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Reitor
Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, S. J.
Vice-reitor
Pe. Pedro Gilberto Gomes, S. J.
Diretor
Pe. Pedro Gilberto Gomes, S. J.
Conselho Editorial
Antônio Carlos Nedel
Carlos Alberto Gianotti
Pe. José Roque Junges, S. J.
Vicente de Paulo Barretto
Werner Altmann
EDITORA UNISINOS
R737h
Rohden, Luiz.
Hermenêutica filosófica : entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem / Luiz Rohden – São
Leopoldo, RS : Ed. UNISINOS, 2019. (Ideias)
1 recurso online.
ISBN 978-85-7431-828-8
CDD 121.68
CDU 165.43
Coleção Ideias
Direção de Marcelo Fernandes de Aquino
Editor
Carlos Alberto Gianotti
Preparação
Rui Bender
Revisão
Janaína Lemos
Renato Deitos
Produção do e-book
Schäffer Editorial
Capa
José Luís Ströher
A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins
didáticos, sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura. Foi feito o depósito legal.
Agradecimentos e dedicatória
Caro/a leitor/a, chamo a atenção para o fato de que, após quatro anos de pesquisa intensa, este
livro – originariamente uma tese doutoral – é fruto de diálogos, de encontros e de apoio de muitas
pessoas a quem sou imensamente grato.
Ressalto, com gratidão, o privilégio e a fecundidade dos encontros e dos diálogos que tive com
Hans-Georg Gadamer nas ocasiões na Universidade de Heildelberg – Alemanha. Do ambiente acadêmico
de Heidelberg destaco ainda a discrição, a competência e a densidade das dicas e pistas do Prof. Reiner
Wiehl que contribuíram para a qualificação desse livro. Agradeço a presença amiga, honesta e
competente do Prof. Hans Georg Flickinger, que, com suas observações e sugestões, teve um papel
fundamental na construção desta obra!
Agradeço o auxílio pesquisa da CAPES recebido por ocasião do doutorado. Agradeço o auxílio
das horas de pesquisa concedido pela Universidade do Vale do Rio do Sinos – UNISINOS por ocasião da
redação da tese. Passados 19 anos da publicação na forma impressa, com duas reedições nesse tempo,
registro meu agradecimento ao CNPQ, pela modalidade Bolsa PQ e à FAPERGS, pela bolsa Pesquisador
Gaúcho, PQg, que me possibilitaram publicar agora na versão online atendendo à demanda e interesse
crescente pela Hermenêutica filosófica, mormente a gadameriana, no Brasil.
Enfim, meu agradecimento de coração e de alma, às minhas amadas, mulher Cláudia e minhas
princesas Helena e Alice. Aos meus pais Camilo – in memoriam- e Inês, irmãos Luciano e Ricardo e irmãs,
Judite, Janete, Leane, pelos laços humano-afetivos tecidos, a minha gratidão. Enfim, aos amigos e colegas
docentes da Unisinos e todos os estudantes interessados na temática contemplada aqui, meu cordial
muito obrigado.
Isto é hermenêutica:
o saber do quanto fica, sempre,
de não dito quando se diz algo.
Siglas
Apresentação
Introdução
Capítulo II: Ojogo e o círculo hermenêutico como modelos estruturais da experiência hermenêutica
Conclusão
Bibliografia
Siglas utilizadas para textos de H.-G. Gadamer
AkSch → “Die Aktualität des Schönen; Kunst als Spiel, Symbol und Fest”;
DeHe → “Dekonstruktion und Hermeneutik”;
GeGe → “Gedicht und Gespräch. Überlegungen zu einer Textprobe Ernst Meisters”;
GreSpra → “Grenzen der Sprache”;
HeSpra → “Heimat und Sprache”;
HeKF → “Klassische und philosophische Hermeneutik”;
HhoD → ”Hermeneutik und ontologische Differenz”;
HoLe → “Mensch und Sprache”;
HoSeLe → “Hören – Sehen – Lesen”;
IdHe → “Die Idee der Hegelschen Logik”;
InDi → “Die Unfähigkeit zum Gespräch”;
LeCo → “Sprache und Verstehen”;
LePrePe → “Wie weit schreibt Sprache das Denken vor?”;
MiSp → “Mit der Sprache denken”;
MiLo → “Mythos und Logos”;
MiVe → “Mythos und Vernunft”;
MiOf → “Mythologie und Offenbarungsreligion”;
PhäSpra → “Zur Phänomenologie von Ritual und Sprache”;
PhBe → “Die phänomenologische Bewegung”;
PHhMf → “Phänomenologie, Hermeneutik, Metaphysik”;
ReHe → “Rhetorik und Hermeneutik”;
SeHe → “Semantik und Hermeneutik”;
SoCi → “Vom Zirkel des Verstehens”;
SpKu → “Das Spiel der Kunst”;
StiSp → “Stimme und Sprache”;
SuIn → “Subjektivität und Intersubjektivität, Subjekt und Person”;
UnHe → “Die Universalität des hermeneutischen Problems”;
VeWe → “Die verkehrte Welt”;
ViSpra → “Die Vielfalt der Sprachen und das Verstehen der Welt”;
VMI → Hermeneutik I: Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik, 1986, 2.
Aufl. 1990;
VMII → Hermeneutik II: Wahrheit und Methode. Ergänzungen, Register, 1986, 2. Aufl. 1993.
Convidado pelo autor a apresentar este seu trabalho desafiador, achei, num primeiro momento,
importante identificar o cerne de seu interesse pela filosofia de Hans-Georg Gadamer. Ao longo da leitura
do texto, veio-me à memória uma formulação gadameriana quanto à necessidade de reconquistarmos –
na filosofia hodierna e contra o domínio do conceito científico – a experiência da palavra falada e de seu
papel no conjunto da fundamentação de nosso saber. Numa retrospectiva de 1995, Gadamer observava
que a trajetória das ciências ocidentais teria apostado tudo na exclusividade da teoria construtiva,
fazendo dela a base legitimadora de nosso conhecimento. Com isso, acrescentava ele, se estaria perdendo
de vista a fala viva, o diálogo e sua primazia ontológica perante a reflexão. Pois bem, é justamente contra
tal unilateralidade da atenção epistemológica que a hermenêutica filosófica de Gadamer investe,
advertindo quanto à necessidade de caminhar “não apenas da palavra ao conceito, mas igualmente de
volta, do conceito à palavra”. Espírito este que, vivendo na linguagem e tendo seu espaço privilegiado no
diálogo, o próprio Gadamer, enquanto intelectual e professor, representava, sem dúvida, com perfeição.
Quem teve a sorte de conviver com ele – e Luiz Rohden o experimentou mais de uma vez na
Universidade de Heidelberg – viu-se sempre de novo agarrado pelo forte magnetismo dele emanado,
sendo que, mesmo em sua idade mais avançada, não deixava de entregar-se inteiramente ao horizonte da
linguagem falada, ao diálogo concreto com seus parceiros.
Com essas observações preliminares chegamos ao ponto crucial do trabalho que ora
apresentamos ao leitor. Pois nosso autor enfoca a virada ontológica com a qual a hermenêutica filosófica
contrapõe à cientificidade objetificadora das ciências modernas sua doutrina de compreensão, a qual
encontra na experiência da linguagem sua justificação mais sutil. A estratégia aí utilizada é tão simples
quanto eficaz. Num primeiro momento, apresenta-se ao leitor o caminho tomado por Gadamer na sua
obra principal, Verdade e Método, indicando-se aí algo acerca do lugar específico a ser ocupado por essa
concepção no conjunto do debate epistemológico. A experiência do jogo e do círculo hermenêutico abre-
nos acesso àquele gadameriano “vir ao encontro” ontológico que leva ao diálogo, reconhecido enquanto
“lugar da experiência hermenêutica”. Feito este passo, todo o peso argumentativo cai sobre a tematização
do potencial especulativo da linguagem, legitimando-se, assim, a virada ontológica.
O fato é que, em Verdade e Método, prevalece ainda a preocupação originária do filólogo clássico
com a interpretação de textos. Esse característico “ser para o texto” de Gadamer, como formula com certa
ironia O. Marquad, aponta muito bem o calcanhar de aquiles da obra mencionada. Aliás, foi o próprio
descontentamento do filósofo com esse estágio de sua argumentação que o motivou a investigar o
mistério do diálogo vivo, isto é, da dinâmica especulativa, inerente à linguagem. Daí por que, em
inúmeros ensaios publicados ao longo das três últimas décadas, o enfoque de Gadamer gira em torno
dessa questão.
Luiz Rohden retoma em seu trabalho exatamente esse aspecto chave da obra de Gadamer,
buscando contribuir para um melhor esclarecimento da experiência ontológica que, de e na linguagem,
subjaz a qualquer impulso da teoria filosófica de cunho reflexionante. Acelera-se, com isso, a corrosão da
pretensa soberania do sujeito conhecedor e do fetiche de objetificação – condições epistemológicas da
cientificidade moderna. O caminho assim percorrido encontra sua expressão correta no subtítulo do
trabalho de Rohden: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem.
Tal projeto é muito ousado, já que, partindo de Gadamer, Luiz Rohden pretende aperfeiçoar o
pensamento de Gadamer. Daí também os seus limites. Pois, se, por um lado, o leitor atento aprende a
lidar com uma doutrina de compreensão, cujo mérito principal consiste na descoberta da experiência
ontológica enquanto condição imprescindível de toda reflexão (condição enraizada na experiência da
linguagem viva, dentro da qual o próprio homem experimenta a si mesmo, buscando seu lugar no todo),
o leitor vê-se, por outro lado, abandonado a si mesmo quanto ao questionamento das implicações éticas,
ocultas num projeto de investigação todo voltado à recuperação da velha arte socrática de perguntar. Pois
só seguindo essas pistas chegaríamos a uma fundamentação ética da própria filosofia, tal como a
encontramos hoje, por exemplo, em Levinas.
refere-se à forma de expressão específica da filosofia: a argumentação; através dela a filosofia distingue-se essencialmente do
discurso científico, mas também do da linguagem cotidiana. Pois argumentos conduzem de outra maneira a convicções do que
através de um tipo de coação causal ou lógica, apoiada em evidência; coação que eles exercem contra aquele(a) pelo(a) qual se
veem criticados. Nisto eu vejo um tipo de prenúncio de liberdade (...) Porque a argumentação essencialmente não está baseada
na coação de uma necessidade física ou de uma evidência analítica, ela requer uma descrição particular daqueles seres que
podemos denominar os sujeitos da argumentação. Somente sujeitos livres e conscientes de si poderiam entrar juntos em jogos de
argumentação23.
conheceu apenas um dos lados do a priori ou transcendental: aquele que, herdeiro da redução nominalista da essência, substituiu
a relação universal clássica ‘ser-entes’ pela relação de poder ‘eu-objetos’, afirmando finalmente o primado transcendental da
consciência reflexa de si mesma. Consolidou deste modo, com a sua crítica da razão teórica, a principal linha de força do
pensamento reflexivo moderno da experiência: a experiência possível é inteiramente interpretada a partir da sua referência
teleológica ao saber matemático27.
Conforme Bertalanffy, “considerada à luz da história, nossa tecnologia e mesmo nossa sociedade
baseiam-se em uma imagem fisicalista do mundo, que encontrou a primeira síntese na obra de Kant. A
física é ainda o paradigma da ciência, a base de nossa ideia da sociedade e de nossa imagem de
homem”28. Foi contra esta forma de pensar puramente cientificista, antropocêntrica, artificial de filosofar
e conceber o pensar que muitos cientistas e filósofos se insurgiram, embalados pela mudança de
pensamento anunciada pela crítica e pela desconstrução do primado da consciência que Nietzsche, Freud
e Marx realizaram.
De um modo geral, a lógica formal moderna constitui um meio demonstrativo utilizado pelos
matemáticos, limitando o domínio do valor, pois o que eles ignoram ou desconhecem é estranho à lógica
formal. Ou seja,
o desenvolvimento unilateral da razoabilidade estritamente autônoma gerou, no mundo ocidental, a perigosa aparência
totalitária de um poder, que, habituado a transformar toda a alteridade numa mesmidade retificável pela unidade do sujeito,
procura, na sua extensão ao mundo histórico, reduzir o próprio sentido da experiência humana do limite ou tempo como
condição da autenticidade29.
O. Spengler criticou esse reducionismo da razão, sem anular a validade universal das leis
formais da lógica ou das verités de fait empíricas, afirmando a relatividade dos conteúdos dos a priori na
ciência e na filosofia. Ele enunciou a relatividade da matemática e da ciência matemática, pois
as fórmulas matemáticas enquanto tais têm necessidade lógica, mas sua interpretação visualizável, que lhes dá significação, é
uma expressão da “alma” da civilização que as criou. Deste modo, nossa imagem científica do mundo tem apenas valor relativo.
Seus conceitos fundamentais como os de espaço infinito, força, energia, movimento, etc. são uma expressão de nosso tipo de
espírito ocidental e não valem para a imagem do mundo de outras civilizações30.
Cada comunidade científica vê conforme e a partir de seus interesses, pois “onde um leigo vê
somente um caos de formas e cores, o biologista vê células com seus vários componentes, diferentes
tecidos e sinais de tumores malignos. (...) Assim, o que é visto depende de nossa linha de atenção e
interesse”31. No pensamento científico-filosófico ocidental, foi ao olhar matemático que se conferiram a
supremacia e a legitimidade sobre as demais perspectivas de olhar e de ouvir.
A pretensão de construir um sistema científico ou filosófico neutro constitui o sonho positivista.
Mas esses cientistas e filósofos se esquecem de uma situação muito simples:
Qualquer organismo, inclusive o homem, não é um mero espectador que esteja olhando para o espetáculo do mundo e seja por
conseguinte livre de adotar óculos, embora distorcedores, que os caprichos de Deus, a evolução biológica, a “alma” da cultura ou
a linguagem colocaram em cima de seu nariz metafórico. Pelo contrário, o organismo é um reagente e ator no drama32.
Em outras palavras, “uma das mais sérias deficiências da filosofia ocidental clássica, de Platão a
Descartes e Kant, foi ter considerado o homem primordialmente como um espectador, um ens cogitans,
quando, por motivos biológicos, tem de ser essencialmente um ens agens, no mundo onde é lançado”33. A
limitação da lógica moderna influenciada por Kant e pelos lógicos matemáticos identificou a lógica não
com a dialética, mas com os raciocínios analíticos de Aristóteles, negligenciando os dialético-retóricos. Por
isso a razão moderna considerou estas um palavreado inútil, uma vez que identificou a verdade filosófica
com a validade (certeza) científica.
Thomas S. Kuhn é outro crítico da filosofia moderna. Em sua obra A estrutura das revoluções
científicas, mostrou a impossibilidade de se elaborar uma linguagem fundamentada na observação
“pura”. Não se pode falar da experiência dos sentidos como algo fixo e neutro, nem é possível produzir
uma linguagem de observação neutra. As medições e experimentações são determinadas por um
paradigma, pois se sabe que as ciências não se ocupam com todos os dados, mas selecionam aqueles que
são relevantes para a justaposição de um paradigma que ditou, consciente e/ou inconscientemente, a
escolha deles. Todas pressupõem, desde o início, um paradigma, seja na forma de uma teoria científica
em vigor, seja na forma de alguma fração do discurso cotidiano34. Ao fazer uma análise de como ocorre o
processo do conhecimento e sua fundamentação, T. Kuhn conclui que os paradigmas podem dirigir uma
pesquisa mesmo na ausência de suas regras. Isto é, a adoção de um paradigma não se deve a dados
objetivos, assépticos, científicos, como crê a maior parte dos filósofos e cientistas. A maior parte dos
cientistas, ao fazer a sua opção (fundamentalmente ‘irracional’) pelo modelo de ciência atual, baseia-se na
ideologia que despreza os fatos históricos, o que Whitehead criticou como o espírito a-histórico da
comunidade científica, afirmando que “a ciência que hesita em esquecer seus fundadores está perdida”35.
E o espírito filosófico-matemático é, por princípio, a-histórico. A crítica de T. Kuhn é pertinente ao situar a
origem e o sentido da ciência dentro de um paradigma, inconsciente, em geral, para quem está envolvido
nele; afinal, “o que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência
visual-conceitual prévia o ensinou a ver”36. Ao defender a “subjetividade” da ciência, T. Kuhn foi muito
criticado, pois na opinião deste a conversão de paradigmas envolve a persuasão, não provas lógico-
objetivas. Antes são motivos estéticos e subjetivos (no sentido histórico-experiencial-circunstancial) que
levam à adoção de determinado paradigma e não critérios matemáticos. T. Kuhn contribuiu para a
revisão da concepção científica; com seu pretenso saber superior sobre os demais conhecimentos, situou-a
num contexto mais amplo de saber e lembrou seu caráter de falibilidade. Isso fica bem claro na conclusão
de seu livro: “O conhecimento científico, como a linguagem, é intrinsecamente a propriedade comum de
um grupo ou então não é nada. Para entendê-lo, precisamos conhecer as características essenciais dos
grupos que o criam e o utilizam”37.
Em K. Popper encontramos as limitações da filosofia moderna em sua advertência segundo a
qual o ato de conceber e inventar uma teoria não é suscetível de nenhuma análise lógica. Investiu contra o
neopositivismo vienense, que pretendia impor a toda ciência a análise lógica como embasamento da
filosofia, a qual se limitava apenas a distinguir o verdadeiro do falso. Na lógica da descoberta científica, K.
Popper ligou os procedimentos da descoberta científica mais à lógica do verossímil que à lógica da
verdade. A teoria científica não é mais que uma simples hipótese humana e não pode ser tomada como
evidente nem eternamente infalível. Não havendo uma evidência que se imponha a todos, a hipótese
deve ser apoiada em boas razões, reconhecidas e aceitas como tais pelos membros de uma comunidade
científica. O estatuto do conhecimento deixa de ser impessoal, pois “todo pensamento científico torna-se
um pensamento humano, falível, situado e sujeito à controvérsia”38.
O grande mérito de Popper foi ter quebrado o mito da infalibilidade da racionalidade técnica
bem como a redução da filosofia a um sistema dogmático e fundamentado numa ideia exterior a ele. Em
sua crítica à racionalidade cartesiana, devemos reconhecer o mérito de sua atividade filosófica ao
defender a importância de uma racionalidade prática, reintroduzindo a temporalidade no conceito de
ciência. Equivocou-se, contudo, ao ter pretendido estender essa racionalidade a todas as áreas do saber e
suprimir a validade e as conquistas da razão moderna.
A pretensão filosófica de Carnap e do 1º Wittgenstein, enquanto pretensão de construção de um
sistema fundamentado única e exclusivamente em relações matemáticas, pode ser representável pelo caso
do Barão de Münchhausen, que procura sair do atoleiro puxando-se por seus próprios cabelos. Trata-se
de pensar um modelo mais amplo de ciência e de filosofia como um todo inter-relacionado, coerencial e
autoimplicativo.
A linguagem matemática retrata apenas uma pequena parcela da realidade. Infelizmente, apenas
uma parte da lógica aristotélica que retrata e justifica um aspecto do saber foi tomada como modelo
absoluto de ciência ao fornecer as leis gerais e supremas do raciocínio. Não devemos esquecer que as
categorias de nossa experiência e de nosso pensamento são determinadas também por fatores biológicos e
culturais, que
todo o nosso conhecimento, mesmo desantropomorfizado, só reflete certos aspectos da realidade. Se o que foi dito é verdade, a
realidade é aquilo que Nicolau de Cusa (...) chamava coincidentia oppositorum. O pensamento discursivo representa sempre
somente um aspecto da realidade última, chamada Deus na terminologia de Cusa. Nunca pode esgotar sua infinita
multiplicidade. Por conseguinte, a realidade última é uma unidade de opostos. Toda afirmação é válida somente de um certo
ponto de vista, tem apenas validade relativa, devendo ser suplementada por proposições antitéticas partidas de pontos de vistas
opostos. (...) ex omnibus partibus relucet totum, usando ainda uma vez as palavras de Cusa: cada um desses aspectos possui a
verdade, embora somente relativa. Isto, ao que parece, indica as limitações e ao mesmo tempo a dignidade do conhecimento
humano39.
Por que voltar a Aristóteles? Por que revisitá-lo a fim de repensar os rumos da filosofia moderna
e contemporânea por meio da explicitação da racionalidade retórica? O fato é que, na filosofia
desenvolvida por Aristóteles, encontramos uma autêntica alternativa complementar e superadora do
reducionismo da razão. A filosofia aristotélica continua a exercer influência no pensamento moderno e
contemporâneo. Além disso, resgataremos uma imagem mais coerente dela, que ultrapassa a dimensão
analítica a que foi relegada nestes últimos séculos. Com o desenvolvimento da racionalidade retórica do
estagirita, desvendamos e fundamentamos uma fecunda noção de filosofar que imbrica –
linguisticamente – a retórica com a ética, com a política, com a metafísica.
Encontramos na Ética a Nicômaco a recomendação aristotélica segundo a qual cada ciência deve
elaborar um saber adequado ao objeto que lhe é próprio, isto é, devemos nos esforçar “por determinar,
ainda que em linhas gerais apenas, o que seja ele”44. Toda discussão, pesquisa “será adequada se tiver
tanta clareza quanto comporta o assunto, pois não se deve exigir a precisão em todos os raciocínios por
igual”45, pois o que a política investiga – ações belas e justas – admite uma grande variedade de
concepções e “flutuações de opinião”46. E de tais premissas, contingentes e verossímeis, só podemos obter
conclusões do mesmo caráter, ou seja, nesse caso, a verdade só pode ser mostrada em linhas gerais. Já na
ciência apodíctica as premissas são verdadeiras, exatas, e as conclusões têm, necessariamente, o mesmo
caráter.
Para O. Höffe, falamos de modo adequado quando conseguimos a clareza correspondente à
“matéria subjacente”47; isso porque, em Aristóteles, o fim do saber e do discurso está na relação de
correspondência entre forma e matéria. A coisa sabida não é um objeto “em si”, independente do sujeito
que, posteriormente, objetifica-o conceitualmente. Aristóteles rejeita as representações objetificadoras do
pensar, compreendendo o pensar como mediatização entre forma e matéria. No tratado das Categorias, ele
apresenta o conceito de ciência como relação em que os dois momentos exigem-se reciprocamente, onde o
saber já sempre é saber de algo, o sabido sempre já é objeto de um saber.
Diferentemente do relativismo sofístico ou moderno, para Aristóteles, “é próprio do homem
culto buscar a precisão, em cada gênero de coisas, apenas na medida em que a admite a natureza do
assunto”48. Encontramos na filosofia aristotélica uma distinção de saberes: científico, ético, retórico, e por
isso seria uma insensatez exigir um raciocínio provável de um matemático e provas científicas de um
retórico. Na formulação “a exatidão matemática não se deve exigir em todos os casos”49 está embutida
uma crítica à concepção platônica segundo a qual a dialética e a retórica deveriam ser científicas. Hoje,
para nós, ela justifica nossa crítica e pretensão de repensar os caminhos da filosofia moderna e
contemporânea.
Foi E. Berti quem refletiu especificamente sobre os diferentes níveis de racionalidade
desenvolvidos por Aristóteles: há muitos modos de ser racional ou de estruturar discursos racionais, e
nem todos podem ser reduzidos à forma do cálculo lógico ou do método científico. Nem todos possuem o
mesmo grau de rigor, de constringência, de necessidade, mas todos são válidos, universalizáveis e
comunicáveis, mesmo não sendo rigorosamente lógico-dedutivos.
Dentro do quadro filosófico aristotélico encontramos duas espécies de saber considerados
“científicos”: o apodíctico (analítico) e o dialético-retórico. Agora nos debruçaremos sobre eles para
apreender a sua riqueza e contribuição para o conjunto da filosofia moderna e contemporânea.
No conhecimento científico apodíctico se conhece a causa +pela qual algo é, “quando sabemos
que essa causa é a causa de algo, e quando, além disso, não é possível que esse algo seja outro que não
este”. Em Aristóteles, a ciência possui duas características essenciais: 1ª) conhecer a causa de um fato; 2ª)
dadas certas premissas, decorre delas uma conclusão necessária. A ciência, conhecendo o “quê” e o
“porquê”, o dióti50, caracteriza-se por sua universalidade e necessidade, diferindo da opinião, que não
possui validade universal nem necessária.
Assim, é o conhecimento das causas e das necessidades o que caracteriza a ciência como
apodíctica, constituindo a demonstração – apódeixis –, formando o silogismo científico, que supõe uma
necessidade formal. Há silogismo quando as premissas são “verdadeiras, primeiras, imediatas, mais
notáveis, anteriores e causas da conclusão”51. A premissa que contiver esses elementos é designada como
principium proprium, necessário para que haja ciência. Como instrumento do conhecimento científico, a
demonstração – apódeixis – supõe, implica a relação com alguma verdade primeira e necessária. A
dedução é necessária, e para tanto exigem-se princípios fixos, rígidos, como, por exemplo, a unidade é o
quantitativamente indivisível. Tais princípios, próprios e necessários para cada ciência, podem ser
definições que dizem a essência da coisa, ou podem ser pressuposições que dizem a existência da coisa.
Para Aristóteles, há proposições comuns a algumas ciências, como, por exemplo, nas ciências
matemáticas, “subtraindo iguais de iguais se obtêm iguais”. Há princípios comuns a todas as ciências,
como é o caso do princípio da não contradição: “é impossível simultaneamente afirmar e negar um
mesmo predicado de um mesmo sujeito”; e conforme o princípio do terceiro excluído, “é necessário ou
afirmar ou negar um certo predicado de um certo sujeito”52. Essas, mais que premissas, são regras gerais
às quais devemos nos ater para obter a exatidão demonstrativa, própria da racionalidade apodíctica, no
discurso.
O conhecimento apodíctico parte de premissas verdadeiras e imediatas, mais conhecidas que a
conclusão, anteriores a esta e causa desta. Tais premissas são próprias para conduzir a uma conclusão
cientificamente demonstrada. A ciência caracteriza-se por sua necessidade, na qual há um raciocínio
rigoroso que não pede adesão de um interlocutor, como acontece no raciocínio dialético-retórico53. Trata-
se de um raciocínio que exclui toda forma de contingência, de opinião, de probabilidade. Nos Analíticos,
Aristóteles apresenta a teoria da ciência como o
que vai do certo ao certo, que é fundado sobre um pequeno número de princípios apreendidos numa intuição infalível e
analisados nos silogismos rigorosos: teoria de uma ciência acabada, e não de um saber em devir54.
Aristóteles foi o primeiro a elaborar um conceito de ciência que foi apreendido por boa parte da
filosofia moderna e contemporânea. Mas – e nisso vemos sua contribuição para nós hoje –, percebendo os
limites e a estreiteza do conhecimento científico, explicitou e desenvolveu outra racionalidade,
considerada também como científica: a dialético-retórica. Com isso dirimimos dois problemas: superação
de uma visão deturpada de Aristóteles como “o lógico” ou que tenha caminhado da abstração à filosofia
prática de tal modo que, ao final de sua vida, tenha defendido uma filosofia prática; correção do
reducionismo da razão, pela distinção de diferentes níveis de racionalidade apropriados para distintos
assuntos.
Desenvolvemos inicialmente o conhecimento científico dialético mais detalhadamente, uma vez
que, por meio dele, será possível compreender melhor a racionalidade retórica enquanto antístrofe
daquela. No exórdio dos Tópicos, Aristóteles apresenta a racionalidade dialética assim:
a pragmática (enquanto o exercício, a prática) deste tratado é a invenção de um método que nos ensine a argumentar acerca de
todas as questões propostas, partindo de premissas prováveis, e a evitar, quando defendermos um argumento, dizer seja o que
for que lhe seja contrário55.
nossa discussão será adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o assunto, pois não se deve exigir a precisão em todos os
raciocínios por igual, assim como não se deve buscá-la nos produtos de todas as artes mecânicas. (...) Evidentemente, não seria
menos insensato aceitar um raciocínio provável da parte de um matemático do que exigir provas científicas de um retórico62.
Todos empregamos a retórica e a dialética no dia a dia, pois “sempre que atacamos ou
defendemos uma opinião, fazemos dialética; sempre que acusamos ou nos defendemos e sempre que
damos um conselho, que censuramos ou louvamos, fazemos retórica”63. Enquanto as demonstrações
científicas são extraídas de verdades necessárias e que se impõem em todo tempo e lugar, as
demonstrações dialéticas e retóricas fundamentam-se em verdades da opinião aceitas, o mais
frequentemente, pela maior parte das pessoas, e dentre estas as consideradas mais sábias. Verdade para a
ciência, probabilidade para as duas artes conjuntas, que não se movem no domínio do necessário, mas do
provável, do verossímil64.
Tanto o método quanto o conteúdo da retórica constituem-se de provas por persuasão, que é
uma espécie de demonstração científica. A demonstração retórica, seu método, é denominada de
entimema ou silogismo retórico. Trata-se de um silogismo que parte de probabilidades e de signos. O
“entimema vincula-se cada vez mais a um modo de inferência especial que se baseia em premissas só
‘prováveis’”, que podemos representar do seguinte modo:
“B está em regra para A
CéB
C é verossimilmente A”65, representável pelo seguinte exemplo aristotélico:
“Pítaco é sábio
Pítaco é bom
Os bons são sábios”66.
Nesse raciocínio retórico, tanto as premissas quanto a conclusão possuem o caráter de
probabilidade, de verossimilhança, e, embora o entimema mencionado apenas pareça verdadeiro, é
verossímil e lógico e em seu conteúdo é adequado ao modo humano de ser. Aristóteles apresenta o
“provável” – eikós – como o que se refere ao que sucede “a maioria das vezes”, enquanto coincide com
uma opinião geralmente admitida ou “plausível” – éndoxon. Em Tópicos, I 1, 104a, 8-9, “é provável o que
assim parece, seja a todos os homens, seja à maioria, seja aos mais sábios”. Em Analíticos primeiros, II 27,
70a, 3-4, “o provável é uma premissa ‘plausível’ – éndoxon; pois o que se sabe que ocorre ou não na
maioria das vezes, o que é ou não é, isso é uma probabilidade”. Nesse sentido, “o plausível é, com efeito,
o que confere validez epistemológica aos enunciados de probabilidade, ao interpretá-los como
enunciados dialéticos ‘verossímeis’”67.
Tanto a racionalidade dialética quanto a retórica não se aplicam a um objeto específico, restrito,
mas a todas as matérias, diferindo da racionalidade apodíctica que possui matéria específica. O método
daquelas consiste em selecionar e justificar enunciados prováveis com o objetivo de constituir raciocínios
sobre assuntos que não podem e não devem ser tratados de modo científico-matemático.
A utilidade da racionalidade retórica consiste em evitar que uma coisa reprovável, uma causa
injusta, seja vitoriosa num discurso. Tanto ela quanto a racionalidade dialética são úteis para trabalhar
nos campos que não comportam constringências e precisam de interpretação a fim de alargar os
horizontes de sua compreensão, como, por exemplo, o campo da ética, da política, da metafísica. No
âmbito da compreensão-interpretação, uma tese pode ser mais ou menos válida que outra, mas não
necessariamente mais verdadeira ou falsa que outra.
A retórica nasceu da tarefa precípua de subverter a ordem injusta dos valores, exercendo uma
ação corretiva sobre a deturpação dos valores sociais. Concebida como lógica da decisão, a retórica
transforma-se em órganon obrigatório para todo projeto de racionalização da vida pública. Trata-se de
levar ao plano do convencimento, ao da validade comum, em questões políticas, os motivos pelos quais
as pessoas se movem na ausência de verdades universais que se impõem por si mesmas.
A racionalidade dialético-retórica constitui o modo mais adequado de compreender e articular
filosoficamente as questões humanas. Vimos, em Aristóteles, duas lógicas científicas argumentativas, a
apodíctica e a dialético-retórica – embora haja uma terceira, a prática. Nossa pretensão não é desprezar ou
suprimir o conhecimento lógico-dedutivo – grego ou moderno –, mas mostrar que a filosofia é irredutível
a este modelo de conhecimento. Ao realçar o valor e a atualidade da racionalidade retórico-dialética,
procuramos alargar a compreensão do filosofar, pois “em alguns aspectos da vida, a falta de precisão dos
conceitos é uma condição indispensável para poder servir-se deles, e ainda a análise mais exata dos
conceitos não é capaz de reduzir o pensamento humano aos elementos exclusivamente bem
precisados”68.
A liberdade e as contingências humanas são excluídas da racionalidade apodíctica. Na retórica,
elas são trabalhadas e compreendidas ontologicamente. Uma vez demonstrada uma proposição, em
lógica, a argumentação dedutiva se torna necessária e as demais provas são consideradas supérfluas. O
problema da racionalidade dialético-retórica é a amplitude do seu potencial argumentativo e os critérios
pressupostos. Em todo caso, na filosofia aristotélica, os diferentes níveis de saber encontram-se inter-
relacionados e interdependentes formando um sistema filosófico.
O homem que vive em sociedade e discute com seus semelhantes sabe que o mais das vezes não
se usam provas demonstrativas para resolver seus problemas. Todos experienciamos que as provas
utilizadas em moral, direito, debates políticos, não são de caráter lógico-matemático, apodíctico. É
justamente por isso que filosofamos. Tratar de questões referentes ao belo, à verdade, à bondade,
evidentemente só é possível com a argumentação do tipo do entimema.
É profícua essa volta a Aristóteles para repensar e ampliar os limites da filosofia moderna e
contemporânea, que, além de reintroduzir a questão da politicidade humana, concebe a filosofia como
um arcabouço argumentativo universal. Mas se ele nos oferece muitas pistas, permanece também uma
série de problemas, tais como o fato de a distinção de racionalidades apropriadas aos diferentes assuntos
não resolver o problema da filosofia moderna, uma vez que, em Aristóteles, a filosofia possui um caráter
analítico-epistemológico, uma ausência do valor e da referência da subjetividade e da historicidade.
Até o momento procuramos complementar e refletir – a partir de “fora” – sobre os rumos da
filosofia moderna e contemporânea. Explicitaremos agora – a partir de “dentro” desta – a guinada
filosófica a partir dos jogos de linguagem do 2º Wittgenstein. Em vez de erigir uma fundamentação
filosófica em oposição a um modelo de filosofia, nosso escopo primeiro e último é justificar o nascimento,
desenvolvimento e sentido da hermenêutica no itinerário da filosofia.
há hábitos determinados de manejar com elas, que são intersubjetivamente válidos (IF 198, 199). É precisamente o hábito que sanciona
sua significação determinada (IF 349) e constitui o jogo de linguagem em questão, que é uma forma específica da atividade
humana. Por exemplo, o jogo de linguagem específico da ciência natural que Wittgenstein, no TLP, considerava o único possível
é, agora, reduzido a um sistema entre outros no pluralismo fático dos sistemas linguísticos. A designação, contudo, cerne das
considerações linguísticas da tradição, não é um jogo de linguagem propriamente, mas apenas uma preparação para isso (IF 26,
49)79.
A análise que o 2º Wittgenstein realiza consiste numa crítica à semântica tradicional, em que a
significação não depende mais da ordenação objetiva, mas a palavra tem sentido pela maneira como é
usada, isto é, de acordo com a função determinada que exerce num jogo de linguagem.
Quanto à hermenêutica moderna – compreendida fundamentalmente como a concepção de
Dilthey80 e de Schleiermacher –, a crítica de Wittgenstein à existência de um sentido fixo, oculto dos
textos, perseguido pela hermenêutica até Schleiermacher, faz sentido e está correta. Mas destronar
totalmente o sujeito que realiza a análise compreensiva da linguagem, como ele propõe, equivale a
cometer um equívoco, uma recaída na objetividade asséptica moderna. Wittgenstein faz bem ao trabalhar
e mover-se no âmbito da linguagem, mas querer estruturá-la objetivamente, realizando uma espécie de
“assepsia da subjetividade humana”, é equivocar-se filosoficamente. A concepção de história, de
liberdade, nessa visão se esvai.
Se a dimensão do sentido e sua compreensão são problemas tanto para Wittgenstein quanto para
Schleiermacher e Dilthey, a forma de abordar é que varia. Voltaremos a esse tema, mas, para adiantar, o
problema central consiste na concepção de filosofia que cada um sustenta. Como veremos, para
Heidegger e Gadamer, a filosofia é mais que uma simples metodologia para extrair o sentido de um texto
ou de uma obra literária ou artística. A hermenêutica filosófica instaura sentido, isto é, efetiva um
processo. Vejamos a relação entre hermenêutica e Wittgenstein:
(...) o jovem Wittgenstein havia ensinado que o que é um “significado”, uma “intenção com sentido” e o que é “compreender”
não pode descrever-se igual que um processo natural, mas que se “mostra” em e junto com a função da linguagem como
condição de possibilidade da descrição de um processo natural. Este princípio analítico-linguístico se mantém ainda no último
Wittgenstein, só que agora a função da linguagem não está regulada por uma “lógica transcendental” da figuração do mundo,
mas que se reparte entre a multiplicidade ilimitada dos “jogos linguísticos” fáticos, os quais são componentes de “formas de
vida” ou “costumes” e, como tais, dão abertura a priori ao sentido a cada particular mundo situacional81.
Com a concepção dos jogos de linguagem, Wittgenstein realiza uma crítica ao modo de pensar
psicologista que predominou na hermenêutica nos moldes de Schleiermacher e Dilthey. Se “não são as
‘vivências’ nem as ‘intenções de índole espiritual’ que constituem a substância e o objeto real da
compreensão, a teoria da compreensão hermenêutica logicamente tampouco poderá estar fundada no ato
de ‘reviver’ ou na ‘reconstrução espiritual’ dos atos criadores alheios que se expressam no medium
linguístico do texto”82.
Para Apel, a concepção dos jogos de linguagem coloca uma curiosa alternativa:
Por uma parte poderíamos pensar que o que substitui a compreensão hermenêutica qua ato revivescente é a “descrição” objetiva
do jogo linguístico em cujo contexto se “mostra” o sentido ou a intenção que se trata de compreender. Mas por outra parte
poderíamos partir, para a compreensão do sentido que se mostra em um jogo linguístico, não de uma descrição distanciada do
jogo linguístico como um todo, mas da participação no jogo linguístico mesmo, uma vez que só há compreensão do sentido
dentro da moldura de um jogo linguístico83.
A expressão hermeneutic turn foi utilizada por Don Hide em sua obra Hermeneutic Phenomenology:
The Philosophy of Paul Ricoeur, na qual afirmou que “a virada hermenêutica propõe criar, ao contrário, um
estar ciente da não neutralidade da linguagem em uso”86. O hermeneutic turn retrata e fundamenta a
impossibilidade de reduzir a linguagem à perspectiva científico-moderna. Não abordaremos aqui a
concepção hermenêutica de P. Ricoeur. É na filosofia hermenêutica de Heidegger que ancoraremos a
guinada da hermenêutica de orientação metodológico-científica à ontológica. Fundamentaremos nossa
reflexão na hermenêutica da facticidade, que assinala a virada filosófica levada adiante por Gadamer.
O hermeneutic turn assemelha-se, em parte, à virada ocorrida na filosofia da linguagem de
orientação analítico-matemática para uma análise do seu uso, representada pelo itinerário do 1º ao 2º
Wittgenstein. Como ressaltamos, há apenas uma analogia entre essas viradas. No caso do hermeneutic
turn, ela é mais radical, pois passou-se do registro epistemológico para o ontológico – este engloba aquele
e afeta o sujeito nela envolvido, e por isso dizemos que ela se justifica como um modo de ser, mais que
simplesmente um modo de conhecer –, ao passo que na filosofia da linguagem a virada foi interna, de
uma dimensão abstrata para uma pragmática. Contudo, o ideal teórico de cientificidade é que subjaz a
estas, pois pressupõe-se ainda um sujeito que olha, analisa e descreve, de fora, a validade das regras e
seus usos nos diferentes jogos de linguagem.
A virada da hermenêutica epistemológica, isto é, da moderna à ontológica, expressa-se no termo
e significado do hermeneutic turn, iniciado por Heidegger como hermenêutica da facticidade enquanto
filosofia hermenêutica e levada adiante por Gadamer enquanto hermenêutica filosófica.
Em F. Schleiermacher, a hermenêutica é considerada uma disciplina auxiliar e subordinada à
dialética. Com W. Dilthey, a hermenêutica é enquadrada na psicologia; e ele, considerado o “gênio
universal da experiência histórica, não se saiu bem ao longo de sua vida, no sentido de fundamentar
cientificamente a concreção toda do mundo histórico (...) contentou-se com uma fundamentação
psicológica das ciências do espírito, que conduziu a uma mera tipologia das visões de mundo”87. A
concepção hermenêutica de ambos reduz-se, em última instância, aos ditames científicos da filosofia
moderna. Foi em Dilthey que Heidegger encontrou, estudou e foi influenciado pela questão da
temporalidade, da vida, da historicidade do saber.
A importância do desenvolvimento do hermeneutic turn se deve ao fato de que “foi somente a
virada que Heidegger deu à fenomenologia de Husserl, e que significou ao mesmo tempo a recepção da
obra de Dilthey através da fenomenologia, que conferiu pela primeira vez à hermenêutica uma
importância filosófica fundamentada”88. A fenomenologia foi incontestavelmente uma das correntes
principais na filosofia de nosso século. Husserl, o fundador do movimento fenomenológico, levou à
vitória o apriorismo clássico da tradição idealista, quando pôs termo à invasão da psicologia orientada
pelas ciências da natureza. Em uma de suas críticas, Husserl “mostrou, em sua obra Investigações lógicas,
que os fatos da lógica bem como os objetos da matemática, os números ou figuras geométricas, não são
fatos da experiência e são privados de seu verdadeiro sentido de validade quando são mal
compreendidos como tais”89.
Husserl rompeu com “o conceito da experiência limitada às ciências e fez do ‘mundo da vida’ a
experiência do mundo realmente vivida, elevando o tema universal da reflexão filosófica”90. Sua
concepção de Lebenswelt inaugurou o nascimento do hermeneutic turn; contudo, por meio do seu inovador
método fenomenológico, permaneceu preso ainda ao idealismo, pois uma intencionalidade (racional)
deveria buscar sempre o significado des Dings an sich. Permaneceu preso à pretensão de chegar a um
fundamento irrecusável e inconcusso do conhecimento, que era a chegada zu den Sachen selbst, próprio da
pretensão da metafísica tradicional e da filosofia moderna, inclusive da hermenêutica moderna.
Era necessário fazer uma crítica da pretensão fenomenológica de chegar “à coisa mesma”,
embora a fenomenologia – pois deslocou a centralidade do conhecimento atribuído à criação apenas por
parte do sujeito para o saber situado (Lebenswelt) – representasse um início de virada no pensamento
filosófico subjetivista e idealista ocidental. O jovem Heidegger desenvolveu então uma reflexão
conceitual e elaborou os meios metódicos que desenvolveram os traços dogmáticos no conceito de
consciência. A partir de Husserl, Heidegger procurou então fundamentar uma filosofia que recolocasse a
centralidade da autoconsciência na filosofia. A partir da filosofia aristotélica fundamentou e desenvolveu
seu método com “quem de fato não há nem autoconsciência como a ‘verdadeira’ consciência, nem sujeito
como subjetividade, nem o ego da subjetividade transcendental”91. Heidegger problematizou a existência
da “coisa em si” husserliana porque não há um tal dado da consciência; antes com suas possibilidades
tudo se encontra na dinâmica do que era e do que virá, ou seja, tudo se encontra situado e relacionado.
Na opinião de R. Wiehl, a virada ontológica aparece como a coisa essencial comum do
pensamento de Heidegger e de Gadamer, com a diferença de que este volta-se à ontologia dialética de
Platão-Hegel, ao passo que aquele volta-se aos primeiros princípios do pensar do ser grego com os pré-
socráticos.
Hermenêutica da facticidade
O hermeneutic turn92 tem lugar bem definido, não apenas no itinerário da própria hermenêutica,
como também na história da filosofia com o desenvolvimento da hermenêutica da facticidade. Heidegger
foi marcado de modo profundo e decisivo pelo problema do historicismo. Gadamer lembra que, em
função da “consciência histórica” desenvolvida então por Dilthey, “foi exigida de todos nós uma nova
autoconsciência de método. Como o idealismo alemão discursava a respeito do Absoluto, não dava
mais”93. Tratava-se de discutir de modo permanente como se podia exigir, de uma obra filosófica, a
validade de verdade ante o surgimento da consciência histórica.
Se pensarmos como parte do pensamento dos gregos, objetificando o saber, não será possível
pensar o pensamento como movimento, como temporalidade. A limitação do conceito de ser grego e a
relatividade do nosso poder conhecer são ampliadas com nossa consciência histórica. É justamente esse o
ponto central de Ser e tempo: “esclarecer a estrutura ‘hermenêutica’ do Dasein, ou seja, não simplesmente
continuar a hermenêutica do ‘espírito’ e suas criações, a qual nós nomeamos ‘cultura’, mas empreender
uma ‘hermenêutica da facticidade’”94. Isto significa afirmar que a constituição do Dasein não se esgota na
autoconsciência, mas se compreende como ser finito em seu ser-no-mundo e que, a partir disso, a questão
central da metafísica é: “‘Lógos’ não se deve mais pensar como revelação de algo presente, ‘Ser’ não é
mais como algo máximo ou mínimo presente a si mesmo. Antes, o ser não é de modo algum ‘no-thing’. E
contudo não é ‘no-thing’, este ‘nada’, que se apresenta como o ser e que pertence, como futuro, a cada
ente, também ao Dasein que se sabe como histórico-finito”95. Aqui encontramos uma importante
justificação e fundamentação do hermeneutic turn em Heidegger, sobre a qual Gadamer fundamentará sua
hermenêutica filosófica. O Dasein não é apenas um ser privado rumo à morte, limitado em seu pensar e
justificável apenas em relação ao ser “completo”, que “se basta a si mesmo”; “antes, é um projeto que se
lança para além de si mesmo, o do ser como tempo”96, um projeto projetado. Por isso Heidegger não se
propôs a destruir a metafísica ocidental, mas redimensioná-la no tempo em que Ser e tempo não se
excluem. Era como se até então a metafísica devesse, para garantir o fundamento e o exercício do
conhecimento, remeter-se ao além da física.
Heidegger mostrou que o relativismo “somente poderia valer a partir de um ponto de partida
fictício duma observação absoluta na qual o ser humano se contenta em constatar com objetividade e
tomar consciência do que foi pensado em diferentes tempos da história do pensar do Ocidente”97. Foi
contra essa absolutização da filosofia em forma de sistema que Heidegger desenvolveu sua hermenêutica
da facticidade. Para ele, tratava-se essencialmente de “encontrar o enraizamento do questionar filosófico
no Dasein fáctico humano”98. Sobre esse problema e o título da obra Ser e tempo, R. Wiehl comenta: “‘Ser e
tempo’ não é somente o título da obra filosófica principal de Heidegger, mas também uma palavra-chave
para a perda de realidade do princípio fundamental metódico da ontologia tradicional: ‘Ser e tempo’ e
não: ‘Ser e tempo e conhecimento em relação a nós e em e para si’”99.
Acerca desse ponto Gadamer confessou: “Facticidade significa assim o Dasein do ser humano, e
eu ponderei sobre o surgimento da palavra, de onde vem a ‘facticidade’ propriamente. ‘Factum’ é,
contudo, propriamente suficiente”100. No neokantismo o último fundamento do apriorismo foi o factum
da ciência, o que não satisfazia mais as reflexões filosóficas, afirmou Gadamer.
A hermenêutica alude e concentra-se também sobre o incompreensível (Unverständliches), ou
seja, o não dito (ainda), que por este é provocado ou pelo incompreendido e levado ao caminho do
perguntar e compreender. Trata da “tematização do não tematizável”, ou seja, a totalidade não totalitária,
que é “incapaz de tornar-se ‘objeto’ da reflexão”. Este “ponto de referência metafísico vê-se tematizado
como algo que subjaz a toda reflexão”, que é mencionado por Gadamer na formulação: “o que no dito
está sendo não dito”. Nesse processo não ocorre um domínio prévio, mas se procura responder ao desafio
que sempre se renova, a “algo incompreensível, surpreendentemente diferente, estranho, obscuro – e
talvez profundo, que nós precisaríamos compreender”101.
Sob os efeitos da filosofia de vida e de Nietzsche, Heidegger reflete sobre o conhecimento em
analogia com a vida, que não culmina como a flor no fruto, como na metafísica, que da contingência
chega ao Absoluto, “mas ela cria constantemente ocultamentos e erige-os em torno de si”. Isto é, nas
palavras de Heidegger: “A vida é nebulosa (Diesig)”, e Diesig significa “nebuloso”, ou seja, a vida
“enevoa-se continuamente de novo a si mesma”. Ou seja, “certamente a vida acordada é claridade e
abertura para tudo o que existe – e então subitamente se encobre e esconde de novo. Como filósofo,
Schelling designou tal limite com a expressão ‘o que não pode ser pensado previamente’
(Unvordenklich)”102. A magia dessa palavra alemã repousa no fato de que “nela sente-se sempre um sopro
real deste movimento antecipador, que quer sempre antecipar e pensar coisas com antecedência, no
entanto, sempre de novo chega em algo onde não é mais possível compreendê-las através do imaginar ou
pensar as coisas com antecedência. Isto é o que não pode ser pensado previamente”103. A hermenêutica
da facticidade trata justamente disso, uma vez que ela “não segue obviamente a curiosidade viciada na
ordem, com a qual se ensina o sistema da filosofia nas cátedras”104. Ela trata de outro compreender,
daquilo que a vida mesma oferece e é para ser compreendido. Trata-se de outra lógica, não apodíctica,
mas da verossimilhança, da existência, do finito, do histórico tecido com o metafísico...
Diferentemente da hermenêutica moderna – preocupada fundamentalmente com a
universalidade científica de sua atividade, com as interpretações “ruins” e seus equívocos, com a intenção
do autor – a hermenêutica da facticidade “está diante do enigma que o ser aí que é jogado no aí explicita a
si mesmo, projeta-se continuamente rumo a possibilidades, ao que vem ao encontro de nós. Heidegger
tematizou este ‘como’ como o ‘como’ hermenêutico”105. Pela
fundamentação da metafísica por Aristóteles nós conhecemos este “como” correspondente ao “ente como ente” (on he on). Este
não significa o ente, mas o ser, o qual é, e que é, desligado de tudo o que pode pertencer a ele – seja isto, seja aquilo. Mais tarde
formulou-se o Ser, que é independente e desligado de todas as predicações possíveis ou acidentes no conceito neoplatônico “o
Absoluto” (...) Quando se parte da hermenêutica da facticidade, isto é, da autoexplicitação do Dasein, fica evidente que o Dasein
sempre se projeta rumo ao seu futuro e com isto, ao mesmo tempo, é consciente de sua finitude. Isto Heidegger mostrou na
conhecida expressão do “correr para a morte” (Vorlaufen zum Tode) como a propriedade do Dasein. O Ser no aí é assim o Ser-aí
entre duas obscuridades, o futuro e a origem106,
a linguagem, o estar em relação com a totalidade do ente, estabelece a comunicação do ser do homem consigo mesmo e com o
mundo, revelando sua natureza histórico-finita. Platão foi o primeiro a compreendê-lo quando reconheceu que a palavra da
linguagem é ao mesmo tempo una e múltipla, isto é, que possui uma íntima dimensão de multiplicidade que a põe em relação
com a totalidade da qual exige seu sentido, porém sem nunca chegar a esgotá-la113.
Desse modo, a hermenêutica não consiste num saber que se põe à procura de um “paraíso
perdido”, uma vez que, com o hermeneutic turn, ela amplia o projeto filosófico dominado pelo ideal de
método. A hermenêutica filosófica desvenda o domínio do ideal de método científico em nossa cultura e
“se coloca ao lado como a cultura da humaniora e engloba, na verdade, o todo de nossa forma de vida
humana. Ela serve a uma tarefa que é colocada a todos nós: a de encontrar o equilíbrio certo entre o poder
do saber dominante e a sabedoria socrática do não saber qual é o bem”114.
O hermeneutic turn protagonizado por Heidegger significou, de certo modo, uma volta à filosofia
grega para sanar as limitações da razão moderna, pois, na retomada de Aristóteles e dos pré-socráticos,
tentou fundamentar a ontologia e a metafísica a partir da relação entre ser e tempo. A virada operada por
Heidegger e Gadamer é, de certo modo, pois, uma volta à Antiguidade, que procurou levar consigo os
benefícios da modernidade, embora para o primeiro a filosofia assuma um matiz “arqueológico”. Já em
Gadamer, mais que uma simples virada – para a filosofia platônica – é uma “revirada” filosófica, pois
volta à filosofia moderna, representável na filosofia hegeliana.
Enfim, mostramos – com o hermeneutic turn – que o saber filosófico autêntico não pode ser
reduzido à abstração do tipo lógico-matemático, mas se enraíza desde sempre no tempo, na história. A
hermenêutica assume o enigma que o ser aí, que é jogado no aí, se explicita a si mesmo, projeta-se
continuamente rumo às mais distintas possibilidades entre a obscuridade da sua origem e a do seu
futuro. Diante disso e com isso, a linguagem filosófica não pode ser reduzida a um conjunto de sentenças
ou símbolos matemáticos, pois ela não é tanto um objeto, mas a realização do nosso ser aí, do que
pensamos, desejamos e somos. Por isso, a hermenêutica – em primeira e última análise, a metafísica – não
se sustenta apenas no uno, no eterno ou no necessário, mas nasce da inter-relação e imbricamento desses
com o múltiplo, com o temporal e com o contingente, integrando-os numa totalidade. Mas quais
princípios fundamentam e possibilitam essa perspectiva mais integral, autêntica e abrangente de
hermenêutica, de metafísica, e como mostrar isso? À primeira pergunta respondemos com a concepção de
experiência – a partir do hermeneutic turn –, que será tema de reflexão do nosso próximo ponto, e à
segunda respondemos com a concepção metodológica apropriada da hermenêutica filosófica, que
desenvolvemos no segundo capítulo.
1.3 A experiência, um princípio da hermenêutica filosófica
O princípio da experiência contém a determinação infinitamente importante de que, para a aceitação e presunção da verdade de
um conteúdo, o próprio homem tem de estar nele, ou, mais precisamente, tem de encontrar este conteúdo unido e em unidade
com a certeza de si mesmo.115
Experiência e história podem ser consideradas os dois temas mais importantes e próprios da
filosofia do século XX, e, “com a ampliação do conceito de experiência para além do campo da
experiência dos sentidos, chegou-se ao mesmo tempo à percepção da autêntica temporalidade de cada
experiência”121. Para corroborar nossa posição acerca da centralidade do princípio da experiência na e da
filosofia, retomamos a afirmação de O. Marquard, para quem a “experiência sem filosofia é cega; a
filosofia sem experiência é vazia: não se pode ter realmente filosofia sem ter a experiência em relação à
qual ela é a resposta”122, isto é, o filosofar autêntico implica realizar uma experiência. Contudo, o conceito
de experiência pertence aos conceitos menos esclarecidos que possuímos. A palavra experiência “é uma
das mais enganadoras em filosofia. Problema da base empírica na teoria das ciências, problema do
mundo da vida em Husserl, da hermenêutica em Gadamer”123, que acentuou, nos passos de Heidegger, a
historicidade da experiência a partir da historicidade do ser e de seu caráter projetual. E. Fink acentuou a
dimensão da historicidade da experiência ontológica, retomando a reflexão de Heidegger sobre a história
do ser e seu caráter de projeto124. Nesta, o ser experiencia-se como um projeto projetado. O importante
aqui dentre as maneiras diferentes de abordar o problema da experiência – diferentemente do ponto de
vista da ciência experimental – é reter o problema da experiência em sua relação com a história, o que nos
remete a Hegel, ao historicismo alemão, a Dilthey, a Heidegger, a Gadamer.
Uma dimensão central da experiência encontramos em D. Teichert, segundo o qual,
enquanto o sujeito meramente registra novas informações acerca de um objeto e, em razão desta informação, corrige, modifica e
amplia seu conhecimento, não se pode ainda, no âmbito da hermenêutica, falar de experiência. Somente quando o aumento de
conhecimento muda o sujeito mesmo e produz uma mudança de atitude, é oportuno falar que alguém fez uma experiência que é
hermenêutica125.
Ora, a mudança de atitude por parte do sujeito é mais radical e fundamental que o fato de
mudar de conceito ou de opinião, por isso denominamos tal experiência hermenêutica de ontológica.
Neste sentido ela constitui-se mais como um princípio filosófico, impulso e base do filosofar, que como
um conceito.
Na experiência ontológica, apreendemos o ser como fundamento (logos) do ente (on), e na
metafísica “o ente concreto é experienciado na sua conexão com todo ente num horizonte ilimitado. Neste
com-experienciado, tem uma posição única o ser subsistente e necessário”126. Na experiência ontológica,
o “pensar e o pensado, sujeito e objeto são uma unidade. Se é seu pensar, e se pensa seu ser”127. Desse
modo, o movimento do saber não esgota a dinâmica do ser num conceito ou num sistema.
A coerente e pertinente tese de R. Wiehl é que “a experiência pode ser expressa em significado
múltiplo (...) a história da filosofia é uma história de ambiguidades e com Hegel começa a história da
ambiguidade do Ser da experiência”128. Não se trata de entificar a ambiguidade na filosofia, mas mostrar
que ela deve ser dirimida onde for permitida e, ao mesmo tempo, conservada onde necessária, afinal, os
meandros da alma humana são incontornáveis. A filosofia propõe-se a elaborar proposições lógicas,
claras, com sentido, mas deve conservar aqueles âmbitos onde a clareza e a logicidade matemática não
são aplicáveis literalmente, como é o caso das ações humanas.
Gadamer retomou e aplicou a concepção de experiência filosófica que fora reduzida à concepção
das ciências naturais. Na obra gadameriana,
a experiência não mais aparece primariamente como um processo de apropriação cumulativa assegurada metodicamente de
conclusões, que são meios para o possível domínio de uma ordem objetiva refletida nela. Experiência (...) é definida aqui como
uma coisa que precede o processo metódico de armazenamento de conhecimento científico, e como um fator emergindo da e
revertendo na vida prática que, como um modo de tal vida prática, pode até mesmo dar diretivas à cognição empírica do tipo
objetivo. (...) a ocorrência da experiência hermenêutica tem a estrutura de uma performance prática acontecendo como uma
unidade de ação-projeto e reflexão crítica dentro do limite do agente. Experiência, aqui, não é tanto um processo de acumulação
de conhecimento objetivo, mas, ao invés, a história descritível biograficamente de uma educação129.
Nesse sentido falamos que isso constitui um alargamento da concepção de metafísica que
desemboca numa ontologia mais dinâmica e autêntica, pois nela há uma ilação e coerência teórico-
existencial entre saber e ser.
Na ciência moderna, “uma experiência só é válida na medida em que se confirma; neste sentido
sua dignidade repousa por princípio em sua repetibilidade. Porém isto significa que por sua própria
essência a experiência cancela em si mesma sua própria história e a deixa desconectada de si”130, jogando
fora a escada em que subiu, ao modo do 1º Wittgenstein. A experiência que permanece referida apenas
teleologicamente à aquisição de verdade é superada aqui com a concepção de experiência hermenêutica.
Sabemos que é “objetivo da ciência objetivar de tal modo a experiência, que ela não possua ao
final nenhum momento histórico (...) Na ciência não pode ficar lugar para a historicidade da
experiência”131. Por essa razão, o problema da história desenvolvido por Hegel é tão importante para a
hermenêutica gadameriana. Nesta, a discussão sobre o conceito de experiência significa “que o saber
possível não pode elevar-se em princípio sobre a relação histórica na qual se encontra; ele é sempre mais
‘efetuação’ dessa relação que ‘causa’"132.
A concepção de experiência hermenêutica em Gadamer pretende ser ateleológica, seja no sentido
de uma teleologia invertida do tipo de Husserl, seja de uma do tipo oposto, como é o caso da baconiana.
Em Husserl, “o pensar retorna da experiência científica ao mundo da vida, para encontrar nesta sua
fundamentação original de sentido e a verdade”, ao passo que “o caminho de Bacon vai na direção
contrária, da insuficiência e da incerteza da experiência do mundo da vida com suas induções ocasionais
em direção à experiência científica, na qual a indução encontra seu aperfeiçoamento científico em favor
de uma generalização metódica bem ordenada (indução)”133. Gadamer critica essas concepções
teleológicas. “Husserl não conseguiu chegar até a experiência concreta do mundo da vida, porque ele a
conecta às condições da subjetividade transcendental, que, diferentemente das idealizações das ciências,
permanece presa a idealizações linguísticas, (...) o aperfeiçoamento das induções do mundo da vida de
Bacon permanece preso a preconceitos que se devem à tradição das ciências especulativas dos
princípios”134. Gadamer opôs-se à redução realizada por ambos, integrando-os com outras dimensões, e,
para retificá-los, não recorreu – nesse caso – a Hegel, mas à teoria aristotélica da Empeiria.
No itinerário de VMI, o recurso a Aristóteles constitui o primeiro momento para a configuração
da experiência. Gadamer retoma o conceito de indução desenvolvido pelo estagirita em Analíticos
posteriores e na Metafísica, onde descreve como se produzem a experiência e sua unidade “a partir de
muitas percepções diversas e retendo muitas coisas individuais. Que tipo de unidade é esta?
Evidentemente se trata da unidade de algo geral. Contudo, a generalidade da experiência não é ainda a
generalidade da ciência”135. Importa reter aqui que, para Aristóteles, “a experiência só se dá de maneira
atual nas observações individuais. Não se pode conhecê-la em uma generalidade precedente. Nisto
justamente se estriba a abertura básica da experiência rumo a qualquer nova experiência”136. Aristóteles,
para explicar o que é e como acontece a experiência, compara as muitas observações que alguém faz a um
exército em fuga, pois “também elas são fugazes, não ficam onde estavam. Porém quando, nesta fuga
generalizada, uma determinada observação se vê confirmada por uma experiência repetida, então se
detém”. Embora esta imagem coxeie, ela deixa claro que
a experiência tem lugar como um acontecer de que ninguém é dono, que não está determinada pelo próprio peso de uma ou
outra observação, senão que nela tudo vem a ordenar-se de uma maneira realmente impenetrável. A imagem retém esta peculiar
abertura na qual se adquire a experiência; a experiência surge com isto ou com o outro, de repente, de improviso, e contudo não
sem preparação, e vale até que apareça outra experiência nova, determinante não só para isto ou para aquilo, senão para tudo o
que seja do mesmo tipo. Esta é a generalidade da experiência através da qual surge, segundo Aristóteles, a verdadeira
possibilidade do conceito e a possibilidade da ciência137.
Na experiência hermenêutica não é possível um domínio absoluto dela. Nesse sentido, não é
pensada, a priori, teleologicamente. O problema é que Aristóteles pensou a essência da experiência
referida à ciência, o que simplifica o processo no qual se produz, ou seja, a unidade universal da
experiência enquanto um acontecer. Gadamer toma de Aristóteles a medida da experiência como posição
intermediária entre percepção e ciência, e, contudo, “o processo de experiência não transcorre sem
interrupção, como quer fazer crer a imagem de Aristóteles do exército em fuga, que para de improviso.
Antes, a experiência se constrói a partir do refutar constantemente falsas generalizações e neste sentido a
própria experiência que se faz é sempre negativa. ‘A negatividade da experiência tem um sentido
produtivo peculiar. A negatividade da experiência é dialética’”138. Gadamer passa então do conceito de
experiência aristotélico para o hegeliano, retomando deste, inicialmente, a noção de negatividade.
Se considerarmos a experiência única e exclusivamente referida a seus resultados, suprimiremos
o verdadeiro processo da experiência, que é essencialmente negativo. De acordo com Gadamer, podemos
falar da experiência em duplo sentido:
por uma parte como as experiências que se integram em nossas expectativas e as confirmam, por outra como a experiência que se
“faz”. Esta, a verdadeira experiência, é sempre negativa. Quando fazemos experiência com um objeto, isto quer dizer que até
agora não havíamos visto corretamente as coisas e que é agora que por fim nos damos conta de como são. (...) Em consequência,
o objeto com o qual se faz uma experiência não pode ser qualquer um, mas tem que ser tal que com ele possa aceder-se a um
saber melhor, não só sobre ele mas também sobre aquilo que antes se acreditava saber, isto é, sobre uma generalidade. A
negação, em virtude da qual a experiência logra isto, é uma negação determinada. A esta forma da experiência damos o nome de
dialética139.
(...) a partir disso a tarefa da hermenêutica filosófica pode caracterizar-se como segue: tem que refazer o caminho da
Fenomenologia do espírito hegeliana enquanto em toda subjetividade se mostra a substancialidade que a determina.140
o esquema progressivista de Hegel exige um passo para a frente que reconcilia tudo que foi antes com o estágio presente do
espírito no movimento de interiorizing recollection, Er-innerung. Nada está perdido ou jogado fora em tempo algum, todas as
realizações passadas do pensamento encontram seu lugar como partes na presente consumação do espírito. Nada, portanto, fica
fundamentalmente oculto ou misterioso. Nós entendemos os pensadores do passado melhor do que eles entenderam a si
mesmos, como fases subordinadas de um sistema mais completo. Pode-se, portanto, dizer que nós os entendemos melhor
entendendo-os diferentemente. Heidegger, ao invés, fala de um esquecimento, Seinsvergessenheit, um esquecimento do Ser que
exige um repensar das fundações ocultadas do que já foi pensado para retirar de seu impensado o que está ainda para ser
pensado. A metafísica, portanto, deve ser “destruída” e “superada” em vez de “elevada” e “consumada”. Se Heidegger exige um
retorno aos começos ocultados da filosofia, é com uma convicção que é diretamente oposta à de Hegel: este começo não é mais o
mais pobre e o mais abstrato, mas o mais rico e o mais concreto, a fonte de perpétua novidade142.
A pergunta que nos fazemos é: por que Hegel e, explicitamente, por que retomar sua
Fenomenologia do espírito (= FE), a fim de situar e fundamentar a experiência hermenêutica como princípio?
Para J. Gauvin, esta obra (FE) é um discurso indiretamente ontológico, ou seja, uma espécie de ontologia
fraca, conforme expressão de R. Wiehl. Hegel, bem como Gadamer, parte do reducionismo de boa parte
da filosofia moderna, e ambos tiveram a pretensão de superar a “filosofia da reflexão”143, com a diferença
de que o primeiro permaneceu preso nas malhas do seu objeto de crítica. Por isso procuremos desdobrar
o sentido da afirmação de Gadamer: “A tarefa da hermenêutica filosófica pode caracterizar-se como
segue: tem que refazer o caminho da Fenomenologia do espírito hegeliana enquanto em toda subjetividade
se mostra a substancialidade que a determina”144. Não poucos foram os conceitos de Hegel
posteriormente retomados e aprofundados por Gadamer, que se reconhece um grande devedor dele (p.
ex., especulativo, movimento, dialética, negatividade, experiência, história...). Gadamer pôde dar um
passo adiante de Heidegger, pois foi Hegel o filósofo que levou a sério e teorizou o problema da
historicidade de maneira radical.
Para J. Grondin, a partir do ponto de vista de Gadamer, “(...) a filosofia do Espírito de Hegel,
assim como a hermenêutica filosófica, ‘reivindica realizar uma total mediação entre história e presente’. A
palavra de ordem (Kampfparole) desta discussão é o conceito de experiência”145, e por essa razão optamos
por aprofundar esse conceito a partir da Fenomenologia do espírito.
Gadamer segue o modelo de compreensão da história mais de Hegel que de Schleiermacher,
Dilthey ou Marx. Para V. Verra, o peso que Gadamer dá a Hegel é um ponto sobre o qual há discussões.
Wolfhart Pannenberg, em seu ensaio “Hermeneutik und Universalgeschichte”, p. ex., sustenta que “a
obra inteira de Gadamer é um confronto em parte declarado, em parte tácito com Hegel”146; confronto
para superar o modelo hegeliano, necessitário, que ao final não salvaria mais os sujeitos nem conteria
experiência. Para Hegel, a compreensão histórica não é simplesmente reconstrução do passado, mas
integração dialética e especulativa com o presente em um processo de mediação que não é fruto da
reflexão externa, mas é o movimento mesmo da verdade, efetuando-se na história. Por essa razão Walter
Schulz interpretou “a trajetória da hermenêutica de Heidegger a Gadamer como ‘cumprimento da
consciência histórica’, em que a filosofia da subjetividade leva a termo o seu desenvolvimento com o êxito
paradoxal de dissolver-se totalmente no movimento da história e da linguagem”147. Não concordamos
com essa afirmação, pois em Gadamer, pelo medium da linguagem, não há dissolução final e conclusiva
da história, da filosofia, num fim absoluto do seu movimento.
Gadamer reivindica e justifica o testemunho importante de Hegel, para quem a dimensão e o
momento da historicidade ganham seu direito pleno. Na perspectiva gadameriana,
a experiência que alguém faz transforma o conjunto de seu saber. Em sentido estrito não é possível “fazer” duas vezes a mesma
experiência (...) Quando se fez uma experiência, quer dizer que se a possui. Desde esse momento o que antes era inesperado é
agora previsto. Uma mesma coisa não pode voltar a converter-se para a pessoa em experiência nova. Só um novo fato inesperado
pode proporcionar ao que possui experiência uma nova experiência. Deste modo, a consciência que experimenta se inverte: se
volta sobre si mesma. O que experimenta se torna consciente de sua experiência, se torna um experto: ganhou novo horizonte
dentro do qual algo pode converter-se para ele em experiência148.
a consciência faz consigo mesma. “O princípio da experiência contém a determinação infinitamente importante de que para a
adoção e presunção da verdade de um conteúdo o homem mesmo tem que estar nele ou, mais precisamente, tem de encontrar
este conteúdo unido e em unidade com a certeza de si mesmo” (...) O conceito de experiência quer dizer precisamente isto, que se
chega a produzir esta unidade consigo mesmo. Esta é a inversão que ocorre à experiência, reconhecer-se a si mesma no estranho,
no outro. Quer se realize o caminho da experiência como um estender-se pela multiplicidade dos conteúdos, quer como o surgir
de formas sempre novas do espírito, cuja necessidade compreende a ciência filosófica, seja qual for o caso, trata-se de uma
inversão da consciência160.
Um dos aspectos que Gadamer retoma de Hegel é o problema do reconhecimento do tu, como
desenvolveu no processo dialético da FE. Nesta, “a autoconsciência própria só alcança em Hegel a
verdade de sua autoconsciência na medida em que luta por obter seu reconhecimento no outro; a relação
imediata do homem e da mulher é o conhecimento natural do mútuo ser reconhecido”161. O
reconhecimento em questão não é do tipo de relação existente nas ciências naturais, em que o Eu sabe e
pode tudo e com isso submete o outro a si. Não é também do tipo relacional das ciências do espírito, onde
o Eu entende supostamente, de antemão, o que o outro quer dizer, mas não o deixa valer como outro. Um
dos polos arroga-se o direito de afirmar que sabe mais que o outro – no caso de um texto, o intérprete
pretende saber mais que o próprio autor. Mas o reconhecimento próprio da hermenêutica é aquele em
que o outro, como pessoa, também pode ter razão sobre o eu. Nessa relação, nenhum dos polos é
anulado, mas ambos reconhecem-se no outro, ampliando seus horizontes; a polaridade eu-tu, na
concepção hermenêutica, não é assimétrica no sentido da parábola hegeliana do senhor e escravo, na qual
no final ocorre uma simples inversão da assimetria inicial.
Para Hegel, o conhecimento não se funda na anamnesis ou no acúmulo de dados, mas na razão
que se fundamenta a si mesma pela dialética da reflexão. A filosofia do espírito de Hegel pretende
alcançar uma mediação total de história e presente. Sua reflexão na FE não é “externa” ao pensar o
conceito, embora no final a tenha externalizado suprimindo-a no Espírito Absoluto.
Hegel não estava interessado propriamente no conceito de experiência, mas em uma filosofia
que se consumaria, através da dialética, no Espírito Absoluto. Gadamer desenvolve-a como “meio” e
“forma” de compreensão para sua concepção de história da efetuação (Wirkungsgeschichte). Por isso
reinterpretou o conceito de dialética de Hegel. Para R. Wiehl, “a apresentação do conceito de experiência
de Gadamer tem dois pontos centrais: ela consuma-se em uma crítica ao conceito de experiência em
Hegel; ela identifica a experiência com a consciência de história efeitual (Wirkungsgeschichte)”162. Sob
nosso ponto de vista, Gadamer cometeu um equívoco semelhante ao de Kant e Hegel nesse ponto, ao
usar o conceito de Wirkungsgeschichte em substituição à dialética ou coisa em si (pois instrumentalizou a
experiência em seu aspecto “passivo”). Pensamos que, ante o totalitarismo do sujeito por parte de Hegel,
a hermenêutica de Gadamer – com ênfase no valor da coisa dada, seja linguagem, seja história, e na
relação de padecimento por parte do sujeito – conduz a uma determinação do tipo do destino grego. O
princípio da experiência intermedeia ambos. O fio central aqui é o da experiência com a qual podemos
complementar a dialética, o que significa refazer o caminho da FE enquanto em toda subjetividade se
mostra a substancialidade que a determina.
Gadamer retomou de Hegel o ponto de partida para explicitar sua noção de consciência efetuada
historicamente e, ao mesmo tempo, tomou dele a mediação entre história e presente para esclarecer seu
conceito de efetuação histórica. “Na medida em que tal reconciliação é o trabalho histórico do espírito, o
comportamento histórico do espírito não é autoespelhamento nem também somente suprassunção
dialético-formal do autoestranhamento que sucedeu a ele, mas uma experiência que experimenta a
realidade é ela mesma real”163.
A leitura tradicional que Gadamer faz de Hegel substitui o conceito de dialética empregado por
este pelo de “efetuação da história”. Leitura esta correta; contudo, nossa posição é que isso deveria ser
revisto. Pois Gadamer mesmo, no final de sua vida, enfatiza a importância e o sentido da experiência da
obra de arte e minimiza o conceito de efetuação da história, o que atesta realmente que é a experiência o
traço central da hermenêutica gadameriana e, por isso, para nós, um princípio da hermenêutica filosófica.
Nossa posição consiste em defender que a releitura de Hegel se faz pelo princípio da experiência com o
qual Gadamer propôs-se a reinterpretar o método dialético, não pela Wirkungsgeschichte apenas.
Gadamer apropriou-se de Hegel para salvaguardar a filosofia enquanto movimento, processo. A
concepção de metafísica em questão que defendemos é de uma in-objetificação do saber. Contudo, se sua
tarefa “é explicitar e expressar o ser mediante a linguagem, isto coloca a pergunta se o ser pode ser
expresso em enunciados humanos ou se, ao fazê-lo, não ocorre já uma objetificação que não apreende o
ser”164. O projeto metafísico implícito aqui não é de apreender a essência da experiência dialeticamente,
mas de pensar a dialética a partir da experiência hermenêutica. A novidade do conceito de experiência de
Hegel consistiu em vê-la não apenas como um “prelúdio para o conhecimento científico, mas que nela se
reconhecem o objeto e a rica abundância da possível confirmação do pensamento puro”165. Pensar a
dialética a partir da essência da experiência não significa uma inversão de prioridades apenas com
respeito ao conceito e à experiência. Antes mostra que a natureza da dialética só é compreensível a partir
da experiência; que não culmina no saber Absoluto que no final elimina a própria experiência e absolutiza
a dialética como método. O projeto aqui é que “na teoria hermenêutica da experiência a relação de
prioridades possíveis entre pensamento e experiência permanece em suspensão (Schwebe). Neste estado de
suspensão pode-se ver tanto a força como a fraqueza do conceito hermenêutico de experiência”166.
Suspensão não como prelúdio à cientificidade, ao Absoluto, mas como modo próprio de ser da
hermenêutica filosófica que se mostra em suspensão (Schwebe) através do jogo, do círculo hermenêutico, do
diálogo; uma suspensão tensional que procura explicitar a linguagem da experiência e a experiência da
linguagem. Nesse sentido,
o locus da dialética para Gadamer não está em um conhecimento que se move em direção a sua culminação em ciência, mas em
uma experiência situada linguisticamente que está sempre sujeita ao negativo através de um encontro sempre possível com o
novo e o inesperado. E o motor assim como o medium da dialética é agora a linguagem mesma, a condição de possibilidade de
qualquer experiência que assegura ser chamada de experiência humana. O doing of the subject matter itself que Hegel situa na
autorreflexão do espírito, agora se manifesta em e através da linguagem, em um movimento especulativo que constitui um
inesgotável play on words, um jogo de linguagem autoimpulsionado, “o jogo da linguagem mesmo que nos fala, avança e recua,
questiona e se consuma na resposta”167.
O jogo hermenêutico exige que o jogador jogue para que a experiência aconteça – o que vale para
o círculo hermenêutico e para o diálogo. Analisemos agora a noção de princípio da experiência,
desenvolvendo seus traços fundamentais.
experiência da finitude humana. É experimentado no autêntico sentido da palavra aquele que é consciente desta limitação,
aquele que sabe que não é senhor nem do tempo nem do futuro; pois o homem experimentado reconhece os limites de toda
previsão e a insegurança de todo plano (...) Nela a experiência não tem seu fim, nem se alcança a forma suprema do saber
(Hegel), senão que nela é onde em verdade a experiência está presente por inteiro e no sentido mais autêntico (...) A experiência
ensina a reconhecer o que é real. Conhecer o que é, é assim o autêntico resultado de toda experiência e de todo querer saber em
geral169.
Na tentativa de reformular a relação entre consciência subjetiva e espírito objetivo, boa parte da
filosofia contemporânea tomou “a sério o conceito hegeliano de espírito objetivo tendo em si mesmo
conta da descoberta, que se pode chamar, no sentido mais vasto e genérico (Kierkegaard, Marx,
Heidegger), da não definitividade da instância da consciência, e isto é da finitude do homem”170.
Desse modo a síntese da sabedoria grega expressa pelas palavras “conhece-te a ti mesmo”
aplica-se para nós ainda hoje, ou seja, trata-se de reconhecermos que não somos deuses, mas humanos. O
autoconhecimento “não é, em todo caso, a transparência plena do saber, mas a percepção de precisar
aceitar os limites postos a seres finitos”171. Talvez essa seja uma das maiores contribuições da
hermenêutica filosófica, uma vez que – partindo da concepção de conhecimento autoimplicativo – chama
a atenção para a necessidade de um filosofar imbricado com a vida.
A ênfase na finitude, antes que entificação dela, é uma convocação à consciência da docta
Ignorantia e à necessidade de reconhecer que ela é o ponto de partida, com seus idola, do saber humano.
Os limites não apenas condicionam nosso saber, como são a condição de possibilidade dele. Não se trata
de absolutizar a finitude, invertendo apenas a ordem tradicional, nem de curtir a melancólica depressão,
como foi o caso, por exemplo, do desmoronamento do imaginário medieval na renascença172, mas de
incorporar nosso ser em nosso saber e vice-versa.
Em Gadamer,
a verdadeira experiência é aquela em que o homem se torna consciente de sua finitude. Nela encontram seu limite o poder fazer
e a autoconsciência de uma razão planificadora. É então que se desvela como pura ficção a ideia de que se pudesse anular tudo e
de que de um modo ou outro tudo acabaria retornando. O que está e atua na história faz constantemente a experiência de que
nada retorna173,
isto é, de que não é possível fazer duas vezes uma experiência. Conhecer, experienciar, compreender o
que é em cada momento significa perceber os limites dentro dos “quais há ainda possibilidade de futuro
para as expectativas e planos; ou mais fundamentalmente, que toda expectativa e toda planificação dos
seres finitos é por sua vez finita e limitada. A verdadeira experiência é assim a experiência da própria
historicidade”174. A experiência humana é finita, e, contudo, “a finitude da consciência e sua experiência
não excluem de maneira nenhuma uma consciência da infinitude da experiência”175.
O projeto gadameriano intencionou assegurar a concepção fenomenológica de experiência,
marcada por uma finitude essencial e radical, em contraposição à concepção hegeliana, que a
suprassumiu no saber absoluto; “e, a partir daí, a filosofia, em lugar do ser, como em Hegel, sistema, se
transforma em uma explicação, em hermenêutica universal de uma existência com a qual ela não se
confunde jamais. A verdade última da filosofia consiste em refutar todo domínio, seja do futuro ou do
passado. É consequente que tal concepção de filosofia conceda à linguagem uma situação
privilegiada”176.
Para A. de Waehlens,
é muito claro que o núcleo da atividade de Gadamer consiste em interpretar Heidegger para metamorfoseá-lo em um Hegel sem
sistema. A passagem da dialética hegeliana à hermenêutica por parte de Gadamer por intermédio do mundo e da abertura do ser
heideggeriana não abandona nada da pretensão da primeira: retomar em tudo isto que tem sido e elevar a verdade pela verdade
do todo. Mas a verdade do todo não se fecha sobre ela mesma, o círculo não se fecha, o começo não é o fim nem o fim o começo.
A finitude de Gadamer é aquela onde nunca nada termina (...) É uma opção sobre a história. Menos totalitária que aquela de
Hegel, mas menos ambiciosa que aquela de Heidegger. Talvez ela deveria ser feita. Ao contrário daquela de Hegel, ela não tem
por garantia ter fechado ou fechar o ciclo das figuras177.
a descoberta implícita da historicidade da experiência. Se a experiência que a gente faz é uma verdadeira conversão da consciência,
isto implica que a gente não pode, no sentido estrito, fazer duas vezes a mesma experiência. Pois o estado da consciência não é o
mesmo antes e após tal conversão. Toda experiência verdadeira é, pois, única e, por isso, histórica182.
a consciência que ultrapassou seu objeto se tornou uma consciência nova e mais rica (...) por um lado, a mudança do objeto
significa uma ampliação do campo objetual e do que pode ser conhecido: por outro lado, este movimento representa um
enriquecimento da consciência. A experiência hermenêutica não é, assim, outra coisa que o processo de ampliação do objeto, a qual
provoca um enriquecimento do sujeito187.
Assim, o objeto não é, pois, apenas determinado pelo sujeito cognoscente. A experiência é
“sempre experiência de negatividade: de que algo não é como havíamos suposto. Face à experiência que
se faz com outro objeto se alteram duas coisas, nosso saber e seu objeto. Agora sabemos de outra forma e
sabemos melhor (grifo nosso), e isto quer dizer que o próprio objeto ‘não se sustenta’. O novo objeto contém
a verdade sobre o anterior”188. Na perspectiva científica conhecemos sempre melhor até a confirmação de
uma determinada hipótese, o que é possível de repetição tanto quanto se queira.
A experiência faz parte da essência histórica do homem, e, “neste sentido, a experiência
pressupõe necessariamente que se defraudem muitas expectativas. Toda experiência que mereça este
nome cruzou-se no caminho de alguma expectativa. O ser histórico do homem contém, assim, como
momento essencial, uma negatividade fundamental que aparece nesta referência essencial de
experiência”189. Gadamer reprovou, nas teorias correntes da experiência, a orientação científica que
negligencia a historicidade que é intrínseca a toda verdadeira experiência. A experiência
tem aqui de particular o fato de que é, por sua estrutura, uma experiência negativa. Ela nega uma expectativa, um saber anterior
que a gente cria adquirido. Fazer uma experiência significa que o que a gente tinha por verdadeiro não o era e que nós sabemos
melhor o que ele é agora mais que o que ele é. A experiência corrige, pois, um falso saber, trazendo uma apreensão mais
adequada da realidade. Gadamer também reconhecerá então, referindo-se a Hegel, que a verdadeira experiência tem uma
estrutura dialética e que ela se faz por uma inversão da consciência190.
algo que tem a ver com a condição simultaneamente finita e transcendente de um ser, que procura sempre determinar o que, por
sua vez, já o afetou na sua capacidade receptiva. É um processo temporal (caminho = Erfahrung) em que sempre se re-começa
algo já começado. Ultrapassa, no entanto, a pura repetibilidade da experiência científica moderna193.
Desde sempre fomos e somos afetados pela história, pela tradição; por isso podemos dizer que
sempre chegamos tarde demais quando pensamos que estamos começando a compreender, assim como a
coruja de minerva só pode levantar voo ao entardecer do dia. Mas, como o galo que aguarda
ansiosamente o amanhecer do novo dia, a hermenêutica assume a atitude de abertura ao que está por vir.
O caminho da experiência da consciência em Hegel conduz a um saber de si mesmo que não
possui, no final, “nada distinto nem fora de si”, onde a experiência consuma-se na ciência da lógica, na
certeza de si mesmo. Disso decorre a necessidade de a dialética da experiência conduzir à superação de
toda experiência que se alcança no Saber Absoluto, isto é, “na consumada identidade da consciência e
objeto”194. Nesse ponto Gadamer diferencia-se de Hegel ao não assumir as últimas consequências a que
conduz a dialética hegeliana. Essa concepção de experiência hegeliana não faz justiça à consciência
hermenêutica, à aplicação que Hegel faz à concepção de história, para quem
esta está concebida na autoconsciência absoluta da filosofia. A essência da experiência é pensada aqui desde o princípio, desde
algo no qual a experiência está superada. Pois a experiência mesma não pode ser ciência. Está em uma oposição não neutralizável
com o saber e com aquela forma de ensinamento que flui de um saber geral teórico ou técnico. A verdade da experiência contém
sempre a referência a novas experiências. Neste sentido a pessoa a que chamamos experimentada não é só alguém que se fez
através de experiências, mas também alguém que está aberto a novas experiências. A consumação de sua experiência, o ser
consumado daquele a quem chamamos experimentado, não consiste em ser alguém que sabe já tudo, e que de tudo sabe mais
que ninguém. Pelo contrário, o homem experimentado é sempre o mais radicalmente não dogmático, que precisamente porque
tem feito tantas experiências e aprendeu de tanta experiência está particularmente capacitado para voltar a fazer experiências e
aprender delas. A dialética da experiência tem sua própria consumação não em um saber concludente, mas nessa abertura à
experiência que é posta em funcionamento pela experiência mesma195.
O movimento do compreender não se consuma numa síntese definitiva, mas permanece aberto a
novas possibilidades de compreender por outras pessoas em outros tempos e lugares. Superamos o
conceito de experiência como uma simples etapa do processo cognitivo, no qual desapareceria, mas “a
essência da experiência se determina como ganho de conhecimento. Com isso o conceito de experiência é
limitado a tais casos nos quais a pessoa aprende a ver corretamente sua vida como um todo”196.
A experiência hermenêutica gadameriana, enquanto abertura, compreende-se como uma espécie
de “suspensão” (Schwebe), o que se explicita “através da dialética de pergunta e resposta, isto quer dizer,
através do ir e vir de pergunta e resposta, que se mantém na suspensão de ‘provar possibilidades’, de
modo que ‘a relação do compreender aparece como uma correlação ao modo de um diálogo’”197.
Para Gadamer, o “conhecimento e reconhecimento do tu” constituem o terceiro e o mais elevado
modo da experiência hermenêutica, em VMI, enquanto abertura à tradição, abertura ao tu, pois
no comportamento dos homens entre si o que importa é experienciar o tu realmente como um tu, isto é, não passar por alto sua
pretensão e deixar que o outro lhe fale. Para isto é necessário estar aberto. Contudo, esta abertura só se dá para aquele que deixa
que o outro lhe fale, ou melhor dito, quem deixa alguém dizer algo está fundamentalmente aberto. Se não existe esta mútua
abertura, tampouco há verdadeiro vínculo humano. Pertencer-se uns aos outros quer dizer sempre ao mesmo tempo ouvir-se uns
aos outros. Quando dois se compreendem, isto não quer dizer que um “compreenda” ao outro, isto é, que o abarque. E
igualmente “escutar ao outro” não significa simplesmente realizar às cegas o que o outro quer. Aquele que é assim chama-se
submisso. A abertura em relação ao outro implica, pois, o reconhecimento de que devo estar disposto a deixar valer em mim algo
contra mim, ainda que não haja outro que o vá fazer valer contra mim198,
ou algo que não esteja em meus planos. Esta dimensão passiva, representada pelo ouvir, que é um modo
de ação, desenvolveremos mais adiante. Encontramo-nos num ponto central da hermenêutica filosófica
que defende a conexão fundamental entre saber e ser, entre epistemologia e ontologia. A “abertura da
experiência hermenêutica reporta-se assim não à figura de um ‘em si’ incomunicável e, no entanto,
disponível, mas, pelo contrário, ao ser como algo que se autoapresenta – modelo do tu – e comunica,
resistindo à figura ôntica substancial da coisa inerte”199. Ora, a análise que Gadamer faz sobre experiência
estética na 1ª parte de VMI, onde enfatiza a abertura como característica básica da experiência, prepara
para “a disponibilidade humana para toda uma relação ao ser a partir de um enraizamento linguístico e
concreto no mundo. Contraria, por isso, frontalmente o modelo epistemológico moderno da abertura
humana, cujo lema era, desde a redução baconiana da experiência, a experimentação: conhecer para
melhor dominar”200. Da concepção de experiência enquanto abertura decorre a exigência de uma forma
de saber que “tem que deixar valer a tradição em suas próprias pretensões, e não no sentido de um mero
reconhecimento da alteridade do passado, mas que ela tem algo a dizer”201.
De acordo com R. Wiehl,
a hermenêutica filosófica de Gadamer acentua com razão que a abertura constitui o caráter essencial da experiência. Mas nisso é
importante distinguir: por um lado, a abertura da experiência é sempre uma abertura com respeito ao “deste lado” (Diesseits) e ao
“daquele lado” (Jenseits) das experiências. Por outro lado, faz uma diferença essencial para “este lado” e “aquele lado” se a
experiência em questão é em princípio uma experiência igual ou desigual202.
Este é um ponto central da hermenêutica filosófica que é um modo de saber “entre” (Zwischen)
ideia e realidade, conceito e palavra, verdade e método, linguagem da experiência e experiência da
linguagem, em suspensão (Schwebe). Este estado em suspensão é o seu objeto e ao mesmo tempo seu
método. Suspensão enquanto devir, mobilidade, com a pretensão de ampliar horizontes do sujeito e do
objeto. Trata-se de um movimento teleológico “fraco” no sentido de não possuir um fim ao qual
necessariamente se chega ou um princípio do qual tudo é deduzido. Na obra VMI – coerente com o modo
de saber e ser hermenêutico – falta uma distinção maior entre método e objeto, método e verdade, forma
e conteúdo. Isso evoca a outra face da metafísica que estamos desvendando ao longo de nossa reflexão,
isto é, não aumentar o abismo entre o Diesseits e o Jenseits, mas conservá-los numa relação dialética sem a
pretensão de chegar a um fim predeterminado absoluto. A hermenêutica filosófica, assim como a
concepção de metafísica, é uma reflexão, uma teoria do saber em suspensão.
Para R. Wiehl, “abertura e teleologia não constituem oposições excludentes”203, e a abertura total
defendida por Gadamer não resolve o problema da teleologia. Pensamos que sua hermenêutica filosófica
contém uma teleologia implícita. Ao longo de sua obra é inegável a presença da concepção do Bem, pois o
experiente refere-se ao que é e reflete no sentido da Phrônesis aristotélica. Em todo caso, o fim não está
prefixado, predeterminado nem é um simples a priori. Por que a recusa à teleologia é tão importante,
central e significativa para Gadamer e para nós? Simplesmente porque se trata da defesa incondicional do
valor e sentido da liberdade que a teleologia, seja na fase arqueológica, seja na especulativa, suprime. Na
primordialidade da obra de arte encontramos outro modo de conceber a teleologia. Ela possui uma
teleologia que arranca de nossa realidade e nos leva a pensar. Nas palavras de H. Flickinger, “se não
houvesse ‘teleologia’ no outro, não viria nada ao nosso encontro, no sentido estrito da palavra”. Mas essa
só passa a “existir” se estivermos abertos a aprender, a filosofar.
A compreensão é sempre outra, irrepetível, por isso o experiente é a pessoa aberta, e “o homem
experimentado é sempre o mais radicalmente não dogmático”. O princípio da experiência apreende a
essência da dialética a partir da experiência hermenêutica, e não o contrário, como um princípio lógico-
teleológico que no final se esvairia no próprio sistema. Por isso a hermenêutica filosófica permanece
sempre em movimento contínuo e não culmina num sistema absoluto ou nos fósseis arqueológicos do ser
mais original (Ur-ur-sache).
O problema da teleologia das ciências reside no fato de que as condições de possibilidade da
experiência acabam por ser ditadas pela subjetividade humana transcendental que a instrumentaliza. A
hermenêutica opõe-se à absolutização da objetividade e à redução da filosofia à cientificidade asséptica.
Se a linearidade caracteriza as ciências, é a circularidade que representa o modo de ser do saber
experiencial hermenêutico. O movimento hermenêutico realiza-se necessariamente de modo relacional,
factível pela experiência em sua negatividade e abertura, e não apenas na forma positiva, linear nem a
priori-transcendental.
A partir do problema das limitações da razão moderna explicitamos a noção de racionalidade
retórica (a partir da filosofia grega) e de jogos de linguagem (a partir da filosofia contemporânea), a fim
de refletir sobre os horizontes do filosofar. No itinerário da hermenêutica também identificamos a
dimensão meramente metodológico-científica. No hermeneutic turn, com Heidegger e Gadamer,
encontramos um modo de filosofar que retoma a dimensão originária e original da filosofia a partir dos
ganhos que a modernidade nos lega, tais como a subjetividade, a liberdade e a historicidade.
Partindo do fato de que o filosofar fundamenta-se na facticidade humana, minimizando o ideal
asséptico abstrato científico, encontramos no conceito de experiência a base para justificar – a partir da
filosofia mesma – a hermenêutica filosófica enquanto filosofia. Enquanto fundamental e fundamentadora,
justificamos a noção e os traços do princípio da experiência, mostrando que é irredutível à
experimentação ou à suprassunção no interior de um sistema.
Explicitamos o princípio da experiência, com os olhos voltados à FE, porque nela identificamos
uma noção de filosofia – de ontologia, de metafísica – que não elimina ainda a experiência.
Aprofundaremos a perspectiva gadameriana que retoma Hegel a partir do Dasein heideggeriano, para
explicitar um sistema que não se fechasse no Espírito Absoluto e que fosse, no final, um sistema aberto.
Compreenderemos e explicitaremos a hermenêutica filosófica não “como ontologia fundamental e com
isso como disciplina propedêutica no contexto da concepção duma possível ontologia universal”, mas “a
relevância geral-ontológica da hermenêutica descobre-se, por assim dizer, somente no caminho da
explicação histórica do compreender finito”204.
Mostramos que a hermenêutica filosófica, pelo princípio da experiência, trata também do pré-
científico, do mundo da vida, do pré-reflexivo, e, nesse sentido, ela é ontológica, “pois na verdade a teoria
da experiência hermenêutica de Gadamer culmina em uma dialética da linguagem dialógica”205. Este é o
modo de reinterpretar e corrigir Hegel; dito de outra forma, “a teoria da experiência gadameriana é, em
poucas palavras, uma dialética da experiência na forma dialógica, a qual se designa como a execução do
compreender”206. A experiência hermenêutica incorpora em nós os traços da finitude, da historicidade,
da negatividade, da não objetificalidade, da ambiguidade. Enquanto princípio, justifica-se como: “a
prioridade da finitude diante da infinitude, do condicionado ante o absoluto, a prioridade da
substancialidade própria aos objetos ante a subjetividade autoconsciente, a prioridade da existência
singular concreta ante a essência abstrata e universal”207.
A hermenêutica filosófica enquanto sistema aberto, em forma de rede, explicita a filosofia como
movimento incessante, constitui os contornos de uma metafísica que lhe é implícita. A metafísica não se
limita à identificação de um ou mais princípios, a partir dos quais tudo se deduziria, nem se circunscreve
à cômoda atitude de remeter ao inominável, ao incognoscível, que não poderia ser totalmente objetivado.
Antes, a metafísica conserva a tensão entre o tematizável e o não tematizável, entre o apofântico e o não
dito, entre o ser que é no tempo e no espaço e o ser que pode ser compreendido enquanto linguagem. Ela
remete, pois, a uma postura que imbrica ser e saber, que desemboca numa ontologia mais dinâmica e
coerente com o saber humano.
Na experiência da obra de arte encontramos um exemplo do caráter irredutível da experiência
aos parâmetros da filosofia da reflexão que objetifica a coisa e elimina a alteridade. O encontro com a
linguagem da arte é o encontro com um acontecer em que a alteridade não é eliminada. Por esse motivo é
importante e faz-se necessário “o recurso a parâmetros pré-conceituais, que respeitem o caráter pré-
compreensivo da experiência do que não é objeto – arte – como são os do jogo, símbolo e festa, que
abrem, para além da significação imediata, técnico-utilitária do real, para toda a dimensão poético-festiva
do ‘estar-no-mundo’ da existência”208. A condição e modo fundamental de efetuação do princípio da
experiência “faz somente aquele que está disposto a modificar posições próprias, ampliar seu horizonte e
apropriar-se de representações de outros. A abertura fundamental possibilita uma experiência da tradição
na qual esta ‘torna a palavra’ do mesmo modo como o parceiro em um bom diálogo”209. Só é capaz de
saber realmente quem se reconhece num jogo assumindo os fatos e as regras dele e, ao mesmo tempo, se
dispõe a jogar no e com esse jogo experienciando a circularidade entre o saber e o não saber. Enfim, até
aqui refletimos sobre a linguagem do princípio da experiência como o que constitui e fundamenta a
hermenêutica filosófica. Em complemento a esse movimento faz-se mister, a seguir, explicitar de que
modo ela se efetiva, como procede quanto ao pensar e ao conhecer.
2 Hegel, Fenomenologia do espírito, ap. Gadamer, H.G., WMI, p. 360.
3 Pieretti, A., I quadri socio-culturali della ‘Retorica’ di Aristotele. Roma: Edizioni Abete, s/d, p. 3.
5 Carnap, R., “Überwindung der Metaphysik durch logische Analyse der Sprache”, Erkenntnis, v. 2, n. 4, p. 220-221.
6 Id., ibid., p. 224-225. P. ex., “para descobrir o significado que a palavra ‘princípio’ tem neste problema metafísico, devemos perguntar aos
metafísicos sob quais condições uma proposição da forma ‘x é o princípio de y’ é verdadeira e sob quais condições é falsa. Em outros termos:
perguntaremos pelo critério de aplicação ou pela definição da palavra ‘princípio’”.
11 Wittgenstein, L., “7. Wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen”, Tratactus Logico-Philosophicus.
13 Apel, K. O., La transformación de la Filosofía. Tomo I, Madrid: Taurus, 1985, p. 321-362. O título original é Transformation der Philosophie.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, 1973, p. 323-324. Obra que foi traduzida pela editora Loyola.
14 Oliveira, M. A. de, Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 95-96. Na nota 5, p. 96, Manfredo
observa: “Para Tugendhat, embora Wittgenstein aqui se ponha claramente dentro da tradição objetivista de interpretação da linguagem, já
surgem mudanças importantes. Assim, pode-se considerar essa posição de Wittgenstein como a posição de uma filosofia analítica na medida
em que sua análise da linguagem se orienta não nos nomes, mas na sentença, já que para ele os nomes só têm significação na sentença. O
primado semântico da sentença em relação aos nomes é fundamentado no Tractatus por meio do primado ontológico dos fatos sobre as
coisas”.
17 Nef, F., A linguagem: uma abordagem filosófica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 146.
20 Nef, F., op. cit., p. 147. Contudo, “a filosofia não se refugiará no indizível: 4.115 ‘ela significará o indizível, representando claramente o
dizível’. Esse ideal de uma representação clara do dizível tem uma dimensão aporética, que Wittgenstein se esforçou para ultrapassar,
durante o que se convencionou chamar o segundo período da sua filosofia. Nesse período, os conceitos fundamentais não são mais de
representação e de espaço lógico, mas os de regra, jogo e gramática” (ibid., p. 147).
22 Frank, M., “É a subjetividade um ‘absurdo’?”, in: Luis A. de Boni (Org.), Finitude e transcendência. Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: PUCRS,
1995, p. 442-443.
25 Arendt, H., A condição humana. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 266.
26 Silva, M. L. F. da. O preconceito em H. G. Gadamer: sentido de uma reabilitação. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de
Investigação Científica e Tecnológica, 1995, p. 222.
30 Spengler, O., Der Untergang des Abendlandes, vol. 1. München, Beck, 1922, ap. Bertalanffy, L. von, op. cit., p. 310-311.
34 Kuhn, T. S., A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1997, p. 161-162. Por paradigma lembre-se o que T. Kuhn afirmou
no POSFÁCIO – 1969. O termo “paradigma” é usado em dois sentidos diferentes: “de um lado, indica toda a constelação de crenças, valores,
técnicas, etc..., partilhados pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as
soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a
solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal” (cf. p. 218 da obra citada).
38 Popper, K. R., La logique de la découverte scientifique. Paris: Payot, 1973, ap. Perelman, C., L’Émpire Rhétorique et argumentation. Paris:
Librairie Philosophique J. Vrin, 1997, p. 174 e 175.
39 Bertalanffy, op. cit., p. 329-330. Sobre essa problemática ver obra de Cleide C. Rohden. A camuflagem do sagrado e o mundo moderno à luz do
pensamento de Mircea Eliada. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
42 C. Perelman, no seu livro Tratado da argumentação, lançou as bases de uma Nova Retórica, opondo-se ao racionalismo apodíctico ocidental,
absoluto e monopolizador, e recuperando o valor da racionalidade retórica.
47 Maiores explicações sobre isso em: Höffe, O., Praktische Philosophie – Das Modell des Aristoteles. München e Salzburg: Anton Pustet, 1971.
48 Conforme os diferentes contextos, “precisão”, “exatidão” podem significar várias coisas. Segundo uma concepção unívoca de “exato”, a
Ética é menos rigorosa do que a Matemática. Mas a exatidão é um conceito análogo. No artesanato, trabalhar exatamente um material é
esgotar as suas possibilidades, que são diferentes na argila, na madeira, no mármore, no ouro. Höffe, O., op. cit., p. 7.
50 Le Blond, J. M., Méthode et Logique chez Aristote. Paris: J. Vrin, 1939, p. 93.
56 Thurot, C., Études sur Aristote. Paris: Durand, 1869, p. 129-130, ap. Le Blond, J. M., op. cit., p. 6 e 8.
58 Le Blond, J. M., Logique et Méthode chez Aristote. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1939, p. 41-42.
60 Aubenque, P., El problema del Ser en Aristóteles. Madrid: Taurus Humanidades, 1997, p. 249.
63 Thurot, C., op. cit., ap. Aristóteles, Arte Retórica e Arte Poética. Introdução e Notas de J. Voilquin e J. Capelle; trad. Antônio Pinto de
Carvalho. SP: Difusão Europeia do Livro, 1964, p. 13.
64 Aristóteles, Rhétorique. T. 1. Texte établi et traduit par M. Dufour. Paris: Les Belles Lettres, 1932, p. 34.
66 Conforme Q. Racionero, in: Aristóteles, Retórica. Introducción, traducción y notas por Q. Racionero. Madrid: Gredos, 1990, p. 167, n. 16.
75 Ibidem.
79 Ibid., p. 141.
80 W. Dilthey pretendeu construir uma hermenêutica científica, adequada e exata – cujo modelo era o das ciências da natureza – para a
Geisteswissenschaft. Seu ponto de partida prático-vital era a preocupação com uma compreensão adequada dos textos clássicos. Em sua obra
Crítica da razão histórica desenvolveu a tese de uma hermenêutica que deveria colocar-se na situação temporal do autor-objeto de
interpretação por meio da “compreensão histórica” do contexto histórico em que se encontrava.
83 Ibidem.
84 Ibid., p. 356-357.
85 Ibid., p. 351.
86 Hide, D., Hermeneutic Phenomenology: The Philosophy of Paul Ricoeur. Evanston: Northwestern University, 1971, p. 146-147.
92 Não desenvolveremos aqui, mas no interior da obra de Gadamer também encontramos uma “virada hermenêutica”. J. Grondin expressou
essa “virada” gadameriana assim: “(...) com isto ele queria mostrar que a arte – e não a pergunta epistemológica pelas ciências do espírito,
como em VMI – formava propriamente o ponto de partida de sua hermenêutica. Do seu ponto de partida unilateral das ciências do espírito
ele tinha se distanciado em sua autocrítica de 1985”. Grondin, J., Hans-Georg Gadamer: eine Biographie. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999, p. 340 e
p. 357.
99 Wiehl, R., “Heidegger, Gadamer und die Möglichkeit einer Ontologie heute”, in: Metaphysik und Erfahrung: philosophische Essays. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1996, p. 148. Texto siglado: HdGdOn.
101 Ibidem.
102 Id., ibid., p. 63-64. Conforme o Deutsches Universal Wörterbuch de Duden, este termo significa “sehr weit zurückliegend, so dass man gar
nicht mehr so weit zurückdenken kann”. Conforme H. Flickinger, “também no sentido lógico: im-pré-pensável; o ‘pré’ como temporal e
lógico!”.
104 Ibidem.
105 Ibidem.
106 Ibidem.
108 Id., ibid., p. 70. Em linguagem literária, J. G. Rosa expressou isso assim: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e
esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” (GSV, p.241), e “A vida é muito discordada.
Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas do Siruiz. Tem as caras do Cão, e as vertentes do viver” GSV, p. 381).
113 Berti, E., “Cómo argumentan los hermeneutas?”, in:. Gianni Vattimo (compilador), Hermenéutica y racionalidad, Colômbia: Norma, 1994,
p. 52.
116 Considerando que a “metafísica é o estudo do metaempírico, mas não do metaexperienciável. A metafísica é experiência”. Rabuske, E.,
“A linguagem simbólica e a linguagem especulativa”, Veritas, v. 37, n. 146, p. 167, junho 1992.
117 Gadamer, H.-G., VM1, p. 130. Precede a esta afirmação o seguinte: “Theoros significa, como se sabe, o participante de uma delegação
festiva. Os participantes de uma delegação de festa não possuem nenhuma outra qualificação e função do que estar nela presentes. No
sentido mais genuíno da palavra, o theoros é, pois, o espectador que, através de seu tomar-parte, participa do ato festivo, e através disso
ganha sua distinção de direito sagrado, p. ex., sua imunidade” (p. 129). Ver também o artigo de Gadamer “Lob der Theorie”, in Lob der
Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 26-50. J. Grondin relembrou o seguinte sobre esse tema em Gadamer: “er liebte
Schleiermacher zu zitieren: ‘ich hasse alle Theorie, die nicht aus der Praxis erwächst’”. Hans-Georg Gadamer: eine Biographie. Tübingen: Mohr
Siebeck, 1999, p. 365.
118 Bormann, C. v., “Die Zweideutigkeit der hermeneutischen Erfahrung (H.-G. Gadamer)”, Philosophische Rundschau, v. 16, p. 94, 1969.
119 Habermas, J., Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. RJ: Tempo Brasileiro, 1990, p. 58
120 Sobre esse esquema ver E. Coreth: “Denn es gibt nicht ein reines, weltlos und geschichtlos gedachtes Subjekt, das autonom einer ebenso
reinen nämlich subjektfrei vorgestellten Objektivität gegenüberstände. Das reine Gegenüber von Subjekt und Objekt ist aufgehoben in einem
konkreten Geschehen wechselseitiger Vermittlung und Fortbestimmung im Ganzem einer geschichtlich sich entfaltenden Welt”.
“Hermeneutik und Metaphysik”, Zeitschrift für Katholische Theologie, v. 90, n. 1, p. 422, 1968. Siglado como HM.
123 Fetz, R. L., Expérience et histoire: La notion hégélienne de l’expérience et son interprétation par M. Heidegger et H.-G. Gadamer, Revue de
Théologie et de Philosophie, v. 111, p. 1, 1979.
125 Teichert, D., Erfahrung, Erinnerung, Erkenntnis: Untersuchungen zum Wahrheitsbegriff der Hermeneutik Gadamers. Stuttgart: Metzler, 1991, p.
120.
128 Wiehl, R., “Gadamers hermeneutischer Erfahrungsbegriff”, Lingua ac Communitas, v. 2, p. 21, 1993. Citada daqui em diante como: GdEr.
129 Buck, G., “The Structure of Hermeneutic Experience and the Problem of Tradition”, New Literary History, v. 10, p. 31-32, 1981.
132 Braun, H., “Zum Verhältnis von Hermeneutik und Ontologie”, in Hermeneutik und Dialektik II. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1970, p. 212-3.
*Acerca das relações mais específicas entre a dialética hegeliano-platônica e a hermenêutica gadameriana ver obra de Custódio Luis de
Almeida: Hermenêutica e dialética: dos estudos platônicos ao encontro com Hegel. Porto Alegre: PUCRS, 2001.
141 Kisiel, T., “Hegel and Hermeneutics”, in: WEISS, Friedrick G. (Ed.), Beyond Epistemology: New Studies in the Philosophy of Hegel. The
Hague: Martinus Nijhoff, 1974, p. 217.
143 “É no contexto da crítica hegeliana à abstração da filosofia reflexiva que surge a novidade da sua teoria da experiência. Revelando a
contradição implícita na preocupação crítica da moderna consciência, que, pretendendo chegar a algo de absoluto, rejeitou à partida – por
meio do processo dubitativo – a imediatidade da própria revelação do absoluto, Hegel adota uma posição especulativa nova. Partindo do
princípio de que a cientificidade da filosofia reside na sua tentativa para conhecer absolutamente e não no seu desejo de exatidão metódica
ou de resultados concludentes, reconheceu ainda, contra Kant, que o primeiro passo a ser dado pela vontade de conhecimento do absoluto
deve ser o da sua recepção ou aceitação, ulteriormente explicitável”. Silva, M. L. P. F. da, op. cit., p. 79.
145 Grondin, J., Hermeneutische Wahrheit?: Zum Wahrheitsbegriff Hans-Georg Gadamers. Weinheim: Beltz Athenäum, 1994, p. 51. Usaremos a
sigla HW para designá-la daqui para frente.
146 Verra, V., “Ontologia e ermeneutica in Germania”, Rivista di Sociologia, n. 30, p. 128-9, 1973.
147 Schulz, W., “Die Vollendung des geschichtlichen Bewusstseins: Seinsgeschichte und hermeneutische Wirkungsgeschichte”, in: Philosophie
in der veränderten Welt, Pfullingen, 1972, p. 531-41, ap. Verra, V., op. cit., p. 129.
151 Silva, M. L. P. F. da, op. cit., p. 81. Ver mais detalhes sobre isso em Gadamer, H. G., “Die verkehrte Welt”, in GW3.
153 Bianco, F., “Esperienza Ermeneutica e Storiografia Filosofica”, in: Archivio di filosofia, Padova: CEDAM, 1974, p. 87.
154 Waehlens, A. de., “Sur une herméneutique de l’hérméneutique”, Revue Philosophique de Louvain, v. 60, p. 590, 1962.
155 Gadamer, H.-G., VMI, p. 346, n. 279, “[Der Ausdruck ‘Reflexionsphilosophie’ ist von Hegel gegen Jacobi, Kant und Fichte geprägt
worden]”.
161 Id. ibid., p. 349. Sobre isso, veja Axel Hormeth, Der Kampf um Anerkennung.
164 Coreth, E., “Hermeneutik und Metaphysik”, p. 447. Texto que será citado assim: HM.
168 Gadamer, H.-G., VMI, p. 362-3. Ver análise de S. Takeda sobre essa dimensão em Reflexion, Erfahrung und Praxis bei Gadamer. Tübingen,
1981, p. 22-23.
171 Gadamer, H.-G., “Das Erbe Hegels”, in: Grondin, J., Lesebuch. Tübingen: Mohr, 1997, p. 246-7.
172 Sobre isso ver a obra de Claude-Gilbert Dubois, O imaginário da Renascença. Brasília: Universidade de Brasília, 1995, p. 205 e ss.
174 Ibidem.
176 Waehlens, A. de. “Sur une herméneutique de l’herméneutique”. Revue Philosophique de Louvain, 60, p. 589, 1962.
178 Braun, H., “Zum Verhältnis von Hermeneutik und Ontologie”, in: Hermeneutik und Dialektik II. Tübingen: Mohr, 1970, p. 216.
179 Bormann, C. v., “Die Zweideutigkeit der hermeneutischen Erfahrung (H.-G. Gadamer)”, Philosophische Rundschau, v. 16, p. 100, 1969.
A filosofia não forma um sistema de conceitos opacos e fechados sobre si mesmo, mas constitui um jogo em dois níveis: de uma
parte ela é obra e sistema, pois todos os conceitos se relacionam uns aos outros de modo que cada um manifesta o todo,
enquanto, de outra parte, este sistema permanece aberto, pois se relaciona aos atos do pensador e aos eventos de sua vida, que
ele dirige e ilumina, se encarnando totalmente em cada um. O filósofo não visa jogar somente para construir sua obra, mas joga
também em sua filosofia, como o ator na peça de teatro210.
Estamos justificando a hermenêutica filosófica como uma espécie de teoria geral do saber – com
princípios e metodologia adequados –, um discurso indiretamente ontológico211. Em oposição à metafísica e
à ontologia greco-moderna, podemos afirmar que a hermenêutica é um pensiero debole ou um discurso
indiretamente ontológico. A Ciência da Lógica hegeliana e a Ética espinoziana constituem uma ontologia forte
porque – seguindo o modelo matemático – excluem no final a experiência, a liberdade e a contingência
humana. Contudo, fraca e limitada é aquela forma de conhecer que absolutiza um jogo de linguagem e
desvincula-o das demais perspectivas filosóficas. A hermenêutica filosófica, na verdade, por possuir a
pretensão de articular lógica e ontologia, historicidade e cientificidade, verdade e método, é que é, sob
nosso ponto de vista, o pensamento autenticamente “forte”, dada sua amplitude e coerência entre ser e
pensar.
O modelo estrutural lógico-ontológico do jogo é lógico, por um lado, porque possui regras fixas,
válidas universalmente, sem as quais ele não ocorreria. As regras de cada jogo, com suas exigências
próprias, são explicáveis e reconhecidas universalmente. Por outro lado, o jogo é ontológico porque nele o
sujeito é envolvido como um todo, não apenas do ponto de vista do conhecimento – como um espectador
que examina um objeto à distância – mas porque, nele, o jogador ao jogar realiza uma experiência e revela
seu ser.
Consideramos o jogo e o círculo como modelos estruturais da hermenêutica filosófica porque
neles encontramos uma lógica em aberto, mais próxima do entimema que do silogismo apodíctico.
Porque são modelos, indicadores e não padrões rígidos e absolutos a serem aplicados ao conhecimento.
Nesse sentido são princípios metodológicos abertos, que não conduzem a uma síntese única e absoluta,
mas possibilitam diferentes conclusões. Alongamos, desse modo – por meio do jogo e do círculo –, a
noção de método, identificado muitas vezes com o científico. A concepção de jogo, melhor que o método
analítico, dialético, sintético, conserva e explicita de modo mais autêntico o acontecer do princípio da
experiência hermenêutica ao conjugar num mesmo movimento ser e tempo.
Enquanto ser paradoxal, o homem “é habitado pelo pensamento da imensidão e do infinito, vive
na agitação do universo, à sombra da morte, nas fadigas do trabalho, nas querelas pela dominação, na
felicidade frágil do amor, no jogo que representa. Talvez a meditação sobre o jogo siga um fio que não
nos conduz para fora do labirinto do questionamento, mas, ao contrário, aí nos afunda mais
profundamente”212, possibilitando refletir sobre quem somos e o que desejamos.
Gadamer e Wittgenstein, que se propuseram a repensar os caminhos da filosofia contemporânea,
usaram a noção de jogo, embora o concebam diferentemente e com propósitos próprios. Nos dois autores
há motivos diferentes que os fizeram remeter à questão do jogo. A mudança do 1º Wittgenstein ao 2º é
motivada pela experiência de não se dever nem se poder delimitar o sentido da linguagem. Em Gadamer,
o jogo assinala uma experiência que mostra a impossibilidade de fazer da linguagem um mero objeto de
análise delimitável num conceito. O jogo de linguagem se torna fundamental no linguistic turn, o que
contribui para justificar a reflexão sobre o jogo, pois tanto para o 2º Wittgenstein quanto para Gadamer
ele é fundamental para a compreensão da concepção de filosofia que desenvolveram.
Nossa reflexão sobre o jogo se assentará sobre dois momentos. Inicialmente explicitaremos a
origem, o nascimento, o sentido, a validade e a importância do jogo em termos antropológico-culturais.
Uma vez que a noção de jogo é pouco conhecida, argumentaremos sobre sua “dignidade” filosófica
enquanto modelo estrutural apropriado da filosofia. No outro momento, apresentaremos aspectos e
funções do jogo na filosofia desenvolvida pelo 2º Wittgenstein e por H.-G. Gadamer, por meio da qual
explicitaremos traços fundamentais da hermenêutica filosófica que viabilizam a efetuação do princípio da
experiência.
Embora o jogo tenha sido utilizado na filosofia por Wittgenstein e por Gadamer, são escassas as
reflexões sobre seu emprego. O jogo como metodologia da hermenêutica filosófica extrapola a concepção
de método – como instrumento das ciências naturais. Daí por que resgataremos, inicialmente, os traços
antropológico-culturais, a fim de mostrar a origem e o sentido do jogo na vida humana em função da e
como filosofia.
mesmo no mundo animal, os limites da realidade física. Do ponto de vista da concepção determinista de um mundo regido pela
ação de forças cegas, o jogo seria inteiramente supérfluo. A própria essência do jogo é uma confirmação permanente da natureza
supralógica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais do que simples seres
mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é
irracional223.
Ele contém aspectos racionais, claros, evidentes, compreensíveis, expressos nas regras e que
devem ser aceitos e, por outro lado, caracteriza-se por uma dimensão “supralógica”, pela experiência do
não tematizável, não apenas da situação humana, como da filosofia.
No jogo, “a ‘irrealidade’ é o traço fundamental de uma representação simbólica do todo do
mundo por um ente intramundano. O jogo cultual representa o complexo universal de sentido da
existência primitiva; ele exprime sua relação cósmica”224, anterior à filosofia. O culto é pré-filosófico,
representa a raiz, a origem da filosofia, e ao mesmo tempo, ultrapassa a concepção de filosofia que tenta
abstrair o filósofo da realidade, pois nele a pessoa insere-se numa totalidade que está além da capacidade
discursiva.
O jogo cultual não é um fenômeno marginal da vida humana. É seu centro à medida que fornece
uma orientação para a vida e constitui uma ação como participação em poderes espirituais e reação
contra eles. Muito mais que uma “paráfrase da seriedade da vida humana, é ele mesmo a seriedade mais
séria. No jogo ele vai preservar o grupo social dos poderes invisíveis”225 e, nesse sentido, é um elemento
constituinte e constituidor da moral. Se observarmos o espírito do homem primitivo, as cerimônias
corretamente celebradas, os jogos ganhos de acordo com as regras226, os sacrifícios devidamente
realizados, veremos que estavam intimamente ligados à aquisição de prosperidade para o grupo. Toda
vitória representava, “para o vencedor, o triunfo dos poderes benéficos sobre os maléficos, e ao mesmo
tempo a salvação do grupo que a obteve”227.
O culto constitui-se como um espetáculo, uma representação dramática, uma figuração
imaginária de uma realidade desejada. No passado, a humanidade representou a grande ordem da
existência em cerimônias sagradas, “nas quais e através das quais realizavam de novo, ou ‘recriavam’, os
acontecimentos representados, contribuindo para a preservação da ordem cósmica (...) as formas desse
jogo litúrgico deram origem à ordem da própria comunidade, às instituições políticas primitivas”228. No
movimento histórico sequencial que vai do jogo ao jogo cultual até a construção cultural encontramos a
origem das normas sociais, da ética. Tal sequência nos convoca a retomar o jogo, com sua origem no
culto, como meio diagnosticador das “deformações” normativas de uma cultura.
No culto, exaltavam-se as coisas do dia a dia, conferindo a algumas dentre elas um sentido
consagrado. O jogo cultual procurava fazer brilhar de novo a luz original do mundo sobre as coisas
finitas, e os símbolos nele empregados caracterizavam-se “pela presença secreta de forças divinas numa
coisa escolhida, delimitada, que, desta maneira, adquire uma significação e um caráter superiores”229.
Com o culto, empreendia-se uma ação em sua oposição à banalização da existência humana. Por
isso, escolhia-se um lugar alto, separado, iluminado para celebrá-lo; “o termo cultual é separado da
conversação habitual, como o cercado do templo está separado do país em que está”230. O jogo cultual
separou as coisas sagradas das não sagradas, e nele não ocorre apenas a atuação humana, pois “o lado
divino do culto escapa ao julgamento que pronuncia a humana sabedoria finita da filosofia”231. O culto é
um comportamento da espécie humana, que, em última instância, lembra uma relação com o mundo que
não era ainda determinada pela diferença entre o sagrado e o profano e pelo abismo com relação aos
deuses do qual o homem tomava consciência. No jogo cultual, o sagrado constitui a lembrança da
totalidade ligada ao mundo. Nesse sentido, podemos dizer que o jogo é um pharmacon filosófico, um bem
e um mal: um bem porque procura criar um espaço onde as pessoas, além de realizarem sua catarse,
desenvolvem sua constituição simbólico-narrativa. Representa um mal ao introduzir uma quebra no
sentido originário da totalidade do mundo enquanto um todo, ao demarcar a dicotomia sagrado-profano.
Uma das funções do jogo cultual consiste em apaziguar os demônios, em exercer um poder
sobre eles, um meio de o homem sentir-se seguro no mundo. Ele assume uma função catártica,
purificando “a alma dos instintos que brotam do mais profundo, do mais obscuro da vida, desde o
instinto do incesto até o da morte”, e, dessa maneira, “abre-se uma outra perspectiva para nós se
compreendermos a ‘irrealidade’ do mundo lúdico não como simples ‘cópia’, não como reprodução e
representação pela imagem de um ente original, mas como ‘símbolo’, pensando a essência do símbolo a
partir da relação ao mundo”232.
É no e pelo jogo cultual que se compreende como os deuses enviam tempo bom e mau e
distribuem assim aos campos seu favor e seu desfavor. O culto elucida as grandes relações de sentido da
humanidade, pois “todo culto tem um sentido total, um caráter universal, o culto é um jogo que
interpreta o sentido”233. Aqui encontramos um dos núcleos explicitadores da hermenêutica filosófica, ao
mostrar que o sentido não é propriedade de uma doutrina de interpretação nem se limita ao sentido
atribuído a textos. No jogo cultual, encontramos a explicitação exemplar da experiência do sentido da
vida humana. Nele a humanidade, desde seus primórdios – antes que a filosofia se erigisse em forma
sistêmico-racional –, vivencia a experiência de sentido, de segurança, de orientação, de instauração de
uma nova ordem, que extrapola toda tentativa técnico-instrumental de conceituação. Enquanto referência
à explicitação de uma totalidade de sentido, afirmamos que se trata de uma metafísica em que o ser
experiencia a própria totalidade sem poder esgotá-la conceitualmente.
A representação sagrada, mais que uma realização simbólica, é uma realização mística, onde
“algo de invisível e inefável adquire nela uma forma bela, real e sagrada. Os participantes do ritual estão
certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificação, faz surgir uma ordem de coisas mais
elevada do que aquela em que habitualmente vivem”234. No jogo cultual imbricam-se, pois, o empírico e
o metaempírico.
O ritual é uma ação, e a matéria desta ação é um drama, isto é, “um ato, uma ação representada
num palco (...) o rito, ou ‘ato ritual’ representa um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo
natural”; e o termo “representação” aqui tem outro sentido que o de imitar e que poderia ser expresso
pelo termo “identificação” enquanto participação. “O rito leva a uma verdadeira participação no próprio
ato sagrado.”235 Há um jogo, portanto, entre os participantes e as regras do culto que é mais que um faz
de conta, uma irrealidade. Embora sua efetivação possa ser na forma lúdica, sagrada, profana, em todas
aparecem aspectos como: ordem, seriedade, risco, descontração, tensão, movimento, mudança,
solenidade, ritmo, entusiasmo, pathos.
O culto possui características formais e essenciais do jogo à medida que transfere seus
participantes para um mundo diferente do cotidiano. Platão reconhecia sem reservas a identidade do
ritual e do jogo e não hesitava em incluir o sagrado na categoria de jogo. Acerca do esforço humano para
viver em paz e melhor, afirmou: “A vida deve ser vivida como jogo, jogando certos jogos, fazendo
sacrifícios, cantando e dançando, e assim o homem poderá conquistar o favor dos deuses e defender-se de
seus inimigos, triunfando no combate”236. Chamamos aqui a atenção para o fato de que o jogo é modo,
método, caminho para viver em paz. O jogo, enquanto método filosófico próprio – modelo estrutural da
hermenêutica filosófica – pressupõe um modo de conhecer e de saber que não é antitético nem
excludente, mas remete a um projeto ético-político eudaimônico.
Certa irrealidade constitui parte da identidade do jogo. Nele encontramos sempre uma não
seriedade, passando-se por um fazer-como-se, como se fosse sem engajamento, onde saímos
provisoriamente da vida cotidiana, onde “fora do jogo nós somos determinados pela história de nossa
vida”237. Não apenas para os povos primitivos, para as crianças, mas também para adultos, o jogo não é
uma simples irrealidade, nem possui um valor inferior, mas nele podemos nos sentir mais próximos do
que consideramos o mais essencial e o mais autêntico para nossas vidas.
Com o jogo atenuamos a lei inexorável da seriedade da vida com suas necessidades habituais. É
uma forma de recuperar as possibilidades perdidas; nele “nós adquirimos de novo uma liberdade
inalterada na dimensão da simples ‘aparência’”238. Desse modo, o jogo não é simples aparência, no
sentido de algo superficial ou insignificante, mas aparição, existência, como é o modo de ser do relâmpago.
Ele é uma atividade voluntária, embora sujeito a ordens rígidas, deixando de ser jogo se não for
livremente jogado. Só joga quem deseja jogar. Assim se pode afirmar que é uma característica
fundamental do jogo poder ser livre, isto é, “ser ele próprio liberdade”239.
O jogo “não é vida ‘corrente’ nem vida ‘real’. Trata-se de uma evasão da vida ‘real’ para a esfera
temporária de atividade com orientação própria. Toda criança sabe perfeitamente quando está ‘só
fazendo de conta’ ou quando está ‘só brincando’”240. Quem joga vive a tensão produtiva entre a física e a
metafísica, entre o cotidiano e o transcendental, o real e o irreal.
O jogo, não pertencendo à vida comum, situa-se fora do mecanismo de satisfação imediata das
necessidades e dos desejos, chegando inclusive a interrompê-lo: “ele se insinua como atividade
temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste
nesta própria realização (...) ‘um intervalo em nossa vida cotidiana’”241. Ele é linguagem e,
concomitantemente, constitui, ao ser jogado, uma metalinguagem.
O jogo distingue-se da vida comum pelo lugar, pela duração, por seu isolamento com relação a
ela. Ocorrendo dentro de certos limites de tempo e de espaço, ele traça um caminho e um sentido
próprios, distinguível do cotidiano. Enquanto se efetiva, “tudo é movimento, mudança, alternância,
sucessão, associação, separação (...) mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece como uma
criação nova do espírito, um tesouro a ser conservado pela memória”242, e, jogado, incorpora-se à
tradição.
Ele “cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma
perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta
‘estraga o jogo’ privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor”243. Nesse sentido, ele
lembra o movimento originário da filosofia, que nasce também do desejo de transpor as regras ordenadas
e universais do cosmos para o interior da vida humana, o que atesta a conexão própria entre o jogo e a
filosofia.
O elemento da tensão desempenha um papel importante no jogo. “Tensão significa incerteza,
acaso. Há um esforço para levar o jogo até ao desenlace, o jogador quer que alguma coisa ‘vá’ ou ‘saia’,
pretende ‘ganhar’ à custa do seu próprio esforço”244, mas não conhece a priori nem o que está no início
nem o que está no fim. Aqui entra a questão do risco que corremos ao jogar245. Precisamos aguardar seu
final para saber como foi o jogo.
O jogo exerce um fascínio sobre nós, um encanto que “é reforçado por se fazer dele um
segredo”246. Não é possível deduzir a priori o que acontece no desenrolar até o fim dele. Ele não se
submete a uma vontade externa nem a qualquer espécie de voluntarismo.
As regras constituem um traço constitutivo do jogo, são absolutas e não permitem discussão. De
acordo com Paul Valéry, “no que diz respeito às regras de um jogo, nenhum ceticismo é possível, pois o
princípio no qual elas se assentam é uma verdade apresentada como inabalável”247. Quem desrespeita as
regras é um desmancha-prazeres e, como no diálogo, na filosofia há necessidade de regras, de condições,
sem elas não é possível o autêntico filosofar.
O jogo é uma atividade livre, criativa e ao mesmo tempo tomado como a atividade mais séria, e
dessa polaridade decorre seu êxito ou não. Ele, por um lado, ocorre à margem e acima da vida habitual e,
ao mesmo tempo, absorve o jogador intensa e totalmente em seu movimento. É “uma atividade desligada
de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de
limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras”248; ou seja, é inútil.
Uma das funções do jogo consiste no lutar por alguma coisa e no representar de alguma coisa.
Representar significa mostrar, mais que imitar. Uma criança representa alguma coisa diferente do que é
no cotidiano, finge ser um príncipe, uma mamãe, um professor; a criança experiencia papéis sociais.
Jogar não é fazer, no sentido da poiésis aristotélica; “não se ‘faz’ um jogo da mesma maneira que
se ‘faz’ ou se ‘vai’ pescar, ou caçar, ou dançar; um jogo muito simplesmente ‘se joga’”249. Faz parte do
jogo o respeito às suas regras, e, por outro lado, pertence à essência do espírito lúdico ousar, correr riscos,
suportar a incerteza e a tensão. Enquanto tal, é mais universal que a seriedade científica, que “procura
excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem incluir a seriedade”250.
Faz-se presente no jogo também certo espírito de fidelidade. Nele ocorre “a entrega de si mesmo
a uma pessoa, a uma causa ou uma ideia, sem discutir as razões dessa entrega nem duvidar de seu valor
permanente”251, sendo ela necessária para que haja um jogo. Há uma relação estreita entre a exigência de
fidelidade lúdica ao jogo e a relação entre ser e dever ser, por exemplo.
À guisa de síntese retenhamos seis características essenciais da atividade lúdica: “Ela é livre,
inconciliável com o constrangimento, por consequência, separada da realidade comum, isto é, limitada a
um espaço e a um tempo fechados convencionais, indeterminada, pois implica a intervenção do acaso ou
da invenção, improdutiva – dizendo de outro modo: não fornece nada à vida real dos jogadores – e
regulada ou fictícia, dependendo de ser ou não imitativa”252. G. Boss concentrou a definição de jogo na
expressão “uma ação regulada autônoma”253, que reúne as demais características gerais do jogo.
Considerando os traços antropológico-culturais do jogo elencados, consideramos a ciência
moderna como uma forma de jogo, pois tanto um quanto o outro possuem regras e objetivos próprios. A
ciência é, do ponto de vista filosófico, apenas um jogo entre muitos outros.
O jogo, ao ser jogado, tem um limite no tempo e no espaço, não tem contato com qualquer
realidade exterior a si mesmo, contém seu fim em sua própria realização. Isto não constitui elemento
fundamental da ciência, que está preocupada em ser aplicada à realidade procurando estabelecer um
padrão universalmente válido aplicável à realidade. Além disso, “ao contrário das regras do jogo, as
regras da ciência não são definitivas, são constantemente desmentidas pela experiência, sofrendo
modificações de toda a ordem, ao passo que a alteração das regras de um jogo tem como consequência
estragar o próprio jogo”254. Caracteriza o modo de proceder científico a vontade de pôr o fenômeno em
segurança, de fixar a coisa em sua pura demonstração, de colocá-la dentro de determinados parâmetros
conceituais claros. O jogo não se esgota num conceito, como a filosofia não pode ser limitada a um credo.
A “essência” do jogo oscila entre a observância das exigências próprias de cada jogo e a vivência da mais
pura liberdade ao se jogar.
E. Fink compara o modo como a ciência e a filosofia veem o jogo. A pesquisa científica toma o
fenômeno do jogo como ponto de partida, analisa-o como dado antropológico e distingue-o do jogo dos
animais, para então demonstrar seu conteúdo próprio. Já na filosofia tomamos a constituição do jogo
humano, onde nos damos conta de que “ele não ‘é’ como as outras ações sérias da existência humana, que
ele é um ‘fazer-como-se’ inspirado, um curioso ‘parecer’, e que encerra uma esfera maravilhosa de
‘irrealidade’. O jogo – enquanto imbricação singular de ‘ser’ e de ‘parecer’ – é de qualquer maneira um ser
parecendo e um parecer sendo”255, o que é desenvolvido amplamente pela Estética.
O jogo comporta uma dupla realidade, diferentemente da ciência, e funciona se o jogador
obedece às regras que lhe são próprias. Há uma constringência, apodicticidade própria do jogo, que deve
ser aceita e assumida pelo jogador em todo tempo e lugar. Por outro lado, só há jogo quando o jogador
entrega-se a ele. Não acontece jogo se ele se coloca de modo neutro como observador diante dele ou
quando pretende objetificá-lo, tal como procede a ciência.
No jogo, o fundamental é a experiência que o jogador realiza, ao passo que na ciência é a
validade universal que se pode alcançar por meio dela; no primeiro, trata-se de uma fundamentação
ontológica, no segundo, de uma epistemológica.
a verdadeira civilização não pode existir sem um certo elemento lúdico, porque a civilização implica a limitação e o domínio de si
próprio, a capacidade de não tomar suas próprias tendências pelo fim último da humanidade, compreendendo que se está
encerrado dentro de certos limites livremente aceites. De certo modo, a civilização sempre será um jogo governado por certas
regras, e a verdadeira civilização sempre exigirá o espírito esportivo, a capacidade de fair play268.
Aliás, sem essa capacidade (de jogar ou de loucura), não suportaríamos as relações humanas,
tanto as familiares, as sociais, as trabalhistas como as filosóficas...
Acerca dos argumentos sobre o jogo desenvolvidos por Huizinga e Fink, devemos lembrar que
os dois autores seguem interesses diferentes em contextos de questionamentos nem sempre compatíveis.
Huizinga está mais interessado na dimensão antropológico-cultural do jogo, ao passo que Fink, na
dimensão simbólica enquanto propriedade do homem e enquanto forma representativa do mundo. Em
todo caso, o mundo lúdico deve ser compreendido “não como cópia, mas como símbolo, e nesse caso,
apesar de sua ‘irrealidade’, ele é de uma classificação ontológica superior àquela das coisas tangíveis da
realidade cotidiana”269 e da racionalidade cotidiana.
Enfim, consideramos o jogo “não simplesmente como um ‘elemento’ da cultura ou como um ser
‘na’ cultura, mas como o modo de ser para o qual a cultura é sub specie”270. Estamos conscientes de que “do
jogo nós não teremos, pois, mais que uma apreensão parcial, não por causa de uma impotência que nos
seria própria e que nos fecharia à totalidade, mas porque o ser não se dá, no jogo, mais que sob o modo
do retrato”271, à semelhança do impressionismo; afinal, o ser se diz de muitas maneiras, como afirmou o
estagirita. Como não é possível encerrar e esgotar em um conceito o jogo, assim não é possível,
rigorosamente falando, definir o que é a hermenêutica, o que é a metafísica, o que é a filosofia. O mesmo
podemos afirmar da experiência: enquanto o método científico moderno procurou dissecá-la, a
hermenêutica procura conservá-la em movimento e, para tanto, o jogo mostra apropriadamente como ela
se efetiva. Dessa noção mais ampla sobre o jogo analisaremos, a seguir, os elementos e a função do jogo
em Wittgenstein e Gadamer.
(...) todo jogar é um ser-jogado. O atrativo do jogo, a fascinação que exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora
do jogador272.
é evidente que com isso abriu-se uma nova dimensão para a colocação hermenêutico-semântica do problema, na qual – por causa
da conexão constitutiva de linguagem e forma de vida – o sentido (a significação) de palavras e frases é visto como uma ‘função’
de seu ‘uso’ contextual e situacional em jogos de linguagem e o compreender o sentido como um compreender-se sobre
comportamento linguístico ‘correto’, ou, reflexivamente, como o compreender o uso de expressões linguísticas em respectivas
circunstâncias276.
consciente ou inconscientemente, levar adiante de modo coerente o raciocínio do Heidegger tardio. Trata-se, em ambos os casos,
de indicar um fazer em cuja posse o homem encontra-se e através do qual o ser pessoa primeiramente se atesta e constitui. A
capacidade de tomar parte no jogo representa o ato criador da pessoa, mas esta criação (Poiésis) não pode ser apreendida de
modo satisfatório a partir de uma consciência particular278.
Contudo, distinguem-se pelo fato de que “E. Fink vê no jogo um modo de ‘ser-no-mundo (=
Kosmos)’, enquanto Gadamer quer expressar nele o acontecer do ‘ser-na-verdade’”279, representável
exemplarmente na experiência da obra de arte.
No texto “A atualidade do belo”, Gadamer afirma que, diferentemente do jogo dos animais, no
jogo humano aparece o elemento da racionalidade, o que ele mesmo critica no seu texto “Das Spiel der
Kunst”. A racionalidade seria o caráter distintivo mais próprio do ser humano enquanto poder dar-se fins
e aspirar a eles conscientemente. O jogo trata de uma racionalidade livre de fins predeterminados, ele “é,
em última análise, a autoapresentação do movimento do jogo”280. Foi com Descartes que se descartou a
proximidade entre o jogo humano e o jogo dos animais. Contudo, desde o século passado até hoje,
desenvolveram-se estudos que afirmaram que interesses e fatores desconhecidos também determinam
nossa consciência. Gadamer põe então a questão: muitos dos nossos atos que julgamos conscientes não
poderiam ser justificados a partir dos instintos? Sabe-se que tradicionalmente distinguiu-se o jogo dos
seres humanos do jogo dos animais pela consciência que aqueles têm da necessidade de obediência às
regras para que um jogo ocorra. Filosoficamente, isto foi atribuído à intencionalidade e à capacidade
humana de unir seriedade e jogo. Mas no jogo dos animais isso não funciona também? Não constatamos
entre eles que não se mordem de verdade quando estão brincando? Como podemos determinar que as
ações lúdicas humanas são orientadas pela razão e os jogos dos animais pelos instintos? Para Gadamer,
na experiência da arte vemos a forma de justificar melhor a especificidade do jogo, que melhor caracteriza
a dimensão da liberdade humana: “O fazer humano conhece uma poderosa variabilidade de provar e
jogar, de validar. Só aí começa mesmo a ‘arte’, onde algo pode ser de uma ou de outra maneira”281.
A utilização do jogo como metodologia, como caminho próprio da hermenêutica filosófica deve-
se ao fato de que: “(...) o acontecimento da verdade é algo sobre o qual nós não somos senhores. O
fundamento suficiente da obra de arte não está no poder do artista. Algo ‘acontece’ com ele”282. A
impossibilidade do domínio sobre o jogo, como vimos pela retomada do conceito de experiência de
Aristóteles por parte de Gadamer, constitui um traço fundamental da hermenêutica filosófica. A verdade,
explicitável pelo caminho do jogo, com um acontecimento análogo ao da experiência da obra de arte, isto
é, “a inapreensibilidade do acontecer da verdade não deve conduzir à postulação de uma potência
transcendente, inerente ao artista. Deve-se antes aferrar-se à finitude humana, (...) na obra de arte revela-
se uma verdade que abre uma dimensão de sentido, isto é, um novo mundo e esconde-se atrás da
‘inapreensibilidade’ de seu acontecer”283. Por essa razão J. Grondin justifica: “O modo de ser da obra de
arte deve ser esclarecido por meio da categoria ontológica do jogo”284.
A explicitação do “jogo como fio condutor da explicação ontológica” tem por intuito
compreender o sentido e a relevância do jogo enquanto modelo estrutural e estrutura “formal” da
hermenêutica filosófica. O modelo do jogo “serve como prisma através do qual a estrutura da efetuação
do compreender torna-se realmente cognoscível”285. Embora ele tenha desenvolvido a concepção de jogo
com o intuito de alargar a concepção da experiência estética, notadamente na 1ª parte de VMI, retomamos
essa perspectiva, a fim de estruturar e ampliar o próprio uso do jogo. O jogo é modelo estrutural que
explicita e possibilita, apropriadamente, a efetuação do princípio da experiência – não se restringindo ao
campo da estética.
Gadamer fez uma autocrítica de sua concepção de jogo, afirmando que não esclareceu
suficientemente como se harmonizam os dois projetos fundamentais da noção de jogo que contrapôs à
mentalidade subjetivista da época moderna, em que, por uma parte, está a orientação ao jogo da arte e,
por outra, a fundamentação da linguagem no diálogo, abordando os jogos da linguagem: “tratava-se de
conjugar mais estreitamente o jogo da linguagem com o jogo da arte, que era, a meu juízo, o caso
hermenêutico por excelência”286.
não está fixado em nenhum alvo no qual termine (...) O movimento, que é o jogo, não possui nenhum alvo em que termine, mas
renova-se em permanente repetição. O movimento de vaivém é obviamente tão central para a determinação da natureza do jogo
que chega a ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. É o jogo que é jogado ou que se desenrola como jogo (sich
abspielt) nisso – não há um sujeito fixo que esteja jogando ali289.
Por isso, este ir e vir não pode ser pensado como movimento circular vicioso. A dimensão
teleológica – de progresso ou retrocesso – é superada pela experiência do jogo, o que pode ser
problemático quando transposto para o campo mais estritamente filosófico-conceitual. Não é possível
fixar esse movimento conceitual. No deus Hermes da mitologia grega encontramos esta característica: ele
vai e vem entre o finito e o infinito, entre os homens e os deuses, transportando a mensagem destes para
aqueles e vice-versa.
O vaivém pertence de tal forma ao jogo, que impossibilita qualquer um de jogar isoladamente.
Imagem representável, p. ex., no “‘jogo das luzes’, ou o ‘jogo das ondas’, onde há um tal ir e vir constante,
um vaivém, isto é, um movimento que não depende de um objetivo final do movimento”290. Porém há a
ideia de télos; só que este não pode ser conhecido. Daí por que o jogar constitui-se dinâmica incessante:
uma teleologia sem télos predeterminado ou externo ao próprio processo de conhecer e de saber. A
abertura como princípio da experiência se contrapõe ao movimento teleológico necessitário.
Não desaparecem no comportamento lúdico todas as relações-fim, que determinam a existência
(Dasein), mas nele elas permanecem em suspenso. Quem joga sabe que o jogo é somente jogo. O jogar
cumpre sua finalidade quando aquele que joga entra no jogo, e, caso não o leve a sério, torna-se um
desmancha-prazeres. Assim, “o modo de ser do jogo não permite que quem joga se comporte em relação
ao jogo como em relação a um objeto. Aquele que joga sabe muito bem o que é o jogo e que o que está
fazendo é ‘apenas um jogo’, mas não sabe o que ele ‘sabe’ nisso”291. O fato é que não é possível demonstrar
o jogo independentemente do jogador e vice-versa, o que também vale para a experiência, para a
linguagem e para a filosofia.
Na linguagem, “é óbvio que o sujeito genuíno do jogo não é a subjetividade de quem joga
também sob outras atividades, mas o próprio jogo”292, pois quem procura pensar a linguagem já se move
sempre além da pura subjetividade. Ora, a concepção de horizonte corrobora isso, pois nele o ser humano
busca seu lugar enquanto sujeito, com uma diferença, porém: o próprio jogo não acontece sem o jogador,
ao passo que o horizonte existe, num certo sentido, independentemente dele.
O jogo deve ser compreendido como um processo medial, “não tem seu ser na consciência ou no
comportamento do jogador, mas atrai este à sua esfera e preenche-o com o seu espírito. O jogador
experimenta o jogo como uma realidade que o ultrapassa”293. O drama cultual ou profano, ainda que o
que representa seja um mundo “completamente fechado” em si mesmo, está aberto, por um lado, ao
espectador. Por outro lado, sem o espectador ele não alcança seu pleno significado e sentido.
Compreendemos melhor a impossibilidade de dominar o jogo, por exemplo, pela experiência
segundo a qual “o ser da arte não pode ser determinado como objeto de uma consciência estética, porque,
ao contrário, o comportamento estético é mais do que sabe de si mesmo. É uma parte do processo do ser da
representação e pertence essencialmente ao jogo como jogo”294, sendo impossível objetificá-lo. É o caso do
espectador que, diante do desenrolar de um drama, compreendendo-o, compreende-se. A hermenêutica
“pressupõe que em toda compreensão de algo ou de alguém se produz uma autocrítica. O que
compreende não adota uma posição de superioridade, mas reconhece a necessidade de se submeter a
exame a suposta verdade própria”295. Daí por que afirmamos que o autêntico saber é sempre
autoimplicativo, é uma experiência, mais que um ato descritivo asséptico.
Do ponto de vista ontológico, a concepção de jogo fica em aberto, no sentido de que não trabalha
nem culmina em conceitos ou sistemas definitivos e absolutos. É o caso da experiência estética em que
acontece um jogo entre a obra de arte em “si mesma”, o jogador e a experiência que nasce desse jogar.
Percebe-se que nessa relação tripolar – uma terceira margem –, não bipolar como ocorreu com o
conhecimento (sujeito-objeto) ao longo da história, não há sobreposição de um dos polos sobre os demais.
Não há domínio de um aspecto sobre outro, de modo que não apenas sabemos mais, mas sabemos de
outro modo ao fim do jogo.
No jogo estético ou histórico, o sentido da obra de arte ou da história não é determinado pela
subjetividade transcendental, mas instaurado a partir do jogo entre quem percebe e o que é percebido.
Seu télos não precede nem está predeterminado, mas ele mesmo existe enquanto experiência; ele “tem sua
natureza própria, independente da consciência daqueles que jogam”296.
O “sujeito do jogo não são os jogadores, porém o jogo, através dos que jogam, simplesmente
ganha representação”297. O jogo compõe-se de uma realidade dupla: por uma parte, comporta regras
absolutas e, por outra, exige que seja jogado; por uma parte, é fenomenológico no sentido que se parte do
que está aí e, por outra, joga-se com as regras que lhe são próprias.
O jogo implica sempre correr um risco, o que constitui um de seus atrativos. A natureza do jogo
se reflete no comportamento lúdico: “Todo jogar é um ser-jogado. O atrativo do jogo, a fascinação que
exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora do jogador”298. O risco é justamente o que
mostra a ateleologia do jogo ou uma teleologia que se presentifica no ato mesmo de jogar; nesse sentido,
não é uma teleologia transcendental, abstrata nem a-histórica. Dentro do próprio jogo há um télos, uma
dinâmica atuante. A estrutura de ordenação do jogo faz com que o jogador explicite-o jogando.
Deste modo, “o verdadeiro sujeito do jogo (...) não é o jogador, mas o próprio jogo. É o jogo que
mantém o jogador a caminho, que o enreda no jogo e que o mantém em jogo”299. Ao afirmarmos que o
jogo não é reconstruído “a partir da consciência ou do comportamento intencional do jogador, mas a
partir da perspectiva do jogo mesmo, que parece se apresentar como aspecto transubjetivo dos vários atos
de falar, pensar ou agir dos participantes”300, transferimos a absolutidade da subjetividade moderna para
a objetividade da própria coisa e para o acontecer do jogo mesmo. Gadamer deslocou o peso que a
modernidade conferira à subjetividade para a passio da obra de arte, da história, da linguagem, da
tradição sobre a subjetividade.
Com o jogar da experiência estética se “supera de maneira convincente a transposição
(Übertragung) de um modelo de teoria de conhecimento, que contrapunha bruscamente o sujeito ao objeto
do conhecimento, para a experiência estética a favor de um pensamento dialógico-participativo: arte é
somente arte porque ela nos tem algo a dizer”301. Encontramos, exemplarmente, a dimensão de
participação, na apresentação das tragédias gregas ou no jogo cultual.
O modelo estrutural do jogo mostra que nele todos são cojogadores. O mesmo vale para a
exigência da obra de arte, onde não há separação entre a obra de arte propriamente dita e aquele que a
experimenta. No jogo da cultura “ler não é somente soletrar e ler uma palavra após outra, mas significa,
sobretudo, realizar o permanente movimento hermenêutico que é dirigido pela expectativa de sentido do
todo e que, ao final, se realiza a partir do indivíduo na realização do sentido do todo”302. Trata-se de um
jogo de movimento de distanciamento e apropriação, para falar em linguagem ricoeuriana.
O jogo, para que ocorra, precisa ser jogado, o que constitui uma ação. Mostra-se assim que, na
estrutura do jogo, o que está em jogo é a própria humanidade agindo, e não apenas abstraindo ou
conhecendo. O jogo como modelo estrutural da hermenêutica filosófica sustenta que só “faz” filosofia
quem filosofa, quem se envolve no processo mesmo do filosofar, experienciando-se nesse processo,
confrontando-se consigo e com a história. Por isso, com razão, Kant pode afirmar que não se aprende
filosofia, mas se aprende a filosofar. Só filosofa quem se joga na filosofia, só experimenta quem se
experiencia, só faz hermenêutica quem se joga e se confronta com o sentido (seu e do texto), só filosofa
quem vivencia o pathos da admiração.
O jogo exige sempre um jogar-com (mit-spielen), o que vale também para a experiência da obra
de arte. Ao olhar uma criança, “acompanhá-la em seu jogo”, efetiva-se uma participação por parte de
quem a observa. O espectador, neste caso, é mais que um observador, pois toma parte do jogo; e nesse
sentido se diz que o jogo é um agir comunicativo.
No culto, há uma representação para a comunidade que, concomitantemente, pede a
participação do espectador. Na representação de Deus ou no mito, “os jogadores participantes, por assim
dizer, revelam-se no jogo representativo, encontrando nisso, intensificada, sua autorrepresentação
elevada, ultrapassando-se, saem de si para adentrar no fato de que os atores representam uma totalidade
de sentidos para o espectador”303. Os atores “executam” seu jogo para alguém, e embora eles
representem seu papel em qualquer jogo, este constitui-se pelo conjunto de atores e espectadores. A
experiência da obra de arte não pode ser desligada da contingência das condições de acesso a ela por
parte do ator e do espectador.
Na opinião de Kögler,
Gadamer acentua, com razão, que na experiência com a arte acontece mais do que somente uma formação e aperfeiçoamento do
gosto subjetivo que examina à distância. Obras de arte que se tornam significativas para nós nos tocam, antes, de modo especial e
desafiam as nossas maneiras de ver, pensar e sentir habituais, referindo-se assim em seu efeito ao todo de nossa vida. Gadamer
exprime esse fenômeno por meio do conceito de ser tocado pela arte; o que nos sucede em uma experiência verdadeira e
comovedora com obras autênticas de arte sempre já prendeu (erfassen) uma parte de nós mesmos, relaciona-se – só assim se
explica o ser atraído (hineingezogen) e o ser tocado pela experiência estética – ao nosso modo de vida de modo aprofundador e
crítico304.
Desse ponto de vista, a estrutura e a efetivação do jogo de experiência da obra de arte é que
justifica uma compreensão mais ampla e autêntica do conceito de verdade. A verdade é compreendida
como um acontecer em movimento, e desse modo ela não deve ser compreendida como produto da actio
humana. Neste caso, “o conceito de passio é mais adequado. No domínio da arte este importante conceito
adquire uma dupla aplicação: por um lado, pode ser aplicado ao artista – o ato poético é mais um
‘padecer’ que um agir; por outro lado, a experiência do observador também precisa ser compreendida
como pathos”305. Com isso, afirmamos que o saber filosófico é fruto da actio e da passio humana, da
subjetividade moderna e da objetividade grega, da liberdade e da “coisa-em-si”.
O fundamental na hermenêutica é que “todo jogo é um ser jogado”, cuja experiência ocorre
exemplarmente na obra de arte, “a obra não visa desde o começo um objetivo, simplesmente quer ser
apresentada. Mas o apresentar só existe para quem se deixa envolver no jogo da obra de arte”306. Quando
jogamos, abandonamo-nos a um universo de sentido que nos revela um novo mundo, ampliando e/ou
retificando o nosso. Quem joga é transformado; os atores ou o dramaturgo, por exemplo, na
representação “não mais existem, mas tão somente o que é jogado (representado) por eles”307.
Há uma transcendência no interior do jogo, intrínseca nas cerimônias fúnebres, por exemplo,
que nada mais são que uma tentativa de transcender e eternizar a própria vida:
O enterro dos mortos, o culto dos mortos e todo o luxo imenso de arte de mortos, de oferendas é um reter do efêmero e do que
escapa, por meio de uma nova permanência própria. Isso agora me parece ser o passo para a frente que damos a partir do todo
das nossas deliberações, de que não somente denominamos o caráter de excesso do jogo como a verdadeira base para a nossa
elevação criativa à arte, mas reconhecemos como motivo antropológico mais profundo por trás disso aquilo que separa o jogo do
ser humano e principalmente o jogo da arte de todas as formas de jogo da natureza e o distingue diante delas. Ele outorga
permanência308.
A natureza de ser do jogo é a de autorrepresentação; e “(...) o entregar-se à tarefa do jogo é, na
verdade, um colocar-se em jogo. A autorrepresentação do jogo faz, ao mesmo tempo, que o jogador
alcance sua própria autorrepresentação enquanto ele joga algo, isto é, representa”309. A representação
deve ser reconhecida como modo próprio de ser do jogo, em que o que é jogado, ao representar-se, dirige-
se ao e integra o espectador em seu movimento.
O espetáculo teatral e a obra de arte “não são um mero sistema de regras e de prescrições
comportamentais, no âmbito das quais o jogo (espetáculo) pode se realizar. O representar de um
espetáculo não quer ser entendido como uma satisfação de uma necessidade lúdica, mas como um entrar
na existência da própria poesia”. A experiência hermenêutica acontece no jogo representacional entre o
ser e o vir-a-ser, representando-se. O jogo enquanto caminho, que sobe e que desce, da hermenêutica
filosófica, não constitui um mundo substitutivo no qual esquecemos ou sublimamos nossos problemas.
Antes, como no jogo da arte, ele se constitui em “um espelho que ao longo dos milênios sempre de novo
aparece diante de nós, no qual nós mesmos nos enxergamos – com frequência bastante inesperadamente,
com frequência bastante estranhamente – como somos, como poderíamos ser, o que acontece conosco”310.
Diferente da proposta epistemológica dos jogos de linguagem de Wittgenstein, o jogo – enquanto modelo
estrutural, metodologia própria da hermenêutica filosófica – conserva e integra a contingência, a
liberdade, a história com suas regras próprias.
O jogo não é tanto o oposto da seriedade, e justamente “porque não é simples liberdade de
arbitrariedade e de excesso cego da natureza, o que se encontra diante de nós nas realizações criadoras da
arte, (o jogo) pode penetrar todas as ordens da nossa vida social, através de todas as classes, raças, níveis
de formação. – Pois estas configurações do nosso jogar são conformações de nossa liberdade”311.
Considerando o jogo como metodologia própria da hermenêutica filosófica,
tal hermenêutica não é uma metodologia ou uma tentativa de conceber a compreensão como o resultado da relação sujeito/objeto
do homem com seu mundo (como na hermenêutica de Schleiermacher ou Dilthey). Ela é, antes, uma tentativa de ver a
compreensão como um processo de acontecimentos importantes, que é o caminho do próprio Ser mesmo, e ‘a forma de ser do
próprio homem’. Por conseguinte, para Gadamer, o processo (e tem que permanecer processo) de compreensão ou pensamento,
a transmissão da tradição, é o mais especificamente explicado modo de Ser e jogo: isto é, compreensão ou pensamento é o jogo de
revelação-acontecimento do Ser312.
Desse modo, o jogo apresenta traços da dimensão agonística – no sentido de luta interminável,
em que filosofar não consiste em chegar necessariamente a uma verdade imutável ou a um credo, mas no
amor e na busca da sofia.
O que é a terapia psicológica senão um autêntico jogo? Com regras, com tempo e espaço
delimitados, com o requisito do envolvimento na análise por parte do sujeito e do psicanalista (em seus
diferentes níveis de envolvimento), com o pressuposto necessário do distanciamento hermenêutico. Em
que consiste a literatura, fictícia ou não, enquanto realidade dada, senão num jogo de metáforas, palavras
que se tornam legíveis à medida que o leitor entra no jogo dela e o joga? O ensaio tem também a estrutura
do jogo ao pedir que seu autor bem como seu leitor participem dele. Exemplo disso é a obra de M. de
Montaigne, Ensaios, e também a obra de Gadamer, em que apenas o primeiro dos seus dez volumes foge à
forma do artigo (ensaio). Enfim, no jogo se realiza uma liberdade e, dessa maneira,
Filosofia é, portanto: uma open-mindedness criativa; uma dialética sem fim de pergunta-resposta com o Ser; uma espera
iconoclástica sem idolátricos absolutos; uma imersão no porque sem um por que final; um ser jogado pelo jogo do Ser313.
O espectador ou intérprete bem como o drama e a obra têm seu próprio horizonte. Filosofar
significa aceitar o desafio de pôr em jogo os pressupostos que cada um carrega consigo e possibilitar o
acontecer de uma verdadeira “fusão de horizontes”. Em outras palavras, a hermenêutica supõe, descobre
e apresenta “condições de verdade que não estão na lógica da investigação, mas a precedem”314, uma vez
que o jogo só acontece quando o jogador se joga nele e joga tudo de si mesmo, num movimento
experiencial de identidade e diferença, assimilação e distanciamento.
Ao assistir a uma peça trágica, o espectador não vive uma experiência aventureira ou um
simples delírio da inconsciência, mas desperta o verdadeiro ser e aprofunda sua “continuidade” consigo
mesmo. O jogo e sua transformação em construção, a representação ou execução da música, não
constituem meros acidentes, mas nelas se completa o que são os atos e as obras em “si mesmas”, um
estar-aí do que se representa por meio delas e com elas.
Com a dimensão da inter-relação, é possível ampliar o cogito cartesiano, que, a princípio, joga só,
contrariando a lei relacional do jogo. A experiência estética nos ensina que a verdade não é resultante de
uma simples aplicação de um método. A verdade à qual chegamos aplicando um método é uma verdade
lógica, abstrata, “em tudo diferente daquela a que chega o amante ao decifrar os signos da amada”315.
A experiência da obra de arte nos afeta estremecendo e fazendo desmoronar o que é habitual. Ao
assistir a uma tragédia não apenas nos reconhecemos nela, como ela também nos diz: “Tu tens de mudar
tua vida”316. Se antes a experiência estética predizia os efeitos no espectador, agora exaltamos o fato de
que tal vivência altera sua própria vida.
O jogo, tendo como pressuposto a imprevisibilidade dos seus resultados, desemboca na questão
do risco, do desafio que o jogador enfrenta e assume ao jogar. Nesse caso, o sujeito não está
predeterminado pela atitude dominadora e, ao jogar, pode então refletir sobre a liberdade humana, não
apenas enquanto subjetividade, mas também como alteridade. Talvez a concepção de filosofia que
decorre daí se pareça com o trabalho de Sísifo ou, modernamente, com um círculo vicioso. Mostramos
que a filosofia consiste justamente nesse vaivém constante entre o sujeito e a realidade, o sujeito e outros
sujeitos, entre o empírico e o metaempírico.
A partir do jogo é possível retomar e justificar que a filosofia “não é sophía, disposição de algo
pelo saber, mas busca dele. E, como tal, é a mais alta possibilidade do ser humano”317. Pressupõe-se outra
concepção de filosofia que não a cartesiano-solipsista, o que não pode ser resolvido distinguindo
diferentes níveis de racionalidade318 apenas, ou pragmatizando a linguagem em seus múltiplos jogos de
linguagem.
O movimento antistrófico – do jogo – explicita um movimento que não é retilíneo, mas circular
concêntrico. É daqui que retiramos e fundamentamos o próximo passo. O segundo modelo estrutural
para fundamentar a dimensão metodológica da hermenêutica filosófica é o círculo hermenêutico.
Após o dilúvio, foi o portador da palavra divina a Deucalião, para anunciar que Zeus estava pronto a conceder-lhe a satisfação
de um desejo. Por intermédio dele, o consumado músico Anfião recebeu a lira, Héracles a espada, Perseu o capacete de Hades.
(...) Por ordem expressa de Zeus, cumpriu a ingrata missão de levar a Prometeu, aguilhoado a uma penedia, o ultimatum, para
que revelasse o grande segredo que tanto preocupava o pai dos deuses e dos homens. A ele coube, igualmente, a gratíssima
tarefa de conduzir Psiqué para o Olimpo, a fim de que se casasse com Eros341.
1. pelo próprio movimento do consulente que deve se pôr em marcha para conhecê-la, 2. no momento em que, deixando o
recinto da Ágora, ele chega ao espaço exterior, 3. no fato de apanhar no ar uma voz – esta φωνή móvel, ligeira, intangível –, a voz
da primeira pessoa que o acaso fez com que cruzasse seu caminho, 4. na distância que o oráculo estabelece entre a questão, posta
no centro da Ágora, como é deposta no centro, para sempre permanecer aí, o preço da consulta, e a resposta que o deus dá a
conhecer fora, em um outro espaço que aquele onde se ergue sua própria imagem343.
Um dos aspectos mais relevantes dessa experiência oracular é a atitude do consulente de se pôr à
disposição para ouvir – fora do seu santuário – o que Hermes quer lhe comunicar. Justificaremos mais
adiante que o ouvir é a condição sine qua non da hermenêutica filosófica, presente ab initio na filosofia.
Diferentemente dos demais deuses que vivem no além, Hermes é um deus próximo dos homens.
Aristófanes vê nele o mais amigo dos homens. Habitando na terra dos mortais, ele se concebe como um
mensageiro, como um viajante que vem de longe e que possui pressa para partir. Nele não há nada fixo,
estável, permanente, circunscrito, fechado. Ele representa, no espaço e no mundo humano, o movimento,
a passagem, a mudança de estado, as transições, os contatos entre elementos estranhos. Na casa, o seu
lugar é junto da porta, protegendo a soleira, é aquele para quem não existe nem fechadura, nem cerca,
nem fronteira344. No Hino a Hermes ele se revela como o “passa-muros” resvalando obliquamente através
da fechadura,
semelhante à brisa de outono, como um ‘nevoeiro’. Presente diante das portas ele reside também na entrada das cidades, nas
fronteiras dos Estados, nas encruzilhadas, ao longo das pistas, sinalizando o caminho. Embora presente no meio dos homens,
Hermes não se fixa em nenhum lugar, aparece e desaparece repentinamente (...) ‘Ele usa o capacete de Hades’ que o torna
invisível, as sandálias aladas, que anulam as distâncias, e uma varinha de mágico que transforma tudo o que toca. É também
aquilo que não se pode nem prever nem reter, o fortuito, a boa ou a má sorte, o encontro inesperado345.
Aqui não há nenhum círculo lógico, mas apenas um círculo – hermenêutico – de estrutura completamente diversa. Além disso,
estritamente falando, não é um círculo no sentido de uma circunferência que se fecha em si mesma, mas antes – para permanecer
na imagem – um acontecimento em espiral, na qual um elemento continua dialeticamente a se determinar e formar no outro374,
sem um fim ou finalidade predeterminados. Diferentemente do círculo vicioso, o autêntico ato filosófico é
enriquecido e aprofundado pela constante busca do saber que, extrapolando o projeto de confirmar ou
descartar hipóteses, possibilita uma compreensão mais plena e universal.
Se, por um lado, Gadamer quis evidenciar, com mérito, a circularidade envolvida no processo de
conhecimento histórico – e conseguiu muito bem mostrar a ingênua pretensão do historicismo –, por
outro lado, estreitou seu sentido. Isto é, utilizou-o mais para mostrar a fraqueza do historicismo que para
justificá-lo como estrutura, como enquanto da hermenêutica filosófica. Ele fez algo similar com o “jogo
como fio condutor da explicação ontológica” para mostrar como se dá a experiência da arte, com o que
não é possível reduzir a hermenêutica a uma doutrina, arte ou corrente filosófica. A estrutura do jogo
representa não apenas um método explicativo de como ocorre a experiência da arte, mas constitui uma
estrutura aberta da hermenêutica filosófica.
211 Gauvin, J., “O discurso de filosofia sistemática – experiências de leitura e investigações de estrutura”, in: Sumpf, J. et alii, Filosofia da
linguagem. Coimbra: Almedina, 1973, p. 178. Compreendemos melhor tal pretensão lembrando a distinção: “o diretamente ontológico é
diretamente conceitual, isto é, mantém-se num tipo de referência unitária àquilo de que trata, ao passo que o discurso indiretamente ontológico,
muito embora deva, no fim de contas, ser objeto de inteligência conceitual, coordena, em vista desse tipo de referência unitária, outros tipos
de referência diferentes, que correspondam à invocação das diversas experiências que intende interpretar (...) Será, por conseguinte, una a
mira intencional do leitor do discurso diretamente ontológico, ao passo que a do leitor do discurso indiretamente ontológico deverá ser,
simultaneamente, una e múltipla – múltipla, para poder ter em conta a diversidade das experiências invocadas, una, na tentativa de captar o
seu jogo de coordenação, a fim de que no discurso, finalmente constituído como totalidade memorial, essa coordenação apareça, de facto,
como uma integração”.
212 Fink, E., Le Jeu comme Symbole du Monde. Paris: Minuit, 1966, p. 54.
213 Ver, p. ex., a questão do jogo em S. Freud em A criança e seus jogos, de A. Aberastury.
214 Huizinga, J., Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva Editora da USP, 1971, p. 3-4, remete a H. Zondervan, Het
Spel bij Dieren, Kinderen en Volwassen Menschen (Amsterdã, 1928) e F. J. J. Buytendijk, Het Spel van Mensch en Diet als openbaring van levensdriften
(Amsterdã, 1932).
218 Wybrands, F., “Le jeu et la parole”, in: Haar, H., Heidegger, Paris: L’Herne, 1983, p. 278.
226 Em certas solenidades rituais, a menor infração pode invalidar tudo, inclusive “a tosse ou o riso são castigados com severas
penalidades”. Sobre isso ver H. Bergson, Le Rire.
234 Huizinga, J., op. cit., p. 17. Segundo uma crença chinesa, “a música e a dança têm a finalidade de manter o mundo em seu devido curso e
obrigar a natureza a proteger o homem”.
236 Platão, Leis, VII, 796 b, ap. Huizinga, J., op. cit., p. 22. Ver Romano Guardini, que mostra as íntimas relações existentes entre o jogo e os
mistérios no capítulo “Die Liturgie als Spiel” in Vom Geist der Liturgie, p. 56-70.
245 Sobre esse aspecto do jogo, entre outros, ver a obra de F. Dostoiévski, O jogador. Porto Alegre: L&PM, 2000.
252 Caillois, Jeux et les Hommes, ap. Boss, G., op. cit., p. 495.
259 Ibid., p. 8.
263 Platão, Leis, II, 653, ap. Huizinga, J., op. cit., p. 178.
265 Schiller, F., A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 84.
266 Suzuki, M., O belo como imperativo, in: Schiller, F., op. cit., p. 16-17.
270 Byrum, C. S., “Philosophy as play”, Man and World, v. 8, p. 322, 1975.
271 Wybrands, F., “Le jeu et la parole”, in: Haar, H., Heidegger. Paris: L’Herne, 1983, p. 281.
275 Schleiermacher, F., “2 – Hermenêutica. Introdução ao Compêndio de 1819”, ap. Dreher, L. H., O Método Teológico de Friedrich
Schleiermacher. SL: IEPG e Sinodal, 1995, p. 104.
280 “Spiel ist also letzten Endes Selbstdarstellung der Spielbewegung”. Gadamer, H.G., AkSch, p. 114.
285 Kögler, H. H., Die Macht des Dialogs: kritische Hermeneutik nach Gadamer, Foucault und Rorty. Stuttgart: Metzler, 1992, p. 43.
310 Do ponto de vista literário essa reflexão foi genialmente desenvolvida por J. Guimarães Rosa no conto “O Espelho” e por Machado de
Assis em “O Espelho”. Id., SpKu, p. 92.
315 Garcia-Roza, L. A., Palavra e Verdade. RJ: Jorge Zahar, 1990, p. 20.
317 “Die Philosophie hat von da ihren Namen: Sie ist nicht sophía, wissendes Verfügen überetwas, sondern Streben nach ihr. Als solche ist sie
die höchste Möglichkeit des Menschen”. Id., W 5, p. 7.
319 Heráclito, Diels-Kranz, 22 B 103, ap. Reale, G., História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1993, v. I, p. 66.
320 Schnädelbach, H., Die Sprengung des hermeneutischen Zirkels. “Philosophische Rundschau”, Tübingen, v. 35, n. 1/2, p. 41 e 42, 1988.
323 A propósito disso ver Horkheimer, M., e Adorno, T. Dialética do Esclarecimento. RJ: Jorge Zahar, 1985.
324 Gadamer afirmou, p. ex: “Im Zeiltalter der Wissenschaft, in dem wir leben, hat der Mythos und hat das Mythische kein wahres
Heimatrecht...”. MiLo, p. 171.
326 Heidegger, M., Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1993, p. 197-198.
327 Calvino, I., Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. SP: Companhia das Letras, 1998, p. 64. Antes dessa afirmação, Italo
confessa que rende um tributo especial ao deus do Olimpo, Hermes-Mercúrio, “o deus da comunicação e das mediações, que sob o nome de
Toth inventou a escrita, e que, segundo nos informa Jung em seus estudos sobre a simbologia alquímica, representa, como ‘espírito
Mercúrio’, também o principium individuationis”.
328 Ortiz-Osés, A., “El sentido, lo sublime y lo sublimal”, in: El Retorno de Hermes: Hermenéutica y ciencias humanas, Alain Verjat (Ed.),
Barcelona: Antropos, 1989, p. 164.
329 Rosa, J. G., “A Terceira Margem do Rio”, in: Primeiras Estórias, 6. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, INL, 1972.
330 Ebeling, G., “Hermeneutik”, in: Enc. Religion in Geschichte und Gegenwart, 3. ed., vol. 3, p. 243. O diálogo platônico em questão é: Epínomis,
975c.
331 Brandão, J. de S., Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1986, v. II, p. 191.
334 Garagalza, L., La Interpretación de los símbolos: hermenêutica y Lenguaje en la filosofia actual. Barcelona: Anthropos, 1990, p. 116.
336 Vernant, J. P., Mito e Pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 153, nota 12.
338 Brandão, J. de S., op. cit., p. 193. Na Ilíada, c. XXIV, 334 e na Odisseia, c. VIII, 335.
346 Maroldo, J. C., Der Hermeneutische Zirkel: Untersuchung zu Schleiermacher, Dilthey und Heidegger. München: Karl Alber Freiburg, 1974, p.
16.
347 Coreth, E., Questões Fundamentais de hermenêutica. SP: EPU, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973, p. 101 (Obra que siglamos do
seguinte modo: QF).
348 “Sua forma primitiva aparece no diálogo de homem para homem; entretanto, a mesma estrutura vale analogicamente de todas as outras
formas da compreensão. Devemos abrir-nos ao outro, para entender o sentido de suas palavras. Com isso, tomamos, por um lado, esse
sentido dentro do próprio mundo de compreensão, a partir do qual o compreendemos; por outro lado, abrimos e ampliamos esse mundo
pela percepção compreensiva de novos conteúdos e relações de sentido. No diálogo, mantemos nossa compreensão aberta, para enriquecê-la
e corrigi-la. Isso, porém, só é possível olhando-se para a coisa que se há de compreender. A compreensão de um enunciado no diálogo
somente se fará, se olharmos juntos para a coisa (...) A visão da coisa proporciona a compreensão do enunciado, o qual, por sua vez,
possibilita uma compreensão mais plena da coisa. De novo, um elemento condiciona e medeia o outro. Compreensão linguística e
compreensão da coisa mostram uma relação mútua, na qual um elemento tanto condiciona como pressupõe o outro, determinando-o e
desenvolvendo-se a si mesmo nele. Eis, de novo, um acontecimento de mediação circular ou que progride em forma de espiral”. Id., ibid., p.
102-103.
349 “(...) própria da compreensão como um acontecimento vivo. Não é um sujeito puro e autônomo, e muito menos um sujeito absoluto, que
está diante de uma objetividade pura, concebida isenta de um sujeito. O sujeito concreto já é em si mesmo condicionado e marcado por seu
mundo e por sua história; nesse sentido, já é ‘objeto’ de seu mundo, antes de poder tornar-se ‘sujeito’ dele. (...) Nosso ‘mundo’ não é apenas
um mundo determinado empiricamente e condicionado transcendentalmente, mas também, ao mesmo tempo, um mundo marcado
historicamente e interpretado linguisticamente, logo já muitas vezes ‘mediado’”. Ibid., p. 103.
350 Heráclito, Diels-Kranz, 22 B 103, ap. Reale, G., op. cit., p. 66.
351 Schmidt, K., “Der hermeneutische Zirkel”, Die Pädagogische Provinz; Unterricht und Erziehung, Das Selbstverständnis des modernen
Menschen, v. 21, n. 1/2, p. 474, 1967.
355 Tietz, U., Hans-Georg Gadamer zur Einführung. Hamburg: Junius, 1999, p. 51.
363 Coreth, E., “Hermeneutik und Metaphysik”, Zeitschrift für Katholische Theologie, v. 90, m. 1, p. 425, 428 e 430 (respectivamente), 1968.
365 Lorenzen, Konstruktive Wissenschaftstheorie, p. 20, ap. Bolten, J., “Die hermeneutische Spirale”, Poetica, v. 17, n. 86, p. 359, 1985.
375 Adorno, T., Teoria Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1970, p. 98. De acordo com Adorno, “o fenômeno do fogo de artifício que, por
causa do seu caráter efêmero e enquanto divertimento vazio, dificilmente foi julgado digno de consideração teórica...”.
376 Em termos poéticos vale retomar, de M. Quintana, Da Eterna Procura: “Só o desejo inquieto, que não passa/ Faz o encanto da coisa
desejada.../ E terminamos desdenhando a caça/ Pela doida aventura da caçada”. In Poesias, 9. ed, São Paulo: Globo, 1994, p. 120.
CAPÍTULO III
Meu próprio esboço hermenêutico, segundo seu objetivo filosófico básico, não diverge muito da convicção de que somente no
diálogo chegamos às coisas. Somente quando nos expomos à possível concepção oposta, temos chances de ultrapassar a
estreiteza de nossos próprios preconceitos378.
A fim de situar melhor a centralidade do diálogo como o lugar apropriado para a hermenêutica
filosófica acontecer – enquanto experiência da linguagem –, retomemos a afirmação de Gadamer, em VMI,
segundo a qual “somente na terceira parte ocorre o que na verdade sempre se tem em vista, a expansão à
linguagem e ao diálogo...”379, o que corrobora nossa tarefa para explicitá-lo. Só é possível filosofar na e
por meio da linguagem cujo emprego “não é de modo algum como o uso de algo. Vivemos em uma
linguagem como em um elemento, como o peixe na água. No contato em forma de linguagem e em tudo
que chamamos de diálogo, nós procuramos as palavras. Elas nos ocorrem, e chegam até o outro ou não o
atingem. Aquilo que se quer dizer torna-se mais e mais presente e familiar aos participantes do diálogo
na troca das palavras”380. Esta é, por assim dizer, a metodologia, o modo mais apropriado de a
hermenêutica filosófica efetivar-se.
Há uma intercambialidade na totalidade omniabrangente das dimensões essenciais da
hermenêutica filosófica gadameriana: “história, linguagem, diálogo e jogo: todos eles são – e isto é o
decisivo – dados intercambiáveis”381. Trataremos de explicitar “por que a linguagem e o diálogo podem
tornar-se dados intercambiáveis. Contra quem se dirige a ênfase dada à essência dialógica da linguagem?
Esta acentuação dirige-se, sem dúvida, contra a dominação da lógica locucional na filosofia ocidental”382.
Concentrar nossas atenções sobre o diálogo como o modo mais apropriado de a hermenêutica filosófica
efetivar-se significa dar continuidade, concentricamente, ao que desenvolvemos anteriormente. Mais que
uma mera contraposição ao método, aprofundaremos a dimensão segundo a qual a hermenêutica é,
desde suas origens mais remotas – e deveria ser –, dialógica, com exigências e condições próprias de uma
metodologia.
Com a experiência hermenêutica, com o jogo, com o círculo, Gadamer procurou destronar a
absolutização da subjetividade moderna no processo do conhecimento. Destronamento em que o sujeito é
jogado e se encontra compreendido numa circularidade do conhecimento; afinal, não podemos perguntar
ou querer saber mais sobre o que já não pré-conhecemos, pressupomos ou intuímos. O sujeito não apenas
experimenta novas e outras formas de conhecer, mas as experiencia porque nunca partimos do grau zero
de conhecimento. Talvez Gadamer tenha exagerado no destronamento e até subestimado a importância
da subjetividade moderna. Pelo diálogo é possível ressaltar, mais especificamente, a força do processo
relacional do saber filosófico. No diálogo, o sujeito deve ser visto e assumido em sua real proporção com
relação à alteridade, com a liberdade que conquistou na modernidade, em meio aos condicionamentos
existenciais e históricos.
O modo próprio de ser da linguagem, da hermenêutica filosófica, pode ser representado pelo
jogo, pelo círculo hermenêutico, mas possui seu modo mais apropriado de realizar-se no diálogo.
Gadamer apenas indicou isso ao final de VMI, sem aprofundar, tanto que, nas últimas páginas dessa obra,
volta a falar do jogo e não do diálogo. O diálogo mostra melhor a dimensão do processo relacional do
saber, enquanto o jogo e o círculo hermenêutico ressaltam a subjetividade afetada daquele que joga ou
compreende compreendendo-se circularmente.
A linguagem não se realiza em enunciados, mas como diálogo, como a unidade de sentido, que se constrói a partir da palavra e
da resposta383.
desapareceu a arte do diálogo? Não observamos na vida social de nosso tempo uma crescente monologização da conduta
humana? É um fenômeno geral de nossa civilização que se relaciona com o modo de pensar técnico-científico da mesma? Ou é
uma decidida rejeição de toda vontade de consenso e a rebelião contra o falso consenso reinante na vida pública, a que outros
chamam de incapacidade para o diálogo?384.
experiências humanas fundamentais não saber perceber a tempo o que sucede no outro, não ter o ouvido atento o bastante para
‘ouvir’ seu silêncio e seu enrijecimento (Sichversteifen). Ou também ouvi-lo mal (...) O não ouvir e o ouvir mal se produzem por
um motivo que reside no próprio indivíduo. Só não ouve, ou em seu caso ouve mal, quem permanentemente se escuta a si
mesmo, aquele cujo ouvido está, por assim dizer, tão cheio do alento que constantemente se infunde a si mesmo ao seguir seus
impulsos e interesses, que não é capaz de ouvir o outro400.
Nesse conjunto, afirmamos que não pode ser considerado um autêntico filósofo quem diz: “não
quero te escutar” ou “não me interessa o que tu queres dizer”. O entrave dialógico da incapacidade
objetiva reside no fato de que “a linguagem comum entre as pessoas vai se degradando mais e mais à
medida que nos habituamos à situação monologal da civilização científica de nossos dias e à técnica
informativa de tipo anônimo que esta utiliza”401. Não podemos ignorar o fato de que há circunstâncias
sociais objetivas que podem conduzir a um atrofiamento da linguagem dialógica, produzido, por
exemplo, pelos meios de comunicação social.
O abuso da linguagem é um obstáculo dialógico contra o qual Wittgenstein investiu. O abuso
ocorre por não darmos a devida atenção ao sentido próprio de cada palavra empregada em diferentes
contextos ou quando não prestamos atenção às diferentes nuanças das palavras ou suas expressões
metafóricas, como descreve J. Locke402. Trata-se de uma repetição impensada da linguagem.
Outro empecilho do diálogo é a alienação social e política. Pensemos sobre o significado da
expressão “sempre foi assim...”, empregada nas mais diversas situações. Nesta expressão pode estar
impressa uma alienação que emperra o diálogo hermenêutico. A alienação consiste em empregar e repetir
palavras e expressões que não constituem nem representam a realidade como tal.
O dogmatismo e o ceticismo também entravam o desenvolvimento do diálogo. O dogmático,
satisfeito com seu conhecimento, não quer saber mais. Trata-se da posição oposta à docta ignorantia,
segundo a qual só deseja saber quem sabe que não sabe. A atitude dogmática não se preocupa com a
justificação do saber. O ceticismo sufoca o desejo e a capacidade de saber ao afirmar que é impossível
conhecer.
Paralisa o movimento do diálogo quem não entra no jogo, ou quando convidados a dialogar, não
nos dispomos a isto. Nesse caso, não acompanhamos efetivamente as questões, os problemas levantados
pelo outro, que constituem a “coisa” do filosofar. Na atitude não dialógica não se leva a sério, por temor
ou petulância, o embalo do diálogo que nos convida a sair de nós mesmos, que nos leva a pôr às claras
nossas posições pessoais acerca dos conceitos e pré-conceitos filosóficos, bem como da nossa própria vida.
Essa postura epistêmica dicotomiza a vida do pensar, própria de quem se limita a olhar o jogo da
existência como um espectador. Já o diálogo autêntico exige participação efetiva dos parceiros do diálogo.
Quem não se dispõe a mudar seu ponto de vista – e inclusive sua ação – não pode dialogar. No máximo,
como no caso das ditaduras, só fala, só comanda, só diz ou só obedece e executa as ordens.
Desde sempre a filosofia sofre da tentação – expressa de forma sintética e expressiva por R.
Descartes no final de sua primeira meditação – de ceder aos encantos da preguiça intelectual. Embora a
afirmação que se segue se aplique ao duro exercício da dúvida constante, aplicamo-la ao exercício
filosófico:
Mas esse desígnio é árduo e trabalhoso e certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo de minha vida ordinária. E,
assim como um escravo que gozava de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar de que sua liberdade é apenas um
sonho, teme por ser despertado e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado, assim eu reincido
insensivelmente por mim mesmo em minhas antigas opiniões e evito despertar dessa sonolência, de medo de que as vigílias
laboriosas que se sucederiam à tranquilidade de tal repouso, em vez de me propiciarem alguma luz ou alguma clareza no
conhecimento da verdade, não fossem suficientes para esclarecer as trevas das dificuldades que acabam de ser agitadas403.
Um diálogo sempre deixa marcas em nós (...) O diálogo possui uma força transformadora. Quando acontece um diálogo, algo
fica em nós, e algo que nos transforma404.
é correto dizer que os parceiros do diálogo se adaptam uns aos outros; antes ambos vão entrando, à medida que acontece o
diálogo, sob a verdade da própria coisa, e é esta que reúne numa nova comunidade. O acordo no diálogo não é somente uma
mera representação e um impor do próprio ponto de vista, mas uma transformação rumo ao comum, a partir de onde já não se
continua sendo o que era420.
Enquanto processo, o diálogo procura chegar a um acordo que não precisa ser definitivo nem
absoluto, pois “faz parte de todo verdadeiro diálogo o atender realmente ao outro, deixar valer os seus
pontos de vista e pôr-se em seu lugar, e talvez não no sentido de que se queira entendê-lo como esta
individualidade, mas sim no de que se procura compreender o que ele diz. O que importa que se acolha é
o direito de sua opinião...”421. Acordo não significa necessariamente adesão ou submissão ao outro, mas
aquilo que surge no diálogo. Acordo sobre a compreensão que se tem acerca do que o outro diz ou quer
dizer, pensa ou quer expressar, faz ou quer fazer, mesmo que um parceiro discorde do outro.
O objeto da hermenêutica constitui-se de todas as coisas sobre as quais é possível falar, todas as
coisas que podem tornar-se linguagem. Assim, seu objeto não é nem está na margem oposta ao método,
mas se constitui em uma terceira margem que surge, no diálogo sobre algo entre parceiros, como algo que
os afeta e os leva a se comprometer uns com os outros.
O objeto mais importante no diálogo não é sobre o que se trata, mas o parceiro nele envolvido,
pois quem pergunta é perguntado, quem responde responde sobre si mesmo. Na pergunta como na
resposta dialógica, o objeto mais importante não é a coisa sobre a qual se trata, mas os parceiros do
diálogo. A pergunta dialógica difere da pergunta destinada a obter uma informação. A pergunta por uma
informação não atinge – necessariamente – o outro nem afeta quem pergunta ou ouve uma resposta. No
diálogo autêntico, o interrogado é sempre solicitado a dar uma resposta prático-argumentativa. O diálogo
hermenêutico não possui um objeto único e delimitável, seja porque o real é mais que método em sentido
estrito, seja porque nele está implicado o jogo da liberdade entre os parceiros, seja porque ele é finito e
histórico.
Nem o sentido, nem o acordo, nem a experiência, nem a linguagem são objetos exclusivos da
hermenêutica, mas tudo o que pode vir a ser palavra, linguagem, constitui seu objeto. O tema do sentido
da vida e das decisões justas, que nos torna solidários uns com os outros, interessando-nos a própria
essência da coisa, isto é, o que para todos é o bem comum, uma vida justa e feliz, constitui objeto
privilegiado da hermenêutica filosófica. Parece que o pressuposto, o pano de fundo, o objeto da
hermenêutica de Gadamer – o que nós ratificamos – é a noção do bem comum concebido e apregoado
pela pólis grega e atualizado para nosso tempo na e pela linguagem.
Um traço fundamental do diálogo, como do jogo, é sua impossibilidade de determinação final
prévia, pois o diálogo é “aquilo pelo qual a linguagem como linguagem realmente vive e no qual ela
percorre toda a sua história de formação. Somente pelo fato de que seres humanos falam uns-com-os-
outros há linguagem”422, mas não como material objetificável ou determinável previamente.
Normalmente falamos que conduzimos (führen) bem um diálogo. Contudo, quanto mais
autêntico é o diálogo, tanto menos os parceiros podem direcioná-lo arbitrariamente. O diálogo autêntico
não pode ser conduzido voluntariamente segundo interesses particulares dos parceiros, assim como se
conduzem cavalos com rédeas. Embora haja uma direcionalidade na condução do diálogo, aqueles que
dialogam são mais dirigidos que condutores do espírito dialógico. Não podemos antecipar
teleologicamente o que acontecerá e produzirá um diálogo. Dizer que um diálogo foi bom significa
afirmar que ele tem “seu próprio espírito e que a linguagem que nele discorre leva consigo sua própria
verdade”423. Deveríamos defendê-lo em sua possibilidade de verdade própria contra a submissão às
regras de uma lógica apodíctica.
O diálogo possui sua liberdade e causalidade própria; compreende, por um lado, a criatividade
e, por outro, a historicidade. Ele “pode se desenvolver ‘a partir de si mesmo’; defende-se contra uma
condução demasiado rígida, precisa de sua liberdade própria. Inclusive até casualidade. Um diálogo não
pode ser forçado. Em sua independência pode até colocar exigências aos participantes”424. Não estamos
afirmando que ele é ilógico; antes possui uma lógica própria, em que as regras do diálogo conjugam-se
com a liberdade e a criatividade humanas.
O diálogo bem-sucedido possui o caráter de acontecimento e é considerado “produtivo
justamente à medida que não depende da consciência controlada e da antecipação prognosticada dos
participantes. Justamente no inesperado, na abertura de possibilidades insuspeitadas de compreensão, a
lógica do diálogo revela sua potência criativa”425. Nele, na verdade, vem à linguagem algo que não é
esperado, e, nesse sentido, o dialogar constitui um risco para os parceiros, uma vez que escapa ao
controle da consciência.
Com o diálogo, recupera-se a força do pensamento dialético, que não pode ser dirigido pela
razão anônima. O princípio do diálogo é o princípio fundacional da hermenêutica, que permite
desmascarar as ilusões de uma ilustração autopossessiva que não reconhece os limites da consciência de
si. Com o diálogo hermenêutico superamos o ponto de partida da individualidade metódica, que
instrumentaliza o acontecer comunicativo de sentido, revelando-se autoimplicativo. A racionalidade que
percorre os meandros do diálogo possui os traços da experiência do jogo, totalmente diferente da
pretensa atitude da razão anônima. O diálogo só existe enquanto vivência, não enquanto abstração. Por
isso é irredutível à epistemologia ou à lógica apofântica. O diálogo, na perspectiva ontológica, consiste em
uma forma de realização antes da própria linguagem que da subjetividade isolada; “o diálogo com o
outro, suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão e também seus mal-entendidos são uma espécie
de ampliação de nossa individualidade e uma pedra de toque do possível acordo a que a razão nos
convida”426. Trata-se de um saber ontológico, porque é autoimplicativo, cujo pano de fundo é a bondade.
No diálogo hermenêutico não se impõe a opinião própria sobre a do outro, nem se monologiza,
tampouco se agrega a opinião de um à do outro ao modo de soma, mas o dialogar transforma ambos.
Assim, “a coincidência, que não é já minha opinião nem a tua, mas uma interpretação comum do mundo,
possibilita a solidariedade moral e social. O que é justo e se considera tal reclama por si mesmo a
coincidência que se alcança na compreensão recíproca das pessoas”427. Nessa perspectiva, “o parceiro não
‘dá’ (a rigor) resposta, ele ‘é’ resposta”428, uma vez que, ao dialogar, ele não se exclui (como é o caso do
conhecimento objetivista ou subjetivista) do processo dialógico.
Compreender-se no mundo “significa compreender-se-um-com-o-outro. E compreender-se-um-
com-o-outro significa compreender o outro. E isto deve ser entendido moralmente, não logicamente. Esta
é a tarefa humana mais difícil”429. Diferentemente do monólogo, no diálogo precisamos nos confrontar
com o diferente quanto ao modo de ser e de pensar, o que constitui outra lógica, mais ampla, em tudo
diferente da lógica carnapiana, por exemplo.
O que nos conduz é o conhecer preconceitualmente condicionado pelo outro (pessoa, texto,
tradição). Desse modo, a verdade que emerge no diálogo hermenêutico apresenta-se como uma moral (um
modo universal de pensar e de agir). Isto implica que é na relação com o outro e na instituição do nós que
vivenciamos nossa própria particularidade em uma contínua transformação (pessoal e social), que não é
autoanulação.
O diálogo constitui-se no intercâmbio entre pergunta e resposta, palavras e sentenças. Fazem
parte dele a irrepetibilidade das perguntas que se colocam e suas respostas. Um diálogo perde sua vida
(seu “espírito”) no momento em que alguém não acompanha as palavras do outro, não responde ou
anula o que o outro afirma. Então,
já se foi o espírito específico, leve, quase dançante, no qual um diálogo move-se por si mesmo, quando lhe sopra um vento bom.
Para onde ele sopra? Nós o sabemos: rumo ao consenso, para o que, ao que parece, somos feitos como seres que pensam.
Entendimento com o outro – e entendimento conosco mesmos, assim como os seres vivos que não pensam desde sempre estão de
acordo consigo mesmos (...) O transcurso de um diálogo é, antes, um acontecimento que, por sua própria natureza, não se presta
a ser registrado em um protocolo430.
É possível caracterizar o diálogo hermenêutico a partir do jogo, que não pode ser concebido
exclusivamente a partir da consciência do jogador e que “é na realidade um processo dinâmico que
engloba o sujeito ou sujeitos que jogam. (...) A fascinação do jogo para a consciência ludente reside
justamente nesse sair para fora de si para entrar em um contexto de movimento que desenvolve sua
própria dinâmica”431. Aqueles que se fecham à possibilidade de jogar ou que querem determinar o rumo
do jogo não jogam – o que se aplica igualmente ao diálogo –, não filosofam. A natureza do jogo pede que
fiquemos impregnados de seu espírito de ligeireza, de liberdade obtida, o que “é estruturalmente afim à
natureza do diálogo (...) O modo de entrar em diálogo e de deixar-se levar por ele não depende
substancialmente da vontade reservada ou aberta do indivíduo, mas da lei da coisa mesma que rege o
diálogo, provoca a fala e a réplica e no fundo conjuga ambas. Por isso, quando acontece um diálogo, nos
sentimos ‘realizados’”432.
Em lugar de fixar uma vez por todas, por meio de critérios imutáveis, de um recurso a uma intuição ou evidência qualquer, o
que é dado ao sujeito e o que é aqui interpretado por ele, diante do que pode se submeter e o que se explica por sua tomada de
decisão, o que é absoluto e o que é relativo, o que constitui o sistema com suas regras e o que permite transcender e reformular
este sistema, a existência de uma pluralidade de sujeitos racionais, e de uma abordagem diferenciada dos problemas, permitirá
entrever uma dialética resultante de um diálogo que confronta as diversas opções e as diversas perspectivas439.
A hermenêutica dialógica não é uma forma de conhecimento para dominar. O diálogo não tem
como finalidade primeira e última a redução do real a um conceito definitivo e absoluto, nem
instrumentaliza o processo filosófico.
O diálogo, diferentemente da dialética sintética, não se concebe como uma categoria formal, mas
como um modo de saber e ser que supõe sempre o envolvimento do sujeito no processo do filosofar.
Assim sendo, quando cessa o processo, o sujeito não pode simplesmente desvencilhar-se do método,
como alguém que dispensa uma escada após usá-la para subir num prédio. A metafísica da pura
subjetividade do idealismo metodológico só poderá ser superada pela hermenêutica dialógica, que não
esgota a possibilidade do perguntar e do responder. O diálogo hermenêutico, muito mais que uma
categoria formal, é um princípio ontológico, constituinte e constituidor da filosofia.
O encontro com o outro, os acontecimentos históricos, os textos nos remetem a uma verdade que
não pode ser abstraída de nossa natureza contingente nem pode ser identificada com a certeza cartesiana.
“O princípio do diálogo permite, por um lado, a crítica ao formal-subjetivismo e, por outro, a inserção do
ideal de objetividade da investigação científica no espaço de uma estrutura ontologicamente mais
fundamental, como a da experiência histórica”440. O desenvolvimento do diálogo como espaço, lugar,
modo de ser da hermenêutica filosófica
é uma radicalização da inquietude originária por atender à experiência filosófica como esforço continuado cujas raízes não estão
em uma preocupação social por instituir-se como ‘ciência’. A hermenêutica se oferece como paradigma de filosofia que nasce
discutida, humanizada e preocupada mais pelo homem como ser que faz perguntas que como ser que institui respostas441.
Não se rechaça o ideal da ciência, mas, antes, valoriza-se e procura-se alargar o estreitamento
que a filosofia padece com ele. A hermenêutica preocupa-se mais com a atitude do perguntar que com
suas respostas acabadas, revitalizando assim o filosofar. A partir da transformação da dialética em
diálogo, este não conduzirá “necessariamente em direção a uma finalidade preexistente, por um
desenvolvimento uniforme e necessário, mas deixa um certo lugar à liberdade humana, com suas
possibilidades de transcender todo sistema, toda totalidade dada”442.
A partir da transformação da dialética em diálogo, compreendemos o “grande debate filosófico,
não como a abordagem de uma razão pré-constituída, mas como uma arbitragem entre posições sempre
mais compreensivas e englobantes, que exprimiriam cada vez uma visão de homem, de sociedade e de
mundo, que refletiriam as convicções e as aspirações do filósofo e de seu meio de cultura”443. Nesse
sentido, a filosofia – em oposição a um credo – é sempre relativa.
Sem desmerecer a importância da dialética, o diálogo hermenêutico ressalta a importância do
filosofar situado existencialmente, o que evoca a concepção da Lebenswelt husserliana, assim como o
Dasein heideggeriano.
O diálogo hermenêutico acontece na relação entre parceiros, não com espectadores passivos,
interlocutores indiferentes ou ditadores. Numa conversa, falamos de uma relação entre interlocutores; no
diálogo, falamos de uma relação entre parceiros. Na conversa, há uma troca de informações, de conceitos;
a relação que os participantes estabelecem entre si não visa chegar à raiz as coisas. Não há uma
preocupação específica em aprofundar o tema que os leva a conversar. A conversa não versa
necessariamente sobre questões e soluções antropológicas, éticas ou políticas. Já no diálogo, os parceiros,
movidos pela paixão de saber mais, melhor e de outra forma, comprometem-se com suas afirmações
enquanto suas perguntas e respostas estão imbricadas com seu modo de viver. Estabelecem uma relação
de compromisso com a procura de um saber mais universal, portanto mais ético.
Diferente da pergunta-resposta informativa, para que aconteça um diálogo hermenêutico os
parceiros devem “entregar-se a ele”. Contudo, isso ainda não é suficiente, pois o diálogo vai sempre além
de si mesmo, exigindo também que os parceiros se desdobrem nele. Ora, desdobrar-se no diálogo não
pode ser exigido ou predeterminado por ninguém. “Neste sentido, no espaço da comunicação também
um pedido de informações pode colocar exigências; por exemplo, exigências quanto à exatidão e precisão
da resposta, à escrupulosidade e assim por diante. Um diálogo, no entanto, não se pode ‘cumprir’; além
disso, ele nunca é uma ‘execução’. O agir no diálogo tem um outro caráter de realização”444, como é o
caso da atividade poética, por exemplo, porque nele é necessário assumir o movimento autoimplicativo
próprio e imprevisível.
A necessidade de desdobrar-se no diálogo mostra-se também no fato de que não podemos nos
encontrar constringidos ou podados para atuar. Ao diálogo
é inerente uma espécie de transcendentalidade; isto é, ele não se esgota no que foi dito em seu transcurso. A soma do que foi dito
ainda não constitui um diálogo. Também o objeto de que se fala ainda não decide se o vaivém das palavras já é um diálogo ou
não. Do mesmo modo a extensão e a duração do falar um com o outro ainda não constituem o diálogo; pode ser uma simples
‘conferência’, uma ‘conversa’, uma ‘discussão’ ou um ‘acerto’445.
não exclui um ‘depois-do-outro’, mas até constitui o pressuposto necessário para um verdadeiro ‘depois-do-outro’. Este real ‘um-
depois-do-outro’ se manifesta no deter-se em dar espaço para o outro e no ouvi-lo. Mas seria ver muito limitadamente se
quisesse compreender o deter-se só externamente no sentido de ‘parar’. Antes, é preciso no próprio falar ‘ouvir’ o outro. O falar
é, pois, em si um ouvir. Isto se manifesta, por exemplo, no fato de que se pode passar por cima de um participante no diálogo
sem lhe tomar a possibilidade de falar e intervir na conversa. Como se diz, ele é ‘ignorado’. Que aqui ouvir e falar é a mesma
coisa, expressa-se no fato de que ele não é ouvido ‘silenciosamente’. O não ouvir é ao mesmo tempo um calar459.
Quem ouve o outro ouve sempre a alguém que tem seu horizonte próprio (...) em todos os lugares estamos ante o mesmo
problema: nós precisamos aprender que no ouvir ao outro se abre o verdadeiro caminho no qual se forma a solidariedade460.
Não ouvir equivale a não querer saber o que o outro tem a dizer, significa deixar de colocar
perguntas. A relação em forma de rede entre o ouvir e o dizer dialógicos difere da construção linear que
se dá entre a pergunta e a resposta informativas. A simultaneidade do falar-um-com-o-outro no diálogo
fundamenta-se na simultaneidade e na unidade interna do ouvir e do dizer. A relação entre dizer e ouvir
já está presente na origem mítico-etimológica da hermenêutica, onde, para compreender e cumprir a
vontade dos deuses, o consulente necessitava ouvir o oráculo.
Gadamer acenou para a importância do ouvir com vistas à compreensão e fê-lo basicamente em
função da determinação do conceito de pertença. Retomaremos e ampliaremos o que ele desenvolveu,
conferindo ao ouvir mais importância e “autonomia”, não em função da compreensão stricto sensu, mas
como exigência e condição central da hermenêutica filosófica. Embora pudesse fazer parte da reflexão
precedente, devido à importância e atualidade que contém e que lhe atribuímos, desenvolveremos essa
dimensão com a acuidade que merece. O ouvir é uma dimensão que esteve sempre latente na filosofia,
mas não foi levada a sério enquanto filosófica.
A efetivação da hermenêutica filosófica no diálogo não se esgota nos processos de comunicação
do escrever, do falar, do representar. Na opinião de Gadamer, cada escrito, “para ser compreendido,
requer uma espécie de trânsito ao ouvido interior”; a seus alunos ele costumava dizer: “Deveis aguçar o
ouvido, haveis de saber que quando levais uma palavra à boca não utilizais à vontade uma ferramenta
qualquer que, se não vos serve, lançais ao canto, mas que na verdade vos tem determinado em uma
direção de pensar que vem de longe e que vai muito além de vós”461. A unidade entre ouvir e falar, que
não se reduz ao mero intercâmbio informativo, é condição central de possibilidade da pergunta dialógica.
O todo no diálogo é condicionado e emerge da tensão unitária entre ouvir e falar que ocorre entre os
parceiros ou o parceiro e suas circunstâncias.
Embora pouco desenvolvido no universo filosófico, “muito se tem refletido em todos os tempos
sobre o ouvir, precisamente na tradição judaico-cristã, onde Deus não se mostra, mas onde se ouve a sua
palavra e a partir desta o mundo surge”462. Também em outras tradições, como, p. ex., na tibetana, o
ouvir é concebido como princípio de vida ao se pregar a libertação através do ouvir463.
Em 1 Samuel 15, 22.23b, encontramos uma espécie de síntese da religião judaica: “Sim, ouvir é
melhor do que o sacrifício, prestar atenção é melhor que a gordura dos carneiros”, e por isso Salomão não
pediu vida longa, nem riqueza, nem poder sobre os inimigos, mas suplicou: “Dá ao teu servo um coração
que ouça, para que eu possa governar teu povo e para discernir entre o bem e o mal, pois quem poderia
governar teu povo, que é tão numeroso?” (1 Reis 3,9). A religião bíblica “não é uma imaginação do divino,
mas a percepção da história como palavra, o ouvir do discurso profético de homens e mulheres e o
aprender a prestar atenção à doutrina dos sacerdotes e dos mestres da sabedoria”464. As palavras de
Jeremias 7, 22-23 atestam isso: “Porque eu não disse nem prescrevi nada a vossos pais, no dia em que vos
fiz sair da terra do Egito, em relação ao holocausto e ao sacrifício. Mas eu lhes ordenei isto: ouvi a minha
voz, e eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo". Em forma discursiva, de sentenças, de ameaças, os
profetas pedem e exigem incessantemente que o povo ouça a palavra de Deus. Ele era para ser mais
ouvido que adorado em forma de imagem, o que é atestado pelo comentário sobre Deuteronômio 4: “Vós
não vistes nenhuma imagem de Deus, mas ouvistes suas palavras. Na religião bíblica não se trata da
mediação de uma imagem, mas de ouvir e cumprir a vontade de Deus”465. Podemos sintetizar a
centralidade do ouvir na constituição identitária da religião judaica pela oração central e primeira do
judaísmo, que é: “ouve Israel, teu senhor nosso Deus, o senhor é o único” (Deuteronômio 6,4) (grifo nosso).
Aristóteles ressaltou, no começo da metafísica, a importância e centralidade do olhar por facultar
a maioria das distinções que realizamos. Contudo, alhures ele “atribui a prioridade ao ouvir (De Sensu).
De fato, nosso ouvir pode ouvir a linguagem, e através disso ele pode não só revelar a maioria das
distinções, mas antes todas as distinções possíveis. A universalidade do ouvir é uma indicação dessa
universalidade da linguagem”466. Esta não é a universalidade própria das ciências, mas pertence,
essencialmente, à experiência hermenêutica.
Conhecemos o fenômeno da compensação, que pode ocorrer entre os sentidos. A pessoa que vê
com dificuldade ou não enxerga treina normalmente mais seu ouvido. Para além dessa relação simples, as
relações entre ouvir e olhar são muito mais complexas. Certamente, “quando falamos de ouvir e olhar em
relação ao ler, não se trata de que se precise olhar para poder decifrar o escrito, mas de que se precisa
ouvir o que o escrito diz. Poder ouvir significa poder compreender”467. Diferentemente dos animais –
alguns escutam melhor que outros –, as relações entre ouvir e olhar “revelam no ser humano, desde
sempre, sua distinção especial. Pois ouvir não significa escutar, mas ouvir significa ouvir palavras”468.
Na afirmação de J. Grimm, “o olho é um senhor, o ouvido um escravo, aquele olha em redor,
para onde ele quer, este acolhe o que a ele é levado”469, encontramos sintetizados os traços da tirania470
do olhar desenvolvidos no Ocidente. Presente desde o início na literatura judaica, contudo, na filosofia
nunca teve um lugar reconhecido; pois, “nos trilhos da perspectiva pós-cartesiana das ciências naturais, o
mundo só existe enquanto objetificado, isto é, colocado à disposição de uma racionalidade instrumental.
O que escapa do olhar objetificador do cientista parece não existir como tema de pesquisa, já que o
instrumentário metodológico não providencia nenhum acesso a tais ‘realidades’”471.
Não se trata de suplantar o sentido e a importância do olhar na filosofia, mas de problematizar,
reconsiderar e propor outra dimensão complementar à “tirania do olhar”. Não excluímos o olhar
enquanto sentido privilegiado da mediação do mundo real, mas realçamos a universalidade e
receptividade própria do ouvir como outro modo de perceber nosso próprio passado e novas
perspectivas (de vida) para o presente e o futuro. Em face às restrições do olhar objetificador das “ciências
‘cartesianas’, o diálogo exige o ouvido como seu órgão mediatizador por excelência, isto é, seu principal
sentido, abrindo, assim, um novo espaço para a compreensão não apenas dos fatos objetivos, mas,
também, do próprio homem que está envolvido na criação destes fatos”472, desenvolvidos, p. ex., extensa
e intensivamente na tradição oral do povo judeu ou dos povos indígenas. Na transmissão oral “ocorre
uma interação entre narrador e ouvintes. De um lado, ela consiste em que o narrador muda a narração ou
narra de outra maneira de acordo com a composição do público...”473. À hermenêutica filosófica cabe a
tarefa de pensar e articular o ouvir e o olhar, o acolher e o objetivar, o receber e o admirar, de modo
relacional e complementar.
Ao ouvir, quem ouve, de alguma forma, é sempre interpelado, mesmo que não responda. Quem
é interpelado “tem que ouvir, queira ou não. Não pode afastar seus ouvidos do mesmo modo que, ao
olhar algo, se afasta olhando para uma direção determinada”474, para outra direção. Para não ouvir,
precisamos usar as mãos (para tapar os ouvidos), ao passo que, para não olhar, basta um ato consciente-
voluntário e/ou involuntário para que não olhemos determinada realidade. Ou seja, “podemos fechar os
olhos, os ouvidos não. Modificando o axioma básico de comunicação de Watzlawick, poderíamos dizer:
não se pode não ouvir”475. É nessa diferença que reside a grande importância e primazia do ouvir que
constitui o fenômeno hermenêutico. Aristóteles reconheceu que a primazia do ouvir sobre o olhar se
mediatiza pela universalidade do logos, que não elimina uma primazia específica do olhar sobre os outros
sentidos.
A linguagem não se constitui apenas pelo olhar, mas pelo ouvir. Dizemos que não olhamos para
o logos, mas que devemos ouvi-lo para compreendê-lo. Nesse sentido, o ouvir é mais universal que o
olhar, pois “quem ouve” é capaz de ouvir a lenda, o mito, a palavra não escrita. Este é um dos motivos
que nos levou a relatar o mito de Hermes como princípio originário-etimológico da hermenêutica, afinal,
“ouvir naturalmente faz parte de tudo que deve ser linguagem, seja falada, escrita ou secreta”476.
A moral e a literatura surgiram e existiram, originariamente, em forma oral, onde o ouvir
possuía primazia sobre o olhar. A linguagem não é só a linguagem objetiva, sígnica, visível ou legível aos
olhos, mas engloba muitas outras dimensões implicadas no ouvir. A linguagem oral conserva e expressa
a totalidade, a universalidade da realidade, uma vez que nela se conservam a tonalidade e a musicalidade
da voz, dimensões centrais do ouvir. Na tradição judaica, por exemplo, por esse motivo não se podia
descrever nem usar o nome Iahweh – para não o entificar –, porque o nome Javé é inefável e indescritível.
O ato de escrever punha um limite ao sentido e ao significado constituinte do que se nomeava – problema
este que Platão representou no mito da origem da escrita. Ele foi o filósofo que “viveu em um momento
no qual a dimensão da ‘oralidade’, que constituíra o eixo de sustentação da cultura antiga, perdia
importância em favor da dimensão da ‘escritura’, que se tornava predominante”477; em seus diálogos
Sócrates aparece como modelo da cultura fundada sobre a oralidade.
Não poucas vezes falamos da necessidade de ouvir o sentido das coisas. A Ilíada, a Odisseia, a
Torah, os Salmos bíblicos existiam inicialmente na forma de linguagem oral. Eles eram narrados, e o
sentido instaurava-se pelo ouvir, não pelo olhar. “Onde nos defrontamos com literatura, a tensão entre os
sinais mudos da escrita e audibilidade de toda linguagem encontra a sua solução plena. Não se lê apenas
o sentido, mas ouve-se-o”478. Podemos compreender e vivenciar melhor (em geral) um poema, p. ex.,
quando ouvimos alguém declamá-lo – em sua musicalidade o mais próxima possível do original – do que
quando o lemos em silêncio. Há casos em que somente compreendemos um texto quando o lemos em voz
alta e outros em que precisamos dizer em voz alta uma palavra para nos certificar de como devemos
escrevê-la corretamente.
No ouvir está presente um componente de solidariedade. Ouvir é, por assim dizer, um
solidarizar-se com o outro. “Quem ouve o outro, ouve sempre a alguém que tem seu horizonte próprio.
Isso é a mesma coisa entre eu e tu como entre os povos ou entre os círculos culturais e as comunidades
religiosas. Em todos os lugares estamos ante o mesmo problema: nós precisamos aprender que no ouvir
ao outro se abre o verdadeiro caminho no qual se forma a solidariedade”479. Ouvir não significa
autoanular-se, mas assumir uma espécie de compromisso com aquele que está a falar. Quem ouve
realmente sente a necessidade de responder às palavras de outrem, isto é, de comprometer-se com a
palavra do outro para que ocorra o diálogo hermenêutico. Quando afirmo “ouve-me”, isto não significa
apenas “levanta tua antena, aguça os ouvidos (...) mas significa também: por favor, compreende-me;
esforça-te para que, em teu entendimento, te encontres aproximadamente com o meu”480. Não foi por
acaso que Martim Lutero – bem como todo o movimento protestante posterior – enfatizou a dimensão do
ouvir a palavra em oposição à veneração e à contemplação da imagem.
Há um limite, um término para o ouvir, num diálogo? Esta pergunta objetiva e objeticadora é
frontalmente oposta ao “espírito” do ouvir, assim como do diálogo. O ouvir é ilimitado e requerido como
dimensão constitutiva do diálogo desde o momento em que emerge um acordo, determinado consenso, e
os parceiros se dão por satisfeitos com seu dialogar, até mesmo quando, no final, tenham posições
claramente contrárias. Gadamer afirma:
Eu diria, do ponto de vista hermenêutico, que não há nenhum diálogo que chegue ao fim antes que tenha conduzido a um
acordo real. Talvez se precise acrescentar que por isso, no fundo, não há diálogo que realmente chegue ao fim, porque um
verdadeiro acordo, um acordo inteiramente completo entre duas pessoas contradiz a essência da individualidade. O fato de nós
na verdade não conduzirmos nenhum diálogo até ao fim e frequentemente não chegarmos ao acordo são limitações de nossa
temporalidade e finitude e parcialidade481.
A linguagem é na realidade a única palavra cuja virtualidade nos abre a possibilidade incessante de seguir falando e dialogando
e a liberdade de dizer-se e deixar-se dizer482.
Na hermenêutica a linguagem nunca é um instrumento ou utensílio do pensamento, mas sintetiza a idealidade dos significados e sua
continuidade histórico-existencial com a materialidade do falar e sua fixação escrita. Não é produto humano, mas participa nele, recria-o,
apropria-o, faz seu algo no qual se insere e que, portanto, já não é tão ‘possessivamente’ seu. Neste contexto a existência humana
é resposta continuada e abertura; a dimensão temporal está na constituição da linguagem e, consequentemente, na constituição
do homem. A aprendizagem da materialidade do falar é também o ensinar na idealidade e temporalidade dos significados.
Pensamento e linguagem só podem ser articulados hermeneuticamente a partir do imperativo da finitude497.
objeto, não é, como nas ciências naturais, resultado e ato de objetificação, mas ela nos vem ao encontro e ultrapassa, desde
sempre, nosso querer e agir. A tradição se caracteriza por seu modo de ser linguagem. Ela não é simplesmente um resíduo a ser
investigado e interpretado como um fóssil ou uma relíquia do passado. Em seu bojo algo nos é transmitido, seja na forma de mito
ou na forma de tradição discursiva. Nela, o que nos é transmitido está simultaneamente aí, acontecendo uma coexistência entre
passado e presente. Quem compreende um texto, num dado momento, possui maior liberdade frente ao mesmo, podendo voltar
de novo a si a todo momento, diferentemente da tradição oral, em que há, no ato mesmo do narrar, uma dependência do
‘ouvinte’ em relação ao narrador512
para que uma narração se efetive plenamente. Quando entramos em contato com uma tradição escrita,
não compreendemos apenas algo individual, mas nela toda uma humanidade passada presentifica-se em
suas mais diversas relações com o mundo. Ler compreensivamente um texto não é uma atividade
arqueológica, nem teleológica asséptica, mas significa tomar parte nele.
O modo de ser linguagem, em sua forma escrita, é autoalheamento, e sua transposição, ao lê-la, é
a mais elevada tarefa da compreensão do que o texto diz à linguagem. A leitura de um texto é sempre
histórica e concomitantemente é um esforço para se distanciar do seu tempo. Compreender o que a
literatura adquiriu e acumulou não significa reconstruir uma vida passada, mas participar do que ela diz,
e nessa atividade o sujeito se experiencia, se projeta e se renova existencialmente. Essa dinâmica de atuar
e padecer com relação ao texto institui o que chamamos de sentido e que poderia ser denominado de
experiência “transcendental”.
A hermenêutica nasceu e se desenvolveu em função da necessidade de compreender os textos
clássicos. Schleiermacher já havia minimizado o “caráter essencial da fixação por escrito com respeito ao
problema hermenêutico quando considerou que o problema da compreensão estava dado também face ao
discurso oral, e talvez na sua plena realização”513. Gadamer mostrou que o psicologismo introduzido por
F. Schleiermacher “cancelou a autêntica dimensão histórica do fenômeno hermenêutico”, por isso
procurou justificar a vantagem metodológica do texto escrito, uma vez que nele o problema hermenêutico
aparece na forma livre do psicologismo. A chamada gadameriana à objetividade em contraposição ao
psicologismo schleiermachiano é correta. Contudo, exacerbou a centralidade, em VMI, da linguagem
escrita como objeto próprio da hermenêutica: “Todo escrito é sempre objeto preferencial da hermenêutica
(...) O horizonte de sentido da compreensão não pode ser limitado nem pelo que o autor tinha
originalmente em mente, nem pelo horizonte do destinatário a que foi escrito o texto na origem”514;
requer antes que seja experienciado, mais que experimentado. O modo de ser linguagem do texto,
enquanto objeto hermenêutico, não se circunscreve à intenção do autor, nem à receptividade por parte do
destinatário, nem à expressão vital do mesmo. O sentido de um escrito efetiva-se fundamentalmente se
for retomado num contexto relacional atual, isto é, se for “aplicado”. A linguagem, enquanto objeto da
hermenêutica, não se circunscreve ao texto escrito, mas a tudo que pode vir a se tornar palavra em suas
mais diversas formas e modos de vida. É uma limitação circunscrever a preferencialidade do objeto da
hermenêutica aos textos escritos, uma vez que tal ênfase reduz o alcance dela, instrumentalizando-a,
perdendo com isso o sentido e universalidade próprios.
Enquanto objeto, a linguagem é constituinte e constituidora, o medium da experiência
hermenêutica. Tanto a hermenêutica quanto a linguagem, enquanto fatos passíveis de investigação, não
se reduzem a objetos empíricos. São irredutíveis a simples objetos, uma vez que “abrangem tudo o que,
de um modo ou de outro, pode chegar a ser objeto”; afinal, “a linguagem não é apenas factum, mas é
também princípio” (grifo nosso)515.
Enquanto princípio, constituinte e constituidor de sentido, a linguagem não é mero meio (Mittel),
instrumento, extrapolando, ampliando a noção de método científico. Exemplo da instrumentalização
metodológica é o que ocorre, p. ex., nas ciências históricas, onde os historiadores elegem determinados
conceitos com os quais classificam a propriedade histórica de seus objetos, sem refletir expressamente
sobre sua origem e justificação. Não se dão conta, muitas vezes, de que a forma escolhida de descrever a
história pode destruir o próprio sentido dela, ao submeterem “a alteridade do objeto aos próprios
conceitos prévios”, por mais imparcialmente que afirmem compreendê-la. Apesar da aparente
metodologia crítica do historiador, ele, como filho do seu tempo, pode estar, mais ou menos, dominado
acriticamente pelos conceitos prévios e pelos pré-juízos espaçotemporais em que se encontra. Tal
ingenuidade torna-se pior quando “começa a tornar-se consciente dessa problemática e se colocar, por
exemplo, a exigência de que na compreensão histórica tem-se que deixar de lado os próprios conceitos e
pensar unicamente nos da época que se trata de compreender”516, como pretendeu o romantismo. Dilthey
realizou isso e se equivocou ao pretender saltar por cima da linguagem: “pensar historicamente quer dizer,
na realidade, realizar a reconversão que acontece aos conceitos do passado quando neles procuramos pensar.
Pensar historicamente implica sempre uma mediação entre aqueles conceitos e o próprio pensar”517. É
impossível negar ou ter presente, lúcida e criticamente, todos os conceitos próprios na
interpretação/compreensão; o ato filosófico consiste em trazer à discussão os pré-conceitos linguísticos,
sem ranços de corrente ou doutrina filosófica.
A linguagem supõe sempre o vínculo com a situação. Enquanto metodologia, a linguagem não
percorre, necessariamente, o caminho rumo à conciliação; filosofar não significa, finalmente, concordar ou
conciliar opostos. “Tal igualdade seria utópica. Compreender significa que eu posso pensar e ponderar o
que o outro pensa. Ele poderia ter razão com o que diz e com o que, propriamente, quer dizer.
Compreender não é, portanto, uma dominação do que nos está à frente, do outro e, em geral, do mundo
objetivo”518. Enquanto caminho do e para o filosofar, a linguagem não anula o sujeito, como ocorre na
lógica metodológica do senhor e do escravo; antes, conserva a subjetividade em sua real proporção de
temporalidade e espacialidade. Como não há linguagem privada, “quem fala uma ‘linguagem’ que
nenhum outro compreende não fala. Falar significa falar para alguém. Linguagem não é algo atribuído a
sujeitos individuais. A linguagem é um nós, no qual estamos encadeados um-com-o-outro e no qual o
indivíduo não tem limites fixados”519. Não havendo linguagem privada520, ela se constitui
dialogicamente, pois “uma palavra que não chega ao outro está morta. Pois o diálogo é com o outro, e
cada palavra necessita no momento concreto do tom correto e irrepetível, para que supere a outra grade
(Gitter), a grade do ser diferente e que chegue ao outro”521.
Somos partícipes da linguagem, o que significa participar de uma tradição que veicula uma
determinada visão de mundo e que condiciona, até certo ponto, nosso modo de agir. Ela “mesma oferece
uma pré-compreensão determinada de mundo, uma compreensão que sempre pode continuar se
formando e modificando, mas que reivindica uma prioridade absoluta diante de atos particulares do
distanciamento, da crítica ou da transformação”522. Desse modo, não é possível produzir um método
extralinguístico – sem as marcas do tempo e do espaço – na e para a filosofia.
Considerando a linguagem do ponto de vista metodológico-hermenêutico, o filosofar é sempre
“uma apropriação do que foi dito, de maneira que se converta em coisa própria”523, o que não é dialético-
sintético, mas dialético-dialógico, onde os distintos polos (parceiros) são ampliados, e não suprassumidos,
e o resultado não é definitivo, mas aberto, uma experiência que continua sempre “dando” o que pensar, o
que dialogar.
A linguagem situa-se no tempo e no espaço. A explicitação da verdade expressa-se como um
acontecimento, como uma experiência da linguagem: “A verdade é a ‘unidade’ da dimensão objetiva e da
dimensão subjetiva. Isto é o que Gadamer expressa mediante o termo ‘acontecer’: a verdade não está aí
propriamente ante nós de uma maneira imediata. É algo que ‘acontece’ na forma de relacionar-nos com as
coisas e na forma em que as coisas interpelam a nós”524. Como nossa apreensão das coisas não se dá de
forma imediata/intuitiva, enquanto seres finitos, filosofamos a partir do médium linguístico na forma
dialógica.
Experienciamos, na linguagem, a insuperável adequação das palavras que usamos às coisas a
que nos referimos ou ao expressarmos nossos sentimentos por meio delas. O jogo linguístico das
metáforas, p. ex., remete à ambiguidade, à riqueza, à inesgotabilidade da linguagem – irredutível a signos
–, como é irredutível a experiência hermenêutica à experimentação. Filosofar significa ampliar e deslocar
nosso horizonte linguístico (metafórico) ao outro sem suprimir o próprio. Nesse caso, negar o próprio
horizonte não significa suprimir, mas participar da linguagem do outro.
A linguagem, enquanto medium universal em que acontece o filosofar, o interpretar como
compreender e este como interpretar, leva-nos a superar a dicotomia metodológica tradicional entre
erklären e verstehen, apropriada, respectivamente, às ciências da natureza e às ciências do espírito. A partir da
relação entre hermenêutica e linguagem, esta é objeto e método constituinte e constituidor próprio da
hermenêutica filosófica, havendo distinção dialético-dialógica, mas não dicotomia entre ambas.
Método, pois, deve ser compreendido como um caminho, uma experiência, em que o mais
importante não é a chegada a um ponto arquimediano claro e distinto, mas o próprio caminho que se
percorre. O fundamental é a experiência que realizamos acerca do sentido da nossa existência, mais que a
construção de um conceito. Realizar algo de acordo com um caminho, como um modo de pensar e de
conhecer, não pode ser reduzido a um itinerário linear de causa e efeito. Antes se trata de compreender o
filosofar como um caminho interminável em que assumimos o saber do quão pouco sabemos sobre o que
presumimos saber e do quanto fica sempre por se saber e dizer acerca do real.
Concluímos nossa argumentação sobre a relação entre hermenêutica e linguagem, retomando a
célebre expressão kantiana: “A ligeira pomba que em fácil voo corta o ar, sentindo ao mesmo tempo a
resistência que este lhe oferece, poderia pensar que em um espaço sem ar voaria melhor”, acrescentando-
lhe, porém, que “esse ar é, precisamente, o que permite o voo. Pois bem, o ar do pensamento é a
linguagem”525. Podemos então afirmar que o modo de ser linguagem é a condição de possibilidade do
filosofar. A linguagem não é só conteúdo, mas é método, não é só a condição de possibilidade do
filosofar, mas a realização e a materialização deste. Com isso entramos no terreno da linguagem da
ciência da linguagem e da linguagem própria da hermenêutica filosófica.
(...) a linguagem não é, como se crê, a vestimenta do pensamento, mas é seu verdadeiro corpo. O pensamento não é nada sem a
palavra526.
Sabemos da dificuldade de refletir sobre a linguagem, pois vivemos, somos e pensamos nela
muito antes de pensarmos sobre ela. Com o intuito de caracterizar melhor a linguagem como princípio da
hermenêutica filosófica, explicitaremos algumas distinções e proximidades entre uma concepção de
linguagem da ciência da linguagem e a linguagem da hermenêutica filosófica.
A ciência da linguagem se coloca a questão de como cada língua está em condições de dizer-se
universal, dada a diversidade de linguagens. As ciências das línguas procuram generalizar determinados
aspectos, eliminando, nessa pretensão de universalidade, as particularidades, as idiossincrasias
linguísticas e as diferentes possibilidades de seu acontecer, uma vez que a linguística parte da premissa
da unidade interna de linguagem e pensamento e só dessa forma pode converter-se em ciência527,
sincronicamente. Exploraremos, en passant, apenas um dos aspectos da ciência da linguagem, no caso, a
semântica, relacionando-a com a hermenêutica. Ambas alcançaram atualidade e reconhecimento entre as
correntes filosóficas atuais; ambas têm como ponto de partida a expressão linguística do nosso
pensamento e, por isso, estão às voltas com a perspectiva universal de conhecimento.
A semântica procura descrever o campo da linguagem a partir de fora, pela observação,
analisando-a como um objeto, e desenvolvendo uma classificação dos comportamentos no trato com seus
signos. Já a hermenêutica procura abordá-las a partir do e no interior da própria linguagem. Ambas,
porém, “estudam com seu próprio método a totalidade do acesso ao mundo que representa a
linguagem”528, a primeira como um espectador objetivo, a segunda como um sujeito envolvido – ao
modo de um jogador – com o objeto em questão.
A contribuição da análise semântica consistiu em descobrir a estrutura global da linguagem e
relacioná-la com os falsos ideais de univocidade dos signos ou símbolos. Além disso, a estrutura
semântica consistiu, em parte, em dissolver a aparência de singularidade que produz o signo verbal
isolado, “mostrando a expressão verbal individual como algo intransferível e não intercambiável”529.
Diferentemente da semântica, a hermenêutica considera a linguagem como um princípio que
“aponta sempre mais além de si mesma e do que diz explicitamente”, isto é, não se esgota nem se
conserva no que expressa, no que verbaliza. Tal perspectiva supõe e evidencia a limitação da objetividade
do que pensamos e comunicamos: “Não é que a expressão verbal seja inexata e esteja necessitada de
melhora, mas, justamente quando é o que pode ser, transcende o que evoca e comunica. A linguagem
leva sempre implícito um sentido subjacente e que perde essa função se explicita”530, o que evoca a
amplitude e a ambiguidade intrínseca da experiência hermenêutica.
A fim de ilustrar que a linguagem não se esgota em si mesma, apofanticamente, Gadamer
distinguiu duas dimensões anteriores e posteriores dela: o não dito na linguagem e, contudo, atualizado por
esta; e o encoberto pela linguagem. Enquanto a semântica move-se fundamentalmente no âmbito do dito, a
linguagem da hermenêutica filosófica não se limita a esse nível de conhecimento.
O não dito na linguagem... Neste caso, evidencia-se “o grande campo da ocasionalidade de todo
discurso e que intervém na constituição de seu sentido”; em uma determinada ocasião é que
experienciamos uma linguagem que constitui o sentido da fala, do discurso, “porque cada enunciado não
possui simplesmente um sentido unívoco em sua estrutura linguística e lógica, mas que aparece
motivado”531. Instaura-se assim o não dito na linguagem.
Outros fenômenos do não dito na linguagem que ilustram a impossibilidade de reduzi-la à
univocidade são, p. ex., “a maldição ou a bênção, o anúncio da salvação dentro de uma tradição religiosa,
(...) o lamento. São os modos de falar que revelam seu próprio sentido porque são irrepetíveis (...) O certo
é que o sentido de todas estas formas de enunciado, desde a maldição até a bênção, é irrealizável se não
recebem sua determinação semântica de um contexto de ação”; essas formas de enunciado possuem a
exigência de ocasionalidade, “porque a ocasião de seu conteúdo se cumpre na sua compreensão”532 em
um tempo e espaço determinados, impossíveis de serem predeterminados.
Outra dimensão da linguagem que atesta sua irredutibilidade à objetificação refere-se ao que
está encoberto por ela. Por exemplo, o caso da mentira, que não é “simplesmente a afirmação de algo falso.
Trata-se de uma linguagem encobridora que sabe o que diz. E por isso a tarefa da exposição linguística no
contexto literário é o descobrimento da mentira”533. Analisemos duas formas de encobrimento, mediante
a linguagem, que a reflexão hermenêutica aborda (e que não são objeto específico da ciência da
linguagem). A primeira refere-se ao fato de possuirmos, acriticamente, pré-juízos. Constitui um aspecto
fundamental de nossa linguagem que “sejamos dirigidos por certos pré-conceitos e por uma pré-
compreensão em nosso discurso, de sorte que esses pré-conceitos e essa pré-compreensão permanecem
sempre encobertos e precisa-se de uma ruptura do que subjaz à orientação do discurso para tornar
explícitos os pré-conceitos como tais”534. Sabemos que é impossível tomar consciência de todos os nossos
pré-juízos, pré-conceitos, e é tarefa da hermenêutica não os eliminar necessariamente, mas explicitá-los. A
dificuldade reside em explicitar aqueles que estão arraigados numa cultura e nesta são tidos como óbvios
e verdadeiros. Outro exemplo de aceitação acrítica de pré-juízo é o que ocorre na ciência, onde – sob
pretexto de que esta é ciência por não possuir pressupostos e ser sempre objetiva – se aplica o método
científico para outras áreas do saber. A hermenêutica filosófica denuncia essa transposição acrítica e
ingênua que se faz na filosofia e noutras ciências. Devemos esse equívoco, talvez, à falta de reflexão sobre
a advertência aristotélica, segundo a qual é tão insensato aceitar um raciocínio provável da parte de um
matemático quanto exigir provas científicas de um retórico. Afirmamos que a ciência da linguagem é um
jogo recente de linguagem entre outros, ao passo que a linguagem da hermenêutica filosófica procura
abordar os múltiplos jogos linguísticos, conjuntamente.
Outra forma de encobrimento que a linguagem possui refere-se à dimensão da universalidade. A
hermenêutica filosófica, de alcance universal, aborda e descobre a aparente universalidade da ciência
moderna, que produz a impressão de conhecimento global, mas que encobre pré-juízos e interesses
sociais. Pensemos, p. ex., no papel do experto na sociedade atual, como suas afirmações determinam os
caminhos “na economia e na política, na guerra e no direito mais que os órgãos políticos que representam
a vontade da sociedade”535. Em termos políticos, a voz do economista tem, normalmente, mais peso que a
do cientista social. Os cientistas, na posição de seres “sagrados”, são aqueles que, na maior parte dos
casos, escolhem e determinam a aplicação dos recursos econômicos.
A hermenêutica filosófica reflete sobre o que está encoberto na ciência da linguagem,
fundamentada numa universalidade apenas aparente. No âmbito da ecologia, por exemplo, a
universalidade da hermenêutica consiste em tematizar e refletir sobre os valores que norteiam uma
cultura e seus efeitos na natureza. A linguagem da hermenêutica filosófica parte de um modo relacional
universal irredutível aos modelos sujeito/objeto, senhor/escravo, representável nos modelos estruturais
do jogo e do círculo hermenêutico.
A hermenêutica filosófica percebe a impossibilidade da erradicação total de todos os pré-juízos,
como foi a pretensão do iluminismo. Assim, “a consciência hermeneuticamente esclarecida manifesta uma
verdade superior ao envolver-se na reflexão. Sua superioridade consiste em converter o estranho em
próprio, em não dissolvê-lo criticamente nem o reproduzir acriticamente, em revalidá-lo interpretando-o
com seus próprios conceitos em seu próprio horizonte”536. Por isso concluímos que é mais universal que a
ciência da linguagem, cuja universalidade se sustenta na singularidade dos atos linguísticos gerais. A
linguagem não se constitui como um sistema de regras estáticas, mas ela está a caminho e amplia
incessantemente seus próprios horizontes.
Pressuposto fundamental da hermenêutica filosófica é que o filósofo é a consciência que possui
de que carrega sempre consigo seus próprios pré-juízos. A ciência da linguagem, não refletindo sobre
eles, acaba por absolutizar o jogo de linguagem objetivo em detrimento dos demais. Uma teoria
instrumentalista dos signos, “que entenda as palavras e os conceitos como instrumentos disponíveis ou
que se têm de pôr à disposição, fica aquém do fenômeno hermenêutico”537, como fica aquém da
linguagem da hermenêutica filosófica a redução da experiência hermenêutica a um conceito.
Pensamos com palavras. Pensar significa pensar-se algo. E pensar-se algo significa dizer-se algo538.
é se podemos evadir-nos do círculo mágico de nossa educação linguística, de nossos hábitos linguísticos e de nosso modo de
pensar mediado linguisticamente, e se sabemos expor-nos ao encontro com uma realidade que não corresponde a nossos pré-
juízos, esquemas e expectativas. Esta suspeita se dá nas condições atuais, isto é, ante a inquietação generalizada de nossa
consciência existencial em relação ao futuro da humanidade, como um crescente receio de que, se seguirmos impulsionando a
industrialização e a exploração de nosso trabalho humano e organizando nosso planeta a modo de uma imensa fábrica,
ponhamos em perigo as condições vitais do ser humano tanto no plano biológico como no plano de seus ideais humanos até
chegar à autodestruição560.
A hermenêutica, enquanto crítica, nos impulsiona a questionar se não haveria algo errôneo em
nossa conduta dentro do mundo, se a nossa experiência “não alberga certos pré-juízos ou, o que seria
pior, se estamos embarcados em processos irresistíveis que se reportam à estrutura linguística de nossa
primeira experiência do mundo e corremos para um beco sem saída”561. A reflexão crítica sobre a
linguagem estrutura-se, em última instância, sobre o sentido da existência humana, do qual nasceu e
sobre o qual se sustenta o filosofar. Não é difícil prever nossa própria possibilidade de autodestruição,
caso não realizemos uma terapia de nossa linguagem, uma reflexão sobre nossos valores, corporificada
em nosso modo de ser linguagem.
A hermenêutica filosófica propõe-se a mostrar até que ponto nosso modo de ser linguagem está
nos levando à possibilidade de destruição nossa e do nosso planeta. Ninguém nega “que nossa
linguagem exerce uma influência em nosso pensamento. Pensamos com palavras. Pensar significa pensar-
se algo. E pensar-se algo significa dizer-se algo”562. Não se trata de tachar a linguagem como o “bode
expiatório” da nossa situação ético-política. A partir dela e com ela é que podemos repensar e retomar os
caminhos humanos, uma vez que a palavra e o agir encontram-se intimamente envolvidos.
Enquanto tarefa crítica, a hermenêutica filosófica é prática e universal. Uma filosofia como teoria
asséptica não tem sentido caso não se encontre vinculada à práxis histórica. O “pensamento filosófico tem
sido um esforço por uma libertação e uma afirmação do ser humano. A filosofia que não tem contribuído
para isso não é filosofia”563. A virada de pensamento do 1º ao 2º Wittgenstein – passagem de uma
linguagem abstrata, lógico-analítica, para uma concepção de filosofia pragmática – preconiza e ratifica a
dimensão crítico-prática da hermenêutica. Afinal, “enquanto as regras de nossa gramática não são algo
‘privado’, mas público, temos, desde a origem, a presença da dimensão social (...) e o ‘falar da linguagem
é parte de uma atividade, ou forma de vida’ (IF, § 23)”564; e a tarefa crítico-terapêutica não está às voltas
com palavras e normas vazias, mas traz à tona e reflete sobre nosso modo de agir e de viver.
Até o momento debruçamo-nos sobre a tarefa crítica da hermenêutica – até certo ponto ad extra.
Desenvolvamos agora sua dimensão autocrítica. Se a finitude é um traço essencial de sua identidade,
portanto do filosofar, ela deve refletir constantemente sobre seus próprios condicionamentos e posições.
Trabalho este que consiste em tomar consciência das ilusões que a própria abstração carrega e defende.
Uma “consciência crítica que encontra em tudo pré-juízos e dependência, porém se considera ela mesma
absoluta, isto é, livre de pré-juízos e independente, incorre necessariamente em ilusões. Porque ela
mesma é motivada por aquilo cuja crítica ela é. Há para ela uma dependência indestrutível com respeito
àquilo que compreende”565. Enquanto crítica, ela é histórica e, por isso, está em tensão entre possibilidade
e limitação espaçotemporal.
A hermenêutica “deve re-encontrar as possibilidades do jogo linguístico humano que excedem a
alternativa rígida da verdade e do erro, da mesmidade e da diferença porque respeitam a liberdade
implicada no silêncio e reserva próprios da presença historial do ser”566. Wittgenstein realizou isso pela
análise dos diferentes jogos de linguagem, onde as questões tradicionais que se convertem em perguntas
a respeito da realidade, do mundo são, na verdade, perguntas a respeito do emprego de nossas palavras,
da gramática da nossa linguagem. Perguntas que, dirigidas a alguém, constituem-se, na verdade, em
pedidos para que a pessoa diga algo a respeito de si mesma, para que descreva o que faz, e “isto significa
que estamos perante um método de autoconhecimento. Trata-se de um autêntico ‘retorno sobre si’, de um
‘recordar’ (cf. IF, § 127). Contudo, já não é um recordar no sentido da ‘reminiscência’ platônica, que teima
em saltar por cima de nossa gramática, mas de um recordar de como realmente somos, falamos, agimos e
vivemos”567. A hermenêutica filosófica, crítica e autocrítica conserva a tensão e a formação da linguagem
e da vida.
Na perspectiva de explicitar a linguagem como condição e efetivação, como princípio da
hermenêutica filosófica, a partir da imbricação necessária entre hermenêutica e linguagem, superamos a
concepção de hermenêutica de cunho psicologizante e historicizante. A linguagem não comporta apenas
o aspecto psicológico ou histórico-científico, mas é sempre social, inacabada, processual – um princípio,
portanto.
A linguagem da hermenêutica filosófica, irredutível à linguagem de cunho lógico-analítico, é “o
lugar onde o mundo se representa; a experiência linguística do mundo se situa, independentemente da
vontade do sujeito, por isso ela é absoluta; é mais fundamental esta relação que aquela que estabelece a
distinção ‘ser-em-si’, ‘ser-para-si’; o modo de linguagem é um a priori in-ultrapassável do
conhecimento”568. Nesse sentido, dizemos que ela se desvela como princípio, constitui e é constituinte da
hermenêutica filosófica.
A concepção gadameriana de linguagem desenvolvida em sua obra aponta para uma espécie de
determinismo linguístico. Gadamer não desenvolveu, lastimavelmente, a identidade e a diferença para
com a linguagem que se distingue da lógico-analítica, como, p. ex., D. Davidson, H. Putnam. Faz parte da
estratégia filosófica gadameriana acentuar o contraste para explicitar seu projeto, o que vale também para
a concepção de ciência, de jogo, de história, de linguagem. A concepção de ciência que ele tem em vista,
em VMI – e praticamente ao longo de toda a sua obra –, é aquela que segue o modelo argumentativo das
ciências naturais.
O diálogo como lugar, espaço, modo de ser da hermenêutica filosófica e a linguagem como
medium da experiência hermenêutica nos levaram a concluir que “nossa experiência do mundo não se
produz só na aprendizagem da fala nem no exercício da linguagem. Há uma experiência do mundo que é
pré-linguística”; há uma linguagem dos gestos, das mãos, das experiências pré-linguísticas, e “estes
fenômenos indicam que atrás de todas as relatividades de linguagem e convenções há algo comum que
não é já linguagem, mas um algo comum orientado a uma possível formulação em linguagem”569. Nossa
reflexão sobre o diálogo hermenêutico remete a algo anterior e posterior à linguagem, que pode vir a ser
linguagem. Afinal, o logos vai além da dimensão apofântica, pois o ser, como afirmou Aristóteles, “se diz
de muitas maneiras”, o que, em última instância, constitui uma ontologia; e o “ser que pode ser
compreendido é linguagem” desvela uma outra concepção de metafísica.
Enquanto lugar e espaço próprio para a hermenêutica filosófica realizar-se, o diálogo efetiva-se
como modo de ser, como experiência, isto é, como ontologia. Foi sob o tema do hermeneutic turn que
desenvolvemos a virada do ideal metodológico da ciência e hermenêutica modernas para o ontológico e
justificamos, a partir de Heidegger e de Gadamer, a hermenêutica ontológica. Nossas reflexões
apontaram, direta e indiretamente, para algo “mais”, algo “anterior e posterior” à linguagem da
experiência, do jogo, do círculo, do diálogo, que poderia ser denominado como pré-reflexivo – dada a
inesgotabilidade de sentido presente nelas –, que denominamos de ontológico.
O risco de elaborar uma reflexão sobre ontologia é paralisar o vir-a-ser do pensar e do conhecer,
o que justifica, em parte, o abandono dela por parte de Gadamer. Ocorreria, sim, uma paralisação se
ficássemos presos apenas a um único modelo de ontologia. A experiência e a linguagem, como princípios
da hermenêutica filosófica, estruturam uma ontologia não mais como uma teoria fechada, fundacional, da
qual aquela decorreria ou onde estaria fixada. Não pretendemos ressuscitar a ontologia tradicional, que –
partindo de princípios lógicos e ontológicos – derivaria e justificaria o status da hermenêutica como
filosofia.
Gadamer ocupou-se com o problema da ontologia em VMI, na seção intitulada “A virada
ontológica da hermenêutica pelo fio condutor da linguagem”, e desenvolveu a “linguagem como
horizonte de uma ontologia hermenêutica”. Embora tenha abandonado essa problemática em sua obra
posterior e em poucos lugares tratado disso, retomaremos e desenvolveremos suas reflexões.
Desdobraremos essa problemática em três momentos distintos e interdependentes. Inicialmente
apresentaremos, criticamente, traços da ontologia hermenêutica na obra de Gadamer. Em seguida,
desenvolveremos nossa concepção de hermenêutica ontológica (hermenêutica filosófica enquanto
ontologia) e, no final, em forma de revisão e síntese aberta, refletiremos sobre a afirmação gadameriana
“ser que pode ser compreendido é linguagem”, que retrata e justifica uma concepção de metafísica.
Uma vez que a filosofia não pode ser reduzida à epistemologia, ao modelo de teoria do
conhecimento tradicional, mas deve ser pensada como um todo que fundamenta e articula nosso modo
de conhecer com nosso modo de agir, ela pressupõe uma metafísica que se desdobra numa ontologia.
Vejamos os três traços principais da ontologia hermenêutica em Gadamer: ontologia hermenêutica
enquanto experiência; metafísica, ontologia hermenêutica e o medium da linguagem; ontologia
hermenêutica e universalidade. São oportunas aqui as palavras de R. Wiehl, para quem a ontologia
hermenêutica
determina-se a si mesma como uma ontologia da experiência e da linguagem. Ela, entretanto, não quer substituir, através dessa
fundamentação própria, a ontologia tradicional por uma nova, assim como tampouco pretende simplesmente assumir a antiga
ontologia e usá-la como fundamento. A ontologia hermenêutica da experiência e da linguagem não se deixa forçar em um
esquema dicotômico de separação entre antigo e novo572.
por isso, cada palavra, como acontecer de seu momento, faz com que aí esteja também o não dito, ao qual se refere, respondendo
e indicando. A ocasionalidade do falar humano não é uma imperfeição eventual de sua capacidade expressiva, mas, antes,
expressão lógica da virtualidade viva do falar que, sem poder dizê-lo inteiramente, põe em jogo todo um conjunto de sentido.
Todo falar humano é finito no sentido de que, nele, jaz uma infinitude de sentido a ser desenvolvida e interpretada. Por isso,
também o fenômeno hermenêutico deve ser esclarecido a partir dessa constituição fundamentalmente finita do ser, que, desde o
seu fundamento, está construída no modo de ser linguagem584.
Na metafísica grega e medieval, pensou-se a relação entre ser e verdade objetivamente, onde o
que é, é verdadeiro por sua essência, independentemente da designação conferida por um sujeito. Já o
ideal metodológico da ciência moderna procura garantir cada um de seus passos por meio do recurso a
elementos fundamentados na subjetividade, a partir dos quais constrói sua representação. Encontramos
na metafísica grega uma contribuição corretiva importante para a ciência moderna. Naquela, a
fundamentação da objetividade não se faz apenas a partir e em função da subjetividade; o pensamento foi
considerado como momento do ser, e a dialética não era, para os gregos, um movimento necessitário,
formal que o pensamento leva a cabo, mas o movimento da própria coisa. Hegel, por isso mesmo,
assumiu inicialmente o modelo da dialética grega, mas no final sucumbiu à orientação filosófico-
moderna. A ontologia hermenêutica busca o reconhecimento do entrelaçamento do acontecer da coisa
mesma, tal como a metafísica grega desenvolveu em conexão com a postura determinadora do sujeito em
relação ao mundo.
A superação do conceito de objeto e da objetividade da compreensão, na perspectiva da pertença
mútua e afetação do sujeito, limita-se a mostrar a importância do seguir da própria coisa. Gadamer
desenvolveu sua crítica à consciência estética, explicitou a crítica à consciência histórica, que “obrigou-nos
a criticar o conceito do objetivo e forçou-nos a nos apartar da fundamentação cartesiana da ciência
moderna, para retomar certos momentos de verdade do pensamento grego. Não obstante, não podemos
seguir simplesmente nem os gregos nem a filosofia da identidade do idealismo alemão: nós pensamos a
partir do medium da linguagem”585. Esta é a questão fundamental de Gadamer, em relação à metafísica
grega, à ciência moderna e à filosofia de Heidegger. Elas possuem a pretensão de sistema, com conceitos,
princípios lógicos e ontológicos, do qual tudo se deduziria e no qual a contingência e a liberdade seriam
subsumidos. A linguagem é mais viva, histórica, dinâmica, e diante dela a atitude filosófica deve ser
menos arqueológica – em sentido heideggeriano – e menos teleológica – em sentido hegeliano. Gadamer
procurou resgatar, pelo medium da linguagem, a importância da objetividade da “coisa em si” da
metafísica grega e da subjetividade moderna, introduzida pelo idealismo. Pensamos que deu conta muito
bem do primeiro aspecto, ressaltando o valor da coisa mesma, descentrada do olhar dominador do
sujeito. Em outras palavras, elaborou uma ontologia hermenêutica em coerência e consonância com o
movimento fenomenológico. Talvez isso se deva à fidelidade excessiva a Heidegger ou à ênfase dada ao
destronamento da subjetividade moderna.
O que significa, pois, que nós pensemos a partir do médium da linguagem? Diferentemente da
metafísica grega, a experiência hermenêutica se realiza no modo de ser linguagem, no acontecer dialógico
entre sujeito e objeto, tradição e intérprete, onde o decisivo é que acontece algo em relação à consciência e
ao objeto. Sob essa perspectiva, o sujeito não é senhor do que chega a ele nem pode descrever clara e
distintamente sua busca de sentido. A partir do sujeito, acontecer “quer dizer que não é ele que, como
conhecedor, busca seu objeto e ‘extrai’ com meios metodológicos o que se quis dizer e tal como realmente
era (...) o verdadeiro acontecer só se torna possível na medida em que a palavra que chega a nós a partir
da tradição, e à qual temos de ouvir, nos alcança de verdade, e o faz como se falasse a nós e se referisse a
nós mesmos”586.
Da parte do objeto, “esse acontecer significa que o conteúdo da tradição entra em jogo e se
desenvolve em possibilidades de sentido e ressonância sempre novas e ampliadas de modo novo pelo
outro receptor. Quando a tradição volta a falar, emerge algo e entra em cena algo que antes não era”587.
Esse antes que não era e se faz palavra, nas duas formas, denominamos de ontológico. Isso se aplica para
qualquer exemplo histórico, seja uma obra de arte, seja uma obra literária, pois tudo o que é tematizado,
retomado, torna-se uma recriação, uma re-produção.
Pela experiência hermenêutica, a linguagem não constitui o verdadeiro acontecer hermenêutico
enquanto gramática, mas enquanto vir à fala daquilo que se fixou na tradição, tecido, concomitantemente,
pela apropriação e pela interpretação. Esse acontecer não é produto de nossa ação na coisa, mas uma
instauração a partir da ação da própria coisa. Essa perspectiva ratifica a concepção gadameriana de
ontologia hermenêutica, cujo projeto se assemelha ao “fazer da própria coisa”, tal como foi exposto, em
parte, na Fenomenologia do Espírito.
Isso não significa que o conhecimento filosófico não requeira seu esforço, a atuação expressa da
subjetividade, o esforço do conceito. O fato é que tal esforço, agora, não se faz de modo arbitrário, e a
coisa também não “segue seu curso sem que nós pensemos. Pensar, porém, quer dizer precisamente
desenvolver uma coisa em sua própria consequência”, distanciando-se das “representações ‘que
costumam se interpor’, e ater-se estritamente à consequência do pensamento”588. A filosofia grega deu a
isso o nome de dialética, e aqui estruturamos e denominamos de hermenêutica filosófica que se desdobra
na experiência, no jogo, no círculo hermenêutico, no diálogo, na linguagem.
Originalmente, importava na dialética que a coisa mesma se fizesse valer. Nela, o importante era
a entrega à força do pensar e não deixar que ideias e opiniões “externas” determinassem o filosofar. Em
Hegel, a dialética “positiva”, no final, predomina como autodesenvolvimento do pensamento puro na
direção do todo sistemático da verdade. Gadamer retoma a intuição primeira de Hegel, que é a
valorização e a defesa do fazer da própria coisa a partir da subjetividade moderna, mas não desenvolve
nem corrobora sua dialética positiva, que, no final, exclui a contingência e a liberdade.
A experiência hermenêutica se compõe a partir do médium da linguagem, sem procurar libertar-
se, total e assepticamente, do “poder da linguagem”. Contudo, “também na experiência hermenêutica,
encontra-se algo como uma dialética, um fazer da própria coisa, um fazer que, à diferença da
metodologia da ciência moderna, é um padecer, um compreender que é um acontecer”589, em tudo
diferente da atividade fenomenológica que procura, pelo epoché, chegar às coisas mesmas. A experiência
hermenêutica é sempre original no sentido de não prefixar um caminho a ser percorrido, por isso é
ontológica e irrepetível, como é o caso de uma pergunta e uma resposta dialógicas que têm o seu tempo, a
sua maturidade, a sua “hora e vez”.
Gadamer retoma, em sua explicitação sobre a linguagem enquanto experiência do mundo, a
metafísica grega e a moderna, para resgatar na primeira a valorização da “coisa em si” e na segunda a
atuação da “subjetividade”. Fá-lo a partir do medium da linguagem, criticando também a absolutização da
“coisa em si” e da “subjetividade”. A ontologia hermenêutica não parte, pois, da dicotomia entre o
mundo inteligível e o sensível, o mundo lunar e o supralunar, Deus e as criaturas, espírito Absoluto e o
reino das necessidades, das contingências humanas. Ela não se fundamenta num ser divino como seu
garante ao modo das Meditações cartesianas; não é uma ontologia decaída ou uma antecâmara que, pelo
processo dialético necessitário, culminaria no espírito Absoluto. O ser humano também é, diferente do
absoluto, mas nem por isso menos ser. Ele é um “projeto projetado”, ele é, enquanto tal, e por isso não
podemos dizer que ele não-é se comparado com o “ato puro”. Ele é ser que pode se expressar e ser
compreendido linguisticamente. É isso que a hermenêutica filosófica de Gadamer leva a sério a partir de
Husserl e de Heidegger e que a tradição filosófica não levara a sério até então, ou seja, a finitude humana
da experiência histórica que é e acontece no medium da linguagem. A ontologia hermenêutica é uma
ontologia da finitude, que não escamoteia o limite do saber, mas, enquanto ontologia da “experiência e da
linguagem, levanta a pretensão de ser tanto mais original quanto também mais abrangente que a
metafísica tradicional”590.
(...) que a beleza seja pensada não como ordem estática descoberta por uma atividade humana de pesquisa, mas que a atividade
primordial seja, ao contrário, a sua, que a beleza seja pensada como o ato ou o acontecimento da manifestação que a produz e
que dá a ver; a ver, em seguida, não somente no inteligível onde ela seria exilada, subtraída ao sensível marcada pela desmedida,
mas no sensível mesmo onde ela apareceria sem se fechar aí599.
A imagem dos fogos de artifício, assim como a expressão enquanto, representa muito bem o que
está contido nessa afirmação anterior.
Não é por acaso que Gadamer fala da “metafísica do belo” no final de VMI, e seu argumento
central para retomá-la é sua imbricação com o bem, com a ética: “a vantagem do belo com relação ao bem
se confunde com a atividade da manifestação que lhe é própria e que se torna presente no sensível; o belo
não é mais exilado no inteligível”600. Aqui encontramos um dos aspectos centrais que fundamentam a
ontologia hermenêutica gadameriana, uma vez que em Platão podemos encontrar uma epistemologia e
uma ontologia não estáticas. Socraticamente falando, isso equivaleria a afirmar que não basta saber o que
é o bem, mas é necessário ser bom. Por isso, parece que Gadamer recorreu à universalidade da
experiência do belo como modo de revelação próprio da verdade. O conceito de belo é concebido em
relação estreita com o bem que deve ser escolhido por ele mesmo, e, na face propriamente metafísica do
platonismo, aparecem a origem e a contestação da nossa modernidade.
Quando analisamos a estrutura do jogo, remetemos à imagem dos fogos de artifício
desenvolvida por Adorno para representar essa experiência que não deixa de ser “essencial” porque é
fugaz e incapaz de ser açambarcada conceitualmente. A constituição ontológico-universal, seja da obra de
arte, seja da história, é a de representar-se. Gadamer não emprega o termo representação, que é um
substantivo, mas um verbo: “representar” – que é dinâmico, móvel, não estático, o que não ocorre com os
verbos substantivados. Isso não é por acaso, como se percebe ao longo de toda a sua obra. Nesse sentido,
Gadamer verbaliza os temas filosóficos que a filosofia ocidental substantivou. Uma leitura atenta de sua
obra revela que isso é um proceder essencial e coerente com a sua concepção de hermenêutica, de saber,
que está sempre em movimento, sem repouso – representável na imagem móvel do deus Hermes, nas
encruzilhadas dos caminhos e na porta das habitações.
Temos a impressão de que, para Gadamer, o jogo é o que melhor expressa, significa e retrata a
verdade ontologicamente. Isso é intrigante, pois pensávamos e pensamos que o diálogo é o “modo mais
apropriado” para a hermenêutica filosófica efetivar-se. Por outro lado, talvez o faça para dar
continuidade à novidade processual do jogo desenvolvido por Nietzsche, por Wittgenstein, e mostrar que
sua hermenêutica filosófica é mais do que uma simples volta ao diálogo socrático, à ontologia dialética de
Platão. São essas as razões que o levam a recorrer à concepção de jogo: “O modo como se desenvolve o
peso das coisas que nos vêm ao encontro na compreensão é, por sua vez, um processo no modo de ser
linguagem, por assim dizer, um jogo de palavras que circunscrevem o que queremos dizer. São também
jogos no modo de ser linguagem os que nos permitem chegar à compreensão do mundo na qualidade de
aprendizes – e quando deixaremos acaso de o ser?”601.
A essência do jogo não se fundamenta na atitude subjetiva, mas, antes e sobretudo, no fato de
que, no jogo, o jogador é jogado por ele. O jogo inclui os jogadores, e ambos constituem o subjectum do
movimento lúdico. Do mesmo modo não se “pode falar de um jogar com a linguagem ou com os
conteúdos da experiência do mundo ou da tradição que nos interpelam, mas do jogo da própria
linguagem, que nos interpela, propõe e se recolhe, que pergunta e que se consuma a si mesmo na
resposta”602. Isso justifica o apelo ao modelo estrutural do jogo, no qual se expressa muito bem o
entrelaçamento entre o “desenvolver da coisa” (no caso, o jogo) e a atividade do “sujeito” (no caso, o
jogador), entre a antiguidade (metafísica objetivista) e a modernidade (metafísica subjetivista).
O compreender é retratável no jogo, no sentido de que quem compreende não pode abster-se de
tomar uma posição frente ao que lhe é colocado, seja uma obra de arte, seja um texto, seja uma pessoa. Já
a dialética, enquanto atividade do pensamento, pode e pretende abstrair da coisa ou do sujeito pensante.
Mais que o olhar, é o ouvir que melhor expressa o modo de ser da hermenêutica enquanto
abertura, receptividade. Esta é a novidade e a contribuição da hermenêutica filosófica, pois quem
compreende “já está sempre incluído num acontecimento, em virtude do qual se faz valer o que tem
sentido”, isto é, sempre já foi compreendido, tomado pela tradição, pela linguagem. O modelo estrutural
do jogo explicita o fenômeno hermenêutico e a experiência do belo, pois “o que nos vem ao encontro na
experiência do belo e na compreensão do sentido da tradição tem realmente algo da verdade do jogo. Na
medida em que compreendemos, estamos incluídos num acontecer da verdade e, quando queremos saber
o que temos que crer, parece-nos que chegamos demasiado tarde”603. Isso pode ser compreendido,
enquanto universalidade hermenêutica, no sentido de que a verdade não pode ser submetida a um
controle metódico, embora não exclua este, pois, “além do livre-arbítrio de que o homem dispõe, quando
usa o método e se converte em sujeito responsável do conhecimento, lhe é dada uma liberdade que não se
torna sua senão na medida em que ele recebe-a e se deixa tomar por ela: aquela do ser que já é dado a
entender na tradição...”604, que lhe transmite uma realidade onde pode construir seu sentido e sua
significação do mundo.
Na ontologia hermenêutica gadameriana, somos mais compreendidos que compreendedores,
mais afetados que atuantes. Pelo modelo estrutural do jogo, Gadamer procurou enfatizar mais o ser
jogado-afetado que o ser que joga, mais a conquista filosófica da metafísica grega que o ganho da ciência
moderna. Isto confirma nossa posição a respeito da ênfase excessiva que ele deu mais ao ser afetado que
ao ser ativo, seja pela experiência da obra de arte, seja pela história, seja pela linguagem. Podemos afirmar
que Heidegger e Gadamer hermeneutizaram a concepção de ontologia grega objetivista, bem como a
ontologia moderna subjetivista. Ambos pretenderam corrigir a ontologia construída pelo ego cartesiano
através do desenvolver da “coisa mesma” da ontologia grega. Ambos transformaram a ontologia
tradicional em ontologia hermenêutica através da facticidade, do sujeito que conhece historicamente.
Se em Gadamer encontramos o esboço de uma ontologia que é hermenêutica, desenvolveremos
a noção de hermenêutica que é ontológica. Se na primeira o jogo é o que representa melhor o processo do
pensar, nesta o diálogo ocupa o lugar e espaço central. Além disso, é por essa razão que justificamos a
experiência e a linguagem como princípios filosóficos.
(...) para a metafísica tradicional, a meta determinada era a do conhecimento da essência, da fundamentação suficiente e da
definição definitiva. Em contraposição a isso o compreender e o significar não parecem ter fixado tal ideal de conhecimento
universalmente obrigatório e definitivo605.
A dimensão da ontologia constitui o diferencial da hermenêutica filosófica que a caracteriza
como filosofia. Retomemos, para tanto, as palavras de H. Braun, para quem “o título ‘ontologia’ seria a
medida a partir da qual se poderia julgar a realização da hermenêutica como filosofia”606. Com essa
reflexão concluímos o ciclo que marca a passagem e a transformação necessária da hermenêutica
metodológico-epistemológica para a hermenêutica ontológica, que nada mais é que hermenêutica
filosófica.
Heidegger e Gadamer fundamentaram uma ontologia hermenêutica, isto é, repensaram a
ontologia a partir da finitude que compreende, onde a subjetividade é mais “afetada” que “ativa” – por
isso a atividade arqueológico-filosófica heideggeriana e a retomada gadameriana do modelo estrutural do
jogo. A hermenêutica filosófica é uma hermenêutica ontológica que salvaguarda a centralidade da
subjetividade no processo filosófico. Na verdade, justificaremos e fundamentaremos, a partir da
hermenêutica filosófica – pelos princípios da experiência e da linguagem –, outra noção de ontologia, que
se distingue da grega, da moderna e da heideggeriana (embora conserve e integre os ganhos filosóficos
destas). Assim, podemos denominar e retratar as próximas reflexões como: hermenêutica filosófica enquanto
ontologia. Mas como pesa sobre este último termo uma espécie de estigma e como pretendemos apenas
indicar pistas de outra concepção de ontologia, vamos denominá-la de hermenêutica ontológica. Faremos
isso muito mais para encetar do que para encerrar posteriores discussões acerca da relação entre
hermenêutica, ontologia e metafísica, seguindo a perspectiva segundo a qual hermenêutica filosófica,
hermenêutica ontológica, ontologia e metafísica convertem-se, intercambiam-se. Explicitaremos
inicialmente aspectos conceituais e concepções distintas de ontologia e, no final, desdobraremos algumas
dimensões estruturais do que compreendemos por hermenêutica ontológica.
está desenvolvida uma multiplicidade indeterminada de princípios numa estrutura ontológica unitária, no interior da qual cada
princípio único é inequivocamente determinado em relação a cada outro como princípio ontológico segundo seu conceito, sua
posição e sua função. Ao mesmo tempo esta estrutura ontológica revela a integralidade de todos os princípios, bem como a
validade geral e especial dos mesmos para um determinado campo do ente. E finalmente vale para este modelo de uma
ontologia forte que cada outro princípio que nela não tem um lugar lógico bem determinado pode ser colocado numa relação
lógica bem determinada com os princípios que pertencem a ele: na relação de uma compatibilidade específica ou duma
incompatibilidade específica608.
Por outro lado, ontologias “fracas” são as que não preenchem as condições mencionadas de uma
ontologia forte.
Pretendíamos, inicialmente, justificar a posição de que a hermenêutica filosófica é uma ontologia
“fraca” no sentido de distinguir-se da ontologia “forte” hegeliana, mas nos distanciamos de toda
dicotomia conceitual que não faz justiça ao projeto filosófico hermenêutico nem ao ontológico. Contudo,
salvaguardamos a profícua reflexão de R. Wiehl sobre o tema da ontologia, para quem, p. ex., a fraqueza
dos princípios da ontologia “fraca” “não se deve confundir com a simples insuficiência dos mesmos com
relação à sua determinidade conceitual e funcional. Fraqueza significa aqui também uma forma peculiar
de indeterminidade e incerteza”609, que caracteriza, p. ex., o entimema aristotélico. Ontologia “fraca” não
é, assim, fraca porque não é “forte” ainda. Ela não é uma antecâmara, um preâmbulo da ontologia
“forte”. Não é teorética – no sentido estrito –, mas, enquanto discurso, tem a forma e o modo
argumentativo da filosofia prática aristotélica: fenomenológica, existencial, integralizadora da metafísica,
da política, da retórica, da poética. Nesse sentido, não podemos dizer que as fundamentações e definições
“fracas” são insuficientes, incompletas.
Numa direção, pretensão e sentido semelhante, G. Vattimo desenvolveu a noção de
“pensamento fraco” (pensiero debole) em oposição ao “forte”, que é essencialmente dedutivo. Para ele, “a
expressão ‘pensamento fraco’ constitui, sem dúvida nenhuma, uma metáfora e um certo paradoxo (...)
Trata-se de uma maneira de falar provisória e, inclusive, talvez, contraditória, porque assinala um
caminho, uma direção possível: um caminho que se separa do que segue a razão-domínio”610. O
pensamento fraco não se fixa num ponto arquimediano, mas, argumentativamente, aproxima-se do
passado, observa o presente e se volta ao futuro. Compreendemos melhor a noção de pensamento
“fraco”, retomando a seguinte reflexão sobre “ontologia fraca da noção de verdade”, que contribui para
elucidar e corroborar o que compreendemos por hermenêutica ontológica:
O verdadeiro não é objeto de uma apreensão noética do tipo da evidência. É, antes, o resultado de um processo de reflexão, que o
produz quando respeita certos procedimentos dados uma e outra vez, de acordo com as circunstâncias (...) o verdadeiro não
possui uma natureza metafísica ou lógica, mas retórica; as reflexões ou acordos realizam-se dentro de um determinado horizonte
(...) constituído pelo espaço da liberdade das relações interpessoais, das relações entre as culturas e as gerações. Neste espaço
ninguém parte do zero, mas se encontra já ligado por certos laços de fidelidade, de pertença (...); a verdade é fruto de
interpretações não porque através do processo interpretativo se chegue a apreender diretamente o verdadeiro (p. ex., lá onde a
interpretação é compreendida como deciframento, desmascaramento), mas porque só no processo interpretativo (...) a verdade se
constitui611.
Nesse contexto, retomemos também a reflexão de J. Gauvin, que realizou uma distinção entre o
discurso diretamente ontológico e o indiretamente ontológico. O primeiro opõe o saber às opiniões e
representações, ao passo que o segundo pretende “levar progressivamente o seu leitor a uma revisão dos
‘saberes’ que ele julgava possuir até aí (...) invoca elementos de experiência e admite-os como tais, a fim
de os interpretar”, enquanto aquele, “tratando por princípio de ‘tudo’, (...) nunca invoca a experiência
como tal e entende, pelo contrário, evocá-la através do seu próprio desenvolvimento, mas sempre como
interpretada”612. As três Críticas de Kant e a Fenomenologia do Espírito se constituiriam, nessa lógica, como
discurso indiretamente ontológico, ao passo que a Ética de Espinoza, assim como a Ciência da Lógica de
Hegel, representaria o modelo paradigmático do discurso diretamente ontológico.
Tanto no campo da filosofia quanto no da física613, p. ex., não há acordo sobre a denominação
única e definitiva daquele outro conhecimento que não é o matemático-dedutivo. Para Aristóteles, esse
outro chamava-se prático, retórico, poiético. Em todo caso, as terminologias ontologia fraca, pensamento
fraco, discurso indiretamente ontológico servem como imagens, indicadores, aproximações do que
compreendemos por hermenêutica ontológica. Evitaremos o emprego do termo ontologia sem adjetivo,
que contém e evoca, pela força da tradição e poder da linguagem, os fantasmas ocidentais que Nietzsche,
Freud, Marx e Heidegger já procuraram expulsar, com razão, do imaginário conceitual filosófico. Para
caracterizar o outro viés da ontologia, na situação e relação com a hermenêutica, empregamos a expressão
hermenêutica ontológica a fim de retratar o que nasce e se desenvolve distintamente da ontologia
tradicional. Abandonamos a pretensão de justificar a hermenêutica filosófica como uma ontologia fraca,
seja porque não é reconhecida conceitualmente como filosofia – diferentemente do âmbito da física, onde
causa forte e causa fraca constituem um tópos koiné –, seja porque em sua pretensão de abrangência e
universalidade pressupõe e engloba a ontologia forte, ao passo que esta, em última instância, é um retrato
parcial do conhecimento. Com a concepção de hermenêutica ontológica distinguimo-nos de R. Wiehl e G.
Vattimo, salvaguardando suas importantes contribuições acerca da outra “face” da ontologia.
A hermenêutica ontológica não apenas evoca como também se utiliza do que está embutido na
noção de uma ontologia “fraca”. Temos consciência do desconforto conceitual, da limitação e até certo
ponto da inconveniência causados por essas expressões no âmbito filosófico. Trouxemo-las à baila,
primeiramente, porque apontam para outras dimensões da filosofia e, em segundo lugar, para
fundamentar melhor a concepção de hermenêutica ontológica. Com o desenvolvimento desta não
pretendemos apresentar uma ontologia a mais ao lado de outras, mas justificar que na hermenêutica
ontológica as demais concepções de ontologia encontram seu espaço e lugar apropriados, integrando as
intuições e reflexões contidas na noção de ontologia fraca, no pensamento fraco, no discurso indiretamente
ontológico.
em seu uso hermenêutico deixam em aberto até que ponto e em que medida eles preenchem sua função ou não, também
permanece não decidido em qual direção o pensar por eles conduzido leva adiante o entendimento: se na direção de um
crescente conhecimento essencial ou se em direção a um distanciamento crescente, ou se em direção a uma fundamentação
sempre suficiente ou se na direção oposta; ou se na direção de uma definição última ou de volta para um provisorium
conceitual621.
(...) o Ser é a vida, o movimento circular de uma identidade que produz e habita sua exteriorização sem se separar dela mesma,
que engendra seu outro sem jamais cessar de se reconhecer aí e de se encontrar aí625.
Aristóteles não objetiva o ser, pois mostra, pelo contrário, que este não pode ser definido, isto é, que não tem uma essência, não
admite uma resposta à pergunta ‘que é o ser?’; não o reduz em absoluto a um ente, isto é, à substância, porque a substância não
pode ser reduzida ao significado, à essência, à definição do ser, mas tão só ao primeiro entre muitos significados (...); tampouco
reduz o ser a Deus, pois não concebe a Deus como o ser por essência, mas o concebe como um ente muito singular, como
pensamento puro; por último, tampouco faz de Deus o fundamento do qual se pode partir para deduzir todos os entes, segundo
uma lógica fundativa de tipo matemático (como, por exemplo, em Espinoza), porque para Aristóteles Deus não é de nenhuma
maneira um princípio lógico, a premissa de uma dedução ou a fonte de uma derivação. Tampouco se pode dizer que para
Aristóteles Deus constitui uma forma de segurança, pois não cria o homem nem o assiste, não lhe dá ordens nem o premia, não o
castiga nem o salva: Aristóteles, por outra parte, fala de Deus o menos possível, e trata, em geral, de evitá-lo629.
A linguagem mesma é o medium onde o ser se efetiva ao filosofarmos, dentro das condições e
exigências colocadas, em todo tempo e lugar; daí que a ontologia é universal. “O que se pode
compreender é linguagem”, ou seja, o que se compreende vem à fala, o que não é existir uma segunda
vez, adquirir uma segunda existência. O próprio representar-se é um acontecer que é parte do seu
próprio ser, isto é, ser como aparecer, não como identidade absoluta; ser como vir-a-ser, não como
unidade eterna; ser como um acontecer no modo de ser linguagem, não como uma ideia inata; ser como
um manifestar-se historicamente. Esse projeto metafísico implícito da hermenêutica ontológica é mais
amplo e arejado que a metafísica objetivista e subjetivista.
A metafísica estruturante da hermenêutica ontológica não necessita, pois, “objetivar o ser, nem o
reduzir a um ente, isto é, a Deus, como tampouco deduzir a partir de Deus todos os outros entes; mas se
limita a mostrar precisamente a finitude, isto é, a problematicidade, a insuficiência de tudo aquilo do qual
se tem experiência: entes e eventos, afinidades e diferenças, mundo e história”630. A hermenêutica
ontológica não é uma ontologia do dito, mas uma ontologia relacional da presença, ou seja, o filosofar
mesmo pertence ao ser em que o conhecer é um momento do ser mesmo, é o movimento do ser, a ação da
coisa que se manifesta e que se deixa compreender em linguagem. Ela é uma ontologia da experiência do
ente, que se encarna e se manifesta como algo que confere sentido e que alcança sua expressão na palavra;
e por isso também dizemos que o ser que pode ser compreendido é linguagem. Essa concepção metafísica
ancora-se na posição filosófica segundo a qual o filosofar consiste em investigar e explicitar os princípios,
e especialmente os princípios do ser enquanto ser situados no tempo e no espaço. E o ser, como afirmou
Aristóteles, acontece e se apreende só na linguagem porque “se diz” (léghetai), e porque se trata
essencialmente de uma “coisa dita” (de um legómenon).
A noção de metafísica implícita na expressão “ser que pode ser compreendido é linguagem” só é
compreensível e expressável a partir da finitude fundamental do ser que está envolvido, desde sempre,
pela linguagem. A relação na metafísica, do ponto de vista da hermenêutica filosófica, entre ser e seus
múltiplos significados, entre ser e linguagem, é “uma relação que não é de inclusão, e, portanto, de
dedutibilidade, mas varia em cada caso, proporcionando sempre, se bem que de diferentes formas, a
razão em virtude da qual os diversos significados pertencem em sua totalidade a um mesmo nome”631.
Por isso, a metafísica implícita da hermenêutica filosófica é que o homem – enquanto ser de linguagem,
ao filosofar – assume a inesgotável tarefa de poder perguntar e dever perguntar para além de todas as
respostas alcançáveis enquanto totalidade impossível de ser totalmente tematizada. Metafísica esta que
tem a relação como ponto central, não mais a objetividade nem a subjetividade pura.
Nessa totalidade metafísica, o caminho científico constitui um aspecto do ser que possui sua
verdade.
A objetividade da ciência é a mais pura – mas também a mais abstrata – realização desta experiência do ser. Mas o ser do ‘aí’ é
mais. Não é somente o que está presente entre o não ser do que passou e o não ser do ainda não, e também não é somente este
presentificar-se que nós nomeamos ‘autoconsciência’. É também o despertar no qual ‘mundaniza-se’ (es weltet) como em cada
manhã. É o perguntar que pergunta para além de todo o presente e se abre para o possível, o dizer que procura para o indizível
suas palavras, até se ‘palavrear’ (es wortet) e é como ‘resposta’, e é sempre de novo o esperar que sabe do ainda não e não está
cheio de expectativa...632.
Este buscar mundanizado até se “palavrear” constitui o modo de ser próprio da hermenêutica
filosófica enquanto atividade de um sujeito afetado pela história e pela linguagem. A metafísica implícita
não é do tipo objetivista nem subjetivista, mas emerge do acontecer provocado pela relação entre ser e
linguagem, num jogo circular dialógico.
A hermenêutica ontológica não parte nem pressupõe uma esquizofrenia entre metafísica, ética,
política, linguagem, mas se configura na imagem de uma rede coerente, inter-relacionada e
interdependente, a ser explicitada e construída. Nisso reside o filosofar mesmo: explicitar e corporificar o
Ser, sem que ele deixe de ser pelo fato de estar e tomar forma em palavras. Com a hermenêutica
ontológica mostramos que a transcendência do Ser existe em relação a nós, “encarnada” no tempo e no
espaço, e que jamais poderá ser apreendida conceitualmente.
A hermenêutica ontológica não é compreendida como ontologia fundamental, como uma
disciplina propedêutica rumo a uma possível ontologia universal. Sua relevância ontológico-geral
descobre-se no próprio processo de explicitação histórica do saber finito. A linguagem como o medium
que medeia todo saber não pode ser reduzida a instrumento. Assim, a atividade filosófica não se esgota
no método nem em frases protocolares. Ela é um caminho que nós balizamos com os princípios da
experiência e da linguagem, o que justifica uma concepção mais ampla de metafísica. Nesta, pois, a
linguagem não é instrumento, “mas fundamento e exercício de sua humanidade...”633; ela mesma é o
princípio condutor, constituinte e constituidor da humanidade e, portanto, do filosofar.
Subjaz, pois, à hermenêutica filosófica a noção de metafísica, segundo a qual o ser, a verdade, a
bondade não se reduzem ao gênero de certeza produzido pelo método científico. Com a noção renovada
e ampliada de metafísica não se destrói o valor da ciência, mas se questionam as limitações do seu
método, pois “o que a ferramenta do ‘método’ não alcança tem de ser conseguido e pode realmente sê-lo
através de uma disciplina do perguntar e do investigar, que garante a verdade”634. Essa “disciplina” do
perguntar e do investigar estrutura o modo de ser do diálogo. O problema é que Gadamer enfatizou a
polissemia tanto da experiência quanto da linguagem, silenciando sobre sua unidade. Contudo, “é
precisamente o caráter múltiplo do ser dito pela linguagem, isto é, a polissemia deste, o que priva as
asserções de seu caráter de representações fixas, unívocas e objetificantes por causa da qual ele mesmo as
rechaça”635.
O fato é que a hermenêutica filosófica vive unicamente de suas argumentações, da refutação de
objeções. E, “posto que estas são inesgotáveis, assim como é completamente indeterminada a área de suas
negações possíveis (...), do mesmo modo é inesgotável sua tarefa, e nisso reside sua historicidade: é por
isso que semelhante metafísica não alberga nenhuma violência, mas só uma serena, contínua e incansável
disponibilidade à discussão”636.
Com a hermenêutica ontológica alargamos a ênfase da ontologia hermenêutica – que Heidegger
e Gadamer deram ao Dasein, afetado pela história, pela linguagem –, ao desenvolver os princípios e
modelos estruturais do jogo e do círculo hermenêutico, cujo protagonista continua sendo o sujeito,
contudo com métodos e objetivos diferentes dos da modernidade. Com a hermenêutica ontológica
resgatamos o valor do método moderno e desenvolvemos uma “metodologia” apropriada ao ser
humano, que se constitui como uma preocupação e postura ética, um modo de filosofar, com exigências e
regras próprias.
Se na ontologia hermenêutica a ênfase da hermenêutica gadameriana recai no “refreamento” da
onipotência da subjetividade moderna, condensada na expressão “aprender pelo padecer”, na
hermenêutica ontológica a possibilidade de “o outro também ter razão” é melhor justificada e o sujeito é
tomado em sua devida posição de relação. Na hermenêutica ontológica a ênfase recai na relação ativa –
sem suprimir a passividade daquela – dos sujeitos que filosofam, seguindo regras e exigências, com
princípios universais, como a lógica da pergunta e da resposta, como a experiência, como a linguagem. A
experiência e a linguagem, como princípios ontológicos, fundamentam a hermenêutica filosófica, em
todos os tempos e lugares, em sua face passiva e ativa, autônoma e livre. Princípios que se corporificam
no itinerário próprio da hermenêutica filosófica, que não desvincula a bondade da verdade; antes, confere
a estas sua legitimidade e autenticidade mais plena, mais humana.
A linguagem filosófica não se esgota em palavras – no dito, no enunciado lógico –, mas se
desenvolve por sermos com os outros, que é nosso “estar-no-mundo” próprio; daí por que “isto é a
hermenêutica: o saber do quanto fica sempre de não dito, quando se diz algo”637 (grifo nosso). E, uma
vez que está às voltas com a totalidade – entre o dito e o não dito, entre a linguagem da experiência e a
experiência da linguagem –, a hermenêutica converte-se em metafísica. Trata-se de uma metafísica que
não esgota nem circunscreve o sentido e o significado do mundo a um ente, ou a um conceito. A
metafísica não soluciona, de modo objetificador, as questões filosóficas, mas, enquanto totalidade não
tematizável totalmente, “procura garantir a transcendência como uma moldura que nos dá o senso de
proporção diante do mundo, da vida e do mistério”, enquanto um “ir além, não encerrar tudo numa
resposta, continuar com a pergunta, sustentar a finitude, um já-sempre-estar além de si mesmo”638.
Na hermenêutica ontológica, o ser compreende-se como “a vida, o movimento circular de uma
identidade que produz e habita sua exteriorização sem se separar dela mesma, que engendra seu outro
sem jamais cessar de se reconhecer aí e de se encontrar aí”639. Por isso a metafísica, enquanto moldura de
totalidade, estrutura-se argumentativamente, exigindo uma postura que seja coerente com seu ser,
tecendo um modo de uma ontologia, pois o Ser mesmo acontece e manifesta-se linguisticamente. Por isso
podemos dizer que a ontologia hermenêutica e a hermenêutica ontológica caracterizam-se como
ontologia relacional da manifestação: não é assegurada apenas pela coisa “em si” nem pela validade do
método, mas pelo jogo circular dialógico entre ser e linguagem, enquanto movimento que vai da palavra
ao conceito e deste àquela, enquanto linguagem da experiência e experiência da linguagem, enquanto o saber do
quanto fica sempre de não dito, quando se diz algo.
377 “Sein, das verstanden werden kann, ist Sprache”. Gadamer, H. G., WM1, p. 478.
378 Gadamer, H. G., Koselleck, R., Hermeneutik und Historik, in: Die antike Philosophie in ihrer Bedeutung für die Gegenwart. Heidelberg: Karl
Winter Universitätsverlag, 1981, p. 30.
381 Geschichte, Sprache, Gespräch und Spiel: all dies sind – das ist das Entscheidende – verstauschbare Grössen. Schulz, W., “Anmerkungen zur
Hermeneutik Gadamers”, in: Bubner, R., Cramer, K., Wiehl, R (eds.), Hermeneutik und Dialektik. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1970, v. I, p. 311.
382 Grondin, J., Einführung in die Philosophische Hermeneutik. Darmstadt: Wiss. Buchges., 1991, p. 152 (cf. trad: Introdução à hermenêutica
filosófica. SL: UNISINOS, 1999, p. 196). Utilizaremos a sigla EPH para esta obra.
386 Sobre isso ver “Élements pour une pragmatique du dialogue: Le Dialogue référentiel” (Troisième Recherche, p. 151- 260), in: Jacques, F.,
Dialogiques. Recherche logiques sur le dialogue. Paris: PUF, 1979.
387 Schulz, W., “Das Problem der Aporie in den Tugenddialogen Platos”, in: Henrich, D., Schulz, W., Volkmann-Schluck, K. H., (eds.), Die
Gegenwart der Griechen im Neueren Denken (Festschrift für Hans-Georg Gadamer zum 60. Geburtstag), Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1960,
p. 262.
396 Wiehl, R., “Dialog und philosophische Reflexion”. Neue Hefte für Philosophie. N. 2/3, p. 93, 1972.
399 Ibid.
401 Ibid.
402 Para J. Locke, “o abuso das palavras” consiste no seguinte: “Além da imperfeição que existe naturalmente na linguagem, e da
obscuridade e confusão que são tão difíceis de evitar no uso de palavras, há várias faltas voluntárias e negligências de que os homens são
culpados em seus modos de comunicação, por meio das quais tornam esses sinais menos claros e distintos em seus significados do que
naturalmente deviam ser”. Em seguida elenca e explica quais são esses abusos: “palavras sem nenhuma, ou sem ideias claras”, “aplicação
instável delas”, “manifesta obscuridade por aplicação errada”, “tomando-as por coisas”, “designando-as para o que não podem significar”,
“a causa do abuso prende-se à suposição de que o trabalho da natureza é sempre regular”, “suposição de que as palavras têm um significado
certo e evidente”, “que tem nomes sem ideias...”. Locke, J., Ensaio acerca do Entendimento Humano. SP: Abril Cultural, 1971, p. 262-265 (Os
Pensadores, X).
403 Descartes, R., Meditações. SP: Abril Cultural, 1973, p. 97 (Os Pensadores, XV). Em perspectiva semelhante, D. Hume expressou-se assim:
“A paixão da filosofia, como a da religião, parece sujeita a este inconveniente: conquanto tenha em mira corrigir nossos costumes e extirpar
nossos vícios, se não a dirigimos com prudência, servirá apenas para favorecer alguma inclinação predominante e impelir a mente com mais
firme resolução num sentido em que já somos excessivamente atraídos pela inclinação e propensão de nossa índole natural”. Hume, D.,
Investigações sobre o Entendimento Humano. SP: Abril Cultural, 1973, p. 144 (Os Pensadores, vol. XXIII).
408 Ibidem.
410 Ibidem.
415 Fruchon, P., op. cit., Archives de Philosophie, v. 36, p. 533, 1973.
417 Rombach, H., Über Ursprung und Wesen der Frage. 2., unveränd. Aufl. Mit e. Nachw. zur Neuausg., Freiburg (Breisgau), München: Alber,
1988, p. 35.
418 Id., ibid., p. 37. Lembramos que o termo alemão ver-sagen possui duplo sentido: a) negar, recusar; b) falhar, não funcionar.
419 Ibidem.
439 Perelman, C., “Dialectique et Dialogue”, in: Bubner, R., Cramer, K., Wiehl, R., (eds.), op. cit., v. II, p. 83.
445 Ibid.
450 Davidson, D., De la Verdad y de la Interpretacion. Fundamentales contribuciones a la filosofía del lenguaje. Barcelona: Gedisa, 1995, p. 48.
453 Unglaub, R., “‘Sprich, damit ich dich seh’. Wahrnehmung ist Unterwegsein, ist Gespräch” in: Vogel, T. (hrsg.), Über das Hören: einem
Phänomen auf der Spur, mit Beitr. Von Hermann Bausinger..., 2., bearb. Aufl., Tübingen: Attempto, 1998, p. 91.
457 Ibidem.
460 Gadamer, H.-G., GeGe, p. 347. A propósito dessa perspectiva, ver Manfred Riedel, Hören auf die Sprache: die akroamatische Dimension der
Hermeneutik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990.
463 Berendt, J. E., “Ich höre, also bin ich”. in: Vogel, T. (hrsg.), op. cit., p. 71.
464 Zenger, E., “‘Gibt deinem Knecht ein höhrendes Herz!’: Von der messianischen Kraft des rechten Hörens”. In: Vogel, T. (hrsg.), op. cit., p.
30.
469 Kleine Schriften, v. 1, p. 199, ap. Bausinger, H., “Kannitverstan. Vom Zuhören, Verstehen und Mißverstehen” in Vogel, T. (hrsg.), op. cit.,
p. 16.
470 “Essa expressão foi criada por Ulrich Sonnemann (Über die Okulartyrannis, Frankfurt, 1987)”. Flickinger, H. G., “O ambiente
epistemológico da educação ambiental”, Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 19, n. 2, p. 201, nota 6, jul./dez. 1994.
477 Reale, G., História da filosofia antiga. SP: Loyola, 1994, v. II, p. 13. Na página 15, G. Reale apresenta o raciocínio de Platão segundo o qual
ele ressalta o valor da linguagem dialógica, oral – própria ao filosofar – em detrimento da escrita.
483 Coreth, E., Questões fundamentais de hermenêutica. SP: EPU, 1973, p. 26. Sigla dessa obra = QF.
488 Cassirer, E., Philosophie der symbolischen Formen, I, Darmstadt: Wiss. Buchgesellschaft, 1956, p. 55, ap. Lledó, E., op. cit., p. 21.
489 Não há unanimidade sobre a tradução ao português do termo alemão Sprachlichkeit. Em italiano foi traduzido por linguisticità, em
espanhol por lingüisticidad. O prof. Manfredo A. de Oliveira, em Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, traduziu-o por
linguicidade. Temos muita dificuldade em encontrar um termo mais apropriado para aquilo que Gadamer pretendeu expressar por meio de
Sprachlichkeit. Estivemos às voltas com os termos linguisticidade e o caráter de ser linguagem. No final optamos pela expressão o modo de ser
linguagem.
490 Alvarez Gómez, M., “Lenguaje y Ontología en H.-G. Gadamer”, in: PenAlCon, s/d., p. 63.
491 É como refletir sobre o ar no qual desde sempre estamos e vivemos, embora sem estar conscientes disso: é nesse jogo de esforço de
objetividade e in-objetificabilidade, de falar e de calar, de dizer e de silenciar que nos propusemos aqui a refletir sobre a linguagem.
493 Shattuck, R., Conhecimento proibido: de Prometeu à pornografia. SP: Companhia das Letras, 1998, p. 164.
494 “Alles Vorauszusetzende in der Hermeneutik ist nur Sprache”. F. Schleiermacher, ap. Gadamer, H.-G., WM, p. 387.
496 Gadamer, H.-G., HoLe, p. 146. A propósito disso, lembramos a afirmação aristotélica: “Se fosse odioso não poder se defender com seu
corpo, seria absurdo não poder fazê-lo pela palavra, cujo uso é mais próprio ao homem que do seu corpo” (Arte Retórica, 1355a 38-b1).
507 Ibidem.
508 Droz, G., Os mitos platônicos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 168-9.
509 Num dos diálogos que tive o privilégio de ter com o próprio Gadamer, ao comentar sobre a 3ª parte de VM, onde aborda o tema da
linguagem, ele mesmo afirmou que não estava contente nem satisfeito com o que lá escrevera.
513 Ibidem.
515 Ibid., p. 408. Esta segunda afirmação é de Hönigswald; cf. Gadamer, H.-G., VMI, p. 408, nota 17.
518 Id., Die Moderne und die Grenze der Vergegenständlichung, München: Bernd Klüser, 1996, p. 35.
519 Dutt, C. (hrsg.), Hermeneutik – Ästhetik – praktische Philosophie: Hans-Georg Gadamer im Gespräch, Heidelberg: Winter, 1993, p. 36.
520 Nesse sentido, do ponto de vista literário, J. G. Rosa retratou essa ideia pela afirmação: “viver é plural”; cf. “Se eu seria personagem”, in:
Tutameia: terceiras estórias, 6. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 157.
521 Gadamer, H.-G., HeSpra, p. 369-370.
522 Teichert, D., Erfahrung, Erinnerung, Erkenntnis: Untersuchungen zum Wahrheitsbegriff der Hermeneutik Gadamers. Stuttgart: Metzler, 1991 cit.,
p. 117.
526 L. Lavelle, La parole et l’écriture, Paris: Artisan du Livre, 1942, p. 18, ap. Lledó, E., op. cit., p. 57.
529 Ibidem.
542 “Es ist ein immer Unvollendbares, ein Suchen und Finden von Worten”. Id., PhäSpra, p. 408.
544 Fruchon, P., op. cit., in Archives de Philosophie, v. 36, p. 535, 1973.
548 Ibidem.
550 Ibidem.
551 Sobre essa dimensão, do ponto de vista wittgensteiniano, W. Spaniol comenta: “E nesta sua função terapêutica ‘a filosofia simplesmente
coloca as coisas, não elucida nada e não conclui nada. Como tudo está à vista, não há nada a elucidar. Pois o que está oculto não nos
interessa. Pode-se chamar também de ‘filosofia’ o que é possível antes de todas as novas descobertas e invenções’ (IF, § 126; cf. § 599). E, por
outro lado, ‘os resultados da filosofia consistem na descoberta de um simples absurdo qualquer e nas contusões que o entendimento recebeu
ao correr de encontro aos limites da linguagem. Elas, as contusões, nos permitem reconhecer o valor dessa descoberta’ (IF, § 119). Aqui a
filosofia é vista exclusivamente em sua função terapêutica, e o trabalho do filósofo consiste meramente em reunir fatos ordinários a respeito
de nossa linguagem cotidiana, fatos que sempre estão ‘diante de nossos olhos’ (IF, § 129), e que apenas precisamos ‘recordar’ (IF, § 127)”,
Spaniol, W., Filosofia e método no segundo Wittgenstein: uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento. São Paulo: Loyola, 1989, p.
136.
556 Ibidem.
557 Fruchon, P., op. cit., in Archives de Philosophie, v. 37, p. 237, 1974.
559 Lledó, E., op. cit., p. 97.Otexto em questão, “Lenguaje e Historia de la filosofía”, encontra-se em: Bubner, R., Cramer, K., Wiehl, R (eds.),
Hermeneutik und Dialektik: Aufsätze II: Sprache und Logik, Theorie der Auslegung und Probleme der Einzelwissenschaften. Tübingen: J. C. B.
Mohr (Paul Siebeck), 1970, p. 85-95.
573 Gadamer, H.-G., VMI, p. 443. A propósito disso, ver os textos de W. Humboldt “Über den Dualis” e “Einleitung zum Kawi-Werk”, in:
Schriften zur Sprache, Stuttgart: Reclam, 1995.
577 Ibidem.
581 Sobre esse tema, em Dilthey, ver: “Metaphysik als Motor der Hermeneutik: Über das ewig Metaphysische im Menschen bei Dilthey”, in:
Vedder, B., Was ist Hermeneutik?: ein Weg von der Testdeutung zur Interpretation der Wirklichkeit, Stuttgart: Kohlhammer, 2000, p. 69-91.
589 Ibidem.
594 Ibidem.
595 Grondin, J., EPH, p. 158. Conforme tradução pela Ed. Unisinos, p. 203-4.
596 Gadamer, H.-G., VMI, p. 488.
599 Fruchon, P., op. cit., Archives de Philosophie, v. 37, p. 547, 1974.
604 Fruchon, P., op. cit., Archives de Philosophie, v. 37, p. 549-550, 1974.
610 Vattimo, G., Rovatti, P. A., “Advertência preliminar”, in: Vattimo, G., Rovatti, P. A., Il pensiero debole, Milano: Feltrinelli, 1998, p. 10.
613 Apenas a título de exemplo do que ocorre em outros âmbitos não estritamente filosóficos, a física mais recente ocupa-se com uma nova
distinção interna cognominada de ‘física’ de Einstein e Newton (física ‘forte’) e física quântica de W. Heisenberg (física ‘fraca’): a física
moderna dá, “ao conceito de causalidade, dois significados distintos e cientificamente precisos, um mais forte que o outro, não havendo
acordo entre os físicos sobre qual desses dois significados se deva atribuir à palavra ‘causalidade’. Assim, alguns físicos e filósofos da ciência
utilizam essa palavra em seu sentido mais forte. Outros físicos e filósofos usam a palavra ‘causalidade’ em seu sentido mais fraco e a palavra
‘determinismo’ em seu sentido mais forte (...) Se alguém perguntar: ‘mantém-se a causalidade em mecânica quântica?’ sem, todavia,
especificar se se trata de causalidade em seu sentido mais forte ou no mais fraco poderá obter respostas aparentemente contraditórias de
físicos igualmente competentes. Um físico, usando a palavra ‘causalidade’ em seu significado mais forte, daria corretamente resposta
negativa. Um outro, interpretando a mesma palavra em seu sentido mais fraco, responderia afirmativamente, com igual correção”.
Heisenberg W., Física e filosofia. 4. ed., Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p. 22 e 23.
614 Sobre essa especificidade ver H. Cohen, Logik der reinen Erkenntnis e Ethik des reinen Wissens.
615 Peters, F. E., Termos filosóficos gregos: Um léxico histórico. 2. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p. 36-38.
616 Não desenvolveremos o “princípio da história efeitual” (Wirkungsgeschichte) por um motivo simples e central para nós: esse princípio,
central em VMI, serviu para Gadamer recolocar o problema das Ciências do Espírito num patamar mais coerente e apropriado. Por meio do
princípio da efetuação, mostrou a impossibilidade de se elaborar uma “ciência” do espírito humano. Contudo, mais tarde, ele mesmo criticou
a ênfase que dera ao “princípio da efetuação” em sua concepção de hermenêutica.
619 Sobre isso ver: Gernet, L., Droit et Société dans la Grèce ancienne. Paris: Recueil Sirey, 1995, especialmente as páginas 9-18, 61-81, 103-119.
622 Como era o título inicial de Verdade e Método I. Título inicial que o editor de então afirmou ser “inconveniente”, em outras palavras, não
suficientemente “filosófico-científico”. Jean Grondin retratou isso em uma de suas perguntas na entrevista que fez com Gadamer: “Sie haben
darauf angespielt, daß Ihr Verlag Bedenken gegen den ursprünglichen Titel ‘Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik’ hatte.
Daraufhin sind Sie auf den Titel ‘Wahrheit und Methode’ gekommen”. In: “Dialogischer Rückblick auf das Gesammelte Werk”, Gadamer-
Lesebuch / hrsg. von Jean Grondin, Tübingen: Mohr, 1997, p. 282.
625 Fruchon, P., “Hermeneutique, Langage et Ontologie. Un discernement du platonisme chez H.G.Gadamer”, Archives de Philosophie, v. 37,
p. 537, 1974.
626 Ver mais detalhes sobre esta expressão: Rohden, Luiz. “A ontologia hermenêutica de Hans-Georg Gadamer”, in: Revista portuguesa de
filosofia, 56 (2000), 543-557.
629 Berti, E., “Cómo argumentan los hermeneutas?”, in: Vattimo, G. (comp.), Hermenéutica y racionalidad, Colômbia: Norma, 1994, p. 56-57.
633 Fruchon, P., op. cit., Archives de Philosophie, v. 37, p. 535, 1974.
637 “Das ist Hermeneutik, zu wissen, wieviel immer Ungesagtes bleibt, wenn man etwas sagt”. Gadamer, H.-G., in: Grondin, J. (Ed.),
Gadamer-Lesebuch, Tübingen: Mohr, 1997, p. 286.
638 Stein, E., Diferença e metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 82 e 84.
639 Fruchon, P., op. cit., Archives de Philosophie, v. 37, p. 537, 1974.
Conclusão
Enfim, mais que repetir quão pouco pôde ser dito acerca do que é possível dizer,
rememoraremos nossa experiência escriturística em torno da identidade da hermenêutica filosófica.
Como todo ato de escrever, experienciamos a tensão, as dificuldades e os problemas produzidos pela
relação entre criatividade e forma conceitual, entre verdade e método, entre o dito e o que não é possível
dizer totalmente, entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem.
Pretendíamos, inicialmente, de forma maniqueísta, contrapor uma racionalidade – um modus
filosófico, mais amplo e profundo, configurado pela hermenêutica – ao reducionismo da filosofia da
reflexão. Hermeneuticamente, ao longo da gestação e parição da reflexão que configurou o presente livro,
não apenas nos tornamos conscientes do que nos movia, mas também, a partir das nossas pré-
compreensões, é que pudemos traçar o perfil da hermenêutica filosófica. Não fossem elas, não
poderíamos – em trazendo-as à luz, repensá-las, criticá-las, redirecioná-las – justificar a hermenêutica
enquanto filosofia, uma vez que ninguém parte de um grau zero de conhecimento. Essa experiência
hermenêutica, esse modo de pensar e proceder são traços constituintes da identidade da hermenêutica
filosófica.
Nosso projeto inicial possuía um matiz técnico, pois, diante do reducionismo da razão moderna,
contrapúnhamos e justificávamos a concepção de uma hermenêutica filosófica, como se fosse um antídoto
contra os males dela. Fundamentais para nossa tomada de consciência e mudança de rota foram os
diálogos que tive com o próprio Hans-Georg Gadamer, que, por palavras e por seu modo de ser socrático,
ao falar das limitações de Verdade e Método I e defender a hermenêutica como uma postura (Tugend),
lançou luz e coragem para redirecionarmos nosso pré-projeto. O ambiente hermenêutico acadêmico de
Heidelberg foi decisivo para a reconfiguração das nossas perspectivas projetuais primeiras. Neste
Lebenswelt hermenêutico640, em discussões e diálogos com o prof. Reiner Wiehl – o discípulo crítico de
Gadamer, e por isso muito apreciado por este –, desvelamos e explicitamos a concepção de experiência
como o fio constituinte e constituidor da hermenêutica filosófica enquanto arché a partir do confronto com
a Fenomenologia do Espírito de Hegel. Desenvolvemos então o princípio da experiência hermenêutica que
passou a conferir uma unidade à nossa concepção de hermenêutica filosófica, enquanto filosofia, uma vez
que a experiência hermenêutica perpassa as questões éticas, políticas, estéticas, ontológicas e metafísicas.
Não substituímos, simplesmente, o lógos apophantikós pelo lógos hermeneutikós, nem dissertamos
historicamente sobre o tema da hermenêutica. O que emergiu do nosso filosofar – de nossas idas e vindas
aos textos e dos diálogos com quem se dedica com seriedade ao tema em questão – tem uma espinha
dorsal temática, não historiográfica. Estruturamos a hermenêutica filosófica como uma postura (Tugend),
um modo de ser, não como um método, uma doutrina, um sistema de regras para interpretar textos ou
uma ferramenta a serviço das ciências. Através da argumentação procuramos repensar e redirecionar os
caminhos possíveis da hermenêutica filosófica em seu viés ontológico e metafísico.
Em nosso primeiro capítulo, mostramos as limitações de boa parte da filosofia moderna, tentada
a reduzir-se a um método, à análise lógica de proposições, eliminando a própria metafísica. A própria
hermenêutica moderna assumiu esse caráter instrumental. Ante tal perspectiva, apresentamos o projeto
da filosofia aristotélica como uma alternativa por partir de dois pressupostos fundamentais: a concepção
de zoon logikon – zoon politikon e a de que “a exatidão matemática não se deve exigir em todos os casos”. A
racionalidade retórica, em Aristóteles, constitui um modelo atual e exemplar corretivo para o
estreitamento da razão, enquanto teoria argumentativa, uma vez que articula lógica, ética, poética,
política, ontologia metafísica num todo discursivo. Mas é ainda insuficiente, pois falta na perspectiva
filosófica do estagirita a dimensão da subjetividade e da historicidade. Encontramos na explicitação dos
jogos de linguagem do 2º Wittgenstein uma virada interna no rumo da filosofia de cunho lógico-analítico.
Contudo, a retomada e a apresentação dos jogos de linguagem é ainda um contributo insuficiente, pois o
2º Wittgenstein permaneceu preso nas malhas do modelo filosófico científico-moderno em seu viés
pragmático. Foi na concepção de experiência hermenêutica – sua linguagem – que encontramos o lugar, a
base, para repensar com radicalidade a unilateralidade da razão moderna. Mais que um fio condutor,
mostramos que ela não é uma categoria que pretenda esgotar em si o real, mas um arché da hermenêutica
filosófica. Arché enquanto origem, como aquilo que a fundamenta, não apenas como o fundamento
indemonstrável. Por isso mesmo, diferentemente dos princípios da ontologia tradicional, o princípio da
experiência não apenas move o filosofar – como uma espécie de causa incausada –, mas é seu próprio
movimento. A experiência não é concebida mais como experimentação nem como uma etapa para chegar
à certeza absoluta, mas sim como um saber aberto e autoimplicativo. Retomando Hegel, por meio de
Gadamer, justificamos que ela se converte no princípio central – mais que o princípio da história da
efetuação (Wirkungsgeschichte) – da hermenêutica filosófica. Daí por que a tarefa da hermenêutica
filosófica “tem que refazer o caminho da Fenomenologia do espírito hegeliana enquanto em toda
subjetividade se mostra a substancialidade que a determina”. A experiência hermenêutica não é hegeliana
– embora passe por ela e retome aspectos de sua pretensão de correção da filosofia da reflexão; pois com
ela não se trata mais de apreender a “essência” da experiência dialeticamente, mas de pensar e apreender
a própria dialética a partir da “essência” da experiência hermenêutica. Na verdade, fundamentando desse
modo a hermenêutica filosófica, mostramos que a experiência é o princípio de toda a filosofia e que a
retomada dela – ampliando-a e corrigindo as circunscrições a que foi limitada – possibilita um filosofar
mais coerente com o sentido da vida.
Ora, como o princípio da experiência não permanece vagando no ar e como não se trata de um
conceito abstrato, argumentamos sobre seu modo de proceder. Por essa razão explicitamos e
desenvolvemos caminhos – enquanto modelos estruturais, enquanto modos de pensar, de conhecer e de
agir que facultam o acontecer da experiência hermenêutica – para a hermenêutica filosófica efetivar-se.
Sem seguir o modelo científico que separa método e objeto na filosofia – que é próprio da teoria do
conhecimento –, desenvolvemos esse efetivar-se como metodologia da hermenêutica filosófica.
Retomando a virada realizada pelo 2º Wittgenstein por meio dos jogos de linguagem, no interior da
própria filosofia, aprofundamos a noção de jogo como modelo estrutural para explicitar e fundamentar o
modo de proceder da hermenêutica filosófica. A retomada do jogo como modelo estrutural da
hermenêutica filosófica não se deveu apenas ao emprego que dele fizeram, tanto o 2º Wittgenstein quanto
Gadamer. Antes se deve ao fato de o jogo consistir numa prática enquanto experiência que revela e
possibilita o acontecer do filosofar com sentido sempre atual. O filosofar é um jogar, iluminado a cada
instante pela noção de totalidade, e a filosofia não pode se constituir em um sistema de conceitos opacos e
fechados sobre si mesmos. Ela se dá num jogo em dois níveis: de um lado, ela é obra e sistema, onde os
conceitos estão relacionados, necessariamente, uns aos outros, de modo que cada um manifesta o todo; de
outro lado, é um sistema que permanece aberto e que abre possibilidades de efetivar uma experiência de
totalidade autêntica, pois se relaciona com a postura do filósofo e com os eventos de sua vida, que ele
procura iluminar e compreender. A exemplo do que ocorre no jogo do culto, o filósofo não visa jogar
somente para construir um sistema absoluto, mas se joga também em sua filosofia. Ao lado da noção de
jogo aprofundamos a concepção de círculo hermenêutico para justificar melhor o acontecer do princípio
da experiência. A apropriação do mito de Hermes – e com isso o controvertido tema da etimologia da
hermenêutica – constituiu-se numa estratégia para justificar a amplitude polifacética da hermenêutica
filosófica. A autêntica circularidade hermenêutica não se submete a qualquer fixação – assim como
Hermes, que não tem morada fixa –, e, por isso, mau filósofo é o que pensa que pode ou deve ficar com a
última palavra. Muito mais que um como (wie) descritivo, a hermenêutica, em seu movimento circular,
constitui-se em um enquanto (als) no tempo e no espaço, que, como Hermes, interliga as margens da
finitude e da transcendência, da contingência e da metaempiria, instaurando a terceira margem, a “coisa
mesma”, que denominamos de sentido. Mostramos e fundamentamos que método e objeto, forma e
conteúdo, transcendência e imanência, dito e não dito estão interpenetrados e formam uma totalidade. A
identidade da hermenêutica filosófica revela-se, entre outros modos, como um entre (Zwischen), um
vaivém entre os polos mencionados.
O princípio da experiência – sua linguagem –, explicável pelo acontecer do jogo e pelo círculo
hermenêutico, tem sua outra face e seu lugar culminante no diálogo. Embora Gadamer tenha enfatizado o
jogo como o modelo estrutural mais apropriado da hermenêutica, justificamos, mais explícita e
detalhadamente, o diálogo – com seus diferentes níveis, suas condições e exigências próprias – como seu
modo de acontecer por excelência. A linguagem, irredutível a enunciados lógicos, acontece de forma mais
plena enquanto diálogo, onde instauramos o sentido, enquanto direção de sentido, à base da palavra das
respostas e das perguntas situadas no tempo e no espaço. Ele é ontológico, pois possui regras e exigências
que, na verdade, são aquelas que devem compor todo exercício filosófico autêntico, autoimplicativo. Por
meio do diálogo podemos “chegar às coisas mesmas”, e é quando nos expomos à possível concepção
oposta que temos chances de ultrapassar a estreiteza dos nossos próprios pré-conceitos. Esta remissão
explícita e insistente ao outro diverge, num certo sentido, da perspectiva projetual do jogo em que a
ênfase recai sobre o refreamento da onipotência da subjetividade moderna. O que caracteriza
especificamente o diálogo – mais que um “eu” destronado, jogado, afetado – é a ênfase na relação com o
outro, pois a vivência do jogo dialógico hermenêutico extrapola, corrige e alarga nossos horizontes e pré-
conceitos. Na experiência dialógica, somos interpelados e solicitados a responder, e é no confronto com o
diferente que se revela e se constitui nossa identidade. As perguntas e respostas filosóficas constituem um
campo de disputa, de luta, onde os parceiros descobrem-se e comprometem-se com um modo de agir. Por
isso afirmamos que o diálogo filosófico é existencial, é uma experiência, ao passo que a dialética hegeliana
– em boa parte – é formal, abstrata e deve ser convertida em dialética dialógica. O diálogo autêntico
possui uma força transformadora e, quando acontece, fica algo em nós e algo que nos transforma. Ser
parceiro do diálogo significa ser capaz de aceitar e levar a sério a possibilidade de o outro também poder
ter razão. Implica também tomar consciência de quão pouco sabemos do que é possível saber, sendo
implícita uma totalidade que nos convoca a compreendermos nossa finitude a partir dela. Justificamos a
dimensão do ouvir como exigência e condição fundamental do filosofar a partir das palavras de
Gadamer, “nós precisamos aprender que no ouvir ao outro se abre o verdadeiro caminho, no qual se
forma a solidariedade” (grifo nosso) e a partir do qual instala-se – em suas mais variadas formas de ser – o
diálogo hermenêutico.
A linguagem, irredutível à instrumentalização ou à simples metodologia, ocupa, em Gadamer, o
lugar do Ser em Heidegger e do Espírito em Hegel; por isso ela é a base e o cimo da hermenêutica
filosófica, uma vez que “tudo que tem de ser pressuposto na hermenêutica é unicamente linguagem”. A
relação entre hermenêutica e linguagem entrelaça-se com a responsabilidade ética, enquanto tarefa crítica
de desenfeitiçar a linguagem. A linguagem constitui-se em arché, no sentido de princípio, origem, ponto
de partida e de chegada da filosofia, enquanto caminho que sobe e desce, uma vez que é nela que o
filosofar se constitui. Ela, como o ar, não é apenas a condição de possibilidade para “o voo da pomba”,
mas o medium no qual existimos, somos e pensamos; ela não é “a vestimenta do pensamento, senão que é
seu verdadeiro corpo. O pensamento não é nada sem a palavra”.
A partir do diálogo como modo mais próprio para a hermenêutica filosófica efetivar-se e da
linguagem como medium da experiência hermenêutica, compreendemos a nossa experiência do mundo,
que não se produz só na aprendizagem da fala nem se esgota no dito. A hermenêutica filosófica não se
reduz ao nível epistemológico-metodológico, mas pressupõe, justifica-se e tece uma ontologia a partir de
outra concepção de metafísica. Constatamos isso pelo fato de estar às voltas com o que chamamos de pré-
reflexivo, de Lebenswelt, irredutível à dissecação analítica ou ao cálculo matemático. Ela tem presente
também o não dito e o que é posterior ao apofântico. Justificamo-la como um modo de ser, mais que uma
maneira de conhecer, pois o ser se diz de muitas e diversas maneiras de ser no tempo e no espaço. Ao
lado da ontologia hermenêutica em Gadamer – restrita à questão da universalidade e à acepção de
mundo – estruturamos a hermenêutica ontológica. Esta constitui-se com os princípios da experiência e da
linguagem, enquanto princípios ontológicos fundamentais e fundamentadores, efetuáveis pelos modelos
estruturais do jogo, do círculo e pelo modo de ser do diálogo.
Um dos nossos pontos de partida fundamentadores da hermenêutica ontológica assenta-se na
concepção de Ser que “é a vida, o movimento circular de uma identidade que produz e habita sua
exteriorização sem se separar dela, que engendra seu outro sem jamais cessar de se reconhecer aí e de se
encontrar aí”. Justificamos a hermenêutica filosófica, que pressupõe e carrega uma concepção de
metafísica subjacente e estruturante da ontologia. Entre outras formas, na enigmática e densa afirmação
“ser que pode ser compreendido é linguagem”, encontramos o ponto que corrobora essa posição. A
ontologia, enquanto ciência do ser, explicita-se e acontece numa linguagem que, enquanto estrutura
argumentativa, traça o perfil de outra ontologia coerente com a finitude e mobilidade da vida humana.
Considerando a hermenêutica um “saber o quanto sempre não está sendo dito quando se diz algo”, uma
relação agônica e inesgotável entre ser e linguagem, estamos às voltas com a totalidade, seja da postura
do ser (ontologia), seja da linguagem (metafísica). Desse modo, a hermenêutica ontológica não alberga
nenhuma violência, nenhum tipo de autoritarismo, nenhuma dedução necessitária, mas – entre ser e
linguagem e vice-versa – institui-se um diálogo contínuo e interminável, uma vez que não fixou um ideal
de conhecimento universalmente obrigatório e definitivo.
A estruturação da hermenêutica filosófica nasceu da tensão produzida entre, por um lado, uma
exigência metodológico-sistemática e, por outro, a exigência própria, criativa, situada no tempo e no
espaço do filosofar. Poderíamos resumir essa tensão, que caracteriza o filosofar explicitado na Verdade e
Método, com as palavras gadamerianas “minha necessidade era a de tornar-lhes claro que a hermenêutica,
enquanto filosofia, não é qualquer disputa de métodos com outras ciências, teorias das ciências ou coisas
tais, mas um modo de mostrar que – e isso ninguém pode negar – em cada momento em que pomos
nossa razão a trabalhar, não fazemos apenas ciência”641.
Em Verdade e Método, a conjunção e não é uma linha que limita e impede o amor à verdade ou
que dicotomiza o saber e o rigor metódico das ciências modernas ou que soma simplesmente verdade ao
método, destruindo a especificidade de cada uma dessas dimensões da filosofia. A conjunção e constitui
um lugar, um medium, que articula verdade e método, constituindo o movimento de sístole e diástole do
filosofar.
Não seria muito difícil apresentar a hermenêutica do ponto de vista metodológico, tal como
propuseram F. Schleiermacher e W. Dilthey, que seguem o modelo das ciências naturais para
fundamentá-la. Mas, com o hermeneutic turn, Heidegger e Gadamer redirecionaram os rumos da própria
filosofia, e, por essa razão, a hermenêutica filosófica não pode mais ser delimitada ao âmbito
metodológico. Como o próprio filosofar, a hermenêutica filosófica possibilita sempre poder perguntar e
responder de novo. Com a justificação de Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a
experiência da linguagem, apontamos pistas para filosofar enquanto um saber acerca do não saber na
medida em que “buscamos compreender o outro, o desconhecido, o ignoramus e o ignorabimus, esse não
saber do homem acerca de sua própria situação no mundo – no curto espaço temporal da vida, que acaba
com a morte”642. Conservar o termo grego arché para denominar experiência e linguagem filosóficas não
foi algo arbitrário. Arché não como o fundamento inabalável, mas o que fundamenta e constitui a própria
filosofia. Despimo-lo do seu caráter de absolutidade, de fundamento inconcusso do real, desvelando-o
como aquele pathos e tarefa original de levar o homem à compreensão de si mesmo, que moveu e
continua movendo as pessoas a filosofarem. Arché enquanto método de discussão, de proposição de teses
e antíteses, de perguntas e de respostas, de argumentos e objeções acerca dos problemas e questões que
dizem respeito às preocupações das pessoas. Apenas o autoconhecimento pode nos livrar das ameaças e
ideologias externas das quais somos dependentes. O saber hermenêutico, por ser autoimplicativo,
instaura uma experiência que realizamos toda vez que procuramos transcender nossa realidade empírica
e nos compreender enquanto totalidade. Enquanto experiência, afeta nosso modo de conhecer e de agir;
por isso mais vale o sabor do saber que o dissabor do conhecer; daí que a tensão insolúvel entre palavra e
conceito, verdade e método, linguagem da experiência e experiência da linguagem, mantém viva e descoberta
a chama do amor ao saber.
Em contraposição ao solipsismo disseminado pela filosofia moderna e contemporânea, a
hermenêutica filosófica, em seu discurso, pressupõe, justifica e articula a alteridade, o que implica uma
relação com a ética, com a política expressável nas palavras “a possibilidade de o outro ter razão é a alma
da hermenêutica”. A hermenêutica filosófica realiza-se como um caminho reflexivo relacional entre saber
e agir, explicação causal e visão teleológica. Temos consciência da centralidade da imbricação entre
hermenêutica e o outro – enquanto ele que constitui o nós – que foi explicitada, mas mereceria um
aprofundamento posterior.
A hermenêutica filosófica, enquanto filosofia, mais que um instrumento ou antecâmara da
metafísica, pois não se move apenas no domínio do apofântico, pressupõe e possibilita a efetuação da
relação necessária entre conhecimento e práxis, entre epistemologia e situação espaçotemporal da
humanidade num discurso tecido entre os pontos da experiência e da linguagem que se configura na
forma de rede.
Oferecemos um conjunto de argumentos e pistas que podem orientar uma discussão sobre a
identidade e importância da hermenêutica filosófica enquanto filosofia, sem a pretensão de possuir a
última palavra. Em sua tarefa crítica e responsável, a hermenêutica filosófica contribui para repensar e
reorientar problemas éticos, ecológicos, políticos, pois, mais que um modo de conhecer, trata-se de uma
postura que conserva a tensão entre verdade e método. Ela evoca, em primeira e última instância, a
postura socrática segundo a qual uma vida que não é examinada não vale a pena ser vivida, onde o
filosofar que não contribui para examinar nossas vidas com nossos conceitos e pré-conceitos deixa de ser
amor ao saber, para se converter em paixão pelo poder, obcecada apenas com a elaboração de
argumentos de caráter estratégico.
Com a hermenêutica filosófica, reavivamos a concepção de filosofia como o amor ao saber que
nos possibilita ser e viver mais felizes. A volta de Gadamer à filosofia grega tem por escopo resgatar a
dimensão do conhecimento enquanto saber vinculado à vida e à atividade do filósofo e reinserir, na
reflexão filosófica moderna e contemporânea, o problema da vida eudaimônica, no sentido proposto pela
pólis grega, estendida, hoje, a todas as pessoas.
No desenvolvimento de nossa reflexão corporificada neste livro – que poderia ser chamado de
uma introdução à compreensão da hermenêutica filosófica gadameriana –, tivemos que fazer opções,
recortes. Percebemos a necessidade de aprofundar e tematizar melhor, p. ex., a relação entre
hermenêutica e ética, entre a concepção de linguagem gadameriana e a desenvolvida por Chomsky e
outros. Valeria a pena desenvolver as relações entre a hermenêutica filosófica de Gadamer e a teoria da
narração de P. Ricoeur, bem como estabelecer relações entre aquela e a concepção de ética desenvolvida
por E. Levinas. Seria profícuo explicitar a relação entre Gadamer e Nietzsche no tocante à questão da
interpretação e da verdade. Num momento posterior, precisaríamos confrontá-la com outras áreas do
conhecimento, como as ciências sociais e jurídicas, história, ciências da comunicação, literatura,
psicanálise, etc.
Como toda obra precisa ter seu fim, concluímos nossa reflexão recordando o que consideramos a
alma da hermenêutica filosófica, ou seja, a alteridade e a solidariedade em oposição a uma concepção de
filosofia estéril, dogmática ou delirante. Com as palavras do próprio Gadamer afirmamos em forma de
conclusão: “o caminho vai da ‘palavra ao conceito’ – mas precisamos chegar do conceito à palavra, se
quisermos alcançar o outro”, ou seja, “se não aprendermos a virtude da hermenêutica, isto é, se não
reconhecermos que se trata, em primeiro lugar, de compreender o outro, a fim de ver se, quem sabe, não
será possível, afinal, algo assim como solidariedade da humanidade enquanto um todo, também no que
diz respeito a um viver junto e a um sobreviver com o outro (grifo nosso), então – se isso não acontecer –
não poderemos realizar as tarefas essenciais da humanidade”643, examinando nossa forma de conhecer e
nosso modo de agir. A hermenêutica filosófica – diferentemente da postura metafísica objetivista ou
subjetivista – parte da concepção de um saber autoimplicativo que se plenifica num jogo circular
dialógico. Ela não se coloca na esteira do projeto que procura erradicar a metafísica, mas busca superar
um modelo de conhecimento que não se pauta pela perspectiva autoimplicativa de conhecer.
A hermenêutica filosófica, enquanto “o saber do quanto fica sempre de não dito, quando se diz
algo”, pressupõe e põe o problema da totalidade de forma não totalitária. Desse modo, ela se converte em
metafísica, pois, sem objetificar o próprio ato filosófico, articula o dito e o não dito, o empírico e o
transcendental, o dado e nossa experiência conceitual sobre o nosso filosofar. Lembremos que, não por
acaso, apresentamos em nossas páginas iniciais a tese de superação da metafísica proposta por Carnap.
Com ela não pretendíamos engrossar as fileiras da marcha fúnebre do enterro da metafísica ocidental.
Pelo contrário, na e com a hermenêutica filosófica sopramos as cinzas que se acumularam sobre a
metafísica nas últimas décadas, fazendo-a renascer e dando-lhe um novo alento para viver enquanto
estrutura argumentativa que faculta examinar nossas vidas como e dentro de uma totalidade de sentido.
A pretensão de mostrar e fundamentar a hermenêutica filosófica, a partir dos princípios da
experiência e da linguagem, justifica-a como uma metafísica, pois nossa preocupação e projeto
consistiram em repensar a concepção de filosofia enclausurada nos ditames do cogito ergo sum, que,
olvidando os passos das pessoas, perde-se no gozo dos seus devaneios e surtos supostamente filosóficos.
Não que a hermenêutica seja uma espécie de panaceia para as limitações da razão – embora ofereça dicas
terapêuticas para psicopatologias da academia –, mas ela leva a sério a vida e oferece novas
possibilidades de continuarmos filosofando, para vivermos mais livres e solidários.
Com a explicitação dos princípios da experiência e da linguagem da hermenêutica filosófica,
justificamos a crítica e a renovação da metafísica objetivista e subjetivista, salvaguardando o valor do ser,
da coisa em si, relacionados com o sujeito livre. Essa noção de metafísica está para ser instaurada à
medida que filosofarmos com as condições e as exigências semeadas ao longo do nosso caminho. Assim,
a metafísica e a ontologia – implícitas e constituintes da hermenêutica filosófica – explicitam-se agora
melhor na releitura deste livro, pois o caminho que nos trouxe até aqui é o mesmo que nos leva de volta
ao início. Nessa (re)leitura circular poderemos, agora, compreender, não apenas melhor, mas de outro
modo, que a hermenêutica filosófica – na verdade – repensa e atualiza o filosofar cristalizado pela
metafísica e ontologia ocidentais com uma noção de saber que carrega e conserva consigo a tensão
produtiva entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem, isto é, o quanto não está sendo dito
quando se diz algo.
640 Onde contatei e conversei com os professores, discípulos de Gadamer: Jean Grondin, Lawrence Schmidt, Richard Palmer, Günter Figal,
Rüdiger Bubner, Dennis Schmidt.
641 Gadamer, H.-G., Die Moderne und die Grenze der Vergegenständlichung, mit Beiträgen von Hans Belting, Gottfried Boehm, Walther Ch.
Zimmerli; Radierungen Sean Scully, München: Bernd Klüser, 1996, p. 39-40.
643 Gadamer, H.-G., Die Moderne und die Grenze der Vergegenständlichung, p. 38.
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Über die Verborgenheit der Gesundheit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996. (1135)
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