
alguma coisa para o bebê, mesmo ele só tendo poucas semanas de vida. Ela me
esperava na porta, de mala na mão.
Apoiou-se na balaustrada. Não olhou para ela enquanto falava.
— Contou que fora a uma clínica, enquanto eu estava fora. Falou também com um
advogado. Antes de sair porta afora, me disse que não ia trazer ao mundo o filho de um
assassino a sangue frio.
Tippy já tinha pensado que havia algo traumático no passado dele, além da vida
profissional. Agora compreendia do que se tratava. Fazia sentido o interesse pelos
gêmeos de Judd e Christabel. Quase sentia a dor dele, como se fosse de si mesma. Ficou
profundamente envaidecida pela confiança que demonstrara, falando de um assunto tão
íntimo.
— Sem comentários? — ele resmungou, com veneno na voz, sem olhar para ela.
— Ela era muito jovem? — indagou ela delicadamente.
— Da minha idade.
Baixou os olhos para as mãos dele, segurando no corrimão de aço. Não

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demonstrava qualquer emoção, mas as juntas dos dedos estavam brancas, devido à
pressão que fazia sobre a barra.
— Não seria capaz de matar uma mosca, se pudesse evitar — disse ela com
calma. — Nunca me deitaria com um homem sem preservativo, a não ser por amor. Acho
que o filho é parte disso.
Virou a cabeça lentamente e olhou-a com curiosidade.
— Mas ela estava com a razão. Eu era um assassino a sangue frio — disse ele,
com indiferença.
Ela procurou o rosto duro com olhar doce e suave.
— Não acredito.
Fechou a cara.
— Como disse?
— O comandante de Rory contou para ele que você fazia parte de uma unidade
militar da pesada, para operações especiais — disse ela. — Era enviado quando as
negociações não davam certo, quando as vidas estavam por um fio. Então, não venha me
convencer de que andou metido com uma quadrilha de assassinos de aluguel. Você não
é esse tipo de pessoa.
Pareceu que ele prendia a respiração.
— Você não sabe nada sobre mim — disse ele abruptamente.
— Minha avó era irlandesa. Tinha mediunidade. Todas as mulheres da família
também têm, exceto minha mãe — ela acrescentou. Os olhos ficaram mais calmos. — Sei
de coisas que não devia saber. Tenho estado muito preocupada com Rory, ultimamente,
porque sinto que há algum perigo relacionado a ele.
— Não acredito nas suas profecias — disse ele com firmeza. — Isso é superstição.
— Pode ser, para você. Para mim, não é.
Olhou o salão em volta, procurando pelo irmãozinho, e encontrou-o no meio da
multidão que olhava para o alto, para o fóssil de um celacanto, o peixe pré-histórico com
barbatanas que se assemelham aos membros dos vertebrados, exibido suspenso no teto
da sala.
Cash sentiu-se invadido. Sentiu que se abrira com aquela mulher, e isso não o
agradava. Guardava-se para si mesmo, mantinha seus segredos. Não queria Tippy
passeando pelo seu inconsciente.
— Estou vendo que você ficou com raiva — disse ela com delicadeza, sem olhar
para ele. — Vou à loja de Einstein. Rory quer uma camiseta. Encontro vocês dois no
saguão daqui a uma hora mais ou menos.
Ele a segurou pela mão e puxou-a para si.
— Não vai, não. Vamos juntos. — Levantou o queixo dela, de modo que pudesse
ver seus olhos. — Uma vez eu disse ao Rory que dava muito valor à honestidade.
— Não dá, não, quando isso se traduz em alguém que se preocupa com sua vida
particular.
— Eu contei para você minha vida particular — retrucou ele. Inspirou lentamente.
— Tenho mais cicatrizes emocionais que você, o que quer dizer alguma coisa. Nós dois
somos pessoas marcadas. Se for o caso, não seria nada de mais que nos envolvêssemos
um com o outro. Mas isso não vai acontecer.
O olhar dela era tímido, curioso.
— Você... você pensou em... se envolver comigo?
Fez a pergunta como se não acreditasse no que tinha ouvido.
Era óbvio que aquilo a envaidecia. Ele ficou surpreso. Não pensara que tivesse
atração por ele. Seria difícil para ela, com o seu passado.
— Com o seu passado... — ela pensou em voz alta.
Deu um passo na direção dele. E prendeu a respiração.
— Está se esquecendo de uma coisa. Você é da polícia.

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— E por isso você não tem medo de mim? — murmurou ele.
Sentia-se ligeiramente ofegante, com a proximidade dela. Tinha o cheiro das flores.
O ombro bem torneado ergueu-se de modo nervoso.
— Judd Dunn era um Texas Ranger. Eu me sentia segura com ele.
— Faz muita questão disso?
Ela mordiscou o lábio inferior e as faces ficaram coradas.
— Não me sinto... segura... com você, para ser precisa. Você me perturba
interiormente. Fico confusa. Sinto algo que vai aumentando. Dá vontade de tocar em
você. Fico imaginando — ela sussurrou enquanto se afastavam dos outros visitantes — o
que eu sentiria se você me beijasse.
Não acreditava que ela tivesse dito aquilo. Mas seus olhos também diziam que sim.
Parecia atordoada.
As mãos magras contraíram-se com algum vigor, trazendo-a para mais perto do
corpo delgado, aquecido, musculoso. Faltava-lhe a respiração. Os olhos escuros
pousaram nos lábios cheios.
— Eu também fico pensando em tocar em você, Tippy. — A voz saiu do fundo da
garganta.
Os polegares dele subiram até as axilas, seguindo a curva dos seios. A boca
passou a centímetros da dela. O hálito era quente, com cheiro de menta.
— Penso no toque de seda da sua pele de encontro ao meu peito. Penso em abrir
sua boca dentro da minha e em sentir seu sabor com a língua.
Tippy engoliu em seco. Seu corpo tremia. Apoiou a testa no peito dele e tentou
respirar normalmente. As narinas encostaram no peito.
— Cash — ela gemeu.
Os polegares insistiam. O desejo o percorreu como uma correnteza. Sentiu-se
enrijecer, perdeu o controle. Pensou em dar um passo atrás, mas ela movia de leve os
quadris, o que o fez estremecer de prazer.
Ergueu os olhos para ele, surpresa pela resposta imediata do corpo. Sabia por que
o corpo dos homens ficava rijo assim, mas sempre achara repugnante. Agora, era
fascinante, a glória. Os lábios abriram-se quando procurou nele os olhos tempestuosos.
Ele a queria!
Recomeçou a se mexer, louca para lhe dar prazer, mas, de repente, as mãos dele
caíram sobre seus quadris delgados e os seguraram com força.
— Se fizer isso outra vez — disse ele entre os dentes —, vamos ter uma nova
definição de atentado ao pudor, e nós dois seremos os primeiros da lista.
— Ah, ah!
Ela engoliu em seco e olhou em volta com o rosto rubro de vergonha. Ainda bem
que ninguém estava olhando.
Afastou-a totalmente e endireitou-se, recitando mentalmente a tabuada de
multiplicação para desviar o pensamento dali. Fora um longo jejum, mas, mesmo assim,
sua reação a Tippy era desconcertante.
Ela sentia algo parecido. Passara da frígida apreensão a uma apaixonada
antecipação em segundos. De súbito, só pensava em uma cama, com Cash nela. Quase
via aquele poderoso corpo sem roupas...
Emitiu um som débil e não conseguia olhar para Cash por nada neste mundo.
Por sua vez, ele não conseguiu segurar o ruído que lhe escapou pela garganta
apertada. Ela era um livro aberto. Ficou vaidoso de saber que a excitava com uma
brincadeira amorosa inocente. Também mexia com ele, que, no entanto, não acreditava
nela. Será? Nunca antes contara a uma viva alma qualquer coisa sobre a esposa.
Como se buscasse proteção, a mão com unhas muito bem feitas pousaram na
camisa dele, fazendo leve pressão. Manteve uma distância discreta entre seu corpo e o
dele. Não teve a audácia de olhá-lo nos olhos. Nunca se sentira tão insegura, tão tímida.

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Nunca se sentira tão feliz, nem tão... estimulada.
As grandes mãos seguraram a cintura fina e pressionaram. Em torno deles, as
pessoas andavam, conversavam, riam. Mas estavam sozinhos no mundo. Uma sensação
que Cash não se lembrava de ter experimentado na vida.
— Eu posso machucar você — ele dardejou. — E não estou falando no sentido
físico. Represento um sério risco. Estou acostumado demais a ter meu próprio espaço.
Não sei dividir. Não sinto mais... emoção.
Parecia vulnerável. Isso a fascinou. Os serenos olhos verdes ergueram-se para o
turbulento olhar escuro, e soltaram faíscas. Ela ouvia a própria respiração; era audível.
— Estou sentindo algo com que nunca sonhei.
As mãos dele a puxaram pela cintura. Os dedos se fechavam.
— Seria suicídio! — disse ele, com aspereza.
Lembrou-se do que lera em um livro. Os olhos dela brilharam quando murmurou,
com graça:
— Pretende viver para sempre?
A frase quebrou a tensão. Ele riu.
O rosto dela resplandecia.
— Há poucos dias, eu não sabia se conseguiria ficar com um homem — ela
confessou com voz rouca. — Mas tenho quase certeza de que ficaria com você. Sei que
sim!
Agora era ele quem estava radiante. Observou-a em silêncio arrebatado.
— Até quando, Tippy? — indagou ele, após um minuto. O cérebro dela não
funcionava. O corpo brigava com o desejo.
— Quando? — disse ela confusamente.
O peito dele inflou-se e depois relaxou.
— Não quero me casar outra vez — disse ele sem expressão. — E ponto final.
Ela arregalou os olhos ao perceber o que tinha insinuado. Ainda lhe restava a
consciência para poupá-la de maiores confusões.
— Espere aí, companheiro — disse ela —, isso não foi um pedido de casamento.
Eu mal o conheço. Sabe cozinhar e arrumar a casa? Sabe administrar uma conta
bancária? Consegue cerzir suas meias? E que tal fazer compras no shopping? Eu
realmente não posso levar um homem a sério se ele não gostar de fazer compras!
Ele piscou duas vezes, fazendo cena, e puxou a própria orelha.
— Pode repetir isso? — perguntou ele educadamente. — Acho que minha cabeça
entrou em recesso...
— Além do mais, tenho muitas exigências para um futuro marido, e você ainda
nem está no páreo — ela prosseguiu, sem se abalar. — Vá com calma, Grier. Aqui você
só está em período de experiência.
Ele piscou de novo.
— Tuuudo bem — ele resmungou.
Afastou-se dele sacudindo os cabelos.
— Não ponha minhocas na cabeça só porque concordei em ficar com você. E
lembre-se de que temos um acompanhante. Portanto, chega de ter idéias.
Ele esboçou um sorriso.
— Tudo bem.
Ela franziu a testa.
— Só conhece essas duas palavras?
Ele deu um sorriso malvado e ia começar a falar.
— Que audácia dizer isso!
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Sei que você não vai acreditar, mas leio a mente dos outros, e li a sua, e se eu
fosse sua mãe, lavava sua boca com sabão!

29
A referência à mãe dele tirou-lhe o sorriso do rosto e tornou-o introspectivo.
Ela fez uma careta.
— Desculpe. Desculpe mesmo. Não devia ter dito isso.
Ele franziu a testa.
— Por quê?
Ela evitou olhar para ele e andou até um esqueleto em uma vitrine.
— Sei o que houve com sua mãe. Crissy me contou.
Ele estava em completo silêncio.
— Quando?
— Depois que você me fez chorar — ela confessou, desgostosa com a lembrança.
— Disse-me que não era algo pessoal contra mim, que você simplesmente não gostava
de modelos. E me contou por quê.
Enfiou as mãos no fundo dos bolsos da jaqueta. Que terríveis lembranças o
assaltavam.
Ela virou-se e encarou-o.
— Não consegue se esquecer, não é, depois de tantos anos? Ódio corrói, Cash.
Consome por dentro. E só machuca você mesmo.
— Você ia acabar sabendo — disse ele.
— É, ia, sim — respondeu ela, sem se ofender. — Sei o que é odiar. Já tive meu
inferno na vida, e doía tanto que eu nem conseguia lutar contra aquilo. Apanhei, me
machuquei e ainda por cima era estuprada seguidamente, gritava por socorro que nunca
veio, enquanto minha própria mãe...
Respirou fundo e desviou o olhar.
O estômago revirava, ao olhar para ela, pois sentia sua dor.
— Alguém devia tê-lo matado — disse ele em tom neutro, sem emoção.
— Tínhamos um vizinho que era da polícia — disse ela com voz rouca. — Sempre
achei que podia ser meu pai de verdade, porque sempre se preocupava comigo. Ele ouviu
os gritos e veio correndo... felizmente, estava de folga. Prendeu Stanton e minha mãe e
os mandou para a cadeia. Ele mesmo me levou para o Juizado de Menores. Era muito
bom para mim. — Engoliu em seco. — Todos eram muito bons. Mas minha mãe
convenceria qualquer um do que quisesse, e Stanton também. Eu sabia que eles iam
fazer de tudo para ficar comigo de novo, e eu preferia morrer. Então, escapuli quando um
guarda estava dormindo, e caí no mundo.
— Eles procuraram por você? — perguntou ele.
— Parece que sim, mas Cullen sumiu com minhas pistas. Tinha dinheiro para me
manter em segurança. Passei legalmente para sua guarda ao completar 14 anos, e minha
mãe não era louca de tentar me tirar dele. Ele conhecia gente que fazia trabalhos
perigosos — ela acrescentou, sorrindo de lado para ele, que certamente se encaixava
nessa categoria. — Ele tinha um amigo importante na contravenção, Marcus Carrera.
Hoje ele está dentro da lei. Tem cassinos nas Bahamas e outros lugares, ele e Cullen
foram sócios em algum negócio. Mudou muito nos últimos anos, mas tem fama de meter
medo em qualquer um.
— Carrera não é gay. Eu o conheço — Cash refletiu. — É um tipo decente, para
quem já foi gângster.
— De qualquer modo, Cullen disse para minha mãe que, se ela tentasse recuperar
minha custódia, ele ia ter uma conversa com Marcus. Ela conhecia a fama dele. Não
tentou nem a custódia de Rory, depois disso.
— Você a vê?
Ela cruzou os braços.
— Não. Nunca a vejo, nem converso com ela, só por meio do advogado. Mas da
última vez que eu soube dela, estava sem um tostão e falando outra vez em ir para os
jornais. — Olhou para ele. — Eu estou começando uma nova carreira. Não posso ver meu

30
nome enxovalhado, isso vai fazer diferença para eu conseguir trabalho. A lama respinga.
Eu podia perder tudo, até Rory, se ela começasse a falar do meu passado. Ela não tem
nada a perder.

Capítulo Quatro

— Você ainda não me conhece — Cash falou com calma. — Mas espero que saiba
que farei tudo o que puder por você e Rory. É só ligar e avisar.
Observou-o com preocupação.
— Não é justo envolver você — ela começou.
— Não tenho família — disse ele sem emoção. — Ninguém no mundo.
— Tem, sim — ela protestou. — Quer dizer, você já me contou que tem irmãos e
que seu pai ainda está vivo...
As feições dele se enrijeceram.
— A não ser Garon, meu irmão mais velho, não vejo meus outros irmãos, nem meu
pai, há vários anos — retrucou ele. — Meu pai e eu não nos falamos.
— E os seus outros irmãos? — ela pressionou.
Os olhos dele, escuros, estavam perturbados.
— Só Garon — ele repetiu. — Veio me ver no mês passado. Disse que os outros
estavam querendo fazer as pazes.
— Então vocês estão na fase de conversações, pelo menos.
— Pode-se dizer assim.
As finas sobrancelhas dela se aproximaram uma da outra.
— Você não perdoa as pessoas, não é?
Não olhou para ela. Não pretendia responder. Desviou a atenção para o esqueleto
que tinham à sua frente.
— Sua mãe deve ter sido uma pessoa muito especial — ela arriscou.
— Era calma e delicada, tímida na frente de estranhos. Gostava de costura, tricô e
crochê. — Soava como se as palavras fossem arrancadas. — Não era bonita, nem
atraente. Meu pai conheceu a modelo adolescente num rodeio, eles faziam um filme de
moda por lá. Ficou louco por ela. Minha mãe não podia competir. Ele foi perverso com ela,
porque atrapalhava os planos dele. Ela descobriu que estava com câncer e não contou
para ninguém. Simplesmente, desistiu de viver. — Ele fechou os olhos. — Fiquei com ela
no hospital. Não ia nem à escola, e meu pai parou de insistir comigo para que eu fosse.
Segurava a mão dela, quando morreu. Eu só tinha nove anos.
Ela sequer pensava nas pessoas ao redor. Virou-se, passou os braços em torno
dele, apertou.
— Vá em frente — ela soprou para ele. — Conte-me.
Detestava a própria fraqueza. Odiava aquilo! Mas seus braços se fecharam sobre o
corpo esguio. O oferecimento de consolo era irresistível. Guardara tudo dentro de si por
tanto tempo...
Suspirou no ouvido dela, uma respiração áspera e quente.
— Ele levou a amante ao enterro, o enterro de minha mãe — disse ele friamente.
— Ela me odiava, e eu a detestava também. Entrou em contato com dois dos meus
irmãos, que ficaram encantados com ela e danados comigo por não a deixar se aproximar

31
de mim. Eu sabia o que ela queria, era claro para mim. Sabia que estava atrás do imóvel
e do dinheiro de papai. Então, para confirmar, ela jogou fora todas as coisas de minha
mãe, e disse ao meu pai que eu a xingara de tudo, e que ia fazer com ele se separasse
dela.
Respirou profundamente.
— O resultado era previsível, imagino, mas não percebi o que estava por vir. Ele
me mandou para a escola militar e não me deixava ir para casa nem nas férias, até eu
pedir desculpas por ser grosseiro com ela.
Deu uma risada fria. Seus braços forçaram o corpo delgado, sem que ela
reclamasse.
— Antes de sair, disse a ele que haveria de detestá-lo até o fim dos meus dias. E
que nunca mais poria o pé naquela casa outra vez.
— Deve ter ficado claro, para ele também, o que ela queria — ela sugeriu.
Os braços se afrouxaram, um pouco apenas.
— Quando eu tinha 12 anos — respondeu ele —, pegou-a na cama com um amigo
dele e a chutou para fora. Ela entrou na Justiça querendo tudo o que ele tinha. Foi quando
ela contou que mentira sobre mim, só para me tirar do caminho. Achava graça naquilo.
Ela perdeu a causa, mas lhe custou o filho mais velho. Ela forçou a barra, para ser bem
claro.
— Como foi que você soube?
— Ele me escreveu uma carta. Eu não atendia os telefonemas. Pediu desculpas,
disse que queria que eu voltasse para casa. Que sentia saudades de mim.
— Mas você não voltou — ela deduziu, quase que para si mesma.
— Não voltei. Não voltaria mesmo. Falei para ele que nunca iria perdoar o que ele
havia feito com minha mãe e que era para não tentar entrar em contato comigo nunca
mais. Falei que se não quisesse mais pagar minha escola, eu iria trabalhar para me
sustentar, mas não voltaria a morar com ele. — Fechou os olhos, lembrando-se da dor, do
desgosto, da raiva que sentira naquele dia. — Então, fiquei na escola militar, tive boas
notas, fui promovido. Na festa de formatura, me contaram que ele foi assistir, mas não o
vi.
— Logo depois, entrei para o Exército e fui designado para uma operação especial
após outra. De vez em quando, fazia uns trabalhos com outros governos. Quando dei
baixa, passei a trabalhar como autônomo. Não tinha motivo para viver, nada a perder, e
fiquei rico. — Endireitou-se. — Não precisava de ninguém, naquela época. Eu era duro na
queda. Engraçado, ninguém lhe diz que você consegue fazer certas coisas até que você
vai lá e faz.
A mão macia foi até o rosto magro, marcado, e contornou-o delicadamente.
— Você ainda está lá — disse ela com suavidade, e os olhos tinham um vazio
fantasmagórico ao se encontrarem com os dele. — Está preso na armadilha do seu
passado. Não consegue sair, porque não deixa para trás a dor, a raiva, a amargura.
— E você, consegue? — Ele devolveu à queima-roupa. — Já perdoou seu
agressor?
Ela soltou o ar suavemente.
— Ainda não — ela admitiu. — Mas já tentei. E, pelo menos, aprendi a guardá-lo lá
atrás, na minha cabeça. Durante muito tempo, tive raiva do mundo, e aí Rory veio morar
comigo. Entendi que ele devia vir em primeiro lugar e que eu tinha de parar de lutar contra
o passado. Não me esqueci totalmente, mas não é um fardo tão pesado como na época
em que eu era mais jovem.
Ele riscou as sobrancelhas dela com o dedo indicador.
— Nunca contei isso para ninguém. Nunca.
— Sou como um túmulo — retrucou ela, gentilmente. — No trabalho, todos me têm
por confidente.

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— O mesmo ocorre comigo — ele confessou com um ligeiro sorriso. — Digo a eles
que poderia derrubar muitos governos se eu contasse o que sei. Talvez os derrubasse
também.
— Meus segredos não são tão importantes. Está se sentindo melhor? — perguntou
ela, sorrindo para ele.
Suspirou.
— De verdade, me sinto, sim — disse ele, surpreso consigo mesmo. Sacudiu a
cabeça. — Você deve ser uma bruxa — ele brincou — Jogando feitiço para cima de mim.
— Um tio meu dizia que nossa família veio dos druidas, da antiga Irlanda. É claro
que também dizia que tínhamos parentes que foram sacerdotisas e um que era ladrão de
cavalos. — Cash riu. — Ele detestava minha mãe e tentou obter minha custódia quando
eu tinha dez anos. Morreu de ataque cardíaco naquele mesmo ano.
— Vida difícil.
— Minha vida tem sido difícil — ele prosseguiu. — Mais ou menos como a sua.
Nós dois fomos à luta e sobrevivemos.
— Você não tem minhas recordações — disse ele com calma.
— Você pode achar que as recordações ruins são como furúnculos — ela
comentou, não totalmente de brincadeira. — Pioram até você espremer.
— As minhas, não, meu bem.
As sobrancelhas dela se ergueram. Estava fascinada com o carinho demonstrado
no tom de voz suave, profundo. Ficou corada. Estranho, já que detestava esse
tratamento, quando vinha de uma fila de pretendentes, que o usavam como arma contra
sua feminilidade.
Ele ergueu apenas uma das sobrancelhas, com ar brincalhão.
— Você gosta, não é? — disse ele arrastadamente. — E sabe também que eu não
costumo ser carinhoso, não é?
Ela concordou com a cabeça.
— Sei muitas coisas sobre você que eu não devia saber.
Levantou o queixo e olhou para ela de cima do nariz comprido e fino.
— Só achava que era perigosa em Jacobsville. Agora sei que é mesmo.
Ela fez uma careta.
— Ainda bem que reparou.
Ele riu e soltou-a.
— Vamos. Podem pensar que somos estátuas da exposição, se ficarmos mais
tempo por aqui.
Estendeu a mão.
Ela sacudiu a cabeça.
— Só me oferece esta parte do corpo? — indagou ela, e ficou vermelha ao
perceber o que acabara de dizer.
Ele deu uma gargalhada e entrelaçou os dedos nos dela.
— Não force a barra — ele censurou-a. — Ainda nem tivemos uma sessão quente
de agarramento.
Ela tossiu de leve.
— Não fique tão animado. Sou puritana por natureza.
— Isso não vai durar muito tempo, se eu estiver por perto.
— Acho que é puro convencimento.
— Vai deixar de achar quando me vir em ação — ele brincou e apertou os dedos. A
voz baixava à medida que ele se aproximava. — Conheço 12 posições ótimas e faço
música lenta na cama. Se não fosse a modéstia, poderia até lhe dar minhas referências.
Uma experiência sensual para você nunca mais se esquecer.
— É tão modesto — ela debochou.
— Quem tem minha capacidade não precisa ser modesto — murmurou ele, em

33
tom malicioso.
Ela não admitiria, mas o que tinha pela frente quase a fez perder a respiração.
Estava escrito em seu rosto. Um sorriso se abriu.

Almoçaram em um restaurante japônes, e ali, Tippy e Rory ficaram encantados de


ouvir Cash conversar fluentemente com o garçom. Também era competente com os
pauzinhos.
— Não sabia que você falava japonês — exclamou Tippy. — Já morou no Japão?
— Várias vezes — respondeu ele, levando um pedaço de frango à boca com os
pauzinhos. — Gosto muito de lá.
— Você fala outras línguas, Cash? — Rory quis saber.
— Umas seis, eu acho — replicou ele com modéstia. Sorriu diante da fascinação
do garoto. — Se quiser fazer carreira no serviço secreto, as línguas vão levar você mais
longe que a faculdade de Direito.
— Não vai, não — disse Tippy a Rory quando ele ia abrir a boca. — Vai arrumar
um bom emprego de técnico de computador, vai se casar e ter sua família.
Rory lançou-lhe um olhar flamejante.
— Vou me casar quando você se casar.
Cash sacudiu a cabeça.
— Melhor ainda — Rory continuou —, vou me casar quando ele se casar — e
apontou para Cash.
— Eu não faria essa aposta — Cash aconselhou Tippy.
— Nem eu — ela admitiu.
Olhou-a com curiosidade, mas não sorriu. De fato, tinha sensações nunca antes
experimentadas, e estava se tornando um medroso crônico. Aquela mulher fazia com que
desejasse coisas, e delas precisasse, coisas que ele temia mais do que as armas. Queria
levá-la para a cama, e ela deixou claro que permitiria que acontecesse. A expectativa
fazia sua cabeça girar. Imaginava aquele corpo perfeito sob o seu, em suaves lençóis,
sentia as pernas compridas se enroscando em torno de si, os lábios cheios mesclados
aos dele. Ela não conhecia o sexo consentido, dissera, mas ele poderia lhe ensinar. Tinha
experiência suficiente, muita habilidade, para apresentá-la a uma verdadeira festa de
prazer físico. Na verdade, morria de vontade de fazer isso agora mesmo. Será que ela
percebia o que se passava? Sabia?
Os olhos dela se enchiam de prazer pela sua companhia. Mesmo que pudesse ser
considerada virgem, certamente tinha inteligência suficiente para perceber o desejo no
rosto de um homem, e no corpo dele. É claro que sabia. Ele se sentiu preso em uma
armadilha.
Forçou-se a não olhar para ela, enquanto decidia o que fazer em seguida. Vir para
Nova York, disse para si mesmo com raiva, fora uma péssima idéia. Tinha de sair dali,
enquanto era tempo.

Sua mudança de atitude ficou evidente demais para Tippy que, de repente, estava
sensível às mudanças de expressão daquele rosto magro e tenso.
Ela se recolheu da mesma forma. Era educada e calorosa, mas a mesma distância
que havia agora em Cash aparecia nela também.
Voltaram ao apartamento e encontraram um garoto, mais ou menos da mesma
idade de Rory, tocando a campainha com impaciência. Virou-se ao vê-los se
aproximarem.
— Oi, Rory! Mamãe falou que vai nos levar ao cinema e que você pode dormir lá
em casa! — Olhou para Tippy e Cash, e fez uma careta. — Acho que vocês não vão

34
querer ir, já que têm companhia...
— Ah, Cash não é companhia, Don, ele é da família — disse Rory sem vacilar, sem
se dar conta da expressão no rosto de Cash. — Eu ia adorar! Posso, mana?
Don Hartley morava com a família no mesmo andar. Eles sabiam dos problemas de
Tippy com a mãe. Nunca perdiam Rory de vista.
Ela hesitou.
— Bem... — ela começou.
— Aposto que Cash está louco para levar você a um lugar chique, só vocês dois —
Rory sugeriu. — E vocês nem têm que me dar satisfação!
Cash caiu na gargalhada.
— Podíamos ir ao balé — disse ele. — Eu, ah, tenho os ingressos. Não sabia se
você queria ir...
— Adoro balé — disse ela com entusiasmo. — Quis fazer balé quando era criança,
mas... nunca tive oportunidade. — Voltou-se para Don. — Está bem, ele pode ir. Mas só
até a hora do café-da-manhã, porque recomeçamos a filmar no dia seguinte ao Ano-novo.
— Está brincando! — exclamou Cash.
— Não estou. O produtor nos disse que o diretor vai começar outro filme na Europa
em março, e está com pressa para acabar com esse.
Suspirou.
— Depois você fica toda marcada — Rory resmungou.
Ela encolheu os ombros.
— Vou dizer o quê? — perguntou ela e fez uma careta. — Sou uma estrela!

Rory arrumou uma sacola para passar a noite fora e foi para a casa do vizinho.
Cash voltou para seu hotel para vestir um terno, enquanto Tippy vasculhava o guarda-
roupa inteiro, procurando a roupa mais adequada. Só a encontrou quando Cash já estava
de novo à porta.
Prendeu a respiração ao vê-lo em traje social, com uma camisa branca impecável
e gravata preta, calças com vinco perfeito e sapatos tão engraxados que refletiam o teto.
O cabelo descia pelo pescoço, levemente ondulado e muito negro. Tinha um aspecto
lindíssimo.
— Você vai de roupão, é? — perguntou ele, balançando a cabeça.
Fechou mais o roupão.
— Estava procurando o melhor vestido.
Ele olhou o relógio.
— Tem cinco minutos para encontrar — ele ordenou. — Fiz reserva para as seis
horas, no Bull and Bear.
Ela ficou de queixo caído.
— É um dos melhores restaurantes da cidade...
— No Waldorf Astoria — ele completou. — Eu sei. O balé começa às oito. Estou
pronto. Se você não pretende ir assim... — ele mostrou o roupão azul na altura dos
tornozelos — ... é melhor começar a correr.
Voou para o quarto.
Colocou o vestido de veludo branco sem alças, com um laço preto e, por cima,
casaco de veludo preto com forro branco. Não prendeu os cabelos longos e passou
maquiagem leve. Usava brincos de brilhantes, assim como o colar e a pulseira. Não se
olhou duas vezes no espelho e saiu ao encontro de Cash.
Ele se distraía junto à estante de livros quando ouviu a porta se abrir. Virou-se, e o
rosto ficou congelado.
Subitamente, ela se sentiu insegura.
— Será que eu devia usar outra coisa? — perguntou ela com nervosismo.

35
Apenas olhou para ela, os olhos escuros semicerrados.
— Uma vez vi um quadro num museu — murmurou ele, andando lentamente na
direção dela. — De uma fada que dançava à luz da lua, sorridente. Você se parece com
ela.
— Ela usava casaco de veludo? — indagou ela, em tom zombeteiro.
— Não estou brincando. — Emoldurou o rosto dela com as mãos. — Achei que era
a criatura mais sedutora que eu já tinha visto. — O olhar pousou sobre a boca bem-feita.
— Você me tira do sério...
Os lábios rijos selaram sua boca, lenta e suavemente, de modo que não a
assustasse. Trouxe-a para mais perto de si, devagar, sem forçar, e os lábios brincaram
com os dela, até sentir seu corpo relaxar, até sentir seus lábios se afrouxarem. Ela tomou
fôlego, sem jeito, e, aos poucos, aninhou-se no peito firme. Passou as mãos pela curva do
pescoço forte. Ele sentiu na pele a friagem das mãos.
Ergueu a cabeça alguns centímetros, de maneira que pudesse olhar dentro dos
lindos olhos verde-claros. Ela estava amedrontada. Mas não lutava para escapar. Se é
que via algo, via aqueles olhos brilhando de desejo.
— Não vou machucar você — ele prometeu, baixinho.
— Não estou com medo de você — disse ela com a respiração entrecortada.
— Tem certeza? — ele ralhou junto à boca.
Mordiscou-a em rápidos e ardentes beijinhos, que tiveram efeito explosivo em
ambos. Capturou seus lábios de repente, concentrando-se no impulso poderoso do corpo.
Ela engoliu em seco, estremecendo à subida do prazer quente que fervilhava nas veias,
em reação ao contato íntimo.
— É, você sabe como é, não sabe, meu bem? — Ele repetiu, indo de encontro à
boca. Firmou as mãos e aumentou a pressão dos lábios. — Quer me sentir dentro de
você? — Ele soprou no ouvido dela.
— Cash!
Lutava sem esperança, amedrontada pelo fato de não poder escapar.
Ele percebeu a situação, afinal, e afrouxou o abraço.
— Desculpe — ele resignou-se.
Ela não se moveu. Procurou o olhar dele.
— A mim também. Esqueci que... os homens... perdem o controle — ela sussurrou.
— Eu não — replicou ele sucintamente. — Nunca. Até agora.
Encarou-o, fascinada, de olhos arregalados. A confissão áspera poderia tê-la
amedrontado. Mas teve o efeito oposto. Ele não se deu conta de que isto o fez parecer
mais vulnerável diante dela. Exorcizou o temor com um profundo suspiro.
— Tudo bem — murmurou ela e ensaiou um breve sorriso. — Não estou mais com
medo.
Passeou os dedos pelo queixo de contorno arredondado. Levou-os até a boca e
deslizou pelos lábios carnudos. Experimentava o corpo dela; os dedos eram pincéis de
artista, tocando, riscando... atormentando.
O corpo agitava-se à medida que os braços dele se fechavam. Mas seus lábios se
erguiam, os olhos fechados, em óbvio convite.
— Tem gosto de algodão-doce,Tippy. — Respirou quando a boca delicadamente
se afastou dos lábios abertos. — Eu podia devorar você viva...
Sentiu a aspereza dos lábios dele roçando nos dela, raspando, buscando. Seguiu-
os cegamente, pegou-se neles como uma pomba, vivenciando cada segundo daquele
doce beijo. Ele não a ameaçava. Não causava medo. Gostava de sentir o corpo dele
contra o seu, do cheiro acre e limpo da loção pós-barba. Gostava do modo como a
segurava, com ternura, mas também com força e confiança.
Tremores ligeiros e estranhos passaram por suas pernas, subiram-lhe pela coluna.
Chegou mais perto de Cash, sem muita certeza. As mãos se fecharam no pescoço dele.

36
O corpo se ergueu, por impulso, buscando contato mais próximo. Faria qualquer coisa
para tê-lo.
Ele sentiu a resposta e afastou a boca, à procura do olhar confuso.
— Você me quer. Eu sei, mas não vou me aproveitar disso. Você está em
segurança — ele sussurrou. — Vamos deixar acontecer. Não vai doer. Não vou forçar
nada. Está bem?
Ainda não tinha certeza, mas concordou, de leve, com a cabeça, e fechou os olhos
à espera.
A confiança demonstrada fez com que os joelhos dele fraquejassem. Sabia por
instinto como era difícil, para ela, ceder a um homem o controle do seu corpo, depois do
que sofrera na juventude. Reprimiu com firmeza o próprio desejo. Queria ser meigo.
Queria que sentisse tanto prazer a ponto de nunca mais olhar para outro homem!
A boca roçou a dela de leve, depois com insistência. Deixava que a resposta o
guiasse, recuando ligeiramente se ela enrijecesse, avançando se ela o puxasse para si.
Foram alguns segundos de acalorada pulsação, de um prazer que só crescia.
Deixou escapar alguns sons quando a boca cobriu seus lábios, faminta, e seu
corpo forçou o dele em uma busca concreta. Ele sentiu o desejo concentrado nela, sentiu
a fome despertada, em contato com a dele próprio.
Sim, pensou enlouquecido, ela o queria. Mesmo que ainda não o soubesse.
Ergueu-a do chão em um abraço, e a boca buscou, apaixonadamente, os lábios suaves.
Tremia diante do desejo dele, que sentia como veia pulsando. A boca estava
faminta por seus lábios, e o corpo retesado. Ouviu-o grunhir em sua boca e sentiu os
braços se fechando com firmeza às costas.
Devia ter ficado com medo. Ele podia nunca ter perdido o controle com outra
mulher, mas muito em breve perderia com ela. Sentiu-se valorizada pela necessidade que
percebeu nele. Lembrou-se, com deslumbramento, de que ele dissera, certa vez, que
passava muito tempo entre uma e outra mulher. Estava faminto e ela, aparentemente,
correspondia. E se ele não quisesse parar? E se não conseguisse parar?
Ele sentiu o entusiasmo dela se esvair e afastou-se imediatamente, pousando o
corpo dela de volta sobre os próprios pés. Ergueu a cabeça, observou-a com o rosto
despido de qualquer expressão. Apenas os olhos, de um negro reluzente, tinham vida.
Ela engoliu com força.
— Só para conferir — ela conseguiu dizer.
— Para ver se eu podia mesmo parar?
Concordou, envergonhada.
Ele passou o dedo sobre os lábios intumescidos.
— Você não é o que eu esperava.
— Você também não.
Escondeu o rosto por um momento, recordando a pergunta que ele fizera antes.
Mesmo como lembrança, aquilo voltou. Pensou na sensação de tê-lo dentro de seu corpo.
Estremecia de um prazer único. Mas no exato momento em que começou a dizer algo
com a mesma clareza, ele se afastou.
Inclinou-se e beijou-a na ponta do nariz.
— E melhor irmos andando. Vamos cumprir todos os compromissos.
Ela ergueu os olhos e hesitou. Sentia calor por todo o corpo, tensão, desejo. Os
olhos estavam cheios de vontade insatisfeita.
— Se eu lhe pedisse...
— Sim? — ele prontificou-se.
Engoliu em seco e forçou-se a falar.
— Se eu lhe pedisse para fazer amor comigo...
Ele pressionou o polegar sobre a boca inchada. Os olhos dardejando.
— Eu quero! Você não imagina quanto. Mas não começo o que eu não posso

37
terminar.
— Mas eu poderia, desta vez — disse ela com dolorosa ênfase. — Poderia, com
você!
O corpo dele tremia. Ficou longe dela. Não teria a audácia de aceitar aquele
convite. Devia levar um tiro pelo que já tinha feito e dito esta noite.
— Mas você não vai. Esta noite, não. Eu a convidei para jantar e para o balé —
disse ele bruscamente, encaminhando-se para a porta. — Só isso! — Olhou para ela. —
Você vem?
Sentiu vergonha por ter feito uma oferta tão escancarada, ainda mais para Cash
Grier. Ficou furiosa com ele, por fazê-la se sentir assim. Afinal, tinha sido ele quem
começara tudo. Jogou aquele corpo perfeito para cima dela, daquele jeito, e dispensou-a
depois, quando se entusiasmou? Será que todos os homens eram assim?
— Jantar e balé — ela concordou, com poucas palavras, fechou o casaco e
abotoou-o até o queixo. — E não se preocupe. Não vou tentar seduzir você dentro do
carro!
Lançou para ela um olhar feroz.
— Obrigado. Eu estava mesmo preocupado.
Passou por ele com raiva.
Comeram sem saber o que era, e Tippy se sentiu culpada por isso, pois estava
uma delícia. Saíram do restaurante chique para o balé. Sentou-se ao lado de Cash e não
viu o que se passava no palco, a não ser as lindas cores refletidas nos bailarinos. Estava
irritada. Arrebatada. Devorada por um desejo físico que nunca sentira na vida. Cega pela
ânsia por ele. Queria pular em cima dele e arrancar-lhe as roupas ah mesmo, onde estava
sentado. Ofendida e humilhada pelos próprios e incontroláveis impulsos, ignorou-o no
decorrer de todo o espetáculo.
Como se entendesse perfeitamente o que sentia, ele não disse uma palavra nem
tocou nela, até o balé terminar e eles saírem do teatro. Segurou-a pelo braço para ajudá-
la a atravessar a rua até a garagem, mas foi como pegar no frio do aço.
Destrancou a porta para ela entrar e prender-se distraidamente com o cinto de
segurança. Olhou-a de lado enquanto ligava o carro e manobrava para fora do
estacionamento. Arrependeu-se de ter recusado o que lhe fora oferecido. Mas foi honesto.
Nada tinha para lhe dar. Nada mesmo. Seria injusto tirar vantagem de uma situação que
ela não conseguiu evitar. Ficou envaidecido por ela sentir tanta atração por ele, mas não
acreditava naquilo. Não acreditava nela. Ainda se espantava de ter contado seus
segredos mais íntimos para uma mulher que, afinal, era pouco mais que uma estranha. A
não ser que ela não se sentisse como uma estranha. Ela se sentia... íntima. Íntima
demais.
Arrancou para o meio da rua com muda agressividade.
Ela reparou nisso. Revirou no colo a bolsa e olhou pela janela as ruas cheias de
gente, com riscos de néon e anúncios luminosos.
— Não seja convencido, Grier — disse ela diretamente. — Tenho certeza de que
existem outros cinco ou seis homens no mundo que poderiam me fazer sentir como se eu
estivesse querendo seduzi-los na calçada.
Respondeu com um som áspero, do fundo da garganta.
Ela não olhou para conferir se era uma risada ou outra coisa.
— Além do mais, sempre posso tomar uma ducha fria e ir para a academia...
O carro fazia movimentos bruscos, sob as mãos dele, como se estivesse solidário
com seus sentimentos.
— Quer parar um pouco? — indagou ele após um instante. — Nós dois sabemos
que você começaria a gritar no momento em que eu lhe encostasse as mãos com
segundas intenções.
— Isso é o que você pensa? — retrucou ela.

38
— Trabalhei na polícia e nas forças armadas a maior parte da minha vida — disse
ele, reduzindo a velocidade. — Sei mais sobre vítimas de estupro do que você.
Ela não disse nada, mas ficou olhando para ele, à espera.
Olhou rapidamente para ela quando fez uma curva.
— Você pode ser a pessoa mais bem-intencionada do mundo, mas não vai ser
assim tão fácil para você ficar com um homem... mesmo que seja um homem que você
pense que quer. Um dos casos de estupro mais difíceis que já vi era numa circunstância
parecida. Uma moça que fora estuprada quis ter relação com o namorado. Mas não
conseguiu, e ele não conseguia parar.
— O que aconteceu?
— Ela começou a gritar na hora em que os pais dela chegaram em casa.
Mandaram prender o rapaz. Ela tentou retirar a queixa, mas era tarde demais. Ele obteve
a condicional, pois era réu primário, mas nunca mais falou com ela. E ela o amava de
verdade. Só não conseguia fazer sexo com ele.
Ela cruzou os braços por cima do casaco e teve um arrepio.
— Viu o que acontece? — ele resumiu.
Ela fez que sim com a cabeça. Os olhos se fixaram nas fachadas que passavam.
Com os lábios apertados, ele disse:
— Eu não conseguiria conviver com o fato de ter perdido o controle e forçado você,
entende? — ele admitiu finalmente.
Ela tomou ar de maneira audível.
— Mas fui eu que ofereci — disse ela com voz rouca.
Olhou-a de relance.
— Que diferença faria se eu provocasse em você mais cicatrizes do que já tem?
A raiva dela se evaporou e observou-o em silêncio.
— Nunca me senti assim com alguém desde que aquilo aconteceu — ela
confessou. — Sentia muita atração por Cullen, mas ele considerava as mulheres
repulsivas. Mesmo assim, não era desse jeito. Estou me sentindo em brasa — disse ela
com uma risadinha nervosa. — Sinto tudo doendo. Quase como se eu estivesse
passando mal. Só consigo pensar em como seria passar a noite inteira, na cama, com
você.
As mãos seguraram com força o volante, até ficarem brancas, e ele tentava se
convencer de que uma desgraça estava prestes a ocorrer.
— Mas se você não estiver interessado, eu também não estou. Imagino que esteja
preocupado com esse negócio de casamento. Não pretendo lhe propor algo nesse
sentido, mesmo que o considere muito bom de cama, se é que isto vai fazer você mudar
de opinião.
Ele riu, sem querer.
— Você não entendeu.
— Você é impotente? — murmurou ela secamente.
Olhou para ela.
— Não sou impotente.
— Está se guardando para uma pessoa e não me contou? — ela insistiu.
— Que diabo!
— Só estou tentando lhe explicar que gostaria de ter sua colaboração para um
projeto científico — ela continuou, imperturbável.
— Um o quê?
— Um projeto científico. Anatomia. — Fez uma careta.
Estava perdendo terreno. Isso era péssimo. Tinha que manter a cabeça no lugar,
porque era capaz de apostar que ela estava perdendo a cabeça.
— Eu nem vou lhe pedir para deixar a luz acesa.
Ele franziu a testa.

39
— Por que eu apagaria?
— Bem, um homem da sua idade — murmurou ela, olhando as próprias unhas
pintadas. — Quer dizer, você deve ter alguma inibição de mostrar o corpo.
Espiou-o por entre os cílios.
Sentiu-se tenso. Imaginou se ela fazia idéia de como a conversa era provocante.
— Tenho um corpão, obrigado.
— Nesse caso, podemos ficar de luz acesa.
Deu um suspiro intenso quando entrou na rua dela e parou em frente ao prédio,
sem desligar o carro. Fechou a cara, sob a luz da rua.
— Quer fazer aqui mesmo, com o motor ligado? — exclamou ela com voz
apressada, olhando em volta.
— Não quero! — ele rosnou.
— Então, vamos subir? — ela sugeriu. — Não andei perguntando a todo mundo, é
claro, mas sei que os meus vizinhos ficam escandalizados por qualquer coisa.
Ele entendeu o que ela dizia e tentou pesar as conseqüências com lógica. Mas a
mente não colaborava. O corpo fazia com que fosse impossível pensar em qualquer
coisa. Só de vê-la naquele vestido longo branco, com a parte de cima ajustada e
ressaltando as belas curvas, aquilo o deixava doente. Já fazia muito tempo. Tempo
demais. Estava louco por uma noite de loucuras na cama. Mas não com uma mulher que
tinha sofrido abuso e estava a um passo de quem perdeu a virgindade.
— Última chance — disse ela, sem fôlego, tamborilando com as unhas na bolsa,
como se lutasse contra o recato natural para fazer aquela oferta ultrajante.
Ele suspirou com irritação.
— Ouça...
Ela ergueu a mão.
— Você está enrolado para dar uma desculpa — ela resumiu. — Sinto muito, mas
não adianta. Você não quer. Tudo bem. Eu entendo. Obrigada pelo jantar e pelo balé. Sei
que não demonstrei, mas gostei muito, de verdade.
Abriu a porta e saiu, com um sorriso forçado.
— Vai ficar por aqui amanhã? É véspera de Natal.
Ele franziu a testa.
— Ainda não sei.
— Se ficar, vou fazer um peru, com molho e todos os acompanhamentos — disse
ela.
Ele estava confuso e aborrecido. Nunca se vira em uma situação em que estivesse
tão dividido entre duas alternativas. Nunca desejara uma mulher tão intensamente
também. Mas achava aquele ponto de vista muito otimista. Ela nunca resolvera de fato o
seu passado.
— Você já fez terapia? — perguntou ele abruptamente.
— Acha que eu preciso de terapia porque me ofereci para fazer sexo? — exclamou
ela.
— Que diabo! — ele explodiu. — Não consegue falar a sério um minuto?
— Passei toda a minha vida adulta sendo muito séria, e isso não me levou a lugar
algum.
— Você precisa de um apoio — ele insistiu.
Ela o olhou fixamente.
— Não estou precisando de apoio. Só preciso de... bem, não faz diferença. Você
não está interessado.
— Você nunca enfrentou seu passado — disse ele diretamente.
— Ah, enfrentei, sim. Apesar de você achar que não, eu consigo conviver com meu
passado. Você consegue?
Virou-se e subiu as escadas da entrada. Estava com raiva, mas seu corpo ainda

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pulsava como se tivesse uma ferida aberta. Não controlava aquilo, ou o desejo
insatisfeito. Ele pensava que ela não funcionava como mulher. Sabia que conseguiria,
com ele, pelo menos. Mas se não acreditasse nela, não havia como demonstrá-lo.
Fez uma pausa ao destrancar a porta da frente e olhou para ele. Ainda estava
sentado no carro, carrancudo, com as duas janelas e o teto solar fechados. O carro
também ainda estava ligado.
Acenou com a mão e entrou. Era a coisa mais difícil que fazia em vários anos.
Sabia que talvez nunca mais o visse. Engraçado era o fato de ter dito a verdade. Seu
corpo se agitava de desejo. Queria-o tanto que quase tremia. Qualquer outro a teria
levado para o quarto antes que terminasse de fazer o convite. E tinha agora que dobrar
um homem preocupado demais com os traumas para aceitar uma oferta desavergonhada!

Capítulo Cinco

Cash viu-a passar pela porta com o coração apertado. Aquela mulher linda,
desejável, o queria. Mas estava dentro de casa, e ele, do lado de fora, no frio, com o carro
ligado. Por que isso? Por ele temer que uma vez não tivesse sido o bastante. Sentiu
medo de, finalmente, ter encontrado a mulher de quem não poderia fugir, e não quis que o
fato de fazer amor fosse uma oportunidade para aquilo virar obsessão. Já sentira o gosto
do que a mente de uma mulher considerava amor. Isso lhe destruíra a vida.
Mas Tippy não era qualquer mulher. Tinha de conviver com o próprio passado. Ela
o compreendia, talvez melhor do que qualquer ser vivo. Lembrava Christabel Gaines ao
ouvi-lo com solidariedade. Ele se embriagara com o carinho dela. Mas não fora amor, de
nenhuma das partes. Fora amizade. Não era a mesma coisa com Tippy. Despertava nele
uma onda de paixão no corpo, na mente, no coração. Gostaria de saber como seria estar
com ela. Estava louco para saber.
Enquanto tentava se convencer de que precisava tirar o carro do meio da rua e
seguir em frente, seu corpo já desligava o motor e abria a porta. Estava retesado de tanto
desejo, tão atormentado que não conseguia pensar em algum alívio. Todas aquelas
discussões resultaram em um verdadeiro turbilhão de paixão.
Tocou a campainha quase sem querer. Ouviu um zumbido em resposta. A porta
estava destrancada. Entrou e subiu as escadas, com o coração batendo mais forte à
medida que apertava o passo. Não pensaria no depois. Só quando chegasse a hora.
Ela o esperava à porta, quando ele chegou. Tinha tirado o casaco, mas ainda
usava o vestido sem alças de veludo branco. Os belos cabelos louro-avermelhados caíam
pelos ombros, em ondas macias sobre a pele acetinada. Respirava aceleradamente,
apesar de não conter um leve temor nos olhos meigos. A pele tinha aspecto de seda.
Ele entrou no apartamento e fechou a porta. Em um reflexo, ela passou por trás
dele e trancou à chave.
Mantinha-se afastada. A princípio, ele pensou que havia mudado de idéia. Mas foi
em direção ao quarto. Ele a seguiu lentamente, e o rosto denunciava o desejo que sentia.
Seguiu-a até o quarto e fechou a porta, trancando-a também. Ficou ali de pé,
olhando para ela, com uma vaga noção da colcha limpa sobre a cama de casal atrás dela,
das janelas fechadas, ladeadas por cortinas.
Ela engoliu em seco.

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— A... luz — ela balbuciou e enrubesceu, pois a situação era um pouco
constrangedora, apesar das bravatas de pouco antes.
Ele contraiu os olhos.
— Quer que apague?
Concordou com a cabeça.
— Você precisa saber de uma coisa, antes de começarmos. Não tenho o que usar
como proteção.
Os olhos dela procuraram os dele.
— Eu não me importo.
O coração dele bateu mais forte. Pensou em Jessamina, a filhinha de Christabel.
Pensou em um bebê. Tippy não o rejeitava por não ter o que evitasse um bebê. Ela
gostava de crianças. Ele se permitiu pensar, por um instante, em uma menininha ruiva de
olhos verdes, e aí seu coração disparou de vez.
— Somos loucos os dois — disse ele com voz embargada.
Ela concordou com a cabeça e abriu os lábios.
— Apague a luz. Por favor.
Foi a última coisa que disse.

Descobriu-a na escuridão com as mãos, depois com a boca. Ela se mesclou a ele.
Sentiu o zíper, nas costas do vestido, descer devagar; em seguida, sentiu as mãos dele
em sua pele nua. Ofegou diante da incrível sensação.
— Sim — murmurou ele em seu ouvido. — Você também está sentindo, não é?
Como se passasse eletricidade quando eu toco em você. Nunca toquei numa pele como a
sua. Parece uma pétala de flor aquecida pelo sol — ele sussurrou com voz rouca.
As mãos alisaram-lhe as costas e desceram outra vez, tirando o vestido, a anágua
e a meia-calça ao mesmo tempo.
— Não usa muita coisa por baixo — murmurou ele, divertindo-se.
A respiração dela vinha em espasmos. O toque das mãos fizeram seus joelhos
fraquejar.
— Não se pode usar muita coisa por baixo de um vestido desses — ela admitiu.
A boca de Cash descia-lhe pelo corpo, acompanhada pelas mãos. Sentiu-as nos
seios e estremeceu.
Ele fez uma pausa, com a boca hesitando diante do mamilo rijo.
— Com medo? — ele soprou de leve.
— Não!
Saltou quando sentiu os lábios quentes, abertos e sugando o seio. Segurou-o pelos
cabelos escuros e cheios, e gemeu. Ele riu delicadamente.
— Gosta? E ainda nem começamos.
Ela não entendeu. Na hora, não. Mas ele encontrou mais e mais, com a boca,
depois com as mãos, e quando a paixão acendeu chamas altas e reluzentes, as palavras,
aos poucos, fizeram sentido.
Ele tinha todo o tempo do mundo. Nenhuma pressa. Demorava-se em cada parte
acetinada do corpo, explorando, brincando, testando, enquanto ela gemia com a
sensação que a deixava faminta. Ansiava por ele. Seu corpo era dele. A ele pertencia.
Cada roçar dos lábios em lugares proibidos, cada movimento lento das mãos era pulsar
de gozo.
Sentiu-a mover-se de encontro a ele e sorriu diante do ventre macio, ficou feliz com
aquela resposta, com os gritinhos de prazer, ficou feliz com a sensação de unidade que
lhe dava a nudez dela contra seu corpo.
Saltou quando o sentiu forçar passagem, mas ele a acalmou e aconchegou,
brincando delicadamente com a boca em seus lábios, enquanto ia, aos poucos, abrindo

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caminho para a intimidade entre as pernas compridas e trêmulas.
— Lembra-se do que eu lhe perguntei? — disse ele, com a boca diante dos lábios
bem abertos, quando começou a penetrar nela. — Perguntei se queria me sentir dentro
de você. — Ele puxou o ar com esforço. — Você quer, não é? — Ele provocou. Fechou os
olhos. — Eu quero sentir você, também, tão perto de mim... como estou de você.
— Cash... — exclamou ela, estremecendo, e as mãos agarraram os músculos dos
braços.— Você é tão grande...
— Psiu — ele sussurrou para ela. — Vamos nos encaixar como duas metades,
apesar do que você está pensando. Tudo sem brutalidade nem violência. Já vi o que
acontece quando se força a barra. Não vou machucar você, meu bem. Relaxe. Só isso.
Relaxe. Eu dirijo, você vai no banco do carona. Está bem assim?
Ela deu uma risada rouca com as imagens que lhe vieram à cabeça. Então,
moveu-se de modo lento e sensual, sentindo a invasão terna e suave. O corpo estava
tenso, mas não doía, não era agressivo. Não era sequer... urgente. Era... de olhos
fechando, murmurava, enquanto os movimentos longos, prolongados, provocavam cada
terminal nervoso, que ela nem conhecia, levando ao prazer.
As mãos dele estavam agora debaixo dela, uma no pescoço, outra na curva dos
quadris, levantando-a com delicadeza no ritmo de seu corpo.
— É isso — ele soprou-lhe. — Fazer amor é como cantar canções. Quanto mais
devagar, melhor.
Mordiscou-lhe o lábio superior e se mexeu dentro dela, devagar, com ternura. Ao
menor movimento, ela o sentia mais profundamente em seu corpo, a pulsação compulsiva
do prazer, que crescia e explodia dentro de si, quando seu corpo se distendia para
acomodá-lo. Perdia o fôlego diante do calor e da potência.
— Sinto... você — ela sussurrou, puxando-o para mais perto.
— Também sinto você. Pele de seda, seios acolchoados, boca doce... Não dou
conta de tanta coisa, Tippy!
Ela sentia o mesmo. Ao respirar, gemia o nome dele, e a sensação aumentava
com mais prazerosa violência. Ela estremecia de gozo a cada movimento dele.
Inacreditável!
A boca cobriu a dela e os movimentos cresceram em profundidade e força. Ela
estremeceu. Era... belo! Sentia-o dentro de si. Expandia-se. Era... potente. Nunca sequer
sonhara...
Abriu a boca, sob a dele, e o corpo se abriu para ele. Sentia-se preenchida. Mal
podia contê-lo. Estrelas faiscavam por trás das pálpebras cerradas e o prazer se tornava
chama. Queimava-a, palpitava, elevava-se, explodia em cada célula do corpo. Ofegou, e
os braços acercaram-se dele freneticamente. As pernas circundaram o corpo possante,
sentindo os músculos à medida que ele acelerava a velocidade e o ritmo da lenta invasão.
— Eu... nunca... vi! — Ela gritou com voz ritmada. — Por favor. Por favor, não pare,
não... pare!
A boca se movia pelo pescoço dela, faminta.
— Faço melhor ainda. Feche as pernas dentro das minhas pernas — ele pediu,
resfolegando. — Rápido, meu bem!
Ela não compreendeu, até obedecer ao urgente comando. E, então, os corpos
explodiram em prazer inesperado. Ela manteve a respiração entrecortada, os dentes
morderam de repente o ombro musculoso de Cash, o corpo arqueou-se de prazer, quase
lhe quebrando os ossos...
Em algum lugar recôndito de sua mente, ouviu uma voz junto ao ouvido, tensa,
rouca, selvagem:
— Me dê um filho, Tippy!
Ela se projetou para o sol, tremendo de gozo, um breve e desconsolado grito de
prazer rasgando-lhe a garganta, e perdeu a consciência por alguns segundos. Quando

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recuperou a capacidade para pensar, ouviu-o rosnar em seu ouvido e sentiu o inevitável
tremor do corpo possante sobre o dela, encontrando o que procurava. Parecia não ter fim.
Abraçou-o, confortou-o, durante a convulsão em seus braços. Beijou-o com ternura, o
coração pleno, o corpo satisfeito, pertencendo-lhe, como nunca antes na vida pertencera
a alguém.
Ele finalmente desmoronou nela, com as batidas do coração sacudindo na
escuridão, o corpo encharcado. Agarrou-se a ele de olhos fechados. Não permita que
termine, murmurou em silêncio. Não termine. Não termine...
Nem tinha consciência do que dizia para ele, de que a voz seca reclamando seu
corpo produzira um repentino e impossível despertar.
Ouvira as conversas das garotas. Sabia que o corpo do homem não era capaz do
que ele estava fazendo. Abriu a boca para lhe dizer, mas ele já investia contra ela
novamente. Desta vez, não era lento, hesitante, nem meigo.
As mãos dele seguraram seus cabelos e a boca esmagou a dela. Os quadris
pressionavam com insistência, uma pressão rápida e precisa, que levou seu corpo já
sensibilizado à satisfação repentina, agonizante.
Ela gritou, em desamparo, para a boca devoradora, as pernas fechando-se sobre
os quadris dele, os braços apertando-o furiosamente. Ele sentiu a satisfação instantânea
dela, mas teve que esperar pela sua, mais lenta. Detestou-a pelo que lhe acontecia
naquele momento. Não conseguia parar. Não conseguia se segurar. Estava desesperado
para sentir o gosto do gozo desenfreado que acabara de ter com ela. Tinha que senti-lo
outra vez. Tinha que senti-lo!
Seu corpo cravava o dela, a boca aumentava a invasão, a insistência sobre a dela.
Estava demorando tanto...
— Devagar... — ela sussurrou para dentro dele, com voz meiga, ofegante. —
Devagar. Está tudo bem. Tudo bem!
— Dane-se... — disse ele em um soluço amargo, de quem não conseguia
esconder tanto desejo.
— Está bem — murmurou ela outra vez. — Eu também quero você. Quero muito,
quero demais. Não temos pressa. Não segure o que sente. Mais devagar, Cash. Faço
qualquer coisa por você. Qualquer coisa! Me diga o que você quer.
O discurso ardente e breve fez desaparecer a impotência. Ele retomou o controle.
O ritmo da relação desacelerou e se transformou em ternura.
— Diga-me o que fazer — ela tornou a soprar-lhe no ouvido, abraçada a ele. —
Pode ser... o que você quiser!
A boca cobriu os olhos dela, as bochechas, o nariz. A respiração dele era
entrecortada a cada beijo.
— Nunca fiz nada parecido — disse ele secamente.
Os dedos traçaram nele a linha da boca, do queixo, do pescoço forte.
— Não sabia que era para me sentir assim — ela sussurrou. — Eu achava que ia
doer sempre...
— Não doeu? — murmurou ele junto aos seios dela. — Dói... tão gostoso!
— É!
Rolou para o lado, segurou-a sobre ele, e com as mãos guiava seus quadris. Mal
podia ver-lhe o rosto, mas sentia o leve constrangimento.
— Mexa-se um pouco. Assim...
Obedeceu, sentindo que o corpo dele ganhava potência. Resmungou.
— O que houve? — indagou ele rapidamente.
— Não sei... o que fazer! — ela respondeu. — Vejo nos filmes, leio nos livros, mas
não sei fazer...
— Vou ensinar o que você precisa saber — disse ele com rapidez, puxando-a para
debaixo de si. — Você é perfeita do jeito que é — ele completou, quando a boca achou a

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dela. — A amante mais perfeita... que eu já tive!
Aquilo lembrou-a de que não era a primeira da lista, e ia dizer alguma coisa quando
ele rolou outra vez, imprensando-a, e o prazer explodiu em breves espasmos. Ela
soluçou.
— Faz muitos anos — ele desabou no peito dela. — E mesmo a melhor... não se
compara com isso!
Ela prendeu a respiração. Ele estava sendo sincero. Tinha certeza.
— Quero um filho — ele gemeu desconsoladamente, enquanto seu corpo se
recuperava. — Ah, meu Deus,Tippy... eu quero... um filho!
Ela voltou a si como de um mergulho ao nadar. Ouviu-o gemer com urgência, à
medida que o prazer brotava nela, com o corpo seguindo-o às cegas quando a colocou
em posição, ensinou-lhe onde pegar, como conduzi-lo. Foram os minutos mais belos de
sua vida, ainda que breves. Até o último e mínimo arrepio de gozo, achou que não
conseguiria sobreviver àquilo...

Tippy teve uma vaga noção de que ele estava se vestindo. Ouviu o movimento do
tecido na pele. Piscou os olhos. Não era dia. Olhou o relógio. Tinha números grandes,
para que os visse sem óculos. Eram quatro da manhã.
— Vai sair? — indagou ela com neutralidade.
Ele não respondeu. Terminou de se vestir e sentou-se na poltrona ao lado da cama
para calçar os sapatos.
— Mas... o dia nem clareou — ela insistiu.
Mesmo assim, ele não respondeu.
Ouviu-o se levantar. A porta do quarto aberta deixava entrar a luz da sala, que não
apagaram ao chegar em casa. Virou-se e olhou-a na luz, a pele sedosa no lençol com
estampa floral azul e rosa que a cobria até o peito. Tinha o aspecto de uma... mulher
amada.
O rosto dele estava impassível, destituído de sentimentos.
— Dá para dizer alguma coisa? — perguntou ela, insegura e tentando esconder
isso.
— Fomos dois irresponsáveis — ele alfinetou. — Muita burrice. Mas foi você quem
começou.
Ela suspirou.
— Ah, meu Deus, tem de fazer penitência para pagar os pecados — murmurou ela,
jogando-se de costas na cama.
Ele mal podia acreditar no que ela estava dizendo. Lançou-lhe um olhar
ameaçador.
— Não vou me casar com você! — ele continuou, com irritação. — Mas se vier um
filho, vou assumir a responsabilidade. E vou querer saber!
Ela espreguiçou-se, baixando o lençol, deliberadamente, até a cintura, de modo
que as pontas rosadas dos seios ficassem visíveis. Sabia que ele estava olhando. E
provocou nela uma sensação estranha. Sensual. Completamente mulher. Nunca antes se
sentira assim. Era como se pertencesse a alguém, pela primeira vez na vida.
— Vai mesmo? — murmurou ela, olhando de relance suas feições circunspectas.
Não conseguia parar de olhar para ela. Tomou fôlego ruidosamente.
— Você tem os seios mais bonitos que eu já vi — disse ele sem querer.
Chutou a coberta e arqueou o corpo para lhe proporcionar a melhor visão.
— O que acha do resto? — indagou ela com voz rouca.
— Vou morrer sem me esquecer.
Ele se virou outra vez.
— Por que precisa ir? — perguntou ela. — Não lhe pedi coisa alguma.

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Os olhos dele se fecharam.
— Não quero me prender — disse ele com aspereza.
— Tudo bem. Não vou comprar presente de Natal para você.
Olhou para ela e engoliu uma risada.
— Que droga!
Ela se esticou preguiçosamente.
— Não quer ficar até amanhecer? — perguntou ela.
— Não seria da menor utilidade. Estou acabado. E imagino que você também.
Suspirou:
— Um pouco.
Os olhos dele tinham uma expressão possessiva, ainda que involuntária.
— Todas as minhas amigas têm namorado. Elas dizem que nenhum homem
consegue fazer duas vezes, em seguida — ela elogiou.
Uma sobrancelha se ergueu.
— Estão certas.
Ela o encarou.
Encolheu os ombros.
— Abstinência — disse ele com teimosia.
Ela continuava a encará-lo.
Pigarreou.
— Abstinência e a mulher certa.
As sobrancelhas se ergueram.
— O que você quer de mim? — indagou ele calmamente.
Era para colocar as coisas no seu devido lugar, pois a suspeita o dominava.
— Tenho dinheiro no banco — ela fez questão de dizer, puxando de novo a
coberta sobre o corpo esguio. — Não tenho amantes. A não ser desta vez, é claro. Não
preciso de cozinheiro nem de guarda-costas. Tire suas próprias conclusões.
Dispensara mulheres durante anos porque era rico e isso geralmente aparece.
Como aqui. Mas Tippy estava certa, tinha dinheiro e fama, apesar de, naquele tipo de
trabalho, não haver estabilidade no emprego. Não tinha motivo para querê-lo. A não ser
por ele mesmo. Ou pelo sexo, corrigiu ele, lembrando que ela nunca estivera com um
homem por vontade própria. Era esse o impulso? Euforia da primeira vez?
— É isso, claro — disse ela, como se lesse sua mente. — Você é meu primeiro
amante de verdade e estou dominada pela idéia de ter sido tão bom. Então, naturalmente,
estou ansiosa para segurar você por aqui o mais que puder.
Lançou para ela um olhar penetrante.
— Pare com isso. Não gosto de gente que adivinha meus pensamentos.
Ela encolheu os ombros.
— Está bem.
— Isso foi coisa de uma noite. E ponto final.
— Então, por que você queria que eu ficasse grávida? — perguntou ela, cheia de
razão.
Estreitou os olhos. Não tinha percebido... Agora a olhava, de fato, de modo
penetrante.
— Os homens dizem qualquer coisa para as mulheres os excitarem!
— Ah. Então era por isso. — Fez que sim com a cabeça. — Bom toque. Eu
realmente abri a porta.
— Estou saindo — disse ele friamente.
— Já reparei.
— Vou voltar para casa.
— Eu lhe envio um cartão de Natal.
— Não dá tempo. É depois de amanhã.

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— Nesse caso, feliz Natal.
— É. Para você também.
— Vai se despedir de Rory? — perguntou ela.
A mão dele vacilou na maçaneta. Não pensara em Rory. O garoto esperava passar
a noite de Natal com ele.
— Podíamos nos comportar civilizadamente só por uma refeição. Pelo bem de
Rory — disse ela. Sorriu. — Prometo que não vou tentar nada por baixo da mesa nem
jogar na sua cara um purê de batatas. Se isso ajuda alguma coisa.
Ele teve vontade de dar um berro. Teve vontade de rir. Não sabia que diabo queria
fazer.
— Vou embora.
— Já disse isso — retrucou ela, com visível satisfação.
Ele estava confuso, atordoado, completamente sem rumo, e ela sabia por quê.
Sentia alguma coisa por ela. Algo poderoso. Agora, ele ia lutar contra isso até o final.
Mas, de algum modo, ela estava otimista, apesar de não poder explicar o motivo.
— Volto na hora do almoço — disse ele finalmente. — Só para o almoço. Vou fazer
as malas e sair da cidade logo em seguida.
— Está bem.
Vacilou. Olhou para ela com os olhos escuros e calmos.
— Não machuquei você?
— Claro que não — respondeu ela com meiguice.
Ele suspirou. Um pouco da raiva esvaiu-se dele ao olhar para ela sob a luz fraca.
— Mesmo no final? Fui meio violento. Não queria que fosse assim.
— Sei disso. Não fiquei com medo. Foi a glória! — Tentou sorrir. — Nunca pensei...
— Encolheu os ombros. — Foi quase... insuportável.
Ele concordou.
— Para mim também. — Encolheu os olhos para observá-la. — Mas, mesmo
assim, foi uma irresponsabilidade. Eu devia ter usado alguma coisa.
— Da próxima vez eu lembro você — ela prometeu.
Voltou o brilho no olhar.
— Já lhe disse, não vai haver próxima vez!
— É o que você diz agora.
— Estou mesmo indo embora.
— Não tenha pressa — ela o incentivou.
Ele lançou um olhar gelado e saiu dali batendo a porta. Lá embaixo, ela ouviu o
ruído do motor e a furiosa aceleração para tirar o carro da vaga. Não admira que o nome
seja Jaguar, pensou, estremecendo com o cantar dos pneus.

Tippy circulou pelo apartamento, limpando, lustrando, cozinhando, mais feliz do


que nunca. Estava louca por Cash. Não conseguia tirar da cabeça as imagens proibidas,
ao reviver o prazer ardente de seu corpo contra o dele, na cama.
Esconder isso de Rory era difícil. Ele não compreenderia o que estava
acontecendo. Talvez sim. Mas ela não queria diminuir Cash diante do menino. Não queria
que ele pensasse que Cash se aproveitara dela, nem que a magoara.
— Hoje você está feliz da vida — Rory comentou quando ela tirou o peru do forno.
— Estou me sentindo bem — disse ela em tom pensativo.
— O programa foi bom ontem à noite, hein? — murmurou ele, piscando os olhos.
— Muito bom — ela concordou.
— Ouvimos um maluco cantando pneus de madrugada — ele resmungou sem
olhar para ela. — Tem marcas de pneus na porta do prédio.
— Cash e eu... discutimos — disse ela sem encontrar o olhar dele. — Coisa à toa.

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Hoje ele ainda vem para o jantar.
— Mana, não é o que parece — disse Rory, de modo solene para um garoto de
nove anos. — Ele passou por uma barra pesada e não tem amigos mais chegados.
— Seu comandante o conhece. Eu tinha me esquecido.
Rory concordou.
— Sou louco pelo Cash. Mas não quero que você fique magoada.
Ele dizia coisas que ela só conseguia pensar. Ouvir isso deixou-a em alerta. Estava
vivendo no paraíso dos idiotas. Seduzira Cash, estava sonhando acordada com um
"Foram felizes para sempre". E o irmão de apenas nove anos via as coisas melhor do que
ela. Será que ela achava mesmo que um proscrito, que vivera a vida perigosa de um
proscrito, teria algum interesse em se envolver sentimentalmente? Ainda mais após um
casamento desastroso, que deixara cicatrizes mentais duradouras?
Cash não estava pensando em serem felizes para sempre. Chegara a dizer isso.
Não quis tocar nela, antes de mais nada. Brincara com a fraqueza e a carência dele.
Levara-o diretamente para sua cama, e ele não fora capaz de resistir. Mas isso não queria
dizer que a amava. Sequer o apaixonado pedido de um filho queria dizer amor. Quis dizer
que ele estava sozinho, tinha ciúmes de Judd Dunn e o desejo de ter um filho. Mas... e se
o desejo fosse de um filho de Christabel? Será que ele ainda a amava? Teria oferecido a
Tippy as sobras do desejo rejeitado pela mulher que ele não podia ter?
Todo o quadro mudou em instantes. Ficou gelada. Toda a alegria esvaiu-se, como
chuva que cai das nuvens.
Rory encolheu-se.
— Desculpe — disse ele.
Foi até ela e abraçou-a o mais forte que conseguia.
— Desculpe!
Lágrimas brotaram em seus olhos. Era orgulhosa demais para derramá-las.
Segurou o irmãozinho e sentiu-se enganada. Totalmente enganada.
— Vamos ter um ótimo Natal — disse ela depois de um minuto, enxugando as
lágrimas teimosas, e sorriu para ele. — Você quer fazer os biscoitos?
— Você vai conseguir comer? — ele devolveu.
Deu uma risada. Ela e Rory sempre se deram muito bem, desde a idade que tinha
quando o comprou da mãe.
— Então está resolvido quem vai para a cozinha, eu acho. Se Cash aparecer,
enquanto isso, você o distrai.
Ele sorriu de lado e levantou as sobrancelhas.
— Esse é o meu departamento, está certo. Vamos ver se eu encontro as bolas de
malabarismo e a cartola...
Jogou um pano de prato em cima dele e virou-se para apanhar farinha, azeite e
leite. Quando ficou sozinha, seu rosto desmoronou. Não fazia idéia se Cash de fato
apareceria, depois de tudo, apesar da afeição por Rory. A noite anterior fora um desastre
irrecuperável, e tudo por sua culpa. Se não tivesse colocado Cash numa situação de ter
de fazer alguma coisa para resolver a atração física entre eles, talvez ainda fossem
amigos. E, neste ponto, ela o deve ter cativado realmente. Agora, seus sonhos de
felicidade tinham-se evaporado em uma furtiva noite de paixão que Cash, com mais
experiência, descartaria como sendo o que chamou de coisa de uma noite.
Se pudesse, pensou, voltaria atrás para desfazer os grandes erros de sua vida.
Mas o único caminho possível era o do futuro.

Cash de fato apareceu, no momento em que Tippy roía as unhas, com tudo já
posto na mesa.
O coração disparou quando o porteiro eletrônico soou. Rory correu para ver quem

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era, e Cash respondeu.
— Vou abrir para você agora mesmo! — disse Rory com entusiasmo, apertando o
botão.
Tippy usava calças simples, em veludo verde-esmeralda, com blusa de seda
branca e o cabelo preso para trás com uma écharpe também esmeralda. Tinha um ar
festivo, mas descontraído. Não esperava que Cash viesse de traje social.
E estava certa. Ele usava preto novamente — calça esporte, camiseta e jaqueta de
couro. Olhou para ela sem vê-la e forçou um sorriso para agradar a Rory.
— Está uma beleza — ele comemorou.
— Não é nada sofisticado, uma comida comum. Sente-se. Rory, diga a ação de
graças — murmurou ela rapidamente, tomando seu lugar.
Rory assim o fez, com olhadelas furtivas para os dois adultos, e concluiu com um
longo suspiro.
Foi uma refeição calma, se comparada com as que ocorreram antes. Tippy sentia-
se muito mal, por ter estragado não apenas seu Natal e o de Cash, mas o de Rory
também. Comeram em prolongado silêncio até todos terminarem.
— Eu me ofereci para fazer os biscoitos — disse Rory a Cash —, mas ela falou
que queria poder comer.
Cash deu uma risadinha.
— Você cozinha tão mal assim?
— Nem tudo — disse Rory. — Mas acho bem difícil fazer pão.
— Eu também — Cash confessou. — Eu fazia um biscoito bem razoável, mas hoje
em dia já compro pronto só para assar em casa.
— Tippy, não. Ela faz tudo começando do zero.
— Mulher prendada — Cash afirmou sem olhar para ela.
Era uma coisa boa. Ela ficou vermelha e levantou-se de um salto para apanhar a
torta de cereja que fizera e abrir um pequeno pote de sorvete de baunilha para usar como
cobertura.
Suas mãos tremiam. Cash viu e xingou a si mesmo por ter perdido a cabeça na
noite anterior. Ela estava levando toda a culpa, quando tudo não passou de um maldito
erro dele mesmo.
Ela serviu três tigelas de sobremesa e entregou-as com um sorriso forçado.
— Essa torta tem que ser servida assim que ficar pronta. Não tive tempo de
começar do zero, mas essa ficou muito boa.
— Tudo estava ótimo, Tippy — disse Cash com voz profunda, como se pedisse
desculpas.
Não olhou para ele.
— Que bom que você gostou.
Ele comeu a torta, sentindo-se a última das criaturas. Ela haveria de se culpar por
tudo. Depois que saísse, seria ainda pior. Haveria de se convencer de que não valia mais
que uma garota de programa, e nunca mais tornaria a se aproximar dele.
Piscou os olhos, satisfeito por conhecê-la tão bem. Acusara-a de ler sua mente,
mas conseguia ver diretamente a dela. Era sinistro. Era como se estivessem...
conectados.
— Está bom mesmo,Tippy — Rory confirmou.— Quer que eu lave a louça?
— Eu não me incomodo — respondeu ela imediatamente.
— Deixe isso com Rory. Quero conversar com você — disse Cash com firmeza e
pôs-se de pé.
— Mas eu devia... — ela protestou.
Pegou-a pela mão e puxou-a para a sala, longe do alcance da cozinha. Olhava
para ela com cerimônia.
— Ninguém tem culpa — disse ele com autoridade. — Simplesmente aconteceu.

49
Não fique se punindo por causa disso. O que vier a acontecer, eu assumo.
Ela engoliu em seco uma, duas vezes. Não conseguia olhar para ele sem ouvir a
voz rouca e profunda em seu ouvido, soprando-lhe no escuro.
Cercou o rosto dela com as mãos e ergueu-o até que olhasse para ele.
Estremeceu diante do olhar dela.
— Deixe-me, por favor — ela sussurrou, tentando se soltar. — Não sou criança.
Não tenho de ficar preocupada por... correr atrás de você, nem por coisa alguma.
Ele sentiu o estômago revirado. O estrago fora indizível, muito maior do que
supusera.
— Eu nunca iria pensar uma coisa dessas.
Ela deu um passo atrás, forçando um sorriso.
— Faça uma boa viagem de volta para casa. Dê um abraço em Judd e Christabel.
Ela deve estar muito feliz, com um marido querido e dois bebês lindos para cuidar. Ela vai
ser muito boa mãe.
— Ela é, sim — disse ele, sem esconder a ternura na voz.
Christabel fora uma pessoa especial para ele.
Tippy sabia, e tinha ciúmes. Ficava com raiva de si mesma por isso.
Ergueu os olhos para ele, encerrando a conversa.
— Bem, vou ajudar Rory com a louça. Antes vou chamá-lo para se despedir.
Obrigada por tê-lo trazido para casa. E por me levar para sair.
Agora ele estava zangado, e o demonstrou. Os olhos faiscavam. Detestava ficar
naquela situação. Não sabia o que fazer, nem o que dizer, sem piorar as coisas, e isso o
enfurecia.
Antes que pensasse em alguma coisa, ela saiu e Rory estava em seu lugar,
encarando Cash com curiosidade.
— Queria que você pudesse ficar mais tempo — disse ele para o homem alto. —
Foi o melhor Natal que já tive.
Cash ficou comovido. Gostava do garoto de verdade. Estendeu a mão e sacudiu a
de Rory com firmeza.
— Se algum dia precisar de mim. Tippy tem meu telefone. Ou, se ela não estiver
perto, é só ligar para a Delegacia de Polícia de Jacobsville que alguém me encontra.
Combinado?
Rory sorriu para ele.
— Não vou precisar. Mas, obrigado, Cash.
— Nunca se sabe. — Olhou na direção da cozinha. — Cuide bem dela. É muito
mais frágil do que parece.
— Ela está bem — disse Rory. — É que ninguém dá atenção a ela, a não ser que
queira alguma coisa. É natural ela ficar um pouco atordoada porque um homem gostou
dela pelo que ela é, sabe? — Deu um sorriso sem graça. — Estou me atrapalhando outra
vez. Não sei que palavras são melhores...
— Entendo o que você quer dizer, Rory — disse ele e colocou a grande mão no
ombro do garoto. — Ela vai superar isso.
— Claro que vai.
Nenhum dos dois acreditava naquilo, por certo.
— Cuide-se. Vou ver você — Cash prometeu.
Rory sorriu para ele com uma careta.
— Você também. Fique longe das brigas.
Cash levantou as sobrancelhas.
— Fico, se você ficar.
Rory tornou a sorrir, mas com constrangimento.
— Faço o possível.
— E eu também. Nos vemos.

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— Claro. Nos vemos.
— Até logo. Tippy — Cash gritou da porta.
— Boa viagem — ela gritou de volta, e mais não disse. Cash abriu a porta e
passou para fora. Ao fechá-la, sentiu que deixara lá dentro uma parte de si.

Capítulo Seis

Tippy ficou profundamente deprimida quando Cash saiu. Sentia falta dele, e ainda
nem o conhecia muito bem. Mas eles pularam alguns degraus em sua caminhada. Os
batimentos do coração se aceleravam cada vez que ela pensava no belo rosto. Imaginava
como seria viver sem ele.
Rory voltou para a escola depois do dia 1° do ano e Tippy retomou o trabalho no
filme. De vez em quando, ela sentia um mal-estar, e quando consultou o calendário de
bolsa, no qual marcava a data da última menstruação, reparou que sua longa noite com
Cash ocorrera na pior época possível. Mais do que tudo, a menstruação estava atrasada.
E nunca atrasava, apesar de o trabalho exigir muito dela, fisicamente.
Preocupava-se com as acrobacias que precisava fazer. Não diziam que esforço
físico era perigoso nos três primeiros meses? Ou seria apenas conversa de comadres de
antigamente?
Um mês depois da partida de Cash, comprou um teste de gravidez na farmácia. O
resultado era previsível, e vagamente assustador. Não podia ligar para Cash e acabar
com a vida dele. Já sentia a necessidade de proteger o sopro de vida que trazia dentro de
si.
Ia ter um bebê. Seria parecido com ela ou com Cash? Imaginava e sonhava. Ou
seria parecido com algum parente distante, de quem nenhum dos dois se lembrava?
Pensou em fraldas, mamadeiras, acordar às duas horas da manhã e muitas gracinhas.
Rory adoraria ter um sobrinho.
Mas teria de abandonar o trabalho. Não imediatamente, mas quando começasse a
aparecer. Não era grande coisa, em Hollywood, uma atriz ter um filho fora do casamento.
Mas, para Tippy, era. Daria à mãe a arma de que precisava para usar contra ela própria.
Apesar do tenebroso passado, iria aos jornais dizer que Tippy dormia com todo mundo e
não devia ter a guarda do irmão menor.
Havia algo mais a ser levado em consideração: Cash não queria se casar. Era um
solteiro convicto. Dera a entender que o encontro deles fora casual, de apenas uma noite,
apesar do desejo ardente de ter um filho. Provavelmente, era aquilo mesmo que ele
dissera: algo para esquentar o clima entre eles. Na hora da paixão, os homens falam sem
querer. Tippy já ouvira outras mulheres contando isso, embora nunca tivesse tido essa
experiência.
Seu problema era o que fazer. Não poderia escondê-lo para sempre. A certa altura,
teria de ir ao médico. As grávidas precisam tomar suplementos. Precisaria também de
uma dieta adequada — outro fator a influir em sua carreira. Não poderia engordar mais de
dois quilos enquanto durassem as filmagens, e isto constava do contrato. Precisava tanto
daquele dinheiro, para a mensalidade da escola de Rory, para seu próprio aluguel e mais
as despesas, as contas. Não podia se dar ao luxo de perder o emprego.
Mas queria o filho, com a mesma intensidade. À tarde, na volta do trabalho,

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sentava-se para imaginar como seria. Teria alguém dela mesma, carne de sua carne, e
lhe pertenceria. Seria mãe. Era uma responsabilidade avassaladora. Era também o
prenúncio de grandes alegrias. Dava palmadinhas delicadas no estômago liso e pensava
no dia em que teria a criança nos braços. Suspirava, fechava os olhos e sonhava.

A realidade continha menos euforia. O segundo assistente de direção, um rapaz


muito animado, de nome Ben, assumiu o posto do primeiro assistente, quando este saiu
de licença para resolver um problema pessoal. Ben insistiu para que ela andasse sobre
uma prancha colocada entre dois edifícios, terminando a trajetória com um salto para o
telhado do set de locação, em Manhattan. A altura não era grande, era pequena a
possibilidade de levar um tombo. Mesmo assim, ela colocou a mão protetora na barriga e
achou aquilo arriscado demais.
— Não posso fazer isso — disse ela com firmeza.
— Você pula ou está fora desse trabalho — disse Ben friamente.
— Estou grávida — ela contrapôs. — Contrate uma dublê.
— Sem chance! Já estourei o orçamento, e é o meu emprego que está na reta.
Não estou pagando dublê porque não preciso disso. O salto é seguro.
— Você garante que nada vai acontecer comigo nem com o bebê?
— Quantas vezes vou ter que repetir? Vai dar tudo certo! — ele disparou.
— Bem, já que você tem tanta certeza... — Mas ela deixou clara sua posição: —
Se isso prejudicar minha gravidez, quando você ficar velho ainda vai estar me pagando
indenização. Pode acreditar! — avisou.
— Sei, sei. Como fazem com o meu patrão, quando ele dirige as estrelas top de
linha — retrucou ele. — Vamos lá!
Ela voltou à cena, com a cabeça ainda concentrada na movimentação do set, na
técnica — os câmeras, a equipe de som, os maquiadores, o produtor. Pensava apenas no
que teria a perder se não desse certo. Cash ainda nem sabia. Teria de contar a ele, e
falar com Joel Harper sobre a arrogância do miquinho amestrado que arranjara aquele
emprego na equipe dele.
Enquanto isso, estava decidida a terminar a cena. Fechou os olhos, rezou, deu
uma corrida e pulou. Sem óculos, calculou mal a distância e caiu. O tombo foi grande,
assim como a dor na barriga. Gritou.

Ela andava de um lado para o outro, mas Joel Harper chegou à cena a tempo de
vê-la dobrar-se ao meio. Chamou uma ambulância imediatamente. Correram com ela
para a emergência, enquanto Ben tentava se explicar com Joel, que o xingava de nomes
impublicáveis, no caminho para o hospital.
— Ela estava grávida, seu imbecil, por que acha que tomei tanto cuidado com ela
esta semana? — indagou Joel. — Se perder o bebê, vai nos processar, e vou ter de pagar
até o meu último tostão. E ela tem todo o direito! Dane-se você!
— Mas o senhor... — Ben protestou, pálido.
— Você está fora da equipe — disse Joel em tom gélido. — E nunca mais vai
trabalhar nos meus filmes! Saia da minha frente!
Ben afastou-se, maldizendo a própria sorte. Mas não foi embora. Ficou por ali,
esperando por notícias sobre a saúde de Tippy.
Joel Harper esperou pacientemente até o médico chegar para falar com ele.
— Ela é casada? — perguntou o médico.
— Não — disse Joel. — Ela tem um irmão mais novo...
— Perdeu o bebê — disse o médico rapidamente. — Estava com seis semanas, ao
que parece. Está inconsolável. Tive que sedá-la.

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Joel estava arrasado. Olhou para Ben, que ouvira cada palavra e tremia.
— Seu filho-da-mãe — disse Joel, pronunciando cada palavra, enquanto ia na
direção do jovem e o agarrava pelo colarinho. — Perdeu o bebê porque você a obrigou a
fazer uma acrobacia que ela nunca deveria ter feito.
— Ela se ofereceu para fazer! — Ben mentiu. — Não obriguei ninguém! Ela não
estava ligando para o bebê!
— Não mesmo!
Ben percebeu as intenções do outro. Decidido a não aumentar seu prejuízo, saiu
correndo. Ninguém reparou no homem de pé, ali perto, que, com bloco e caneta nas
mãos, rabiscava animadamente e puxava um telefone celular. Era o repórter de um jornal
sensacionalista que seguira um presidiário ferido ao tentar uma fuga e seus captores até
a emergência do hospital, na esperança de um furo de reportagem. Mas arranjou coisa
melhor. Muito melhor.
— Me ligue com a chefia de reportagem — disse ele. — Harry? Anote isso: a top
model Tippy Moore sacrificou o bebê por um contrato de cinema.

Os jornais sensacionalistas eram vendidos em todas as esquinas do país. Até em


Jacobsville, no Texas. Cash Grier foi ao Jensen Supermarket para comprar uns ovos, pois
pretendia fazer uma omelete depois de terminado seu turno de serviço. Viu o tablóide com
a foto de Tippy Moore, em sua melhor forma, com um título em letras vermelhas
denunciando a modelo carreirista que sacrificava um bebê no altar do egocentrismo.
Cash quase teve um ataque. Tippy ficou grávida, e o bebê, muito provavelmente,
era dele. Estava com seis semanas, dizia o jornal, o tempo que se passara desde o Natal.
— Que horror, não é? — disse uma senhora, ao notar a atenção dele concentrada
no título. — Ela esteve aqui, no ano passado, fazendo um filme. Lindinha. Acho que as
mulheres de hoje em dia não estão muito a fim de cuidar da casa e da família. Coitado
desse bebê. Mas foi melhor assim. Quer dizer, que tipo de mãe ia ser uma dessas?
Cash mal a ouviu. Pagou a compra, lívido, e foi para casa. Não ligou a televisão
nem acendeu as luzes. Sentou-se no escuro, e a história se repetia sozinha.

Tippy ficou abalada por perder o bebê a ponto de não colaborar na própria
recuperação. Não retomou o trabalho, mesmo tendo deixado o hospital em menos de 24
horas, sem qualquer outro problema de saúde. Joel Harper adiou até sua volta as cenas
que faltavam, contratando uma dublê e desculpando-se diariamente pela incompetência
do assistente de direção. Ele mesmo preencheu uma queixa contra o rapaz e insistiu para
que Tippy procurasse um advogado e abrisse um processo.
Mas Tippy não queria saber de coisa alguma. Estava inconsolável. Nem ao menos
podia ligar para Cash e dizer a ele como se sentia mal pela perda. A esta altura, ele já
devia ter visto os jornais. Devia estar pensando que ela o fizera deliberadamente, da
mesma forma que sua ex-mulher. Devia estar achando que ela não queria o filho dele. Ou
que estava dando o troco por tê-la deixado. Não se tratava disso. Ela queria o filho, queria
muito.
Afinal, Joel Harper ficou tão preocupado que ligou para o comandante da escola
militar de Rory e explicou-lhe a situação. O comandante colocou Rory no primeiro avião
para Newark no sábado, às custas de Joel, que foi buscá-lo no aeroporto.
— Como ela está? — perguntou Rory no primeiro momento.
— Já leu os jornais? — replicou Joel, enquanto acompanhava o garoto até uma
limusine comprida e preta, que os esperava fora do estacionamento.
— Li — disse Rory com desapontamento. — Para dizer a verdade, os outros leram
para mim.

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Joel sorriu com uma careta.
— Eu não ia lhe pedir para vir, Rory, mas ela não é mais a mesma pessoa.
— Eu sei — disse Rory. — Ontem foi meu aniversário, fiz dez anos, e ela não me
telefonou. Ela não é assim. Sempre me manda um presente, sempre telefona.
Joel suspirou e instalou o garoto na limusine.
— Ainda está deprimida e não consegue sair dessa, nem para trabalhar. Precisa
de alguém do lado dela.
Rory quis se manter firme, mas as lágrimas brilharam em seus olhos.
— Você sabe quem é o pai, não é, Rory? — perguntou Joel. — Acha que ele viria
vê-la?
— Pode ser — respondeu Rory. — Mas eu tenho de falar com ela, antes de ligar
para ele.
Joel ficou satisfeito com a sensibilidade do jovem, que parecia tão amadurecido
para sua idade.
— Está bem — ele concordou. — Vamos esperar.
Tippy estava sentada de qualquer jeito, com uma camiseta e calças de malha,
vendo um filme antigo, em seu apartamento. Mas levantou-se imediatamente quando
ouviu a voz de Rory e correu para o interfone para abrir a portaria para ele.
Abriu os braços quando ele apareceu na porta. Chorou como criança quando Rory
deu pancadinhas nas suas costas e tentou falar palavras de consolo. Joel ficou o tempo
suficiente para dizer olá, e depois saiu, prometendo voltar no dia seguinte, à tarde, para
colocar Rory no avião de volta a Maryland.
Rory sentou-se no sofá, ao lado da irmã, agora preocupado, ao ver o rosto exausto
e tenso. Tinha um olhar tão doído que ele mal podia encará-la.
— Joel quer que eu ligue para Cash — ele começou lentamente.
— Não!
— Mas, mana... — ele implorou. Ela cortou:
— Escute o que eu vou dizer. Você vai me prometer que não ligará para ele.
Prometa para mim!
— Mas está em todos os jornais — ele protestou. — Ele já deve estar sabendo...
— Rory, isso é difícil para você entender — disse ela com voz rouca —, mas ele foi
casado e a mulher dele... tirou o bebê. Ele nunca se conformou. Não quer se casar de
novo e, realmente, não quer um filho. Mas vai me culpar por ter perdido o bebê, da
mesma maneira. Ele... vai me odiar. — Fechou os olhos, sob um espasmo de dor. — Eu
queria o meu bebê. Queria muito! Cash nunca vai acreditar em mim. Vai me odiar para
sempre, Rory, porque eu não me recusei a fazer aquela cena. Vai pensar que eu fiz de
propósito, entende? Nós não vamos ligar para ele. Seria pior ainda. Acho que ele está
sofrendo também, agora que já sabe, até mais do que eu. — Suspirou. — Não podemos
fazê-lo sofrer ainda mais.
Rory não achava que Cash poria a culpa nela. O homem com quem convivera por
tão pouco tempo estava acima disto. Claro que estava.
Por isso, ficou chocado por Cash se recusar a atendê-lo, quando ligou para a
Delegacia de Polícia de Jacobsville, enquanto Tippy estava no banho. Rory desligou o
telefone, sentindo-se sozinho no mundo. Nunca disse a Tippy uma palavra sobre o
telefonema.

Cash voltou para o trabalho depois de faltar um dia, logo que viu a notícia no jornal.
Não parecia surpreso com o fato, mas tornou-se, repentinamente, impaciente e difícil de
se lidar. Ninguém sabia por quê. Não sabiam que ele era o pai do filho de Tippy Moore.
Judd Dunn desconfiava, por certo. Mas não quis arriscar, provocando uma briga
feia com Cash, apenas por perguntar.

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Da mesma forma, ficou surpreso, dias depois, quando ouviu por acaso um dos
homens falando com alguém que a ordem de Cash era para não passar qualquer
telefonema de pessoas com o sobrenome Danbury.
Danbury era o sobrenome verdadeiro de Tippy. Contara a Judd, quando rodara o
filme próximo ao sítio em que ele morava com a mulher Christabel.
— Quem era? — perguntou Judd, com preocupação.
O agente encolheu os ombros.
— Um menino com o nome Danbury.
— Cash falou para não passar as ligações de crianças, também?
O agente lançou-lhe um olhar penetrante.
— Se quiser falar com ele e levar um soco no meio da cara, pode ir. Já me deu um
passa-fora hoje, e agora eu quero ficar longe disso!
Judd entrou na sala de Cash sem bater e observou em silêncio o homem mais
velho, antes de falar.
— Seu rosto está pálido — disse-lhe Judd. Cash não ergueu os olhos.
— Estou ocupado.
Judd fechou a porta e sentou-se no canto da mesa.
— Ela não ia fazer isso de propósito.
Cash tinha um ar maligno.
— Por que não? Minha ex-mulher fez.
A surpresa de Judd fez com que os seus olhos se arregalassem.
— As mulheres não querem os filhos, dão um trabalho danado. Elas querem a
profissão!
— Claro — disse Judd, perdendo a paciência. — Foi por isso que Tippy acolheu o
irmão mais novo e o está criando.
Cash encarou-o sem dizer nada. Mas algo mudou em seu rosto.
— O garoto não tem culpa, seja ela ou não a responsável — disse Judd friamente.
Levantou-se. — Você não devia abandoná-lo nessa hora.
— Nem falei com ele — Cash defendeu-se.
Judd falou em tom de deboche:
— O funcionário da recepção acabou de despachá-lo ao telefone. Disse que foi
você quem mandou — Judd afirmou e acenou com a cabeça, ao reparar a decepção no
rosto de Cash. — Retorne a ligação, por que não faz isso, quem sabe ele escuta você. Se
ligou, é porque está preocupado com a irmã. — Olhou o amigo de relance. — Acho que
ela engravidou por conta própria.
Virou-se e correu para a porta. Cash sentiu o estômago revirado. Foi um choque
saber que Tippy estava grávida e não lhe contara. Teve que ler nos jornais. Choque maior
foi saber que ela fizera uma cena perigosa, deliberadamente, resultando na perda do
bebê. Avisara a ela que assumiria toda a responsabilidade pelo que ocorresse, mas não
recebeu sequer um telefonema.
E por que o faria, ele se perguntava em aflição, depois de ter demonstrado, por
todos os meios, que não a queria nem ao bebê? Não poderia ter expressado com mais
evidência como fora desagradável seu momento de intimidade. Tippy já tinha pouca auto-
estima, e a atitude dele não ajudou. Rory deveria estar preocupado, para ligar no trabalho.
Aparentemente, Rory não estava com raiva, e com certeza desconfiava de que o pai do
bebê era Cash.
Mas aquele colega prestativo ali fora, instruído pelo mau humor de Cash, dissera a
Rory que ele não ia atender suas ligações. E agora Rory devia estar pensando que Cash
o abandonara também.
Não se deu ao trabalho de retornar a ligação. Não queria falar com Tippy, nem
sobre ela, pelo menos agora; enquanto não se acostumasse com o sentimento de horror
pelo que fizera. Sabia que a profissão era importante para ela. Não tinha idéia de que

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fosse a coisa mais importante do mundo.
Agora que sabia, podia parar de se recriminar pelo que ocorrera. Chegara mesmo,
uma ou outra vez, a pensar em procurá-la novamente, na tentativa de manter um
relacionamento entre ambos. Mas não levou a idéia adiante. Preferiu não se arriscar.
Talvez fosse melhor assim, considerando tudo o que ocorrera. Por certo, ela colocou a
carreira na frente de qualquer relacionamento, até de um filho. Era a prova cabal de que
não tinha mais nada a ver com Cash Grier.

Passaram-se umas duas semanas mais ou menos até Tippy voltar à forma para ir
trabalhar. Começou a beber, pela primeira vez em sua vida adulta, para afastar as
lembranças e o desgosto. Escondia isso das pessoas com quem trabalhava — e de Rory.
Não mais o vira desde o fim de semana em que Joel o levara lá. Ele finalmente lhe contou
que ligara para Cash, e este avisara aos homens que não atenderia qualquer pessoa com
o sobrenome Danbury. Tippy ficou ainda mais deprimida depois disso.
Sua mãe lera os jornais e ligara imediatamente, logo depois da visita de Rory.
— Agora você vai ver do que eu sou capaz — disse a Tippy, enrolando a língua.
Obviamente, não estava em seu juízo perfeito. Aquilo parecia nunca ter fim. — Vou pegar
o meu filho de volta, ou você vai ter que botar dinheiro pelo ladrão para ficar com ele!
— Estou no meio de dois contratos — Tippy mentiu. — Não tenho dinheiro agora.
Vai ter de esperar até eu receber o pagamento do primeiro filme.
— Quando vai ser?
— Não sei. No ano que vem.
— Nada feito. Preciso do dinheiro agora. Me escute, garota, não vou ficar aqui
sentada na Geórgia, morrendo de fome, enquanto você circula por aí de limusine,
comendo nos restaurantes da moda! Eu mereço alguma coisa pelo inferno que você me
fez passar, você e aquele moleque!
Tippy agarrou o telefone com raiva.
— O que você merece é o fogo do inferno, sua bruxa! — ela caçoou. — Nunca fez
nada por nós, só ajudou esse seu namorado infeliz a abusar de nós.
A mãe deu uma risada.
— Estava ajudando a criar vocês — ela resmungou.— No final, vocês iam acabar
gostando.
— No final, eu ia acabar matando vocês dois — falou Tippy friamente. — Sam é
um marginal, como você.
— Você tem dinheiro e nós estamos precisando. Você me dê, garota, estou lhe
avisando, senão, no desespero, eu faço qualquer coisa!
— Por que não vai para os jornais contar que o seu namorado me estuprou quando
eu tinha 12 anos? — indagou Tippy com maldade na voz. — Pode ser que eu mesma
conte a eles!
Fez-se uma pausa, como se a outra mulher tentasse concatenar o raciocínio
nublado pela droga.
— Você já era mais velha...
— Não era — Tippy cortou.
— Quero o dinheiro! — Foi a resposta áspera. — Eu não devia precisar trabalhar,
sendo você tão rica! É um direito meu. Eu lhe dei aquele menino!
— Você o vendeu por 50 mil dólares! — Tippy gritou ao telefone.
— Foi só a entrada. Agora eu quero mais. Estou precisando de dinheiro. Você não
sabe o que é isso — disse ela com voz de bêbada. — Eu tenho que arranjar. Tenho. É
melhor me mandar algum, ou eu digo ao Sam para arrumar do jeito dele. Tem muitos
contatos em Manhattan. Pode lhe causar muito transtorno. Você vai ver.
— Que tipo de gente você é? — Tippy sussurrou. — Como consegue conviver com

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você mesma?
— É só me mandar o cheque ou em espécie.
A linha emudeceu.
Depois desse telefonema, Tippy ficou furiosa por vários dias. Imaginou como seria
ter pais que gostassem dela, que a protegessem. Com certeza, existiam mulheres boas
no mundo. Queria apenas que houvesse uma, só uma, em sua vida.
Agora a mãe queria mais dinheiro e ela não tinha de onde tirar. Parou de trabalhar,
e não haveria pagamento enquanto não voltasse. Enquanto isso, não tinha como pagar a
escola de Rory, o aluguel, as contas.
Começou a gargalhar como uma histérica. Haveria de passar fome e Rory seria
dado para adoção, enquanto a mãe percorreria todos os tablóides sensacionalistas
contando ao mundo inteiro como era maltratada pela filha ingrata.
Pegou a garrafa de uísque no armário e encheu um copo de chá. Foi no final de
semana. Não estava trabalhando e podia fazer o que quisesse, disse para si mesma. Já
que ia mesmo perder tudo, talvez pudesse amenizar um pouco o sofrimento...

A primavera começou logo no início de abril. Tippy empenhou algumas jóias para
pagar a escola de Rory até o verão, e ele veio de trem para casa para passar o fim de
semana com ela. Mas foi outra Tippy que ele encontrou na estação.
Estava magra e trêmula. Sorriu e abraçou-o, mas tinha o olhar vidrado e olheiras
profundas. Parecia um cadáver ambulante.
— Já voltou a trabalhar? — indagou ele, preocupado.
Ela acenou com a cabeça.
— Terminaremos na semana que vem — disse ela displicentemente. — Joel
contratou uma dublê. Tanto por tão pouco. — Ela deu uma risada. — Bem, que droga.
Antes tarde do que nunca!
— Tippy, você está passando bem?
— Claro que sim! — respondeu ela com entusiasmo. — Vamos nos divertir muito
juntos. Fiz um bolo com uma carinha em cima.
— Estou meio crescido para bolos de criancinha — ele arriscou.
— Que bobagem. Vai ser ótimo. Vamos ser como... uma família.
Ela oscilou ligeiramente no caminho até o táxi.
— Você andou bebendo! — ele acusou com delicadeza e evidente surpresa. —
Tippy, você sabe que não devia beber. Olhe nossa mãe!
O comentário deixou-a em situação desconfortável, que ela espantou com uma
risada.
— É uma tendência para o alcoolismo — ela ressaltou.
Ela tornou a rir, desta vez com mais veemência.
— Rory, só tomei uns drinques para espairecer, pelo amor de Deus. Não comece a
me passar sermão. — Abraçou-o. — É assim o meu menino querido... Fico feliz de você
vir para casa.
— Eu também — disse ele, sem um sorriso.
Houve um telefonema na primeira noite de Rory em casa. Ele atendeu, mas a outra
pessoa desligou imediatamente. Tippy tinha um identificador de chamadas, mas o número
estava bloqueado. Devia ser Cash, pensou com otimismo. Não tornou a ligar para ele,
mas quem sabe Cash se lembrara deles e resolvera saber como estavam.
— Tem notícias do Cash? — indagou ele abruptamente.
Ela fechou o rosto.
— Não! — ela disse com raiva. — E não quero ouvir falar nele! Se estivesse um
pouquinho preocupado comigo, já teria me ligado há semanas!
— Você não ligou para ele?

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Ela o encarou.
— A troco de quê? Ele me detesta.
— Isso você não sabe.
— Sei, sim — disse ela cheia de certeza.
Colocou uma dose de uísque em um copo e tomou-o de uma só vez.
— Nem faço a menor questão.
Mas fazia. Aquilo acabava com ela. Rory jogou a cabeça para trás, com olhar de
espanto, ao ver a expressão do seu rosto e a fragilidade do seu corpo. Queria ser mais
velho, e então saberia o que fazer. Mas não tinha a menor idéia.
Tomou outra dose e, no exato momento, bateram à porta.
Rory foi atender. Era seu amigo Don, e parecia confuso.
— Rory, acabamos de voltar do mercado, e um sujeito está esperando lá fora, ele
disse que conhece você. Quer que você desça para falar com ele.
— Cash! — exclamou Rory. — É Cash?
O garoto encolheu os ombros.
— Não sei dizer. Só vi o amigo da sua irmã uma vez. Esse sujeito está com um
chapéu enterrado até os olhos e um casaco comprido...
— Tem que ser Cash! — disse Rory animadamente. — Vou descer para falar com
ele. Não conte para minha irmã, está bem? — acrescentou ele em seguida.
— Você é quem sabe. Quer passar lá em casa para irmos patinar no gelo com
mamãe, amanhã?
— Vamos ver. Obrigado, Don!
— De nada.
Rory parou junto à porta.
— Vou à casa do vizinho um minuto — ele gritou para Tippy. — Já volto!
— Está bem. Não saia sem falar comigo! — ela gritou de volta, lembrando-se
tardiamente das ameaças da mãe.
— Pode deixar.
Fechou a porta e desceu as escadas.

Uma hora mais tarde, Tippy reparou que os poucos minutos estavam se
estendendo demais. Pousou o copo de bebida e tentou pôr a cabeça para funcionar. Ele
disse que ia ao apartamento de Don. Ligou para o apartamento ao lado e falou com a
mãe de Don.
— Mas ele não esteve aqui — foi a resposta assustada da outra mulher. — Ele
disse que vinha para cá?
Tippy sentiu o coração apertado.
— Disse!
— Espere um momento. — Chamou o filho e ouviu-se um murmúrio de conversa.
— Acabei de perguntar ao Don — disse a outra, com voz preocupada. — Tippy, ele disse
que um homem chegou aqui, na portaria lá embaixo, e pediu para o Rory descer. Rory
achou que era aquele amigo seu, Cash, não é? Mas Don não o reconheceu. Disse que o
homem estava de casaco e chapéu, e tinha um ar misterioso.
Tippy agradeceu e desligou. O pavor alojou-se em sua garganta. Entendeu
imediatamente, sem que alguém lhe dissesse, que o mal-intencionado namorado da mãe
estava com Rory. Tinha certeza! E tinha também a mente embotada e não conseguia
pensar. O que devia fazer?
O telefone tocou outra vez e ela atendeu.
— Pegamos Rory. — Foi terrível ouvir a voz conhecida, vinda do passado. —
Queremos 100 mil, amanhã de manhã. Ou lhe devolvemos o corpo. Não chame os
federais. Vamos ligar de manhã, com as instruções. Durma bem, gostosa — ele

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completou com sarcasmo e desligou.
Tippy ficou morta de medo. Sabia que era Sam. Sabia também que era capaz de
fazer o que dizia. Bem antes de fugir de casa, sempre sentira medo dele. O homem era
pai de Rory, e o menino não sabia. Mas ela não podia deixar que o maltratasse. E ele o
faria. Não tinha qualquer tipo de sentimento paterno.
Suas mãos tremiam. Apanhou a bolsa e procurou na agenda o telefone de Cash
Grier. Provavelmente, não falaria com ela, mas tinha de tentar.
Achou o número do celular, que lhe dera há muito tempo, quando ela foi de
Jacobsville para Nova York, após a filmagem. Não sabia se ainda era o mesmo.
Tocou uma vez. Duas. Três vezes. Quatro vezes. Os lábios se moveram, rezando
em silêncio. O coração doía. Ele nem ia atender...
— Grier — veio uma voz fria, profunda, do outro lado da Unha.
— Cash! — exclamou ela. — Tenho de falar com você. Preciso de ajuda!
— Ajuda? Precisa de ajuda? Dane-se você, Tippy! — ele explodiu.
— Escute — disse ela com firmeza, esforçando-se por controlar a emoção. — Por
favor. O caso é sério!
A voz dele soou gelada:
— Não tenho o que conversar com uma mulher como você, Tippy. Nunca mais na
sua vida ligue para mim.
— Cash, pelo amor de Deus! — ela soluçou, desesperada.
A ligação caiu. Apertou o botão de rediscagem, e nada. Ele não ia atender. E ela
sabia que não ia adiantar, de jeito algum, tentar outros números, como o da Delegacia de
Polícia. Cash não sabia o que acontecera com Rory, e não deixaria que ela contasse.
Tinha certeza de que ele ajudaria se soubesse. Mas não quis escutar.
Xingou com grosseria, procurando outras opções. Tinha de salvar Rory! Em um
impulso repentino, tentou o número de Judd Dunn, mas ninguém atendeu, assim como o
de Christabel.
Esgotadas essas opções, entornou café frio em uma xícara e tomou-o lentamente,
na esperança de clarear a mente. A única esperança que restava era conseguir o dinheiro
do resgate. Joel. Joel Harper! Se conseguisse entrar em contato com ele...
Tentou o número da casa dele, mas caiu na secretária eletrônica. Tentou o estúdio.
Ninguém da equipe estava lá, foi o que disseram. Tinham ido com Joel a uma locação,
para arrumar as coisas para o próximo filme, agora que o de Tippy estava quase pronto. A
locação era no interior do Peru, nem o celular estava conectado naquele momento. Ao
que parecia, o grupo fora para a locação sem equipamento.
Tippy tentou o responsável pelo estúdio, mas lhe disseram que estaria fora durante
toda a semana. Era o destino, disse a si mesma, sentindo-se a última das criaturas.
Pensou em chamar a polícia, mas como procurar alguém que não pusesse em risco a
vida de Rory ao entrar atirando? Não tinha a menor idéia do que fazer em seguida.
Desligou o telefone com um suspiro de desânimo. Não havia a possibilidade de
conseguir, pela manhã, a quantia que Sam queria. Tinha apenas mil dólares na conta, e
os cartões de crédito foram usados ao máximo. Já empenhara as jóias para pagar a
escola. Nada restara. Não tinha coisa alguma para garantir um empréstimo.
Havia uma única possibilidade: oferecer a si mesma em troca de Rory e dizer a
Sam para pedir o resgate à empresa produtora do filme. Não saberia que Joel estava fora
do país. Se fizesse o jogo direitinho, conseguiria convencê-los de que valia mais, para
eles, do que Rory. Teria de convencê-los de que o estúdio pagaria bem por sua liberação.
A companhia não haveria de pagar, é claro, porque eles não teriam mais sorte do
que ela, procurando alguém com autoridade para levantar o resgate. Mas o artifício
salvaria Rory.
Tomou mais um drinque e sentou-se ao lado do telefone a noite inteira, esperando
que Sam ligasse de volta. Pensou no que seria cair outra vez nas mãos de Sam.

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Lembrava-se perfeitamente bem do medo, da dor e da angústia, quando ele a estuprava,
tantos anos atrás. Ainda tinha pavor dele, de seu gênio violento. Ficaria incontrolável
quando descobrisse que não ia conseguir o dinheiro, nem dela, nem dos patrões. Poderia
matá-la, na melhor das hipóteses. Não suportou pensar em outra alternativa. Tomou outra
dose e imaginou como seriam as coisas se não tivesse seduzido Cash, se não tivesse
corrido risco com o bebê, se, se, se...
O foco da questão era a segurança de Rory. O irmãozinho ainda era uma criança,
e ela o amava. Merecia viver.
Serviu-se do que restava do uísque.
— Muito bem, menina, você vai conseguir — disse ela para si mesma. Ergueu o
copo em um brinde. — Por quem faz das tripas coração e despenca no inferno —
murmurou ela.
Quando o telefone tocou, fez a sugestão para Sam de cabeça fria, simulando
confiança. Ele pensou, falou com alguém e finalmente aceitou. Deu a ela um endereço.
— Tome um táxi, sem contar a ninguém — ele ameaçou. — Ainda posso matar o
garoto antes de alguém chegar aqui. Entendeu?
— Entendi, meu bem — disse com voz engrolada, com seu melhor sarcasmo.
— Sem perder tempo.
A ligação caiu.
Mentalmente, fez uma revisão das artes marciais que aprendera. A segunda coisa
que lhe ocorreu foi pegar a faca filipina, que é como uma navalha, a qual mantinha em
casa por causa do papel no filme. Na verdade, não sabia usá-la, mas a lâmina era afiada
e letal. Se tivesse uma chance, apenas uma, faria Sam Stanton pagar por todos os crimes
que cometera na vida miserável que levava. Cash podia ter tudo isso nos jornais, pensou
com frieza. E esperava que a consciência o torturasse toda vez que pensasse nela.

Capítulo Sete

Cash tomou um táxi do aeroporto para o apartamento de Tippy. Não queria perder
tempo dirigindo do Texas, principalmente depois daquele telefonema repleto de
ansiedade. Não sabia do que se tratava, mas tinha a desagradável sensação de um vazio
no estômago, como se alguma coisa terrível tivesse acontecido.
A voz dela não lhe saía da cabeça — aquela voz tão atormentada. Acompanhava-o
desde que falara com ela. Afinal, pegou o telefone e retornou a ligação, apenas para
saber se estava tudo bem. Era o telefone dela. Mas não foi Tippy quem atendeu.
O que levou Cash a Nova York foi a voz que atendeu o telefone quando ligou para
o apartamento dela. Era uma voz de homem, ríspida e com um tom bastante profissional.
Cash chamou Tippy, e fez-se o silêncio.
Perguntou o que ele queria. Cash, com o sangue gelando nas veias, disse que
queria falar com Tippy Moore. Houve outra pausa, e o homem disse que ela estava
ocupada, que chamasse mais tarde, e desligou.
Cash ficou segurando o fone por algum tempo, depois que o homem desligou.
Sentiu um mal-estar que não passava. Algo acontecera a Tippy. Havia homens no seu
apartamento, controlando os telefonemas. Gente da polícia. Percebeu pelo tom de voz.
Ele mesmo usara esse artifício em casos de seqüestro que ajudara a resolver.

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Repetiu mentalmente, muitas vezes, esta última chamada. O apartamento de Tippy
estava sob averiguação. Procuravam alguém, ou alguma coisa. Pensou na mãe de Tippy
e no pai de Rory nas ameaças que ela dissera que eles faziam. E se tivessem
seqüestrado Rory? Isso, por certo, explicaria o tom de voz quase histérico de Tippy. Ela
telefonou pedindo ajuda, ele a tratou mal e desligou sem se despedir. Fechou os olhos,
tomado pelo arrependimento. Se alguma coisa acontecesse com Rory ou Tippy, devido à
sua recusa em ajudar, ele não suportaria. Mas... se o problema fosse com Rory, por que
Tippy não atendeu o telefone na própria casa?
Saiu do táxi, pagou a corrida e mais a gorjeta, e subiu a escada de dois em dois
degraus até chegar à porta. Tocou a campainha do porteiro eletrônico.
— Sim? Quem é? — uma voz perguntou. A mesma voz que atendera ao telefone,
mais cedo, naquele dia.
— Sou um velho amigo de Tippy Moore — ele mentiu, com voz simpática. —
Fizemos filmes juntos.
Houve uma pausa, e uma voz angustiada de criança:
— Deixe-o subir. Por favor!
Rory! Cash cerrou os dentes, para manter o autocontrole. Rory estava lá. Não fora
seqüestrado, mas falava em tom frenético. Acontecera alguma coisa com Tippy. Algo
ruim.
Houve outra pausa.
— Tudo bem, pode subir.
A porta foi destrancada com um zumbido e ele entrou. Subiu as escadas como
louco, e fez um esforço para não agir como tal quando a porta de Tippy se abriu.
Rory saiu correndo, passou pelos homens de terno que o esperavam e se atirou
nos braços de Cash, soluçando desconsoladamente.
— O que houve? — indagou Cash com suavidade, abraçado ao garoto.
— Conhece o menino? — perguntou um dos homens.
Cash observou-o. Aquele homem era conhecido. Não se lembrava... até que caiu
em si. Era um homem do FBI, um agente com quem trabalhara há muitos anos.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou Cash sem reação.
— Isso é curiosidade. Você não precisa saber.
— Ele pode tomar um café comigo? — indagou Rory rapidamente. — É muito
amigo de Tippy!
— Sabe onde ela está? — perguntou o homem de terno, desconfiado.
— Está no trabalho, eu imagino — Cash mentiu, disfarçando. — Não está? —
recorreu a Rory.
O garoto tinha o assombro no olhar, mas não lhe permitiram responder.
— Claro. Está trabalhando. Você pode ficar cinco minutos, depois vai embora — o
homem mais velho disse a Cash. — Estamos esperando um telefonema.
Cash acompanhou Rory até a cozinha e abriu as torneiras para abafar sua voz.
Virou-se para Rory com olhar frio.
— Fale. Rápido — disse ele ao garoto.
— Sam me seqüestrou e pediu resgate — Rory cochichou. — Tippy não tinha
dinheiro, então foi no meu lugar. — A voz falhou. — Ela disse ao Sam para pedir resgate
à firma. Ela não tem como pagar. Só vai receber o dinheiro quando o filme for exibido.
O coração de Cash parou de bater.
— Vão matá-la — disse ele involuntariamente.
— Ela sabe disso. Ela me deu um beijo de despedida quando me soltaram e falou
que sabia o que estava fazendo e que não tinha importância. — Rory engoliu com
dificuldade. — Desde que perdeu o bebê, não se importa com coisa alguma. Ela me disse
para voltar para casa e não pensar nela. Disse que, se a matassem, iam acabar com o
sofrimento... Cash! — exclamou ele, quando as mãos fortes do homem agarraram seus

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braços, deixando marcas.
Cash o soltou e resmungou um pedido de desculpas.
— Os jornais disseram que ela fez a cena perigosa de propósito! — ele reclamou.
— Mentira! O assistente de direção jurou que a cena tinha segurança — murmurou
Rory. — Quando o sr. Harper descobriu o que ele fez, botou o sujeito no olho da rua. Mas
aí já era tarde demais...
Cash fechou os olhos e teve uma visão de horror. Todas as palavras estúpidas que
dissera para Tippy voltaram a assombrá-lo. Ela ia morrer. Por sua culpa. Telefonou para
pedir que salvasse Rory, e ele a destratou, bateu com o telefone. Não teve outro meio de
salvar o garoto, a não ser trocá-lo por si mesma, e foi ao encontro do único homem no
mundo de quem tinha um medo concreto.
— Reaja, Cash! — disse Rory de súbito, sacudindo-o. — Temos de salvá-la!
O rosto de Cash estava vidrado. Puxava o ar com dificuldade, a respiração falhava.
Tentou não pensar no que ela estaria passando naquele momento.
— Cash! — insistiu Rory, com ar mais adulto que o do adulto a seu lado.
Cash soltou o ar demoradamente.
— Tudo bem — disse ele com calma. — Vou cuidar disso.
— Acho que esses sujeitos aí não sabem o que fazer — disse Rory com
preocupação. — Ficam sentados, esperando o telefone tocar, mas eu acho que Sam não
é louco de ligar para cá. Ele vai ligar para a produtora dos filmes de Tippy. Mas Joel
Harper viajou para o exterior, está numa locação, não se pode falar com ele. E ninguém lá
tem autoridade para pagar resgate sem a aprovação dele. Os seqüestradores vão matá-
la. Eu sei que vão.
— Como Stanton pegou você? — indagou Cash rapidamente, pois os homens no
cômodo ao lado calaram-se de repente.
— Ele falou com meu vizinho que era para eu descer. Achei que era você. — Rory
desviou o olhar. — Sam tem um primo que mora no Lower East Side, não é longe daqui.
O pai dele tem um barzinho. Faz parte de uma quadrilha, ou coisa assim, e está ligado
com as gangues.
— Como é o nome dele? — perguntou Cash.
— Álvaro qualquer coisa. Montes, eu acho. O bar se chama La Corrida, fica perto
da rua 2.
Cash olhou para a porta, onde os homens de terno os espiavam com desconfiança.
Um deles era moreno e um pouco mais velho que o próprio Cash. O outro era mais alto,
grisalho, na casa dos 50 anos. O rosto era frio como aço.
— Acabaram os cinco minutos — o mais alto falou para Cash. — Acho que o
conheço — acrescentou.
Cash sorriu com uma careta.
— Deve ter me visto num filme. Já viu The Dancer? Eu fiz o papel do garçom...
O homem expressou seu desagrado.
— Não assisto musicais.
Cash lançou um olhar para Rory, cheio de cautela.
— Quando sua irmã voltar, vamos jogar aquela partida de xadrez que eu lhe
prometi — disse em tom vago. — Você está aqui sozinho?
— Não. Ele está seguro conosco — disse o outro com formalismo.
Cash pegou um cartão de visitas e entregou-o a Rory.
— Eu tenho um pequeno negócio aqui perto — disse ele para o homem, com um
sorriso — entre um filme e outro. O garoto pode me ligar se precisar de um lugar para
ficar, enquanto Tippy estiver fora.
A desconfiança aumentou.
— Deixe-me ver esse cartão — disse o mais baixo. Rory deu uma olhada para
Cash, que o pegou de volta e mostrou-o ao homem. Estava escrito: Longe de Casa,

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Cantinho do Smith, Brooklyn, N.Y. Havia também um número de telefone.
— É voce... Smith? — perguntou a Cash.
— Sou eu. Nome fácil de lembrar — ele acrescentou com um sorriso forçado e
agradeceu à sorte por ter tido a idéia de trazer consigo aqueles velhos cartões.
O homem devolveu-o a Rory.
— Ele entra em contato se precisar — disse ele em poucas palavras. — Agora
pode ir.
— Cuide-se, Rory. — Cash despediu-se e balançou a cabeça lentamente, como se
dissesse ao garoto que tudo ia correr bem.
Rory também balançou a cabeça, mas não acreditou naquilo. Não fazia idéia de
como Cash haveria de salvar sua irmã sozinho. Esse serviço era muito diferente dos
outros.

Cash pensava na mesma coisa ao sair do apartamento, e já estava com o telefone


na mão. Acionou um número gravado na agenda do celular especial, reservado para as
emergências.
— Peter? — perguntou ele assim que atenderam. — É Grier. Tudo bem? Preciso
de uma pequena ajuda.
— De que tipo? — foi a resposta.
— Mais ou menos 300 gramas de C-4, uma K-bar, um pedaço de corda, uma 45
automática, uns dois detonadores e transporte para o Brooklyn.
Uma risada estourou do outro lado da linha.
— Claro, sem problemas, só vou dar um passeio no mercado para recolher as
coisas. Onde você está?

Meia hora mais tarde, Cash entrou no carro, a dois quarteirões de distância, e
apertou a mão do seu protegido, Peter Stone. O jovem era mercenário por profissão.
Pertencera ao grupo de Micah Steele, e agora trabalhava na segurança de Bojo, outro ex-
membro do grupo, na nação do Qawi, no Oriente Médio, para o sheik Philippe Sabon.
Peter tinha voltado ao país para visitar os parentes, entre uma e outra tarefa.
— Imagine você, trabalhando como chefe de polícia na roça — Peter brincou.
— Imagine você, lutando contra o terrorismo internacional — Cash devolveu.
Peter encolheu os ombros.
— Fazemos o possível. — Ficou sério. — O que houve?
— Pegaram uma amiga minha e estão pedindo resgate. Vou trazê-la de volta.
— Amiga? — Peter repetiu. — Você, preocupado com uma mulher a ponto de ir lá
para libertá-la? Deve ser muito especial.
— É, sim. — Cash foi breve. Evitava o olhar do outro. — Ofereceu-se em troca do
irmão, que ainda é criança. Disse aos seqüestradores para pedirem resgate à produtora
de filmes onde ela trabalha, mas sabia que eles não iam pagar o resgate. Todos os que
negociam pagamentos estão fora do país. Sabia disso, também.
— Corajosa — disse Peter solenemente.
— Corajosa. E vai ser morta se eu não fizer alguma coisa. O homem que a pegou
é gentalha da pior espécie.
— Don Kincaid está aqui em Nova York — disse Peter. — E eu posso falar com Ed
Bonner, se precisar. Ele era o homem do Marcus Carrera na região, bem antes de
Carrera parar...
— Só vou chamar o Carrera como última opção — disse Cash. — Ele cobra os
favores.
— Entendo o que você quer dizer — Peter afirmou e achou graça. — Ainda devo

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favor a ele, e fico arrepiado só de pensar no que vai me pedir.
— Pode ser só um corte de tecido das Arábias — Cash fez piada.
— Não brinque com essa história dos acolchoados — disse Peter imediatamente.
— Um sujeito foi parar no hospital para se arrepender de ter falado nisso!
— Um advogado no Texas faz colchas de retalhos e conhece Carrera — disse
Cash. — Ele apareceu num programa de tevê sobre trabalhos manuais. Um sujeito no
meu departamento fazia uns serviços para ele, até dizer uma gracinha sobre os homens
que gostam de costura. Mas agora está tudo bem com ele — Cash completou. — Os
dentes da frente nem parecem prótese.
Peter deu uma risadinha e entrou com o carro em uma alameda.
— Daqui vamos para onde?
— Para um barzinho chamado La Corrida.
— Conheço! — Peter exclamou. — O sujeito que toca o bar, Alvaro Montes, é da
Espanha. O pai dele era toureiro. Morreu na arena, do jeito que queria.
— É safado?
— Ele, não — respondeu Peter com naturalidade. — Mas tem uns parentes
duvidosos. A começar por um filho imprestável — ele acrescentou. — Um sujeito que
precisa de um corretivo.
— Engraçado você falar nisso — disse Cash. — É atrás dele que nós estamos.
— Não diga! — Peter fez uma careta. — Vamos ver o Papai Montes. Quem sabe
ele nos conta onde o filhinho guarda os reféns.
— Escute, eu não estou disposto a encarar uma briga de bar...
— Não vai ser assim — Peter garantiu. — Você vai ver.

Entraram no bar pequeno e mal iluminado. Um homem alto, de cabelos grisalhos e


ondulados, apareceu no balcão quando eles chegaram. O bar estava vazio, apenas um
senhor idoso ocupava uma mesa ao fundo.
— Peter — o proprietário cumprimentou, com um sorriso caloroso. — Não sabia
que você estava em Nova York!
— Só uns dias, viejo — disse ele ao homem mais velho e riu. — Esse é Grier,
amigo meu.
O dono do bar vacilou. Arregalou os olhos ao ver Cash.
— Já ouvi falar de você — disse ele com calma.
— Muita gente já ouviu — Peter replicou com desinteresse. — Uma amiga dele foi
seqüestrada.
— E você vem aqui me ver. — O velho fechou os olhos e suspirou ruidosamente.
— Nem preciso perguntar por quê. É aquele primo, que mora no Sul, que vem para cá
criar problema para nós. Da última vez, meteu-se com contrabando de armas. É coisa
ruim assim?
— Pode ser até pior — retrucou Peter. — Acho que você sabe para onde ele iria se
estivesse com um refém.
— Refém. — O velho fechou os olhos. — É, eu sei para onde ele pode ter ido —
ele acrescentou, lentamente. — Para o armazém onde eu guardo as bebidas e o vinho
melhor — disse ele sem emoção —, a uns quarteirões daqui. — Deu o endereço a Peter.
— Você não vai envolver meu filho nisso?
— Seu filho já está envolvido — disse Cash sem rodeios. — E se acontecer
alguma coisa com a mulher, ele vai se arrepender.
O velho balançou.
— Eu fui um bom pai — disse ele lentamente. — Fiz tudo o que pude para ensinar
a ele o que é certo e o que é errado, para afastá-lo das más companhias. Mas, desde que
ele saiu de casa, perdi o controle, entende? Você tem filhos? — perguntou a Cash.

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— Não — Cash falou de modo a não incentivar os comentários. — Seu filho tem
mais alguém com ele, além do primo?
O homem sacudiu a cabeça.
— O irmão dele tem um cartório. Teve muita sorte. Meu outro filho nunca me deu
dor de cabeça. Sempre foi um bom menino.
— Trabalhei na polícia bastante tempo e sei que uns filhos não dão certo, mesmo
quando os pais fazem tudo direito. É questão do indivíduo, não é da criação, na maioria
das vezes — declarou Cash.
— Gracias — respondeu o dono do bar em voz baixa. — Tchau, viejo — disse
Peter. — Obrigado.
O velho fez apenas um sinal com a cabeça. Parecia muito triste.
— Ele é legal — disse Peter a Cash quando voltaram para o carro.— Sacrificou-se
para criar esses meninos. A mãe morreu quando o mais novo nasceu. Ela também era
boa gente.
— Tippy também é — Cash dardejou, impaciente para resolver logo o assunto.
Ia precisar de muita discrição e coragem para tirá-la viva de lá. Mesmo se tivesse
ajuda. Nem ousava pensar nas conseqüências, se não chegasse a tempo.
— Trouxe de volta os bons tempos — Peter lembrou-se. — Essa noite vai ficar na
história.
— Não tenho a menor dúvida — disse Cash.

O depósito ficava em uma rua afastada, e a luz de um dos postes estava quebrada,
provavelmente por uma pedrada. Uma turma de rapazes andava por ali, assoviando. Mas
ver Cash e Peter com equipamento de trabalho foi o suficiente para a turma se dirigir à
direção oposta.
— Não se preocupe com eles — disse Peter em tom negligente. — Ninguém vai se
meter conosco aqui nas redondezas. Por nada no mundo. Como vamos entrar?
Eles já haviam examinado cuidadosamente o depósito e localizado todas as
saídas.
— Entrar pelo telhado, pelo sistema de ventilação — disse Cash. — Depois, do
segundo andar, pela viga, para dentro do depósito.
— Não é para quebrar muitas garrafas, está bem? — Peter resmungou. — Viejo
não tem muito dinheiro, isso deve ser tudo que ele tem.
— Vou fazer o possível. Vamos lá.
— E os federais? — indagou Peter com cerimônia.
— Bem lembrado.
Cash apanhou o celular e fez uma chamada.

Subiram no telhado com ajuda de ganchos de alpinismo; em seguida, rápida e


silenciosamente, passaram pelo tubo de ventilação e chegaram ao andar de cima.
Com pequenos receptores nos ouvidos e microfones junto aos lábios, podiam se
comunicar a distância, em voz baixa. Cash foi o primeiro, com a corda de náilon enrolada
no ombro, a faca K-bar com a lâmina encaixada na cintura, junto com a 45 automática.
Estava vestido de preto, como Peter, com o rosto coberto por máscara de esquiar.
Fez uma pausa no meio do caminho para examinar, lá embaixo, o depósito. Entre
os barris e os suportes da adega, viu de relance uma mulher deitada de bruços sobre um
pedaço de papelão. De pé, ao seu lado, três homens discutiam. Um deles tinha na mão
uma garrafa. Quebrada. Sacudia-a na direção de um dos outros dois. A mulher não fazia
qualquer ruído. Cash sentiu um aperto no coração ao olhar novamente o pouco que
conseguia ver dela. Se a machucassem, ele os mataria. Não conseguiria se controlar.

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Fez sinal para Peter dar a volta até o outro lado do depósito. Ele concordou com a
cabeça, apontando sua própria corda enrolada. Durou uma eternidade o tempo que Peter
levou para percorrer, em silêncio, o espaço entre as caixas. Em certo momento, ele se
deteve e esperou até passar um caminhão cujo ruído ocultasse seus passos sobre um
trecho forrado de plástico.
Peter colocou-se em posição e, com o polegar para cima, fez sinal de positivo para
Cash. Os dois amarraram as cordas de náilon às vigas de ferro do segundo andar. Cash
empunhou a automática. Peter fez o mesmo. Cash ficou de pé sobre a grade, Peter
também, e ambos se projetaram para baixo com técnica de rapel, ao mesmo tempo, aos
berros, assustando e confundindo os homens lá embaixo.
— Que diabo... — exclamou o mais alto deles, no térreo.
— Atire. Atire! — o segundo gritou, brandindo uma pistola.
Deu um ou dois tiros na direção de Cash, mas este era muito hábil em se desviar
de balas perdidas. Soltou a corda, rolou no chão e atirou.
O segundo homem caiu, segurando a perna e gemendo. Peter imobilizou outro por
trás, passando o braço no pescoço dele e sufocando-o com uma gravata. O terceiro nem
tentou reagir e precipitou-se para a saída. Sumiu antes que Cash pudesse vê-lo por
inteiro.
Cash embainhou a arma e correu para Tippy. Ao chegar perto, viu seu rosto
coberto de sangue. A blusa também estava tingida de vermelho e rasgada. Equimoses
eram visíveis nos ombros e nas costas muito brancos. Ela não se mexia. Parecia sequer
respirar.
Naquele instante, Cash se lembrou de ter visto Christabel Gaines caída no chão,
depois de levar um tiro de um dos inimigos de Judd, meses atrás. O mesmo pânico
doentio assolou-o novamente, desta vez com mais intensidade.
— Tippy — disse ele com dificuldade e correu para se ajoelhar ao lado dela, para
sentir o pulso e a garganta. Sua mão tremia.
Por alguns segundos, pensou que estivesse morta. Não sentia os batimentos
cardíacos. Depois, de repente, a pressão repercutiu em seus dedos e sentiu uma vibração
fraca, mas regular.
— Está viva — ele gritou para Peter. Apanhou o celular e discou 199.

Ela ainda estava inconsciente quando chegaram a ambulância, a polícia e mais


dois homens de terno. A essa altura, Peter se fora com todo o equipamento e mais a
muda de roupa usada por Cash, assim como qualquer vestígio de que dois homens
tinham estado na cena do crime.Também não iriam encontrar a arma de onde saíra a bala
alojada na coxa do seqüestrador.
Mas Cash já tinha telefonado para o apartamento de Tippy, alertando o FBI sobre o
que estava acontecendo. Chegaram junto com a polícia.
O mais alto dos dois agentes de terno franziu a boca ao ver Cash sentado no chão
do depósito, com a cabeça ensangüentada de Tippy no colo, enquanto os paramédicos
traziam a maca. Havia policiais fardados à porta e os peritos já trabalhavam em busca de
indícios.
— Agora eu me lembro de onde o conheço — disse para Cash, em tom de pilhéria,
o agente mais alto.
— Não, não se lembra — respondeu Cash com firmeza.
O homem fechou o rosto.
— Escute aqui...
— Escute você — Cash devolveu com aspereza. — Esses homens seqüestraram
minha noiva. De jeito nenhum eu ia ficar sentado do lado do telefone esperando uma
ligação. Infelizmente, eu não estava aqui para ver o que aconteceu. Os tiros foram antes

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de chegarmos ao local.
— Você não pode interferir nos assuntos do governo!
— O diabo que eu não posso — replicou Cash, em poucas palavras. —
Experimente!
— Vou avisar a chefia, e você vai ser enquadrado hoje de manhã — disse o
agente, furiosamente.
— Vou avisar a chefia, e você vai virar camelô na Broadway! — retrucou Cash.
O agente mais jovem puxou-o para o lado e cochichou alguma coisa com
veemência. O mais alto recuou.
— É melhor não ficar por aqui até amanhecer.
— Não vou ficar — disse Cash com calma.
Voltou sua atenção para Tippy, que respirava com esforço e dor, a cada vez que
tomava ar.
Os dois agentes chegaram mais perto e olharam para baixo, observando o trabalho
dos seqüestradores.
— Por que diabo eles fizeram isso? — indagou o mais velho com irritação. — Ela
não era ameaça para eles!
— O que levou o tiro gosta de maltratar mulheres — disse Cash sem erguer os
olhos.
Não conseguia tirar da cabeça a imagem de Stanton ao lado dela, com a garrafa
quebrada na mão, quando ele entrou.
— Ah, é?
O agente foi até o homem que amarrava na coxa uma tira rasgada da própria
camisa, tentando estancar o sangue.
— Arranje uma ambulância para mim, seu imbecil, eu levei um tiro! Um daqueles
mascarados mandou bala em mim! — Sam Stanton exigiu com arrogância.
— Tudo bem, pessoal, o dele é coisa à toa! — O agente falou para os
paramédicos. — Ela em primeiro lugar!
— Miserável! — resmungou Stanton.
Cash lançou um olhar para o agente.
— Obrigado — disse ele em tom seco.
O outro encolheu os ombros.
Os paramédicos examinaram Tippy enquanto a levavam para a ambulância. Cash
a acompanhava e segurava sua mão com firmeza. Estava apavorado, mas tentava não
demonstrar. Pensou em Rory, sozinho em casa. Não perguntara aos agentes o que
haviam feito com o garoto. Rezou para que o tivessem deixado com os vizinhos, os pais
de seu amigo.
Mas quando a ambulância parou na entrada da emergência, lá estava Rory,
esperando, com os dois agentes do FBI.
Cash teve vontade de dar um abraço neles. Rory correu para a maca, o rosto
pálido, os olhos vermelhos e inchados.
— Tippy! — ele gritou.
Cash o segurou e lhe deu um abraço apertado.
— Está viva — disse ele imediatamente. — Está machucada, cortada e com
marcas, um aspecto horrível, mas vai ficar boa.
Rory ergueu o olhar, querendo desesperadamente acreditar nele.
— Você não ia mentir para mim, não é?
— Nunca — disse Cash com segurança. — Jamais faria isso. Ela vai melhorar.
Prometo que vai.
— E Sam? — perguntou Rory em tom desconsolado.
— Pergunte àqueles sujeitos — disse Cash e, cansado, sorriu para os agentes.—
Estão aguardando para transferi-lo para a custódia federal, junto com o cúmplice, depois

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que o tratarem de um tiro que levou. Havia mais um, mas fugiu. Pode ser que eles
descubram onde está.
— Sam levou um tiro? Que bom! — Rory comemorou com entusiasmo. — Vocês
deram um tiro nele? — perguntou aos agentes do FBI.
— Como? — disseram eles ao mesmo tempo.
— Não olhem para mim — Cash mentiu, sem se alterar. — Não ando armado
quando saio do Texas. É contra a lei.
Os agentes do FBI deram uma olhada marota para Cash, que sorriu como um
anjinho.
— Stanton não sabe quem atirou nele — o agente prosseguiu, com ar desconfiado.
— E disse que eram dois sujeitos, e não um só.
— É claro que ele andou bebendo — disse Cash com falsa inocência.
O agente mais velho suspirou.
— É claro — disse ele. — Você conhece um sujeito na sua delegacia chamado
Callahan?
— Não tenho certeza — disse Cash, com um sorriso dúbio.
O agente apenas balançou a cabeça.
Rory percebeu que Cash estava escondendo alguma coisa e ficou sério.
— Qual é a pena para seqüestro e agressão atualmente? — indagou Cash aos
federais.
— Tempo suficiente, para só saírem depois de cultivar uma barba branca bem
comprida — o agente mais alto prometeu. — Vamos ver se conseguimos que eles digam
quem era o outro que escapou. E eu juro por Deus que vou a todas as audiências da
condicional, pelo resto da minha vida, depois que ele se endireitar, só para lembrar o que
ele fez com aquela moça.
— Muito nobre da sua parte — disse Cash.
O outro encolheu os ombros.
— Trabalho para o governo — retrucou ele. — Somos todos heróis.
— Vou me lembrar disso para sempre — disse Rory com sinceridade. — Obrigado.
— Nada de mais, é nosso trabalho — disse o homem mais baixo. E sorriu.

O médico da emergência saiu para falar com Cash. Tippy teve uma concussão
cerebral, como Cash já sabia, e apesar de já estar consciente precisaria ficar em
observação. Além de vários cortes no rosto e na parte de cima do corpo, tinha um trauma
nas costelas, provocado por força bruta, e que era motivo de preocupação. Atingira os
pulmões. Isso poderia causar não apenas sangramento ou hemorragia mas, na pior das
hipóteses, até mesmo falência pulmonar. Teriam de fazer exames de ressonância
magnética da cabeça e do tórax, e radiografias, para se certificarem da extensão dos
danos. Ela teria de permanecer no hospital por alguns dias. O médico fizera a solicitação
dos exames e, assim que tivessem alguma notícia concreta, entrariam em contato com
Cash.
Cash disse ao médico, com ar severo, que não iria a lugar algum, que ficaria na
sala de espera o tempo que fosse preciso. O médico perguntou se ele era parente. Se
dissesse que não, poderiam negar-lhe acesso. Para o bem de Rory, tinha de evitar isso.
— Sou noivo dela — disse Cash calmamente, lembrando-se do que dissera aos
federais.
E acrescentou:
— Ela já foi modelo. Mas agora é atriz de cinema e está fazendo seu segundo
filme. O primeiro estreou em novembro do ano passado e fez muito sucesso. O rosto dela
— falou em tom melancólico — é um meio de vida.
— Vou providenciar para chamarem um cirurgião plástico para uma consulta

68
imediatamente. Temos de limpar os cortes com cuidado, costurar e pôr curativos
esterilizados para evitar infecções. Mas posso lhe dizer, pelo que já vi, que tenho quase
certeza de não haver danos graves no rosto — disse ele gentilmente. — O pulmão é o
que mais nos preocupa no momento. Vamos manter o senhor informado.
— Obrigado — disse Cash com tranqüilidade.
— Em 24 horas — o médico garantiu com um sorriso.
Cash foi ver Rory, com os dois agentes, e assumiu a responsabilidade por ele.
Levou-o para a lanchonete, pediu um refrigerante e o pôs a par do que estava
acontecendo.
— Eu gosto disso — disse Rory depois de um momento. — De você ser sincero
comigo — ele acrescentou, diante do ar curioso de Cash.
— Tenho você em alta consideração, é por isso — replicou Cash.
Rory olhou para ele com curiosidade.
— Por que não falou comigo quando eu liguei para você no Texas?
Cash sentiu-se mal. Detestou a pergunta que o fazia se achar indigno.
— Um dos meus colegas não passou a ligação. Ele achou que eu não queria. —
Fixou o olhar no copo de café em suas mãos. — Eu acreditei no que li nos jornais — disse
ele, como se sentisse diminuído.
— Tippy não é desse jeito — Rory retrucou com firmeza. — Ela jamais iria
sacrificar um bebê por causa da profissão, mesmo que pudesse ficar rica e famosa. Uma
vez ela me falou que a fama e a fortuna não substituem uma pessoa que ama você.
Cash já deveria saber disso. A confiança apossou-se dele.
— Ela vai sair dessa — disse Rory de súbito. — Só precisa de tempo. Você... vai
ficar até sabermos ao certo?
— É claro — respondeu Cash, como se fosse óbvio.
Rory relaxou um pouco.
— Obrigado.
Cash não respondeu. Pensava na situação de Tippy, e como era precária. Não
ousava imaginar como seria dali a uma hora.
Rory finalmente fora levado para dormir, em uma cama do hospital, quando o
médico veio relatar a Cash o resultado dos exames. Como calculara, havia uma
concussão no pulmão e mais o sangramento. Drenaram o líquido e suturaram os cortes
— que o cirurgião plástico achava que cicatrizariam rapidamente, pois nenhum nervo ou
músculo fora atingido. Agora, era questão de se esperar para ver se o dano pulmonar
progrediria e observar a concussão. Tippy foi removida para passar a noite na UTI,
constantemente monitorada.
Cash sabia muito bem o que eram ferimentos na cabeça e no pulmão para não se
preocupar. Sentou-se ao lado da cama na UTI, quebrando normas a torto e a direito,
segurando a mão dela. Deram-lhe sedativos para dor, e ela oscilava entre momentos de
sono e consciência. Não pareceu reconhecê-lo de início.
Não a deixaria. Se a tivesse ouvido, em vez de mandá-la para o quinto dos
infernos, ela não estaria ali. Sabia disso. Saber disso o machucava. Poderia ter morrido.
Ainda podia. Não haveria de compartilhar seu medo com Rory, que dormia tranqüilamente
no saguão, pensando que a irmã passava bem.
Cash não dormiu em momento algum. Ao raiar do dia, ela abriu os grandes olhos
verdes, em alerta. Estremeceu e pareceu sufocada, ao tentar respirar. Doía. Pôs a mão
na costela quebrada e gemeu.
— Devagar — disse Cash com delicadeza. — Não se mexa. O que você quer?
Ela viu os olhos escuros e preocupados. Estava sonhando. Sorriu debilmente e
murmurou:
— Então eu morri — e voltou a dormir.
Ele apertou o botão para chamar a enfermeira, que logo veio, ouviu o relato de

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Cash, sorriu e foi chamar o médico, em busca de novas instruções.
— Não é sonho — Cash sussurrou, junto à testa da enferma, que ele beijava
ardorosamente. — Estou aqui, e você está viva. Graças a Deus. Graças a Deus!
Ela achou que era a voz profunda de Cash. Parecia que estava com medo. Mas ele
a detestava. Não poderia estar ali. Alguém batera muito nela, várias vezes. Lembrava-se
de, finalmente, gritar por piedade, implorar por sua vida. Não conseguiu reagir. De nada
adiantaria. Queria Cash, mas ele a detestava. Perdera o bebê. Ele jamais a perdoaria.
Estava sonhando outra vez.
Correram lágrimas das pálpebras fechadas.
— Ele me detesta — disse ela com voz abafada. — Ele me detesta!
— Não! — disse ele. — Não detesta!
A cabeça se mexia sem parar, no travesseiro.
— Deixe-me — ela conseguiu extrair em um fiapo de voz. — Não faz diferença o
que acontecer comigo.
— Faz, sim!
Ele soou desesperado. Agora ela teve certeza de que estava sonhando. Ele a
contestava. Ele a queria. Estava arrependido. Precisava perdoá-lo. Tinha de viver!
Espere um pouco... Devia ser uma alucinação. Mandou-a para o inferno. E ela foi.
Não havia descrição melhor para o que aconteceu naquele depósito, na escuridão. Estava
toda quebrada, ferida, cortada em pedaços, e o futuro parecia tão sombrio. O trabalho,
agora, não era o suficiente. Nem Rory era suficiente. Estava cansada de lutar. Começou a
chorar, gemendo quando lhe doía o pulmão. Elevou a voz no momento em que a
enfermeira voltou rapidamente.
Cash foi despachado para fora da unidade, protestando e xingando. Parecia que
ela perdera a vontade de viver. Estava tentando desistir e morrer. Não podia deixar que
ela se fosse!
— Ela vai ficar bem — a enfermeira garantiu com rispidez. — O senhor fica lá fora
e nós cuidamos dela. Não vai morrer. Não vai! Pode acreditar.
A mulher tinha experiência nesse tipo de situação. Olhou nos olhos daquele
homem torturado e viu mais do que ele poderia imaginar.
— Ela não vai desistir — disse a enfermeira com calma. — Eu não vou deixar.
Prometo. O senhor vai ter tempo para ficar com ela.— Soltou a mão dele e sorriu. —
Devia dormir um pouco. Ela vai ficar boa. Não vamos deixar que ela fuja daqui. Está bem?
Ele relaxou um pouco. Estava cansado demais. Estava com tanto medo...
— Tudo bem — ele concordou depois de um instante.
Conduziu-o até a sala de espera e sentou-o em uma poltrona.
— Venho buscá-lo quando ela estiver no quarto, instalada.
— Vão tirá-la da UTI? — indagou Cash, aturdido.
— É claro — respondeu ela com um sorriso forçado. — Não mantemos aqui os
pacientes em recuperação!
Fez a volta e saiu, a tempo de não reparar que lágrimas brotavam nos olhos dele.
Haveria de viver. Mesmo que o detestasse, viveria. Fechou os olhos e inclinou-se para
trás. Em poucos segundos, dormia profundamente.

Capítulo Oito

70
A primeira coisa que Cash sentiu foi que Rory o sacudia.
— Vamos, Cash, ela está acordada! Está meio zonza, porque deram a ela os
remédios para dor, mas está de olhos abertos. Meu Deus, ela está horrorosa!
Os olhos escuros de Cash abriram-se imediatamente. Piscou e concentrou o foco
no rosto do garoto.
— Está acordada? — Cash repetiu.
Rory concordou com um aceno de cabeça.
— Eu acabei de acordar. São quase 11 horas da manhã. Vamos.
Cash pôs-se de pé devagar, oscilando.
— Estou velho demais para esse tipo de serviço.
Rory observou o homem alto em silêncio.
— Você foi lá e veio com ela, não foi?
Cash fez que sim.
— Fiz umas compras, chamei um amigo meu. Mas você não está sabendo disso —
ele acrescentou com firmeza.
Rory concordou.
— Obrigado.
Cash evitou o olhar de gratidão. Ainda se sentia responsável pelo que acontecera
com Tippy. Tinha pavor de ficar frente a frente com ela.
Mas entrou no quarto com Rory, preparado para o que desse e viesse.

Tippy estava ligeiramente consciente. O rosto doía. O corpo doía. Sabia dos
ferimentos que cobriam a maior parte do corpo. Havia um tubo no braço. Recebia
oxigênio por tubos no nariz. As costelas doíam. Mas ao ver Cash e Rory ali, ao lado da
cama, não soube dizer se os via de verdade. Tivera um sonho. Cash a beijava e dizia
para ficar firme. Tinha de viver. Sabia que era um sonho, porque Cash a detestava.
Voltou-lhe à mente a última e terrível lembrança, de Sam Stanton em cima dela
com uma garrafa, berrando a plenos pulmões que ela o passara para trás e não ia viver
para contar vantagem. Ainda sentia o impacto da garrafa nas costas e nos ombros, na
caixa torácica, onde estava o machucado. Algo a atingiu na cabeça e ela caiu, ao mesmo
tempo em que Sam jogava a garrafa, espatifando-a no piso de concreto. Sentiu o rosto
inchado e dolorido, mas não eram cortes muito fundos. Talvez tivesse caído sobre o vidro
quebrado, cortando o rosto. Agora, parecia estar viva, mas tinha grande dificuldade em
respirar, mesmo de leve. Sabia que Rory e Cash estavam ali, apesar de mal conseguir
ouvi-los.
Cash parou ao lado da cama e prendeu a respiração de maneira audível, diante do
que via. O pobre rosto tinha cortes, que foram limpos e medicados. Não havia pontos.
Sabia, por experiência própria, que somente os cortes profundos são suturados.
Agradeceu a Deus por serem superficiais. Levaria meses até que ficassem curados por
completo, mas podia-se ver que não eram profundos, e era pouco provável que
deixassem marcas permanentes. O maior perigo estava no pulmão. Se houvesse
hemorragia, ela poderia morrer.
Havia cortes em um dos braços, o que não estava com o tubo de soro. Esse braço
tinha pontos. Ele sabia que houvera concussão pela maneira como os médicos
mantiveram a cabeça elevada, em vez de nivelá-la ao resto do corpo, quando chegaram
ao local. Mas ela ainda respirava e teria socorro imediato, se precisasse. Graças a Deus.
Rory foi até a cama e segurou na mão da irmã, sem hesitar.
— Você vai ficar boa, mana. Boa mesmo.
— Claro que vou — disse ela. A voz saía engrolada pelos medicamentos. — A
cabeça me dói tanto! — Ela gemeu.— Já enjoei duas vezes. Aqui do lado dói...

71
Ergueu os olhos acima dele, para Cash. Não teve qualquer reação. Apenas olhava.
— Está precisando de alguma coisa? — perguntou ele com delicadeza.
Respirou com um estremecimento e baixou os olhos para as próprias mãos.
— Preciso que você leve Rory ao apartamento para ele pegar o meu cartão do
seguro, se for possível — falou com seriedade. — O médico que me atendeu acabou de
ligar. Disse que estou com as costelas quebradas e uma concussão leve. Tenho de ficar
no hospital pelo menos por três dias, para não ter pneumonia. Estão me dando
antibióticos para prevenir. A concussão foi leve, e a tomografia não revelou grandes
danos. Pelo menos, nada que os preocupasse. Os cortes não foram muito profundos,
graças a Deus. Ele acha que vão cicatrizar perfeitamente, sem precisar de cirurgia
plástica... mas vai levar meses até curar por completo. Depois disso, eles vão ver se vou
precisar da cirurgia.
Cash tinha no rosto uma expressão de pedra.
— Por que Stanton fez isso com você? — perguntou ele.
Ela se mexeu, sorriu com uma careta, e o movimento fez doer as costelas. Era
difícil respirar. Difícil falar, também.
— Ficou com raiva porque não encontrou ninguém para pagar meu resgate —
disse ela pesadamente. — Disse que era para eu nunca mais poder trabalhar, mas estava
doido demais para ter noção de que não ia me matar de pancada. Jogou a garrafa no
chão do depósito logo antes de eu cair... eu achava que ele ia me cortar mais com o
gargalo da garrafa.
— Ele estava do seu lado — Cash lembrou-se. — Mas eu acho que o que cortou
você foi cair em cima do vidro quebrado.
Ela deu uma risadinha leve.
— Não vão cicatrizar da noite para o dia, não importa como tenham sido feitos. Vou
ficar muitos meses sem poder trabalhar. Joel Harper vai ter de me substituir.
Não acrescentou que ficaria na miséria se isso ocorresse.
— Você só precisa se preocupar em sair dessa — disse Cash com meiguice. — Eu
tomo conta do resto, Rory inclusive.
— Obrigada — disse ela em tom tenso.
— Sei que você detesta depender de alguém — Cash prosseguiu. — Eu também
ficaria assim, se estivesse no seu lugar. Mas você tem muito o que fazer, para ficar
completamente curada.
— Agora eu entendo o que quer dizer "cortar e colar" — murmurou ela.
— O que mais você precisa de lá do apartamento? — perguntou Cash.
— Além do cartão do seguro? Minhas camisolas e um penhoar, alguma roupa
íntima e os chinelos — disse ela. — Rory sabe quais são. Um dinheiro trocado para a
máquina dos biscoitinhos e qualquer coisa para ler.
Ela ainda não olhava para ele. Chegou mais perto da cama, ao reparar como
estava tensa com aquela tentativa de aproximação.
— Rory, você pode nos deixar um minuto? — perguntou ele ao garoto.
Mas antes que Rory pudesse responder, os olhos de Tippy pousaram no rosto de
Cash. Não havia emoção neles.
— Ele não precisa sair — disse ela. — Você e eu não temos o que dizer um ao
outro, Cash. Nada mesmo.
Ele soltou o ar com ruído.
— Só de você trazer minhas coisas já fico muito agradecida — ela afirmou. —
Rory, o policial que esteve aqui disse que um dos homens fugiu. Você não vai poder ficar
aqui comigo no hospital. E não pode ficar no apartamento, nem com Don — ela
completou, quando ele ia protestar —, sem pôr em risco a família dele. Eu sinto muito,
vou sentir sua falta pelo resto das férias da primavera, mas você precisa mesmo voltar
para a escola, pois o comandante pode manter você em segurança. Cash, poderia

72
conversar com o comandante e explicar o que está acontecendo?
— É claro — disse ele. Virou-se para Rory:
— Ela tem razão. Você fica seguro em Maryland. Aqui, não.
Rory fez uma careta.
— Não quero ir — disse o garoto.
Ela pegou na mão dele e apertou-a.
— Eu sei. Nós só temos um ao outro — Tippy conseguiu dizer e sorriu. — Mas eu
vou melhorar. Prometo. Não vou desistir. Está bem?
Ele engoliu em seco.
— Está bem.
— Falta pouco para o verão — ela lembrou, com um sorriso frágil. Seu rosto, antes
tão lindo, era um aglomerado de cortes. — Vamos fazer qualquer coisa diferente nas
férias, este ano.
— Podíamos ir para as Bahamas — ele sugeriu.
Ela fez que sim com a cabeça.
— Vamos ver. Agora você vai com Cash pegar minhas coisas. Arrume sua mochila
também. Vai precisar ligar para o aeroporto e comprar a passagem. Meu cartão de crédito
está estourado, mas vou fazer um cheque e descontar com Cash para você.
— Eu cuido disso tudo — disse Cash para ela. — Você não tem de me pagar.
Ela quis discutir, mas não teve forças. No momento, estava desamparada. Fez
uma careta quando se moveu.
— Alguma coisa errada? — indagou Cash ao perceber.
— Costelas quebradas — disse ela com voz rouca. — Ainda dói quando me mexo.
Os olhos de Cash estavam vidrados. Lamentava não ter matado o homem, em vez
de apenas atirar na perna dele.
— Vão em frente — disse Tippy, fechando os olhos. — Vou dormir um pouco,
enquanto isso. Obrigada, Cash — ela completou com tranqüilidade.
Ele se sentiu inferior. Machucava vê-la naquele estado. Se não tivesse batido o
telefone...
— Vamos — disse Rory, puxando Cash pela mão.
Rendeu-se à persuasão do garoto e seguiu-o para fora do quarto. Não olhou para
trás. Doía demais.

O apartamento de Tippy estava revirado. Era óbvio que os agentes federais


andaram procurando vestígios da presença de um invasor. Cash e Rory passaram um
bom tempo arrumando tudo e fazendo a mala para ela. Quando terminaram, fizeram a
mala de Rory.
— Sei que você não quer ir — disse Cash calmamente. — Mas eu não posso
cuidar de você e de Tippy ao mesmo tempo.
Rory ficou calado.
— Ela não vai deixar você tomar conta dela — ele comentou, enquanto colocava
uma camisa na mochila.
— Vai ter de deixar. Não tem mais ninguém — disse ele de maneira definitiva. —
Eu a convenço nos próximos dias. Depois a levo comigo para casa, no Texas.
Rory olhou-o de relance.
— Ela não vai.
Ele suspirou.
— Vai, sim. Agora ela me detesta. Eu entendo. Mas não tem outro lugar para ir. E
não pode ficar sozinha.
— Você é chefe de polícia — Rory lembrou. — Se ela ficar com você...
— Já pensei nisso — Cash interrompeu-o. — Vou colocar uma enfermeira dia e

73
noite, enquanto ela estiver lá, para não ter fofoca.
Rory dobrou lentamente outra camisa.
— Olhe, assim que terminar a escola, você também pode ir — disse ele. — Você
também pode ficar comigo.
Rory ergueu os olhos para ele.
— Posso mesmo? — perguntou ele com voz firme.
Cash sorriu.
— Mas vai ter de ajudar na casa — Cash acrescentou. — Tippy não vai poder fazer
esforço por mais ou menos um mês e meio, o que quer dizer que eu vou fazer tudo
sozinho até você aparecer. Eu detesto aspirador. Já quebrei dois este mês.
Rory arregalou os olhos.
— Por quê?
Cash não estava à vontade.
— O tubo se enrosca. O fio fica preso debaixo do motor. Aspirador é igual a um
elefante. Você tem que circular com ele puxando pela tromba.
Rory deu uma gargalhada. Era a primeira, desde que começara a penosa
experiência com os seqüestradores.
— Agora você acha graça — disse Cash. — Espere só até se enrolar em três
metros de tubo, com o fio em volta da cintura, arrastando você. Foi por isso que eu
aposentei o último. — Arregalou os olhos. — Eu devia ter dado um tiro naquela coisa, em
vez de dar só um pontapé.
— Eu gosto de aspirador de pó — disse Rory. — Não me importo de passar o
aspirador.
— Ótimo. Então você fica com essa parte do serviço de casa.
— Eu também sei cozinhar — disse Rory, de modo surpreendente. — Sei fazer
churrasco muito bem. Eu mesmo faço o molho.
Cash sorriu para o garoto.
— Vou deixar você experimentar comigo.
Rory sorriu de volta.
— Obrigado, Cash. Por tudo.
Cash sentou-se na cama e cruzou as mãos entre os joelhos.
— Você não é mais criança, Rory — disse ele solenemente. — É amadurecido
para sua idade, então eu posso lhe contar isso. Eu cometi um erro terrível com Tippy. Eu
não estava preparado para um relacionamento duradouro, mas cedi à tentação sem
pensar no depois. Acho que você já sabe que o filho que ela perdeu era meu.
Rory assentiu.
— Ela queria mesmo o bebê.
Cash engoliu com força. Não conseguia olhar para o garoto.
— Eu ia querer também, se soubesse.
— Ela disse que você falou para ela que vocês dois não tinham futuro — Rory
contou. — Disse que ia ficar com o bebê e criá-lo assim mesmo. Estava comprando
roupinhas de bebê e essas coisas, quando teve uma queda no trabalho. — Ele hesitou. —
Aí ela ficou parada e começou a beber pesado, depois disso. Também saiu em todos os
jornais. Isso só piorou. — Levantou os olhos. — Você não pode deixar que ela continue a
beber. Nosso médico falou que nós dois temos tendência para o alcoolismo, por causa da
nossa mãe. Ela não precisa ficar bebendo.
— Obrigado por me contar — disse Cash. — Sei como o álcool é perigoso. Não
vou deixar que ela siga nesse caminho.
Rory respirou profundamente.
— Obrigado. Eu estava preocupado com isso.
— Ela vai ficar bem. Eu prometo.
Rory concordou com um aceno de cabeça.

74
— Tudo bem. Pode me ligar de vez em quando, para dizer como ela está?
—Vou ligar para você todo dia. E ela vai ligar também.
— A recuperação vai ser difícil, não é? — perguntou o garoto.
— É — respondeu Cash. — Mas ela é forte e corajosa. Vai passar por isso e, de
repente, voltar a ser o que era.
— Alguém precisa procurar Joel Harper para avisar a ele — disse Rory.
— Vou ver onde ele está — Cash prometeu. — Tudo vai se ajeitar.
Rory virou-se de costas quando as lágrimas brotaram em seus olhos.
— Foram dois dias difíceis — disse ele com rispidez.
Cash levantou-se e colocou as mãos nos ombros do garoto.
— A vida é uma corrida de obstáculos — disse ele. — Você passa pelas barreiras
e ganha um prêmio, todas as vezes.
Rory voltou-se, surpreso.
— É o que Tippy sempre diz.
Cash sorriu.
— Nós dois temos razão.Você vai ver.
Quis abraçar o garoto, confortá-lo. Mas não estava habituado a tocar nas
pessoas.Tinha a impressão de que Rory também não. Pigarreou abruptamente e voltou
para a mochila.
— Agora vamos arrumar a mala.
Rory ficou agradecido pelo fato de o homem mais velho não ter tentado consolá-lo.
Assim, foi capaz de controlar as lágrimas. Forçou um sorriso.
— Combinado!

Tippy ainda estava grogue aquela tarde, mas a mente voltara a funcionar. Os
medicamentos mantinham a dor sob controle, e lhe deram alguma coisa para o enjôo.
Não raciocinava com clareza, mas estava bem melhor.
Era uma tortura ver Cash em seu quarto. Lembrava-se bem das palavras ásperas,
da recusa em ouvi-la. Lembrava-se do pavor que sentiu quando Rory desapareceu. Podia
ouvir a voz de Sam ao telefone, quando fez a exigência final de resgate, e Tippy se
ofereceu para ser trocada pelo garoto. Quando os seqüestradores libertaram Rory e
perceberam que não iam conseguir o resgate, ela se lembrava da dor e do terror ao ver
Sam voltar-se contra ela, ameaçador, dizendo que agora ela é que ia pagar...
A porta se abriu e ela ergueu os olhos, empurrando para o fundo da mente as
lembranças amedrontadoras. Mais cedo, Cash levara o cartão do seguro e as roupas,
depois ela se despedira de um choroso Rory, e Cash o levara ao aeroporto, para colocá-
lo em um avião para Maryland. Perdera a noção de tempo, desde que ele saíra.
— Eu vim mais cedo, mas você estava dormindo e não quis acordá-la — disse ele
com calma. — Fiquei na lanchonete.
— Dormi muito tempo — disse ela devagar. — Estou me sentindo um pouco
melhor.
— Que bom. Acabei de falar com o comandante — disse Cash, aproximando-se do
leito. — Ele foi buscar Rory no aeroporto e o levou de carro para a escola. Não vão deixar
ninguém tirá-lo de lá, a não ser você ou eu. Ele vai estar seguro.
Ela soltou o ar longamente.
— Graças a Deus não fizeram nada com ele. Eu tinha tanto medo do que Sam
fosse capaz de fazer.
— Então você propôs a troca por ele. — A respiração ficou audível. — Ele podia ter
matado você.
— Não tinha importância, desde que Rory estivesse a salvo.
Cash enfiou as mãos nos bolsos e ficou olhando para ela, com os lábios apertados,

75
enquanto espantava a própria raiva por se sentir tão fora do contexto. Ela não iria olhar
para ele.
— Sabe que não pode ficar sozinha, não é? Não com aquele outro maluco solto
por aí. Stanton, com certeza, disse a ele onde você mora.
Ela engoliu em seco.
— Posso ir para um quarto de hotel, em algum lugar...
— Vou levar você comigo para Jacobsville.
— Não! — disse ela com aspereza. — Depois de tudo o que saiu nos jornais!
— Vou arranjar uma enfermeira que durma no emprego, até você se levantar da
cama — ele continuou, como se ela nada tivesse dito. — Não vai ter fofoca.
— Você... faria isso? — indagou ela com surpresa.
Ele assentiu.
— Rory lembrou que você não poderia ficar sozinha comigo — disse ele, com
expressão séria apesar do tom de piada. — Sou o chefe de polícia. Temos de pensar na
minha reputação.
— É óbvio que não precisamos nos preocupar com a minha — disse ela com voz
entorpecida. — Já não tenho mesmo nenhuma.
— Pare com isso — ele cortou. — Ninguém acredita nessas coisas que saem
naqueles jornais!
— Ninguém, a não ser você — ela concordou, e olhou-o diretamente.
Ele não tinha como contestar, mas foi difícil de ouvir aquilo. Chacoalhou as moedas
no bolso.
— Falei para a equipe daqui que nós estamos noivos.
— Para quê? — indagou ela com frieza, procurando não demonstrar uma inevitável
onda de agitação.
— Só assim me deixaram entrar na UTI. Você ficou lá até eles fazerem 20 exames
e prestarem os primeiros socorros, logo que a trouxeram para cá — ele replicou. — Eu
não ia ficar do lado de fora. Então, também podemos falar para as pessoas que estamos
noivos, quando formos para Jacobsville. — Observou como o rosto dela ficou ruborizado.
— Isso acaba com o falatório.
— Você não precisa se sacrificar por mim — disse ela, com uma ponta de seu
antigo humor. — Não vou mesmo passar muito tempo, se der para cobrir os cortes com
maquiagem, quando as costelas sararem e os hematomas desaparecerem. Tenho um
filme para terminar quando Joel Harper voltar de viagem.
Ele chegou para mais perto.
— Fiz uma besteira — disse ele por entre os dentes. — Duas besteiras. Caí em
tentação e acreditei no que li nos jornais de escândalos. Você não estaria aqui, se não
fosse por minha culpa. Você me ligou para pegar o Rory de volta, não foi?
Ela acenou com a cabeça, sem olhar para ele.
Sacudiu as moedas no bolso novamente. Há muitos anos não pedia desculpas.
— Você me contou como se sentia, no começo — disse ela em tom pesado. — Eu
não ouvi. Forcei você a chegar aonde chegou, Cash. Nem sei por que fiz isso, mas se
alguém tem culpa, sou eu.
Ele franziu as sobrancelhas.
— Rory disse que você ia ficar com o bebê.
Ela virou o rosto para o outro lado, para que ele não visse as lágrimas em seus
olhos.
— Isso não tem mais importância.
Mas tinha. Ele sentia a dor que ela transmitia.
— A única coisa que importa é ver você fora dessa cama — ele concordou. — E
manter você em segurança até sermos testemunhas no julgamento de Stanton.
— Eu esperava um telefonema de minha mãe — disse ela sem emoção. —

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Imagino que Stanton já tenha entrado em contato com ela. Vai me culpar por ele estar na
cadeia.
— Sem dúvida — Cash concordou. — O FBI está trabalhando com a possibilidade
de ela ter conspirado com ele para fazer isso. Se encontrarem provas, vão acusá-la de
formação de quadrilha, e ela também irá a julgamento. Seqüestro é crime federal.
— Não tinha pensado nisso — disse ela abruptamente. — Há ainda um homem
solto, também.
— Sim. É por isso que você tem de ir para o Texas comigo. Judd vai estar por
perto, e eu vou estar lá o tempo todo. Você não vai ficar vulnerável.
Isso era o que ele pensava.
— Christabel não vai... se importar... de eu estar por perto, depois daquela história
toda com Judd? — Ela se preocupou.
— Christabel e Judd parecem duas crianças numa loja de doces, desde que se
casaram. Principalmente depois que vieram os gêmeos — disse ele. — Nem vão se
importar. Ninguém mais tem ciúmes de você.
Ela suspirou, estremecendo quando isso lhe pressionou as costelas.
— Como você consegue viver numa cidade tão pequena? — indagou ela. — Você
era um peixe fora d'água, quando eu estive lá.
Ele hesitou.
— Não sei ao certo. No início, achei divertido. Meu primo Chet precisava de ajuda
e me convenceu a ir para lá. Eu achava que ia detestar. Mas estava cansado do crime
cibernético e da vida que levava. — Cash suspirou. — Desde então, não me entrosei
muito em Jacobsville. Mas o trabalho é... interessante. Variado. Nunca achei monótono. E
sinto que estou sendo útil. Encurralei o tráfico de drogas. Ao que parece, Chet não queria
muita movimentação e negligenciou um dos mais altos índices de ocorrências. Eu chamei
o Ministério da Justiça e fiquei de olho nos tribunais.
— Vai arranjar inimigos.
— Obrigado, já os tenho de sobra. Tivemos um prefeito em exercício e pelo menos
dois vereadores que queriam doar lenha para me queimar na fogueira. — Ele puxou uma
cadeira e sentou-se. — Mas, se eu puder manter uma secretária, devo ficar mais um ano.
— Precisa procurar uma mulher que não tenha medo de cobras e não jogue coisas
em cima de você — ela ressaltou.
— Para variar.
Ela passou os dedos na boca.
— Estou com a boca seca.
Levantou-se, encheu um copo com água e ergueu a cabeça dela para que
conseguisse beber.
— Nunca soube que água era tão bom, até hoje — disse ela e deu uma risada
rouca, entrecortada.
Ele pousou a cabeça dela no travesseiro e colocou o copo de água sobre a mesa-
de-cabeceira.
— Você é muito corajosa. Propor ser trocada por Rory foi ato de herói.
— Você teria feito o mesmo — ela replicou, fechando os olhos.
— É claro, mas eu teria uma faca K-bar na bota e uma arma escondida num coldre
no tornozelo — retrucou ele.
— Meu tornozelo é muito fino para segurar um coldre.
— Eu reparei.
Ela vagueou por alguns segundos.
— Tenho de pedir mais alguma coisa para a dor — ela explicou. — Estou com
medo, mas acho que vou dormir.
Ele chegou a cadeira para mais perto e segurou os dedos esguios entre os seus.
— Estou por aqui — disse Cash, com voz profunda e confortadora. — Pode dormir.

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Ela tentou sorrir, mas não se lembrava de como fazê-lo. Suspirou e saiu do ar.

O cheiro de batatas e frango deixou-a semidesperta. Cash tirava as tampas


metálicas de uma bandeja que ele colocara na mesa-de-cabeceira.
— Para comida de hospital, isso não está nada mal — ele brincou, olhando para
ela. — Tem sorvete de sobremesa, também.
Ela tentou alcançar o botão que levantava a parte superior da cama. Ele fez isso e
colocou a bandeja sobre as pernas dela.
— Você precisa sair para comer alguma coisa também — disse para ele.
— Já fui, enquanto você dormia. Você vai ter de ficar aqui vários dias — disse ele.
— O médico falou que será avaliada diariamente, para ver como reage. Depois eu levo
você para o Texas. Irão retirar os pontos antes de você sair do hospital, mas vai precisar
de uma revisão. Ele vai indicar um amigo em San Antonio, e eles manterão contato sobre
o seu estado geral.
Ficou boquiaberta.
— Como você conseguiu isso?
— Só pedi.
Ela balançou a cabeça.
— Você é um espanto.
— Detesto a idéia de colocar você num avião, para voltar daqui a duas semanas,
para a revisão. É muito arriscado, nesse momento.
— Está bem.
— Sem discussão? — ele brincou.
— Estou tão cansada.
— Coma um pouco.
Entregou-lhe o garfo. Ela inspirou lentamente e começou a comer. Não tinha fome,
mas a comida estava boa.
— Fiz contato com Joel Harper — ele acrescentou, sem detalhar quantas ligações
internacionais, e até algumas ameaças, foram necessárias para descobrir onde o homem
estava. — Ele está com dificuldades no filme em que está trabalhando e vai levar pelo
menos três meses até voltar ao país. Disse para você não se preocupar com o seguro.
Ele vai pagar o que o seguro não cobrir, como adiantamento do seu salário — ele
completou.
Ela quis dar um grito de alívio.
— Graças a Deus — murmurou ela. — Eu estava tão preocupada...
— Não deixe esse frango ir para o lixo — disse ele. — Eu comi lá embaixo, na
lanchonete. Está muito bom.
Ela levou outra garfada à boca.
— É um prato italiano. Eu mesma faço, quando tenho tempo.
— Rory sabe fazer churrasco.
Ergueu os olhos para ele.
— É verdade. Como é que você sabe?
— Ele me contou. — Mexeu na manga da camisa. — Um grande garoto.
— Também acho.
— Disse a ele que também pode ficar comigo, assim que terminar a escola.
Ela hesitou.
— Não sei. Eu já devo ter voltado a trabalhar, por essa época.
— Não deve, não — ele devolveu. — Estamos no começo de abril. Joel só vai
voltar em julho ou início de agosto.
Ela suspirou e terminou de comer.
— Achei que você não gostasse de usar gravata.

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— Não estou de gravata, por acaso estou?
— Entendeu o que eu disse.
Ele cruzou uma longa perna sobre a outra.
— Você vai poder observar o processo político de perto — disse ele em tom
evasivo. — Calhoun Ballenger está concorrendo com um dos senadores mais antigos do
estado pela indicação do Partido Democrata. A primária é no início de maio. Vai ser uma
disputa quente.
— Não entendo muito de política.
— Vai se divertir aprendendo — ele afirmou com um sorriso simpático.
— Acha que vou?
Ela abriu a embalagem de sorvete.
— Você não comeu a pêra — ele cobrou.
— Detesto pêra.
— Frutas fazem bem para você.
— Só as de que eu gosto me fazem bem — ela corrigiu.
Levou uma colherada de sorvete à boca. Mastigar incomodava, pois tinha
hematomas junto aos cortes no rosto, mas o sorvete desmanchou-se na língua.
— Temos uma sorveteria em Jacobsville — disse ele. — Há todo tipo de sabor que
você possa imaginar. Prefiro de morango.
— É do que eu mais gosto também.
Terminou e recolocou a vasilha e a colher na bandeja, fazendo uma careta ao se
inclinar.
— Costela quebrada? — perguntou ele.
Ela assentiu e se encostou nos travesseiros.
— Eu queria ter uma arma e cinco minutos sozinha com Sam — disse ela em tom
áspero. — A meu favor, eu bem que tentei o roundhouse kick, um desses golpes de tae
kwon do, quando ele descobriu que não ia conseguir dinheiro comigo. Até tentei
neutralizar o primeiro soco. Então ele pegou aquela garrafa e eu não tive chance. Eu
adoraria mostrar para ele o que é ter costelas quebradas e concussão.
— Está com um belo ferimento a bala.
Ela franziu a testa.
— Levou um tiro?
— Levou, sim. Eu escorreguei, senão ia ter mais que um ferimento a bala.
Ela abriu a boca. Encarava-o de olhos arregalados.
— Você me tirou de lá... foi isso que o agente do FBI queria dizer quando falou que
eles tiveram uma interferência. Você foi atrás de mim!
— É — ele confessou. — Não botei fé nos agentes que eles designaram para o
seu caso. Estavam no apartamento com Rory, esperando sentados por um telefonema
que podia nunca acontecer. Segui a pista de Stanton e dos capangas dele, com a ajuda
de um antigo colega.
— Eu imaginei — disse ela com meiguice. — Não consegui alguém que me
contasse o que aconteceu.
— Eles não sabiam — disse Cash simplesmente. — Como não há evidência para
me ligar àquele tiro, os federais e eu chegamos a um acordo. Justifiquei minha presença
com um superior que me devia um favor. Ele intercedeu por mim na polícia e com os
agentes do governo. De qualquer maneira, não quero complicação por admitir que fui eu
quem deu o tiro. Seria um escândalo e teria um impacto muito negativo na minha
reputação como chefe de polícia de Jacobsville.
— Ah.
— Então, estamos todos fingindo que Sam deu o tiro nele mesmo e estava bêbado
demais para ver de onde veio o tiro — disse ele, inclinando a cadeira para trás. — Sorte
do Sam ainda estar aí, depois de tudo o que fez com você.

79
— Ele estava com muita raiva — ela se lembrou, estremecendo.
— Ele abusou de você?
— Estava muito ocupado me batendo para pensar em sexo — ela suspirou
pesadamente. — Um dos amigos dele quis que ele parasse, isso é verdade, mas Sam
tinha perdido o controle. Devia estar usando alguma coisa. Não sei o quê. Tinha os olhos
injetados, estava doidão.
— Quem foi o homem que quis que ele parasse? — indagou Cash.
— Tinha cabelo louro — murmurou ela. — Só me lembro disso.
— O que foi preso com ele era louro. O outro fugiu. O de cabelo escuro, eu acho.
— Pode ser.
Piscou os olhos.
— Minha mãe tem muito o que contar — disse Tippy. — Se eu fosse do tipo
vingativo, daria aos tablóides sensacionalistas uma história de que eles não iam se
esquecer nunca mais.
— E você nunca iria se recuperar — disse ele. — Nem tente fazer isso.
Volveu para ele um olhar triste.
— Não poderiam me prejudicar mais do que já fizeram.
O rosto dele se contraiu.
— Fui muito imbecil de acreditar neles — ele replicou. — Boa parte disso tudo é
culpa minha.
Ela sacudiu a cabeça.
— As coisas acontecem — disse ela em tom pesaroso. — Minha mãe está por trás
disso. Sei que está. Já me ligou, fazendo ameaças. Não acreditei que pusesse em risco o
próprio filho por dinheiro. Que boba eu fui.
— Ela sempre foi alcoólatra?
Concordou com um meneio da cabeça.
— Toda a minha vida. Com oito anos, eu ia buscar o homem que pagava a fiança
para tirá-la da cadeia. Foi presa por prostituição, embriaguez, direção perigosa, roubo...
escolha o ilícito, e ela foi acusada. Agarrava-se a um homem depois do outro, atrás de
dinheiro para nos sustentar. Mas, às vezes, ficava bêbada demais até para isso. Fui
entregadora de jornais para comprar as roupas de ir à escola. — Tippy encolheu-se. —
Isso foi antes de Sam vir morar conosco.
— Ele é um marginal, não pode ser considerado coisa alguma — Cash afirmou
com frieza.
— Não sei. Minha mãe não pensa assim.
— Gosto não se discute.
Ela riu, sonolenta.
— É o que eu sempre digo. — Ela fechou os olhos. — Estou tão cansada.
— Passou por muita coisa. Coisa demais.
— Você não vai deixar que Rory se machuque? — indagou ela subitamente.
— Você me conhece muito bem.
Conhecia. Podia ser que não quisesse Tippy para toda a vida, mas já admirava
Rory. Não deixaria os seqüestradores levarem o garoto outra vez.
— Você não acha que eles vão pagar a fiança e sair, não é? — perguntou ela.
— Não, se eu puder evitar — garantiu.
O que ele não disse foi que, às vezes, o juiz pode ser induzido a acreditar no
suspeito e a estabelecer uma fiança razoável. Se Stanton encontrasse um meio,
escaparia. E, se o fizesse, iria, em linha reta, na direção da mulher que o colocou na
cadeia. Nada tinha a perder.
Cash estaria no seu caminho, protegendo Tippy e Rory. Conseguiria. Não
permitiria que algo acontecesse com os dois novamente.

80
Capítulo Nove

Tippy enfrentou a polícia no dia seguinte. Segurava a mão de Cash enquanto


prestava depoimento. Era o primeiro passo para a recuperação, disse para si mesma.
Apenas um obstáculo a mais para ultrapassar. Também tiraram fotos, com uma câmera
digital, para haver evidências do "tratamento" que recebera de Stanton.
Cash sentou-se a seu lado todo o tempo, bebendo intermináveis copos de café. Foi
um procedimento correto, porém, demorou mais do que ele esperava. Deslocou-se até a
delegacia com os investigadores e prestou depoimento. Não podia dizer toda a verdade,
mas contou o que o deixasse à vontade.
— E a mãe de Tippy? — indagou ao chefe da investigação, depois de conversarem
por alguns minutos.
— Ela disse que a mãe estava por trás do seqüestro, para tirar dinheiro dela —
disse o homem mais velho.
— É verdade. Ela é viciada em drogas.
Os olhos claros do investigador brilharam de raiva.
— Você devia ver a quantidade que nós temos aqui. A maioria se envolve com
arrombamento, assalto, assassinato. Tivemos um sujeito na semana passada, de 18
anos, que tomou tanto ácido que espancou a avó até a morte. Não se lembrava de nada,
mas vai passar a vida toda na cadeia se for condenado.
— Eu sei — Cash replicou. — Também estou na polícia. Passei os últimos meses
rastreando o dinheiro da droga. Você deve saber de onde ele vem.
— É — o outro concordou com a cabeça. — De cidadãos respeitáveis, que querem
ganhar dinheiro fácil, não importa como.
— Isso mesmo.
— Sempre achei que devia ser bom trabalhar numa cidade pequena — refletiu o
detetive. — O dinheiro é bom?
Cash deu uma risadinha.
— Se você gostar de cerveja. Não dá para comprar champanhe.
Os olhos do velho homem piscaram.
— Detesto champanhe.
— Então devia tentar. Pode fazer muita coisa boa, em pequena escala.
Houve uma breve pausa.
— Ouvi do meu tenente umas coisas sobre você. Ele foi da operação secreta na
Guerra do Golfo.
As sobrancelhas de Cash ergueram-se.
— Foi mesmo?
— Tem um sobrinho chamado Peter Stone. Mora no Brooklyn.
Cash lançou para ele um olhar esquisito.
— Veja só, como este mundo é pequeno.
O tenente deu um sorriso forçado.

Tomou um táxi de volta para o hospital. Tippy dormia outra vez, quando entrou no
quarto e se sentou junto à cama. Estava apreensivo por causa dela. O depoimento devia

81
ter sido tão penoso para ela como os machucados que sofreu pela primeira vez. Era
doloroso e tinha pela frente um longo caminho até se recuperar do dano que padecera,
sem falar nas marcas emocionais acrescentadas às que já tinha. Ele detestava sentir
culpa. O erro fora seu. Seu erro!
— Por que... você está assim? — perguntou ela lentamente.
— Assim, como? — indagou Cash.
Os lindos olhos verdes abriram-se o mais possível. Ele era tão bonito. Gostava de
olhar para ele. Sabia que ele sentia apenas culpa por tê-la deixado na hora que mais
precisava, mas era divino tê-lo tão perto e preocupado com ela.
— Você parece... perdido.
Ele se inclinou para a frente.
— Não consigo me libertar do meu passado — disse ele depois de um momento.
— A todo lugar que eu vou, as pessoas me conhecem.
— Isto não é ruim.
— Será que não? — Observou-a com voracidade. — Desculpe pelo depoimento,
mas eles não vão avançar se não tiverem indícios.
— Também vou ter de testemunhar contra eles, não é? — perguntou ela. Ele
assentiu.
— Mas vou ficar o tempo todo com você. Cada minuto.
Ela conseguiu extrair um débil sorriso.
— Obrigada. — Mudou de posição, fazendo careta novamente. — Aposto que você
já passou por coisa pior do que isto. Quer dizer, concussão, cortes e costelas quebradas.
— Costelas quebradas, dentes quebrados, tiros, queimaduras de cigarro, pancadas
de cima a baixo...
Ela prendeu a respiração.
— ... cortes e fraturas no rosto — ele completou. — Só que os meus tiveram que
ser costurados, e não havia tempo para cirurgia plástica.
Tocou as leves marcas brancas no queixo.
— Eu achava que ele tinha causado um dano maior ao meu rosto — disse ela com
voz rouca. — Era tanto sangue. Mas o médico disse que eram cortes relativamente
menores. Nenhum nervo ou músculo foi atingido. Tive sorte.
— Muita sorte — Cash concordou. — Mas... me desculpe — ele martelava a
palavra — por eu não ter ouvido você.
Ela respirou várias vezes, de maneira rápida e leve, para evitar dores mais
profundas.
— Você pensava... que eu estava perseguindo você. Tudo bem.
Ele fechou os olhos com força.
— Não confio nas pessoas.
— Sei disso. Eu também, não muito.
Virou-se para ela com lembranças frias no olhar.
— Dizem que as balas são perigosas. Mas o que há de mais perigoso no mundo é
o amor. Rói você por dentro, se você deixar.
Ela pôs a mão nas costelas e gemeu, por não conseguir respirar.
Levantou-se da cadeira.
— Aqui. — Apanhou o travesseiro de reserva e colocou-o delicadamente no peito
dela. — Quando quiser tossir, segure o travesseiro. Fica mais fácil.
Experimentou e deu certo.
— Como é que você sabe?
— Duas costelas quebradas. Uma puncionou o pulmão — disse ele com
simplicidade. — Fiquei semanas sem poder me levantar. Tive pneumonia, como
conseqüência.
Ela arregalou os olhos.

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— Era essa a preocupação do médico comigo. Disse que quando você respira...
superficialmente... o ar estagnado não é empurrado para fora dos pulmões e isso pode
provocar uma infecção.
— Exatamente. É por isso que estão lhe dando antibióticos e fazendo você beber
tanto líquido.
Ela conseguiu sorrir.
— Você sabe tanta coisa.
— Já quebrei os ossos mais importantes do meu corpo — ele declarou. — Se não
tivesse um bom condicionamento físico, poderia ter morrido umas duas vezes.
Os olhos descorados procuraram os olhos escuros.
— Rory acha você o máximo.
Ele se agitou.
— Eu também gosto dele.
— Você não gosta de intimidade com as pessoas, não é?
Sacudiu a cabeça.
— Não fico à vontade dividindo as coisas. — Cash abriu bem os olhos, enquanto a
observava. — Foi cedo demais, o que aconteceu.
— Sim. Cedo demais, e por minha culpa — acrescentou.
— Isso se faz a dois, Tippy — disse ele devagar. — Nós dois saltamos sem olhar
para baixo.
Os olhos dela percorreram o rosto de Cash como se fossem mãos carinhosas.
— Eu comprei roupinhas de bebê — disse ela, com uma risada dolorida. — Que
idiota.
— Rory me contou.
Ela fechou os olhos.
— Tudo aconteceu ao mesmo tempo. O trabalho ficou insuportável com o novo
assistente de direção — disse ela, lembrando-se da figura arrogante e do quanto lhe
custara. — Minha mãe fazendo ameaças. Eu perdi o bebê. — Cerrou os dentes e uma
lágrima que não conseguiu conter rolou pela face pálida. — Eu comecei a beber.
Sentiu a mão dele agarrar a sua, com força, e segurou-a.
— Rory me contou isso também. Ele está preocupado com você. Escute, eu sei o
que é beber. Já tive minha quota. Você não consegue segurar. Acha que vai diminuir a
dor, mas só piora o impacto quando você está sóbrio.
— Descobri isso.
— Nem sequer diminui a dor, depois de certo tempo. Eu acabei fazendo tratamento
— ele acrescentou, como uma constatação.
— Depois... que sua mulher se foi? — Ela testou com delicadeza.
Acenou rapidamente com a cabeça, evitando o olhar dela.
— Você a amava.
Olhou-a de relance e franziu a testa.
— Achava que sim — disse ele sem querer. — Talvez fosse só orgulho ferido, mais
do que amor.
Ela sorriu docemente e fechou os olhos. A mão dele, grande e cálida, trazia
conforto. Prendeu nela seus dedos longos e finos, com a confiança que se deposita em
um medicamento para, afinal, fazer efeito e dissipar a dor, afastar o medo...
Adormeceu. Ele a observava com olhos inquietos. As emoções, antes tão
facilmente controláveis, agora exigiam demais dele. Deixaria que ela entrasse em seu
coração, penetrasse sob sua pele. Mas ainda não tinha confiança suficiente. Ele a
magoara muito. Enxotara-a de sua vida e depois voltara para resgatá-la. Com certeza,
estava agradecida. Mas também traumatizada pela experiência recente, e ele não sentiria
firmeza no que ela dissesse ou fizesse naquele momento.
O médico confirmou que necessitariam de dois ou três meses para ela voltar ao

83
trabalho. Os pontos eram fáceis, seriam tirados em cinco dias. Mas talvez levasse mais
tempo para recuperar a estabilidade emocional. Enquanto isso, ele cuidaria dela,
protegendo-a, enchendo-a de mimos. Depois, quando estivesse inteira novamente,
poderiam pensar com calma e definir a situação deles.
Isto era o que sua razão lhe dizia. Mas o corpo era atormentado pela lembrança da
suavidade do corpo dela na cama junto a ele, os beijos famintos, o ávido prazer na
escuridão. Nunca tocara em pele tão quente e perfeita, jamais quisera tanto outra mulher.
Aquela noite o acompanhava. Haveria de acompanhá-lo para sempre. Se a perdesse...
Soltou a mão e recostou-se na cadeira, pensativo. Já enfrentara o mesmo
problema. Mergulharia no trabalho e haveria de tirá-la da cabeça. Mas nunca funcionou.
Sentia-se um homem pela metade, desde então.
Agora, ela estava doente e precisava dele. Rory também precisava dele. Nunca
antes precisara cuidar de alguém desse jeito. Cuidara de companheiros feridos no campo
de batalha. Cuidara de amigos, de arma na mão, em incursões secretas. Salvara civis em
situação de perigo, no decorrer de suas missões. Mas nunca fora tão necessário, de
maneira tão íntima, a não ser para sua mãe, quando era muito jovem. Não fora capaz de
protegê-la da morte. Mas salvara Tippy.
Analisou avidamente o rosto adormecido. Não dizem que uma vida salva pertence
a quem a resgatou? Pensou em tê-la em sua casa, ser provedor de tudo, protetor. Pensou
em Rory morando lá, erguendo os olhos para ele, procurando-o para se consolar, para se
acalmar, para receber afeto. Rory só tinha Tippy. Nunca convivera com um homem na
vida, apenas com os da escola militar.
Sentiu-se, de repente, temeroso da responsabilidade, inseguro quanto a sua
capacidade para assumi-la. Nunca, na vida adulta, tivera que se preocupar com o bem-
estar de outra pessoa. Não se sentira responsável por alguém, só tivera que prestar
contas a si mesmo. Isto haveria de mudar. Tippy dependeria dele por alguns meses. E
Rory também, enquanto a irmã estivesse incapacitada para cuidar dele.
A vida estava tomando outro rumo. Não sabia ao certo se lhe agradariam essas
alterações. Mas seriam interessantes.
Poucos anos atrás, sua vida era uma sucessão de mudanças. Pulava de um
trabalho para outro, nunca estava satisfeito. Não se entendia com os colegas. Nada
encontrava que o fizesse se sentir seguro.
Agora, tinha emprego em uma cidadezinha que parecia ser de pouca importância.
Porém, ele se surpreendeu ao descobrir como era gratificante. Dava-lhe uma sensação
de prazer que nunca experimentara nas forças armadas nem na polícia das grandes
cidades. Verificava se os idosos que lá residiam estavam passando bem e acertava os
ponteiros com a vizinhança. Fazia palestras para crianças nas escolas sobre a prevenção
das drogas. Dava apoio às autoridades locais e estaduais nas batidas policiais em busca
de entorpecentes. Tranqüilizava cidadãos que tinham sido assaltados. Acolhia pessoas
atacadas pelos próprios filhos em surtos de agressividade por uso de drogas e ajudava-os
a lidar com a terrível situação de serem, ao mesmo tempo, vítimas e pais. Apoiava
mulheres amedrontadas que precisavam testemunhar no tribunal contra maridos
agressores. Incentivava as patrulhas em áreas perigosas. Dava aulas de autodefesa
armada para os cidadãos. Insistia com o prefeito em exercício, Ben Brady, para que
pleiteasse na Câmara carros melhores para patrulha e orçamento maior para ronda
noturna em bairros dominados pelo crime.
Brady não o faria. Estava mais preocupado com o tio — senador Merrill — e sua
campanha para reeleição no estado do que com os problemas da cidade. Cash lamentava
que o último prefeito tivesse sido obrigado a renunciar devido a um ataque cardíaco. Com
certeza, Brady passaria por maus momentos na tentativa de se manter no cargo, já que
um ex-prefeito, bastante querido, Eddie Cane, entrara na disputa e era o único candidato
à vaga de Brady. Os dois eram do Partido Democrata. Não haveria surpresas nas

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primárias de maio. E quem vencesse ali seria praticamente imbatível na eleição geral de
novembro.
Ninguém gostava muito de Brady. Era intolerante e fazia qualquer coisa que o
senador Merrill — ou sua filha Julie — mandasse fazer. Cash sabia mais sobre ele do que
a maioria das pessoas. Logo ocorreria um escândalo político em Jacobsville, capaz de
virar o prédio da Prefeitura de pernas para o ar. No entanto, afora esta questão, os outros
vereadores e os administradores da cidade gostavam de Cash e trabalhavam sem pro-
blemas com ele e em seus projetos. Bem, com exceção de dois que eram leais a Brady —
mas Cash, no íntimo, achava que Brady os intimidava. Seus funcionários gostavam mais
dele a cada mês que passava. Começavam a se sentir como se fossem uma família.
Jacobsville se parecia, cada vez mais, com um lar. E ele se sentira deslocado a vida
inteira, até então.
Seu olhar se voltou para Tippy adormecida. Esta mulher se transformara, no
espaço de poucos meses, de ferrenha oponente em amiga íntima. Ele agora fazia parte
da vida dela, e a recíproca era verdadeira. Não mais compreendia os próprios
sentimentos. Fora louco por Christabel Gaines. A inocência, a bondade, o senso de
humor, a independência e força de vontade o atraíram. Mas Christabel nunca soube do
tipo de vida que ele levara. Teria sido solidária com o terrível passado e seus pesadelos,
mas jamais os compreenderia. Tippy, sim. Nunca fora a guerras, mas os traumas de sua
juventude a predispunham a compreender os dele.
Engraçado, pensou, como ele se convencera de ser ela uma mulher sofisticada e
sexualmente liberada, quando a conheceu. Acreditou que fosse uma devoradora de
homens. Mas sua verdadeira personalidade era de fragilidade, vulnerabilidade, ainda que
não fosse uma flor de modéstia. Era forte e feroz defensora das pessoas de quem
gostava. Sua criação turbulenta fora de dor e terror.
Ele não sabia se poderia, algum dia, compartilhar seu passado com ela. Era por
demais brutal e gélido. Porém, se o conseguisse, ela não se assustaria. Mostrava uma
empatia que ele raramente encontrara e um perturbador sexto sentido que lhe
proporcionava uma visão dos seus sentimentos mais profundos. Detestava saber que ela
podia ler seus pensamentos. Via o que não devia ver.
Riu para si mesmo. Estava imaginando coisas. Já era tarde, precisava passar a
noite em uma cama de verdade, não mais em uma cadeira. Mas quando seus olhos
deslizaram suavemente sobre o corpo dela na cama, entendeu que não podia sair dali.
Nem quis pensar nos motivos para tanto.

Deixou-se vencer quando a última enfermeira encerrou aquele turno. Somente se


deu conta do ambiente que o cercava ao ser sacudido, com delicadeza, por outra
enfermeira.
— Perdão — disse ela, quando ele abriu os olhos. — Mas temos de dar o banho da
srta. Danbury.
— Ah, claro.
Levantou-se, espreguiçou-se, bocejou e deu uma olhada rápida em Tippy. Parecia
muito pior esta manhã. Equimoses estouravam como catapora e os cortes tinham cor
vermelhoescura. Parecia mais uma artista de filme de terror do que modelo. Ele teve a
esperança de que não a deixassem se olhar no espelho.
— Vou ver se encontro um hotel para dormir uma hora, mais ou menos, e depois
eu volto. Está bem? — perguntou ele com gentileza.
Ela vacilou.
— Não precisa voltar...
— Se eu não voltar, você se dá alta e vai para casa — murmurou ele.
Ela enrubesceu.

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— Eu... não vou fazer isso! — exclamou Tippy, imaginando como ele adivinhara
seus pensamentos.
— É um caminho de mão dupla, não é? — Cash fez piada em tom enigmático,
pensando consigo mesmo que também podia ler a mente dela. — Não a deixe sair — ele
se dirigiu com firmeza à enfermeira. — Telefono para a sala de enfermagem aqui do
andar assim que eu der entrada no hotel, e deixo um número para vocês ligarem se ela
puser o pé fora do quarto. Melhor ainda, vou deixar meu celular.
— Sim, senhor — disse a enfermeira com um sorriso forçado.
Tippy olhava-o fixamente.
— Isso não é justo. Posso convalescer... tão bem em casa... como aqui — disse
ela de modo entrecortado, pois era dolorido falar e respirar.
— Não vai chegar nem até o elevador, com o pulmão desse jeito — ele observou
—, para não falar dos efeitos tardios daquela concussão.
— Ele tem razão — a enfermeira concordou, balançando a cabeça diante do olhar
dela. — Vamos começar hoje o tratamento respiratório. Não queremos que pegue uma
pneumonia.
— Não queremos mesmo — disse Cash com firmeza.
— Você está gostando disso — Tippy acusou. — Sinto-me como o prisioneiro de
Zenda!
— Foi com Stewart Granger, que era muito maior do que você e tão briguento
quanto — ele lembrou.
— Não sou briguenta! — ela devolveu.
Cash e a enfermeira trocaram olhares.
— Parem com isso! — Tippy se irritou. — Não é... justo. Dois contra... uma!
— Ela não consegue disfarçar — disse ele à enfermeira. — Não quer que a
senhora perceba que está louca por mim. O que ela quer mesmo é ir para casa comigo.
— Eu... não! — Tippy esbravejou.
— Quer, sim, e eu vou deixar, no minuto em que o médico lhe der alta. — ele
prometeu.
— Não sou... um objeto!
Ele sacudiu a cabeça.
— Tome um bom banho e faça o que disserem para fazer. Se ficar bem
comportada — ele acrescentou —, eu trago um presente na volta.
Ela quis arregalar os olhos, mas não conseguiu.
— Não quero prêmio de consolação — murmurou ela.
— Rory me disse que você gosta de gatos — disse ele. — Gatos de pelúcia com
carinhas.
— Você não vai encontrar um gato de pelúcia por aqui — Tippy afirmou.
— Será?
Olhou para a enfermeira, que fez sinal com a cabeça, animadamente, e pronunciou
com os lábios "Loja de presentes".
Tippy ainda quis discutir, mas de fato gostava de gatos de pelúcia.
Ele sorriu para ela. Piscou os olhos negros. Ela encontrou o olhar dele e não lhe
ocorreu mais nenhum tipo de protesto. Ele afetara sua respiração tanto quanto as
costelas bastante doloridas.
Ele conhecia a fera. Piscou para ela com ar malicioso e saiu, antes que pudesse
entabular uma resposta.
— Que homem simpático — disse a enfermeira, enquanto ia ao banheiro encher de
água a bacia plástica que trouxera consigo. — Você tem muita sorte!
Tippy não respondeu. Não sabia ao certo se a situação atual era uma questão de
sorte, nem por quanto tempo haveria de durar a atitude conciliatória de Cash. Era capaz
de apostar que desapareceria no momento em que suas feridas se curassem e ela

86
estivesse pronta para trabalhar. Até lá, não seria tanta a dor na consciência. Sabia que
ele se recriminava por não ouvi-la, quando telefonou depois do seqüestro de Rory. Estava
apenas fazendo penitência. Quando ela voltasse ao trabalho, ele a esqueceria, com a
facilidade com que se esquecem as miudezas.

Aquela noite, na hora do jantar, Cash foi falar com um conhecido, na delegacia,
sobre o terceiro seqüestrador, que ainda estava solto. Deixou um lindo gato de pelúcia
com feições extravagantes na mesa-de-cabeceira, para fazer companhia a ela. Enquanto
estava fora, Tippy recebeu uma visita inesperada.
Um homem forte, com aparência de lutador, entrou no quarto. Outro homem, do
mesmo tamanho, parou à porta, cochichou qualquer coisa, saiu e ficou do lado de fora.
O visitante aproximou-se dos pés da cama. Tinha cabelos negros ondulados,
grandes olhos castanhos e um rosto largo de pele morena, da cor de azeitona. Usava um
terno azul-marinho risca-de-giz, que parecia ter custado o mesmo preço do apartamento
de Tippy. A camisa branca era impecável, coroada por uma gravata azul xadrez, que
ressaltava o tom da pele.
Examinou Tippy minuciosamente, com curiosidade, e as fartas sobrancelhas se
franziram em um ar de irritação.
— Quem é o senhor? — indagou ela, sentindo-se perturbada.
— Marcus Carrera — disse ele com voz grave e profunda. Os olhos castanhos se
abriram. — Não me conhece, não é? — acrescentou ele, e um leve sorriso surgiu na boca
grande e bem delineada.
— Na verdade, já ouvi falar do senhor, por um amigo meu, Cullen Cannon —
respondeu ela, e tentou sorrir também.
— Cullen foi um dos sujeitos mais decentes que eu já conheci. — Colocou as
grandes mãos nos bolsos. — Um dos canalhas que fez isto com você trabalha para mim.
Fez por conta própria, é claro, só fiquei sabendo hoje de manhã.
Tippy apertou o botão para levantar a cabeceira da cama.
— Sabe onde ele está? — perguntou ela com ênfase. — Eu queria pegar um taco
de beisebol e ter uma conversinha com ele.
Ele deu uma risada de surpresa.
— Não sei, não — ele replicou. — Mas, se encontrar, juro que mando entregar aqui
amarrado, e ainda forneço o taco.
O sorriso dela se abriu.
— Obrigada.
Os olhos escuros não deixaram passar nem um arranhão ou hematoma, no que
podia ser visto acima do lençol branco e do cobertor bege.
— Os outros dois estão trancados na cadeia — murmurou ele.— Conversei com
um juiz e com o assistente do procurador que está cuidando do caso — ele completou. —
Têm mais chance de virar santos do que de sair sob fiança.
— Obrigada — ela suspirou.
— Detesto ver gente próxima de mim metida nesse tipo de coisa — disse Carrera
com total desagrado. — Mesmo quando eu estava do lado contrário da lei, nunca aprovei
esse tipo de coisa.
— Do lado contrário? — indagou ela.
A porta se abriu e Cash entrou, olhando fixamente para o visitante.
— Olá, Grier — Carrera cumprimentou em tom simpático. — Um sujeito lá na
cadeia jura que você atirou nele.
— Eu? — retrucou Cash com ar inocente. — Eu não atiro nos outros.
Sinceramente.
Carrera deu uma gargalhada e estendeu a mão.

87
— O que você está fazendo aqui? — perguntou Cash, apertando-lhe a mão. — E o
sr. Coisa lá na porta?
— Isso — ele replicou. — Ele trabalhava para a Kip Tennison mas, quando ela se
casou com Cy Harden, não precisou mais dele. Está comigo desde essa época.
— Que figura. Ele ainda cria o lagarto?
Carrera fez uma careta.
— Ainda. Agora está com um metro e meio. Fica guardado no condomínio de praia
de Paradise Island. Quando nós temos qualquer problema com os clientes que saem da
linha, eu o mando para lá com o lagarto. Em geral, é o que basta.
— Não me surpreende. Por que você veio aqui?
Carrera ficou sério.
— Um dos meus rapazes estava nessa história do seqüestro. Eu não sabia —
acrescentou rapidamente, quando os olhos de Cash faiscaram. — Só descobri hoje de
manhã.
— Sabe onde encontro esse sujeito?
— Não sei — Carrera replicou. — Mas fui falar com o assistente do procurador
deste caso e dei a ele tudo que eu tinha sobre o filho-da-mãe.
Cash achou que não tinha entendido.
— Como?
Carrera o encarou.
— Por que ficou chocado? Não sou gângster! Agora tenho cassinos e hotéis. Só
isso!
Cash pigarreou.
— Está certo.
— Só porque eu fiz umas coisas erradas antigamente...— Carrera defendeu-se.
— Uns jogadores de Dakota do Sul foram encontrados em, vamos dizer, condições
lastimáveis num lugarejo de Nova Jersey...
— Se Tate Winthrop falou para você que fui responsável por aquilo — Carrera
interrompeu.
— Na verdade, foi o chefe dele, Pierce Hutton.
— Ele mora em Paris! O que ele sabe? — murmurou o outro.
— Depois foi o homem de Walters que aplicou um golpe na senhora idosa, mãe de
um dos seus rapazes, e que apareceu misteriosamente num barril de petróleo flutuando
no rio Hudson...
— Escute aqui, eu não tenho barril de petróleo — Carrera tornou a interromper —
e, pela última vez, hoje sou um cidadão acima de qualquer suspeita.
— Do seu jeito — disse Cash. — O que você sabe do sujeito que ajudou Stanton a
capturar o irmãozinho de Tippy? — O policial insistiu.
— Não é suficiente para se ter a pista dele — Carrera replicou em tom sombrio. —
Se eu...
— Você é um cidadão acima de qualquer suspeita — Cash lembrou.
— Bem, sou. — Carrera franziu os lábios. — Mas conheço uma porção de gente
que não é e me deve favores.
— Você não imagina o tipo de favores que ele costuma pedir — disse Cash para
Tippy, e piscou o olho.
Ela grudou os olhos no homem mais velho.
— Não é desse tipo que você está pensando — Carrera resmungou. Encolheu os
ombros enormes. — Gosto de tecidos exóticos. Na verdade, gosto mais de tecidos
antigos.
Tippy olhava para ele como se não estivesse ouvindo muito bem.
— Faço acolchoados — disse Carrera em tom agressivo. — Aliás, até ganhei
concursos. Tenho trabalhos meus numa galeria de arte no Village, estão em exposição.

88
— Não está brincando — disse Cash a ela. — A padronagem dele tem fama
internacional — Cash riu, fazendo uma careta. — Não encontraram um corpo dentro, uma
vez?
— Nos meus, não — o homem devolveu imediatamente. — Eu não ia desperdiçar
os meus docinhos com um vagabundo qualquer.
Cash deu uma risada. E Tippy também.
— Já vou — disse Carrera. — Só queria ver o que fizeram com ela. Você vai ficar
boa — ele garantiu a Tippy, passando a mão no próprio rosto, onde duas linhas brancas
denteadas eram visíveis na pele azeitonada. — Essas aqui foram até o osso, por isso
ficaram as cicatrizes. As suas, não.
— Obrigada — disse ela.
Ele encolheu os ombros.
— Vou caçar esse sujeito. E respondendo à sua pergunta de antes, o nome dele é
Barkley. Ted Barkley. É mecânico. Um bom mecânico — ele ressaltou. — Conserta
qualquer coisa, por isso eu o tenho por perto. Tem família no sul do Texas. Se ela for para
sua casa com você, fique de olho aberto.
— Queria saber alguma coisa sobre a família — disse Cash.
— Achei que ia querer mesmo. — Carrera tirou, do bolso interno do paletó, uma
folha de papel dobrada e entregou-a a Cash. — É a mesma informação que entreguei ao
procurador-assistente. O sujeito também é jeitoso quando está armado, então, olhe para
trás. Faz qualquer coisa por dinheiro, e estou falando de qualquer coisa mesmo. Stanton
pode não ter muita coisa, mas esse filho do Montes lava dinheiro pesado e tem gente que
pode lhe emprestar. Não vai querer você de testemunha num tribunal. Se puder mandar
matar, vai mandar.
Tippy prendeu a respiração de maneira audível.
— Vai ter que passar por cima de mim — Cash garantiu a ela. — Pare de se
preocupar.
Carrera passou por ele um olhar de avaliação.
— Se precisar de ajuda, pode me ligar.
— Não tenho nenhum tecido exótico.
Carrera fez uma careta e agarrou o ombro de Cash.
— Tudo bem. Fica me devendo.
— Obrigada — disse Tippy.
Piscou para ela e saiu do quarto.
— Está mesmo regenerado? — perguntou a Cash depois que ele se foi.
— Está, sim. Sei de uma coisa sobre ele que não posso contar, mas garanto que
agora está do lado da lei. — Olhou com tristeza o pobre rosto espancado e cortado. —
Ninguém mais vai machucar você de novo, nunca mais. Eu juro.
Ela tomou aquilo ao pé da letra. Estava atormentado pela culpa e sentia pena dela.
Aquilo não podia durar. Ela sabia, mesmo que ele não o soubesse. Apenas sorriu e não
falou.

Capítulo Dez

O pulmão de Tippy foi cuidadosamente monitorado até os médicos terem certeza


de que estava recuperado. Ela continuou com os antibióticos e evitava olhar-se no

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espelho. Via-se como um monstro dos filmes de quinta categoria, brincava com isso e se
dava por feliz por não precisar aparecer em público por enquanto.
Preocupava-se com o terceiro seqüestrador que ainda estava nas ruas e com o
perigo de haver um matador a mando de Stanton ou de seu primo.
— Você acha que o sr. Carrera tem razão? — perguntou a Cash, uma noite, no
hospital. — Sobre esse primo do Stanton mandar me matar?
Cash foi reticente. Assim fora nos dois últimos dias, desde a visita de Carrera.
— Tudo é possível — disse ele. — Mas você vai ficar bem em Jacobsville.
— Ouvi falar que os pistoleiros atacam em qualquer lugar.
Cash ergueu as sobrancelhas.
— Jacobsville mal tem dois mil habitantes. O vice-presidente esteve lá no ano
passado. Ficou poucos dias, foi visitar os irmãos Hart. Eles são primos. O serviço secreto
foi junto e tentou passar despercebido.
Ela ouvia com curiosidade. Ele deu um riso fraco.
— São grandes sujeitos. Conheci vários, e se preocupam mesmo com o trabalho
deles. Mas acharam que o jeito de se enquadrar era parecer com os caubóis. — Balançou
a cabeça. — Ali estavam aqueles sujeitos, com chapéus de vaqueiro comprados em lojas
de departamentos, usando calças jeans tinindo de novas, botas limpinhas e camisas
sertanejas impecáveis. Um dos caubóis de Hart foi falar com um deles e perguntou se
gostaria de ir ao rancho para ajudar com o gado de corte. O federal falou que não sabia
mexer com faca de açougueiro.
Até mesmo Tippy entendeu que a frase se referia a reses específicas de um
rebanho, e não a cortá-las, no sentido literal. Riu debilmente.
— Eles então voltaram a usar terno e continuaram o serviço. — Balançou a
cabeça. — A questão é que você não pode entrar numa cidade pequena, onde as
pessoas foram criadas juntas durante gerações, sem ser identificado como um forasteiro.
Numa cidade com meio milhão de habitantes, talvez possa. Mas, numa cidade do
tamanho de Jacobsville, vai ser notado.
— Isso me tranqüiliza um pouco mais — ela concordou.
— Não vou deixar que você se machuque outra vez — ele lembrou, com firmeza.
— Isto é uma promessa, e não dou minha palavra em falso.
Ela se moveu e estremeceu. As costelas ainda doíam, mas pelo menos a dor de
cabeça passara.
— Você tem televisão? — perguntou ela.
— Tenho. Televisão, rádio, aparelho de CD, duas estantes com romances de
mistério e de detetive, além de uma prateleira de história antiga e até livros de ficção
científica. Se nada disso servir — ele completou com uma careta —, tenho uns vídeos
ótimos. Toda a série Jornada nas estrelas, toda a Guerra nas estrelas, a maior parte da
trilogia O senhor dos anéis e os filmes de Harry Potter.
— São os preferidos de Rory.
— De que você gosta?
Parou para pensar.
— Sherlock Holmes, os filmes antigos de Bette Davis, qualquer coisa com John
Wayne e aqueles filmes de mistério e de ficção científica que você tem.
— Eu também gosto de Bette Davis — ele confessou.
Chegou mais perto da cama e examinou o rosto dela com olho clínico.
— Os cortes estão com aspecto melhor. Os hematomas, não — ele acrescentou
com um suspiro. — Ficaram roxos e amarelos. Parece que você se meteu numa briga
pesada.
— Devia ver como são por dentro esses hematomas — murmurou ela em tom
zombeteiro. — Nunca apanhei desse jeito, nem no meu tempo na rua, quando tinha 12
anos.

90
Ficou sério.
— Foi espancada?
Evitou o olhar dele.
— Duas vezes, escapei por pouco, antes de Cullen me levar com ele — disse ela.
— E isso é tudo que eu vou contar — Tippy encerrou com agressividade.
Ele afundou as mãos nos bolsos, sempre com o rosto fechado.
— Você ainda não acredita em mim, não é?
— Acredito que você é humano — replicou ela. — A maioria das pessoas é
solidária com alguém que está doente. Isso não se mantém depois que a pessoa fica
curada.
Não tinha noção de que ela era tão cínica. Ele era também, mas não pensava
muito nisso. Refletia sobre o aviso de Carrera e alguns receios acerca da sua capacidade
para proteger Tippy. Não tinha condição de ficar em casa o tempo todo, e sempre havia a
possibilidade de um pistoleiro se esgueirar durante a noite sem ser visto pelas pessoas.
Sabia o quanto isto era possível, por experiência própria, de seu angustiante passado.
— Você parece aflito — Tippy notou com delicadeza.
Ele piscou os olhos e fechou o rosto.
— Você é a paciente aqui, não eu.
Ela sacudiu a cabeça e observou-o.
— Você também não divide as coisas, não é? Seu passado é um livro fechado.
Vive com seus fantasmas, sozinho, no escuro.
Os olhos dele brilharam.
— Não acredito que alguém chegue tão perto a ponto de dividir comigo. Você
inclusive — ele fustigou sem querer.
— Eu, principalmente — ela concordou. — Vejo muita coisa, não é? Na verdade,
foi isso que o assustou, na noite antes de você deixar Nova York.
Virou-se de costas para ela e olhou pela janela. Chovia outra vez, o tempo
característico de Nova York em abril. Não gostava que Tippy lesse seus pensamentos.
Era inquietante, pois demonstrava a intimidade que já se estabelecia entre eles.
— Está bem, vou parar de visitar seu cérebro quando você não estiver vendo —
murmurou ela em tom seco.
— Tenho minha privacidade — disse ele sem olhar para ela.
— Sei disso desde a primeira vez que vi você. Mas não acontece com todo mundo.
Eu me lembro do dia em que você estava conversando com Christabel no sítio — ao
evocar tais memórias, seu tom de voz mudou. — Você falava de um jeito tão meigo...
quase como se falasse com uma criança pequena. Você a convidou para ir à cidade
comer um hambúrguer. Você a deixou dirigir seu carro e ligar a sirene, foi o que me
contou.
Ele se virou, espantado com o fato de ela se lembrar daquilo.
Evitou o olhar dele, inquiridor. Sua atitude com Christabel a magoara. Nunca
entendeu por que, até recentemente. Ficou com ciúmes. Era uma bobagem, porque
aquele homem não gostava das pessoas. Estava sempre afastado, solitário. Mantinha
todos a distância. Mas sempre mimava Christabel. Não era preciso ler a mente para saber
que teria sacrificado qualquer coisa por ela, até a própria vida.
— Ela aturou muita coisa de mim — Tippy falou em voz alta, sem perceber. — Fui
injusta com ela. Nunca senti tanto isso como na ocasião em que levou o tiro. Disse a ela
coisas que magoam sobre Judd e, se ela morresse, eu me lembraria disso para sempre.
Ele voltou para perto da cama, franzindo a testa.
— Eu não sabia disso.
Brincava com o lençol que cobria o estampado floral de sua camisola de algodão.
— O assistente de direção de Joel era autoritário e me lembrava Sam Stanton. Eu
tinha medo dele. Judd era meu protetor, meu anjo da guarda. Tinha medo de que ele se

91
envolvesse seriamente com Christabel e eu não tivesse alguém para cuidar de mim.—
Tippy ergueu para ele um olhar pesaroso. — Eu era assim. A não ser com você. — Os
olhos estavam fascinados. — Não acreditei quando você segurou a mão dele e fez com
que ele parasse de me atormentar.
— Não gosto de covardia — disse Cash com simplicidade.
— Sim, mas eu era a inimiga — ela lembrou.
— Só até Christabel levar o tiro — disse ele. — Você sabia exatamente como lidar
com um ferimento a bala. Não percebi naquele momento. — Ele apertou os olhos. —
Como aprendeu?
Ela deu um sorriso pálido.
— A vida inteira vendo seriados de médicos na televisão. — Ela bocejou. — Estou
tão cansada. Acho que vou dormir um pouco.
Observou os cílios extremamente longos se fecharem e manteve os olhos fixos
nela, com o coração no olhar. Era a pessoa mais surpreendente que já conhecera. Teria
tempo de reparar seus erros quando voltassem a Jacobsville, e isso era bom.
Já havia ligado para o escritório, para pôr Judd a par do estado de Tippy e dar uma
idéia de quando ia voltar. Não demoraria, pensou, da maneira como Tippy se recuperava.
Não demoraria mesmo.

E não demorou. Em três dias, ela deixou o hospital e Cash foi fazer suas malas.
Reparou que ele não se sentia à vontade em sua cama, a mesma em que
passaram uma longa noite de prazer. Ela não tocou no assunto, ele também não.
Quando as malas ficaram prontas, ele esvaziou a geladeira e levou as coisas para
Don, o amigo de Rory, e a família dele, no final do corredor. Fechou então todos os
registros, desligou a luz, e encontrou tempo para falar com o proprietário, para garantir
que Tippy mantivesse o apartamento até a volta.
Tippy entendeu que Cash não a estava levando para a casa dele para o resto da
vida. Da mesma forma, ficou magoada ao vê-lo tão preocupado em se certificar de que o
aluguel do apartamento fosse pago na sua ausência.
Ele vivia um dia depois do outro, sem pensar no futuro. Resolvia cada detalhe,
como fazia toda vez que se mudava, com precisão, habilidade e economia de
movimentos. Tippy observava-o disfarçadamente, traçava com o olhar as poderosas
linhas de seu corpo e o belo rosto, ao abrir as gavetas e dobrar as roupas.
— Você faz mala muito bem — ela notou.
Olhou-a de relance e fez uma careta.
— Vivi a maior parte da minha vida de mala na mão, primeiro na escola militar,
depois na carreira militar. Sou eficiente.
— Eu reparei — Tippy olhou em torno com um suspiro. — Vou sentir falta de ter
meu próprio espaço — ela confessou. — Este é o primeiro apartamento só meu. Antes
disso, morava com Cullen na cobertura, e depois, dividi um com outra modelo. Mas este é
só meu.
Ele sorriu.
— Vai gostar da minha casa. Dizem que é encantada.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— É mesmo?
— A casa tem história. Dizem que um homem a construiu para sua mulher, que
tinha ascendência escocesa e irlandesa. A família dela era da ilha de Skye. — Dobrou
mais uma blusa e colocou-a na mala. — A lenda do lugar diz que nunca se deve provocar
a raiva da senhora, porque podem acontecer coisas ruins. Ela não era má pessoa, só
tinha o dom de, sem querer, jogar "mau-olhado". Dizem também que tinha o "terceiro
olho".

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— Como eu — murmurou ela. — Mas não jogo mau-olhado nas pessoas. Tenho
certeza, porque se eu pudesse, Sam estaria debaixo da terra, não em cima de mim.
Ele balançou a cabeça.
— Você não conseguiria viver com uma morte na consciência.
Fez-se um silêncio eloqüente atrás dele. Virou-se com curiosidade, mas ela estava
atarefada tirando livros da estante, sequer olhando para o lado dele.
O coração dela disparou. Ainda bem que ele não podia ver. Havia outras coisas no
seu passado que preferia que ele não soubesse. Pelo menos, por enquanto.
— São sobre o quê? — indagou ele ao ver dois livros nas mãos dela.
— Um é Plínio, o Velho — ela replicou e riu. — Escrevia sobre a natureza, você
sabe. Achei esse livro fascinante. Morreu na erupção do Vesúvio em 79 D.C., tentando
resgatar pessoas num barco. O segundo livro é do sobrinho dele, Plínio, o Moço, que
escreveu a única descrição que foi conservada da erupção do vulcão em si. A leitura é
fascinante.
— Não li os Plínios.
— Posso lhe emprestar, enquanto estiver internada — disse ela com ar de
superioridade. — Sinto-me na obrigação de levar um pouco de cultura aos ignorantes,
durante minha convalescença. — Colocou o antebraço na testa, em um gesto teatral. —
Noblesse obligé.
Ele deu uma gargalhada.
Espiou-o por baixo dos longos cílios. O som a fascinava. Tinha a impressão de que
era algo que ele fazia com pouca freqüência. Estava alegre no Natal, com Rory e Tippy,
mas, mesmo então, havia nele um distanciamento palpável. Porém, neste momento,
estava feliz.
Tomou consciência de ser examinado atentamente e virou-se para ela com
expressão de curiosidade.
Ela sorriu.
— Gosto de ouvir você dar risada — disse ela apenas. Como a observação o fez
cair em si, voltou ao que estava fazendo.
Disse para si mesma que já era um começo. Agora, o que tinha a fazer era
convencê-lo de que para sorrir utilizam-se menos músculos do que para ficar sério, e que
a risada traz benefícios psicológicos. Isto poderia mudar a vida dele.

Levou-a para Jacobsville com escala em Houston. A viagem de avião foi


desconfortável, apesar de ele ter comprado passagens de primeira classe, contra a
vontade dela. Não queria as pessoas olhando para ela. Havia pouca gente nos assentos
da frente, e os comissários eram discretos.
Tippy ainda sentia os efeitos retardados da concussão — confusão e dor de
cabeça — e o peito um pouco congestionado, por causa das costelas quebradas. Ele
ficou preocupado com o vôo, mas, depois de examiná-la, o médico disse a Cash que seria
preferível a submetê-la a passar horas dentro de um carro, com paradas freqüentes.
Judd Dunn foi buscá-los no aeroporto de Jacobsville. Ao ver Tippy, deu um sorriso
forçado, mas depois sorriu genuinamente.
— Eu sei, você acha que está feia, mas vai voltar a ser a pessoa de antes, num
instante — Judd garantiu com expressividade nos olhos escuros.
Estava sem a farda, e Cash reparou nisso.
— Estou de folga — ele lembrou. — Deixei o tenente Palmer na chefia.
— Palmer, e não Barrett? — Cash prosseguiu, já que os dois eram experientes e
chefes competentes.
— Também é folga de Barrett — retrucou Judd e tossiu de leve. — Ele tinha algo
para fazer.

93
Cash parou estupefato ao lado do grande utilitário de Judd, com as malas de Tippy
penduradas nas mãos.
— Não — disse ele imediatamente. — Não, você não ia fazer uma coisa dessas.
Não ia mandar Barrett trocar o papel de parede da minha casa...
Judd fez um ar profundamente ofendido.
— Sou agente de polícia. Na verdade, sou assistente do chefe de polícia — ele
acrescentou com antipatia e uma careta para Tippy. — Nunca faria uma coisa ilegal.
— Se eu encontrar um pedaço de papel higiênico na grama que acabei de
plantar... — Cash começou.
— Sabia que ele é muito desconfiado? — perguntou Judd a Tippy, ao ajudá-la a
subir no veículo alto e acomodá-la gentilmente no banco.
— Se você responder a isso, vou fazer fígado com cebolas para o jantar — disse
Cash prontamente, enquanto arrumava a bagagem no porta-malas, depois sentou-se no
banco de trás.
Tippy olhou para ele com expressão de dor, jogando a cabeça para trás quando o
movimento forçou as costelas.
— Detesto fígado com cebolas!
— Eu sei — Cash sorriu para ela.
Judd balançou a cabeça ao ligar o grande veículo preto e sair do estacionamento
do aeroporto.
Entraram no caminho pavimentado da casa de Cash. Era uma casa simples, em
lambris de madeira, pintada de branco com venezianas pretas, uma ampla varanda com
uma cadeira de balanço. Havia roseiras ao redor e canteiros que começavam a dar
brotos.
Cash ajudou Tippy a sair do utilitário, enquanto Judd levava as malas para a
varanda.
— Não ponha o pé nos meus canteiros — Cash avisou. Judd parou a bota grande
no ar e olhou para ele.
— Que canteiro?
— O que você já ia pisando em cima! — Cash resmungou. — Plantei zínias
naquele ali, um arranjo de centáureas azuis, bocas-de-leão, cravos e margaridas no outro.
— Gosta de jardinagem? — perguntou Tippy com delicadeza.
Viu os olhos verdes muito abertos e sentiu o mundo girar. Que olhos lindos. Mesmo
no rosto cortado e marcado, eram exóticos e fascinantes.
— Gosto da sujeira nas mãos.
Tippy também estava perdida nos olhos dele; todo o corpo formigava sob a
intensidade daquele olhar. Quis avançar, dar um passo à frente e envolvê-lo em seus
braços. Não faria bem às costelas, mas era uma tentação a que ela não tinha a menor
vontade de resistir.
— Foi exatamente o que aquele traficante falou quando foi preso, no ano passado
— disse Judd sem olhar para os dois perto dali. Contornou os canteiros de flores e
colocou as malas fora da varanda. — "Plantou" dois quilos de cocaína no canteiro dele. —
O policial sorriu, fazendo uma careta. — Aposto que ele achava que ia crescer.
Cash desviou lentamente os olhos de Tippy.
— Enganou-se. Pegou dez anos.
— Que pena, vão arranjar outro. Aliás, já arranjaram. O que agora vende crack tem
parentes poderosos na cidade. Você não sabe disso, é claro — Judd advertiu Tippy.
— Ah, eu não sei de coisa alguma — ela concordou na mesma hora. — Pergunte a
outra pessoa.
— Pare com isso — Cash repreendeu-a, tocando-a na ponta do nariz. — Você já é
muito sabida.
Tippy sorriu e ficou corada. Tinha os olhos grudados em Cash como a hera no

94
muro.
Judd sabia que Tippy não era tola, mas sentiu que estava invadindo um terreno
que não lhe dizia respeito. Pelo menos, Tippy e Cash pareciam estar se dando muito
bem. Era um bom começo.
— Christabel falou que vocês dois podem aparecer para jantar quando quiserem —
Judd convidou. — Hoje à noite, pode ser.
Tippy hesitou e olhou para Cash.
— Ela teve uns dias difíceis e a viagem de avião não foi muito divertida, apesar de
o vôo ter sido tranqüilo — disse Cash a Judd. — Mas vamos aceitar na semana que vem.
— Agradeça a Christabel por mim — Tippy completou. — Sei que, para ela, seria
confuso receber convidados, com dois bebês.
— Não são mais bebês — Judd balançou a cabeça. — Estão engatinhando.
— Já? — exclamou Cash. — Jessamina também?
Judd lançou-lhe um olhar ameaçador.
— Ela tem irmão. O nome é Jared.
— Eu sei — Cash replicou. — Mas ele é seu — disse ele com ar vaidoso. —
Jessamina é minha. Espere para ver.
Judd mordeu a língua para não sugerir a ele que pedisse a Tippy uma filha dele
mesmo. A perda do bebê deixara Cash arrasado. Ao que tudo indica, também magoara
Tippy, a julgar por seu olhar diante da conversa sobre os filhos de Judd.
Mas logo se recuperou, ao se lembrar do bichinho de estimação de Cash.
— A cobra! — exclamou ela. — Está...aí? — ela acrescentou com preocupação.
— Não se preocupe — disse ele pacientemente. — Eu imaginei que você ia ficar
louca com uma cobra dentro de casa, então eu devolvi Mikey para Bill Harris.
— Obrigada — ela agradeceu com toda a sinceridade.
— Tenho de ir para casa. Mas antes era melhor entrarmos — disse Judd
rapidamente.
— Nós três? — indagou Cash com relutância.
— Com certeza, nós três.
Judd passou pela varanda e abriu a porta.
— Vai entrando assim, Dunn? — Cash advertiu.
— Só com licença do dono.
— Eu é que sou o dono, não você — respondeu Cash.
Judd apenas sacudiu a cabeça.
Entraram e se viram diante de uma mesa de jantar repleta de comida. Havia
travessas cobertas, tábuas de frios e queijos, uma enorme salada, biscoitos feitos em
casa e pelo menos cinco sobremesas.
O tenente Barrett, magro e de cabelos escuros, segurava uma sacola e sorria sem
jeito.
— Tudo pronto na hora, chefe — disse ele. — Todas as nossas mulheres hoje
foram para a cozinha, para você não ter de se preocupar com a comida quando chegasse
em casa. Nós sabemos como você gosta dos biscoitos e das compotas de Julia Garcia,
então ela fez um pote de geléia de amora e outro de uva e um tabuleiro de biscoitos. —
Ele não é como os irmãos Hart — voltou-se para Tippy —, mas esse homem sabe
apreciar um biscoito que derrete na boca.
— A esposa do tenente Garcia faz o melhor biscoito da região — Judd completou.
— Muito obrigado — disse Cash, imobilizado pelo espanto. — Eu não esperava por
isso.
— Teve uma semana comprida — disse Judd com simplicidade. — Achamos que
ia chegar cansado para cozinhar.
— Cheguei mesmo. E a srta. Jewell? — ele acrescentou.
— Vem assim que apanhar as coisas dela — disse Judd. — Falou que seria daqui

95
a uma hora, mais ou menos. Ela é um tipo de enfermeira amadora, acompanhante de
pessoas doentes — disse ele para Tippy. — Sandie Jewell tem uns 50 anos e adora
cozinhar. Você vai gostar dela. Ela viu seu filme e achou demais. Mas vai querer
informações sobre o ator que aparece com você. É fã do Rance Wayne.
Tippy sorriu.
— Está bem — disse ela. — Vou ver se consigo não contar muita coisa, que é para
ela manter a ilusão. — Tocou o rosto ferido sem perceber. — Ninguém vai acreditar que já
fiz um filme, se me virem desse jeito.
— Cortes e equimoses desaparecem, srta. Tippy — o tenente Barrett afirmou com
delicadeza. — Vai ficar boa.
— Obrigada — respondeu ela timidamente.
— Bem, vamos embora — disse Judd a Barrett.
— Não vi seu carro — Cash comentou com Barrett.
— Foi porque o deixei aqui com a comida antes de ir buscar vocês — Judd revelou
com um sorriso sem graça. — Não queríamos que o carro denunciasse que ele já estava
aqui.
— Foi mesmo uma surpresa — Cash admitiu e sorriu. — Muito obrigado. Digam à
sra. Garcia que valeu o trabalho de fazer as geléias e os biscoitos. Vou aproveitar
bastante.
— Se andar rápido, até vai — disse Tippy, com ar travesso. — Adoro biscoitos com
geléia de amora. Minha avó fazia para mim, quando eu era pequena.
— Vamos, antes que comecem a brigar — disse Judd. Piscou para eles. — Não
vamos ficar atendendo ligação dos vizinhos por causa de discussões aos berros, está
bem?
— Eu nunca berro — disse Cash, com a cara mais limpa. — Ouvi falar que a
pessoa fica cega.
Tippy teve de segurar as costelas para não morrer de dor, de tanto rir.
Cash fez uma careta e saiu Para levar Judd e Barrett até o utilitário.

Voltou menos de cinco minutos depois. Não disse a ela que comentara com eles a
ameaça do ex-empregado de Carrera e o risco de um pistoleiro de aluguel vir atrás dela.
Mas eles saberiam manter a casa sob vigilância quando ele não estivesse. Pretendia
deixar armas carregadas escondidas pela casa. Tampouco deixaria Tippy saber que,
além de acompanhante, a sra. Jewell era uma ex-adjunta do xerife local. Seu filho era
policial e trabalhara com Cash. A mulher sabia manejar uma pistola com a mesma
eficiência que o próprio Cash, e não tinha medo de coisa alguma no mundo. Se houvesse
problemas na ausência dele, Tippy estaria segura até a ajuda chegar.
— Foi tão carinhoso da parte deles — murmurou Tippy, apreciando a mesa lotada.
— Não estou acostumada com tanta comida ao mesmo tempo.
— Precisa de proteínas para ajudar na recuperação — ele assinalou. — Não se
preocupe com os quilinhos extras. Perdeu muito peso ultimamente e pode engordar um
pouco.
Virou-se para ele e ergueu os olhos, como um passarinho.
— Acha que estou magra demais? Sinceramente?
Ele respirou profundamente.
— Seu corpo não é problema meu — disse ele, da maneira mais delicada que
pôde. — Trouxe você aqui para protegê-la...
Ela se arrependeu mentalmente, antes mesmo de ele terminar a frase. Sorriu. Um
sorriso formal.
— Sei disso — disse ela. — Era só para conversar. Mas onde está a geléia?
Cash observou-a tirar os pratos e utensílios descartáveis da sacola que viera junto

96
com a comida e remover as tampas das travessas plásticas.
— Isso está uma maravilha — murmurou ela.
Por dentro, tinha o coração partido. Teve esperanças, sonhos que não conseguia
acalmar, sempre com Cash. Mas ele não a queria para sempre, e precisava encarar este
fato. Podia achá-la atraente, desejável, mas era coisa superficial. Não queria
compromisso. E ela queria.
— Isto parece abóbora — murmurou ela. Cash fez uma careta horrível.
— Onde está minha arma?
Ela lhe dirigiu um olhar superior.
— Abóbora é um legume muito importante. Os índios davam de presente ao
homem branco. Você tem ascendência de nativos americanos. Portanto, devia gostar de
abóbora.
— Os índios davam de presente ao homem branco para se livrarem delas — ele
devolveu.
Ela deu uma risada e colocou para si uma colherada de um prato de forno com
delicioso aroma. Levou ao nariz e inspirou.
— Humm — murmurou ela.
— Eca — ele replicou, afastando-se da coisa nojenta. Serviram-se rápida e
silenciosamente. Não houve serviço de bordo em qualquer dos dois vôos, a não ser que
assim se considere um pacote de amendoins. Cash encheu com o chá os copos com gelo
que encontrou na geladeira. Recolocou a jarra no mesmo lugar.
— Que bom que eles fizeram chá para nós. Eu adoro — ele comentou, quando se
sentaram lado a lado para comer.
— Eu não posso tomar chá adoçado quando estou trabalhando — disse ela. — As
calorias.
— Toda comida tem calorias — retrucou ele.
— Sim, mas o teor nutritivo do açúcar é o mesmo do papelão.
— Não admira ser tão elegante.
— Não é a falta de comida que faz isso, é o ritmo. — Mudou de posição. O
movimento ainda lhe causava desconforto. — Filmar é muito cansativo. Um filme de ação
como esse tem todo tipo de esforço físico, das artes marciais até as acrobacias...
Lembrou-se da queda, do bebê e a explicação se esvaiu.
Cash olhou de relance para sua expressão perdida.
— Não fique assim — disse ele com meiguice. — Olhar para trás não resolve os
problemas, só provoca outros. Nada do que fizer pode mudar o que já aconteceu.
Baixou o garfo, apanhou um pouco de salada de batatas e levou-o à boca.
— Eu nunca fiquei grávida antes.
— Teria acabado com sua carreira — disse ele com poucas palavras.
— Poderiam filmar em volta de mim — falou. — Não seria tão difícil. Na verdade,
Joel até previu uma gravidez no roteiro, quando a artista principal anunciou as boas-
novas, no meio da filmagem.
Olhou para ela com curiosidade. Não falava como uma mulher que não pudesse
acumular o trabalho e a maternidade. Na verdade, fazia parecer fácil.
Ela reparou na atenção dele e deu uma risada.
— Não se preocupe, você está seguro. Nem me lembro quando foi a última vez
que tentei engravidar um homem.
Esperou até ele tomar um gole do chá para dizer isto. Como esperava, o chá
derramou imediatamente.
Ela riu, ele xingou. Entregou-lhe dois guardanapos e ficou vendo-o enxugar a
camisa branca.
— Desculpe — disse ela. — Não resisti. Você estava tão sério.
Olhou-a demoradamente.

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— Não perco o controle. Vou me vingar.
Ela balançou a cabeça.
— Eu tinha de escolher. Valeu a pena.
Levou o chá aos lábios outra vez com um sorriso misterioso. Fosse como fosse, a
convalescença seria divertida.

Capítulo Onze

Sandie Jewell era cinqüentona, alta, esguia, tinha olhos escuros e cabelos
castanho-claros, ondulados e curtos, e um sorriso encantador. Tippy gostou dela desde o
primeiro momento. Era o oposto da idéia que se faz de uma matrona.
Verificou os remédios de Tippy, para acertar os horários, embora fossem apenas
um antibiótico e um comprimido para descongestionar os pulmões. Levou Tippy para o
quarto logo depois do jantar, porque precisava descansar depois da longa viagem.
Quando Tippy estava confortavelmente instalada, Sandie fechou a porta e foi
conversar com Cash.
— Está descansando? — indagou ele, oferecendo-lhe um café, que ela aceitou.
— Está cansada — respondeu Sandie —, e aquele pulmão está um pouco mais
congestionado. Vou tirá-la cedo da cama amanhã cedo, para caminhar, e dar muito
líquido, para dissolver as secreções. Meu Deus, ela parece vítima de atropelamento! —
ela acrescentou, sacudindo a cabeça. — Nunca entendi o que leva um homem a fazer
isso com uma mulher.
— Nós dois já vimos muitos casos de agressão doméstica — Cash concordou. —
Ela tem de ser vigiada o tempo todo. Se Stanton mandar mesmo um pistoleiro para cá,
atrás dela, não podemos correr o risco de ser surpreendidos. Deixei sua .45 na caixa, no
armário do banheiro, bem alto, no meio das toalhas. Está carregada.
— Obrigada. Se eu precisar — disse ela —, não vou me esquecer.
Ele sorriu.
— Sei disso. Agradeço por ficar com ela, Sandie. É a pessoa em quem eu mais
confio.
— Vai ficar em casa hoje à noite?
— Acho melhor...
Ao dizer isso, o telefone tocou. Ele atendeu imediatamente, para não incomodar
Tippy.
— Grier — disse ele prontamente.
— Chefe, é melhor vir para cá — pediu um de seus funcionários com voz hesitante.
— Temos um problema.
— De que tipo? — perguntou ele.
— Dois agentes da patrulha acabam de prender um homem por dirigir alcoolizado.
Trouxeram para cá o que praticou o delito, algemado, e fizeram o teste do bafômetro. Não
passou. Estão fazendo uma intimação. Ele ficou louco e ameaçou demitir todo mundo.

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— Quem é?
Fez-se um silêncio.
— Senador Merrill.
Cash respirou fundo. Este era o pior pesadelo para qualquer policial de plantão. A
maioria dos políticos mandaria demitir qualquer agente que tivesse a audácia de os
prender. Com certeza, faria todo o possível para afastar o policial. Cash viu isto ocorrer
em dezenas de cidades, durante vários anos.
— O prefeito em exercício me ligou e disse para pôr na rua agora mesmo os
agentes que o prenderam — completou o oficial de dia.
— Ninguém sob minhas ordens vai ser afastado — disse Cash imediatamente. —
Chego aí em dez minutos. Diga a Brady que vocês têm de falar comigo antes de demitir
alguém e que isso vale também para o senador Merrill.
— A filha do senador está vindo para cá. Ela é assim com Jordan Powell.
Powell era um rico fazendeiro. Muito rico e temperamental. Cash imaginou se não
seria mais fácil encarar um matador do que meter o pé nesse vulcão em ebulição.
— Já vou. Fique frio — disse Cash ao homem.
Sandie balançou a cabeça quando ele desligou o telefone.
— Nem precisa me dizer o que aconteceu. Uma vez, um dos nossos delegados foi
exonerado por prender um deputado estadual. Não teve a menor chance.
— Esses agentes não estão desamparados — disse ele resumidamente.
Cash vestiu a farda, pegou o revólver de serviço e o coldre na gaveta da
escrivaninha.
O movimento deixou Tippy curiosa. Levantou-se da cama e foi para a sala,
parando ao ver Cash fardado. Levou um susto, apesar de já o ter visto desse jeito,
quando filmou em Jacobsville. Há muito tempo.
— Você está bonito. Vai trabalhar a essa hora? — perguntou ela.
Olhou-a de relance.
— Volte para a cama. Precisa descansar. Surgiu um probleminha no centro da
cidade. Volto assim que puder.
Tippy controlou-se para não dizer "Tome cuidado". Teve uma visão súbita,
chocante, de como seria se fossem casados e tivesse que vê-lo sair para o trabalho,
todos os dias, sabendo que podia não voltar para casa.
Essa consciência dominou sua expressão. Cash percebeu e ficou perturbado.
Verificou sua arma e colocou-a no coldre antes de ir até Tippy e segurá-la, delicadamente,
pelos ombros.
— É isso que eu faço — disse ele com suavidade. — Não conheço outro meio de
vida, um que não seja arriscado. Na verdade, não sei se eu conseguiria viver sem isso.
Foi inevitável — ela tomou aquilo como se fosse uma declaração sobre o futuro de
ambos. Tentou sorrir.
— Sei que você está bem no que faz. Judd me contou. As grandes mãos se
ergueram para emoldurar o rosto dela.
— Sempre tomo cuidado. Os únicos riscos concretos que eu corro são calculados.
Não sou suicida, nem de longe. Neste trabalho só se morre por descuido.
Ela respirou e levou as mãos à gravata dele, para ajeitá-la. Sorriu diante daquela
cena tão íntima, doméstica.
— Não deixe que o matem — disse ela simplesmente.
O coração dele disparou. Inclinou-se e tocou de leve com a boca os lábios cheios
dela. Não usava maquiagem para camuflar os machucados, e ainda assim era linda.
Tinha um leve perfume de rosas.
Levantou o rosto para chegar mais perto dele, fechou os olhos e sorriu. Apoiou as
mãos no peito, pois doía erguê-las até a altura da gravata. Gostava de ser beijada por ele.
Era um beijo terno, lento, com um sabor diferente dos anteriores. Este não tinha urgência,

99
paixão, não era ardente. Era suave. Continha promessas.
— Volte para a cama — disse ele, ao levantar a cabeça. Os olhos escuros estavam
agitados. — Isso pode demorar.
— Está bem.
Ele mexeu com as sobrancelhas.
— Que obediente — ele brincou, reparando em seu sorriso ingênuo. — No minuto
em que eu passar por aquela porta, vai fazer uma faxina na cozinha ou arrumação nos
armários.
— Ainda não. Dói tudo. — Ela sorriu timidamente. — Vou esperar até a semana
que vem, pelo menos.
Ele balançou a cabeça com delicadeza.
— Não fique muito à vontade — murmurou ele. — Sou um solteirão convicto.
— Isso não existe — ela replicou, com ar presunçoso.
Lançou-lhe um olhar de meter medo, mas ela continuou sorrindo.
— Assaltaram algum banco? — ela sondou.
— Querem demitir dois agentes meus, por prenderem um político que estava
dirigindo bêbado — respondeu Cash.
Ela arregalou os olhos.
— Por quê?
— Porque é político e rico.
— Grande coisa — disse ela com determinação. — A lei é para todos.
— Querida! — exclamou Cash e beijou-a com firmeza. Em seguida, deu um passo
atrás e debochou da reação dela. — Não estou lhe dando corda. Foi por acidente.
Ela balançou a cabeça, com curiosidade.
Ele encolheu os ombros.
— Gosto quando você fica do meu lado.
Ela fez uma careta.
— Sei onde se compram alianças — disse para irritá-lo.
Ela fez um bico.
— Também sei, só que não vamos comprá-las.
Tippy viu a sra. Jewell parada à porta.
— Sra. Jewell, ele está brincando com os meus sentimentos, e não vai se casar
comigo.
A sra. Jewell estava embasbacada.
— Não vai mesmo — Cash concordou com satisfação. — E não estou brincando
com seus sentimentos. Só a beijei porque me deu razão.
— Não foi por isso, não. Você me beijou porque não conseguiu se controlar. — Fez
uma pose, apesar da pontada de dor na região torácica. — Eu sou irresistível.
— Vou lhe dar uma guitarra e uma banda, e pode sair cantando isso — ele sugeriu.
Ela se lembrava da canção a que ele se referia, de um compositor maravilhoso que
já morrera.
— Essa canção era linda.
— Também achava — disse ele. Lançou-lhe um olhar malvado. — Já para a cama.
Mexeu as sobrancelhas para ele.
— E pare com isso — ele acrescentou com firmeza. — A sra. Jewell vai me
proteger de você, então, muito cuidado.
— Vai mesmo? — perguntou Tippy à mulher mais velha. — Não gosta de mim?
A sra. Jewell deu uma gargalhada. Cash aproveitou a oportunidade para sair pela
porta que estava do seu lado.
— Eu o conheço há quase um ano — disse a Tippy, quando ouviram o carro dele
se afastar. — Nunca o vi rir tanto como nesses minutos aqui. Acho que ele está caído por
você.

100
— Estou doente, e ele tem pena de mim — Tippy replicou, sem prestar atenção. —
Mas não reclama quando fico implicando com ele.
Os olhos escuros da sra. Jewell tudo viam.
— Você o ama de verdade, não é? — ela sondou.
Tippy hesitou, depois sorriu e suspirou.
— Por todo o bem que isso faz a nós dois. Mas ele não é homem de se casar e me
vê como se eu fosse uma ameaça.
— Você no cinema é muito diferente aqui, dentro de casa — a outra mulher notou.
— Você é boa observadora — disse Tippy, com surpresa. — A maioria das
pessoas não vê isso.
— Tenho muita prática em avaliar as pessoas — declarou a sra. Jewell. — Agora
vamos voltar para a cama, srta. Tippy. Precisa descansar, para ficar boa.
Tippy passou a mão no rosto. Os cortes ainda estavam sensíveis e vermelhos.
— Devo estar com uma cara horrível — ela se queixou.
— Cara de quem se machucou, meu bem — foi a delicada resposta. — Esses
cortes e os hematomas passam. As costelas também. Mas precisa descansar e beber
muito líquido, para os pulmões não ficarem ainda mais congestionados. Viajar numa
cabine pressurizada em nada ajudou.
— Não mesmo — Tippy concordou. — Mas percorrer toda essa distância de carro
teria sido muito pior. Comprei os remédios e prometi que vou tomá-los. Quero muito
terminar este filme, para poder receber.
Reparou como a outra mulher a olhava e ficou com raiva da maneira como os
jornais sensacionalistas relataram seu acidente.
— Um assistente de direção jurou que aquele salto não tinha qualquer perigo e se
recusou a contratar uma dublê — ela explicou. — Eu tive má impressão, mas não queria
perder o emprego por eles falarem que eu estava paranóica com os riscos da gravidez.
Não tenho outra fonte de renda e preciso pagar a escola do meu irmão pequeno, além do
aluguel. Já fiz acrobacias parecidas sem acidentes, então cometi a bobagem de acreditar
no assistente de direção e executei uma cena que eu devia ter-me recusado a fazer. O
resultado foi que tropecei e caí. E perdi meu bebê — ela completou, com voz embargada.
A sra. Jewell estremeceu.
— Eu perdi dois — disse ela com suavidade. — Sei como você se sente.
As duas mulheres trocaram olhares. Palavras não eram mais necessárias.
— Volte para a cama — a sra. Jewell sugeriu. — Eu levo alguma coisa gostosa
para você beber. Quem sabe você consegue dormir.
— Só vou dormir quando Cash voltar — disse Tippy com apreensão.
A mulher mais velha balançou a cabeça, levando Tippy para o quarto.
— Com esse homem você não precisa se preocupar. Ele sabe se cuidar. Espere
para ver!

A delegacia de polícia, em geral calma, com a equipe básica para o plantão


noturno, parecia um caldeirão em ebulição. Três agentes da patrulha estavam de pé, em
torno da mesa em que trabalhava a escrivã do turno da noite. Um senhor de idade dava
voltas e se adiantava aos poucos, proferindo ameaças contra dois agentes — um homem
e uma mulher — que estavam calados e ansiosos. Uma bela jovem, bem-vestida, dizia a
todos o que ia acontecer se não retirassem a acusação contra seu pai imediatamente.
Cash entrou, com passadas ameaçadoras.
— Olá, o que houve? — indagou ele sem preâmbulos.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo.
Cash levantou a mão.
— Quem fez a prisão? — perguntou ele.

101
O tenente Carlos Garcia, oficial experiente que estava encarregado da unidade de
patrulhamento, e a agente Dana Hall, uma novata, deram um passo à frente. A mulher de
Garcia era enfermeira no posto de saúde do condado, pessoa querida por todos. O
falecido pai de Dana fora um dos mais respeitados juízes da circunscrição.
— Hall estava no carro comigo — Garcia afirmou com calma. — Observamos um
carro fazendo manobras sinuosas na pista, batendo nos sinalizadores repetidamente.
Seguimos o veículo por dois quilômetros, para a ocorrência ter validade. Ele quase bateu
de frente em outro carro. Foi quando acendi as luzes, liguei a sirene e mandei encostar.
— Continue — Cash incentivou-o a prosseguir.
— Hall e eu fizemos a abordagem do carro, como manda o manual, cada um de
um lado, para o caso de o suspeito estar armado. Pedi para ver os documentos dele e do
carro, mas o suspeito imediatamente saiu do carro e começou a fazer ameaças. O hálito
cheirava a álcool, então testei seus reflexos, fazendo com que tocasse o nariz de olhos
fechados e caminhasse em linha reta. Não conseguiu.
— E o que aconteceu em seguida? — inquiriu Cash.
— Então avisei a ele que ia levá-lo à delegacia para fazer um teste. Começou a me
xingar e resistiu à prisão. Dominei-o e Hall algemou-o. Nós o trouxemos aqui e aplicamos
o teste. Seu teor de álcool no sangue está no nível 15, o que o coloca bem acima do limite
legal para consumo. Assim, registrei a ocorrência, tranquei-o e pedi à escrivã, srta.
Phibbs, que ligasse para a filha dele, por indicação do detido, para assinar um termo de
responsabilidade e uma caução pela soltura até o depoimento.
— Você não pode prender meu pai por dirigir alcoolizado, antes das primárias das
eleições! — protestou a bela filha loura. — Quero esses agentes exonerados. Meu pai
não é bêbado!
— De fato... não sou! — disse o senador com voz engrolada. — Estão todos
demitidos! — ele completou, alterando a voz.
— Como temos uma caução, o senhor pode ir para casa sob a custódia de sua
filha — disse Cash ao homem mais velho, em tom agradável. — O senhor vai comparecer
a uma audiência com o juiz municipal, para se defender. Na ocasião, o juiz pode vir a
decidir pela cassação de sua licença de motorista.
— Nosso advogado vai cuidar disso tudo, no minuto em que eu entrar em contato
com ele. Pode apostar! — A filha do senador falou com ar arrogante.
— Você não pode cassar minha licença, eu sou um senador! — disse o velho de
modo agressivo.
— Isso quem vai decidir é o tribunal.
— Isso vai lhe custar o cargo! — vociferou o senador.
Antes que a situação piorasse, o prefeito em exercício, Ben Brady, entrou na
delegacia, de camiseta e calça esporte que pareciam terem sido vestidas às pressas.
— O que está acontecendo? — perguntou ele, e os agentes que fizeram a prisão
tiveram de explicar tudo mais uma vez.
— Que absurdo — disse Brady com voz zangada e ofendida. — Meu tio nunca
bebe quando vai dirigir. Você pode retirar a acusação e rasgar a caução. Foi um engano.
— Não foi engano — disse Cash com firmeza, aproximando-se do prefeito, muito
mais baixo do que ele. Lançou-lhe um olhar ameaçador. — Meus agentes fizeram uma
prisão dentro da lei. Têm os resultados do teste em aparelho de ar alveolar, que
confirmam a suspeita. O senador ultrapassou o limite permitido. Ele vai receber uma
intimação para responder pelo ilícito. Essa é a lei.
O rosto de Brady ficou vermelho.
— Vamos ver o que o procurador acha disso!
— É melhor ele achar que esses agentes foram nomeados para fazer cumprir a lei
— Cash devolveu. — E antes que o senhor o questione — ele acrescentou quando Brady
ia tornar a falar —, é melhor se lembrar de que Simon Hart é o procurador-geral do

102
Estado.
— O que não vai ajudar em nada! — Brady fustigou.
— Os Hart são meus primos em segundo grau — Cash replicou calmamente, e fez-
se um silêncio repentino na sala.
Ele nunca trouxera esta informação a público.
Brady virou-se para o senador.
— Tio, tenho certeza de que foi só um engano. Por enquanto, vamos fazer o que
eles querem. Eu vou instaurar um inquérito disciplinar, no mês que vem, para pôr um
ponto final nessa história. O senhor não tem objeções, eu espero. — Brady arguiu o chefe
de polícia.
Cash limitou-se a sorrir.
— Por que teria? Meus agentes nada fizeram de errado. — O sorriso desapareceu.
— Mas não vão receber suspensão, com ou sem vencimentos, até serem acusados
formalmente de má conduta e terem a oportunidade de se defender.
— É melhor você procurar outra função — Julia Merrill falou com ódio na voz.
— Eu já tenho função, srta. Merrill — Cash replicou em tom educado. — E não
estou pretendendo pedir exoneração.
— Isso é o que nós vamos ver! — Ela zombou.
Cash sorriu. Ela deu um passo atrás e foi-se juntar ao pai e ao prefeito em
exercício, sem dizer mais uma palavra.

Minutos depois, não havia mais civis na delegacia. Apenas a escrivã — sorrindo
vaidosamente —, Cash e os dois agentes da patrulha permaneciam no prédio. Viu a
aflição dos dois agentes.
— E aí? — perguntou ele, diante da expressão deles.
Garcia se mexia sem parar e estava pouco à vontade.
— Achamos que você gostaria que nós pedíssemos exoneração.
— Isso mesmo — Hall concordou.
— Como se eu pudesse sair na hora que quisesse para arranjar dois bons agentes
de patrulha, numa cidade com menos de duas mil almas! — exclamou Cash.
— Isso vai dar confusão — disse Garcia. — Já aconteceu outras vezes. O velho
sargento Manley prendeu um vereador por dirigir alcoolizado, anos atrás, e foi exonerado.
Faltava um ano para ele se aposentar. O chefe Blake não moveu um dedo.
Cash encarou o outro com firmeza.
— Eu não sou Chet Blake.
O sargento Garcia sorriu com dificuldade.
— Sim, senhor. Nós, hã, já reparamos.
Cash se levantou, com Hall a seu lado.
— Obrigada por ficar do nosso lado, chefe — disse ela. — Mas pretendemos pedir
exoneração, se for preciso.
— Não vou pedir exoneração — disse Cash com naturalidade. — Nem ninguém
aqui vai pedir por fazer seu trabalho.
— Vão dificultar as coisas — Garcia insistiu. — E não temos consultoria jurídica. O
departamento é tão pequeno que nem temos advogado na equipe.
— Podíamos falar com o dr. Kemp — Hall arriscou.
— Vamos arranjar consultoria jurídica — disse Cash com simpatia. — Vamos
descobrir que por aqui há muita gente cansada de ver os políticos infringirem a lei. Vamos
acabar com isso. E ninguém vai pedir exoneração. Entenderam?
Sorriram, sem realmente acreditar naquilo, porém mais esperançosos do que no
momento em que entraram na sala.

103
Cash foi para casa, cansado, mas aliviado. Deve ter ficado surpreso ao ver que
Tippy ainda estava acordada, esperando por ele na sala.
— Falei com Sandie para levar você para a cama! — ele resmungou.
— Não foi culpa dela — Tippy replicou, confortavelmente enrolada em um penhoar
xadrez por cima da camisola, toda coberta, deixando aparecer apenas as mãos, os pés e
a cabeça. — Ela dorme cedo. Quando foi dormir, tornei a me levantar. Tive vontade de
ficar sentada um pouco, só isso — ela mentiu.
Na verdade, teve medo de que algo acontecesse a Cash. Por isso, não houve meio
de pegar no sono antes que ele chegasse em casa.
Cash teve uma das mais estranhas sensações de toda a sua vida. Não conseguia
se lembrar de uma única vez em que a esposa o tivesse esperado acordada, para ver se
havia chegado bem em casa, mesmo no tempo em que se sentia muito amado por ela.
Ficava completamente só. Agora, ah estava aquela mulher deslumbrante, com cabelos
louro-vermelhados e assombrosos olhos verdes, mulher idolatrada pelos homens em toda
parte. E ali estava ela, sentada no sofá, esperando, porque temia por ele.
Nada disse. Retirou a pistola e o coldre e colocou-os a distância, franzindo a testa
com ar inquiridor.
— Você ficou zangado? — ela perguntou.
Não a olhou.
— Não sei como eu me sinto.
— Podia se deitar no sofá e me contar coisas de quando era criança — ela sugeriu,
com um sorriso acanhado.
Ele mexeu com a sobrancelha e lhe dirigiu um olhar demorado.
— Se eu me deitar no sofá, você tem de se deitar junto.
Ela demonstrou nas faces um ligeiro constrangimento.
— Costelas quebradas — ela lembrou.
— Ah, vai passar — ele replicou. — Então, tome cuidado.
— Não precisa, você já disse que não vai se casar comigo — ela afirmou com um
grande sorriso forçado. — Quase nunca me deito no sofá com solteirões convictos.
— Acabou a graça.
Sentou-se em uma poltrona próxima ao sofá, com um suspiro profundo, e tirou a
gravata impecável, desabotoou os primeiros botões da camisa azul, mostrando, por baixo,
uma camiseta branca limpíssima.
— Quer conversar? — indagou ela, sem pressionar.
Ele franziu a testa.
— Nunca tive alguém com quem conversar sobre a rotina do dia-a-dia — disse em
tom familiar. — Da vez em que fui casado, minha mulher detestava meu trabalho.
Procurou o olhar dele.
— Você está preocupado com algo.
— Quer parar de ler meus pensamentos? — ele exigiu, jogando a gravata na
mesinha lateral.
— Não foi de propósito — ela quis explicar. — E se você quer saber, isso é mais
uma praga que um dom. Só vejo o lado negativo, o perigo, a aflição.
Ele inclinou-se para trás e cruzou as longas pernas.
— Você sabe dizer quando algo está errado com Rory, não é?
Ela concordou com a cabeça.
— Desde que ele era bem pequeno. Tinha isso com minha avó, também. Sabia
quando ela ia morrer, e como. — Teve um arrepio e passou os braços em torno do corpo
delgado. — Eu sonhei.
— Deve ser desconcertante para as pessoas, quando você conta essas coisas —
ele argumentou.

104
Olhou-o com tranqüilidade.
— Nunca contei a alguém. Nem a Rory.
— Por quê?
— Não quero assustá-lo. Tenho certeza de que ele não tem esse dom. Minha mãe,
com certeza, não tem — ela completou. — O que vai acontecer com ela?
— Se provarem o envolvimento, vai cumprir pena — disse ele. — Seqüestro é
crime federal.
Ficou calada por bastante tempo.
— Se a mandarem para a prisão, pode ser que fique limpa.
Ele sorriu com ironia.
— Você não acha que os presos têm acesso ao álcool e às drogas?
— Não podem — ela replicou. — Na prisão, não podem.
Recostou-se e fechou os olhos. Estava cansado.
— Meu bem, na cadeia entra o que você quiser. É outra estrutura social, com uma
hierarquia própria. Qualquer um pode ser comprado, pela quantia certa e com o motivo
certo.
— Você é muito cínico — ela observou, ainda entorpecida pelo afeto que ele,
provavelmente sem perceber, demonstrara por ela.
Estavam sozinhos no mundo, conversando como marido e mulher. Aquilo a fez se
sentir aquecida por inteiro.
— Sei bem como é o mundo — disse ele com ar entediado. — A maior parte do
tempo, um lugar perigoso e sem graça, com poucas compensações para a dificuldade
que é tocar a vida.
— A família é uma compensação importante — ela ressaltou.
Abriu bem os olhos e dirigiu um olhar frio a ela.
— A família é mais perigosa que o mundo lá fora.
Ela sabia disso. Demonstrou-o com expressão assustada.
Ele fez uma careta. Não teve a intenção de atacá-la. Ficou perturbado por ela
perceber que tivera um aborrecimento. Nunca falara de trabalho, a não ser com os
colegas de profissão. Tippy o conhecia demais, e ele não confiava nela. Ele não confiava
em ninguém.
Ela via o futuro estampado no rosto dele. Ele lutaria até o último suspiro para
mantê-la a distância, física e mentalmente. Não acreditava que ela não fosse capaz de
magoá-lo.
— Você sabe até o que estou pensando agora, não sabe? — ele resmungou.
Ela piscou e desviou o olhar.
— Acho que aconteceu algo no trabalho que deixou você com raiva, e está
guardando só para si porque não tem alguém com quem conversar. Não foi uma coisa
pessoal, com você — ela acrescentou. — Mas com alguém de quem você gosta.
Foi como se ocorresse uma pequena explosão, quando os sapatos de sola grossa
bateram no assoalho de madeira; ele se pôs de pé e saiu da sala pisando forte.
Tippy suspirou. Não queria aborrecê-lo ainda mais, porém sabia como era perigoso
manter os sentimentos reprimidos. O estresse era perigoso, mesmo para um homem com
boa saúde e em boa forma, como Cash. Se ao menos pudesse falar sobre seus
problemas. Sorriu consigo mesma, lembrando-se do que dissera sobre a mãe e o pai, e o
tumulto do divórcio. Primeiro, a madrasta; depois, a esposa, ambas o traíram da pior
forma. Confiava nos homens com muito mais facilidade do que nas mulheres.
Ela levantou-se devagar. Aquilo fora uma ducha de água fria nas suas esperanças.
Haveria de passar toda a convalescença afastando-a de si. Não era para se surpreender,
mas magoava. Sem confiança, nenhuma emoção mais profunda poderia desabrochar.
A passos lentos, atravessou a sala a caminho do quarto e fechou a porta com
cuidado. Tirou o penhoar, deitou-se na cama e apanhou o exemplar dos Plínios para ler,

105
pois ainda não estava com sono.
Cinco minutos mais tarde, ouviu uma batida leve na porta, e Cash entrou no quarto
com uma bandeja. Nela havia uma xícara de chocolate quente e uns biscoitos de
gengibre.
— Não perca as esperanças — murmurou ele ao fechar a porta, colocando a
bandeja na mesa-de-cabeceira. — Não estou admitindo a derrota e não vou conversar
com você sobre trabalho.
— Está bem — disse ela apenas. — Obrigada pelo lanchinho.
Ele ficou parado, olhando para ela com interesse clínico. Os ombros macios e
brancos estavam à mostra, neles apareciam somente as alças de cetim cor-de-rosa da
camisola de renda. Por baixo, os seios eram firmes e empinados, e ele se lembrou, sem
querer, como foi senti-los na boca e fazê-la gemer de prazer.
Tippy reparou no interesse, mas fingiu que não. Tomou um gole do chocolate.
— Está bom — ela comentou.
— É mistura pronta. Não sei fazer na panela.
Ele vestia apenas a camiseta, com calças esporte. Parecia exausto.
Experimentou um biscoito. Estava delicioso.
— A sra. Garcia mandou para nós, veio junto com as geléias que encontramos
aqui.
— São bons demais.
Inspirou profundamente.
— Dois patrulheiros meus prenderam um político que dirigia embriagado. Ele quer
exonerá-los, e o prefeito em exercício, sobrinho dele, está me pressionando para fazer
isso. Quer me exonerar também.
Ela engoliu o resto do biscoito. Arrepiou-se toda. Ele queria mesmo conversar com
ela sobre trabalho! Aquilo era um acontecimento. Teve vontade de chorar.
— Ele é que vai perder o cargo — disse ela, fingindo desinteresse.
Ficou agradavelmente surpreendido por ela ter confiança nele.
— Vai, sim — ele concordou. — Já me acostumei com Jacobsville. Mesmo ainda
sendo uma pessoa que veio de fora, parece que me dei bem aqui.
— Você gosta daqui — disse ela.
Deu um ligeiro sorriso.
— Gosto muito. — Observou-a comer outro biscoito. — Você fica linda de rosa. Eu
achava que as ruivas não usavam essa cor.
Ela sorriu.
— Geralmente, não uso, mas Rory me deu de Natal, conjunto com o penhoar.
— Foi o que eu pensei.
— Estou com saudades dele.
— Sei que está — ele replicou. — Mas ele tem muito mais segurança na escola
militar do que se estivesse em Nova York. Assim que acabarem as aulas, nós o trazemos
para cá.
— Obrigada — disse ela com voz seca. — Ele gosta mesmo de você.
— É um ótimo garoto.
— Cheio de veneração pelo ídolo — ela acrescentou com seriedade.
Ele balançou a cabeça.
— Vai aprender que os ídolos têm pés de barro.
— Esse não — disse ela sem olhar para ele. — O dele é legítimo.
Não falou por um momento. Sabia que ela estava dizendo a verdade. Mas não
queria que ela pensasse isso. Estava dominada por sua primeira experiência prazerosa
de intimidade. Gostava do que ele era capaz de fazê-la sentir. Era uma reação a que ele
estava habituado. Sua primeira mulher também gostava dele na cama. Mas quando
soube de tudo a respeito dele, tudo mesmo, passou a não suportar que a tocasse. Seria

106
tudo igual com Tippy. Ela estava atraída por uma ilusão, não por um homem de carne e
osso.
— Vou para a cama. Precisa de mais alguma coisa? — indagou ele.
Ela ergueu os olhos. Que ar solene. Não adiantaria fazer perguntas. Sorriu apenas.
— Não. Obrigada pelo chocolate e os biscoitos.
— Sem problemas. Até amanhã. — Ele hesitou. — Se precisar de alguma coisa
durante a noite...
— Eu sei, a sra. Jewell está aí no corredor, e há o telefone interno. — Apontou
para a mesa-de-cabeceira. — Ela me disse antes de ir dormir.
Ele concordou com um sinal de cabeça. Vacilou um instante, como se quisesse
dizer mais alguma coisa, mas não soubesse exatamente o quê. Então, dirigiu-se para a
porta.
Mas hesitou ao segurar na maçaneta. Não olhou para ela.
— Obrigado por me esperar acordada — disse ele rapidamente.
Antes que ela se recuperasse do susto para responder, a porta se fechou atrás
dele.

No dia seguinte, na prefeitura, na polícia civil e no corpo de bombeiros, todos já


sabiam: o chefe vai ficar do lado dos seus agentes, aconteça o que acontecer. Durante a
noite, Cash deixou de ser uma pessoa de fora, tentando se adaptar, e entrou para a
família.
Ficou surpreso por chamar tanta atenção, pois fez apenas o que considerava sua
obrigação. Ninguém mais achou aquilo tão natural. Quando as pessoas se encontravam
na rua, o primeiro assunto da conversa era Cash e a defesa firme dos seus colegas.
Sandie disse a Tippy que, mesmo que Cash não tivesse percebido, ele se tornara
um herói aos olhos da população. Tippy sorriu, sentindo-se integrante de uma grande
família.

Capítulo Doze

A casa de Cash fascinava Tippy, que nunca tinha morado em uma de verdade. Sua
mãe sempre tivera um velho trailer. Esta casa tinha uma grande varanda na frente, outra
pequena nos fundos, cômodos amplos, banheiro e cozinha enormes. Parecia mesmo
encantada.
Tinha algo mais que a atraía. Tippy passava um bom tempo nos fundos, no quintal
coberto de flores, com canteiros e altas nogueiras-de-pecã. Cash tinha uma rede na qual
Tippy gostava de se balançar, sentindo a brisa fria da primavera. A região torácica ainda
estava sensível, e era difícil entrar na rede mas, uma vez lá dentro, podia descansar as
costas no apoio longitudinal e sentia-se maravilhosamente bem. Respirava com mais
facilidade, graças à quantidade de líquidos empurrada pela sra. Jewell. Os hematomas se
dissolviam e tinham cor amarela. A confusão mental e a dor de cabeça não havia
desaparecido por completo, mas tinham diminuído. Seu rosto ainda parecia um mapa
rodoviário, mas a dor regredia a cada dia, e o aspecto era de que fosse ficar
perfeitamente curada.

107
A sra. Jewell não a perdia de vista nos últimos tempos, chegava a ser embaraçoso,
e Cash lhe dirigia olhares preocupados quando estava em casa. Tippy percebeu que
havia algo errado, mas não conseguiu que alguém lhe dissesse o que era.
Tippy espreguiçou-se e bocejou bastante, de olhos fechados. Era agradável o sol
batendo no rosto. Usava um vestido de verão verde estampado, que lhe deixava os
braços e ombros nus, a não ser pelas alças finas. Chegava até o tornozelo e, mais
abaixo, os pés estavam descalços. Os cabelos louro-avermelhados estavam soltos,
caindo em ondas sobre o rosto. Mesmo sem o saber, ela fazia parte de um belo cenário,
tendo por fundo a relva e as árvores algarobeiras que enfeitavam o quintal.
Não pensava em problemas à luz do dia. A sra. Jewell fora fazer compras e Cash
estava trabalhando. Nunca ocorrera a Tippy que pudesse correr risco tão perto de casa.
Mas seu pescoço começou de repente a formigar, e ela ficou tensa, abrindo os olhos no
exato momento em que Cash se inclinou sobre a rede, com olhar mal-humorado.
— Oh! — exclamou ela e deu um salto. O movimento súbito quase a fez cair no
chão. — Meu Deus, que susto você me deu! — disse ela com voz embargada.
— Ótimo — disse ele apenas. — Um dos seqüestradores ainda está por aí, e você
é a única pessoa que pode testemunhar num processo de âmbito federal. Sem Tippy, não
há processo. Não posso ficar aqui o tempo todo, e Sandie também não. Isso é descuido,
é um perigo deitar-se aqui fora, na sua situação. Você nem está armada!
Ela engolia em seco enquanto o encarava.
— Vou trazer um porrete comigo da próxima vez, eu garanto — ela prometeu.
O coração disparava. Mal conseguia falar.
Cash ficou com pena. Os olhos escuros passearam pelo rosto dela, em silêncio.
— Esta casa tem de ser encantada. Você parece mesmo uma fada, deitada aí —
disse ele em tom suave, fascinado.
— Uma fada caída — ela corrigiu e tentou rir.
— Caída que nada. Chegue para lá.
Ela o fez, espantada, quando ele entrou na rede com ela, ajeitando o coldre para
não se prender na franja. Recostou-se e bocejou, com as mãos atrás da cabeça.
— Que gostoso — disse ele em tom pensativo, fechando os olhos. — Coloquei isso
aqui há um mês e ainda não tive cinco minutos para experimentar. Pelo menos por
enquanto, as coisas na prefeitura se acalmaram.
— O senador ainda está ameaçando exonerar vocês todos? — Ela quis saber.
— É claro que sim. E o prefeito em exercício também. — Sorriu preguiçosamente.
— Mas o advogado do senador Merrill não é do tipo de aceitar causas de atividade ilegal.
É honrado e acredita na lei. Desde que falou com o prefeito, não tem conversado muito.
— Mas ainda falta o depoimento — ela lembrou.
— Claro, só que nós vamos ter uma consultoria jurídica de surpresa, que ninguém
sabe qual é, só eu. — Olhou para ela com um sorriso misterioso. — Há uma outra coisa
que estou terminando, também, sobre o tráfico de drogas na cidade.
Ela franziu a boca.
— E alguém importante está envolvido...?
— Pare de jogar indiretas — disse ele em tom relaxado.— Não conto as surpresas
antes de estarem prontas.
— Como você quiser. Mas não vai deixar que exonerem você e os agentes, certo?
— Certo.
— Está bem.— Tomou a palavra dele como uma promessa e recostou-se outra vez
com um suspiro prolongado. — Nunca fiz isto na vida — murmurou ela. — Nunca tive
uma rede, para começar. Depois, nunca me senti segura em casa, para relaxar.
Acariciou os longos cabelos dela.
— Você tinha amigos?
— Não muitos — ela replicou. — Uma amiga, mas ela tinha medo de Sam e sabia

108
como minha mãe ficava agressiva quando bebia. Quase sempre eu ia à casa dela, até
que minha mãe achou que eu estava me divertindo demais. — Fechou os olhos, sem
perceber a atenção e o interesse de Cash. — Você sabe, ela me detestava desde o dia
em que nasci. Sempre me dizia que eu tinha sido um erro, que ela fez sexo sem
preservativo por acidente.
— Que coisa bonita para se dizer a uma criança — ele observou com frieza.
— Aprendi a fazer o serviço da casa e a cozinhar com oito anos de idade. Acho
que sempre a vi bêbada. Então, depois que Sam entrou na vida dela, passou para as
drogas pesadas. Eu o odiava — Tippy rememorou com voz trêmula. — Pelo menos,
finalmente, tive a chance de revidar.
Ele girou na rede.
— Stanton disse às autoridades que você o atacou.
— Está certo, ataquei, sim — ela replicou. — Tive suficiente treinamento em artes
marciais para neutralizar alguns golpes, nos pontos vulneráveis dele, antes de me
dominar. Fiz muito bem. Também tenho uma faca filipina, mas nunca usei.
Tocou delicadamente o rosto machucado.
— Somei uma bala aos golpes que você deu nele — disse ele com calma. —
Quando afinal cheguei onde você estava, achei que foi pouco.
Ela tocou a boca rija com a ponta dos dedos.
— Sinto-me segura com você.
As sobrancelhas se ergueram.
— Não é desse jeito — murmurou ela. — Quer dizer, não fico com medo de outras
pessoas quando você está por perto.
— Que bom você esclarecer as coisas — ele refletiu.
Ela se virou, encolhendo-se um pouco com a pressão nas costelas.
— Estão falando muito na eleição para o senado — disse ela. — A srta. Jewell
disse que o tal Ballenger vai ganhar.
— E o que diz a maioria. Sem contar a bebida, muita gente acha que o senador
Merrill está ultrapassado para o cargo. Não é a idade, é a atitude — ele acrescentou. —
Perdeu o contato com os eleitores, depende das velhas famílias e do velho dinheiro para
se manter na ativa. Mas as velhas famílias perderam muito da antiga riqueza, além do
poder. Há uma nova estrutura social, de que os Ballenger fazem parte. São um nome de
peso.
— Acha que Merrill vai perder?
— Acho que sim — disse ele. — Além do mais, o prefeito em exercício está
precisando resolver a candidatura dele na eleição extraordinária, em maio. Não acho que
tenha chance de voltar. Eddie Cane já está na frente, nas pesquisas. Todo mundo gosta
dele. Já foi prefeito uma vez. É um bom homem.
— Você vai gostar, se ele derrotar o sr. Brady, não tenho dúvida — ela resumiu.
— Vou mesmo. Brady e pelo menos um vereador estão metidos numa sujeira...
não é para você comentar essas coisas fora de casa — disse ele com firmeza.
— Nunca conto o que eu sei — ela prometeu. — Drogas?
— Sim. Tentou usar o cargo para proteger uns amigos na região. Mas não está
funcionando em Jacobsville.
— Soube disso pela sra. Jewell — ela confessou sorrindo. Ela disse que você
organizou uma equipe multidisciplinar para acabar com a distribuição.
— Foi, sim. Muitos traficantes estão na cadeia.
— Então não surpreende que você não tenha prestígio na prefeitura — ela
replicou.
— Tenho prestígio até com o xerife — ele afirmou, balançando a cabeça —, apesar
de Hayes Carson e eu nos desentendermos de vez em quando. Nós dois lutamos para
impor as leis sobre as drogas. Hayes tem um irmão que morreu de overdose. Ele é ainda

109
mais cabeça-dura do que eu.
Ela suspirou, viu as folhas nos galhos de árvore e fechou os olhos para sentir
melhor a brisa suave que passava por seus cabelos.
— Não me lembro de um dia que eu tenha gostado tanto — disse ela de repente.
— Não tive muita vida doméstica. Imagine, eu deitada na rede, debaixo da árvore, sem
coisa mais importante para fazer do que respirar.
Ele sacudiu a cabeça.
— Minha vida doméstica também não era de muita conversa, eu acho —
murmurou ele. — Depois que minha mãe morreu, certamente não.
— Nenhum de nós dois teve boa experiência da vida familiar — disse ela. — Quis
tanto dar isso a Rory, dar a ele a oportunidade de ser feliz, quando estava em casa
comigo, nos feriados ou nas férias.
— Ele ama você — disse ele com simplicidade.
— E eu o amo. —Tippy espreguiçou-se outra vez. — Ele acha você
impressionante. Agora anda falando em seguir carreira como policial.
— É mesmo? — indagou Cash, com agradável surpresa.
— Ah-hã — murmurou ela alegremente. — A escola termina na semana depois das
eleições estaduais.
— Vou gostar de tê-lo aqui — ele afirmou. — Temos um departamento de lazer
muito ativo para jovens.
— Ele está procurando alguém que o leve para pescar — disse ela com
displicência. — É o esporte preferido.
— É divertido. Eu gosto de pescar.
— Ele vai com um dos garotos da escola militar, nos finais de semana. Eu gosto
dessa rede! Acho que vou me acostumar com isso para o resto da vida.
Rolou um pouco, de modo que deslizasse o pé descalço sobre a bota e se
aninhasse no peito dele. Cash ficou tenso, mas logo depois relaxou. Virou a cabeça e
olhou para ela.
— Não se acomode demais — disse ele com uma risadinha. — Só posso ficar uns
minutos. Minha mesa tem uma pilha de coisas por fazer, ainda do tempo em que estive
em Nova York, cuidando de você.
A mão pequena alisou o tecido limpo da camisa da farda, e ela fechou os olhos,
aconchegando-se mais.
— Você tem um cheiro bom.
Ele mudou o braço de posição e passou a mão pelos cabelos compridos.
— Você também, meu anjo — disse ele em tom meigo.
Era bom sentir os dedos dele nos cabelos. Era o céu, ficar ao lado dele, desse
modo, à sombra da árvore, e sentir o coração bater, a respiração sobre a cabeça, a
potência e a força do corpo dele junto ao seu.
— Andei olhando uns anéis — ela sussurrou com sonolência.
— Foi? — retrucou ele em tom pensativo.
Ela bocejou.
— Mas você não iria gostar de nenhum que achei — ela completou com ar
malicioso.
— Figurinha insistente que você é — ele afirmou.
— Só penso nisso, Cash. Sandie falou que você é aparentado com os Hart. É
mesmo?
— Primos em segundo grau — ele explicou.
— São parentes do vice-presidente. E, mais distante, do governador daqui — ela
falou.
— Certo.
— Você nunca fala da sua família.

110
— Não tenho muito o que dizer. Meu pai é corretor de imóveis, a maior parte na
área de mineração. Ganha milhões. Meu segundo irmão administra nossa fazenda de
gado no oeste do Texas. O mais velho está no FBI. O mais novo está no serviço secreto e
de inteligência. — Virou a cabeça. — Por que tanta pergunta?
Ela sorriu para a camisa.
— Se eu distrair você, vai ficar mais um pouco. Estou tão confortável.
— Queria ficar — murmurou ele em tom seco.
Rolou a cabeça para trás, para ver o rosto dele. Sorria, mas havia um leve brilho
nos olhos escuros.
— Você é muito bonita — disse ele. — Tem um cheiro bom e é macia como uma
pluma. Eu queria mudar de posição e beijar você até sua boca ficar inchada.
A respiração entrecortada foi audível. Olhou para ele com ânsia e desejo.
— Ah, é perigoso — ele sussurrou, olhando sua boca. — Estamos em público. E se
eu seguir meus instintos?
— O que vai acontecer? — ela devolveu, olhando a boca, também.
— Os repórteres vão aparecer do nada. Dois agentes meus vão parar na entrada,
em missão oficial. Os motoristas que passarem vão abrir o vidro e apontar as câmeras de
vídeo para cá.
— Está brincando — ela reclamou.
— Não estou. Quando Micah Steele estava namorando Callie, ouvi falar de uma
sessão de beijos, na entrada da casa dela, por volta da meia-noite. Um vizinho idoso saiu
para cuidar do jardim, dois casais foram dar uma caminhada na calçada e outro vizinho
ficou espiando pela janela. E Micah nem era o chefe de polícia.
— Ah, entendo — ela refletiu. — Você é importante na comunidade, e todo mundo
quer saber o que está fazendo.
Ele sacudiu a cabeça.
— Você é modelo famosa e artista de cinema. Você é a atração, eu não — ele
acrescentou, e pareceu satisfeito com isso.
— Uma artista qualquer — ela debochou, tocando o rosto de leve. — Acho que
estou parecendo o monstro Frankenstein.
Segurou a mão dela e levou os dedos até a boca quente e rígida.
— Ferimentos de guerra — ele sussurrou. — Não teria mau aspecto nem se
tomasse dois comprimidos de feiúra por dia.
Ela sorriu.
— Obrigada.
Os olhos dele procuraram os dela ansiosamente. O corpo estava tão próximo que
ele sentia o aroma do sabonete que ela costumava usar. Os cabelos espalhavam-se ao
redor do rosto como plumas avermelhadas. Era óbvio que o queria, e ele a desejava em
lugares inconvenientes.
Viu seu próprio desejo nos olhos dele e espreguiçou-se lenta e amorosamente,
com olhos de verdes lagos quentes.
— Não — ele advertiu com voz seca.
Ela moveu os lábios sem querer.
— Não posso evitar — disse ela, sentindo o corpo dilatado. — Quero você.
Ele ficou arrepiado.
Era uma fraqueza que ela, por muito tempo, teve vontade de explorar. Chegou
mais perto dele, desajeitadamente, pois era difícil mexer-se na rede. Os dedos
alcançaram o queixo magro e acompanharam o contorno.
— Você podia me beijar, se quisesse — disse ela.
— Em dois minutos seríamos uma atração turística.
— Desculpas, desculpas...
Segurou-o pelo pescoço e trouxe a boca rija a seus lábios abertos, dóceis.

111
— Tippy — ele protestou.
Mas não resistia com muito empenho, foi o que ela observou. Sorriu junto de sua
boca e puxou com mais força.
Afinal, ele não resistiu. Mergulhou na rede com ela, e a boca chegou faminta,
invasiva.
Ela respondeu com ardor, mas em poucos segundos sentiu a dor nas costelas... e
algo a incomodava na barriga.
Protestou debilmente.
Ele ergueu a cabeça.
— O quê? — indagou ele com desatenção.
— A pistola — ela sussurrou.
Olhou para baixo. O coldre pressionava-a no estômago. Afastou-se dela com uma
risada.
— Eu falei que as redes não são feitas para isso. Machucou as costelas, não foi?
Ela suspirou com tristeza.
— Eu queria já estar boa.
— Então somos dois.
Lutou para sair da rede e pôr-se de pé, ajeitando a farda e o coldre.
— Viu o que arranjou, seduzindo um homem em plena luz do dia?
Agitou as sobrancelhas.
— Vai me prender por atentado ao pudor? — Tippy estendeu as mãos. — Pode me
algemar. Depois você lê os meus direitos. Mas podíamos fazer isso lá dentro.
— Não vai funcionar — disse ele, piscando os olhos. — Sei o que acontece quando
você me pega sozinho. Essas costelas não vão deixar você fazer o que quer.
Ela encolheu os ombros.
— Aposto que tem razão — ela assentiu com ar melancólico. — Está bem. Eu
desisto. Pelo menos, até ficar completamente curada.
Ele sorriu. Para uma pessoa com uma história tão marcada, ela estava se saindo
muito bem. Conseguia ao menos sentir desejo. Era um passo importante, considerando-
se o que havia por trás. Lembrou-se, com constrangimento, da longa e incomparável
sessão de amor na cama dela, no Natal. Quase superou seus pesadelos. Quase. Era
difícil viver com tudo o que fizera na vida.
— Agora você vem de novo com essas lembranças — disse ela com suavidade. —
Eu só olhei os anéis. Não comprei.
Ele ficou sério.
— Como você olhou um anel?
Ela fez uma careta.
— Fui na Internet e procurei anéis. Ainda não me acostumei com meu rosto para ir
à cidade.
— Você não está com aparência ruim — disse ele com sinceridade. — Mais uma
ou duas semanas e vai ficar igual ao que era. Duvido que fique alguma cicatriz, quando
estiver totalmente recuperada. Os médicos trabalharam bem.
— Você não acha que Joel vai me substituir, não é? — ela divagou sem
segurança.
— De jeito nenhum. — Olhou o relógio. — Só passei para ver como você estava.
Não faça isso outra vez — ele acrescentou de modo gentil. — Mesmo em Jacobsville, não
é seguro.
— Está certo — disse ela, levantando-se com dificuldade. — Vou para dentro de
casa, vou pedir uns filmes. Preciso para ter idéias. — Olhou para ele de um modo
eloqüente. — Deve haver um jeito de derrubar suas defesas.
Não conseguiu evitar uma gargalhada. Quanta ironia. Tinha uma sexualidade
danificada, mas passava um tempo interminável procurando meios para seduzi-lo. Era

112
uma medida concreta de sua afeição por ele.
— Pelo menos, você está mais risonho. Isso tem de ser uma coisa positiva.
— Mais positiva do que você imagina — ele assinalou. — Não sou do tipo de sorrir.
Mal o ouvia. Observava seu rosto bonito e pensava em como seria o filho deles, se
tivesse nascido. O pensamento provocava uma dor aguda. Virou-se.
Antes que desse dois passos, ele estava a seu lado.
— Você se fechou como as flores à noite. Por quê?
— Por nada — respondeu ela, rápido.
As mãos magras acariciaram seus braços nus.
— Estava pensando no bebê — ele soprou.
Engoliu as lágrimas ameaçadoras.
— Imaginação sua — ela desconversou com voz tensa.
— Não. Acho que não. — As mãos se contraíram com delicadeza e os lábios
roçaram na cabeça dela. — Eu devia levar um tiro pelo modo como falei com você no dia
em que me ligou. Sempre espero o pior das pessoas. É um costume difícil de perder.
Engoliu novamente, tentando afastar as lágrimas. A força e o calor dele, às suas
costas, eram inebriantes. Sem querer, apoiou-se nele com um profundo suspiro.
— Eu fui assim a maior parte da vida. E difícil ter confiança quando você já foi
traído.
— É verdade.
Olhou para a frente,diretamente para a casa. Algo lhe ocorreu.
— Por que você comprou uma casa, em vez de alugar? — Ela quis saber.
Ele vacilou.
— Parece estranho, não é? — Ele refletiu em voz alta. — Não sei mesmo.
— Será que não queria fincar raízes ou coisa parecida? — ela sondou.
Ficou muito quieto. Franziu as sobrancelhas, mas não dava para ela ver.
— Eu nunca quis me apegar a lugar algum — disse ele. — De certo modo, fui um
deslocado profissional desde criança. Não gosto de me aproximar das pessoas. Muito
menos das mulheres — Cash completou bruscamente.
— Isso não é difícil de entender — ela concordou.
— Nunca me deu motivo para não confiar em você — disse ele, depois de um
instante.
— Nem vou dar — ela anunciou. — Nada do que você fez ou me disse vai fazer
com que eu o deteste.
— Acha mesmo? — Ele riu com cinismo. — Quem sabe um dia eu lhe conto a
história da minha vida e você vai poder provar isso.
Ela se voltou e acariciou o rosto duro com um olhar suave.
— Quando se tem carinho por alguém, não é pelo que faz ou deixa de fazer, Cash,
mas pelo que é — ela argumentou. — As ações de uma pessoa não são traços do
caráter.
Ele ficou sério. Ela o fazia se sentir de modo estranho. Jovem. Ela o fazia ter
esperança.
Levou os dedos aos lábios dele e tocou-os de leve. Sorriu.
— Já lhe disse que não acredito que pudesse fazer algo com má intenção.
— Eu... não sou o homem que fui — ele titubeou. — Mas fiz coisas de que não se
pode esquecer.
Procurou os olhos dele com segurança.
— De tudo se pode esquecer.
— Tomara que seja o meu caso — murmurou ele.
Lembranças terríveis revelavam-se em seus olhos. Nos dela também. Se ele tinha
segredos para ela, com certeza ela os tinha para ele. No entanto, trazê-los à luz exigia
muito mais confiança do que aquela que depositavam um no outro. Ainda era cedo.

113
— Um dia de cada vez — disse ela com meiguice. —Temos de viver assim.
A mão seca passou pelo rosto dela, com ternura, entre os hematomas que
desapareciam e os cortes que cicatrizavam.
— Nossas vidas não foram fáceis, não é, meu bem? — ele pensou em voz alta.
— Pagamos um preço alto para termos prazer — ela filosofou. — Levando em
consideração minha contabilidade, eu diria que me devem muito prazer.
Ele riu em silêncio, como era seu costume.
— Acho que isso vale para nós dois.
Ficou na ponta dos pés e roçou a boca na dele.
— Sandie está fazendo frango com salada para o jantar.
— Eu gosto.
— Eu sei — disse ela com ar esperto. — Eu é que dei a idéia.
Segurou o rosto dela com ar de deboche.
— Não vai me conquistar pelo estômago.
— Lá vem você outra vez — ela reclamou.
— Por outro lado, um homem não consegue resistir a tanta tentação — ele
completou em tom forçado.
— Obrigada. Vou dar uma busca no meu estoque de perfumes e camisolas
sensuais.
— E eu vou voltar para o trabalho enquanto ainda é tempo — disse ele com
firmeza, afastando-a delicadamente.
— Vou ver uns filmes.
— Assim é que eu gosto — disse ele em tom suave e rouco.
Olhou para ela com afeto sincero, com ternura.
Sentiu-se levitar. Todo o corpo estava aquecido, como se embalado por braços
amorosos.Trocaram um longo olhar, do fundo da alma, que a fez estremecer.
— Que diabo — murmurou ele, aproximando-se. — Um beijinho não vai tirar
pedaço. Certo?
A última palavra foi dita junto aos lábios suaves. Preferiu não segurá-la muito de
perto, com medo de machucar as costelas, a boca estava ardente. Ela suspirou e
mergulhou nele, insinuante, à medida que o beijo crescia e não terminava.
Havia um estranho silêncio em torno dos dois. Perturbado por isso, mesmo
estando amortecido pelo prazer, Cash levantou a cabeça e olhou em volta.
Um carro de patrulha saiu da estrada e parou no caminho para a casa. Um carro
sem identificação, com Judd Dunn dentro dele, estava junto à calçada. Um caminhão de
bombeiros, do outro lado da estrada. Uma equipe de manutenção telefônica colocara
cones na frente e atrás do caminhão, mas não estava consertando nada. Na calçada,
duas senhoras de idade simplesmente olhavam e sorriam.
— Bem, isso é o que acontece quando se beija uma artista de cinema no meio da
rua! — Judd Dunn gritou para Cash.
— Ela é que está me beijando! — ele devolveu.
— Conte outra história! — Judd continuou.
— Ela quer me comprar um anel de noivado!
Ouviu-se uma torcida animada.
— Agora temos testemunhas — disse Tippy com atrevimento.
Cash soltou-a e balançou a cabeça.
— Eu tinha mais privacidade no quartel — murmurou ele.
— Não pare por nossa causa, chefe — um dos bombeiros gritou para ele,
enquanto ligava o caminhão. — Vamos comprar ingressos...
Cash jogou as mãos para o alto, inclinou-se para beijar o rosto ruborizado de Tippy
e foi para o carro de patrulha.

114
Apesar da aparência de Tippy, Cash a incentivou a acompanhá-lo a uma festa para
levantar fundos para a campanha de Calhoun Ballenger. Ela agarrou-se a ele como hera,
sorrindo timidamente para as outras pessoas, mas era evidente que só tinha olhos para
Cash.
Quando a banda começou a tocar e ele a levou para a pista de dança, viu-se uma
pessoa embalada pela música. Tippy sentia-se feliz, como nunca na vida.
No dia seguinte, reuniu forças e foi ao supermercado, levando suas parcas
reservas de dinheiro para comprar os ingredientes de uma lasanha para o jantar. Vestiu-
se com calma e colocou uma écharpe na cabeça. Sem maquiagem, usando um casaco
leve, não parecia uma atriz famosa.
Mas, quando estava na fila do caixa, reparou na primeira página chocante de um
jornal. A chamada era: "Atriz se esconde depois do seqüestro forjado e se faz de vítima
por perder o filho querido." Embaixo, estava a foto de Tippy se escondendo dos
fotógrafos, ao sair do hospital em Nova York.
Forjado! Mal podia andar, quase foi morta. E a imprensa chamava aquilo de
forjado!
Enquanto se recuperava do impacto, ouviu duas mulheres cochichando atrás dela.
— Foi morar com o chefe de polícia! — uma disse para a outra. — Primeiro,
sacrificou o bebê para não perder o emprego, depois inventou que foi seqüestrada para
fazer média. E, ainda por cima, amigou-se com um homem! Aqui mesmo, em Jacobsville.
É uma pouca vergonha, escute o que lhe digo!
— Acho que certas mulheres não querem os filhos — disse a outra com tristeza. —
Fazem qualquer coisa para não perder a forma...
O comentário foi interrompido quando elas viram, de repente, os furiosos olhos
verdes de Tippy.
— Perdi o meu bebê porque um diretor mentiu, dizendo que a cena era segura e
porque eu não tinha como me manter sem trabalhar. Não estou ganhando muito
ultimamente. Vocês sabem por quê? — Puxou a écharpe e, com ela, tirou o que pôde da
maquiagem que cobria as marcas. — O que houve? — perguntou ela em tom cáustico. —
Não tenho cara de artista de cinema?
As duas mulheres ficaram vermelhas de vergonha.
— Srta... srta. Moore, desculpe — disse a mais velha imediatamente.
— Eu queria o meu bebê — ela se lamuriou com voz engasgada, quase em
lágrimas. — Era tudo o que eu queria! O namorado da minha mãe seqüestrou meu irmão,
e eu troquei de lugar com ele, para salvar a vida dele. Foi por isso que fiquei desse jeito!
— Apontou para as marcas. — Esse jornal escandaloso é a melhor expressão de fofoca e
veneno que existe no mundo. E se vocês acreditam nisso, é porque são da mesma laia de
quem publicou essas mentiras!
Dito isto, virou-se, pagou as compras e saiu da loja pisando firme, deixando várias
mulheres e pelo menos um homem boquiabertos.

Capítulo Treze

Tippy sentiu-se aliviada pelo fato de a sra. Jewell ter saído durante o dia, pois não

115
veria o quanto chorou. Colocou a carne na geladeira e sentou-se na sala até as lágrimas
cessarem.
Tinha acabado de fazer um café quando ouviu o carro de Cash chegar. No mesmo
instante, duas mulheres bateram na porta dos fundos.
Tippy foi atender, torcendo para não estar com os olhos vermelhos.
As duas mulheres do supermercado ali estavam, com ar deplorável. Uma delas
trazia uma cesta de queijo e bolachas arrematada por um laço, a outra tinha nas mãos um
vaso com uma rosa amarela.
Tippy ficou admirada.
— Queríamos pedir muitas desculpas pelas coisas que falamos — disse baixinho a
mais velha. — Você tinha razão. A gente acredita nas coisas que saem nos jornais,
mesmo quando não são verdade. Mas não vamos mais acreditar nessas mentiras e não
vamos deixar as pessoas em Jacobsville acreditarem também.
Entregou, desajeitadamente, a cesta para Tippy.
— Isso também — disse a mais nova com um sorriso sem graça. — Não vamos
prender você. Só queríamos pedir desculpas.
As mulheres olharam de relance para Cash.
— Também estamos orgulhosas do senhor, sr. Grier — disse a mais velha. —
Tomara que não deixe aquele malcriado do Ben Brady tirar seu cargo, nem o dos outros
policiais.
— Não vou deixar — ele prometeu.
Sorriram timidamente e saíram depressa.
Quando estavam na cozinha com a porta fechada, Cash olhou para os presentes
nas mãos de Tippy e seus olhos vermelhos e inchados.
— O que houve?
— Fui ao supermercado — ela confessou. — Elas fizeram uns comentários sobre a
primeira página do jornal de hoje.
— Eu vi. Foi por isso que passei em casa. — Cash segurou-a pelos ombros e
encarou-a. — Já tomamos medidas para acabar com isso.
— Foi mesmo? O quê?
— Uma coisa pública. Percebe que o melhor que temos a fazer é atrair aquele
terceiro seqüestrador para cá e cuidar dele no nosso terreno? — ele acrescentou com
calma.
Ela suspirou.
— Sim.
Hesitou, por saber que aquilo significava que Cash poderia se ferir ao defendê-la.
Puxou o rosto dela para junto de si. Inclinou-se e beijou-a com ternura.
— Tudo vai dar certo. Pare de chorar.
Ela tentou sorrir.
— Está bem.
— Quer ir a uma festa de políticos hoje à noite comigo? — perguntou ele com um
sorriso. — É para Calhoun Ballenger. Você vai encontrar a aristocracia local.
— Não estou com bom aspecto para sair.
— Que bobagem. Você é uma celebridade. Está ótima. Ficou intrigada por ele
querer que as pessoas soubessem que ela estava com ele.
— Então, tudo bem. Vou fazer sua lasanha para o jantar — ela completou.
Ele sorriu com uma careta.
— Meu prato predileto.
— Eu reparei. Tome cuidado lá fora.
— Vou me cuidar.
Piscou para ela e deixou-a a sós com seus pensamentos.

116
A festa de campanha de Calhoun Ballenger aconteceu em Shea, na Victoria Road.
Era um restaurante de beira de estrada, com bar, mas sempre bem policiado e
considerado um lugar calmo, desde o problema com os irmãos Clark. John Clark foi morto
em um tiroteio com Judd Dunn e um segurança, em Victoria, ao assaltar um banco. Seu
irmão Jack armou uma cilada para se vingar de Judd Dunn, porém atingiu Christabel
Gaines em vez de Dunn. Acabou na prisão por tentativa de assassinato contra Christabel
e por assassinar por vingança uma jovem, que pouco tempo antes o mandara para a
cadeia por estupro.
Cash apresentou Tippy aos outros convidados, com visível orgulho. Ela sorriu,
cumprimentou e deslumbrou todos os homens com menos de 50 anos. Contudo, como
sempre, só estava interessada em Cash, e o demonstrou.
Quando foram para a pista de dança, fundiu-se aos braços dele. Não fazia muito
tempo que Cash encantara o povo com danças latinas ao lado de Crissy Dunn. Mas isto
foi antes de ela se casar com Judd e ter os gêmeos. Ele sabia que Tippy não tinha
condições de acompanhar ritmos agitados e manteve um passo lento.
Ela ergueu os olhos verdes até encontrar o olhar escuro dele, como se não
conseguisse olhar para outro lado. Ele sorriu para ela. O falatório correu solto. Onde há
fumaça, garantiam, há fogo.
Cash ainda estava preocupado com o terceiro seqüestrador, que viria no encalço
de Tippy. Ampliou a ronda em torno da própria casa e avisou a Tippy para trancar as
portas quando ele não estivesse. Não conseguia pensar que algo pudesse lhe acontecer.
Na semana anterior ao depoimento de seus oficiais no fórum, Cash foi almoçar em
casa e encontrou Tippy na cozinha, preparando a comida. Estava descalça, usava uma
saia envelope longa, de brim, e uma blusa xadrez simples, abotoada na frente. A gloriosa
cabeleira estava presa com elástico em um rabo-de-cavalo, e ela não usava maquiagem.
Tinha o ar fresco da própria manhã. Cash parou à porta para apreciar, enquanto ela
colocava de volta um pote na geladeira.
Olhou-o de relance por cima do ombro, e os olhos verdes se acenderam de alegria.
— Chegou cedo — exclamou ela. — Estou fazendo um pão caseiro para
acompanhar a salada de atum... está quase pronto.
— Estou com tempo — disse ele em tom relaxado, tirando o cinturão e jogando-o
no encosto da cadeira. Espreguiçou-se demoradamente, mostrando os músculos
admiráveis dos braços. — Posso ficar por uma hora, se eu quiser. Sou o chefe — ele
acrescentou com riso divertido.
O coração dela se alterava quando ele sorria daquele modo. Sentia-se jovem e
despreocupada. Não conseguia parar de olhar para ele. Era bonito, cheio de vida,
fisicamente arrasador.
Ele reparou na expressão dela e encheu o peito.
— Babando por mim outra vez, hein? — Cash brincou com ternura. — Por que não
vem para cá resolver isso?
Ela ergueu as sobrancelhas e deu um sorriso forçado.
— Não vai desmaiar se eu for?
— Vamos ver — ele experimentou.
Franziu os lábios, pousou o pano de prato que segurava e foi em direção a ele,
espalmando as mãos no peito musculoso.
— Está bem, conquistador. Vamos ver o que você faz com uma mulher de verdade
— caprichou no ar fatal, levantando os cílios.
Ele perdeu na hora toda a força de vontade. Ela cheirava a farinha e temperos e,
ao se aproximar, ficava óbvio por que fora escolhida para ilustrar tantas capas de revistas.
A estrutura óssea era perfeita. Os cílios vermelho-dourados, muito longos. Olhos grandes,
de um verde-claro orlado de verde mais escuro. Nariz reto, boca traçada em curva suave

117
que deixava qualquer homem faminto. A pele era incomparável. Foi difícil para ele se
conter, ao lembrar o calor que sentiu na escuridão. O coração disparou.
Espantou-se ao ver nele os sinais de excitação. Parecia sempre imperturbável,
mas apenas escondia o que sentia. De perto, não conseguia esconder tudo.
Extasiada, deu alguns passos à frente e sentiu, deliciada, a imediata reação do
corpo dele.
— Cuidado — disse ele em voz baixa. — A sra. Jewell está estendendo roupa no
quintal.
Mostrou com um sinal de cabeça a janela aberta, de onde se podia vê-la, apesar
da tela.
— A sra. Jewell cantarola — disse ela, sem se abalar. — Vamos ouvir quando ela
chegar.
Ele engoliu em seco. Não conseguiria ouvi-la. As batidas do coração retumbavam
em seus ouvidos.
As mãos dela subiram e puxaram a cabeça dele para si.
— Viver perigosamente — ela sussurrou.
As mãos grandes de Cash a seguraram pela cintura. Ela se encolheu, e as mãos
passaram para os quadris, evitando a região torácica.
— Desculpe — murmurou ele. — Esqueci das costelas.
— Eu também — ela soprou de volta, sorrindo. — Vem, vem, me dê tudo o que
você tem...
— Peste — ele resmungou, inclinando-se.
Ela sorriu sob a força repentina de sua boca na dela. Não mais se sentia intimidada
por ele. A lembrança do contato passado só a fazia querer mais.
A sensação e aquele aroma o enfraqueceram e, ao mesmo tempo, a encorajaram.
Fez um movimento para cima, estremecendo ao sentir dor nas costelas, mas logo se
esqueceu do problema. A boca abriu-se e a língua dele penetrou entre seus lábios,
forçando-os.
— O sentido da coisa — ela sussurrou.
Beijou-a mais intensamente, sentindo o corpo se enrijecer diante do desejo
reprimido.
— É suicídio — ele resumiu.
Cravou-lhe as mãos nas nádegas e trouxe-a para mais perto de si, enquanto
afastava as pernas dela forçando a saia.
— Eu nem tenho o que usar...
— A sra. Jewell atendeu a um caso de roubo na segunda-feira — disse ela com a
respiração entrecortada. — Havia duas caixas de preservativos. Aposto que ela apanhou
uma ou duas e escondeu por aí. Vamos perguntar a ela...
Ele deu uma gargalhada.
— Tippy, pelo amor de Deus, só tenho uma hora de almoço! Ela deu um passo
atrás, com olhar lânguido no rosto afogueado.
— Ainda temos 48 minutos...
Ele se afastou, procurando controlar a respiração.
— Não posso lhe dar tudo o que merece em 48 minutos! — disse com voz
entrecortada.
A resposta foi um olhar exasperado.
— Estou aqui lhe oferecendo tudo o que tenho...
Ele sorriu lentamente.
— Maravilhas acontecem quando menos se espera. Você vai ver, na semana que
vem — ele acrescentou.
— O que vai acontecer na semana que vem? — perguntou ela na mesma hora.
— Coisas surpreendentes — ele prometeu. — Não vou contar agora. Vai ter de

118
esperar para ver. Mas vai gostar de pelo menos uma delas. Eu garanto.
Ela sorriu com meiguice.
— Está certo. Se você falou. Sente-se que eu vou trazer a comida.
— Como é que você soube que eu gosto de atum ao forno? — Ele pensou em voz
alta quando ela se sentou à mesa da cozinha.
— A sra. Jewell me contou — respondeu ela. — É uma enciclopédia de
informações sobre você. Sabia que ela já foi xerife-adjunta? E que sabe atirar?
Deu um sorriso sem jeito.
— Ela não entregou você. Eu vi a arma no banheiro e perguntei. Disse que você
preferia que eu não soubesse o currículo dela. Vai me proteger, para o caso de os
comparsas de Sam virem atrás de mim, certo? — ela comentou com ar casual.
— É isso mesmo — ele admitiu.
— Que bom que você se preocupa comigo — disse ela, colocando a comida na
mesa e servindo-o de café.
— Obrigado — disse ele em voz baixa.
Levou a boca até ele e beijou-a delicadamente.
— Enquanto estiver aqui, sou responsável por você — disse a ela.— Sei que,
quase sempre, pode cuidar de si mesma, é uma mulher feita. Mas esta ameaça é demais
para resolver sozinha. Não vou deixar que algo aconteça com você.
Sentiu-se envolvida por aquelas palavras. O coração acelerou, e ela sorriu com
meiguice, diante da ternura nos olhos escuros à sua frente.
Ele notou e teve medo. Afastou-a de si, de modo delicado, mas firme.
— Não é para ficar falando em anel de noivado, só porque me preocupo com você
— ele advertiu, antes que ela tivesse tempo de abrir a boca.
Ela suspirou.
— Estraga-prazer. Foi você que falou em surpresa.
Ele riu.
— Fui. E você não vai ler meus pensamentos desta vez — ele avisou.
Ela apenas sorriu. Tinha uma vaga noção do que ocorria na prefeitura, pois a sra.
Jewell lhe contava alguma coisa. Havia muita conversa em torno da filha do senador
Merrill ter-se metido em confusão, além dos boatos sobre a possibilidade de dois
vereadores e o prefeito estarem envolvidos no caso. E mais falatório sobre as próximas
eleições estaduais e a eleição municipal extraordinária para eleger o novo prefeito.
— Espero que o sr. Ballenger ganhe a eleição para o Senado — disse ela,
mudando de assunto de maneira inesperada.
— Acho que vai ganhar. Você vem comigo à audiência disciplinar de segunda-feira
à noite, não vem?
Perguntou sem querer, pois precisava de fato do apoio moral dela. Mas jamais o
admitiria.
— Claro que vou — respondeu ela sem hesitar. — Gostaria que Rory estivesse
aqui também.
Ele não disse mais uma palavra. Fez o possível para que ela não percebesse seu
sorriso furtivo.
Mas ela notou e ficou imaginando o que estaria acontecendo.

A comunidade ficou chocada, dois dias depois, com a notícia de que a filha de
Merrill, candidato ao Senado, estava presa por tentativa de incêndio criminoso. Ela era a
crítica mais feroz de Calhoun Ballenger, em benefício do próprio pai, e já tivera problemas
por difamá-lo na televisão. Agora, mandara um dos capangas da família pôr fogo na casa
de Libby Collins, namorada de Jordan Powell. A audiência para estabelecimento da fiança
estava marcada para a manhã da segunda-feira seguinte, mesmo dia da sessão da

119
Câmara dos Vereadores e da audiência disciplinar dos agentes de Cash. O incendiário
abriu o bico, e haveria outras acusações contra a srta. Merrill, era o que se dizia.
Cash deixara escapar alguns detalhes, dos bastidores da política, sobre o caso.
Tippy andava muito curiosa; ele, cheio de segredos. Porém, no domingo à tarde, ele ficou
fora de casa por uma hora e voltou com Rory.
— Não acredito! -— exclamou Tippy, dando um abraço apertado no irmão. — Mas
que surpresa!
— Eu também nem acredito. Cash falou que você estava triste, precisando de
carinho, então ele conversou com o comandante para me deixar fazer as provas mais
cedo. Vou ficar aqui quanto tempo eu puder — ele acrescentou, sacudindo as
sobrancelhas para Cash.
Cash deu uma risadinha.
— Pode ficar enquanto Tippy estiver aqui — ele prometeu, sem acrescentar que
tinha preparado mais coisas a esse respeito.
Tippy, no entanto, tomou a frase ao pé da letra. Curava-se rapidamente. Logo
poderia voltar a trabalhar, assim que tivesse notícias de Joel. Mas ainda não as tivera.
Imaginava se Cash não estaria cansado dela.

Tippy e Rory se divertiram passeando pelo condado com Cash, naquela tarde de
domingo, apreciando a paisagem. Nas árvores, folhas verdes brotavam e algumas flores
silvestres já apareciam. Cash teve vontade de passar pelo sítio de Dunn para Tippy ver
Christabel e os bebês. Judd saíra para resolver umas coisas, mas Christabel e os bebês
estavam em casa.
Tippy ficou constrangida, de início, na casa que lhe trazia tantas lembranças do
tempo em que lá estivera fazendo o filme. Fora um episódio marcante de sua vida, do
qual se envergonhava. Não fora boa companhia, havia sido cruel com Christabel por
causa de Judd. Mas tudo mudara, nos últimos meses. Olhou rapidamente para Cash com
ar possessivo, com cuidado para ele não perceber. Mas Christabel notou e sorriu para
ela.
O rosto de Tippy ficou vermelho. Cash percebeu, achou graça e inclinou-se para
beijar Christabel no rosto.Tippy teve que disfarçar o ciúme. Cash não lhe pertencia. Tinha
que se lembrar disso. Seria isso que ele tentava lhe dizer, ao beijar o rosto bonito de
Christabel? Toda a sua insegurança veio à tona. Cruzou os braços no peito e fingiu
cordialidade.
Rory ficou encantado com os bebês.
— São tão pequenos! — exclamou ele, deixando Jared agarrar seu dedo com a
mãozinha. — São tão fofos!
Tippy e Cash riam da animação dele.
— Crescem como capim — disse Christabel a todos.
Mas sorria agora para Tippy com o mesmo calor que demonstrou para Cash.
Cash pegou Jessamina em seus braços fortes e balbuciava para ela com olhos
carinhosos. Doeu em Tippy vê-lo assim, ao ter idéia de como seria com os próprios filhos.
Era uma dor imensa.
— Que crianças lindas — disse a Crissy, sorrindo para disfarçar a mágoa.
Crissy apanhou Jared.
— Quer segurá-lo no colo? — indagou ela com gentileza.
O olhar de Tippy respondeu à pergunta. Por impulso, tomou o menino nos braços e
sorriu para ele, que sorriu de volta. Arquejou, com o rosto radiante.
— Olhem só! — exclamou ela.
— Os dois estão rindo ao mesmo tempo — disse Crissy orgulhosamente. — Eles
só têm seis meses.

120
— Jared é uma gracinha — ela afirmou, olhando o menino com uma expressão
que tocou o coração de Cash.
Ele ainda não se permitira pensar em algo permanente com ela. Era modelo, atriz,
acostumada à fama e aos holofotes. No entanto, nas últimas semanas, mesclara-se com
Jacobsville e passara a fazer parte da vida dele. Dava-se bem com todo mundo. Até as
reportagens dos jornais sensacionalistas não a afetavam muito. Mas ele tinha planejado
uma reportagem, para a semana seguinte, depois de longa conversa com a médica do
lugar, Lou Coltrain, que se tornara sua aliada. Pretendia limpar o nome de Tippy em uma
tacada e fazer com que os jornais engolissem as ofensas. Fazia idéia de como Tippy iria
reagir. Tinha grande esperança em relação aos dois.
Era a pessoa certa, com um bebê nos braços. Estava radiante, mas com uma
ponta de tristeza. Ela desviou o olhar da criança e encontrou os olhos dele. Foi como
olhar-se em um espelho.
Crissy teve vontade de sugerir que tivessem outro bebê, mas entendeu que era
cedo demais. Ela e Tippy ainda eram reticentes uma com a outra, apesar do tom
amigável. Sabia que Tippy a considerava, mesmo involuntariamente, uma oponente,
devido ao que ocorrera no passado. Mas quando Tippy olhou para Cash, Crissy
entendeu, no mesmo instante, que os dias de rivalidade estavam ultrapassados. Se
alguma vez duas pessoas viveram uma paixão, elas eram Cash e Tippy.
— Como vai o trabalho para a audiência? — perguntou Crissy a Cash.
Ele sorriu.
— Na verdade, vai muito bem.
— E amanhã à noite, não é? — Crissy continuou, apanhando Jared com Tippy.
— Você podia aparecer lá — Cash falou. — Vai ser um momento histórico. Tenho
algumas cartas na manga.
— Nesse caso... — respondeu Crissy, abrindo um sorriso largo. — E Judd vai
comigo!

De fato, foram à prefeitura e ficaram com Tippy e Rory na porta, esperando para
entrar.
Tippy sorriu para Crissy e Judd. Fizera um esforço extra na hora da maquiagem, e
não aparecia sequer uma cicatriz ou hematoma naquela pele perfeita. Os cabelos
estavam presos em uma longa trança, e usava uma calça comprida de seda verde-
esmeralda.
— Estou louco para ver Cash em ação — Rory sussurrou para eles e depois se
virou para quem estava mais perto, um garoto mais ou menos da sua idade. — Ele disse
que vai ser uma aula de política!
— Acho que muita gente vai aprender hoje à noite — murmurou Tippy em
resposta, exultante. — Cash tem uma surpresa para o prefeito e os vereadores.
— Eu sei — Judd replicou, com um risinho. — Assim se constroem os mitos, eu
não perderia isso por nada no mundo.
— Nem eu! — Tippy deu uma risada.
Entrou no prédio levando Rory e o amigo à frente, parando para trocar algumas
palavras com Jordan Powell e Libby Collins que, aparentemente, estavam juntos.
Andaram ligando Jordan à filha do senador Merrill, mas Libby parecia agora estar na
dianteira.
Tippy e Rory conseguiram se sentar, mas havia pessoas de pé, lado a lado, nas
laterais e nos fundos do auditório.
Cash estava sentado à mesa, de frente para o prefeito e os vereadores, com os
dois agentes. O procurador do município estava em uma mesa, do outro lado, e tinha um
ar irritado e pouco à vontade. A parede era decorada com um enorme painel, uma vista

121
aérea de Jacobsville, além de fotos de integrantes do departamento de polícia e do corpo
de bombeiros. Havia ainda uma grande máquina de café e um balcão de lanches, bem
como dois telefones públicos.
O prefeito e dois vereadores conversavam em voz baixa, com agitação, quando se
abriu a passagem central entre os assentos e os visitantes rapidamente a preencheram.
O prefeito ficou pálido.
Alto e moreno, Simon Hart, o procurador-geral do estado e seus quatro irmãos
caminharam entre as fileiras junto com o procurador do condado, dois senadores e o que
parecia um grupo de jornalistas, dois deles portando câmeras de televisão.
Simon apertou a mão do prefeito, que cochichou alguma coisa, com insistência.
A assistência foi chamada à atenção.
— Isto é totalmente irregular — o prefeito protestou, pondo-se de pé. — Estamos
em uma audiência disciplinar.
— Este é um tribunal informal — Cash replicou, levantando-se também. — Meus
agentes, no exercício de suas atribuições, efetuaram a prisão de um político, por dirigir
sob efeito do álcool. Eles vêm sendo perseguidos pelo senhor, prefeito, e por dois
vereadores. O senhor tem ligações com o político em questão. O fato de o senhor não se
ter considerado impedido para presidir esta audiência, por conflito de interesses, faz dela
um assunto de interesse público.
— Exatamente — Simon Hart replicou. — Estou autorizado pelo governador a
informá-lo de que o senhor está sendo submetido a uma investigação sobre sua conduta
por parte das autoridades estaduais. E as acusações se estendem a todos os senhores
envolvidos nesta perturbação da norma legal.
Os repórteres dispararam as cameras fotográficas. A televisão começou a gravar.
O prefeito tinha o aspecto de alguém que tentava engolir uma melancia.
— Protestei contra esta audiência desde o momento em que foi marcada — disse o
procurador municipal. — Mas os vereadores não me ouviram. Talvez ouçam o senhor!
Calhoun Ballenger levantou-se.
— Certamente vão ouvir os cidadãos de Jacobsville — disse ele, aproximando-se
da mesa em que estava o procurador. Mostrou um envelope volumoso, de papel pardo, e
entregou-o ao advogado da Câmara. — A eleição extraordinária para a prefeitura será
amanhã, quando o prefeito Brady vai enfrentar seu oponente nas urnas. Mas isto é uma
petição, solicitando a substituição dos vereadores Barry e Culver. Tem assinaturas mais
do que suficientes. — Seus olhos escuros fixaram-se nos rostos atordoados dos homens
de bem. — Pela força que tem, creio que o advogado da Câmara terá o direito de
convocar uma eleição extraordinária para substituir essas pessoas.
— De fato, farei isso — o advogado da Câmara concordou friamente. — Já falei
com o secretário de Estado.
Simon Hart assentiu.
— A justiça está comprometida nesta cidade — disse ele em tom seco. — Nenhum
agente de polícia jamais deveria ser penalizado por cumprir seu dever — ele acrescentou,
olhando diretamente para o tenente Carlos Garcia e a agente Dana Hall, que pareciam
estar preocupados, mas orgulhosos.
— Eu não podia mais compactuar com isso — retrucou Cash.
Outro homem adiantou-se, um bombeiro de farda completa. Parou em frente ao
prefeito.
— Sou o chefe Rand, do Corpo de Bombeiros de Jacobsville. Estou autorizado a
falar em nome dos 20 bombeiros de Jacobsville e dos 25 agentes de polícia, assim como
de vários funcionários do município. No interesse deles, estou aqui para dizer que, se
estes dois agentes forem exonerados, ou se o chefe Grier for exonerado, cada um de nós
deixará seu posto, para não mais voltar.
Os vereadores estavam boquiabertos. O prefeito não sabia o que dizer. Nunca

122
houve, na história de Jacobsville, tanta solidariedade entre os funcionários públicos. A
mídia não perdia um detalhe. Cash estava comovido. Virou-se e olhou para Tippy e Rory,
que fizeram para ele um sinal de positivo. Ele engoliu em seco. Com força.
Simon Hart avançou e encarou o prefeito.
— Sua vez.
Ben Brady forçou um sorriso.
— Certamente estes agentes, assim como o chefe Grier, devem permanecer em
seus cargos na nossa cidade — disse ele, quase sem conseguir pronunciar as palavras.
— Não temos a intenção de exonerá-los por terem, como o senhor diz, cumprido seu
dever! Na verdade, quero recomendá-los a sua atenção.
Os agentes relaxaram. E também Cash Grier.
Simon não tinha terminado.
— Temos um outro assunto. Um investigador especial, do meu gabinete, examinou
relatórios sobre o tráfico de entorpecentes, envolvendo um cidadão e dois políticos do
lugar. — Olhou diretamente para o vereador Culver e o prefeito em exercício. — As
acusações serão formalizadas tão logo o caso seja encaminhado ao promotor público do
seu condado.
— Fico no aguardo para mover a ação — disse o promotor com um sorriso gelado.
O prefeito em exercício ficou muito pálido. Via sua carreira política esvair-se. A
eleição extraordinária para escolher o prefeito era no dia seguinte. Ia enfrentar o querido
ex-prefeito Eddie Cane. Depois desta noite, não tinha muitas esperanças de se manter no
cargo. Em uma cidade do tamanho de Jacobsville, todos saberiam das acusações antes
da meia-noite.
— Muito bem — disse ele sem firmeza na voz. — O secretário poderia ler a ata da
última sessão?
Não demorou muito. Em 30 minutos, a Câmara terminou seus trabalhos de rotina e
a sessão foi encerrada. Todos saíram. Judd deu tapinhas nas costas do chefe Grier.
— Parabéns.
Tinha um aspecto estranho.
— Nunca pensei que receberíamos o apoio de tanta gente.
— Você subestima seu valor para a cidade — Judd replicou e sorriu. — Agora você
sente que é um dos nossos?
Cash, na verdade, estava retraído quando Tippy e Rory o cercaram, cada qual de
um lado.
— É — disse com voz embargada. — Sinto que sou daqui — ele completou,
trocando olhares com Tippy, que estava exultante.
Judd apertou a mão dele e levou a sorridente Cassy com ele para a porta. Cash e
Tippy pararam para falar com Jordan Powell e Libby Collins, antes que Rory os
empurrasse para fora, reclamando que estava faminto.

No dia seguinte, o prefeito em exercício, Ben Brady, renunciou ao cargo e deixou a


cidade imediatamente. Na eleição extraordinária para prefeito, Eddie Cane obteve 90 por
cento dos votos e venceu no primeiro turno. Na campanha estadual de indicação para o
Senado, Calhoun Ballenger venceu as primárias do Partido Democrata com tal margem
de diferença que o senador Merrill ficou constrangido e se recusou a conceder entrevistas
para a mídia.
Julie Merrill, por outro lado, saiu da cadeia e fez declarações veementes sobre as
manobras sujas para prejudicar o pai na eleição, indo inclusive à televisão acusar
Calhoun Ballenger.
Mais um escândalo abalou o lugar. A madrasta de Libby Collins foi presa pelo
assassinato por envenenamento do velho sr. Brady, pai de Violet, secretária do advogado

123
Blake Kemp. Afirmavam que ela já envenenara outros homens, mas nada se conseguiu
provar em relação às outras mortes. Nem mesmo a exumação do falecido pai de Libby e
Curt Collins forneceu novas evidências contra ela. O julgamento prometia ser
interessante, da mesma forma que o de Julie Merrill, quando fosse marcado.
Na semana das eleições, Blake Kemp defendeu Julie Merrill em uma ação de
difamação movida por Calhoun Ballenger. Era um aviso do que estava por vir. Ela já
estava em dificuldades com a acusação de incêndio premeditado. Além disso, aos poucos
Cash reunira provas que a ligavam a uma facção do tráfico de drogas. Seu futuro era
sombrio. Mas quando Cash estava pronto para realizar a prisão, Julie Merrill saiu da
cidade e desapareceu.

Capítulo Quatorze

Rory estava feliz por morar com Cash e Tippy. Logo fez amizade com um garoto da
sua idade e que vivia a três casas da que estava, cujo pai era um dos agentes de polícia
de Cash. Os garotos tinham muita afinidade, com destaque para os videogames. Cash
trazia as últimas novidades para Rory, que desfrutava delas em companhia do novo
amigo.
Enquanto isso,Tippy sentia por Cash, a cada dia, um amor mais profundo. Todavia,
desde a chegada de Rory, ele estava reticente. Ela imaginava por que seria. Disse-lhe
que precisava resolver uma pendência, que ela poderia ou não aprovar e que não
contaria o que era antes do tempo.
Ela fez pipoca para eles verem um filme de mercenários, pelo qual Rory estava
curiosíssimo. Cash agüentou até o fim, calado, e se desculpou por ir dormir mais cedo,
pois estava cansado.
— Você acha que ele ficou chateado com o filme? — indagou Rory à irmã.
Ela encolheu os ombros, com cuidado para não sentir dor.
— Não sei — ela admitiu. — Pode ser. Ele nunca fala sobre o trabalho, nem sobre
a vida passada. É cheio de segredos.
— Um dia ele vai contar — disse o garoto de modo confiante.
— Acha mesmo?
Sorriu, mas tinha suas dúvidas. Ele não se abrira com ela, não inteiramente, desde
o dia em que deixara escapar as coisas que a ex-mulher fizera. Era divertido, afetuoso,
bom. Mas tão distante quanto a lua. Esta noite foi preocupante. Algo o aborrecia
seriamente. Tippy gostaria que lhe contasse o que era.

Mais tarde, na mesma noite, de madrugada, Tippy despertou com um som


desconhecido. Cash gritava. Ela ouvia a voz profunda ecoar no corredor. Era
atormentada, rouca, confusa. Levou um minuto para se encontrar e ter certeza de que
estava acordada. Sentou-se na cama e escutou. Talvez estivesse sonhando. Mas não —
ouviu de novo aqueles berros terríveis.
Levantou-se, em sua camisola longa de seda azul, e saiu descalça pelo corredor,
os cabelos em glorioso desalinho, contornando o rosto ainda corado de sono. Empurrou a

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porta do quarto de Cash e foi até a cama. Depois de um instante, percebeu que não
estava sozinha. Do outro lado da cama, Rory, de pé, oscilava.
Trocaram olhares de preocupação. Antes que dissessem alguma coisa, Cash se
debateu sob as cobertas.
— Não posso... atirar nele! Pelo amor de Deus, é um menino! Não! Não, filho, não
faça isso... não me faça... não!
— Mana, não sei se devemos acordá-lo — Rory ponderou quando ela se inclinou
instintivamente sobre o homem em estado lastimável. — Pode ser perigoso.
— Perigoso? — ela repetiu com voz hesitante.
— Muitos soldados e policiais dormem com a pistola do lado — ele lembrou.
Pensou na enorme tragédia em que aquilo poderia se transformar, se o acordasse
e ele, pensando que era um inimigo, atirasse nela.
— Não! — Cash grunhiu, arrancando as cobertas.
Usava um short largo de seda preta e nada mais. O peito coberto de pêlo estava
molhado de suor, assim como os cabelos escuros, ligeiramente ondulados. Debatia-se
ferozmente.
— Eu o matei. Danem-se, por me obrigar a dar esse tiro, danem-se vocês todos!
Me tire daqui... mande parar... Deus do céu, mande parar!
Tippy sentou-se ao lado dele na cama e colocou delicadamente a mão aberta no
centro do peito.
— Cash — ela sussurrou com urgência na voz. — Cash, acorde!
— Eu... não vou... fazer isso... nunca mais. Respirava com ruído.
— Cash!
Pressionou mais o peito.
Em uma fração de segundo, ela estava deitada de costas, com um antebraço rígido
como aço forçando-lhe a garganta.
— Cash! — Rory gritou. — É Tippy! É Tippy!
Ele despertou imediatamente. O olhar, vidrado e selvagem, subitamente se
concentrou em sua refém. Ficou sem ar ao perceber o que poderia ter feito com ela...
—Você teve... um pesadelo — murmurou ela, com a respiração entrecortada.
Levou as mãos ao pescoço avermelhado.
— Falei para ela não fazer isso — Rory defendeu-a.
Cash recuperou o fôlego aos poucos.
— Machuquei você? — indagou, com voz tensa.
— Não. Só fiquei com medo — disse ela, sentando-se também. Esfregou a
garganta. — Você teve um pesadelo — ela completou em tom seco.
Ele suspirou, passando o olhar de Rory para ela.
— Foi uma loucura — disse ele aos dois, sem expressão na voz e sem se
desculpar. — Vejam isto aqui. — Apontou uma 45 automática, pendurada pelo coldre na
cabeceira da cama. — Está carregada. Eu dormi desse jeito a maior parte da minha vida
adulta. Podia ter atirado em você!
— Não é razoável dormir com uma arma carregada quando se tem crianças em
casa — Tippy lembrou.
— Não sou mais criança — Rory protestou.
— Ele tem razão — Cash replicou.
— Eu também tenho — murmurou Tippy.
Cash soltou o ar, abriu o pente e tirou a única bala que havia. Colocou tudo na
gaveta da mesa-de-cabeceira.
— Aqui — ele resmungou. — Amanhã, vou arranjar um estojo e uma trava para o
gatilho. E vamos ter um trabalhão se homens armados pularem a janela numa noite
escura!
— Está esperando que venham? — Tippy quis saber.

125
— Estou sempre esperando por eles — disse Cash. — Tenho inimigos.
— Escute, nós temos uma força policial espetacular em Jacobsville — ela
argumentou.
— Não estou brincando, Tippy.
Passou as mãos pelos cabelos úmidos e inclinou-se para a frente, apoiando os
cotovelos nos joelhos. Estava abatido pelo medo. Habituado a usar armas, sempre as
tivera por perto. Mas acabava de tomar consciência de como era perigoso ter uma arma
carregada no quarto. Um erro que não tornaria a cometer.
— Quer beber alguma coisa? — perguntou Rory. — Vou tomar uma Coca-Cola.
— Não. Não quero — disse Cash.
Tippy apenas balançou a cabeça.
— Volto daqui a pouco — disse Rory e saiu do quarto.
— Devia estar na cama — Cash comentou num tom pesado.
— Ele estava na cama, só que ouvimos você gritar a plenos pulmões — Tippy
replicou. Afastou-se na cama e sentou-se sobre as pernas dobradas. — Fale comigo,
Grier — disse ela com meiguice. —Tire isso do seu peito. Vai se sentir melhor.
Ele ergueu-se, recostou-se nos travesseiros e olhou para o vazio, na direção dela,
sob a luz fraca de um pequeno abajur.
— Vamos — ela incentivou. — Você sabe de todos os meus segredos.
Era um bom argumento. Mas ele vacilava. Nunca esquecera o que a esposa tinha
feito.
Ela estendeu a mão e tocou de leve o braço nu e musculoso. O peito era cheio de
pêlos escuros. Deliciava-se em olhar para ele, embora procurasse não demonstrá-lo.
— Não julgo as pessoas. Não posso, com o meu passado. E não vou esperar você
na porta, de mala na mão, seja o que for que tiver para me contar — ela completou com
firmeza.
— Foi o que eu pensei uma vez, lá atrás — ele comentou.
— Não estou aqui por causa do seu dinheiro — disse ela bruscamente.
O queixo dele se crispou.
— Se você está insinuando...
— Estou reconhecendo um fato — ela interrompeu. — Mulher que ama não faz o
que ela fez. Não se deixa uma pessoa que está sofrendo, nem se vira as costas para
alguém por causa do que ele fez um dia. O amor verdadeiro é incondicional.
— Como é que você sabe? — disse ele com voz arrastada e tom sarcástico.
Os olhos dela pousaram no rosto duro, com cicatrizes desbotadas. Tippy sorriu.
— Na verdade, sei, sim — disse ela com suavidade.
Espalmou as mãos macias nos músculos tensos do peito dele.
Ele a compreendeu mal. Achou que se referia a Cullen, o homem com quem
vivera. Desviou o olhar e procurou manter a respiração estável. O pesadelo, aquele tão
conhecido, tirou-o do sério por um breve período.
— Você não sabe das coisas com que eu tenho de conviver.
— Você matou um menino.
Dardejou para ela um olhar incrédulo.
— Mas, que diabo, como você pode saber?
— Você disse isso aos gritos — disse ela com simplicidade. — Eu assisto ao jornal
da noite, como todo mundo. Sei perfeitamente que, nos países do Terceiro Mundo, as
milícias paralelas têm muitos garotos que sabem usar um AK-47, até uma faca do Rambo,
se tiverem.
Ficou sério. Ela não estava horrorizada. Não estava sequer chocada.
— Cullen lutou no Vietnã, Cash — disse ela em tom suave. — Contava coisas que
ninguém diria que ele já tinha visto. Era tão sofisticado, tão culto, mas também viu
crianças morrendo. Sei de coisas sobre a guerra que Rory nem pode imaginar.

126
Ele relaxou um pouco.
— Lutei no Oriente Médio. Na América do Sul. Nas selvas da Africa. Fiz isso por
muito dinheiro. Mas aprendi que se paga um preço por esse tipo de lucro fácil. Ainda
estou pagando.
Esticou-se até ele para tocar-lhe a boca com a ponta dos dedos.
— Você tem pesadelos. Eu também. Na verdade — ela continuou quando um rosto
pálido esgueirou-se pela porta. — Rory também. Não é? — perguntou ela ao irmãozinho.
O garoto entrou no quarto e fechou a porta.
— Sam me batia tanto que eu quase morri — ele concordou, subindo na cama, ao
lado de Cash. — Às vezes, acordo gritando no meio da noite. Ela também — ele
acrescentou, dirigindo-se à irmã.
Cash soltou a respiração que prendera pouco antes.
— E eu também — ele admitiu com calma.
— Mas hoje você não vai mais ter pesadelo — disse Rory, entrando embaixo das
cobertas. — Boa noite, mana.
Não era o momento para forçar respostas de um relutante Cash. Acomodou o
rosto, como em um travesseiro, sobre o peito dele. Sorriu e suspirou docemente,
fechando os olhos. Sentia-se como se tivesse chegado em casa.
— Boa noite, Rory.
— Boa noite, Cash — Rory acrescentou com voz sonolenta.
— Boa noite, Cash — Tippy repetiu e bocejou.
Era cedo ainda, madrugada. O vento soprava lá fora e começava a chover. Pensou
distraidamente que grande bênção era ter um lugar quente e seco para dormir. As
pessoas acham isso muito natural. Quando jovem, passou muitas noites sozinha e
amedrontada nas ruas, até Cullen encontrá-la.
Cash ficou atordoado ao sentir o suave calor de dois corpos a seu lado, na
escuridão. Sentiu-se seguro. Sentiu-se aquecido. Chovia a cântaros. O vento assoviava
de tão frio. Acomodou-se e deixou escapar um suspiro confuso. Quis protestar. Não
precisava de companhia nem de consolo. Era duro na queda. Podia cuidar de si mesmo e
de seus pesadelos.
Depois de um momento, o doce peso do corpo de Tippy, de um lado, e de Rory, do
outro, tirou toda a vontade de reclamar. Que diabo. Fechou os olhos. E dormiu.

No dia seguinte, quando se levantou para ir trabalhar, Cash não comentou que
tivera dois companheiros durante a noite. Por vários dias, ignorou o fato e ocupou o
tempo ensinando Rory a fazer uma criação de minhocas e até levando-o para pescar.
Tippy não foi convidada. Mas, realmente, não se importou. Gostava de ver Rory bastante
feliz.
Certa manhã, enquanto Rory ainda estava dormindo e Cash saíra sem se despedir,
Tippy sorriu ao ouvir um leve ruído na porta da cozinha. A sra. Jewell saíra para fazer
compras, mas Cash devia ter esquecido algo, pensou ao colocar no fogão a frigideira de
ferro para preparar ovos.
Ouviu a porta de tela se abrir, mas não ouviu chave entrando na fechadura. Em vez
disso, a maçaneta foi sacudida com força.
Com o coração aos saltos, e imaginando seqüestradores atrás dela, quase entrou
em pânico. Com a rotina das últimas semanas, mal se lembrava de que corria perigo. Mas
agora todos os seus instintos se aguçaram. Ouviu um chute na porta, como se alguém, do
lado de fora, tentasse arrombá-la.
Agarrou o telefone, desajeitadamente, e discou 199 com mãos trêmulas, sem tirar
os olhos da porta de madeira.
— Chefe Grier? — A telefonista do 199 atendeu com voz surpresa.

127
— É Tippy Moore — retrucou ela. — Alguém está tentando arrombar a porta. Por
favor, mande alguém para cá o mais rápido possível.
— Vou mandar uma patrulha agora mesmo, srta. Moore. Por favor, continue na
linha... srta. Moore?
Tippy largou o telefone e agora segurava a frigideira com ambas as mãos já que a
porta começava a se separar do batente. Fora vítima durante a vida toda, de um jeito ou
de outro. Primeiro, vítima de Sam Stanton, depois, de sujeitinhos agressivos, e, ainda, dos
seqüestradores que quase lhe tiraram a vida. Estava cansada de ser vítima.
Ficou do lado da porta, de modo que não fosse atingida quando o assaltante
entrasse. O coração disparou, estava com medo, mas não haveria de se render. Agora
não. Esse homem pagaria pelos pecados de todos os homens que a atacaram. Firmou a
mão no cabo frio da frigideira. Era pesada e dava confiança.
O barulho aumentou, à medida que a pessoa do lado de fora começou a jogar o
peso do corpo de encontro à porta. Começava a ceder. Era velha e frágil. Mais dois
golpes fortes e caiu com as dobradiças e tudo. Um homem alto e magro, de calças jeans
e camisa de malha avançou pela cozinha, de arma na mão.
Finalmente, um alvo! Tippy bateu com a frigideira com toda a força. A arma voou
longe e o homem deu um grito estridente.
Ironicamente, a dor dele resultou em mais força.
— Pensa que vai arrombar minha casa? — ela vociferou, acertando a frigideira no
ombro dele, que tornou a gritar de dor. Ergueu-a novamente e bateu na rótula. — Me
atacar armado? Eu acabo com você!
Agora ele urrava, pulando numa perna só, segurando a mão e protegendo o
ombro, enquanto tentava passar de volta pelo batente despedaçado.
Tippy continuou. Estava furiosa. Esse homem invadira sua casa, ameaçando-a.
Mesmo que fosse parar na cadeia por agressão, ele havia de ser castigado por tentar
matá-la!
— Pode dizer a Sam Stanton que ele é veneno de rato! — ela gritou para ele,
batendo com a frigideira pesada no mesmo ombro já atingido. Ele tornou a berrar e
tropeçou ao tentar se desviar dela. — Não vou me esconder no armário enquanto ele
manda gentalha do seu tipo para calar minha boca antes do julgamento!
— Socorro! — O assaltante gritou, caindo de joelhos e se arrastando até a porta.
Tippy já estava com a frigideira levantada para outro golpe quando soaram as
sirenes pela ruazinha e três carros de polícia — um deles com Cash dentro — cantaram
os pneus no pequeno estacionamento junto à estrada. Segundos mais tarde, agentes
fardados, com armas em posição de tiro, tomaram a casa.
— De joelhos e mãos na cabeça. Agora! — Cash gritou para o homem com a
pistola no nível dele.
Pretendia falar com voz calma. O coração quase lhe saía pela boca. Teve medo de
chegar tarde demais para salvar Tippy.
— Não posso... levantar os braços — o homem soluçou. — Ela me agrediu! Tentou
me matar! Exijo proteção!
Rory entrou na cozinha e foi até os degraus da entrada dos fundos, esfregando os
olhos, ainda vestido com a calça do pijama. Assustou-se ao ver tantos carros de polícia.
— O que está acontecendo? — perguntou a Tippy, chamando a atenção para ela.
Os agentes de polícia, Cash inclusive, de repente repararam que ela estava ali
também. Segurava uma enorme frigideira de ferro com as mãos magras. Os cabelos de
fogo refulgiam como uma auréola em torno do rosto avermelhado. Ainda vestia o pijama
de cetim verde e o penhoar solto, e estava tão linda que, por um instante, os policiais
ficaram simplesmente deslumbrados.
— Algemas nele! — Cash gritou para dois agentes, que saíram do transe para
imobilizar o suspeito.

128
Tippy estava ofegante. Os olhos verdes ainda flamejavam de ódio. Desceu os
degraus e foi em direção ao assaltante.
Ele gritou:
— Me salvem! Eu conto tudo! Me tirem de perto dela.
A esta altura, os vizinhos dos dois lados da rua já estavam nos jardins, vendo com
surpresa a inesperada cena de ação que quebrava a monotonia daquela manhã de
segunda-feira. Uma das senhoras mais idosas dava risadas abertamente.
— Tippy? — Cash indagou com delicadeza, indo em direção a ela. — Você está
bem, minha querida?
Ela concordou com a cabeça, sem fôlego diante do carinho e da preocupação.
Baixou a frigideira.
— Achei que era você, até que ele sacudiu... a maçaneta e arrombou a porta. —
Inspirou profundamente, de olhos fixos no agressor, que era levado para um dos carros
da polícia.
Cash ainda estava voltando à respiração normal. Guardou o revólver de serviço no
coldre às cegas, com os olhos presos no rosto dela.
— Tem certeza de que ele não machucou você?
Ela deu um sorriso fraco.
— Acho que foi o contrário. Fiquei doida de raiva quando vi a arma na mão dele —
ela admitiu.
Cash se exaltou.
— Arma?
Ela assentiu.
— Está no chão da cozinha. Quando bati, caiu da mão dele. — Tippy oscilou
ligeiramente. — Estou me sentindo mal.
— Não deixe que eles vejam — disse ele no mesmo instante, segurando-a pelo
cotovelo. — Vai atrapalhar sua imagem.
Puxou o ar para respirar.
— Estou bem — ela sussurrou. — Só não me deixe cair.
— De jeito nenhum — ele garantiu.
Ela se virou para os agentes reunidos ali.
— Obrigada, rapazes — disse ela com aquela voz calma, bonita. Sorriu, e eles a
olharam extasiados. — A pistola dele está no chão da cozinha. Acho que ia atirar em mim.
— Estava armado? — perguntou um jovem agente, pasmo.
Ela concordou com a cabeça.
— Para mim era uma 45 — ela acrescentou.
— Vou recolher. Passe-me um saco plástico da perícia, Harry, e chame nosso
perito. Sei que hoje ele está de folga — Cash completou, quando o jovem agente pareceu
relutar. — Ele não vai se importar. Pode acreditar.
— Claro — concordou no mesmo momento. — Felizmente está passando bem,
srta. Moore — ele acrescentou com um sorriso.
Ela sorriu para ele. Os outros agentes ainda estavam olhando.
— Você bateu nele com a frigideira? — Rory procurava se inteirar da situação. —
Meu Deus, como você foi corajosa! — ele acrescentou. — Vou ligar para o Jake e contar
a ele!
Foi para a sala de estar.
— Venha — disse Cash a Tippy, passando o braço na cintura dela. — Eu levo a
frigideira para você, querida — ele sussurrou com um sorriso malicioso. — Você não pode
fazer esforço.
Ela deu uma gargalhada, entregando-a.
— Vai me prender por agressão? — murmurou ela.
— Depende. Está pretendendo me agredir?

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— Na primeira oportunidade — ela replicou, em tom de brincadeira.
Entrou com ela, fez uma expressão de raiva diante da porta e do batente em
pedaços. A raiva aumentou ainda mais quando viu a 45 automática no chão. Imaginou as
piores situações. Ele e seus homens nunca chegariam a tempo de salvá-la, apesar de
toda a pressa. Se não fosse aquela frigideira...
Puxou-a para junto de si e beijou-a com desespero. Tippy agarrou-se a ele,
correspondendo ao beijo ardente. Ele era paixão pura. Ela o sentiu até os ossos. As
pernas tremeram, na mistura do excitamento com o medo retardado.
— Ele podia ter matado você — ele insistiu, e a boca deslizou pelo pescoço
sedoso.
Um arrepio percorreu o corpo forte dele.
— Dane-se ele!
Ela passou os braços na cintura rija e recostou o rosto na camisa dele.
— Não senti medo na hora — disse ela como se estivesse exausta. — Acho que
você apagou isso de mim.
— É o que me parece também — veio da porta uma voz arrastada e divertida.
Ela espiou por cima do ombro de Cash e viu Judd Dun entrando na sala.
Cash olhou-o de relance e sorriu.
— Cuidou dele sozinha com isto aqui — Cash levantou a frigideira de ferro com a
mão que estava livre. — Quando chegamos, ele estava fugindo dela e pedindo socorro.
Judd piscou os olhos e deu uma gargalhada.
— Não pode ser.
— Os vizinhos vão falar nisso durante semanas — Cash suspirou, olhando dentro
dos olhos meigos de Tippy. — Rory está na sala, ligando para os amigos e contando
vantagem sobre a irmã. A bonita e famosa srta. Moore espanta um assassino com uma
frigideira de ferro fundido.
— Não preparei os ovos — murmurou ela. — Tinha acabado de colocar a frigideira
no fogão, quando ele apareceu. Você acha que ele faz parte do bando de Sam Stanton?
— ela interrogou. — Aquele que escapou em Nova York?
— Provavelmente — Cash replicou. — Mas parecia disposto a confessar tudo há
cinco minutos, se eu o tirasse de perto dela — ele completou com uma risadinha.
— Se eu não tomar meu café agora, ele vai precisar ser salvo — disse ela.
Afastou-se de Cash e recuperou a frigideira. — Alguém quer ovos? — perguntou ela com
indiferença e voltou para o fogão, enquanto os dois a olhavam com puro deleite.

Tippy preparou o jantar para os três, apesar dos protestos de Cash. Sentia que ela
precisava descansar, depois da penosa experiência da manhã, e se ofereceu para levá-
los a um restaurante. Ela não permitiu. Precisava se manter ocupada, disse a ele. Não
adiantava ficar remoendo uma coisa que já tinha passado.
— Ela é assim — disse Rory a Cash com um sorriso forçado, lançando à irmã um
olhar provocativo. — Nunca reclama, por pior que seja a situação.
— Já reparei — retrucou Cash.
O último pedaço do seu bife, ele o fez descer com café. Ainda refletia sobre a
facilidade com que o terceiro seqüestrador chegara até a casa, passando pela cidade,
sem despertar suspeitas. Fechou a cara para o café, como se fosse o responsável por
todos os seus problemas.
— Está fraco demais? — perguntou Tippy imediatamente.
Olhou-a de relance.
— O quê? O café? — Cash levou-o à boca. — Não, está perfeito.
— Você deve estar zangado porque o homem entrou... — disse ela.
A cara feia de Cash virou uma tempestade.

130
— É bom você ir se acostumando — disse Rory em tom natural. — Ela lê a mente.
— Já sei — disse Cash, e os lábios traçaram uma linha fina.
Logo notou que estava bancando o difícil, quando era ela quem precisava ser
confortada.
— Desculpe — ele acrescentou.
Ela apenas sorriu.
— Tudo bem — Tippy replicou. — Eu é que devia pedir desculpas. Não queria ser
um estorvo.
— Você só lê as mentes — Cash encerrou por ela.
— Só a minha e a sua — Rory contou. — Não consegue com as outras pessoas.
Cash ficou imóvel.
— Não consegue?
Rory sacudiu a cabeça e terminou o purê de batatas.
— Tenta, mas nunca funciona.
Aquilo fazia uma enorme diferença. Como se ele e Rory fossem uma parte dela.
Nunca sentira isso antes, nem mesmo durante o breve casamento.
Incomodava-o, de fato, o medo que sentiu ao saber que um assaltante estava
dentro de casa, que Tippy estava em perigo e que ele não o previra. Nos poucos minutos
que levou para se conscientizar do que ocorria, passara o diabo imaginando o que
poderia acontecer com ela. Fora impotente, e não gostava disso. Pior ainda, o temor que
sentia pela segurança dela era diferente de qualquer outro que sentira antes. Já era parte
dele, parte da sua vida. Se a perdesse...
— Quer sorvete? — perguntou Tippy para distraí-lo. — Temos de chocolate.
— Não ligo para sobremesas.
— Nem eu — Rory admitiu. — Foi um dia cansativo. — Levantou-se, pedindo
licença com formalidade, e deu a volta na mesa para abraçar a irmã. — Fico feliz por você
estar passando bem — disse ele em voz baixa. Fechou os olhos. — Você é tudo que eu
tenho.
— Que mentira — disse Cash com calma. — Você me tem também.
Rory ergueu a cabeça e olhou para o outro com ligeira surpresa. Nas últimas
semanas, achou que estava sobrando, que dava trabalho. Mas Cash sorria para ele.
Rory sorriu timidamente.
— Obrigado. Isso tem ida e volta — ele completou. — Se eu pudesse, salvaria
você.
A expressão de Cash era de curiosidade, de afeto e entrosamento, e silencioso
orgulho. Sorriu de volta. — Vou me lembrar disso.
— Vou ver o filme novo de aventura que você trouxe, tudo bem? — disse Rory a
Cash.
— Claro. Vá em frente. Hoje não há muito o que ver na televisão.
— Obrigado!
Saiu correndo e deixou Tippy e Cash sozinhos à mesa. Ele brincava com a xícara
vazia.
— Quer mais? — perguntou ela, reparando na repetição do movimento.
— Acho que vou tomar mais uma xícara — ele concordou. Levantou-se para pegar
o café. Mas, ao colocá-lo diante dele, segurou sua mão e sentou-a delicadamente no colo.
— Quando entrei para o Exército, na verdade, não estava pensando em seguir
carreira — disse ele com calma, enquanto a acomodava com a cabeça em seu ombro e
uma das mãos na dele. — Lá eu terminei a faculdade. Mas, nesse meio tempo, meu
sargento reparou que eu nunca falhava no estande de tiro. Então, me recomendou para
uma unidade especial, do serviço secreto. Recebi uma tarefa e cumpri. — A mão apertou
a dela. — Não posso entrar em detalhes. A maior parte das coisas que fiz é segredo de
Estado. Basta dizer que, na função, eu tinha de matar.

131
Ela não se mexeu nem falou. Tinha medo que ele parasse de contar. Era a
primeira vez que confiava nela para discutir este segredo, que ele julgava ter partilhado
com uma única pessoa na vida. Sua ex-esposa o deixara por isso. Tippy sabia que não o
faria, não importa o que lhe contasse. Amava-o demais.
Olhou-a no rosto.
— Sem comentários? — perguntou ele com ansiedade.
— Você fala e eu escuto — respondeu ela com meiguice. — Sei que é difícil para
você. Não estou julgando nem criticando. Mas acho que vai lhe fazer bem falar sobre isso.
Ele deu uma risada breve.
— Foi o que eu pensei antes.
Passou a mão no rosto dele e beliscou a bochecha delicadamente.
— Não estamos no passado. E eu não sou covarde.
Relaxou um pouco.
— Com certeza, você desmentiu qualquer dúvida a esse respeito, hoje de manhã.
Vai ser um mito na região, para o resto da vida.
Sorriu sem jeito.
— Acha que vou?
— Acho. — Ajeitou-a em uma posição mais confortável, e estava menos tenso. —
Participei de duas operações criminosas e me senti atraído pela coisa. Saí do Exército,
mas levei a reputação comigo. Na mesma hora, estava em todas as listas para missões
especiais, como autônomo. Permiti que me convencessem de que meus escrúpulos
desapareceriam com o tempo, que eu fazia um trabalho necessário para o mundo ter
mais segurança. Engoli a explicação. Trabalhei para diversos serviços em nosso país e
em outros, com freqüência cooperando com unidades de comandos de ataque, como
atirador. Também era fluente em várias línguas, o que não atrapalhou, e sei consertar
qualquer equipamento eletrônico. Nunca fiquei desempregado.
Inspirou longamente. Os olhos escuros ficaram assustados.
— Então, uma noite, comecei a ter pesadelos. Reais, vivos, apavorantes. Via os
rostos dos mortos. No começo, era uma vez por semana, depois, quase todo dia. — Seu
rosto ficou tenso com a lembrança. — Achei que se eu abandonasse esse trabalho, eles
iriam embora. Já tinha mais dinheiro do que conseguia gastar, dos trabalhos como
autônomo, guardado num banco suíço. Ainda estava vivo porque tive sorte, mas ela se
vai um dia, é só questão de tempo. Então eu saí e voltei para os Estados Unidos.
Trabalhei na polícia, aqui no Texas, durante anos, até que fui parar nos Rangers. Um dia,
encontrei uma mulher, na hora do almoço, uma moreninha bonita, que já estava de olho
em mim. Paquerava sem disfarçar, até que eu concordei e a convidei para sair. Depois do
primeiro encontro, ela se mudou para minha casa. Em 15 dias, nos casamos.
Tippy procurou disfarçar o ciúme, mas falhou redondamente.
— Que rápido.
— Sim. Rápido demais. O que eu não sabia era o parentesco dela com um ex-
colega meu do Exército. Ele não estava a par do que eu fazia lá, mas via que eu levava
uma vida boa. Contou a ela que eu tinha dinheiro. Gostava de jóias e roupas boas. Eu
estava apaixonado demais para notar que só me tolerava no contato físico, e que a
tolerância aumentava na mesma proporção do preço dos presentes.
Ela deu um sorriso forçado.
— Deve ter sido doloroso reconhecer isto.
— Foi mesmo. — O rosto se endureceu. — Eu era louco por ela. Parecia
apaixonada por mim. Ela engravidou e eu fiquei feliz da vida. Até então, nunca tinha
pensado em ter filhos, mas o primeiro sinal de paternidade me tirou do sério — Cash
acrescentou, tentando minimizar seus sentimentos por causa do bebê que ele e Tippy
perderam. — Então, num arroubo de sinceridade, sentei com ela e contei a história da
minha vida. O resto, você já sabe. Ela foi embora. Mais tarde, ouvi falar que ela pretendia

132
tirar o bebê de qualquer modo, mas gostou de poder botar a culpa em mim. Achou que ia
conseguir uma pensão melhor.
Ela observou o rosto dele.
— E conseguiu?
— Eu tinha um bom advogado. Foi mercenário, era bom nas ações furtivas.
Mandou que a seguissem e grampeou o telefone dela. Tinha provas que não foram
aceitas pelo juiz, mas foram suficientes para ela ficar assustada e aceitar uma quantia
menor. Aceitou o acordo, fiz um cheque e nunca mais ouvi falar dela.
— Você ainda... pensa nela? — indagou Tippy, evitando a pergunta que mais
queria fazer: se ele ainda amava a mulher.
— Às vezes — ele confessou e sorriu para ela. — Mas não com prazer nem com
desejo. Sinto que eu tive sorte de escapar dessa.
Ela retribuiu o sorriso, aliviada.
— Como veio parar em Jacobsville?
— Não me entrosei com os Rangers e me candidatei para a única vaga em aberto
na Procuradoria de Houston, como especialista em crimes na Internet. Tive muita
experiência como hacker, quando fiz aqueles serviços avulsos para as forças armadas. —
Sacudiu a cabeça. — Mas não funcionou. Eu estava completamente deslocado. Parecia
que não conseguia me encontrar em lugar algum. E a reputação me seguia aonde quer
que eu fosse.
Olhou para ela com um sorriso débil, antes de continuar.
— Eu sempre acabava encontrando gente que me conhecia. Eles exageravam as
coisas que eu tinha feito, e o fato de eu as guardar para mim fazia com que os outros
acreditassem. — Passou o polegar nos longos dedos dela. — Quando eu já estava
pensando em voltar para o Exército, meu primo Chet veio me ver em Houston e
perguntou se eu estava interessado numa vaga de assistente do chefe de polícia aqui em
Jacobsville. Isso foi antes de Ben Brady assumir como prefeito em exercício, senão eu
nunca seria contratado. Mas o então prefeito e os vereadores aceitaram a indicação por
unanimidade, com a aprovação de Chet. E, desde então, estou aqui.
— Não sente vontade de voltar para a vida selvagem? — inquiriu ela gentilmente.
— Um pouco — ele admitiu. Olhou os braços dela, tão lindos, tão quentes e
delicados. Sentiu um nó na garganta. — Até recentemente — ele acrescentou com voz
profunda.
Os olhos dela brilharam.
— Por quê?
Encolheu os ombros e acariciou a mão delicada de Tippy.
— Não sei. Minha vida mudou desde que você e Rory apareceram, principalmente
depois que vieram para Jacobsville. Sinto que faço parte de uma família, pela primeira vez
na vida.
Ela não costumava chorar. Mas, como ainda estava fragilizada pelo que ocorrera
de manhã, as palavras lhe cortaram a respiração. Será que ele estava mesmo querendo
dizer aquilo?
Ele viu as lágrimas brotarem nos olhos dela e descerem pela face. Ficou sério.
— O que houve de errado?
— É assim que eu me sinto — confessou. — E Rory também.
Sentiu-se um privilegiado e sorriu com ar ausente.
— É mesmo?
Ela concordou com a cabeça.
Deu-lhe um abraço apertado e inclinou-se para beijá-la. Foi o afago mais terno que
ela recebera na vida. Retribuiu com a mesma ternura.
Ele fechou os olhos. Sentia como se tivesse chegado em casa. Ela apoiou o rosto
no peito dele e escutou os batimentos do coração.

133
Rory surgiu à porta.
— Opa! Desculpem!
Cash deu uma risada.
— Volte aqui — disse ele.
Tippy continuou sentada; tinha os olhos um pouco avermelhados, mas ainda sorria.
— O que foi? — perguntou Cash.
Rory sacudiu as sobrancelhas.
— Um filme antigo de vampiro, com Bela Lugosi no...
— Filme de vampiro — exclamou Cash, quase derrubando Tippy ao se levantar. —
Desculpe, meu bem — disse ele com gentileza —, mas eu sou fanático por Bela Lugosi...
Tippy ficou de boca aberta.
— É mesmo? — ela se espantou. — De verdade?
— São os filmes preferidos dela — Rory interveio.
Trocaram rápidos olhares.
— Pipoca — pediu Cash com esperança na voz.
— De microondas — ela concordou e se apressou em pegar o pacote.
O dia tão estressante terminava como se fosse mágico. Tippy sabia, lá no fundo,
que ela e Cash tinham futuro. Nunca tivera tanta certeza de uma coisa. Olhou para ele
quando foi para a sala com Rory, a mão no ombro do garoto. Parou o tempo suficiente
para se virar e piscar para ela. As defesas começavam a cair, pensou.

Tippy achou que a fama repentina por causa da frigideira era coisa de um dia. Mas
a repercussão não parou por aí e, dois dias mais tarde, um jornal sensacionalista publicou
a história da luta de Tippy, de frigideira na mão, com o terceiro seqüestrador, que fora
preso e levado de volta para Nova York por dois oficiais de justiça federais, que saíram de
lá às gargalhadas.
Mas a reportagem dizia muito mais sobre sua intimidade do que Tippy esperava.
Uma médica local, dra. Lou Coltrain, declarou oficialmente que a srta. Moore perdera o
bebê por causa da ação nociva de um inominável diretor do filme em que trabalhava.
Coltrain garantiu que o sofrimento de Tippy pela perda era perceptível. Joel Harper
também foi chamado a contribuir para a reportagem. Harper disse ao jornal que a srta.
Moore era tão importante para o filme que eles suspenderam a produção até que ela se
recuperasse. Além disso, acrescentou o sr. Harper, ele já tinha alterado o roteiro para
incluir o inovador método de defesa com frigideira, contra um assaltante de ficção, no
filme. Até as agências de notícias gostaram da história, pois apareceu, além do jornal de
Jacobsville, também nos jornais de San Antonio.
Havia uma última informação, fornecida pelo chefe de polícia de Jacobsville, Cash
Grier, de que ele e a srta. Moore iriam se casar dentro de um mês.

Capítulo Quinze

Tippy mal podia acreditar no que lia. Cash não estava falando de casamento de
verdade. Dissera tantas vezes que não voltaria a se casar. Chocada, sentou-se com o
jornal nas mãos e releu a reportagem inteira.

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— O terceiro seqüestrador vai ficar na cadeia até o julgamento — disse-lhe Cash,
com as mãos metidas nos bolsos. — Mas sua reputação melhorou, por conta daquele
diretor-assistente. Tive longas conversas com gente que eu conheço. Não vai mais haver
tentativas de assassinato contra o personagem nesse final, pelo menos. A dra. Lou
Coltrain e eu costuramos essa reportagem para reparar o dano.
— Não é um pouco... drástico? — ela pensou alto.
— O quê? Colocar na lista negra aquele arrogante, insignificante, que trabalhava
para Joel Harper?
— Não! Obrigada por isso — disse ela, com ar distraído. — Eu estava pensando no
noivado... aqui diz — ela prosseguiu, lendo as letras menores — que vamos nos casar
imediatamente!
Os olhares se encontraram.
— Não temos mais segredos entre nós. Sei tudo sobre você, que sabe tudo sobre
mim. Tenho um seguro do trabalho e dinheiro em alguns bancos estrangeiros. Mas,
mesmo se não tivesse, continuaria com os braços fortes e sem medo de trabalho pesado.
Posso cumprir minha parte da responsabilidade financeira. Rory pode ficar conosco, a
não ser que esteja superfeliz de passar os próximos oito anos numa escola militar.
Ela mal conseguia respirar.
— Eu devo estar em outro mundo — ela sussurrou.
— É sonho ou pesadelo? — ele refletiu em voz alta.
— É sonho, com certeza — ela afirmou com a face ligeiramente ruborizada ao
olhar para ele com imenso prazer.
— Nem posso acreditar!
Cash descontraiu-se. O rosto dela, apaixonado, surpreso, feliz, aqueceu-o por
inteiro. Ele sorriu.
— Quer que me ajoelhe a seus pés? Ou esse é o seu papel? Já comprou o anel
para mim?
Ela se deteve, para lembrar das cenas de sedução das últimas semanas.
— Achei que você não me queria — ela se defendeu.
— Neste caso, vai ter de sair para fazer compras. Mas por enquanto...
Chegou mais perto, afundou a mão no bolso e tirou um estojo preto de joalheria.
Abriu-o. Lá dentro havia um solitário de esmeralda, cercado por diamantes, combinando
com uma aliança que intercalava esmeraldas e diamantes, em ouro amarelo.
— Mais uma coisa — ele continuou, mostrando os documentos que dera entrada
para o casamento. — Já fiz meu teste sangüíneo e peguei os resultados do teste que Lou
Coltrain tinha, a partir das informações que ela reuniu sobre você com o especialista de
San Antonio, aquele que veio aqui para fazer a revisão na semana passada.
— Ainda não entendi como foi que você conseguiu que ele viesse até mim — disse
ela em tom distraído.
— Ele e Micah Steele são amigos antigos — disse ele, sem muitas explicações. —
Assim, já temos os papéis e um encontro com o juiz, depois de amanhã — disse ele com
ar convencido. — Você só precisa dizer sim. Eu cuido do resto.
Ela olhava sem parar para os documentos e as jóias, com o coração batendo forte.
Passou a mão nos anéis como se não os visse.
— Nunca pensei que um dia isso aconteceria — ela sussurrou e ergueu o olhar
para ele.
Cash abaixou-se e beijou-a delicadamente, roçando os lábios nos dela. O coração
disparou. Beijou-a outra vez.
— Você sabe tudo sobre mim — murmurou ele — e não foi embora. Eu não podia
me arriscar a perder a mulher que não apenas me aceita como eu sou, mas ainda por
cima consegue derrubar, com uma frigideira, um criminoso armado. Você já é uma lenda
viva!

135
Ela deu um risinho caloroso e levantou-se para abraçá-lo.
— Vou cuidar de você para o resto da vida — disse ela baixinho.
Ele ficou levemente corado.
— Essa fala era minha.
— Então, vamos cuidar um do outro — ela sussurrou, puxando a cabeça dele para
baixo. Queria dizer como se sentia, mas ele não falara em amor. Estava insegura para
sair declarando seus sentimentos logo agora. — Tem certeza?
— Tenho certeza.
Segurou-a, enlaçou a coxa no seu corpo rijo, beijou-a com uma paixão de tirar o
fôlego e fazer os joelhos fraquejarem.
— É a glória! — ele respirou, aprofundou o beijo, fez com que ela andasse para
trás até a mesa da cozinha. — Tippy...
Inacreditável. Tinhas às costas os restos do almoço e Cash, faminto, a empurrava
para baixo.
— O que você está fazendo? — perguntou ela com o que lhe restava de sanidade.
— Adivinhe — ele grunhiu para dentro da boca quente.
Ela sentiu o tecido ceder e os fechos se abrirem. Procurou manter o raciocínio
ativo. Alguém poderia aparecer à porta. Rory poderia voltar para casa. A casa poderia ter
uma escuta...
Estrelas explodiram sob as pálpebras fechadas, quando o sentiu penetrar nela.
Arregalou os olhos e viu os dele. Teve palpitações diante do furioso movimento de seus
quadris. Ele observou seu rosto, com os olhos apertados, brilhando de desejo. As mãos
dele estavam sob suas costas, segurando-a, quando o corpo invadiu-a e tomou posse
dela.
Não teve forças para questionar o que ocorria. Fervia de prazer. As pernas se
abriram mais para recebê-lo. Os quadris se arquearam para se moldar aos dele.
Fazia muito tempo que ele a tocara de maneira tão decidida. Ansiava por ele.
Refletia no rosto o prazer e o arrebatamento, o corpo acompanhava cada movimento
rápido e preciso. Subiu ao céu. O corpo dela ardia em vida, em gozo.
— Devo ter... enlouquecido! — Ele se refreou, mas grunhiu em seguida, quando o
prazer o percorreu como uma faca. — Ah... meu Deus...Tippy! Preciso de você!
— Eu também preciso de você — disse ela com voz engasgada. — Tanto, Cash,
tanto, tanto!
— Mostre, meu bem — ele soprou, varrendo sua boca, à medida que o movimento
do corpo se tornava mais insistente, urgente, desesperado. — Mostre.
As mãos dela se atrapalharam com os botões da camisa. Quando a abriu, sobre
uma esteira de pêlos negros e músculos aquecidos, levantou a blusa e o sutiã e esfregou
os seios no peito dele.
Ele soltou um gemido rouco. Os olhos se fixaram cegamente nos dela, com o
ímpeto para se consumar. O som da respiração mesclou-se aos gemidos agudos e baixos
que saíam da outra garganta.
— Por favor... — ela insistiu, estremecendo a cada movimento dele. — Por favor...
Por favor...
Os olhos se fecharam e ele parou sobre ela por um segundo. Então, sacou do mais
íntimo suas últimas forças. Pairou sobre um abismo, arfou e tremeu com ritmo e gemidos
roucos no ouvido dela.
Pulsava com ele, mergulhando no prazer macio que a dominava, qual onda de
calor. Emitia ruídos breves e agudos, as unhas vibravam nas costas dele, até que se
rendeu, totalmente possuída.
— Sinto você — ela soluçou. — Sinto você dentro de mim...
Ele grunhiu outra vez, pois as palavras aumentaram seu prazer.
— Você faz parte de mim — ele soprou. — E eu faço parte de você. Tão doce, meu

136
bem. Doce e quente, um bicho-da-seda que fez casulo em volta de mim. Nunca foi como
agora.
— Nem para mim — ela sussurrou de volta, enroscandose nele, no delicioso
depois. — Nem na nossa primeira vez.
Ocorreu-lhe, de repente, que fora o único homem que ela tivera realmente. As
únicas experiências de sexo precoce foram aterrorizantes, dolorosas. Mas ela o amava.
Ouvia isso na voz suave. Sentia-o no corpo incomparável.
— Em que você está pensando? — perguntou ela, com um arrepio.
— Não sabe? — ele brincou.
— Não consigo... pensar.
— É tranqüilizador — murmurou ele com uma risada cruel. Levantou a cabeça e
olhou-a nos olhos úmidos. — Estava pensando se fui o único amante que você já teve.
Ela hesitou. Tinha o rosto conturbado.
— Estupro não conta — ele afirmou, com um olhar amoroso.
— Não? — perguntou ela com curiosidade. — Honestamente?
Mordiscou-a no lábio superior.
— O que Stanton fez com você é como um roubo. Não era sexo, pelo menos para
ele. Homens que estupram querem o controle, não o prazer. — Beijou-a mais uma vez. —
Como você não sabe disso?
— Houve um homem com quem tive um encontro, anos atrás — ela confessou. —
Achou que aquilo me sujava. Disse que não podia tocar em mim depois.
— Não faz diferença para mim, se você teve meia dúzia de homens, desde que eu
seja o último — ele acrescentou. — Não sabia?
Ela então compreendeu que ele sentia por ela algo mais do que desejo. Os olhos
escuros eram cheios de sentimento, de ternura. Levou a mão ao rosto dele, acariciou a
face, a boca, com dedos dominadores.
— Eu adoro você — ela sussurrou.
Beijou seus dedos.
— Eu também. — Ele levantou a cabeça e olhou para ela. Ergueu as sobrancelhas.
— Não acredito que eu fiz isso.
Ela sorriu com malícia.
— Eu acredito.
Deu uma gargalhada, enquanto se punha de pé e a levantava junto. Vestiram as
roupas devagar, ajustaram os fechos, em silêncio repleto de encantamento.
— Felizmente ninguém resolveu nos visitar — murmurou ela, olhando para a
bagunça do almoço em cima da mesa.
Ela sentiu o cabelo esquisito. Passou a mão na nuca e voltou com purê de batatas
e uma ervilha.
— Mas que coisa — ela bradou.
Cash rugiu.
— Está deliciosa, querida — disse ele. — Se quiser se esfregar mais na batata, eu
vou lamber você todinha — ele sugeriu.
Bateu nele.
— Pare com isso. Não é jeito de se começar um casamento.
— Claro que é — ele replicou. — A alimentação é o fundamento de muitos
relacionamentos. Você fica ótima com purê de batatas e ervilhas.
— Continue com isso e vou enfeitar você com grãos de café — ela brincou.
Riu e inclinou-se para beijá-la calorosamente.
— Não usei o que devia — disse ele em voz baixa, em tom sensato.
Ela sorriu preguiçosamente.
— Eu sei, não faz mal.
Os olhos brilharam e ele retribuiu o sorriso.

137
— Quando e onde vamos nos casar? — ela quis saber.
— Depois de amanhã, na sede do condado. Judd e Crissy serão as testemunhas.
— Que simpático da parte deles — disse ela com gratidão sincera.
— É isso, não é? — Ele encheu os olhos com ela. — Vão ser os dois dias mais
longos da minha vida.
Era verdade.

Casaram-se de manhã cedo. Tippy usou a calça comprida de seda verde e levou
um buquê de rosas amarelas. Cash usou terno. Judd, Crissy e Rory ficaram ao lado
deles, como testemunhas, e o juiz deu um riso forçado ao declará-los marido e mulher.
Rory abraçou os dois, lutando contra as lágrimas.
— Este é o melhor dia da minha vida — o garoto declarou.
— É um dos melhores dias da minha vida também — Cash afirmou e, daquela vez,
não ficou apavorado com o compromisso.
Agradecia à fada madrinha por Tippy ser sua finalmente. Ela parecia sentir
exatamente o mesmo. Mas estava preocupada com alguma coisa. Ele notou.
Mais tarde, perguntou-lhe. Foi depois do almoço com o casal Dunn e Rory em um
restaurante local.
— Não sei — respondeu ela com toda a honestidade. — Mas é uma coisa ruim.
Desculpe — ela acrescentou em seguida. — Eu não queria atrapalhar o dia do nosso
casamento.
— Não atrapalha. Já estou acostumado com os seus pressentimentos — ele
admitiu. — Mas esta noite Rory vai ficar com Judd e Crissy, para você e eu termos esse
tipo de noite de núpcias com que todo mundo sonha. Com ou sem maus pressentimentos.
Ela sorriu com ternura.
— Nem posso esperar! — ela sussurrou. Ele balançou a cabeça.
— Nós dois somos assim.

Foi uma noite longa e apaixonada. Cash tinha muita energia. Ela sequer lera sobre
alguns dos prazeres que ele lhe apresentou.
— Onde foi que aprendeu isso? — perguntou ela, engolindo em seco.
Ela estava debaixo dele, com uma de suas pernas possantes enroscada nas
pernas dela, enquanto a possuía.
— Arnie — murmurou ele, passando a mão por baixo dos quadris dela para que
voltasse à posição. Arregalou os olhos.
— Arnie?
Ele riu. A boca passou para o pescoço e pressionou-o ardentemente, com a língua
preenchendo a cavidade em que pulsava sua artéria.
— Arnie foi meu colega no campo de treinamento. Entendia mais de mulheres que
um produtor de filmes pornô — murmurou ele. — Tinha livros, vídeos, revistas... de tudo,
para transformar qualquer um em especialista.
— Sim, mas só a prática... leva à perfeição — disse ela com voz engasgada.
— A-hã — disse ele com malícia, mordendo de leve o ombro dela. — Mas sexo
bom é coisa da cabeça e do coração, não só do corpo. Com alguém que você mal
conhece, é diversão de segunda categoria.
— E comigo? — ela provocou.
Ergueu a cabeça e olhou-a nos olhos.
— Com você, é quase sagrado — ele sussurrou.
Os lábios se abriram e as lágrimas encheram seus olhos.
— Não faça isso — disse ele, afastando o pranto com beijos.

138
— Não consigo. É assim que me sinto também, quando estou com você. — Beijou
o peito dele com avidez. — Cada vez é a primeira. Tenho vontade só de olhar para você.
A boca acariciou o lábio superior dela. Mordeu-o de leve, enquanto o corpo se
movia em outro ritmo, mais lento. A respiração tornou-se acelerada e difícil, como a dela.
Levantou a cabeça, olhou-a, cerrando os dentes a cada movimento poderoso de seu
corpo de encontro ao dela.
As unhas pousaram nos antebraços, contraindo-se a cada estocada de prazer. Ela
gemia, um som rouco, movendo-se debaixo dele convulsivamente.
— Sim — disse ele com esforço. — É isso. Faça de novo. Mexa-se comigo.
— Gosta? — Ela tomou fôlego.
— Amo — ele rosnou. — Você faz mágica. Me queima por dentro. Amo esse jeito
como eu me sinto quando tenho você.
Sorriu e arqueou sob ele, estimulando-o e as mãos deslizaram lentamente,
timidamente, cintura abaixo. Procurou os olhos dele, hesitante.
— Vá em frente — ele incentivou. — Faça o que tiver vontade.
— Não se incomoda?
Riu, apesar da dificuldade.
— Não me incomodo. — Ele deu uma risadinha. — Venha, gata. Ponha a mão.
Ela o fez, vacilando. Ele riu, alcançou a mão dela e fechou-a em torno de si.
— Assim — ele sussurrou, e ensinou com uma paciência que logo se transformou
em urgência. — Aqui — ele insistiu, estremecendo. — Aqui... sim!
Ergueu os olhos para ele, fascinada pela expressão angustiada no rosto, enquanto
ele, subitamente, afastou sua mão e pregou-a na cama sob o selvagem arremesso do
corpo contra o dela.
— Perdão — ele deixou escapar, com voz entrecortada. — Não consigo segurar!
— Me ame — murmurou ela, segurando-o nos quadris, forçando para baixo. —
Mais forte — ela engasgou. — Forte, forte... bem dentro!
Ele perdeu o controle. Os movimentos ferozes, esmagadores das ancas, logo o
levaram ao limite de um clímax dilacerante. Sentia os olhos dela pousados nele quando
começou a subida para o cume. Isso aumentou o prazer, tornou-o mais selvagem e único
do que qualquer coisa que tivera antes.
Ela sentiu o prazer dele. Os olhos arregalados, os quadris arqueando com ritmo,
freneticamente, ao encontro dele, as unhas cravadas nas nádegas, enquanto o chamava
para mais dentro de si.
— Quero ver você gozar — ela comentou com audácia. — Me deixe ver, Cash!
Ele gritou. Os músculos potentes do peito e pescoço retesaram-se como cordas,
ele se sacudiu abruptamente e desmoronou inerte sobre ela.
A batida feroz dos quadris, a furiosa distensão do corpo dele no seu trouxeram a
mais incrível explosão de prazer que ela conhecera. O rosto dele turvou-lhe a visão,
quando ela soluçou, na tensão do clímax. O corpo foi também convulsionado, dirigindo-se
ao inevitável açoite do próprio movimento. Por uma fração de segundo, duas almas
habitaram o mesmo corpo.
Desfaleceram juntos, pulsando satisfeitos, arrepiados nos braços um do outro.
— Agora eu me sinto casada — ela conseguiu dizer.
— Sim — ele disse com voz fraca. — Beijou os olhos fechados dela. — Agora, eu
também.

Nos dias que se seguiram, a vida era bela. Cash e Tippy estavam mais unidos do
que nunca. Rory os via de mãos dadas e dava risinhos maliciosos. Ele fazia parte da
família. Encontrou seu lugar no mundo. Nunca fora tão feliz.
Tippy sentia o mesmo. Mas a antiga preocupação permanecia lá no fundo. Sabia

139
que algo iria ocorrer, uma coisa desagradável. E isso a molestava, embora procurasse
disfarçar diante de Cash.
Na sexta-feira, ela estava com uma sensação de formigamento, aguardando a
volta de Rory do shopping em Houston, onde fora com a família de um novo amigo.
Estava igualmente preocupada com Cash no trabalho. Queria apenas saber o que estava
errado. Mas a vaga sensação de desconforto não lhe dava qualquer pista.
O telefone tocou poucas horas antes de Cash voltar para casa. Tippy tirou o fone
do gancho com pressa e ouviu a voz ligeiramente conhecida.
— Aqui é o sargento William James, de Ashton, Geórgia, delegacia de polícia —
disse ele, desafiando sua memória.
— Sim, eu me lembro do senhor! — ela exclamou.
Era o agente que havia morado na casa ao lado da de sua mãe, anos atrás. Ele a
salvara na noite em que Sam Stanton a estuprara. Foi o mesmo que ligou para ela
quando Rory tinha apenas quatro anos de idade e ajudou-a a obter a custódia.
— Tenho notícias para você — disse ele calmamente. — Eu não sei como
comunicar, com precisão.
— Aconteceu alguma coisa com minha mãe — disse ela no mesmo instante. —
Passei o dia inteiro preocupada.
Não ficou surpreso.
— Você tem essas premonições desde que era pequena — o policial recordou.
— É mais uma praga do que um dom — ela replicou. — Coisa séria?
— Sim. Teve um ataque cardíaco. Acho que você não sabe que ela está num
programa de reabilitação há mais ou menos um mês — ele acrescentou de modo
surpreendente. — Parou de beber, pela primeira vez desde que a conheço. Não está
passando bem, mas quer ver você antes de morrer.
Tippy ficou transtornada.
— Ela vai morrer? —Tippy quis saber.
— Acho que sim — disse ele.
— Não foi muito minha mãe, mesmo quando não bebia.
— Mas ainda é seu sangue — ele lembrou.
— Sim. — Ela hesitou, mas apenas por um minuto. — Vou com Rory até em casa
— ela decidiu com serenidade.
— Sei do que aconteceu com vocês em Nova York — prosseguiu ele. — Não é
seguro vir para cá sozinha. Precisa ter alguém junto, olhando para todos os lados. Posso
ir até aí e pegar o avião com vocês dois.
Ela sorriu.
— Obrigada — disse Tippy. — Mas acho que Cash pode ir conosco.
Fez-se uma pausa.
— Cash Grier?
Ela engoliu em seco.
— O senhor o conhece?
— Sei quem ele é — corrigiu. — Ligou para cá faz pouco tempo, para saber de sua
mãe, e nos pediu para ficar de olho nela, para o caso de os seqüestradores aparecerem,
se conseguissem sair sob fiança. Ela foi presa sob acusação de formação de quadrilha,
você sabe. Pagou fiança e saiu da cadeia num instante. Talvez estivesse com medo de ir
para a prisão com Stanton pela tentativa de seqüestro, talvez tantos anos de drogas e
álcool tenham acabado com a saúde dela. De qualquer modo, não vai durar muito.
— Vou falar com Cash e telefono para o senhor. Qual é o seu número?
Anotou-o. Agradeceu a gentileza de tê-la avisado e desligou.
Mergulhou então o rosto nas mãos e chorou, pela infância que nunca teve, pela
mãe que nunca a quis nem a amou. Ainda precisava contar a Rory. Mas ele, com certeza,
não sofreria por aquela mulher cruel mais do que a própria Tippy. Estaria louca ao voltar

140
para casa e dar à mãe mais uma oportunidade de prejudicá-la?
No último ano, não tivera quem lhe desse apoio nas fases difíceis. Não se sentira
no direito de preocupar Rory com coisas que ele não podia entender. Não havia outro
alguém. Agora, no entanto, tinha alguém.
Pegou no telefone e ligou para a Delegacia de Polícia. Quando chamou Cash, ele
atendeu em questão de segundos.
— O que houve de errado?
Ela riu secamente, mesmo estando arrasada.
— Por que devia haver algo errado?
— Você nunca me liga no trabalho.
— Agora virou vidente — ela refletiu.
— É contagioso. Vamos, conte.
Ela respirou profundamente.
— Minha mãe está morrendo. Quer me ver e ao Rory.
Ele hesitou.
— Já contou ao Rory?
— Não. Ele ainda não voltou de Houston. Eu... gostaria de ir, se você fosse
comigo.
Sentiu-se valorizado.
— Está bem.
Ela deu uma risada, com a respiração falhando.
— Só isso?
— Sou mais ou menos o cabeça do casal — ele assinalou. — Mesmo que eu não
seja tão bom quanto você no manejo de uma frigideira — completou.
Ela olhou para os anéis em seu dedo e se sentiu totalmente aquecida, protegida,
acariciada.
— Gosto disso.
— E eu também. Vou para casa agora.
— Não vai ter problema? — indagou ela, por saber que ele ainda enfrentava
dificuldades no trabalho, apesar da mudança na administração.
— Agora, não — ele garantiu. — Tenho amigos no alto escalão, para o caso de
precisar. Mas as coisas estão correndo bem.
— Vocês tiveram problemas com aquela mulher da família Merrill — ela lembrou.
— Esse problema específico está com Houston — disse ele em tom vaidoso. —
Oficialmente, já não está mais nas minhas mãos.
— Graças a Deus — disse ela sem pensar.
— Ah, então você se preocupa comigo, não é? — perguntou ele com um tom
brando na voz.
— Sempre — ela admitiu. Secou a última lágrima da face. — Queria que minha
mãe fosse como a sua — disse sem querer.
— O que diz o velho ditado, meu bem? Querer não é poder.
Ela sorriu.
— Gosto quando você me chama de meu bem.
— Porca chauvinista — ele acusou. — Você não devia gostar disso.
— Mas eu gosto. O que você quer para o jantar?
— Eu cozinho — ele decidiu. — Você fica sentada vendo televisão, ou coisa desse
tipo. Sofreu um golpe. Precisa de tempo para superar. Mesmo com todos os defeitos, e
concordo que eram muitos, ainda é sua mãe.
— Eu estava mesmo pensando nisso — ela contou.
— E chorando.
— Como é que você sabe? — indagou ela.
— Já lhe disse, é contagioso. Vou para casa assim que delegar algumas tarefas.

141
Quer pegar o avião para a Geórgia hoje à noite, certo?
— Sim. Tenho um amigo lá...
— Sargento William James — ele interrompeu.
— Ele disse que você ligou.
— Liguei. Parece um bom sujeito.
— Ofereceu-se para vir aqui pegar o avião comigo e Rory, por medida de
segurança.
— Eu faço isso.
— Foi o que eu disse a ele. — Vou comprar as passagens.
Ela deixou escapar um longo suspiro.
— Obrigada, Cash.
— Coisa à toa. Até daqui a pouco.
— Combinado.

Rory chegou em casa minutos antes de Cash. Reparou que Tippy estava muito
calada, mas não fez perguntas. Quando Cash chegou, com ar igualmente solene, Rory
teve noção do que estava errado.
— É nossa mãe, não é? — perguntou a Tippy, durante o jantar que Cash ajudou a
fazer.
— Sim — respondeu Cash. — Teve um ataque do coração e eles acham que não
vai sobreviver. Ela quer ver você e Tippy.
— Ela vai morrer? — indagou Rory.
Ele assentiu.
Rory olhou para a irmã, alcançou a mão delgada e segurou-a carinhosamente.
— Não me recordo de coisas boas dela.
— Nem eu — Tippy replicou.
— Nós temos um ao outro — Rory lembrou.
— E eu — Cash acrescentou, tomando café. Rory sorriu para ele.
— E você.
Tippy sorriu também, em lágrimas.
Cash levantou-se, tirou-a da cadeira em que estava e acomodou-a junto a si
enquanto chorava, com o rosto apoiado no peito rijo.
Rory meteu-se debaixo do braço livre de Cash e chorou também.
— É bobagem chorar por uma mulher que nos tratou como se fôssemos lixo —
disse Tippy com voz seca, enxugando as lágrimas com as costas da mão.
— Família é sempre família. Não escolhemos nossos pais — Cash filosofou.
— Tippy falou que sua mãe era muito boa — Rory disse a Cash, que lutava contra
as próprias lágrimas.
— Era maravilhosa — Cash concordou. — Meu pai também era, antes de se
apaixonar por uma vagabunda e destruir nossa família. Ele e os meus irmãos foram todos
conquistados por ela. Fui mandado para a escola militar porque não fiz como os outros. —
Tinha um ar distante nos olhos escuros. — Há muitos anos não vejo meu pai.
— E seus irmãos também, não é? Só Garon? — perguntou Tippy, lembrando-se de
uma antiga conversa sobre o afastamento.
— Isso mesmo. Quando Garon apareceu para me visitar, no outono do ano
passado, disse que estava procurando imóveis no nosso condado, mas acho que foi só
uma desculpa para me ver.
— Garon é como você? — indagou Rory.
— É o mais velho — disse Cash. — E mais esquentado do que eu. Ele mora em
San Antonio. Os outros dois vivem na casa do papai, no oeste do Texas.
— Algum deles é policial? — interrogou Tippy.

142
— Dois são. Garon trabalha para o FBI — disse ele.
— Só tem homens, na sua família? — Rory perguntou.
— Há quatro gerações — respondeu Cash. — Por isso eu gosto tanto da
menininha de Judd e Crissy.
Era um lembrete de que ele fora louco por Christabel. Tippy tinha certeza de que
ainda era um pouquinho. Mas ela é quem usava os anéis, e ele a considerava parte de
sua vida. Ergueu os olhos com confiança muda e sorriu meigamente.
Ele também sorriu, acompanhando a curva do nariz bem feito com a ponta do
dedo.
— Você fica ainda mais bonita quando chora — disse ele, e inclinou-se para beijar
as lágrimas. — Agora, vamos terminar o jantar. Você também, Rory. Temos de nos
programar.
Voltaram a seus respectivos lugares, sentindo-se melhores. Até o final da refeição,
as lágrimas tinham secado.

Capítulo Dezesseis

Levaram cerca de três horas para chegar ao Aeroporto Internacional de Hartsfield-


Jackson de Atlanta, onde Cash alugou um carro que os levou até Ashton, no sul da
Geórgia.
Ashton era uma cidade sulista apática, mais ou menos do mesmo tamanho que
Jacobsville. Tinha o Fórum, em um prédio de tijolos com mais de 100 anos e ainda em
uso, e uma faculdade particular de ciências humanas. A maior parte das terras ao redor
era ocupada pela agricultura. O sargento James, homem idoso de cabelos brancos e
olhos verdes, esperava-os. Estava em serviço, mas no horário de jantar. Levou-os no
carro ao hotel de beira da estrada em que ficariam hospedados. Cash registrou todos e ali
deixaram a bagagem. Depois, o sargento James os levou ao hospital da cidade.
A mãe de Tippy estava em quarto duplo, ligada a meia dúzia de tubos e fios.
Estava pálida e abatida. Os cabelos, que foram ruivos, agora eram quase totalmente
brancos.
Tippy e Rory olharam para ela com emoções conflitantes. A mais forte foi a
repugnância. Cash ficou logo atrás deles, com uma das mãos no ombro de cada um.
A mulher na cama, como se subitamente recobrasse a consciência, abriu os olhos.
Eram de um azul muito claro, injetados e opacos. Olhou para as três pessoas no quarto
franzindo ligeiramente a testa.
— Tippy? — perguntou ela com voz gutural.
— Sim — Tippy replicou sem se aproximar.
A mulher suspirou.
— Obrigada por vir. Eu sei que você não queria. Este é o Rory? — indagou ela,
encarando-o ostensivamente. — Meu Deus, como você cresceu.
Nenhum deles disse uma palavra.
A velha na cama não ficou surpresa com o desânimo geral.
— Eles não podem fazer nada por mim — disse ela. — Eu estava tentando não
beber. Não fico sóbria há anos. Não gosto muito disso — ela acrescentou em tom pesado.
— Comecei a me lembrar de umas coisas, coisas horríveis que eu fiz com vocês. —
Respirou, tossiu e estremeceu. — Andei falando com um pastor. Diz ele que nenhum

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pecado é tão grande que não possa ser perdoado. — Olhou diretamente para Tippy. —
Não estou pedindo coisa alguma — ela acrescentou. — Só queria pedir desculpas a
vocês por tudo o que fiz. E se eu pudesse fazer de novo, faria tudo direito, faria, sim. —
Puxou o ar. — Andei falando com os federais. Contei tudo, como Sam e eu montamos o
esquema do seqüestro para arranjar o dinheiro das drogas. Dei os nomes, endereços,
tudo mesmo. Sam nunca mais vai sair da cadeia, eles me garantiram. Vocês dois estão a
salvo.
Tippy olhou para Rory e Cash, que tinham os rostos tão serenos quanto o dela
mesma. Havia desgraça demais para tão poucas palavras e desculpas tardias fazerem
alguma diferença.
A mulher parecia saber disso. Fechou os olhos.
— Tippy, eu gostaria de dizer a você quem era seu pai, mas dele só sei o primeiro
nome, Ted, e que gostava de carros velozes, eu juro por Deus. Estava tão doida naquela
noite que não me lembro de muita coisa. Mas sei quem é o pai de Rory. Está atrás de
vocês.
Rory prendeu a respiração ao olhar para o sargento de polícia que fora tão gentil
com eles. Estava atordoado, mas Tippy chegou a sorrir de alívio ao saber que o pai de
Rory não era Sam Stanton.
— Pode ser que isto alivie um pouco as coisas ruins, Rory — ela continuou. — É a
primeira vez que digo ao seu pai que você é filho dele. Eu... sinto muito. Sinto mesmo.
Fechou os olhos.
E não tornou a abri-los.

O funeral foi discreto e apenas quatro pessoas compareceram ao serviço religioso.


William James estava pouco à vontade com Rory, que se sentia da mesma forma. Mas
seu relacionamento nascia ali, pois anotaram os telefones um do outro e pretendiam se
corresponder. O sargento James era viúvo sem filhos e, assim, Rory viria preencher um
vazio na sua vida.
A mãe deles deixou poucos pertences e muitas dívidas. Tippy resolveu esses
assuntos e mais o aluguel atrasado do trailer em que a mãe vivera. Sentiu pouca emoção.
Mas teve uma sensação de alívio. E Rory também.

Typp e Rory voltaram para Jacobsville com Cash. Este já conversara com os
federais, levando ao seu conhecimento que o desejo da sra. Danbury no leito de morte
era isolar Sam Stanton para o resto da vida, junto com os dois comparsas. Quando
começassem os julgamentos, dali a vários meses, Tippy e Rory estariam à disposição
para testemunhar.
Contudo, nesse meio tempo, ocorreu a Tippy que a maior parte de suas
preocupações se fora. Os cortes e hematomas estavam curados, assim como as costelas.
Não corria mais perigo. Poderia voltar ao trabalho.
E, de fato, Joel Harper ligou no dia seguinte à sua volta a Jacobsville, marcando
uma data para recomeçar o filme.
Cash não disse uma única palavra em contrário. Beijou-a calorosamente e falou
que ele e Rory ficariam bem enquanto estivesse fora. Na verdade, iriam visitá-la durante a
filmagem. Não lhe agradava a idéia de deixá-los, mas prometera voltar ao trabalho assim
que pudesse. Assim, ela providenciou a viagem a Chicago, onde o restante do filme seria
feito, e despediu-se da família com serenidade.
— Use o telefone — Cash falou com firmeza e beijou-a com paixão, sem dar
atenção aos olhares curiosos. — E nada de cenas arriscadas! Você tem marido e irmão
pequeno que vão ficar roendo as unhas se estiver em perigo de novo.

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Ela deu um sorriso forçado. — Vou me lembrar disso.
— Acho bom.
Beijou-a outra vez, para garantir. Rory beijou-a também.
— Ligue para nós. — ele ordenou. Ela lhe deu um abraço apertado
— Todas as noites. Eu prometo. E vocês dois, não se metam em confusão — ela
aconselhou.
— Vamos fazer o possível — Cash garantiu.
Chorou durante toda a viagem para Chicago. Sentia tanta falta de Cash que mal
conseguia raciocinar. Era muito pior agora, pois sabia o quanto ele significava. Mas ainda
tinha esse compromisso a cumprir. Voltaria para casa assim que terminasse, lembrou a si
mesma. Eram apenas algumas semanas. Certo.

As poucas semanas foram de pura agonia. Tippy ligava para casa todas as noites,
para falar com Rory e Cash, procurando disfarçar o peso do trabalho e da solidão. Sentia
falta do calor e da força de Cash em seus braços à noite. Era uma infeliz sem ele.
Começou a faltar ao café-da-manhã a partir da segunda semana no set. Joel
Harper reparou imediatamente e teve uma longa conversa reservada, com todos os
empregados, sobre a saúde de Tippy. Estava autorizada a fazer quantas pausas quisesse
e descansar o que fosse necessário, pois ele desconfiava do que se tratava.
E Tippy também. Com o passar dos dias, começou a sentir um cansaço
avassalador e náuseas todas as manhãs. Seu coração alçou vôo com a leveza de um
balão de gás.
Confirmou suas suspeitas com um teste caseiro de gravidez e preferiu nada dizer a
Cash. Era o seu segredo naquele momento. Tinha uma atitude cuidadosa no set, a fim de
evitar situações de risco, e notou que Joel fazia o mesmo. Os dois assistentes de direção
mais pareciam enfermeiros, de tanto zelo pela sua saúde, algo que ela observou com
prazer.
Mal podia acreditar na alegria que sentia. Tinha quase certeza de estar grávida.
Não sentia qualquer receio quanto ao comportamento de Cash ao tratar Jessamina, a
filhinha de Crissy. Gostava de crianças. Todas as feridas seriam curadas no dia em que
tivessem seu próprio filho. Comprou lã, novas agulhas de tricô feitas de bambu e uma
bolsa para carregar tudo.
Como era de se esperar, um repórter apareceu no set, perto do término das
filmagens, e juntou coisa com coisa. Uma colunista de variedades redigiu uma nota
divertida, dizendo que a recém-casada srta. Moore passava as horas de folga tricotando
roupinhas de bebê. Mas seu cálculo foi impecável. Na verdade, aguardou até que Tippy
voltasse a Jacobsville para publicar a nota.
Tippy aninhava-se nos braços de Cash, vendo televisão; Rory viajara para um
acampamento com novos amigos — era sua terceira noite em casa.
— Você vai ter de voltar? — perguntou ele.
— Acho melhor não — murmurou ela, sorrindo para ele. — Joel me garantiu que já
tinha filmado tudo de que precisava. Fez até cenas extras, só por precaução.
— Precaução?
— Bem, daqui a poucas semanas eu já vou estar com outro aspecto.
Ele assistia ao tiroteio de um filme de faroeste, prestando pouca atenção ao que
ela dizia.
— Vai estar com outro aspecto? — ele refletiu.
Pôs a mão no bolso da blusa larga que usava e balançou alguma coisa diante do
nariz dele. Era cor-de-rosa, macia e parecida com uma meia. Bem pequenininha.
Cash encarou-a, de boca aberta, ao tomar consciência do que via. Era um
sapatinho de bebê.

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Ela fez uma careta.
— Surpresa!
Puxou-a para perto e beijou-a até quase sufocá-la, com o coração batendo
furiosamente.
Ela respondeu aos beijos, sorrindo de contentamento sob a boca firme.
— Estou tão feliz — disse, em um acesso de choro. — Eu nem acreditei, quando
comecei a perder a hora do café-da-manhã!
Embalou-a nos braços, disfarçando as lágrimas nos olhos. Mergulhou o rosto
quente no pescoço dela, abraçando-a com ternura e ansiedade.
— Um bebê!
Ela suspirou de felicidade.
— Gostaria de ter gêmeos, como Judd e Crissy, mas não sei de nenhum caso na
minha família. E na sua?
— Nada de gêmeos. — Ele levantou a cabeça e olhou-a com paixão.
— Não sei se você acata ordens, mas eu gostaria muito de uma menininha de
olhos verdes e cabelo ruivo.
Ela riu, em meio às lágrimas.
— E eu gostaria de ter um menininho de cabelo preto e olhos escuros — murmurou
ela.
Ele sorriu carinhosamente.
— Acho que vamos amar o que vier.
— Claro que vamos. — Ergueu-se e beijou-o no rosto.— Feliz?
— Morrendo de felicidade — disse ele com a voz embargada.
— Entendo o que você quer dizer.
Ela fechou os olhos e aconchegou-se. Sentia-se mais feliz do que em qualquer
outro momento de sua vida.

Rory pulou e gritou de alegria ao saber da novidade.


— Vou ser tio! Cash balançou a cabeça.
— Parece que sim — ele concordou, dando tapinhas nas costas do garoto.
— Que legal, mana — disse aTippy, e abraçou-a. — Meus amigos vão ficar roxos
de inveja!
— Por falar em amigos... — Cash interrompeu com seriedade. — Você quer voltar
para a academia no ano que vem ou prefere morar conosco e ir à escola em Jacobsville?
Rory estava indeciso.
— Acho que estou atrapalhando, aqui...
— Ficou maluco? — Cash reclamou. — Quem vai pescar comigo? Ela é que não
vai — apontou para Tippy. — Desmaia toda vez que falo de minhocas e anzóis na mesma
frase.
Tippy pôs a mão na boca e correu para o banheiro.
— Viu? — Cash incentivou. — Não vou agüentar isso sozinho. Você tem de ficar.
Rory exultou.
— É o que prefiro mesmo.
— Eu também — Cash garantiu, despenteando os cabelos cheios do garoto. — Já
me acostumei com você.
— É — disse Rory, querendo falar apesar do bloqueio na garganta. — Também já
me acostumei.
Tippy saiu do banheiro com uma toalha molhada nos lábios e olhar vidrado.
— Se falar de minhocas outra vez, vou pegar aquela frigideira de ferro no armário
— ela ameaçou.
Os homens levaram a mão ao peito.

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— Eu juro! — Os dois disseram em uníssono, com um ar tão solene que
estouraram em uma gargalhada, apesar do enjôo dela.

Nos dias que se seguiram, Tippy e Crissy ficaram mais próximas. O mesmo
ocorreu com Cash e Rory. As coisas se acalmaram na Prefeitura e na Delegacia de
Polícia. Cash pôde se concentrar mais nos programas sociais. Perdeu a antiga pose e
passou a agir como um homem que tem um bebê a caminho. Os outros policiais se
divertiam com este súbito interesse por livros sobre como cuidar de crianças e
imaginavam o que estava ocorrendo sem que se comentasse. Cash passou a encontrar
miudezas em sua mesa. Eram graciosos sapatinhos de bebê, de todas as cores.
Apareciam mantas feitas a mão, casaquinhos, chocalhos e colheres. Ele ficava acanhado
com o entusiasmo que sua delegacia demonstrava pela chegada da paternidade, mas
também um pouco curioso.
— É simples — Judd explicou. — Você vai formar uma família. Isso quer dizer, ao
que parece, que vai ficar aqui. Todos estão prevendo seguro e benefícios para a
aposentadoria. Agora, você não conseguiria cruzar a fronteira do condado, se resolvesse
ir trabalhar em outro lugar.
Cash ficou lisonjeado e tentou não demonstrá-lo. Mas sorria de orelha a orelha.
As semanas se passavam, ele e Tippy eram convidados para toda espécie de
festas e reuniões, e eventualmente as pessoas passavam por Tippy, olhavam seu rosto
único e viam a pessoa de carne e osso. Ela e Cash tornaram-se apenas cidadãos de
Jacobsville, em vez de serem celebridades, tipos misteriosos ou coisas assim. Faziam
parte de uma grande família, pela primeira vez, na vida de cada um.
A família adquiriu um novo significado quando os três irmãos e o pai de Cash
apareceram de repente na cidade e bateram na porta da frente, na hora do almoço. Era
um sábado quente, no início do outono.
Tippy parou à porta, olhando os visitantes com total surpresa. O pai, que tinha
cabelos prateados, era a cópia exata de Cash, a não ser pela idade. Os outros três
lembravam Cash, mas não muito. Eram todos altos e com boa aparência. E de poucos
sorrisos.
— Posso ajudar? — indagou ela.
Olharam para a barriga, para o anel na mão pousada sobre ela e trocaram olhares
enigmáticos.
— Cash está? — perguntou o irmão mais velho.
— Sim, está nos fundos, jogando bola com meu irmão.
— E... quem é você? — quis saber o pai.
— Sou Tippy Grier, esposa de Cash — ela falou com simplicidade.
Os rostos demonstraram espanto.
— Você disse que era invenção dos jornais, como todas as mentiras que eles
publicam — o filho mais velho resmungou para o pai.
— Bem, podia ser — o idoso se defendeu.
O irmão mais velho trespassou-a com olhos escuros iguais aos de Cash e cabelos
castanho-claros.
— Está grávida, não é? — indagou ele sem rodeios.
— Não ligue para ele, trabalha para o FBI — disse o mais jovem, com um sorriso
forçado. — Não tem senso de humor, é igual a Cash.
— Cash tem senso de humor, sim — Tippy falou abruptamente.
— Acha que ele pode nos atender? — perguntou o pai com calma.
— É claro que pode — respondeu Tippy com segurança. — Não vão entrar?
Eles hesitaram.
— Está tudo bem — disse ela, abrindo a porta e um sorriso. — Tenho café fresco e

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uma torta de queijo. Ia mesmo chamar Cash e Rory para comerem. Temos bastante.
Entraram com passos lentos, olhando em torno, pouco à vontade.
— Vou chamar Cash — disse ela, mas os homens lançaram olhares apreensivos
para trás dela.
— Não precisa — Cash replicou, juntando-se ao grupo. Seus olhos passaram de
um para outro.
Encarou a família que não via há anos, a não ser pela visita inesperada do irmão
Garon, no ano anterior. Fora recebido de portas abertas. Ao que parece, finalmente os
via. Tinha sentimentos confusos em relação aos dois irmãos mais novos porque eles,
junto com o pai, ficaram contra Cash nos dias que se seguiram ao segundo casamento
daquele. Cash afastou Tippy para o lado.
— Eles se apresentaram?
— Individualmente, não — ela replicou, sorrindo para ele.
Os outros ficaram paralisados diante do sorriso radiante, que a transformara, de
imediato, no rosto da modelo conhecida em todo o mundo.
— Sou Vic — o pai de Cash se apresentou. — Este é Garon... — mostrou o agente
do FBI, quase tão alto quanto Cash. — Este é Parker... — apontou um homem magro,
com cabelos escuros e ondulados e olhos verdes — ... ele é fiscal de jogo e pesca. O de
chapéu de caubói, que ele não tira nunca, é Cort — Vic completou com sarcasmo,
diretamente para o homem musculoso com olhos escuros e debochados. — Ele cuida da
nossa fazenda no oeste do Texas.
— Sou Tippy — ela replicou com um sorriso. — Muito prazer a todos. Aceitam café
e torta de queijo?
Eles se descontraíram e seguiram Tippy e Cash até a cozinha.
— Sabe cozinhar? — perguntou Garon educadamente, enquanto ela fazia mais
café.
— É claro que sabe — retrucou Cash ligeiramente ofendido.
— Ah. Isso explica a história da frigideira — murmurou Parker com um sorriso
perverso.
— Isso é invencionice de jornal sensacionalista — disse Garon, com revolta na voz.
Cash olhou para ele.
— Por incrível que pareça, é a pura verdade. Ela acabou tirando uma 45
automática das mãos do sujeito e partiu para cima dele com a frigideira. Quando cheguei
aqui, com dois carros da patrulha, ele estava de joelhos no quintal, implorando para que
nós o salvássemos. — Dirigiu à esposa um sorriso apaixonado. — Ela é um mito na
região.
Respondeu com um sorriso sem graça:
— Vou colocar aquela frigideira numa moldura — ela brincou.
— Achamos que o casamento também era história dos jornais — murmurou Garon.
— De jeito nenhum — disse Cash, com olhos possessivos pousados no rosto
bonito de Tippy. — Nunca vai se separar de mim.
— Nem em pensamento — Tippy completou delicadamente.
Vic tomou café e observou o filho e a nora em silêncio.
— Nunca imaginei que você haveria de se casar e sossegar — ele confessou. —
Mas tinha esperança de que, um dia, isso acontecesse.
— Levei muito tempo para fincar raízes — Cash admitiu.
— Foi culpa minha — Vic falou com serenidade. — Espero que não seja tarde
demais para me desculpar. Garon contou que levou um chute, no ano passado, então
decidimos lhe dar um tempo para ver se podemos corrigir esse erro. O que você acha? —
ele concluiu com os olhos baixos e as mãos rígidas em torno da xícara de café.
Cash respirou profundamente.
— Finalmente eu entendi por que tudo aconteceu daquele modo — ele confessou.

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Os olhos negros pousaram no belo rosto de Tippy. — Eu não conseguiria me afastar de
Tippy, mesmo se já estivesse casado — disse ele sem rodeios.
Tippy prendeu a respiração diante da expressão de seus olhos e daquelas
palavras. Sentia-se flutuar. Ele nunca mencionara de fato como se sentia, ainda que o
demonstrasse eventualmente.
Cash estendeu a mão e prendeu os longos dedos nos de Tippy, sorrindo para ela
antes de voltar a atenção para o pai.
— Nenhum de nós vai voltar a ser jovem — disse ele afinal. — Acho que está na
hora de fazermos as pazes.
Vic sorriu pela primeira vez.
— Está na hora — ele concordou.
— Também temos novidades — disse Garon. — Vamos comprar a velha mansão
Jacobs.
Cash ficou surpreso.
— Soube que esteve lá. Mas você não negocia cavalos.
— Não negociamos — Garon replicou. — Vamos criar bois, o puro-sangue Black
Angus.
— Você? — Cash insistiu, pois seu irmão era da polícia.
— Tenho de morar em algum lugar — disse ele, e pareceu assustado. Fixou o
olhar no mais moço, Cort, que ainda estava com o chapéu de caubói. — Ele está
querendo se casar.
— Com alguém daqui? — perguntou Cash, que pouco se lembrava das pessoas
que conhecera na juventude.
— Ainda não escolheu a sortuda — disse Parker com um sorriso sem graça. —
Quer ter a família dele. Vai começar este ano a procurar a candidata mais adequada.
— Ele é muito convencido — Garon acrescentou, piscando os olhos escuros. —
Acha que é bonito.
— E sou — Cort falou sem constrangimento.
Todos riram.
— Mas não foi só por isso que pensei no imóvel daqui — Garon continuou. —
Queremos uma base de operações mais próxima de você do que o oeste do Texas.
— Além do mais — Vic acrescentou —, ouvimos falar que a força policial daqui é
muito eficiente.
Cash riu com uma careta.
— Pode apostar.
A visita foi longa e agradável.
Rory juntou-se a eles e foi apresentado. Ficou fascinado com o agente do FBI e
passou meia hora extraindo informações sobre as disciplinas que deveria estudar para
poder ingressar depois de formado.
Ao final da visita, Cash sentiu que o futuro seria bom para todos. Ainda havia
alguns senões, mas eram menores e antigos. Haveriam de passar.
Tippy e Cash acenaram para eles, quando saíram, e Rory voltou aos seus filmes.
Tippy reparou certas coisas nos Grier, durante a visita. Usavam roupas de grife,
discretas, mas caras. Dirigiam uma Mercedes, que parecia ser nova, e do modelo mais
caro.
— São muito ricos, não são? — perguntou ela.
Ele assentiu.
— Bastante. Papai pensava que o dinheiro ia me segurar em casa e me fazer
baixar a cabeça. Errou feio.
Passou os braços em torno dele e apertou.
— Entendi isso na primeira vez em que fiquei no carro sozinha com você, indo do
hospital para o meu hotel, quando Crissy levou o tiro.

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Ele ficou surpreso por ela o ter abraçado, como se fosse muito natural. Envolveu-a
nos braços.
— Você me surpreendeu naquele dia. Gostei do que vi.
— Mas não demonstrou — ela devolveu.
Ele deu um sorriso caloroso.
— Seria muita audácia. A top model não ia me convidar para entrar.
— Era só máscara — ela replicou. — Aprendi a representar. No fundo, sempre fui
tímida e introvertida.
Deslizou os lábios pelo nariz dela.
— E você ainda não usa os óculos — ele lembrou.
Ela riu.
— Uso, às vezes, quando você não está em casa.
— Pura vaidade — ele acusou. — E sem necessidade. Acho você sensual de
óculos — ele acrescentou, e beijou-a com ternura. — Acho você sensual de qualquer
jeito.
— É mesmo? — exclamou ela ofegante.
Beijou-a com mais ardor,sentindo a pressão do corpo suave. Seu próprio corpo
reagiu imediatamente, e ele gemeu junto aos lábios dela.
Mordeu com força o lábio inferior dele.
— Estou me sentindo fraca. Preciso me deitar. Você pode me trazer uma toalha
molhada e trancar a porta.
— Rory...
— Vai pensar que estou enjoada e continuar vendo o filme — ela sussurrou. — E
eu vou ficar muito, muito calada.
— Você fala por si — resmungou e beijou-a com mais força.
Ela sorriu sob a boca devoradora.

Fazia calor no quarto, mas eles não se lembraram de ligar o ar-condicionado. Cash
mal teve tempo de trancar a porta antes de carregá-la para a cama e tirar as cobertas.
Tippy o ajudou a tirar algumas peças de roupa.
— Desculpe — ele sussurrou ao se colocar no meio das longas pernas dela, com o
corpo estremecendo de excitação. — Não posso esperar...
— Tudo bem, eu também não — disse ela com voz ofegante, mexendo-se com
rapidez para que ele a possuísse.
Arfou sob a potência dele, olhando-o nos olhos, enquanto ele baixava os quadris e
empurrava com mais força.
Cravou as unhas nos músculos do antebraço, involuntariamente, reagindo à
intensidade do prazer.
— Está machucando? — perguntou ele de imediato.
— Não — exclamou, estremecendo. — Faça outra vez.
Os olhos dele brilharam. Sentiu-a ao seu redor, quente, úmida, macia. Subia e
descia repetidas vezes, preenchendo-a com movimentos rápidos e impulsivos.
Ele mudou de posição, separou com os cotovelos as pernas dela, xingando por ter
de parar para acabar de tirar os jeans e a roupa de baixo para poder curvar a própria
perna.
Ela não protestou. Mal conseguia pensar.
— Vamos — ele soprou com voz seca. — Prenda suas pernas em mim, para sentir
como eu vou fundo.
Respirava ofegante, ardendo em fogo por ele. Deslizou as pernas pelas dele,
levantando os quadris em um arco óbvio. Ele baixou sobre ela com ânsia, mergulhando
os quadris nos dela, enquanto via se transformar em seu rosto a expressão selvagem,

150
com prazer crescente.
— Fazemos uma boa dupla — murmurou ele com voz fraca. — Está cada vez
melhor.
— Sim. Melhor. Melhor.
Ela arfava, desamparada, estremecendo quando o movimento do corpo dele a
empurrava para a espiral do gozo, um glorioso passo de cada vez. A expressão do rosto
fixou-se, as pupilas se dilataram. Puxava o ar com ritmo, ao encontro do corpo frenético
dele, que chegava à satisfação.
Explosões, pensou, sem vê-las. Explosões belas, quentes, que a faziam distender-
se até estourar, na incomparável liberação da vida.
Arqueou as costas e quis refrear os gritos de prazer que não conseguiu conter.
Não reconhecia a própria voz.
Ao mesmo tempo, ele era incapaz de resistir mais. Tremia convulsivamente, e um
rugido urgente rasgou a garganta tensa quando ele se deteve e, depois, tombou sobre o
corpo úmido em completa exaustão.
Ela partilhou com ele o arrepio, de olhos fechados, os braços envolvendo-o em
abraço trancado. Sentiu maravilhada o peso dele, tão próximo que ambos pareciam um
único corpo a respirar.
— Nunca são duas vezes iguais — ela sussurrou, com delicadeza. — E a última é
sempre a melhor, mesmo que a anterior tenha sido fantástica.
— Eu reparei — ele devolveu.
A boca passeava pelo rosto corado. Sorriu ao beijá-la com ternura.
Passou os longos dedos pelos cabelos úmidos da nuca e sorriu com sonolência.
— Não houve tanta urgência, das outras vezes.
— Agora estamos mais sintonizados um com o outro — ele replicou. — E temos o
bebê.
A mão grande de Cash pressionou com delicadeza a barriga em que crescia seu
filho.
— Você me excita. É espantoso pensar que meu filho está debaixo do seu
coração. Eu custo a acreditar.
Tocou os lábios dele com as pontas dos dedos e sorriu.
— Eu amo estar grávida — ela sussurrou. — Quase tanto quanto amo você.
Levantou a cabeça e olhou dentro dos grandes olhos dela.
— E eu amo você Tippy — disse ele em tom solene. — Com todo o meu coração.
Por toda a minha vida, e a sua.
A respiração dela era audível e entrecortada.
— Você não sabia? — perguntou ele com ternura. — Todos já sabiam.
As lágrimas brotaram nos olhos dela.
— Você nunca me disse. Mas eu esperei. Como esperei!
Ele beijou as lágrimas.
— Nunca teria se dado para mim, naquela primeira noite, se ainda não me amasse.
Eu sabia, e estava morto de medo de que a história se repetisse. Eu pensei, quando você
me conheceu, que também ia me virar as costas.
— Nunca, em um milhão de anos — murmurou ela. — Eu amava você demais.
— Tomei consciência disso, finalmente. — Beijou-a com carinho. — Desculpe por
ter feito você passar por tanta coisa, meu bem.
Ela sorriu e voltou a descansar no colchão.
— Você mais que me compensou pelo difícil começo que tivemos. Por isso eu
acho que vamos viver felizes para sempre em Jacobsville, no Texas, com a casa cheia de
filhos e, quem sabe, um cachorro.
— Posso trazer a cobra de volta — ele brincou.
— Quem sabe um cachorro — ela repetiu. — Rory gosta de cachorros.

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Ele suspirou.
— Pode ser um cachorro — concordou finalmente, com um sorriso.

Capítulo Dezessete

Fevereiro chegou com um clima quente pouco comum. O bebê de Tippy era
esperado para qualquer dia. Embora a vida com Cash e Rory fosse idílica, ficou
preocupada quando ele recebeu uma ligação da capital dos Estados Unidos e não
comentou com ela. Tinha quase certeza de que era uma oferta de trabalho clandestino.
Ficava inquieto, às vezes, apesar do amor entre eles. Não estava segura, mesmo agora,
de que ele fosse se contentar com o que ocorria em uma cidade pequena como
Jacobsville. Se voltasse aos perigos da vida de antes, ela não sabia se poderia suportar.
A vida dela, por outro lado, tornara-se agradável. Há muito tempo terminara o filme
de Joel Harper e começava a receber direitos sobre o primeiro trabalho no cinema. Joel
lhe oferecera outro papel, mas ela preferiu esperar o bebê nascer antes de tomar
qualquer decisão. Muitas mulheres conseguem harmonizar a vida profissional com a
maternidade. Tippy não sabia se isso era o que queria. Juntos, ela e Cash tinham mais
dinheiro do que podiam gastar. Tinha uma carreira surpreendente como modelo, e agora
como atriz, mas não queria passar o resto da vida na vitrine. Principalmente se tivesse
filhos para criar. Em Jacobsville, sentia-se em casa, e as hordas de repórteres não a
perseguiriam ali. As pessoas ainda falavam sobre o modo como Matt Caldwell despistou a
imprensa, antes de se casar com sua Leslie, que tinha um trágico passado a superar. Os
repórteres dos jornais sensacionalistas raramente se aproximaram de Jacobsville depois
disso.
Tippy pensava no assunto sem ansiedade. Teria sua privacidade e família, e
acreditava de fato que isto seria suficiente para fazê-la feliz. Mais tarde, se fizesse
questão de seguir a carreira, sabia que Cash a ajudaria com tudo que estivesse ao seu
alcance. Agradava-lhe o fato de poder escolher.
Neste momento, porém, a única coisa que a interessava era o nascimento que
ocorreria em breve. Sua obstetra lhe dera uma data provável, mas os bebês são
tradicionalmente imprevisíveis. E se entrasse em trabalho de parto no momento em que
ninguém estivesse por perto?
Por ironia, no dia seguinte ao misterioso telefonema de Cash, a bolsa de água se
rompeu na hora em que preparava o café-da-manhã. Rory tinha acabado de descer com
a mochila da escola e Cash abotoava a camisa quando o chão ficou subitamente
inundado.
Tippy estava ali no meio, sufocando um grito que era um misto de medo e
constrangimento.
— Nada para se preocupar — disse Cash imediatamente, sorrindo para ela se
sentir segura, enquanto a acomodava em uma cadeira da cozinha e pedia a Rory duas
toalhas de banho. — O bebê está chegando, é só isso. Vamos levar você para o hospital.
Não fique preocupada, está bem?
— Está bem — respondeu ela, acalmando-se.
Rory colocou uma toalha no chão e entregou a outra a Tippy.
— Eu vou na frente para abrir o portão do carro — disse ele.

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— Grande garoto — Cash replicou. — Vai correr tudo bem.
Carregou Tippy nos braços, sorrindo como o gato de Alice, no País das Maravilhas.
— Vamos ter nosso bebê — murmurou ele com ar travesso. Ela passou os braços
em torno do pescoço dele.
— Ah, Cash, estou tão feliz!
— Eu também. As contrações começaram? — Fez a pergunta quando ela se
enrijeceu e gemeu.
— Sim!
— Respire, meu bem. Respire do jeito que você aprendeu no curso de parto
natural.
Fez uma demonstração do ritmo e ela continuou, embora a dor aumentasse e as
contrações ficassem mais fortes a cada respiração.
Colocou-a no banco da frente, sobre a toalha, e Rory foi atrás. Cash dirigiu até o
hospital com uma calma e eficiência que inspiraram confiança em Tippy.
No caminho, ligou para a emergência e avisou Lou Coltrain, a clínica de Tippy, de
que iam para lá. Lou disse que avisaria a obstetra para ficar de sobreaviso. Por sorte, ela
já estava no hospital, fazendo outro parto.
Cash colocou Tippy na maca e acompanhou-a, com Rory do outro lado, ambos
segurando-lhe as mãos.
As enfermeiras a levaram para a sala de parto e iniciaram imediatamente os
preparativos.Vestiram Cash com uma bata e máscara. Rory, entretanto, teve de ficar na
sala de espera.
— Meu Deus, a dilatação está quase completa — exclamou a obstetra ao se sentar
na banqueta para começar o parto.
— A cabeça do bebê está quase para fora. Força, Tippy, isso mesmo, força, isto
vai ser rápido.
— É menina? — indagou Cash com esperança.
A dra. Warner olhou para ele por cima da máscara. Tinha um olhar sorridente.
— Estou do lado contrário para descobrir isso, neste momento.
Cash sacudiu a cabeça, sempre segurando a mão de Tippy.
— Estou aqui — disse a Tippy quando ela gemeu. — Vai dar tudo certo. Falta
pouco.
A médica deu ordens, Tippy obedeceu, persuadida por Cash. Em menos de cinco
minutos, um bebê chorão, pequeno, rosado, foi limpo, envolto em um lençol e entregue
aos braços da mãe.
Tippy abriu o lençol e Cash se debruçou para olhar. Prendeu a respiração.
— É menina — murmurou ele como se tivesse descoberto o segredo da vida. —
Uma menininha! — Abaixou-se para beijar Tippy avidamente. — Que mulher maravilhosa!
Uma enfermeira arregalou os olhos.
— Não queria um menino?
— Mais tarde — disse Cash, paralisado pela emoção. — Mas o que eu mais queria
era uma menininha de cabelo ruivo e olhos verdes — ele falou com voz rouca —,
parecida com o meu amor.
Tippy começou a chorar, feliz demais para se conter.
A enfermeira apenas suspirou, com um sorriso contagiante. Que mulher de sorte,
pensou. Rica, bonita, famosa, com um homem desses, apaixonado por ela e feliz por ser
pai.

Cash foi finalmente arrancado de sua nova família, para ir em casa buscar a mala
de Tippy.
— Você não vai aceitar trabalho fora daqui, vai? — ela deixou afinal escapar a

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pergunta que a consumia, encarando-o com verdes olhos amedrontados.
Os lábios dele se abriram de imediato, para tomar ar.
— Não! — disse Cash em tom seco, e beijou-a no rosto. — É claro que não!
— Desculpe — disse ela de modo abrupto, secando as lágrimas. — Ouvi por acaso
quando ligaram para você. Tenho tanto medo de não estar feliz aqui, sem a agitação do
trabalho antigo...
— Estou muito feliz aqui — ele garantiu com delicadeza. — Disse a eles que não
— ele acrescentou de maneira gentil. — Estou ficando velho demais para as exigências
desse trabalho. Foi por isso que voltei para a polícia. Tenho minha vida aqui. Tenho
família. Isso foi o que eu sempre quis na vida. Não vou abrir mão de tudo.
Ela o beijou com avidez.
— Obrigada!
— Obrigado a você — ele replicou. — Por me amar. Por esse pequeno e lindo
tesouro que me deu. Por tudo. — Os olhos escuros piscaram. — Nunca tive sequer a
esperança de ser tão feliz.
— Nem eu — disse ela, sorrindo entre as lágrimas.
— Vou em casa só para apanhar suas coisas — ele prometeu. — Nada de
segredos sobre trabalho em operações especiais quando você virar as costas. Eu
prometo.
— Está bem. — Deu um sorriso bonito para ele, com a filha se alimentando no
peito. — Volte logo.
— Volto já — disse ele, balançando a cabeça. Olhou a filha demoradamente. —
Que nome vamos dar? O que acha de Tristina Christabel?
Em outros tempos, Tippy ficaria magoada. Mas agora, depois que Christabel se
tornara sua amiga mais próxima, soava muito natural. Nem tinha qualquer suspeita de
que Cash ainda estivesse apaixonado pela outra mulher. Tippy sabia.
Sorriu animadamente.
— Eu gosto.
— Eu também.
Piscou o olho e saiu, ainda sorrindo.

Cash atravessava o estacionamento para chegar à sua caminhonete utilitário preta


quando ouviu um helicóptero passar. Olhou para cima a tempo de ver um pequeno pára-
quedas ser lançado da aeronave, que rapidamente voou para longe, em direção à base
da Força Aérea em San Antonio.
Curioso, Cash viu o pára-quedas cair e foi apanhá-lo. Na ponta estava amarrado
um saco preto em miniatura, contendo um suéter preto de gola rulê, calças pretas de
malha, sapatos, gorro de lã e luvas, tudo no tamanho de bebê. Uma placa de identificação
de prata, com cordão, estava pendurada na gola rulê, com uma inscrição: CIA.
Cash observou o helicóptero até perdê-lo de vista, sem conseguir parar de rir.
Tippy não ia acreditar, pensou, enquanto levava a sacolinha e o pára-quedas para o
carro. Reviu os dias selvagens, livres, de excitação, perigo, correria e adrenalina. Depois
olhou em volta, a pequena cidade que dependia dele para ter segurança. Sabia que tinha
feito a escolha certa. Girou a roldana do utilitário e saiu para as ruas calmas, na direção
de casa.
No hospital, Tippy Grier cantava uma canção de ninar para a recém-nascida, e o
irmão, sentado em uma cadeira ao lado da cama, ouvia com satisfação. Fama e glória,
pensou, eram prazeres fugazes. A verdadeira felicidade era ter alguém só seu, e ser só
dele. Cash, Rory e o bebê eram mais importantes para ela do que qualquer tesouro sobre
a face da Terra.
Olhou para Rory com carinho.

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— Eu me lembrei de uma coisa — disse ela.
— O que foi? — perguntou Rory.
Ela riu.
— É meu aniversário! — Viu a pequenina em seu braços. — Que presente eu
ganhei!
Precisava se lembrar de contar a Cash, quando ele voltasse.

Aquele natal foi o melhor que já tiveram. As eleições foram animadas. Calhoun
Ballenger era o novo senador, tendo vencido seu oponente com facilidade. Janet Collins
estava na prisão pelo resto da vida, pelo assassinato do velho sr. Hardy. Julie Merrill
ainda respondia a diversas acusações, incluindo incêndio criminoso e tráfico de drogas.
Dois vereadores foram indiciados por ligação com o tráfico, da mesma forma que o ex-
prefeito em exercício de Jacobsville, Ben Brady, que desaparecera misteriosamente.
Também fora marcada a data do julgamento dos seqüestradores de Tippy, no próximo
verão, mas ela não estava preocupada com isso. Não havia a possibilidade de receberem
penas leves, depois da confissão de sua mãe aos federais, no leito de morte. Foi a única
coisa digna que fez pelos filhos. Enquanto isso, Rory escrevia ao seu pai biológico e se
informava sobre quem ele era. Tippy nunca saberia quem era seu pai, mas se conformava
ao pensar que poderia ser alguém até pior do que sua mãe e Sam Stanton. Tinha Cash, e
tudo era suportável. Apaixonavam-se mais a cada dia que passava.
Mas a grande atração da casa dos Grier era a bebê Tris. Encantava os pais e o tio
Rory, para não falar nos cidadãos de Jacobsville. Sob a árvore de Natal com quase três
metros havia uma quantidade de embrulhos coloridos, a maioria deles para a menininha.
O filme de Tippy estava programado para distribuição nos próximos seis meses.
Isso significava algum tempo gasto em ações promocionais, mas Cash já tinha planos de
ir junto, levando Rory e Tris.
— Você pode voltar a atuar se quiser, você sabe — Cash lembrava.
Ela sorria para ele.
— Estive pensando nisso. Não tenho muita certeza do que quero. Há tanta coisa
que eu poderia fazer aqui mesmo, em Jacobsville, se precisar. Poderia montar uma
agência de modelos. Poderia voltar a estudar e terminar a faculdade, para lecionar teatro
como professora adjunta.
— Não sente falta dos holofotes e da agitação? — perguntou ele delicadamente.
Percebeu que ele também se sentia inseguro quanto à escolha feita por ela, da
mesma maneira que ela se sentira quando ouviu aquele telefonema. Foi até ele,
sorridente, e apertou seus braços fortes.
— Sou como você. Já tive minha quota de alto padrão de vida, de agitação e
glamour. Só quero criar nossos filhos e passar meus dias e noites com você.
Ele compreendeu e concordou com a cabeça.
— Fama e fortuna ficam vazios quando não se tem com quem compartilhar.
Os olhos dela brilharam.
— Exatamente o que eu estava pensando! Lançou para ela um olhar malicioso.
— E isso seria seu "terceiro olho" me espionando, sem dúvida.
Ela deu uma gargalhada e beijou-o avidamente.
— Amo você.
— Amo você, também.
Ergueu-a do chão e carregou-a para dentro, para alegria de Rory e de seus
amigos, que jogavam videogame na sala, enquanto Tris balbuciava no cercado.
— Chefe Grier, é verdade que o senhor foi dos Texas Rangers? — perguntou um
dos garotos.
— Fui, sim — ele concordou, baixando Tippy para que pudesse tirar a filha do

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cercado.
— Já atirou em alguém? — insistiu o garoto.
Esta pergunta, poucos meses atrás, seria devastadora. Porém, desde o dia em que
confessou tudo para Tippy e, mais tarde, conversou com um pastor religioso do lugar, era
um homem mudado. Sorriu para o garoto.
— A polícia existe para garantir que ninguém vai levar um tiro — disse ele ao
garoto. — E pode falar que fui eu quem disse isso.
— Quer jogar, Cash? — perguntou Rory.
Todos riram. Tippy juntou-se a Cash no corredor, com a filha.
— O que você acha que ela vai ser quando crescer? — indagou Tippy com ar
distraído.
Cash olhou para ela, depois para a bela esposa.
— Vai ser muito bonita — respondeu ele com enorme ternura.
E foi mesmo.

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