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AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE NAS

SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL1

Sandra Jacqueline Barbosa2

INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira nos anos de 1990, acompanhando um movimento


internacional, sofreu várias transformações políticas e econômicas; o Estado implementou
ajustes em suas políticas públicas, o que não aconteceu sem alterações profundas em
suas dimensões sociais, entre elas a educação.
A trajetória no trabalho em educação possibilitou a motivação desse tema, em
busca de determinações para as diversas dificuldades em se estabelecer um sistema de
educação pública de qualidade, universal e democrático no país.
É necessário, então, compreender de que forma e quais os mecanismos dessas
políticas e como essas perpetram a escola, para se construir instrumentos de luta em
favor de uma escola democrática, mais vinculada aos valores de igualdade na distribuição
de bens materiais e culturais.
Como não se pode pensar a escola sem contextualizá-la no funcionamento do
mundo capitalista com suas crises, sua lógica de acumulação do lucro e expansão de
capital, faz-se necessário analisar a nova configuração do Estado e suas implicações no
modo como as políticas públicas em educação são conduzidas. A intenção inicial é de
fazer também um paralelo entre as transformações no mundo do trabalho produtivo, e se
essas mutações têm acarretado em reflexos no cotidiano da escola, principalmente nas
relações de trabalho dos professores3.
1
Artigo apresentado na Disciplina de Análise de Políticas Sociais, do Programa de Pós-Graduação
em Política Social, ministrada pela Professora Drª Ivanete Salete Boschetti como requisito parcial
de avaliação.

2
Aluna do curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade de Brasília, sob orientação da Professora Drª Maria Abádia da Silva.

3
Neste texto, são sinônimos: trabalho pedagógico, trabalho docente e trabalho dos professores.
Situa-se dentro do conceito de trabalho improdutivo e imaterial desenvolvido por Marx na análise
do trabalho na sociedade capitalista. Trata-se de trabalho que não produz mais-valia, ou seja, não
produz valor de troca imediata para a acumulação de capital. (MARX apud ANTUNES, 2004).
O trabalho docente tem um papel decisivo no processo educacional (Item 10.2 das Diretrizes para
a formação dos professores e valorização do magistério do capítulo IV do PNE).
2

Tomou-se nesse texto, como compreensão de política pública, o conceito utilizado


por Muller e Surel (1998b) em que o quadro a ser analisado deve ser amplo, as políticas
sociais são entendidas além da ação política no sentido institucional, mas no sentido de
participação política4, visto também para além da participação tradicional de militância e
voto.
Dito isto, pergunta-se: que tipo de Estado forjou-se nas últimas décadas no Brasil?
Pretende-se com isso,
“compreender as lógicas de suas diferentes formas de intervenção
sobre a sociedade, em identificar os modos de relação existentes
entre atores públicos e privados e compreender como a ação
pública envolve dinâmicas pouco nítidas e evolutivas na
fronteira entre Estado e sociedade” (MULLER & SUREL, 1998b,
grifos meus).

São objetos de reflexão, nesse texto, essa ação sutil que envolve o Estado, a
cultura produzida em sociedade e os sujeitos envolvidos, todas essas dimensões exigem
um novo tipo de profissional, e entre esses, um novo tipo de trabalhador da educação
pública, mais eficiente, eficaz, que produza resultados satisfatórios sob a ótica
gerencialista de análise e avaliação de políticas públicas.
Ainda segundo os autores analisados por Muller & Surel (1998a) (HALL;
SABATIER; MULLER), por trás de uma política pública há uma matriz cognitiva e
normativa comum a determinados sujeitos, cujo objetivo é:

“alimentar uma consciência coletiva, ou seja, um sentimento


subjetivo de pertencimento produtor de uma identidade específica
[...] Trata-se de uma construção social que repousa sobre a
produção de uma identidade de substituição para os indivíduos,
ela mesma constitutiva de novos modos de definição do grupo na
sociedade” (MULLER & SUREL, 1998a).

Atribuições do profissional docente (CNE/CEB. Resolução nº 03, de 8/10/1997): “[...] a jornada de


trabalho dos docentes poderá ser de até 40 (quarenta) horas e incluirá uma parte de horas de aula
e outra de horas de atividades, estas últimas correspondendo a um percentual entre 20% (vinte por
cento) e 25% (vinte e cinco por cento) do total da jornada, consideradas como horas de atividades
aquelas destinadas à preparação e avaliação do trabalho didático, à colaboração com a
administração da escola, às reuniões pedagógicas, à articulação com a comunidade e ao
aperfeiçoamento profissional, de acordo com a proposta pedagógica de cada escola.”
4
O conceito de Políticas Públicas de Muller e Surel (1998b) abrange as três dimensões: esfera
política (em inglês, polity); atividade política (politics) e a ação política (policy).
3

Pretende-se compreender quais são essas matrizes na construção desse novo


sujeito, desse novo tipo de trabalhador em educação, que se forja a partir dessa nova
configuração do Estado brasileiro, especificamente no campo da educação.
As questões que incitam à reflexão referem-se em como as políticas públicas em
educação procuram responder a demanda do mercado, na construção de sujeitos
consumidores e também na constituição de trabalhadores aptos ao mercado de trabalho.
Outras questões que são também instigadas: as transformações sociais, econômicas e
principalmente nas políticas sociais têm incidido na identidade da escola pública? Essas
novas demandas têm exigido um profissional docente diferenciado? E as condições de
trabalho desses educadores, após essas mudanças, são compatíveis com um projeto de
qualidade e democratização na educação? Quais os mecanismos construídos pelas
políticas públicas para responder a essas questões? Essas questões são levantadas sem
a pretensão de serem respondidas de imediato, mas no intuito de se refletir, investigar e
contribuir para o debate dessa problemática.

POLÍTICAS PÚBLICAS E O ESTADO MODERNO

O conceito de Estado apresentado aqui se remete aquele formulado por Marx e


desenvolvido por outros autores, entre eles Elias (apud MULLER & SUREL, 1998b).
Nas diversas versões da teoria marxista, o Estado expressa as relações de
dominação entre as classes sociais, quais sejam, a classe dos proprietários dos meios de
produção e a classe dos proprietários apenas de força de trabalho. Nesse contexto o
Estado é, ao mesmo tempo, produto e modelador dessas relações. No entanto, o controle
exercido por ele depende da estrutura do desenvolvimento capitalista, e por isso, pode
estar mais ou menos fortalecido pela classe dominante, detentora dos meios de produção,
dependendo, em grande parte, da medida de contestação da classe dominada, através de
aparelhos políticos e dos movimentos sociais. O Estado assume a condição da classe
dominante por ser produto da sociedade capitalista, entretanto, incorpora algumas
demandas da classe trabalhadora, pois é objeto de disputa na dinâmica social. Deste
modo, o Estado é forçado a parecer independente, neutro, em relação às classes, para
assim ser mais legítimo ao conjunto da sociedade. O poder político deve ser difundido
como igualitário entre todos os indivíduos, independente da classe a qual pertence.
4

Capitalismo concorrencial
Capitalismo monopolista
Capitalismo financeiro globalizado
A análise das políticas públicas pode servir de instrumento para compreender
como o Estado atua na construção das relações sociais mais complexas, desde as
relações econômicas até as culturais, produzidas no cotidiano das instituições públicas,
como a escola, por exemplo.

As políticas públicas no Estado neoliberal

As discussões e pesquisas em relação às ações do Estado surgem no momento


em que a relevância dessas ações principia questionamentos (MULLER &
SUREL,1998a). A partir de uma nova organização das economias mundiais, o Estado
passa a ter sua importância e seu papel reformulados, enquanto ente regulador da vida
pública. (MULLER & SUREL,1998b).
A política pública, entendida como elaboração e efetivação de ações públicas, com
planejamento e objetivos claros, configura-se em um conceito construído socialmente.
Pode surgir como medidas e ações concretas do Estado, como também, em relações
sutis sobre determinada demanda social, nem sempre tratada de forma institucionalizada
(MULLER & SUREL, 1998b, p. 9).
A política neoliberal passou a ser aceita, na década de 1990 principalmente, como
única alternativa para o enfrentamento das grandes dificuldades colocadas à sociedade
pelo sistema econômico capitalista. Caracteriza-se principalmente por uma nova
configuração do Estado frente às questões econômicas e sociais. Apesar de algumas
variações entre as diferentes nações onde foi e é aplicado, o neoliberalismo possui
basicamente as mesmas diretrizes políticas: por um lado a diminuição do papel do Estado
em gastos sociais e intervenções econômicas, e por outro, centralização do Estado no
controle do dinheiro e no desmonte de sindicatos de trabalhadores (ANDERSON, 1995).
O discurso neoliberal defende que a crise econômica tem seus culpados, e o
principal deles é o Estado de bem-estar social por ser extremamente dispendioso e
administrar mal seus recursos. A crise, então, é de gerenciamento:

Na ótica neoliberal, essa crise expressa a incapacidade estrutural


do Estado para administrar as políticas sociais. Esse fato, sendo
5

um atributo geral do assistencialismo estatal, expressa-se com


uma peculiaridade própria no campo educacional: a crise de
produtividade da escola não sintetiza outra coisa senão a crise do
centralismo e da burocratização próprias de todo Estado
interventor. Os governos foram, segundo essa perspectiva,
incapazes de assegurar a democratização mediante o acesso das
massas às instituições educacionais e, ao mesmo tempo, a
eficiência produtiva que deve caracterizar as práticas pedagógicas
nas escolas de qualidade (GENTILI, 1998, p. 17).

A educação escolarizada passa, a partir dos anos de 1990, a ser vista como
problema e como solução. Problema, pois o Estado gerencia mal seus recursos, e por
isso, a qualidade da escola pública tem sido questionada pela sociedade. Solução, porque
a partir da escola é possível formar o cidadão responsável e competitivo. É preciso então,
maior eficiência na administração de seus recursos, melhor eficácia e produtividade nos
resultados. Segundo o discurso neoliberal, é urgente trocar a lógica ineficiente de que a
educação escolarizada é um direito público e estatal, por uma lógica interinstitucional,
flexível e meritocrática, a lógica do mercado.
Silva (1996) faz um alerta de o provável rumo a ser tomado em relação à divisão
do trabalho na educação em substituição ao modelo anterior, como estratégia
disciplinadora de uma força de trabalho considerada ociosa e ineficiente.

Como conseqüência, pode-se esperar que haja uma redefinição da


divisão do trabalho educacional e pedagógico. Pode-se prever que
as funções de direção pedagógica, supervisão curricular e
orientação educacional, docência, pedagogia e avaliação, que tem
caracterizado tradicionalmente a divisão do trabalho docente,
sejam gradualmente substituídas pelas de gerência de processo,
supervisão do trabalho, controle de qualidade, medidas e
padronização, organização e método (SILVA, op. cit., p. 179).

Há também outros elementos que influenciam as atuações do Estado, este é até


mesmo compelido pela conjuntura de desenvolvimento e acumulação do capital; entre
estes elementos destacam-se as intervenções externas de organismos internacionais
como o Banco Mundial.

O Banco Mundial como orientador das Políticas Públicas em Educação


6

Em 1944 são criados o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e


Organização Mundial do Comércio – instituições internacionais portadoras de
instrumentos capazes de alterar decisões econômicas em escala mundial. Na
Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas (em Bretton Woods) foi
estabelecida a política externa dos EUA para a América Latina (SILVA, 2002).
Desde a década de 1980, com o desmantelamento do Estado Nacional,
crescimento da dívida externa (em razão do aumento dos juros nos EUA) e interna,
compressão das atividades econômico-industriais e empobrecimento regional e social, o
Banco Mundial passa a ser o intermediário entre os países doadores e beneficiários de
seus financiamentos.
No Brasil, na década de 1990 o neoliberalismo passa a ser o modelo de política,
caracterizado pela liberalização, desregulamentação, privatização de estatais, redução
das políticas sociais, equilíbrio orçamentário, controle do déficit público e dos sindicatos;
em contraposição ao Estado de Bem-Estar Social (Welfare States), cujas ações visavam
o pleno emprego, crescimento econômico, extensão dos direitos sociais, entre outras. O
neoliberalismo na educação resultou em redução e controle dos investimentos para o
setor, seguindo uma política de transferência e subordinação às leis de mercado. A Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 9394/96, o FUNDEF (Fundo Nacional de
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério), a prioridade do
ensino fundamental, a lei de criação do Conselho Nacional de Educação, os sistemas de
avaliação institucional, são todas políticas públicas em concordância com o Banco
Mundial.
Segundo Silva (2002) há intervenção sistemática e direta do Banco Mundial por
sua capacidade de gerenciar e manipular o consentimento de nossas elites dirigentes
conservadoras nacionais, em todas as instâncias – federal, estaduais e municipais. As
dívidas com os credores internacionais dão espaços para essas intervenções. As
anuências viabilizam-se através de mudanças constitucionais, medidas provisórias,
reformas administrativas e do Estado, abertura econômica, controle de investimentos do
setor público. Em respostas a essas exigências do Banco, as políticas públicas em
educação passam a reduzir custos, e proclamam a eficácia do atendimento.
Nesse contexto o Banco estimula também reformas profundas na organização
escolar, exigindo-se maior eficiência daqueles que na escola estão em nome da
“utilização racional de seus recursos físicos humanos” (FONSECA, 2001). Resulta-se
7

disso um maior volume de trabalho para os profissionais de educação, ou seja, há uma


“intensificação” de seu trabalho, como parte de um fenômeno mais complexo de
precarização das condições gerais do fazer pedagógico.
No entanto, as políticas para educação pública além de serem resultantes das
imposições internacionais, são decorrentes também da participação e reivindicações das
entidades, associações, organizações e sindicatos e das práticas pedagógicas
inventadas, confrontadas e inovadas no interior da escola (SILVA, 2002 op. cit).

A TRAJETÓRIA DA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE

Dentro de uma abordagem que se pretende materialista-dialética, faz-se


necessário uma análise histórica do objeto a ser observado, qual seja, a organização do
trabalho docente.
Silva (1993) verifica que a partir dos anos 70, a organização do trabalho na escola
é fundamentada no trabalho dos especialistas da educação, ou “gestores do ensino”,
gerando centralização, hierarquização e burocratização dos processos de trabalho na
escola, muito semelhante à organização do trabalho na empresa, cujo modelo de
estruturação do trabalho era o fordista. O principal efeito deste padrão de divisão do
trabalho é a contradição inerente ao processo de divisão do trabalho entre aqueles que
realizam o trabalho “material” e aqueles que elaboram o trabalho “espiritual”, ou seja,
alguns fazem e outros pensam o trabalho. (MARX & ENGELS, 1999).
Especificamente na escola, esse modelo fragmentado levou à algumas distorções
no processo de trabalho, entre eles: a hierarquização de funções com a concentração de
poder nas mãos de alguns especialistas; forte controle sobre os professores, funcionários
e alunos; perda de autonomia por parte do professor sobre o seu trabalho; funcionários
não comprometidos com a ação educativa da escola; saber também fragmentado; várias
instâncias pedagógico-administrativas espalhadas e hierarquizadas por todo o sistema de
ensino (HYPOLITO,1991).
No entanto, nos últimos anos a reestruturação no setor produtivo passou a
valorizar um modelo de profissional multifuncional, contrapondo-se ao profissional
especializado do padrão fordista-taylorista de trabalhador.
8

Hypolito (1991) ajuda a desvendar a forma como a organização e a divisão do


trabalho escolar e a influência das relações de poder capitalista tem ocorrido ao longo da
história da escola como organização institucional. Esse processo sofreu inúmeras
transformações, e a estas lhes foram designadas alguns termos, no intuito de facilitar
didaticamente a compreensão quanto a essa intricada trajetória. O modelo convencionado
como tradicional caracteriza-se principalmente por uma completa autonomia do professor
em relação ao seu trabalho, os objetivos, os meios, formas de avaliação, ou seja, todo o
processo de trabalho era criado, conduzido e finalizado pelo profissional docente. No
modelo técnico-burocrático a perda da autonomia se dá de forma nítida com a imposição
da divisão de tarefas, por algumas formas de controle, a hierarquização é um dos pilares
do trabalho escolar.
Os resultados dessas transformações no processo de trabalho na escola são:
evasão, repetência, analfabetismo funcional. Ou seja, as finalidades da educação
deixaram de ser alcançadas. As condições de trabalho para os profissionais da educação
passam a ser degradantes, os salários sofrem quedas reais de valores, há o
descompromisso recíproco entre os professores e as políticas públicas, num jogo infindo
de indiferença mútua.
Hypolito (1991) adverte para que não se caia na armadilha da interpretação
determinista e economicista desse fenômeno educativo. A realidade é contraditória, há
diversas formas de resistências por parte dos profissionais da escola, o professor luta
para não perder sua autonomia, para não ser controlado, ao mesmo tempo busca superar
a fragmentação de seu trabalho.

O processo de trabalho fabril se apresenta num grau muito maior


de dominação e a análise do processo de trabalho escolar não
pode ser feita com o emprego absoluto das mesmas categorias. É
preciso encontrar a particularidade e não e a especificidade
do desenvolvimento do processo de trabalho na escola
(HYPOLITO, op. cit., p. 11, grifos meus).

À procura dessa particularidade, Hypolito (op. cit.) incita à reflexão sobre a base
material das relações de poder travadas no interior da escola, e sugere que o olhar sobre
o desenvolvimento e transformação que a organização do trabalho escolar sofre ao longo
da história pode contribuir para esse debate.
O trabalhador em educação passa de um profissional de prestígio, autônomo,
possuidor de um saber, controlador de seu trabalho para um trabalhador assalariado, com
9

pouca qualificação, por efeito de um processo de urbanização/industrialização e


massificação da escolarização. Junto a isso, o fenômeno de feminização da profissão
docente implica em rebaixamento salarial, por ser uma profissão considerada extensão do
trabalho doméstico. Apontado como trabalho temporário, sua remuneração passa a ter
valor de renda extra, além da submissão histórica das mulheres na sociedade patriarcal
tornar mais fácil esse quadro de opressão e exploração.
A divisão no processo de trabalho é determinante em sua caracterização,
intensifica a proletarização da profissão docente através do controle dos objetivos, dos
meios e do processo do fazer pedagógico. Perdeu-se a autonomia no trabalho e o
professorado procura construir sua identidade em meio a esse contexto de
desqualificação de sua categoria.
Oliveira (2004) aponta como essenciais, nas mudanças ocorridas na profissão
docente, as reformas de ensino promulgadas nos anos de 1990. Para a autora são
poucos os estudos que tratam das conseqüências dessas reformas no âmbito do trabalho
docente e a análise do contexto em que são introduzidas essas reformas na América
Latina, no Brasil especificamente, é imperativo para se compreender esse fenômeno.
Essas reformas têm trazido mudanças na gestão do trabalho escolar: a
flexibilização e precarização das relações de emprego e trabalho; nas condições de
trabalho disponibilizadas a esses profissionais; bem como nos movimentos de resistência
a essas imposições.
A precarização das relações de trabalho está muito presente nesse debate
principalmente nas relações de emprego, num movimento de desregulamentação dos
direitos trabalhistas. Essas transformações se pautam na constatação de que é
admissível o crescimento econômico sem o crescimento paralelo da quantidade de
empregos, resultando em massivo desemprego da população.

A constatação de que as mudanças mais recentes na organização


escolar apontam para uma maior flexibilidade, tanto nas estruturas
curriculares quanto nos processos de avaliação, corrobora a idéia
de que estamos diante de novos padrões de organização também
do trabalho escolar, exigentes de novo perfil de trabalhadores
docentes [...] Os trabalhadores docentes vêem-se forçados a
dominar novas práticas e novos saberes no exercício de suas
funções [...] São muitas as novas exigências a que esses
profissionais se vêem forçados a responder. Sendo apresentadas
como novidade ou inovação, essas exigências são tomadas muitas
10

vezes como algo natural e indispensável pelos trabalhadores


(OLIVEIRA, op. cit., p. 1139-1140).

A Globalização estabelece, portanto, novas regras de conduta social, política e


cultural. Dentro do mundo do trabalho suas mudanças tem sido revolucionárias em
relação à velha ordem centrada no fordismo/taylorismo5.
As transformações ocorridas na década 1980, e 1990 mais intensamente no Brasil
em todas as instâncias, e principalmente sobre a classe que vive do trabalho 6, originaram-
se com a crise das transformações na estrutura produtiva, assim como nas formas de
representação sindical e política. Mudanças não só na materialidade, mas também na
subjetividade, na forma de ser de cada um e de todos os indivíduos, imposta por um novo
modelo econômico, social, cultural e político. Nessa lógica, também se configuram
transformações no ser que trabalha, as transformações atingem o universo da
consciência, da subjetividade, de suas formas de representação.
A escola passa por esse processo de produção e reprodução da subjetividade
contemporânea e das relações de poder que a circulam, pois está situada nesse contexto
sócio-histórico que acompanha as mudanças econômicas, tecnológicas, sociais, políticas
e culturais.
Bruno (1996) trata dessas relações de trabalhado reorganizadas pelo capital na
contemporaneidade, sobretudo as novas estruturas de poder e a reestruturação produtiva,

5
Expressão fundida entre as duas formas hegemônicas de organização do trabalho no século
XX. “Fordismo é um termo que se generalizou a partir da concepção de Gramsci, que o utiliza para
caracterizar o sistema de produção e gestão empregado por Henry Ford em sua fábrica, a Ford
Motor Co....”, distingue-se pela produção em massa, separação entre concepção e prática do
trabalho, resultando em trabalho fragmentado, simplificado e repetitivo, demandando por isso
pouco tempo de qualificação do trabalhador; fundamenta-se na linha de montagem e a esteira
rolante que mantém o trabalhador parado e um fluxo contínuo da produção das peças. Taylorismo:
“Sistema de organização do trabalho, especialmente industrial, baseado na separação das funções
de concepção e planejamento das funções de execução, na fragmentação e na especialização das
tarefas, controle de tempos e movimentos de remuneração por desempenho” (CATTANI, 2000).
6
Conceito formulado por Antunes (1999) para atualizar e reafirmar o conceito marxista de classe
trabalhadora. Distingue a classe dos capitalistas e a classe daqueles que não possuem os meios
de produção, ou seja, incluem além dos trabalhadores ativos e produtivos, os trabalhadores do
setor improdutivo, desempregados, trabalhadores dos setores informais e ilegais. São também
aqueles trabalhadores que vendem sua força de trabalho em troca de um salário. Excluem, por sua
vez, os gestores do capital, seus altos funcionários que controlam o processo de trabalho de
valorização e reprodução do capital e que recebem rendimentos elevados; exclui também os
pequenos empresários urbanos e rurais.
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e faz uma relação dessa reestruturação com as novas formas de trabalho desenvolvidas
na escola.
Para a autora, esses elementos não são novos, desde os anos sessenta inicia-se
uma reformulação no modo de produção, na organização do trabalho e nas formas de se
exercer o poder sobre os trabalhadores. A internacionalização sempre foi uma
característica da natureza do sistema capitalista, desde a Segunda Guerra o movimento
das multinacionais foi de expansão. A guerra fria e a posição estratégica dos EUA como
reconstrutor das economias europeias e japonesa foram importantes nesse processo. A
criação dos organismos internacionais deu-se nesse cenário, quando a forma de
concentração de capitais proporcionava a inter-relação entre os Estados nacionais, por
meio de agentes de desenvolvimento local. Os Estados, portanto, tinham poder de
regulação das relações econômicas. Esse sistema de relação entre os Estados-nações e
o capital durou até a década de 70. A partir desse período, o capital prescinde dos
Estados-nações, pois a concentração de capital chegou ao ponto de as próprias
empresas se relacionarem entre si, sem a intermediação dos Estados, situação propiciada
pelo desenvolvimento das tecnologias de informação que permitem comunicação
instantânea e ininterrupta.
Diante disso, o poder se concentra em graus cada vez mais altos:

Como os mecanismos de poder desta nova estrutura são


relativamente invisíveis e as hierarquias perdem a forma piramidal
e monocrática de antes, a aparência por ela assumida é de uma
democracia participativa. A ideia de participação perpassa as
novas formas de controle social tanto dentro quanto fora dos locais
de trabalho (BRUNO, op. cit., p. 27, grifo meu).

Ao contrário da manipulação e coerção do modelo anterior de exercício de poder,


mas as formas de dirigismo, por meio de técnicas motivacionais, de cooperação e
integração. O que Antunes (2007) chama de envolvimento cooptado. O controle continua
sendo exercido, apenas muda sua feição.

Esta (sujeição, no fordismo) era movida centralmente por uma


lógica mais despótica; aquela, a do toyotismo, é mais consensual,
mais envolvente, mais participativa, em verdade mais
manipulatória (ANTUNES, op. cit. p. 42).
12

Esse modelo administrativo possui suas contradições, Bruno (1996) cita os


dilemas apontados por Blau & Scott (1970):

O dilema entre coordenação e comunicação livre, entre disciplina


burocrática e especialização profissional, entre a necessidade de
um planejamento centralizado e a necessidade de iniciativas
individuais (BRUNO, op. cit., p. 30).

Produz-se uma nova cultura organizacional7 em substituição ao que antes era a


disciplina rígida exigida do trabalhador no modelo fordista/taylorista.
Como essa nova forma de organização do espaço e do fazer do trabalhador
engendra na escola?
Como espaço de produção de subjetividades, de capacidade trabalho, o clima
organizacional da escola é central nesta perspectiva.
Essas mudanças na escola pública são, então, no sentido de se adequar às
tendências gerais do capitalismo contemporâneo, e a gestão do processo de trabalho dos
educadores embarca nesse contexto, já que os professores são formadores de mão de
obra das futuras gerações da classe trabalhadora.

Trata-se também de potencializar a utilização dos meios físicos


que integram o processo de trabalho dos educadores [...] de
intensificar suas atividades, sem investir efetivamente em
capacitação de professores. (BRUNO, op. cit., p. 41-42)

À GUISA DE CONCLUSÃO

Percebemos, com isso, que as políticas públicas levaram mudanças à escola, não
necessariamente todas àquelas reivindicadas pelas comunidades escolares e pelos
movimentos em favor da educação pública de qualidade, e essas mudanças incidem,
sobretudo, no trabalho realizado na escola.

7
“Cultura organizacional significa um dado modo de vida, um sistema de crenças e valores, uma
forma aceita de interação e de relacionamento característicos de determinada organização [...] O
clima organizacional constitui o ambiente psicológico de uma dada organização...” (BRUNO, op. cit.
p. 32-33).
13

As questões colocadas no início deste trabalho foram apenas levantadas e


instigadas a serem pesquisadas com maior profundidade. Os estudos em análise de
políticas sociais são imprescindíveis para a compreensão desse complexo fenômeno que
abarca “uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações” (ROSDOLSKY,
2001), o trabalho do professor da escola pública.
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