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22/03/2024, 14:46 Orientalismo jurídico: imaginação e discurso sobre o Direito da China | by Canal Sul | Soltando ideias no mundo | Medium

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Orientalismo jurídico: imaginação e discurso


sobre o Direito da China
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Published in Soltando ideias no mundo
7 min read · Oct 23, 2020

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Por: Lucas Wosgrau Padilha*|Revisão: Theófilo Aquino

O orientalismo jurídico é um viés que limita a compreensão euro-estadunidense (e


ocidental), principalmente, do direito — e sociedade — na e da China desde o século
XIX. Muito antes, portanto, dos conflitos tecnológicos, comerciais e políticos que
complicam atualmente as relações entre China e Estados Unidos, as duas potências
contemporâneas disputaram — não em paridade de armas — o que era o Direito
naquele país. O orientalismo — além de um viés — é reconhecido uma teoria crítica
seminalmente formulada por Edward Said [1]. Quais luzes podem ser lançadas ao
estudo do direito da (e na) China a partir do orientalismo?

O orientalismo é um sistema de afirmações que podem ser feitas: i) sobre colônias e


povos coloniais, ii) sobre poderes colonizadores e, iii) sobre a relação entre os dois.
Como discurso, o orientalismo — em algum destes sentidos — recebe legitimidade
institucional em ambientes acadêmicos, instituições da sociedade civil e governos.
A partir desta autoridade — do discurso materializado em direito, inclusive — o
orientalismo adquire nível de alta importância, de verdade.

Said alerta seus leitores: sem examinar o Orientalismo como um


discurso/declaração, é impossível entender a disciplina sistemática pela qual a
cultura europeia foi capaz de administrar e produzir política econômica e
socialmente o Oriente — um lugar imaginado que remete à geografia física, não o
contrário. Como a tese do crítico literário palestino pode inspirar o estudo do
Direito — na China?

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Teemu Ruskola [2] propõe uma história do “orientalismo jurídico”: um conjunto de


narrativas de circulação global sobre o que é o direito e quem o possui. Orientalismo
jurídico se manifesta em três discursos diferentes entre si: o europeu, o
estadunidense e o “auto-orientalismo” (self-orientalism).

Um exemplo analisado por Ruskola é a afirmação de que a China não desenvolveu


um direito societário, o que levou à falta de formação de capital industrial intensivo.
A conclusão, a partir do estudo do direito em olhar comparativo e histórico, seria de
que a China não desenvolveu as instituições jurídicas necessárias para a
industrialização.

A hipótese jurídica para a questão da “Grande Divergência”[3] decorre e depende de


uma tradição europeia de preconceitos filosóficos sobre a lei chinesa que
desenvolveu em uma ideologia de império — não só na Europa, mas também nos
Estados Unidos.

Em meados do século XIX, os Estados Unidos estabeleceram um tribunal especial


para a China, incorporando a China Qing como o maior distrito sob jurisdição. Esta
corte extraterritorial operou por cerca de um século. Suas consequências impactam
a percepção que a própria China republicana desenvolveu sobre si e sobre seu
Direito e, claro, a imaginação estadunidense sobre o Direito da (e na) China. Essas
suposições ocidentais sobre a China e sua tradição legal são chamadas de
“orientalismo jurídico (legal orientalism) por Ruskola. O estudo do direito da China
passa, inevitavelmente, pelo estudo do direito (estrangeiro) na China.

Desde, pelo menos, a Primeira Guerra do Ópio (1839–1842), a lei chinesa foi descrita
em periódicos e discursos oficiais europeus tanto como exemplo e causa da
barbárie, despotismo, atraso e incivilização. Essas imagens da lei chinesa, de acordo
com Li Chen [4], foram tão influentes que ainda moldam as representações
ocidentais contemporâneas de questões relacionadas ao Direito — e governança —
da China.

Chen argumenta que todos os conflitos sino-ocidentais subsequentes não foram


causados por “choques culturais” inevitáveis, nem pelo afã de dominação imperial
cristalizado nos muitos tratados desiguais — como o de Nanjing (1842). As chamadas
“incomensurabilidades culturais” entre o Oriente e Ocidente, foram, em grande
medida, inventadas a partir do olhar imperial — ocidental — para o direito da China.
Nesta história, a tradução do código Qing por Staunton, em 1810 [5], e o caso Lady

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Hughes [6] deram forma e conteúdo ao discurso não só sobre o Direito chinês, mas
sobre as próprias possibilidades da China se modernizar.

Em 24 de novembro de 1784, o navio de bandeira britânica Lady Hughes flutuava na


baía do Rio das Pérolas, no movimentado porto de Cantão (Guangzhou). O artilheiro
do navio privado britânico disparou uma saudação a outro navio, cujo capitão
acabara de jantar a bordo. Os tiros feriram gravemente três chineses que estavam
em um pequeno barco, dos quais dois morreram.

A burocracia local julgou que as mortes foram causadas por acidente


recomendando ao tribunal de Pequim que os britânicos punissem o artilheiro de
acordo com suas próprias leis. O imperador Qianlong anulou a decisão ordenando
que o artilheiro estrangulado, nos termos do código Qing. O estrangulamento foi
realizado em 8 de janeiro de 1785.

A comoção britânica com o caso Lady Hughes repercutiu por toda a Europa. Chen
conclui, no entanto, que o sistema jurídico Qing não era “primitivo” — como
representado em periódicos e cartas ocidentais — se comparado ao sistema
britânico vigente à época: a imaginação sobre o direito na China é intermediada por
certo sentimentalismo jurídico — e moral — mais que por diferenças legislativas ou
dogmáticas. O discurso sobre o Direito da China reflete, portanto, a crença e o
sentimento de superioridade da civilização europeia. São tributários — e autores —
desta ideologia autores tão variados quanto Montesquieu, Marx, Weber e —
principalmente — Hegel para quem a China seria o exemplo paradigmático de
despotismo asiático.

Fruto do apagamento das distinções — necessárias à realização e progresso da


história — entre família e estado, o despotismo seria a forma natural de governo
para os chineses “pela simples razão de que os indivíduos existem como meros
acidentes”, escreve Hegel [7]. Este discurso se reforça no sentimento de que os
chineses — perfeitamente seguidores de certo confucionismo — obedecem às leis
apenas por medo de forças externas, como crianças que temem o castigo dos pais. A
vergonha, o ostracismo e a penalização severa — dentro de casa e na comunidade —
não levariam à consciência do direito — um requisito para a liberdade. Em outros
termos e contextos, o ocidentalismo — de origem clássica e ambidestra (de
Montesquieu a Marx) — é percebido no atual debate sobre a “longa marcha” rumo
ao rule of law na China.

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Por um lado, a atual agenda de Xi Jinping para um rule of law with chinese
characteristics (中国特色的法治)[9], por exemplo, é majoritariamente vista como
despótica principalmente desde 2018 [10].Por outro, as reformas jurídicas na China
atual poderiam ser consideradas evidência de certo auto-orientalismo: as novas leis
de mercado de capitais [11] e de investimentos externos, por exemplo, foram
festejadas na China como um importantes passos no caminho da modernização do
direito. A premissa é a de que existe um “padrão de ouro” — a regra sobre qual deve
ser a regra — que pode ser almejado por meio de reformas reconhecidas — dentro e
fora do país — como modernizantes.

O debate[12], aprovação [13] e impacto do novo e primeiro Código Civil [14] chinês
pode oferecer evidências de certo auto-orientalismo chinês. A própria identificação
da tradição jurídica chinesa com as famílias jurídicas civilistas é, em alguma
medida, imaginada, considerando que muitas instituições jurídico-políticas da
República Popular foram desenhadas à partir do direito soviético e reformas
recentes no judiciário chinês, por exemplo, são declaradamente inspiradas no
sistema de precedentes vinculantes do Estados Unidos.

Neste sentido, o estudo crítico da história do orientalismo jurídico pode oferecer um


itinerário decolonial pela imaginação do ocidente sobre a China — e sobre a China
em relação a si mesma — estimulando novas críticas às escolhas jurídicas e políticas
da China contemporânea.

*Yenching Scholar na Universidade de Pequim

[1] Said, Edward. Orientalism. New York: Pantheon Books, 1978.

[2] Ruskola, Teemu. Legal Orientalism: China, The United States and Moderns Law.
Harvard University Press, 2013

[3]Sobre a “Grande Divergência”, vide: Frank, Andre Gunder. ReORIENT: Global


Economy in the Asian Age. University of California Press, 1998; Pomeranz, Kenneth.
The Great Divergence: China, Europe, and the Making of the Modern World Economy.
Princeton University Press, 2000; Wong, R. Bin. China Transformed: Historical Change
and the Limits of European Experience. Ithaca; London: Cornell University Press, 1997.

[4] Chen, Li. Chinese Law in Imperial Eyes: Sovereignty, Justice, and Transcultural
Politics. New York Columbia University Press, 2016

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[5]ONG, S. P. “Jurisdictional Politics in Canton and the First English Translation of


the Qing Penal Code (1810): Winner of the 2nd Sir George Staunton Award.” Journal
of the Royal Asiatic Society, Third Series, 20, no. 2: 141–65. 2010

[6] Chen, Li. “Law, Empire, and Historiography of Modern Sino-Western Relations: A
Case Study of the Lady Hughes Controversy in 1784.” Law and History Review 27, no.
1: 1–54. 2019.

[7]Conforme citado em: Ruskola, Teemu. Legal Orientalism. Michigan Law Review.
2002.

[8] Chen, Albert H. Y., ‘China’s Long March Toward Rule of Law’ or ‘China’s Turn
Against Law’? University of Hong Kong Faculty of Law Research Paper №2014/023,
2012.

[9] McCardle, Hamish. Linguistic Brilliance: Rule of Law with Chinese


Characteristics. Beijing Law Review, 10, 278–286, 2019.

[10]“Last Sunday the People’s Daily announced that President Xi would be carrying
on in office indefinitely. Equally ominously, the constitutional commitment to the
rule of law — in any case more observed in the breach — was to be transformed into
a commitment to ‘wielding the law to rule’”.
https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/mar/04/britain-wisdom-kowtow-
china-xi-jinping

[11]Wosgrau Padilha, Lucas. Como a China reformou sua legislação de mercado de


capitais apesar da pandemia? JOTA. Disponível em: www.jota.info/opiniao-e-
analise/artigos/como-a-china-reformou-sua-legislacao-de-mercado-de-capitais-
apesar-da-pandemia-15052020 . Acesso em 16/09/2020.

[12]“China aims to make the code as historic as its predecessors, the Napoleonic
civil code and German civil code.” With civil code, China aims to realize rule of law.
China.org. Disponível em: http://www.china.org.cn/china/2016-
07/01/content_38789558.htm. Acesso em 16/09/2020.

[13] “Civil laws make up a vast and profound field with a long history that began
with Roman law and passed milestones, such as the Napoleonic Code and the
German Civil Code. Many countries around the world have their own civil code”.
Liu, Rui. Five key points to understanding China’s draft civil code. CGTN. Disponível

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em: https://news.cgtn.com/news/2020-05-25/Five-key-points-to-understanding-
China-s-draft-civil-code-QM7DpuCTm0/index.html

[14]Wosgrau Padilha, Lucas. Direito e sociedade em transição: o novo — e primeiro —


Código Civil chinês. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?
redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/direito-e-sociedade-em-
transicao-o-novo-e-primeiro-codigo-civil-chines-11072020. Acesso em 16/09/2020

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