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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

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© 2002 Luiz Rohden
Hermenêutica filosófica
Entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem
(Originalmente apresentado como tese.)

2002 Direitos reservados à Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos

EDITORA UNISINOS

R737h

Rohden, Luiz.
Hermenêutica filosófica : entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem / Luiz Rohden – São
Leopoldo, RS : Ed. UNISINOS, 2019. (Ideias)

1 recurso online.
ISBN 978-85-7431-828-8

1. Diálogo. 2. Hermenêutica. 3. Linguagem e línguas – filosofia. I. Título. II. Série.

CDD 121.68
CDU 165.43

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Bibliotecária: Silvana Dornelles Studzinski – CRB 10/2524)

Coleção Ideias
Direção de Marcelo Fernandes de Aquino

Editor
Carlos Alberto Gianotti

Preparação
Rui Bender

Revisão
Janaína Lemos
Renato Deitos

Produção do e-book
Schäffer Editorial

Capa
José Luís Ströher

A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins
didáticos, sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura. Foi feito o depósito legal.
Agradecimentos e dedicatória

Caro/a leitor/a, chamo a atenção para o fato de que, após quatro anos de pesquisa intensa, este
livro – originariamente uma tese doutoral – é fruto de diálogos, de encontros e de apoio de muitas
pessoas a quem sou imensamente grato.
Ressalto, com gratidão, o privilégio e a fecundidade dos encontros e dos diálogos que tive com
Hans-Georg Gadamer nas ocasiões na Universidade de Heildelberg – Alemanha. Do ambiente acadêmico
de Heidelberg destaco ainda a discrição, a competência e a densidade das dicas e pistas do Prof. Reiner
Wiehl que contribuíram para a qualificação desse livro. Agradeço a presença amiga, honesta e
competente do Prof. Hans Georg Flickinger, que, com suas observações e sugestões, teve um papel
fundamental na construção desta obra!
Agradeço o auxílio pesquisa da CAPES recebido por ocasião do doutorado. Agradeço o auxílio
das horas de pesquisa concedido pela Universidade do Vale do Rio do Sinos – UNISINOS por ocasião da
redação da tese. Passados 19 anos da publicação na forma impressa, com duas reedições nesse tempo,
registro meu agradecimento ao CNPQ, pela modalidade Bolsa PQ e à FAPERGS, pela bolsa Pesquisador
Gaúcho, PQg, que me possibilitaram publicar agora na versão online atendendo à demanda e interesse
crescente pela Hermenêutica filosófica, mormente a gadameriana, no Brasil.
Enfim, meu agradecimento de coração e de alma, às minhas amadas, mulher Cláudia e minhas
princesas Helena e Alice. Aos meus pais Camilo – in memoriam- e Inês, irmãos Luciano e Ricardo e irmãs,
Judite, Janete, Leane, pelos laços humano-afetivos tecidos, a minha gratidão. Enfim, aos amigos e colegas
docentes da Unisinos e todos os estudantes interessados na temática contemplada aqui, meu cordial
muito obrigado.
Isto é hermenêutica:
o saber do quanto fica, sempre,
de não dito quando se diz algo.

Das ist Hermeneutik, zu wissen,


wieviel immer Ungesagtes bleibt,
wenn man etwas sagt (H.-G. Gadamer)
Sumário

Siglas
Apresentação
Introdução

Capítulo I: Aexperiência como princípio da hermenêutica filosófica

1.1 Situação histórico-conceitual da hermenêutica


Aspectos situacionais da filosofia moderna e contemporânea
Superação da filosofia moderna e contemporânea pela racionalidade retórica
Superação da concepção moderna e contemporânea de filosofia pelos jogos de linguagem

1.2 O hermeneutic turn em Heidegger e Gadamer Situação histórica


Hermenêutica da facticidade

1.3 A experiência, um princípio da hermenêutica filosófica


Traços gerais e diferentes dimensões da experiência
O princípio da experiência a partir da Fenomenologia do Espírito*
Traços constitutivos da experiência hermenêutica

Capítulo II: Ojogo e o círculo hermenêutico como modelos estruturais da experiência hermenêutica

2.1 O jogo como modelo estrutural da experiência hermenêutica


Justificativas para emprego do jogo como “método”
Acerca da dignidade filosófica do jogo
Elementos e função do jogo na filosofia do 2º Wittgenstein e de Gadamer
Traços fundamentais do jogo enquanto modelo estrutural da hermenêutica filosófica

2.2 O círculo hermenêutico como o enquanto da hermenêutica filosófica


Acerca da dimensão mítico-etimológica da hermenêutica
O círculo hermenêutico como metodologia hermenêutica
Círculo hermenêutico, o enquanto da hermenêutica

Capítulo III: Hermenêutica filosófica enquanto diálogo, linguagem e ontologia

3.1 O diálogo como o lugar da experiência hermenêutica


Situação, níveis e empecilhos do diálogo
O acontecer do diálogo hermenêutico
O ouvir como exigência e condição central da hermenêutica filosófica

3.2 A linguagem como princípio da hermenêutica filosófica


Hermenêutica e linguagem
Ciência da linguagem e linguagem da hermenêutica filosófica
Linguagem da hermenêutica filosófica

3.3 Hermenêutica filosófica enquanto ontologia


Traços da ontologia hermenêutica na obra de Gadamer
Hermenêutica filosófica enquanto hermenêutica ontológica
Hermenêutica ontológica e metafísica

Conclusão

Bibliografia
Siglas utilizadas para textos de H.-G. Gadamer

AkSch → “Die Aktualität des Schönen; Kunst als Spiel, Symbol und Fest”;
DeHe → “Dekonstruktion und Hermeneutik”;
GeGe → “Gedicht und Gespräch. Überlegungen zu einer Textprobe Ernst Meisters”;
GreSpra → “Grenzen der Sprache”;
HeSpra → “Heimat und Sprache”;
HeKF → “Klassische und philosophische Hermeneutik”;
HhoD → ”Hermeneutik und ontologische Differenz”;
HoLe → “Mensch und Sprache”;
HoSeLe → “Hören – Sehen – Lesen”;
IdHe → “Die Idee der Hegelschen Logik”;
InDi → “Die Unfähigkeit zum Gespräch”;
LeCo → “Sprache und Verstehen”;
LePrePe → “Wie weit schreibt Sprache das Denken vor?”;
MiSp → “Mit der Sprache denken”;
MiLo → “Mythos und Logos”;
MiVe → “Mythos und Vernunft”;
MiOf → “Mythologie und Offenbarungsreligion”;
PhäSpra → “Zur Phänomenologie von Ritual und Sprache”;
PhBe → “Die phänomenologische Bewegung”;
PHhMf → “Phänomenologie, Hermeneutik, Metaphysik”;
ReHe → “Rhetorik und Hermeneutik”;
SeHe → “Semantik und Hermeneutik”;
SoCi → “Vom Zirkel des Verstehens”;
SpKu → “Das Spiel der Kunst”;
StiSp → “Stimme und Sprache”;
SuIn → “Subjektivität und Intersubjektivität, Subjekt und Person”;
UnHe → “Die Universalität des hermeneutischen Problems”;
VeWe → “Die verkehrte Welt”;
ViSpra → “Die Vielfalt der Sprachen und das Verstehen der Welt”;
VMI → Hermeneutik I: Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik, 1986, 2.
Aufl. 1990;
VMII → Hermeneutik II: Wahrheit und Methode. Ergänzungen, Register, 1986, 2. Aufl. 1993.

Siglas utilizadas para outros textos

EG → Einführung zu Gadamer (J. Grondin)


EPH → Einführung in die philosophische Hermeneutik (J. Grondin)
FE → Fenomenologia do espírito (W. F. Hegel)
GdEr → “Gadamers hermeneutischer Erfahrungsbegriff” (R. Wiehl)
HdGdOn → “Heidegger, Gadamer und die Möglichkeit einer Ontologie heute” (R. Wiehl)
HhMf → “Hermeneutik und Metaphysik” (E. Coreth)
HW → Hermeneutische Wahrheit (J. Grondin)
IF → Investigações filosóficas (L. Wittgenstein)
QF → Questões fundamentais de Hermenêutica (E. Coreth)
TLP → Tractatus Logico-Philosophicus (L. Wittgenstein)
Apresentação

Convidado pelo autor a apresentar este seu trabalho desafiador, achei, num primeiro momento,
importante identificar o cerne de seu interesse pela filosofia de Hans-Georg Gadamer. Ao longo da leitura
do texto, veio-me à memória uma formulação gadameriana quanto à necessidade de reconquistarmos –
na filosofia hodierna e contra o domínio do conceito científico – a experiência da palavra falada e de seu
papel no conjunto da fundamentação de nosso saber. Numa retrospectiva de 1995, Gadamer observava
que a trajetória das ciências ocidentais teria apostado tudo na exclusividade da teoria construtiva,
fazendo dela a base legitimadora de nosso conhecimento. Com isso, acrescentava ele, se estaria perdendo
de vista a fala viva, o diálogo e sua primazia ontológica perante a reflexão. Pois bem, é justamente contra
tal unilateralidade da atenção epistemológica que a hermenêutica filosófica de Gadamer investe,
advertindo quanto à necessidade de caminhar “não apenas da palavra ao conceito, mas igualmente de
volta, do conceito à palavra”. Espírito este que, vivendo na linguagem e tendo seu espaço privilegiado no
diálogo, o próprio Gadamer, enquanto intelectual e professor, representava, sem dúvida, com perfeição.
Quem teve a sorte de conviver com ele – e Luiz Rohden o experimentou mais de uma vez na
Universidade de Heidelberg – viu-se sempre de novo agarrado pelo forte magnetismo dele emanado,
sendo que, mesmo em sua idade mais avançada, não deixava de entregar-se inteiramente ao horizonte da
linguagem falada, ao diálogo concreto com seus parceiros.
Com essas observações preliminares chegamos ao ponto crucial do trabalho que ora
apresentamos ao leitor. Pois nosso autor enfoca a virada ontológica com a qual a hermenêutica filosófica
contrapõe à cientificidade objetificadora das ciências modernas sua doutrina de compreensão, a qual
encontra na experiência da linguagem sua justificação mais sutil. A estratégia aí utilizada é tão simples
quanto eficaz. Num primeiro momento, apresenta-se ao leitor o caminho tomado por Gadamer na sua
obra principal, Verdade e Método, indicando-se aí algo acerca do lugar específico a ser ocupado por essa
concepção no conjunto do debate epistemológico. A experiência do jogo e do círculo hermenêutico abre-
nos acesso àquele gadameriano “vir ao encontro” ontológico que leva ao diálogo, reconhecido enquanto
“lugar da experiência hermenêutica”. Feito este passo, todo o peso argumentativo cai sobre a tematização
do potencial especulativo da linguagem, legitimando-se, assim, a virada ontológica.
O fato é que, em Verdade e Método, prevalece ainda a preocupação originária do filólogo clássico
com a interpretação de textos. Esse característico “ser para o texto” de Gadamer, como formula com certa
ironia O. Marquad, aponta muito bem o calcanhar de aquiles da obra mencionada. Aliás, foi o próprio
descontentamento do filósofo com esse estágio de sua argumentação que o motivou a investigar o
mistério do diálogo vivo, isto é, da dinâmica especulativa, inerente à linguagem. Daí por que, em
inúmeros ensaios publicados ao longo das três últimas décadas, o enfoque de Gadamer gira em torno
dessa questão.
Luiz Rohden retoma em seu trabalho exatamente esse aspecto chave da obra de Gadamer,
buscando contribuir para um melhor esclarecimento da experiência ontológica que, de e na linguagem,
subjaz a qualquer impulso da teoria filosófica de cunho reflexionante. Acelera-se, com isso, a corrosão da
pretensa soberania do sujeito conhecedor e do fetiche de objetificação – condições epistemológicas da
cientificidade moderna. O caminho assim percorrido encontra sua expressão correta no subtítulo do
trabalho de Rohden: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem.
Tal projeto é muito ousado, já que, partindo de Gadamer, Luiz Rohden pretende aperfeiçoar o
pensamento de Gadamer. Daí também os seus limites. Pois, se, por um lado, o leitor atento aprende a
lidar com uma doutrina de compreensão, cujo mérito principal consiste na descoberta da experiência
ontológica enquanto condição imprescindível de toda reflexão (condição enraizada na experiência da
linguagem viva, dentro da qual o próprio homem experimenta a si mesmo, buscando seu lugar no todo),
o leitor vê-se, por outro lado, abandonado a si mesmo quanto ao questionamento das implicações éticas,
ocultas num projeto de investigação todo voltado à recuperação da velha arte socrática de perguntar. Pois
só seguindo essas pistas chegaríamos a uma fundamentação ética da própria filosofia, tal como a
encontramos hoje, por exemplo, em Levinas.

Kassel, julho de 2001

Prof. Hans-Georg Flickinger


Introdução

A identidade, a importância e as implicações da hermenêutica filosófica, enquanto filosofia,


constituem os fios centrais deste livro. A obra filosófica de Hans-Georg Gadamer, o Sócrates
contemporâneo, merece, sem dúvida, um aprofundamento ulterior, além do que foi feito recentemente na
obra coletiva Hermenêutica filosófica: nas trilhas de Hans-Georg Gadamer.
Pontos de partida... Nossa investigação tem por ponto de partida a grande tradição filosófica
ocidental, situando-se no centro da pretensão de universalidade do lógos filosófico. A dependência e a
submissão de parte significativa do pensamento filosófico moderno e contemporâneo aos imperativos do
método das ciências naturais e da racionalidade instrumental, inerentes à filosofia da reflexão, são
amplamente conhecidas e discutidas hoje em dia. Neste sentido podemos falar da redução da filosofia a
um sistema fechado ou do seu esfacelamento e da falta de unidade relacional entre ciência, ética, política
e metafísica. Este cenário exprime a crise da razão moderna.
Ao analisarmos as pretensões e a história efetual da filosofia moderna e contemporânea,
deparamo-nos com problemas e com limitações que coincidem com as que encontramos ao longo do
itinerário da hermenêutica. Com efeito, a hermenêutica moderna limitou-se a importar para dentro de si a
metodologia das ciências epistemológicas. Por essa razão, ela será nomeada na presente investigação de
hermenêutica metodológica. As premissas da hermenêutica metodológica já se encontram no Íon de
Platão, no Perì hermenéias de Aristóteles, chegando até a obra de F. Schleiermacher (Hermeneutik, Werke
I/7) e W. Dilthey (Einleitung in die Geisteswissenschaften, Ideen über eine beschreibende und zergliedernde
Psychologie). A hermenêutica foi concebida, neste arco de tempo, fundamentalmente, como ‘arte da
compreensão’, ‘doutrina da boa interpretação’, ‘técnica da boa interpretação’, sendo aplicada inicialmente
a textos bíblicos, literários e jurídicos.
Sobre a história da hermenêutica pesa certo descrédito, seja pelas ilimitadas interpretações das
quais ela se tornou objeto, seja pelo que ela se propõe no universo filosófico, literário, jurídico e teológico.
Trata-se de um preconceito que se deixa retratar em afirmações como: ela é um instrumento; uma arte
sem a dignidade da epistéme; uma espécie de apêndice da filosofia; uma retórica, ou seja, um palavreado
sofístico, que serviria para argumentar tanto a favor quanto contra algo; enfim, um arcabouço conceitual
romântico, isto é, um discurso conservador, seja da tradição, seja da história, seja da linguagem; ela é uma
atividade harmonizadora, conciliadora, que, por isso, erradicaria o espírito crítico agônico e próprio do
filosofar; é relativista, não se constitui como ciência porque não é universal; e, sem o reconhecimento e a
validade espaçotemporal, sem estrutura e método definidos, é arbitrária e a-científica, ou seja, é fruto da
subjetividade.
Perspectivas filosóficas... A hermenêutica continua sendo considerada, infelizmente, um adendo à
filosofia. As suas limitações e os seus problemas são desafios que nos convidam a recolocar, para nossos
dias, o problema de configuração da identidade da filosofia a partir da hermenêutica.
Diante dos limites da razão moderna e das críticas dirigidas contra a hermenêutica, retomaremos
a tradição aristotélica da racionalidade retórica, isto é, da arte da argumentação. Pretender dar razão, em
parte, aos antigos não significa escamotear os atuais problemas filosóficos ou simplesmente reproduzi-los
literalmente. Isso significa, no caso da retomada da argumentação retórica, que o pensamento filosófico
moderno perceba a sua unilateralidade e aprenda com a filosofia antiga a compreender os problemas
filosóficos de forma mais universal e mais autêntica.
Nosso projeto de explicitação da hermenêutica filosófica a partir da obra de Gadamer assenta
seus pés no conjunto da filosofia moderna, retomando a tradição aristotélica e a tradição fenomenológico-
hermenêutica contemporânea. A hermenêutica filosófica não se legitima pela mera oposição quixotesca
ao reducionismo da filosofia moderna, mas nasceu e desenvolveu-se justamente também pela limitação
desta. Além do mais, ela é um rico veio filosófico, ignorado por boa parte da filosofia ocidental.
A hermenêutica é um novo topos koiné na e da filosofia. Gianni Vattimo levantou a hipótese de
que hoje ela preenche o lugar ocupado pelo marxismo nos anos 1950-1960 e pelo estruturalismo nos anos
1970. Nosso trabalho explicita criticamente o sentido, a atualidade, a importância e a validade da hermenêutica
filosófica enquanto filosofia, muito mais que moda ou corrente filosófica.
Mais que descrever, trata-se de mostrar o sentido, o alcance e a profundidade da concepção da
filosofia hermenêutica de Martin Heidegger e do projeto hermenêutico-filosófico de Hans-Georg
Gadamer. Examinando o conjunto da obra deste último, olharemos, por dentro e por fora, focalizaremos
os aspectos temáticos relativos à justificação da hermenêutica filosófica a partir da linguagem e da
experiência. Tematizaremos a experiência daquela e a linguagem desta. Para tanto, acompanharemos e
ouviremos o diálogo que o próprio Gadamer teceu com seus discípulos, tais como Reiner Wiehl, Jean
Grondin, Pierre Fruchon, Gianni Vattimo, Emílio Lledó, Valério Verra, Rüdiger Bubner. Participaremos
dos debates e discussões mais atualizadas sobre a hermenêutica filosófica. Mais do que ‘fazer’ uma
historiografia da hermenêutica – desenvolvida já exemplarmente nas obras de R. Palmer, J. Grondin e J.
Bleicher –, estruturaremos a hermenêutica filosófica a partir da linguagem da experiência e da experiência
da linguagem.
Este livro, além de contribuir para a divulgação do pensamento gadameriano em nosso cenário
acadêmico, presta um tributo à pessoa e às preocupações filosóficas de H.-G. Gadamer. Sua concepção de
hermenêutica é irredutível ao que escreveu em Verdade e Metódo I, e se desdobra e toma corpo ao longo
dos dez volumes da sua Gesammelte Werke.
Ao mostrar que a hermenêutica não é ciência, nem epistemologia pura, nem uma ferramenta
para alcançar determinados fins, nem um simples método para extrair o sentido subjacente aos textos,
pretendemos explicitar em que e como ela se constitui. Vamos explicitá-la, metodologicamente, em três
momentos distintos e interdependentes.
Trilhas e passos de nossa atividade... No primeiro capítulo desenvolveremos três patamares de
desenvolvimento do tema. No primeiro patamar apresentaremos os traços reducionistas da razão
moderna, retomando a racionalidade retórica e a concepção dos jogos de linguagem como caminhos
possíveis para superar as limitações dela. A virada do primeiro para o segundo patamar desenha este
último como passagem da hermenêutica epistemológica à ontológica, sob o tema de hermeneutic turn. No
terceiro patamar retomaremos e aprofundaremos a concepção de experiência como fio condutor –
fundamental e fundamentador – da hermenêutica filosófica. Fio que teceremos, basicamente, a partir da
Fenomenologia do Espírito de Hegel. Com seus acessos e traços fundamentais, como a negatividade, a
abertura, a finitude, a não objetificabilidade, justificaremos que a experiência hermenêutica, enquanto
princípio, é que constitui, mais que o princípio da efetuação (Wirkungsgeschichte), o ponto a partir e em
torno do qual a hermenêutica filosófica se fundamenta e acontece. Princípio que possibilitará superar o
reducionismo da razão moderna. Mostraremos que, em primeira e última instância, é a experiência o que
move e o que fundamenta o próprio filosofar. Por isso, vamos denominá-la de princípio filosófico – no
sentido de arché, de origem, de ponto de partida, daquilo que fundamenta e move. Assim a experiência,
enquanto arché, converte-se em um traço constituinte e constituidor da hermenêutica filosófica. Em certo
sentido, podemos afirmar que a experiência constitui aquilo que a tradição filosófica expressou sob o
termo ‘conteúdo’, da filosofia e, no caso, da hermenêutica filosófica.
No segundo capítulo, em continuidade à explicitação da linguagem da experiência
hermenêutica, mostraremos como esta se efetiva e acontece. A hermenêutica possui um caminho, um
modo de pensar e de conhecer, uma metodologia, diferente, mais ampla, que o método próprio das
ciências naturais. Não desenvolveremos a dimensão da metodologia hermenêutica, enquanto espaço e
lugar da experiência hermenêutica, apenas por contraposição ao método científico. A hermenêutica não
se esquiva do rigor e das exigências metodológicas que lhe são próprias. Dentre os muitos caminhos
metodológicos possíveis, optamos por destacar e por justificar o jogo e o círculo hermenêutico. O jogo –
como modelo estrutural metodológico (o termo modelo aqui deverá ser considerado como método no
sentido de modo de conhecer e de pensar) da hermenêutica filosófica – constitui uma retomada do
primeiro capítulo, onde apresentamos a concepção dos jogos de linguagem de Wittgenstein.
Precisaremos, contudo, aprofundar a concepção de jogo, pois tanto o 2º Wittgenstein quanto Gadamer
utilizaram-se dele, sem a preocupação de fundamentar e justificar sua proveniência, sua dignidade
filosófica.
O círculo hermenêutico é o segundo modelo metodológico estrutural da hermenêutica filosófica.
Ele constitui a metodologia mais conhecida e mais própria da hermenêutica. Focalizaremos, nesta altura,
a origem mítica da hermenêutica, encontrando em Hermes a noção de movimento e de circularidade
própria da hermenêutica. Na esteira da concepção de hermenêutica filosófica, o mito não pode ficar
relegado à pré-história da filosofia. Além do mais, o círculo hermenêutico, enquanto metodologia, é
próprio da hermenêutica, por constituir-se em enquanto filosófico.
Após a apresentação do reducionismo da razão moderna e a justificação da noção de experiência
hermenêutica como princípio filosófico constituinte e constituidor da hermenêutica filosófica que se
efetiva de modo apropriado pelos caminhos do jogo e do círculo hermenêutico, desenvolveremos, no
terceiro capítulo, as dimensões do diálogo e da linguagem. Desse modo explicitaremos a margem oposta
e complementar à linguagem da experiência, ou seja, a experiência da linguagem. Justificaremos então que a
hermenêutica filosófica possui a forma, o caminho e o modo de ser mais pleno no diálogo hermenêutico.
Gadamer mesmo reconheceu que, na IIª parte de Verdade e Método I, “o debate permanece ainda
demasiadamente restrito ao campo especial das ciências do espírito e ao Sein zum Text”, e em função disso
ressaltou que apenas “na IIIª parte ocorre o que na verdade se tem sempre em vista, a expansão à
linguagem e ao diálogo”1 (grifo nosso). O diálogo e a linguagem, juntamente com a experiência
hermenêutica, constituem os fios condutores principais com os quais teceremos a rede da hermenêutica
filosófica – entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem.
Considerando que a “linguagem só existe no um-com-o-outro do diálogo”, justificaremos, num
primeiro momento, que o diálogo é o que melhor articula, fundamenta e explicita nossa concepção de
hermenêutica filosófica. Nas trilhas de Gadamer, desenvolveremos o diálogo como o modo mais
apropriado de a hermenêutica filosófica realizar-se, alargando-o e mostrando que ele estrutura-se como
metodologia mais genuína, e por isso ontológica, mais apropriada que o jogo – como concluiu Verdade e
Método I. Apresentaremos então um breve histórico, as dificuldades e os níveis do diálogo, propondo, em
seguida, um esboço estrutural do diálogo hermenêutico à luz do modelo dialógico socrático. Nesse fato
apreendemos que não se trata de simples abstração nem de harmonização de polos contrários ou simples
reconciliação de posições antagônicas. O diálogo hermenêutico possui regras, exigências, condições
próprias, sem as quais não pode acontecer. No diálogo hermenêutico, as perguntas e as respostas
dialógicas têm traços e tempos próprios, onde a simultaneidade entre o perguntar e o responder aponta
para a unidade interna entre o dizer e o ouvir. Atestaremos então que a dimensão do ouvir constitui-se
em uma exigência e uma condição sine qua non da hermenêutica filosófica.
Com o desenvolvimento do diálogo completaremos o ciclo ‘metodológico’ da hermenêutica
filosófica. Como ela acontece e se manifesta linguisticamente, justificaremos a linguagem como medium,
princípio fundamental e fundamentador. Explicitaremos a relação constitutiva e implicativa entre
hermenêutica e linguagem, afinal “tudo que tem de ser pressuposto na hermenêutica é unicamente
linguagem”. Pressupõe-se assim a irredutibilidade da linguagem a uma ferramenta de comunicação e à
total reificação. Enquanto princípio, transborda o nível apofântico da linguagem, não designando apenas,
mas gerando perguntas e respostas acerca do sentido da existência humana. Desse modo, com relação à
linguagem, a hermenêutica filosófica mantém uma atitude crítico-terapêutica. Como um todo, uma vez
que, ao perguntar e procurar responder, ela produz reflexões nas quais os fins humanos – que preservem
e promovam o meio ambiente – e os meios empregados para sua consecução são sopesados
prudencialmente.
Na esteira da justificação da hermenêutica filosófica, enquanto filosofia, desenvolveremos a
dimensão da ontologia e da metafísica implícitas e decorrentes do próprio filosofar hermeneuticamente.
Analisaremos o traço principal da ontologia hermenêutica gadameriana tecido pelo fio da ‘linguagem
como horizonte de uma ontologia hermenêutica’. Trata-se de ontologia, para Gadamer, porque a
linguagem possibilita o acontecer de uma experiência que é universal. Da nossa parte, justificaremos a
hermenêutica filosófica como uma hermenêutica ontológica por pressupor e carregar uma concepção
renovada e mais ampla de metafísica. A hermenêutica filosófica, regida pelos princípios da experiência e
da linguagem – diferentemente, pois, dos princípios da ontologia tradicional –, e uma vez que os
princípios hermenêuticos são concomitantemente demonstráveis e indemonstráveis, temporais e eternos,
contingentes e necessários, tece uma metafísica mais ampla e mais dinâmica que se corporifica na
hermenêutica ontológica. Apresentaremos e justificaremos, para tanto, aspectos estruturais dela
aprofundando algumas implicações resultantes do confronto entre ontologia e metafísica tradicionais e a
hermenêutica filosófica, reunidas e expressas, na enigmática e densa afirmação de Gadamer: ‘ser que
pode ser compreendido é linguagem’. Sem a pretensão de possuirmos a última palavra, argumentaremos
em torno da identidade da hermenêutica filosófica a partir da tensão irresolúvel entre a linguagem da
experiência (hermenêutica) e a experiência da linguagem.
1 Gadamer, H. G., VMI, p. 316, nota 241.
CAPÍTULO I

A EXPERIÊNCIA COMO PRINCÍPIO DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA


O movimento dialético que realiza a consciência consigo mesma, tanto em seu saber como em seu objeto, à
medida que para ela o novo objeto verdadeiro surge precisamente daí, é na realidade o que chamamos
experiência2.

Ao longo deste capítulo pretendemos justificar a experiência hermenêutica como princípio


filosófico. Inicialmente situaremos a hermenêutica no contexto da história da filosofia. Em seguida
procuraremos fundamentar a hermenêutica filosófica a partir do princípio da experiência – sua
linguagem. Em função disso caracterizaremos a filosofia moderna explicitando algumas tentativas de
complementar e superar seus reducionismos. Desvelaremos então que a hermenêutica moderna sofre das
mesmas limitações e padece da mesma necessidade de alargamento conceitual. No hermeneutic turn
encontramos alguns aspectos filosóficos para fundamentar a superação do reducionismo da razão
científico-instrumental. A concepção de hermenêutica filosófica que aqui desenvolvemos ancora-se na
virada hermenêutica de cunho epistemológico-metodológico ao ontológico. Na concepção de experiência
filosófica encontramos, desde Hegel, o esforço para superar o reducionismo da razão a partir de dentro
da filosofia. Diferente de Carnap e do 1º Wittgenstein, p. ex., mostraremos que a experiência
hermenêutica oferece pistas fecundas para repensar e alargar a concepção de filosofia em viés ontológico
e metafísico.

1.1 Situação histórico-conceitual da hermenêutica

Sem a pretensão de esgotar os caminhos da filosofia moderna e contemporânea – onde


situaremos e a partir dos quais fundamentaremos a hermenêutica filosófica –, apresentaremos apenas
alguns dos seus traços principais. Nossa atenção filosófica volta-se aos rumos da filosofia moderna e
contemporânea e, por esse motivo, num primeiro momento, vamos caracterizá-la. Dada a
impossibilidade de esgotar todas as suas características, desenvolveremos mais detalhadamente a posição
de Carnap e do 1º Wittgenstein, que consideramos representantes paradigmáticos da posição reducionista
da razão moderna e contemporânea.
Mais que simplesmente criticar a unilateralidade da filosofia moderna e contemporânea,
indicaremos caminhos coerentes com o filosofar. Por isso, num segundo momento, retomaremos e
desenvolveremos nossas reflexões sobre racionalidade retórica – num movimento introjetivo – como outra
possibilidade e tentativa de superar os limites dela a partir da filosofia desenvolvida pelo estagirita.
No terceiro momento, explicitaremos a concepção dos jogos de linguagem do 2º Wittgenstein, que
sinalizam e fundamentam uma guinada no interior da filosofia moderna. A seguir, através da linguagem
– categoria central da Arte Retórica e da filosofia contemporânea –, mostraremos as relações entre ela e a
hermenêutica moderna.

Aspectos situacionais da filosofia moderna e contemporânea

A apresentação do quadro filosófico-conceitual tem como intuito situar a emergência e justificar


a fundamentação e o sentido da hermenêutica hoje. Vejamos o itinerário da filosofia moderna,
delimitando seu início em René Descartes e seu momento culminante contemporâneo no ideal de uma
filosofia sistemática elaborada pelo 1º Wittgenstein. Desde os tempos de Descartes, Leibniz e Espinoza
não poucos filósofos julgaram que se deveria, para uma racionalidade fazer sentido e se justificar,
construir uma linguagem onde os sinais e as regras pudessem ser usados “prescindindo de qualquer
referência a objetos ou fatos e cujo modo de configurar-se fosse, ao final, formalmente correto”3. Tratava-
se de levar a cabo o ideal da mathesis universalis, a construção do objeto através da linguagem
matematicamente organizada!
Descartes projetou isso ao pretender construir uma filosofia segura e inabalável, afirmando, para
tanto, que “será útil considerar falsas inclusive as coisas que são apenas verossímeis”4. Desse modo, a
filosofia descartou o mundo das verossimilhanças, das metáforas e ambiguidades do seu bojo, no qual
restariam somente as proposições necessárias – claras e evidentes –, que se imporiam a todos os seres
racionais e sobre as quais haveria um acordo inevitável.
Espinoza pôs em prática o projeto cartesiano de uma filosofia more geometrico, procedendo de
evidência em evidência, não deixando lugar a nenhuma opinião controvertida. Ambicionava elaborar
uma ciência onde todas as teses seriam evidentes. Consequentemente, eliminou de seu projeto filosófico
toda forma de saber que não estivesse fundamentada matematicamente.
Para Kant, o modelo da verdade e do conhecimento era, por excelência, constituído e
representado pela ciência físico-matemática. Radicalizou o projeto filosófico cartesiano com sua crítica à
metafísica dogmática, exigindo a univocidade da Aufklärung como modelo de todo o pensar.
Predominaram, no pensamento filosófico, a partir de Kant, a exatidão e a certeza científica, que foram
reduzidas à pura epistemologia.
Em tempos mais recentes, G. Frege, B. Russel, R. Carnap, L. Wittgenstein e outros sustentaram a
possibilidade de elaborar uma linguagem filosófica sem referência aos fatos, formalmente correta, capaz
de solucionar racionalmente os problemas que normalmente são causa de disputa e de desentendimento
entre os filósofos. A proposta desses filósofos pode ser expressa pelo termo “logicismo”, que se inspirou
na matemática como modelo de raciocínio para resolver os problemas filosóficos.
O projeto filosófico de R. Carnap representa e fundamenta, de forma paradigmática, o auge da
matematização filosófica. Nele estão apresentadas claramente as características e as pretensões de boa
parte da filosofia moderna, enquanto análise lógica da filosofia, que erradica a metafísica. Fundamental
para o procedimento analítico é que uma entidade pode ser estudada separando-a em partes e pode ser
constituída ou reconstituída pela reunião dessas partes. Este modo de proceder refere-se tanto ao sentido
material quanto ao conceitual, excluindo o que não é demonstrável ou apreensível conceitualmente, como
a metafísica, por exemplo.
Desde a Antiguidade até os tempos modernos houve opositores da metafísica. Foi considerada
errônea por uns, porque se opunha ao conhecimento empírico, e incerta por outros, porque seus
problemas transcendem o limite do conhecimento humano. Há os que a consideram inútil, uma vez que
não oferece respostas pragmáticas, recomendando que as pessoas se dediquem às tarefas práticas. Ora, as
análises lógicas, elaboradas no campo da ciência empírica, produziram uma série de resultados práticos,
positivos. Contudo, no campo da metafísica, a análise lógica produziu consequências corrosivas ao
concluir que as proposições metafísicas careciam de sentido. A partir de então, iniciou-se o tempo de
superação lógica da metafísica.
De acordo com Carnap, as proposições metafísicas carecem de sentido, são estéreis, infrutíferas
e, mesmo que possam ter sentido, são empírica e logicamente falsas, contraditórias. Em sentido estrito,
uma sequência de palavras carece de sentido quando, dentro de uma linguagem específica, não constitui
uma proposição, o que Carnap designa como pseudoproposição (Scheinsatz). Há dois gêneros de
pseudoproposições: “aquelas que contêm uma palavra a qual erroneamente se supõe que possua um
significado ou aquelas cujas palavras constitutivas possuem significado, porém, por estarem reunidas de
um modo antissintático, não constituem uma proposição com sentido”5. A metafísica estruturou-se sobre
duas classes de pseudoproposições.
O primeiro grupo de pseudoproposições é constituído de palavras que possuem um significado
aparente e são chamadas de pseudoconceitos. O significado de uma palavra consiste em fixar a sintaxe da
palavra, i. é, a maneira como se apresenta na forma proposicional mais simples em que pode aparecer.
Esta forma proposicional é designada de frase elementar (Elementarsatz); p. ex., para a palavra “pedra” é “x
é uma pedra”. No lugar de x podemos colocar “este diamante”, o que é verificável ou não, ou seja, neste
caso, verdadeiro ou falso. Uma sequência de palavras possui significado quando podemos delimitar sua
relação de derivação de proposições elementares em que o significado de uma palavra é definido pelo
critério de aplicação. Em muitos conceitos da metafísica, as condições mencionadas para que possuam
significado não são preenchidas, p. ex., princípio, Deus, a Ideia, o Absoluto6...
O segundo gênero de pseudoproposições constitui-se de palavras com significado, mas reunidas de
tal modo que o conjunto não possui sentido. É a sintaxe de uma linguagem que especifica quais
combinações de palavras são admissíveis e quais são inadmissíveis. Mas a sintaxe gramatical de uma
linguagem natural não é capaz de realizar a tarefa de eliminação de todos os casos de combinações de
palavras que resultem sem sentido, p. ex., 1. César é y; 2. César é um número primo. A sequência de
palavras (1) está construída assintaticamente. Nas regras sintáticas, exige-se que o terceiro termo esteja
ocupado por um predicado (substantivo ou adjetivo). Mas “César é um general” “está formada de acordo
com as regras da sintática. É, portanto, uma sequência de palavras plenas de sentido, uma genuína
proposição”. A sequência (2) é sintaticamente correta, posto que possui a mesma forma gramatical que a
anterior, mas não tem sentido porque “número primo” é um predicado dos números, “não pode ser nem
afirmado nem negado por uma pessoa. Apesar de que (2) aparente ser uma proposição, não o é, não
declara nada, não expressa nenhuma relação objetiva, existente ou inexistente”7, e por isso essa sequência
de palavras constitui uma pseudoproposição.
Carnap comenta algumas passagens da obra de Heidegger “O que é metafísica?”, a fim de
exemplificar as pseudoproposições metafísicas, e ao final de sua análise conclui: “um metafísico chega por si
mesmo à conclusão de que seus interrogantes e respostas são irreconciliáveis com a lógica e com as
formas do pensamento da ciência”8. Todas as proposições metafísicas incorrem nos mesmos erros lógicos,
entre os quais um dos mais frequentes é o uso da palavra SER. Seu emprego conduz a um erro lógico
devido à sua ambivalência: designa cópula que antecede e se relaciona com um predicado, p. ex., “eu sou o
autor deste estudo”, e designa existência, p. ex., “eu sou”. Os metafísicos não têm ideia clara dessa
ambivalência. Além da ambivalência, a forma que o verbo adquire quanto à significação e existência mostra
ficticiamente um predicado onde não existe. Mas sabe-se que a existência não é uma propriedade, e assim
se formaram pseudoproposições, p. ex., “eu sou”, “Deus é”9.
Outro erro lógico que cometem os metafísicos refere-se à “confusão de tipo” dos conceitos. Há
uma violação das regras da chamada teoria dos tipos, p. ex., “César é um número primo”. Neste caso, o
nome das pessoas e o nome dos números pertencem a outros tipos lógicos10.
O fato é que não pode haver proposições metafísicas plenas de sentido que não repousem no
método de sua verificação, isto é, uma proposição afirma somente tudo o que com respeito a ela é ou
pode ser verificável. Uma proposição só pode enunciar um fato empírico: o que está em princípio além do
experimentável não poderia ser dito, nem pensado, nem colocado, ou, analogamente, como afirmou
Wittgenstein, “do que não se pode falar, sobre isso deve-se calar”11.
As proposições com sentido dividem-se em duas classes: a) proposições que são verdadeiras em
função de sua forma (“tautologias”, conforme Wittgenstein, “juízos analíticos”, conforme Kant) e que não
dizem nada acerca do real, p. ex., fórmulas da lógica e da matemática; b) as demais proposições, sendo
que a decisão sobre sua verdade ou falsidade reside nas proposições protocolares, porque são empíricas e
pertencem ao domínio da ciência empírica. Qualquer proposição que não se encaixe nessas é considerada
automaticamente sem sentido12.
Essa perspectiva filosófica é a que predominou na filosofia moderna e contemporânea. Podemos
sintetizá-la afirmando que um dos seus principais ditames é: o que está por cima ou abaixo da
experiência carece de sentido. O que invalida qualquer especulação metafísica, qualquer conhecimento
obtido pelo pensamento puro e pela intuição pura ou obtido pela mediação. Invalida a metafísica, que,
partindo da experiência, pretende adquirir conhecimento sobre algo que estiver à margem ou além da
experiência por meio de inferências especiais (p. ex., tese neopositivista). Invalida a filosofia dos valores,
de normas, bem como a postura filosófico-dialógica, uma vez que exclui tudo o que não é empiricamente
verificável. Essa perspectiva reducionista de filosofia exclui do seu horizonte as metáforas, a
temporalidade, a experiência, a polissemia das palavras, componentes essenciais do saber humano. O que
restaria então da filosofia se todas as proposições que afirmam algo fossem de natureza empírica e
pertencessem à ciência fática? O que sobraria não seriam proposições, não seria uma teoria nem um
sistema, mas um método de análise lógica conforme Carnap. À filosofia caberia apenas a tarefa de ser um
instrumento depurativo asséptico, orientado pelo critério da verificação/comprovação.
O ideal filosófico analítico desenvolvido pelo 1º Wittgenstein, em sua obra Tractatus Logico-
Philosophicus (= TLP), representa o ideal matematizado e matematizável da filosofia da linguagem
moderna e contemporânea. Com B. Russel, Wittgenstein aprendeu a técnica simbólica e as implicações
filosóficas da lógica matemática. Em ambos “concorreu o movimento procedente de Leibniz da
construção logística de uma linguagem filosófica precisa com a tradição nominalista e empirista da crítica
da linguagem (da metafísica) procedente de Ockham”13.
Tanto no 1º como no 2º Wittgenstein a questão fundamental permanece a mesma, ou seja, o
interesse especial pela linguagem e pelo pensamento. “Que é linguagem? Que é pensar? Qual a relação
entre o falar e o pensar?” são as questões da semântica tradicional que ele retoma, e sua intenção, no TLP,
é estabelecer “as fronteiras entre o que racionalmente pode ser dito e o disparate que deve ser evitado”14.
A concepção de linguagem tem apenas uma função designativo-instrumental e é a partir dela que
Wittgenstein se pergunta pela estrutura do mundo e da linguagem que possibilita o exercício dessa
função.
A tese fundamental do 1º Wittgenstein é que a linguagem figura o mundo sobre o qual ela fala e a
respeito do qual nos informa. Para ele, “o sentido das frases não é fruto da associação da significação das
palavras nelas contidas”, ou seja, a novidade – em oposição à doutrina tradicional – é que “o elemento só
possui significação enquanto elemento, isto é, enquanto membro de uma frase, e não mais independente
dela como era antes. Wittgenstein pensa a partir da prioridade da frase já estabelecida por meio da teoria
dos predicados de Frege”15. Ou seja, a “coisa” deve ser entendida, no sentido do 1º Wittgenstein, de
modo essencialmente relacional, isto é, ela “só é coisa enquanto elemento de um estado de coisas,
enquanto configurada de um ou de outro modo. Um estado de coisas é, precisamente, um determinado
tipo de associação de coisas ou objetos”16.
O problema fundamental com o qual Wittgenstein se ocupou foi com o fato de que nós
pensamos o mundo. O que significa isto, ou seja, em que relação estão mundo e pensar? Com isso nos
confrontamos e nos situamos na teoria da correspondência. A posição de Wittgenstein constitui-se numa
variante dessa teoria ao conceber essa relação como figuração. Como é possível pensar uma
correspondência entre dois campos diversos? A relação de correspondência entre os dois polos foi, muitas
vezes, compreendida e interpretada como uma relação isomórfica. Parece que tal interpretação exprime a
intenção fundamental de Wittgenstein, afinal, “na figuração, seus elementos correspondem aos objetos”
(TLP, 2-13). A verdade, nesse caso, consiste na adequação entre figura e objeto, ou seja, ela existe quando
ocorre a identificação entre as estruturas das coisas e o pensamento. O pensamento nada mais é que a
figuração do mundo. Assim, “a questão da linguagem se apresenta em termos de isomorfismo entre
proposições e estados de coisas (...) a proposição diz como uma coisa é, mas não pode dizer que uma
coisa é: ela mostra”; e junto a esse limite do dizível há outro, “que faz com que certas proposições não
digam nada sobre o mundo: elas mostram alguma coisa dele”17.
O sentido de uma sentença, para Wittgenstein, consiste em ser verdadeira ou falsa. “Toda
sentença possui dois polos que constituem seu sentido, isto é, o polo da verdade ou o polo da falsidade. O
valor de verdade não é atribuído, posteriormente, ao sentido, mas o sentido mostra-se precisamente no
poder ser verdadeiro ou falso”18. Dessa maneira, para o 1º Wittgenstein, a linguagem consiste em
descrever o mundo: “a realidade inteira é o mundo” (TLP, 2.063), onde a proposição é figuração da
realidade: “é modelo da realidade tal como a pensamos” (TLP, 401). Ela é verdadeira porque exprime um
estado de coisas e é falsa ao expressar um estado de coisas que não é fato. Neste caso, a linguagem trata
das condições de sua verificação.
A semântica no TLP se distingue, em alguns pontos, da tradicional. Nela Wittgenstein concebeu
predicados e sentenças não como objetos, mas como relações. Desse modo, a função da linguagem se
manifesta como designação e expressão, e também como correspondência da estrutura categorial das
expressões com relação à estrutura categorial da realidade. Contudo, ele permanece no horizonte da
semântica tradicional ao defender que “nomes designam objetos, predicados, classes”. A importância da
semântica de Wittgenstein se deve ao “tematizar e desenvolver” explicitamente os pressupostos
ontológicos da semântica tradicional, bem como a tese da correspondência ou da coordenação entre
linguagem e realidade que é, sem dúvida, uma das teses tradicionais e centrais da semântica do Ocidente,
isto é, sua teoria da verdade”19. Nesse sentido é uma representação natural e o ápice exemplar da filosofia
moderna.
Com as palavras de Wittgenstein para explicitar o desenvolvimento e o estreitamento da filosofia
moderna bem como a crítica com relação a ela, afirmamos: “os limites da linguagem são os limites do
mundo, e os limites do mundo são os da linguagem. O sujeito só pode descrever estados de coisas, mas
não a sua própria possibilidade ou maneira de descrevê-los. Logo, o sujeito não existe no mundo, nem os
valores”20. O mundo só existe descritivamente por meio de uma conjunção de proposições que formam
uma linguagem, mas não se pode dizer o que ele é. Nesse caso, a filosofia, enquanto descrição lógico-
proposicional do mundo, não é autoimplicativa, e ignora as questões metafísicas.
Wittgenstein percebeu a estreiteza do significado da linguagem proveniente da ligação entre ela
e a realidade segundo uma teoria representacional ao considerar a variedade dos modos de significação
da linguagem corrente. Repensou a possibilidade de analisar atos como dar ordens, interrogar, do ponto
de vista da teoria representacional. A partir daí se empenhou em substituir a equivalência entre
significação e verdade por outra: “a da significação e do uso, segundo o slogan bem conhecido ‘a
significação é o uso’”21.
Retomando nossos passos, lembramos que a filosofia de R. Carnap e a do 1º Wittgenstein
representam exemplarmente as limitações da filosofia moderna e contemporânea. Contra este modelo de
filosofia insurgiram-se muitos pensadores e filósofos ao longo da história. A seguir, lembraremos alguns
benefícios do modelo matemático e as críticas que foram e continuam sendo dirigidas contra ela. É neste
contexto que emerge e se robustece a identidade e o sentido da hermenêutica filosófica.
Sem cair numa espécie de maniqueísmo, lembremos algumas vantagens básicas da matemática
enquanto modelo e conteúdo da filosofia moderna e contemporânea. A ausência de ambiguidade, sua
exatidão, sua universal validade e a possibilidade de estrita dedução constituem traços fundamentais
para o filosofar. A subjetividade – tema central da filosofia moderna – não é um absurdo, pois “se
recusamos entender-nos como sujeitos (...) enfim nem mais podemos fazer filosofia (...) uma vez que a
filosofia, num sentido para ela essencial, está ocupada com a consciência, a própria filosofia também será
eliminada com a eliminação da consciência”22. Outra conquista

refere-se à forma de expressão específica da filosofia: a argumentação; através dela a filosofia distingue-se essencialmente do
discurso científico, mas também do da linguagem cotidiana. Pois argumentos conduzem de outra maneira a convicções do que
através de um tipo de coação causal ou lógica, apoiada em evidência; coação que eles exercem contra aquele(a) pelo(a) qual se
veem criticados. Nisto eu vejo um tipo de prenúncio de liberdade (...) Porque a argumentação essencialmente não está baseada
na coação de uma necessidade física ou de uma evidência analítica, ela requer uma descrição particular daqueles seres que
podemos denominar os sujeitos da argumentação. Somente sujeitos livres e conscientes de si poderiam entrar juntos em jogos de
argumentação23.

Além do mais, “a reanimação da filosofia do sujeito acredita reconhecer na subjetividade uma


pressuposição irrefutável da ética”24. Na opinião de H. Arendt, “talvez a mais original contribuição
moderna à filosofia tem sido uma preocupação exclusiva com o ego, em oposição à alma ou à pessoa ou
ao homem em geral, uma tentativa de reduzir todas as experiências, com o mundo e com os outros seres
humanos, a experiências entre o homem e si mesmo”25.
Contudo, na esteira dos inúmeros benefícios e contribuições da filosofia moderna, encontramos
também um conjunto de limitações em cujo quadro situamos o nascimento e o desenvolvimento da
hermenêutica filosófica. Sabemos que Descartes, ao rejeitar toda opinião e verossimilhança, todo recurso à
dialética e à retórica, justificou uma concepção de moral, de religião, de política conformista. Os
problemas relativos à ação foram reduzidos a problemas de conhecimento (verdade-falsidade, simples
fatos) ou considerados como não relevantes à razão. Considera-se pseudosaber o que é imediato e
familiar, e “o próprio modelo habitual de pensar, julgar e acreditar precisa de provar a sua certeza, para
poder partir não de preconceitos, mas de fundamentos racionais, intemporais e adequados”26.
Em continuidade à filosofia de Descartes, Kant

conheceu apenas um dos lados do a priori ou transcendental: aquele que, herdeiro da redução nominalista da essência, substituiu
a relação universal clássica ‘ser-entes’ pela relação de poder ‘eu-objetos’, afirmando finalmente o primado transcendental da
consciência reflexa de si mesma. Consolidou deste modo, com a sua crítica da razão teórica, a principal linha de força do
pensamento reflexivo moderno da experiência: a experiência possível é inteiramente interpretada a partir da sua referência
teleológica ao saber matemático27.

Conforme Bertalanffy, “considerada à luz da história, nossa tecnologia e mesmo nossa sociedade
baseiam-se em uma imagem fisicalista do mundo, que encontrou a primeira síntese na obra de Kant. A
física é ainda o paradigma da ciência, a base de nossa ideia da sociedade e de nossa imagem de
homem”28. Foi contra esta forma de pensar puramente cientificista, antropocêntrica, artificial de filosofar
e conceber o pensar que muitos cientistas e filósofos se insurgiram, embalados pela mudança de
pensamento anunciada pela crítica e pela desconstrução do primado da consciência que Nietzsche, Freud
e Marx realizaram.
De um modo geral, a lógica formal moderna constitui um meio demonstrativo utilizado pelos
matemáticos, limitando o domínio do valor, pois o que eles ignoram ou desconhecem é estranho à lógica
formal. Ou seja,

o desenvolvimento unilateral da razoabilidade estritamente autônoma gerou, no mundo ocidental, a perigosa aparência
totalitária de um poder, que, habituado a transformar toda a alteridade numa mesmidade retificável pela unidade do sujeito,
procura, na sua extensão ao mundo histórico, reduzir o próprio sentido da experiência humana do limite ou tempo como
condição da autenticidade29.

O. Spengler criticou esse reducionismo da razão, sem anular a validade universal das leis
formais da lógica ou das verités de fait empíricas, afirmando a relatividade dos conteúdos dos a priori na
ciência e na filosofia. Ele enunciou a relatividade da matemática e da ciência matemática, pois

as fórmulas matemáticas enquanto tais têm necessidade lógica, mas sua interpretação visualizável, que lhes dá significação, é
uma expressão da “alma” da civilização que as criou. Deste modo, nossa imagem científica do mundo tem apenas valor relativo.
Seus conceitos fundamentais como os de espaço infinito, força, energia, movimento, etc. são uma expressão de nosso tipo de
espírito ocidental e não valem para a imagem do mundo de outras civilizações30.
Cada comunidade científica vê conforme e a partir de seus interesses, pois “onde um leigo vê
somente um caos de formas e cores, o biologista vê células com seus vários componentes, diferentes
tecidos e sinais de tumores malignos. (...) Assim, o que é visto depende de nossa linha de atenção e
interesse”31. No pensamento científico-filosófico ocidental, foi ao olhar matemático que se conferiram a
supremacia e a legitimidade sobre as demais perspectivas de olhar e de ouvir.
A pretensão de construir um sistema científico ou filosófico neutro constitui o sonho positivista.
Mas esses cientistas e filósofos se esquecem de uma situação muito simples:

Qualquer organismo, inclusive o homem, não é um mero espectador que esteja olhando para o espetáculo do mundo e seja por
conseguinte livre de adotar óculos, embora distorcedores, que os caprichos de Deus, a evolução biológica, a “alma” da cultura ou
a linguagem colocaram em cima de seu nariz metafórico. Pelo contrário, o organismo é um reagente e ator no drama32.

Em outras palavras, “uma das mais sérias deficiências da filosofia ocidental clássica, de Platão a
Descartes e Kant, foi ter considerado o homem primordialmente como um espectador, um ens cogitans,
quando, por motivos biológicos, tem de ser essencialmente um ens agens, no mundo onde é lançado”33. A
limitação da lógica moderna influenciada por Kant e pelos lógicos matemáticos identificou a lógica não
com a dialética, mas com os raciocínios analíticos de Aristóteles, negligenciando os dialético-retóricos. Por
isso a razão moderna considerou estas um palavreado inútil, uma vez que identificou a verdade filosófica
com a validade (certeza) científica.
Thomas S. Kuhn é outro crítico da filosofia moderna. Em sua obra A estrutura das revoluções
científicas, mostrou a impossibilidade de se elaborar uma linguagem fundamentada na observação
“pura”. Não se pode falar da experiência dos sentidos como algo fixo e neutro, nem é possível produzir
uma linguagem de observação neutra. As medições e experimentações são determinadas por um
paradigma, pois se sabe que as ciências não se ocupam com todos os dados, mas selecionam aqueles que
são relevantes para a justaposição de um paradigma que ditou, consciente e/ou inconscientemente, a
escolha deles. Todas pressupõem, desde o início, um paradigma, seja na forma de uma teoria científica
em vigor, seja na forma de alguma fração do discurso cotidiano34. Ao fazer uma análise de como ocorre o
processo do conhecimento e sua fundamentação, T. Kuhn conclui que os paradigmas podem dirigir uma
pesquisa mesmo na ausência de suas regras. Isto é, a adoção de um paradigma não se deve a dados
objetivos, assépticos, científicos, como crê a maior parte dos filósofos e cientistas. A maior parte dos
cientistas, ao fazer a sua opção (fundamentalmente ‘irracional’) pelo modelo de ciência atual, baseia-se na
ideologia que despreza os fatos históricos, o que Whitehead criticou como o espírito a-histórico da
comunidade científica, afirmando que “a ciência que hesita em esquecer seus fundadores está perdida”35.
E o espírito filosófico-matemático é, por princípio, a-histórico. A crítica de T. Kuhn é pertinente ao situar a
origem e o sentido da ciência dentro de um paradigma, inconsciente, em geral, para quem está envolvido
nele; afinal, “o que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência
visual-conceitual prévia o ensinou a ver”36. Ao defender a “subjetividade” da ciência, T. Kuhn foi muito
criticado, pois na opinião deste a conversão de paradigmas envolve a persuasão, não provas lógico-
objetivas. Antes são motivos estéticos e subjetivos (no sentido histórico-experiencial-circunstancial) que
levam à adoção de determinado paradigma e não critérios matemáticos. T. Kuhn contribuiu para a
revisão da concepção científica; com seu pretenso saber superior sobre os demais conhecimentos, situou-a
num contexto mais amplo de saber e lembrou seu caráter de falibilidade. Isso fica bem claro na conclusão
de seu livro: “O conhecimento científico, como a linguagem, é intrinsecamente a propriedade comum de
um grupo ou então não é nada. Para entendê-lo, precisamos conhecer as características essenciais dos
grupos que o criam e o utilizam”37.
Em K. Popper encontramos as limitações da filosofia moderna em sua advertência segundo a
qual o ato de conceber e inventar uma teoria não é suscetível de nenhuma análise lógica. Investiu contra o
neopositivismo vienense, que pretendia impor a toda ciência a análise lógica como embasamento da
filosofia, a qual se limitava apenas a distinguir o verdadeiro do falso. Na lógica da descoberta científica, K.
Popper ligou os procedimentos da descoberta científica mais à lógica do verossímil que à lógica da
verdade. A teoria científica não é mais que uma simples hipótese humana e não pode ser tomada como
evidente nem eternamente infalível. Não havendo uma evidência que se imponha a todos, a hipótese
deve ser apoiada em boas razões, reconhecidas e aceitas como tais pelos membros de uma comunidade
científica. O estatuto do conhecimento deixa de ser impessoal, pois “todo pensamento científico torna-se
um pensamento humano, falível, situado e sujeito à controvérsia”38.
O grande mérito de Popper foi ter quebrado o mito da infalibilidade da racionalidade técnica
bem como a redução da filosofia a um sistema dogmático e fundamentado numa ideia exterior a ele. Em
sua crítica à racionalidade cartesiana, devemos reconhecer o mérito de sua atividade filosófica ao
defender a importância de uma racionalidade prática, reintroduzindo a temporalidade no conceito de
ciência. Equivocou-se, contudo, ao ter pretendido estender essa racionalidade a todas as áreas do saber e
suprimir a validade e as conquistas da razão moderna.
A pretensão filosófica de Carnap e do 1º Wittgenstein, enquanto pretensão de construção de um
sistema fundamentado única e exclusivamente em relações matemáticas, pode ser representável pelo caso
do Barão de Münchhausen, que procura sair do atoleiro puxando-se por seus próprios cabelos. Trata-se
de pensar um modelo mais amplo de ciência e de filosofia como um todo inter-relacionado, coerencial e
autoimplicativo.
A linguagem matemática retrata apenas uma pequena parcela da realidade. Infelizmente, apenas
uma parte da lógica aristotélica que retrata e justifica um aspecto do saber foi tomada como modelo
absoluto de ciência ao fornecer as leis gerais e supremas do raciocínio. Não devemos esquecer que as
categorias de nossa experiência e de nosso pensamento são determinadas também por fatores biológicos e
culturais, que

todo o nosso conhecimento, mesmo desantropomorfizado, só reflete certos aspectos da realidade. Se o que foi dito é verdade, a
realidade é aquilo que Nicolau de Cusa (...) chamava coincidentia oppositorum. O pensamento discursivo representa sempre
somente um aspecto da realidade última, chamada Deus na terminologia de Cusa. Nunca pode esgotar sua infinita
multiplicidade. Por conseguinte, a realidade última é uma unidade de opostos. Toda afirmação é válida somente de um certo
ponto de vista, tem apenas validade relativa, devendo ser suplementada por proposições antitéticas partidas de pontos de vistas
opostos. (...) ex omnibus partibus relucet totum, usando ainda uma vez as palavras de Cusa: cada um desses aspectos possui a
verdade, embora somente relativa. Isto, ao que parece, indica as limitações e ao mesmo tempo a dignidade do conhecimento
humano39.

O importante é reter que as leis científicas representam abstrações e idealizações expressivas de


certo aspecto da realidade. O modelo científico assumido pela filosofia moderna e contemporânea é uma
entre outras imagens esquematizadas da realidade e, enquanto construção conceitual, refere-se a
determinados aspectos de ordem e de estruturação dela. Em termos antropológicos, a consequência
nefasta, nas palavras de O. Paz, é que no correr desses anos “distanciamo-nos de nós mesmos ao nos
perdermos no mundo”, principalmente porque “o pensamento ocidental é o do ‘isto ou aquilo’”40, uma
forma binária de pensar e conceber o real. Contudo, a “vida não é a confortável instalação em sulcos
preordenados do ser. Em sua forma mais perfeita é o elan vital, inexoravelmente impelida para uma forma
superior de existência. Sem dúvida isto é metafísico e uma imagem poética”41, e por isso filosófico.
O ser humano não pode ser reduzido a uma máquina ou a um simples animal comandado por
seus genes, instintos, carências, condicionamentos, forças culturais. Na concepção de filosofia que se
reduz a um conjunto de símbolos matemáticos não há espaço para a liberdade, a criatividade, a ética, a
política, a metafísica. Uma concepção de filosofia que não leva a sério esses aspectos antropológicos
deveria ser revista e ampliada; afinal, o homem não vive “apenas de pão”...
Parte do movimento analítico de Oxford e Cambridge, libertando-se da orientação científica que
caracterizava a pesquisa lógica de alguns neopositivistas, reconheceu a presença de racionalidade em
todas as manifestações da experiência humana. Para tanto se deveria assumir e integrar na reflexão
filosófica o caráter histórico do conhecimento. Tal tarefa foi empreendida, p. ex., por C. Perelman42, que,
retomando a filosofia aristotélica, procurou ver na atividade da razão não apenas a construção de uma
série coerente e rigorosa de deduções formais – pois dificilmente temos uma situação ideal, cartesiana,
onde se poderia deduzir o que queria Leibniz com seu calculus ratiocinator – mas a disposição para
deliberar sobre questões controvertidas e a atitude de persuadir acerca da validade da escolha de
determinada posição ou atitude.
Consideramos as críticas e alternativas à filosofia moderna de T. Kuhn, K. Popper, L. von
Bertalanffy ainda insuficientes. Por isso, nosso próximo passo consistirá em apresentar duas alternativas
crítico-complementares à filosofia moderna e contemporânea: a racionalidade retórica e os jogos de
linguagem.

Superação da filosofia moderna e contemporânea pela racionalidade retórica

A exatidão matemática não se deve exigir em todos os casos43.

Por que voltar a Aristóteles? Por que revisitá-lo a fim de repensar os rumos da filosofia moderna
e contemporânea por meio da explicitação da racionalidade retórica? O fato é que, na filosofia
desenvolvida por Aristóteles, encontramos uma autêntica alternativa complementar e superadora do
reducionismo da razão. A filosofia aristotélica continua a exercer influência no pensamento moderno e
contemporâneo. Além disso, resgataremos uma imagem mais coerente dela, que ultrapassa a dimensão
analítica a que foi relegada nestes últimos séculos. Com o desenvolvimento da racionalidade retórica do
estagirita, desvendamos e fundamentamos uma fecunda noção de filosofar que imbrica –
linguisticamente – a retórica com a ética, com a política, com a metafísica.
Encontramos na Ética a Nicômaco a recomendação aristotélica segundo a qual cada ciência deve
elaborar um saber adequado ao objeto que lhe é próprio, isto é, devemos nos esforçar “por determinar,
ainda que em linhas gerais apenas, o que seja ele”44. Toda discussão, pesquisa “será adequada se tiver
tanta clareza quanto comporta o assunto, pois não se deve exigir a precisão em todos os raciocínios por
igual”45, pois o que a política investiga – ações belas e justas – admite uma grande variedade de
concepções e “flutuações de opinião”46. E de tais premissas, contingentes e verossímeis, só podemos obter
conclusões do mesmo caráter, ou seja, nesse caso, a verdade só pode ser mostrada em linhas gerais. Já na
ciência apodíctica as premissas são verdadeiras, exatas, e as conclusões têm, necessariamente, o mesmo
caráter.
Para O. Höffe, falamos de modo adequado quando conseguimos a clareza correspondente à
“matéria subjacente”47; isso porque, em Aristóteles, o fim do saber e do discurso está na relação de
correspondência entre forma e matéria. A coisa sabida não é um objeto “em si”, independente do sujeito
que, posteriormente, objetifica-o conceitualmente. Aristóteles rejeita as representações objetificadoras do
pensar, compreendendo o pensar como mediatização entre forma e matéria. No tratado das Categorias, ele
apresenta o conceito de ciência como relação em que os dois momentos exigem-se reciprocamente, onde o
saber já sempre é saber de algo, o sabido sempre já é objeto de um saber.
Diferentemente do relativismo sofístico ou moderno, para Aristóteles, “é próprio do homem
culto buscar a precisão, em cada gênero de coisas, apenas na medida em que a admite a natureza do
assunto”48. Encontramos na filosofia aristotélica uma distinção de saberes: científico, ético, retórico, e por
isso seria uma insensatez exigir um raciocínio provável de um matemático e provas científicas de um
retórico. Na formulação “a exatidão matemática não se deve exigir em todos os casos”49 está embutida
uma crítica à concepção platônica segundo a qual a dialética e a retórica deveriam ser científicas. Hoje,
para nós, ela justifica nossa crítica e pretensão de repensar os caminhos da filosofia moderna e
contemporânea.
Foi E. Berti quem refletiu especificamente sobre os diferentes níveis de racionalidade
desenvolvidos por Aristóteles: há muitos modos de ser racional ou de estruturar discursos racionais, e
nem todos podem ser reduzidos à forma do cálculo lógico ou do método científico. Nem todos possuem o
mesmo grau de rigor, de constringência, de necessidade, mas todos são válidos, universalizáveis e
comunicáveis, mesmo não sendo rigorosamente lógico-dedutivos.
Dentro do quadro filosófico aristotélico encontramos duas espécies de saber considerados
“científicos”: o apodíctico (analítico) e o dialético-retórico. Agora nos debruçaremos sobre eles para
apreender a sua riqueza e contribuição para o conjunto da filosofia moderna e contemporânea.
No conhecimento científico apodíctico se conhece a causa +pela qual algo é, “quando sabemos
que essa causa é a causa de algo, e quando, além disso, não é possível que esse algo seja outro que não
este”. Em Aristóteles, a ciência possui duas características essenciais: 1ª) conhecer a causa de um fato; 2ª)
dadas certas premissas, decorre delas uma conclusão necessária. A ciência, conhecendo o “quê” e o
“porquê”, o dióti50, caracteriza-se por sua universalidade e necessidade, diferindo da opinião, que não
possui validade universal nem necessária.
Assim, é o conhecimento das causas e das necessidades o que caracteriza a ciência como
apodíctica, constituindo a demonstração – apódeixis –, formando o silogismo científico, que supõe uma
necessidade formal. Há silogismo quando as premissas são “verdadeiras, primeiras, imediatas, mais
notáveis, anteriores e causas da conclusão”51. A premissa que contiver esses elementos é designada como
principium proprium, necessário para que haja ciência. Como instrumento do conhecimento científico, a
demonstração – apódeixis – supõe, implica a relação com alguma verdade primeira e necessária. A
dedução é necessária, e para tanto exigem-se princípios fixos, rígidos, como, por exemplo, a unidade é o
quantitativamente indivisível. Tais princípios, próprios e necessários para cada ciência, podem ser
definições que dizem a essência da coisa, ou podem ser pressuposições que dizem a existência da coisa.
Para Aristóteles, há proposições comuns a algumas ciências, como, por exemplo, nas ciências
matemáticas, “subtraindo iguais de iguais se obtêm iguais”. Há princípios comuns a todas as ciências,
como é o caso do princípio da não contradição: “é impossível simultaneamente afirmar e negar um
mesmo predicado de um mesmo sujeito”; e conforme o princípio do terceiro excluído, “é necessário ou
afirmar ou negar um certo predicado de um certo sujeito”52. Essas, mais que premissas, são regras gerais
às quais devemos nos ater para obter a exatidão demonstrativa, própria da racionalidade apodíctica, no
discurso.
O conhecimento apodíctico parte de premissas verdadeiras e imediatas, mais conhecidas que a
conclusão, anteriores a esta e causa desta. Tais premissas são próprias para conduzir a uma conclusão
cientificamente demonstrada. A ciência caracteriza-se por sua necessidade, na qual há um raciocínio
rigoroso que não pede adesão de um interlocutor, como acontece no raciocínio dialético-retórico53. Trata-
se de um raciocínio que exclui toda forma de contingência, de opinião, de probabilidade. Nos Analíticos,
Aristóteles apresenta a teoria da ciência como o

que vai do certo ao certo, que é fundado sobre um pequeno número de princípios apreendidos numa intuição infalível e
analisados nos silogismos rigorosos: teoria de uma ciência acabada, e não de um saber em devir54.

Aristóteles foi o primeiro a elaborar um conceito de ciência que foi apreendido por boa parte da
filosofia moderna e contemporânea. Mas – e nisso vemos sua contribuição para nós hoje –, percebendo os
limites e a estreiteza do conhecimento científico, explicitou e desenvolveu outra racionalidade,
considerada também como científica: a dialético-retórica. Com isso dirimimos dois problemas: superação
de uma visão deturpada de Aristóteles como “o lógico” ou que tenha caminhado da abstração à filosofia
prática de tal modo que, ao final de sua vida, tenha defendido uma filosofia prática; correção do
reducionismo da razão, pela distinção de diferentes níveis de racionalidade apropriados para distintos
assuntos.
Desenvolvemos inicialmente o conhecimento científico dialético mais detalhadamente, uma vez
que, por meio dele, será possível compreender melhor a racionalidade retórica enquanto antístrofe
daquela. No exórdio dos Tópicos, Aristóteles apresenta a racionalidade dialética assim:

a pragmática (enquanto o exercício, a prática) deste tratado é a invenção de um método que nos ensine a argumentar acerca de
todas as questões propostas, partindo de premissas prováveis, e a evitar, quando defendermos um argumento, dizer seja o que
for que lhe seja contrário55.

Na racionalidade apodíctica, os princípios empregados são verdadeiros, necessários,


constringentes, ao passo que nos raciocínios dialéticos são verossímeis, prováveis, plausíveis. Neste
sentido Aristóteles afasta-se da filosofia anterior – marcando uma nova consciência do que é a verdade,
que não pode mais ser reduzida à adequação das ideias à realidade ou vice-versa – ao ter distinguido
diferentes níveis de verdade.
A racionalidade dialética, por um lado, é uma disciplina oposta à racionalidade apodíctica e, por
outro, está ligada a ela, pois “prepara-a e completa-a”56, no sentido de torná-la mais explícita. O objeto
próprio da dialética é o provável, isto é, o que é “admitido por todos, ou pela maioria, ou pelos sábios e,
entre estes últimos, pelos mais notáveis e pelos mais ilustres”57. Seu domínio é o das opiniões, do
provável, procedendo a partir disto, ao passo que o da ciência é o verdadeiro, o exato, o necessário, no
sentido matemático. As opiniões mais relevantes, importantes, às quais devemos dar crédito e das quais
não podemos nos afastar, constituem o objeto da racionalidade dialética. O fato de partir de
probabilidades não significa contentar-se com um grau de verdade inferior ao da ciência ou renúncia à
busca da verdade, mas procurar uma racionalidade que lhe é própria.
O silogismo científico difere do dialético por sua matéria e forma. O primeiro caracteriza-se por
sua necessidade, demonstrabilidade, dedutibilidade, e o segundo, por suas múltiplas possibilidades,
mostrabilidade, plausibilidade.
A forma da racionalidade dialética apresenta dois aspectos e duas tendências: 1º) enquanto
método crítico de proposições e exame da linguagem, é essencialmente formal, bastante independente
dos objetos; 2º) enquanto procedimento indutivo, examina semelhanças e diferenças, denota uma busca
mais real, que “ultrapassa a linguagem para chegar às coisas mesmas”58.
Na Ética a Nicômaco, Aristóteles reflete sobre a proaíresis, onde se delibera sobre a escolha de um
fim e intencionalmente elege-se um bem a ser concretizado. Nesse caso, a filosofia não pode ignorar os
“estados de alma” presentes no ato de nomear as coisas. Não basta examinar apenas os nomes na
intenção de distinguir o verdadeiro do falso, ignorando o que subjaz a eles. Para Aristóteles, não devemos
pensar que “o que se passa com os nomes se passa também com as coisas”, isto é, o símbolo não ocupa
“pura e simplesmente o lugar da coisa”59, contudo, a ela nos remete e a significa.
A vocação do dialético seria “mover-se no seio das considerações comuns”60, conforme
afirmação de P. Aubenque. A racionalidade dialética, sua forma e conteúdo, que não “recusa as opiniões,
quer apresentar as razões da multiplicidade dos discursos, reconduzir a necessidade da filosofia a uma
medida humana e reconhecer, por meio da ciência, o destino do homem e das suas cidades – a história”61.
O que se encontra respaldado e justificado na afirmação aristotélica:

nossa discussão será adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o assunto, pois não se deve exigir a precisão em todos os
raciocínios por igual, assim como não se deve buscá-la nos produtos de todas as artes mecânicas. (...) Evidentemente, não seria
menos insensato aceitar um raciocínio provável da parte de um matemático do que exigir provas científicas de um retórico62.

Todos empregamos a retórica e a dialética no dia a dia, pois “sempre que atacamos ou
defendemos uma opinião, fazemos dialética; sempre que acusamos ou nos defendemos e sempre que
damos um conselho, que censuramos ou louvamos, fazemos retórica”63. Enquanto as demonstrações
científicas são extraídas de verdades necessárias e que se impõem em todo tempo e lugar, as
demonstrações dialéticas e retóricas fundamentam-se em verdades da opinião aceitas, o mais
frequentemente, pela maior parte das pessoas, e dentre estas as consideradas mais sábias. Verdade para a
ciência, probabilidade para as duas artes conjuntas, que não se movem no domínio do necessário, mas do
provável, do verossímil64.
Tanto o método quanto o conteúdo da retórica constituem-se de provas por persuasão, que é
uma espécie de demonstração científica. A demonstração retórica, seu método, é denominada de
entimema ou silogismo retórico. Trata-se de um silogismo que parte de probabilidades e de signos. O
“entimema vincula-se cada vez mais a um modo de inferência especial que se baseia em premissas só
‘prováveis’”, que podemos representar do seguinte modo:
“B está em regra para A
CéB
C é verossimilmente A”65, representável pelo seguinte exemplo aristotélico:
“Pítaco é sábio
Pítaco é bom
Os bons são sábios”66.
Nesse raciocínio retórico, tanto as premissas quanto a conclusão possuem o caráter de
probabilidade, de verossimilhança, e, embora o entimema mencionado apenas pareça verdadeiro, é
verossímil e lógico e em seu conteúdo é adequado ao modo humano de ser. Aristóteles apresenta o
“provável” – eikós – como o que se refere ao que sucede “a maioria das vezes”, enquanto coincide com
uma opinião geralmente admitida ou “plausível” – éndoxon. Em Tópicos, I 1, 104a, 8-9, “é provável o que
assim parece, seja a todos os homens, seja à maioria, seja aos mais sábios”. Em Analíticos primeiros, II 27,
70a, 3-4, “o provável é uma premissa ‘plausível’ – éndoxon; pois o que se sabe que ocorre ou não na
maioria das vezes, o que é ou não é, isso é uma probabilidade”. Nesse sentido, “o plausível é, com efeito,
o que confere validez epistemológica aos enunciados de probabilidade, ao interpretá-los como
enunciados dialéticos ‘verossímeis’”67.
Tanto a racionalidade dialética quanto a retórica não se aplicam a um objeto específico, restrito,
mas a todas as matérias, diferindo da racionalidade apodíctica que possui matéria específica. O método
daquelas consiste em selecionar e justificar enunciados prováveis com o objetivo de constituir raciocínios
sobre assuntos que não podem e não devem ser tratados de modo científico-matemático.
A utilidade da racionalidade retórica consiste em evitar que uma coisa reprovável, uma causa
injusta, seja vitoriosa num discurso. Tanto ela quanto a racionalidade dialética são úteis para trabalhar
nos campos que não comportam constringências e precisam de interpretação a fim de alargar os
horizontes de sua compreensão, como, por exemplo, o campo da ética, da política, da metafísica. No
âmbito da compreensão-interpretação, uma tese pode ser mais ou menos válida que outra, mas não
necessariamente mais verdadeira ou falsa que outra.
A retórica nasceu da tarefa precípua de subverter a ordem injusta dos valores, exercendo uma
ação corretiva sobre a deturpação dos valores sociais. Concebida como lógica da decisão, a retórica
transforma-se em órganon obrigatório para todo projeto de racionalização da vida pública. Trata-se de
levar ao plano do convencimento, ao da validade comum, em questões políticas, os motivos pelos quais
as pessoas se movem na ausência de verdades universais que se impõem por si mesmas.
A racionalidade dialético-retórica constitui o modo mais adequado de compreender e articular
filosoficamente as questões humanas. Vimos, em Aristóteles, duas lógicas científicas argumentativas, a
apodíctica e a dialético-retórica – embora haja uma terceira, a prática. Nossa pretensão não é desprezar ou
suprimir o conhecimento lógico-dedutivo – grego ou moderno –, mas mostrar que a filosofia é irredutível
a este modelo de conhecimento. Ao realçar o valor e a atualidade da racionalidade retórico-dialética,
procuramos alargar a compreensão do filosofar, pois “em alguns aspectos da vida, a falta de precisão dos
conceitos é uma condição indispensável para poder servir-se deles, e ainda a análise mais exata dos
conceitos não é capaz de reduzir o pensamento humano aos elementos exclusivamente bem
precisados”68.
A liberdade e as contingências humanas são excluídas da racionalidade apodíctica. Na retórica,
elas são trabalhadas e compreendidas ontologicamente. Uma vez demonstrada uma proposição, em
lógica, a argumentação dedutiva se torna necessária e as demais provas são consideradas supérfluas. O
problema da racionalidade dialético-retórica é a amplitude do seu potencial argumentativo e os critérios
pressupostos. Em todo caso, na filosofia aristotélica, os diferentes níveis de saber encontram-se inter-
relacionados e interdependentes formando um sistema filosófico.
O homem que vive em sociedade e discute com seus semelhantes sabe que o mais das vezes não
se usam provas demonstrativas para resolver seus problemas. Todos experienciamos que as provas
utilizadas em moral, direito, debates políticos, não são de caráter lógico-matemático, apodíctico. É
justamente por isso que filosofamos. Tratar de questões referentes ao belo, à verdade, à bondade,
evidentemente só é possível com a argumentação do tipo do entimema.
É profícua essa volta a Aristóteles para repensar e ampliar os limites da filosofia moderna e
contemporânea, que, além de reintroduzir a questão da politicidade humana, concebe a filosofia como
um arcabouço argumentativo universal. Mas se ele nos oferece muitas pistas, permanece também uma
série de problemas, tais como o fato de a distinção de racionalidades apropriadas aos diferentes assuntos
não resolver o problema da filosofia moderna, uma vez que, em Aristóteles, a filosofia possui um caráter
analítico-epistemológico, uma ausência do valor e da referência da subjetividade e da historicidade.
Até o momento procuramos complementar e refletir – a partir de “fora” – sobre os rumos da
filosofia moderna e contemporânea. Explicitaremos agora – a partir de “dentro” desta – a guinada
filosófica a partir dos jogos de linguagem do 2º Wittgenstein. Em vez de erigir uma fundamentação
filosófica em oposição a um modelo de filosofia, nosso escopo primeiro e último é justificar o nascimento,
desenvolvimento e sentido da hermenêutica no itinerário da filosofia.

Superação da concepção moderna e contemporânea de filosofia pelos jogos de linguagem

Distinguir, na filosofia, níveis de racionalidade e apontar seus elementos constituintes é a


contribuição que apreendemos na obra aristotélica pela explicitação da racionalidade retórica. A ética, por
exemplo, enquanto ciência, só pode ser assim considerada se levarmos a sério seu estatuto epistemológico
próprio, adequado ao tema em questão, pois não devemos exigir a exatidão matemática em todos os
casos e para todas as coisas.
A crítica que realizamos à filosofia de cunho lógico-matemático não implica sua anulação.
Afirma-se, sim, que ela, sem vinculação com a ética, com a política, com a metafísica, esteriliza-se e
constitui o “último grito do cartesianismo no seio da pós-modernidade”, conforme expressão de Hans G.
Flickinger. Contudo, contrapor simplesmente a ela outra racionalidade, enquanto metodologia mais
adequada e, talvez, mais filosófica, ainda não é suficiente para dirimir as limitações da filosofia moderna
e contemporânea. Encontramos na concepção de “jogos da linguagem”, desenvolvida nas Investigações
filosóficas (= IF) do 2º Wittgenstein, o fundamento para ampliarmos a concepção de filosofia.
Para Apel, a mudança do 1º ao 2º Wittgenstein consistiu no abandono do “pressuposto de uma
linguagem precisa única, que, por meio da ‘forma lógica’ que este tem em comum com o mundo
descritível”, ditaria a lei de toda análise da linguagem e da realidade. Wittgenstein substitui esse
pressuposto metafísico ou semântico-transcendental por outra hipótese de trabalho, que é a “do número
ilimitado de diferentes ‘jogos linguísticos’ que historicamente nascem e se dissolvem”. Jogos que são
“como unidades, constituídas por uma regra de conduta, de uso linguístico, forma de vida e abertura do
mundo (= de uma situação)”69.
O pensamento do 2º Wittgenstein é essencialmente antissistemático, oposto ao exemplo de
ordem e pensamento concatenado desenvolvido no TLP: e é a teoria objetivista da linguagem que
ocupará suas atenções nas IF. Apresenta fundamentalmente uma crítica à concepção instrumentalista da
linguagem, que foi reduzida, no Ocidente, à sua função designativa. Trata-se de compreender que as
palavras são “significativas na medida mesma em que designam objetos” (IF 1, 27, 40). O pressuposto da
atividade designativa supõe uma isomorfia entre realidade e linguagem porque haveria uma essência
comum a um determinado tipo de objeto.
A segunda fase de Wittgenstein constitui um ataque veemente “a uma concepção individualista
de conhecimento e de linguagem, mas também irrompe contra todo dualismo epistemológico e
antropológico”. Ele critica, assim, a filosofia da consciência de Descartes, “que, numa perspectiva diferente,
pode ser citado ao lado de Heidegger como um dos grandes críticos da ‘filosofia da subjetividade’”70. Daí
a importância da explicitação dessa guinada interna da filosofia, no caso, dos “jogos de linguagem”,
fundamentando nossa crítica às limitações da filosofia moderna e contemporânea e impulsionando o
aprofundamento de outras perspectivas filosóficas.
A crítica do 2º Wittgenstein dirige-se à visão de linguagem e função do conhecimento, ou seja, à
teoria objetivista da linguagem em sua parcialidade enquanto concepção instrumental. Com a linguagem
podemos realizar diversas atividades (IF 23), e o limite da teoria objetivista da linguagem é reduzir as
funções da linguagem a uma única. O 2º Wittgenstein descobre assim a transcendentalidade da
linguagem humana, tese hoje “levada às últimas consequências na Pragmática transcendental. A linguagem
não é um puro instrumento de comunicação de um conhecimento já realizado, é, antes, condição de
possibilidade para a própria constituição do conhecimento enquanto tal”71.
Para o 2º Wittgenstein, o ideal de uma linguagem perfeita, exata, não passa de um equívoco
filosófico. Um ideal de exatidão completamente desligado das situações concretas do uso da linguagem
carece de qualquer sentido (IF 88). Há sempre uma “vaguidade” dos conceitos que W. Stegmüller
denomina de “abertura de conceitos”, e Waismann chama de open texture. Este se opôs à terminologia
matemática, afirmando que é possível diminuir o campo de vaguidade dos conceitos empíricos, mas é
impossível erradicá-la totalmente.
A reviravolta de Wittgenstein se deve à percepção da impossibilidade de construir uma
linguagem perfeita, em cujo bojo esconde-se, também, a ideia de construí-la e, portanto, dominá-la. A
procura de exatidão é importante, mas não pode ser o único modelo paradigmático linguístico, como
propôs no TLP, e por isso “o ponto de partida, o ponto de referência, o cerne da reflexão linguística de
Wittgenstein deixa de ser a linguagem ideal para se tornar a situação na qual o homem usa sua linguagem;
então, o único meio de saber o que é linguagem é olhar seus diferentes usos”72. A própria práxis
linguística da vida comum tem um sentido imanente a ela mesma. Não há necessidade de apelar a uma
linguagem ideal para fundamentar o saber filosófico, mas se deve observar o funcionamento da
linguagem concreta dos homens. À filosofia compete descrever os diferentes usos da linguagem, sem
tentativas de justificação ou explicação. Ou seja, deve apenas ver, “deixar tudo como está” (IF 124), daí
que seu lema é “não pense, mas veja!” (IF 66). Esse aspecto do “ver” é significativo e sintomático.
Significativo porque a filosofia olha, contempla, descreve – ativamente – o que ocorre. Mais tarde,
voltaremos a esse aspecto afirmando que – contra a “tirania do olhar” ocidental, diretivo e dominador – a
hermenêutica filosófica resgata da tradição a dimensão do ouvir que – passiva e ativamente – acolhe e
toma consciência do real.
Nas IF, Wittgenstein introduz a práxis da conduta humana na concepção dos jogos de
linguagem. Dessa pragmatização decorre “o abandono – junto com o ideal de exatidão absoluta – da
situação de monopólio da relação científica (natural) com o mundo em favor dos diferentes modelos de
compreensão do mundo imanentes a cada jogo linguístico”73. Essa pragmatização constitui um dos
aspectos centrais do 2º Wittgenstein, que é considerado, desenvolvido e superado por Heidegger e
Gadamer por meio da hermenêutica ontológica, enquanto modo de ser, não apenas enquanto maneira de
conhecer.
Wittgenstein se recusou a definir o jogo de linguagem, pois “estaria incorrendo em essencialismo
(IF 65)”, o que contradiria seu projeto filosófico da segunda fase, em que pede: “nós reconduzimos as
palavras de seu emprego metafísico para seu emprego cotidiano” (IF 116). No jogo sabemos que o
jogador não joga isolada e arbitrariamente. Para jogar tem de seguir regras e normas estabelecidas
conjuntamente. Elas constituem um quadro de referência intersubjetivo que delimita as fronteiras das
ações possíveis e, por outro lado, possibilita, ao jogador, um espaço para as iniciativas individuais.
Sabemos que num jogo, como na linguagem, mesmo seguindo as mesmas regras, os jogadores
jogam diferentemente. A existência humana implica a existência da linguagem como uma realidade dada,
embora inacabada, mas ela é fruto também da criatividade e da iniciativa humana; “daí a comparação com
o jogo. O jogo não é uma fatalidade natural, nem mesmo uma imposição de forças supraindividuais,
coletivas, sociais anônimas, pois a comunidade em questão só surge no próprio ato de jogar por meio do
reconhecimento de regras e aceitação de papéis que dirigem a ação global”74. Apesar de Wittgenstein ter
realizado uma guinada filosófica, sua preocupação com as regras e seu cumprimento denota sua
pretensão ainda científica (epistemológica), uma vez que é na validade delas que reside seu maior
interesse, mais que no exercício autoimplicativo daqueles que filosofam. Sua preocupação pragmática
está atrelada ao modelo objetivo experimental, uma vez que vale apenas aquilo que pode ser observado e
descrito empiricamente.
A linguagem, enquanto jogo, exige dos seus participantes o conhecimento e a aplicação de suas
regras, contudo estas, ao surgirem “num processo de interação social se distinguem, radicalmente, por
exemplo, das regras gramaticais da linguagem ideal do Tractatus, pois estas exprimem simplesmente
conexões simbólicas no nível do símbolo puro”75.
O que ocorre no jogo acontece com a linguagem: “Só aprendemos a significação das palavras
quando sabemos operar com elas, isto é, quando internalizamos as regras de seu uso nos diversos jogos
de linguagem. É jogando o jogo que aprendemos, de fato, suas regras”76. Esta é uma das grandes e
fecundas novidades da concepção dos jogos de linguagem, ou seja, a vinculação necessária entre o
conhecimento teórico – a validade de suas regras – e o prático intersubjetivo. Aqui encontramos o passo
dado para além da filosofia da reflexão, uma vez que o conhecimento é fundamentado num jogo, jogado
necessariamente por mais de um sujeito.
Seguir uma regra num jogo é um ato social que ocorre numa comunidade de vida por meio de
hábitos e costumes (IF 199), isto é, consiste em assumir determinada práxis própria de determinada
comunidade humana, implicando assumir uma forma de vida dessa comunidade. Por isso encontramos
muita dificuldade para definir o jogo, e por essa razão Wittgenstein – assim como Gadamer – evitou
defini-lo.
Com a concepção dos jogos de linguagem que têm em conta a “forma de vida” prática, temos
como corolário uma “pragmatização dos critérios do sentido do uso descritivo ou informativo da
linguagem”, o que conduz ao “questionamento da orientação tradicional da filosofia em direção à função
descritiva da linguagem”77. Nas IF, Wittgenstein renuncia à busca por uma explicação teórica especial
para os fenômenos do significar e do compreender. Em sua opinião, tudo fica esclarecido quando
descrevemos o jogo linguístico no qual se manifestam os fenômenos em questão: “em vez de procurar
uma explicação onde devemos ver os fatos como ‘o fenômeno primordial’, devíamos dizer: aqui se joga
este jogo linguístico” (IF § 654). O jogo torna-se a categoria central com a qual Wittgenstein expressa sua
nova concepção de linguagem. Não define o que é jogo, mas mostra o que pretende com ele, partindo de
exemplos. Por isso dizemos que é uma filosofia “mostrativa” mais que demonstrativa, e embora o
pressuposto do mostrável wittgensteiniano seja científico, a intuição de Wittgenstein é correta e autêntica,
e a comparamos com a distinção inter-relacionada de racionalidade que Aristóteles desenvolveu em sua
filosofia.
A partir da análise que Wittgenstein faz, a linguagem não consiste apenas em designar objetos
por meio de palavras, uma vez que se encontram inseridas numa situação global que regra seu uso. Assim,
“a análise da significação das palavras não pode ser feita sem considerar o contexto global da vida onde
elas estão”78. O contexto, porém, é pensado ainda de modo objetificador, para ser descrito com o escopo
de conhecer suas regras e dominá-lo.
A limitação de boa parte da filosofia ocidental consistiu em absolutizar um jogo de linguagem: o
designativo. Ocorreu uma generalização indevida, fruto do essencialismo, em que um único jogo linguístico
foi considerado válido e paradigmático.
As expressões linguísticas, para o 2º Wittgenstein, passam a ter sentido porque

há hábitos determinados de manejar com elas, que são intersubjetivamente válidos (IF 198, 199). É precisamente o hábito que sanciona
sua significação determinada (IF 349) e constitui o jogo de linguagem em questão, que é uma forma específica da atividade
humana. Por exemplo, o jogo de linguagem específico da ciência natural que Wittgenstein, no TLP, considerava o único possível
é, agora, reduzido a um sistema entre outros no pluralismo fático dos sistemas linguísticos. A designação, contudo, cerne das
considerações linguísticas da tradição, não é um jogo de linguagem propriamente, mas apenas uma preparação para isso (IF 26,
49)79.

A análise que o 2º Wittgenstein realiza consiste numa crítica à semântica tradicional, em que a
significação não depende mais da ordenação objetiva, mas a palavra tem sentido pela maneira como é
usada, isto é, de acordo com a função determinada que exerce num jogo de linguagem.
Quanto à hermenêutica moderna – compreendida fundamentalmente como a concepção de
Dilthey80 e de Schleiermacher –, a crítica de Wittgenstein à existência de um sentido fixo, oculto dos
textos, perseguido pela hermenêutica até Schleiermacher, faz sentido e está correta. Mas destronar
totalmente o sujeito que realiza a análise compreensiva da linguagem, como ele propõe, equivale a
cometer um equívoco, uma recaída na objetividade asséptica moderna. Wittgenstein faz bem ao trabalhar
e mover-se no âmbito da linguagem, mas querer estruturá-la objetivamente, realizando uma espécie de
“assepsia da subjetividade humana”, é equivocar-se filosoficamente. A concepção de história, de
liberdade, nessa visão se esvai.
Se a dimensão do sentido e sua compreensão são problemas tanto para Wittgenstein quanto para
Schleiermacher e Dilthey, a forma de abordar é que varia. Voltaremos a esse tema, mas, para adiantar, o
problema central consiste na concepção de filosofia que cada um sustenta. Como veremos, para
Heidegger e Gadamer, a filosofia é mais que uma simples metodologia para extrair o sentido de um texto
ou de uma obra literária ou artística. A hermenêutica filosófica instaura sentido, isto é, efetiva um
processo. Vejamos a relação entre hermenêutica e Wittgenstein:

(...) o jovem Wittgenstein havia ensinado que o que é um “significado”, uma “intenção com sentido” e o que é “compreender”
não pode descrever-se igual que um processo natural, mas que se “mostra” em e junto com a função da linguagem como
condição de possibilidade da descrição de um processo natural. Este princípio analítico-linguístico se mantém ainda no último
Wittgenstein, só que agora a função da linguagem não está regulada por uma “lógica transcendental” da figuração do mundo,
mas que se reparte entre a multiplicidade ilimitada dos “jogos linguísticos” fáticos, os quais são componentes de “formas de
vida” ou “costumes” e, como tais, dão abertura a priori ao sentido a cada particular mundo situacional81.

Com a concepção dos jogos de linguagem, Wittgenstein realiza uma crítica ao modo de pensar
psicologista que predominou na hermenêutica nos moldes de Schleiermacher e Dilthey. Se “não são as
‘vivências’ nem as ‘intenções de índole espiritual’ que constituem a substância e o objeto real da
compreensão, a teoria da compreensão hermenêutica logicamente tampouco poderá estar fundada no ato
de ‘reviver’ ou na ‘reconstrução espiritual’ dos atos criadores alheios que se expressam no medium
linguístico do texto”82.
Para Apel, a concepção dos jogos de linguagem coloca uma curiosa alternativa:

Por uma parte poderíamos pensar que o que substitui a compreensão hermenêutica qua ato revivescente é a “descrição” objetiva
do jogo linguístico em cujo contexto se “mostra” o sentido ou a intenção que se trata de compreender. Mas por outra parte
poderíamos partir, para a compreensão do sentido que se mostra em um jogo linguístico, não de uma descrição distanciada do
jogo linguístico como um todo, mas da participação no jogo linguístico mesmo, uma vez que só há compreensão do sentido
dentro da moldura de um jogo linguístico83.

O pressuposto da participação em um “jogo linguístico comum substitui claramente o


solipsismo metodológico da compreensão empática (...) se encontra ela mesma já mediada pela regra
pública de um jogo linguístico e pela ‘forma de vida’ com ele entretecida”84. Essa perspectiva de
Wittgenstein constitui um argumento sólido para se contrapor ao dualismo solipsista da filosofia
moderna.
Wittgenstein pretendeu substituir o subjetivismo e o relativismo por uma objetividade garantida
pelos jogos de linguagem, o que, por um lado, é adequado. Mas, por outro lado, trata-se ainda de uma
tendência metodológica com preocupação e fundamentação epistemológica, pois, no caso, ou já se
pressupõe a compreensão que deverá ser substituída por uma “mais autêntica” ou, behavioristicamente,
pretende-se substituir a “compreensão pela descrição de um processo dado objetivamente”85. O jogo em
Wittgenstein não implica um “entregar-se” a ele, um jogar propriamente. Basta que se observe e se
descreva, corretamente, como um determinado jogo ocorre. O interesse reside mais em apreender e
averiguar a validade e o cumprimento das regras, independentemente da experiência que realiza o sujeito
ao jogar. O sujeito passa, enquanto jogador, a ser apenas um observador prático que examina as regras
próprias em cada jogo. Por isso dizemos que a concepção de jogo em Wittgenstein é ainda
epistemológica, ao passo que, do ponto de vista da hermenêutica filosófica, o jogo é “ontológico”, pois
neste o jogador está envolvido, é afetado ao jogar e a preocupação com a validade das regras permanece
imbricada com seu modo de viver; o jogo é ontológico porque é autoimplicativo e é metodológico porque
o sujeito apenas constata e descreve as regras de funcionamento de um ou outro jogo.
Wittgenstein estilhaça, numa linguagem pós-moderna, a concepção de uma razão unitária
científica, descrevendo-a fragmentariamente e analisando-a pragmaticamente, como conjunto de jogos de
linguagem, cujo relacionamento entre si assemelha-se apenas ao do parentesco familiar. A crítica ao
modelo de razão que tem como parâmetro a ciência natural é o ponto comum entre Nietzsche, Marx,
Freud, Wittgenstein, M. Heidegger e H.-G. Gadamer. Ora, se a crítica – correta – de Wittgenstein ao
reducionismo da linguagem deve ser superada por outras formas de usá-la, nós pretendemos ratificar e
ampliar isso afirmando que há um pré-racional, há uma dimensão ontológica que é anterior e ultrapassa a
concepção de usos múltiplos que podemos fazer da linguagem. Não encontramos esse passo, por assim
dizer mais amplo, “além”, no 2º Wittgenstein, mesmo que tenha ampliado o uso objetivista da linguagem.
Isso nos conduz ao modo de filosofar de M. Heidegger e de H.-G. Gadamer, para quem a linguagem não
se reduz apenas a diferentes e múltiplos usos. Nela e com ela não apenas fazemos coisas – atos
ilocucionários, perlocucionários – ou descrevemos a posteriori, mas desde sempre somos.
Até aqui analisamos as limitações de boa parte da filosofia moderna e, no conjunto dos
diferentes jogos de linguagem, o jogo filosófico moderno-cartesiano se impôs sobre os demais. Essa razão
intemporal, a-histórica, estigmatiza como pseudosaber as verossimilhanças, a dialética, a retórica, a
metafísica, o mito. Com Kant, ratificou-se o viés matemático, como o único modelo válido e seguro para a
teoria do conhecimento, ao tempo em que a verdadeira ciência pretendia atingir o patamar da
neutralidade e validade absoluta. Em Carnap restou à filosofia a tarefa de ser um método, uma análise
lógica da linguagem. Na mesma direção seguiu o 1º Wittgenstein.
Em Aristóteles desenvolvemos uma alternativa de complementar e superar o reducionismo
filosófico pela explicitação e desenvolvimento da racionalidade retórica. O entimema, enquanto modelo
argumentativo, é mais coerente com o filosofar que a aplicação tout court do método lógico-matemático às
coisas humanas. A inter-relação e a interdependência entre os conhecimentos teorético, prático e poético
constituem-se em uma fecunda e atual contribuição “corretiva” para o estreitamento da filosofia.
A concepção dos jogos de linguagem do 2º Wittgenstein constitui-se numa significativa reflexão
filosófica para reavaliar as limitações da razão moderna por motivos como: 1) porque o próprio
Wittgenstein percebeu o limite de uma filosofia que se restringe ao modelo lógico-matemático; 2) porque
elaborou uma alternativa ao modelo reducionista de filosofia que erigira no TLP; 3) porque a concepção
dos jogos de linguagem aponta e fundamenta relações com a hermenêutica, pois: a) com ela há mais que
um sujeito no processo do filosofar, afinal no jogo estão implicados dois ou mais horizontes; b) retoma a
dimensão pragmática do filosofar, e junto dessa pragmatização ocorre o abandono – junto com o ideal de
exatidão absoluta – do monopólio da relação científica com o mundo, resgatando os diferentes modos de
compreensão do mundo imanentes a cada jogo linguístico; c) insiste no uso, conhecimento e
cumprimento de regras válidas e apropriadas para cada jogo.
Ante a limitação de parte do filosofar e a proposta alternativo-complementar da racionalidade
retórica e dos jogos de linguagem, deparamo-nos com a circunscrição de ambas ao modelo
epistemológico. Com Wittgenstein e Aristóteles, não superamos com radicalidade, os limites da filosofia
da reflexão, pois ambos estruturam analiticamente a filosofia, isto é, apenas distinguem níveis de saber e
jogos de linguagem. Somente a dimensão “ontológica” constitui uma virada radical, um complemento
autêntico e um contraprojeto à filosofia, à hermenêutica moderna. Por isso, nosso próximo ponto tratará
do hermeneutic turn, ancorado na hermenêutica da facticidade.

1.2 O hermeneutic turn em Heidegger e Gadamer Situação histórica

A expressão hermeneutic turn foi utilizada por Don Hide em sua obra Hermeneutic Phenomenology:
The Philosophy of Paul Ricoeur, na qual afirmou que “a virada hermenêutica propõe criar, ao contrário, um
estar ciente da não neutralidade da linguagem em uso”86. O hermeneutic turn retrata e fundamenta a
impossibilidade de reduzir a linguagem à perspectiva científico-moderna. Não abordaremos aqui a
concepção hermenêutica de P. Ricoeur. É na filosofia hermenêutica de Heidegger que ancoraremos a
guinada da hermenêutica de orientação metodológico-científica à ontológica. Fundamentaremos nossa
reflexão na hermenêutica da facticidade, que assinala a virada filosófica levada adiante por Gadamer.
O hermeneutic turn assemelha-se, em parte, à virada ocorrida na filosofia da linguagem de
orientação analítico-matemática para uma análise do seu uso, representada pelo itinerário do 1º ao 2º
Wittgenstein. Como ressaltamos, há apenas uma analogia entre essas viradas. No caso do hermeneutic
turn, ela é mais radical, pois passou-se do registro epistemológico para o ontológico – este engloba aquele
e afeta o sujeito nela envolvido, e por isso dizemos que ela se justifica como um modo de ser, mais que
simplesmente um modo de conhecer –, ao passo que na filosofia da linguagem a virada foi interna, de
uma dimensão abstrata para uma pragmática. Contudo, o ideal teórico de cientificidade é que subjaz a
estas, pois pressupõe-se ainda um sujeito que olha, analisa e descreve, de fora, a validade das regras e
seus usos nos diferentes jogos de linguagem.
A virada da hermenêutica epistemológica, isto é, da moderna à ontológica, expressa-se no termo
e significado do hermeneutic turn, iniciado por Heidegger como hermenêutica da facticidade enquanto
filosofia hermenêutica e levada adiante por Gadamer enquanto hermenêutica filosófica.
Em F. Schleiermacher, a hermenêutica é considerada uma disciplina auxiliar e subordinada à
dialética. Com W. Dilthey, a hermenêutica é enquadrada na psicologia; e ele, considerado o “gênio
universal da experiência histórica, não se saiu bem ao longo de sua vida, no sentido de fundamentar
cientificamente a concreção toda do mundo histórico (...) contentou-se com uma fundamentação
psicológica das ciências do espírito, que conduziu a uma mera tipologia das visões de mundo”87. A
concepção hermenêutica de ambos reduz-se, em última instância, aos ditames científicos da filosofia
moderna. Foi em Dilthey que Heidegger encontrou, estudou e foi influenciado pela questão da
temporalidade, da vida, da historicidade do saber.
A importância do desenvolvimento do hermeneutic turn se deve ao fato de que “foi somente a
virada que Heidegger deu à fenomenologia de Husserl, e que significou ao mesmo tempo a recepção da
obra de Dilthey através da fenomenologia, que conferiu pela primeira vez à hermenêutica uma
importância filosófica fundamentada”88. A fenomenologia foi incontestavelmente uma das correntes
principais na filosofia de nosso século. Husserl, o fundador do movimento fenomenológico, levou à
vitória o apriorismo clássico da tradição idealista, quando pôs termo à invasão da psicologia orientada
pelas ciências da natureza. Em uma de suas críticas, Husserl “mostrou, em sua obra Investigações lógicas,
que os fatos da lógica bem como os objetos da matemática, os números ou figuras geométricas, não são
fatos da experiência e são privados de seu verdadeiro sentido de validade quando são mal
compreendidos como tais”89.
Husserl rompeu com “o conceito da experiência limitada às ciências e fez do ‘mundo da vida’ a
experiência do mundo realmente vivida, elevando o tema universal da reflexão filosófica”90. Sua
concepção de Lebenswelt inaugurou o nascimento do hermeneutic turn; contudo, por meio do seu inovador
método fenomenológico, permaneceu preso ainda ao idealismo, pois uma intencionalidade (racional)
deveria buscar sempre o significado des Dings an sich. Permaneceu preso à pretensão de chegar a um
fundamento irrecusável e inconcusso do conhecimento, que era a chegada zu den Sachen selbst, próprio da
pretensão da metafísica tradicional e da filosofia moderna, inclusive da hermenêutica moderna.
Era necessário fazer uma crítica da pretensão fenomenológica de chegar “à coisa mesma”,
embora a fenomenologia – pois deslocou a centralidade do conhecimento atribuído à criação apenas por
parte do sujeito para o saber situado (Lebenswelt) – representasse um início de virada no pensamento
filosófico subjetivista e idealista ocidental. O jovem Heidegger desenvolveu então uma reflexão
conceitual e elaborou os meios metódicos que desenvolveram os traços dogmáticos no conceito de
consciência. A partir de Husserl, Heidegger procurou então fundamentar uma filosofia que recolocasse a
centralidade da autoconsciência na filosofia. A partir da filosofia aristotélica fundamentou e desenvolveu
seu método com “quem de fato não há nem autoconsciência como a ‘verdadeira’ consciência, nem sujeito
como subjetividade, nem o ego da subjetividade transcendental”91. Heidegger problematizou a existência
da “coisa em si” husserliana porque não há um tal dado da consciência; antes com suas possibilidades
tudo se encontra na dinâmica do que era e do que virá, ou seja, tudo se encontra situado e relacionado.
Na opinião de R. Wiehl, a virada ontológica aparece como a coisa essencial comum do
pensamento de Heidegger e de Gadamer, com a diferença de que este volta-se à ontologia dialética de
Platão-Hegel, ao passo que aquele volta-se aos primeiros princípios do pensar do ser grego com os pré-
socráticos.

Hermenêutica da facticidade

O hermeneutic turn92 tem lugar bem definido, não apenas no itinerário da própria hermenêutica,
como também na história da filosofia com o desenvolvimento da hermenêutica da facticidade. Heidegger
foi marcado de modo profundo e decisivo pelo problema do historicismo. Gadamer lembra que, em
função da “consciência histórica” desenvolvida então por Dilthey, “foi exigida de todos nós uma nova
autoconsciência de método. Como o idealismo alemão discursava a respeito do Absoluto, não dava
mais”93. Tratava-se de discutir de modo permanente como se podia exigir, de uma obra filosófica, a
validade de verdade ante o surgimento da consciência histórica.
Se pensarmos como parte do pensamento dos gregos, objetificando o saber, não será possível
pensar o pensamento como movimento, como temporalidade. A limitação do conceito de ser grego e a
relatividade do nosso poder conhecer são ampliadas com nossa consciência histórica. É justamente esse o
ponto central de Ser e tempo: “esclarecer a estrutura ‘hermenêutica’ do Dasein, ou seja, não simplesmente
continuar a hermenêutica do ‘espírito’ e suas criações, a qual nós nomeamos ‘cultura’, mas empreender
uma ‘hermenêutica da facticidade’”94. Isto significa afirmar que a constituição do Dasein não se esgota na
autoconsciência, mas se compreende como ser finito em seu ser-no-mundo e que, a partir disso, a questão
central da metafísica é: “‘Lógos’ não se deve mais pensar como revelação de algo presente, ‘Ser’ não é
mais como algo máximo ou mínimo presente a si mesmo. Antes, o ser não é de modo algum ‘no-thing’. E
contudo não é ‘no-thing’, este ‘nada’, que se apresenta como o ser e que pertence, como futuro, a cada
ente, também ao Dasein que se sabe como histórico-finito”95. Aqui encontramos uma importante
justificação e fundamentação do hermeneutic turn em Heidegger, sobre a qual Gadamer fundamentará sua
hermenêutica filosófica. O Dasein não é apenas um ser privado rumo à morte, limitado em seu pensar e
justificável apenas em relação ao ser “completo”, que “se basta a si mesmo”; “antes, é um projeto que se
lança para além de si mesmo, o do ser como tempo”96, um projeto projetado. Por isso Heidegger não se
propôs a destruir a metafísica ocidental, mas redimensioná-la no tempo em que Ser e tempo não se
excluem. Era como se até então a metafísica devesse, para garantir o fundamento e o exercício do
conhecimento, remeter-se ao além da física.
Heidegger mostrou que o relativismo “somente poderia valer a partir de um ponto de partida
fictício duma observação absoluta na qual o ser humano se contenta em constatar com objetividade e
tomar consciência do que foi pensado em diferentes tempos da história do pensar do Ocidente”97. Foi
contra essa absolutização da filosofia em forma de sistema que Heidegger desenvolveu sua hermenêutica
da facticidade. Para ele, tratava-se essencialmente de “encontrar o enraizamento do questionar filosófico
no Dasein fáctico humano”98. Sobre esse problema e o título da obra Ser e tempo, R. Wiehl comenta: “‘Ser e
tempo’ não é somente o título da obra filosófica principal de Heidegger, mas também uma palavra-chave
para a perda de realidade do princípio fundamental metódico da ontologia tradicional: ‘Ser e tempo’ e
não: ‘Ser e tempo e conhecimento em relação a nós e em e para si’”99.
Acerca desse ponto Gadamer confessou: “Facticidade significa assim o Dasein do ser humano, e
eu ponderei sobre o surgimento da palavra, de onde vem a ‘facticidade’ propriamente. ‘Factum’ é,
contudo, propriamente suficiente”100. No neokantismo o último fundamento do apriorismo foi o factum
da ciência, o que não satisfazia mais as reflexões filosóficas, afirmou Gadamer.
A hermenêutica alude e concentra-se também sobre o incompreensível (Unverständliches), ou
seja, o não dito (ainda), que por este é provocado ou pelo incompreendido e levado ao caminho do
perguntar e compreender. Trata da “tematização do não tematizável”, ou seja, a totalidade não totalitária,
que é “incapaz de tornar-se ‘objeto’ da reflexão”. Este “ponto de referência metafísico vê-se tematizado
como algo que subjaz a toda reflexão”, que é mencionado por Gadamer na formulação: “o que no dito
está sendo não dito”. Nesse processo não ocorre um domínio prévio, mas se procura responder ao desafio
que sempre se renova, a “algo incompreensível, surpreendentemente diferente, estranho, obscuro – e
talvez profundo, que nós precisaríamos compreender”101.
Sob os efeitos da filosofia de vida e de Nietzsche, Heidegger reflete sobre o conhecimento em
analogia com a vida, que não culmina como a flor no fruto, como na metafísica, que da contingência
chega ao Absoluto, “mas ela cria constantemente ocultamentos e erige-os em torno de si”. Isto é, nas
palavras de Heidegger: “A vida é nebulosa (Diesig)”, e Diesig significa “nebuloso”, ou seja, a vida
“enevoa-se continuamente de novo a si mesma”. Ou seja, “certamente a vida acordada é claridade e
abertura para tudo o que existe – e então subitamente se encobre e esconde de novo. Como filósofo,
Schelling designou tal limite com a expressão ‘o que não pode ser pensado previamente’
(Unvordenklich)”102. A magia dessa palavra alemã repousa no fato de que “nela sente-se sempre um sopro
real deste movimento antecipador, que quer sempre antecipar e pensar coisas com antecedência, no
entanto, sempre de novo chega em algo onde não é mais possível compreendê-las através do imaginar ou
pensar as coisas com antecedência. Isto é o que não pode ser pensado previamente”103. A hermenêutica
da facticidade trata justamente disso, uma vez que ela “não segue obviamente a curiosidade viciada na
ordem, com a qual se ensina o sistema da filosofia nas cátedras”104. Ela trata de outro compreender,
daquilo que a vida mesma oferece e é para ser compreendido. Trata-se de outra lógica, não apodíctica,
mas da verossimilhança, da existência, do finito, do histórico tecido com o metafísico...
Diferentemente da hermenêutica moderna – preocupada fundamentalmente com a
universalidade científica de sua atividade, com as interpretações “ruins” e seus equívocos, com a intenção
do autor – a hermenêutica da facticidade “está diante do enigma que o ser aí que é jogado no aí explicita a
si mesmo, projeta-se continuamente rumo a possibilidades, ao que vem ao encontro de nós. Heidegger
tematizou este ‘como’ como o ‘como’ hermenêutico”105. Pela

fundamentação da metafísica por Aristóteles nós conhecemos este “como” correspondente ao “ente como ente” (on he on). Este
não significa o ente, mas o ser, o qual é, e que é, desligado de tudo o que pode pertencer a ele – seja isto, seja aquilo. Mais tarde
formulou-se o Ser, que é independente e desligado de todas as predicações possíveis ou acidentes no conceito neoplatônico “o
Absoluto” (...) Quando se parte da hermenêutica da facticidade, isto é, da autoexplicitação do Dasein, fica evidente que o Dasein
sempre se projeta rumo ao seu futuro e com isto, ao mesmo tempo, é consciente de sua finitude. Isto Heidegger mostrou na
conhecida expressão do “correr para a morte” (Vorlaufen zum Tode) como a propriedade do Dasein. O Ser no aí é assim o Ser-aí
entre duas obscuridades, o futuro e a origem106,

ou seja, um projeto projetado.


A virada ontológica realizada por Heidegger – o hermeneutic turn tematizado e explicitado pela
hermenêutica da facticidade – consiste no fato de “cada Dasein compreender-se a partir de seu mundo
circundante (Umwelt) e sua vida diária, e articular-se na forma linguística na qual se move. Nisso sempre
há encobrimento (Verdeckung) e em toda parte – e sempre também destruição de encobrimento”107. Esse é
o fio que Gadamer segue e leva adiante. Não é por acaso que a 3ª parte de VMI, que ele considera a mais
importante, trata da linguagem e, ao final, da relação desta com a ontologia.
Gadamer seguiu a indicação de caminho iniciada por Heidegger ao retomar a questão da
linguagem, que constitui um dos núcleos fundamentais da hermenêutica: “A linguagem mesma é uma
forma da vida, e, como a vida é nebulosa, também ela sempre de novo enevoa-se. Assim nós nos
movimentamos sempre de novo só por algum momento em um nevoeiro que se clareia, que nos envolve
de novo, quando procuramos a palavra correta”108. Todos experienciamos a resistência que sentimos
quando deixamos valer a palavra do outro sobre a nossa, e, na verdade, “estar conscientes disso mais
facilmente nos ajuda a aproximar às coisas mesmas além das nossas parcialidades e, ao final, ver colocado
em questão a si mesmo...”109. Percebemos a experiência hermenêutica em nossas vidas quando
procuramos compreender o outro, pois nela precisamos quebrar em nós uma resistência ao ouvir o outro
como outro.
Se Heidegger, em sua juventude, afirmou es weltet e com isso quis dar a entender “‘ser’ levanta-
se – como o sol na manhã” (’Sein’ geht auf – wie die Sonne am Morgen), na maturidade pôde dizer de modo
semelhante: es wortet, ou seja, palavreia-se. Desse modo, “somente com a linguagem o mundo nasce, o
mundo se abre para nós na ilimitada diferencialidade e diferenciação de seu mostrar-se. A virtualidade
da palavra é ao mesmo tempo este ‘aí’ do ser. O modo de ser linguagem é o elemento no qual vivemos, e
daí a linguagem não é tanto o objeto (...) mas, antes, realização do nosso Aí, do ‘aí’ que nós somos”110.
Com o hermeneutic turn a linguagem não pode ser mais instrumentalizada, como se pretende, seja na
vertente da filosofia da linguagem, seja na perspectiva da hermenêutica moderna.
Só a unilateralidade de uma ciência da linguagem pode considerar a linguagem apenas como
um sistema dos símbolos e das regras da língua, determinando-a de modo objetificador e não no seu
verdadeiro ser e acontecer: a palavra. “Como linguagem verdadeira ela não é separável daquilo que diz,
daquilo sobre o qual fala e daquilo ao qual discursa e ao qual responde. Linguagem é dar parte, tomar
parte, ter parte no qual um sujeito não está defronte, um mundo dos objetos”111, como um cientista que,
pretensamente, se colocaria neutramente.
Inspirado por Wittgenstein e por Nietzsche, Gadamer utilizou-se da noção de jogo para
expressar a verdadeira realidade da linguagem e se livrar de toda espécie de subjetivismo. O processo do
saber “não se pode enxergar como um procedimento metódico, que um toma contra o outro, mas realiza-
se como a dialética da pergunta e resposta aberta (...) É um processo que nunca começa do zero e nunca
termina com uma soma completa”112. Como se dá esse processo enquanto processo? Revelando esse
processo vital, situamo-nos no caminho do redimensionamento da metafísica e da ontologia tradicionais.
Esta não pode pretender começar do ponto zero do conhecimento, de uma tábula rasa, mas o saber
fundamenta-se no argumento ontológico segundo o qual a linguagem é a marca de nossa finitude. Assim,
de acordo com E. Berti,

a linguagem, o estar em relação com a totalidade do ente, estabelece a comunicação do ser do homem consigo mesmo e com o
mundo, revelando sua natureza histórico-finita. Platão foi o primeiro a compreendê-lo quando reconheceu que a palavra da
linguagem é ao mesmo tempo una e múltipla, isto é, que possui uma íntima dimensão de multiplicidade que a põe em relação
com a totalidade da qual exige seu sentido, porém sem nunca chegar a esgotá-la113.

Desse modo, a hermenêutica não consiste num saber que se põe à procura de um “paraíso
perdido”, uma vez que, com o hermeneutic turn, ela amplia o projeto filosófico dominado pelo ideal de
método. A hermenêutica filosófica desvenda o domínio do ideal de método científico em nossa cultura e
“se coloca ao lado como a cultura da humaniora e engloba, na verdade, o todo de nossa forma de vida
humana. Ela serve a uma tarefa que é colocada a todos nós: a de encontrar o equilíbrio certo entre o poder
do saber dominante e a sabedoria socrática do não saber qual é o bem”114.
O hermeneutic turn protagonizado por Heidegger significou, de certo modo, uma volta à filosofia
grega para sanar as limitações da razão moderna, pois, na retomada de Aristóteles e dos pré-socráticos,
tentou fundamentar a ontologia e a metafísica a partir da relação entre ser e tempo. A virada operada por
Heidegger e Gadamer é, de certo modo, pois, uma volta à Antiguidade, que procurou levar consigo os
benefícios da modernidade, embora para o primeiro a filosofia assuma um matiz “arqueológico”. Já em
Gadamer, mais que uma simples virada – para a filosofia platônica – é uma “revirada” filosófica, pois
volta à filosofia moderna, representável na filosofia hegeliana.
Enfim, mostramos – com o hermeneutic turn – que o saber filosófico autêntico não pode ser
reduzido à abstração do tipo lógico-matemático, mas se enraíza desde sempre no tempo, na história. A
hermenêutica assume o enigma que o ser aí, que é jogado no aí, se explicita a si mesmo, projeta-se
continuamente rumo às mais distintas possibilidades entre a obscuridade da sua origem e a do seu
futuro. Diante disso e com isso, a linguagem filosófica não pode ser reduzida a um conjunto de sentenças
ou símbolos matemáticos, pois ela não é tanto um objeto, mas a realização do nosso ser aí, do que
pensamos, desejamos e somos. Por isso, a hermenêutica – em primeira e última análise, a metafísica – não
se sustenta apenas no uno, no eterno ou no necessário, mas nasce da inter-relação e imbricamento desses
com o múltiplo, com o temporal e com o contingente, integrando-os numa totalidade. Mas quais
princípios fundamentam e possibilitam essa perspectiva mais integral, autêntica e abrangente de
hermenêutica, de metafísica, e como mostrar isso? À primeira pergunta respondemos com a concepção de
experiência – a partir do hermeneutic turn –, que será tema de reflexão do nosso próximo ponto, e à
segunda respondemos com a concepção metodológica apropriada da hermenêutica filosófica, que
desenvolvemos no segundo capítulo.
1.3 A experiência, um princípio da hermenêutica filosófica

O princípio da experiência contém a determinação infinitamente importante de que, para a aceitação e presunção da verdade de
um conteúdo, o próprio homem tem de estar nele, ou, mais precisamente, tem de encontrar este conteúdo unido e em unidade
com a certeza de si mesmo.115

A hermenêutica filosófica não se reduz a um instrumento, uma doutrina ou uma corrente


filosófica. Mas enquanto uma espécie de teoria geral do saber, o que compreendemos hoje por
metafísica116, constitui e é constituída pelo princípio da experiência hermenêutica. No sentido
gadameriano, “a theoria não deve ser pensada como um comportamento da subjetividade, como uma
autodeterminação do sujeito, mas a partir daquilo que o sujeito está olhando. A theoria é verdadeira
participação, não é atividade, mas um sofrer (pathos), isto é, um ser tomado de modo arrebatador pela
visão (Anblick)”117. O que caracteriza a autêntica teoria filosófica é o tomar parte – sempre – no ato de
conhecer. E tomar parte consiste em realizar uma experiência que afeta nossas vidas numa perspectiva de
totalidade, própria do autêntico filosofar, superando a relação estanque sujeito-objeto na filosofia. A
hermenêutica filosófica não trata simplesmente de “uma doutrina do método de compreender, mas ‘da
pergunta filosófica (...) ao todo da experiência do mundo e práxis da vida humana’”118. Gadamer
manteve a concepção de hermenêutica que o jovem Heidegger utilizou como uma teoria da experiência
real, que é o próprio pensar.
Nos passos filosóficos para superar os estreitamentos da razão, seja pela racionalidade retórica,
seja pelos jogos de linguagem, seja pelo hermeneutic turn, compreendemos a experiência hermenêutica
como fundamento e aquilo que fundamenta o saber enquanto hermenêutica filosófica. O fundamento
porque caracteriza a origem e o nascimento da filosofia – o que moveu e ainda move as pessoas a
filosofarem foi e é a experiência do Thaumatos; porque nos permite superar a razão técnico-instrumental
sem subsumi-la num sistema ou prescindir dela depois de tê-la usado, pois nos permite pensar a filosofia
em sua historicidade. Ela nos oferece a possibilidade de conceber a filosofia como um perpétuo
movimento relacional
entre sujeito e objeto. Ela é o que fundamenta porque é uma “força” – no sentido de Enérgeia
aristotélica e Vollzug heideggeriana –, pois o sujeito desde sempre é afetado pela tradição, pela história.
Fundamenta enquanto se trata de uma experiência metaempírica, não metaexperienciável. Por isso,
preferimos falar em princípio a falar em conceito de experiência, e porque a metafísica e a ontologia
estruturam-se e justificam-se com princípios filosóficos.
A hermenêutica filosófica, enquanto uma teoria do saber, amplia a razão instrumentalizada,
recoloca e fundamenta o problema do conhecimento, da metafísica. A filosofia mantém “um certo nexo
com o saber pré-teórico e com a totalidade do mundo da vida que não pode ser objetificado”119. Trata-se
de uma totalidade não totalmente objetificável, que, diferentemente da metafísica grega e moderna,
retoma e reconstitui o esquema sujeito-objeto120 num nível relacional, situado historicamente, onde os
polos são conservados e ampliados, sem supremacia de um ou outro. A partir dessa relação dialógica,
consideramos a experiência que o sujeito realiza o núcleo a partir do qual podemos retrabalhar o
reducionismo da razão e com o qual justificaremos a hermenêutica filosófica.

Traços gerais e diferentes dimensões da experiência

Experiência e história podem ser consideradas os dois temas mais importantes e próprios da
filosofia do século XX, e, “com a ampliação do conceito de experiência para além do campo da
experiência dos sentidos, chegou-se ao mesmo tempo à percepção da autêntica temporalidade de cada
experiência”121. Para corroborar nossa posição acerca da centralidade do princípio da experiência na e da
filosofia, retomamos a afirmação de O. Marquard, para quem a “experiência sem filosofia é cega; a
filosofia sem experiência é vazia: não se pode ter realmente filosofia sem ter a experiência em relação à
qual ela é a resposta”122, isto é, o filosofar autêntico implica realizar uma experiência. Contudo, o conceito
de experiência pertence aos conceitos menos esclarecidos que possuímos. A palavra experiência “é uma
das mais enganadoras em filosofia. Problema da base empírica na teoria das ciências, problema do
mundo da vida em Husserl, da hermenêutica em Gadamer”123, que acentuou, nos passos de Heidegger, a
historicidade da experiência a partir da historicidade do ser e de seu caráter projetual. E. Fink acentuou a
dimensão da historicidade da experiência ontológica, retomando a reflexão de Heidegger sobre a história
do ser e seu caráter de projeto124. Nesta, o ser experiencia-se como um projeto projetado. O importante
aqui dentre as maneiras diferentes de abordar o problema da experiência – diferentemente do ponto de
vista da ciência experimental – é reter o problema da experiência em sua relação com a história, o que nos
remete a Hegel, ao historicismo alemão, a Dilthey, a Heidegger, a Gadamer.
Uma dimensão central da experiência encontramos em D. Teichert, segundo o qual,

enquanto o sujeito meramente registra novas informações acerca de um objeto e, em razão desta informação, corrige, modifica e
amplia seu conhecimento, não se pode ainda, no âmbito da hermenêutica, falar de experiência. Somente quando o aumento de
conhecimento muda o sujeito mesmo e produz uma mudança de atitude, é oportuno falar que alguém fez uma experiência que é
hermenêutica125.

Ora, a mudança de atitude por parte do sujeito é mais radical e fundamental que o fato de
mudar de conceito ou de opinião, por isso denominamos tal experiência hermenêutica de ontológica.
Neste sentido ela constitui-se mais como um princípio filosófico, impulso e base do filosofar, que como
um conceito.
Na experiência ontológica, apreendemos o ser como fundamento (logos) do ente (on), e na
metafísica “o ente concreto é experienciado na sua conexão com todo ente num horizonte ilimitado. Neste
com-experienciado, tem uma posição única o ser subsistente e necessário”126. Na experiência ontológica,
o “pensar e o pensado, sujeito e objeto são uma unidade. Se é seu pensar, e se pensa seu ser”127. Desse
modo, o movimento do saber não esgota a dinâmica do ser num conceito ou num sistema.
A coerente e pertinente tese de R. Wiehl é que “a experiência pode ser expressa em significado
múltiplo (...) a história da filosofia é uma história de ambiguidades e com Hegel começa a história da
ambiguidade do Ser da experiência”128. Não se trata de entificar a ambiguidade na filosofia, mas mostrar
que ela deve ser dirimida onde for permitida e, ao mesmo tempo, conservada onde necessária, afinal, os
meandros da alma humana são incontornáveis. A filosofia propõe-se a elaborar proposições lógicas,
claras, com sentido, mas deve conservar aqueles âmbitos onde a clareza e a logicidade matemática não
são aplicáveis literalmente, como é o caso das ações humanas.
Gadamer retomou e aplicou a concepção de experiência filosófica que fora reduzida à concepção
das ciências naturais. Na obra gadameriana,

a experiência não mais aparece primariamente como um processo de apropriação cumulativa assegurada metodicamente de
conclusões, que são meios para o possível domínio de uma ordem objetiva refletida nela. Experiência (...) é definida aqui como
uma coisa que precede o processo metódico de armazenamento de conhecimento científico, e como um fator emergindo da e
revertendo na vida prática que, como um modo de tal vida prática, pode até mesmo dar diretivas à cognição empírica do tipo
objetivo. (...) a ocorrência da experiência hermenêutica tem a estrutura de uma performance prática acontecendo como uma
unidade de ação-projeto e reflexão crítica dentro do limite do agente. Experiência, aqui, não é tanto um processo de acumulação
de conhecimento objetivo, mas, ao invés, a história descritível biograficamente de uma educação129.

Nesse sentido falamos que isso constitui um alargamento da concepção de metafísica que
desemboca numa ontologia mais dinâmica e autêntica, pois nela há uma ilação e coerência teórico-
existencial entre saber e ser.
Na ciência moderna, “uma experiência só é válida na medida em que se confirma; neste sentido
sua dignidade repousa por princípio em sua repetibilidade. Porém isto significa que por sua própria
essência a experiência cancela em si mesma sua própria história e a deixa desconectada de si”130, jogando
fora a escada em que subiu, ao modo do 1º Wittgenstein. A experiência que permanece referida apenas
teleologicamente à aquisição de verdade é superada aqui com a concepção de experiência hermenêutica.
Sabemos que é “objetivo da ciência objetivar de tal modo a experiência, que ela não possua ao
final nenhum momento histórico (...) Na ciência não pode ficar lugar para a historicidade da
experiência”131. Por essa razão, o problema da história desenvolvido por Hegel é tão importante para a
hermenêutica gadameriana. Nesta, a discussão sobre o conceito de experiência significa “que o saber
possível não pode elevar-se em princípio sobre a relação histórica na qual se encontra; ele é sempre mais
‘efetuação’ dessa relação que ‘causa’"132.
A concepção de experiência hermenêutica em Gadamer pretende ser ateleológica, seja no sentido
de uma teleologia invertida do tipo de Husserl, seja de uma do tipo oposto, como é o caso da baconiana.
Em Husserl, “o pensar retorna da experiência científica ao mundo da vida, para encontrar nesta sua
fundamentação original de sentido e a verdade”, ao passo que “o caminho de Bacon vai na direção
contrária, da insuficiência e da incerteza da experiência do mundo da vida com suas induções ocasionais
em direção à experiência científica, na qual a indução encontra seu aperfeiçoamento científico em favor
de uma generalização metódica bem ordenada (indução)”133. Gadamer critica essas concepções
teleológicas. “Husserl não conseguiu chegar até a experiência concreta do mundo da vida, porque ele a
conecta às condições da subjetividade transcendental, que, diferentemente das idealizações das ciências,
permanece presa a idealizações linguísticas, (...) o aperfeiçoamento das induções do mundo da vida de
Bacon permanece preso a preconceitos que se devem à tradição das ciências especulativas dos
princípios”134. Gadamer opôs-se à redução realizada por ambos, integrando-os com outras dimensões, e,
para retificá-los, não recorreu – nesse caso – a Hegel, mas à teoria aristotélica da Empeiria.
No itinerário de VMI, o recurso a Aristóteles constitui o primeiro momento para a configuração
da experiência. Gadamer retoma o conceito de indução desenvolvido pelo estagirita em Analíticos
posteriores e na Metafísica, onde descreve como se produzem a experiência e sua unidade “a partir de
muitas percepções diversas e retendo muitas coisas individuais. Que tipo de unidade é esta?
Evidentemente se trata da unidade de algo geral. Contudo, a generalidade da experiência não é ainda a
generalidade da ciência”135. Importa reter aqui que, para Aristóteles, “a experiência só se dá de maneira
atual nas observações individuais. Não se pode conhecê-la em uma generalidade precedente. Nisto
justamente se estriba a abertura básica da experiência rumo a qualquer nova experiência”136. Aristóteles,
para explicar o que é e como acontece a experiência, compara as muitas observações que alguém faz a um
exército em fuga, pois “também elas são fugazes, não ficam onde estavam. Porém quando, nesta fuga
generalizada, uma determinada observação se vê confirmada por uma experiência repetida, então se
detém”. Embora esta imagem coxeie, ela deixa claro que

a experiência tem lugar como um acontecer de que ninguém é dono, que não está determinada pelo próprio peso de uma ou
outra observação, senão que nela tudo vem a ordenar-se de uma maneira realmente impenetrável. A imagem retém esta peculiar
abertura na qual se adquire a experiência; a experiência surge com isto ou com o outro, de repente, de improviso, e contudo não
sem preparação, e vale até que apareça outra experiência nova, determinante não só para isto ou para aquilo, senão para tudo o
que seja do mesmo tipo. Esta é a generalidade da experiência através da qual surge, segundo Aristóteles, a verdadeira
possibilidade do conceito e a possibilidade da ciência137.

Na experiência hermenêutica não é possível um domínio absoluto dela. Nesse sentido, não é
pensada, a priori, teleologicamente. O problema é que Aristóteles pensou a essência da experiência
referida à ciência, o que simplifica o processo no qual se produz, ou seja, a unidade universal da
experiência enquanto um acontecer. Gadamer toma de Aristóteles a medida da experiência como posição
intermediária entre percepção e ciência, e, contudo, “o processo de experiência não transcorre sem
interrupção, como quer fazer crer a imagem de Aristóteles do exército em fuga, que para de improviso.
Antes, a experiência se constrói a partir do refutar constantemente falsas generalizações e neste sentido a
própria experiência que se faz é sempre negativa. ‘A negatividade da experiência tem um sentido
produtivo peculiar. A negatividade da experiência é dialética’”138. Gadamer passa então do conceito de
experiência aristotélico para o hegeliano, retomando deste, inicialmente, a noção de negatividade.
Se considerarmos a experiência única e exclusivamente referida a seus resultados, suprimiremos
o verdadeiro processo da experiência, que é essencialmente negativo. De acordo com Gadamer, podemos
falar da experiência em duplo sentido:

por uma parte como as experiências que se integram em nossas expectativas e as confirmam, por outra como a experiência que se
“faz”. Esta, a verdadeira experiência, é sempre negativa. Quando fazemos experiência com um objeto, isto quer dizer que até
agora não havíamos visto corretamente as coisas e que é agora que por fim nos damos conta de como são. (...) Em consequência,
o objeto com o qual se faz uma experiência não pode ser qualquer um, mas tem que ser tal que com ele possa aceder-se a um
saber melhor, não só sobre ele mas também sobre aquilo que antes se acreditava saber, isto é, sobre uma generalidade. A
negação, em virtude da qual a experiência logra isto, é uma negação determinada. A esta forma da experiência damos o nome de
dialética139.

O princípio da experiência a partir da Fenomenologia do Espírito*

(...) a partir disso a tarefa da hermenêutica filosófica pode caracterizar-se como segue: tem que refazer o caminho da
Fenomenologia do espírito hegeliana enquanto em toda subjetividade se mostra a substancialidade que a determina.140

Antes de procedermos à explicitação da epígrafe acima, apresentaremos um quadro comparativo


da posição filosófica de Heidegger e de Hegel, uma vez que ambos exerceram influência decisiva na
elaboração da noção de experiência hermenêutica na obra de Gadamer.
Retomando a filosofia de Heidegger, constatamos que ela é mais regressiva, “arqueológica”, se
comparada com a Aufhebung de Hegel, isto é, “o caráter de seu próprio diálogo com a história da filosofia
é aquele de um backtrack, ‘the step back’”141. Para T. Kisiel,

o esquema progressivista de Hegel exige um passo para a frente que reconcilia tudo que foi antes com o estágio presente do
espírito no movimento de interiorizing recollection, Er-innerung. Nada está perdido ou jogado fora em tempo algum, todas as
realizações passadas do pensamento encontram seu lugar como partes na presente consumação do espírito. Nada, portanto, fica
fundamentalmente oculto ou misterioso. Nós entendemos os pensadores do passado melhor do que eles entenderam a si
mesmos, como fases subordinadas de um sistema mais completo. Pode-se, portanto, dizer que nós os entendemos melhor
entendendo-os diferentemente. Heidegger, ao invés, fala de um esquecimento, Seinsvergessenheit, um esquecimento do Ser que
exige um repensar das fundações ocultadas do que já foi pensado para retirar de seu impensado o que está ainda para ser
pensado. A metafísica, portanto, deve ser “destruída” e “superada” em vez de “elevada” e “consumada”. Se Heidegger exige um
retorno aos começos ocultados da filosofia, é com uma convicção que é diretamente oposta à de Hegel: este começo não é mais o
mais pobre e o mais abstrato, mas o mais rico e o mais concreto, a fonte de perpétua novidade142.

A pergunta que nos fazemos é: por que Hegel e, explicitamente, por que retomar sua
Fenomenologia do espírito (= FE), a fim de situar e fundamentar a experiência hermenêutica como princípio?
Para J. Gauvin, esta obra (FE) é um discurso indiretamente ontológico, ou seja, uma espécie de ontologia
fraca, conforme expressão de R. Wiehl. Hegel, bem como Gadamer, parte do reducionismo de boa parte
da filosofia moderna, e ambos tiveram a pretensão de superar a “filosofia da reflexão”143, com a diferença
de que o primeiro permaneceu preso nas malhas do seu objeto de crítica. Por isso procuremos desdobrar
o sentido da afirmação de Gadamer: “A tarefa da hermenêutica filosófica pode caracterizar-se como
segue: tem que refazer o caminho da Fenomenologia do espírito hegeliana enquanto em toda subjetividade
se mostra a substancialidade que a determina”144. Não poucos foram os conceitos de Hegel
posteriormente retomados e aprofundados por Gadamer, que se reconhece um grande devedor dele (p.
ex., especulativo, movimento, dialética, negatividade, experiência, história...). Gadamer pôde dar um
passo adiante de Heidegger, pois foi Hegel o filósofo que levou a sério e teorizou o problema da
historicidade de maneira radical.
Para J. Grondin, a partir do ponto de vista de Gadamer, “(...) a filosofia do Espírito de Hegel,
assim como a hermenêutica filosófica, ‘reivindica realizar uma total mediação entre história e presente’. A
palavra de ordem (Kampfparole) desta discussão é o conceito de experiência”145, e por essa razão optamos
por aprofundar esse conceito a partir da Fenomenologia do espírito.
Gadamer segue o modelo de compreensão da história mais de Hegel que de Schleiermacher,
Dilthey ou Marx. Para V. Verra, o peso que Gadamer dá a Hegel é um ponto sobre o qual há discussões.
Wolfhart Pannenberg, em seu ensaio “Hermeneutik und Universalgeschichte”, p. ex., sustenta que “a
obra inteira de Gadamer é um confronto em parte declarado, em parte tácito com Hegel”146; confronto
para superar o modelo hegeliano, necessitário, que ao final não salvaria mais os sujeitos nem conteria
experiência. Para Hegel, a compreensão histórica não é simplesmente reconstrução do passado, mas
integração dialética e especulativa com o presente em um processo de mediação que não é fruto da
reflexão externa, mas é o movimento mesmo da verdade, efetuando-se na história. Por essa razão Walter
Schulz interpretou “a trajetória da hermenêutica de Heidegger a Gadamer como ‘cumprimento da
consciência histórica’, em que a filosofia da subjetividade leva a termo o seu desenvolvimento com o êxito
paradoxal de dissolver-se totalmente no movimento da história e da linguagem”147. Não concordamos
com essa afirmação, pois em Gadamer, pelo medium da linguagem, não há dissolução final e conclusiva
da história, da filosofia, num fim absoluto do seu movimento.
Gadamer reivindica e justifica o testemunho importante de Hegel, para quem a dimensão e o
momento da historicidade ganham seu direito pleno. Na perspectiva gadameriana,

a experiência que alguém faz transforma o conjunto de seu saber. Em sentido estrito não é possível “fazer” duas vezes a mesma
experiência (...) Quando se fez uma experiência, quer dizer que se a possui. Desde esse momento o que antes era inesperado é
agora previsto. Uma mesma coisa não pode voltar a converter-se para a pessoa em experiência nova. Só um novo fato inesperado
pode proporcionar ao que possui experiência uma nova experiência. Deste modo, a consciência que experimenta se inverte: se
volta sobre si mesma. O que experimenta se torna consciente de sua experiência, se torna um experto: ganhou novo horizonte
dentro do qual algo pode converter-se para ele em experiência148.

Compreendemos sempre de outro modo sem a garantia de chegar, necessariamente, ao patamar


do científico, do inequívoco. Nessa perspectiva, a reflexão não é externa à filosofia, mas a constitui. O
filosofar envolve quem filosofa ampliando, questionando, retificando e ratificando o horizonte pessoal e
no qual se encontra. Trata-se de uma fenomenologia da experiência enquanto quebra constante de
expectativas predeterminadas. A consciência agora não é apenas do “em-si” do objeto, mas do para-nós e
nós-para ele.
É a partir da definição de experiência de Hegel que Gadamer estrutura sua noção de experiência:
“o movimento dialético que realiza a consciência consigo mesma, tanto em seu saber como em seu objeto,
na medida em que para ela o novo objeto verdadeiro surge precisamente”149. Ou seja, “a experiência tem a
estrutura de uma inversão da consciência e é por isso um movimento dialético (...) Na verdade, a
consciência filosófica compreende o que verdadeiramente faz a consciência que experimenta quando
avança de um ao outro: dá-se a volta”150. O essencial da experiência consiste na experiência da inversão
da consciência, é que “a produtividade hermenêutica da concepção hegeliana da experiência reside, pois,
na sua estrutura profundamente existencial e relacional, acionada pelo papel maiêutico da negação
determinada. A experiência, como relação de quem experimenta com a alteridade do que é
experimentado, é dialético-negativa num duplo sentido: gnosiológico e existencial”151, e por isso
ontológico. A concepção de experiência hermenêutica é mais que uma simples inversão da consciência tal
como Hegel propôs, uma vez que a consciência volta-se para ela e concomitantemente para o outro.
Para R. Wiehl, “com razão Gadamer acentuou a importância da inversão da consciência como o
princípio metódico fundamental da FE de Hegel para a compreensão da consciência da efetuação da
história e para o conceito da experiência hermenêutica”152. Aqui enfatizamos a concepção de experiência
enquanto princípio, constituinte e constituidor da hermenêutica filosófica, não a fim de justificar e
explicitar a “história da efetuação” (Wirkungsgeschichte), tal como Gadamer também se propôs em boa
parte de sua obra.
De acordo com F. Bianco, “se, para Hegel, o sentido último do ser histórico poderia ser o de
resolver-se na autotransparência, esta solução aparece, pois, para Gadamer, de todo ilusória, a partir do
momento que a sua hermenêutica, retomando de Hegel o problema da relação entre subjetividade e
substância – ... – visa na realidade refazer ‘o itinerário da FE hegeliana com o fim de pôr à luz em cada
subjetividade a substancialidade que a determina’”153. Propusemo-nos, em parte, reler Hegel à luz das
palavras de A. de Waehlens: “É muito claro que o nó do empreendimento de Gadamer consiste em
interpretar Heidegger para metamorfoseá-lo em um Hegel sem sistema”154. Contudo, nosso propósito
consiste em fundamentar a hermenêutica filosófica a partir e com princípios de uma metodologia própria.
Salvaguardamos a filosofia de Hegel, que não culmina num sistema necessitário absoluto, mais que
justificamos Heidegger sem sistema, tal como afirma A. de Waehlens.
Com a FE, Hegel pretendeu superar os limites da “filosofia da reflexão”155. Gadamer retomou a
mesma pretensão aplicando-a ao problema da relação e da pertença entre saber e efetuação. Por isso
desenvolveu o conceito de Horizontbildung e de Horizontverschmelzung para descrever a Vollzugsweise da
efetuação da consciência histórica. Que espécie de consciência é essa? “Não teremos que admitir como
fundamento da hermenêutica a mediação absoluta da história e verdade tal como a pensava Hegel?”156
Gadamer procurou reter toda a verdade do pensamento de Hegel para livrar a hermenêutica das
consequências do idealismo.
Gadamer pensa e estrutura, em VMI, principalmente na 2ª parte, a concepção de experiência em
função da Wirkungsgeschichte em substituição à dialética hegeliana, o que significa se perguntar pela
possibilidade de tal consciência, isto é, como saber e efetuação formam uma unidade nesta consciência, e
retoma o conceito de experiência de Hegel, desenvolvido na Fenomenologia do espírito. Gadamer
“afirma a reflexividade da experiência, mas não a consequência, associada com a reflexão por Hegel e
Schleiermacher, de que a reflexão, por sua essência, se ultrapassa a si mesma em um todo ou um
Absoluto do saber e do ser espiritual”157. O Sócrates contemporâneo procurou evitar “a imanente,
aparentemente inevitável consequência de a reflexão conduzir para além de cada nível da finitude, como
também a de voltar a uma posição kantiana da ‘má infinitude’, onde a finitude não é pensada como
finitude, mas em relação à infinitude”158.
Desse modo, a consciência não é a medida absoluta da experiência. Hegel insistiu que o objeto
também muda, “pois o saber dado era essencialmente um saber do objeto. Com o saber o objeto torna-se
um outro, pois ele pertencia essencialmente a este saber”, ocorrendo uma verdadeira inversão
(Umkehrung) da consciência. Experiência é justamente “este movimento dialético que a consciência exerce
nela mesma, em seu saber bem como em seu objeto, enquanto que diante dela o novo objeto verdadeiro
brota”159. A relação da consciência com o real não é solipsista, mas relacional.
Para Hegel, a experiência é a que

a consciência faz consigo mesma. “O princípio da experiência contém a determinação infinitamente importante de que para a
adoção e presunção da verdade de um conteúdo o homem mesmo tem que estar nele ou, mais precisamente, tem de encontrar
este conteúdo unido e em unidade com a certeza de si mesmo” (...) O conceito de experiência quer dizer precisamente isto, que se
chega a produzir esta unidade consigo mesmo. Esta é a inversão que ocorre à experiência, reconhecer-se a si mesma no estranho,
no outro. Quer se realize o caminho da experiência como um estender-se pela multiplicidade dos conteúdos, quer como o surgir
de formas sempre novas do espírito, cuja necessidade compreende a ciência filosófica, seja qual for o caso, trata-se de uma
inversão da consciência160.

Um dos aspectos que Gadamer retoma de Hegel é o problema do reconhecimento do tu, como
desenvolveu no processo dialético da FE. Nesta, “a autoconsciência própria só alcança em Hegel a
verdade de sua autoconsciência na medida em que luta por obter seu reconhecimento no outro; a relação
imediata do homem e da mulher é o conhecimento natural do mútuo ser reconhecido”161. O
reconhecimento em questão não é do tipo de relação existente nas ciências naturais, em que o Eu sabe e
pode tudo e com isso submete o outro a si. Não é também do tipo relacional das ciências do espírito, onde
o Eu entende supostamente, de antemão, o que o outro quer dizer, mas não o deixa valer como outro. Um
dos polos arroga-se o direito de afirmar que sabe mais que o outro – no caso de um texto, o intérprete
pretende saber mais que o próprio autor. Mas o reconhecimento próprio da hermenêutica é aquele em
que o outro, como pessoa, também pode ter razão sobre o eu. Nessa relação, nenhum dos polos é
anulado, mas ambos reconhecem-se no outro, ampliando seus horizontes; a polaridade eu-tu, na
concepção hermenêutica, não é assimétrica no sentido da parábola hegeliana do senhor e escravo, na qual
no final ocorre uma simples inversão da assimetria inicial.
Para Hegel, o conhecimento não se funda na anamnesis ou no acúmulo de dados, mas na razão
que se fundamenta a si mesma pela dialética da reflexão. A filosofia do espírito de Hegel pretende
alcançar uma mediação total de história e presente. Sua reflexão na FE não é “externa” ao pensar o
conceito, embora no final a tenha externalizado suprimindo-a no Espírito Absoluto.
Hegel não estava interessado propriamente no conceito de experiência, mas em uma filosofia
que se consumaria, através da dialética, no Espírito Absoluto. Gadamer desenvolve-a como “meio” e
“forma” de compreensão para sua concepção de história da efetuação (Wirkungsgeschichte). Por isso
reinterpretou o conceito de dialética de Hegel. Para R. Wiehl, “a apresentação do conceito de experiência
de Gadamer tem dois pontos centrais: ela consuma-se em uma crítica ao conceito de experiência em
Hegel; ela identifica a experiência com a consciência de história efeitual (Wirkungsgeschichte)”162. Sob
nosso ponto de vista, Gadamer cometeu um equívoco semelhante ao de Kant e Hegel nesse ponto, ao
usar o conceito de Wirkungsgeschichte em substituição à dialética ou coisa em si (pois instrumentalizou a
experiência em seu aspecto “passivo”). Pensamos que, ante o totalitarismo do sujeito por parte de Hegel,
a hermenêutica de Gadamer – com ênfase no valor da coisa dada, seja linguagem, seja história, e na
relação de padecimento por parte do sujeito – conduz a uma determinação do tipo do destino grego. O
princípio da experiência intermedeia ambos. O fio central aqui é o da experiência com a qual podemos
complementar a dialética, o que significa refazer o caminho da FE enquanto em toda subjetividade se
mostra a substancialidade que a determina.
Gadamer retomou de Hegel o ponto de partida para explicitar sua noção de consciência efetuada
historicamente e, ao mesmo tempo, tomou dele a mediação entre história e presente para esclarecer seu
conceito de efetuação histórica. “Na medida em que tal reconciliação é o trabalho histórico do espírito, o
comportamento histórico do espírito não é autoespelhamento nem também somente suprassunção
dialético-formal do autoestranhamento que sucedeu a ele, mas uma experiência que experimenta a
realidade é ela mesma real”163.
A leitura tradicional que Gadamer faz de Hegel substitui o conceito de dialética empregado por
este pelo de “efetuação da história”. Leitura esta correta; contudo, nossa posição é que isso deveria ser
revisto. Pois Gadamer mesmo, no final de sua vida, enfatiza a importância e o sentido da experiência da
obra de arte e minimiza o conceito de efetuação da história, o que atesta realmente que é a experiência o
traço central da hermenêutica gadameriana e, por isso, para nós, um princípio da hermenêutica filosófica.
Nossa posição consiste em defender que a releitura de Hegel se faz pelo princípio da experiência com o
qual Gadamer propôs-se a reinterpretar o método dialético, não pela Wirkungsgeschichte apenas.
Gadamer apropriou-se de Hegel para salvaguardar a filosofia enquanto movimento, processo. A
concepção de metafísica em questão que defendemos é de uma in-objetificação do saber. Contudo, se sua
tarefa “é explicitar e expressar o ser mediante a linguagem, isto coloca a pergunta se o ser pode ser
expresso em enunciados humanos ou se, ao fazê-lo, não ocorre já uma objetificação que não apreende o
ser”164. O projeto metafísico implícito aqui não é de apreender a essência da experiência dialeticamente,
mas de pensar a dialética a partir da experiência hermenêutica. A novidade do conceito de experiência de
Hegel consistiu em vê-la não apenas como um “prelúdio para o conhecimento científico, mas que nela se
reconhecem o objeto e a rica abundância da possível confirmação do pensamento puro”165. Pensar a
dialética a partir da essência da experiência não significa uma inversão de prioridades apenas com
respeito ao conceito e à experiência. Antes mostra que a natureza da dialética só é compreensível a partir
da experiência; que não culmina no saber Absoluto que no final elimina a própria experiência e absolutiza
a dialética como método. O projeto aqui é que “na teoria hermenêutica da experiência a relação de
prioridades possíveis entre pensamento e experiência permanece em suspensão (Schwebe). Neste estado de
suspensão pode-se ver tanto a força como a fraqueza do conceito hermenêutico de experiência”166.
Suspensão não como prelúdio à cientificidade, ao Absoluto, mas como modo próprio de ser da
hermenêutica filosófica que se mostra em suspensão (Schwebe) através do jogo, do círculo hermenêutico, do
diálogo; uma suspensão tensional que procura explicitar a linguagem da experiência e a experiência da
linguagem. Nesse sentido,

o locus da dialética para Gadamer não está em um conhecimento que se move em direção a sua culminação em ciência, mas em
uma experiência situada linguisticamente que está sempre sujeita ao negativo através de um encontro sempre possível com o
novo e o inesperado. E o motor assim como o medium da dialética é agora a linguagem mesma, a condição de possibilidade de
qualquer experiência que assegura ser chamada de experiência humana. O doing of the subject matter itself que Hegel situa na
autorreflexão do espírito, agora se manifesta em e através da linguagem, em um movimento especulativo que constitui um
inesgotável play on words, um jogo de linguagem autoimpulsionado, “o jogo da linguagem mesmo que nos fala, avança e recua,
questiona e se consuma na resposta”167.

O jogo hermenêutico exige que o jogador jogue para que a experiência aconteça – o que vale para
o círculo hermenêutico e para o diálogo. Analisemos agora a noção de princípio da experiência,
desenvolvendo seus traços fundamentais.

Traços constitutivos da experiência hermenêutica

Enquanto princípio filosófico, a experiência hermenêutica não se circunscreve a um conceito


acabado. Eis por que delinearemos sua identidade explicitando traços centrais tais como: sua finitude, sua
historicidade, sua não objetificabilidade, sua negatividade, sua ambiguidade, sua abertura.
Para justificar o terceiro momento da experiência, em VMI, Gadamer toma Ésquilo como
testemunha para expressar a historicidade interna da experiência na fórmula: “aprender através do
padecer” (pathei-mathos), que “não só significa que nos fazemos sábios através do dano e que só no
engano e na decepção chegamos a conhecer mais adequadamente as coisas”168. O homem aprende pelo
padecer e percebe seus limites compreendendo-se como ser finito e, portanto, histórico. A concepção
heideggeriana de Dasein fundamenta e representa essa dimensão da experiência.
A experiência hermenêutica é a

experiência da finitude humana. É experimentado no autêntico sentido da palavra aquele que é consciente desta limitação,
aquele que sabe que não é senhor nem do tempo nem do futuro; pois o homem experimentado reconhece os limites de toda
previsão e a insegurança de todo plano (...) Nela a experiência não tem seu fim, nem se alcança a forma suprema do saber
(Hegel), senão que nela é onde em verdade a experiência está presente por inteiro e no sentido mais autêntico (...) A experiência
ensina a reconhecer o que é real. Conhecer o que é, é assim o autêntico resultado de toda experiência e de todo querer saber em
geral169.
Na tentativa de reformular a relação entre consciência subjetiva e espírito objetivo, boa parte da
filosofia contemporânea tomou “a sério o conceito hegeliano de espírito objetivo tendo em si mesmo
conta da descoberta, que se pode chamar, no sentido mais vasto e genérico (Kierkegaard, Marx,
Heidegger), da não definitividade da instância da consciência, e isto é da finitude do homem”170.
Desse modo a síntese da sabedoria grega expressa pelas palavras “conhece-te a ti mesmo”
aplica-se para nós ainda hoje, ou seja, trata-se de reconhecermos que não somos deuses, mas humanos. O
autoconhecimento “não é, em todo caso, a transparência plena do saber, mas a percepção de precisar
aceitar os limites postos a seres finitos”171. Talvez essa seja uma das maiores contribuições da
hermenêutica filosófica, uma vez que – partindo da concepção de conhecimento autoimplicativo – chama
a atenção para a necessidade de um filosofar imbricado com a vida.
A ênfase na finitude, antes que entificação dela, é uma convocação à consciência da docta
Ignorantia e à necessidade de reconhecer que ela é o ponto de partida, com seus idola, do saber humano.
Os limites não apenas condicionam nosso saber, como são a condição de possibilidade dele. Não se trata
de absolutizar a finitude, invertendo apenas a ordem tradicional, nem de curtir a melancólica depressão,
como foi o caso, por exemplo, do desmoronamento do imaginário medieval na renascença172, mas de
incorporar nosso ser em nosso saber e vice-versa.
Em Gadamer,

a verdadeira experiência é aquela em que o homem se torna consciente de sua finitude. Nela encontram seu limite o poder fazer
e a autoconsciência de uma razão planificadora. É então que se desvela como pura ficção a ideia de que se pudesse anular tudo e
de que de um modo ou outro tudo acabaria retornando. O que está e atua na história faz constantemente a experiência de que
nada retorna173,

isto é, de que não é possível fazer duas vezes uma experiência. Conhecer, experienciar, compreender o
que é em cada momento significa perceber os limites dentro dos “quais há ainda possibilidade de futuro
para as expectativas e planos; ou mais fundamentalmente, que toda expectativa e toda planificação dos
seres finitos é por sua vez finita e limitada. A verdadeira experiência é assim a experiência da própria
historicidade”174. A experiência humana é finita, e, contudo, “a finitude da consciência e sua experiência
não excluem de maneira nenhuma uma consciência da infinitude da experiência”175.
O projeto gadameriano intencionou assegurar a concepção fenomenológica de experiência,
marcada por uma finitude essencial e radical, em contraposição à concepção hegeliana, que a
suprassumiu no saber absoluto; “e, a partir daí, a filosofia, em lugar do ser, como em Hegel, sistema, se
transforma em uma explicação, em hermenêutica universal de uma existência com a qual ela não se
confunde jamais. A verdade última da filosofia consiste em refutar todo domínio, seja do futuro ou do
passado. É consequente que tal concepção de filosofia conceda à linguagem uma situação
privilegiada”176.
Para A. de Waehlens,

é muito claro que o núcleo da atividade de Gadamer consiste em interpretar Heidegger para metamorfoseá-lo em um Hegel sem
sistema. A passagem da dialética hegeliana à hermenêutica por parte de Gadamer por intermédio do mundo e da abertura do ser
heideggeriana não abandona nada da pretensão da primeira: retomar em tudo isto que tem sido e elevar a verdade pela verdade
do todo. Mas a verdade do todo não se fecha sobre ela mesma, o círculo não se fecha, o começo não é o fim nem o fim o começo.
A finitude de Gadamer é aquela onde nunca nada termina (...) É uma opção sobre a história. Menos totalitária que aquela de
Hegel, mas menos ambiciosa que aquela de Heidegger. Talvez ela deveria ser feita. Ao contrário daquela de Hegel, ela não tem
por garantia ter fechado ou fechar o ciclo das figuras177.

Nessa direção, de acordo com H. Braun, “o conceito-chave ontológico, se houver, não é


‘historicidade’, mas ‘tempo’. Somente dele resulta a possibilidade de que não se desista na determinação
da filosofia como ontologia fenomenológica universal depois que foi destacado o sentido provisório da
constituição do ser do Dasein e sua tendência de encobrimento como permanentemente temporal”178.
Gadamer retomou de Heidegger a ideia de que “tempo é o que somente faz possível compreender. Mas
com isto se pressupõe que o tempo tem tanto caráter subjetivo como também objetivo, que é ele que liga
ambos os lados e por causa disso possibilita a experiência da verdade”179. Nessa mesma direção: “é assim
que a filosofia se torna ‘a consciência do substancial do seu tempo’, familiarizada com o espírito de seu
tempo. Em sendo idêntica com seu tempo, a filosofia não fica acima de seu tempo, mas permanece uma
filha do seu tempo”180.
Para R. L. Fetz, “o tempo, isto é, a história, apresenta-se para Hegel como uma condição
necessária do Espírito que quer realizar na subjetividade a plenitude de sua substância. Na realidade, a
verdade do espírito não aparece senão no tempo. Mas aparecendo no tempo a verdade aparece
justamente sob a forma da experiência”, e no sistema hegeliano “a experiência é, pois, o modo de
conhecimento do espírito que aparece no tempo ou, mais exatamente, na história: a experiência é o
espírito na história”181181. Por essa razão também afirmamos que o princípio da experiência é ontológico:
o ser é e se diz de muitos modos na história. Ele é sob os condicionamentos e condições do tempo do ser-
que-está e é-aí. A experiência é mais que um elemento acidental ou um meio para se chegar a um fim.
Gadamer apreende na noção hegeliana de experiência sobretudo

a descoberta implícita da historicidade da experiência. Se a experiência que a gente faz é uma verdadeira conversão da consciência,
isto implica que a gente não pode, no sentido estrito, fazer duas vezes a mesma experiência. Pois o estado da consciência não é o
mesmo antes e após tal conversão. Toda experiência verdadeira é, pois, única e, por isso, histórica182.

A centralidade da história é uma exigência necessária para a hermenêutica filosófica. Nela se


conserva a historicidade da experiência, portanto, da própria filosofia, ao passo que na ontologia e na
metafísica tradicionais se pretendeu eliminá-la com o intuito de garantir objetividade, cientificidade,
universalidade.
O saber não é uma simples recordação (anamnesis) ou uma soma de dados, nem possui uma
fundamentação num princípio último a partir do qual tudo se desdobraria. Não consiste, pois, de uma
teleologia especulativa nem de uma teleologia arqueológica, mas de uma experiência. Com isso
explicitamos a in-objetificabilidade da experiência.
R. Wiehl perguntou-se sobre o sentido que tem o conceito de experiência em Gadamer em
relação às ciências. Tratar-se-ia deuma determinação do mundo da vida, livre de todos os traços
científicos? Parece que sim, pois o método das ciências do espírito e das ciências da natureza quis
objetivar de tal modo a experiência, que elas, no final, não possuíssem mais nenhum traço histórico.
Tratava-se de “contrapor ao princípio da repetibilidade o da irrepetibilidade da experiência e com este
princípio contrário opor, ao mesmo tempo, a experiência do mundo da vida contra a científica?”183. Não
simplesmente. O fato é que Gadamer ressalta o Diesseits da experiência sem suprimir o Jenseits, em
linguagem hegeliana; salva o valor de ambos os polos, o que explicita Verdade e Método, ou seja, o
tematizado e o tematizável, o fenômeno e o númeno, o apofântico e o não dito, a linguagem da experiência
e a experiência da linguagem.
A teoria da experiência hermenêutica pode ser considerada como o núcleo de VMI, onde a
experiência estética se revela como uma experiência de verdade que ultrapassa o âmbito submetido ao
controle do método científico. Trata-se da não objetificabilidade da experiência, da verdade. Trata-se da
autenticidade dela enquanto critério de concepção da experiência hermenêutica, pois toda e qualquer
experiência autêntica só se faz uma vez. Concepção esta que Gadamer desenvolveu a partir de Heidegger
mediante a afirmação do compreender considerado como um existencial, como estrutura constitutiva do
Dasein. Daí que se compreende a postura de Gadamer perante “a indevida absolutização do método
científico e a consequente subordinação a isso de toda problemática hermenêutica”184. Essa crítica foi
objeto de inúmeras discussões. Não se pode negar que Gadamer exagerou em sua crítica à ciência
seguindo Heidegger e tendo como pressuposto uma determinada concepção de ciência – hoje posta em
dúvida como único modelo válido de ciência.
A negatividade constitui outro traço central da experiência hermenêutica, e ninguém a
apreendeu como motor da verdade tão claramente como Hegel, para quem ela é “a fonte interior de toda
atividade, automovimento vivo e espiritual, a alma dialética que tem toda a verdade nela mesma,
somente através da qual ela é verdadeira”185. A experiência é essencialmente negativa. “A negatividade
encontra-se por primeiro, assim parece, no lado do objeto. À medida que a consciência experimenta a
nadidade e inverdade de seu objeto, ela é conduzida a um novo objeto e com isso a uma nova verdade. O
objeto muda e um novo entra em seu lugar”186. Ou seja,

a consciência que ultrapassou seu objeto se tornou uma consciência nova e mais rica (...) por um lado, a mudança do objeto
significa uma ampliação do campo objetual e do que pode ser conhecido: por outro lado, este movimento representa um
enriquecimento da consciência. A experiência hermenêutica não é, assim, outra coisa que o processo de ampliação do objeto, a qual
provoca um enriquecimento do sujeito187.

Assim, o objeto não é, pois, apenas determinado pelo sujeito cognoscente. A experiência é
“sempre experiência de negatividade: de que algo não é como havíamos suposto. Face à experiência que
se faz com outro objeto se alteram duas coisas, nosso saber e seu objeto. Agora sabemos de outra forma e
sabemos melhor (grifo nosso), e isto quer dizer que o próprio objeto ‘não se sustenta’. O novo objeto contém
a verdade sobre o anterior”188. Na perspectiva científica conhecemos sempre melhor até a confirmação de
uma determinada hipótese, o que é possível de repetição tanto quanto se queira.
A experiência faz parte da essência histórica do homem, e, “neste sentido, a experiência
pressupõe necessariamente que se defraudem muitas expectativas. Toda experiência que mereça este
nome cruzou-se no caminho de alguma expectativa. O ser histórico do homem contém, assim, como
momento essencial, uma negatividade fundamental que aparece nesta referência essencial de
experiência”189. Gadamer reprovou, nas teorias correntes da experiência, a orientação científica que
negligencia a historicidade que é intrínseca a toda verdadeira experiência. A experiência

tem aqui de particular o fato de que é, por sua estrutura, uma experiência negativa. Ela nega uma expectativa, um saber anterior
que a gente cria adquirido. Fazer uma experiência significa que o que a gente tinha por verdadeiro não o era e que nós sabemos
melhor o que ele é agora mais que o que ele é. A experiência corrige, pois, um falso saber, trazendo uma apreensão mais
adequada da realidade. Gadamer também reconhecerá então, referindo-se a Hegel, que a verdadeira experiência tem uma
estrutura dialética e que ela se faz por uma inversão da consciência190.

A negatividade como um traço fundamental do princípio da experiência é uma condição


necessária – no sentido da ironia socrática – para a apreensão de um saber mais amplo e autêntico.
Sobre a ambiguidade, enquanto traço fundamental da experiência, “o conceito de experiência
hermenêutica constitui uma etapa importante no caminho para uma compreensão dessa
ambiguidade”191. O princípio da experiência não é simplesmente inequívoco (eindeutig), mas ambíguo
(mehrdeutig), no sentido de poder dizer-se de diferentes modos em espaços e tempos diferentes. De
acordo com C. Bormann, a ambiguidade hermenêutica caracteriza a obra gadameriana e se mostra em
dois conceitos-chave de VMI: abertura e experiência. Em palavras gadamerianas, a ambiguidade “é o
estigma da finitude da experiência hermenêutica”192.
A experiência humana é sempre ambígua,

algo que tem a ver com a condição simultaneamente finita e transcendente de um ser, que procura sempre determinar o que, por
sua vez, já o afetou na sua capacidade receptiva. É um processo temporal (caminho = Erfahrung) em que sempre se re-começa
algo já começado. Ultrapassa, no entanto, a pura repetibilidade da experiência científica moderna193.

Desde sempre fomos e somos afetados pela história, pela tradição; por isso podemos dizer que
sempre chegamos tarde demais quando pensamos que estamos começando a compreender, assim como a
coruja de minerva só pode levantar voo ao entardecer do dia. Mas, como o galo que aguarda
ansiosamente o amanhecer do novo dia, a hermenêutica assume a atitude de abertura ao que está por vir.
O caminho da experiência da consciência em Hegel conduz a um saber de si mesmo que não
possui, no final, “nada distinto nem fora de si”, onde a experiência consuma-se na ciência da lógica, na
certeza de si mesmo. Disso decorre a necessidade de a dialética da experiência conduzir à superação de
toda experiência que se alcança no Saber Absoluto, isto é, “na consumada identidade da consciência e
objeto”194. Nesse ponto Gadamer diferencia-se de Hegel ao não assumir as últimas consequências a que
conduz a dialética hegeliana. Essa concepção de experiência hegeliana não faz justiça à consciência
hermenêutica, à aplicação que Hegel faz à concepção de história, para quem

esta está concebida na autoconsciência absoluta da filosofia. A essência da experiência é pensada aqui desde o princípio, desde
algo no qual a experiência está superada. Pois a experiência mesma não pode ser ciência. Está em uma oposição não neutralizável
com o saber e com aquela forma de ensinamento que flui de um saber geral teórico ou técnico. A verdade da experiência contém
sempre a referência a novas experiências. Neste sentido a pessoa a que chamamos experimentada não é só alguém que se fez
através de experiências, mas também alguém que está aberto a novas experiências. A consumação de sua experiência, o ser
consumado daquele a quem chamamos experimentado, não consiste em ser alguém que sabe já tudo, e que de tudo sabe mais
que ninguém. Pelo contrário, o homem experimentado é sempre o mais radicalmente não dogmático, que precisamente porque
tem feito tantas experiências e aprendeu de tanta experiência está particularmente capacitado para voltar a fazer experiências e
aprender delas. A dialética da experiência tem sua própria consumação não em um saber concludente, mas nessa abertura à
experiência que é posta em funcionamento pela experiência mesma195.

O movimento do compreender não se consuma numa síntese definitiva, mas permanece aberto a
novas possibilidades de compreender por outras pessoas em outros tempos e lugares. Superamos o
conceito de experiência como uma simples etapa do processo cognitivo, no qual desapareceria, mas “a
essência da experiência se determina como ganho de conhecimento. Com isso o conceito de experiência é
limitado a tais casos nos quais a pessoa aprende a ver corretamente sua vida como um todo”196.
A experiência hermenêutica gadameriana, enquanto abertura, compreende-se como uma espécie
de “suspensão” (Schwebe), o que se explicita “através da dialética de pergunta e resposta, isto quer dizer,
através do ir e vir de pergunta e resposta, que se mantém na suspensão de ‘provar possibilidades’, de
modo que ‘a relação do compreender aparece como uma correlação ao modo de um diálogo’”197.
Para Gadamer, o “conhecimento e reconhecimento do tu” constituem o terceiro e o mais elevado
modo da experiência hermenêutica, em VMI, enquanto abertura à tradição, abertura ao tu, pois

no comportamento dos homens entre si o que importa é experienciar o tu realmente como um tu, isto é, não passar por alto sua
pretensão e deixar que o outro lhe fale. Para isto é necessário estar aberto. Contudo, esta abertura só se dá para aquele que deixa
que o outro lhe fale, ou melhor dito, quem deixa alguém dizer algo está fundamentalmente aberto. Se não existe esta mútua
abertura, tampouco há verdadeiro vínculo humano. Pertencer-se uns aos outros quer dizer sempre ao mesmo tempo ouvir-se uns
aos outros. Quando dois se compreendem, isto não quer dizer que um “compreenda” ao outro, isto é, que o abarque. E
igualmente “escutar ao outro” não significa simplesmente realizar às cegas o que o outro quer. Aquele que é assim chama-se
submisso. A abertura em relação ao outro implica, pois, o reconhecimento de que devo estar disposto a deixar valer em mim algo
contra mim, ainda que não haja outro que o vá fazer valer contra mim198,

ou algo que não esteja em meus planos. Esta dimensão passiva, representada pelo ouvir, que é um modo
de ação, desenvolveremos mais adiante. Encontramo-nos num ponto central da hermenêutica filosófica
que defende a conexão fundamental entre saber e ser, entre epistemologia e ontologia. A “abertura da
experiência hermenêutica reporta-se assim não à figura de um ‘em si’ incomunicável e, no entanto,
disponível, mas, pelo contrário, ao ser como algo que se autoapresenta – modelo do tu – e comunica,
resistindo à figura ôntica substancial da coisa inerte”199. Ora, a análise que Gadamer faz sobre experiência
estética na 1ª parte de VMI, onde enfatiza a abertura como característica básica da experiência, prepara
para “a disponibilidade humana para toda uma relação ao ser a partir de um enraizamento linguístico e
concreto no mundo. Contraria, por isso, frontalmente o modelo epistemológico moderno da abertura
humana, cujo lema era, desde a redução baconiana da experiência, a experimentação: conhecer para
melhor dominar”200. Da concepção de experiência enquanto abertura decorre a exigência de uma forma
de saber que “tem que deixar valer a tradição em suas próprias pretensões, e não no sentido de um mero
reconhecimento da alteridade do passado, mas que ela tem algo a dizer”201.
De acordo com R. Wiehl,

a hermenêutica filosófica de Gadamer acentua com razão que a abertura constitui o caráter essencial da experiência. Mas nisso é
importante distinguir: por um lado, a abertura da experiência é sempre uma abertura com respeito ao “deste lado” (Diesseits) e ao
“daquele lado” (Jenseits) das experiências. Por outro lado, faz uma diferença essencial para “este lado” e “aquele lado” se a
experiência em questão é em princípio uma experiência igual ou desigual202.

Este é um ponto central da hermenêutica filosófica que é um modo de saber “entre” (Zwischen)
ideia e realidade, conceito e palavra, verdade e método, linguagem da experiência e experiência da
linguagem, em suspensão (Schwebe). Este estado em suspensão é o seu objeto e ao mesmo tempo seu
método. Suspensão enquanto devir, mobilidade, com a pretensão de ampliar horizontes do sujeito e do
objeto. Trata-se de um movimento teleológico “fraco” no sentido de não possuir um fim ao qual
necessariamente se chega ou um princípio do qual tudo é deduzido. Na obra VMI – coerente com o modo
de saber e ser hermenêutico – falta uma distinção maior entre método e objeto, método e verdade, forma
e conteúdo. Isso evoca a outra face da metafísica que estamos desvendando ao longo de nossa reflexão,
isto é, não aumentar o abismo entre o Diesseits e o Jenseits, mas conservá-los numa relação dialética sem a
pretensão de chegar a um fim predeterminado absoluto. A hermenêutica filosófica, assim como a
concepção de metafísica, é uma reflexão, uma teoria do saber em suspensão.
Para R. Wiehl, “abertura e teleologia não constituem oposições excludentes”203, e a abertura total
defendida por Gadamer não resolve o problema da teleologia. Pensamos que sua hermenêutica filosófica
contém uma teleologia implícita. Ao longo de sua obra é inegável a presença da concepção do Bem, pois o
experiente refere-se ao que é e reflete no sentido da Phrônesis aristotélica. Em todo caso, o fim não está
prefixado, predeterminado nem é um simples a priori. Por que a recusa à teleologia é tão importante,
central e significativa para Gadamer e para nós? Simplesmente porque se trata da defesa incondicional do
valor e sentido da liberdade que a teleologia, seja na fase arqueológica, seja na especulativa, suprime. Na
primordialidade da obra de arte encontramos outro modo de conceber a teleologia. Ela possui uma
teleologia que arranca de nossa realidade e nos leva a pensar. Nas palavras de H. Flickinger, “se não
houvesse ‘teleologia’ no outro, não viria nada ao nosso encontro, no sentido estrito da palavra”. Mas essa
só passa a “existir” se estivermos abertos a aprender, a filosofar.
A compreensão é sempre outra, irrepetível, por isso o experiente é a pessoa aberta, e “o homem
experimentado é sempre o mais radicalmente não dogmático”. O princípio da experiência apreende a
essência da dialética a partir da experiência hermenêutica, e não o contrário, como um princípio lógico-
teleológico que no final se esvairia no próprio sistema. Por isso a hermenêutica filosófica permanece
sempre em movimento contínuo e não culmina num sistema absoluto ou nos fósseis arqueológicos do ser
mais original (Ur-ur-sache).
O problema da teleologia das ciências reside no fato de que as condições de possibilidade da
experiência acabam por ser ditadas pela subjetividade humana transcendental que a instrumentaliza. A
hermenêutica opõe-se à absolutização da objetividade e à redução da filosofia à cientificidade asséptica.
Se a linearidade caracteriza as ciências, é a circularidade que representa o modo de ser do saber
experiencial hermenêutico. O movimento hermenêutico realiza-se necessariamente de modo relacional,
factível pela experiência em sua negatividade e abertura, e não apenas na forma positiva, linear nem a
priori-transcendental.
A partir do problema das limitações da razão moderna explicitamos a noção de racionalidade
retórica (a partir da filosofia grega) e de jogos de linguagem (a partir da filosofia contemporânea), a fim
de refletir sobre os horizontes do filosofar. No itinerário da hermenêutica também identificamos a
dimensão meramente metodológico-científica. No hermeneutic turn, com Heidegger e Gadamer,
encontramos um modo de filosofar que retoma a dimensão originária e original da filosofia a partir dos
ganhos que a modernidade nos lega, tais como a subjetividade, a liberdade e a historicidade.
Partindo do fato de que o filosofar fundamenta-se na facticidade humana, minimizando o ideal
asséptico abstrato científico, encontramos no conceito de experiência a base para justificar – a partir da
filosofia mesma – a hermenêutica filosófica enquanto filosofia. Enquanto fundamental e fundamentadora,
justificamos a noção e os traços do princípio da experiência, mostrando que é irredutível à
experimentação ou à suprassunção no interior de um sistema.
Explicitamos o princípio da experiência, com os olhos voltados à FE, porque nela identificamos
uma noção de filosofia – de ontologia, de metafísica – que não elimina ainda a experiência.
Aprofundaremos a perspectiva gadameriana que retoma Hegel a partir do Dasein heideggeriano, para
explicitar um sistema que não se fechasse no Espírito Absoluto e que fosse, no final, um sistema aberto.
Compreenderemos e explicitaremos a hermenêutica filosófica não “como ontologia fundamental e com
isso como disciplina propedêutica no contexto da concepção duma possível ontologia universal”, mas “a
relevância geral-ontológica da hermenêutica descobre-se, por assim dizer, somente no caminho da
explicação histórica do compreender finito”204.
Mostramos que a hermenêutica filosófica, pelo princípio da experiência, trata também do pré-
científico, do mundo da vida, do pré-reflexivo, e, nesse sentido, ela é ontológica, “pois na verdade a teoria
da experiência hermenêutica de Gadamer culmina em uma dialética da linguagem dialógica”205. Este é o
modo de reinterpretar e corrigir Hegel; dito de outra forma, “a teoria da experiência gadameriana é, em
poucas palavras, uma dialética da experiência na forma dialógica, a qual se designa como a execução do
compreender”206. A experiência hermenêutica incorpora em nós os traços da finitude, da historicidade,
da negatividade, da não objetificalidade, da ambiguidade. Enquanto princípio, justifica-se como: “a
prioridade da finitude diante da infinitude, do condicionado ante o absoluto, a prioridade da
substancialidade própria aos objetos ante a subjetividade autoconsciente, a prioridade da existência
singular concreta ante a essência abstrata e universal”207.
A hermenêutica filosófica enquanto sistema aberto, em forma de rede, explicita a filosofia como
movimento incessante, constitui os contornos de uma metafísica que lhe é implícita. A metafísica não se
limita à identificação de um ou mais princípios, a partir dos quais tudo se deduziria, nem se circunscreve
à cômoda atitude de remeter ao inominável, ao incognoscível, que não poderia ser totalmente objetivado.
Antes, a metafísica conserva a tensão entre o tematizável e o não tematizável, entre o apofântico e o não
dito, entre o ser que é no tempo e no espaço e o ser que pode ser compreendido enquanto linguagem. Ela
remete, pois, a uma postura que imbrica ser e saber, que desemboca numa ontologia mais dinâmica e
coerente com o saber humano.
Na experiência da obra de arte encontramos um exemplo do caráter irredutível da experiência
aos parâmetros da filosofia da reflexão que objetifica a coisa e elimina a alteridade. O encontro com a
linguagem da arte é o encontro com um acontecer em que a alteridade não é eliminada. Por esse motivo é
importante e faz-se necessário “o recurso a parâmetros pré-conceituais, que respeitem o caráter pré-
compreensivo da experiência do que não é objeto – arte – como são os do jogo, símbolo e festa, que
abrem, para além da significação imediata, técnico-utilitária do real, para toda a dimensão poético-festiva
do ‘estar-no-mundo’ da existência”208. A condição e modo fundamental de efetuação do princípio da
experiência “faz somente aquele que está disposto a modificar posições próprias, ampliar seu horizonte e
apropriar-se de representações de outros. A abertura fundamental possibilita uma experiência da tradição
na qual esta ‘torna a palavra’ do mesmo modo como o parceiro em um bom diálogo”209. Só é capaz de
saber realmente quem se reconhece num jogo assumindo os fatos e as regras dele e, ao mesmo tempo, se
dispõe a jogar no e com esse jogo experienciando a circularidade entre o saber e o não saber. Enfim, até
aqui refletimos sobre a linguagem do princípio da experiência como o que constitui e fundamenta a
hermenêutica filosófica. Em complemento a esse movimento faz-se mister, a seguir, explicitar de que
modo ela se efetiva, como procede quanto ao pensar e ao conhecer.
2 Hegel, Fenomenologia do espírito, ap. Gadamer, H.G., WMI, p. 360.

3 Pieretti, A., I quadri socio-culturali della ‘Retorica’ di Aristotele. Roma: Edizioni Abete, s/d, p. 3.

4 Descartes, R., Principi di filosofia, 1, 2.

5 Carnap, R., “Überwindung der Metaphysik durch logische Analyse der Sprache”, Erkenntnis, v. 2, n. 4, p. 220-221.

6 Id., ibid., p. 224-225. P. ex., “para descobrir o significado que a palavra ‘princípio’ tem neste problema metafísico, devemos perguntar aos
metafísicos sob quais condições uma proposição da forma ‘x é o princípio de y’ é verdadeira e sob quais condições é falsa. Em outros termos:
perguntaremos pelo critério de aplicação ou pela definição da palavra ‘princípio’”.

7 Id., ibid., p. 227-8.

8 Id., ibid., p. 232.

9 Id., ibid., p. 233-234.

10 Id., ibid., p. 235.

11 Wittgenstein, L., “7. Wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen”, Tratactus Logico-Philosophicus.

12 Carnap, R., op. cit., p. 236.

13 Apel, K. O., La transformación de la Filosofía. Tomo I, Madrid: Taurus, 1985, p. 321-362. O título original é Transformation der Philosophie.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, 1973, p. 323-324. Obra que foi traduzida pela editora Loyola.

14 Oliveira, M. A. de, Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 95-96. Na nota 5, p. 96, Manfredo
observa: “Para Tugendhat, embora Wittgenstein aqui se ponha claramente dentro da tradição objetivista de interpretação da linguagem, já
surgem mudanças importantes. Assim, pode-se considerar essa posição de Wittgenstein como a posição de uma filosofia analítica na medida
em que sua análise da linguagem se orienta não nos nomes, mas na sentença, já que para ele os nomes só têm significação na sentença. O
primado semântico da sentença em relação aos nomes é fundamentado no Tractatus por meio do primado ontológico dos fatos sobre as
coisas”.

15 Oliveira, M. A. de, op. cit., p. 97.

16 Id., ibid., p. 100.

17 Nef, F., A linguagem: uma abordagem filosófica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 146.

18 Oliveira, M. A. de, op. cit., p. 111.

19 Id., ibid., p. 114.

20 Nef, F., op. cit., p. 147. Contudo, “a filosofia não se refugiará no indizível: 4.115 ‘ela significará o indizível, representando claramente o
dizível’. Esse ideal de uma representação clara do dizível tem uma dimensão aporética, que Wittgenstein se esforçou para ultrapassar,
durante o que se convencionou chamar o segundo período da sua filosofia. Nesse período, os conceitos fundamentais não são mais de
representação e de espaço lógico, mas os de regra, jogo e gramática” (ibid., p. 147).

21 Id., ibid., p. 147-148.

22 Frank, M., “É a subjetividade um ‘absurdo’?”, in: Luis A. de Boni (Org.), Finitude e transcendência. Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: PUCRS,
1995, p. 442-443.

23 Id., ibid., p. 443-444.

24 Id., ibid., p. 444.

25 Arendt, H., A condição humana. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 266.

26 Silva, M. L. F. da. O preconceito em H. G. Gadamer: sentido de uma reabilitação. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de
Investigação Científica e Tecnológica, 1995, p. 222.

27 Id., ibid., p. 31-32.

28 Bertalanffy, L. von, op. cit., p. 248.

29 Silva, M. L. F. da., op. cit., p. 44.

30 Spengler, O., Der Untergang des Abendlandes, vol. 1. München, Beck, 1922, ap. Bertalanffy, L. von, op. cit., p. 310-311.

31 Bertalanffy, L. von, op. cit., p. 313.

32 Id., ibid., p. 318.

33 Id., ibid., p. 319.

34 Kuhn, T. S., A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1997, p. 161-162. Por paradigma lembre-se o que T. Kuhn afirmou
no POSFÁCIO – 1969. O termo “paradigma” é usado em dois sentidos diferentes: “de um lado, indica toda a constelação de crenças, valores,
técnicas, etc..., partilhados pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as
soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a
solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal” (cf. p. 218 da obra citada).

35 Bertalanffy, L. von, op. cit., p. 176.

36 Id., ibid., p. 148.

37 T. Kuhn, op. cit., p. Bertalanffy, L. von, op. cit., p. 257.

38 Popper, K. R., La logique de la découverte scientifique. Paris: Payot, 1973, ap. Perelman, C., L’Émpire Rhétorique et argumentation. Paris:
Librairie Philosophique J. Vrin, 1997, p. 174 e 175.

39 Bertalanffy, op. cit., p. 329-330. Sobre essa problemática ver obra de Cleide C. Rohden. A camuflagem do sagrado e o mundo moderno à luz do
pensamento de Mircea Eliada. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.

40 Paz, O., Signos em rotação. Perspectiva: São Paulo, 1990, p. 41.

41 Bertalanffy, L. von, op. cit., p. 256.

42 C. Perelman, no seu livro Tratado da argumentação, lançou as bases de uma Nova Retórica, opondo-se ao racionalismo apodíctico ocidental,
absoluto e monopolizador, e recuperando o valor da racionalidade retórica.

43 Aristóteles, Metafísica, 995a, 14-16.

44 Id., Ética a Nicômaco, I, 2, 1094a, 25 ss.

45 Id., ibid., I, 2, 1094b, 12-14.

46 Id., ibid., I, 3, 1094b, 15.

47 Maiores explicações sobre isso em: Höffe, O., Praktische Philosophie – Das Modell des Aristoteles. München e Salzburg: Anton Pustet, 1971.

48 Conforme os diferentes contextos, “precisão”, “exatidão” podem significar várias coisas. Segundo uma concepção unívoca de “exato”, a
Ética é menos rigorosa do que a Matemática. Mas a exatidão é um conceito análogo. No artesanato, trabalhar exatamente um material é
esgotar as suas possibilidades, que são diferentes na argila, na madeira, no mármore, no ouro. Höffe, O., op. cit., p. 7.

49 Aristóteles, Metafísica, II 3, 995a, 15.

50 Le Blond, J. M., Méthode et Logique chez Aristote. Paris: J. Vrin, 1939, p. 93.

51 Berti, E., Le ragioni di Aristotele. Roma: Laterza, 1989, p. 5.

52 Aristóteles, Analíticos posteriores, I 11, 77a, 30-31; Metafísica, IV 3, 1005b, 20.

53 Le Blond, J. M., op. cit., p. 74. Id. ibid., p. 105.

54 Id., ibid., p. 187.

55 Aristóteles, Analíticos posteriores, I 1, 100a, 18-21.

56 Thurot, C., Études sur Aristote. Paris: Durand, 1869, p. 129-130, ap. Le Blond, J. M., op. cit., p. 6 e 8.

57 Aristóteles, Tópicos, I 1, 100b, 21.

58 Le Blond, J. M., Logique et Méthode chez Aristote. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1939, p. 41-42.

59 Aristóteles, Elencos sofísticos, 1, 165a, 10 ss.

60 Aubenque, P., El problema del Ser en Aristóteles. Madrid: Taurus Humanidades, 1997, p. 249.

61 Sichirollo, L., Dialética. Lisboa: Presença, 1980, p. 83.

62 Aristóteles, Ética a Nicômaco, I 3, 1094b, 12-29.

63 Thurot, C., op. cit., ap. Aristóteles, Arte Retórica e Arte Poética. Introdução e Notas de J. Voilquin e J. Capelle; trad. Antônio Pinto de
Carvalho. SP: Difusão Europeia do Livro, 1964, p. 13.

64 Aristóteles, Rhétorique. T. 1. Texte établi et traduit par M. Dufour. Paris: Les Belles Lettres, 1932, p. 34.

65 Id., Analíticos primeiros, II 27, 70a, 10-b, 30.

66 Conforme Q. Racionero, in: Aristóteles, Retórica. Introducción, traducción y notas por Q. Racionero. Madrid: Gredos, 1990, p. 167, n. 16.

67 Racionero, Q., op. cit., p. 185, n. 58.

68 Perelman, C., op. cit., p. 430.

69 Apel, K. O., op. cit., p. 344.


70 Oliveira, M. A. de, op. cit., p. 125.

71 Id., ibid., p. 128.

72 Id., ibid., p. 132.

73 Apel, K. O., op. cit., p. 344-345.

74 Oliveira, M. A. de, op. cit., p. 144.

75 Ibidem.

76 Id., ibid., p. 145-146.

77 Apel, K. O., op. cit., p. 345.

78 Oliveira, M. A. de, p. 139.

79 Ibid., p. 141.

80 W. Dilthey pretendeu construir uma hermenêutica científica, adequada e exata – cujo modelo era o das ciências da natureza – para a
Geisteswissenschaft. Seu ponto de partida prático-vital era a preocupação com uma compreensão adequada dos textos clássicos. Em sua obra
Crítica da razão histórica desenvolveu a tese de uma hermenêutica que deveria colocar-se na situação temporal do autor-objeto de
interpretação por meio da “compreensão histórica” do contexto histórico em que se encontrava.

81 Apel, K. O., op. cit., p. 349.

82 Id., ibid., p. 350.

83 Ibidem.

84 Ibid., p. 356-357.

85 Ibid., p. 351.

86 Hide, D., Hermeneutic Phenomenology: The Philosophy of Paul Ricoeur. Evanston: Northwestern University, 1971, p. 146-147.

87 Gadamer, H.-G., PHhMf, p. 101.

88 Id., HhoD, p. 61.

89 Id., PHhMf, p. 100.

90 Id., ibid., p. 101.

91 Id., ibid., p. 104.

92 Não desenvolveremos aqui, mas no interior da obra de Gadamer também encontramos uma “virada hermenêutica”. J. Grondin expressou
essa “virada” gadameriana assim: “(...) com isto ele queria mostrar que a arte – e não a pergunta epistemológica pelas ciências do espírito,
como em VMI – formava propriamente o ponto de partida de sua hermenêutica. Do seu ponto de partida unilateral das ciências do espírito
ele tinha se distanciado em sua autocrítica de 1985”. Grondin, J., Hans-Georg Gadamer: eine Biographie. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999, p. 340 e
p. 357.

93 Gadamer, H.-G., HhoD, p. 61.

94 Id., PHhMf, p. 105.

95 Id., ibid., p. 105.

96 Id., ibid., p. 105.

97 Id., HhoD, p. 61.

98 Id., ibid., p. 61-62.

99 Wiehl, R., “Heidegger, Gadamer und die Möglichkeit einer Ontologie heute”, in: Metaphysik und Erfahrung: philosophische Essays. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1996, p. 148. Texto siglado: HdGdOn.

100 Gadamer, H.-G., HhoD, p. 63.

101 Ibidem.

102 Id., ibid., p. 63-64. Conforme o Deutsches Universal Wörterbuch de Duden, este termo significa “sehr weit zurückliegend, so dass man gar
nicht mehr so weit zurückdenken kann”. Conforme H. Flickinger, “também no sentido lógico: im-pré-pensável; o ‘pré’ como temporal e
lógico!”.

103 Gadamer, H.-G., HhoD, p. 64.

104 Ibidem.
105 Ibidem.

106 Ibidem.

107 Id., ibid., p. 65.

108 Id., ibid., p. 70. Em linguagem literária, J. G. Rosa expressou isso assim: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e
esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” (GSV, p.241), e “A vida é muito discordada.
Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas do Siruiz. Tem as caras do Cão, e as vertentes do viver” GSV, p. 381).

109 Id., ibid., p. 70.

110 Id., PHhMf, p. 105.

111 Id., ibid., p. 105-106.

112 Id., ibid., p. 107.

113 Berti, E., “Cómo argumentan los hermeneutas?”, in:. Gianni Vattimo (compilador), Hermenéutica y racionalidad, Colômbia: Norma, 1994,
p. 52.

114 Gadamer, H.-G., PHhMf, p. 107.

115 Hegel, G. W. F, Enzyklopädie, § 7.

116 Considerando que a “metafísica é o estudo do metaempírico, mas não do metaexperienciável. A metafísica é experiência”. Rabuske, E.,
“A linguagem simbólica e a linguagem especulativa”, Veritas, v. 37, n. 146, p. 167, junho 1992.

117 Gadamer, H.-G., VM1, p. 130. Precede a esta afirmação o seguinte: “Theoros significa, como se sabe, o participante de uma delegação
festiva. Os participantes de uma delegação de festa não possuem nenhuma outra qualificação e função do que estar nela presentes. No
sentido mais genuíno da palavra, o theoros é, pois, o espectador que, através de seu tomar-parte, participa do ato festivo, e através disso
ganha sua distinção de direito sagrado, p. ex., sua imunidade” (p. 129). Ver também o artigo de Gadamer “Lob der Theorie”, in Lob der
Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 26-50. J. Grondin relembrou o seguinte sobre esse tema em Gadamer: “er liebte
Schleiermacher zu zitieren: ‘ich hasse alle Theorie, die nicht aus der Praxis erwächst’”. Hans-Georg Gadamer: eine Biographie. Tübingen: Mohr
Siebeck, 1999, p. 365.

118 Bormann, C. v., “Die Zweideutigkeit der hermeneutischen Erfahrung (H.-G. Gadamer)”, Philosophische Rundschau, v. 16, p. 94, 1969.

119 Habermas, J., Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. RJ: Tempo Brasileiro, 1990, p. 58

120 Sobre esse esquema ver E. Coreth: “Denn es gibt nicht ein reines, weltlos und geschichtlos gedachtes Subjekt, das autonom einer ebenso
reinen nämlich subjektfrei vorgestellten Objektivität gegenüberstände. Das reine Gegenüber von Subjekt und Objekt ist aufgehoben in einem
konkreten Geschehen wechselseitiger Vermittlung und Fortbestimmung im Ganzem einer geschichtlich sich entfaltenden Welt”.
“Hermeneutik und Metaphysik”, Zeitschrift für Katholische Theologie, v. 90, n. 1, p. 422, 1968. Siglado como HM.

121 Albert, K., op. cit., p. 41.

122 Marquard, O., Abschied vom Prinzipiellen. Stuttgart: Reclam, 1995, p. 8.

123 Fetz, R. L., Expérience et histoire: La notion hégélienne de l’expérience et son interprétation par M. Heidegger et H.-G. Gadamer, Revue de
Théologie et de Philosophie, v. 111, p. 1, 1979.

124 Albert, K., op. cit., p. 28.

125 Teichert, D., Erfahrung, Erinnerung, Erkenntnis: Untersuchungen zum Wahrheitsbegriff der Hermeneutik Gadamers. Stuttgart: Metzler, 1991, p.
120.

126 Rabuske, E., op. cit., p. 168.

127 Teichert, D., op. cit., p. 199.

128 Wiehl, R., “Gadamers hermeneutischer Erfahrungsbegriff”, Lingua ac Communitas, v. 2, p. 21, 1993. Citada daqui em diante como: GdEr.

129 Buck, G., “The Structure of Hermeneutic Experience and the Problem of Tradition”, New Literary History, v. 10, p. 31-32, 1981.

130 Gadamer, H.G., VMI, p. 352-3.

131 Id., ibid., p. 352.

132 Braun, H., “Zum Verhältnis von Hermeneutik und Ontologie”, in Hermeneutik und Dialektik II. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1970, p. 212-3.

133 Wiehl, R., GdEr, p. 24.

134 Id., ibid., p. 24.

135 Gadamer, H. G., VMI, p. 356.

136 Id., ibid., p. 357.


137 Id., ibid., p. 358.

138 Wiehl, R., GdEr, p. 25.

139 Gadamer, H.G., VMI, p. 358-9.

*Acerca das relações mais específicas entre a dialética hegeliano-platônica e a hermenêutica gadameriana ver obra de Custódio Luis de
Almeida: Hermenêutica e dialética: dos estudos platônicos ao encontro com Hegel. Porto Alegre: PUCRS, 2001.

140 Gadamer, H.G., WM1, p. 307.

141 Kisiel, T., “Hegel and Hermeneutics”, in: WEISS, Friedrick G. (Ed.), Beyond Epistemology: New Studies in the Philosophy of Hegel. The
Hague: Martinus Nijhoff, 1974, p. 217.

142 Id., ibid., p. 217-8.

143 “É no contexto da crítica hegeliana à abstração da filosofia reflexiva que surge a novidade da sua teoria da experiência. Revelando a
contradição implícita na preocupação crítica da moderna consciência, que, pretendendo chegar a algo de absoluto, rejeitou à partida – por
meio do processo dubitativo – a imediatidade da própria revelação do absoluto, Hegel adota uma posição especulativa nova. Partindo do
princípio de que a cientificidade da filosofia reside na sua tentativa para conhecer absolutamente e não no seu desejo de exatidão metódica
ou de resultados concludentes, reconheceu ainda, contra Kant, que o primeiro passo a ser dado pela vontade de conhecimento do absoluto
deve ser o da sua recepção ou aceitação, ulteriormente explicitável”. Silva, M. L. P. F. da, op. cit., p. 79.

144 Gadamer, H.-G., VMI, p. 307.

145 Grondin, J., Hermeneutische Wahrheit?: Zum Wahrheitsbegriff Hans-Georg Gadamers. Weinheim: Beltz Athenäum, 1994, p. 51. Usaremos a
sigla HW para designá-la daqui para frente.

146 Verra, V., “Ontologia e ermeneutica in Germania”, Rivista di Sociologia, n. 30, p. 128-9, 1973.

147 Schulz, W., “Die Vollendung des geschichtlichen Bewusstseins: Seinsgeschichte und hermeneutische Wirkungsgeschichte”, in: Philosophie
in der veränderten Welt, Pfullingen, 1972, p. 531-41, ap. Verra, V., op. cit., p. 129.

148 Gadamer, H.-G., VMI, p. 359.

149 Hegel, FE, ap. Gadamer, H.-G., VMI, p. 360.

150 Gadamer, H.-G., VMI, p. 360.

151 Silva, M. L. P. F. da, op. cit., p. 81. Ver mais detalhes sobre isso em Gadamer, H. G., “Die verkehrte Welt”, in GW3.

152 Wiehl, R., GdEr, p. 31.

153 Bianco, F., “Esperienza Ermeneutica e Storiografia Filosofica”, in: Archivio di filosofia, Padova: CEDAM, 1974, p. 87.

154 Waehlens, A. de., “Sur une herméneutique de l’hérméneutique”, Revue Philosophique de Louvain, v. 60, p. 590, 1962.

155 Gadamer, H.-G., VMI, p. 346, n. 279, “[Der Ausdruck ‘Reflexionsphilosophie’ ist von Hegel gegen Jacobi, Kant und Fichte geprägt
worden]”.

156 Id., ibid., p. 347.

157 Wiehl, R., GdEr, p. 22.

158 Id., ibid., p. 22.

159 Fetz, R. L., op. cit., p. 8.

160 Gadamer, H. G., WM1, p. 360-361.

161 Id. ibid., p. 349. Sobre isso, veja Axel Hormeth, Der Kampf um Anerkennung.

162 Wiehl, R., GdEr, p. 21.

163 Id., ibid., p. 23.

164 Coreth, E., “Hermeneutik und Metaphysik”, p. 447. Texto que será citado assim: HM.

165 Wiehl, R., GdEr, p. 25-26.

166 Id. ibid., p. 26.

167 Kisiel, T., op. cit., p. 207.

168 Gadamer, H.-G., VMI, p. 362-3. Ver análise de S. Takeda sobre essa dimensão em Reflexion, Erfahrung und Praxis bei Gadamer. Tübingen,
1981, p. 22-23.

169 Gadamer, H.-G., VMI, p. 363.


170 Vattimo, G., “L’ontologia ermeneutica nella filosofia contemporânea”, in: Gadamer, H.-G., Veritá e Metodo. Milano: Studi Bompiani, 1995,
p. III.

171 Gadamer, H.-G., “Das Erbe Hegels”, in: Grondin, J., Lesebuch. Tübingen: Mohr, 1997, p. 246-7.

172 Sobre isso ver a obra de Claude-Gilbert Dubois, O imaginário da Renascença. Brasília: Universidade de Brasília, 1995, p. 205 e ss.

173 Gadamer, H.-G., VMI, p. 363.

174 Ibidem.

175 Wiehl, R., GdEf, p. 33.

176 Waehlens, A. de. “Sur une herméneutique de l’herméneutique”. Revue Philosophique de Louvain, 60, p. 589, 1962.

177 Id., ibid., p. 590-591.

178 Braun, H., “Zum Verhältnis von Hermeneutik und Ontologie”, in: Hermeneutik und Dialektik II. Tübingen: Mohr, 1970, p. 216.

179 Bormann, C. v., “Die Zweideutigkeit der hermeneutischen Erfahrung (H.-G. Gadamer)”, Philosophische Rundschau, v. 16, p. 100, 1969.

180 Kisiel, T., op. cit., p. 215.

181 Fetz, R. L., op. cit., p. 4.

182 Id., ibid., p. 11.

183 Wiehl, R., GdEr, p. 23.

184 Bianco, F., op. cit., p. 74.

185 Grondin, J., HW, p. 52.

186 Id., ibid., p. 55.

187 Id., ibid., p. 56.

188 Gadamer, H. G., VMI, p. 360.

189 Id., ibid., p. 361-2.

190 Fetz, R. L., op. cit., p. 10-11.

191 Wiehl, R., GdEr, p. 21.

192 Bormann, C. v., op. cit., p. 93.

193 Silva, M. L. P. F. da, op. cit., p. 62-63.

194 Gadamer, H.-G., VMI, p. 361.

195 Id., ibid., p. 361.

196 Teichert, D., op. cit., p. 120.

197 Bormann, C. v., op. cit., p. 103-4.

198 Gadamer, H.-G., VMI, p. 367.

199 Silva, M. L. P. F. da, op. cit., p. 93.

200 Id. ibid.

201 Gadamer, H.-G., VMI, p. 367-8.

202 Wiehl, R., GdEr, p. 28-29.

203 Id., ibid., p. 30.

204 Braun, H., op. cit., p. 217.

205 Takeda, S., op. cit., 2.

206 Id., ibid., p. 25.

207 Wiehl, R., HdGdOn, p. 147.

208 Silva, M. L. P. F. da, op. cit., p. 94.

209 Teichert, D., op. cit., p. 122.


CAPÍTULO II

O JOGO E O CÍRCULO HERMENÊUTICO COMO MODELOS


ESTRUTURAIS DA EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA
Refletiremos neste capítulo sobre a dimensão ‘metodológica’ da hermenêutica filosófica e, mais
especificamente, sobre o modo e a forma de acontecer, de efetivar-se, da experiência hermenêutica.
Enquanto a experiência é dissecada e, no final, eliminada pelo método analítico, dialético, sintético, no
jogo e no círculo hermenêutico é conservada e ampliada.

2.1 O jogo como modelo estrutural da experiência hermenêutica

A filosofia não forma um sistema de conceitos opacos e fechados sobre si mesmo, mas constitui um jogo em dois níveis: de uma
parte ela é obra e sistema, pois todos os conceitos se relacionam uns aos outros de modo que cada um manifesta o todo,
enquanto, de outra parte, este sistema permanece aberto, pois se relaciona aos atos do pensador e aos eventos de sua vida, que
ele dirige e ilumina, se encarnando totalmente em cada um. O filósofo não visa jogar somente para construir sua obra, mas joga
também em sua filosofia, como o ator na peça de teatro210.

Estamos justificando a hermenêutica filosófica como uma espécie de teoria geral do saber – com
princípios e metodologia adequados –, um discurso indiretamente ontológico211. Em oposição à metafísica e
à ontologia greco-moderna, podemos afirmar que a hermenêutica é um pensiero debole ou um discurso
indiretamente ontológico. A Ciência da Lógica hegeliana e a Ética espinoziana constituem uma ontologia forte
porque – seguindo o modelo matemático – excluem no final a experiência, a liberdade e a contingência
humana. Contudo, fraca e limitada é aquela forma de conhecer que absolutiza um jogo de linguagem e
desvincula-o das demais perspectivas filosóficas. A hermenêutica filosófica, na verdade, por possuir a
pretensão de articular lógica e ontologia, historicidade e cientificidade, verdade e método, é que é, sob
nosso ponto de vista, o pensamento autenticamente “forte”, dada sua amplitude e coerência entre ser e
pensar.
O modelo estrutural lógico-ontológico do jogo é lógico, por um lado, porque possui regras fixas,
válidas universalmente, sem as quais ele não ocorreria. As regras de cada jogo, com suas exigências
próprias, são explicáveis e reconhecidas universalmente. Por outro lado, o jogo é ontológico porque nele o
sujeito é envolvido como um todo, não apenas do ponto de vista do conhecimento – como um espectador
que examina um objeto à distância – mas porque, nele, o jogador ao jogar realiza uma experiência e revela
seu ser.
Consideramos o jogo e o círculo como modelos estruturais da hermenêutica filosófica porque
neles encontramos uma lógica em aberto, mais próxima do entimema que do silogismo apodíctico.
Porque são modelos, indicadores e não padrões rígidos e absolutos a serem aplicados ao conhecimento.
Nesse sentido são princípios metodológicos abertos, que não conduzem a uma síntese única e absoluta,
mas possibilitam diferentes conclusões. Alongamos, desse modo – por meio do jogo e do círculo –, a
noção de método, identificado muitas vezes com o científico. A concepção de jogo, melhor que o método
analítico, dialético, sintético, conserva e explicita de modo mais autêntico o acontecer do princípio da
experiência hermenêutica ao conjugar num mesmo movimento ser e tempo.
Enquanto ser paradoxal, o homem “é habitado pelo pensamento da imensidão e do infinito, vive
na agitação do universo, à sombra da morte, nas fadigas do trabalho, nas querelas pela dominação, na
felicidade frágil do amor, no jogo que representa. Talvez a meditação sobre o jogo siga um fio que não
nos conduz para fora do labirinto do questionamento, mas, ao contrário, aí nos afunda mais
profundamente”212, possibilitando refletir sobre quem somos e o que desejamos.
Gadamer e Wittgenstein, que se propuseram a repensar os caminhos da filosofia contemporânea,
usaram a noção de jogo, embora o concebam diferentemente e com propósitos próprios. Nos dois autores
há motivos diferentes que os fizeram remeter à questão do jogo. A mudança do 1º Wittgenstein ao 2º é
motivada pela experiência de não se dever nem se poder delimitar o sentido da linguagem. Em Gadamer,
o jogo assinala uma experiência que mostra a impossibilidade de fazer da linguagem um mero objeto de
análise delimitável num conceito. O jogo de linguagem se torna fundamental no linguistic turn, o que
contribui para justificar a reflexão sobre o jogo, pois tanto para o 2º Wittgenstein quanto para Gadamer
ele é fundamental para a compreensão da concepção de filosofia que desenvolveram.
Nossa reflexão sobre o jogo se assentará sobre dois momentos. Inicialmente explicitaremos a
origem, o nascimento, o sentido, a validade e a importância do jogo em termos antropológico-culturais.
Uma vez que a noção de jogo é pouco conhecida, argumentaremos sobre sua “dignidade” filosófica
enquanto modelo estrutural apropriado da filosofia. No outro momento, apresentaremos aspectos e
funções do jogo na filosofia desenvolvida pelo 2º Wittgenstein e por H.-G. Gadamer, por meio da qual
explicitaremos traços fundamentais da hermenêutica filosófica que viabilizam a efetuação do princípio da
experiência.

Justificativas para emprego do jogo como “método”

Embora o jogo tenha sido utilizado na filosofia por Wittgenstein e por Gadamer, são escassas as
reflexões sobre seu emprego. O jogo como metodologia da hermenêutica filosófica extrapola a concepção
de método – como instrumento das ciências naturais. Daí por que resgataremos, inicialmente, os traços
antropológico-culturais, a fim de mostrar a origem e o sentido do jogo na vida humana em função da e
como filosofia.

Justificativas antropológico-culturais para o emprego da concepção de jogo


Se observarmos um pouco o mundo dos animais, perceberemos que eles brincam de se morder,
fingem ficar zangados e experimentam prazer brincando. O jogo encerra um determinado sentido; nele
está em jogo alguma coisa que transcende as necessidades imediatas da vida. Implica, pois, a existência
de um elemento não material; nesse sentido, remete à filosofia.
A partir de nossa experiência cotidiana sabemos que o jogar é uma possibilidade de vivência que
se realiza num certo tempo, sob certas condições, numa alegre animação. Como se fala em Homo sapiens,
Homo faber, J. Huizinga propõe que falemos também em Homo ludens, pois é no jogo e por meio dele que a
civilização surgiu e se desenvolveu. Enquanto animal lúdico, o homem joga por diversos motivos: como
uma forma de descarga da energia vital superabundante, como satisfação do instinto de imitação ou
ainda simplesmente como uma necessidade de distensão. Sabemos também que pode ser utilizado como
meio de aprendizagem, como ludoterapia213. O jogo pode constituir também – enquanto rito de iniciação
– uma preparação do jovem para as tarefas sérias que mais tarde a vida exigirá dele. O desejo de dominar
ou competir explica também por que os seres humanos jogam. Há quem o considere uma “‘ab-reação’,
um escape para impulsos prejudiciais (no sentido da catarse grega), um restaurador da energia
despendida por uma atividade unilateral, ou ‘realização do desejo’, ou uma ficção destinada a preservar o
sentimento do valor pessoal”214.
Constatamos que as grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são marcadas, desde
o início, pelo jogo. Para compreender e expressar a totalidade de sua vida, o homem cria “outro mundo”,
um mundo poético, ao lado do da natureza, que lhe dê sentido para a vida presente ou futura, que sirva
de orientação para sua vida prática. No jogo mítico, por exemplo, há um espírito que envolve e remete à
fantasia jogando, paradoxalmente, com extremos, entre a brincadeira e a seriedade, que é apreciada tanto
pelas crianças quanto pelos adultos. No jogo do culto, p. ex., joga-se com uma determinada forma de
realidade (metafísica) para obter segurança, alegria, conforto.
Do ponto de vista conceitual percebemos que o jogo “é uma função da vida, mas não é passível
de uma definição exata em termos lógicos, biológicos ou estéticos. O conceito de jogo deve permanecer
distinto de todas as outras formas de pensamento através das quais exprimimos a estrutura da vida
espiritual e social”215. Ele instaura outro mundo distinto das normas científico-culturais vigentes. Não é
possível definir o jogo com a razão instrumental, pois ele pertence à realidade, fugindo dela,
simultaneamente! Daí vem sua tensão produtiva, metafísica, por remeter e conter uma realidade não
tematizável totalmente.
Mesmo sendo largamente conhecido, “não somos capazes de ‘enunciar’ e de formular em
conceitos precisos o pré-saber inerente ao conhecimento que nós temos do jogo (...) No momento em que
refletimos para além dele mesmo, seu ‘uso’ é perturbado, ele perde seu fluido ‘evidente’, e a clareza da
compreensão se perturba”216. O modo de saber do jogo, próprio da hermenêutica, comporta uma
inteligibilidade prática, uma indicação e prefiguração do ontológico, do metafísico, tal como ocorre com o
sentido do princípio da experiência. Ele tem seu valor e compreensibilidade fundamental em seu
desenrolar próprio. Tão logo nos colocamos a refletir sobre ele, a certeza da sua interpretação imediata
desaparece. Ao querer explicar totalmente o que vive, jogando, quem se sabe jogando se dá conta de que
não sabe definir o jogo. O mal-estar dessa situação advém do fato de que lhe “é necessário considerar seu
saber anterior como inconsistente e sem valor, como não fundado e ilusório, lhe é necessário considerar
como um não saber que se passava por um saber porque ele estava cegado por uma miragem”217. Esta
experiência do não saber, da docta ignorantia, que realizamos ao tentar definir o jogo, ocorre com a
hermenêutica filosófica.
Para F. Wybrands, considerando as diferentes acepções de jogo existentes, é possível realçar
duas grandes concepções de jogo: uma lúdica e outra cosmológica: “Uma diz que tudo é jogo: do homem
a Deus, todos jogam; a outra diz que o ente em seu conjunto é, quanto ao seu fundamento, jogo”218;
comum a ambos é o fato de remeterem a um fundamento, a uma totalidade não totalmente tematizável e
que justifica, do ponto de vista antropológico-cultural, seu emprego como um caminho, como um modelo
estrutural filosófico para conhecer e para pensar. Da tentativa de justificá-lo antropologicamente, vejamos
alguns traços fundamentais.

Traços fundamentais do jogo


Ao jogar, o “homem não permanece nele mesmo, no setor fechado de sua interioridade; antes,
sai extaticamente para fora dele mesmo num gesto cósmico conferindo uma interpretação rica de sentido
do todo do mundo”219. No jogo, o homem se “‘transcende’ a si mesmo, ultrapassa as determinações nas
quais está e nas quais se ‘realizou’, ele torna por assim dizer revogáveis as decisões irrevogáveis de sua
liberdade, salta fora dele mesmo”220, e, nesse sentido, dizemos que tal experiência é metafísica. A
finalidade do jogo está nele mesmo, ou seja, “o jogo ele mesmo é in-jogável. O jogo não é alguma coisa
que é (grifo nosso)”221. Daí a dificuldade e a recusa de Wittgenstein e de Gadamer de defini-lo, pois
conceituá-lo, seguindo os parâmetros da razão moderna, implicaria anulá-lo enquanto jogo.
Meditar sobre o jogo não é uma tarefa específica do jogo, mas constitui uma atividade posterior
do jogador, uma vez que “o homem que joga não pensa e o homem que pensa não joga”222. O jogo
humano constitui-se em um itinerário explicativo do saber, o fio condutor da explicação ontológica de
VMI; constitui um modelo estrutural que possibilita e explicita filosofarmos.
A fim de caracterizar melhor os traços fundamentais do jogo, analisemos o jogo cultual. Não é
por acaso que aqueles que refletiram sobre o jogo tenham explorado, repetidamente, a dimensão do jogo
cultual. Ele constitui uma das formas mais originárias de o ser humano se expressar e se compreender no
mundo, na relação com os outros e com o não – totalmente – tematizável. Por isso afirmamos que ele é
um dos elementos fundadores da cultura e da racionalização da vida humana.
O jogo pode ser considerado uma “totalidade”, uma vez que não pode ser explicado nem
compreendido instrumentalmente. O jogo não é material, não se explica por análises biológicas ou lógicas
e ultrapassa,

mesmo no mundo animal, os limites da realidade física. Do ponto de vista da concepção determinista de um mundo regido pela
ação de forças cegas, o jogo seria inteiramente supérfluo. A própria essência do jogo é uma confirmação permanente da natureza
supralógica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais do que simples seres
mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é
irracional223.

Ele contém aspectos racionais, claros, evidentes, compreensíveis, expressos nas regras e que
devem ser aceitos e, por outro lado, caracteriza-se por uma dimensão “supralógica”, pela experiência do
não tematizável, não apenas da situação humana, como da filosofia.
No jogo, “a ‘irrealidade’ é o traço fundamental de uma representação simbólica do todo do
mundo por um ente intramundano. O jogo cultual representa o complexo universal de sentido da
existência primitiva; ele exprime sua relação cósmica”224, anterior à filosofia. O culto é pré-filosófico,
representa a raiz, a origem da filosofia, e ao mesmo tempo, ultrapassa a concepção de filosofia que tenta
abstrair o filósofo da realidade, pois nele a pessoa insere-se numa totalidade que está além da capacidade
discursiva.
O jogo cultual não é um fenômeno marginal da vida humana. É seu centro à medida que fornece
uma orientação para a vida e constitui uma ação como participação em poderes espirituais e reação
contra eles. Muito mais que uma “paráfrase da seriedade da vida humana, é ele mesmo a seriedade mais
séria. No jogo ele vai preservar o grupo social dos poderes invisíveis”225 e, nesse sentido, é um elemento
constituinte e constituidor da moral. Se observarmos o espírito do homem primitivo, as cerimônias
corretamente celebradas, os jogos ganhos de acordo com as regras226, os sacrifícios devidamente
realizados, veremos que estavam intimamente ligados à aquisição de prosperidade para o grupo. Toda
vitória representava, “para o vencedor, o triunfo dos poderes benéficos sobre os maléficos, e ao mesmo
tempo a salvação do grupo que a obteve”227.
O culto constitui-se como um espetáculo, uma representação dramática, uma figuração
imaginária de uma realidade desejada. No passado, a humanidade representou a grande ordem da
existência em cerimônias sagradas, “nas quais e através das quais realizavam de novo, ou ‘recriavam’, os
acontecimentos representados, contribuindo para a preservação da ordem cósmica (...) as formas desse
jogo litúrgico deram origem à ordem da própria comunidade, às instituições políticas primitivas”228. No
movimento histórico sequencial que vai do jogo ao jogo cultual até a construção cultural encontramos a
origem das normas sociais, da ética. Tal sequência nos convoca a retomar o jogo, com sua origem no
culto, como meio diagnosticador das “deformações” normativas de uma cultura.
No culto, exaltavam-se as coisas do dia a dia, conferindo a algumas dentre elas um sentido
consagrado. O jogo cultual procurava fazer brilhar de novo a luz original do mundo sobre as coisas
finitas, e os símbolos nele empregados caracterizavam-se “pela presença secreta de forças divinas numa
coisa escolhida, delimitada, que, desta maneira, adquire uma significação e um caráter superiores”229.
Com o culto, empreendia-se uma ação em sua oposição à banalização da existência humana. Por
isso, escolhia-se um lugar alto, separado, iluminado para celebrá-lo; “o termo cultual é separado da
conversação habitual, como o cercado do templo está separado do país em que está”230. O jogo cultual
separou as coisas sagradas das não sagradas, e nele não ocorre apenas a atuação humana, pois “o lado
divino do culto escapa ao julgamento que pronuncia a humana sabedoria finita da filosofia”231. O culto é
um comportamento da espécie humana, que, em última instância, lembra uma relação com o mundo que
não era ainda determinada pela diferença entre o sagrado e o profano e pelo abismo com relação aos
deuses do qual o homem tomava consciência. No jogo cultual, o sagrado constitui a lembrança da
totalidade ligada ao mundo. Nesse sentido, podemos dizer que o jogo é um pharmacon filosófico, um bem
e um mal: um bem porque procura criar um espaço onde as pessoas, além de realizarem sua catarse,
desenvolvem sua constituição simbólico-narrativa. Representa um mal ao introduzir uma quebra no
sentido originário da totalidade do mundo enquanto um todo, ao demarcar a dicotomia sagrado-profano.
Uma das funções do jogo cultual consiste em apaziguar os demônios, em exercer um poder
sobre eles, um meio de o homem sentir-se seguro no mundo. Ele assume uma função catártica,
purificando “a alma dos instintos que brotam do mais profundo, do mais obscuro da vida, desde o
instinto do incesto até o da morte”, e, dessa maneira, “abre-se uma outra perspectiva para nós se
compreendermos a ‘irrealidade’ do mundo lúdico não como simples ‘cópia’, não como reprodução e
representação pela imagem de um ente original, mas como ‘símbolo’, pensando a essência do símbolo a
partir da relação ao mundo”232.
É no e pelo jogo cultual que se compreende como os deuses enviam tempo bom e mau e
distribuem assim aos campos seu favor e seu desfavor. O culto elucida as grandes relações de sentido da
humanidade, pois “todo culto tem um sentido total, um caráter universal, o culto é um jogo que
interpreta o sentido”233. Aqui encontramos um dos núcleos explicitadores da hermenêutica filosófica, ao
mostrar que o sentido não é propriedade de uma doutrina de interpretação nem se limita ao sentido
atribuído a textos. No jogo cultual, encontramos a explicitação exemplar da experiência do sentido da
vida humana. Nele a humanidade, desde seus primórdios – antes que a filosofia se erigisse em forma
sistêmico-racional –, vivencia a experiência de sentido, de segurança, de orientação, de instauração de
uma nova ordem, que extrapola toda tentativa técnico-instrumental de conceituação. Enquanto referência
à explicitação de uma totalidade de sentido, afirmamos que se trata de uma metafísica em que o ser
experiencia a própria totalidade sem poder esgotá-la conceitualmente.
A representação sagrada, mais que uma realização simbólica, é uma realização mística, onde
“algo de invisível e inefável adquire nela uma forma bela, real e sagrada. Os participantes do ritual estão
certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificação, faz surgir uma ordem de coisas mais
elevada do que aquela em que habitualmente vivem”234. No jogo cultual imbricam-se, pois, o empírico e
o metaempírico.
O ritual é uma ação, e a matéria desta ação é um drama, isto é, “um ato, uma ação representada
num palco (...) o rito, ou ‘ato ritual’ representa um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo
natural”; e o termo “representação” aqui tem outro sentido que o de imitar e que poderia ser expresso
pelo termo “identificação” enquanto participação. “O rito leva a uma verdadeira participação no próprio
ato sagrado.”235 Há um jogo, portanto, entre os participantes e as regras do culto que é mais que um faz
de conta, uma irrealidade. Embora sua efetivação possa ser na forma lúdica, sagrada, profana, em todas
aparecem aspectos como: ordem, seriedade, risco, descontração, tensão, movimento, mudança,
solenidade, ritmo, entusiasmo, pathos.
O culto possui características formais e essenciais do jogo à medida que transfere seus
participantes para um mundo diferente do cotidiano. Platão reconhecia sem reservas a identidade do
ritual e do jogo e não hesitava em incluir o sagrado na categoria de jogo. Acerca do esforço humano para
viver em paz e melhor, afirmou: “A vida deve ser vivida como jogo, jogando certos jogos, fazendo
sacrifícios, cantando e dançando, e assim o homem poderá conquistar o favor dos deuses e defender-se de
seus inimigos, triunfando no combate”236. Chamamos aqui a atenção para o fato de que o jogo é modo,
método, caminho para viver em paz. O jogo, enquanto método filosófico próprio – modelo estrutural da
hermenêutica filosófica – pressupõe um modo de conhecer e de saber que não é antitético nem
excludente, mas remete a um projeto ético-político eudaimônico.
Certa irrealidade constitui parte da identidade do jogo. Nele encontramos sempre uma não
seriedade, passando-se por um fazer-como-se, como se fosse sem engajamento, onde saímos
provisoriamente da vida cotidiana, onde “fora do jogo nós somos determinados pela história de nossa
vida”237. Não apenas para os povos primitivos, para as crianças, mas também para adultos, o jogo não é
uma simples irrealidade, nem possui um valor inferior, mas nele podemos nos sentir mais próximos do
que consideramos o mais essencial e o mais autêntico para nossas vidas.
Com o jogo atenuamos a lei inexorável da seriedade da vida com suas necessidades habituais. É
uma forma de recuperar as possibilidades perdidas; nele “nós adquirimos de novo uma liberdade
inalterada na dimensão da simples ‘aparência’”238. Desse modo, o jogo não é simples aparência, no
sentido de algo superficial ou insignificante, mas aparição, existência, como é o modo de ser do relâmpago.
Ele é uma atividade voluntária, embora sujeito a ordens rígidas, deixando de ser jogo se não for
livremente jogado. Só joga quem deseja jogar. Assim se pode afirmar que é uma característica
fundamental do jogo poder ser livre, isto é, “ser ele próprio liberdade”239.
O jogo “não é vida ‘corrente’ nem vida ‘real’. Trata-se de uma evasão da vida ‘real’ para a esfera
temporária de atividade com orientação própria. Toda criança sabe perfeitamente quando está ‘só
fazendo de conta’ ou quando está ‘só brincando’”240. Quem joga vive a tensão produtiva entre a física e a
metafísica, entre o cotidiano e o transcendental, o real e o irreal.
O jogo, não pertencendo à vida comum, situa-se fora do mecanismo de satisfação imediata das
necessidades e dos desejos, chegando inclusive a interrompê-lo: “ele se insinua como atividade
temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste
nesta própria realização (...) ‘um intervalo em nossa vida cotidiana’”241. Ele é linguagem e,
concomitantemente, constitui, ao ser jogado, uma metalinguagem.
O jogo distingue-se da vida comum pelo lugar, pela duração, por seu isolamento com relação a
ela. Ocorrendo dentro de certos limites de tempo e de espaço, ele traça um caminho e um sentido
próprios, distinguível do cotidiano. Enquanto se efetiva, “tudo é movimento, mudança, alternância,
sucessão, associação, separação (...) mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece como uma
criação nova do espírito, um tesouro a ser conservado pela memória”242, e, jogado, incorpora-se à
tradição.
Ele “cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma
perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta
‘estraga o jogo’ privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor”243. Nesse sentido, ele
lembra o movimento originário da filosofia, que nasce também do desejo de transpor as regras ordenadas
e universais do cosmos para o interior da vida humana, o que atesta a conexão própria entre o jogo e a
filosofia.
O elemento da tensão desempenha um papel importante no jogo. “Tensão significa incerteza,
acaso. Há um esforço para levar o jogo até ao desenlace, o jogador quer que alguma coisa ‘vá’ ou ‘saia’,
pretende ‘ganhar’ à custa do seu próprio esforço”244, mas não conhece a priori nem o que está no início
nem o que está no fim. Aqui entra a questão do risco que corremos ao jogar245. Precisamos aguardar seu
final para saber como foi o jogo.
O jogo exerce um fascínio sobre nós, um encanto que “é reforçado por se fazer dele um
segredo”246. Não é possível deduzir a priori o que acontece no desenrolar até o fim dele. Ele não se
submete a uma vontade externa nem a qualquer espécie de voluntarismo.
As regras constituem um traço constitutivo do jogo, são absolutas e não permitem discussão. De
acordo com Paul Valéry, “no que diz respeito às regras de um jogo, nenhum ceticismo é possível, pois o
princípio no qual elas se assentam é uma verdade apresentada como inabalável”247. Quem desrespeita as
regras é um desmancha-prazeres e, como no diálogo, na filosofia há necessidade de regras, de condições,
sem elas não é possível o autêntico filosofar.
O jogo é uma atividade livre, criativa e ao mesmo tempo tomado como a atividade mais séria, e
dessa polaridade decorre seu êxito ou não. Ele, por um lado, ocorre à margem e acima da vida habitual e,
ao mesmo tempo, absorve o jogador intensa e totalmente em seu movimento. É “uma atividade desligada
de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de
limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras”248; ou seja, é inútil.
Uma das funções do jogo consiste no lutar por alguma coisa e no representar de alguma coisa.
Representar significa mostrar, mais que imitar. Uma criança representa alguma coisa diferente do que é
no cotidiano, finge ser um príncipe, uma mamãe, um professor; a criança experiencia papéis sociais.
Jogar não é fazer, no sentido da poiésis aristotélica; “não se ‘faz’ um jogo da mesma maneira que
se ‘faz’ ou se ‘vai’ pescar, ou caçar, ou dançar; um jogo muito simplesmente ‘se joga’”249. Faz parte do
jogo o respeito às suas regras, e, por outro lado, pertence à essência do espírito lúdico ousar, correr riscos,
suportar a incerteza e a tensão. Enquanto tal, é mais universal que a seriedade científica, que “procura
excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem incluir a seriedade”250.
Faz-se presente no jogo também certo espírito de fidelidade. Nele ocorre “a entrega de si mesmo
a uma pessoa, a uma causa ou uma ideia, sem discutir as razões dessa entrega nem duvidar de seu valor
permanente”251, sendo ela necessária para que haja um jogo. Há uma relação estreita entre a exigência de
fidelidade lúdica ao jogo e a relação entre ser e dever ser, por exemplo.
À guisa de síntese retenhamos seis características essenciais da atividade lúdica: “Ela é livre,
inconciliável com o constrangimento, por consequência, separada da realidade comum, isto é, limitada a
um espaço e a um tempo fechados convencionais, indeterminada, pois implica a intervenção do acaso ou
da invenção, improdutiva – dizendo de outro modo: não fornece nada à vida real dos jogadores – e
regulada ou fictícia, dependendo de ser ou não imitativa”252. G. Boss concentrou a definição de jogo na
expressão “uma ação regulada autônoma”253, que reúne as demais características gerais do jogo.
Considerando os traços antropológico-culturais do jogo elencados, consideramos a ciência
moderna como uma forma de jogo, pois tanto um quanto o outro possuem regras e objetivos próprios. A
ciência é, do ponto de vista filosófico, apenas um jogo entre muitos outros.
O jogo, ao ser jogado, tem um limite no tempo e no espaço, não tem contato com qualquer
realidade exterior a si mesmo, contém seu fim em sua própria realização. Isto não constitui elemento
fundamental da ciência, que está preocupada em ser aplicada à realidade procurando estabelecer um
padrão universalmente válido aplicável à realidade. Além disso, “ao contrário das regras do jogo, as
regras da ciência não são definitivas, são constantemente desmentidas pela experiência, sofrendo
modificações de toda a ordem, ao passo que a alteração das regras de um jogo tem como consequência
estragar o próprio jogo”254. Caracteriza o modo de proceder científico a vontade de pôr o fenômeno em
segurança, de fixar a coisa em sua pura demonstração, de colocá-la dentro de determinados parâmetros
conceituais claros. O jogo não se esgota num conceito, como a filosofia não pode ser limitada a um credo.
A “essência” do jogo oscila entre a observância das exigências próprias de cada jogo e a vivência da mais
pura liberdade ao se jogar.
E. Fink compara o modo como a ciência e a filosofia veem o jogo. A pesquisa científica toma o
fenômeno do jogo como ponto de partida, analisa-o como dado antropológico e distingue-o do jogo dos
animais, para então demonstrar seu conteúdo próprio. Já na filosofia tomamos a constituição do jogo
humano, onde nos damos conta de que “ele não ‘é’ como as outras ações sérias da existência humana, que
ele é um ‘fazer-como-se’ inspirado, um curioso ‘parecer’, e que encerra uma esfera maravilhosa de
‘irrealidade’. O jogo – enquanto imbricação singular de ‘ser’ e de ‘parecer’ – é de qualquer maneira um ser
parecendo e um parecer sendo”255, o que é desenvolvido amplamente pela Estética.
O jogo comporta uma dupla realidade, diferentemente da ciência, e funciona se o jogador
obedece às regras que lhe são próprias. Há uma constringência, apodicticidade própria do jogo, que deve
ser aceita e assumida pelo jogador em todo tempo e lugar. Por outro lado, só há jogo quando o jogador
entrega-se a ele. Não acontece jogo se ele se coloca de modo neutro como observador diante dele ou
quando pretende objetificá-lo, tal como procede a ciência.
No jogo, o fundamental é a experiência que o jogador realiza, ao passo que na ciência é a
validade universal que se pode alcançar por meio dela; no primeiro, trata-se de uma fundamentação
ontológica, no segundo, de uma epistemológica.

Acerca da dignidade filosófica do jogo

Da justificativa antropológico-cultural passemos à reflexão sobre o emprego do jogo como objeto


“digno” da filosofia. Mas há alguma coisa que não seja, em si mesma, uma questão “digna” como
filosófica? Pensamos que não, desde que possamos expressá-la linguisticamente.
O jogo nos aparece primeiramente como um fenômeno marginal na paisagem da existência
humana, que é determinada e modelada pelos fenômenos mais sérios. Ele aparece, como “o vis-à-vis da
seriedade da vida, da preocupação e do trabalho (...) ele aparece como o que não é ‘sério’, nem criado por
obrigações (...) A gente reconhece nele um meio terapêutico eficaz contra as sobretensões do trabalho, da
preocupação, da seriedade”256, como, por exemplo, a ludoterapia. Nesse sentido, o jogo não é levado a
sério, afinal, ele mesmo não é seriedade. Colocado à margem da vida, o jogo assume apenas o caráter de
passatempo, fundamental para o desenvolvimento inicial da criança e bastante secundário para o adulto.
Mas, se os há, quais seriam os objetos considerados dignos da filosofia? Os estoicos
sistematizaram o questionamento filosófico dividindo a filosofia em lógica, física e ética. Kant propôs
Deus, a natureza, a liberdade como objetos dignos da filosofia. Mas sobre o que se fundamenta a
diferença entre o digno e o indigno na filosofia? Sobre o que se sustentaria hoje a indignidade da própria
hermenêutica? Sócrates não partia de coisas consideradas insignificantes para filosofar? Embora estivesse
determinado por um projeto, que era, para ele, “o objeto supremo e o mais digno da meditação do
homem, a saber, pelo pré-projeto da virtude comprometida com uma organização da vida autêntica, feliz
e eficaz”257, o insignificante, o cotidiano eram os objetos dignos por excelência do seu filosofar. Assim, “se
das coisas mais insignificantes um caminho conduz sempre à filosofia, é permitido de se esperar nesta
meditação sobre o jogo, sobre esta besteira das crianças, que possa desestabilizar um dia o saber tão
seguro dos adultos”258.
Pode parecer estranho que se tome o jogo por tema e metodologia filosófica – método estrutural
do filosofar –, considerando a ideia que dele se faz correntemente, segundo a qual não é possível
aproximar o rigor e a seriedade do pensamento filosófico à tranquilidade alegre do jogo.
Se levamos a sério nosso Lebenswelt, nossa facticidade, cabe ao filosofar apreender o jogo
enquanto um caminho, uma metodologia, afinal, o filosofar “se encontra na vizinhança das grandes
paixões, das tempestades do coração e do espírito, da piedade elementar que une os viventes aos mortos,
das delícias da sensualidade pelas quais nós sentimos o ‘aqui’ e o terrestre” e “o que faz a tensão do
pensamento filosófico é que é necessário estar ao mesmo tempo em extrema distância e íntima
proximidade do mundo, verdade crítica e élan elementar da vida, reflexão e experiência original”259.
Considerado desse ponto de vista, a dignidade filosófica do jogo enquanto modo e modelo de explicitar o
acontecer da experiência é possível e faz sentido.
É importante lembrar que em função de uma compreensão mais universal de método
apresentamos os principais traços do jogo, pois o sociólogo, o historiador, o advogado e os demais
cientistas servem-se dos conceitos para desenhar “o esquema de uma máquina particular de nosso
universo, a fim de mostrar seu funcionamento, enquanto o filósofo quer conhecer o sentido de todas estas
máquinas, ou o que é o mundo no qual eles funcionam. O jogo tem relação com a filosofia,
principalmente na medida em que ele é um modo de atividade no qual se revela talvez o sentido de todo
ato”260.
Considerando que a filosofia “é uma possibilidade finita do homem finito; ela é uma
compreensão do ser, que anima um questionamento; ela é a claridade crepuscular na qual um ente,
inserido na natureza, no meio de todos os outros entes, tenta se compreender e se conceber a si mesmo,
compreender e conceber todas as coisas do universo”261, facultando inclusive compreender o próprio
jogo. O jogo pode ser justificado filosoficamente, pois ele mesmo pode ser visto como “transcendental”,
na perspectiva de que possibilita mostrar como acontece a compreensão do ser a partir de sua finitude,
capaz, concomitantemente, de transcendê-la.
Vimos quão difícil é definir ou traçar os contornos do jogo. A definição dele só pode ser feita por
meio de exemplos, o que é coerente com o modo de ser da hermenêutica filosófica. Assim, “da mesma
maneira, o filósofo não pode se pronunciar contra o uso de conceitos precisos, mas deve escolher qual
gênero de recorte ele quer obter, como o pintor põe na palheta certos tipos de cores ou outras, segundo o
efeito que quer produzir”262, perspectivamente...
O jogo não se deixa reduzir a um conceito claro e distinto, mas reenvia a outra coisa que ele
tende a superar, gira em torno de uma curiosa transcendência, de uma totalidade não abarcável. Por isso
cabe ao filosofar pôr em questão a tradição e examinar os preconceitos que chegam até nós. Cabe à
filosofia desenfeitiçar o “poder da linguagem” que possuem certas palavras ainda hoje marcadas,
negativamente, pela ilustração, como a arte, o jogo, a retórica, o prejuízo, etc. Isso só será possível jogando
no jogo da tradição. Em nosso caso, tratamos de questionar o descrédito que temos em relação ao jogo
enquanto “objeto” e “método” filosóficos.
Nas Leis de Platão, encontramos uma das mais lúcidas relações entre o ritual, a dança, a música e
o jogo: “Os deuses, diz ele, cheios de piedade pela raça humana, condenada ao sofrimento, ordenaram
que se realizassem as festas de ação de graças como descanso para suas preocupações, e deram-lhes
Apolo, as Musas e Dionísio como companheiros dessas festas, a fim de que essa divina comunidade
festiva restabelecesse a ordem das coisas entre os homens”263. O pensar filosófico é como um jogo, onde
“o filósofo, ao jogar, não visa somente construir sua obra, mas joga também em sua filosofia, como o ator
na peça de teatro”264, como partícipe no processo de conhecer/saber.
Preocupado com a imbricação entre o juízo estético e os princípios da razão em seu uso prático,
F. Schiller afirmou que “o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente
é homem pleno quando joga”265. Em outras palavras, “no ‘impulso lúdico’, razão e sensibilidade atuam
juntas e não se pode mais falar da tirania de uma sobre a outra (...) Pode-se afirmar, então, que essa
‘disposição lúdica’ suscitada pelo belo é um estado de liberdade para o homem”266, o que ratifica a
dignidade filosófica do jogo como autêntico caminho, modelo estrutural do filosofar.
O jogo é justificável e válido como filosófico, em termos morais, pois “em nenhuma outra
instância o respeito às regras do jogo é mais absolutamente necessário do que nas relações internacionais;
se essas regras são desrespeitadas a sociedade cai na barbárie e no caos”267. A rede estrutural que garante
a vigência de obediência a regras sociais está tecida pelas regras condicionantes e possibilitadoras de um
jogo: se fizermos isto, poderemos obter aquilo. É o que ocorre no discurso ecológico atual, que sustenta
outra forma de jogar o jogo com relação à natureza para sermos destruídos, ao final, por ela. O jogo com a
natureza não pode ser pautado pela razão instrumental nem ao modo de “senhor e escravo” de Hegel.
Corrobora os argumentos anteriores o fato de que

a verdadeira civilização não pode existir sem um certo elemento lúdico, porque a civilização implica a limitação e o domínio de si
próprio, a capacidade de não tomar suas próprias tendências pelo fim último da humanidade, compreendendo que se está
encerrado dentro de certos limites livremente aceites. De certo modo, a civilização sempre será um jogo governado por certas
regras, e a verdadeira civilização sempre exigirá o espírito esportivo, a capacidade de fair play268.

Aliás, sem essa capacidade (de jogar ou de loucura), não suportaríamos as relações humanas,
tanto as familiares, as sociais, as trabalhistas como as filosóficas...
Acerca dos argumentos sobre o jogo desenvolvidos por Huizinga e Fink, devemos lembrar que
os dois autores seguem interesses diferentes em contextos de questionamentos nem sempre compatíveis.
Huizinga está mais interessado na dimensão antropológico-cultural do jogo, ao passo que Fink, na
dimensão simbólica enquanto propriedade do homem e enquanto forma representativa do mundo. Em
todo caso, o mundo lúdico deve ser compreendido “não como cópia, mas como símbolo, e nesse caso,
apesar de sua ‘irrealidade’, ele é de uma classificação ontológica superior àquela das coisas tangíveis da
realidade cotidiana”269 e da racionalidade cotidiana.
Enfim, consideramos o jogo “não simplesmente como um ‘elemento’ da cultura ou como um ser
‘na’ cultura, mas como o modo de ser para o qual a cultura é sub specie”270. Estamos conscientes de que “do
jogo nós não teremos, pois, mais que uma apreensão parcial, não por causa de uma impotência que nos
seria própria e que nos fecharia à totalidade, mas porque o ser não se dá, no jogo, mais que sob o modo
do retrato”271, à semelhança do impressionismo; afinal, o ser se diz de muitas maneiras, como afirmou o
estagirita. Como não é possível encerrar e esgotar em um conceito o jogo, assim não é possível,
rigorosamente falando, definir o que é a hermenêutica, o que é a metafísica, o que é a filosofia. O mesmo
podemos afirmar da experiência: enquanto o método científico moderno procurou dissecá-la, a
hermenêutica procura conservá-la em movimento e, para tanto, o jogo mostra apropriadamente como ela
se efetiva. Dessa noção mais ampla sobre o jogo analisaremos, a seguir, os elementos e a função do jogo
em Wittgenstein e Gadamer.

Elementos e função do jogo na filosofia do 2º Wittgenstein e de Gadamer

(...) todo jogar é um ser-jogado. O atrativo do jogo, a fascinação que exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora
do jogador272.

Traços da concepção dos jogos de linguagem do 2º Wittgenstein


Com o 2º Wittgenstein acontece a reviravolta linguístico-pragmática da filosofia contemporânea.
A introdução da concepção dos jogos de linguagem foi fundamental para explicitar e compreender a
reviravolta na filosofia. Wittgenstein desistiu da possibilidade de construir uma linguagem matemática,
ideal, perfeita, abstraída da realidade. Sua obra Investigações filosóficas (= IF) constitui uma crítica
fundamental “ao ideal de uma ‘linguagem lógica’ e na verdade com isso abala toda pressuposição
nominalística da crítica da linguagem”273. Renunciou ao conhecimento objetificador da filosofia.
Wittgenstein chegou a essa posição nova e significativa de sua filosofia tardia diante do em
contraposição ao Tractatus. Em oposição à sistematicidade, idealidade, abstração que caracterizavam a
maior parte da filosofia da linguagem anterior, o 2º Wittgenstein enfatizou a pragmaticidade, “a situação
na qual o homem usa linguagem”274, decorrendo disso a necessidade de observá-la em seus diferentes
usos, em seus diferentes jogos de linguagem.
Encontramos uma virada análoga na filosofia de Heidegger, com a diferença de que este realizou
uma crítica à metafísica tradicional que havia entificado o pensamento, enquanto Wittgenstein criticou a
concepção de filosofia que tinha a matemática e a lógica assépticas como modelo e método exclusivo. O
primeiro realizou a virada ontológica, ao passo que o segundo concretizou a virada epistemológico-
pragmática.
A tarefa da filosofia, para o 2º Wittgenstein, consiste em observar o funcionamento da linguagem
usada pelos homens, descrevendo seus diferentes usos; “ela deve apenas ver e deixar tudo como é” (IF
124). Este é um dos méritos da virada filosófica operada por Wittgenstein, para quem a realidade em sua
pragmaticidade deve constituir o ponto de partida e de chegada da filosofia (trazê-la do último andar do
edifício filosófico para o primeiro). Para Wittgenstein, os problemas filosóficos surgem quando os
filósofos se põem a explicar abusando da linguagem; daí que o método permitido na filosofia deveria ser
“a descrição por meio de exemplos com função terapêutica” (IF 109), tendo em vista a cura dos abusos da
linguagem. O lema é “não pensar, mas olhar” (IF 66), ou seja, olhar como funcionam os jogos de
linguagem para apreender a validade universal de suas regras.
O problema que entrevemos aqui é a forma de realizar isso. A atividade filosófica fica restrita à
descrição dos usos linguísticos nos diferentes jogos de linguagem. Wittgenstein não está preocupado
primordialmente em mencionar e incorporar o sujeito que compreende e é afetado no jogo. Este deveria
apenas olhar o uso dos jogos e não os jogar. Trata-se de um sujeito externo que olha de fora como se dão e
funcionam os diferentes jogos de linguagem. Esta atitude contradiz a lei interna do próprio jogo, que
requer a participação do jogador para poder falar dele. Trata-se, para o 2º Wittgenstein, apenas de
descrever, ao modo das ciências naturais, como é usada a linguagem. Não se preocupa com a atitude de
quem joga o jogo de linguagem, que será o caso para Gadamer e será fundamental para compreendermos
o processo do autêntico filosofar, que assume a história, a subjetividade, a possibilidade criativa do saber.
Dito de outro modo, para Wittgenstein, mais importante que ouvir o ser afetado pela tradição ou pelo uso
da linguagem, é poder olhar e descrever as regras válidas usadas na linguagem. Para tanto, exige-se um
sujeito cognoscente que, do lado de fora, observe e descreva o que acontece ou execute as regras para
compreendê-las, sem mostrar os impactos que ele padece ao jogar.
O mérito de Wittgenstein foi haver enfatizado análise contextual em que as palavras estão
situadas para que possam ser entendidas. Não é possível proceder a uma análise delas fora do seu
contexto, da sua “forma de vida”. Aqui encontramos semelhanças com o projeto hermenêutico de
Schleiermacher, para quem “todo falar pressupõe uma dada língua (...) Cada instância do falar se baseia
em um pensar anterior (...) por conseguinte, todo ser humano é, por um lado, um local no qual uma dada
língua adquire forma de maneira peculiar, só se podendo compreender sua fala a partir da totalidade da
língua”275, compreendendo-se a parte jogada num todo. Uma vez que se realizasse o diagrama completo
da realidade, seria possível explicar o funcionamento das palavras dentro de determinado contexto,
independentemente dos pressupostos individuais e sociais envolvidos nele. Embora tenha realizado a
virada “linguístico-pragmática”, o 2º Wittgenstein não se liberta da visão objetivista da filosofia. A forma
que usou para combater o “essencialismo” metafísico consistiu em substituir um jogo de linguagem (o
essencialista) pelos diferentes jogos de linguagem, cuja relação entre si ele designa de “relações de
parentesco”. O problema foi resolvido apenas aparentemente.
Mesmo que tenha afirmado que “é jogando o jogo que aprendemos, de fato, suas regras” (IF
198), o acento de Wittgenstein recai sobre a necessidade de jogar, de entrar no hábito linguístico para ser
um “bom” jogador, o que na concepção de jogo também é. A ênfase distintiva que Gadamer dá é que o
jogador não apenas deve jogar seguindo as regras e as normas estabelecidas para poder compreendê-las,
mas quem joga já é sempre jogado, seja pela tradição, seja pela história, seja pela linguagem. Para
Wittgenstein, interessa predominantemente o conhecimento das regras do jogo para jogar e mostrar o
funcionamento dele. Só dessa maneira, pode-se apreender a significação das palavras, das sentenças, pois
“os processos nos quais aprendemos uma linguagem implicam um aprender a agir assim ou assado e,
portanto, a internalização das normas que regulam esse agir” (IF 198).
O jogar é sempre um mit-spielen, um jogar-com. Para Wittgenstein, “seguir uma regra, fazer uma
comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez são hábitos (costumes, instituições).
Compreender uma frase significa compreender uma linguagem. Compreender uma linguagem significa
dominar uma técnica” (IF 199). Mesmo jogando sozinho, o jogo é jogado com algo, para alguém,
imaginado ou não. Eis por que jogar consiste em assumir uma forma de vida, por que a formulação de
regras só pode ser compreendida no uso das palavras por meio das atuações pragmáticas. Nas palavras
de H. Fahrenbach,

é evidente que com isso abriu-se uma nova dimensão para a colocação hermenêutico-semântica do problema, na qual – por causa
da conexão constitutiva de linguagem e forma de vida – o sentido (a significação) de palavras e frases é visto como uma ‘função’
de seu ‘uso’ contextual e situacional em jogos de linguagem e o compreender o sentido como um compreender-se sobre
comportamento linguístico ‘correto’, ou, reflexivamente, como o compreender o uso de expressões linguísticas em respectivas
circunstâncias276.

Uma contribuição essencial da virada linguística operada pelo 2º Wittgenstein reside na


importância concedida à dimensão comunitário-intersubjetiva da linguagem, cujo modelo é representado
e descritível pelos jogos de linguagem em suas inter-relações pragmáticas. Contudo, o estilhaçar de um
único jogo de linguagem até então vigente em muitos jogos não resolve o problema que nos ocupa aqui,
pois permanecemos presos ao modelo explicativo epistemológico. Gadamer, ao contrário, com motivos
diferentes e perspectivas distintas cunhou uma concepção de jogo mais ontológica que epistemológica,
conferiu a ele um status filosófico mais radical e profícuo para a filosofia. Com palavras de Gadamer
concluímos nossa reflexão sobre o jogo no 2º Wittgenstein: “queria obter através dos seus jogos de
linguagem uma clareza total sobre o uso da linguagem, que ‘deveria eliminar os problemas filosóficos
plenamente’”277.

Traços fundamentais do jogo desenvolvidos por Gadamer


E. Fink e Gadamer têm pontos de vista semelhantes sobre o jogo, pois pretendem,

consciente ou inconscientemente, levar adiante de modo coerente o raciocínio do Heidegger tardio. Trata-se, em ambos os casos,
de indicar um fazer em cuja posse o homem encontra-se e através do qual o ser pessoa primeiramente se atesta e constitui. A
capacidade de tomar parte no jogo representa o ato criador da pessoa, mas esta criação (Poiésis) não pode ser apreendida de
modo satisfatório a partir de uma consciência particular278.

Contudo, distinguem-se pelo fato de que “E. Fink vê no jogo um modo de ‘ser-no-mundo (=
Kosmos)’, enquanto Gadamer quer expressar nele o acontecer do ‘ser-na-verdade’”279, representável
exemplarmente na experiência da obra de arte.
No texto “A atualidade do belo”, Gadamer afirma que, diferentemente do jogo dos animais, no
jogo humano aparece o elemento da racionalidade, o que ele mesmo critica no seu texto “Das Spiel der
Kunst”. A racionalidade seria o caráter distintivo mais próprio do ser humano enquanto poder dar-se fins
e aspirar a eles conscientemente. O jogo trata de uma racionalidade livre de fins predeterminados, ele “é,
em última análise, a autoapresentação do movimento do jogo”280. Foi com Descartes que se descartou a
proximidade entre o jogo humano e o jogo dos animais. Contudo, desde o século passado até hoje,
desenvolveram-se estudos que afirmaram que interesses e fatores desconhecidos também determinam
nossa consciência. Gadamer põe então a questão: muitos dos nossos atos que julgamos conscientes não
poderiam ser justificados a partir dos instintos? Sabe-se que tradicionalmente distinguiu-se o jogo dos
seres humanos do jogo dos animais pela consciência que aqueles têm da necessidade de obediência às
regras para que um jogo ocorra. Filosoficamente, isto foi atribuído à intencionalidade e à capacidade
humana de unir seriedade e jogo. Mas no jogo dos animais isso não funciona também? Não constatamos
entre eles que não se mordem de verdade quando estão brincando? Como podemos determinar que as
ações lúdicas humanas são orientadas pela razão e os jogos dos animais pelos instintos? Para Gadamer,
na experiência da arte vemos a forma de justificar melhor a especificidade do jogo, que melhor caracteriza
a dimensão da liberdade humana: “O fazer humano conhece uma poderosa variabilidade de provar e
jogar, de validar. Só aí começa mesmo a ‘arte’, onde algo pode ser de uma ou de outra maneira”281.
A utilização do jogo como metodologia, como caminho próprio da hermenêutica filosófica deve-
se ao fato de que: “(...) o acontecimento da verdade é algo sobre o qual nós não somos senhores. O
fundamento suficiente da obra de arte não está no poder do artista. Algo ‘acontece’ com ele”282. A
impossibilidade do domínio sobre o jogo, como vimos pela retomada do conceito de experiência de
Aristóteles por parte de Gadamer, constitui um traço fundamental da hermenêutica filosófica. A verdade,
explicitável pelo caminho do jogo, com um acontecimento análogo ao da experiência da obra de arte, isto
é, “a inapreensibilidade do acontecer da verdade não deve conduzir à postulação de uma potência
transcendente, inerente ao artista. Deve-se antes aferrar-se à finitude humana, (...) na obra de arte revela-
se uma verdade que abre uma dimensão de sentido, isto é, um novo mundo e esconde-se atrás da
‘inapreensibilidade’ de seu acontecer”283. Por essa razão J. Grondin justifica: “O modo de ser da obra de
arte deve ser esclarecido por meio da categoria ontológica do jogo”284.
A explicitação do “jogo como fio condutor da explicação ontológica” tem por intuito
compreender o sentido e a relevância do jogo enquanto modelo estrutural e estrutura “formal” da
hermenêutica filosófica. O modelo do jogo “serve como prisma através do qual a estrutura da efetuação
do compreender torna-se realmente cognoscível”285. Embora ele tenha desenvolvido a concepção de jogo
com o intuito de alargar a concepção da experiência estética, notadamente na 1ª parte de VMI, retomamos
essa perspectiva, a fim de estruturar e ampliar o próprio uso do jogo. O jogo é modelo estrutural que
explicita e possibilita, apropriadamente, a efetuação do princípio da experiência – não se restringindo ao
campo da estética.
Gadamer fez uma autocrítica de sua concepção de jogo, afirmando que não esclareceu
suficientemente como se harmonizam os dois projetos fundamentais da noção de jogo que contrapôs à
mentalidade subjetivista da época moderna, em que, por uma parte, está a orientação ao jogo da arte e,
por outra, a fundamentação da linguagem no diálogo, abordando os jogos da linguagem: “tratava-se de
conjugar mais estreitamente o jogo da linguagem com o jogo da arte, que era, a meu juízo, o caso
hermenêutico por excelência”286.

A concepção de jogo entre Wittgenstein e Gadamer


Em ambos os filósofos encontramos, pela explicitação da estrutura do jogo, a dimensão
pragmática da linguagem e, concomitantemente, da filosofia. É no uso da linguagem que se torna
possível a compreensão da significação das frases, suas regras e o sentido que na linguagem se instaura e
se apreende. Nesse sentido, ambos se opõem à concepção essencialística de filosofia.
Os dois filósofos concebem o jogo como uma “estrutura” explicativo-compreensiva do
significado, do sentido. Para Wittgenstein, é no uso de diferentes jogos de linguagem que é possível
apreender o funcionamento dela, ao passo que, para Gadamer, o “ser já é linguagem”, somos nela e em
seu uso.
Ambos empregam o conceito de jogo sem ter realizado uma fundamentação ou fenomenologia
histórica dele para justificar seu emprego como uma metodologia filosófica.
É comum a eles a dimensão argumentativa como ponto central do filosofar. Com o jogo atestam
que não é mais possível uma filosofia que trabalhe apenas com proposições lógicas, dedutivas,
matemáticas. Tentaram renunciar ao modelo de uma filosofia orientada unicamente pelo método
científico moderno, recorrendo ao Lebenswelt, ao modo fáctico-argumentativo do filosofar.
Enquanto metodologia, caminho, a estrutura do jogo assinala uma virada filosófica; para
Wittgenstein, no campo mais específico da filosofia da linguagem, e, para Gadamer, na esteira da
hermenêutica da facticidade heideggeriana, na concepção da hermenêutica. Ambos romperam, por meio
do emprego do jogo, comum modelo de filosofia tradicional.
Em Wittgenstein vemos isso na ruptura com o Tractatus, cujo modelo idealizado era o
matemático que, para substituir o método explicativo, adotou os exemplos como forma de compreender a
significação das frases, das palavras. Gadamer fez algo semelhante em relação, p. ex., à concepção de arte,
de pesquisa histórica, rompendo com o modelo de teoria do conhecimento moderno. O jogo só é possível
de ser jogado com um outro. Há um aceno, em ambos, à dimensão inter-relacional do conhecimento,
ratificável nas palavras gadamerianas: “quem ‘pensa’ linguagem move-se já sempre em um outro lado da
subjetividade”287.
Wittgenstein mesmo, para não cair no “essencialismo” metafísico, recusou-se a dar uma
definição do jogo. Gadamer fez o mesmo, não apenas para não cair no “essencialismo” conceitual, mas
porque o jogo acena a algo mais fundamental, anterior e posterior ao conceito, que pode ser designado de
pré-reflexivo ou ontológico.
Em Wittgenstein, o jogo é concebido ainda do ponto de vista epistemológico, atrelado ao modelo
de teoria do conhecimento tradicional. Mesmo que tenha indicado a necessidade de “olharmos o uso” da
linguagem para compreendê-la e analisar o próprio emprego dos diferentes jogos de linguagem, ele
apontou, com sua virada, para outro aspecto da filosofia da linguagem, denominado de pragmático.
Em Gadamer, o jogo possibilita-nos explicitar a estrutura ontológica da compreensão, ao passo
que Wittgenstein concebe-o como uma estrutura objetiva que fundamenta o processo do conhecimento
epistemológico, independentemente da experiência que o sujeito realiza no ato de conhecer. Para o
primeiro, o jogo remete à ontologia, uma vez que o ser se constitui no jogo. É impossível jogar sem ser
jogado, ou seja, é impossível querer descrever como funcionam as regras do jogo filosófico como um
observador externo a ele.
Em Wittgenstein, trata-se de ver tudo como é, não pensar nem ouvir. Nele não aparece uma
preocupação explícita com outros aspectos do compreender, além do olhar que procura apreender as
regras válidas universalmente. Na concepção de hermenêutica filosófica gadameriana são fundamentais
outros aspectos dos sentidos, como o ouvir, o sentir, o tomar-parte-em, o perceber. Nele o conhecimento é
ampliado para a noção de saber enquanto modo de ser; o filosofar consiste de afecção (passio), não apenas
atuação (actio).
Para Wittgenstein, “compreender uma linguagem é dominar uma técnica” (IF 199), o que seria
possível observando os jogos de linguagem específicos. Gadamer não está interessado em técnicas para
compreender, para dominar, para ter posse de conhecimento. Compreender não significa para ele
dominar uma técnica ou um conjunto de regras, antes se explicita constituindo-se na linguagem em que
vive, pois “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, ele é e ainda pode vir-a-ser.
Em Wittgenstein não encontramos referências muito explícitas ao jogo do culto, da arte.
Gadamer apresenta e desenvolve aspectos do jogo cultual não apenas como exemplo, mas para mostrar
como se dá o processo da compreensão do sentido, da experiência, da história, da linguagem. Por isso é
fundamental para ele o “ir-e-vir” – como é o caso do movimento antistrófico das tragédias gregas – que se
explicita no jogo como um movimento circular concêntrico aberto, ao passo que, para Wittgenstein, trata-
se de um movimento retilíneo uniforme com fim predeterminado.
Parece que em Wittgenstein o primado do conhecimento pertence a um “sujeito transcendental”
que deve ver, olhar os jogos de linguagem para captar o significado. Em Gadamer, há o “primado do jogo
em face da consciência do jogador”, para quem o importante é o ser-jogado no jogo, em que este acaba
por assenhorar-se do próprio jogador.
Em Gadamer, mais importante que o sistema de regras e as prescrições do jogo, que facultam a
realização dele, é o acontecimento, o entrar-no-espetáculo e tomar parte nele. Wittgenstein tem uma
preocupação com a finalidade do próprio jogo, que é mostrar as regras de funcionamento da linguagem,
descrevendo os diversos “jogos de linguagem”, instrumentalizando-o ao final. Gadamer não tem uma
preocupação utilitária (instrumental) do jogo, mas, por meio dele, mostra que é no jogar, no acontecer
movimentando-se – ao modo de Hermes indo e vindo entre os deuses e os homens e vice-versa – que
acontece, instaura-se e se explicita a experiência do sentido da vida humana.

Traços fundamentais do jogo enquanto modelo estrutural da hermenêutica filosófica


O princípio da experiência hermenêutica move e constitui a hermenêutica filosófica que se
explicita com o modelo estrutural do jogo, cujos traços se assemelham aos da linguagem da experiência.
Podemos afirmar que a “essência” do jogo reside no movimento de ir-e-vir, que não tem
nenhum objetivo fixo, no qual ele se conclui. O essencial é “a mobilidade irresistível, que inclui aqueles
que estão jogando. O jogo se torna ele mesmo o sujeito do movimento: o jogo se faz acontecer a si
mesmo”288. Nos diferentes tipos de jogo, seja das ondas, das palavras, o movimento é um traço que

não está fixado em nenhum alvo no qual termine (...) O movimento, que é o jogo, não possui nenhum alvo em que termine, mas
renova-se em permanente repetição. O movimento de vaivém é obviamente tão central para a determinação da natureza do jogo
que chega a ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. É o jogo que é jogado ou que se desenrola como jogo (sich
abspielt) nisso – não há um sujeito fixo que esteja jogando ali289.

Por isso, este ir e vir não pode ser pensado como movimento circular vicioso. A dimensão
teleológica – de progresso ou retrocesso – é superada pela experiência do jogo, o que pode ser
problemático quando transposto para o campo mais estritamente filosófico-conceitual. Não é possível
fixar esse movimento conceitual. No deus Hermes da mitologia grega encontramos esta característica: ele
vai e vem entre o finito e o infinito, entre os homens e os deuses, transportando a mensagem destes para
aqueles e vice-versa.
O vaivém pertence de tal forma ao jogo, que impossibilita qualquer um de jogar isoladamente.
Imagem representável, p. ex., no “‘jogo das luzes’, ou o ‘jogo das ondas’, onde há um tal ir e vir constante,
um vaivém, isto é, um movimento que não depende de um objetivo final do movimento”290. Porém há a
ideia de télos; só que este não pode ser conhecido. Daí por que o jogar constitui-se dinâmica incessante:
uma teleologia sem télos predeterminado ou externo ao próprio processo de conhecer e de saber. A
abertura como princípio da experiência se contrapõe ao movimento teleológico necessitário.
Não desaparecem no comportamento lúdico todas as relações-fim, que determinam a existência
(Dasein), mas nele elas permanecem em suspenso. Quem joga sabe que o jogo é somente jogo. O jogar
cumpre sua finalidade quando aquele que joga entra no jogo, e, caso não o leve a sério, torna-se um
desmancha-prazeres. Assim, “o modo de ser do jogo não permite que quem joga se comporte em relação
ao jogo como em relação a um objeto. Aquele que joga sabe muito bem o que é o jogo e que o que está
fazendo é ‘apenas um jogo’, mas não sabe o que ele ‘sabe’ nisso”291. O fato é que não é possível demonstrar
o jogo independentemente do jogador e vice-versa, o que também vale para a experiência, para a
linguagem e para a filosofia.
Na linguagem, “é óbvio que o sujeito genuíno do jogo não é a subjetividade de quem joga
também sob outras atividades, mas o próprio jogo”292, pois quem procura pensar a linguagem já se move
sempre além da pura subjetividade. Ora, a concepção de horizonte corrobora isso, pois nele o ser humano
busca seu lugar enquanto sujeito, com uma diferença, porém: o próprio jogo não acontece sem o jogador,
ao passo que o horizonte existe, num certo sentido, independentemente dele.
O jogo deve ser compreendido como um processo medial, “não tem seu ser na consciência ou no
comportamento do jogador, mas atrai este à sua esfera e preenche-o com o seu espírito. O jogador
experimenta o jogo como uma realidade que o ultrapassa”293. O drama cultual ou profano, ainda que o
que representa seja um mundo “completamente fechado” em si mesmo, está aberto, por um lado, ao
espectador. Por outro lado, sem o espectador ele não alcança seu pleno significado e sentido.
Compreendemos melhor a impossibilidade de dominar o jogo, por exemplo, pela experiência
segundo a qual “o ser da arte não pode ser determinado como objeto de uma consciência estética, porque,
ao contrário, o comportamento estético é mais do que sabe de si mesmo. É uma parte do processo do ser da
representação e pertence essencialmente ao jogo como jogo”294, sendo impossível objetificá-lo. É o caso do
espectador que, diante do desenrolar de um drama, compreendendo-o, compreende-se. A hermenêutica
“pressupõe que em toda compreensão de algo ou de alguém se produz uma autocrítica. O que
compreende não adota uma posição de superioridade, mas reconhece a necessidade de se submeter a
exame a suposta verdade própria”295. Daí por que afirmamos que o autêntico saber é sempre
autoimplicativo, é uma experiência, mais que um ato descritivo asséptico.
Do ponto de vista ontológico, a concepção de jogo fica em aberto, no sentido de que não trabalha
nem culmina em conceitos ou sistemas definitivos e absolutos. É o caso da experiência estética em que
acontece um jogo entre a obra de arte em “si mesma”, o jogador e a experiência que nasce desse jogar.
Percebe-se que nessa relação tripolar – uma terceira margem –, não bipolar como ocorreu com o
conhecimento (sujeito-objeto) ao longo da história, não há sobreposição de um dos polos sobre os demais.
Não há domínio de um aspecto sobre outro, de modo que não apenas sabemos mais, mas sabemos de
outro modo ao fim do jogo.
No jogo estético ou histórico, o sentido da obra de arte ou da história não é determinado pela
subjetividade transcendental, mas instaurado a partir do jogo entre quem percebe e o que é percebido.
Seu télos não precede nem está predeterminado, mas ele mesmo existe enquanto experiência; ele “tem sua
natureza própria, independente da consciência daqueles que jogam”296.
O “sujeito do jogo não são os jogadores, porém o jogo, através dos que jogam, simplesmente
ganha representação”297. O jogo compõe-se de uma realidade dupla: por uma parte, comporta regras
absolutas e, por outra, exige que seja jogado; por uma parte, é fenomenológico no sentido que se parte do
que está aí e, por outra, joga-se com as regras que lhe são próprias.
O jogo implica sempre correr um risco, o que constitui um de seus atrativos. A natureza do jogo
se reflete no comportamento lúdico: “Todo jogar é um ser-jogado. O atrativo do jogo, a fascinação que
exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora do jogador”298. O risco é justamente o que
mostra a ateleologia do jogo ou uma teleologia que se presentifica no ato mesmo de jogar; nesse sentido,
não é uma teleologia transcendental, abstrata nem a-histórica. Dentro do próprio jogo há um télos, uma
dinâmica atuante. A estrutura de ordenação do jogo faz com que o jogador explicite-o jogando.
Deste modo, “o verdadeiro sujeito do jogo (...) não é o jogador, mas o próprio jogo. É o jogo que
mantém o jogador a caminho, que o enreda no jogo e que o mantém em jogo”299. Ao afirmarmos que o
jogo não é reconstruído “a partir da consciência ou do comportamento intencional do jogador, mas a
partir da perspectiva do jogo mesmo, que parece se apresentar como aspecto transubjetivo dos vários atos
de falar, pensar ou agir dos participantes”300, transferimos a absolutidade da subjetividade moderna para
a objetividade da própria coisa e para o acontecer do jogo mesmo. Gadamer deslocou o peso que a
modernidade conferira à subjetividade para a passio da obra de arte, da história, da linguagem, da
tradição sobre a subjetividade.
Com o jogar da experiência estética se “supera de maneira convincente a transposição
(Übertragung) de um modelo de teoria de conhecimento, que contrapunha bruscamente o sujeito ao objeto
do conhecimento, para a experiência estética a favor de um pensamento dialógico-participativo: arte é
somente arte porque ela nos tem algo a dizer”301. Encontramos, exemplarmente, a dimensão de
participação, na apresentação das tragédias gregas ou no jogo cultual.
O modelo estrutural do jogo mostra que nele todos são cojogadores. O mesmo vale para a
exigência da obra de arte, onde não há separação entre a obra de arte propriamente dita e aquele que a
experimenta. No jogo da cultura “ler não é somente soletrar e ler uma palavra após outra, mas significa,
sobretudo, realizar o permanente movimento hermenêutico que é dirigido pela expectativa de sentido do
todo e que, ao final, se realiza a partir do indivíduo na realização do sentido do todo”302. Trata-se de um
jogo de movimento de distanciamento e apropriação, para falar em linguagem ricoeuriana.
O jogo, para que ocorra, precisa ser jogado, o que constitui uma ação. Mostra-se assim que, na
estrutura do jogo, o que está em jogo é a própria humanidade agindo, e não apenas abstraindo ou
conhecendo. O jogo como modelo estrutural da hermenêutica filosófica sustenta que só “faz” filosofia
quem filosofa, quem se envolve no processo mesmo do filosofar, experienciando-se nesse processo,
confrontando-se consigo e com a história. Por isso, com razão, Kant pode afirmar que não se aprende
filosofia, mas se aprende a filosofar. Só filosofa quem se joga na filosofia, só experimenta quem se
experiencia, só faz hermenêutica quem se joga e se confronta com o sentido (seu e do texto), só filosofa
quem vivencia o pathos da admiração.
O jogo exige sempre um jogar-com (mit-spielen), o que vale também para a experiência da obra
de arte. Ao olhar uma criança, “acompanhá-la em seu jogo”, efetiva-se uma participação por parte de
quem a observa. O espectador, neste caso, é mais que um observador, pois toma parte do jogo; e nesse
sentido se diz que o jogo é um agir comunicativo.
No culto, há uma representação para a comunidade que, concomitantemente, pede a
participação do espectador. Na representação de Deus ou no mito, “os jogadores participantes, por assim
dizer, revelam-se no jogo representativo, encontrando nisso, intensificada, sua autorrepresentação
elevada, ultrapassando-se, saem de si para adentrar no fato de que os atores representam uma totalidade
de sentidos para o espectador”303. Os atores “executam” seu jogo para alguém, e embora eles
representem seu papel em qualquer jogo, este constitui-se pelo conjunto de atores e espectadores. A
experiência da obra de arte não pode ser desligada da contingência das condições de acesso a ela por
parte do ator e do espectador.
Na opinião de Kögler,

Gadamer acentua, com razão, que na experiência com a arte acontece mais do que somente uma formação e aperfeiçoamento do
gosto subjetivo que examina à distância. Obras de arte que se tornam significativas para nós nos tocam, antes, de modo especial e
desafiam as nossas maneiras de ver, pensar e sentir habituais, referindo-se assim em seu efeito ao todo de nossa vida. Gadamer
exprime esse fenômeno por meio do conceito de ser tocado pela arte; o que nos sucede em uma experiência verdadeira e
comovedora com obras autênticas de arte sempre já prendeu (erfassen) uma parte de nós mesmos, relaciona-se – só assim se
explica o ser atraído (hineingezogen) e o ser tocado pela experiência estética – ao nosso modo de vida de modo aprofundador e
crítico304.

Desse ponto de vista, a estrutura e a efetivação do jogo de experiência da obra de arte é que
justifica uma compreensão mais ampla e autêntica do conceito de verdade. A verdade é compreendida
como um acontecer em movimento, e desse modo ela não deve ser compreendida como produto da actio
humana. Neste caso, “o conceito de passio é mais adequado. No domínio da arte este importante conceito
adquire uma dupla aplicação: por um lado, pode ser aplicado ao artista – o ato poético é mais um
‘padecer’ que um agir; por outro lado, a experiência do observador também precisa ser compreendida
como pathos”305. Com isso, afirmamos que o saber filosófico é fruto da actio e da passio humana, da
subjetividade moderna e da objetividade grega, da liberdade e da “coisa-em-si”.
O fundamental na hermenêutica é que “todo jogo é um ser jogado”, cuja experiência ocorre
exemplarmente na obra de arte, “a obra não visa desde o começo um objetivo, simplesmente quer ser
apresentada. Mas o apresentar só existe para quem se deixa envolver no jogo da obra de arte”306. Quando
jogamos, abandonamo-nos a um universo de sentido que nos revela um novo mundo, ampliando e/ou
retificando o nosso. Quem joga é transformado; os atores ou o dramaturgo, por exemplo, na
representação “não mais existem, mas tão somente o que é jogado (representado) por eles”307.
Há uma transcendência no interior do jogo, intrínseca nas cerimônias fúnebres, por exemplo,
que nada mais são que uma tentativa de transcender e eternizar a própria vida:

O enterro dos mortos, o culto dos mortos e todo o luxo imenso de arte de mortos, de oferendas é um reter do efêmero e do que
escapa, por meio de uma nova permanência própria. Isso agora me parece ser o passo para a frente que damos a partir do todo
das nossas deliberações, de que não somente denominamos o caráter de excesso do jogo como a verdadeira base para a nossa
elevação criativa à arte, mas reconhecemos como motivo antropológico mais profundo por trás disso aquilo que separa o jogo do
ser humano e principalmente o jogo da arte de todas as formas de jogo da natureza e o distingue diante delas. Ele outorga
permanência308.
A natureza de ser do jogo é a de autorrepresentação; e “(...) o entregar-se à tarefa do jogo é, na
verdade, um colocar-se em jogo. A autorrepresentação do jogo faz, ao mesmo tempo, que o jogador
alcance sua própria autorrepresentação enquanto ele joga algo, isto é, representa”309. A representação
deve ser reconhecida como modo próprio de ser do jogo, em que o que é jogado, ao representar-se, dirige-
se ao e integra o espectador em seu movimento.
O espetáculo teatral e a obra de arte “não são um mero sistema de regras e de prescrições
comportamentais, no âmbito das quais o jogo (espetáculo) pode se realizar. O representar de um
espetáculo não quer ser entendido como uma satisfação de uma necessidade lúdica, mas como um entrar
na existência da própria poesia”. A experiência hermenêutica acontece no jogo representacional entre o
ser e o vir-a-ser, representando-se. O jogo enquanto caminho, que sobe e que desce, da hermenêutica
filosófica, não constitui um mundo substitutivo no qual esquecemos ou sublimamos nossos problemas.
Antes, como no jogo da arte, ele se constitui em “um espelho que ao longo dos milênios sempre de novo
aparece diante de nós, no qual nós mesmos nos enxergamos – com frequência bastante inesperadamente,
com frequência bastante estranhamente – como somos, como poderíamos ser, o que acontece conosco”310.
Diferente da proposta epistemológica dos jogos de linguagem de Wittgenstein, o jogo – enquanto modelo
estrutural, metodologia própria da hermenêutica filosófica – conserva e integra a contingência, a
liberdade, a história com suas regras próprias.
O jogo não é tanto o oposto da seriedade, e justamente “porque não é simples liberdade de
arbitrariedade e de excesso cego da natureza, o que se encontra diante de nós nas realizações criadoras da
arte, (o jogo) pode penetrar todas as ordens da nossa vida social, através de todas as classes, raças, níveis
de formação. – Pois estas configurações do nosso jogar são conformações de nossa liberdade”311.
Considerando o jogo como metodologia própria da hermenêutica filosófica,

tal hermenêutica não é uma metodologia ou uma tentativa de conceber a compreensão como o resultado da relação sujeito/objeto
do homem com seu mundo (como na hermenêutica de Schleiermacher ou Dilthey). Ela é, antes, uma tentativa de ver a
compreensão como um processo de acontecimentos importantes, que é o caminho do próprio Ser mesmo, e ‘a forma de ser do
próprio homem’. Por conseguinte, para Gadamer, o processo (e tem que permanecer processo) de compreensão ou pensamento,
a transmissão da tradição, é o mais especificamente explicado modo de Ser e jogo: isto é, compreensão ou pensamento é o jogo de
revelação-acontecimento do Ser312.

Desse modo, o jogo apresenta traços da dimensão agonística – no sentido de luta interminável,
em que filosofar não consiste em chegar necessariamente a uma verdade imutável ou a um credo, mas no
amor e na busca da sofia.
O que é a terapia psicológica senão um autêntico jogo? Com regras, com tempo e espaço
delimitados, com o requisito do envolvimento na análise por parte do sujeito e do psicanalista (em seus
diferentes níveis de envolvimento), com o pressuposto necessário do distanciamento hermenêutico. Em
que consiste a literatura, fictícia ou não, enquanto realidade dada, senão num jogo de metáforas, palavras
que se tornam legíveis à medida que o leitor entra no jogo dela e o joga? O ensaio tem também a estrutura
do jogo ao pedir que seu autor bem como seu leitor participem dele. Exemplo disso é a obra de M. de
Montaigne, Ensaios, e também a obra de Gadamer, em que apenas o primeiro dos seus dez volumes foge à
forma do artigo (ensaio). Enfim, no jogo se realiza uma liberdade e, dessa maneira,

Filosofia é, portanto: uma open-mindedness criativa; uma dialética sem fim de pergunta-resposta com o Ser; uma espera
iconoclástica sem idolátricos absolutos; uma imersão no porque sem um por que final; um ser jogado pelo jogo do Ser313.

O espectador ou intérprete bem como o drama e a obra têm seu próprio horizonte. Filosofar
significa aceitar o desafio de pôr em jogo os pressupostos que cada um carrega consigo e possibilitar o
acontecer de uma verdadeira “fusão de horizontes”. Em outras palavras, a hermenêutica supõe, descobre
e apresenta “condições de verdade que não estão na lógica da investigação, mas a precedem”314, uma vez
que o jogo só acontece quando o jogador se joga nele e joga tudo de si mesmo, num movimento
experiencial de identidade e diferença, assimilação e distanciamento.
Ao assistir a uma peça trágica, o espectador não vive uma experiência aventureira ou um
simples delírio da inconsciência, mas desperta o verdadeiro ser e aprofunda sua “continuidade” consigo
mesmo. O jogo e sua transformação em construção, a representação ou execução da música, não
constituem meros acidentes, mas nelas se completa o que são os atos e as obras em “si mesmas”, um
estar-aí do que se representa por meio delas e com elas.
Com a dimensão da inter-relação, é possível ampliar o cogito cartesiano, que, a princípio, joga só,
contrariando a lei relacional do jogo. A experiência estética nos ensina que a verdade não é resultante de
uma simples aplicação de um método. A verdade à qual chegamos aplicando um método é uma verdade
lógica, abstrata, “em tudo diferente daquela a que chega o amante ao decifrar os signos da amada”315.
A experiência da obra de arte nos afeta estremecendo e fazendo desmoronar o que é habitual. Ao
assistir a uma tragédia não apenas nos reconhecemos nela, como ela também nos diz: “Tu tens de mudar
tua vida”316. Se antes a experiência estética predizia os efeitos no espectador, agora exaltamos o fato de
que tal vivência altera sua própria vida.
O jogo, tendo como pressuposto a imprevisibilidade dos seus resultados, desemboca na questão
do risco, do desafio que o jogador enfrenta e assume ao jogar. Nesse caso, o sujeito não está
predeterminado pela atitude dominadora e, ao jogar, pode então refletir sobre a liberdade humana, não
apenas enquanto subjetividade, mas também como alteridade. Talvez a concepção de filosofia que
decorre daí se pareça com o trabalho de Sísifo ou, modernamente, com um círculo vicioso. Mostramos
que a filosofia consiste justamente nesse vaivém constante entre o sujeito e a realidade, o sujeito e outros
sujeitos, entre o empírico e o metaempírico.
A partir do jogo é possível retomar e justificar que a filosofia “não é sophía, disposição de algo
pelo saber, mas busca dele. E, como tal, é a mais alta possibilidade do ser humano”317. Pressupõe-se outra
concepção de filosofia que não a cartesiano-solipsista, o que não pode ser resolvido distinguindo
diferentes níveis de racionalidade318 apenas, ou pragmatizando a linguagem em seus múltiplos jogos de
linguagem.
O movimento antistrófico – do jogo – explicita um movimento que não é retilíneo, mas circular
concêntrico. É daqui que retiramos e fundamentamos o próximo passo. O segundo modelo estrutural
para fundamentar a dimensão metodológica da hermenêutica filosófica é o círculo hermenêutico.

2.2 O círculo hermenêutico como o enquanto da hermenêutica filosófica

Comum no círculo é o princípio e o fim319.

A passagem à explicitação do círculo hermenêutico, enquanto caminho e modo de a


hermenêutica filosófica acontecer, se deve: (a) à relação de circularidade própria no modelo estrutural do
jogo entre este e o jogador; (b) à centralidade que ocupa na história e no desenvolvimento da
hermenêutica; (c) à dimensão da mobilidade do processo experiencial que não está predeterminado,
arqueológica ou teleologicamente.
A noção de círculo hermenêutico foi objeto de inúmeras críticas na filosofia. R. Brandt, p. ex.,
defende a tese de que há uma “interpretação objetivamente-determinada” e outra “subjetivamente-
reflexiva”. Em e entre ambas não há circularidade hermenêutica, e, havendo, deve ser rompida320. A
crítica de W. Stegmüller é mais conhecida e contundente; segundo ela, o “círculo da compreensão” é
falso321 e o que há propriamente é um dilema entre a linguagem do intérprete e a do texto, entre a
compreensão do todo e a da parte. O dilema deve ser superado e deixar de existir. Ele apenas subsiste por
falta de informações suficientes num dado momento, vindo, contudo, a ser dissolvido quando essas
forem fornecidas. Conforme W. Stegmüller, os hermeneutas confundem a indissolubilidade do círculo
com a insuperabilidade desse dilema322, para quem, ao final, o círculo seria sempre vicioso.
Diferentemente de R. Brandt, não reduzimos a aplicação do círculo hermenêutico à esfera da relação
intérprete-texto. Contra W. Stegmüller, não partimos nem da exclusividade do arcabouço lógico-
matemático nem da diferença entre ciências naturais e ciências do espírito para afirmar que o círculo
hermenêutico seria o método correto dessas em oposição ao método indutivo-dedutivo daquelas.
Ampliaremos a noção de círculo hermenêutico no nível filosófico, sem concebê-lo como um dilema a ser
superado, pois entre a experiência filosófica e a realidade, graças à liberdade humana e à construção
conceitual, há uma tensão produtiva que nos move a filosofar e que deve ser mantida.
A metodologia hermenêutica – como a experiência, o conhecimento – constitui-se circular
concentricamente. Analisaremos a circularidade metodológica em três momentos distintos e
complementares: desenvolveremos inicialmente a mobilidade circular presente no mito arquetípico de
Hermes, explicitando alguns aspectos intrínsecos da hermenêutica em seu viés mítico-etimológico. É
proposital a explicitação dessa dimensão apenas aqui, pois, do ponto de vista de uma hermenêutica
científica, a apresentação do mito teria de ser o primeiro momento, o ponto de partida para sua posterior
fundamentação. A hermenêutica filosófica não se fundamenta de forma linear, teleológica, antes vai se
configurando como uma rede. Foi do próprio processo experiencial filosófico que nasceu a necessidade
de explicitar o mito no centro de nosso trabalho. Em seguida, aprofundaremos a abordagem do círculo
hermenêutico em Schleiermacher, Heidegger e Gadamer, mostrando-o como metodologia apropriada da
hermenêutica filosófica. Finalmente, pelo círculo hermenêutico, justificamos o processo hermenêutico
como um enquanto que mostra e fundamenta o caráter móvel, histórico e aberto do filosofar.

Acerca da dimensão mítico-etimológica da hermenêutica

Vamos nos ater à metodologia hermenêutica pela explicitação da imagem circulante


personificada pelo deus Hermes. Fazemo-lo por alguns motivos: (1) nossa posição é que – diferentemente
da concepção unilateral da razão moderna – há uma imbricação necessária entre mito e filosofia; (2) o
mito, querendo ou não, está aí como uma espécie de arquétipo da humanidade, seja na forma impressa,
seja na oral, sendo sua existência e seu valor inegáveis; (3) ele aponta para um conjunto de dimensões da
hermenêutica filosófica em seu viés argumentativo-intuitivo.
A hermenêutica filosófica tem uma história cuja origem cronológica remonta às origens da
filosofia e enraíza-se na mitologia grega. Mais que uma simples descrição histórico-filosófica,
exploraremos a riqueza do mito de Hermes na esperança de contribuir para libertar a hermenêutica
filosófica de sua pecha de conservadorismo ou relativismo.
O mito é algo vivo, criativo, que faz e é criador de sentido. Embora muitas vezes refutado ao
longo da história, seja pelo cristianismo ou pela Aufklärung moderna323, o mito possui uma criatividade e
atualidade que deveriam ser retomadas no discurso filosófico.
Embora a origem etimológica da hermenêutica no mito de Hermes seja contestada e, por outros,
inclusive refutada324, sob nosso ponto de vista são incontestáveis a identidade indefinível de ambas bem
como as relações possíveis de se estabelecerem entre elas. Ancoramos nossa posição em Gadamer, que
criticou a posição da Aufklärung, segundo a qual a filosofia se justificaria e se fundamentaria como
passagem do mito ao lógos. O mito é o dito “mas de tal forma, que o dito neste mito não permita
nenhuma outra possibilidade de experiência que esta mesma do que se diz”325 nele mesmo, cuja forma
narrativa constitui outra lógica que lhe é própria e pede a presença de um ouvinte. Em forma narrativa,
algo acontece no ouvinte, o que difere com a leitura de um documentário técnico-informativo, por
exemplo.
Como muitos filósofos, Heidegger – em Ser e Tempo, § 42 – retomou a dimensão do mito. Para
mostrar o que compreendia por “cura (cuidado)” e explicitar seu “projeto filosófico”, utilizou-se da
fábula de Higino326. Não poucos pensadores retomaram e refletiram sobre o mito de Hermes.
Presentemente, I. Calvino apresentou Hermes com as seguintes características: “Mercúrio, de pés alados,
leve e aéreo, hábil e ágil, flexível e desenvolto, estabelece relações entre os deuses e entre os deuses e
homens, entre as leis universais e os casos particulares, entre as forças da natureza e as formas de cultura,
entre todos os objetos do mundo e todos os seres pensantes”327. Com esse mito podemos justificar a
existência de diferentes níveis, realidades distinguíveis, contestando assim certa falta de distinção entre
níveis de conhecimento realizada por Gadamer, que elevou ao patamar de absolutidade o nível prático de
conhecimento ancorado na phrônesis aristotélica.
Vejamos o mito de Hermes, seu nascimento, sua representação, suas funções e características,
não arqueológica ou cronologicamente, mas do ponto de vista da constituição da experiência enquanto
saber filosófico. Trataremos de apresentá-lo não como uma estratégia incontestável – porque divina,
“transcendental” – de fundamentação da metodologia hermenêutica, mas por remeter à experiência
filosófica que amplia a circunscrição da experiência de cunho científico.
Na hermenêutica contemporânea, “Hermes é o deus do sentido, porquanto põe em comunicação
e correlação os diferentes níveis de uma realidade aberta por seu verbo alado”328, porque concebe
relacionalmente duas realidades não antagônicas nem excludentes, apontando e revelando uma “terceira
margem”329, que denominamos, com Schelling, das Unvordenkliche.
Na tentativa de apresentar a origem mítico-etimológica da hermenêutica, poderemos podar o
potencial criador do mito de Hermes e cometer uma espécie de contradição, uma vez que o mito, muito
mais que ser objetificado, deveria ser narrado. Assumimos os riscos de escrever sobre o mito, sobre a
hermenêutica, conscientes e que não podem ser esgotados nem açambarcados num conceito claro e
acabado.
Assim, o termo hermenêutica pode ser ancorado no mito grego, mais especificamente em Hermes
(em grego Ερµῆζ; em latim Mercurius). O vocábulo ἑἰρµηνευτική (τέχνη) encontra-se pela primeira vez
em Platão, e o conceito de hermenêutica encontra-se pela primeira vez como título de livro em J. D.
Dannhauer no ano de 1654330.
Narra-se que Hermes nasceu num dia 4 numa caverna do monte Cilene, ao sul da Arcádia.
Conta o mito que, “apesar de enfaixado e colocado no vão de um salgueiro, árvore sagrada, símbolo da
fecundidade e da imortalidade, o que traduz, de saída, um rito iniciático, o menino revelou-se de uma
precocidade extraordinária. No mesmo dia em que veio à luz, desligou-se das faixas, demonstração clara
de seu poder de ligar e desligar...”331.
Hermes, ainda recém-nascido, roubou parte de um rebanho de Apolo e escondeu-o numa gruta;
à saída desta, encontrou uma tartaruga, que matou, e com a carapaça e tripas desta fez a primeira lira.
Contudo, Apolo, o deus mântico, descobriu o paradeiro de Hermes e acusou-o perante sua mãe, que
negou o roubo do rebanho de gado, pois ele era apenas um recém-nascido. Apolo acusou o pai de
Hermes, que interroga o filho, que se defende e nega o furto. Então ele foi “obrigado a prometer que
nunca mais faltaria com a verdade. Hermes concordou, acrescentando, porém, que não estaria obrigado a
dizer a verdade por inteiro”332.
Teágenes sustentava, e foi o primeiro a fazê-lo, que “para Homero os deuses Apolo, Hélio,
Hefesto, Possêidon, Ártemis, Hera, Atená, Ares, Afrodite e Hermes não eram mais que outras maneiras
de nomear ao fogo (os três primeiros), à água (Possêidon), à lua (Ártemis), ao ar (Hera), à inteligência
(Atená), à estultice (Ares), ao desejo (Afrodite) e à linguagem (Hermes)”333 (grifo nosso). Quanto ao mito
da fabricação da mulher, como castigo que teria de substituir a privação do fogo, por ordem de Zeus, foi
Hermes quem lhe pôs o nome de Pandora. Como deus da linguagem, ele podia nomear as coisas, as
pessoas, o que justifica a relação intrínseca entre hermenêutica e linguagem.
Hermes é uma divindade complexa, com múltiplos atributos e funções. Parece ter sido
inicialmente um deus agrário, protetor de pastores, sendo representado também com um carneiro sobre
os ombros. Enquanto “deus do trânsito, da mobilidade e alteridade assumida, Hermes aparece como um ser
desgarrado, sem personalidade própria nem forma definida”334, sem uma identidade clara acabada. Ele
“tinha sua imagem colocada nas encruzilhadas, local de orientação, sob a forma de colunata, encimada da
cabeça do deus. A essas colunatas ou pilares se dava o nome de ἒρµατα, ‘apoio, cipo, coluna’, a que
parece prender-se o nome Hermes”335. É apresentado também com um chapéu, com sandálias providas de
asas e segurando um caduceu ou vara de ouro. O “rosto triplo ou quádruplo do deus permite-lhe
precisamente controlar todas as direções do espaço de uma só vez”336.
A ele se atribui a invenção da flauta de Pã, que Apolo desejou e em troca da qual lhe deu seu
cajado de ouro e lições de adivinhação, aperfeiçoando sua arte divinatória. Atribui-se-lhe também “a
invenção da palavra e das línguas bem como da lira, do fogo, e da flauta, hábil em toda classe de furtos e
enganos, protetor dos mentirosos e ladrões (...), psicopompo ou condutor das almas ao Inferno,
patrocinador do comércio”337.
Na Ilíada, vendo o alquebrado Príamo ser conduzido por Hermes através do acampamento
aqueu, Zeus exclamou comovido: “Hermes, tua mais agradável tarefa é ser o companheiro do homem;
ouves a quem estimas”; na Odisseia, Homero ressaltou: “Hermes, mensageiro, filho de Zeus, é o
distribuidor de bens”, que se tornou, juntamente com Dionísio, o “menos olímpico dos imortais”338, o
mais próximo dos homens, atenuando a separação e estabelecendo uma estreita relação entre esses e os
deuses. Hermes atendia tanto o desejo dos deuses quanto o dos homens. Vendeu Hércules como escravo,
a pedido de Zeus, por haver roubado e assassinado um hóspede em sua própria casa; salvou Ulisses do
feitiço que Circe lhe lançara.
Hermes “regia as estradas, porque andava com incrível velocidade pelo fato de usar sandálias de
ouro, e, se não se perdia na noite, era porque, ‘dominando as trevas’, conhecia perfeitamente o roteiro. (...)
conhecedor dos caminhos e de suas encruzilhadas, não se perdendo nas trevas, sobretudo podendo
circular nos três níveis...”339, entre o telúrico e o ctônico. É importante salientar a relação que Hermes tem
com o mundo dos homens, “um mundo por definição ‘aberto’, que está em permanente construção, isto é,
sendo melhorado e superado”340, como interpreta Mircea Eliade.
É-nos familiar a tarefa de Hermes como intérprete da vontade dos deuses:

Após o dilúvio, foi o portador da palavra divina a Deucalião, para anunciar que Zeus estava pronto a conceder-lhe a satisfação
de um desejo. Por intermédio dele, o consumado músico Anfião recebeu a lira, Héracles a espada, Perseu o capacete de Hades.
(...) Por ordem expressa de Zeus, cumpriu a ingrata missão de levar a Prometeu, aguilhoado a uma penedia, o ultimatum, para
que revelasse o grande segredo que tanto preocupava o pai dos deuses e dos homens. A ele coube, igualmente, a gratíssima
tarefa de conduzir Psiqué para o Olimpo, a fim de que se casasse com Eros341.

Hermes recebeu de Apolo o caduceu e lições de mântica. De acordo com J. P. Vernant, o


processo oracular – o que nos remete à explicitação do jogo cultual – ocorre da seguinte maneira: o
consultante entra na Ágora, ao cair da noite, dirige-se à lareira, queima incenso, enche as lamparinas de
óleo, acende-as. Deposita então sobre o altar de Héstia uma moeda da região, e só “então ele se volta para
Hermes e diz ao ouvido do deus a pergunta que deseja fazer. Depois, tapa as orelhas com as mãos e,
nesta posição, vai andando até sair do local. Logo que ultrapassa o períbolo e chega fora, retira suas mãos
das orelhas, e a primeira voz que ouvir em seu caminho fornece-lhe a resposta do deus”342. São
fundamentais os aspectos da mobilidade de Hermes, com rosto triplo ou quádruplo; e quem dirige uma
pergunta ao deus da linguagem, ouvindo sua resposta, descobre-se:

1. pelo próprio movimento do consulente que deve se pôr em marcha para conhecê-la, 2. no momento em que, deixando o
recinto da Ágora, ele chega ao espaço exterior, 3. no fato de apanhar no ar uma voz – esta φωνή móvel, ligeira, intangível –, a voz
da primeira pessoa que o acaso fez com que cruzasse seu caminho, 4. na distância que o oráculo estabelece entre a questão, posta
no centro da Ágora, como é deposta no centro, para sempre permanecer aí, o preço da consulta, e a resposta que o deus dá a
conhecer fora, em um outro espaço que aquele onde se ergue sua própria imagem343.

Um dos aspectos mais relevantes dessa experiência oracular é a atitude do consulente de se pôr à
disposição para ouvir – fora do seu santuário – o que Hermes quer lhe comunicar. Justificaremos mais
adiante que o ouvir é a condição sine qua non da hermenêutica filosófica, presente ab initio na filosofia.
Diferentemente dos demais deuses que vivem no além, Hermes é um deus próximo dos homens.
Aristófanes vê nele o mais amigo dos homens. Habitando na terra dos mortais, ele se concebe como um
mensageiro, como um viajante que vem de longe e que possui pressa para partir. Nele não há nada fixo,
estável, permanente, circunscrito, fechado. Ele representa, no espaço e no mundo humano, o movimento,
a passagem, a mudança de estado, as transições, os contatos entre elementos estranhos. Na casa, o seu
lugar é junto da porta, protegendo a soleira, é aquele para quem não existe nem fechadura, nem cerca,
nem fronteira344. No Hino a Hermes ele se revela como o “passa-muros” resvalando obliquamente através
da fechadura,

semelhante à brisa de outono, como um ‘nevoeiro’. Presente diante das portas ele reside também na entrada das cidades, nas
fronteiras dos Estados, nas encruzilhadas, ao longo das pistas, sinalizando o caminho. Embora presente no meio dos homens,
Hermes não se fixa em nenhum lugar, aparece e desaparece repentinamente (...) ‘Ele usa o capacete de Hades’ que o torna
invisível, as sandálias aladas, que anulam as distâncias, e uma varinha de mágico que transforma tudo o que toca. É também
aquilo que não se pode nem prever nem reter, o fortuito, a boa ou a má sorte, o encontro inesperado345.

Percebemos, na etimologia da hermenêutica, a circularidade que estava desde sempre presente


no modo de agir e proceder de Hermes. Mesmo que não haja um fundamento, por assim dizer científico,
a reapropriação dessa suposta origem etimológica da hermenêutica no deus Hermes faz sentido e dá
muito o que pensar, uma vez que ambos não possuem uma identidade unívoca, fixa. Como o Ser,
expressam-se de diferentes modos e possuem inúmeros e distintos atributos. Ambos remetem ao plano
metafísico sem se desvencilhar do empírico. A mobilidade de Hermes, assim como a do jogo, constitui
um traço fundamental da metodologia hermenêutica.

O círculo hermenêutico como metodologia hermenêutica

Abordaremos a fundamentação do círculo hermenêutico sob dois pontos de vista, a saber: o


histórico e suas dimensões fundamentais.

Aspectos da história do círculo hermenêutico


Enquanto metodologia, o círculo hermenêutico difere da mera tautologia, em tudo diferente do
esforço de “querer retirar-se do poço pelos próprios cabelos”. Fundamental é que “uma pesquisa
hermenêutica sobre hermenêutica deve estar consciente, desde o começo, de seu método, isto é, seu
caminho; uma pesquisa sobre o círculo hermenêutico deve estar consciente da provisoriedade de sua
determinação no curso da pesquisa histórica”346.
E. Coreth considera o círculo hermenêutico como uma das quatro estruturas da compreensão ao
lado da estrutura de horizonte347, da estrutura de diálogo348 e da estrutura da mediação349. Nossa posição é que
o círculo hermenêutico não se restringe à estrutura da compreensão, mas se constitui em estrutura do
filosofar como um todo.
O saber filosófico não consiste numa simples anamnese, adequação ou experimentação e
confirmação de ideias. O modelo estrutural do círculo constitui um caminho de filosofar presente desde
os primeiros passos da filosofia. Heráclito atesta isso em sua afirmação “comum no círculo é o princípio e
o fim”350; entre o que procuramos saber e o que já sabemos ocorre uma circularidade. Mesmo que não
tenha falado em círculo, encontramos em Sócrates uma prática circular entre o perguntar e o responder,
entre o saber e o não saber.
Contudo, ninguém antes de F. Asts representou de maneira tão clara e terminante a essência do
círculo hermenêutico. Até então não se havia formulado o conceito de modo tão expressivo como ele, cuja
lei fundamental do compreender e do conhecer – mormente em relação aos textos clássicos antigos e aos
escritos sagrados – se institui “(...) ‘a partir do particular encontrar o Espírito do todo e através do todo
compreender o particular...’”351.
F. Schleiermacher desenvolveu a hermenêutica como uma técnica universal de compreender,
uma doutrina com regras e normas, com as quais se poderia interpretar toda espécie de textos – inclusive
de autores contemporâneos – e toda forma de comunicação linguística. A interpretação consiste em
reconstruir a unidade do geral e do particular por meio de dois métodos fundamentais: “o ‘divinatório’ e
o ‘comparativo’, a serem aplicados tanto na interpretação gramatical como também na técnico-
psicológica”; dessa maneira, “o círculo metodológico dos modos de reconstrução divinatório e
comparativo deságua na relação do geral e do particular, ou seja, do todo e da parte”352. Em
Schleiermacher a compreensão da parte, que se dá apenas a partir do todo e vice-versa, tem como
pressuposto o todo, o que dilui a noção de círculo vicioso.

Dimensões constitutivas do círculo hermenêutico


As dimensões constitutivas do círculo impossibilitam reduzi-lo a vicioso ou aplicável apenas à
interpretação de textos. Ele constitui autêntica metodologia filosófica, para além da “força de atração de
uma mitologia”353.
De Schleiermacher a Heidegger, “concebera-se a estrutura circular entre o particular e o todo
somente como relação entre o conteúdo ‘objetivo’ de sentido e suas relações de sentido num contexto
igualmente ‘objetivo’”354. Em Ser e Tempo, Heidegger traçou um novo caminho para a filosofia: a
hermenêutica do estar-aí, que acontece e se explicita pelo círculo hermenêutico. Este não é mais
compreendido “só como um círculo intratextual do compreender, mas como uma forma de realização do
Dasein mesmo”355; logo, é ontológico.
O círculo hermenêutico deixa de ser simplesmente epistemológico (como uma técnica universal
de compreensão do sentido) e passa a ser ontológico (como o modo de constituir o sentido, modo de ser
do Dasein). Heidegger introduziu no círculo hermenêutico o sujeito que compreende, que “toma sempre
consigo o todo de seu mundo, a partir do qual realiza a projeção do sentido e no qual se abre o conteúdo
individual em seu sentido”356. Do ponto de vista ontológico, com o círculo hermenêutico, toda
compreensão é autocompreensão, todo autêntico ato filosófico é autoimplicativo.
Gadamer desenvolveu a noção de círculo hermenêutico, fundamentalmente, para combater a
ingenuidade do historicismo e mostrou como se deveria compreender verdadeiramente a ciência da
história – não como ciência no sentido moderno, mas como um acontecimento, como uma experiência.
Tratava-se de como, “uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a
hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão”357.
A regra hermenêutica, proveniente da Arte Retórica, de que o todo deve entender-se a partir do
individual e o individual a partir do todo, constitui um movimento circular. Nessa experiência, “o
movimento da compreensão acontece, assim, do todo à parte e de novo ao todo. A tarefa é ampliar em
círculos concêntricos a unidade do sentido compreendido”358.
A tarefa da hermenêutica não consiste em chegar a uma “comunhão misteriosa das almas”.
Como é impossível chegar à esfera anímica do autor, ela procura criar um acordo que não existia ou era
incorreto, ou simplesmente explicitar o que está acontecendo enquanto procuramos filosofar.
Schleiermacher ficou preso ao metodologismo hermenêutico, preocupou-se mais com a tarefa de extrair o
significado apreensível e explicável pelo círculo hermenêutico do que com a experiência do sentido que o
círculo faculta.
Heidegger e Gadamer, preocupados com as condições de possibilidade e com o acontecer do
sentido – não apenas com as condições de possibilidade do conhecimento –, conceberam o círculo
hermenêutico ontologicamente. Desde então ele não pode mais ser considerado como um meio para
chegar a um fim, um instrumento do conhecimento, tout court. É ontológico porque o sujeito está sempre
implicado no ato de conhecer e de pensar.
O conhecimento científico pode ser vicioso ao apenas pretender confirmar suas hipóteses, ao
passo que o saber filosófico é aberto, e, mais que confirmar ou rejeitar hipóteses, pretende conhecer o que
é mais originário, mais fundamental, mais universal.
A compreensão – e o filosofar – “correta deve guardar-se da arbitrariedade das ocorrências e da
limitação dos hábitos mentais inadvertidos, e se fixar ‘nas coisas mesmas’”359. Esse reger-se pela coisa
mesma é a tarefa primeira, permanente e última da filosofia, necessária para percorrer ou evitar os
desvios que espreitam constantemente o filósofo. Ao filosofarmos, temos ou elaboramos sempre um
projeto, antecipando um sentido do conjunto, o que se aplica ao dialogarmos ou ao lermos um texto.
Simultaneamente, circularmente, o projeto que temos ou elaboramos se torna visível. Por isso, nossos
projetos devem ser sempre revistos e reformulados, e nunca nos devemos dar por satisfeitos com eles.
O círculo hermenêutico pode ser concebido como um enquanto instaurador de sentido, pois cada
revisão do projeto pode desembocar em um novo projeto de sentido, onde outros projetos em questão
“podem contribuir conjuntamente a uma reelaboração até fixar com mais clareza a unidade do
sentido”360, onde, na interpretação que se inicia com pré-conceitos, estes são substituídos por conceitos
mais adequados. O filósofo está exposto a confundir-se pelas opiniões prévias e, por esse motivo, é um
dever permanente do filósofo elaborar “esquemas corretos e adequados”, isto é, confrontar suas opiniões
com as coisas mesmas, o que atesta o vínculo e interdependência necessária entre fenomenologia e
hermenêutica. Concebemos assim o método filosófico não como abordagem do real a partir dos pré-
juízos, mas, antes, como aquele que nos põe à prova, exigindo argumentos acerca da origem e validez do
que procuramos fundamentar.
Ao ouvir alguém ou realizar uma leitura, não se trata apenas de não levar em conta os próprios
pré-juízos sobre o conteúdo ou negar suas próprias opiniões, mas estar aberto à opinião do outro ou do
texto, o que implica relacioná-los com os próprios juízos ou opiniões. É fundamental que “uma
consciência formada hermeneuticamente deve estar disposta a acolher a alteridade do texto. Porém tal
receptividade não supõe a ‘neutralidade’ nem a autocensura, mas implica a apropriação seletiva das
próprias opiniões e prejuízos”361. Texto aqui não deve ser compreendido em sentido estrito como o
escrito, mas como aquilo que possibilita uma reflexão filosófica. No círculo hermenêutico, “uma
compreensão guiada por uma intenção metodológica não buscará confirmar simplesmente suas
antecipações, senão que tentará tomar consciência delas para controlá-las e obter assim a reta
compreensão a partir das coisas mesmas”362. Em outras palavras, o caminho filosófico faz-se
circularmente entre objetividade e subjetividade, formulado na expressão heraclitiana “o caminho que
sobe é o mesmo que desce”.
Considerando o movimento circular entre as polaridades parte e todo, linguagem e coisa, sujeito
363
e objeto , concluímos que o círculo hermenêutico não pode se restringir à interpretação dos textos, mas
se estende e se mostra como uma metodologia própria do filosofar.
O círculo hermenêutico em Schleiermacher, culminando no ato divinatório, teria um término e
se consumaria no momento em que o intérprete acessasse e extraísse o sentido (que o próprio autor
desconhece) subjacente ao texto. Na concepção de Heidegger e Gadamer, há uma circularidade “eterna”,
uma inesgotabilidade de sentido, pois todo ato filosófico está determinado permanentemente pelo
movimento antecipatório da pré-compreensão. Nossa tarefa consiste em “descobrir as próprias
prevenções e preconceitos e realizar a compreensão a partir da consciência histórica, de forma que
detectar o historicamente diferente e a aplicação dos métodos históricos não se limitem a uma
confirmação das próprias hipóteses ou antecipações”364. A mera confirmação das próprias hipóteses com
relação aos textos e ao outro, denominamos de círculo vicioso.
Gadamer esteve às voltas, fundamentalmente, com a ingenuidade do historicismo, e a estrutura
circular concêntrica mostra a fraqueza deste. Sua pretensão não foi propriamente definir a identidade do
círculo hermenêutico, mas explicitar que há um círculo entre quem compreende e o que é compreendido.
Heidegger, ao mostrar que o círculo hermenêutico é um modo de ser do Dasein, foi mais radical e
coerente em termos filosóficos do que Gadamer, que se limitou a explicitá-lo como o processo que se dá
entre a tradição e sua apropriação, entre o texto e seu intérprete.
Do ponto de vista do círculo hermenêutico temos como implicação o fato de que não existe uma
interpretação única, última e definitiva de um texto, como também não há um ponto final no filosofar,
porque somos finitos e com desejo infinito pela sofia que possuímos. O círculo hermenêutico elucida
muito bem esse processo filosófico. A sugestão de P. Lorenzen365 e de W. Stegmüller366 foi de substituir a
imagem de círculo pela de espiral. Mas, para evitar mal-entendidos, em vez de falarmos de círculo vicioso
– evocando a ideia do retorno eterno –, talvez seja melhor falarmos em círculo concêntrico aberto. Ora,
“uma pesquisa hermenêutica sobre o círculo hermenêutico deve ser aberta a outros caminhos, que podem
alcançar o fim, a simples razão e assim conduzi-lo novamente ao início, à gênese do problema como
problema”367, assim como “comum no círculo é o princípio e o fim”. A compreensão “se move numa
dialética entre a pré-compreensão e a compreensão da coisa, em um acontecimento que progride
circularmente, ou melhor, em forma de espiral, na medida em que um elemento pressupõe o outro e ao
mesmo tempo faz com que ele vá adiante; um medeia o outro, mas continua a determinar-se por ele”368.
Como toda metáfora tem suas limitações, a imagem dos círculos concêntricos, que amplia e funde
horizontes, parece ser mais apropriada que a imagem da espiral.
É possível falar ou escrever sobre essa circularidade como o enquanto da hermenêutica, uma vez
que ela só existe no tempo e no espaço. Quem empreende a tarefa filosófica está vinculado à coisa
transmitida e mantém ou adquire um nexo com a tradição. A consciência hermenêutica sabe que essa
pertença, essa ligação à coisa, não é uma coincidência óbvia. Acontece na polaridade entre familiaridade e
estranheza, proximidade e distância, na qual se baseia a tarefa filosófica. Nessa circularidade, o sentido
acontece e é explicitado, não extraído simplesmente, interessando, nessa procura, mais a busca do saber
que o encontro final de algo, mais a pergunta que abre novas possibilidades de conhecer e de pensar que
a resposta. A metodologia filosófica acontece circularmente onde “o posto entre estranheza e
familiaridade, que ocupa para nós a tradição, é, pois, o inter entre a objetividade distante contemplada na
história e a pertença a uma tradição. Nesse inter está o verdadeiro lugar da hermenêutica”369, inter
constituído pela relação tensional entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem, inter
que chamaremos e desenvolveremos como enquanto.

Círculo hermenêutico, o enquanto da hermenêutica

O enquanto no mito de Hermes


Ao nascer, Hermes desligou-se das faixas que o prendiam, o que revela seu poder de ligar e
desligar. Enquanto metodologia, o círculo hermenêutico estabelece a ligação entre a pré-compreensão e a
compreensão, o singular e o todo, indo e vindo de uma à outra margem, constituindo a “terceira margem
do rio”, que denominamos de enquanto filosófico.
Hermes, deus da linguagem, é considerado o criador da palavra e das línguas. Ora, a
hermenêutica tem a linguagem como seu medium (Mitte) – centro – universal em movimento, um
enquanto temporal e espacial. A linguagem, além de ser condição, caminho, é instauradora de sentido, e
extrapola a simples possibilidade para descrever as coisas.
O fato de Hermes não se ver obrigado a dizer a “verdade por inteiro” constitui uma dimensão
da hermenêutica, enquanto institui a impossibilidade de esgotar as respostas à pergunta “o que é a
verdade?”. Já no mito de Hermes, apontam-se a impossibilidade de identificar a certeza com a verdade e
de expressá-la por “inteiro”.
A identidade de Hermes, complexa, com muitos atributos, faces e funções, com seu rosto triplo
ou quádruplo, não se delimita numa definição. Esta mesma dificuldade encontramos com relação ao
círculo hermenêutico. Ora, essa dimensão – tanto com relação a Hermes quanto em relação à
Hermenêutica – é expremível pelo termo enquanto, que institui uma ponte entre o dito e o não dito, entre
a pré-compreensão e a compreensão, entre o sujeito e o objeto, entre o empírico e o transcendental. Ora, é
por isso mesmo que as obras que tratam da hermenêutica intitulam-se assim: traços fundamentais...,
questões fundamentais..., aproximações... hermenêuticas.
A dimensão mais conhecida da relação entre a hermenêutica e Hermes é a que se refere à tarefa
desse deus, isto é, ser o intérprete, o transmissor da vontade dos deuses para os mortais. O termo alemão
übersetzen, “levar de uma margem à outra...”, traduz muito bem essa atitude de transportar de um lado
para o outro que denominamos de enquanto hermenêutico.
Hermes representa o exterior, a abertura, a mobilidade, a ligação entre os deuses e os homens.
Não há fechadura que resista à sua entrada. Apresentado à porta das casas, ele representa a circularidade
concêntrica filosófica que não estanca a emergência, a explicitação e a instauração do sentido. O círculo
hermenêutico pressupõe e efetiva-se também enquanto a abertura fundamental à coisa, às pessoas.
Sendo aquele que não se pode prever onde estará nem reter, Hermes, como um “ser desgarrado,
fragmentário, sem personalidade própria e definida”370, representa muito bem a hermenêutica, que não
retém o acontecer e o experienciar do conhecimento. Na circularidade hermenêutica ocorre uma
experiência que é sempre única, irrepetível e que, não cabendo em conceitos, não pode ser estancada,
voluntária ou racionalmente, assumindo a forma de enquanto.

O enquanto do círculo hermenêutico


Gadamer mostrou que, para Heidegger, o aspecto fundamental da compreensão, “o que é
expressamente compreendido, tem a estrutura de alguma-coisa-como-alguma-coisa”, designando-a
estrutura-como. A estrutura “como” pertence à “constituição existencial a priori da compreensão”371. Nós
preferimos utilizar a expressão enquanto – termo que indica movimento, inapreensibilidade, sem um
ponto fixo, onde princípio e fim implicam-se e, por outro lado, apontam um algo ainda não dito a se
dizer. O enquanto, o Zwischen, entre o dito e o não dito possui tanto a conotação de tempo (devir) quanto
de essência (ser), isto é, tanto de provisório quanto de intermediário, sem repouso, por um lado, e
definitivo, por outro.
Há uma compreensão originária que precede toda dualidade entre esclarecer e compreender,
que possibilita o filosofar. Do ponto de vista heideggeriano, a estrutura-como não se refere apenas ao
enunciado explícito, do dito, mas ao que o precede, como o não dito. E “essa estrutura se funda na
finitude essencial do conhecimento e compreensão humanos”372. O círculo hermenêutico – assim como o
jogo e a dialética dialógica – é o enquanto filosófico, uma das formas de expressar e explicitar a estrutura
da hermenêutica filosófica.
Com o modelo estrutural do círculo hermenêutico é possível superar a clássica dicotomia entre
explicar e compreender ou interpretar e compreender, uma vez que ele mostra que há uma compreensão
originária, anterior ao momento temático, que denominamos de ontológico – que o círculo hermenêutico
permite explicitar, e que mostra a impossibilidade do retorno ao ponto inicial, à Ítaca, ileso das marcas do
tempo e do espaço. A esquizofrenia filosófica sujeito-objeto não é resolvida pela eliminação ou
supremacia de um dos polos, mas pelo reconhecimento da existência e constituição de ambos tensional e
circularmente – o que se corporifica no termo enquanto.
O círculo é vicioso quando pretende provar o que pressupõe e não tematiza seus próprios
pressupostos. As provas científicas, apresentando uma hipótese, pretendem provar um pressuposto não
posto, que, após ser comprovado, converte-se em tese, e assim se justifica como ciência. Nesse caso, toda
interpretação e experiência histórica são banidas.
Conceber o círculo viciosamente, como uma imperfeição, significa não compreendê-lo
filosoficamente. Por isso, entrar de maneira correta nele significa mostrar os próprios pressupostos,
explicitando a compreensão de si e de mundo que carregamos, que é anterior ao conhecimento
tematizado, ao dito, à ciência.
Tachar o círculo como vicioso significa vê-lo unilateralmente, pois a pré-compreensão é
condição, não empecilho, do filosofar. Toda nova compreensão é inserida em nosso mundo
compreensivo, enriquecendo e aprofundando nossa pré-compreensão. Esta é “por essência ‘aberta’ e, por
conseguinte, deve ser mantida aberta para uma compreensão também daquilo que não está indicado pela
pré-compreensão anterior, não podendo ser esperado nem previsto a partir dela, e que forçosamente não
se insere nela, mas a arrebenta e assim a amplia, abrindo novos horizontes”373. Trata-se de um círculo
aberto em que ocorre uma fusão de horizontes, concentricamente.
Na lógica, o círculo vicioso ocorre quando se pressupõe o que deve ser provado ou quando o
pressuposto, o “donde” da prova, permanece pressuposto, sem que tenha sido supresso ou posto em
questão, sendo que nele é que se baseia o valor do resultado. Já no círculo hermenêutico, a pré-
compreensão constitui-se numa via de acesso à coisa, à totalidade, quando posta em questão. Não há uma
derivação lógica da compreensão da coisa a partir da pré-compreensão, mas ela se funda no mostrar-se
da coisa mesma. Decorre disso que a pré-compreensão não é a pressuposição lógica de um pensamento
demonstrativo, mas sim condição da possibilidade da compreensão que abre e instaura o sentido.

Aqui não há nenhum círculo lógico, mas apenas um círculo – hermenêutico – de estrutura completamente diversa. Além disso,
estritamente falando, não é um círculo no sentido de uma circunferência que se fecha em si mesma, mas antes – para permanecer
na imagem – um acontecimento em espiral, na qual um elemento continua dialeticamente a se determinar e formar no outro374,

sem um fim ou finalidade predeterminados. Diferentemente do círculo vicioso, o autêntico ato filosófico é
enriquecido e aprofundado pela constante busca do saber que, extrapolando o projeto de confirmar ou
descartar hipóteses, possibilita uma compreensão mais plena e universal.
Se, por um lado, Gadamer quis evidenciar, com mérito, a circularidade envolvida no processo de
conhecimento histórico – e conseguiu muito bem mostrar a ingênua pretensão do historicismo –, por
outro lado, estreitou seu sentido. Isto é, utilizou-o mais para mostrar a fraqueza do historicismo que para
justificá-lo como estrutura, como enquanto da hermenêutica filosófica. Ele fez algo similar com o “jogo
como fio condutor da explicação ontológica” para mostrar como se dá a experiência da arte, com o que
não é possível reduzir a hermenêutica a uma doutrina, arte ou corrente filosófica. A estrutura do jogo
representa não apenas um método explicativo de como ocorre a experiência da arte, mas constitui uma
estrutura aberta da hermenêutica filosófica.

Conclusões... A dificuldade para mostrar e afirmar a identidade da hermenêutica enquanto


experiência que se explicita pelo jogo e pelo círculo corporifica-se na imagem do fogo de artifício,
considerado “efêmero e enquanto divertimento vazio”375. Imagem brilhante que aparece e desaparece na
escuridão, sem a consistência dos objetos próprios das ciências. Hermes também aparece e desaparece, e,
à semelhança desse ínterim, desse Zwischen, desse inter, próprio da experiência hermenêutica, acontece o
saber filosófico apreensível parcialmente. Estamos, assim, um pouco mais adiante do que estávamos no
começo da nossa reflexão em nosso esforço para explicitar a identidade plurifacética da hermenêutica.
A face ambígua e relativa da hermenêutica é seu ‘tendão de Aquiles’ para quem se move apenas
no terreno da racionalidade apodíctica. Contudo, a atividade filosófica está às voltas não apenas com o
projeto, com o conceito, mas com a relação, enquanto diante do pré-projeto. Nesse sentido, a obra da
sabedoria humana, o filosofar, assemelha-se ao trabalho de Sísifo: reconhecer e constituir a identidade da
hermenêutica com seus múltiplos rostos significa assumir a filosofia como “uma possibilidade finita do
homem finito. O difícil e o mais importante para a hermenêutica filosófica é não preencher ou não
eliminar o espaço entre sujeito e objeto, entre pré-conceito e conceito, entre intérprete e texto, mas assumir
o movimento do ir e vir, do subir e descer, não teleologicamente predeterminado, isto é, um enquanto, que
é a possibilidade inesgotável da própria filosofia”376. Pensando assim, ela respeita e valoriza a
subjetividade humana, libertando-a da inexorabilidade fáctica ou histórica, da resignação cética ou
dogmática, potencializando-a para ser mais autêntica e feliz.
Por meio de nossa investigação mítico-etimológica e explicitação do círculo hermenêutico,
mostramos que a hermenêutica revela e é um modo de ser apropriado e coerente ao saber humano, uma
vez que a filosofia não trabalha diretamente com objetos, mas sobre a totalidade do sentido e as condições
de possibilidade dos enunciados verdadeiros e/ou falsos.
Considerando o círculo hermenêutico como o enquanto, não estariam os filósofos em busca de
algo que não existe, mesmo que esse algo receba o nome de sentido? O fato é que a hermenêutica
filosófica não é um conhecimento científico por não possuir um único objeto e método de análise. Talvez
um dos problemas da hermenêutica resida na dificuldade de separar, clara e distintamente, o que é
método e conteúdo, sujeito e objeto, forma e matéria, experiência e abstração..., embora nossa reflexão
consista em esclarecer e balizar melhor tais distinções. Nessa tarefa de ver com mais clareza, de ouvir com
mais acuidade, sempre estaremos às voltas com uma perfeição relativa, com uma totalidade não
totalitária.
Se, para os lógicos, a circularidade hermenêutica é viciosa e deve ser eliminada, para nós, ela
assume uma dimensão positiva e deve ser conservada, retificada e ampliada. O pré-conceito, a pré-
compreensão podem ser retificados, ratificados e/ou ampliados, e o processo filosófico comporta uma
circularidade inelutável que não é viciosa, porque não pretende esconder ou simplesmente confirmar os
pré-juízos e pré-concepções, mas trazê-los à luz, no confronto com o real (sujeito, mundo), corrigindo-os
e/ou alargando seus horizontes. Não é vicioso porque a hermenêutica não trata de problemas
estritamente lógicos, mas está às voltas com a totalidade de sentido da existência humana, das ciências.
Não é possível romper o círculo hermenêutico, pois no conhecimento não alcançamos um grau zero, nem
partimos de uma tabula rasa. Não se trata de rompê-lo, mas de valorizá-lo como condição e pressuposto
universal do filosofar mais fundamental e autêntico. A hermenêutica filosófica procura, pois, salvar a
singularidade, do autor, da tradição ou do leitor, o que não se trata de uma simples inclusão e diluição do
singular no universal.
Nosso livro constituiu-se na circularidade concêntrica entre nossas expectativas e as dos textos
num processo de reflexão e escritura. Nesse ainda não dito, nesse enquanto, é que nos movemos e nos
moveremos sempre. Nesse nível do não dito (ainda) é que podemos apresentar o que acontece.
A hermenêutica não exclui do seu campo de visão e de audição as ciências. Antes, reconhece-as
em sua validade, mostrando seus limites, seu estreitamento, ou também seus próprios pressupostos
ontológicos. Confessamos certa contradição pelo fato de havermos escrito ou pretendido escrever sobre a
possibilidade criativa e criadora do mito, sobre o enquanto não conceitual da hermenêutica filosófica,
assumimos essa postura limitada que procurou apontar para suas possibilidades mais originárias e
inesgotáveis. Movemo-nos no terreno do tematizado, e isto significa assumir nossa realidade finita, mas
aberta à multiplicidade de sentidos que ele nos possibilita. Talvez pudéssemos desenvolver o enquanto –
do deus Hermes, que vai e vem, sobe e desce – como representação do que a hermenêutica chamou de
sentido. Poderíamos desenvolver ainda o enquanto como objeto/conteúdo próprio da hermenêutica, como
o discurso, a linguagem autorreferencial que trabalha sempre com objetos já diluídos como objetos.
A metodologia hermenêutica constitui a estrutura própria da hermenêutica filosófica, que não
está posta antes nem a seu lado. Assim como a escada com que se sobe é a mesma com a qual se desce, ao
filosofarmos dizemos o mesmo recordando que “comum no círculo é o princípio e o fim”. Da totalidade
de sentido que buscamos assumimos sua busca, humano-finita, e, em círculos concêntricos, ampliamos
nossa compreensão e constituição do sentido, sem pretender partir de um fundamento inconcusso ou
chegar a um término absoluto.
Semelhante ao diálogo hermenêutico que está em curso, se subtrai a qualquer fixação, afirmamos
que o círculo hermenêutico, que está presente e constitui o filosofar, se subtrai, como Hermes – em eterno
movimento, sem moradia fixa –, a qualquer fixação, doutrina, corrente ou credo. Péssima é a
hermenêutica que pode ou pretende acabar com a circularidade do saber em nome de uma filosofia que
“crê que pode ou deve ficar com a última palavra”. A única constante é a infinitude do movimento. Nesse
jogo do devir, pelo hermeneutic turn, explicitamos a experiência enquanto princípio da hermenêutica
filosófica, que se mostra e se fundamenta coerentemente pelos modelos estruturais do jogo e do círculo
hermenêutico.
Considerando que no jogo e no círculo – enquanto caminhos da hermenêutica filosófica –
comum é a experiência como fim e, concomitantemente, como princípio, apontamos para uma dimensão
que ultrapassa a mera metodologia, com seus traços metafísicos e ontológicos. Trata-se da dimensão que
se consuma, de modo mais explícito, no diálogo enquanto linguagem, o que desenvolveremos a seguir.
210 Boss, G., “Jeu et Philosophie”. Revue de Métaphysique et de Morale, v. 84, n. 1, Janv.-Mars, 1979, p. 495.

211 Gauvin, J., “O discurso de filosofia sistemática – experiências de leitura e investigações de estrutura”, in: Sumpf, J. et alii, Filosofia da
linguagem. Coimbra: Almedina, 1973, p. 178. Compreendemos melhor tal pretensão lembrando a distinção: “o diretamente ontológico é
diretamente conceitual, isto é, mantém-se num tipo de referência unitária àquilo de que trata, ao passo que o discurso indiretamente ontológico,
muito embora deva, no fim de contas, ser objeto de inteligência conceitual, coordena, em vista desse tipo de referência unitária, outros tipos
de referência diferentes, que correspondam à invocação das diversas experiências que intende interpretar (...) Será, por conseguinte, una a
mira intencional do leitor do discurso diretamente ontológico, ao passo que a do leitor do discurso indiretamente ontológico deverá ser,
simultaneamente, una e múltipla – múltipla, para poder ter em conta a diversidade das experiências invocadas, una, na tentativa de captar o
seu jogo de coordenação, a fim de que no discurso, finalmente constituído como totalidade memorial, essa coordenação apareça, de facto,
como uma integração”.

212 Fink, E., Le Jeu comme Symbole du Monde. Paris: Minuit, 1966, p. 54.

213 Ver, p. ex., a questão do jogo em S. Freud em A criança e seus jogos, de A. Aberastury.

214 Huizinga, J., Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva Editora da USP, 1971, p. 3-4, remete a H. Zondervan, Het
Spel bij Dieren, Kinderen en Volwassen Menschen (Amsterdã, 1928) e F. J. J. Buytendijk, Het Spel van Mensch en Diet als openbaring van levensdriften
(Amsterdã, 1932).

215 Ibid., p. 10.

216 Fink, E., op. cit., p. 19.

217 Id., ibid., p. 20.

218 Wybrands, F., “Le jeu et la parole”, in: Haar, H., Heidegger, Paris: L’Herne, 1983, p. 278.

219 Fink, E., op. cit., p. 22.

220 Id., ibid., p. 228.

221 Axelos, K., Le jeu du Monde. Paris: Minuit, 1969, p. 444.

222 Fink, E., op. cit., p. 64.

223 Huizinga, op. cit., p. 5-6.

224 Fink, E., op. cit., p. 123.

225 Id., ibid., p. 172.

226 Em certas solenidades rituais, a menor infração pode invalidar tudo, inclusive “a tosse ou o riso são castigados com severas
penalidades”. Sobre isso ver H. Bergson, Le Rire.

227 Huizinga, J., op. cit., p. 64.

228 Id., ibid., p. 19.

229 Fink, E., op. cit., p. 151.

230 Id., ibid., p. 183.

231 Id., ibid., p. 132.

232 Id., ibid., p. 137.

233 Ibid., p. 183-184.

234 Huizinga, J., op. cit., p. 17. Segundo uma crença chinesa, “a música e a dança têm a finalidade de manter o mundo em seu devido curso e
obrigar a natureza a proteger o homem”.

235 Id., ibid., p. 18.

236 Platão, Leis, VII, 796 b, ap. Huizinga, J., op. cit., p. 22. Ver Romano Guardini, que mostra as íntimas relações existentes entre o jogo e os
mistérios no capítulo “Die Liturgie als Spiel” in Vom Geist der Liturgie, p. 56-70.

237 Fink, E., op. cit., p. 79.

238 Ibid., p. 80.

239 Huizinga, J., op. cit., p. 10-11.

240 Id., ibid., p. 11.

241 Ibid., p. 11-12.

242 Ibid., p. 12-13.


243 Ibid., p. 13.

244 Ibid., p. 13-14.

245 Sobre esse aspecto do jogo, entre outros, ver a obra de F. Dostoiévski, O jogador. Porto Alegre: L&PM, 2000.

246 Huizinga, F., op. cit., p. 15.

247 Ibid., p. 14.

248 Ibid., p. 16.

249 Ibid., p. 43.

250 Ibid., p. 51.

251 Ibid., p. 117.

252 Caillois, Jeux et les Hommes, ap. Boss, G., op. cit., p. 495.

253 Boss, G., op. cit., p. 495.

254 Huizinga, J., op. cit., p. 226.

255 Fink, E., op. cit., p. 32.

256 Ibid., p. 8-9.

257 Ibid., p. 14.

258 Ibid., p. 18.

259 Ibid., p. 8.

260 Boss, G., op. cit., p. 495.

261 Fink, E., op. cit., p. 12-13.

262 Boss, G., op. cit., p. 495.

263 Platão, Leis, II, 653, ap. Huizinga, J., op. cit., p. 178.

264 Boss, G., op. cit., p. 519.

265 Schiller, F., A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 84.

266 Suzuki, M., O belo como imperativo, in: Schiller, F., op. cit., p. 16-17.

267 Huizinga, J., op. cit., p. 233.

268 Id., ibid., p. 234.

269 Id., ibid., p. 152.

270 Byrum, C. S., “Philosophy as play”, Man and World, v. 8, p. 322, 1975.

271 Wybrands, F., “Le jeu et la parole”, in: Haar, H., Heidegger. Paris: L’Herne, 1983, p. 281.

272 Gadamer, H.G., VMI. GW1, p. 112.

273 Id., PhBe, p. 144.

274 Oliveira, M. A. de., op. cit., p. 132.

275 Schleiermacher, F., “2 – Hermenêutica. Introdução ao Compêndio de 1819”, ap. Dreher, L. H., O Método Teológico de Friedrich
Schleiermacher. SL: IEPG e Sinodal, 1995, p. 104.

276 Fahrenbach, H., op. cit., p. 53-54.

277 Gadamer, H. G., PhBe, p. 146.

278 Grondin, J., HW, p. 106.

279 Id., HW, p. 106-7.

280 “Spiel ist also letzten Endes Selbstdarstellung der Spielbewegung”. Gadamer, H.G., AkSch, p. 114.

281 Id., SpKu, p. 86-88.

282 Grondin, J., HW, p. 103.

283 Id., ibid.


284 Ibidem,

285 Kögler, H. H., Die Macht des Dialogs: kritische Hermeneutik nach Gadamer, Foucault und Rorty. Stuttgart: Metzler, 1992, p. 43.

286 Gadamer, H. G., VMII. GW 2, p. 5.

287 Id., SuIn, p. 99.

288 Grondin, J., HW, p. 104.

289 Gadamer, H.G., WM1. GW 1, 109.

290 Id., AkSch, p. 113.

291 Id., VMI, GW1, p. 107.

292 Id., ibid., p. 110.

293 Ibid., p. 115.

294 Ibid., p. 122.

295 Id., HeKF, p. 116.

296 Id., VMI, GW1, p. 108.

297 Id., ibid.

298 Ibid., p. 112.

299 Ibid., p. 112.

300 Kögler, H. H., op. cit., p. 46.

301 Id., ibid., p. 44.

302 Gadamer, H. G., AkSch, p. 119.

303 Id., VMI. GW1, p. 114.

304 Kögler, H.H., op. cit., p. 43-44.

305 Grondin, J., HW, p. 107.

306 Id., ibid., HW, p. 104.

307 Gadamer, VMI, GW1, p. 117.

308 Id., AkSch, p. 137.

309 Gadamer, H.-G., VMI. GW1, p. 113-114.

310 Do ponto de vista literário essa reflexão foi genialmente desenvolvida por J. Guimarães Rosa no conto “O Espelho” e por Machado de
Assis em “O Espelho”. Id., SpKu, p. 92.

311 Id., ibid., p. 93.

312 Byrum, C. S., op. cit., p. 323.

313 Id., ibid., p. 326.

314 Gadamer, H.-G, VMI (cf. trad. espanhola), p. 642.

315 Garcia-Roza, L. A., Palavra e Verdade. RJ: Jorge Zahar, 1990, p. 20.

316 Gadamer, H.-G., Estética y Hermenéutica. Madrid: Tecnos, 1996, p. 62.

317 “Die Philosophie hat von da ihren Namen: Sie ist nicht sophía, wissendes Verfügen überetwas, sondern Streben nach ihr. Als solche ist sie
die höchste Möglichkeit des Menschen”. Id., W 5, p. 7.

318 Berti, E., Le ragioni di Aristotele. Roma-Bari: Laterza, 1989.

319 Heráclito, Diels-Kranz, 22 B 103, ap. Reale, G., História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1993, v. I, p. 66.

320 Schnädelbach, H., Die Sprengung des hermeneutischen Zirkels. “Philosophische Rundschau”, Tübingen, v. 35, n. 1/2, p. 41 e 42, 1988.

321 Stegmüller, W., “Der sogenannte Zirkel des Verstehens”, p. 64.

322 Id., ibid., p. 71.

323 A propósito disso ver Horkheimer, M., e Adorno, T. Dialética do Esclarecimento. RJ: Jorge Zahar, 1985.
324 Gadamer afirmou, p. ex: “Im Zeiltalter der Wissenschaft, in dem wir leben, hat der Mythos und hat das Mythische kein wahres
Heimatrecht...”. MiLo, p. 171.

325 Gadamer, H. G., MiVe, p. 165.

326 Heidegger, M., Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1993, p. 197-198.

327 Calvino, I., Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. SP: Companhia das Letras, 1998, p. 64. Antes dessa afirmação, Italo
confessa que rende um tributo especial ao deus do Olimpo, Hermes-Mercúrio, “o deus da comunicação e das mediações, que sob o nome de
Toth inventou a escrita, e que, segundo nos informa Jung em seus estudos sobre a simbologia alquímica, representa, como ‘espírito
Mercúrio’, também o principium individuationis”.

328 Ortiz-Osés, A., “El sentido, lo sublime y lo sublimal”, in: El Retorno de Hermes: Hermenéutica y ciencias humanas, Alain Verjat (Ed.),
Barcelona: Antropos, 1989, p. 164.

329 Rosa, J. G., “A Terceira Margem do Rio”, in: Primeiras Estórias, 6. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, INL, 1972.

330 Ebeling, G., “Hermeneutik”, in: Enc. Religion in Geschichte und Gegenwart, 3. ed., vol. 3, p. 243. O diálogo platônico em questão é: Epínomis,
975c.

331 Brandão, J. de S., Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1986, v. II, p. 191.

332 Id., ibid., p. 192.

333 Elvira, A. R. de, op. cit., p. 15.

334 Garagalza, L., La Interpretación de los símbolos: hermenêutica y Lenguaje en la filosofia actual. Barcelona: Anthropos, 1990, p. 116.

335 Brandão, J. de S., op. cit., p. 191.

336 Vernant, J. P., Mito e Pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 153, nota 12.

337 Antonio Ruiz, op. cit., p. 89-90.

338 Brandão, J. de S., op. cit., p. 193. Na Ilíada, c. XXIV, 334 e na Odisseia, c. VIII, 335.

339 Id., ibid., p. 193-194.

340 Eliade, M., ap. Brandão, J. de S., op. cit., p. 195-6.

341 Brandão, J. de S., op. cit., p. 195.

342 Vernant, J. P., op. cit., p. 187.

343 Id., ibid., p. 188.

344 Ibid., p. 153.

345 Ibid., p. 153-4.

346 Maroldo, J. C., Der Hermeneutische Zirkel: Untersuchung zu Schleiermacher, Dilthey und Heidegger. München: Karl Alber Freiburg, 1974, p.
16.

347 Coreth, E., Questões Fundamentais de hermenêutica. SP: EPU, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973, p. 101 (Obra que siglamos do
seguinte modo: QF).

348 “Sua forma primitiva aparece no diálogo de homem para homem; entretanto, a mesma estrutura vale analogicamente de todas as outras
formas da compreensão. Devemos abrir-nos ao outro, para entender o sentido de suas palavras. Com isso, tomamos, por um lado, esse
sentido dentro do próprio mundo de compreensão, a partir do qual o compreendemos; por outro lado, abrimos e ampliamos esse mundo
pela percepção compreensiva de novos conteúdos e relações de sentido. No diálogo, mantemos nossa compreensão aberta, para enriquecê-la
e corrigi-la. Isso, porém, só é possível olhando-se para a coisa que se há de compreender. A compreensão de um enunciado no diálogo
somente se fará, se olharmos juntos para a coisa (...) A visão da coisa proporciona a compreensão do enunciado, o qual, por sua vez,
possibilita uma compreensão mais plena da coisa. De novo, um elemento condiciona e medeia o outro. Compreensão linguística e
compreensão da coisa mostram uma relação mútua, na qual um elemento tanto condiciona como pressupõe o outro, determinando-o e
desenvolvendo-se a si mesmo nele. Eis, de novo, um acontecimento de mediação circular ou que progride em forma de espiral”. Id., ibid., p.
102-103.

349 “(...) própria da compreensão como um acontecimento vivo. Não é um sujeito puro e autônomo, e muito menos um sujeito absoluto, que
está diante de uma objetividade pura, concebida isenta de um sujeito. O sujeito concreto já é em si mesmo condicionado e marcado por seu
mundo e por sua história; nesse sentido, já é ‘objeto’ de seu mundo, antes de poder tornar-se ‘sujeito’ dele. (...) Nosso ‘mundo’ não é apenas
um mundo determinado empiricamente e condicionado transcendentalmente, mas também, ao mesmo tempo, um mundo marcado
historicamente e interpretado linguisticamente, logo já muitas vezes ‘mediado’”. Ibid., p. 103.

350 Heráclito, Diels-Kranz, 22 B 103, ap. Reale, G., op. cit., p. 66.

351 Schmidt, K., “Der hermeneutische Zirkel”, Die Pädagogische Provinz; Unterricht und Erziehung, Das Selbstverständnis des modernen
Menschen, v. 21, n. 1/2, p. 474, 1967.

352 Maroldo, J. C., op. cit., p. 28 e 30.

353 Stegmüller, W., op. cit., p. 86.

354 Coreth, E., QF, p. 83.

355 Tietz, U., Hans-Georg Gadamer zur Einführung. Hamburg: Junius, 1999, p. 51.

356 Coreth, E., QF, p. 83.

357 Gadamer, H. G., VMI, GW 1, p. 270.

358 Id., ibid., p. 57.

359 Ibid., p. 59.

360 Ibid., p. 60.

361 Ibid., p. 60-61.

362 Ibid., p. 61.

363 Coreth, E., “Hermeneutik und Metaphysik”, Zeitschrift für Katholische Theologie, v. 90, m. 1, p. 425, 428 e 430 (respectivamente), 1968.

364 Gadamer, H.-G., SoCi, p. 61.

365 Lorenzen, Konstruktive Wissenschaftstheorie, p. 20, ap. Bolten, J., “Die hermeneutische Spirale”, Poetica, v. 17, n. 86, p. 359, 1985.

366 Stegmüller, W., op. cit., p. 69.

367 Maroldo, J. C., op. cit., p. 16.

368 Coreth, E., QF, p. 102.

369 Gadamer, H.-G., SoCi, p. 63.

370 Garagalza, op. cit., p. 116.

371 Coreth, E., QF, p. 84.

372 Id., ibid., p. 89.

373 Ibid., p. 88-89.

374 Ibid., p. 90.

375 Adorno, T., Teoria Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1970, p. 98. De acordo com Adorno, “o fenômeno do fogo de artifício que, por
causa do seu caráter efêmero e enquanto divertimento vazio, dificilmente foi julgado digno de consideração teórica...”.

376 Em termos poéticos vale retomar, de M. Quintana, Da Eterna Procura: “Só o desejo inquieto, que não passa/ Faz o encanto da coisa
desejada.../ E terminamos desdenhando a caça/ Pela doida aventura da caçada”. In Poesias, 9. ed, São Paulo: Globo, 1994, p. 120.
CAPÍTULO III

HERMENÊUTICA FILOSÓFICA ENQUANTO DIÁLOGO, LINGUAGEM


E ONTOLOGIA
Ser que pode ser compreendido é linguagem377.

Como em círculos concêntricos, ampliaremos a identidade da hermenêutica filosófica partindo


das reflexões acerca da linguagem do princípio da experiência e seus desdobramentos no modelo
estrutural do jogo e do círculo hermenêutico. Desenvolveremos isso mostrando que o diálogo
hermenêutico é o lugar apropriado, por excelência, para o acontecer da experiência hermenêutica; o viés,
portanto, será o da experiência da linguagem – hermenêutica –, que justifica a hermenêutica ontológica, a
qual pressupõe e sustenta uma nova concepção de metafísica.

3.1 O diálogo como o lugar da experiência hermenêutica

Meu próprio esboço hermenêutico, segundo seu objetivo filosófico básico, não diverge muito da convicção de que somente no
diálogo chegamos às coisas. Somente quando nos expomos à possível concepção oposta, temos chances de ultrapassar a
estreiteza de nossos próprios preconceitos378.

A fim de situar melhor a centralidade do diálogo como o lugar apropriado para a hermenêutica
filosófica acontecer – enquanto experiência da linguagem –, retomemos a afirmação de Gadamer, em VMI,
segundo a qual “somente na terceira parte ocorre o que na verdade sempre se tem em vista, a expansão à
linguagem e ao diálogo...”379, o que corrobora nossa tarefa para explicitá-lo. Só é possível filosofar na e
por meio da linguagem cujo emprego “não é de modo algum como o uso de algo. Vivemos em uma
linguagem como em um elemento, como o peixe na água. No contato em forma de linguagem e em tudo
que chamamos de diálogo, nós procuramos as palavras. Elas nos ocorrem, e chegam até o outro ou não o
atingem. Aquilo que se quer dizer torna-se mais e mais presente e familiar aos participantes do diálogo
na troca das palavras”380. Esta é, por assim dizer, a metodologia, o modo mais apropriado de a
hermenêutica filosófica efetivar-se.
Há uma intercambialidade na totalidade omniabrangente das dimensões essenciais da
hermenêutica filosófica gadameriana: “história, linguagem, diálogo e jogo: todos eles são – e isto é o
decisivo – dados intercambiáveis”381. Trataremos de explicitar “por que a linguagem e o diálogo podem
tornar-se dados intercambiáveis. Contra quem se dirige a ênfase dada à essência dialógica da linguagem?
Esta acentuação dirige-se, sem dúvida, contra a dominação da lógica locucional na filosofia ocidental”382.
Concentrar nossas atenções sobre o diálogo como o modo mais apropriado de a hermenêutica filosófica
efetivar-se significa dar continuidade, concentricamente, ao que desenvolvemos anteriormente. Mais que
uma mera contraposição ao método, aprofundaremos a dimensão segundo a qual a hermenêutica é,
desde suas origens mais remotas – e deveria ser –, dialógica, com exigências e condições próprias de uma
metodologia.
Com a experiência hermenêutica, com o jogo, com o círculo, Gadamer procurou destronar a
absolutização da subjetividade moderna no processo do conhecimento. Destronamento em que o sujeito é
jogado e se encontra compreendido numa circularidade do conhecimento; afinal, não podemos perguntar
ou querer saber mais sobre o que já não pré-conhecemos, pressupomos ou intuímos. O sujeito não apenas
experimenta novas e outras formas de conhecer, mas as experiencia porque nunca partimos do grau zero
de conhecimento. Talvez Gadamer tenha exagerado no destronamento e até subestimado a importância
da subjetividade moderna. Pelo diálogo é possível ressaltar, mais especificamente, a força do processo
relacional do saber filosófico. No diálogo, o sujeito deve ser visto e assumido em sua real proporção com
relação à alteridade, com a liberdade que conquistou na modernidade, em meio aos condicionamentos
existenciais e históricos.
O modo próprio de ser da linguagem, da hermenêutica filosófica, pode ser representado pelo
jogo, pelo círculo hermenêutico, mas possui seu modo mais apropriado de realizar-se no diálogo.
Gadamer apenas indicou isso ao final de VMI, sem aprofundar, tanto que, nas últimas páginas dessa obra,
volta a falar do jogo e não do diálogo. O diálogo mostra melhor a dimensão do processo relacional do
saber, enquanto o jogo e o círculo hermenêutico ressaltam a subjetividade afetada daquele que joga ou
compreende compreendendo-se circularmente.

Situação, níveis e empecilhos do diálogo

A linguagem não se realiza em enunciados, mas como diálogo, como a unidade de sentido, que se constrói a partir da palavra e
da resposta383.

Com o desenvolvimento do diálogo como o modo próprio fundamental e fundamentador,


constituinte e constituidor da hermenêutica filosófica, concluímos – sem esgotar – o ciclo metodológico da
hermenêutica filosófica de Gadamer em VMI (o jogo na 1ª parte, o círculo na 2ª e o diálogo na 3ª). Essas
partes, assim como os três modelos estruturais metodológicos da hermenêutica filosófica, não podem ser
pensadas como desvinculadas entre si; elas constituem um conjunto integrado e inscrevem-se uma na
outra como três círculos concêntricos. Com o aprofundamento do diálogo, estamos no núcleo da
explicitação da hermenêutica filosófica.
Se o jogo e o círculo hermenêutico são estruturas com caráter ainda epistemológico, embora
possuam traços ontológicos, o diálogo é ontológico porque nele se constitui e aparece de forma mais
patente o modo de ser da hermenêutica, em que esta, enquanto filosofia, implica e exige a passio de quem
filosofa. Além do mais, a dimensão da relação com a alteridade aparece implicada e justificada
filosoficamente.
Gadamer refletiu mais especificamente sobre o diálogo em Verdade e método II, onde colocou e
procurou responder questões como:

desapareceu a arte do diálogo? Não observamos na vida social de nosso tempo uma crescente monologização da conduta
humana? É um fenômeno geral de nossa civilização que se relaciona com o modo de pensar técnico-científico da mesma? Ou é
uma decidida rejeição de toda vontade de consenso e a rebelião contra o falso consenso reinante na vida pública, a que outros
chamam de incapacidade para o diálogo?384.

Vamos nos ocupar, direta e indiretamente, dessas questões ampliando os questionamentos e as


respostas. Embora Gadamer tenha desenvolvido o diálogo em contraposição explícita ao modelo
científico-moderno de conhecimento – perspectiva que conservaremos em parte –, mostraremos que o
diálogo hermenêutico extrapola tal pretensão. A linguagem filosófica é e se constitui autenticamente no
diálogo. Com o diálogo hermenêutico ampliaremos o modelo metodológico dos jogos de linguagem,
desenvolvido pelo 2º Wittgenstein. Partimos do fato de que a hermenêutica, enquanto linguagem, se
institui no diálogo, “isto é, a linguagem só é aquilo que é quando ela carrega tentativas de entendimento,
conduzindo ao intercâmbio, à fala e contrafala. Ela não é proposição e sentença, mas é somente quando é
resposta e pergunta (...) Ela conduz do monólogo ao diálogo”385.
Somos e nos realizamos mais plenamente no e pelo diálogo, e a experiência hermenêutica básica
e autêntica é a experiência dialógica. Esta não trata apenas do diálogo que mantemos com alguém, mas
do diálogo que somos e no qual, ao final, nos sentimos mais realizados, mais felizes. Não afirmamos
apenas a natureza dialógica da linguagem, mas também uma constituição dialógica da existência. Ora, é
isso que sustenta o fato de que o diálogo é um modo de ser e, enquanto postura, é ontológico. Também
por isso o diálogo é o modelo estrutural mais apropriado para a hermenêutica filosófica realizar-se.
Pressupomos que o diálogo não é algo separado, que se acopla ao ser humano, mas uma dimensão
constituinte e constituidora dele. Filosofar só é possível junto com e em referência386 ao outro. A
hermenêutica filosófica, assim, repensa e reestrutura o filosofar como ato existencial. Para corroborar isso,
lembremos que Platão, considerado um pensador existencial, “é um dentre o pequeno número dos
filósofos que viram na filosofia tanto o conteúdo dos enunciados como também o conteúdo da existência;
trata-se, para ele, da atitude concreta que está atrás das perguntas e enunciados mesmos, da existência
daquele que aqui pergunta e enuncia; como pensador existencial Platão é o arquétipo do filosofar contra a
filosofia”387. Mais que um retorno saudosista a Platão, trata-se de resgatar o autêntico filosofar, que
implica, necessariamente, a existência de quem filosofa e se corporifica na dialética dialógica platônica.
Gadamer acentuou, de modo progressivo, a função histórico-imanente da linguagem, “porque a
tomada de consciência da substancialidade da história não se conclui na astúcia anônima de um saber
absoluto, mas procura pensar uma atualização que faz palavra a história” e “porque é preciso pensar-nos
mediados pela distintividade dialógica do outro”388. Este argumento pode ser chamado de antropológico,
uma vez que somos também o que pensamos e fazemos mediados pela alteridade, o que constitui um
pressuposto do diálogo.
Alguma vez na vida já experienciamos a inesgotabilidade das nossas expressões linguísticas, que
o falar se desdobra no diálogo e que o fenômeno da linguagem “não se contempla a partir do enunciado
isolado, mas a partir da totalidade de nossa conduta no mundo, que é por sua vez um viver em
diálogo”389. O diálogo remete à totalidade da nossa conduta no mundo, não apenas ao ato específico de
conhecer; por isso afirmamos que ele não tem um fim predeterminado, como é o caso da experiência
científica. Junto com esses motivos que norteiam nossa reflexão sobre a justificação da hermenêutica
filosófica, articulada sobre o caminho, o espaço, o lugar dialógico, explicitemos justificativas e aspectos
históricos para sua adoção como tal.
Aristóteles concebeu o ser humano como o ser dotado de linguagem que se efetiva de modo
mais autêntico e pleno no diálogo. Embora possa ser fixada em papéis, a linguagem só ocorre no
intercâmbio dinâmico dos parceiros de diálogo. Platão escreveu sua filosofia em forma de diálogo e
“reconheceu que filosofar é possível somente um-com-o-outro; o diálogo aberto é para Platão o único
modo como a verdade pode realizar-se”390. Parece que a técnica moderna da comunicação contribuiu
para arruinar a arte do diálogo, que levou a profundas modificações na história, realizadas por Buda,
Jesus, Gandhi, Sócrates. Lendo os diálogos socráticos, percebemos que são apenas apontamentos feitos
por outros e que não conservam nem reproduzem o verdadeiro espírito do diálogo vivo entre os
parceiros que perguntam e respondem, que falam e silenciam.
Na filosofia, o fenômeno do diálogo e, especialmente, do diálogo dois a dois, reveste-se de uma
importância fundamental. O romantismo e seu renascimento no século XX atribuíram ao “fenômeno do
diálogo um papel crítico frente à funesta monologização do pensamento filosófico”391. Schleiermacher era
um gênio do diálogo, bem como Schlegel, e ambos viam no modelo platônico do diálogo o caminho mais
apropriado para procurar a verdade.
O romantismo, com a descoberta do “mistério intransferível da individualidade frente à
generalidade abstrata do conceito, se repete em princípios de nosso século com a crítica à filosofia
acadêmica do séc. XIX e à fé liberal no progresso”; e nessa linha seguem S. Kierkegaard, K. Jaspers, F.
Rosenzweig, M. Buber, F. Gogarten, F. Ebner e Viktor von Weizsäcker, que coincidiram “na crença de que
o caminho da verdade é o diálogo”392.
A partir da atribuição de importância e das justificativas históricas do diálogo e seus diferentes
níveis, antes de explicitar alguns níveis de diálogo, lembremos o que não é diálogo. A pergunta que
temos de responder propriamente, p. ex., num interrogatório ou numa declaração ante o tribunal, “é
como uma barreira que se estabelece contra o espírito da linguagem que quer expressar-se e quer diálogo
(...) O dito nunca possui sua verdade em si mesmo, mas remete, para a frente e para trás, ao não dito”393.
O inquisidor ou o juiz não querem ouvir o que o réu quer dizer, mas apenas o que eles desejam escutar.
Quem responde, nesse caso, procura dar a resposta pedida ou evitá-la, o que não leva nem instaura um
diálogo hermenêutico.
O diálogo pedagógico entre mestre e discípulo é, sem dúvida, uma das formas originárias de
experiência dialógica. Quem ensina enfrenta uma grande dificuldade para manter a capacidade para o
diálogo, dificuldade esta à qual muitos sucumbem, pois quem ensina – geralmente – crê que deve ensinar
e pode falar supondo que, quanto mais consistente e sólido for seu discurso, tanto melhor comunicará sua
doutrina, bem como persuadirá seus alunos da veracidade do que transmite. Ora, essa “incapacidade
para o diálogo está aqui no professor, e sendo este o autêntico transmissor da ciência, essa incapacidade
radica na estrutura monologal da ciência e da teoria moderna”394. Por outro lado, por parte do aluno, “é
sumamente difícil passar da atitude receptiva de ouvinte à iniciativa da pergunta e oposição”395, o que
pode levar ao fracasso do diálogo pedagógico. Outra dificuldade que impede a realização do diálogo
decorre do número de pessoas envolvidas nele. Por esta razão, Platão afirmou que o diálogo ocorre entre
poucos ao mesmo tempo num mesmo lugar. R. Wiehl reafirmou que uma das quatro condições
específicas da forma dialógica, como teoria geral do diálogo em sua validade universal, é limitar-se a dois
parceiros396.
Na negociação (diálogo comercial), pressupõe-se uma ênfase à troca, que leva os interlocutores a se
aproximarem uns dos outros. Nesse caso, o diálogo obtém êxito se produzir um acordo, “mas as pessoas
que em seu intercâmbio mútuo chegam a um equilíbrio não ficam afetadas nem se relacionam como
pessoas, mas como administradores dos interesses partidários que representam”397. Contudo, mesmo se
tratando de dólares, na negociação se requer a procura de um acordo conjunto, o que constitui uma
exigência do diálogo autêntico, mesmo que no final os negociantes discordem entre si.
Outro modo de diálogo que nos é familiar é o diálogo terapêutico, representado na prática da
psicologia. Aqui, a incapacidade para o diálogo é o ponto de partida a partir do qual a recuperação do
diálogo se apresenta como o próprio processo de cura. O patológico é a situação inicial em que a
comunicação natural de alguém com as pessoas que estão à sua volta está interrompida por ideias
delirantes; “o ‘enfermo’ se encontra tão preso que não sabe ouvir a linguagem dos outros enquanto
alimenta suas ideias patológicas. Porém justamente a insuportabilidade desta cisão da comunidade
dialogal dos seres humanos leva-o ao conhecimento da enfermidade e o conduz ao médico”, sendo que
“o específico no diálogo terapêutico da psicanálise é que se procura curar a incapacidade para o diálogo,
que constitui aqui a verdadeira enfermidade, mediante o diálogo”398. A hermenêutica nasceu dessa
perspectiva: interpretar e comunicar o sentido de um texto que estava escondido e esquecido. Nasceu da
necessidade de decifrar o significado oculto do real e, por isso, por muito tempo foi concebida como uma
ferramenta da filosofia. Mas ela é irredutível à instrumentalização; pois acontece também ali onde a
comunicação não está rompida, acontece lá onde o desejo humano de saber não foi sufocado.
Mesmo que haja um desnível entre o psicanalista e seu paciente, o diálogo terapêutico contém
aspectos centrais do diálogo autêntico. O psicanalista não pode se comportar como um mero espectador
diante do paciente, mas como um experto que procura quebrar e interpretar suas resistências e tabus do
inconsciente. Desse modo, “sublinha-se, sim, que o próprio diálogo é então um trabalho em comum de
esclarecimento específico relacionado com o que limita a aplicação do diálogo psicanalítico à vida
dialogal da práxis social: o primeiro pressuposto deve ser, neste caso, o conhecimento da enfermidade
por parte do paciente”399, que confessa estar incapaz de entrar em diálogo ou, em termos socráticos,
tomar consciência de um saber que não sabe.
No diálogo confidencial, a incapacidade para o diálogo ocorre quando alguém, por exemplo,
afirma categoricamente: “contigo não se pode falar”, “não preciso ouvir”. Ora, uma afirmação
peremptória como essa inibe e impede o outro de se expor e entrar com liberdade no jogo dialógico.
Neste caso, um não se põe em diálogo e o outro fica impedido de entrar no jogo dialógico.
Além desses modos de diálogo, há muitos outros. Nosso interesse imediato aqui não é relatar
todos os que existem, mas traçar agora algumas características fundamentais do diálogo via negationis,
isto é, a partir dos entraves para a sua realização.
Acrescentem-se aos obstáculos assinalados acima, presentes nos diferentes níveis de diálogo,
duas formas típicas, gerais, de incapacidade para o diálogo: a incapacidade subjetiva, que é a incapacidade
de ouvir; a incapacidade objetiva, que se impõe quando não existe uma linguagem comum entre aqueles
que planejam dialogar.
A incapacidade subjetiva, que é a incapacidade de ouvir, refere-se à situação em que não se quer
ouvir ou se ouve mal. Faz parte das nossas

experiências humanas fundamentais não saber perceber a tempo o que sucede no outro, não ter o ouvido atento o bastante para
‘ouvir’ seu silêncio e seu enrijecimento (Sichversteifen). Ou também ouvi-lo mal (...) O não ouvir e o ouvir mal se produzem por
um motivo que reside no próprio indivíduo. Só não ouve, ou em seu caso ouve mal, quem permanentemente se escuta a si
mesmo, aquele cujo ouvido está, por assim dizer, tão cheio do alento que constantemente se infunde a si mesmo ao seguir seus
impulsos e interesses, que não é capaz de ouvir o outro400.

Nesse conjunto, afirmamos que não pode ser considerado um autêntico filósofo quem diz: “não
quero te escutar” ou “não me interessa o que tu queres dizer”. O entrave dialógico da incapacidade
objetiva reside no fato de que “a linguagem comum entre as pessoas vai se degradando mais e mais à
medida que nos habituamos à situação monologal da civilização científica de nossos dias e à técnica
informativa de tipo anônimo que esta utiliza”401. Não podemos ignorar o fato de que há circunstâncias
sociais objetivas que podem conduzir a um atrofiamento da linguagem dialógica, produzido, por
exemplo, pelos meios de comunicação social.
O abuso da linguagem é um obstáculo dialógico contra o qual Wittgenstein investiu. O abuso
ocorre por não darmos a devida atenção ao sentido próprio de cada palavra empregada em diferentes
contextos ou quando não prestamos atenção às diferentes nuanças das palavras ou suas expressões
metafóricas, como descreve J. Locke402. Trata-se de uma repetição impensada da linguagem.
Outro empecilho do diálogo é a alienação social e política. Pensemos sobre o significado da
expressão “sempre foi assim...”, empregada nas mais diversas situações. Nesta expressão pode estar
impressa uma alienação que emperra o diálogo hermenêutico. A alienação consiste em empregar e repetir
palavras e expressões que não constituem nem representam a realidade como tal.
O dogmatismo e o ceticismo também entravam o desenvolvimento do diálogo. O dogmático,
satisfeito com seu conhecimento, não quer saber mais. Trata-se da posição oposta à docta ignorantia,
segundo a qual só deseja saber quem sabe que não sabe. A atitude dogmática não se preocupa com a
justificação do saber. O ceticismo sufoca o desejo e a capacidade de saber ao afirmar que é impossível
conhecer.
Paralisa o movimento do diálogo quem não entra no jogo, ou quando convidados a dialogar, não
nos dispomos a isto. Nesse caso, não acompanhamos efetivamente as questões, os problemas levantados
pelo outro, que constituem a “coisa” do filosofar. Na atitude não dialógica não se leva a sério, por temor
ou petulância, o embalo do diálogo que nos convida a sair de nós mesmos, que nos leva a pôr às claras
nossas posições pessoais acerca dos conceitos e pré-conceitos filosóficos, bem como da nossa própria vida.
Essa postura epistêmica dicotomiza a vida do pensar, própria de quem se limita a olhar o jogo da
existência como um espectador. Já o diálogo autêntico exige participação efetiva dos parceiros do diálogo.
Quem não se dispõe a mudar seu ponto de vista – e inclusive sua ação – não pode dialogar. No máximo,
como no caso das ditaduras, só fala, só comanda, só diz ou só obedece e executa as ordens.
Desde sempre a filosofia sofre da tentação – expressa de forma sintética e expressiva por R.
Descartes no final de sua primeira meditação – de ceder aos encantos da preguiça intelectual. Embora a
afirmação que se segue se aplique ao duro exercício da dúvida constante, aplicamo-la ao exercício
filosófico:

Mas esse desígnio é árduo e trabalhoso e certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo de minha vida ordinária. E,
assim como um escravo que gozava de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar de que sua liberdade é apenas um
sonho, teme por ser despertado e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado, assim eu reincido
insensivelmente por mim mesmo em minhas antigas opiniões e evito despertar dessa sonolência, de medo de que as vigílias
laboriosas que se sucederiam à tranquilidade de tal repouso, em vez de me propiciarem alguma luz ou alguma clareza no
conhecimento da verdade, não fossem suficientes para esclarecer as trevas das dificuldades que acabam de ser agitadas403.

Com a caracterização do diálogo pedagógico e dos diferentes níveis de diálogo, desenvolvemos


seus traços constituintes e constituidores, bem como seus entraves. Esta parte teve um caráter mais geral,
introdutório, situacional e histórico (por assim dizer, epistemológico); na próxima nos deteremos nas
dimensões, exigências e condições próprias do diálogo hermenêutico (em sentido ontológico).

O acontecer do diálogo hermenêutico

Um diálogo sempre deixa marcas em nós (...) O diálogo possui uma força transformadora. Quando acontece um diálogo, algo
fica em nós, e algo que nos transforma404.

Dimensões constituintes e constituidoras do diálogo hermenêutico


Embora haja uma vasta literatura e diversas possibilidades para abordar este tema, vamos
desenvolvê-lo em função e do ponto de vista da hermenêutica filosófica. Em VMI, Gadamer restringe-se a
estabelecer, fundamentalmente, um paralelismo entre diálogo e tradução, sem pretender descrever mais
extensamente o primeiro como o espaço privilegiado de a hermenêutica filosófica ocorrer. Apresentou-o
em função da compreensão dos textos – tradução –, o que atesta ainda sua dependência ao Sein zum Text.
Nas situações em que há dificuldade de se estabelecer um acordo é que percebemos melhor as
condições sob as quais se realiza o entendimento, a compreensão. É o caso da tradução, onde, para falar
do processo da linguagem, acontece um diálogo entre duas línguas diferentes. Nesse caso, “o tradutor
tem de transladar o sentido que se há de compreender ao contexto em que vive o outro parceiro do
diálogo”405.
Traduzir um texto é mais do que fazer ressurgir o processo anímico original de quem o escreveu.
Trata-se, antes, de reconstituí-lo, guiado pela compreensão do que se diz nele. A tradução é, pois, sempre
uma interpretação, e, como tal, esta implica uma reiluminação, e o tradutor tem de assumir a
responsabilidade por essa reiluminação. Possuindo consciência da distância que o separa
necessariamente do original, “seu modo de lidar com o texto tem também algo dos esforços do pôr-se de
acordo num diálogo”; no caso da tradução, o acordo parece ser mais difícil, porque reconhecemos que, no
final, “a distância entre a opinião contrária e a própria não é eliminada. Tal como no diálogo, onde se
coloca essa classe de diferenças insuperáveis, pode-se alcançar talvez, no vaivém do desenrolar de um
diálogo, algum tipo de acordo, também o tradutor encontrará no vaivém do ponderar e sopesar a melhor
solução, que será sempre um meio termo”406. Traduzir e dialogar exigem certa responsabilidade,
enquanto disposição para responder à pergunta que moveu o escritor a escrever e move o tradutor a
compreender.
Da mesma maneira que precisamos nos colocar no lugar do outro para compreender melhor seu
ponto de vista, o tradutor precisa colocar-se no lugar e contexto da escritura de um texto para
compreendê-lo melhor. O ato de “pôr-se de acordo num diálogo implica que os parceiros do diálogo
estejam dispostos a isso e que procurem fazer valer em si mesmos o estranho e o adverso”407. Ao sopesar
os contra-argumentos que os parceiros do diálogo apresentam, enquanto mantêm suas próprias opiniões,
“pode-se chegar finalmente, através de uma transferência recíproca, imperceptível e não arbitrária dos
pontos de vista, a uma linguagem e uma sentença comum”408, embora a conciliação final não seja o
atestado definitivo para afirmar que um diálogo foi autêntico.
O caso da tradução, que “tem de superar o abismo das línguas, mostra, com particular clareza, a
interação que se desenvolve entre o intérprete e o texto, que corresponde à reciprocidade do acordo no
diálogo”409. Isto não significa que haja uma equivalência entre a situação do intérprete e aquela que se dá
entre duas pessoas, mas ocorre um jogo circular entre ambas. Nos textos, trata-se de manifestações vitais
fixadas, o que significa que o autor falará apenas por meio do intérprete. Assim, “tal como o tradutor
somente torna possível, na qualidade de intérprete, o acordo num diálogo, em virtude do fato de
participar na coisa de que está tratando, também face ao texto, é pressuposto iniludível do intérprete que
ele participe de seu sentido”410.
Na elucidação do paralelismo estabelecido entre tradução e diálogo, Gadamer refaz o sentido e a
tarefa da tradução (interpretação) que caracteriza a hermenêutica, especialmente a moderna.
Compreender um texto não significa chegar a um acordo histórico, seguro, que reconstruiria a gênese do
texto. Na tentativa de constituir o sentido do texto sempre estão implicados os juízos e pré-juízos do
intérprete. O horizonte “do intérprete é, desse modo, determinante, mas ele também, não como um ponto
de vista próprio que se mantém ou se impõe, mas, antes, como uma opinião e possibilidade que se aciona
e coloca em jogo e que ajuda a apropriar-se de verdade do que diz o texto”411. Nisso reconhecemos a
forma de realização do diálogo, em que um tema chega à sua expressão, não como coisa minha ou do autor,
mas como coisa comum a ambos.
O diálogo hermenêutico extrapola a relação exclusiva para com os textos da tradição e se
apresenta como um espaço e lugar “para o debate que argumenta e para uma disputa de concepções que
se realiza sem amargura e com vistas a um consenso possível. O diálogo hermenêutico não é uma forma
de discussão sem compromisso. Ele se apresenta, ao contrário, (...) como um medium no qual a razão se
realiza”412; e se constitui no modo de ser próprio da hermenêutica filosófica.
Para explicar a compreensão que se efetiva na forma de tradução, Gadamer se utilizou do
diálogo, instrumentalizando-o. Mas se o diálogo é o modo próprio de ser da hermenêutica filosófica, ele
não pode ser reduzido nem simplesmente equiparado à tradução! O que, pois, constitui o diálogo
hermenêutico autêntico, isto é, o que é um diálogo filosófico?
Como a experiência, o jogo, o círculo, a linguagem, a hermenêutica filosófica, não é possível –
rigorosamente falando – objetificar e definir o que é um diálogo hermenêutico, filosófico, autêntico. Esta
dificuldade não nos impede de caracterizá-lo, uma vez que filosofar consiste em procurar justificar e dar
um contorno a determinado tema ou problema.
A pergunta “O que é um diálogo?” nos leva a pensar imediatamente em um processo linguístico
“que se dá entre duas pessoas e que, apesar de sua amplitude e sua possível inconclusão, possui sua
própria unidade e harmonia. Um diálogo sempre deixa pegadas em nós. O que faz com que algo seja
diálogo não é o fato de havermos ensinado algo de novo a alguém, senão que tenhamos encontrado no
outro algo que não havíamos encontrado ainda em nossa experiência do mundo”413. Enquanto
metodologia hermenêutica, ele não trata apenas do conhecimento “em si”, mas envolve necessariamente
nosso modo de ser e por isso é ontológico.
O diálogo hermenêutico “possui uma força transformadora. Quando ocorre um diálogo,
permanece algo em nós que nos transforma. Por isso o diálogo possui uma afinidade peculiar com a
amizade. Só no diálogo (e no riso em comum, que é como um consenso desbordante sem palavras) os
amigos podem encontrar-se e criar esse gênero de comunidade em que cada qual é o mesmo para o
outro”414. O que evoca a fundamentação da filosofia, da política na amizade, tal como o estagirita
desenvolveu. O modelo de diálogo que paira e ao mesmo tempo sustenta o diálogo hermenêutico é o
socrático, que se pauta pela universalidade moral contra qualquer espécie de banalização da linguagem,
onde “o sentido está somente presente pelo jogo do diálogo, onde, longe de se reduzir a uma significação
neutra, ele se impõe como verdade”415.
Não há objeto único ou específico – rigorosamente falando – do diálogo. Há assuntos, conceitos,
problemas sobre os quais dialogamos, tais como sentido, acordo, justiça, verdade, beleza, mas que não
esgotam o conteúdo do diálogo hermenêutico. Tradicionalmente, o sentido foi considerado o objeto
específico da hermenêutica. Num certo sentido, isto é verdade. O problema é que ele foi entificado ao
longo da história. Embora continue sendo um objeto também da hermenêutica filosófica, é tomado agora
sob outra perspectiva. Ele não é um dado fixo, imutável, estabelecido, que deva ser extraído do texto,
como propunham a hermenêutica tradicional e a moderna. Sentido não é um ponto, um todo disponível
ou um objeto específico como uma espécie de “coisa em si”, contra o qual “mestres da suspeita” já
haviam estilhaçado. Do ponto de vista da hermenêutica filosófica “sentido é, como pode nos ensinar a
linguagem, sentido de direção. Vê-se em uma direção, assim como o ponteiro do relógio, que gira em um
sentido determinado. Assim nós todos tomamos, sempre que algo nos é dito, a direção que aponta para o
sentido”416.
Podemos afirmar que o diálogo “não tem um objeto do qual, mas primariamente um tema sobre o
qual se fala. Em um diálogo trata-se sempre de uma coisa, e é dela que sempre se fala, mas sempre na
forma do discurso sobre algo. Ele tem sempre dois momentos: a coisa da qual trata o discurso e aquilo que
em um tal discurso verdadeiramente ganha expressão”417. O diálogo não visa apenas à troca de
informações universais, descomprometidas com a realidade de cada um, nem intenciona apenas conciliar
opostos, mas salvaguardar aquilo que emerge nele mesmo.
A título de exemplo, alargando a concepção do objeto da hermenêutica, podemos tomar o caso
de uma decisão. Uma decisão autêntica, p. ex., que alguém toma no diálogo com outro, não pode ser
fixada de antemão. “Ela já é em si mesma um diálogo. Ela constitui-se no ‘consultar-se-consigo-mesmo’,
no ‘debate’ interno, pode tornar-se uma ‘luta consigo mesmo’, pode-se ‘corresponder’ ou se ‘recusar’ a
ela. Só porque a decisão da pessoa efetua-se no modo de diálogo, ela [sc. a pessoa] pode ‘falhar’ no
todo”418. Uma decisão constitui-se em conteúdo e forma de um diálogo. Enquanto tema, só há diálogo se
os parceiros deste entram no movimento autoimplicativo, histórico-existencial e o assumem para, ao
filosofar, discernir e decidir. Por ser sempre autoimplicativo, denominamos o diálogo de ontológico. Ao
diálogo pertence a essência de uma decisão não objetificável, mas dialogal, pois “da decisão sempre faz
parte o ‘ser-perguntado-por-algo’, o ‘ser exigido algo de mim’, o ‘eu tenho que me responsabilizar por’. A
‘decisão’ sempre se apresenta primeiro como ‘questão de decisão’”419. Enquanto exemplo de objeto
hermenêutico, uma decisão não comporta ser tratada como objeto científico. Ao decidir, os parceiros
autoimplicam-se no jogo dialógico. O diálogo definha caso apenas um dos parceiros do diálogo só fale, só
escute, ou decida pelo outro.
A linguagem que vem à fala, no diálogo, não é totalmente objetificável nem totalmente
disponível aos parceiros do diálogo. O acordo sobre determinado assunto, que pode surgir no diálogo,
não significa necessariamente conciliação nem um processo externo que ajuste argumentos
instrumentalmente. De igual maneira não

é correto dizer que os parceiros do diálogo se adaptam uns aos outros; antes ambos vão entrando, à medida que acontece o
diálogo, sob a verdade da própria coisa, e é esta que reúne numa nova comunidade. O acordo no diálogo não é somente uma
mera representação e um impor do próprio ponto de vista, mas uma transformação rumo ao comum, a partir de onde já não se
continua sendo o que era420.

Enquanto processo, o diálogo procura chegar a um acordo que não precisa ser definitivo nem
absoluto, pois “faz parte de todo verdadeiro diálogo o atender realmente ao outro, deixar valer os seus
pontos de vista e pôr-se em seu lugar, e talvez não no sentido de que se queira entendê-lo como esta
individualidade, mas sim no de que se procura compreender o que ele diz. O que importa que se acolha é
o direito de sua opinião...”421. Acordo não significa necessariamente adesão ou submissão ao outro, mas
aquilo que surge no diálogo. Acordo sobre a compreensão que se tem acerca do que o outro diz ou quer
dizer, pensa ou quer expressar, faz ou quer fazer, mesmo que um parceiro discorde do outro.
O objeto da hermenêutica constitui-se de todas as coisas sobre as quais é possível falar, todas as
coisas que podem tornar-se linguagem. Assim, seu objeto não é nem está na margem oposta ao método,
mas se constitui em uma terceira margem que surge, no diálogo sobre algo entre parceiros, como algo que
os afeta e os leva a se comprometer uns com os outros.
O objeto mais importante no diálogo não é sobre o que se trata, mas o parceiro nele envolvido,
pois quem pergunta é perguntado, quem responde responde sobre si mesmo. Na pergunta como na
resposta dialógica, o objeto mais importante não é a coisa sobre a qual se trata, mas os parceiros do
diálogo. A pergunta dialógica difere da pergunta destinada a obter uma informação. A pergunta por uma
informação não atinge – necessariamente – o outro nem afeta quem pergunta ou ouve uma resposta. No
diálogo autêntico, o interrogado é sempre solicitado a dar uma resposta prático-argumentativa. O diálogo
hermenêutico não possui um objeto único e delimitável, seja porque o real é mais que método em sentido
estrito, seja porque nele está implicado o jogo da liberdade entre os parceiros, seja porque ele é finito e
histórico.
Nem o sentido, nem o acordo, nem a experiência, nem a linguagem são objetos exclusivos da
hermenêutica, mas tudo o que pode vir a ser palavra, linguagem, constitui seu objeto. O tema do sentido
da vida e das decisões justas, que nos torna solidários uns com os outros, interessando-nos a própria
essência da coisa, isto é, o que para todos é o bem comum, uma vida justa e feliz, constitui objeto
privilegiado da hermenêutica filosófica. Parece que o pressuposto, o pano de fundo, o objeto da
hermenêutica de Gadamer – o que nós ratificamos – é a noção do bem comum concebido e apregoado
pela pólis grega e atualizado para nosso tempo na e pela linguagem.
Um traço fundamental do diálogo, como do jogo, é sua impossibilidade de determinação final
prévia, pois o diálogo é “aquilo pelo qual a linguagem como linguagem realmente vive e no qual ela
percorre toda a sua história de formação. Somente pelo fato de que seres humanos falam uns-com-os-
outros há linguagem”422, mas não como material objetificável ou determinável previamente.
Normalmente falamos que conduzimos (führen) bem um diálogo. Contudo, quanto mais
autêntico é o diálogo, tanto menos os parceiros podem direcioná-lo arbitrariamente. O diálogo autêntico
não pode ser conduzido voluntariamente segundo interesses particulares dos parceiros, assim como se
conduzem cavalos com rédeas. Embora haja uma direcionalidade na condução do diálogo, aqueles que
dialogam são mais dirigidos que condutores do espírito dialógico. Não podemos antecipar
teleologicamente o que acontecerá e produzirá um diálogo. Dizer que um diálogo foi bom significa
afirmar que ele tem “seu próprio espírito e que a linguagem que nele discorre leva consigo sua própria
verdade”423. Deveríamos defendê-lo em sua possibilidade de verdade própria contra a submissão às
regras de uma lógica apodíctica.
O diálogo possui sua liberdade e causalidade própria; compreende, por um lado, a criatividade
e, por outro, a historicidade. Ele “pode se desenvolver ‘a partir de si mesmo’; defende-se contra uma
condução demasiado rígida, precisa de sua liberdade própria. Inclusive até casualidade. Um diálogo não
pode ser forçado. Em sua independência pode até colocar exigências aos participantes”424. Não estamos
afirmando que ele é ilógico; antes possui uma lógica própria, em que as regras do diálogo conjugam-se
com a liberdade e a criatividade humanas.
O diálogo bem-sucedido possui o caráter de acontecimento e é considerado “produtivo
justamente à medida que não depende da consciência controlada e da antecipação prognosticada dos
participantes. Justamente no inesperado, na abertura de possibilidades insuspeitadas de compreensão, a
lógica do diálogo revela sua potência criativa”425. Nele, na verdade, vem à linguagem algo que não é
esperado, e, nesse sentido, o dialogar constitui um risco para os parceiros, uma vez que escapa ao
controle da consciência.
Com o diálogo, recupera-se a força do pensamento dialético, que não pode ser dirigido pela
razão anônima. O princípio do diálogo é o princípio fundacional da hermenêutica, que permite
desmascarar as ilusões de uma ilustração autopossessiva que não reconhece os limites da consciência de
si. Com o diálogo hermenêutico superamos o ponto de partida da individualidade metódica, que
instrumentaliza o acontecer comunicativo de sentido, revelando-se autoimplicativo. A racionalidade que
percorre os meandros do diálogo possui os traços da experiência do jogo, totalmente diferente da
pretensa atitude da razão anônima. O diálogo só existe enquanto vivência, não enquanto abstração. Por
isso é irredutível à epistemologia ou à lógica apofântica. O diálogo, na perspectiva ontológica, consiste em
uma forma de realização antes da própria linguagem que da subjetividade isolada; “o diálogo com o
outro, suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão e também seus mal-entendidos são uma espécie
de ampliação de nossa individualidade e uma pedra de toque do possível acordo a que a razão nos
convida”426. Trata-se de um saber ontológico, porque é autoimplicativo, cujo pano de fundo é a bondade.
No diálogo hermenêutico não se impõe a opinião própria sobre a do outro, nem se monologiza,
tampouco se agrega a opinião de um à do outro ao modo de soma, mas o dialogar transforma ambos.
Assim, “a coincidência, que não é já minha opinião nem a tua, mas uma interpretação comum do mundo,
possibilita a solidariedade moral e social. O que é justo e se considera tal reclama por si mesmo a
coincidência que se alcança na compreensão recíproca das pessoas”427. Nessa perspectiva, “o parceiro não
‘dá’ (a rigor) resposta, ele ‘é’ resposta”428, uma vez que, ao dialogar, ele não se exclui (como é o caso do
conhecimento objetivista ou subjetivista) do processo dialógico.
Compreender-se no mundo “significa compreender-se-um-com-o-outro. E compreender-se-um-
com-o-outro significa compreender o outro. E isto deve ser entendido moralmente, não logicamente. Esta
é a tarefa humana mais difícil”429. Diferentemente do monólogo, no diálogo precisamos nos confrontar
com o diferente quanto ao modo de ser e de pensar, o que constitui outra lógica, mais ampla, em tudo
diferente da lógica carnapiana, por exemplo.
O que nos conduz é o conhecer preconceitualmente condicionado pelo outro (pessoa, texto,
tradição). Desse modo, a verdade que emerge no diálogo hermenêutico apresenta-se como uma moral (um
modo universal de pensar e de agir). Isto implica que é na relação com o outro e na instituição do nós que
vivenciamos nossa própria particularidade em uma contínua transformação (pessoal e social), que não é
autoanulação.
O diálogo constitui-se no intercâmbio entre pergunta e resposta, palavras e sentenças. Fazem
parte dele a irrepetibilidade das perguntas que se colocam e suas respostas. Um diálogo perde sua vida
(seu “espírito”) no momento em que alguém não acompanha as palavras do outro, não responde ou
anula o que o outro afirma. Então,

já se foi o espírito específico, leve, quase dançante, no qual um diálogo move-se por si mesmo, quando lhe sopra um vento bom.
Para onde ele sopra? Nós o sabemos: rumo ao consenso, para o que, ao que parece, somos feitos como seres que pensam.
Entendimento com o outro – e entendimento conosco mesmos, assim como os seres vivos que não pensam desde sempre estão de
acordo consigo mesmos (...) O transcurso de um diálogo é, antes, um acontecimento que, por sua própria natureza, não se presta
a ser registrado em um protocolo430.

É possível caracterizar o diálogo hermenêutico a partir do jogo, que não pode ser concebido
exclusivamente a partir da consciência do jogador e que “é na realidade um processo dinâmico que
engloba o sujeito ou sujeitos que jogam. (...) A fascinação do jogo para a consciência ludente reside
justamente nesse sair para fora de si para entrar em um contexto de movimento que desenvolve sua
própria dinâmica”431. Aqueles que se fecham à possibilidade de jogar ou que querem determinar o rumo
do jogo não jogam – o que se aplica igualmente ao diálogo –, não filosofam. A natureza do jogo pede que
fiquemos impregnados de seu espírito de ligeireza, de liberdade obtida, o que “é estruturalmente afim à
natureza do diálogo (...) O modo de entrar em diálogo e de deixar-se levar por ele não depende
substancialmente da vontade reservada ou aberta do indivíduo, mas da lei da coisa mesma que rege o
diálogo, provoca a fala e a réplica e no fundo conjuga ambas. Por isso, quando acontece um diálogo, nos
sentimos ‘realizados’”432.

Exigências e condições intrínsecas do diálogo hermenêutico


Já indicamos algumas exigências e condições do diálogo hermenêutico, representáveis na
afirmação gadameriana: “Meu próprio esboço hermenêutico, segundo seu objetivo filosófico básico, não
diverge muito da convicção de que somente no diálogo chegamos às coisas. Somente quando nos
expomos à possível concepção oposta, temos chances de ultrapassar a estreiteza de nossos próprios pré-
conceitos”433. Neste ponto justificaremos o diálogo hermenêutico por meio da explicitação de exigências e
condições de sua autenticidade e validade filosóficas.
Na hermenêutica filosófica a relação com o outro precede em ordem de importância a
experimentação realizada pelo eu, porque este se encontra desde sempre situado no seio de uma
comunidade. O que move o diálogo é um saber referido ao outro, e o encontro com o outro, na
linguagem, é uma das condições fundamentais do próprio filosofar. A prioridade da relação com o outro
foi, de certa forma, acenada por Wittgenstein ao afirmar que “não pode haver uma linguagem privada”. E
a “linguagem é diálogo. Uma palavra que não alcança o outro está morta. O diálogo é com o outro, e cada
palavra necessita no momento concreto do tom correto e irrepetível...”434. Isto não significa uma prisão do
eu ao outro, afinal, “a possibilidade de o outro ter razão é a alma da hermenêutica”435, o que atesta a
dimensão da alteridade constituidora dela. A prioridade da relação com o outro significa muito mais que
falar com o outro; trata-se, antes, da centralidade do outro no processo de conhecer e de pensar.
O diálogo hermenêutico não pretende uniformizar os conceitos e atitudes dos parceiros, mas
“exige ter sempre presente a distintividade do outro. O acordo mútuo, o comum entendimento se realiza a
partir da distintividade que reconhece as diferenças, a partir dela acedemos a uma lógica do reconhecimento
que é a lógica do diálogo”436. O essencial é que “só a dimensão de um outro, que ostenta, no fundo, um
sentido próprio ou comum – não um ‘conteúdo’, mas uma ‘força’ (práxis), um modo concreto (ethos) e
efetivo de sentido (transcendência/incondicionalidade/simultaneidade) –, permite que o diálogo
verdadeiro – aquele que sabe reencontrar o outro como um ‘tu’ (sentido incondicional) e não como uma
coisa (sentido disponível) – possa acontecer”437. Nessa relação, a identidade do eu se constitui, o que é
mais que uma relação intersubjetiva que procura o consenso.
Mesmo na negociação – diálogo comercial – exige-se que, como em todo diálogo autêntico, “para
ser capaz de dialogar, há que saber ouvir. O encontro como outro se produz sobre a base de saber
autolimitar-se, inclusive quando se trata de dólares ou de interesse de poder”438. Só quem ouve pode
dialogar. Só dialoga quem não monopoliza a palavra.
Compreendemos melhor agora por que a prioridade da relação com o outro, em que este possa
também ter razão, constitui a “alma” da hermenêutica. Quem se dispõe a dialogar deveria ser capaz de
tomar consciência do contexto em que está inserido e do ponto de vista do parceiro para procurar
(re)construir o todo. Essa reconstrução do todo não é realizada dialética, mas dialogicamente. A
prioridade da relação com o outro é intrínseca à hermenêutica filosófica e parece refletir, em última
instância, a regra de ouro da moral.
Embora Gadamer tenha enfatizado a prioridade do outro no processo compreensivo, não o
aprisiona ao eu. In nuce, a hermenêutica ontológica de Heidegger e de Gadamer constitui-se no
intercâmbio, na inter-relação, na mediação da subjetividade com a tradição, com o texto, com a
linguagem. Não é uma razão anônima ou dialético-sintética que move e condiciona a hermenêutica
filosófica, mas o projeto de uma dialética dialógica:

Em lugar de fixar uma vez por todas, por meio de critérios imutáveis, de um recurso a uma intuição ou evidência qualquer, o
que é dado ao sujeito e o que é aqui interpretado por ele, diante do que pode se submeter e o que se explica por sua tomada de
decisão, o que é absoluto e o que é relativo, o que constitui o sistema com suas regras e o que permite transcender e reformular
este sistema, a existência de uma pluralidade de sujeitos racionais, e de uma abordagem diferenciada dos problemas, permitirá
entrever uma dialética resultante de um diálogo que confronta as diversas opções e as diversas perspectivas439.

A hermenêutica dialógica não é uma forma de conhecimento para dominar. O diálogo não tem
como finalidade primeira e última a redução do real a um conceito definitivo e absoluto, nem
instrumentaliza o processo filosófico.
O diálogo, diferentemente da dialética sintética, não se concebe como uma categoria formal, mas
como um modo de saber e ser que supõe sempre o envolvimento do sujeito no processo do filosofar.
Assim sendo, quando cessa o processo, o sujeito não pode simplesmente desvencilhar-se do método,
como alguém que dispensa uma escada após usá-la para subir num prédio. A metafísica da pura
subjetividade do idealismo metodológico só poderá ser superada pela hermenêutica dialógica, que não
esgota a possibilidade do perguntar e do responder. O diálogo hermenêutico, muito mais que uma
categoria formal, é um princípio ontológico, constituinte e constituidor da filosofia.
O encontro com o outro, os acontecimentos históricos, os textos nos remetem a uma verdade que
não pode ser abstraída de nossa natureza contingente nem pode ser identificada com a certeza cartesiana.
“O princípio do diálogo permite, por um lado, a crítica ao formal-subjetivismo e, por outro, a inserção do
ideal de objetividade da investigação científica no espaço de uma estrutura ontologicamente mais
fundamental, como a da experiência histórica”440. O desenvolvimento do diálogo como espaço, lugar,
modo de ser da hermenêutica filosófica

é uma radicalização da inquietude originária por atender à experiência filosófica como esforço continuado cujas raízes não estão
em uma preocupação social por instituir-se como ‘ciência’. A hermenêutica se oferece como paradigma de filosofia que nasce
discutida, humanizada e preocupada mais pelo homem como ser que faz perguntas que como ser que institui respostas441.

Não se rechaça o ideal da ciência, mas, antes, valoriza-se e procura-se alargar o estreitamento
que a filosofia padece com ele. A hermenêutica preocupa-se mais com a atitude do perguntar que com
suas respostas acabadas, revitalizando assim o filosofar. A partir da transformação da dialética em
diálogo, este não conduzirá “necessariamente em direção a uma finalidade preexistente, por um
desenvolvimento uniforme e necessário, mas deixa um certo lugar à liberdade humana, com suas
possibilidades de transcender todo sistema, toda totalidade dada”442.
A partir da transformação da dialética em diálogo, compreendemos o “grande debate filosófico,
não como a abordagem de uma razão pré-constituída, mas como uma arbitragem entre posições sempre
mais compreensivas e englobantes, que exprimiriam cada vez uma visão de homem, de sociedade e de
mundo, que refletiriam as convicções e as aspirações do filósofo e de seu meio de cultura”443. Nesse
sentido, a filosofia – em oposição a um credo – é sempre relativa.
Sem desmerecer a importância da dialética, o diálogo hermenêutico ressalta a importância do
filosofar situado existencialmente, o que evoca a concepção da Lebenswelt husserliana, assim como o
Dasein heideggeriano.
O diálogo hermenêutico acontece na relação entre parceiros, não com espectadores passivos,
interlocutores indiferentes ou ditadores. Numa conversa, falamos de uma relação entre interlocutores; no
diálogo, falamos de uma relação entre parceiros. Na conversa, há uma troca de informações, de conceitos;
a relação que os participantes estabelecem entre si não visa chegar à raiz as coisas. Não há uma
preocupação específica em aprofundar o tema que os leva a conversar. A conversa não versa
necessariamente sobre questões e soluções antropológicas, éticas ou políticas. Já no diálogo, os parceiros,
movidos pela paixão de saber mais, melhor e de outra forma, comprometem-se com suas afirmações
enquanto suas perguntas e respostas estão imbricadas com seu modo de viver. Estabelecem uma relação
de compromisso com a procura de um saber mais universal, portanto mais ético.
Diferente da pergunta-resposta informativa, para que aconteça um diálogo hermenêutico os
parceiros devem “entregar-se a ele”. Contudo, isso ainda não é suficiente, pois o diálogo vai sempre além
de si mesmo, exigindo também que os parceiros se desdobrem nele. Ora, desdobrar-se no diálogo não
pode ser exigido ou predeterminado por ninguém. “Neste sentido, no espaço da comunicação também
um pedido de informações pode colocar exigências; por exemplo, exigências quanto à exatidão e precisão
da resposta, à escrupulosidade e assim por diante. Um diálogo, no entanto, não se pode ‘cumprir’; além
disso, ele nunca é uma ‘execução’. O agir no diálogo tem um outro caráter de realização”444, como é o
caso da atividade poética, por exemplo, porque nele é necessário assumir o movimento autoimplicativo
próprio e imprevisível.
A necessidade de desdobrar-se no diálogo mostra-se também no fato de que não podemos nos
encontrar constringidos ou podados para atuar. Ao diálogo

é inerente uma espécie de transcendentalidade; isto é, ele não se esgota no que foi dito em seu transcurso. A soma do que foi dito
ainda não constitui um diálogo. Também o objeto de que se fala ainda não decide se o vaivém das palavras já é um diálogo ou
não. Do mesmo modo a extensão e a duração do falar um com o outro ainda não constituem o diálogo; pode ser uma simples
‘conferência’, uma ‘conversa’, uma ‘discussão’ ou um ‘acerto’445.

É condição do diálogo hermenêutico que seus parceiros desdobrem-se e se descubram nele.


Experienciamos e expressamos isso quando dizemos que determinado diálogo fez sentido, nos realizou,
isto é, foi produtivo. Pressuposto e exigência para ser produtivo é que os parceiros do diálogo aprendam
reciprocamente e revisem seus pontos de vista.
O diálogo hermenêutico fundamenta-se na exigência de que os parceiros descubram-se em seus
pré-juízos, em suas decisões mais internas. Sem esta predisposição, sem esta abertura, um diálogo é
ilusório. Caso alguém não se disponha a abrir-se ao jogo do diálogo, este não poderá se efetivar. O
diálogo socrático se inicia somente com a abertura prévia por parte do participante ao reconhecer que não
sabe ainda o que é determinada coisa. Assim como o diálogo não visa chegar a um conhecimento
predeterminado, também não pode tratar seus participantes como objetos.
Como a relação dialógica não é linear nem unilateral, os parceiros devem acompanhar o que
cada um diz ao dialogarem. Por essa razão, “no diálogo real entre duas pessoas faz parte do êxito do
diálogo o constante certificar-se se o outro também ‘acompanha’, isto é, se ele compreendeu os pontos de
vista que nós exteriorizamos e se os acolheu produtivamente”446. Esta certeza não é do tipo cartesiana
nem virtual. Também faz parte desse acompanhar, dessa experiência, desistir por vezes “das próprias
teses no decorrer do entendimento e substituí-las por outras concepções – ou por aquelas do parceiro de
diálogo ou pelas que surgem produtivamente do diálogo”447. O que não equivale à renúncia a ideias ou
convicções próprias, nem à identificação ou subordinação ao outro simplesmente. O fato é que
aprendemos quando, muitas vezes, primeiramente tomamos consciência e defendemos nossas opiniões
enfaticamente.
Outra exigência e condição fundamental do diálogo hermenêutico consiste em acolher a palavra
do outro. Platão, p. ex., considerou “um princípio de verdade que a palavra só encontra confirmação na
recepção e aprovação pelo outro e que as conclusões que não vão acompanhadas do pensar do outro
perdem vigor argumentativo”448. Receber e acolher não significa consentir ou ratificar, tout court, a
palavra do outro. Acolher é ouvir, receber, procurar captar, compreender o que o outro diz ou quis dizer
num determinado momento. Claro que todo ponto de vista tem algo de aleatório em si; afinal, pertence
ao ser humano a individualidade com impulsos e interesses próprios.
As exigências de abrir-se ao outro, de acompanhá-lo sem se autoanular ou entregar
arbitrariamente à opinião de outrem, de dispor-se e receber a palavra do outro, caracterizam e estruturam
o diálogo. O parceiro autêntico procura conviver com o mundo do outro quando este argumenta.
Sabemos que o entendimento entre as pessoas exige e cria uma linguagem comum. Enquanto pode
ocorrer um distanciamento entre pessoas que não falam uma linguagem comum, duas pessoas de
diferentes línguas maternas que não conhecem bem a língua do outro, podem se compreender “mediante
a paciência, o tato, a simpatia, a tolerância e mediante a confiança incondicional na razão que todos
compartilhamos”449. O diálogo pode acontecer entre pessoas que possuem opiniões totalmente diferentes.
Isso mostra que, onde parece faltar a familiaridade da linguagem, mediante a paciência e a tolerância,
pode haver compreensão, filosofia.
Um traço constituinte, que é condição e exigência para que ocorra um diálogo autêntico, é o que
D. Davidson desenvolveu – no campo da interpretação – sob a expressão Princípio da Caridade. Embora
seja algo um tanto inusitado, esse princípio é fundamental no âmbito filosófico e evoca, de certa forma, a
noção de amizade desenvolvida por Aristóteles, como um princípio que move e rege a filosofia.
Conforme tal princípio, trata-se de balizar a interpretação das palavras e a argumentação entre os
parceiros do diálogo, de modo que, “assim como devemos maximizar o acordo ou arriscar-nos a não
encontrar sentido no que o estrangeiro está dizendo, também devemos maximizar a autoconsistência que
lhe atribuímos, sob pena de não entender a ele”450. Este princípio tem o consenso mais universal como
pressuposto de verdade e validade, que pode ser um critério para erigir a autenticidade do diálogo,
porém não o único.
Na busca de sentido do texto e das palavras, o Princípio da Caridade opta pela tradução que
procura maximizar o acordo em torno da interpretação. Aplicado ao diálogo hermenêutico, implica a
maximização do acordo com relação à pessoa e à opinião do outro pautado pela comunhão da paixão
pelo saber.
Esse princípio, mais que uma opção pessoal que se deve fazer para bem dialogar, é uma
condição para uma teoria coerente e praticável. Ele constitui uma condição para uma hermenêutica
filosófica praticável, pois “a caridade nos é imposta; querendo ou não querendo, se queremos
compreender aos demais, devemos dar por acertado na maior parte dos assuntos. Se somos capazes de
produzir uma teoria que reconcilie a caridade e as condições formais para uma teoria, fizemos tudo o que
se pode fazer para assegurar a comunicação”451. O que está por trás deste princípio é a ilação necessária,
em termos de conhecimento, entre verdade e bondade e, por que não dizer também, beleza.
Ser parceiro do diálogo implica não exigir provas matemáticas de todos os assuntos do outro.
Significa entregar-se e envolver-se no diálogo, aprender com o outro e revisar os próprios pontos de vista,
descobrir-se ao longo dele, acompanhar as perguntas e as respostas que os parceiros vão colocando sob a
regência do Princípio da Caridade. Temos como corolário prático dessas exigências e condições o fato de
que os discursos não negam nem suprimem o que podemos esperar, o que podemos conhecer, como
devemos agir, enfim, quem somos. Questões estas passíveis de reflexão autêntica quando os parceiros
procuram tomar consciência e abrir mão da vontade de ter sempre a última palavra no diálogo.
As perguntas e respostas dialógicas possuem traços próprios. Será que o diálogo autêntico só é
possível entre quem sabe e quem não sabe? Em todo caso, é com perguntas e respostas, com suas
características, exigências e condições próprias, que o diálogo hermenêutico se constitui. Gadamer, em
VMI, desenvolveu a lógica da pergunta e da resposta a partir de R. G. Collingwood, que desenvolveu a
ideia de uma logic of question and answer, por meio da qual argumentou que o centro de todo
conhecimento histórico consiste em conhecer a pergunta e a resposta que compõem a tessitura do texto.
Neste caso, compreendemos um texto quando desvendamos as perguntas e suas respectivas respostas, o
que vale para a compreensão das obras de arte. Mas filosofar não consiste apenas em reconstruir as
perguntas e respostas que deram origem a e teceram um texto. No diálogo hermenêutico há uma lógica
própria, uma relação constitutiva entre pergunta e resposta que não pode ser determinada
arbitrariamente pelo sujeito nem pela realidade como tal (externa a ele). Nossa crítica a Gadamer é –
parece – que ele reduziu a lógica da pergunta e da resposta à compreensão da obra de arte e àquela
relacionada ao historicismo. Mas, se retomarmos os diálogos platônicos, percebemos que neles perguntam
aqueles que querem pensar e vice-versa. A lógica da pergunta e resposta restrita à compreensão da obra
de arte e do texto deve ser ampliada.
As perguntas dialógicas são de outra natureza que as perguntas referentes a objetos ou a
informações específicas; p. ex., a pergunta “o que é uma caneta?” é de outro teor que a pergunta “o que é
o bem?”. As perguntas dialógicas não se dirigem a um objeto específico/restrito: “Precisamente lá onde
elas se compreendem equivocadamente como perguntas por objetos e como tais querem proceder,
perdem seu caráter originário de pergunta, o verdadeiro ‘estar descobrindo’ nega-se a elas, elas se
deterioram em meras informações”452. As perguntas estruturadas segundo o esquema sujeito-objeto não
são as únicas nem exclusivas para o filosofar. As perguntas que se referem a objetos específicos
comportam respostas esgotáveis, definitivas, ao passo que as dialógicas são inesgotáveis e sempre dão o
que pensar. As perguntas dialógicas chamam e exigem respostas, e respostas dialógicas exigem novas
perguntas453.
Quando tratamos de objetos, perguntamos, cronometricamente, por um e depois por outro,
isoladamente, e estas perguntas fazem sentido quando colocadas fora de um contexto. Já “no diálogo nós
não falamos um-após-o outro, mas com-o-outro. Discurso e contradiscurso, pergunta e resposta estão aqui
reunidas em uma simultaneidade. Discurso e contradiscurso não podem jamais subsistir por si; isolados
eles não significam absolutamente nada; eles pertencem a uma única temporalidade. Também a pergunta
não pode ser descontextualizada para fora do diálogo e ser tomada isoladamente”454. A pergunta tem e
faz sentido no todo de um diálogo; tanto a pergunta quanto a resposta contextualizam-se no diálogo e
fora de sua conexão perdem seu sentido. Enquanto a lógica da pergunta e da resposta tece e compõe uma
espécie de rede, a pergunta e a resposta com relação a um objeto assemelham-se à formação de uma linha.
A pergunta dialógica des-cobre e des-vela quem pergunta e quem é perguntado. Ela não
prescinde dos seus pressupostos de compreensão e, implicada numa única temporalidade com a resposta,
“tem um determinado lugar no diálogo; ela não é arbitrariamente transferível. Se é colocada ‘em um
tempo errado’, ela se torna cega e não produz nada. Quando é compreendida só em sua literalidade e não
também segundo o caráter de sua posição dentro do diálogo, ela permanece necessariamente
incompreendida. Constitutivamente dela faz parte o traço constitutivo de ser oportuna”455, isto é, “ser-
madura” (Zeitig-sein). Assim como as frutas que amadurecem em seu tempo próprio, podemos dizer que
“descobrir e desdobrar-se é o sentido da oportunidade (Zeitigkeit). A partir disso também podemos dizer
acerca de uma pergunta dialógica que ela tem caráter revelador. O diálogo oportuniza uma pergunta; ele
somente pode ser ‘frutífero’, quando esta oportunidade da pergunta é assumida e compreendida pelos
participantes”456. Dizemos que uma pergunta ou uma resposta foi oportuna ou inoportuna, desenvolveu
o espírito do diálogo ou o emperrou.
A pergunta dialógica tem seu tempo oportuno apropriado, sua maturidade, sua vinculação a um
tempo determinado no diálogo. Isto atesta “que do diálogo sempre faz parte um decorrer, um
desenvolvimento (...) Ele pode ‘emperrar’, se ‘redirecionar’, se ‘desviar’ e se ‘perder’, ‘fluir’ com dificuldade
ou facilidade, permanecer ‘não-desenvolvido’, ‘definhar-se’ ou ‘apagar-se’ de todo. Mas desenvolver
significa: trazer algo à luz”457, “a coisa mesma”, no tempo e no espaço.
As perguntas e respostas dialógicas têm como pressuposto fundamental a relação necessária
entre ouvir e falar. À pergunta dialógica pertencem duas espécies de coisas: “Primeiramente ela precisa,
indo além da coisa, dirigir-se ao outro em relação à sua firmeza; mas ao mesmo tempo ela tem que assumir
com atenção o ‘seu tempo’, isto é, ser oportuna (Zeitig zu sein). Ambos os momentos mostram-se como o
que nós chamamos ‘falar’ e ‘ouvir’”458. Dirigir-se ao outro para além de uma relação “instrumental”
(epistemológica) no diálogo só é possível quando procuramos “ser todo ouvidos”. O autêntico filosofar
nasce e se desenvolve na relação entre perguntar e responder, falar e ouvir, calar e assimilar o que o outro
diz ou quer dizer.
Nesse sentido, é problemático e até certo ponto contrário ao espírito dialógico quando, num
debate, se faz uma lista para que seus participantes possam falar. Afinal, à medida que o debate-diálogo
acontece, um espírito vai tomando corpo, e o falar, seguindo a ordem de uma lista (linearmente), chega
geralmente tarde demais – assim como determinadas afirmações vêm cedo demais ou cortam o espírito
dialógico –, truncando o movimento dele. O tempo apropriado da pergunta e da resposta não está dado
de antemão, e só saberá colocá-las quem jogar o jogo dialógico, tecendo uma relação entre dizer e ouvir.
Com a afirmação que segue espelhamos o que vimos e apontamos, concomitantemente, ao
próximo tema, “o diálogo não é um falar-depois-do-outro, mas um falar-com-o-outro”, e esta
simultaneidade

não exclui um ‘depois-do-outro’, mas até constitui o pressuposto necessário para um verdadeiro ‘depois-do-outro’. Este real ‘um-
depois-do-outro’ se manifesta no deter-se em dar espaço para o outro e no ouvi-lo. Mas seria ver muito limitadamente se
quisesse compreender o deter-se só externamente no sentido de ‘parar’. Antes, é preciso no próprio falar ‘ouvir’ o outro. O falar
é, pois, em si um ouvir. Isto se manifesta, por exemplo, no fato de que se pode passar por cima de um participante no diálogo
sem lhe tomar a possibilidade de falar e intervir na conversa. Como se diz, ele é ‘ignorado’. Que aqui ouvir e falar é a mesma
coisa, expressa-se no fato de que ele não é ouvido ‘silenciosamente’. O não ouvir é ao mesmo tempo um calar459.

O ouvir como exigência e condição central da hermenêutica filosófica

Quem ouve o outro ouve sempre a alguém que tem seu horizonte próprio (...) em todos os lugares estamos ante o mesmo
problema: nós precisamos aprender que no ouvir ao outro se abre o verdadeiro caminho no qual se forma a solidariedade460.

Não ouvir equivale a não querer saber o que o outro tem a dizer, significa deixar de colocar
perguntas. A relação em forma de rede entre o ouvir e o dizer dialógicos difere da construção linear que
se dá entre a pergunta e a resposta informativas. A simultaneidade do falar-um-com-o-outro no diálogo
fundamenta-se na simultaneidade e na unidade interna do ouvir e do dizer. A relação entre dizer e ouvir
já está presente na origem mítico-etimológica da hermenêutica, onde, para compreender e cumprir a
vontade dos deuses, o consulente necessitava ouvir o oráculo.
Gadamer acenou para a importância do ouvir com vistas à compreensão e fê-lo basicamente em
função da determinação do conceito de pertença. Retomaremos e ampliaremos o que ele desenvolveu,
conferindo ao ouvir mais importância e “autonomia”, não em função da compreensão stricto sensu, mas
como exigência e condição central da hermenêutica filosófica. Embora pudesse fazer parte da reflexão
precedente, devido à importância e atualidade que contém e que lhe atribuímos, desenvolveremos essa
dimensão com a acuidade que merece. O ouvir é uma dimensão que esteve sempre latente na filosofia,
mas não foi levada a sério enquanto filosófica.
A efetivação da hermenêutica filosófica no diálogo não se esgota nos processos de comunicação
do escrever, do falar, do representar. Na opinião de Gadamer, cada escrito, “para ser compreendido,
requer uma espécie de trânsito ao ouvido interior”; a seus alunos ele costumava dizer: “Deveis aguçar o
ouvido, haveis de saber que quando levais uma palavra à boca não utilizais à vontade uma ferramenta
qualquer que, se não vos serve, lançais ao canto, mas que na verdade vos tem determinado em uma
direção de pensar que vem de longe e que vai muito além de vós”461. A unidade entre ouvir e falar, que
não se reduz ao mero intercâmbio informativo, é condição central de possibilidade da pergunta dialógica.
O todo no diálogo é condicionado e emerge da tensão unitária entre ouvir e falar que ocorre entre os
parceiros ou o parceiro e suas circunstâncias.
Embora pouco desenvolvido no universo filosófico, “muito se tem refletido em todos os tempos
sobre o ouvir, precisamente na tradição judaico-cristã, onde Deus não se mostra, mas onde se ouve a sua
palavra e a partir desta o mundo surge”462. Também em outras tradições, como, p. ex., na tibetana, o
ouvir é concebido como princípio de vida ao se pregar a libertação através do ouvir463.
Em 1 Samuel 15, 22.23b, encontramos uma espécie de síntese da religião judaica: “Sim, ouvir é
melhor do que o sacrifício, prestar atenção é melhor que a gordura dos carneiros”, e por isso Salomão não
pediu vida longa, nem riqueza, nem poder sobre os inimigos, mas suplicou: “Dá ao teu servo um coração
que ouça, para que eu possa governar teu povo e para discernir entre o bem e o mal, pois quem poderia
governar teu povo, que é tão numeroso?” (1 Reis 3,9). A religião bíblica “não é uma imaginação do divino,
mas a percepção da história como palavra, o ouvir do discurso profético de homens e mulheres e o
aprender a prestar atenção à doutrina dos sacerdotes e dos mestres da sabedoria”464. As palavras de
Jeremias 7, 22-23 atestam isso: “Porque eu não disse nem prescrevi nada a vossos pais, no dia em que vos
fiz sair da terra do Egito, em relação ao holocausto e ao sacrifício. Mas eu lhes ordenei isto: ouvi a minha
voz, e eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo". Em forma discursiva, de sentenças, de ameaças, os
profetas pedem e exigem incessantemente que o povo ouça a palavra de Deus. Ele era para ser mais
ouvido que adorado em forma de imagem, o que é atestado pelo comentário sobre Deuteronômio 4: “Vós
não vistes nenhuma imagem de Deus, mas ouvistes suas palavras. Na religião bíblica não se trata da
mediação de uma imagem, mas de ouvir e cumprir a vontade de Deus”465. Podemos sintetizar a
centralidade do ouvir na constituição identitária da religião judaica pela oração central e primeira do
judaísmo, que é: “ouve Israel, teu senhor nosso Deus, o senhor é o único” (Deuteronômio 6,4) (grifo nosso).
Aristóteles ressaltou, no começo da metafísica, a importância e centralidade do olhar por facultar
a maioria das distinções que realizamos. Contudo, alhures ele “atribui a prioridade ao ouvir (De Sensu).
De fato, nosso ouvir pode ouvir a linguagem, e através disso ele pode não só revelar a maioria das
distinções, mas antes todas as distinções possíveis. A universalidade do ouvir é uma indicação dessa
universalidade da linguagem”466. Esta não é a universalidade própria das ciências, mas pertence,
essencialmente, à experiência hermenêutica.
Conhecemos o fenômeno da compensação, que pode ocorrer entre os sentidos. A pessoa que vê
com dificuldade ou não enxerga treina normalmente mais seu ouvido. Para além dessa relação simples, as
relações entre ouvir e olhar são muito mais complexas. Certamente, “quando falamos de ouvir e olhar em
relação ao ler, não se trata de que se precise olhar para poder decifrar o escrito, mas de que se precisa
ouvir o que o escrito diz. Poder ouvir significa poder compreender”467. Diferentemente dos animais –
alguns escutam melhor que outros –, as relações entre ouvir e olhar “revelam no ser humano, desde
sempre, sua distinção especial. Pois ouvir não significa escutar, mas ouvir significa ouvir palavras”468.
Na afirmação de J. Grimm, “o olho é um senhor, o ouvido um escravo, aquele olha em redor,
para onde ele quer, este acolhe o que a ele é levado”469, encontramos sintetizados os traços da tirania470
do olhar desenvolvidos no Ocidente. Presente desde o início na literatura judaica, contudo, na filosofia
nunca teve um lugar reconhecido; pois, “nos trilhos da perspectiva pós-cartesiana das ciências naturais, o
mundo só existe enquanto objetificado, isto é, colocado à disposição de uma racionalidade instrumental.
O que escapa do olhar objetificador do cientista parece não existir como tema de pesquisa, já que o
instrumentário metodológico não providencia nenhum acesso a tais ‘realidades’”471.
Não se trata de suplantar o sentido e a importância do olhar na filosofia, mas de problematizar,
reconsiderar e propor outra dimensão complementar à “tirania do olhar”. Não excluímos o olhar
enquanto sentido privilegiado da mediação do mundo real, mas realçamos a universalidade e
receptividade própria do ouvir como outro modo de perceber nosso próprio passado e novas
perspectivas (de vida) para o presente e o futuro. Em face às restrições do olhar objetificador das “ciências
‘cartesianas’, o diálogo exige o ouvido como seu órgão mediatizador por excelência, isto é, seu principal
sentido, abrindo, assim, um novo espaço para a compreensão não apenas dos fatos objetivos, mas,
também, do próprio homem que está envolvido na criação destes fatos”472, desenvolvidos, p. ex., extensa
e intensivamente na tradição oral do povo judeu ou dos povos indígenas. Na transmissão oral “ocorre
uma interação entre narrador e ouvintes. De um lado, ela consiste em que o narrador muda a narração ou
narra de outra maneira de acordo com a composição do público...”473. À hermenêutica filosófica cabe a
tarefa de pensar e articular o ouvir e o olhar, o acolher e o objetivar, o receber e o admirar, de modo
relacional e complementar.
Ao ouvir, quem ouve, de alguma forma, é sempre interpelado, mesmo que não responda. Quem
é interpelado “tem que ouvir, queira ou não. Não pode afastar seus ouvidos do mesmo modo que, ao
olhar algo, se afasta olhando para uma direção determinada”474, para outra direção. Para não ouvir,
precisamos usar as mãos (para tapar os ouvidos), ao passo que, para não olhar, basta um ato consciente-
voluntário e/ou involuntário para que não olhemos determinada realidade. Ou seja, “podemos fechar os
olhos, os ouvidos não. Modificando o axioma básico de comunicação de Watzlawick, poderíamos dizer:
não se pode não ouvir”475. É nessa diferença que reside a grande importância e primazia do ouvir que
constitui o fenômeno hermenêutico. Aristóteles reconheceu que a primazia do ouvir sobre o olhar se
mediatiza pela universalidade do logos, que não elimina uma primazia específica do olhar sobre os outros
sentidos.
A linguagem não se constitui apenas pelo olhar, mas pelo ouvir. Dizemos que não olhamos para
o logos, mas que devemos ouvi-lo para compreendê-lo. Nesse sentido, o ouvir é mais universal que o
olhar, pois “quem ouve” é capaz de ouvir a lenda, o mito, a palavra não escrita. Este é um dos motivos
que nos levou a relatar o mito de Hermes como princípio originário-etimológico da hermenêutica, afinal,
“ouvir naturalmente faz parte de tudo que deve ser linguagem, seja falada, escrita ou secreta”476.
A moral e a literatura surgiram e existiram, originariamente, em forma oral, onde o ouvir
possuía primazia sobre o olhar. A linguagem não é só a linguagem objetiva, sígnica, visível ou legível aos
olhos, mas engloba muitas outras dimensões implicadas no ouvir. A linguagem oral conserva e expressa
a totalidade, a universalidade da realidade, uma vez que nela se conservam a tonalidade e a musicalidade
da voz, dimensões centrais do ouvir. Na tradição judaica, por exemplo, por esse motivo não se podia
descrever nem usar o nome Iahweh – para não o entificar –, porque o nome Javé é inefável e indescritível.
O ato de escrever punha um limite ao sentido e ao significado constituinte do que se nomeava – problema
este que Platão representou no mito da origem da escrita. Ele foi o filósofo que “viveu em um momento
no qual a dimensão da ‘oralidade’, que constituíra o eixo de sustentação da cultura antiga, perdia
importância em favor da dimensão da ‘escritura’, que se tornava predominante”477; em seus diálogos
Sócrates aparece como modelo da cultura fundada sobre a oralidade.
Não poucas vezes falamos da necessidade de ouvir o sentido das coisas. A Ilíada, a Odisseia, a
Torah, os Salmos bíblicos existiam inicialmente na forma de linguagem oral. Eles eram narrados, e o
sentido instaurava-se pelo ouvir, não pelo olhar. “Onde nos defrontamos com literatura, a tensão entre os
sinais mudos da escrita e audibilidade de toda linguagem encontra a sua solução plena. Não se lê apenas
o sentido, mas ouve-se-o”478. Podemos compreender e vivenciar melhor (em geral) um poema, p. ex.,
quando ouvimos alguém declamá-lo – em sua musicalidade o mais próxima possível do original – do que
quando o lemos em silêncio. Há casos em que somente compreendemos um texto quando o lemos em voz
alta e outros em que precisamos dizer em voz alta uma palavra para nos certificar de como devemos
escrevê-la corretamente.
No ouvir está presente um componente de solidariedade. Ouvir é, por assim dizer, um
solidarizar-se com o outro. “Quem ouve o outro, ouve sempre a alguém que tem seu horizonte próprio.
Isso é a mesma coisa entre eu e tu como entre os povos ou entre os círculos culturais e as comunidades
religiosas. Em todos os lugares estamos ante o mesmo problema: nós precisamos aprender que no ouvir
ao outro se abre o verdadeiro caminho no qual se forma a solidariedade”479. Ouvir não significa
autoanular-se, mas assumir uma espécie de compromisso com aquele que está a falar. Quem ouve
realmente sente a necessidade de responder às palavras de outrem, isto é, de comprometer-se com a
palavra do outro para que ocorra o diálogo hermenêutico. Quando afirmo “ouve-me”, isto não significa
apenas “levanta tua antena, aguça os ouvidos (...) mas significa também: por favor, compreende-me;
esforça-te para que, em teu entendimento, te encontres aproximadamente com o meu”480. Não foi por
acaso que Martim Lutero – bem como todo o movimento protestante posterior – enfatizou a dimensão do
ouvir a palavra em oposição à veneração e à contemplação da imagem.
Há um limite, um término para o ouvir, num diálogo? Esta pergunta objetiva e objeticadora é
frontalmente oposta ao “espírito” do ouvir, assim como do diálogo. O ouvir é ilimitado e requerido como
dimensão constitutiva do diálogo desde o momento em que emerge um acordo, determinado consenso, e
os parceiros se dão por satisfeitos com seu dialogar, até mesmo quando, no final, tenham posições
claramente contrárias. Gadamer afirma:

Eu diria, do ponto de vista hermenêutico, que não há nenhum diálogo que chegue ao fim antes que tenha conduzido a um
acordo real. Talvez se precise acrescentar que por isso, no fundo, não há diálogo que realmente chegue ao fim, porque um
verdadeiro acordo, um acordo inteiramente completo entre duas pessoas contradiz a essência da individualidade. O fato de nós
na verdade não conduzirmos nenhum diálogo até ao fim e frequentemente não chegarmos ao acordo são limitações de nossa
temporalidade e finitude e parcialidade481.

Irredutível à linguagem apofântica, o diálogo hermenêutico é o que melhor possibilita o


acontecer da hermenêutica filosófica, pois conduz do monólogo, da razão anônima e absoluta, à mediação
finita e histórica do saber humano. Na verdade, não podemos dominar conceitualmente o que é e como
ocorre o diálogo hermenêutico. Por isso mostramos as dimensões – enquanto condições e exigências –
para que ele se realize sob as mais diversas formas e exemplos, sem esgotá-lo.
Em VMI, Gadamer desenvolveu o diálogo mais em função da tradução do que como modo de
ser próprio da hermenêutica filosófica. Procuramos superar essa circunscrição mostrando que as
grandezas conceituais hermenêuticas, como a experiência, o jogo, o círculo, a linguagem, são
intercambiáveis e formam o quadro da hermenêutica filosófica com a primazia da linguagem dialógica
enquanto lugar da experiência hermenêutica por excelência.
Com o diálogo hermenêutico, renova-se e se aprofunda a filosofia a partir de suas origens,
desenvolvida mormente por Platão e Aristóteles. A fim de caracterizá-lo melhor, retomamos o modelo do
diálogo pedagógico e mostramos que o interrogatório ou julgamento judicial não instauram diálogo
autêntico. A negociação comercial, o diálogo terapêutico e o confidencial evidenciaram traços
constituintes e entraves do diálogo autêntico. Os entraves ao diálogo, subjetivos e objetivos, compuseram
a via negationis para expressar os traços do autêntico diálogo hermenêutico.
O fato de refletir sobre o método hermenêutico como processo, movimento e afetação dos
parceiros do diálogo, cujo modelo é o socrático-platônico, teve como escopo mostrar que o pano de
fundo, o pressuposto filosófico, continua sendo o bem, o belo, a verdade platônico-aristotélica, integrados
com as conquistas da modernidade e pós-modernidade – principalmente a liberdade e a autonomia do
sujeito.
Embora seja diferente do objeto próprio das ciências, o diálogo possui objeto próprio no sentido
de que tudo pode ser objeto, mas nem tudo pode ser objetificado. O sentido, o acordo, a pergunta, a
história, a linguagem, a experiência constituem objetos do diálogo hermenêutico, mas é o sujeito em
relação seu objeto principal. Por isso ele não é determinável, mas acolhe e integra as regras e o
imprevisível com a liberdade. Trabalha a necessidade e, contra a absolutização da subjetividade, recoloca
esta na relação originária com os outros.
Está indicada e implicada como uma exigência e condição fundamental para a realização do
diálogo autêntico, o que chamamos a alteridade; isto não significa submissão, dependência ou prisão ao
outro. É condição da hermenêutica, por não possuir a última palavra, a transformação da dialética em
diálogo, que não se encerra numa síntese absoluta nem se abstrai da história e das contingências
humanas, mas possibilita a continuidade do filosofar.
A autenticidade do diálogo hermenêutico acontece entre parceiros de diálogo e não entre meros
espectadores. No termo parceiro estão incluídos atributos como: aquele que ouve o outro, aquele que se
compadece com o que o outro diz, aquele que não entrava o diálogo, aquele que não pretende possuir a
última palavra, aquele que é capaz de conceder razão ao outro. Os parceiros entram no jogo, no espírito
do diálogo, independentemente do tema sobre o qual dialogam, e, no final, ambos – de alguma forma –
são afetados e transformados.
Diferentemente da pergunta por uma informação ou acerca da natureza de determinado objeto,
a pergunta dialógica tem seu tempo oportuno, sua maturidade (Zeitigkeit), no desenvolvimento do
diálogo, e somente no interior deste as perguntas e respostas fazem e tecem o sentido. Na pergunta
dialógica, quem pergunta, necessariamente, revela-se ao perguntar. Mais que pela paciência conceitual, o
diálogo rege-se pelo Princípio da Caridade, onde o mais importante não consiste em saber mais sobre algo –
apenas –, mas em rever seus pré-conceitos, seus conceitos, sua postura e ser melhor, ser bom.
A unidade interna entre falar e escutar, dizer e ouvir, é condição fundamental para que ocorra
um diálogo hermenêutico. Embora Aristóteles tenha afirmado na Metafísica a prioridade do olhar sobre o
ouvir, indicou também este último como essencial ao filosofar, por possibilitar ouvir o logos. No ouvir
sempre somos interpelados. É mais fácil não olhar do que não ouvir e nisso constatamos a universalidade
deste último: nossos olhos abarcam apenas em torno de 150º do campo físico – mais limitado física e
geograficamente –, ao passo que o ouvir abarca 360º; podemos ouvir alguém que está no quarto com a
porta fechada, mas não podemos vê-lo através dela. A linguagem oral, na forma de lenda, de mito, de
histórias, é a mais antiga das linguagens humanas, e nela o ouvir – com tudo o que está contido nele – é
mais importante e abrangente do que o olhar.
Óbvio demais! Talvez pareça óbvio demais retomar e afirmar que a hermenêutica é e constitui-se
no diálogo, que filosofar consiste em dialogar. Contudo, mostramos que o diálogo é mais do que uma
conversação vaga, que um jogo de relativização abstrata dos problemas; nele, os parceiros, ao
responderem às questões propostas, responsabilizam-se por suas perguntas e respostas.
Concluímos aqui a reflexão específica sobre o diálogo como lugar e espaço mais próprio de ser
da hermenêutica filosófica e fazemo-lo ao modo do que ocorre com a ave Fênix, que, depois de certo
tempo, imola-se, mas renasce posteriormente, para continuar vivendo. Este é o enquanto hermenêutico,
caracterizadamente agônico, fundamentalmente um amor ao saber – “que é eterno enquanto dura” – e
não um credo ou um conceito definitivos. E como “mau hermeneuta é o que diz possuir a última palavra”
a partir da conclusão a que chegamos, continuaremos justificando a hermenêutica filosófica enquanto e
como linguagem, ou seja, desenvolvendo alguns aspectos da experiência da linguagem (filosófica).

3.2 A linguagem como princípio da hermenêutica filosófica

A linguagem é na realidade a única palavra cuja virtualidade nos abre a possibilidade incessante de seguir falando e dialogando
e a liberdade de dizer-se e deixar-se dizer482.

Justificaremos a linguagem como princípio da hermenêutica filosófica, como sua condição e


efetivação – o que implica explicitá-la como medium da experiência hermenêutica.
A fim de situar a centralidade da linguagem na e enquanto hermenêutica, lembramos que a
primeira carrega em seu bojo duas orientações básicas. Uma remonta ao Crátilo de Platão e aos escritos
lógicos de Aristóteles, onde a linguagem é reduzida a um sistema convencional de sinais, usado para
designar conteúdos já pensados. A procura de uma unidade da linguagem e da expressão implica sua
redução à mera forma representável, paradigmaticamente, pelo Tractatus de Wittgenstein. Sua função é
designar objetos, olvidando-se sua dimensão de totalidade viva do acontecer linguístico enquanto
instauradora de sentido.
Outra concepção de linguagem, irredutível à lógica, à gramática, à semântica, ao logos apofântico,
procura compreender o “acontecimento da linguagem em sua unidade e originalidade (Hamann, Herder,
W. von Humboldt)”483. Este último é um dos fundadores da linguística científica moderna e desenvolveu
a concepção de linguagem como “acepção de mundo”, a quem Gadamer deve muito no tocante à sua
concepção de linguagem.
Em Wittgenstein encontramos sinais de superação da concepção de filosofia da linguagem
enquanto mera designadora de objetos. No Tractatus ele defendera de forma extremada “uma teoria
atomística dos sinais, segundo a qual a linguagem imita a forma lógica das realidades”, enquanto nas
Investigações filosóficas afirmou ser insuficiente a função da “‘designação’, porque as palavras não
designam em primeiro lugar algo teórico e unívoco, para então serem usadas nessa acepção, mas, ao
contrário, são primeiro empregadas na vida cotidiana, constituindo esse emprego sua significação”484.
A linguagem e o diálogo constituem o núcleo central da fundamentação da hermenêutica filosófica
gadameriana. P. Fruchon foi um dos poucos filósofos que desenvolveu, sistematicamente, o tema da
linguagem em suas relações com a hermenêutica. Para ele, a terceira parte de VMI “não é nem simples
aplicação ao estudo da linguagem nem ilustração histórica de conclusões elaboradas pelas duas primeiras
partes: indo da compreensão nas ‘ciências do espírito’ à hermenêutica descoberta como problemática
universal da filosofia, ela mostra que a linguagem carrega, sem que elas o revelem, o estudo da arte e das
‘ciências do espírito’, que constitui o tema diretor de uma ontologia”485. Essas três partes de WMI “se
inscrevem uma na outra como três círculos concêntricos: a primeira se inscreve na segunda mostrando
que a experiência da arte não se reduz a prazer sensível, mas encontro temporal do sentido, do mesmo
modo que a segunda se inscreve na terceira descobrindo que a compreensão se realiza na própria
linguagem”486.
No tocante à centralidade da linguagem, lembramos que “o pensamento filosófico se desloca,
cada vez mais, para o lado da linguagem, e é possível que esta propensão, quando alcançar seu momento
de saturação máxima, nos permita ver com clareza que, fora da estrutura linguística, não fica nada que
possamos, coerentemente, chamar ‘problema filosófico’”487. Contudo, embora pareça um tema recente, “o
problema filosófico delineado em torno da origem e essência da linguagem é tão antigo como o da
essência e origem do ser”488. É no modo de ser linguagem (Sprachlichkeit)489 que se determina o objeto da
hermenêutica, e o fato de que tanto ele “como o sujeito têm um caráter linguístico, implica que só sob este
ponto de vista o objeto e o sujeito se legitimam como tais”490.
Acerca das dificuldades para abordar o tema da linguagem, em palavras gadamerianas
lembramos que “o certo é que o que é linguagem é uma das coisas mais obscuras que há para a reflexão
humana” – afinal, é como querer refletir sobre o jogo quando se está jogando – pois “o caráter linguístico
está tão extraordinariamente próximo de nosso pensar e na sua realização é tão pouco objetivo, que ele
esconde, a partir de si próprio, o seu verdadeiro ser”491; contudo, “a partir do diálogo que nós mesmos
somos, buscamos nos aproximar da obscuridade da linguagem”492. Na verdade, propusemo-nos aqui
explicitar o sentido dessa afirmação, conscientes de que “quanto mais nos aproximamos de um
acontecimento ou de alguém, menos seguro parece ser nosso conhecimento. As árvores obscurecem a
floresta. Quanto mais se sabe, menos se sabe”493. É a partir da relação entre distanciamento e
proximidade, entre desapropriação e apropriação, com relação à linguagem, que desenvolveremos como
princípio filosófico enquanto uma experiência hermenêutica da linguagem. Desdobraremos nossa
reflexão em três momentos: 1) Hermenêutica e linguagem; 2) A linguagem da ciência da linguagem e a
linguagem da hermenêutica filosófica; 3) A linguagem da filosofia da linguagem e a linguagem da
hermenêutica filosófica.
Hermenêutica e linguagem

Tudo que tem de ser pressuposto na hermenêutica é unicamente linguagem494.

Iniciemos a reflexão sobre hermenêutica e linguagem retomando a argumentação realizada por


Gadamer sobre a definição aristotélica: “o homem é um ser vivo dotado de logos”. No Ocidente, essa
definição foi conservada sob a seguinte fórmula: “O homem é o animal racional, o ser vivo racional, isto é,
que se diferencia do resto dos animais por sua capacidade de pensar”. O termo logos foi traduzido por
razão ou pensamento, mas significa também, e preferencialmente, linguagem. Na Política, Aristóteles
estabeleceu a seguinte diferença entre o animal e o homem: “Só os seres humanos possuem, ademais, o
logos que os capacita para informar-se mutuamente sobre o que é útil e danoso, e também o que é justo e o
que é injusto”495. Possuidor do logos, ele tem a possibilidade de pensar e falar. Poder falar significa tornar
“manifesto o não presente mediante sua linguagem, de forma que também outro o possa ver. O ser
humano pode comunicar tudo o que pensa; e o que é mais, graças a essa capacidade de comunicar-se as
pessoas podem pensar o comum, ter conceitos comuns, sobretudo aqueles conceitos que possibilitam a
convivência dos seres humanos sem assassinatos nem homicídios, em forma de vida social, de uma
constituição política”496. Foi com Heidegger que Gadamer aprendeu a ler a definição aristotélica “o
homem é o ser vivo dotado de logos” não como “o ente vivo que possui razão” (animal rationale), mas “o
ente que possui linguagem”. O logos, enquanto linguagem, não pode mais ser concebido
instrumentalmente.
No que diz respeito à relação entre pensamento e linguagem, Gadamer recorreu a Aristóteles, a
fim de mostrar a importância que tem a aprendizagem da língua enquanto aprendizagem do pensar na
historicidade constituído pela linguagem.

Na hermenêutica a linguagem nunca é um instrumento ou utensílio do pensamento, mas sintetiza a idealidade dos significados e sua
continuidade histórico-existencial com a materialidade do falar e sua fixação escrita. Não é produto humano, mas participa nele, recria-o,
apropria-o, faz seu algo no qual se insere e que, portanto, já não é tão ‘possessivamente’ seu. Neste contexto a existência humana
é resposta continuada e abertura; a dimensão temporal está na constituição da linguagem e, consequentemente, na constituição
do homem. A aprendizagem da materialidade do falar é também o ensinar na idealidade e temporalidade dos significados.
Pensamento e linguagem só podem ser articulados hermeneuticamente a partir do imperativo da finitude497.

Pensamento e linguagem, ação e linguagem estão sempre coimplicados e interdependentes. A


linguagem constitui “o verdadeiro centro do existir humano se contemplada na perspectiva de que só a
preenche o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso sempre maior, que é
tão imprescindível para a vida humana como o ar que respiramos”498. Enquanto ser que possui logos, o
homem constitui-se e experiencia-se no modo de ser linguagem; e por isso ela é irredutível à esfera do
apofântico.
Nosso pensar e conhecer, nosso sentir e imaginar, nosso querer e desejar estão sempre
impregnados pela compreensão linguística do mundo, e, “neste sentido, a linguagem é a verdadeira
pegada de nossa finitude. Sempre nos ultrapassa. A consciência do indivíduo não é o critério para medir
seu ser”499 – ela não é critério único nem exclusivo –, o que significa que não é apenas a subjetividade que
determina, solipsisticamente, o que é a linguagem. Esta sempre nos ultrapassa, p. ex., no sentido da
palavra falada que visa, no encontro com o outro, a algo para além do dito: abre um horizonte de sentido
não pré-pensável, in-determinado, que dá sempre o que pensar.
Com e pela linguagem, marca da finitude humana, a realidade constitui-se mediada
linguisticamente, e desse modo também a “força de nossa reflexão é sempre uma força limitada pelo acontecer
da linguisticidade”, que se compreende como “condição de possibilidade de toda compreensão, a
condição de possibilidade de que todo horizonte de sentido seja determinado por sua vinculação ao
acontecer da experiência humana finita”500. Do ponto de vista da hermenêutica filosófica, a linguagem
não é apenas condição de possibilidade, mas ela mesma é constituinte e constituidora do filosofar.
A relação essencial entre hermenêutica e linguagem mostra-se “no fato de que a essência da
tradição consiste em existir no medium da linguagem, de maneira que o objeto preferencial da
interpretação é de natureza linguística”501. Medium, para o que Gadamer aqui se propõe, não deve ser
compreendido como meio (Mittel) no sentido instrumental – no sentido de nomear, p. ex., para dominar
–, mas como meio (Mitte) no sentido de lugar, espaço, meio ambiente, circunstância, centro, modo de algo
ser e realizar-se. A experiência da tradução é uma forma exemplar para mostrar a vinculação indissolúvel
que há entre linguagem e hermenêutica. Experienciamos a distância que há entre o espírito da literalidade
da letra originária do que é dito e a sua reprodução, distância que nunca chegamos a suplantar
completamente, porque uma língua é uma realização vital, uma “acepção de mundo”, como denominou
W. von Humboldt.
Considerando a linguagem como princípio – no sentido de início, de critério estruturante,
daquilo que institui o próprio filosofar sempre autoimplicativo –, “todos os fenômenos de entendimento,
de compreensão e incompreensão que formam o objeto da denominada hermenêutica constituem um
fenômeno de linguagem”502. Não apenas o processo inter-humano de entendimento, mas o próprio
processo do filosofar é um fato linguístico mesmo quando se dirige a algo extralinguístico, metafísico ou
quando ouvimos o que nos diz o logos. É na seguinte afirmação gadameriana que fundamentamos a
concepção de que a linguagem é um princípio: “Tudo que tem de ser pressuposto na hermenêutica é
unicamente linguagem”. Podemos dizer que a linguagem não é “somente a linguagem da palavra. Há a
linguagem dos olhos, a linguagem das mãos, mostrar e indicar, tudo isto é linguagem e confirma que
linguagem existe sempre na relação de um-com-o-outro”503. O fato é que a linguagem não se reduz às
palavras, mas é modo de ser e de se comunicar, o que significa “que um conceito amplo de linguagem se
coloca ao lado de um mais estreito. Linguagem, num sentido mais amplo, é toda comunicação, não
somente a fala, mas também os gestos, que fazem parte das relações linguísticas das pessoas”504. Desse
modo, Gadamer amplia a concepção de linguagem que desenvolveu em VMI, condicionada ao Sein zum
Text.
A radicalidade de Gadamer foi ter afirmado que todo fenômeno hermenêutico é linguístico. O
problema é que por linguagem entendemos normalmente apenas aquela que é escrita, falada, dita,
apofântica. O impacto de sua tese diminui se compreendermos a linguagem não apenas como término de
um processo compreensivo, mas como o próprio processo em que o sujeito se constitui. Ela, “pois, não se
realiza em enunciados, mas como diálogo, como a unidade de sentido que se constrói a partir de palavra
e de resposta. Só nisso a linguagem chega a se plenificar. Isso vale antes de tudo para a linguagem da
palavra. Mas certamente vale também para a linguagem dos gestos, dos costumes e das formas de
expressão de mundos de vida diferentes e estranhos uns para os outros”505.
O compreender mudo e silencioso também compõe o universo filosófico enquanto fenômeno
linguístico. O ficar “sem fala” não é outro modo de linguagem? Nesse caso, ficar sem fala poderia
significar que “esse alguém quisesse dizer tanto que não sabe por onde começar. O fracasso da linguagem
demonstra sua capacidade de buscar expressão para tudo (...) uma linguagem com a qual o indivíduo não
finda seu discurso, mas o inicia”506. O thaumatós grego caracteriza bem essa experiência sem palavras que
deu origem e continua a mover o filosofar. No caso de o acordo acontecer sem palavras, o esforço do
filosofar processa-se quando algo lhe é estranho, provocador, desorientador.
Lembremo-nos de que a “teoria platônica segundo a qual a filosofia inicia com admiração faz
referência a este desconcerto, a esta incompatibilidade com as expectativas pré-esquemáticas de nossa
orientação do mundo, que dá o que pensar”507. O thaumatós grego não é primeiramente uma experiência
epistemológica; trata-se, antes, de uma experiência hermenêutica – existencial –, ou seja, ontológica, uma
vez que não se refere apenas ao conhecimento humano, mas ao Dasein, ao saber, à sua ação. O
desconcerto – esse emudecimento causado pela admiração – significa que a linguagem pode ser o medium
universal da hermenêutica, e aponta para a outra dimensão do saber, que denominamos pré-reflexiva ou
ontológica. O desconcerto, o assombro, esse ficar sem palavras constitui a linguagem que nos motiva a
repensar nosso modelo de conhecer e de pensar. Não filosofa quem se prende a uma única forma de
conhecer, quem não se admira com a realidade (texto, pessoas, história, etc.), quem não joga com a
realidade do outro, quem não quer saber, quem não sabe que não possui a última palavra apropriada
para a realidade.
Ao narrar o mito da origem da escrita, Platão alertara para as insuficiências e seus perigos, pois,
se lhe fizer uma pergunta, manterá o silêncio. Se interrogamos os discursos escritos com a “intenção de
compreender o que dizem”, afirma Sócrates, “limitam-se a exprimir uma única coisa, sempre a mesma”
(Fedro, 275d-e): o texto escrito torna a alma esquecidiça e favorece tanto a preguiça da memória quanto a
presunção intelectual. “O texto escrito é estático, fechado sobre si mesmo. Diante daquele que interroga,
não pode fazer outra coisa senão permanecer em silêncio.”508 O próprio Gadamer percebeu e confessou509
as limitações sobre o que escrevera acerca da linguagem, e não é por acaso que este tema o acompanha ao
longo de seu itinerário de 1960 até nossos dias.
Considerando que a linguagem é o que constrói e sustenta uma orientação comum no mundo,
realcemos dois pontos: 1) em Gadamer, a linguagem não se reduz à escrita, embora esta seja para ele a
forma privilegiada de abordagem e constituição da hermenêutica filosófica; 2) parece que essa ênfase na
linguagem conduz a uma espécie de determinismo linguístico (especialmente textual), o que deveria ser
reexaminado.
Se reconhecemos a unidade fundamental entre hermenêutica e linguagem, não podemos firmar
que o caminho da linguagem vai da inconsciência linguística até a desvalorização da linguagem
moderna. Mas “a linguagem que vive no falar, que abarca toda a compreensão, inclusive a do intérprete
dos textos, está tão envolvida na realização do pensar e do interpretar que verdadeiramente nos restaria
muito pouco, se apartássemos a vista do conteúdo que nos transmitem as línguas e quiséssemos pensá-las
como forma”510. Do ponto de vista hermenêutico, não é possível dissecar a linguagem para então
examiná-la, o que nos leva a concluir que, rigorosamente falando, nessa perspectiva não é possível
justificar o nominalismo.
A suspeita que se levanta contra a linguagem resulta de uma concepção reducionista e de um
entendimento equivocado. Na realidade, ela é “a única palavra cuja virtualidade nos abre a possibilidade
incessante de seguir falando e conversando e a liberdade de dizer-se e deixar-se dizer. A linguagem não é
uma convencionalidade reelaborada nem o lastro dos esquemas prévios que nos esmagam, e sim a força
generativa e criadora capaz de fluidificar uma e outra vez esse material”511 – o que testemunha a relação
indissociável entre hermenêutica e linguagem, entre a linguagem da experiência hermenêutica e a
experiência da linguagem filosófica.
A linguagem, enquanto

objeto, não é, como nas ciências naturais, resultado e ato de objetificação, mas ela nos vem ao encontro e ultrapassa, desde
sempre, nosso querer e agir. A tradição se caracteriza por seu modo de ser linguagem. Ela não é simplesmente um resíduo a ser
investigado e interpretado como um fóssil ou uma relíquia do passado. Em seu bojo algo nos é transmitido, seja na forma de mito
ou na forma de tradição discursiva. Nela, o que nos é transmitido está simultaneamente aí, acontecendo uma coexistência entre
passado e presente. Quem compreende um texto, num dado momento, possui maior liberdade frente ao mesmo, podendo voltar
de novo a si a todo momento, diferentemente da tradição oral, em que há, no ato mesmo do narrar, uma dependência do
‘ouvinte’ em relação ao narrador512

para que uma narração se efetive plenamente. Quando entramos em contato com uma tradição escrita,
não compreendemos apenas algo individual, mas nela toda uma humanidade passada presentifica-se em
suas mais diversas relações com o mundo. Ler compreensivamente um texto não é uma atividade
arqueológica, nem teleológica asséptica, mas significa tomar parte nele.
O modo de ser linguagem, em sua forma escrita, é autoalheamento, e sua transposição, ao lê-la, é
a mais elevada tarefa da compreensão do que o texto diz à linguagem. A leitura de um texto é sempre
histórica e concomitantemente é um esforço para se distanciar do seu tempo. Compreender o que a
literatura adquiriu e acumulou não significa reconstruir uma vida passada, mas participar do que ela diz,
e nessa atividade o sujeito se experiencia, se projeta e se renova existencialmente. Essa dinâmica de atuar
e padecer com relação ao texto institui o que chamamos de sentido e que poderia ser denominado de
experiência “transcendental”.
A hermenêutica nasceu e se desenvolveu em função da necessidade de compreender os textos
clássicos. Schleiermacher já havia minimizado o “caráter essencial da fixação por escrito com respeito ao
problema hermenêutico quando considerou que o problema da compreensão estava dado também face ao
discurso oral, e talvez na sua plena realização”513. Gadamer mostrou que o psicologismo introduzido por
F. Schleiermacher “cancelou a autêntica dimensão histórica do fenômeno hermenêutico”, por isso
procurou justificar a vantagem metodológica do texto escrito, uma vez que nele o problema hermenêutico
aparece na forma livre do psicologismo. A chamada gadameriana à objetividade em contraposição ao
psicologismo schleiermachiano é correta. Contudo, exacerbou a centralidade, em VMI, da linguagem
escrita como objeto próprio da hermenêutica: “Todo escrito é sempre objeto preferencial da hermenêutica
(...) O horizonte de sentido da compreensão não pode ser limitado nem pelo que o autor tinha
originalmente em mente, nem pelo horizonte do destinatário a que foi escrito o texto na origem”514;
requer antes que seja experienciado, mais que experimentado. O modo de ser linguagem do texto,
enquanto objeto hermenêutico, não se circunscreve à intenção do autor, nem à receptividade por parte do
destinatário, nem à expressão vital do mesmo. O sentido de um escrito efetiva-se fundamentalmente se
for retomado num contexto relacional atual, isto é, se for “aplicado”. A linguagem, enquanto objeto da
hermenêutica, não se circunscreve ao texto escrito, mas a tudo que pode vir a se tornar palavra em suas
mais diversas formas e modos de vida. É uma limitação circunscrever a preferencialidade do objeto da
hermenêutica aos textos escritos, uma vez que tal ênfase reduz o alcance dela, instrumentalizando-a,
perdendo com isso o sentido e universalidade próprios.
Enquanto objeto, a linguagem é constituinte e constituidora, o medium da experiência
hermenêutica. Tanto a hermenêutica quanto a linguagem, enquanto fatos passíveis de investigação, não
se reduzem a objetos empíricos. São irredutíveis a simples objetos, uma vez que “abrangem tudo o que,
de um modo ou de outro, pode chegar a ser objeto”; afinal, “a linguagem não é apenas factum, mas é
também princípio” (grifo nosso)515.
Enquanto princípio, constituinte e constituidor de sentido, a linguagem não é mero meio (Mittel),
instrumento, extrapolando, ampliando a noção de método científico. Exemplo da instrumentalização
metodológica é o que ocorre, p. ex., nas ciências históricas, onde os historiadores elegem determinados
conceitos com os quais classificam a propriedade histórica de seus objetos, sem refletir expressamente
sobre sua origem e justificação. Não se dão conta, muitas vezes, de que a forma escolhida de descrever a
história pode destruir o próprio sentido dela, ao submeterem “a alteridade do objeto aos próprios
conceitos prévios”, por mais imparcialmente que afirmem compreendê-la. Apesar da aparente
metodologia crítica do historiador, ele, como filho do seu tempo, pode estar, mais ou menos, dominado
acriticamente pelos conceitos prévios e pelos pré-juízos espaçotemporais em que se encontra. Tal
ingenuidade torna-se pior quando “começa a tornar-se consciente dessa problemática e se colocar, por
exemplo, a exigência de que na compreensão histórica tem-se que deixar de lado os próprios conceitos e
pensar unicamente nos da época que se trata de compreender”516, como pretendeu o romantismo. Dilthey
realizou isso e se equivocou ao pretender saltar por cima da linguagem: “pensar historicamente quer dizer,
na realidade, realizar a reconversão que acontece aos conceitos do passado quando neles procuramos pensar.
Pensar historicamente implica sempre uma mediação entre aqueles conceitos e o próprio pensar”517. É
impossível negar ou ter presente, lúcida e criticamente, todos os conceitos próprios na
interpretação/compreensão; o ato filosófico consiste em trazer à discussão os pré-conceitos linguísticos,
sem ranços de corrente ou doutrina filosófica.
A linguagem supõe sempre o vínculo com a situação. Enquanto metodologia, a linguagem não
percorre, necessariamente, o caminho rumo à conciliação; filosofar não significa, finalmente, concordar ou
conciliar opostos. “Tal igualdade seria utópica. Compreender significa que eu posso pensar e ponderar o
que o outro pensa. Ele poderia ter razão com o que diz e com o que, propriamente, quer dizer.
Compreender não é, portanto, uma dominação do que nos está à frente, do outro e, em geral, do mundo
objetivo”518. Enquanto caminho do e para o filosofar, a linguagem não anula o sujeito, como ocorre na
lógica metodológica do senhor e do escravo; antes, conserva a subjetividade em sua real proporção de
temporalidade e espacialidade. Como não há linguagem privada, “quem fala uma ‘linguagem’ que
nenhum outro compreende não fala. Falar significa falar para alguém. Linguagem não é algo atribuído a
sujeitos individuais. A linguagem é um nós, no qual estamos encadeados um-com-o-outro e no qual o
indivíduo não tem limites fixados”519. Não havendo linguagem privada520, ela se constitui
dialogicamente, pois “uma palavra que não chega ao outro está morta. Pois o diálogo é com o outro, e
cada palavra necessita no momento concreto do tom correto e irrepetível, para que supere a outra grade
(Gitter), a grade do ser diferente e que chegue ao outro”521.
Somos partícipes da linguagem, o que significa participar de uma tradição que veicula uma
determinada visão de mundo e que condiciona, até certo ponto, nosso modo de agir. Ela “mesma oferece
uma pré-compreensão determinada de mundo, uma compreensão que sempre pode continuar se
formando e modificando, mas que reivindica uma prioridade absoluta diante de atos particulares do
distanciamento, da crítica ou da transformação”522. Desse modo, não é possível produzir um método
extralinguístico – sem as marcas do tempo e do espaço – na e para a filosofia.
Considerando a linguagem do ponto de vista metodológico-hermenêutico, o filosofar é sempre
“uma apropriação do que foi dito, de maneira que se converta em coisa própria”523, o que não é dialético-
sintético, mas dialético-dialógico, onde os distintos polos (parceiros) são ampliados, e não suprassumidos,
e o resultado não é definitivo, mas aberto, uma experiência que continua sempre “dando” o que pensar, o
que dialogar.
A linguagem situa-se no tempo e no espaço. A explicitação da verdade expressa-se como um
acontecimento, como uma experiência da linguagem: “A verdade é a ‘unidade’ da dimensão objetiva e da
dimensão subjetiva. Isto é o que Gadamer expressa mediante o termo ‘acontecer’: a verdade não está aí
propriamente ante nós de uma maneira imediata. É algo que ‘acontece’ na forma de relacionar-nos com as
coisas e na forma em que as coisas interpelam a nós”524. Como nossa apreensão das coisas não se dá de
forma imediata/intuitiva, enquanto seres finitos, filosofamos a partir do médium linguístico na forma
dialógica.
Experienciamos, na linguagem, a insuperável adequação das palavras que usamos às coisas a
que nos referimos ou ao expressarmos nossos sentimentos por meio delas. O jogo linguístico das
metáforas, p. ex., remete à ambiguidade, à riqueza, à inesgotabilidade da linguagem – irredutível a signos
–, como é irredutível a experiência hermenêutica à experimentação. Filosofar significa ampliar e deslocar
nosso horizonte linguístico (metafórico) ao outro sem suprimir o próprio. Nesse caso, negar o próprio
horizonte não significa suprimir, mas participar da linguagem do outro.
A linguagem, enquanto medium universal em que acontece o filosofar, o interpretar como
compreender e este como interpretar, leva-nos a superar a dicotomia metodológica tradicional entre
erklären e verstehen, apropriada, respectivamente, às ciências da natureza e às ciências do espírito. A partir da
relação entre hermenêutica e linguagem, esta é objeto e método constituinte e constituidor próprio da
hermenêutica filosófica, havendo distinção dialético-dialógica, mas não dicotomia entre ambas.
Método, pois, deve ser compreendido como um caminho, uma experiência, em que o mais
importante não é a chegada a um ponto arquimediano claro e distinto, mas o próprio caminho que se
percorre. O fundamental é a experiência que realizamos acerca do sentido da nossa existência, mais que a
construção de um conceito. Realizar algo de acordo com um caminho, como um modo de pensar e de
conhecer, não pode ser reduzido a um itinerário linear de causa e efeito. Antes se trata de compreender o
filosofar como um caminho interminável em que assumimos o saber do quão pouco sabemos sobre o que
presumimos saber e do quanto fica sempre por se saber e dizer acerca do real.
Concluímos nossa argumentação sobre a relação entre hermenêutica e linguagem, retomando a
célebre expressão kantiana: “A ligeira pomba que em fácil voo corta o ar, sentindo ao mesmo tempo a
resistência que este lhe oferece, poderia pensar que em um espaço sem ar voaria melhor”, acrescentando-
lhe, porém, que “esse ar é, precisamente, o que permite o voo. Pois bem, o ar do pensamento é a
linguagem”525. Podemos então afirmar que o modo de ser linguagem é a condição de possibilidade do
filosofar. A linguagem não é só conteúdo, mas é método, não é só a condição de possibilidade do
filosofar, mas a realização e a materialização deste. Com isso entramos no terreno da linguagem da
ciência da linguagem e da linguagem própria da hermenêutica filosófica.

Ciência da linguagem e linguagem da hermenêutica filosófica

(...) a linguagem não é, como se crê, a vestimenta do pensamento, mas é seu verdadeiro corpo. O pensamento não é nada sem a
palavra526.

Sabemos da dificuldade de refletir sobre a linguagem, pois vivemos, somos e pensamos nela
muito antes de pensarmos sobre ela. Com o intuito de caracterizar melhor a linguagem como princípio da
hermenêutica filosófica, explicitaremos algumas distinções e proximidades entre uma concepção de
linguagem da ciência da linguagem e a linguagem da hermenêutica filosófica.
A ciência da linguagem se coloca a questão de como cada língua está em condições de dizer-se
universal, dada a diversidade de linguagens. As ciências das línguas procuram generalizar determinados
aspectos, eliminando, nessa pretensão de universalidade, as particularidades, as idiossincrasias
linguísticas e as diferentes possibilidades de seu acontecer, uma vez que a linguística parte da premissa
da unidade interna de linguagem e pensamento e só dessa forma pode converter-se em ciência527,
sincronicamente. Exploraremos, en passant, apenas um dos aspectos da ciência da linguagem, no caso, a
semântica, relacionando-a com a hermenêutica. Ambas alcançaram atualidade e reconhecimento entre as
correntes filosóficas atuais; ambas têm como ponto de partida a expressão linguística do nosso
pensamento e, por isso, estão às voltas com a perspectiva universal de conhecimento.
A semântica procura descrever o campo da linguagem a partir de fora, pela observação,
analisando-a como um objeto, e desenvolvendo uma classificação dos comportamentos no trato com seus
signos. Já a hermenêutica procura abordá-las a partir do e no interior da própria linguagem. Ambas,
porém, “estudam com seu próprio método a totalidade do acesso ao mundo que representa a
linguagem”528, a primeira como um espectador objetivo, a segunda como um sujeito envolvido – ao
modo de um jogador – com o objeto em questão.
A contribuição da análise semântica consistiu em descobrir a estrutura global da linguagem e
relacioná-la com os falsos ideais de univocidade dos signos ou símbolos. Além disso, a estrutura
semântica consistiu, em parte, em dissolver a aparência de singularidade que produz o signo verbal
isolado, “mostrando a expressão verbal individual como algo intransferível e não intercambiável”529.
Diferentemente da semântica, a hermenêutica considera a linguagem como um princípio que
“aponta sempre mais além de si mesma e do que diz explicitamente”, isto é, não se esgota nem se
conserva no que expressa, no que verbaliza. Tal perspectiva supõe e evidencia a limitação da objetividade
do que pensamos e comunicamos: “Não é que a expressão verbal seja inexata e esteja necessitada de
melhora, mas, justamente quando é o que pode ser, transcende o que evoca e comunica. A linguagem
leva sempre implícito um sentido subjacente e que perde essa função se explicita”530, o que evoca a
amplitude e a ambiguidade intrínseca da experiência hermenêutica.
A fim de ilustrar que a linguagem não se esgota em si mesma, apofanticamente, Gadamer
distinguiu duas dimensões anteriores e posteriores dela: o não dito na linguagem e, contudo, atualizado por
esta; e o encoberto pela linguagem. Enquanto a semântica move-se fundamentalmente no âmbito do dito, a
linguagem da hermenêutica filosófica não se limita a esse nível de conhecimento.
O não dito na linguagem... Neste caso, evidencia-se “o grande campo da ocasionalidade de todo
discurso e que intervém na constituição de seu sentido”; em uma determinada ocasião é que
experienciamos uma linguagem que constitui o sentido da fala, do discurso, “porque cada enunciado não
possui simplesmente um sentido unívoco em sua estrutura linguística e lógica, mas que aparece
motivado”531. Instaura-se assim o não dito na linguagem.
Outros fenômenos do não dito na linguagem que ilustram a impossibilidade de reduzi-la à
univocidade são, p. ex., “a maldição ou a bênção, o anúncio da salvação dentro de uma tradição religiosa,
(...) o lamento. São os modos de falar que revelam seu próprio sentido porque são irrepetíveis (...) O certo
é que o sentido de todas estas formas de enunciado, desde a maldição até a bênção, é irrealizável se não
recebem sua determinação semântica de um contexto de ação”; essas formas de enunciado possuem a
exigência de ocasionalidade, “porque a ocasião de seu conteúdo se cumpre na sua compreensão”532 em
um tempo e espaço determinados, impossíveis de serem predeterminados.
Outra dimensão da linguagem que atesta sua irredutibilidade à objetificação refere-se ao que
está encoberto por ela. Por exemplo, o caso da mentira, que não é “simplesmente a afirmação de algo falso.
Trata-se de uma linguagem encobridora que sabe o que diz. E por isso a tarefa da exposição linguística no
contexto literário é o descobrimento da mentira”533. Analisemos duas formas de encobrimento, mediante
a linguagem, que a reflexão hermenêutica aborda (e que não são objeto específico da ciência da
linguagem). A primeira refere-se ao fato de possuirmos, acriticamente, pré-juízos. Constitui um aspecto
fundamental de nossa linguagem que “sejamos dirigidos por certos pré-conceitos e por uma pré-
compreensão em nosso discurso, de sorte que esses pré-conceitos e essa pré-compreensão permanecem
sempre encobertos e precisa-se de uma ruptura do que subjaz à orientação do discurso para tornar
explícitos os pré-conceitos como tais”534. Sabemos que é impossível tomar consciência de todos os nossos
pré-juízos, pré-conceitos, e é tarefa da hermenêutica não os eliminar necessariamente, mas explicitá-los. A
dificuldade reside em explicitar aqueles que estão arraigados numa cultura e nesta são tidos como óbvios
e verdadeiros. Outro exemplo de aceitação acrítica de pré-juízo é o que ocorre na ciência, onde – sob
pretexto de que esta é ciência por não possuir pressupostos e ser sempre objetiva – se aplica o método
científico para outras áreas do saber. A hermenêutica filosófica denuncia essa transposição acrítica e
ingênua que se faz na filosofia e noutras ciências. Devemos esse equívoco, talvez, à falta de reflexão sobre
a advertência aristotélica, segundo a qual é tão insensato aceitar um raciocínio provável da parte de um
matemático quanto exigir provas científicas de um retórico. Afirmamos que a ciência da linguagem é um
jogo recente de linguagem entre outros, ao passo que a linguagem da hermenêutica filosófica procura
abordar os múltiplos jogos linguísticos, conjuntamente.
Outra forma de encobrimento que a linguagem possui refere-se à dimensão da universalidade. A
hermenêutica filosófica, de alcance universal, aborda e descobre a aparente universalidade da ciência
moderna, que produz a impressão de conhecimento global, mas que encobre pré-juízos e interesses
sociais. Pensemos, p. ex., no papel do experto na sociedade atual, como suas afirmações determinam os
caminhos “na economia e na política, na guerra e no direito mais que os órgãos políticos que representam
a vontade da sociedade”535. Em termos políticos, a voz do economista tem, normalmente, mais peso que a
do cientista social. Os cientistas, na posição de seres “sagrados”, são aqueles que, na maior parte dos
casos, escolhem e determinam a aplicação dos recursos econômicos.
A hermenêutica filosófica reflete sobre o que está encoberto na ciência da linguagem,
fundamentada numa universalidade apenas aparente. No âmbito da ecologia, por exemplo, a
universalidade da hermenêutica consiste em tematizar e refletir sobre os valores que norteiam uma
cultura e seus efeitos na natureza. A linguagem da hermenêutica filosófica parte de um modo relacional
universal irredutível aos modelos sujeito/objeto, senhor/escravo, representável nos modelos estruturais
do jogo e do círculo hermenêutico.
A hermenêutica filosófica percebe a impossibilidade da erradicação total de todos os pré-juízos,
como foi a pretensão do iluminismo. Assim, “a consciência hermeneuticamente esclarecida manifesta uma
verdade superior ao envolver-se na reflexão. Sua superioridade consiste em converter o estranho em
próprio, em não dissolvê-lo criticamente nem o reproduzir acriticamente, em revalidá-lo interpretando-o
com seus próprios conceitos em seu próprio horizonte”536. Por isso concluímos que é mais universal que a
ciência da linguagem, cuja universalidade se sustenta na singularidade dos atos linguísticos gerais. A
linguagem não se constitui como um sistema de regras estáticas, mas ela está a caminho e amplia
incessantemente seus próprios horizontes.
Pressuposto fundamental da hermenêutica filosófica é que o filósofo é a consciência que possui
de que carrega sempre consigo seus próprios pré-juízos. A ciência da linguagem, não refletindo sobre
eles, acaba por absolutizar o jogo de linguagem objetivo em detrimento dos demais. Uma teoria
instrumentalista dos signos, “que entenda as palavras e os conceitos como instrumentos disponíveis ou
que se têm de pôr à disposição, fica aquém do fenômeno hermenêutico”537, como fica aquém da
linguagem da hermenêutica filosófica a redução da experiência hermenêutica a um conceito.

Linguagem da hermenêutica filosófica

Pensamos com palavras. Pensar significa pensar-se algo. E pensar-se algo significa dizer-se algo538.

A partir da explicitação da relação entre ciência da linguagem e linguagem da hermenêutica


filosófica – fundamentalmente a partir de uma compreensão crítica de Gadamer –, desenvolveremos a
linguagem da hermenêutica filosófica em confronto com alguns aspectos da linguagem de cunho lógico-
analítico. Partimos da posição segundo a qual “a hermenêutica não é filosofia da linguagem, é um saber
próximo, atento e preocupado com o nexo fundamental que encontramos no que as coisas mesmas são e
seu dizer-se na linguagem”539, uma vez que aquilo que pode ser compreendido institui-se em linguagem.
A concepção de linguagem filosófica extrapola o nível de enunciado lógico, a dimensão
apofântica. Ora, “a palavra grega apophansis, logos apophantikós, isto é, o discurso, a proposição cujo único
sentido é realizar o apophainesthai, a automanifestação do dito, é uma proposição teórica no sentido de que
abstrai de tudo o que não diz expressamente. Só aquilo que ela mesma manifesta com sua enunciação
constitui o objeto da análise e o fundamento da conclusão lógica”540. A linguagem de cunho lógico-
analítico prende-se ao nível do apofântico, ao passo que a linguagem da hermenêutica filosófica amplia os
horizontes da linguagem, não excluindo outras formas de linguagem, como a ética, a arte, a política, a
metafísica.
Para o pensamento ocidental, um dos grandes feitos da razão humana é que a matemática
desenvolve-se por sua conta, considera-se razão e permanece fiel a si. Por isso mesmo, ela exerceu
enorme fascínio sobre Descartes, Espinoza e boa parte da filosofia ocidental, cuja expressão máxima se
desenvolveu na filosofia da linguagem de cunho lógico-analítico. Embora haja um enriquecimento, uma
ampliação linguística, a experiência da linguagem filosófica não caminha teleologicamente rumo à
cientificidade do tipo lógico-matemático.
A linguagem não constitui um meio entre outros, uma ferramenta que os seres humanos
utilizam apenas para se comunicar. O conhecimento de nós mesmos e do mundo realiza-se na e com a
linguagem, que é a nossa própria, da qual não podemos nos desvencilhar como de um instrumento
qualquer. Nosso conhecimento do mundo e das pessoas se constitui à medida que aprendemos a falar, e
“aprender a falar não significa utilizar um instrumento já existente para classificar esse mundo familiar e
conhecido, mas significa a aquisição da familiaridade e conhecimento do mundo tal como nós entramos
nele”541. Não é coerente identificar o falar com o balbucio de palavras. Inseridos no mundo linguístico,
assimilamos, consciente e inconscientemente, sua simbologia, e por essa razão a atividade filosófica, como
o ato de falar, “é algo sempre incompletável, um procurar e encontrar de palavras”542. Este é o ponto de
partida e de chegada da linguagem, que, “muito mais que um meio de entendimento entre seres
humanos, é uma grandeza absoluta, a qual, antes de tudo, constitui algo assim como um espaço do
entendimento”543. Por isso afirmamos e justificamos que ela é um princípio, que não apenas designa
coisas, mas mantém e gera perguntas e respostas acerca do sentido da existência humana, porque é
imagem, expressão e constituição desta.
Não se trata de rejeitar ou ignorar as ciências da linguagem ou a linguagem analítica, mas de
questionar e apresentar outras faces do filosofar, problematizando o fato de que na linguagem haveria
um constante e progressivo desenvolvimento necessário rumo à cientificidade. A hermenêutica distingue
e integra, discursivamente, os limites do dito e do não dito, ou pelo menos mantém-se aberta ao ainda
não dito ou ao dito que pode ser dito de múltiplos modos, continuamente.
Como a interpretação acontece na e pela linguagem, assim se dá a “emergência atual de uma
verdade que convoca à participação, e não simples reprodução neutra de uma interioridade ou de uma
significação possível”544. Do mesmo modo, a linguagem da hermenêutica filosófica nos convoca a
participar nela, extrapolando sua redução à dimensão instrumental. Em sua autêntica produtividade, tal
linguagem pede que filosofemos em vez de nos prender apenas à validade das regras ou à construção de
sistemas gramaticais.
Na mesma medida em que os homens buscavam respostas para suas dúvidas junto a Hermes, a
hermenêutica procura responder a seus desafios espaçotemporais e se constitui comprometida
responsavelmente com seus caminhos. O fato é que “os problemas de responsabilidade social e humana
da ciência que tanto pesam em nossa consciência desde Hiroshima se agudizam como consequência do
processo metodológico da ciência moderna, que não pode dominar os fins aos quais se aplicam seus
conhecimentos como domina suas próprias relações lógicas”545. Isto ocorreu por causa da abstração
metodológica da ciência moderna e sua aplicabilidade prática enquanto técnica. Acerca disso Gadamer
afirma: “Eu não sou um fatalista nem um profeta de calamidades por duvidar que a ciência possa
autolimitar-se. O que creio é que não será a ciência, e sim nossa capacidade humana e política global que
poderá garantir a aplicação razoável de nosso saber ou, em todo caso, fazer com que evitemos as
catástrofes extremas”546. A linguagem da hermenêutica filosófica, ao procurar responder aos desafios do
tempo, compromete-se e contribui para o bom convívio das pessoas, convertendo-se em linguagem ética.
Com isso superamos a redução da hermenêutica a uma atividade meramente reconstrutiva ou
reconciliadora. Diante da ciência, nossa atitude não é de exorcizá-la do nosso imaginário e prática
cotidiana, mas de colocá-la numa devida relação, consequente com os desejos humanos de uma vida mais
livre, justa e feliz.
Retomando a crítica à filosofia da reflexão e à pretensão de reduzi-la a um tratado lógico,
alertamos com a e pela hermenêutica filosófica para o alto preço que tivemos de pagar pela constituição
de uma linguagem regida por enunciados “puros”, utilizáveis para todos os fins e concretizados pela
técnica. Todos reconhecemos suas inúmeras utilidades e benefícios para nossa existência. O que está em
questão aqui e a legitimação e a absolutização de sua validade fundamentada em enunciados ditos
“puros”. Estes não existem propriamente, uma vez que são sempre, de alguma forma, motivados dentro
de uma linguagem. A hermenêutica filosófica não se opõe ao avanço das pesquisas técnicas, genéticas,
mas ao discurso manipulado para a consecução e a imposição acrítica e ingênua. Enquanto filosofia, a
linguagem hermenêutica carrega em seu bojo tanto a preocupação com os fins quanto com as
consequências de sua aplicação.
A hermenêutica filosófica não se justifica como um conhecimento puro, asséptico, mas encontra-
se vinculada à ética, à política. Ao evitar construir um conhecimento desvinculado da realidade, assume
uma postura responsável com relação aos rumos da sociedade. Por esse motivo, a pergunta implica e
exige uma atitude responsável por parte de quem dialoga. O saber da hermenêutica filosófica
compromete-se com as consequências do conhecimento científico. A hermenêutica filosófica consiste
numa postura responsável e irredutível à epistemologia pura – um conhecer, que se diz, pelo conhecer
apenas –, mas se concebe como metafísica, enquanto saber metaempírico, mas atento ao, sensível com o e
responsável pelo destino das pessoas, sem a pretensão de desvencilhar-se deste, e que implica uma
postura, um modo de ser, isto é, uma ontologia. A hermenêutica filosófica nutre-se do saber prático no
sentido aristotélico da Ética a Nicômaco, pois a leitura e a compreensão dessa obra, conforme o próprio
Aristóteles, levam o leitor não apenas a saber mais o que é o bem, mas a ser melhor, a ser bom. Esse é o
núcleo onde situamos o vínculo entre metafísica e ontologia: um saber pelo saber que implica uma
postura prática responsável com o bem, com a verdade e com o belo. Como não há uma ciência
desvinculada da prática, a hermenêutica estrutura-se como um saber crítico e responsável em relação à
sociedade.
A hermenêutica filosófica afirma que não há ciência da linguagem nem conhecimentos objetivos
isentos de compromissos ético-políticos, por isso é próprio da sua estrutura a responsabilidade histórico-
social. Cabe-lhe explicitar os compromissos existentes e repensar o projeto implícito que os condiciona e
os determina em coerência com a liberdade e felicidade humanas. Com isso a filosofia não se reduz à
mera atividade cognitiva autista. O filosofar converte-se em uma atuação comprometida e
comprometedora, e a linguagem filosófica procura explicitar os pressupostos e as exigências de tal
compromisso.
Enquanto argumentação, a hermenêutica filosófica problematiza a existência de enunciados
puros, desvinculados de motivações ou de responsabilidades. É fictício o caso de testemunhos e
interrogatórios isentos, não responsáveis. O exemplo dos tribunais atesta isso, uma vez que neles
“falamos sempre motivados e não fazemos uma declaração ou enunciado, mas respondemos. Porém
responder a uma pergunta significa perceber o sentido da pergunta e com ele a base motivadora”547,
plenificando-se em sua ocasionalidade. Um enunciado não possui seu sentido pleno apenas em “si
mesmo”, como mostra o tema da ocasionalidade na lógica.
As expressões “ocasionais”, que aparecem em todas as línguas, carecem de seu sentido pleno
quando isoladas de uma dada situação; “não se pode compreender o que significa ‘aqui’ pelo dito ou
escrito, mas é preciso saber onde é dito ou escrito. ‘Aqui’ requer para seu significado a concreção pela
ocasião, a occasio em que foi dito o advérbio”; e as análises lógico-fenomenológicas, as expressões desse
tipo comprovam que “estes significados incluem a situação e a ocasião em seu próprio conteúdo
semântico”548. Hans Lipps e a filosofia analítica inglesa, os austinianos e o 2º Wittgenstein debruçaram-se,
na verdade, sobre essa questão. As expressões ocasionais são exemplos de formas da linguagem que
envolvem em si a ação e a “forma”.
A palavra não é um nome apenas, falar não equivale a designar nem responder a uma
determinada realidade. Com relação à realidade, não impomos nomes arbitrariamente e por isso dizemos
que “a primeira palavra não existe. O falar de uma primeira palavra é contraditório. O sentido de cada
palavra pressupõe sempre um sistema de palavras”549. Também não podemos dizer que introduzimos
uma palavra e só é palavra quando passa ao uso comunicativo. A linguagem não depende única nem
exclusivamente daquele que a usa. A linguagem, como a história, possui uma força que nos conduz ou
arrasta. Na perspectiva gadameriana, chegamos sempre tarde demais a ela. Uma vez que não somos
criadores, ex-nihilo, da nossa linguagem, Gadamer tem razão. Mas, por outro lado, capazes de liberdade,
podemos responder e nos responsabilizar linguística e historicamente por nossos atos e não ser
necessariamente apenas conduzidos por ela.
A linguagem mesma prescreve como é e o que é o uso linguístico. “Não se trata de nenhuma
mitologização da linguagem, e sim que o fenômeno expressa uma exigência da linguagem não redutível à
opinião subjetiva e individual. Nós, ninguém em particular e todos em geral, falamos na linguagem, tal é
o modo de ser da ‘linguagem’”550. Nós não apenas possuímos, mas somos linguagem. Possuímos um
lápis, mas não somos um lápis. Só no exercício filosófico que responde e se responsabiliza com o tempo e
o espaço do sujeito é possível justificar a autenticidade da hermenêutica filosófica. Com isso a
hermenêutica constitui-se uma instância crítica da linguagem551.
Considerando a linguagem como acepção do mundo que possuímos, nos encontramos, em certo
sentido, predeterminados por ela. Contudo, é na linguagem e por meio dela que criamos e nos adaptamos
ao mundo. Daqui emerge a tarefa crítica da hermenêutica filosófica de explicitar os hábitos linguísticos
inerentes à linguagem. Nas palavras de Wittgenstein, “a filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento do
nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem (IF 109), filosofar é realizar uma terapia da
linguagem”552. Aliás, a terapia linguística “não é indicada apenas para os problemas dos filósofos
profissionais. A origem dos problemas encontra-se na própria linguagem. E esta é o ‘meio’ em que se
desenvolve todo nosso pensamento, não apenas na filosofia, mas também nas ciências de qualquer tipo,
bem como em nossa comunicação diária”553, o que está em consonância com o filosofar enquanto tomada
de consciência do nosso tempo (vivido e pensado).
A crítica da hermenêutica filosófica à concepção de verdade das ciências é que estas se referem a
um tipo de comportamento em relação ao mundo que é apenas um entre outros. A partir da unidade vital
da linguagem, a linguagem científica constitui apenas um dos seus momentos, pois existe uma linguagem
filosófica, uma religiosa, uma poética.
A linguagem pode servir para a manutenção de consciências alienadas. Analogamente à
atividade terapêutica, a tarefa crítica da hermenêutica filosófica dirige-se contra determinadas ideologias
com a intenção de esclarecer as consciências alienadas e proporcionar uma compreensão mais adequada
do real. Embora a escola possa ser uma instituição de conformismo social, na linguagem, apesar de todos
os conformismos, “nascem novas situações e novos modos enunciativos derivados das mudanças de
nossa vida e de nossa experiência”554. A linguagem se desenvolve na tensão entre convenção e ruptura
criativa (o que nos reporta à tensão, junto aos sofistas, entre fisis e nómos).
A tarefa crítica da hermenêutica, com relação à ideologia, consiste em desvendar sua presumida
objetividade “como expressão da estabilidade das relações de poder. A crítica da ideologia tenta
explicitar e dissolver, com a ajuda da reflexão histórica e sociológica, os pré-juízos sociais imperantes, isto
é, tenta desfazer o encobrimento que preside a influência incontrolada de tais pré-juízos”555. O que não é
uma tarefa fácil, pois mostrar, “pôr em dúvida o óbvio provoca sempre resistência de todas as evidências
práticas. Porém aqui reside a função da teoria hermenêutica: esta cria uma disposição geral capaz de
bloquear a disposição especial de alguns hábitos e pré-conceitos arraigados”556. Enquanto crítica, a
hermenêutica filosófica elucida, argumentativamente, pré-juízos tidos como dogmas.
Enquanto crítica da linguagem, a hermenêutica procura mostrar o que precede e procede das
ciências, sendo “necessário compreender simultaneamente a ciência como atividade particular entre
outras atividades humanas e denunciar com vigor o antropocentrismo da ciência moderna, a consagração
do modelo propriamente científico em modelo universal”557. Em linguagem wittgensteiniana, “trata-se de
adquirir uma consciência reflexa da gramática de nossas palavras. Neste sentido falamos aqui da
elaboração de um pensamento crítico”558.
A totalidade social que chega até nós é essencialmente linguística, por isso “não é possível
educação humana se não há comunicação linguística. Porém a linguagem que atua educativamente é uma
linguagem acentuada já de uma maneira peculiar e que nos orienta, dirige”, e, nesse sentido, “toda
linguagem é, pois, educativa formativa ou deformativamente”559. A questão

é se podemos evadir-nos do círculo mágico de nossa educação linguística, de nossos hábitos linguísticos e de nosso modo de
pensar mediado linguisticamente, e se sabemos expor-nos ao encontro com uma realidade que não corresponde a nossos pré-
juízos, esquemas e expectativas. Esta suspeita se dá nas condições atuais, isto é, ante a inquietação generalizada de nossa
consciência existencial em relação ao futuro da humanidade, como um crescente receio de que, se seguirmos impulsionando a
industrialização e a exploração de nosso trabalho humano e organizando nosso planeta a modo de uma imensa fábrica,
ponhamos em perigo as condições vitais do ser humano tanto no plano biológico como no plano de seus ideais humanos até
chegar à autodestruição560.

A hermenêutica, enquanto crítica, nos impulsiona a questionar se não haveria algo errôneo em
nossa conduta dentro do mundo, se a nossa experiência “não alberga certos pré-juízos ou, o que seria
pior, se estamos embarcados em processos irresistíveis que se reportam à estrutura linguística de nossa
primeira experiência do mundo e corremos para um beco sem saída”561. A reflexão crítica sobre a
linguagem estrutura-se, em última instância, sobre o sentido da existência humana, do qual nasceu e
sobre o qual se sustenta o filosofar. Não é difícil prever nossa própria possibilidade de autodestruição,
caso não realizemos uma terapia de nossa linguagem, uma reflexão sobre nossos valores, corporificada
em nosso modo de ser linguagem.
A hermenêutica filosófica propõe-se a mostrar até que ponto nosso modo de ser linguagem está
nos levando à possibilidade de destruição nossa e do nosso planeta. Ninguém nega “que nossa
linguagem exerce uma influência em nosso pensamento. Pensamos com palavras. Pensar significa pensar-
se algo. E pensar-se algo significa dizer-se algo”562. Não se trata de tachar a linguagem como o “bode
expiatório” da nossa situação ético-política. A partir dela e com ela é que podemos repensar e retomar os
caminhos humanos, uma vez que a palavra e o agir encontram-se intimamente envolvidos.
Enquanto tarefa crítica, a hermenêutica filosófica é prática e universal. Uma filosofia como teoria
asséptica não tem sentido caso não se encontre vinculada à práxis histórica. O “pensamento filosófico tem
sido um esforço por uma libertação e uma afirmação do ser humano. A filosofia que não tem contribuído
para isso não é filosofia”563. A virada de pensamento do 1º ao 2º Wittgenstein – passagem de uma
linguagem abstrata, lógico-analítica, para uma concepção de filosofia pragmática – preconiza e ratifica a
dimensão crítico-prática da hermenêutica. Afinal, “enquanto as regras de nossa gramática não são algo
‘privado’, mas público, temos, desde a origem, a presença da dimensão social (...) e o ‘falar da linguagem
é parte de uma atividade, ou forma de vida’ (IF, § 23)”564; e a tarefa crítico-terapêutica não está às voltas
com palavras e normas vazias, mas traz à tona e reflete sobre nosso modo de agir e de viver.
Até o momento debruçamo-nos sobre a tarefa crítica da hermenêutica – até certo ponto ad extra.
Desenvolvamos agora sua dimensão autocrítica. Se a finitude é um traço essencial de sua identidade,
portanto do filosofar, ela deve refletir constantemente sobre seus próprios condicionamentos e posições.
Trabalho este que consiste em tomar consciência das ilusões que a própria abstração carrega e defende.
Uma “consciência crítica que encontra em tudo pré-juízos e dependência, porém se considera ela mesma
absoluta, isto é, livre de pré-juízos e independente, incorre necessariamente em ilusões. Porque ela
mesma é motivada por aquilo cuja crítica ela é. Há para ela uma dependência indestrutível com respeito
àquilo que compreende”565. Enquanto crítica, ela é histórica e, por isso, está em tensão entre possibilidade
e limitação espaçotemporal.
A hermenêutica “deve re-encontrar as possibilidades do jogo linguístico humano que excedem a
alternativa rígida da verdade e do erro, da mesmidade e da diferença porque respeitam a liberdade
implicada no silêncio e reserva próprios da presença historial do ser”566. Wittgenstein realizou isso pela
análise dos diferentes jogos de linguagem, onde as questões tradicionais que se convertem em perguntas
a respeito da realidade, do mundo são, na verdade, perguntas a respeito do emprego de nossas palavras,
da gramática da nossa linguagem. Perguntas que, dirigidas a alguém, constituem-se, na verdade, em
pedidos para que a pessoa diga algo a respeito de si mesma, para que descreva o que faz, e “isto significa
que estamos perante um método de autoconhecimento. Trata-se de um autêntico ‘retorno sobre si’, de um
‘recordar’ (cf. IF, § 127). Contudo, já não é um recordar no sentido da ‘reminiscência’ platônica, que teima
em saltar por cima de nossa gramática, mas de um recordar de como realmente somos, falamos, agimos e
vivemos”567. A hermenêutica filosófica, crítica e autocrítica conserva a tensão e a formação da linguagem
e da vida.
Na perspectiva de explicitar a linguagem como condição e efetivação, como princípio da
hermenêutica filosófica, a partir da imbricação necessária entre hermenêutica e linguagem, superamos a
concepção de hermenêutica de cunho psicologizante e historicizante. A linguagem não comporta apenas
o aspecto psicológico ou histórico-científico, mas é sempre social, inacabada, processual – um princípio,
portanto.
A linguagem da hermenêutica filosófica, irredutível à linguagem de cunho lógico-analítico, é “o
lugar onde o mundo se representa; a experiência linguística do mundo se situa, independentemente da
vontade do sujeito, por isso ela é absoluta; é mais fundamental esta relação que aquela que estabelece a
distinção ‘ser-em-si’, ‘ser-para-si’; o modo de linguagem é um a priori in-ultrapassável do
conhecimento”568. Nesse sentido, dizemos que ela se desvela como princípio, constitui e é constituinte da
hermenêutica filosófica.
A concepção gadameriana de linguagem desenvolvida em sua obra aponta para uma espécie de
determinismo linguístico. Gadamer não desenvolveu, lastimavelmente, a identidade e a diferença para
com a linguagem que se distingue da lógico-analítica, como, p. ex., D. Davidson, H. Putnam. Faz parte da
estratégia filosófica gadameriana acentuar o contraste para explicitar seu projeto, o que vale também para
a concepção de ciência, de jogo, de história, de linguagem. A concepção de ciência que ele tem em vista,
em VMI – e praticamente ao longo de toda a sua obra –, é aquela que segue o modelo argumentativo das
ciências naturais.
O diálogo como lugar, espaço, modo de ser da hermenêutica filosófica e a linguagem como
medium da experiência hermenêutica nos levaram a concluir que “nossa experiência do mundo não se
produz só na aprendizagem da fala nem no exercício da linguagem. Há uma experiência do mundo que é
pré-linguística”; há uma linguagem dos gestos, das mãos, das experiências pré-linguísticas, e “estes
fenômenos indicam que atrás de todas as relatividades de linguagem e convenções há algo comum que
não é já linguagem, mas um algo comum orientado a uma possível formulação em linguagem”569. Nossa
reflexão sobre o diálogo hermenêutico remete a algo anterior e posterior à linguagem, que pode vir a ser
linguagem. Afinal, o logos vai além da dimensão apofântica, pois o ser, como afirmou Aristóteles, “se diz
de muitas maneiras”, o que, em última instância, constitui uma ontologia; e o “ser que pode ser
compreendido é linguagem” desvela uma outra concepção de metafísica.

3.3 Hermenêutica filosófica enquanto ontologia

A ontologia hermenêutica determina-se a si mesma como uma ontologia da experiência e da linguagem570.

Enquanto lugar e espaço próprio para a hermenêutica filosófica realizar-se, o diálogo efetiva-se
como modo de ser, como experiência, isto é, como ontologia. Foi sob o tema do hermeneutic turn que
desenvolvemos a virada do ideal metodológico da ciência e hermenêutica modernas para o ontológico e
justificamos, a partir de Heidegger e de Gadamer, a hermenêutica ontológica. Nossas reflexões
apontaram, direta e indiretamente, para algo “mais”, algo “anterior e posterior” à linguagem da
experiência, do jogo, do círculo, do diálogo, que poderia ser denominado como pré-reflexivo – dada a
inesgotabilidade de sentido presente nelas –, que denominamos de ontológico.
O risco de elaborar uma reflexão sobre ontologia é paralisar o vir-a-ser do pensar e do conhecer,
o que justifica, em parte, o abandono dela por parte de Gadamer. Ocorreria, sim, uma paralisação se
ficássemos presos apenas a um único modelo de ontologia. A experiência e a linguagem, como princípios
da hermenêutica filosófica, estruturam uma ontologia não mais como uma teoria fechada, fundacional, da
qual aquela decorreria ou onde estaria fixada. Não pretendemos ressuscitar a ontologia tradicional, que –
partindo de princípios lógicos e ontológicos – derivaria e justificaria o status da hermenêutica como
filosofia.
Gadamer ocupou-se com o problema da ontologia em VMI, na seção intitulada “A virada
ontológica da hermenêutica pelo fio condutor da linguagem”, e desenvolveu a “linguagem como
horizonte de uma ontologia hermenêutica”. Embora tenha abandonado essa problemática em sua obra
posterior e em poucos lugares tratado disso, retomaremos e desenvolveremos suas reflexões.
Desdobraremos essa problemática em três momentos distintos e interdependentes. Inicialmente
apresentaremos, criticamente, traços da ontologia hermenêutica na obra de Gadamer. Em seguida,
desenvolveremos nossa concepção de hermenêutica ontológica (hermenêutica filosófica enquanto
ontologia) e, no final, em forma de revisão e síntese aberta, refletiremos sobre a afirmação gadameriana
“ser que pode ser compreendido é linguagem”, que retrata e justifica uma concepção de metafísica.

Traços da ontologia hermenêutica na obra de Gadamer

Como viajantes, sempre voltamos para casa com novas experiências.


Como perambulantes, que jamais irão voltar para casa, também não poderemos esquecer totalmente571.

Uma vez que a filosofia não pode ser reduzida à epistemologia, ao modelo de teoria do
conhecimento tradicional, mas deve ser pensada como um todo que fundamenta e articula nosso modo
de conhecer com nosso modo de agir, ela pressupõe uma metafísica que se desdobra numa ontologia.
Vejamos os três traços principais da ontologia hermenêutica em Gadamer: ontologia hermenêutica
enquanto experiência; metafísica, ontologia hermenêutica e o medium da linguagem; ontologia
hermenêutica e universalidade. São oportunas aqui as palavras de R. Wiehl, para quem a ontologia
hermenêutica

determina-se a si mesma como uma ontologia da experiência e da linguagem. Ela, entretanto, não quer substituir, através dessa
fundamentação própria, a ontologia tradicional por uma nova, assim como tampouco pretende simplesmente assumir a antiga
ontologia e usá-la como fundamento. A ontologia hermenêutica da experiência e da linguagem não se deixa forçar em um
esquema dicotômico de separação entre antigo e novo572.

A ontologia hermenêutica desenvolvida por Gadamer difere da ontologia hermenêutica


fundacional preocupada em desvelar o ser mais originário (ur-ur-sein). Aquela procura caracterizar e
integrar o desvelamento do ser mais originário com o ser científico, porque o ser, que se diz de muitos e
diferentes modos, acontece como uma experiência da linguagem universal.

Ontologia hermenêutica enquanto experiência


A linguagem, além de não ser objetificável, impõe-se como fundamento e possibilidade do
conhecimento da realidade enquanto experiência.
A linguagem, que é uma acepção de mundo, acontece como uma experiência do mundo, que é
uma experiência ontológica e que constitui a ontologia hermenêutica. Compreendemos isso melhor
retomando a concepção humboldtiana, segundo a qual “as línguas são produtos da ‘força do espírito’
humano. Onde há linguagem está em ação a força linguística originária do espírito humano, e cada língua
está em condições de alcançar o objetivo geral que se procura com essa força natural do homem”573. Há
uma unidade entre linguagem-experiência e tradição-experiência, linguagem e visão de mundo, o modo
de ser e conhecer. Por isso, aprender uma língua estrangeira implica experienciar o alargamento do
próprio ponto de vista e conquistar um novo. Com isso não erradicamos nossa própria acepção do
mundo, que tem sua própria verdade em si e, concomitantemente, uma verdade própria para nós.
A ontologia como experiência do mundo se fundamenta na descoberta humboldtiana “da acepção
da linguagem como acepção do mundo. Ele reconheceu a essência da linguagem como a realização viva do
falar, a energeia linguística, rompendo assim com o dogmatismo dos gramáticos, a partir do conceito de
força”574. Linguagem no horizonte e enquanto ontologia hermenêutica significa afirmar que ela deve ser
pensada como um processo vital particular e único, pois no modo de ser linguagem (Sprachlichkeit) o
mundo é construído e manifestado. Ela é, mais que simples meio de entendimento, uma experiência, e
prova disto é o fato de que os sistemas de entendimento artificial inventados não se constituem em
linguagens. Na ontologia hermenêutica, enquanto processo existencial, o filosofar não possui a pretensão
de desvincular-se da história, da contingência, da finitude, a fim de construir um sistema de princípios
lógicos e ontológicos, válido ad aeternum, dos quais tudo decorreria.
A linguagem da nossa experiência do mundo não exclui outros mundos ou nosso próprio
mundo; antes, “como viajantes, sempre voltamos para casa com novas experiências. Como
perambulantes, que jamais irão voltar para casa, também não poderemos esquecer totalmente”575. Se
conseguíssemos obter uma verdadeira clareza sobre o condicionamento histórico do conhecimento
humano, nunca poderíamos chegar à posição de incondicionados no mundo. Nesse sentido,
aproximamo-nos e identificamo-nos mais com a imagem arquetípica de Abraão do que com Ulisses. O
primeiro enfrentou o caminho e o risco do desconhecido, assumindo as consequências do diferente, ao
passo que o segundo saiu e voltou ileso ao mesmo lugar.
Enquanto experiência do mundo, a linguagem pode explicitar e compor as relações vitais mais
diversas, mas não pode se reduzir a juízos lógicos. A explicação copernicana (científica) do cosmos, p. ex.,
não rompeu com nosso modo de falar, segundo o qual o sol se põe. Esse exemplo mostra que nossa
linguagem não se restringe à forma enunciativa lógica, mas remete a algo metafísico e anterior à
linguagem mesma que denominamos de ontológica. Esse modo de falar do sol não é arbitrário, pois o pôr
do sol é, para nós, uma realidade experiencial relativa ao nosso estar aí. Podemos, por meio do
pensamento, livrar-nos desse tipo de conhecimento, constituindo outro, mas podemos também concordar
com a justificativa racional que a teoria copernicana oferece. Por outro lado, “com os olhos dessa ‘razão’
científica, não podemos nem cancelar nem refutar a aparência natural. Isso não somente seria absurdo,
porque a dita aparência é para nós uma verdadeira realidade, mas também porque a verdade que nos
narra a ciência é, por sua vez, relativa a um determinado comportamento face ao mundo, e não pode
pretender ser o todo”576. Tomar consciência do todo, mesmo que não totalmente conceitualizável, é uma
experiência hermenêutica que caracteriza a ontologia hermenêutica enquanto um saber que constitui um
modo de ser. Enquanto ontologia, a experiência hermenêutica desvenda nosso modo de conhecer e de
agir. Na linguagem é mantida e transformada a imediatez de nossa contemplação do mundo e de nós
mesmos porque experienciamos que “como seres finitos sempre viemos de muito antes e chegamos até
muito depois”577.
A linguagem como horizonte de uma ontologia hermenêutica pode ser expressa e compreendida
no fato de que ela, enquanto nossa experiência do mundo, “precede a tudo quanto pode ser reconhecido e
interpelado como ente. A relação fundamental de linguagem e mundo não significa, portanto, que o mundo se
torne objeto da linguagem. Aquilo que é objeto do conhecimento e de seus enunciados se encontra, pelo
contrário, abrangido sempre pelo horizonte do mundo da linguagem”578. Nesse sentido, a ontologia
hermenêutica tem presente o pré-racional, o não tematizável, que não se confunde com o irracional ou
dado sensível imediato. Pré-racional enquanto experiência que vivenciamos, p. ex., ao assistir a uma peça
teatral e sentir a impossibilidade de descrevê-la em palavras e onde, no final, só nos resta dizer ao outro:
“Só assistindo para saber” o que e como ela é. Denominamos essa realidade mais ampla, e, por assim
dizer, “transcendental”, de ontologia enquanto trata de um modo de ser, de agir, mais do que uma
maneira de conhecer, por envolver o nível do dito e não dito. O célebre exemplo de Aristóteles sobre a
aprendizagem da fala ilustra muito bem esse pré-racional, não tematizável, que não pode ser identificado
com o irracional. A criança aprende a falar não apenas quando balbucia as primeiras palavras, mas a
partir do momento em que vive num determinado ambiente. A vivência que precede, o “antes” do
primeiro balbucio, é que possibilita à criança falar. Isso é ontológico no sentido de constitutivo, de
existencial, de fáctico.
Boa parte da tradição filosófica interpretou e circunscreveu a filosofia grega preocupada apenas
com o “ser em si”. De acordo com tal interpretação, a distinção entre o essencial e o acidental serviu para
assegurar um conhecimento seguro e universal (do ser) em enunciados objetivados. Para os modernos, o
“ser em si” não se refere à diferença ontológica entre essencial e inessencial, mas se constitui como
conhecimento assegurado, a partir do conhecer e do dominar a coisa por parte de um sujeito cognoscente.
Contudo, o que é “em si” está sempre relacionado como um modo de querer e saber; o que é “em si” é
percebido e conhecido perspectivamente. O fundamental passa a ser não mais o ser “em si”, mas o ser
para nós. Como seres finitos, sempre chegamos tarde demais à história, à linguagem, à filosofia. O
universo biológico e o físico atestam a relatividade do nosso estar e ser aí num tempo e espaço
determinados, e a constituição desse projeto filosófico institui a ontologia hermenêutica.
A reflexão sobre o “ser em si”, nas ciências, é sempre relativa ao ser que o objetifica e descreve,
daí por que não podemos defender essa pretensão objetificadora de conhecer como a única válida. As
ciências procuram delimitar a região do seu objeto, e conhecê-lo significa dominá-lo. Do ponto de vista
hermenêutico, o saber não tem esse escopo prático-utilitarista, mas plasma-se como um saber para
compreender, situar-se e ser melhor como ser humano, como um todo.
Desse modo, “o Dasein humano não pode se pensar mais como ser privativo (...) mas é um
esboço projetado de si mesmo, ser como tempo”579. Podemos tomar distância – até certo ponto – para
com nossa imersão no mundo, assim como uma emersão total com relação a ele também é impossível. Ser
como tempo significa assumir e trabalhar com e a partir de nossa finitude, sem a pretensão de encontrar
um fundamento inabalável fora da experiência no modo de ser linguagem do mundo, livres do “poder da
linguagem”.
Na ontologia hermenêutica, enquanto experiência do mundo, falar não significa dispor das
palavras como se fossem coisas. O enunciado e o juízo representam apenas uma forma especial dentro da
multiplicidade do comportamento humano enquanto linguagem, e essa experiência permanece
entrelaçada com nosso mundo vital. Daí que “a ciência objetificadora considera a conformação no modo
de ser linguagem (Sprachlichkeit) da experiência natural do mundo como uma fonte de pré-conceitos”580.
Ela, mais do que fonte de engodos e pré-conceitos, é condição e efetivação mesma do saber, é uma
experiência do mundo, modo de viver e de ser, portanto, constitui-se em ontologia.

Metafísica581, ontologia hermenêutica e o medium da linguagem


Retomando o itinerário da metafísica grega e moderna, o segundo traço da ontologia
hermenêutica em Gadamer fundamenta-se com o medium da linguagem. Não se trata de seguir o
autoesquecimento do pensamento tematizado na metafísica grega, que pensa o ser do ente como ente que
se realiza a si mesmo no pensar. Não se pretende fundamentar a ontologia hermenêutica sobre a base do
conceito moderno de subjetividade. O que a fundamenta “é precisamente a finitude de nossa experiência
histórica. Para fazer justiça a isso, seguimos o rastro da linguagem; nesse, não se copia a estrutura do ser,
simplesmente, mas é no seu envio que se formam, primeiramente e em constante mudança, a ordenação e
a estrutura de nossa própria experiência”582.
A linguagem não é o indicador da nossa finitude pela diversidade de sua estruturação – como
nos narra o mito da torre de Babel, p. ex. –, mas porque toda língua está em constante formação e
desenvolvimento. A linguagem também não aponta nossa finitude por não incorporar e expressar ao
mesmo tempo todas as demais línguas. Mas é na finitude, na particularidade do nosso ser que se mostra
na diversidade das línguas e se justifica o diálogo infinito em direção à verdade que somos. É no medium
da linguagem que ocorre toda a nossa experiência do mundo, e a consciência do limite da linguagem é
consciência também da nossa temporalidade; por isso a hermenêutica filosófica estrutura-se como
ontologia e metafísica da finitude. Nesta concepção de metafísica, a linguagem não pode ser
suprassumida ou eliminada, mas deve ser ampliada, por conter a tensão entre o finito e o infinito, entre
nossa fome de pão e de sentido.
Desse modo, “a palavra não é simplesmente a perfeição da Species, como acreditava o
pensamento medieval (...) não é cópia de uma ordenação prévia do ser, cujas verdadeiras relações só
serão presentes para um espírito infinito (...) não é tampouco um instrumento capaz de construir, como a
linguagem matemática, um universo de entes, objetivados e disponíveis graças ao cálculo”583, mas o
espaço, o lugar em que se constrói a metafísica, a ontologia, expressável pelo termo medium, que, referido
ao todo dos entes, pode mediar a essência histórico-finita do homem em relação a si e ao mundo.
A palavra tem um poder, uma história, uma tradição, uma dinâmica própria; está relacionada
com um todo e faz ressoar o conjunto da língua a que pertence;

por isso, cada palavra, como acontecer de seu momento, faz com que aí esteja também o não dito, ao qual se refere, respondendo
e indicando. A ocasionalidade do falar humano não é uma imperfeição eventual de sua capacidade expressiva, mas, antes,
expressão lógica da virtualidade viva do falar que, sem poder dizê-lo inteiramente, põe em jogo todo um conjunto de sentido.
Todo falar humano é finito no sentido de que, nele, jaz uma infinitude de sentido a ser desenvolvida e interpretada. Por isso,
também o fenômeno hermenêutico deve ser esclarecido a partir dessa constituição fundamentalmente finita do ser, que, desde o
seu fundamento, está construída no modo de ser linguagem584.

Na metafísica grega e medieval, pensou-se a relação entre ser e verdade objetivamente, onde o
que é, é verdadeiro por sua essência, independentemente da designação conferida por um sujeito. Já o
ideal metodológico da ciência moderna procura garantir cada um de seus passos por meio do recurso a
elementos fundamentados na subjetividade, a partir dos quais constrói sua representação. Encontramos
na metafísica grega uma contribuição corretiva importante para a ciência moderna. Naquela, a
fundamentação da objetividade não se faz apenas a partir e em função da subjetividade; o pensamento foi
considerado como momento do ser, e a dialética não era, para os gregos, um movimento necessitário,
formal que o pensamento leva a cabo, mas o movimento da própria coisa. Hegel, por isso mesmo,
assumiu inicialmente o modelo da dialética grega, mas no final sucumbiu à orientação filosófico-
moderna. A ontologia hermenêutica busca o reconhecimento do entrelaçamento do acontecer da coisa
mesma, tal como a metafísica grega desenvolveu em conexão com a postura determinadora do sujeito em
relação ao mundo.
A superação do conceito de objeto e da objetividade da compreensão, na perspectiva da pertença
mútua e afetação do sujeito, limita-se a mostrar a importância do seguir da própria coisa. Gadamer
desenvolveu sua crítica à consciência estética, explicitou a crítica à consciência histórica, que “obrigou-nos
a criticar o conceito do objetivo e forçou-nos a nos apartar da fundamentação cartesiana da ciência
moderna, para retomar certos momentos de verdade do pensamento grego. Não obstante, não podemos
seguir simplesmente nem os gregos nem a filosofia da identidade do idealismo alemão: nós pensamos a
partir do medium da linguagem”585. Esta é a questão fundamental de Gadamer, em relação à metafísica
grega, à ciência moderna e à filosofia de Heidegger. Elas possuem a pretensão de sistema, com conceitos,
princípios lógicos e ontológicos, do qual tudo se deduziria e no qual a contingência e a liberdade seriam
subsumidos. A linguagem é mais viva, histórica, dinâmica, e diante dela a atitude filosófica deve ser
menos arqueológica – em sentido heideggeriano – e menos teleológica – em sentido hegeliano. Gadamer
procurou resgatar, pelo medium da linguagem, a importância da objetividade da “coisa em si” da
metafísica grega e da subjetividade moderna, introduzida pelo idealismo. Pensamos que deu conta muito
bem do primeiro aspecto, ressaltando o valor da coisa mesma, descentrada do olhar dominador do
sujeito. Em outras palavras, elaborou uma ontologia hermenêutica em coerência e consonância com o
movimento fenomenológico. Talvez isso se deva à fidelidade excessiva a Heidegger ou à ênfase dada ao
destronamento da subjetividade moderna.
O que significa, pois, que nós pensemos a partir do médium da linguagem? Diferentemente da
metafísica grega, a experiência hermenêutica se realiza no modo de ser linguagem, no acontecer dialógico
entre sujeito e objeto, tradição e intérprete, onde o decisivo é que acontece algo em relação à consciência e
ao objeto. Sob essa perspectiva, o sujeito não é senhor do que chega a ele nem pode descrever clara e
distintamente sua busca de sentido. A partir do sujeito, acontecer “quer dizer que não é ele que, como
conhecedor, busca seu objeto e ‘extrai’ com meios metodológicos o que se quis dizer e tal como realmente
era (...) o verdadeiro acontecer só se torna possível na medida em que a palavra que chega a nós a partir
da tradição, e à qual temos de ouvir, nos alcança de verdade, e o faz como se falasse a nós e se referisse a
nós mesmos”586.
Da parte do objeto, “esse acontecer significa que o conteúdo da tradição entra em jogo e se
desenvolve em possibilidades de sentido e ressonância sempre novas e ampliadas de modo novo pelo
outro receptor. Quando a tradição volta a falar, emerge algo e entra em cena algo que antes não era”587.
Esse antes que não era e se faz palavra, nas duas formas, denominamos de ontológico. Isso se aplica para
qualquer exemplo histórico, seja uma obra de arte, seja uma obra literária, pois tudo o que é tematizado,
retomado, torna-se uma recriação, uma re-produção.
Pela experiência hermenêutica, a linguagem não constitui o verdadeiro acontecer hermenêutico
enquanto gramática, mas enquanto vir à fala daquilo que se fixou na tradição, tecido, concomitantemente,
pela apropriação e pela interpretação. Esse acontecer não é produto de nossa ação na coisa, mas uma
instauração a partir da ação da própria coisa. Essa perspectiva ratifica a concepção gadameriana de
ontologia hermenêutica, cujo projeto se assemelha ao “fazer da própria coisa”, tal como foi exposto, em
parte, na Fenomenologia do Espírito.
Isso não significa que o conhecimento filosófico não requeira seu esforço, a atuação expressa da
subjetividade, o esforço do conceito. O fato é que tal esforço, agora, não se faz de modo arbitrário, e a
coisa também não “segue seu curso sem que nós pensemos. Pensar, porém, quer dizer precisamente
desenvolver uma coisa em sua própria consequência”, distanciando-se das “representações ‘que
costumam se interpor’, e ater-se estritamente à consequência do pensamento”588. A filosofia grega deu a
isso o nome de dialética, e aqui estruturamos e denominamos de hermenêutica filosófica que se desdobra
na experiência, no jogo, no círculo hermenêutico, no diálogo, na linguagem.
Originalmente, importava na dialética que a coisa mesma se fizesse valer. Nela, o importante era
a entrega à força do pensar e não deixar que ideias e opiniões “externas” determinassem o filosofar. Em
Hegel, a dialética “positiva”, no final, predomina como autodesenvolvimento do pensamento puro na
direção do todo sistemático da verdade. Gadamer retoma a intuição primeira de Hegel, que é a
valorização e a defesa do fazer da própria coisa a partir da subjetividade moderna, mas não desenvolve
nem corrobora sua dialética positiva, que, no final, exclui a contingência e a liberdade.
A experiência hermenêutica se compõe a partir do médium da linguagem, sem procurar libertar-
se, total e assepticamente, do “poder da linguagem”. Contudo, “também na experiência hermenêutica,
encontra-se algo como uma dialética, um fazer da própria coisa, um fazer que, à diferença da
metodologia da ciência moderna, é um padecer, um compreender que é um acontecer”589, em tudo
diferente da atividade fenomenológica que procura, pelo epoché, chegar às coisas mesmas. A experiência
hermenêutica é sempre original no sentido de não prefixar um caminho a ser percorrido, por isso é
ontológica e irrepetível, como é o caso de uma pergunta e uma resposta dialógicas que têm o seu tempo, a
sua maturidade, a sua “hora e vez”.
Gadamer retoma, em sua explicitação sobre a linguagem enquanto experiência do mundo, a
metafísica grega e a moderna, para resgatar na primeira a valorização da “coisa em si” e na segunda a
atuação da “subjetividade”. Fá-lo a partir do medium da linguagem, criticando também a absolutização da
“coisa em si” e da “subjetividade”. A ontologia hermenêutica não parte, pois, da dicotomia entre o
mundo inteligível e o sensível, o mundo lunar e o supralunar, Deus e as criaturas, espírito Absoluto e o
reino das necessidades, das contingências humanas. Ela não se fundamenta num ser divino como seu
garante ao modo das Meditações cartesianas; não é uma ontologia decaída ou uma antecâmara que, pelo
processo dialético necessitário, culminaria no espírito Absoluto. O ser humano também é, diferente do
absoluto, mas nem por isso menos ser. Ele é um “projeto projetado”, ele é, enquanto tal, e por isso não
podemos dizer que ele não-é se comparado com o “ato puro”. Ele é ser que pode se expressar e ser
compreendido linguisticamente. É isso que a hermenêutica filosófica de Gadamer leva a sério a partir de
Husserl e de Heidegger e que a tradição filosófica não levara a sério até então, ou seja, a finitude humana
da experiência histórica que é e acontece no medium da linguagem. A ontologia hermenêutica é uma
ontologia da finitude, que não escamoteia o limite do saber, mas, enquanto ontologia da “experiência e da
linguagem, levanta a pretensão de ser tanto mais original quanto também mais abrangente que a
metafísica tradicional”590.

Ontologia hermenêutica e universalidade


A filosofia sempre esteve às voltas com a questão da universalidade. O último subcapítulo de
VMI intitula-se “A estrutura universal da hermenêutica”. A abordagem de Gadamer, por um lado, é
ambígua porque parece que pretende justificar-se diante do idealismo, da ciência preocupada
obsessivamente com um tipo de universalidade. Ele permaneceu preso, em parte, ao ideal científico e
talvez por isso não quis levar às últimas consequências os desdobramentos da ontologia hermenêutica. O
subcapítulo mencionado significa e expressa-se como “a estrutura ontológica da hermenêutica”.
Embora Gadamer tenha realizado essa identificação, não pensamos que isso justifique esse título
por assim dizer “iluminista”. Por outro lado, é coerente porque a hermenêutica filosófica tem a
universalidade não como um a priori ou um pressuposto de validação do seu discurso, mas como
intrínseco ao seu desenvolvimento. É coerente porque não fugiu desse problema e porque o sentido que
confere à universalidade difere do moderno-científico, uma vez que não advém como resultado do
processo indutivo ou dedutivo.
Vimos que a linguagem é o medium em que se reúnem o eu e o mundo. Na análise da linguagem
do diálogo, na linguagem da interpretação, tornou-se patente a estrutura que designamos ontológica “da
linguagem, que não consiste em ser cópia de algo que está dado de modo fixo, mas em um vir-à-fala,
onde se anuncia um todo de sentido”. O que nos aproximou da dialética antiga, “porque tampouco nela
se dava uma atividade metodológica do sujeito, mas um fazer da própria coisa, um fazer que o
pensamento ‘padece’”591. Dessa argumentação decorre a significativa afirmação gadameriana: “Agora
estamos em condições de compreender que essa cunhagem da ideia do fazer da própria coisa, do sentido
que vem-à-fala, aponta a uma estrutura universal-ontológica, à constituição fundamental de tudo aquilo a
que a compreensão pode se voltar. O ser que pode ser compreendido é linguagem”592 (grifo nosso). Esta
afirmação é central, resume e explicita a concepção de hermenêutica filosófica enquanto ontologia
hermenêutica. Os “adversários” da hermenêutica veem-na como seu tendão de Aquiles e usam-na para
criticá-la. Retomaremos essa afirmação, visto que ela permite retratar, em forma de síntese, como a
experiência e a linguagem justificam-se como princípios da hermenêutica filosófica enquanto metafísica e
ontologia, que se encontram estruturadas e sustentadas entre a linguagem da experiência e a experiência
da linguagem.
O que vem à fala não é uma anamnesis de uma ideia ou de um a priori, mas nela ocorre algo novo,
uma experiência, mais que um experimento ou uma cópia. O ser da obra de arte não é um “ser em si” –
como pretendiam a metafísica tradicional e a estética de Kant – distinto de sua reprodução. Gadamer
criticou o historicismo, que tradicionalmente defendeu a existência do sentido de um texto como “objeto
em si”, fixo, a ser descoberto, extraído e comunicado em palavras. Tanto na consciência estética quanto na
histórica acontece uma mediação entre passado e presente. Daí que justificou o modo de ser linguagem
como medium universal dessa mediação estética e histórica. A hermenêutica adquire, desse modo, “a
dimensão de questionamento universal. Pois a relação humana com o mundo acontece no modo de ser
linguagem e é, portanto, compreensível em geral e por princípio”593. Essa universalidade é mais ampla
que aquela resultante de um processo indutivo, pois a hermenêutica é “um aspecto universal594 da filosofia e
não somente a base metodológica das chamadas ciências do espírito”. Concordamos que a hermenêutica
não deve ser concebida como a “base metodológica das ciências” nem como o método mais adequado das
ciências do espírito, como Schleiermacher e Dilthey desenvolveram. Mais do que método, é conteúdo
também, é uma postura, um modo de ser aberto, atento, disponível, mostrável pelo diálogo, pelo círculo,
pelo jogo. Não concordamos que a hermenêutica seja simplesmente um aspecto universal da filosofia,
como se aquela se reduzisse a um adjetivo desta. A hermenêutica é universal em seu modo de proceder e
em sua pretensão; afinal, o que moveu, move e continuará movendo o filosofar é um saber, é uma
experiência de sentido de vida, mais ampla que a linguagem apofântica, uma vez que “a verdadeira
linguagem jamais esgota o enunciável. Sua universalidade é a busca da linguagem”595, busca de palavras
para nos compreender no mundo.
Nossa perspectiva consiste em afirmar não apenas que a ontologia é hermenêutica, mas que a
hermenêutica é ontológica. Talvez a influência iluminista em Gadamer não tenha permitido que incluísse
uma reflexão mais explícita sobre o mito em VMI e tenha apenas equiparado ontologia com
universalidade. O jogo, o círculo hermenêutico e o diálogo, que, como dimensões universais da filosofia,
são constituintes e constituidores do filosofar, são mediuns nos quais se representa e acontece “o ser que
pode ser compreendido”. Mais do que simples epistemologia, cópia, intuição do ser e dos seres, é
ontologia, constituição, postura deles perante o mundo, os outros e eles mesmos.
A limitação da metafísica e da ciência foi terem abstraído, pelo conhecimento, as relações
originárias com o mundo, para certificar-se do ente e organizar tal conhecimento metodicamente.
Gadamer desenvolveu e apresentou a experiência da obra de arte e da história como fios condutores para
justificar a hermenêutica como universal. É um equívoco resolver o suposto e o pressuposto tentador da
ciência, que padece a hermenêutica – em busca de universalidade –, substituindo a universalidade
matemática exigida pelas ciências pela universalidade fenomenológico-ontológica do ser humano, que se
constitui no modo de ser linguagem.
O ser enquanto representar-se e o filosofar enquanto acontecer levam-nos a superar o horizonte
da metafísica da substância, que se transmutou nos conceitos da subjetividade e da objetividade
científicas. Para sugerir essa metafísica e para explicar o pano de fundo ontológico da experiência
hermenêutica do mundo, Gadamer desenvolveu a metafísica do belo, que resulta da relação entre o
aparecer do belo e a evidência do compreensível: “de uma parte, a manifestação do belo, possui o caráter
de evento e, de outra parte, o fato de que a experiência hermenêutica, como experiência de um sentido
transmitido, participa da imediatez que sempre caracterizou a experiência do belo e, em geral, toda
evidência de verdade”596. Ela consiste no desenvolvimento de um momento da verdade diferentemente da
construção da verdade como resultado do método da ciência moderna.
A finitude é o pressuposto fundamental, seja do evento do belo, seja do acontecer hermenêutico,
diferentemente da metafísica tradicional e da ciência moderna, onde um ponto divino-arquimediano era
o garante do sistema. “Se partimos da constituição ontológica fundamental, segundo a qual o ser é
linguagem, isto é, representar-se – tal como se nos abriu na experiência hermenêutica do ser –, a
consequência não é somente o caráter de evento do belo e o caráter de acontecer de toda
compreensão”597, mas também o modo de ser do belo e da verdade revelam-se como ontologia. E, deste
modo, a ontologia se transforma em ontologia hermenêutica.
Platão já havia mostrado que o momento essencial do belo, da aletheia, consiste em manifestar-se
em seu ser, em um representar-se que não existe separado do ser, que não é outra coisa distinta de si. Sua
“constituição ontológica, própria dessa forma, é brilhar assim, é representar-se assim. Disso resulta que,
em relação com o ser belo, o belo tem de ser compreendido ontologicamente sempre como ‘imagem’”598.
Já na metafísica platônica do belo, o pressuposto era a diferença entre ele mesmo e sua representação;
havia uma ruptura entre a ideia e seu aparecer. Na opinião de P. Fruchon,

(...) que a beleza seja pensada não como ordem estática descoberta por uma atividade humana de pesquisa, mas que a atividade
primordial seja, ao contrário, a sua, que a beleza seja pensada como o ato ou o acontecimento da manifestação que a produz e
que dá a ver; a ver, em seguida, não somente no inteligível onde ela seria exilada, subtraída ao sensível marcada pela desmedida,
mas no sensível mesmo onde ela apareceria sem se fechar aí599.

A imagem dos fogos de artifício, assim como a expressão enquanto, representa muito bem o que
está contido nessa afirmação anterior.
Não é por acaso que Gadamer fala da “metafísica do belo” no final de VMI, e seu argumento
central para retomá-la é sua imbricação com o bem, com a ética: “a vantagem do belo com relação ao bem
se confunde com a atividade da manifestação que lhe é própria e que se torna presente no sensível; o belo
não é mais exilado no inteligível”600. Aqui encontramos um dos aspectos centrais que fundamentam a
ontologia hermenêutica gadameriana, uma vez que em Platão podemos encontrar uma epistemologia e
uma ontologia não estáticas. Socraticamente falando, isso equivaleria a afirmar que não basta saber o que
é o bem, mas é necessário ser bom. Por isso, parece que Gadamer recorreu à universalidade da
experiência do belo como modo de revelação próprio da verdade. O conceito de belo é concebido em
relação estreita com o bem que deve ser escolhido por ele mesmo, e, na face propriamente metafísica do
platonismo, aparecem a origem e a contestação da nossa modernidade.
Quando analisamos a estrutura do jogo, remetemos à imagem dos fogos de artifício
desenvolvida por Adorno para representar essa experiência que não deixa de ser “essencial” porque é
fugaz e incapaz de ser açambarcada conceitualmente. A constituição ontológico-universal, seja da obra de
arte, seja da história, é a de representar-se. Gadamer não emprega o termo representação, que é um
substantivo, mas um verbo: “representar” – que é dinâmico, móvel, não estático, o que não ocorre com os
verbos substantivados. Isso não é por acaso, como se percebe ao longo de toda a sua obra. Nesse sentido,
Gadamer verbaliza os temas filosóficos que a filosofia ocidental substantivou. Uma leitura atenta de sua
obra revela que isso é um proceder essencial e coerente com a sua concepção de hermenêutica, de saber,
que está sempre em movimento, sem repouso – representável na imagem móvel do deus Hermes, nas
encruzilhadas dos caminhos e na porta das habitações.
Temos a impressão de que, para Gadamer, o jogo é o que melhor expressa, significa e retrata a
verdade ontologicamente. Isso é intrigante, pois pensávamos e pensamos que o diálogo é o “modo mais
apropriado” para a hermenêutica filosófica efetivar-se. Por outro lado, talvez o faça para dar
continuidade à novidade processual do jogo desenvolvido por Nietzsche, por Wittgenstein, e mostrar que
sua hermenêutica filosófica é mais do que uma simples volta ao diálogo socrático, à ontologia dialética de
Platão. São essas as razões que o levam a recorrer à concepção de jogo: “O modo como se desenvolve o
peso das coisas que nos vêm ao encontro na compreensão é, por sua vez, um processo no modo de ser
linguagem, por assim dizer, um jogo de palavras que circunscrevem o que queremos dizer. São também
jogos no modo de ser linguagem os que nos permitem chegar à compreensão do mundo na qualidade de
aprendizes – e quando deixaremos acaso de o ser?”601.
A essência do jogo não se fundamenta na atitude subjetiva, mas, antes e sobretudo, no fato de
que, no jogo, o jogador é jogado por ele. O jogo inclui os jogadores, e ambos constituem o subjectum do
movimento lúdico. Do mesmo modo não se “pode falar de um jogar com a linguagem ou com os
conteúdos da experiência do mundo ou da tradição que nos interpelam, mas do jogo da própria
linguagem, que nos interpela, propõe e se recolhe, que pergunta e que se consuma a si mesmo na
resposta”602. Isso justifica o apelo ao modelo estrutural do jogo, no qual se expressa muito bem o
entrelaçamento entre o “desenvolver da coisa” (no caso, o jogo) e a atividade do “sujeito” (no caso, o
jogador), entre a antiguidade (metafísica objetivista) e a modernidade (metafísica subjetivista).
O compreender é retratável no jogo, no sentido de que quem compreende não pode abster-se de
tomar uma posição frente ao que lhe é colocado, seja uma obra de arte, seja um texto, seja uma pessoa. Já
a dialética, enquanto atividade do pensamento, pode e pretende abstrair da coisa ou do sujeito pensante.
Mais que o olhar, é o ouvir que melhor expressa o modo de ser da hermenêutica enquanto
abertura, receptividade. Esta é a novidade e a contribuição da hermenêutica filosófica, pois quem
compreende “já está sempre incluído num acontecimento, em virtude do qual se faz valer o que tem
sentido”, isto é, sempre já foi compreendido, tomado pela tradição, pela linguagem. O modelo estrutural
do jogo explicita o fenômeno hermenêutico e a experiência do belo, pois “o que nos vem ao encontro na
experiência do belo e na compreensão do sentido da tradição tem realmente algo da verdade do jogo. Na
medida em que compreendemos, estamos incluídos num acontecer da verdade e, quando queremos saber
o que temos que crer, parece-nos que chegamos demasiado tarde”603. Isso pode ser compreendido,
enquanto universalidade hermenêutica, no sentido de que a verdade não pode ser submetida a um
controle metódico, embora não exclua este, pois, “além do livre-arbítrio de que o homem dispõe, quando
usa o método e se converte em sujeito responsável do conhecimento, lhe é dada uma liberdade que não se
torna sua senão na medida em que ele recebe-a e se deixa tomar por ela: aquela do ser que já é dado a
entender na tradição...”604, que lhe transmite uma realidade onde pode construir seu sentido e sua
significação do mundo.
Na ontologia hermenêutica gadameriana, somos mais compreendidos que compreendedores,
mais afetados que atuantes. Pelo modelo estrutural do jogo, Gadamer procurou enfatizar mais o ser
jogado-afetado que o ser que joga, mais a conquista filosófica da metafísica grega que o ganho da ciência
moderna. Isto confirma nossa posição a respeito da ênfase excessiva que ele deu mais ao ser afetado que
ao ser ativo, seja pela experiência da obra de arte, seja pela história, seja pela linguagem. Podemos afirmar
que Heidegger e Gadamer hermeneutizaram a concepção de ontologia grega objetivista, bem como a
ontologia moderna subjetivista. Ambos pretenderam corrigir a ontologia construída pelo ego cartesiano
através do desenvolver da “coisa mesma” da ontologia grega. Ambos transformaram a ontologia
tradicional em ontologia hermenêutica através da facticidade, do sujeito que conhece historicamente.
Se em Gadamer encontramos o esboço de uma ontologia que é hermenêutica, desenvolveremos
a noção de hermenêutica que é ontológica. Se na primeira o jogo é o que representa melhor o processo do
pensar, nesta o diálogo ocupa o lugar e espaço central. Além disso, é por essa razão que justificamos a
experiência e a linguagem como princípios filosóficos.

Hermenêutica filosófica enquanto hermenêutica ontológica

(...) para a metafísica tradicional, a meta determinada era a do conhecimento da essência, da fundamentação suficiente e da
definição definitiva. Em contraposição a isso o compreender e o significar não parecem ter fixado tal ideal de conhecimento
universalmente obrigatório e definitivo605.
A dimensão da ontologia constitui o diferencial da hermenêutica filosófica que a caracteriza
como filosofia. Retomemos, para tanto, as palavras de H. Braun, para quem “o título ‘ontologia’ seria a
medida a partir da qual se poderia julgar a realização da hermenêutica como filosofia”606. Com essa
reflexão concluímos o ciclo que marca a passagem e a transformação necessária da hermenêutica
metodológico-epistemológica para a hermenêutica ontológica, que nada mais é que hermenêutica
filosófica.
Heidegger e Gadamer fundamentaram uma ontologia hermenêutica, isto é, repensaram a
ontologia a partir da finitude que compreende, onde a subjetividade é mais “afetada” que “ativa” – por
isso a atividade arqueológico-filosófica heideggeriana e a retomada gadameriana do modelo estrutural do
jogo. A hermenêutica filosófica é uma hermenêutica ontológica que salvaguarda a centralidade da
subjetividade no processo filosófico. Na verdade, justificaremos e fundamentaremos, a partir da
hermenêutica filosófica – pelos princípios da experiência e da linguagem –, outra noção de ontologia, que
se distingue da grega, da moderna e da heideggeriana (embora conserve e integre os ganhos filosóficos
destas). Assim, podemos denominar e retratar as próximas reflexões como: hermenêutica filosófica enquanto
ontologia. Mas como pesa sobre este último termo uma espécie de estigma e como pretendemos apenas
indicar pistas de outra concepção de ontologia, vamos denominá-la de hermenêutica ontológica. Faremos
isso muito mais para encetar do que para encerrar posteriores discussões acerca da relação entre
hermenêutica, ontologia e metafísica, seguindo a perspectiva segundo a qual hermenêutica filosófica,
hermenêutica ontológica, ontologia e metafísica convertem-se, intercambiam-se. Explicitaremos
inicialmente aspectos conceituais e concepções distintas de ontologia e, no final, desdobraremos algumas
dimensões estruturais do que compreendemos por hermenêutica ontológica.

Distintas concepções de ontologia


No termo ontologia encontramos aspectos como: “A ontologia é um todo coeso, um sistema de
princípios ontológicos com respeito a uma determinada multiplicidade do ente, que é determinada
através destes princípios. Para sua representação sistemática esta coesão pede uma multiplicidade de
princípios lógicos, cuja unidade sistemática representa, por sua vez, a lógica constitutiva daquela
ontologia”607. A concepção de ontologia hermenêutica gadameriana não é do tipo da ontologia hegeliana
que se encerra no espírito Absoluto, tal como ele a desenvolveu na ciência da Lógica, nem da ontologia
fundamental de Heidegger.
Retomemos o problema da ontologia, no contexto e em conexão com a hermenêutica
desenvolvida por R. Wiehl, que distinguiu entre ontologia “fraca” e “forte”, a partir do qual
assentaremos, em parte, nossa perspectiva. Na ontologia “forte”

está desenvolvida uma multiplicidade indeterminada de princípios numa estrutura ontológica unitária, no interior da qual cada
princípio único é inequivocamente determinado em relação a cada outro como princípio ontológico segundo seu conceito, sua
posição e sua função. Ao mesmo tempo esta estrutura ontológica revela a integralidade de todos os princípios, bem como a
validade geral e especial dos mesmos para um determinado campo do ente. E finalmente vale para este modelo de uma
ontologia forte que cada outro princípio que nela não tem um lugar lógico bem determinado pode ser colocado numa relação
lógica bem determinada com os princípios que pertencem a ele: na relação de uma compatibilidade específica ou duma
incompatibilidade específica608.

Por outro lado, ontologias “fracas” são as que não preenchem as condições mencionadas de uma
ontologia forte.
Pretendíamos, inicialmente, justificar a posição de que a hermenêutica filosófica é uma ontologia
“fraca” no sentido de distinguir-se da ontologia “forte” hegeliana, mas nos distanciamos de toda
dicotomia conceitual que não faz justiça ao projeto filosófico hermenêutico nem ao ontológico. Contudo,
salvaguardamos a profícua reflexão de R. Wiehl sobre o tema da ontologia, para quem, p. ex., a fraqueza
dos princípios da ontologia “fraca” “não se deve confundir com a simples insuficiência dos mesmos com
relação à sua determinidade conceitual e funcional. Fraqueza significa aqui também uma forma peculiar
de indeterminidade e incerteza”609, que caracteriza, p. ex., o entimema aristotélico. Ontologia “fraca” não
é, assim, fraca porque não é “forte” ainda. Ela não é uma antecâmara, um preâmbulo da ontologia
“forte”. Não é teorética – no sentido estrito –, mas, enquanto discurso, tem a forma e o modo
argumentativo da filosofia prática aristotélica: fenomenológica, existencial, integralizadora da metafísica,
da política, da retórica, da poética. Nesse sentido, não podemos dizer que as fundamentações e definições
“fracas” são insuficientes, incompletas.
Numa direção, pretensão e sentido semelhante, G. Vattimo desenvolveu a noção de
“pensamento fraco” (pensiero debole) em oposição ao “forte”, que é essencialmente dedutivo. Para ele, “a
expressão ‘pensamento fraco’ constitui, sem dúvida nenhuma, uma metáfora e um certo paradoxo (...)
Trata-se de uma maneira de falar provisória e, inclusive, talvez, contraditória, porque assinala um
caminho, uma direção possível: um caminho que se separa do que segue a razão-domínio”610. O
pensamento fraco não se fixa num ponto arquimediano, mas, argumentativamente, aproxima-se do
passado, observa o presente e se volta ao futuro. Compreendemos melhor a noção de pensamento
“fraco”, retomando a seguinte reflexão sobre “ontologia fraca da noção de verdade”, que contribui para
elucidar e corroborar o que compreendemos por hermenêutica ontológica:

O verdadeiro não é objeto de uma apreensão noética do tipo da evidência. É, antes, o resultado de um processo de reflexão, que o
produz quando respeita certos procedimentos dados uma e outra vez, de acordo com as circunstâncias (...) o verdadeiro não
possui uma natureza metafísica ou lógica, mas retórica; as reflexões ou acordos realizam-se dentro de um determinado horizonte
(...) constituído pelo espaço da liberdade das relações interpessoais, das relações entre as culturas e as gerações. Neste espaço
ninguém parte do zero, mas se encontra já ligado por certos laços de fidelidade, de pertença (...); a verdade é fruto de
interpretações não porque através do processo interpretativo se chegue a apreender diretamente o verdadeiro (p. ex., lá onde a
interpretação é compreendida como deciframento, desmascaramento), mas porque só no processo interpretativo (...) a verdade se
constitui611.

Nesse contexto, retomemos também a reflexão de J. Gauvin, que realizou uma distinção entre o
discurso diretamente ontológico e o indiretamente ontológico. O primeiro opõe o saber às opiniões e
representações, ao passo que o segundo pretende “levar progressivamente o seu leitor a uma revisão dos
‘saberes’ que ele julgava possuir até aí (...) invoca elementos de experiência e admite-os como tais, a fim
de os interpretar”, enquanto aquele, “tratando por princípio de ‘tudo’, (...) nunca invoca a experiência
como tal e entende, pelo contrário, evocá-la através do seu próprio desenvolvimento, mas sempre como
interpretada”612. As três Críticas de Kant e a Fenomenologia do Espírito se constituiriam, nessa lógica, como
discurso indiretamente ontológico, ao passo que a Ética de Espinoza, assim como a Ciência da Lógica de
Hegel, representaria o modelo paradigmático do discurso diretamente ontológico.
Tanto no campo da filosofia quanto no da física613, p. ex., não há acordo sobre a denominação
única e definitiva daquele outro conhecimento que não é o matemático-dedutivo. Para Aristóteles, esse
outro chamava-se prático, retórico, poiético. Em todo caso, as terminologias ontologia fraca, pensamento
fraco, discurso indiretamente ontológico servem como imagens, indicadores, aproximações do que
compreendemos por hermenêutica ontológica. Evitaremos o emprego do termo ontologia sem adjetivo,
que contém e evoca, pela força da tradição e poder da linguagem, os fantasmas ocidentais que Nietzsche,
Freud, Marx e Heidegger já procuraram expulsar, com razão, do imaginário conceitual filosófico. Para
caracterizar o outro viés da ontologia, na situação e relação com a hermenêutica, empregamos a expressão
hermenêutica ontológica a fim de retratar o que nasce e se desenvolve distintamente da ontologia
tradicional. Abandonamos a pretensão de justificar a hermenêutica filosófica como uma ontologia fraca,
seja porque não é reconhecida conceitualmente como filosofia – diferentemente do âmbito da física, onde
causa forte e causa fraca constituem um tópos koiné –, seja porque em sua pretensão de abrangência e
universalidade pressupõe e engloba a ontologia forte, ao passo que esta, em última instância, é um retrato
parcial do conhecimento. Com a concepção de hermenêutica ontológica distinguimo-nos de R. Wiehl e G.
Vattimo, salvaguardando suas importantes contribuições acerca da outra “face” da ontologia.
A hermenêutica ontológica não apenas evoca como também se utiliza do que está embutido na
noção de uma ontologia “fraca”. Temos consciência do desconforto conceitual, da limitação e até certo
ponto da inconveniência causados por essas expressões no âmbito filosófico. Trouxemo-las à baila,
primeiramente, porque apontam para outras dimensões da filosofia e, em segundo lugar, para
fundamentar melhor a concepção de hermenêutica ontológica. Com o desenvolvimento desta não
pretendemos apresentar uma ontologia a mais ao lado de outras, mas justificar que na hermenêutica
ontológica as demais concepções de ontologia encontram seu espaço e lugar apropriados, integrando as
intuições e reflexões contidas na noção de ontologia fraca, no pensamento fraco, no discurso indiretamente
ontológico.

Traços constitutivos da hermenêutica ontológica


É lugar-comum que a ontologia se estruture, se fundamente e se explicite com e a partir de
princípios. Retomando a afirmação aristotélica segundo a qual “a filosofia é a ciência teorética dos
últimos princípios e causas”, a hermenêutica não renuncia aos princípios e às causas últimas, mas repensa
seu sentido e sua função. Depois das marretadas que Nietzsche desferiu contra a noção de princípios
últimos, concebidos como evidências primeiras, com os quais o pensamento estancava a busca pela
compreensão e pelo saber, não é mais possível concebê-los estaticamente. A filosofia não se estrutura em
princípios de base, fundamento, no sentido de Grundlage, mas no sentido de princípios fundamentais
enquanto Grundlegend614, que se mostram e se explicitam historicamente.
Uma ontologia é estruturada e conectada por e com princípios que formam um todo sistemático.
Consideramos um todo sistemático fechado, p. ex., a Ciência da Lógica, e a hermenêutica ontológica um
todo estruturado em aberto, fundamentado com princípios que tecem um todo em forma de rede. Como
não se trata do sentido atribuído à ontologia tradicional – onde os princípios possuem traços lógico-
dedutivos e são atemporais no sentido de fundamento último e definitivo –, os princípios da
hermenêutica ontológica possuem outros atributos. Princípio foi traduzido por “começo, ponto de
partida, princípio, suprema substância subjacente (Urstoff), princípio supremo indemonstrável”615. Os
princípios que configuram a hermenêutica ontológica constituem-se em pontos de partida e não têm a
pretensão – como é o caso dos princípios da ontologia tradicional – de ser a suprema substância
subjacente ou princípios supremos indemonstráveis.
Os princípios hermenêuticos são indemonstráveis no sentido de não poderem ser totalmente
objetificados, tal como desenvolvemos pela reflexão acerca dos princípios da experiência e da linguagem.
Os princípios hermenêuticos são a priori e a posteriori, temporais e atemporais. Deles não podemos
deduzir o real. Eles são causas livremente causadas quando nos dispomos a filosofar, e, nesse sentido, os
princípios hermenêuticos não são causas incausadas, das quais derivariam as demais causas e coisas.
Também não são anestésicos ou portos seguros para ancorar nosso desejo de saber, de filosofar.
R. Wiehl fala de alguns princípios próprios da ontologia hermenêutica da obra de Heidegger e
de Gadamer, como a lógica da pergunta e da resposta, da finitude, da história da efetuação, da
experiência e da linguagem. Ao longo deste livro, ativemo-nos a alguns traços teorético-ontológicos da
experiência e da linguagem, enquanto princípios centrais da hermenêutica ontológica616. Justificamos
desse modo a hermenêutica ontológica como uma espécie de teoria geral do ser não no sentido
fundacional, mas como teoria no sentido gadameriano: “o conceito da comunhão sacra, tal qual alicerça o
originário conceito grego de theoria. Theoros significa, como se sabe, o participante de uma delegação de
festa. (...) No sentido mais genuíno da palavra, o theoros é, pois, o espectador que, através de seu tomar-
parte, participa do ato festivo e através disso ganha sua distinção de direito sagrado”617. Os princípios da
hermenêutica ontológica não podem ser concebidos separadamente da sua estrutura nem por parte de
quem reflete sobre ela.
Os princípios devem ser compreendidos à luz e sobre o fundamento da virada da hermenêutica
metodológica para a ontológica, em sentido lógico-ontológico nos passos que vão de Schleiermacher,
Dilthey a Husserl, Heidegger e Gadamer. O desejo de saber não se fundamenta nem se justifica apenas a
partir de princípios lógicos e coerentes, mas se refere, basicamente, ao sentido e ao destino do nosso
viver. Com os princípios hermenêuticos estruturamos um projeto filosófico, cujo objetivo último não
escamoteia nem aniquila o sentido da existência humana.
A hermenêutica ontológica, ao conferir primazia ao compreender e ao interpretar sobre o
conhecer, repensou com isso, condicionalmente, “as prioridades essencialmente diferentes da metafísica
tradicional e de sua teoria de conhecimento, ou até as transformou no contrário. Com esta mudança das
prioridades gnosiológicas, mudou-se ao mesmo tempo a atitude referente à pretensão tradicional dos
princípios ‘essência’, ‘fundamentação’ e ‘definição’”618. Por isso optamos pelo emprego da expressão
princípios ontológicos, fundamentais e fundamentadores, e não por conceitos ou definições fixas. Não há
apenas um princípio único como ousia, mas princípios constituintes e constituidores da hermenêutica
filosófica. Princípio como enquanto, fio condutor norteador, intrínseco, aberto e dinâmico do filosofar. O
princípio é agônico619 – no sentido de luta, disputa e desafio –, move e constitui o filosofar mesmo, como
testemunham os princípios da experiência e da linguagem. O princípio hermenêutico-ontológico não é
externo ao filosofar – que moveria sem ser movido –, mas pertence ao processo filosófico sem se esgotar.
Ele não possui a pretensão de dissecar e esgotar o real e com ele não se pretende deduzir a realidade.
Sabemos que, “para a metafísica tradicional, a meta determinada era a do conhecimento da
essência, da fundamentação suficiente e da definição definitiva. Em contraposição a isso, o compreender e
o significar não parecem ter fixado tal ideal de conhecimento universalmente obrigatório e definitivo”620.
A hermenêutica ontológica é universal não em sentido científico, pois não possui a pretensão de ser
definitiva, absoluta; afinal, “má hermenêutica é a que crê que pode ou deve ficar com a última palavra”.
O movimento filosófico não cessa enquanto houver pessoas que filosofem, e a concepção de metafísica e
de ontologia que emerge daí enraíza-se na finitude humana, que é pensada como uma totalidade não
totalitária. O esforço hermenêutico, contudo, assume objetivos, critérios e condições fundamentais, tal
como mostramos e desenvolvemos anteriormente pelo modelo estrutural do jogo, do círculo e pelo modo
de ser do diálogo.
Se a metafísica tradicional e a hermenêutica moderna procuram fixar um ideal universalmente
obrigatório e definitivo de conhecimento, a hermenêutica ontológica não tem tal pretensão. Mas até que
ponto seus critérios e condições valem para ela e para nenhum outro processo; e até que ponto eles
podem reivindicar um caráter obrigatório mais geral e universal é o problema que se coloca então. Aqui
estamos diante de um problema da hermenêutica filosófica: qual é o critério, o garante de validade dessa
outra forma de filosofar? Não se garantem a autonomia e a fundamentação do novo, do diferente,
apontando apenas as deficiências que julgamos encontrar no outro, como não basta trocar um sistema
ontológico fechado por outro aberto, uma razão forte por uma fraca. Não se compreende nem se
fundamenta a hermenêutica ontológica por “si” e em “si mesma”, como algo fixo para sempre. A
universalidade hermenêutica brota do próprio filosofar e, ao se tornar linguagem, universaliza-se. Suas
provas são mais mostrativas, exemplificadoras, do que apodíctico-demonstrativas. A hermenêutica
ontológica aparece e se fundamenta no modo de ser da experiência hermenêutica, do jogo, do círculo, da
linguagem, do diálogo. Por isso, com a hermenêutica ontológica, na verdade, não criamos outra
ontologia. Procuramos, sim, resgatar sua autenticidade em consonância com uma concepção de metafísica
que se estrutura numa ontologia a partir da finitude humana; que procura, pelo perguntar e responder,
algo mais que o nível da pura imediatidade e que configure o quadro de uma totalidade que confira o
sentido das coisas para a existência humana.
A hermenêutica ontológica concede primazia ao próprio processo do filosofar, mais que ao
encontro de um ponto arquimediano. O que move e constitui a hermenêutica ontológica são princípios
ontológicos que evocam a forma argumentativa do entimema aristotélico. Possuem a forma de
indeterminação, são aporéticos, abertos, assim como são os argumentos míticos platônicos ou como se
caracteriza a phrônesis aristotélica. São mais mostrativos que demonstrativos, mais diacrônicos que
sincrônicos. Eles são universais, necessários e lógicos, como é a lógica do jogo – com suas regras –, com
suas exigências e condições. O princípio ontológico move, mas também é movido; é incorruptível, mas
também corruptível; é necessário, mas necessariamente contingente; por isso filosofamos, e os deuses,
não. A experiência hermenêutica é um princípio ontológico, não um conceito fixo ou definição imutável,
tanto que, por isso, é difícil, também, traçar seus contornos e, nesse sentido, é indemonstrável. É um
princípio porque desde sempre moveu as pessoas a filosofarem e afeta-as de tal forma que ainda hoje
filosofam. Não é um conceito, uma teoria abstrata que nos leve a filosofar, mas uma experiência –
existencial –, e, por isso, é um princípio ontológico. O que move alguém a filosofar é uma motivação pelo
sabor do saber, e não simplesmente a busca apenas de conhecimento claro e distinto ou a obtenção de
certeza do tipo matemático. A hermenêutica filosófica não abandona nem refuta os princípios, mas alarga
o horizonte no qual foram circunscritos, ou como se fossem os primeiros, de onde tudo decorreria como
uma fonte d’água, ou como se fossem os últimos e para lá tivéssemos que correr; uma vez chegados lá –
ignorando o próprio processo do filosofar como filosofia –, repousaríamos num conhecimento seguro,
imutável. Do ponto de vista da hermenêutica ontológica, o princípio ontológico não é apenas o que
origina, move ou apenas o término – a ser revelado arqueologicamente ou alcançado teleologicamente –,
mas se constitui nesse duplo movimento, afinal “caminho para cima e caminho para baixo são um único e
mesmo caminho”. Enquanto princípio, ele é o filosofar mesmo, o próprio caminho, o amor ao saber, e,
por isso, o filósofo é um amante do saber, não um estrategista.
Os princípios ontológicos podem ser designados como princípios aporéticos no sentido de que

em seu uso hermenêutico deixam em aberto até que ponto e em que medida eles preenchem sua função ou não, também
permanece não decidido em qual direção o pensar por eles conduzido leva adiante o entendimento: se na direção de um
crescente conhecimento essencial ou se em direção a um distanciamento crescente, ou se em direção a uma fundamentação
sempre suficiente ou se na direção oposta; ou se na direção de uma definição última ou de volta para um provisorium
conceitual621.

O provisorium do princípio ontológico não é compreendido aqui no sentido de Descartes, mas


como um provisorium constante, um enquanto, que pode ser justificado pela unidade essencial de
fenômenos coerentes. A provisoriedade aqui é coerencial, válida e justificável por si em relação a nós e
vice-versa, num determinado momento, não apenas enquanto busca de um fundamento inconcusso de
conhecimento. O provisorium não é uma simples propedêutica, como a moral provisória, para a obtenção de
um eternum. O entimema é um provisorium conceitual; contudo, nem por isso é superficial, insuficiente,
ilógico ou irracional. O que é a história, senão o contingente fixado no tempo, uma conexão entre ordem e
contingência? Infelizmente, termos como retórica, relativo, provisorium não soam e não são concebidos
como filosóficos para uma determinada perspectiva filosófica. Talvez tenha chegado o tempo de
podermos intitular – sem temer a academia – uma obra como filosófica do seguinte modo: Traços
fundamentais de uma hermenêutica filosófica622, ou simplesmente hermenêutica filosófica.
Os princípios lógicos possuem as características dos raciocínios apodícticos, demonstrativos,
necessários, sincrônicos. Os princípios lógicos procuram chegar, através da aplicação de determinadas
formas de linguagem, à inequivocidade, à exatidão, para justificarem seu discurso. O princípio da
identidade aristotélico, p. ex., incorpora e expressa tais características, assim como a dialética hegeliana
desenvolvida na Ciência da Lógica. Concebemos como princípio lógico a relação necessária entre a parte e
o todo, a letra e o espírito, que F. Schleiermacher aplicou ao compreender. A relação necessária entre o
particular e o universal, para construir uma ciência da história, tal como propôs W. Dilthey, também
caracteriza o princípio lógico. Nesse caso, os princípios lógicos são usados, no discurso, para garantir a
cientificidade, eliminando as particularidades e idiossincrasias da linguagem, p. ex., narrativa. Ora, “a
hermenêutica filosófica denuncia este postulado de inequivocidade, de afastar da visão, precisamente, o
mais importante de toda experiência: a abertura a diferentes possibilidades de interpretação que se torna
possível na situação concreta, finita do diálogo. Segundo a hermenêutica filosófica, a ambiguidade é a
experiência decisiva”623. No jogo encontramos traços do princípio lógico-ontológico, porque nele –
tendencialmente – devemos primeiro conhecer suas regras para poder jogar. Já no diálogo encontramos
marcas do princípio ontológico-lógico, porque primeiro dialogamos aprendendo a dialogar, para então
poder afirmar que fez sentido ou não e mostrar sua logicidade interna.
Os princípios lógicos hermenêuticos caracterizam-se por suas regras, exigências e condições
necessárias, como aquelas que possibilitam o jogar e o dialogar autênticos; elas são claras, constringentes
e sempre dadas. Já os princípios ontológicos efetivam-se em seu acontecer, e sabemos das dificuldades
para elevá-los ao plano conceitual. O diálogo, p. ex., tem um matiz mais ontológico do que a lógica
dialética sintética hegeliana. Aquele só existe – só é – em seu devir onde a dimensão do sentido entra em
questão, mais que o plano dos significados. O princípio ontológico não pode ser entendido do ponto de
vista científico, mas como desejo e ato livre do ser humano que se esforça por tematizar o movimento do
Ser que se dá a compreender na e pela linguagem.
A hermenêutica ontológica estrutura-se também enquanto experiência pré-predicativa do
sentido, na experiência do que se apresenta antes de todo juízo e que constitui desde Husserl o solo do
não temático, do que não se deixa reduzir ao conceito, que acompanha e permite a formação do juízo
lógico.
A originalidade e a abrangência do pensar hermenêutico em relação à metafísica tradicional
residem no fato de possibilitar “as condições de uma crítica possível ao pensar metafísico. Deste modo a
hermenêutica coloca-se na continuidade da tradição da moderna crítica filosófica à metafísica”624 e, ao
mesmo tempo, possibilita alargar o horizonte a que foi confinada nos últimos séculos. Enfim,
desenvolvemos a hermenêutica filosófica em seu viés ontológico. Ampliamos a reflexão sobre ontologia
hermenêutica na obra de Gadamer, desenvolvendo a hermenêutica ontológica enquanto outra face da
hermenêutica filosófica. Em decorrência desse mesmo caminho ontológico – em forma de conclusão –,
refletiremos sobre a expressão gadameriana “ser que pode ser compreendido é linguagem”, que contém e
explicita uma noção de metafísica e compreende a hermenêutica filosófica.

Hermenêutica ontológica e metafísica

(...) o Ser é a vida, o movimento circular de uma identidade que produz e habita sua exteriorização sem se separar dela mesma,
que engendra seu outro sem jamais cessar de se reconhecer aí e de se encontrar aí625.

A partir das reflexões sobre as exigências e as implicações da ontologia hermenêutica e da


hermenêutica ontológica, explicitaremos a tessitura metafísica implícita da hermenêutica filosófica à luz
do ser que se diz de muitos modos. Em forma circular concêntrica, refletiremos mais especificamente
sobre a afirmação “ser que pode ser compreendido é linguagem”626, na qual se retratam e se justificam a
experiência e a linguagem como princípios da hermenêutica filosófica – enquanto metafísica.
A expressão “ser que pode ser compreendido é linguagem” é passível de diferentes
interpretações. Do ponto de vista da interpretação platônico-realista, “a estrutura do ente mesmo precisaria
ser determinada como linguagem”, e na versão kantiano-epistemológica, “o que é compreensível para nós
nunca é acessível senão pela linguagem, assim somente compreendemos o que se pode tornar explícito na
e através da linguagem”627. Na perspectiva hegeliano-idealística, na filosofia do espírito dialética, “o papel
conceitual do ‘espírito’ deve ser assumido, a partir de agora, pela ‘linguagem’”628. Salvaguardando essas
diferentes interpretações, abordaremos e justificaremos a perspectiva metafísica – enquanto estrutura
argumentativa subjacente da hermenêutica ontológica.
Justificamos o diálogo como modo de ser mais apropriado da hermenêutica filosófica enquanto
ontologia, afirmando que ele não se desenvolve por meio de palavras e signos controláveis. O diálogo,
enquanto jogo aberto de pergunta e resposta, não se joga entre pessoas que sabem, mas que perguntam
por um valor que vai além da pura imediatidade e volta a esta. Com o diálogo retificamos a relação
objetificadora da metafísica tanto em seu viés objetivista quanto em seu viés subjetivista. Superamos,
assim, a perspectiva metafísica fundamentada excessivamente na relação sujeito-objeto. Há uma
concepção de metafísica implícita na hermenêutica filosófica que se corporifica e se manifesta na
expressão “ser que pode ser compreendido é linguagem”. Nesta afirmação, encontramos a imbricação
entre ontologia e metafísica, uma vez que a ontologia trata do ser enquanto ser, enquanto estrutura
argumentativa, e a metafísica manifesta-se na busca de sentido da vida que transcende o nível da pura
imediatidade e carrega a tensão irresolúvel entre o dito e o não dito no medium da linguagem. Mais que
construir uma concepção de metafísica em oposição à tradicional, desdobraremos a metafísica latente da
hermenêutica filosófica.
Lembramos que, para Heidegger, o “ser acontece como fenômeno na linguagem”; por isso ele
designou-a “a casa do ser”. O acontecer do ser é o que se busca explicitar em Ser e Tempo, ser que acontece
no tempo. Ele procurou desconstruir a metafísica ocidental e justificá-la a partir da finitude, do Dasein.
Para fundamentar nosso projeto, diferentemente de Heidegger, que acusou Aristóteles de conceber a
metafísica como ontoteologia – ou seja, “de haver reduzido o ser ao ente e este a um ente supremo,
fundamento de todos os demais, isto é, Deus” –, partimos da perspectiva metafísica, segundo a qual

Aristóteles não objetiva o ser, pois mostra, pelo contrário, que este não pode ser definido, isto é, que não tem uma essência, não
admite uma resposta à pergunta ‘que é o ser?’; não o reduz em absoluto a um ente, isto é, à substância, porque a substância não
pode ser reduzida ao significado, à essência, à definição do ser, mas tão só ao primeiro entre muitos significados (...); tampouco
reduz o ser a Deus, pois não concebe a Deus como o ser por essência, mas o concebe como um ente muito singular, como
pensamento puro; por último, tampouco faz de Deus o fundamento do qual se pode partir para deduzir todos os entes, segundo
uma lógica fundativa de tipo matemático (como, por exemplo, em Espinoza), porque para Aristóteles Deus não é de nenhuma
maneira um princípio lógico, a premissa de uma dedução ou a fonte de uma derivação. Tampouco se pode dizer que para
Aristóteles Deus constitui uma forma de segurança, pois não cria o homem nem o assiste, não lhe dá ordens nem o premia, não o
castiga nem o salva: Aristóteles, por outra parte, fala de Deus o menos possível, e trata, em geral, de evitá-lo629.

A linguagem mesma é o medium onde o ser se efetiva ao filosofarmos, dentro das condições e
exigências colocadas, em todo tempo e lugar; daí que a ontologia é universal. “O que se pode
compreender é linguagem”, ou seja, o que se compreende vem à fala, o que não é existir uma segunda
vez, adquirir uma segunda existência. O próprio representar-se é um acontecer que é parte do seu
próprio ser, isto é, ser como aparecer, não como identidade absoluta; ser como vir-a-ser, não como
unidade eterna; ser como um acontecer no modo de ser linguagem, não como uma ideia inata; ser como
um manifestar-se historicamente. Esse projeto metafísico implícito da hermenêutica ontológica é mais
amplo e arejado que a metafísica objetivista e subjetivista.
A metafísica estruturante da hermenêutica ontológica não necessita, pois, “objetivar o ser, nem o
reduzir a um ente, isto é, a Deus, como tampouco deduzir a partir de Deus todos os outros entes; mas se
limita a mostrar precisamente a finitude, isto é, a problematicidade, a insuficiência de tudo aquilo do qual
se tem experiência: entes e eventos, afinidades e diferenças, mundo e história”630. A hermenêutica
ontológica não é uma ontologia do dito, mas uma ontologia relacional da presença, ou seja, o filosofar
mesmo pertence ao ser em que o conhecer é um momento do ser mesmo, é o movimento do ser, a ação da
coisa que se manifesta e que se deixa compreender em linguagem. Ela é uma ontologia da experiência do
ente, que se encarna e se manifesta como algo que confere sentido e que alcança sua expressão na palavra;
e por isso também dizemos que o ser que pode ser compreendido é linguagem. Essa concepção metafísica
ancora-se na posição filosófica segundo a qual o filosofar consiste em investigar e explicitar os princípios,
e especialmente os princípios do ser enquanto ser situados no tempo e no espaço. E o ser, como afirmou
Aristóteles, acontece e se apreende só na linguagem porque “se diz” (léghetai), e porque se trata
essencialmente de uma “coisa dita” (de um legómenon).
A noção de metafísica implícita na expressão “ser que pode ser compreendido é linguagem” só é
compreensível e expressável a partir da finitude fundamental do ser que está envolvido, desde sempre,
pela linguagem. A relação na metafísica, do ponto de vista da hermenêutica filosófica, entre ser e seus
múltiplos significados, entre ser e linguagem, é “uma relação que não é de inclusão, e, portanto, de
dedutibilidade, mas varia em cada caso, proporcionando sempre, se bem que de diferentes formas, a
razão em virtude da qual os diversos significados pertencem em sua totalidade a um mesmo nome”631.
Por isso, a metafísica implícita da hermenêutica filosófica é que o homem – enquanto ser de linguagem,
ao filosofar – assume a inesgotável tarefa de poder perguntar e dever perguntar para além de todas as
respostas alcançáveis enquanto totalidade impossível de ser totalmente tematizada. Metafísica esta que
tem a relação como ponto central, não mais a objetividade nem a subjetividade pura.
Nessa totalidade metafísica, o caminho científico constitui um aspecto do ser que possui sua
verdade.

A objetividade da ciência é a mais pura – mas também a mais abstrata – realização desta experiência do ser. Mas o ser do ‘aí’ é
mais. Não é somente o que está presente entre o não ser do que passou e o não ser do ainda não, e também não é somente este
presentificar-se que nós nomeamos ‘autoconsciência’. É também o despertar no qual ‘mundaniza-se’ (es weltet) como em cada
manhã. É o perguntar que pergunta para além de todo o presente e se abre para o possível, o dizer que procura para o indizível
suas palavras, até se ‘palavrear’ (es wortet) e é como ‘resposta’, e é sempre de novo o esperar que sabe do ainda não e não está
cheio de expectativa...632.

Este buscar mundanizado até se “palavrear” constitui o modo de ser próprio da hermenêutica
filosófica enquanto atividade de um sujeito afetado pela história e pela linguagem. A metafísica implícita
não é do tipo objetivista nem subjetivista, mas emerge do acontecer provocado pela relação entre ser e
linguagem, num jogo circular dialógico.
A hermenêutica ontológica não parte nem pressupõe uma esquizofrenia entre metafísica, ética,
política, linguagem, mas se configura na imagem de uma rede coerente, inter-relacionada e
interdependente, a ser explicitada e construída. Nisso reside o filosofar mesmo: explicitar e corporificar o
Ser, sem que ele deixe de ser pelo fato de estar e tomar forma em palavras. Com a hermenêutica
ontológica mostramos que a transcendência do Ser existe em relação a nós, “encarnada” no tempo e no
espaço, e que jamais poderá ser apreendida conceitualmente.
A hermenêutica ontológica não é compreendida como ontologia fundamental, como uma
disciplina propedêutica rumo a uma possível ontologia universal. Sua relevância ontológico-geral
descobre-se no próprio processo de explicitação histórica do saber finito. A linguagem como o medium
que medeia todo saber não pode ser reduzida a instrumento. Assim, a atividade filosófica não se esgota
no método nem em frases protocolares. Ela é um caminho que nós balizamos com os princípios da
experiência e da linguagem, o que justifica uma concepção mais ampla de metafísica. Nesta, pois, a
linguagem não é instrumento, “mas fundamento e exercício de sua humanidade...”633; ela mesma é o
princípio condutor, constituinte e constituidor da humanidade e, portanto, do filosofar.
Subjaz, pois, à hermenêutica filosófica a noção de metafísica, segundo a qual o ser, a verdade, a
bondade não se reduzem ao gênero de certeza produzido pelo método científico. Com a noção renovada
e ampliada de metafísica não se destrói o valor da ciência, mas se questionam as limitações do seu
método, pois “o que a ferramenta do ‘método’ não alcança tem de ser conseguido e pode realmente sê-lo
através de uma disciplina do perguntar e do investigar, que garante a verdade”634. Essa “disciplina” do
perguntar e do investigar estrutura o modo de ser do diálogo. O problema é que Gadamer enfatizou a
polissemia tanto da experiência quanto da linguagem, silenciando sobre sua unidade. Contudo, “é
precisamente o caráter múltiplo do ser dito pela linguagem, isto é, a polissemia deste, o que priva as
asserções de seu caráter de representações fixas, unívocas e objetificantes por causa da qual ele mesmo as
rechaça”635.
O fato é que a hermenêutica filosófica vive unicamente de suas argumentações, da refutação de
objeções. E, “posto que estas são inesgotáveis, assim como é completamente indeterminada a área de suas
negações possíveis (...), do mesmo modo é inesgotável sua tarefa, e nisso reside sua historicidade: é por
isso que semelhante metafísica não alberga nenhuma violência, mas só uma serena, contínua e incansável
disponibilidade à discussão”636.
Com a hermenêutica ontológica alargamos a ênfase da ontologia hermenêutica – que Heidegger
e Gadamer deram ao Dasein, afetado pela história, pela linguagem –, ao desenvolver os princípios e
modelos estruturais do jogo e do círculo hermenêutico, cujo protagonista continua sendo o sujeito,
contudo com métodos e objetivos diferentes dos da modernidade. Com a hermenêutica ontológica
resgatamos o valor do método moderno e desenvolvemos uma “metodologia” apropriada ao ser
humano, que se constitui como uma preocupação e postura ética, um modo de filosofar, com exigências e
regras próprias.
Se na ontologia hermenêutica a ênfase da hermenêutica gadameriana recai no “refreamento” da
onipotência da subjetividade moderna, condensada na expressão “aprender pelo padecer”, na
hermenêutica ontológica a possibilidade de “o outro também ter razão” é melhor justificada e o sujeito é
tomado em sua devida posição de relação. Na hermenêutica ontológica a ênfase recai na relação ativa –
sem suprimir a passividade daquela – dos sujeitos que filosofam, seguindo regras e exigências, com
princípios universais, como a lógica da pergunta e da resposta, como a experiência, como a linguagem. A
experiência e a linguagem, como princípios ontológicos, fundamentam a hermenêutica filosófica, em
todos os tempos e lugares, em sua face passiva e ativa, autônoma e livre. Princípios que se corporificam
no itinerário próprio da hermenêutica filosófica, que não desvincula a bondade da verdade; antes, confere
a estas sua legitimidade e autenticidade mais plena, mais humana.
A linguagem filosófica não se esgota em palavras – no dito, no enunciado lógico –, mas se
desenvolve por sermos com os outros, que é nosso “estar-no-mundo” próprio; daí por que “isto é a
hermenêutica: o saber do quanto fica sempre de não dito, quando se diz algo”637 (grifo nosso). E, uma
vez que está às voltas com a totalidade – entre o dito e o não dito, entre a linguagem da experiência e a
experiência da linguagem –, a hermenêutica converte-se em metafísica. Trata-se de uma metafísica que
não esgota nem circunscreve o sentido e o significado do mundo a um ente, ou a um conceito. A
metafísica não soluciona, de modo objetificador, as questões filosóficas, mas, enquanto totalidade não
tematizável totalmente, “procura garantir a transcendência como uma moldura que nos dá o senso de
proporção diante do mundo, da vida e do mistério”, enquanto um “ir além, não encerrar tudo numa
resposta, continuar com a pergunta, sustentar a finitude, um já-sempre-estar além de si mesmo”638.
Na hermenêutica ontológica, o ser compreende-se como “a vida, o movimento circular de uma
identidade que produz e habita sua exteriorização sem se separar dela mesma, que engendra seu outro
sem jamais cessar de se reconhecer aí e de se encontrar aí”639. Por isso a metafísica, enquanto moldura de
totalidade, estrutura-se argumentativamente, exigindo uma postura que seja coerente com seu ser,
tecendo um modo de uma ontologia, pois o Ser mesmo acontece e manifesta-se linguisticamente. Por isso
podemos dizer que a ontologia hermenêutica e a hermenêutica ontológica caracterizam-se como
ontologia relacional da manifestação: não é assegurada apenas pela coisa “em si” nem pela validade do
método, mas pelo jogo circular dialógico entre ser e linguagem, enquanto movimento que vai da palavra
ao conceito e deste àquela, enquanto linguagem da experiência e experiência da linguagem, enquanto o saber do
quanto fica sempre de não dito, quando se diz algo.
377 “Sein, das verstanden werden kann, ist Sprache”. Gadamer, H. G., WM1, p. 478.

378 Gadamer, H. G., Koselleck, R., Hermeneutik und Historik, in: Die antike Philosophie in ihrer Bedeutung für die Gegenwart. Heidelberg: Karl
Winter Universitätsverlag, 1981, p. 30.

379 Gadamer, H.-G., VMI, GW1, p. 316, nota 241.

380 Id., MiSp, p. 349.

381 Geschichte, Sprache, Gespräch und Spiel: all dies sind – das ist das Entscheidende – verstauschbare Grössen. Schulz, W., “Anmerkungen zur
Hermeneutik Gadamers”, in: Bubner, R., Cramer, K., Wiehl, R (eds.), Hermeneutik und Dialektik. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1970, v. I, p. 311.

382 Grondin, J., Einführung in die Philosophische Hermeneutik. Darmstadt: Wiss. Buchges., 1991, p. 152 (cf. trad: Introdução à hermenêutica
filosófica. SL: UNISINOS, 1999, p. 196). Utilizaremos a sigla EPH para esta obra.

383 Gadamer, H.-G., GreSpra, p. 359.

384 Id., InDi, p. 207.

385 Id., ViSpra, p. 343-344.

386 Sobre isso ver “Élements pour une pragmatique du dialogue: Le Dialogue référentiel” (Troisième Recherche, p. 151- 260), in: Jacques, F.,
Dialogiques. Recherche logiques sur le dialogue. Paris: PUF, 1979.

387 Schulz, W., “Das Problem der Aporie in den Tugenddialogen Platos”, in: Henrich, D., Schulz, W., Volkmann-Schluck, K. H., (eds.), Die
Gegenwart der Griechen im Neueren Denken (Festschrift für Hans-Georg Gadamer zum 60. Geburtstag), Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1960,
p. 262.

388 Moratalla, A. D., op. cit., p. 222.

389 Gadamer, H.-G., LeCo, p. 198.

390 Schulz, W., op. cit., p. 262.

391 Gadamer, H.-G., InDi, p. 209.

392 Ibid., p. 211.

393 Id., HoLe, p. 152.

394 Id., InDi, p. 212.

395 Id., ibid.

396 Wiehl, R., “Dialog und philosophische Reflexion”. Neue Hefte für Philosophie. N. 2/3, p. 93, 1972.

397 Gadamer, H.-G., InDi, p. 212.

398 Id., ibid., p. 213.

399 Ibid.

400 Ibid., p. 214.

401 Ibid.

402 Para J. Locke, “o abuso das palavras” consiste no seguinte: “Além da imperfeição que existe naturalmente na linguagem, e da
obscuridade e confusão que são tão difíceis de evitar no uso de palavras, há várias faltas voluntárias e negligências de que os homens são
culpados em seus modos de comunicação, por meio das quais tornam esses sinais menos claros e distintos em seus significados do que
naturalmente deviam ser”. Em seguida elenca e explica quais são esses abusos: “palavras sem nenhuma, ou sem ideias claras”, “aplicação
instável delas”, “manifesta obscuridade por aplicação errada”, “tomando-as por coisas”, “designando-as para o que não podem significar”,
“a causa do abuso prende-se à suposição de que o trabalho da natureza é sempre regular”, “suposição de que as palavras têm um significado
certo e evidente”, “que tem nomes sem ideias...”. Locke, J., Ensaio acerca do Entendimento Humano. SP: Abril Cultural, 1971, p. 262-265 (Os
Pensadores, X).

403 Descartes, R., Meditações. SP: Abril Cultural, 1973, p. 97 (Os Pensadores, XV). Em perspectiva semelhante, D. Hume expressou-se assim:
“A paixão da filosofia, como a da religião, parece sujeita a este inconveniente: conquanto tenha em mira corrigir nossos costumes e extirpar
nossos vícios, se não a dirigimos com prudência, servirá apenas para favorecer alguma inclinação predominante e impelir a mente com mais
firme resolução num sentido em que já somos excessivamente atraídos pela inclinação e propensão de nossa índole natural”. Hume, D.,
Investigações sobre o Entendimento Humano. SP: Abril Cultural, 1973, p. 144 (Os Pensadores, vol. XXIII).

404 Gadamer, H.-G., InDi, p. 211.

405 Id., VMI, GW1, p. 387.

406 Id., ibid., p. 390.


407 Ibidem.

408 Ibidem.

409 Ibid., p. 391.

410 Ibidem.

411 Ibid., p. 392.

412 Teichert, D., op. cit., p. 136.

413 Gadamer, H.-G., InDi, p. 211.

414 Id., ibid.

415 Fruchon, P., op. cit., Archives de Philosophie, v. 36, p. 533, 1973.

416 Gadamer, H.-G., GeGe, p. 340.

417 Rombach, H., Über Ursprung und Wesen der Frage. 2., unveränd. Aufl. Mit e. Nachw. zur Neuausg., Freiburg (Breisgau), München: Alber,
1988, p. 35.

418 Id., ibid., p. 37. Lembramos que o termo alemão ver-sagen possui duplo sentido: a) negar, recusar; b) falhar, não funcionar.

419 Ibidem.

420 Gadamer, H.-G., VMI, GW1, p. 384.

421 Id., ibid., p. 389.

422 Gadamer, H.-G., GeGe, p. 336-7.

423 Id., VMI, GW1, p. 387.

424 Rombach, H., op. cit., p. 32.

425 Kögler, H. H., op. cit., p. 100.

426 Gadamer, H.-G., InDi, p. 210.

427 Id., LeCo, p. 188.

428 Rombach, H., op. cit., p. 34.

429 Gadamer, ViSpra, p. 346.

430 Id., GeGe, p. 338.

431 Id., HoLe, p. 152.

432 Ibid., p. 153.

433 Gadamer, H.-G., Koselleck, R., op. cit., p. 30.

434 Gadamer, H.-G., HeSpra, p. 369-370.

435 Id., ap. Grondin, J. EPH, p. 160, nota 1.

436 Moratalla, A. D., op. cit., p. 222.

437 Silva, M. L. P. F. da, op. cit., p. 197.

438 Gadamer, H.-G., InDi, p. 213.

439 Perelman, C., “Dialectique et Dialogue”, in: Bubner, R., Cramer, K., Wiehl, R., (eds.), op. cit., v. II, p. 83.

440 Moratalla, A. D., op. cit., p. 226.

441 Id., ibid., p. 226.

442 Perelman, C., op. cit., p. 83.

443 Id., ibid.

444 Rombach, H., op. cit., p. 33.

445 Ibid.

446 Kögler, H. H., op. cit., p. 98.

447 Id., ibid.


448 Gadamer, H.-G., InDi, p. 210.

449 Id., ibid., p. 215.

450 Davidson, D., De la Verdad y de la Interpretacion. Fundamentales contribuciones a la filosofía del lenguaje. Barcelona: Gedisa, 1995, p. 48.

451 Ibid., p. 202.

452 Rombach, H., op. cit., p. 36.

453 Unglaub, R., “‘Sprich, damit ich dich seh’. Wahrnehmung ist Unterwegsein, ist Gespräch” in: Vogel, T. (hrsg.), Über das Hören: einem
Phänomen auf der Spur, mit Beitr. Von Hermann Bausinger..., 2., bearb. Aufl., Tübingen: Attempto, 1998, p. 91.

454 Rombach, H., op. cit., p. 32.

455 Id., ibid., p. 35.

456 Id., ibid., p. 35.

457 Ibidem.

458 Rombach, H., op. cit., p. 36.

459 Id., ibid., p. 33.

460 Gadamer, H.-G., GeGe, p. 347. A propósito dessa perspectiva, ver Manfred Riedel, Hören auf die Sprache: die akroamatische Dimension der
Hermeneutik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990.

461 Id., LePrePe, p. 205.

462 Vogel, T. (hrsg.), op. cit., p. 8.

463 Berendt, J. E., “Ich höre, also bin ich”. in: Vogel, T. (hrsg.), op. cit., p. 71.

464 Zenger, E., “‘Gibt deinem Knecht ein höhrendes Herz!’: Von der messianischen Kraft des rechten Hörens”. In: Vogel, T. (hrsg.), op. cit., p.
30.

465 Id., ibid., p. 34.

466 Gadamer, H.-G., GreSpra, p. 351.

467 Id., HoSeLe, p. 272.

468 Ibid., p. 271.

469 Kleine Schriften, v. 1, p. 199, ap. Bausinger, H., “Kannitverstan. Vom Zuhören, Verstehen und Mißverstehen” in Vogel, T. (hrsg.), op. cit.,
p. 16.

470 “Essa expressão foi criada por Ulrich Sonnemann (Über die Okulartyrannis, Frankfurt, 1987)”. Flickinger, H. G., “O ambiente
epistemológico da educação ambiental”, Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 19, n. 2, p. 201, nota 6, jul./dez. 1994.

471 Flickinger, H. G., op. cit., p. 201.

472 Ibid., p. 202.

473 Bausinger, H., op. cit., p. 17.

474 Gadamer, H.-G., VMI, GW1, p. 466.

475 Bausinger, H., op. cit., p. 16.

476 Gadamer, H.-G., StiSp, p. 258.

477 Reale, G., História da filosofia antiga. SP: Loyola, 1994, v. II, p. 13. Na página 15, G. Reale apresenta o raciocínio de Platão segundo o qual
ele ressalta o valor da linguagem dialógica, oral – própria ao filosofar – em detrimento da escrita.

478 Gadamer, H.-G., HoSeLe, p. 274.

479 Id., GeGe, p. 347.

480 Bausinger, H., op. cit. p. 15.

481 Gadamer, H. G., GreSpra, p. 359.

482 Id., LePrePe, p. 206.

483 Coreth, E., Questões fundamentais de hermenêutica. SP: EPU, 1973, p. 26. Sigla dessa obra = QF.

484 Id., ibid., p. 33.


485 Fruchon, P., op. cit., Archives de Philosophie, v. 36, p. 529, 1973.

486 Id., ibid., p. 532.

487 Lledó, E., Filosofía y lenguaje. Barcelona: Ariel, 1995, p. 16.

488 Cassirer, E., Philosophie der symbolischen Formen, I, Darmstadt: Wiss. Buchgesellschaft, 1956, p. 55, ap. Lledó, E., op. cit., p. 21.

489 Não há unanimidade sobre a tradução ao português do termo alemão Sprachlichkeit. Em italiano foi traduzido por linguisticità, em
espanhol por lingüisticidad. O prof. Manfredo A. de Oliveira, em Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, traduziu-o por
linguicidade. Temos muita dificuldade em encontrar um termo mais apropriado para aquilo que Gadamer pretendeu expressar por meio de
Sprachlichkeit. Estivemos às voltas com os termos linguisticidade e o caráter de ser linguagem. No final optamos pela expressão o modo de ser
linguagem.

490 Alvarez Gómez, M., “Lenguaje y Ontología en H.-G. Gadamer”, in: PenAlCon, s/d., p. 63.

491 É como refletir sobre o ar no qual desde sempre estamos e vivemos, embora sem estar conscientes disso: é nesse jogo de esforço de
objetividade e in-objetificabilidade, de falar e de calar, de dizer e de silenciar que nos propusemos aqui a refletir sobre a linguagem.

492 Gadamer, H.-G., VMI, p. 383.

493 Shattuck, R., Conhecimento proibido: de Prometeu à pornografia. SP: Companhia das Letras, 1998, p. 164.

494 “Alles Vorauszusetzende in der Hermeneutik ist nur Sprache”. F. Schleiermacher, ap. Gadamer, H.-G., WM, p. 387.

495 Aristóteles, Metafísica, A 2, 1253a 9s.

496 Gadamer, H.-G., HoLe, p. 146. A propósito disso, lembramos a afirmação aristotélica: “Se fosse odioso não poder se defender com seu
corpo, seria absurdo não poder fazê-lo pela palavra, cujo uso é mais próprio ao homem que do seu corpo” (Arte Retórica, 1355a 38-b1).

497 Moratalla, A. D., op. cit., p. 99-100.

498 Gadamer, H.-G., HoLe, p. 154.

499 Id., ibid., p. 150.

500 Moratalla, A. D., op. cit., p. 100 e p. 124, respectivamente.

501 Gadamer, H.-G., VMI, p. 393.

502 Gadamer, H.-G., LeCo, p. 184.

503 Id., PhäSpra, p. 407.

504 Id., GreSpra, p. 350.

505 Id., ibid., p. 359.

506 Id., LeCo, p. 185.

507 Ibidem.

508 Droz, G., Os mitos platônicos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 168-9.

509 Num dos diálogos que tive o privilégio de ter com o próprio Gadamer, ao comentar sobre a 3ª parte de VM, onde aborda o tema da
linguagem, ele mesmo afirmou que não estava contente nem satisfeito com o que lá escrevera.

510 Gadamer, H.-G. GW1, p. 408-409.

511 Id., LePrePe, p. 206.

512 Id., VMI, p. 393-394.

513 Ibidem.

514 Ibid., p. 398-9.

515 Ibid., p. 408. Esta segunda afirmação é de Hönigswald; cf. Gadamer, H.-G., VMI, p. 408, nota 17.

516 Ibid., p. 400.

517 Ibid., p. 401.

518 Id., Die Moderne und die Grenze der Vergegenständlichung, München: Bernd Klüser, 1996, p. 35.

519 Dutt, C. (hrsg.), Hermeneutik – Ästhetik – praktische Philosophie: Hans-Georg Gadamer im Gespräch, Heidelberg: Winter, 1993, p. 36.

520 Nesse sentido, do ponto de vista literário, J. G. Rosa retratou essa ideia pela afirmação: “viver é plural”; cf. “Se eu seria personagem”, in:
Tutameia: terceiras estórias, 6. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 157.
521 Gadamer, H.-G., HeSpra, p. 369-370.

522 Teichert, D., Erfahrung, Erinnerung, Erkenntnis: Untersuchungen zum Wahrheitsbegriff der Hermeneutik Gadamers. Stuttgart: Metzler, 1991 cit.,
p. 117.

523 Gadamer, H.-G., VMI, p. 402.

524 Alvarez Gómez, M., op. cit., p. 58.

525 Lledó, E., op. cit., p. 128.

526 L. Lavelle, La parole et l’écriture, Paris: Artisan du Livre, 1942, p. 18, ap. Lledó, E., op. cit., p. 57.

527 Gadamer, H.-G., VM1, p. 406.

528 Id., SeHe, p. 174.

529 Ibidem.

530 Ibid., p. 178.

531 Ibid., p. 179.

532 Ibid., p. 179 e 180, respectivamente.

533 Ibid., p. 180.

534 Ibid., p. 181.

535 Gadamer, H.-G., SeHe, p. 182.

536 Id., ibid., p. 183.

537 Id., VMI , p. 407.

538 Id., LePrePe, p. 200.

539 Moratalla, A. D., op. cit., p. 125.

540 Gadamer, H.-G., LeCo, p. 193.

541 Id., HoLe, p. 149.

542 “Es ist ein immer Unvollendbares, ein Suchen und Finden von Worten”. Id., PhäSpra, p. 408.

543 Teichert, D., op. cit., p. 117.

544 Fruchon, P., op. cit., in Archives de Philosophie, v. 36, p. 535, 1973.

545 Id., LeCo, p. 193-4.

546 Id., ibid., p. 194.

547 Gadamer, H.-G., LeCo, p. 195.

548 Ibidem.

549 Id., ibid., p. 196.

550 Ibidem.

551 Sobre essa dimensão, do ponto de vista wittgensteiniano, W. Spaniol comenta: “E nesta sua função terapêutica ‘a filosofia simplesmente
coloca as coisas, não elucida nada e não conclui nada. Como tudo está à vista, não há nada a elucidar. Pois o que está oculto não nos
interessa. Pode-se chamar também de ‘filosofia’ o que é possível antes de todas as novas descobertas e invenções’ (IF, § 126; cf. § 599). E, por
outro lado, ‘os resultados da filosofia consistem na descoberta de um simples absurdo qualquer e nas contusões que o entendimento recebeu
ao correr de encontro aos limites da linguagem. Elas, as contusões, nos permitem reconhecer o valor dessa descoberta’ (IF, § 119). Aqui a
filosofia é vista exclusivamente em sua função terapêutica, e o trabalho do filósofo consiste meramente em reunir fatos ordinários a respeito
de nossa linguagem cotidiana, fatos que sempre estão ‘diante de nossos olhos’ (IF, § 129), e que apenas precisamos ‘recordar’ (IF, § 127)”,
Spaniol, W., Filosofia e método no segundo Wittgenstein: uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento. São Paulo: Loyola, 1989, p.
136.

552 Spaniol, W., op. cit., p. 139.

553 Id., ibid.

554 Gadamer, H.-G., LeCo, p. 189-190.

555 Id., SeHe, p. 182.

556 Ibidem.
557 Fruchon, P., op. cit., in Archives de Philosophie, v. 37, p. 237, 1974.

558 Spaniol, W., op. cit., p. 140.

559 Lledó, E., op. cit., p. 97.Otexto em questão, “Lenguaje e Historia de la filosofía”, encontra-se em: Bubner, R., Cramer, K., Wiehl, R (eds.),
Hermeneutik und Dialektik: Aufsätze II: Sprache und Logik, Theorie der Auslegung und Probleme der Einzelwissenschaften. Tübingen: J. C. B.
Mohr (Paul Siebeck), 1970, p. 85-95.

560 Gadamer, H.-G., LePrePe, p. 199.

561 Id., ibid.

562 Ibid., p. 200.

563 Lledó, E., op. cit., p. 106.

564 Spaniol, W., op. cit., p. 143-144.

565 Gadamer, H. G., SeHe, p. 182-183.

566 Silva, M. L. P. F. da, op. cit., p. 208.

567 Spaniol, W., op. cit., p. 143.

568 Moratalla, A. D., op. cit., p. 116.

569 Gadamer, H.-G., LePrePe, p. 199 e 200, respectivamente.

570 Wiehl, R., HdGdOn, p. 136.

571 Gadamer, H.-G., VMI, p. 452.

572 Wiehl, R., HdGdOn, p. 136.

573 Gadamer, H.-G., VMI, p. 443. A propósito disso, ver os textos de W. Humboldt “Über den Dualis” e “Einleitung zum Kawi-Werk”, in:
Schriften zur Sprache, Stuttgart: Reclam, 1995.

574 Id., ibid., p. 446.

575 Ibid., p. 452.

576 Ibid., p. 453.

577 Ibidem.

578 Ibid., p. 454.

579 Id., PHhMf, p. 105.

580 Id., VMI, p. 457.

581 Sobre esse tema, em Dilthey, ver: “Metaphysik als Motor der Hermeneutik: Über das ewig Metaphysische im Menschen bei Dilthey”, in:
Vedder, B., Was ist Hermeneutik?: ein Weg von der Testdeutung zur Interpretation der Wirklichkeit, Stuttgart: Kohlhammer, 2000, p. 69-91.

582 Gadamer, H.-G., VMI, p. 461.

583 Gadamer, H.-G., VMI, p. 461.

584 Id., ibid., p. 462.

585 Ibid., p. 465.

586 Ibid., p. 465-6.

587 Ibid., p. 466.

588 Ibid., p. 468.

589 Ibidem.

590 Wiehl, R., HdGdOn, p. 138.

591 Gadamer, H.-G., VMI, p. 478.

592 Id., ibid.

593 Ibid., p. 479.

594 Ibidem.

595 Grondin, J., EPH, p. 158. Conforme tradução pela Ed. Unisinos, p. 203-4.
596 Gadamer, H.-G., VMI, p. 488.

597 Id., ibid., p. 490.

598 Ibid., p. 491.

599 Fruchon, P., op. cit., Archives de Philosophie, v. 37, p. 547, 1974.

600 Id., ibid., p. 551-552.

601 Gadamer, H. G., VMI, p. 493.

602 Id., ibid., p. 493-4.

603 Id., ibid., VMI, p. 494.

604 Fruchon, P., op. cit., Archives de Philosophie, v. 37, p. 549-550, 1974.

605 Wiehl, R., HdGdOn, p. 144.

606 Braun, H., op. cit., p. 201.

607 Wiehl, R., HdGdOn, p. 140.

608 Id., ibid., p. 141.

609 Id., ibid., p. 146.

610 Vattimo, G., Rovatti, P. A., “Advertência preliminar”, in: Vattimo, G., Rovatti, P. A., Il pensiero debole, Milano: Feltrinelli, 1998, p. 10.

611 Id., ibid., p. 25-26.

612 Gauvin, J. et alii, Filosofia da linguagem. Coimbra: Almedina, 1973, p. 178.

613 Apenas a título de exemplo do que ocorre em outros âmbitos não estritamente filosóficos, a física mais recente ocupa-se com uma nova
distinção interna cognominada de ‘física’ de Einstein e Newton (física ‘forte’) e física quântica de W. Heisenberg (física ‘fraca’): a física
moderna dá, “ao conceito de causalidade, dois significados distintos e cientificamente precisos, um mais forte que o outro, não havendo
acordo entre os físicos sobre qual desses dois significados se deva atribuir à palavra ‘causalidade’. Assim, alguns físicos e filósofos da ciência
utilizam essa palavra em seu sentido mais forte. Outros físicos e filósofos usam a palavra ‘causalidade’ em seu sentido mais fraco e a palavra
‘determinismo’ em seu sentido mais forte (...) Se alguém perguntar: ‘mantém-se a causalidade em mecânica quântica?’ sem, todavia,
especificar se se trata de causalidade em seu sentido mais forte ou no mais fraco poderá obter respostas aparentemente contraditórias de
físicos igualmente competentes. Um físico, usando a palavra ‘causalidade’ em seu significado mais forte, daria corretamente resposta
negativa. Um outro, interpretando a mesma palavra em seu sentido mais fraco, responderia afirmativamente, com igual correção”.
Heisenberg W., Física e filosofia. 4. ed., Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p. 22 e 23.

614 Sobre essa especificidade ver H. Cohen, Logik der reinen Erkenntnis e Ethik des reinen Wissens.

615 Peters, F. E., Termos filosóficos gregos: Um léxico histórico. 2. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p. 36-38.

616 Não desenvolveremos o “princípio da história efeitual” (Wirkungsgeschichte) por um motivo simples e central para nós: esse princípio,
central em VMI, serviu para Gadamer recolocar o problema das Ciências do Espírito num patamar mais coerente e apropriado. Por meio do
princípio da efetuação, mostrou a impossibilidade de se elaborar uma “ciência” do espírito humano. Contudo, mais tarde, ele mesmo criticou
a ênfase que dera ao “princípio da efetuação” em sua concepção de hermenêutica.

617 Gadamer, H.-G., VMI, p. 121.

618 Wiehl, R., HdGdOn, p. 144.

619 Sobre isso ver: Gernet, L., Droit et Société dans la Grèce ancienne. Paris: Recueil Sirey, 1995, especialmente as páginas 9-18, 61-81, 103-119.

620 Wiehl, R., HdGdOn, p. 144.

621 Wiehl, R., HdGdOn, p. 146.

622 Como era o título inicial de Verdade e Método I. Título inicial que o editor de então afirmou ser “inconveniente”, em outras palavras, não
suficientemente “filosófico-científico”. Jean Grondin retratou isso em uma de suas perguntas na entrevista que fez com Gadamer: “Sie haben
darauf angespielt, daß Ihr Verlag Bedenken gegen den ursprünglichen Titel ‘Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik’ hatte.
Daraufhin sind Sie auf den Titel ‘Wahrheit und Methode’ gekommen”. In: “Dialogischer Rückblick auf das Gesammelte Werk”, Gadamer-
Lesebuch / hrsg. von Jean Grondin, Tübingen: Mohr, 1997, p. 282.

623 Flickinger, H. G., Brief an L.R., Heidelberg, 16.06.99.

624 Wiehl, R., HdGdOn, p. 138.

625 Fruchon, P., “Hermeneutique, Langage et Ontologie. Un discernement du platonisme chez H.G.Gadamer”, Archives de Philosophie, v. 37,
p. 537, 1974.
626 Ver mais detalhes sobre esta expressão: Rohden, Luiz. “A ontologia hermenêutica de Hans-Georg Gadamer”, in: Revista portuguesa de
filosofia, 56 (2000), 543-557.

627 Kögler, H. H., op. cit., p. 51.

628 Ibid., p. 51-52.

629 Berti, E., “Cómo argumentan los hermeneutas?”, in: Vattimo, G. (comp.), Hermenéutica y racionalidad, Colômbia: Norma, 1994, p. 56-57.

630 Id., ibid., p. 58.

631 Ibid., p. 53-54.

632 Ibid., p. 53-54.

633 Fruchon, P., op. cit., Archives de Philosophie, v. 37, p. 535, 1974.

634 Gadamer, H.-G., VMI, p. 494.

635 Berti, E., op. Cit., p. 53.

636 Id., ibid., p. 58-59.

637 “Das ist Hermeneutik, zu wissen, wieviel immer Ungesagtes bleibt, wenn man etwas sagt”. Gadamer, H.-G., in: Grondin, J. (Ed.),
Gadamer-Lesebuch, Tübingen: Mohr, 1997, p. 286.

638 Stein, E., Diferença e metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 82 e 84.

639 Fruchon, P., op. cit., Archives de Philosophie, v. 37, p. 537, 1974.
Conclusão

Enfim, mais que repetir quão pouco pôde ser dito acerca do que é possível dizer,
rememoraremos nossa experiência escriturística em torno da identidade da hermenêutica filosófica.
Como todo ato de escrever, experienciamos a tensão, as dificuldades e os problemas produzidos pela
relação entre criatividade e forma conceitual, entre verdade e método, entre o dito e o que não é possível
dizer totalmente, entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem.
Pretendíamos, inicialmente, de forma maniqueísta, contrapor uma racionalidade – um modus
filosófico, mais amplo e profundo, configurado pela hermenêutica – ao reducionismo da filosofia da
reflexão. Hermeneuticamente, ao longo da gestação e parição da reflexão que configurou o presente livro,
não apenas nos tornamos conscientes do que nos movia, mas também, a partir das nossas pré-
compreensões, é que pudemos traçar o perfil da hermenêutica filosófica. Não fossem elas, não
poderíamos – em trazendo-as à luz, repensá-las, criticá-las, redirecioná-las – justificar a hermenêutica
enquanto filosofia, uma vez que ninguém parte de um grau zero de conhecimento. Essa experiência
hermenêutica, esse modo de pensar e proceder são traços constituintes da identidade da hermenêutica
filosófica.
Nosso projeto inicial possuía um matiz técnico, pois, diante do reducionismo da razão moderna,
contrapúnhamos e justificávamos a concepção de uma hermenêutica filosófica, como se fosse um antídoto
contra os males dela. Fundamentais para nossa tomada de consciência e mudança de rota foram os
diálogos que tive com o próprio Hans-Georg Gadamer, que, por palavras e por seu modo de ser socrático,
ao falar das limitações de Verdade e Método I e defender a hermenêutica como uma postura (Tugend),
lançou luz e coragem para redirecionarmos nosso pré-projeto. O ambiente hermenêutico acadêmico de
Heidelberg foi decisivo para a reconfiguração das nossas perspectivas projetuais primeiras. Neste
Lebenswelt hermenêutico640, em discussões e diálogos com o prof. Reiner Wiehl – o discípulo crítico de
Gadamer, e por isso muito apreciado por este –, desvelamos e explicitamos a concepção de experiência
como o fio constituinte e constituidor da hermenêutica filosófica enquanto arché a partir do confronto com
a Fenomenologia do Espírito de Hegel. Desenvolvemos então o princípio da experiência hermenêutica que
passou a conferir uma unidade à nossa concepção de hermenêutica filosófica, enquanto filosofia, uma vez
que a experiência hermenêutica perpassa as questões éticas, políticas, estéticas, ontológicas e metafísicas.
Não substituímos, simplesmente, o lógos apophantikós pelo lógos hermeneutikós, nem dissertamos
historicamente sobre o tema da hermenêutica. O que emergiu do nosso filosofar – de nossas idas e vindas
aos textos e dos diálogos com quem se dedica com seriedade ao tema em questão – tem uma espinha
dorsal temática, não historiográfica. Estruturamos a hermenêutica filosófica como uma postura (Tugend),
um modo de ser, não como um método, uma doutrina, um sistema de regras para interpretar textos ou
uma ferramenta a serviço das ciências. Através da argumentação procuramos repensar e redirecionar os
caminhos possíveis da hermenêutica filosófica em seu viés ontológico e metafísico.
Em nosso primeiro capítulo, mostramos as limitações de boa parte da filosofia moderna, tentada
a reduzir-se a um método, à análise lógica de proposições, eliminando a própria metafísica. A própria
hermenêutica moderna assumiu esse caráter instrumental. Ante tal perspectiva, apresentamos o projeto
da filosofia aristotélica como uma alternativa por partir de dois pressupostos fundamentais: a concepção
de zoon logikon – zoon politikon e a de que “a exatidão matemática não se deve exigir em todos os casos”. A
racionalidade retórica, em Aristóteles, constitui um modelo atual e exemplar corretivo para o
estreitamento da razão, enquanto teoria argumentativa, uma vez que articula lógica, ética, poética,
política, ontologia metafísica num todo discursivo. Mas é ainda insuficiente, pois falta na perspectiva
filosófica do estagirita a dimensão da subjetividade e da historicidade. Encontramos na explicitação dos
jogos de linguagem do 2º Wittgenstein uma virada interna no rumo da filosofia de cunho lógico-analítico.
Contudo, a retomada e a apresentação dos jogos de linguagem é ainda um contributo insuficiente, pois o
2º Wittgenstein permaneceu preso nas malhas do modelo filosófico científico-moderno em seu viés
pragmático. Foi na concepção de experiência hermenêutica – sua linguagem – que encontramos o lugar, a
base, para repensar com radicalidade a unilateralidade da razão moderna. Mais que um fio condutor,
mostramos que ela não é uma categoria que pretenda esgotar em si o real, mas um arché da hermenêutica
filosófica. Arché enquanto origem, como aquilo que a fundamenta, não apenas como o fundamento
indemonstrável. Por isso mesmo, diferentemente dos princípios da ontologia tradicional, o princípio da
experiência não apenas move o filosofar – como uma espécie de causa incausada –, mas é seu próprio
movimento. A experiência não é concebida mais como experimentação nem como uma etapa para chegar
à certeza absoluta, mas sim como um saber aberto e autoimplicativo. Retomando Hegel, por meio de
Gadamer, justificamos que ela se converte no princípio central – mais que o princípio da história da
efetuação (Wirkungsgeschichte) – da hermenêutica filosófica. Daí por que a tarefa da hermenêutica
filosófica “tem que refazer o caminho da Fenomenologia do espírito hegeliana enquanto em toda
subjetividade se mostra a substancialidade que a determina”. A experiência hermenêutica não é hegeliana
– embora passe por ela e retome aspectos de sua pretensão de correção da filosofia da reflexão; pois com
ela não se trata mais de apreender a “essência” da experiência dialeticamente, mas de pensar e apreender
a própria dialética a partir da “essência” da experiência hermenêutica. Na verdade, fundamentando desse
modo a hermenêutica filosófica, mostramos que a experiência é o princípio de toda a filosofia e que a
retomada dela – ampliando-a e corrigindo as circunscrições a que foi limitada – possibilita um filosofar
mais coerente com o sentido da vida.
Ora, como o princípio da experiência não permanece vagando no ar e como não se trata de um
conceito abstrato, argumentamos sobre seu modo de proceder. Por essa razão explicitamos e
desenvolvemos caminhos – enquanto modelos estruturais, enquanto modos de pensar, de conhecer e de
agir que facultam o acontecer da experiência hermenêutica – para a hermenêutica filosófica efetivar-se.
Sem seguir o modelo científico que separa método e objeto na filosofia – que é próprio da teoria do
conhecimento –, desenvolvemos esse efetivar-se como metodologia da hermenêutica filosófica.
Retomando a virada realizada pelo 2º Wittgenstein por meio dos jogos de linguagem, no interior da
própria filosofia, aprofundamos a noção de jogo como modelo estrutural para explicitar e fundamentar o
modo de proceder da hermenêutica filosófica. A retomada do jogo como modelo estrutural da
hermenêutica filosófica não se deveu apenas ao emprego que dele fizeram, tanto o 2º Wittgenstein quanto
Gadamer. Antes se deve ao fato de o jogo consistir numa prática enquanto experiência que revela e
possibilita o acontecer do filosofar com sentido sempre atual. O filosofar é um jogar, iluminado a cada
instante pela noção de totalidade, e a filosofia não pode se constituir em um sistema de conceitos opacos e
fechados sobre si mesmos. Ela se dá num jogo em dois níveis: de um lado, ela é obra e sistema, onde os
conceitos estão relacionados, necessariamente, uns aos outros, de modo que cada um manifesta o todo; de
outro lado, é um sistema que permanece aberto e que abre possibilidades de efetivar uma experiência de
totalidade autêntica, pois se relaciona com a postura do filósofo e com os eventos de sua vida, que ele
procura iluminar e compreender. A exemplo do que ocorre no jogo do culto, o filósofo não visa jogar
somente para construir um sistema absoluto, mas se joga também em sua filosofia. Ao lado da noção de
jogo aprofundamos a concepção de círculo hermenêutico para justificar melhor o acontecer do princípio
da experiência. A apropriação do mito de Hermes – e com isso o controvertido tema da etimologia da
hermenêutica – constituiu-se numa estratégia para justificar a amplitude polifacética da hermenêutica
filosófica. A autêntica circularidade hermenêutica não se submete a qualquer fixação – assim como
Hermes, que não tem morada fixa –, e, por isso, mau filósofo é o que pensa que pode ou deve ficar com a
última palavra. Muito mais que um como (wie) descritivo, a hermenêutica, em seu movimento circular,
constitui-se em um enquanto (als) no tempo e no espaço, que, como Hermes, interliga as margens da
finitude e da transcendência, da contingência e da metaempiria, instaurando a terceira margem, a “coisa
mesma”, que denominamos de sentido. Mostramos e fundamentamos que método e objeto, forma e
conteúdo, transcendência e imanência, dito e não dito estão interpenetrados e formam uma totalidade. A
identidade da hermenêutica filosófica revela-se, entre outros modos, como um entre (Zwischen), um
vaivém entre os polos mencionados.
O princípio da experiência – sua linguagem –, explicável pelo acontecer do jogo e pelo círculo
hermenêutico, tem sua outra face e seu lugar culminante no diálogo. Embora Gadamer tenha enfatizado o
jogo como o modelo estrutural mais apropriado da hermenêutica, justificamos, mais explícita e
detalhadamente, o diálogo – com seus diferentes níveis, suas condições e exigências próprias – como seu
modo de acontecer por excelência. A linguagem, irredutível a enunciados lógicos, acontece de forma mais
plena enquanto diálogo, onde instauramos o sentido, enquanto direção de sentido, à base da palavra das
respostas e das perguntas situadas no tempo e no espaço. Ele é ontológico, pois possui regras e exigências
que, na verdade, são aquelas que devem compor todo exercício filosófico autêntico, autoimplicativo. Por
meio do diálogo podemos “chegar às coisas mesmas”, e é quando nos expomos à possível concepção
oposta que temos chances de ultrapassar a estreiteza dos nossos próprios pré-conceitos. Esta remissão
explícita e insistente ao outro diverge, num certo sentido, da perspectiva projetual do jogo em que a
ênfase recai sobre o refreamento da onipotência da subjetividade moderna. O que caracteriza
especificamente o diálogo – mais que um “eu” destronado, jogado, afetado – é a ênfase na relação com o
outro, pois a vivência do jogo dialógico hermenêutico extrapola, corrige e alarga nossos horizontes e pré-
conceitos. Na experiência dialógica, somos interpelados e solicitados a responder, e é no confronto com o
diferente que se revela e se constitui nossa identidade. As perguntas e respostas filosóficas constituem um
campo de disputa, de luta, onde os parceiros descobrem-se e comprometem-se com um modo de agir. Por
isso afirmamos que o diálogo filosófico é existencial, é uma experiência, ao passo que a dialética hegeliana
– em boa parte – é formal, abstrata e deve ser convertida em dialética dialógica. O diálogo autêntico
possui uma força transformadora e, quando acontece, fica algo em nós e algo que nos transforma. Ser
parceiro do diálogo significa ser capaz de aceitar e levar a sério a possibilidade de o outro também poder
ter razão. Implica também tomar consciência de quão pouco sabemos do que é possível saber, sendo
implícita uma totalidade que nos convoca a compreendermos nossa finitude a partir dela. Justificamos a
dimensão do ouvir como exigência e condição fundamental do filosofar a partir das palavras de
Gadamer, “nós precisamos aprender que no ouvir ao outro se abre o verdadeiro caminho, no qual se
forma a solidariedade” (grifo nosso) e a partir do qual instala-se – em suas mais variadas formas de ser – o
diálogo hermenêutico.
A linguagem, irredutível à instrumentalização ou à simples metodologia, ocupa, em Gadamer, o
lugar do Ser em Heidegger e do Espírito em Hegel; por isso ela é a base e o cimo da hermenêutica
filosófica, uma vez que “tudo que tem de ser pressuposto na hermenêutica é unicamente linguagem”. A
relação entre hermenêutica e linguagem entrelaça-se com a responsabilidade ética, enquanto tarefa crítica
de desenfeitiçar a linguagem. A linguagem constitui-se em arché, no sentido de princípio, origem, ponto
de partida e de chegada da filosofia, enquanto caminho que sobe e desce, uma vez que é nela que o
filosofar se constitui. Ela, como o ar, não é apenas a condição de possibilidade para “o voo da pomba”,
mas o medium no qual existimos, somos e pensamos; ela não é “a vestimenta do pensamento, senão que é
seu verdadeiro corpo. O pensamento não é nada sem a palavra”.
A partir do diálogo como modo mais próprio para a hermenêutica filosófica efetivar-se e da
linguagem como medium da experiência hermenêutica, compreendemos a nossa experiência do mundo,
que não se produz só na aprendizagem da fala nem se esgota no dito. A hermenêutica filosófica não se
reduz ao nível epistemológico-metodológico, mas pressupõe, justifica-se e tece uma ontologia a partir de
outra concepção de metafísica. Constatamos isso pelo fato de estar às voltas com o que chamamos de pré-
reflexivo, de Lebenswelt, irredutível à dissecação analítica ou ao cálculo matemático. Ela tem presente
também o não dito e o que é posterior ao apofântico. Justificamo-la como um modo de ser, mais que uma
maneira de conhecer, pois o ser se diz de muitas e diversas maneiras de ser no tempo e no espaço. Ao
lado da ontologia hermenêutica em Gadamer – restrita à questão da universalidade e à acepção de
mundo – estruturamos a hermenêutica ontológica. Esta constitui-se com os princípios da experiência e da
linguagem, enquanto princípios ontológicos fundamentais e fundamentadores, efetuáveis pelos modelos
estruturais do jogo, do círculo e pelo modo de ser do diálogo.
Um dos nossos pontos de partida fundamentadores da hermenêutica ontológica assenta-se na
concepção de Ser que “é a vida, o movimento circular de uma identidade que produz e habita sua
exteriorização sem se separar dela, que engendra seu outro sem jamais cessar de se reconhecer aí e de se
encontrar aí”. Justificamos a hermenêutica filosófica, que pressupõe e carrega uma concepção de
metafísica subjacente e estruturante da ontologia. Entre outras formas, na enigmática e densa afirmação
“ser que pode ser compreendido é linguagem”, encontramos o ponto que corrobora essa posição. A
ontologia, enquanto ciência do ser, explicita-se e acontece numa linguagem que, enquanto estrutura
argumentativa, traça o perfil de outra ontologia coerente com a finitude e mobilidade da vida humana.
Considerando a hermenêutica um “saber o quanto sempre não está sendo dito quando se diz algo”, uma
relação agônica e inesgotável entre ser e linguagem, estamos às voltas com a totalidade, seja da postura
do ser (ontologia), seja da linguagem (metafísica). Desse modo, a hermenêutica ontológica não alberga
nenhuma violência, nenhum tipo de autoritarismo, nenhuma dedução necessitária, mas – entre ser e
linguagem e vice-versa – institui-se um diálogo contínuo e interminável, uma vez que não fixou um ideal
de conhecimento universalmente obrigatório e definitivo.
A estruturação da hermenêutica filosófica nasceu da tensão produzida entre, por um lado, uma
exigência metodológico-sistemática e, por outro, a exigência própria, criativa, situada no tempo e no
espaço do filosofar. Poderíamos resumir essa tensão, que caracteriza o filosofar explicitado na Verdade e
Método, com as palavras gadamerianas “minha necessidade era a de tornar-lhes claro que a hermenêutica,
enquanto filosofia, não é qualquer disputa de métodos com outras ciências, teorias das ciências ou coisas
tais, mas um modo de mostrar que – e isso ninguém pode negar – em cada momento em que pomos
nossa razão a trabalhar, não fazemos apenas ciência”641.
Em Verdade e Método, a conjunção e não é uma linha que limita e impede o amor à verdade ou
que dicotomiza o saber e o rigor metódico das ciências modernas ou que soma simplesmente verdade ao
método, destruindo a especificidade de cada uma dessas dimensões da filosofia. A conjunção e constitui
um lugar, um medium, que articula verdade e método, constituindo o movimento de sístole e diástole do
filosofar.
Não seria muito difícil apresentar a hermenêutica do ponto de vista metodológico, tal como
propuseram F. Schleiermacher e W. Dilthey, que seguem o modelo das ciências naturais para
fundamentá-la. Mas, com o hermeneutic turn, Heidegger e Gadamer redirecionaram os rumos da própria
filosofia, e, por essa razão, a hermenêutica filosófica não pode mais ser delimitada ao âmbito
metodológico. Como o próprio filosofar, a hermenêutica filosófica possibilita sempre poder perguntar e
responder de novo. Com a justificação de Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a
experiência da linguagem, apontamos pistas para filosofar enquanto um saber acerca do não saber na
medida em que “buscamos compreender o outro, o desconhecido, o ignoramus e o ignorabimus, esse não
saber do homem acerca de sua própria situação no mundo – no curto espaço temporal da vida, que acaba
com a morte”642. Conservar o termo grego arché para denominar experiência e linguagem filosóficas não
foi algo arbitrário. Arché não como o fundamento inabalável, mas o que fundamenta e constitui a própria
filosofia. Despimo-lo do seu caráter de absolutidade, de fundamento inconcusso do real, desvelando-o
como aquele pathos e tarefa original de levar o homem à compreensão de si mesmo, que moveu e
continua movendo as pessoas a filosofarem. Arché enquanto método de discussão, de proposição de teses
e antíteses, de perguntas e de respostas, de argumentos e objeções acerca dos problemas e questões que
dizem respeito às preocupações das pessoas. Apenas o autoconhecimento pode nos livrar das ameaças e
ideologias externas das quais somos dependentes. O saber hermenêutico, por ser autoimplicativo,
instaura uma experiência que realizamos toda vez que procuramos transcender nossa realidade empírica
e nos compreender enquanto totalidade. Enquanto experiência, afeta nosso modo de conhecer e de agir;
por isso mais vale o sabor do saber que o dissabor do conhecer; daí que a tensão insolúvel entre palavra e
conceito, verdade e método, linguagem da experiência e experiência da linguagem, mantém viva e descoberta
a chama do amor ao saber.
Em contraposição ao solipsismo disseminado pela filosofia moderna e contemporânea, a
hermenêutica filosófica, em seu discurso, pressupõe, justifica e articula a alteridade, o que implica uma
relação com a ética, com a política expressável nas palavras “a possibilidade de o outro ter razão é a alma
da hermenêutica”. A hermenêutica filosófica realiza-se como um caminho reflexivo relacional entre saber
e agir, explicação causal e visão teleológica. Temos consciência da centralidade da imbricação entre
hermenêutica e o outro – enquanto ele que constitui o nós – que foi explicitada, mas mereceria um
aprofundamento posterior.
A hermenêutica filosófica, enquanto filosofia, mais que um instrumento ou antecâmara da
metafísica, pois não se move apenas no domínio do apofântico, pressupõe e possibilita a efetuação da
relação necessária entre conhecimento e práxis, entre epistemologia e situação espaçotemporal da
humanidade num discurso tecido entre os pontos da experiência e da linguagem que se configura na
forma de rede.
Oferecemos um conjunto de argumentos e pistas que podem orientar uma discussão sobre a
identidade e importância da hermenêutica filosófica enquanto filosofia, sem a pretensão de possuir a
última palavra. Em sua tarefa crítica e responsável, a hermenêutica filosófica contribui para repensar e
reorientar problemas éticos, ecológicos, políticos, pois, mais que um modo de conhecer, trata-se de uma
postura que conserva a tensão entre verdade e método. Ela evoca, em primeira e última instância, a
postura socrática segundo a qual uma vida que não é examinada não vale a pena ser vivida, onde o
filosofar que não contribui para examinar nossas vidas com nossos conceitos e pré-conceitos deixa de ser
amor ao saber, para se converter em paixão pelo poder, obcecada apenas com a elaboração de
argumentos de caráter estratégico.
Com a hermenêutica filosófica, reavivamos a concepção de filosofia como o amor ao saber que
nos possibilita ser e viver mais felizes. A volta de Gadamer à filosofia grega tem por escopo resgatar a
dimensão do conhecimento enquanto saber vinculado à vida e à atividade do filósofo e reinserir, na
reflexão filosófica moderna e contemporânea, o problema da vida eudaimônica, no sentido proposto pela
pólis grega, estendida, hoje, a todas as pessoas.
No desenvolvimento de nossa reflexão corporificada neste livro – que poderia ser chamado de
uma introdução à compreensão da hermenêutica filosófica gadameriana –, tivemos que fazer opções,
recortes. Percebemos a necessidade de aprofundar e tematizar melhor, p. ex., a relação entre
hermenêutica e ética, entre a concepção de linguagem gadameriana e a desenvolvida por Chomsky e
outros. Valeria a pena desenvolver as relações entre a hermenêutica filosófica de Gadamer e a teoria da
narração de P. Ricoeur, bem como estabelecer relações entre aquela e a concepção de ética desenvolvida
por E. Levinas. Seria profícuo explicitar a relação entre Gadamer e Nietzsche no tocante à questão da
interpretação e da verdade. Num momento posterior, precisaríamos confrontá-la com outras áreas do
conhecimento, como as ciências sociais e jurídicas, história, ciências da comunicação, literatura,
psicanálise, etc.
Como toda obra precisa ter seu fim, concluímos nossa reflexão recordando o que consideramos a
alma da hermenêutica filosófica, ou seja, a alteridade e a solidariedade em oposição a uma concepção de
filosofia estéril, dogmática ou delirante. Com as palavras do próprio Gadamer afirmamos em forma de
conclusão: “o caminho vai da ‘palavra ao conceito’ – mas precisamos chegar do conceito à palavra, se
quisermos alcançar o outro”, ou seja, “se não aprendermos a virtude da hermenêutica, isto é, se não
reconhecermos que se trata, em primeiro lugar, de compreender o outro, a fim de ver se, quem sabe, não
será possível, afinal, algo assim como solidariedade da humanidade enquanto um todo, também no que
diz respeito a um viver junto e a um sobreviver com o outro (grifo nosso), então – se isso não acontecer –
não poderemos realizar as tarefas essenciais da humanidade”643, examinando nossa forma de conhecer e
nosso modo de agir. A hermenêutica filosófica – diferentemente da postura metafísica objetivista ou
subjetivista – parte da concepção de um saber autoimplicativo que se plenifica num jogo circular
dialógico. Ela não se coloca na esteira do projeto que procura erradicar a metafísica, mas busca superar
um modelo de conhecimento que não se pauta pela perspectiva autoimplicativa de conhecer.
A hermenêutica filosófica, enquanto “o saber do quanto fica sempre de não dito, quando se diz
algo”, pressupõe e põe o problema da totalidade de forma não totalitária. Desse modo, ela se converte em
metafísica, pois, sem objetificar o próprio ato filosófico, articula o dito e o não dito, o empírico e o
transcendental, o dado e nossa experiência conceitual sobre o nosso filosofar. Lembremos que, não por
acaso, apresentamos em nossas páginas iniciais a tese de superação da metafísica proposta por Carnap.
Com ela não pretendíamos engrossar as fileiras da marcha fúnebre do enterro da metafísica ocidental.
Pelo contrário, na e com a hermenêutica filosófica sopramos as cinzas que se acumularam sobre a
metafísica nas últimas décadas, fazendo-a renascer e dando-lhe um novo alento para viver enquanto
estrutura argumentativa que faculta examinar nossas vidas como e dentro de uma totalidade de sentido.
A pretensão de mostrar e fundamentar a hermenêutica filosófica, a partir dos princípios da
experiência e da linguagem, justifica-a como uma metafísica, pois nossa preocupação e projeto
consistiram em repensar a concepção de filosofia enclausurada nos ditames do cogito ergo sum, que,
olvidando os passos das pessoas, perde-se no gozo dos seus devaneios e surtos supostamente filosóficos.
Não que a hermenêutica seja uma espécie de panaceia para as limitações da razão – embora ofereça dicas
terapêuticas para psicopatologias da academia –, mas ela leva a sério a vida e oferece novas
possibilidades de continuarmos filosofando, para vivermos mais livres e solidários.
Com a explicitação dos princípios da experiência e da linguagem da hermenêutica filosófica,
justificamos a crítica e a renovação da metafísica objetivista e subjetivista, salvaguardando o valor do ser,
da coisa em si, relacionados com o sujeito livre. Essa noção de metafísica está para ser instaurada à
medida que filosofarmos com as condições e as exigências semeadas ao longo do nosso caminho. Assim,
a metafísica e a ontologia – implícitas e constituintes da hermenêutica filosófica – explicitam-se agora
melhor na releitura deste livro, pois o caminho que nos trouxe até aqui é o mesmo que nos leva de volta
ao início. Nessa (re)leitura circular poderemos, agora, compreender, não apenas melhor, mas de outro
modo, que a hermenêutica filosófica – na verdade – repensa e atualiza o filosofar cristalizado pela
metafísica e ontologia ocidentais com uma noção de saber que carrega e conserva consigo a tensão
produtiva entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem, isto é, o quanto não está sendo dito
quando se diz algo.
640 Onde contatei e conversei com os professores, discípulos de Gadamer: Jean Grondin, Lawrence Schmidt, Richard Palmer, Günter Figal,
Rüdiger Bubner, Dennis Schmidt.

641 Gadamer, H.-G., Die Moderne und die Grenze der Vergegenständlichung, mit Beiträgen von Hans Belting, Gottfried Boehm, Walther Ch.
Zimmerli; Radierungen Sean Scully, München: Bernd Klüser, 1996, p. 39-40.

642 Id., ibid., p. 22.

643 Gadamer, H.-G., Die Moderne und die Grenze der Vergegenständlichung, p. 38.
Bibliografia

1 Bibliografia primária

1.1 Obras de Hans-Georg Gadamer

Entre 1985 e 1995 foram publicadas as Gesammelte Werke pela editora J. C. B. Mohr (Paul Siebeck) em
Tübingen. Os títulos das Gesammelte Werke são:

1. Hermeneutik I: Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik, 1986, 2. Aufl.
1990.
2. Hermeneutik II: Wahrheit und Methode. Ergänzungen, Register, 1986, 2. Aufl. 1993.

3. Neuere Philosophie I: Hegel – Husserl – Heidegger, 1987.

4. Neuere Philosophie II: Probleme – Gestalten, 1987.

5. Griechische Philosophie I, 1985.

6. Griechische Philosophie II, 1985.


7. Griechische Philosophie III: Plato im Dialog, 1991.

8. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage, 1993.

9. Ästhetik und Poetik II: Hermeneutik im Vollzug, 1993.

10. Hermeneutik im Rückblick, 1995.

Outras obras de Hans-Georg Gadamer

Das Erbe Europas. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989. (1004)

Lob der Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991. (828)

Wer bin Ich und wer bist Du? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1995. (352)

Über die Verborgenheit der Gesundheit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996. (1135)

Philosophische Lehrjahre. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1977.


Erziehung ist sich erziehen. Heidelberg: Kurpfälzischer Verl., 2000 (texto traduzido para o português na
revista Educação UNISINOS, vol. 5, n. 8, 2001, p. 13-28).

1.2 Textos consultados de Hans-Georg Gadamer

“Mensch und Sprache (1966)”, in GW2;


“Sprache und Verstehen (1970)”, in GW2;

“Wie weit schreibt Sprache das Denken vor? (1970)”, in GW2;

“Semantik und Hermeneutik (1968)”, in GW2;


“Vom Zirkel des Verstehens (1959)”, in GW2;

“Klassische und philosophische Hermeneutik (1968)”, in GW2;

“Die phänomenologische Bewegung (1963)”, in GW3;

“Die Idee der Hegelschen Logik (1971)”, in GW3;

“Die verkehrte Welt (1966)”, in GW3;


“Das Erbe Hegels (1980)”, in GRONDIN, J., Lesebuch, in GW4;

“1. Platos dialektische Ethik. Phänomenologische Interpretationen zum Philebos (1931)” – Einleitung, in
GW5;

“Das Spiel der Kunst (1977)”, in GW8;

“Die Aktualität des Schönen; Kunst als Spiel, Symbol und Fest (1974)”, in GW8;

“Mythos und Logos (1981)”, in GW8;


“Mythos und Vernunft (1954)”, in GW8;

“Stimme und Sprache (1981)”, in GW8;

“Hören – Sehen – Lesen (1984)”, in GW8;

“Zur Phänomenologie von Ritual und Sprache (1992)”, in GW8;

“Die Vielfalt der Sprachen und das Verstehen der Welt (1990)”, in GW8;
“Grenzen der Sprache (1985)”, in GW8;

“Heimat und Sprache (1992)”, in GW8;

“Mythos und Vernunft (1954)”, in GW8;

“Mythos und Logos (1981)”, in GW8;

“Mythologie und Offenbarungsreligion (1981)”, in GW8;


“Gedicht und Gespräch. Überlegungen zu einer Textprobe Ernst Meisters (1988)”, in GW9;

“Hermeneutik und ontologische Differenz (1989)”, in GW10;

“Phänomenologie, Hermeneutik, Metaphysik (1983)”, in GW10;

“Subjektivität und Intersubjektivität, Subjekt und Person (1975)”, in GW10;

“Dekonstruktion und Hermeneutik (1988)”, in GW10;


“Mit der Sprache denken (1990)”, in GW 10;

“Nachwort”, in Heidelberger Jahrbücher, XXXIV, 1990.

1.3 Obras de Hans-Georg Gadamer em coautoria


GADAMER, Hans-Georg. Die Moderne und die Grenze der Vergegenständlichung. Mit Beiträgen von Hans
Belting, Gottfried Boehm, Walther Ch. Zimmerli; Radierungen Sean Scully. München: Bernd Klüser, 1996.

KOSELLECK, Reinhart und GADAMER, Hans-Georg. Hermeneutik und Historik. Heidelberg: Winter, 1987.

1.4 Textos em homenagem a Hans-Georg Gadamer

HENRICH, Dieter, SCHULZ, Walter, VOLKMANN-SCHLUG, Karl-Heinz (Hrsg.). Die Gegenwart der
Griechen im Neueren Denken: Festschrift für Hans-Georg Gadamer zum 60. Geburtstag. Tübingen: J. C. B.
Mohr (Paul Siebeck), 1960.
BUBNER, Rüdiger, CRAMER, Konrad, WIEHL, Reiner (Hrsg.). Hermeneutik

und Dialektik: H.-G. Gadamer zum 70. Geburtstag. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1970. v. I e II.

GRONDIN, Jean. Hans-Georg Gadamer: eine Biographie. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999.

FIGAL, Günter. Begegnungen mit Hans-Georg Gadamer. Stuttgart: Reclam, 2000.

FIGAL, Günter, GRONDIN, Jean, SCHMIDT, Dennis J. Hermeneutische Wege: Hans-Georg wir zum
Hundersten. Tübingen: Mohr Siebeck, 2000.

2 Bibliografia secundária

2.1 Livros

ADORNO, Theodor. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1970.


ALMEIDA, C. L., FLICKINGER, H. G., ROHDEN, L., Hermenêutica filosófica: nas trilhas de Hans Georg-
Gadamer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

ALMEIDA, Custódio Luis. Hermenêutica e dialética: dos estudos platônicos ao encontro com Hegel. Tese de
Doutorado. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

APEL, Karl-Otto. La Transformación de la Filosofía. Madrid: Taurus, 1985. t. I. O título original é:


Transformation der Philosophie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, 1973.

ARENDT, Hannah. A condição humana. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

ARISTÓTELES. ÓRGANON: I. Categorias; II. Perì Hermenéias. Lisboa: Guimarães, 1985.


ARISTÓTELES. ÓRGANON: Analíticos Posteriores. Lisboa: Guimarães, 1987.

ARISTÓTELES. ÓRGANON: Elencos Sofísticos. Lisboa: Guimarães, 1986.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2. ed. Brasília: Editora de Brasília, 1992.

ARISTÓTELES. Metafísica. 2. ed. Edição Trilíngüe por Valentín García Yebra. Madrid: Gredos, 1990.

ARISTÓTELES. Política. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1988.


ARISTÓTELES. Retórica. Introducción, traducción y notas por Quintín Racionero. Madrid: Gredos, 1990.

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2.2 Artigos

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