Você está na página 1de 13

Ao prefaciar seu Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche faz duas afirmações complementares:

“existe poder de curar mesmo no ferimento” e “há mais ídolos do que realidades no mundo.”
A filosofia de Nietzsche não é nem sistemática nem tampouco tributária da linguagem
filosófica do século XIX.

Durante o século XX o iconoclasta alemão acabou se tornando ídolo. Em razão disto, chegou
o momento de voltar contra Nietzsche seu próprio método ou ausência dele.

A implicância do filósofo alemão com Sócrates é evidente. Ao longo de um capítulo ácido,


ele procura demolir o ídolo grego. O problema de Sócrates, entretanto, é um monumento
construído sobre as nuvens.

Sócrates não deixou uma só linha escrita. Sabemos que um homem chamado Sócrates viveu
no século IV a.C., em Atenas, que se dedicou à filosofia e foi condenado a morrer tomando
veneno. Nada mais sabemos!

Platão e Xenofonte referem-se a um tal Sócrates, que teria dito isto ou aquilo. Entretanto,
como Sócrates nada deixou escrito não podemos verificar a veracidade das palavras
atribuídas ao tal Sócrates por Platão e Xenofontes. Assim, não podemos descartar a hipótese
de ambos terem construído uma personagem chamada Sócrates atribuindo a mesma suas
próprias idéias.

Se voltasse contra Sócrates o princípio da dúvida irônica que lhe foi atribuída por seus
discípulos (tudo que sei é que nada sei), Nietzsche certamente não perderia seu tempo em
criticar uma personagem. Ao criticar uma personagem, o filósofo alemão pode ter criado um
simulacro. Ironicamente nunca teremos condições de saber quando Nietzsche se refere ao
homem Sócrates, que nada deixou escrito, ao personagem de Platão e de Xenofonte, ou ao
simulacro que ele próprio criou da personagem.
Nos itens 2 e 3 do mesmo capítulo, Nietzsche refere-se às características de Sócrates: feio,
oriundo do populacho, etc... Não existe um único registro confiável que nos permita com
segurança dizer quais eram as características físicas de Sócrates. As descrições feitas dele por
terceiros estão sujeitas às preferências estéticas daqueles que as fizeram. Se realmente for
verdadeira a informação que o homem Sócrates foi um hoplita e se distinguiu numa batalha,
podemos admitir como razoável a seguinte conclusão: o homem Sócrates tinha uma
constituição física apta para os rigores do serviço militar daquela época. Se ele era feio ou
bonito, isto não o impediu de demonstrar valor nos campos de batalha.

O julgamento que Nietzsche faz de Sócrates com base nas teorias raciais do século XIX é
ridículo. Primeiro, porque o filósofo alemão não submete a julgamento as próprias teorias
racistas que presumiu serem verdadeiras. Segundo, porque mesmo que pudesse admitir a
veracidade das mesmas, o filósofo alemão não poderia enquadrar o homem Sócrates segundo
esta ou aquela característica racial. Falta-lhe o essencial: a análise científica do esqueleto do
ateniense morto em IV a.C..

Todo homem é fruto de suas tendências, de seu próprio tempo e da sociedade em que foi
criado. Os julgamentos que fizermos de nossa própria cultura sempre serão imprecisos e
limitados e, sem dúvida alguma, entrarão em conflito com os julgamentos feitos por aqueles
que estão fora dela. Mas os julgamentos que fizermos dos fatos passados serão sempre
sujeitos à fabulação.

Nietzsche critica a degeneração da sociedade ateniense ao tempo de Sócrates. Considera o


próprio Sócrates responsável pela decadência de seu tempo. Platão e Xenofonte dizem que
um tal Sócrates teria combatido a decadência de seu tempo. O homem Sócrates foi julgado,
sentenciado e executado. Portanto, não podemos dizer que todos os atenienses consideravam
seu tempo decadente. Platão e Xenofonte consideravam-no decadente, mas não podemos nos
fiar apenas nas palavras de dois homens que moravam numa cidade com pouco mais de
40.000 habitantes (a maioria dos quais escravos). Tampouco podemos dizer que o homem
Sócrates foi condenado por ser agente da decadência. Do exercício do poder não se presume a
justiça da condenação. Além disto, um só homem não poderia corromper toda a cidade de
Atenas, e se o fizesse, certamente não seria condenado e sim tratado como herói ou, no
mínimo, igual entre pares.
A crítica ao pseudo-grego Sócrates e à decadência da qual ele seria sintoma e instrumento,
revela o verdadeiro desconhecimento ou desprezo de Nietzsche pela história. Voltemos no
tempo.

A democracia foi o regime criado por Clístenes e aperfeiçoado por Péricles. Seu apogeu
ocorreu no século IV a.C.. Democracia quer dizer literalmente poder do demos. O vocábulo
demos designa a forma pela qual a sociedade ateniense foi dividida por Clístenes. Para
entender melhor a novidade criada pelo reformador das instituições atenienses é preciso
lembrar que as Cidades-Estado foram criadas à força.

À medida que a primeira Guerra Médica começava a se aproximar, as maiores cidades


gregas (Atenas, Esparta e outras) reforçaram a fortificação de seus perímetros e forçaram as
populações rurais a abandonarem as aldeias e a se transferirem para a urbe. A reação popular
a este processo, conhecido como sinecismo, foi muito grande e a absorção das populações das
aldeias pelas Cidades-Estado acabou sendo executada à força.

No princípio, os novos habitantes de Atenas não tinham como interferir no destino da cidade,
o que acarretou uma séria crise política que acabou sendo resolvida com a adoção da
democracia. O sistema adotado por Clístenes possibilitou a todos os cidadãos participarem da
administração pública, da elaboração das leis e da distribuição justiça. Péricles aperfeiçoou o
sistema ao possibilitar que os cidadãos mais pobres participassem da vida pública mediante
remuneração (mistoforia).

A decadência a que Nietzsche se refere seria, portanto, uma conseqüência do sinecismo.


Quando foi obrigada a optar entre ser conquistada pelos medas (persas) ou criar as condições
para defender-se, a aristocracia grega selou seu destino e aboliu espontaneamente a
homogeneidade racial da cidade. Sócrates, portanto, não poderia ser considerado um sintoma
ou um instrumento da decadência de Atenas, mas o resultado da decisão tomada pela
decadente aristocracia ateniense. Se a vontade de domínio dos aristocratas atenienses fosse
maior, certamente teriam enfrentado e vencido os medas sem recorrer ao sinecismo.

O homem condenado à morte em Atenas no século IV a.C. não era poderoso. Se fosse,
certamente não teria sido processado e condenado pelos seus adversários.

A morte do homem Sócrates não apagou sua memória. Platão deu vida a um Sócrates,
Xenofonte a outro. Nietzsche se empenha muito para enterrar a memória de um Sócrates,
mas não especifica se pretende atingir o de Platão, de Xenofonte ou aquele que ele mesmo
criou a partir dos relatos de ambos.

Nietzsche critica o sensualismo de Sócrates. Contudo, é incapaz de explicar porque a


vontade de domínio de um tal Sócrates não poderia se expressar através deste mesmo
sensualismo. O filósofo alemão desqualifica um oponente real que não pode se defender ou o
simulacro que criou a partir dos Sócrates de Platão e Xenofonte? Não lhe ocorreu que o
homem Sócrates talvez pudesse ser um aliado dele?

Admitamos que o homem Sócrates tinha como lema tudo o que sei é que nada sei. Desta
afirmação podemos concluir que ele desdenhava o conhecimento. Qualquer que fosse sua
origem (racional, sensual, etc.) o conhecimento poderia estar fadado ao erro. Como todo
conhecimento está sujeito a erro, a veracidade de qualquer proposição não pode ser
demonstrada ou sua demonstração deve ser questionada. Disto segue-se que diversas
proposições sobre um mesmo tema têm o mesmo valor porque não podem ser hierarquizadas.
Portanto, a predominância de uma delas dependeria exclusivamente da vontade do seu autor
de continuar a sustentá-la contra as demais até convencer a maioria dos interlocutores.

O espaço para um Sócrates nietzschiano existia, mas foi ignorado. Notadamente porque
Nietzsche considerava o ateniense como um precursor do cristianismo. Na ânsia de
desmantelar o cristianismo o filósofo alemão acreditou que deveria ir até sua suposta fonte.
Lá encontrou não um tal Sócrates, mas um oponente a ser destruído. Contudo, Nietzsche
poderia muito bem ter absolvido Sócrates e se considerado seu maior discípulo. Afinal, a
vontade de domínio poderia ter sido derivada da aplicação do lema socrático.

Curiosamente, Nietzsche admite, ao final do capítulo, que a filosofia socrática é produto de


seu tempo. O que é produto de seu tempo não pode ser apreendido na sua plenitude por
alguém de outro. Assim, um tal Sócrates não poderia ser a fonte primeira da moralidade cristã
combatida por Nietzsche. Ao retomar a filosofia socrática no século I d.C. os cristãos não
conseguiriam entender exatamente o sentido e o valor das palavras atribuídas a um homem do
século IV a.C. Portanto, as personagens de Platão e de Xenofonte poderiam ter sido deixadas
em paz pelo filósofo alemão que se debruçou sobre a versão cristã feita a partir das mesmas.

O capítulo A “razão” na filosofia exemplifica como um filósofo pode facilmente perder-se


dentro dos labirintos através dos quais pretende conduzir o leitor. Nietzsche afirma que “...só
possuímos ciência enquanto aceitamos o testemunho de nossos sentidos, enquanto armamos e
aguçamos nossos sentidos ensinando-os a se dirigirem ao fim que nos propomos.” A estranha
afirmação transcrita sugere uma pergunta. O que deve prevalecer: a hipótese primeira, o
método criado para demonstrá-la ou os resultados obtidos? Segundo Nietzsche, certamente a
hipótese primeira é a pedra filosofal da ciência. Assim, para atestar sua veracidade pode o
cientista até mesmo ignorar os resultados discrepantes produzidos pelo método que criou ou
se apoiar num método inadequado à demonstração da veracidade de sua hipótese. A razão,
todavia, obrigaria o cientista a corrigir a hipótese diante dos resultados que obteve ou a
abandonar um método inadequado de pesquisa. Mas como seus sentidos foram aguçados pela
vontade de atingir o fim a que se propôs (provar sua hipótese) segue-se que qualquer um
(cientista ou não) poderá tergiversar e apoiar-se no irracionalismo de Nietzsche para produzir
o que o alemão chamou de ciência.

Chegamos então ao verdadeiro ponto que separa os postulados nietzschianos dos socráticos.
Aqui cada qual terá que fazer sua escolha e arcar com as consequencias. A mim parece que é
melhor não saber nada do que saber algo somente em virtude da vontade que pode nos levar
ao erro.

A superação de um modelo teórico empírico por outro igualmente empírico já era um fato no
século XIX. O próprio Nietzsche admite isto implicitamente ao afirmar que devemos aceitar
o testemunho de nossos sentidos, ou seja, que não podemos rejeitar o testemunho de nossos
sentidos caso eles se choquem com as conclusões empíricas de determinado fenômeno. A
prova racional da superioridade do empirismo é um fundamento do irracionalismo do filósofo
alemão?

Quase no final do capítulo, Nietzsche faz a seguinte afirmação: “A razão na linguagem, que
velha embusteira!” A linguagem é veículo de todo e qualquer conhecimento, teoria, hipótese,
demonstração... Até a própria tese da vontade de domínio de Nietzsche precisou da
linguagem para ser transmitida. A razão na linguagem, portanto, não é uma exclusividade do
racionalismo. O próprio empirismo encontra na velha embusteira o veículo de sua
transmissão e, para usá-lo, curva-se à sua racionalidade ou tenta distorcê-la. Um
irracionalismo não escrito seria perfeitamente adequado aos princípios de Nietzsche. Mas
como ele gostava de contrariar seus propósitos...

Ao finalizar o capítulo, o filósofo fez quatro proposições que considerou fundamentais. Ele
as julga capazes de demolir o edifício racional. Não vamos reproduzir as proposições de
Nietzsche, mas apenas rejeitar suas conclusões.
A primeira proposição pode ser refutada da seguinte maneira: se a realidade é fruto apenas
dos sentidos, não pode ser compartilhada, pois a linguagem não é sensível. A segunda
proposição pode ser rejeitada da seguinte maneira: porque não pode ser comunicada, a
realidade sensível pode ser tão ilusória quanto a realidade absoluta. A terceira não faz
qualquer sentido, pois ao negar a natureza real do mundo em que vive, o homem apenas se
capacita para aproveitá-lo da melhor maneira possível, seja ele uma ilusão ou não. A quarta
proposição parte do pressuposto de que os sentidos são a única realidade. Uma realidade
incomunicável e, portanto, ilusória. Além disto, nossos sentidos são limitados e só podem
apreender parte da realidade. Sendo assim, seriamos sempre obrigados a admitir a existência
de algo que não fomos capazes de apreender. Tudo que sei é que nada sei...

O capítulo seguinte, Como o mundo-verdade tornou-se uma fábula, é um exemplo típico da


eloqüência nietzschiana. Partindo do pressuposto de que há uma história linear e progressiva
das idéias, ligando o platonismo à abolição do mundo-verdade, o filósofo alemão cita várias
escolas filosóficas e trata de refutá-las de maneira a reforçar suas próprias conclusões. É sem
dúvida alguma um tributo tardio ao mestre Arthur Schopenhauer, que em sua obra Como
vencer um debate sem precisar ter razão (Topbooks, 2006) ensina todas as artimanhas da
dialética erística. Impossível levar a sério as refutações schopenhauerianas feitas por
Nietzsche.

Neste capítulo, Nietzsche desacredita, na prática, o que demonstrou no anterior. Com efeito, a
suposição de que as idéias se desenvolvem de maneira progressiva e linear é racional e não
empírica. Além disto, a proposição de que a abolição do mundo-verdade pode ser alcançada
partindo-se do platonismo é mais uma prenda da velha embusteira.

A moral com manifestação contra a natureza é um exemplo típico de como filosofar


desprezando o valor metafórico das palavras. Nietzsche afirma que a Igreja é contrária à vida
porque defende a castração, a extirpação do desejo. Não ocorreu ao filósofo que o efeito
perverso da mortificação, da tentativa de extirpação do desejo, é justamente seu
fortalecimento. Quando mais rejeita uma paixão, mais o cristão a fortalece. A psicologia
cristã atua de maneira inversa. Ao invés de reforçar um estímulo (incentivando a sexualidade,
por exemplo), o catolicismo (intencionalmente ou não) reforça da proibição com a certeza de
que a própria natureza humana se encarregará de fortalecer o que foi proibido.

Nietzsche incorreu numa contradição terrível. Como não foi capaz de ver através da moral
cristã, criticou a condenação do desejo como se ele fosse capaz de domesticar completamente
a animalidade humana. Mas isto só ocorre nos casos patológicos e não por culpa do
cristianismo, e sim da herança genética e condições de vida do doente mental. Não ocorreu a
Nietzsche que o estimulo à animalidade só poderia produzir guerra, devastação e dor (como
de fato acabou ocorrendo, em prejuízo da civilização alemã edificada sobre o irracionalismo,
a força bruta e a vontade de domínio do Führer). Destarte, ninguém precisa ser cristão para
condenar a guerra inclusive quando há guerra santa iniciada por cristãos.

“A moral, por pouco que condene, é em si mesma, e não em relação à vida, um erro
específico com o qual não se deve ter compaixão, uma idiossincrasia de degenerados que
causou muito dano.” Nietzsche sugere que o homem deve, portanto, deixar-se tornar imoral.
Ao enunciar um imperativo desta natureza, o alemão apenas lança a pedra fundamental de
uma nova moralidade. Na sociedade perfeita concebida por Nietzsche os moralistas seriam
considerados imorais e seus contrários os homens mais virtuosos.

Tudo indica que Nietzsche nunca se deu ao trabalho de analisar cuidadosamente a escatologia
medieval do cristianismo. Se o fizesse poderia ter descoberto a inutilidade de seu imoralismo.

Durante a Idade Média a igreja aterrorizava os homens com a idéia de que seus pecados
(submissões aos desejos) acarretariam a condenação eterna. Os pecadores seriam jogados no
inferno, um lugar onde demônios operosos se encarregariam de atormentá-los eternamente.
As imagens construídas por Dante Alighieri na primeira parte de sua Comédia são terríveis,
repugnantes e amedrontam qualquer leitor (antigo ou moderno). Entretanto, sub-
repticiamente, estas mesmas imagens demonstram que os demônios estão perfeitamente
adaptados ao inferno. Somente lá eles podem alegremente desempenhar suas cruéis tarefas.
De certa maneira, portanto, o inferno pode ser considerado o céu dos demônios. Esta
conclusão lhe pareceu absurda? Então pare. Pense sobre o assunto novamente e com calma. O
que ocorreria se o poeta florentino tivesse colocado os demônios na terceira parte da
Comédia? No céu os mesmos se sentiram deslocados, seriam inúteis e, portanto, estariam
como que num verdadeiro inferno.

O cristianismo foi edificado sobre a idéia de que o reino de Deus está no meio de vós.
Portanto, em todos lugares há lugar para deleite e identidade com o criador: inclusive e
principalmente no inferno, em cuja entrada, segundo Dante, estaria escrito “...criou-me a
Suprema Potestade, Suma Sapiência, Primeiro Amor.”

Tudo bem considerado, a crítica da moralidade cristã feita por Nietzsche é incompreensível.
A imoralidade nietzschiana impediria os demônios de mortificar os homens porque os
pecados deixariam de existir. Sem poder exercer seu trabalho infernal, os demônios ou seriam
salvos ou padeceriam no seu próprio inferno transformado, paradoxalmente, em novo céu. É
claro que Nietzsche não se debruçou sobre a Divina Comédia e esta contra-prova filosófica
pode parecer indevida e externa à filosofia nietzschiana. Contudo, o irracionalismo de
Nietzsche permite algum irracionalismo na análise de suas obras. Além disto, ao desmantelar
a moralidade cristã, o filósofo alemão deveria levar em conta sua contrapartida (a moralidade
demoníaca, que permite aos demônios atormentarem os homens sem serem eles mesmos
condenados ao inferno, pois para eles o inferno é o céu).

Em Os quatro grandes erros Nietzsche comete vários equívocos. (Nova união dos
parágrafos.) Primeiro ele cita Cornaro, autor que teria recomendado uma dieta rigorosa e
causado várias mortes. Somente se o leitor pressupor que o filósofo conhecia perfeitamente a
fisiologia e o metabolismo de Cornaro e suas vítimas poderá admitir que sua conclusão é
verdadeira. Caso contrário, a conclusão do filósofo não passa de uma artimanha retórica.
Segundo, para o filósofo a moral seria contra a natureza, porque “...um homem bem
constituído, um homem ditoso, realizará necessariamente certos atos e temerá instintivamente
cometer outros...”. Contudo, se é a própria natureza que produz naturalmente o vício e a
virtude, pode-se concluir que ao tentar suprimir o vício, a moral estaria também obrando em
favor da natureza e não contra a mesma.
Em seguida, Nietzsche enfrenta o problema da falsa causalidade e sustenta a desnecessidade
de Deus. Finaliza o capítulo com a seguinte frase: “O erro do espírito como causa confundido
com a realidade, considerado como medida da realidade e denominado Deus!”

Nunca fui um cristão exemplar e, para falar a verdade, adoto um saudável ceticismo (nada
podemos saber de Deus e o que quer que digamos a seu respeito será pura fabulação). De
qualquer maneira não posso deixar de notar a contradição entre a proposição, a conclusão e a
negação da realidade absoluta feita anteriormente pelo filósofo. Afinal, como tudo independe
de uma causa primeira, segue-se que a realidade existe além de nossa vontade ou sentidos.
Além disto, a inexistência de uma causa primeira torna irrelevante acreditar nela, enunciá-la
ou mesmo contradizer quem nela acredita. A menos que a causa primeira da filosofia que a
nega seja exatamente sua negação. Sem a existência do cristianismo e da crença em Deus,
Nietzsche certamente não poderia filosofar. Filosofou. Portanto, deveria agradecer aos
cristãos, ao Cristianismo e a Deus. Ingrato...

“O erro das causas imaginárias” concebido por Nietzsche só é possível em razão de um


equívoco semântico. O que ele chama de instinto de causalidade não existe, nem poderia
existir. Na verdade, se tal instinto existisse certamente, ao combatê-lo, o filósofo estaria
combatendo sua própria natureza (a qual ele pretende defender em face da causa primeira).

No capítulo seguinte o filósofo critica o princípio de que “...uma explicação qualquer é


preferível à falta de explicação.” Porém, a necessidade de explicação não é igual à
necessidade de uma explicação. O equilíbrio da humanidade reside justamente na
multiplicidade de explicações possíveis, dentre as quais a cristã é apenas mais uma.

Que importa se o “...banqueiro pensa imediatamente no negócio, o cristão no pecado e a


cortesã no amor”? Afinal, o cristão pode comprar a Bíblia impressa com o dinheiro do
banqueiro justamente para tentar convencer a cortesã a não pecar. Se não for convertida, a
cortesã continuará a pecar, inclusive com o virtuoso banqueiro que financiou a impressão da
Bíblia comprada pelo cristão. Como fonte de sociabilidade, o cristianismo é útil. Portanto,
pouco importa se suas verdades são ou não verdadeiras aos olhos da filosofia. Enfrentar a
intolerância religiosa com a intolerância filosófica é uma excelente maneira de fundar uma
nova religião. O que diria Nietzsche se soubesse que seus livros foram adorados como se
fossem bíblias pelos nazistas?

Neste capítulo Nietzsche se esforça muito para expulsar todos os fantasmas que assombram a
humanidade. Tamanho é seu esforço que somos obrigados a perguntar o que ocorreria caso
ele tivesse êxito. Pessoalmente, posso assegurar-lhes que sem meus fantasmas certamente me
sentiria mais vazio, sozinho e desesperado. Neste exato momento, Nietzsche é um deles, que
procuro acordá-lo em mim da melhor forma.

Ironicamente, o próprio Nietzsche também agiu como se fosse um bom cristão. Seu ódio pelo
cristianismo o fez combatê-lo tanto e com tanta eloqüência que se a religião cristã deixar de
existir, a filosofia de Nietzsche certamente perecerá. Se sobreviver ao cristianismo, o filósofo
alemão certamente estimulará o renascimento de seu inimigo por via indireta.

O capítulo seguinte, Aqueles que querem tornar a humanidade melhor, começa com o
seguinte axioma: “O juízo moral tem em comum com o juízo religioso o crer em realidades
que não existem.” Para desmontar este postulado será necessário provar que o juízo moral e o
religioso não têm qualquer identidade.

A moralidade possibilita a convivência pacífica entre as pessoas. Numa sociedade complexa


(como a Alemanha do século XIX), as regras morais eram bastante genéricas, pois deveriam
possibilitar a coexistência de diversos grupos sociais: cristãos, judeus, protestantes, seculares
e etc., cada qual com uma moralidade específica. É verdade que a moralidade de um grupo
pequeno tende a se identificar com suas crenças. Mas suas regras morais e religiosas não
necessariamente se identificam com as dos outros grupos. Na verdade, as convergências entre
as regras morais dos diversos grupos sociais e religiosos tendem a ser menores que suas
divergências, caso contrário a guerra civil seria inevitável e constante. Portanto, numa
sociedade complexa (como a que Nietzsche viveu) a moralidade é muito pouco influenciada
pela religião.
Em seu livro O Príncipe, Maquiavel enunciou claramente a utilidade de preservar as crenças
populares quando se conquista o poder. A separação entre o Estado e a religião sempre foi
útil e já era praticada largamente no século XIX. Este secularismo de Estado tende a difundir
uma moralidade suficientemente maleável para evitar que os grupos sociais e religiosos
resolvam seus atritos sem o uso da violência. Nietzsche pretende tratar de religião e
moralidade sem adentrar aos domínios da política. E neste ponto sua filosofia se tornou
vitima desta omissão.

No capítulo seguinte, O que os alemães estão na iminência de perder, lamenta o fato de que o
povo alemão seja vítima há mil anos “...dos dois grandes narcóticos europeus: o álcool e o
cristianismo.” Depois, admite que todas “...as grandes épocas da cultura são épocas de
decadência política...”. Por fim conclui que é “...preciso aprender a pensar, é preciso aprender
a falar, a falar e a escrever; o fim dessas três coisas é uma cultura aristocrática.”

É realmente difícil formular e entender a equação nietzschiana. Mas tentaremos. O capítulo


pode ser resumido no seguinte axioma: a cultura aristocrática a que se refere Nietzsche
deveria ser estimulada (e deixar, portanto, de ser aristocrática) para eliminar os efeitos
perversos dos dois grandes narcóticos europeus (o álcool e o cristianismo) e produzir a
decadência política que o filósofo julga boa e necessária.

A filosofia de Nietzsche não é histórica. Mesmo quando o autor pretende recorrer à história o
faz excluindo os exemplos que contrariam suas conclusões.

Roma conheceu simultaneamente o apogeu político e cultural em pelo menos duas


oportunidades. O primeiro ocorreu durante o expansionismo da República logo depois da II
Guerra Púnica. O segundo com a consolidação do Império sob Augusto. A cidade eterna
também conheceu dois períodos em que a decadência política e cultural foram mais ou menos
simultâneas: o período que precede o Império (guerra civil) e o que se segue a morte de
Tibério (sob Calígula). Estes exemplos demonstram satisfatoriamente que o que Nietzsche
considera uma verdade é, na verdade, uma miragem.

No capítulo Passatempos intelectuais, usando uma linguagem vigorosa e rude, Nietzsche


procura ridicularizar todos os que o antecederam, de Sêneca a Zola. O único filósofo que
elogia é Schopenhauer, de quem certamente emprestou a linguagem (que usou para denegrir
seus desafetos) e as estratégias discursivas (que empregou para destruir os argumentos deles).
O elogio que faz da diferença em oposição à igualdade de direito, da morte em face da
medicina que prolonga o sofrimento, da guerra como essência da liberdade e da rígida
estrutura social russa no século XIX demonstra todo o desprezo que Nietzsche devotava ao
humanismo.

Seu ódio desmedido aos socialistas, anarquistas e trabalhadores sugere que, a despeito da
crítica destrutiva e ferina que faz de Platão, o filósofo alemão recriou o platonismo. Já se
disse que na República de Platão somente havia lugar para o seu criador. Na sociedade
aristocrática nietzschiana somente Nietzsche suportaria viver. Afinal, a intolerância política e
filosófica do pensador alemão é tamanha, que, se ele pudesse, certamente queimaria todos os
livros que produziram a degeneração que o circundava. É impossível deixar de perguntar
como toda aquela decadência cultural não foi capaz de contaminá-lo.

Desde tempos imemoriais as crianças se distinguem dos adultos pela sua capacidade de se
identificar com os heróis. A maturidade advém da certeza da inexistência de heróis e da
inutilidade de tentar imitá-los. Nesse sentido, o cristianismo é uma religião madura, pois
produziu a superação do paradigma do herói presente nos cultos antigos. Afinal, nem o mais
devoto cristão pretende realmente ser crucificado para imitar seu mestre espiritual. Nietzsche
despreza esta qualidade do cristianismo. Manifestou infantilidade nas suas obras?

No último capítulo da obra, Nietzsche dá varias estocadas supostamente mortais em Platão.


Diz literalmente: “Aos gregos não devo absolutamente nada.” Não deve mesmo? O que
restaria de O crepúsculo dos ídolos se suprimíssemos todas as passagens em que o autor
dialoga com os seus inimigos gregos?
O alemão finaliza sua obra com uma eloqüente defesa das virtudes do culto a Dionísio. O
mesmo Dionísio dos mistérios, dos excessos, da brutalidade, da confusão trágica e
arrebatadora em que todas as barreiras sociais são abolidas. Os aspectos negativos e
destrutivos do culto não foram sequer cogitados por Nietzsche.

O filósofo alemão se diz admirador dos romanos Salustio e Horácio. Entretanto, omitiu o fato
de que os romanos não viram com bons olhos o culto de Dionísio e até o proibiram em Roma
e também no resto da Itália (Ab Urbe Condita Libri, livro XXXVIII, Tito Lívio), em razão
das graves perturbações sociais que acarretaram. A história, entretanto, parece não ter
ensinado a Nietzsche nada além da necessidade e vontade de desprezar e descartar os
exemplos nocivos às suas bizarras teorias.

Você também pode gostar