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Editorial

Dando continuidade à proposta de abrir espaço para a expressão criativa dentro


da Psicologia Analítica, o quarto número da revista Jung & Corpo traz aos leitores artigos
com diferentes temas.
Iniciamos com o relato do processo terapêutico de um portador de LER (lesão
por esforços repetitivos), descrito de modo bastante envolvente – à maneira de um conto
de fadas –, e que mostra os benefícios do trabalho corporal.
A abordagem corporal é também um recurso utilizado com pessoas portadoras
de Síndrome de Down. Num esmerado artigo, transitamos pelo universo dessas pessoas,
aproximamo-nos de sua realidade particular e acompanhamos o desenvolvimento do seu
potencial rumo a uma melhor qualidade de vida.
Segue-se um texto sobre a calatonia, técnica criada por nosso saudoso
professor Pethö Sándor, e os benefícios que ela traz à pessoa estressada e com
distúrbios de sono.
Recursos também são o tema central quando se discute o conceito atualíssimo
do paradigma da resiliência, um termo tradicionalmente usado nas ciências exatas, mas
que, humanizado, mostra-se absolutamente compatível com a proposta da Psicologia
Analítica.
A seguir, a descrição do caso de uma menina que não falava é trazido com
grande sensibilidade, delicadeza e empatia por sua terapeuta.
Uma reflexão acurada aborda a temática dos mitos e sua relação com um tempo
e um espaço vistos sob o olhar simbólico.
Continuamos com o brilhante artigo sobre a viagem noturna pelo mar – the night
sea journey –, descrição profunda em que reconhecemos vivências muitas vezes terríveis
e dolorosas, com as quais nos deparamos, mas que são também os grandes desafios
que, enfrentados e transpostos, contribuem imensamente para o nosso processo de
individuação.
Apresentamos também um texto sobre Durgā, uma deusa hindu cujo mito
aponta um caminho para a afirmação da identidade da mulher.
Fechando a revista, a vida e a obra de Jung são conjugadas num artigo
estimulante, que tem na religiosidade seu fio condutor.
Esperamos que os leitores possam, uma vez mais, utilizar os textos aqui
apresentados como sementes geradoras de novas idéias, tanto para suas reflexões
pessoais quanto para sua prática profissional.

Boa Leitura!
LER/DORT - O Príncipe que Virou Sapo e...

Gessília Padilha Silva

A história que vou contar é sobre um lindo menino, que um dia virou sapo
e...
Era uma vez um menino chamado Vinícius, que nasceu em uma pequena
cidade bem longe daqui.
Sua mãe era uma pessoa forte e dominadora, que o reprimia muito, e não
permitia que brincasse com outras crianças. Estava sempre a repreendê-lo,
deixando-o de castigo por qualquer coisa.
Seu pai era um homem fraco, que vivia doente, não conseguia defender os
filhos das garras da mãe, e não protegia nem apoiava o pequeno Vinícius.
Vinícius sentia-se sozinho e muito fraco, não conseguia fazer amigos, e era
muito tímido e medroso.
Um dia aconteceu uma grande festa em sua cidade, com um suntuoso
desfile militar.
Sua mãe ficou encantada com a beleza e a força dos soldados, e naquele
dia traçou o destino do filho. Decidiu que ele seria um forte guerreiro, como
aqueles soldados, e por mais que a criança dissesse que não queria ser como
eles, a mãe não lhe deu ouvidos, dizendo que quando se tornasse soldado seria
forte, admirado e respeitado...
E assim aconteceu. Aos 17 anos Vinícius foi para a Escola Militar. Longe da
família, sentia-se muito isolado, não conseguia fazer amigos, sentia-se diferente
dos colegas, seu modo de falar e seu corpo eram diferentes; tudo fazia com que
se sentisse cada vez mais fraco e isolado. Nada estava acontecendo como sua
mãe havia dito...
Não se sentia forte e poderoso, nem era admirado ou respeitado pelas
pessoas. Ao contrário, sentia-se muito infeliz. Não conseguia se libertar do destino
escolhido por sua mãe, e por não conseguir satisfazer esse desejo, sentia-se sem
importância, pequeno e desvalorizado.
Vinícius descobriu que era respeitado e admirado apenas quando jogava
futebol. Era o melhor da equipe, sempre convidado para fazer parte dos melhores
times.
Nesses momentos, em que se tornava o centro das atenções, sentia-se
como um rei, importante, respeitado, grande e feliz. Mas não podia viver apenas
de futebol; tinha de ser o “forte soldado” sonhado por sua mãe, embora fora do
campo voltasse a sentir-se fraco e incompetente, voltasse a ficar triste e
deprimido.
À medida que os dias passavam, mostrava ser um péssimo soldado. Seus
chefes lhe chamavam a atenção, e era rejeitado pelos colegas, pois sempre
fracassava em combate.
A cada derrota tornava-se mais fraco, e seu corpo doía muito. Sua
aparência mudava; seu corpo se tornava rígido e duro, suas mãos não mais o
obedeciam. Sua única alegria era o futebol, mas como seu corpo estava muito
duro, seus joelhos também ficaram doentes, inchavam e doíam muito, e Vinícius
não pôde mais jogar bola e ser o “rei do campo”.
Ele ficou desesperado, não sabia o que fazer, e procurou ajuda com todos
os médicos do seu país. Contudo, quanto mais se tratava, pior ficava.
Um dia, ao consultar um novo médico, este disse a Vinícius que ele estava
doente e se transformando em um sapo, pois não havia cuidado da sua alma.
Vinícius levou um grande susto, achou tudo muito estranho, pois não acreditava
nessa história de alma doente; achava que apenas suas mãos e joelhos estavam
doentes.
O médico recomendou que ele procurasse uma velha senhora que tratava
de almas. Seu sofrimento era tanto, que mesmo sem acreditar resolveu procurar a
velha senhora. Com ela Vinícius descobriu que havia abandonado sua alma, e por
isso seu corpo estava morrendo, ficando duro e doente. A única solução era
encontrar sua alma onde a havia perdido.
Vinícius chorou muito, talvez pela primeira vez em sua vida, e pensou que
faria qualquer coisa para ser feliz. Percebeu que suas lágrimas amoleciam o seu
corpo rígido, e suas dores começaram a diminuir. Passou a observar-se mais,
procurando descobrir seus verdadeiros sonhos, conhecendo-se e cuidando-se
com amor.
Percebeu que seu corpo mudava, sentia-se mais feliz, respeitava suas
emoções, e começou a se dar conta de quem de fato era: uma pessoa muito
diferente daquela que fora a vida inteira, fechado, tímido, rígido e retraído. O novo
Vinícius era alegre, festeiro, gostava de si e das pessoas, não sentia medo e
queria muito namorar.
Um belo dia, ele conheceu uma linda princesa, por quem seu coração bateu
com tamanha força que Vinícius se assustou, pois nunca havia sentido algo tão
forte. Seu amor foi correspondido. Vinícius sentiu a vida voltando para dentro de
si. Percebeu que havia reencontrado sua alma.
Nesse momento foi capaz de abraçar e beijar a linda princesa, voltando a
ser o príncipe que um dia se transformara em sapo. Notou que suas mãos não
mais o contrariavam, que desenvolviam as tarefas com prazer, porque agora
gostavam do que faziam. Como suas mãos, seus joelhos também deixaram de
doer.
Vinícius descobriu o quanto era forte, e se tornou uma pessoa inteira e feliz.
E desse modo ele foi capaz de compartilhar sua vida com a bela princesa.

Essa história, embora pareça um conto de fadas, é verdadeira. Como


Vinícius, há muitos príncipes e princesas sofrendo porque se tornaram sapos.
Adoecer surge como expressão de conflitos resultantes das dificuldades em
lidar com complexas interações:
Indivíduos em choque com as estruturas familiar/social em que estão
inseridos, que moldam sua forma de estar no mundo, de se relacionar, de ser, de
pensar e querer. Isso acontece de forma tão dramática e profunda, que altera a
essência do indivíduo, não permitindo que a pessoa possa ser ela mesma. A
doença mostra que existe algo que não foi assimilado pela psique, que por sua
vez está em conflito. É como um grito de alerta, um pedido de socorro.
LER (lesões por esforços repetitivos) é uma síndrome de dor nos membros
superiores; afeta músculos, nervos e tendões, e causa incapacidade funcional. E
DORT é o distúrbio ósteo-muscular relacionado ao trabalho. Em ambos podemos
observar a expressão de um grande conflito.
Podemos pensar que o corpo se rebela e não deseja mais fazer o que lhe é
imposto pelo próprio indivíduo ou como resultado de pressão externa sobre si.
Existe uma guerra.

No nosso corpo estão as marcas da nossa história, do nosso esforço,


das nossas perdas e das nossas vitórias. Assim, o ser humano é o seu
corpo, e não apenas tem um corpo.

E a rigidez expressa através do corpo é a rigidez do ser humano, e não


apenas do seu corpo. Nosso corpo forma uma unidade com a nossa psique, com
a nossa alma, que vai sendo alterada e marcada pelas experiências que vivemos.

Nós somos, a cada momento, disciplinados pelo nosso corpo,


disciplinando-o seja pela postura que se tem no trabalho, seja pela
educação, seja pela socialização (Kofes, 1991, p. 54).

É interessante observar que de acordo com a cultura, existe também uma


expressão corporal; por exemplo, a moda, os gestos, a postura das mãos, o jeito
de olhar, andar, sentar e se expressar dos chineses, por exemplo, é bem diferente
do alemão (ou brasileiro), pois cada indivíduo expressa através do corpo sua
cultura, geração, sexo e posição na hierarquia social.

O corpo termina por ser moldado de acordo com as expectativas externas.


Quando estas correspondem às expectativas internas não há conflito; há
harmonia, e a pessoa fica inteira. O grande problema surge quando a expectativa
externa mutila e mata toda expressão do mundo interno, e a pessoa deixa de ser
ela mesma.

Nós negamos o corpo como fonte de conhecimento... Cada vez mais,


corporificamos imagens externas que não têm ressonância interior. Em
nosso esforço para aceitarmos os papéis impostos pela sociedade,
vivemos uma vida de imagens desenraizadas da nossa natureza.
(Keleman, 2001, p. 18)

É o corpo que nos sinaliza quando estamos bem ou não, e esse sinal vem
através de uma doença, uma dor. Nosso corpo nos aponta nossos conflitos, e
também pode nos apontar quando estamos bem, quando estamos no nosso
verdadeiro caminho, quando estamos realmente dentro da nossa existência. No
caso de Vinícius, havia uma grande pressão externa para que ele corporificasse a
imagem do Soldado, do Guerreiro, mas a sua essência era outra, e seu corpo
expressou esse conflito, negando-se a ser o que ele de fato não era. Vinícius
deprimiu por acreditar que o “erro” estava nele, e não nas expectativas sem
ressonância interna. Somente ao reconhecer suas verdadeiras expectativas ele foi
capaz de se libertar das amarras e caminhar em direção à realização plena de seu
potencial.

Quem você deve ser - isto é, quem lhe pedem que seja, de acordo com
seu papel em determinada sociedade, pode ser muito diferente de quem
você nasceu para ser. (Keleman, 2001, p. 33)

A não realização do nosso potencial, da nossa vocação (quem de fato você


é, quem você nasceu para ser), é que nos deformam, transformando príncipes em
sapos.
Doenças como resposta às agressões do cotidiano. Aquilo que a
pessoa é nos dias contemporâneos é o resultado das inúmeras experiências
que vivem no decorrer da sua história.

Ninguém se transforma em sapo do dia para a noite; à medida em que se


afasta da sua essência, da sua alma, da sua conexão com o Self, que para Jung é
o centro da personalidade total, é que a pessoa, aos poucos, se torna enfeitiçada
pela bruxa má. Vai endurecendo, morrendo, transformando-se em sapo, deixando
de ser o belo príncipe que nasceu para ser.
O uso de técnicas corporais em psicoterapia tem se mostrado um excelente
recurso para se estabelecer uma conexão entre o ego e o centro da nossa
personalidade (Self), que por sua vez torna-se capaz de possibilitar o
fortalecimento do ego, permitindo que a pessoa se reconheça, descubra-se
através do corpo, tornando possível que ela volte para sua própria vida, resgate
sua alma, aumente a consciência sobre si mesma e, desse modo, tornando
possível fazer suas próprias escolhas.

Um dos recursos utilizados no trabalho psicoterápico com Vinícius foi a


calatonia, uma técnica desenvolvida por Pethö Sándor, que consiste “em
estímulos monótonos por meio de toques leves nos dedo, na sola dos pés, no
calcanhar, na convergência tendinosa do tríceps sural na região posterior da
perna” (Sandor, 1982, p. 92).

Através da soltura do tônus muscular existe a possibilidade de que ocorra


uma reorganização das tensões internas.

Rosa Farah ressalta que:

...a calatonia é um importante recurso facilitador do contato do


indivíduo com seu próprio mundo interno, sua natureza individual,
estimulando-se assim a expressão mais espontânea e plena de seu próprio
modo de ser (Farah, 1995, p. 363).
Com o uso da calatonia e de técnicas de relaxamento, Vinícius passou a
viver o corpo como instrumento de descoberta e conhecimento, e não somente de
dor, sofrimento e desprazer, como vivera até então. Ao trilhar o novo caminho, ele
se tornou capaz de viver a vida com prazer e alegria.

Referências Bibliográficas

BERTHERAT, T. O Corpo tem suas Razões. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BRUHNS, H.T. (org.). Conversando sobre o Corpo. Campinas: Papirus, 1991.

FARAH, R.M. Integração Psicofísica; O Trabalho Corporal e a Psicologia de C. G.


Jung. São Paulo: Robe Editorial, 1995.

KELEMAN, S. Mito e Corpo; Uma Conversa com Joseph Campbell. São Paulo:
Summus, 2001.

LELOUP, Jean Yves. O Corpo e Seus Símbolos: Uma Antropologia Essencial.


Petrópolis: Vozes, 2000.

LIMA, S.M.P.F. e SIQUEIRA, M.A. Terapia Ocupacional na Reabilitação Industrial


e as Lesões por Esforços Repetitivos/Distúrbios Osteomusculares Relacionados
ao Trabalho (LER/DORT) in Reabilitar, ano 2, número 5, 4 trimestre, 33-36, 1999.

McNEELY, D.A. Tocar, Terapia do Corpo e Psicologia Profunda. São Paulo:


Cultrix, 1995.

RAMAZZINI, B. As Doenças dos Trabalhadores. Rio de Janeiro: Editora Liga


Brasileira Contra os Acidentes de Trabalho, 1971.

SANDOR, P. Técnicas de Relaxamento. São Paulo: Vetor, 1982.

Sites

http://www.bristol.com.br/saude/ler-dort/fasc3/ler3-05.htm

http://www.neuro.med.br/ler.htm
O TRABALHO CORPORAL APLICADO A PESSOAS COM
SÍNDROME DE DOWN

Angela Maize Silva Alves1

Apresentação

Coordenadora do setor de psicologia da ADID – Associação para o


Desenvolvimento Integral do Down há sete anos, venho acompanhando o
desenvolvimento de estudantes com Síndrome de Down. Ao constatar seu êxito
na área pessoal, educacional, profissional, social e cultural, fui estimulada a
desenvolver um trabalho científico que revelasse novas possibilidades aliadas à
sua capacidade de simbolização, uma questão polêmica e que ainda gera dúvidas
por parte da sociedade e de profissionais.
De acordo com Sheldrake (1995), sabemos muito pouco a respeito da
natureza da nossa mente. Ela é a base de toda a nossa experiência e de toda a
nossa vida intelectual e social – mas ignoramos o que seja. E também a sua
extensão. A alma não está confinada ao cérebro, mas estende-se pelo corpo e à
sua volta. A psique se estende para além dos limites do corpo.
Interessada em pesquisar sobre o trabalho corporal aplicado a pessoas
com Síndrome de Down, acompanhei um grupo de dez alunos adultos (22 a 34
anos) da ADID, em fase de encaminhamento profissional, no período de um ano.
A partir dos resultados obtidos com esse grupo pude aprofundar e ampliar meu
estudo sobre a estruturação psíquica, a capacidade de simbolização e o processo
de individuação em pessoas com essa Síndrome.

Introdução

1
Psicóloga, Especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais
pelo Instituto Sedes Sapientiae. Coordenadora do Setor de Psicologia da ADID – Associação para
o Desenvolvimento Integral do Down.
A Síndrome de Down ou Trissomia do 21 é uma anomalia nos
cromossomos que apresenta características bastante visíveis, malformações,
alterações orgânicas e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, presentes em
algum grau.
O ritmo mais lento nas etapas de desenvolvimento de uma pessoa com
Síndrome de Down faz com que ela seja submetida a programas sistemáticos de
estimulação desde o nascimento, como ocorreu com a atual geração de jovens e
adultos da ADID. A cada etapa de suas vidas, enfrentaram e superaram novos
desafios, apresentando respostas muito positivas às estimulações recebidas.
Apesar do amadurecimento e sucesso em vários aspectos de suas vidas, a
maioria dos jovens ainda demonstrava certa imaturidade, inclusive na percepção
de si mesmo e do mundo, dificuldades na relação com o próprio corpo e grande
dependência emocional da família. Apresentavam, em alguns casos, uma
indiferenciação, principalmente em relação à mãe.
Casarin (2001) constatou que a pessoa com Síndrome de Down é aceita
dentro da família que a assume e procura proporcionar as melhores condições de
desenvolvimento. Entretanto, a insegurança quanto à sua capacidade impede que
a família incentive sua autonomia e lhe permita uma vida independente, e assim
não possibilita o desenvolvimento de uma identidade diferenciada. As mães, ao se
colocarem próximas dos filhos com Síndrome de Down, associam sua vida à vida
deles, formando um par indiferenciado e conduzido por elas. Esse relacionamento
alimenta a dependência afetiva e social e fortalece características infantis.
Neumann (1980) afirma que, no mundo matriarcal, o predomínio é do
inconsciente e a consciência egóica ainda não se desenvolveu. É esperado que
durante a primeira metade da vida predomine a psicologia do ego. A síntese e a
ampliação da consciência, e a integração da personalidade, ocorrem sob o
comando da centroversão. Na segunda metade da vida, cada vez mais a
consciência vai expandindo e o ego vai se colocando a serviço do centro da
personalidade (Self), no processo descrito por Jung como individuação.
Partindo desses estudos e das observações realizadas na ADID, o projeto
de pesquisa com base nas técnicas integrativas de desenvolvimento da unidade
corpo-mente, foi incluído no programa da psicologia desta Instituição.
O problema da pesquisa consistia em verificar se o trabalho corporal
poderia favorecer maior consciência do próprio corpo, melhorando a qualidade da
respiração e da postura, contribuindo conseqüentemente para estimular a
estruturação egóica e construção da identidade em pessoas com Síndrome de
Down. Observou-se a evolução e a integração através do enfoque Junguiano.
Jung foi um dos pioneiros na abordagem da unidade corpo-mente. Como
médico, ele questionava o conceito de doença e sugeria que os próprios médicos
reconhecessem e olhassem o paciente em sua totalidade.
Para Byington (1988a), os sistemas corporais (respiratório, digestivo,
cardiovascular, neuroendócrino e locomotor) afetam de forma característica vários
símbolos que estruturam, tipicamente, nossa identidade e nossa forma de estar e
conhecer o mundo... O corpo estrutura simbolicamente a consciência, nela
incluindo suas características e limitações. A função estruturante da consciência
através dos símbolos constitui o processo de elaboração simbólica, no qual se faz
a discriminação do ego e do outro na consciência.

A experiência do trabalho corporal aplicado ao tratamento de pessoas com


Síndrome de Down

Considerando as principais características presentes na Síndrome de Down


como: anormalidades cardíacas, hipertensão pulmonar, problemas respiratórios,
alterações endocrinológicas, alterações do trato gastrointestinal, anormalidade do
quadril e patela, instabilidade atlanto-axial, entre outros, os exercícios e vivências
foram planejados e executados com cautela, respeitando o perfil de cada aluno e
as necessidades do grupo.
As técnicas utilizadas foram:

1) Vivências de Exploração do Corpo


Objetivo: Reconhecimento do corpo através de dinâmicas e exercícios corporais,
inicialmente de contato e exploração da pele e dos ossos. Posteriormente, partiu-
se para maior sensibilização e conscientização dos toques e das vivências em
trabalhos individuais, em duplas e em grupo.
2) Eutonia - Gerda Alexander
Objetivo: Realizar vivências através do reconhecimento do corpo: articulações,
ossos principais, andar, energia muscular e possibilidade de mudanças
(psicotônus). Pensar no movimento e preparar o corpo para as mudanças,
buscando um tônus equilibrado.
3) Exercícios Psicocalistênicos – Esalen-Califórnia
Objetivo: Enfatizar a respiração, diminuindo o resíduo que fica entre a expiração e
a inspiração. A respiração inadequada e incompleta faz com que o resíduo retorne
junto com o oxigênio para a circulação, comprometendo a saúde das células, do
metabolismo do corpo e da acuidade mental.
4) Método Feldenkrais de Educação Somática - Moshe Feldenkrais
Objetivo: Trabalhar a imagem corporal e a percepção do lado inconsciente do
corpo com a ajuda do lado consciente. Buscar maior consciência pelo movimento
através do método grupal e maior integração funcional através do método em
duplas.
5) Domínio do Movimento – Método Rudolf Laban
Objetivo: Vivenciar e explorar o movimento utilizando técnicas específicas de
dança, expressão corporal, andar, entre outras.
6) Técnicas de Relaxamento
Objetivo: Proporcionar o aprendizado vivencial das seguintes técnicas de
relaxamento e suas aplicações: Técnicas de Pethö Sandor; Treinamento Autógeno
de J. H. Schultz; Técnicas de E. Jacobson (realizada em seis passos) e Método
Leon Michaux (articulações: movimentos da mão, antebraço, braço, espáduas, pé,
joelho, cabeça, rosto, pescoço).
7) Trabalho do Feminino – Marion Woodman
Objetivo: Trabalho corporal baseado no livro A Virgem Grávida da analista
junguiana Marion Woodman (1999), que aborda a busca da identidade pessoal, o
tornar-se consciente; trata de perceber a sabedoria do corpo e dos
relacionamentos.
Desenvolvimento do trabalho corporal

Trabalhando a pele

Iniciou-se com as vivências de eutonia, começando pela pele. O objetivo


era sensibilizar os alunos para a descoberta da própria pele e de suas
características individuais e coletivas, em nível físico e psíquico.
Após a primeira vivência de eutonia abordando a “pele humana”, os alunos
tinham como tarefa pesquisar o tema livremente. As manifestações ocorreram de
forma espontânea, mostrando sensibilidade, capacidade de elaboração e
simbolização. Uma aluna escolheu letras de música de sua preferência que
falavam de pele; outra preferiu recortar textos e fotos de revistas de beleza; um
terceiro, que gostava muito de literatura, escreveu espontaneamente uma poesia.
Os alunos que apresentavam problemas de pele e pés, levaram os produtos
dermatológicos utilizados no tratamento de micoses, irritações, entre outros. Para
finalizar, na tentativa de conceituar “pele”, o grupo construiu um texto coletivo,
com frases de todos os integrantes.

PELE
“Se não tivesse pele, seria só ossos
Importante para sentir o toque
A pele é tudo que a gente tem
É um sentimento
A pele está no corpo todo, até o coração tem pele
A gente sente a emoção através da pele:
Triste ou apaixonada, a pele sente
Em mim a pele é áspera: no amor é lisa, na família é áspera
Pele é bonita e elegante
A pele é bonita quando nós nos preocupamos com ela.
Sorrir faz bem para a pele
E o coração também fica feliz
Sinto energia quando toco a minha pele”
(Poesia sobre a pele humana - construção coletiva - 17/09/01)

A PELE
“Sentir que a
Pele é áspera
Pelo ar do horizonte
E nas plantas
Aparecem vendavais
E respiram pela natureza
Limpa como uma pele
Tão bonita e bem tratada
Pela união dos
Corações de uma força
Irresistível das peles
Do mundo”
(Poesia sobre a pele humana feita pelo aluno JD de 24 anos - 17/09/01)

Pesquisa e exploração dos ossos

Paralelamente ao trabalho de pele foi iniciada também a pesquisa e


exploração dos ossos. Os alunos passaram a identificar em si mesmos e no outro
os principais ossos. A partir daí passaram a ter mais familiaridade com os nomes
corretos de cada osso e sua função.
Nesses exercícios, o grupo passou a observar melhor a postura, a maneira
como andavam, sentavam e deitavam, percebendo o que mudava em cada
posição e quais ossos eram mobilizados.
Os alunos observaram diferenças típicas da Síndrome de Down, como o
tamanho dos ossos, alterações nas extremidades, espaço entre os dedos dos pés.
Num momento de tomada de consciência dessas características decorrentes da
síndrome, conscientizaram-se de que algumas partes do corpo exigiam cuidados
especiais, como por exemplo, a pele mais áspera e as unhas quebradiças. O pé
plano e pequeno também foi motivo de comentários, porque, em alguns casos,
exigia o uso de calçados especiais.

Trabalhando a respiração

Uma respiração inadequada e incompleta pode comprometer a saúde das


células, do metabolismo do corpo e da acuidade mental. Pensando na questão
das complicações respiratórias, uma das características mais comuns na
Síndrome de Down, iniciou-se a série de exercícios psicocalistênicos, com o
objetivo de diminuir o resíduo que fica entre a expiração e a inspiração e buscando
uma respiração integrativa.
Trabalhamos também com alongamento.
Após a prática, os alunos passaram a trazer as sensações e observações
do dia-a-dia de forma muito positiva. Como era esperado, relatavam melhoria na
qualidade da respiração e do sono.

Trabalhando o domínio do movimento

O passo seguinte foi realizado com vivências e exercícios que visavam a


exploração do movimento, incluindo a expressão corporal e verbal, técnicas de
dança, observação do andar, através do método de Rudolf Laban.
Os alunos arriscaram timidamente os primeiros movimentos, desde uma
simples observação do próprio jeito de andar até movimentos mais soltos
acompanhando o ritmo de uma música.
Cada um se expressava de acordo com suas características e tipologia.
Mas todos experimentaram, a cada vivência, uma nova maneira de andar, de se
movimentar, de ocupar o seu espaço na sala, expandindo cada vez mais os seus
limites para o mundo.
Ao final de cada vivência os participantes faziam associações, constatando
os reflexos desse trabalho no seu cotidiano.
Trabalhando as articulações

O método Michaux foi muito bem aceito pelo grupo.


Alguns alunos associavam imediatamente o que faziam no corpo com a
maneira como se comportavam na vida: com mais ou menos flexibilidade.
Esses exercícios favoreceram vários relatos e discussões acerca das
dificuldades que eles apresentavam quanto à rigidez e inflexibilidade nas relações
familiares, sociais e profissionais. Eles perceberam que a rotina era importante e
que as mudanças desencadeavam, neles, desorganização e irritação.
Ao finalizar esse trabalho, a maioria dos alunos relatou, nas avaliações e
depoimentos, mudanças importantes que favoreceram os seus relacionamentos.
Passaram a agir com mais flexibilidade e maior tolerância aos imprevistos.

Trabalhando com massagem e técnicas de relaxamento

Estes foram os exercícios mais solicitados pelos alunos. Mesmo aqueles


que apresentaram certa resistência ou dificuldade para aceitar e realizar as
demais propostas de trabalho corporal, mostraram-se bastante interessados e
envolvidos com as técnicas de massagem e relaxamento. Este trabalho
possibilitou a massagem em grupo e a oportunidade de eles perceberem a
importância e a responsabilidade que deveriam ter ao tocar o corpo do outro,
considerando-o algo sagrado. Foi perceptível a consciência e o crescimento do
grupo enquanto unidade.
Os relatos traziam os benefícios proporcionados pelos exercícios,
principalmente quanto à qualidade do sono e ao relaxamento.

Resultados Iniciais

As correspondências significativas e mudanças observadas em relação à


percepção de si próprio foram confirmadas nos relatos de cada integrante do
grupo, envolvendo aspectos da vida diária trazidos por eles de forma diferenciada,
na medida em que o trabalho era desenvolvido. Os aspectos mais relevantes
envolviam os seguintes temas:

. Saúde: questionamentos acerca de hipotiroidismo, cardiopatia, pneumonia,


malformações – calosidades, pele áspera, micose, pé plano, joanete, tamanho
reduzido dos pés. Os alunos passaram a observar mais o próprio corpo,
demonstrando preocupação com a própria saúde. Solicitavam mais informações e
formas práticas para um cuidado mais adequado de si mesmos.

. Peso: os alunos passaram a falar do próprio corpo, verbalizando o incômodo com


o excesso de peso e a necessidade de manter um controle feito por eles mesmos
e não mais pelos pais.
Reeducação alimentar, dieta, nutrição, voracidade e “ataques à geladeira”
foram temas amplamente discutidos, na tentativa de mudar hábitos antigos e
buscar alternativas mais saudáveis. Alguns pais relataram mudanças em casa e
em festas, situações que antes eram extremamente difíceis de administrar.

. Síndrome de Down: O assunto já havia sido discutido, mas desta vez a reflexão
passou a ser mais profunda sobre o “ser diferente” na família, no trabalho e na
sociedade. O “olhar” das pessoas na rua, no shopping, nas viagens, no trabalho,
foi motivo de muitos relatos, observações e reflexões.
Preconceito, discriminação, inclusão e responsabilidade social foram alguns
dos conceitos estudados e trabalhados no momento dos relatos de experiências.

. Sexualidade: tema dos encontros anteriores a partir da curiosidade que tinham a


respeito de sexo, o assunto surgiu novamente de uma forma mais madura, mais
adulta, e eles passaram a solicitar informações mais consistentes acerca da
sexualidade humana e suas implicações na Síndrome de Down. Levantaram
questões sobre o aparelho reprodutor, métodos contraceptivos, gestação, parto,
possibilidades de gravidez, DST, TPM, AIDS, câncer (mama, próstata) entre
outros.
. Responsabilidade: foi perceptível a mudança de postura e abordagem nos
relacionamentos como namoro, amizade, família, trabalho e escola. Relatos da
supervisora de trabalho e de alguns pais confirmaram tais transformações,
sinalizando o amadurecimento.

. Flexibilidade: diante da percepção da rigidez e inflexibilidade frente às exigências


e mudanças do meio, os alunos propuseram-se a mudar de atitude.

. Projetos Pessoais: Namoro, casamento e constituição da própria família;


independência e autonomia; desejo de maior participação nas decisões familiares
e planos profissionais.

Avaliação

A avaliação foi realizada durante todo o processo: na medida em que as


técnicas eram apresentadas e aplicadas ao grupo; ao observar como o trabalho
corporal estava sendo percebido e apreendido por eles; no momento dos
depoimentos, quando verbalizavam suas observações/sensações; nos textos
escritos pelos alunos e também nas observações realizadas na escola, na família
e no ambiente profissional.
A avaliação final foi realizada a partir da comparação entre as produções
dos alunos – desenho e modelagem do corpo – antes e depois do trabalho
corporal.

Apresentação de quatro casos:

Aluna JF - 25 anos:

Os benefícios do trabalho corporal para a aluna JF foram observados no


ambiente familiar, escolar e profissional. Mudanças significativas, como maior
maturidade e consciência das próprias responsabilidades ocorreram
gradativamente.
JF foi bastante receptiva à proposta do trabalho corporal e realizava todos
os exercícios com facilidade. Denotava muita sensibilidade nos seus depoimentos
e comentários.
Inicialmente verbalizava sua preocupação quanto às dificuldades
apresentadas por ela no trabalho, como certa imaturidade ou reincidência de erros
nas tarefas. Percebia sua inadequação, mas ainda não conseguia evitar que os
fatos ocorressem novamente. Ao final do trabalho, a aluna parecia mais centrada,
voltada para as suas tarefas e obrigações diárias.
Demonstrava muita clareza ao falar de suas aspirações e dificuldades,
assim como para ouvir e oferecer solidariedade aos colegas.
Ressaltou a vontade de emagrecer e as dificuldades que sempre teve com
a obesidade. Sua relação com o próprio corpo mudou, na medida em que entrava
em contato com suas angústias e frustrações, indo em busca de alternativas
criativas e maior aceitação do seu biotipo.
Questões acerca da Síndrome de Down e da sexualidade eram trazidas por
ela freqüentemente, através de recortes de jornal que abordavam esses assuntos.
Seu intuito era provocar discussão e reflexão no grupo.
Na sua avaliação, relata que o namoro passou a ser tratado com mais
maturidade a partir de uma maior compreensão da relação.
Trouxe projetos de futuro e o desejo de casamento, constituição da própria
família, maior independência e autonomia.

CORPO
“O corpo é uma confiança muito importante que temos.
Mesmo cuidando dele quando for preciso e necessário a ajudar.
A auto estima está em primeiro lugar na nossa vida.
Um grau de muito potencial e jogo que deve soltar mais.
O corpo é uma forma de saúde mais radical e moderada.
O corpo é um exercício muito grande de relaxamento e de aceitação e firmeza
E sempre acreditando no seu sucesso
E pés para a frente aonde se anda no caminho da vida
Ser firme é sempre ser feliz
O quanto você quiser, vá a luta”. (JF – 02/12/02)
Des.1 (2001) Des.2 (2002) Mod.1(2001) Mod.2 (2002)

Figuras 1,2, 3 e 4 – Desenhos e Modelagem do corpo – JF – 25 anos – sexo feminino

Aluna DC - 27 anos:

A aluna apresentou certa resistência para participar dos exercícios,


permanecendo durante algum tempo numa postura de espectadora. Observava
atentamente o desenvolvimento do trabalho.
Posteriormente passou a interagir mais, com interesse principalmente pela
massagem em grupo. Demonstrou maior disposição e iniciativa, tanto para
receber como para aplicar os toques aprendidos, enfatizando os benefícios que
percebia no próprio corpo.
Trazia duas bolas de tênis e duas toalhas. Mesmo quando foi dito que
apenas uma seria suficiente, usava as duas, lembrando que a segunda era da
mãe.
Gradativamente DC passou a apropriar-se mais dos seus desejos e de suas
escolhas dentro do grupo, discriminando melhor o que era seu e o que era do
outro. Seu humor mudou, mostrando-se mais colaboradora e afetiva.
Trouxe questionamentos acerca dos próprios comportamentos impulsivos,
principalmente nas relações familiares, nas atitudes com o namorado e na
compulsão alimentar, reconhecendo que muitas vezes perdia o controle em
tentativas frustradas de fazer dieta e perder peso. Seu desejo era controlar-se
quanto ao regime, sem precisar do controle acirrado de terceiros.
Através dos seus relatos, avaliação escrita, desenhos e modelagem do
corpo, a aluna demonstrou que o trabalho corporal foi de extrema importância para
a tomada de consciência de questões relevantes no seu cotidiano.
A família e a supervisora de trabalho relataram mudanças nas suas atitudes
e postura, tanto no trabalho como nos seus relacionamentos.
Solicitou que o trabalho corporal continuasse, justificando a importância que
o mesmo proporcionou à sua vida e ao seu crescimento pessoal.
CORPO E MENTE
“O equilíbrio da mente através do corpo
Se soltando como uma pluma
Se respira de olhos abertos
Ardentes paixões
Sentindo o ar de sua respiração
O corpo desenvolve num lugar tão bonito
De onde o amor é infinito como a mente
A mente do corpo se transformando em respiração
Cada passo que eu andar
Eu acordo com a mente e o corpo
Se transformando em energia de amor
Fico com o brilho que o corpo nos dá” (DC – 02/12/02)

Des.1 (2001) Des.2 (2002) Mod.1(2001) Mod.2 (2002)

Figuras 5, 6, 7 e 8 - Desenhos e Modelagem - DC 27 anos – sexo feminino

Aluno FF - 34 anos:

O aluno realizava com facilidade a massagem nos colegas, demonstrando


prazer também em receber os toques.
Apresentava certa rigidez ao lidar com as opiniões divergentes dos colegas,
o que provocava críticas do grupo. Reagia ao meio de forma impulsiva e imatura.
Porém, mostrava-se sociável e com bastante facilidade para fazer novos amigos.
Freqüentemente trazia questões relacionadas a sua curiosidade sobre
sexualidade e doenças sexualmente transmissíveis.
No seu ambiente de trabalho, enfrentava algumas dificuldades com a rotina
e hierarquia. Percebia sua inadequação e demonstrava arrependimento, porém,
ainda não conseguia evitar os erros.
No decorrer do trabalho corporal, FF passou a se interessar por outras
técnicas além da massagem, como por exemplo o Método Michaux, no qual foram
trabalhadas as articulações. Ele percebia no próprio corpo certa rigidez, o que se
repetia na sua postura diante da vida. A busca de maior flexibilidade passou a ser
um dos seus objetivos no grupo.
Tanto a família como a supervisora de trabalho relataram mudanças no seu
desempenho no trabalho e nas relações afetivas.
Nas avaliações realizadas, percebeu-se maior consciência do corpo, mais
maturidade e responsabilidade em relação aos seus projetos de futuro. Surgiram
propostas concretas de mudanças e maior apropriação dos seus desejos.

CORPO
“Eu gostei de fazer os exercícios do corpo
De pegar laranja
Gostei de fazer a massagem com a bolinha
Eu gostaria para fazer
De voltar a toalha
Fazer o flamingo
Foi bom para mim fazer a respiração
Para se soltar
Eu gostei”
(FF– 02/12/02)

Des.1 (2001) Des.2 (2002) Mod.1(2001) Mod.2 (2002)

Figuras 9, 10, 11 e 12 - Desenhos e modelagem do corpo - FF 34 anos – sexo masculino

Aluno GD - 26 anos

GD recebeu a proposta do trabalho corporal com bastante entusiasmo e


expectativa. Acreditava que o mesmo poderia ajudá-lo em muitos aspectos de sua
vida, inclusive no controle do peso, questão difícil para ele.
Mostrava-se receptivo, afetivo, colaborador e solidário com as questões
trazidas pelos colegas. Falava pouco de si próprio. Trouxe, com freqüência, a
preocupação com sua saúde e os tratamentos que vinha realizando naquele
momento. Descrevia com riqueza de detalhes os diagnósticos dados pelos
médicos e o andamento do tratamento. Ao falar da Síndrome de Down, fazia
questão de descrever a síndrome, falando dos cromossomos e da genética. Com
orgulho, repetia que sabia muito sobre o assunto.
Embora estivesse acima do seu peso ideal, participou ativamente de todos
os exercícios e vivências. Realizou com facilidade mesmo aqueles mais
complexos. Demonstrava preferência pelos exercícios de respiração, dizendo que
tentava repeti-los em casa. Aprendeu e realizou toda a seqüência dos exercícios
psicocalistênicos, chegando a ajudar alguns colegas.
No decorrer do trabalho, GD verbalizou o desejo de falar mais sobre si
próprio e de suas dificuldades nos relacionamentos. Falou do seu ambiente de
trabalho e do incômodo que sentia com alguns comentários dos colegas a seu
respeito. Mencionou o seu namoro, o desejo de casamento e de maior autonomia
em casa. Tomou algumas decisões, consideradas muito difíceis para ele, como
por exemplo, “dar um tempo no namoro”, que mantinha há alguns anos.
Chegou a verbalizar que estava cansado de ser o “bonzinho” da escola e o
desejo de poder expressar os seus sentimentos abertamente na vida, como fez no
grupo.
De uma forma geral, através dos seus depoimentos e das avaliações não-
verbais realizadas, GD demonstrou mudanças a partir do trabalho realizado, no
sentido de apropriar-se mais dos seus desejos e vontades, parecendo mais
fortalecido internamente e mais seguro nas inter-relações.

CORPO
“Corpo é tudo que tem na minha vida
E ele sustenta
E o corpo tem muitas articulações
Faço academia e mexo todas as articulações
Corpo da minha vida”
(GD – 02/12/02)
Des.1 (2001) Des.2 (2002) Mod.1(2001) Mod.2 (2002)

Figuras 13, 14, 15, 16 - Desenhos e Modelagem do Corpo – GD 26 anos – sexo masculino
Conclusões

Embora com uma pequena amostra, a pesquisa realizada levou às


seguintes conclusões:
 A percepção de mudanças significativas na qualidade da respiração,
da postura, do sono e da produtividade das pessoas atendidas.

 A tomada de consciência de questões antes relegadas aos pais pode


ser considerada um caminho para a construção da identidade e para o
desenvolvimento de consciência. Isso tornou-se mais evidente através das
produções escritas pelos jovens, bastante diferentes antes e depois da
introdução do trabalho corporal.

 A percepção de si próprio foi aumentada, fato observado no decorrer


dos atendimentos, através dos depoimentos dos jovens, dos familiares e de
profissionais que os acompanhavam.

 Esse resultado nos encoraja a investir no trabalho corporal aplicado


ao tratamento de pessoas com Síndrome de Down, como forma de estimular a
estruturação egóica, tendo como ponte o símbolo. O corpo é o símbolo, daí
buscarmos a identidade corporal como base para a estruturação egóica.

Discussão

 A análise das respostas apresentadas desde as primeiras vivências


envolvendo a pele humana, a exploração dos ossos e finalmente o corpo como
um todo, indica que a pessoa com Síndrome de Down tem capacidade de
simbolização e elaboração, aliadas a uma grande sensibilidade e
espontaneidade que transcendem os limites da cognição.
 A forma de tratar e compreender o paciente numa visão integrativa
do corpo e do psiquismo, através de uma interpretação simbólica, onde o ser
humano possa ser visto em sua totalidade – como já preconizavam C.G.Jung e
Pethö Sandor – pode ser um caminho para o atendimento de pessoas com
limitações intelectuais. Essa abordagem favorece o desenvolvimento da
identidade diferenciada e da consciência egóica.

 Isso nos leva a uma profunda reflexão acerca do estigma que a


pessoa com Síndrome de Down carrega, quando subestimada em seu
potencial para se desenvolver como pessoa independente e diferenciada. As
limitações cognitivas e orgânicas, decorrentes do quadro, não podem ser
consideradas fatores impeditivos da busca de seu crescimento pessoal rumo
ao processo de individuação, como qualquer ser humano.

Referências bibliográficas:

Livros

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Martins Fontes, 1991.

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____________ Estrutura da personalidade: persona e sombra. São Paulo: Editora
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DELMANTO, S. Toques sutis: uma experiência de vida com o trabalho de Pethö


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FARAH, R. M. Integração psicofísica: o trabalho corporal e a psicologia de C. G.


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Desenvolvimento desde o início de sua formação. São Paulo: Cultrix, 1980.

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explicar o inexplicável? São Paulo: Cultrix, 1995.
WHITMONT, E. C. A busca do símbolo: conceitos básicos da psicologia analítica.
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WOODMAN, M. A virgem grávida: processo de transformação psicológica. São


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Fotos e reproduções das figuras: Vitória Ang


CALATONIA e SONO
No Berço da Calatonia a fala da Natureza

Suzana Delmanto1

Trata-se da apresentação de uma técnica de abordagem corporal, que pode


ser aplicada para auxiliar no tratamento dos distúrbios do sono e de outras
disfunções somáticas causadas por tensões cronificadas ou stress. Os toques
calatônicos visam, entre outros aspectos, a conquista de um sono repousante e ao
mesmo tempo de condições diurnas mais favorecidas por um estado de revigoração
orgânica e de ânimo para um dia-a-dia produtivo. É uma técnica que integra
recondicionamento psicofísico e relaxamento, com efeitos que repercutem na
disposição dos humores e na qualidade dos sentimentos. No início da criação deste
método pelo Dr. Pethö Sándor, o enfoque corporal era a meta prioritária para a sua
aplicação, mas as observações dos resultados trazidos pelo trabalho sempre
apresentaram significativos benefícios também para o campo psicológico (Sándor,
1974, pp. 92-93). Desde 1948, data da chegada do Dr. Sándor no Brasil, a calatonia
vem sendo usada freqüentemente, como um procedimento auxiliar no contexto
terapêutico de orientação junguiana.
Na busca de um sono reparador e de um equilíbrio funcional do organismo,
a calatonia, método original de recondicionamento psicofísico e de relaxamento, na
medida em que promove condições que favorecem entre outros efeitos, o reequilíbrio
do tônus muscular, das pulsações cardíacas e da cadência respiratória, pode ser
usado como um procedimento não só curativo, mas psicoprofilático. Considerando a
questão específica do sono, bons resultados foram obtidos com este método em
contextos psicoterapêuticos, que usaram a calatonia como um recurso auxiliar. Os
distúrbios do sono que acompanham os padecimentos por stress e por tensões
cronificadas em contextos ansiógenos, costumam já ir sendo sinalizados a partir do
anoitecer. O cair da tarde pode ser considerado como um ponto de referência para o
início do aumento dos sintomas associados à angústia, ao medo, à sensação de
solidão ou depressão. Os aumentos das ansiedades no cair da tarde, de modo geral,
são expressos por queixas como: aperto no peito; falta de ar; sensações de fraqueza
com perda de sustentação das pernas; crises de suor na testa, mãos e pés. São
conhecidos os efeitos da noite na piora dos pacientes hospitalizados, na aflição dos
que convivem com doenças crônicas ou no aumento de tensões dos portadores de
distúrbios psicossomáticos. Nise da Silveira nos relata que, na busca do
conhecimento da alma humana, Jung observou: “durante a noite o homem primitivo
estava sempre inquieto e medroso, receando perigos misteriosos.” E ainda

1
Psicóloga Clínica, Especialista em Cinesiologia pelo Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, SP.
complementa: “deduziu Jung que a escuridão noturna corresponde à noite psíquica
primordial, ao estado de inconsciência e que o anhelo pela luz é o anhelo pela
consciência” (Silveira, 1992, p. 19).
O medo ou o pânico noturno repercute na disposição funcional do organismo,
acarretando disfunções que podem configurar quadros de indisposições, desde os
mais simples até os de mais alto grau de complexidade. Os distúrbios ansiógenos e
as tensões cronificadas, a somatória de desequilíbrios tanto psíquicos quanto físicos,
podem ser considerados como agentes de doença, prejudicando ou impedindo a
possibilidade de a pessoa escolher o rumo das suas ações ou usufruir das suas
condições de vida. Nas noites, costumam ser mais gritantes os ressentimentos e as
tristezas, assim como os medos e a solidão; enfim, na escuridão as dores da alma
parece que se potencializam e se expressam no corpo numa linguagem primária e
visceral. A respeito da configuração das neuroses no corpo, podemos encontrar nos
trabalhos apresentados por Jung com a imaginação ativa, observações claras que
apontam para a linguagem corporal dos sentimentos e das emoções, como está
registrado na seguinte passagem: “são poucos os casos de neurose nos quais as
vísceras não estão perturbadas” (Jung, 1976, p. 52). Nesse mesmo sentido,
considerando a expressão das emoções na linguagem corporal, Walther Bühler,
numa postura antroposófica, falando do corpo como instrumento da alma e
comentando sobre as interligações com os sentimentos, a consciência e a vontade,
asseverou: “O vai-e-vem dos sentimentos se manifesta nos processos rítmicos da
respiração e do batimento cardíaco; ... o desabrochar da vontade de nossa alma se
expressa no sistema metabólico-motor” (Bühler, 1990, introd.). Como a calatonia
trabalha diretamente na escuta das manifestações corporais, promovendo condições
para a livre ocorrência de movimentações orgânicas que visam o reajuste das
respectivas funções, podemos visualizar o seu potencial de alcance não só no
trabalho com os quadros das neuroses, mas com os desequilíbrios físicos e
psíquicos que vão se configurando no dia-a-dia em diferentes intensidades e
composições. A melhora na qualidade da noite e do sono é um dos importantes
conseguimentos desta técnica, que favorece naturalmente o aflorar de sonhos. Em
uma das colocações feitas por Jung sobre os sonhos, ele comenta: “funcionam
principalmente no sentido de reações de defesa, como auto-reguladores de posições
conscientes demasiado unilaterais ou anti-naturais” (Silveira, 1992, p. 106).
A calatonia, aplicada sistematicamente no contexto terapêutico como um
recurso auxiliar, encontra condições ideais para que os seus benefícios possam se
potencializar. Como é reconhecido em todos os trabalhos de cura, incluindo o campo
analítico, também na calatonia a confiança do paciente no terapeuta e a qualidade do
vínculo estabelecido são de vital importância e têm relação direta com a efetividade
do trabalho. Assim, ao se desenvolver “uma efetiva ressonância bipessoal” (Sándor,
cit., p. 100), se expandem as condições para a entrega aos toques calatônicos,
favorecendo uma maior soltura do corpo e da mente. O efeito dos toques pode
alcançar vários níveis ao mesmo tempo, desde a repercussão no funcionamento
mais visceral do organismo até a mobilização de sentimentos e de memórias
esquecidas, ativando o aflorar de imagens ou de fantasias que podem ser
consideradas de valor onírico. O método de relaxamento calatônico, na medida em
que promove um estado de rebaixamento da fiscalização da mente racional, criando
um estado crepuscular da consciência, propicia condição para que o corpo possa
criar seus próprios movimentos na direção de auto-regulação, sem os bloqueios
causados pela interferência da mente racional. O estado crepuscular da mente, que
costuma se manifestar durante a vivência com os toques calatônicos, pode não só
favorecer o aflorar daqueles conteúdos que, segundo Jung, “repousam no leito mais
superficial do inconsciente e que constituem a intimidade pessoal, mas também, aos
que repousam num leito mais profundo, conteúdos de natureza mais universal”
(Jung, 1971, pp. 13-14). A expressão em imagens ou vivências simbólicas de tais
conteúdos costuma ser facilitada pelo rebaixamento da fiscalização da consciência,
aspecto que pode ser freqüentemente constatado durante o trabalho calatônico. Uma
das principais características do estado crepuscular da mente é o não apagamento
total da consciência. Nesse estado similar ao da vigília, costuma ficar favorecido não
só o potencial de captação das mensagens simbólicas, das expressões instintivas ou
dos conteúdos de tonalidade afetiva, mas também, a digestão desses conteúdos
através de um vivenciar corpóreo, criando condições para serem assimilados ou
absorvidos pela consciência. Conforme Jung assevera, “só se pode reconhecer a
existência psíquica através daqueles conteúdos que vão se tornando conscientes
(cit., p. 14).
As razões pelas quais a calatonia costuma apresentar um alcance que, por
vezes, se faz tão profundo e abrangente, podem ser encontradas na análise das
bases do método. A essência dos conseguimentos fundamenta-se principalmente na
riqueza da plasticidade sensorial e do potencial do tato. Conforme comentários de
Pethö Sándor e de Asheley Montagu, “é um campo ainda pouco explorado o da
plasticidade sensorial” (Sándor); e ainda: “as bases psicofísicas e
psiconeuroimunológicas do tato continuam sendo campos abertos e promissores
para a realização de pesquisas internas” (Montagu, in Delmanto, 1992, pp. 127 e
181). O potencial da pele de captação de estímulos e de propagação por todo
organismo deve-se à sua interligação com o sistema nervoso, podendo encontrar
uma das suas explicações “na sua origem ectodérmica, que na fase embrionária é a
mesma do sistema nervoso” (Sándor, cit., pp. 99 e 100). Montagu “ressalta a pele
como órgão tátil, estando envolvida diretamente no desenvolvimento e no
crescimento do organismo, tanto na sua expressão física como afetiva-sentimental e
comportamental” (Montagu, 1988, pp. 21 a 61). O conceito “a mente da pele” (cit., p.
16) é introduzido nesta abordagem de origem cientifica, assim como a visão de que
“o sistema nervoso é a parte escondida da pele ou, ao contrário, a pele pode ser
considerada como a porção exposta do sistema nervoso” (cit., p. 23).
A relação do ritmo do corpo na dinâmica de dormir e acordar com o significado
humano do contato pelo toque vem sendo considerada e pesquisada em todas as
áreas relacionadas com saúde e comportamento. Nessa esteira, o estudioso dos
comportamentos humanos Lionel Tayler pondera que: “o maior sentido do nosso
corpo é o tato. Provavelmente, é o mais importante dos sentidos para os processos
de dormir e acordar” (Tayler, 1921, p. 157). O ser humano necessita da nutrição pelo
toque, principalmente nos períodos de desequilíbrio com somatizações e anseios,
emoções tumultuadas e opressão dos sentimentos. Nestes períodos nebulosos, os
toques calatônicos são de incontestável adequação. A calatonia favorece a abertura
de condições para que os “dinamismos da natureza”, como faz referência Jung,
possam trabalhar a favor de um reequilíbrio organísmico.
Entre as qualidades amplas da calatonia, temos que os toques cuidadosos,
delicados e não invasivos podem mobilizar sensações por vezes esquecidas, de um
acalento que promove plenitude. Anna Freud, numa linguagem psicanalítica,
menciona os cuidados do início da vida, ressaltando o valor do contato corporal, o
valor da importância de ser tocado de leve ou aconchegado para consolidar uma
imagem corporal e um ego corporal saudáveis (Montagu, 1988, p. 203). Nos
períodos de stress, nas fases conturbadas da vida que se caracterizam por queixas
de disfunções orgânicas e pressões psíquicas, costumam se manifestar mais
intensas as necessidades de contato assim como dos anseios orais. A tendência a
regressão ou a comportamentos regressivos podem aparecer nos períodos obscuros
da vida, quando não são visualizadas as orientações sobre o rumo do caminho a ser
tomado, acentuando a impotência das soluções racionais. Podemos encontrar um
comentário de Jung, dizendo: “a regressão em geral ocorre quando na frente há um
obstáculo; ao regredir é retomado um modo mais primitivo de resolver o problema do
obstáculo.” (Jung, 1976, p. 36). Nesses períodos, a orientação trazida pela natureza
primária é preciosa, conforme também nos aponta Jung: “Se seguirmos as leis que
estão na nossa própria natureza, ela nos conduzirão ao fim correto” (cit., p. 82); e
ainda: “aqueles que seguem os instintos estão melhor protegidos do que com toda a
sabedoria do mundo.” (cit., p. 33). Continua fazendo no transcorrer dos Seminários
das Visões – material colhido no seu trabalho com a imaginação ativa – mais
observações sobre a importância das indicações instintivas nos momentos difíceis da
vida, nos momentos de grandes depressões, quando tudo que foi aprendido se
desvanece (Jung, 1976).
O vivenciar da calatonia favorece a escuta da linguagem corporal,
promovendo um mergulho nas profundezas da mente e do corpo, podendo mobilizar
com naturalidade o aflorar de orientações advindas da natureza dos instintos. Em
todos os tempos e nas mais distintas culturas foi sempre reconhecida a importância
do contato no transcorrer de toda a vida, desde o nascimento até a morte. Faz parte
da natureza humana o diálogo pelo contato corporal para um desenvolvimento
saudável, tanto físico quanto psíquico. São numerosas as pesquisas na atualidade
nesse sentido, reconhecendo que o contato físico é fonte de alimento e
imprescindível para a vida. Montagu cita numerosos estudos com crianças que, pela
falta de contato (criadas em creches públicas) apresentam características de
definhamento ou marasmo, assim como aquelas em que a mãe, por problemas
psicológicos, não aceita a criança (Montagu, 1988, p.104). Como a base da calatonia
são toques suaves aplicados nos pés, esse contato sutil e prolongado costuma
favorecer o vivenciar de um berço de acolhimento que é nutritivo, podendo mobilizar
sensações de proteção com cuidado e delicadeza. Este trabalho favorece uma
soltura sem constrangimento e sem medo, dando à pessoa condições de sentir um
contato pleno. A vivência do trabalho corporal calatônico costuma preencher os
espaços vazios da alma, produzindo por vezes um efeito calmante e nutritivo de tal
grandeza que os medos e as somatizações se dissipam naturalmente, fazendo com
que as noites se tornem bem-vindas, com o mergulho em sonos profundos.
No transcorrer dos atendimentos semanais com a vivência calatônica, a
análise da qualidade do sono, assim como de outros distúrbios somáticos que
possam ter sido trazidos, servem como pontos de avaliação para a eficiência dos
trabalhos. O alívio promovido pelo apaziguamento das disfunções somáticas, que
costuma também se manifestar em noites mais calmas, além do bem-estar
decorrente, com freqüência se faz acompanhar de um estado de ânimo com
manifestações de mais leveza. Costumam ser marcantes as alterações que podem
ser observadas na qualidade da dinâmica psíquica no decorrer de um trabalho
terapêutico que usa como recurso o método calatônico. Uma amplitude ou uma visão
mais panorâmica da realidade e dos focos problemáticos costuma se evidenciar na
fala terapêutica.
O estado de reflexão pode encontrar um campo de ressonância no contexto
calatônico. A reflexão costuma favorecer o acalmar dos instintos e dos impulsos,
trazendo o auxílio da luz da consciência. De modo habitual a reflexão é associada a
um estado consciente da mente. Porém, podemos encontrar com Jung a reflexão
visualizada numa outra dimensão. Ele faz referência dizendo: “a reflexio é um voltar-
se para dentro, tendo como resultado que, em vez de uma reação instintiva, surja
uma sucessão de conteúdos ou de estados que podemos chamar de reflexão ou de
consideração” (Jung, 1986, p. 54). O processo calatônico pode ser compreendido
como também tendo condições de abranger, eventualmente, a reflexão da visão
junguiana.
Considerando a importância da leitura das mensagens corporais, Nise da
Silveira nos lembra que são numerosos os biólogos que realçam a finalidade das
atividades orgânicas como fenômenos de regulação vital, classificando os sonhos
entre as atividades desse tipo, exercendo funções importantes ou mesmo vitais para
a economia psíquica (Silveira, 1992, p.107). Jung, comentando sobre o corpo e os
sonhos, faz um paralelo dizendo:

Do mesmo modo que o corpo reage de maneira adequada a um


ferimento, a uma infecção ou a um tipo de vida emocional, assim também as
funções psíquicas reagem por meio de defesas apropriadas a alterações
perigosamente perturbadoras. O sonho, na minha opinião, faz parte dessas
reações oportunas, introduzindo na consciência, graças a uma estruturação
simbólica, os materiais constelados no inconsciente pela situação
consciente. (cit., p. 106)

Durante a aplicação da calatonia, na medida em que vai se definindo um


estado de rebaixamento da mente consciente, vão se configurando condições
propícias para que o corpo possa promover a sua auto-regulação, assim como
também para que as funções psíquicas possam se movimentar no sentido da busca
de equilíbrio. Em relação à importância de um estado de rebaixamento da
consciência vigilante para o progresso terapêutico, Jung faz referência a um
abaissement mental, que confere uma certa predominância ao inconsciente.
Comenta o fato de que, no estado de rebaixamento da consciência, as potências
ativas do inconsciente são estimuladas e afloram, trazendo aspectos arquetípicos.
Ainda faz colocações neste sentido, dizendo que estados crepusculares favorecem o
aflorar do inconsciente que pode mover-se em todas as direções e no tempo (von
Franz, 2001).
O estímulo do relaxamento calatônico costuma fazer efeito não só no
momento da sua aplicação, mas também no transcorrer das semanas, ficando mais
evidente o seu efeito no período que antecede o sono. Pode ser pedido ao paciente
que, na hora de dormir, procure se posicionar conforme a postura do relaxamento e
mentalmente deixar que o pensamento reconstitua lentamente e em detalhes a
seqüência dos toques, deixando o corpo sentir de novo os efeitos que foram se
propagando durante o relaxamento calatônico. Em geral, os pacientes relatam que
conseguem sentir como se o trabalho estivesse sendo feito naquele momento, na
medida em que se concentram durante um auto-relaxamento, criando condições
para conseguir dormir melhor. Neste sentido, pode não só ser entendido, mas
também vivenciado o efeito da atuação da memória sensorial, assim como da
presença da inteligência da natureza nas funções corporais (Delmanto, cit., pp. 20,
21 e 27). Numa linguagem organísmica, a calatonia, na medida em que vai criando
condições para melhorar a qualidade do sono, costuma favorecer ao mesmo tempo o
desenvolvimento de um reequilíbrio funcional.
Nota: A Calatonia é um método de trabalho corporal criado pelo Dr. Pethö
Sándor (1916 – 1992), médico de origem húngara e psicólogo, tendo vindo para o
Brasil em 1948. Corresponde a 9 toques aplicados simultaneamente em pontos
precisos dos dois pés, incluindo calcanhar e tornozelo, com um toque de finalização
na base da nuca. Cada toque pontual é feito com extrema sutileza, tendo duração
média de 3 minutos. O silêncio e a monotonia do trabalho favorecem a entrada num
estado crepuscular da mente, ao mesmo tempo em que os estímulos térmicos, de
pressão e energéticos captados pelos receptores da pele atuam criando condições
para a harmonização dos fluxos corporais e da tonicidade muscular. O método pode
ser encontrado descrito na íntegra pelo seu criador (Sándor, cit.).

Referências Bibliográficas

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Beneficiente Tobias; 1990.

DELMANTO, S. Toques Sutis: uma experiência de vida com o trabalho de Pethö


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___________ The Visions Seminars. Zurique: Spring Publications, 1976. Tradução


de P. Sándor para uso exclusivo em seus cursos.

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MONTAGU, A. Tocar: o significado humano da pele. São Paulo: Ed. Summus, 1988.

SÁNDOR, P. Técnicas de Relaxamento. São Paulo: ed. Vetor, 1974.

SILVEIRA, Nise da. Jung, Vida e Obra. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1992, 13ª
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TAYLER; J. L. The stages of human life. New York: E.P. Dutton and co, 1921.

VON FRANZ, M.L. O Gato. São Paulo: Ed. Paulus, 2001.


RESILIÊNCIA E PSICOLOGIA ANALÍTICA

Neusa M. L. Sauaia1
Ceres Alves Araújo2

Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir e relacionar alguns conceitos da


Psicologia Junguiana com pressupostos que sustentam a perspectiva da
resiliência. Trata-se de um ensaio teórico que busca levar o leitor a refletir sobre
idéias, termos e métodos que, embora delineados em épocas tão diferentes,
compartilham uma mesma forma de ver e entender o ser humano.

1. Compreendendo a Resiliência

Com aplicação relativamente recente na área das Ciências Humanas, a


perspectiva da resiliência vem crescendo nas pesquisas e estudos sobre o ser
humano e seu enfrentamento diante das mais diferentes adversidades. Este termo
origina-se das Ciências Exatas, particularmente da mecânica e da engenharia,
relacionado à resistência dos materiais. Segundo o Dicionário Aurélio, resiliência é
definida como: “propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo
deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora de uma deformação
elástica” (Ferreira, 1986, p.1493).

1
Psicoterapeuta junguiana. Professora e Supervisora do curso de Psicoterapia de Orientação Junguiana
Coligada a Técnicas Corporais, no Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
2
Psicóloga, Analista Junguiana pela SBPA, Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela
UNIFESP. Professora do Núcleo de Psicossomática e Psicologia Hospitalar e do Núcleo de Estudos
Junguianos do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUCSP.
Anthony e Cohler (1987) foram os organizadores do livro considerado pioneiro na
discussão da temática da resiliência – The Invulnerable Child. Nessa obra,
Anthony aborda os conceitos de risco, vulnerabilidade e resiliência, referindo-se à
surpresa de muitos investigadores quanto a uma aparente “psico-imunidade” de
determinados indivíduos diante de adversidades.
Spacarelli e Kim (1995) consideram resiliência como a capacidade de
manter um funcionamento adaptado apesar de situações adversas. A resiliência
não equivale a resistência, pois não é apenas a possibilidade de suportar
condições adversas, mas sim, a capacidade de recuperar-se e voltar a viver com
uma qualidade de vida normal.
Inicialmente pensava-se que as pessoas consideradas resilientes
possuiriam atributos especiais, inatos ou desenvolvidos ao longo da vida. No
entanto, muitos estudiosos abandonaram tal idéia em favor de considerar a
resiliência como um processo dinâmico que leva em conta múltiplos aspectos que
envolvem fatores de risco e proteção. Rutter (1981,1985,1987,1993) aponta sete
possíveis mecanismos envolvidos nos fatores de proteção:

- As respostas frente ao evento estressor são influenciadas pela avaliação que


a pessoa faz da situação, pela capacidade de processar a experiência, pela
atribuição de significado e pela possibilidade de incorporá-la ao sistema de
crenças. A idade, nesse caso, é um fator de diferenciação importante, pois a
capacidade de elaboração de um bebê é diferente daquela de uma criança
mais velha.
- Outro mecanismo diz respeito à forma como as pessoas lidam com as
adversidades e eventos estressores, se elas agem ou simplesmente reagem à
situação estressante.
- A habilidade das pessoas para agir é uma função de sua auto-estima e
sentimentos de auto-eficácia tanto quanto de sua capacidade para resolver
problemas.
- O conhecimento cognitivo está apoiado em relacionamentos afetivos estáveis,
sucessos, experiências positivas e atributos de temperamento.
- Tais qualidades pessoais tornam-se operacionalizadas nas interações e
respostas frente a outras pessoas e em seu papel de regulação das respostas
individuais às situações de estresse.
- Enfrentamento bem sucedido é exercitado durante toda a vida, pois as
situações de dificuldade e de mudanças fazem parte do incremento da
competência e da responsabilidade.
- Os fatores de proteção devem operar todo o tempo e não apenas num dado
momento ou circunstância de maior estresse.

Sob essa perspectiva, a qualidade da resiliência reside em como as


pessoas lidam com mudanças de vida e o que elas fazem com suas vivências.
Essa qualidade é influenciada pelas experiências do início da vida, pelos
acontecimentos da infância e da adolescência e pelas circunstâncias da idade
adulta. Considerar um indivíduo resiliente foi, por algum tempo, atribuído à
ausência de sintomas frente a adversidades. Mais recentemente pesquisadores
tendem a vê-la como a manifestação de comportamentos de competência e
adaptação.
Em nossa realidade atual não faltam exemplos de situações difíceis e
ameaçadoras à integração fisiopsíquica dos indivíduos. As ameaças estão, muitas
vezes, próximas de nós; nas esquinas, no trânsito, nos supermercados, no
trabalho ou até em nossas próprias casas. Outras vezes, embora distantes, elas
alcançam repercussões mundiais e não menos impactantes, como torres que
caem, atentados suicidas ou guerras intermináveis. Nelson Mandela, no
lançamento do Relatório Mundial sobre Prevenção à Violência – 2002, da
Organização Mundial de Saúde, declarou que:

O século XX será lembrado como um século marcado pela


violência. Em uma escala jamais vista e nunca antes possível na
história da humanidade, ele nos oprime com seu legado de
destruição em massa, de violência imposta. Mas esse legado –
resultado de novas tecnologias a serviço de ideologias de ódio – não
é o único que carregamos, nem que devemos enfrentar. Menos
visível, mas ainda mais disseminado, é o legado do sofrimento
individual diário. É a dor das crianças que sofrem abusos
provenientes das pessoas que deveriam protegê-las, mulheres
feridas ou humilhadas por parceiros violentos, pessoas idosas
maltratadas por aqueles que são os responsáveis pelos seus
cuidados, jovens oprimidos por outros jovens e pessoas de todas as
idades que infligem violência contra si próprias. Este sofrimento – e
há muitos outros exemplos que eu poderia citar – é um legado que
se reproduz quando novas gerações aprendem com a violência de
gerações passadas, quando as vítimas aprendem com seus
agressores e quando se permite que se mantenham as condições
sociais que nutrem a violência. Nenhum país, nenhuma cidade,
nenhuma comunidade está imune à violência, mas também, não
estamos impotentes diante dela....

Buscar recursos para enfrentar essa triste realidade torna-se não apenas
desejável, mas inevitável para a sobrevivência de cada indivíduo e da própria
humanidade. Alguns dos recursos ou fatores de proteção apontados na literatura
são: inteligência, autonomia, boa saúde, amigos, familiares, religião, hobbies,
bichos de estimação.
Por outro lado, encontram-se aquelas situações ou circunstâncias que
funcionam como fatores de risco e que causam vulnerabilidades no enfrentamento
das situações de vida. Entre elas estão: baixo peso ao nascer, uso de drogas,
divórcio, traumas de massa – furacões, tufões, terremotos, maremotos – pobreza,
acidentes, morte de familiares, problemas psiquiátricos.
Embora, as definições do conceito de resiliência ainda levem a muitas
controvérsias entre os pesquisadores, Luthar e Cichetti (2000) apontaram as
vantagens do uso do paradigma da resiliência nas pesquisas sobre tratamentos e
intervenções:

- O paradigma da resiliência focaliza os resultados positivos e não apenas os


negativos. O interesse central não é apenas nas falhas de adaptação, mas
principalmente nos resultados da adaptação positiva e seus antecedentes,
levando a uma maior ênfase na prevenção do que em um tratamento de
desajustamentos.
- Mesmo nos casos onde os problemas já estão cristalizados, a visão da
resiliência enfatiza não apenas os déficits mas também as áreas de recursos.
Nas intervenções são feitos esforços no sentido de reforçar as mudanças
positivas em populações vulneráveis.
- Trabalhar com resiliência implica em um compromisso de compreensão dos
processos subjacentes aos efeitos dos fatores de vulnerabilidade e proteção.
O objetivo final é clarificar quais mecanismos potenciais estão implicados nos
efeitos dos fatores de vulnerabilidade e de risco para que intervenções
apropriadas possam se desenvolvidas.

Utilizando o paradigma da resiliência voltamos nossa atenção para uma


psicologia mais positiva, que procura olhar para as possibilidades e potenciais que
podem alavancar o desenvolvimento dos indivíduos. Antes que possamos
relacionar essas idéias à visão finalista da Psicologia Analítica, precisamos
entender alguns conceitos teórico-metodológicos propostos por Jung.

2. O Método Construtivo da Psicologia Analítica

Muito já foi escrito sobre as diferenças de pensamento de dois dos


maiores expoentes da Psicologia Profunda: Freud e Jung. Mas, sem dúvida, uma
das divergências mais marcantes entre eles recai sobre suas respectivas
trajetórias profissionais que os levaram a olhar a psique e seus conteúdos sob
ângulos distintos.
Freud e Jung partiram de diferentes campos de observação. Freud extraiu
seus conceitos de sua experiência no tratamento de pacientes neuróticos. Jung
envolveu-se profundamente no atendimento a pacientes psicóticos e
esquizofrênicos. Em função disso, esses dois autores criaram métodos
particulares de análise da psique.
Freud procurava buscar relações de cunho pessoal para o material
reprimido ou recalcado do inconsciente. Eram esses conteúdos que deveriam vir à
tona, tornarem-se conscientes e passíveis de serem administrados pelo ego.
Deste modo ficava esclarecida a causa e a dinâmica de um determinado sintoma.
A esse método chamou de redutivo-causal.
No campo das psicoses, Jung deparava-se com fantasias inconscientes
que não encontravam correspondência com as histórias pessoais dos pacientes e
não caminhavam no sentido de se tornarem conscientes, mas, ao contrário,
atraiam o ego para o seu sistema. Falava desse modo de um inconsciente que
não era fruto de repressão, mas que incluía material coletivo, desconhecido e,
muitas vezes, de difícil expressão pela linguagem verbal. O método freudiano,
portanto, não se mostrava suficiente para esclarecer esse tipo de conteúdo. A
busca de um sentido para tais conteúdos levou Jung a se perguntar sobre o
significado dessas fantasias. A que propósito serve esse material inconsciente?
Para onde ele aponta? Qual a sua finalidade?
Valeu-se para isso da amplificação, e com ela buscava encontrar
conexões entre o material inconsciente e mitos, lendas, alquimia. Batizou seu
método de hermenêutico-progressivo ou construtivo, através do qual “passou a
relacionar, por exemplo, o pequeno grão de verdade de uma fantasia de um
paciente psicótico com o grão de verdade presente no mito de um povo muito
antigo” (Maroni, 1999, p.24).
A Psicologia Analítica procurava o novo e desconhecido emergentes no
indivíduo e, deste modo, voltava seu olhar para o presente e para o futuro.
Embora com raízes num mundo arquetípico, ou seja, na herança da humanidade
pertencente a todos nós, Jung buscava, na análise das fantasias e sonhos, o novo
e criativo e sua relação com a vida cotidiana.
Em sua obra Psicogênese das Doenças Mentais, Jung (1986) escreve:

... A psique humana é somente em parte algo passado e como


tal sujeita ao ponto de vista causal. Por outro lado, porém, a psique é
um devir, que apenas pode ser entendida de modo sintético ou
construtivo. O princípio de causalidade investiga apenas de que
maneira essa psique se tornou o que é agora, tal como ela hoje se
apresenta. A perspectiva construtiva, ao contrário, pergunta como se
pode construir uma ponte entre esta psique e o seu futuro. (p.166)
Sob esse prisma, não se pode mais considerar as experiências ou fatos,
internos ou externos ao indivíduo, apenas como resultantes de um processo, mas
também como coadjuvantes e criadores da própria continuidade desse mesmo
processo.
Outro pilar de sustentação para a teoria criada por Jung foi a grande
influência que recebeu de vários filósofos citados com freqüência em toda sua
obra: Nietzsche, Goethe, Schiller, Schopenhauer, Burckhardt, Otto, W. James,
C.G. Carus e outros. Todos semearam em Jung uma forma mais positiva de ver o
ser humano, o mundo, a alma e a própria vida. Um exemplo disso pode ser visto
quando ele comenta sobre as visões adotadas por Freud e Adler. Jung diz:

Não posso deixar de criticar as duas escolas por interpretarem


as pessoas demasiadamente pelo lado patológico e por seus
defeitos. .....Eu prefiro entender as pessoas a partir de sua saúde e
gostaria de libertar os doentes daquela psicologia que Freud coloca
em cada página de suas obras. (Jung, 1989, p.325)

Acreditava que, por influência de filosofias críticas e altamente


questionadoras, não podia aceitar condições extremadas ou definitivas. Buscava
uma atitude positiva que se contrapunha às idéias vigentes de muitos autores. As
polaridades ou “jogo dos opostos” e a multiplicidade de subjetividades sempre
foram idéias que permearam a teoria e a prática da Psicologia Analítica.
Vejamos, portanto, de que forma podemos traçar alguns paralelos entre os
conceitos que dão suporte ao paradigma da resiliência e as idéias postuladas por
Jung.

3. Traçando paralelos entre Resiliência e Psicologia Analítica

O paradigma da resiliência tem servido à análise de como cada indivíduo,


comunidade ou sociedade enfrenta situações adversas, traumatizantes ou
violentas. Sempre foi prática comum a procura por fatores que justificassem a
violência no mundo: O que está ruim? O que não presta? O que falta?. Tentava-
se, então, corrigi-los para, com isso, extinguir suas conseqüências. O que se via,
porém, é que a batalha parecia interminável. Eliminavam-se algumas causas mas,
logo em seguida, brotavam outras causas e novas formas de violência. O olhar
que se fixa na causalidade perde, ou deixa de lado, a outra face da moeda. Lançar
um olhar também para essa outra face parece ser a proposta desse novo
paradigma, que inclui os resultados positivos, os recursos e aqueles fatores que
servem de proteção.
Jung, de alguma forma, já propunha essa idéia. Preocupava-se em olhar
para o presente e para o futuro, para a saúde e para o criativo. Emprestava as
idéias inspiradoras de Nietzsche quando afirmava que criar traria a redenção do
sofrimento e a possibilidade de viver o bem-estar. Ao aplicar uma visão
prospectiva à analise de um indivíduo, trabalha-se com possibilidades, com forças
operantes na psique e com um objetivo, muitas vezes desconhecido, mas pleno
de possibilidades. Da mesma forma, aplicar essa perspectiva a uma análise social
ou cultural remete a novos caminhos e novas saídas. Se diante de uma catástrofe
limitamo-nos a chorar nossas perdas ou a buscar causas ou culpados,
esquecemos de construir novas casas, esquecemos da mão que afaga e da
solidariedade que une. Os recursos ou fatores de proteção servem de fonte
inspiradora para a vida. A maior ou menor resiliência pauta-se na equação entre
risco e proteção. Se risco e ameaça predominam sobre os recursos, menos
resiliência estará presente. Se, por outro lado, existem suficientes recursos
disponíveis para enfrentar possíveis ameaças, maior será a resiliência.
Aqui cabe lembrar uma outra questão. Recursos e riscos não podem ser
definidos universalmente, ou seja, não possuem a mesma qualidade e intensidade
para diferentes pessoas. Da mesma forma, pode-se afirmar que os fatores que
compõem a resiliência de um indivíduo podem ser diferentes para a composição
da resiliência de uma outra pessoa. Essa subjetividade é apontada também por
Jung ao discutir seu método construtivo. Ele diz que a perspectiva construtiva é
necessariamente especulativa e possui uma validade subjetiva, pois deve levar
permanentemente em conta as particularidades de cada indivíduo. Em lugar de
uma explicação definitiva, obtém-se assim uma compreensão do fenômeno
psíquico que é dinâmico e típico em cada situação.
Qual seria, então, o maior instrumento para a compreensão de fenômenos
tão particulares como a experiência humana, dentro da visão finalista da
Psicologia Analítica? Essa questão nos leva para mais uma possibilidade de
associação entre nossas duas vertentes de discussão. O paradigma da resiliência,
como apontado por Luthar e Cichetti (2000), busca um compromisso de
compreensão dos mecanismos potenciais ou processos subjacentes aos efeitos
dos fatores de vulnerabilidade e proteção. Essa tarefa, naturalmente, exige que se
tenha algum referencial ou ferramenta que permita desbravar esse caminho. Os
referenciais que sustentam os estudos e pesquisas sobre resiliência são, em sua
maioria, ligados a teorias comportamentais, abordagens sistêmicas, análises
sociais, culturais e até mesmo políticas, na busca de intervenções preventivas.
A Psicologia Analítica, por sua vez, sempre utilizou a compreensão
simbólica como ferramenta de seu método construtivo, entendendo o símbolo não
apenas como fruto de uma história, mas dotado de um caráter prospectivo. É o
símbolo que abre as portas para o significado. Aponta para o presente e para o
futuro, procurando compreender e mostrar o caminho do que está por vir Embora
os estudiosos da resiliência não se refiram a símbolos ou processos simbólicos
quando sugerem a compreensão dos fatores de risco e proteção, não seria esse
um instrumento de imenso valor para essa finalidade?
Nas palavras de Jung (1989):

A importância funcional do símbolo é claramente mostrada na


história da civilização....Valores concretos não podem assumir o
lugar do símbolo; unicamente símbolos novos e mais eficazes
podem substituir os já antiquados e exauridos e que perderam sua
eficácia devido ao progresso da análise intelectual e da maior
compreensão. O desenvolvimento ulterior do indivíduo só pode
ocorrer através de símbolos que representam um avanço sobre ele
mesmo e cuja significação intelectual ainda não é possível
compreender bem. (Jung,1989, p.285/6)

Observa-se, portanto, que a resiliência, como definida hoje, sempre fez


parte da perspectiva junguiana, seja no que diz respeito ao atendimento analítico
individual, seja na análise sociocultural da civilização e da evolução da
humanidade. Jung procurava não esquecer de observar os recursos ou os
aspectos positivos, quer fosse na história, quer fosse nos símbolos emergentes. O
processo analítico certamente tem como uma de suas propostas promover a
resiliência dentro da longa jornada em prol da individuação.
Por outro lado, pode-se considerar que o paradigma da resiliência contém
elementos que se assemelham a alguns princípios da abordagem junguiana, entre
os quais, levar em conta não apenas os fatores que criam perturbações ou
sintomas, mas contemplar o oposto e acreditar na possibilidade de uma força
capaz de gerar frutos positivos para o avanço da humanidade.
Assim sendo, o paradigma da resiliência e a perspectiva da Psicologia
Analítica podem e devem andar lado a lado na construção de um novo caminho de
compreensão do indivíduo e da coletividade a qual pertence.

Referências Bibliográficas

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Organização Mundial de Saúde – OMS, Relatório Mundial sobre Violência e


Saúde – Prevenção, Genebra, 2002.
DIFERENTES LINGUAGENS EM DEFESA DA VIDA
Relato do processo terapêutico de uma menina de 5 anos que não falava

Silvia Schwark de Mello1

Pensando em preservar o sigilo da identidade da paciente e, ao mesmo tempo,


possibilitar uma melhor visualização do caso que descrevo, busquei um personagem de
desenho animado que a representasse e servisse de referência para chamá-la a partir de
agora. Assim, escolhi uma das três “Meninas Super Poderosas” chamada Florzinha. As
semelhanças entre a paciente e esta personagem são várias, desde o olhar curioso,
expressivo e maroto, o jeito meigo e seus laços de fita na cabeça até a força e a coragem
que ambas demonstram nas suas respectivas jornadas.

HISTÓRICO
Estávamos em junho de 1998 quando este caso chegou até mim. Florzinha era
uma menina de 5 anos que morava com seus pais, um irmão de 11 anos e sua avó
materna. Os pais vieram procurar um atendimento psicológico devido a um pedido da
escola. A queixa era de que ela não falava com adultos fora de casa. A princípio, os pais
achavam que fosse vergonha, pois Florzinha, até então, passara a maior parte do tempo
em casa com a família. Só quando passou a freqüentar a escola é que este não falar se
evidenciou. Havia começado a freqüentar a escola no ano anterior; nos primeiros dois
meses não falava com a professora, mas depois passou a falar. No entanto, aos 5 anos,
passou para o Jardim II e já estava no meio do ano e ainda nada falava com a
professora. Por outro lado, seu comportamento com as outras crianças era tranqüilo;
tinha vários amigos, era criativa, liderava as brincadeiras e participava com desenvoltura
de todas as atividades propostas, inclusive das apresentações de coral, desde que a
professora ou qualquer outro adulto não ficasse ao seu lado.

1
Psicóloga junguiana. Especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo
Instituto Sedes Sapientiae.
No decorrer das entrevistas de anamnese não havia nada que indicasse qualquer
dificuldade orgânica. Seu desenvolvimento havia transcorrido normalmente. Quanto aos
dados da dinâmica familiar, a análise dos desenhos e da observação lúdica no processo
de psicodiagnóstico não sugeriam nada que apontasse para o porquê ou justificasse tal
comportamento. Um dado relevante que os pais levantaram foi quanto ao impacto
positivo e a importância que a vinda de Florzinha ao mundo havia representado. No ano
anterior ao seu nascimento um tio sofrera um acidente e ficara em cadeira de rodas;
meses antes seu pai havia passado por um período depressivo e há dois dias de seu
nascimento seu avô materno falecera. Portanto, a vinda dela foi tida como uma dádiva
em meio a tanto sofrimento.

HIPÓTESES DIAGNÓSTICAS
Em minha busca de tentar compreender este caso foram sugeridas diferentes
hipóteses quanto à causa deste comportamento de não falar.

Conhecidos da família e, até mesmo pessoas estranhas com as quais Florzinha se


deparava em diferentes circunstâncias, indagavam se não era por vergonha ou timidez.

Os pais questionavam se tal comportamento não era para chamar a atenção e


obter destaque. Como em casa já tinha o seu lugar de destaque e força garantidos,
talvez fora não quisesse se expor e correr o risco de não ser perfeita e adorada por todos.

Já a psicóloga da escola levantou a hipótese de um trauma. Ela chamou Florzinha


para “conversar” e verificar o que estava se passando. Contou-lhe uma história sobre
uma criança que ficava entalada com um caroço de fruta na garganta e por isso não
falava. Questionou junto à Florzinha se era isso o que estava acontecendo com ela, se
não tinha acontecido algo que ficara entalado e que ela não conseguia colocar para fora.
Segundo os pais, aquela interpretação não fez sentido algum para a filha. Florzinha
comentou com eles que não falava não porque tivesse algo engasgado, mas não sabia
explicar o porquê e que até gostava de ir para a sala da psicóloga, pois havia muitos
brinquedos.
Estando na fase de devolutiva do processo de psicodiagnóstico, me vi sem uma
hipótese diagnóstica eficaz e convincente. Vergonha e timidez definitivamente não eram
traços característicos de Florzinha, já que se virava muito bem e com desenvoltura em
qualquer ambiente; embora não falasse, fazia-se entender através de expressões
corporais.

Já havia pesquisado em Whitmont (1994/1995) que a criança não está separada


do inconsciente dos pais, isso ocorre apenas mais tarde, em torno dos 6 ou 7 anos.
Assim, a presença de conflitos não percebidos dos pais ou entre eles são vividos pela
criança como se fossem dela. Mas até então, não havia conseguido levantar nenhuma
conexão plausível.

As outras hipóteses não encontravam confirmação nos dados obtidos. Não


passavam de meras suposições que de nada ajudavam para o direcionamento da terapia.
O próprio processo diagnóstico devia ser visto com parcialidade, já que as considerações
e associações pessoais de Florzinha não foram possíveis, limitando, portanto, as
interpretações.

Foi preciso me libertar dessa “camisa de força” de detentora do saber psicológico


que os pais, a escola e até mesmo eu estavam me impondo e abrir espaço para a dúvida
e o não saber.

“Se hoje existe um campo, em que é indispensável ser humilde e aceitar uma
pluralidade de opiniões aparentemente contraditórias, esse campo é o da psicologia
aplicada...” (Jung – O.C. vol. XVI § 71). Sabemos que as interpretações refletem apenas
visões de determinados ângulos e pontos de vista, e não são necessariamente verdades
absolutas.

Para a psicanálise, a etiologia do caso, ou seja, a causa original do trauma, é de


importância primordial, pois a cura da neurose se opera assim que suas causas tornam-
se conscientes (teoria do trauma). Porém, chegar a esta origem nem sempre é possível.
O próprio Freud notou que muitos casos de neurose não são causados por trauma.
Encontrei respaldo então na psicologia analítica, em que o foco não está no
porquê, mas sim no para quê. Qual a função que este comportamento está tendo na vida
da pessoa? Jung não nega a importância da visão retrospectiva, mas considera que a
ênfase deva ser posta na atitude consciente do paciente.

Meu questionamento diante do caso não era mais: por que Florzinha não falava
com adultos? Mas sim: que função este não falar tinha em sua vida?

Foi com perguntas em aberto que fiz a devolutiva e partimos para o processo
psicoterapêutico. As sessões foram realizadas duas vezes por semana, no período entre
junho/1998 e dezembro/2000.

FUNÇÃO DA TERAPIA

Iniciei a ludoterapia seguindo a orientação de Jung:

Considero até aconselhável que o médico não tenha objetivos


demasiado precisos, pois dificilmente ele vai saber mais do que a própria
natureza ou a vontade de viver do paciente. As grandes decisões da vida
humana estão, via de regra, muito mais sujeitas aos instintos e a outros
misteriosos fatores inconscientes do que à vontade consciente, ao bom
senso, por mais bem intencionados que sejam. (Jung – O. C. vol XVI § 81)

A função da terapia não seria a de fazer Florzinha falar, não tinha por objetivo
convertê-la para a normalidade. A busca era de conhecê-la e abrir um espaço em que
pudesse conquistar o que necessitava, à sua maneira e em sua própria linguagem.

O PROCESSO PSICOTERAPÊUTICO

No decorrer das sessões diferentes linguagens foram surgindo. Algumas


concomitantes, outras seguindo uma sequência cronológica. Buscando uma clareza
didática neste relato passarei a descrever o processo subdividindo-o de acordo com estas
linguagens que nortearam a minha compreensão do caso.

LINGUAGEM DOS GESTOS

Nos primeiros atendimentos Florzinha não se sentia segura em entrar na sala sem
a companhia da mãe. Propus que ficássemos de porta aberta e que sua mãe ficasse na
sala ao lado durante todo o atendimento e garantindo ainda que, a qualquer momento,
ela poderia ir verificar se a mãe estava de fato à sua espera. Esse medo é algo esperado
em crianças de sua idade e teve que ser respeitado até ela ter segurança suficiente para
entrar sozinha.

Este primeiro período foi de exploração. Florzinha buscava conhecer o ambiente


experimentando brincar um pouco com cada objeto e, ao mesmo tempo, ia verificando
também quais eram os limites e as atitudes da terapeuta. Por vezes, solicitava que eu
definisse com o que brincar fazendo feições dengosas, marotas e de súplicas.

Sua linguagem, embora fosse apenas gestual, era rica e bastante inteligível. Os
jogos predominantes desta fase foram os de mímica e um chamado “Senha”; assim o
verbal, de fato, era pouco necessário na relação. É claro que eu, enquanto terapeuta, não
deixava de provocá-la e sempre que tinha oportunidade também fazia as minhas
explorações quantos aos recursos e limites de Florzinha.

Um momento crucial desta linguagem gestual aconteceu com relação à escolha


dos materiais para a caixa lúdica. Como Florzinha não era alfabetizada e os recursos
gráficos e gestuais mostraram-se limitados, a falta do verbal fez-se presente e gerou
conflito e angústia. Fizemos um pacto de que assim que ela encontrasse um meio de me
dizer o que queria na caixa, ela poderia consegui-lo. Vibrei! Ela começava a vivenciar na
terapia as perdas que estava tendo em não falar. É claro que, sendo uma “menina
superpoderosa”, achou rapidamente um jeito de me dizer o que desejava: pediu à sua
mãe que escrevesse para ela. Aqui ficou evidente que a semente da inquietação estava
germinando e era preciso resgatar outros recursos.

LINGUAGEM DOS INSTINTOS

Há um período, chamado por Whitmont de fase mágica, no qual para a criança o


objeto não é um símbolo apenas, mas é aquilo que representa, daí a importância para ela
de objetos como paninho, a boneca etc. No caso de Florzinha, este objeto passou a ser
um cachorrinho de pelúcia; ele era o companheiro inseparável para enfrentar sua jornada.
Passei então a considerá-lo não mais um observador silencioso, mas um ser ativo,
buscando “ouvir suas opiniões” nas brincadeiras. Assim ele tornou-se nosso elo de
comunicação durante um longo período da terapia. A linguagem gestual foi dando espaço
para a “linguagem animal”, o cachorrinho, guiado por ela, emitia grunhidos quando queria
dizer algo, cheirava para examinar os objetos novos, rosnava quando ficava bravo e após
um tempo começou a latir para expressar o que queria. Havíamos regressado
literalmente para a era da comunicação selvagem.

Neste momento constatei um dado complicador: eu não entendia nada da


“linguagem canina”. Foi um novo período de adaptação e busca de uma via comum na
comunicação.

No processo terapêutico a tendência regressiva não representa necessariamente


uma recaída, ao contrário, se faz necessária e denota uma tentativa de encontrar algo de
importante para si. Essa fase da linguagem dos instintos, que a princípio me pareceu um
retrocesso em nossa comunicação, mostrou-se extremamente rica: o racional e “correto”
fora abolido, e o que nos guiava nesta trajetória eram os instintos.

A regressão, que poderia assustar-nos à primeira vista, é, portanto,


muito mais um reculer pour mieux sauter, concentrar e integrar forças, que
no decorrer da evolução vão constituir uma nova ordem (Jung – O C. vol
XVI § 19)

Resgatado o instinto, foi possível haver força suficiente para quebrar a barreira da
palavra. O cachorrinho agora era utilizado como o boneco do ventríloquo, porta-voz de
Florzinha. A fala aqui era sempre na 3ª pessoa.

LINGUAGEM DO CORPO

“Alguns já disseram que o corpo não mente. Mais que isso, ele conta muitas
histórias e em cada uma delas há um sentido a descobrir”. (Leloup, 1998)

Paralelamente à utilização da linguagem dos instintos, a linguagem do corpo


também tomou proporções cada vez maiores e foi de vital importância para o andamento
do processo.

Embora Florzinha estivesse apenas com 5 anos, suas atitudes cordatas e


espantosamente apropriadas (por exemplo, ao mexer com tinta não sujava praticamente
nada e mostrava-se bastante organizada na arrumação da sala), davam a impressão de
que era uma adulta num corpo de criança.
O corpo oferece o sistema de referência básico para a experiência simbólica.
Portanto, na mesma proporção em que as expressões corporais, por exemplo,
brincadeiras, são reprimidas com demasiada rigidez ou emocionalmente rejeitadas, pode
haver prejuízo no desenvolvimento do ego. E foi sob esta perspectiva teórica que
considerei apropriado utilizar a Técnica de Michaux. Foi desastroso! A técnica é, de fato,
excelente, já a utilizei em outras crianças e pacientes adultos, sentia muito prazer quando
a aplicavam em mim e, realmente, a flexibilização é um de seus pontos fortes. Mas, mais
uma vez o “caminho das pedras” não era o da técnica. Florzinha submeteu-se ao trabalho
corporal de modo impassível, não houve o efeito esperado. Faltava o lúdico.

Felizmente a sincronicidade está aí, basta que estejamos atentos. Nesta ocasião, a
porta da sala de atendimento emperrou. Não tive dúvidas em propor-lhe para nos
aventurarmos em pular a janela, darmos a volta pelos fundos e surpreendermos sua mãe
na recepção entrando por outra via de acesso. Tudo isto, é claro, com a minha
sonoplastia da música tema de “Indiana Jones”. Esta ação foi inesperadamente lúdica e
altamente simbólica. Recusamo-nos a permanecer trancafiadas e nos entregamos à
liberdade corporal e suas benéficas conseqüências na estrutura egóica.

Passamos a brincar de guerra de almofadas, sanduíche humano (o pão eram as


almofadas e ela o recheio), rocambole (eu a enrolava no tapete), terremoto (eu sentada,
e ela em pé em meus joelhos, fazia tremores de intensidades variadas tentando se
equilibrar e, lógico, os tombos eram inevitáveis, embora amparados e até divertidos).

As estruturas, antes enrijecidas, agora estavam uma a uma ruindo. Havia espaço
para o riso, a raiva, a descontração e tudo o mais que uma criança tem direito.

LINGUAGEM DO SILÊNCIO

Quebradas algumas barreiras defensivas, o temor pôde vir à tona. Num certo dia,
Florzinha veio para a terapia, porém, diferente das outras vezes. Seu olhar, enquanto
subíamos a escada até a sala e ao entrarmos, era tenso e, ao mesmo tempo, triste.
Como não sou o tipo sensação não entendi a princípio e perguntei-lhe o que estava
acontecendo. Ela permanecia imóvel; foi então que notei que ela havia “esquecido” o
cachorrinho de pelúcia, seu protetor, companheiro e auxiliar em nossa comunicação. A
angústia e o peso do não falar ficaram fortemente marcados. Apontei a sua dor e sentei-
me quieta ao seu lado. Aos poucos, Florzinha se aninhou em meu colo e permanecemos
no mais absoluto silêncio durante a sessão inteira.

Ao ouvirmos o silêncio, pudemos entrar em contato com o medo, a angústia mas,


também, com o acolhimento e o amor. Foi uma sessão especialmente tocante.

LINGUAGEM DA CRIAÇÃO

“O poder da imaginação, com sua atividade criativa, liberta o homem da prisão da


sua pequenez, do ser só isso...” (Jung – O C. vol XVI § 98)

Ao fazer experiências com os objetos, e conseqüentemente com o seu próprio ser,


dando-se conta de que nada mais é tão absoluto e pronto, abre-se espaço para a
transformação e o movimento interno da energia psíquica.

Ao pintar, desenhar, esculpir ou criar formas com diferentes materiais, o sujeito


passa a ser ativo, as coisas transformam-se em um ato seu, o não-dito pode ser
traduzido em formas visíveis. Ao ativar a fantasia através da ação da criação, o efeito que
se teria falando dela se acentua, e seu sentido se amplia.

Diferentemente da fase inicial da terapia, agora havia uma exploração criativa do


ambiente, nada era o que parecia ser. O colchonete transformava-se em um barco ou
trem, as tintas não tinham seqüência nem ordem, eram misturadas e experimentadas em
diversas nuanças e contextos, das sucatas surgiam incontáveis formas e objetos de
finalidades mil. Florzinha não era apenas aquela que não falava, mas também a que
falava (estava falando com alguns adultos – “tio da cantina”, o jornaleiro, o professor de
judô ), a que sorria e chorava, a serena e a brava, a corajosa e a temerosa.

LINGUAGEM DA CONSCIÊNCIA

A psicoterapia analítica aciona conteúdos do inconsciente e os traz à luz. O ego, à


medida que é fortalecido, passa a poder entrar em contato com o inconsciente e ouvir o
que ele tem a dizer. Assim, em vez de ficar restrito aos seus desejos egóicos, ou então,
submerso em complexos inconscientes, o ego pode seguir na direção da realização do
Si-mesmo.

É na infância que o ego começa a se diferenciar gradualmente e elementos do


meio interagem com potenciais arquetípicos para produzir uma personalidade real.

Nesta etapa da terapia, o fortalecimento do ego e a ampliação da consciência


ficaram evidentes. Agora Florzinha começou a montar cabanas ou cavernas e as
brincadeiras aconteciam em seu interior; no entanto, havia a necessidade da luz. A
princípio utilizou-se uma vela para iluminar; porém, sua luz era insuficiente. Foi então que
ocorreu um pedido muito especial. Florzinha solicitou uma lanterna para a sua caixa
lúdica. Até então, o que havia na caixa eram apenas materiais gráficos e tinham sido
pedidos via escrita materna.

Quando chegou a lanterna, a brincadeira consistiu em apagarmos a luz da sala,


fecharmos a janela e a cortina. Como única fonte de iluminação, a lanterna percorria
diferentes espaços. Na ocasião brinquei fazendo uma sonoplastia fantasmagórica e
Florzinha, de maneira firme, pediu que eu parasse pois estava com medo. O meu
entusiasmo e “a minha criança” haviam exagerado um pouco, mas foi positivo perceber
que o medo podia ser expresso.

O medo é uma experiência normal e não precisa ser combatido. Opera como um
estímulo transpessoal para o desenvolvimento da consciência. O medo é até necessário,
pois nos faz buscar recursos para enfrentá-lo.

Florzinha montou uma cena que ilustra bem isso. Na época eu estava
colecionando “geloucos” (monstrinhos florescentes). Havia diversos deles e Florzinha
espalhou-os pelo chão, alguns de costas para nós. Pegou sua lanterna, apagou as luzes
e, sentada em meu colo na poltrona, ia iluminando-os um a um. Seu medo era grande,
encolhia-se em meu colo, apertava a minha mão e tornava a iluminá-los. Na sessão
seguinte, montou a mesma cena, porém desta vez todos estavam de frente e ela não
precisou sentar-se no meu colo. Com a lanterna passou a conversar, a brigar com eles e
até ficou amiga de uns e outros.

Nesta etapa da terapia, a fala surge então na primeira pessoa e sem intermediário.
No decorrer do desenvolvimento da consciência o pensamento mágico (citado
anteriormente) vai dando espaço para o modo mitológico da experiência. As bruxas e
dragões podem ser mortos por figuras heróicas. O pai aqui assume grande importância,
pois servirá como guia para a realização da ordem, independência e autoconfiança.
Nesta mesma época, Florzinha havia solicitado que o pai a trouxesse à terapia e permitia
apenas a sua entrada na recepção, enquanto que a mãe passou a ser limitada à porta do
consultório.

LINGUAGEM DO FOGO

Aqui o recurso do fogo e, conseqüentemente, o acesso à sua simbologia foi


ricamente explorado e vivenciado.

Estávamos entrando na fase final do processo de terapia, aproximadamente no


último semestre. Florzinha já se comunicava com a professora e outros adultos onde quer
que estivesse.

Numa das sessões, Florzinha quis fazer uma fogueira e queimar antigas
bandeirinhas que havia confeccionado no ano anterior e guardado em sua caixa. O brilho
em seus olhos e sua expressão demonstravam a força e o poder do fogo enquanto
purificador. O que não mais servia, o velho, podia ser queimado e abria-se espaço para o
novo.

Em outra ocasião quis utilizar o fogão para fazermos brigadeiro. Que delícia de
sessão! O aspecto do fogo enquanto aquele que aquece e possibilita a mistura, a
integração dos diferentes elementos que servirão de alimento, ficou evidenciado.

Por fim passamos a confeccionar velas. Todo o processo terapêutico pôde ser
simbolizado. Começamos pela quebra da parafina em barra e o seu derretimento, assim
como a quebra das amarras e da rigidez do início. Florzinha passou a experimentar
diferentes cores e formas, como havia feito na linguagem criativa. A transformação e as
misturas mágicas experienciadas eram agora claramente percebidas.

Entre as diversas velas feitas, duas foram reveladoras. Uma que não deu muito
certo, tanto pela forma como pela cor. Florzinha a deixou fora de sua caixa e recusava-se
a aceitá-la; colocou-a em um lugar afastado na sala e ficou sessões sem sequer tocá-la
(literalmente o conteúdo sombrio). Outra foi uma vela que quis enformar numa latinha
com saliências que impediam a retirada da vela; mesmo sendo prevenida da possível
dificuldade, quis utilizá-la como forma. Era uma vela que havia levado sessões para fazê-
la, pois, por ser tricolor, era preciso que uma camada esfriasse para colocar a próxima.
Era, portanto, muito especial. Como fora previsto, não havia meio de retirar a vela da
latinha. Florzinha tentou de tudo, inclusive recorreu às ferramentas de seu pai. A cada
sessão vinha com uma ferramenta diferente para tentarmos cortar a latinha e... em vão.
Estávamos diante de um impasse: como retirar a “casca” sem danificar o interior?
Sabíamos, porém, até mesmo por experiência própria, que forçar de nada adiantava. Por
fim aceitou a alternativa de derreter a vela e enformá-la em outro recipiente. O fogo
possibilitou uma nova transformação e com a mistura das cores surgiu uma tonalidade
totalmente inesperada, mas ainda assim bonita. A vela pôde ser desenformada inteira,
intacta e, sua beleza inédita, apreciada. Assim foi o processo de Florzinha, uma menina
superpoderosa, de especial beleza e riqueza, mas que para ser apreciada integralmente
precisou ser respeitada e passar por transformações a princípio sequer vislumbradas.

E aquela vela sombria? Na penúltima sessão, foi selecionada entre os materiais da


caixa lúdica que gostaria de levar consigo. Os aspectos da sombra também puderam ser
integrados.

LINGUAGEM DO AMOR

Foi com amor que “a minha criança interior” pôde ser acessada nos diferentes
momentos, quer para me divertir como em um parque de diversões nas brincadeiras de
aventura, quer para respeitar e entender o medo e o sofrimento que Florzinha trazia em
situações cruciais. Através desta criança é que o estar junto foi possível.

Amar a criança até que para mim não foi difícil, mas, como já disse Jung, é preciso
muito amor para olharmos para a sombra. Esta constelou-se no momento em que a
psicóloga da escola, psicanalista, aconselhou os pais procurarem outra terapeuta, pois,
afinal, após um ano de terapia Florzinha ainda não falava com adultos e sequer eu havia
diagnosticado a causa traumática. O meu lado sombrio, possessivo e autoritário, rugiu
como um leão diante da presa e em defesa de seu território. Reconhecer estes aspectos
e acolhê-los possibilitou que eu os reelaborasse. Foi possível entender a postura da
psicóloga da escola, não como uma ameaça, mas como um ponto de vista diferente o
qual exigiria um diálogo. Afinal, eu só havia falado com ela no período inicial e na
devolutiva do psicodiagnóstico. Ela não tinha qualquer informação sobre o andamento do
processo. Tivemos a conversa, coloquei clara e calmamente os meus pontos de vista
teóricos, prestei-lhe os devidos esclarecimentos e me coloquei à disposição sempre que
ela achasse necessário. Isto bastou para que ela não mais interpelasse os pais com
cobranças e encaminhamentos.

Um último aspecto que gostaria de destacar, dentro da linguagem do amor, é o


quão importante é a aliança com os pais num atendimento infantil. Eles também precisam
ser acolhidos, já que o processo os envolve e, assim como a criança e a terapeuta, eles
também são tocados e mobilizados. Acolhê-los mesmo diante da fala de interromper a
terapia quando Florzinha “regrediu”, não querendo ir à escola (na mesma época da
linguagem dos instintos); ou quando as resistências emergem e as dificuldades
financeiras passam a surgir como obstáculo. A força desta aliança dá-se somente através
da confiança e do cuidado amoroso estabelecido nesta delicada relação.

Referências Bibliográficas

JUNG,C.G. A prática da psicoterapia. O C. vol. XVI. Petrópolis: Editora Vozes, 1988.

LELOUP, JEAN-YVES. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. Petrópolis:


Editora Vozes, 1998.
VON FRANZ, MARIE-LOUISE. Psicoterapia. São Paulo: Paulus,1999.

WHITMONT, EDWARD C.A busca do símbolo. São Paulo: Cultrix, 1994/95.


OLHANDO POR DENTRO DO MITO1
Paulo Toledo Machado Filho2

Embora a base teórica que orienta a minha prática profissional, ou seja, a visão
integrativa fisiopsíquica com enfoque junguiano, não se refira exatamente à procedência
formativa dos participantes deste Encontro de Fenomenologia, entendemos, no entanto,
existirem paralelos entre a psicologia de Jung e a fenomenologia que nos autoriza a
contribuir com algumas reflexões à temática proposta. Dentre estes paralelos, assinalo o
aspecto “instaurador”, construtivo ou ampliativo das hermenêuticas fenomenológicas e da
referida psicologia, que, conforme Jung (1981), são metodologicamente orientadas do
individual para disposições coletivas, ou seja, realizando amplificações, em oposição ao
método redutivo, que caracteriza a psicanálise ou a psicologia do comportamento, por
exemplo. Estas últimas, retrocedem “do individual para disposições fundamentais ou fatos
genéricos” (Jung, 1981: 490-539), procedendo à redução do significante a dados objetivos
de análise. Neste sentido, na perspectiva das “hermenêuticas instauradoras”3, se tomarmos
como exemplo o símbolo, verificaremos que ele não esgota o seu sentido, não recebendo o
tratamento de signo (não sendo “reduzido” ou considerado um elemento semiótico),
circunstância em que expressaria apenas uma forma econômica na maneira de se
representar o objeto. Ao defini-lo, Jung descreve o símbolo como constituindo-se “na melhor
designação possível para um estado de coisas relativamente desconhecido mas que se
reconhece como existente ou como tal é reclamado” (1981:542) e que não se saberia
designar de modo mais claro ou característico, ou seja, remetendo-nos para adiante de seu
conteúdo manifesto. Desta forma, estas teorias de conhecimento estabelecem uma relação
compreensiva na análise dos fatos e dos conceitos (para Kant, organizações instauradoras

1
Palestra realizada pelo autor no IV Encontro de Fenomenologia, realizado em 22/10/1994, na PUC – São
Paulo. Trata-se de uma reflexão sobre a fenomenologia do mito, verificando-se as suas várias definições, suas
correlações com as noções de imagem primordial e arquétipo, conceito de cura sagrada e a compreensão
mítica dos fenômenos de tempo e espaço. O autor mantém a estrutura acadêmica do texto, conforme foi
apresentado, na época, à coordenação do Encontro de Fenomenologia.
2
Psiquiatra e Psicoterapeuta Junguiano, Mestre em Ciências Sociais pela USP. Professor do curso de
Especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais – Instituto Sedes
Sapientiae.
3
Expressão utilizada por Gilbert DURAN (1988:57), derivada do pensamento de Kant, referindo-se às teorias
de conhecimento que não procedem a reduções, como a própria filosofia de Kant, a psicologia junguiana e a
fenomenologia poética de Bachelard, por exemplo.
da realidade, na referência de Durand), assim percebendo a ciência, as artes, a mitologia, as
religiões, etc.
Através desta visão instauradora e compreensiva, portanto, faremos algumas
considerações sobre um tema que começou a interessar a Jung quando este começou a
investigar a dementia praecox através da observação clínica de alguns de seus pacientes –
o mito, e culminou com a proposta de uma das hipóteses fundamentais de sua psicologia,
que é a noção do inconsciente coletivo. Jung percebeu, durante estas observações, que
determinados conteúdos do delírio daqueles pacientes faziam algum sentido quando
confrontados analogicamente a certos temas míticos, muitas vezes estranhos à procedência
cultural do indivíduo; esta mesma situação pode ser verificada posteriormente na análise dos
conteúdos oníricos de outros pacientes, assim como também na produção criativa de muitos
artistas e poetas, em reforço à sua hipótese. O que Jung percebeu foi que, embora
inconscientes, os mitos continuavam presentes na psique do homem moderno.
Curiosamente, a atenção relativa aos mitos parece ressurgir na atualidade,
justamente quando a humanidade atinge um elevado grau de racionalismo e assepsia
intelectual, como se comprovando que esta nunca deixou de necessitar em seu íntimo de
uma vibração que traga um sentido transcendente, que ultrapasse a ordem das explicações
racionais possíveis, à experiência de viver. Em vista deste atual interesse, portanto, é que
orientaremos nossas reflexões acerca do mito, tentando perceber como ele modela e orienta
a realidade vivida pelas pessoas e como ele se insere como elemento reconhecidamente
importante em certos procedimentos culturais, como por exemplo nas ações de cura
sagrada, condição esta que assinala sua pertinência e presença na estrutura psíquica dos
seres humanos.
Um dos interesses da filosofia sempre foi o de compreender filosoficamente os
conteúdos da “consciência mítica”, observando-se que o pensamento mítico, fundado em
imagens e coreografado através dos ritos, predominou na humanidade antes de ocorrer uma
diferenciação nos planos de consciência, de ordem mais simbólica e coletiva, nas chamadas
sociedades arcaicas, para uma perspectiva mais individualizada e racionalista, pelo menos
na cultura ocidental. Dentre estes conteúdos, citamos o problema das “origens”, conforme é
assinalado por Cassirer (1972). O autor referido afirma que o pensamento filosófico, em seu
princípio, hesitou entre uma concepção mítica e uma concepção estritamente filosófica do
problema de origem. Reportando aos antigos filósofos gregos, Cassirer verifica a
ambigüidade destes ao considerar o conceito de ARQUE (princípio). Este conceito
estabeleceria a fronteira entre o mito e a filosofia; constituir-se-ia, em sua referência, “no
ponto indiferenciado e de passagem entre o conceito mítico de começo e o conceito
filosófico de princípio”, entre a concepção de origem atribuída ao mundo de forças e deuses
míticos e aquela orientada pelo logos, que passaria a considerar o “princípio” como uma
produção autônoma. É quando o pensamento filosófico começa a sobrepor-se ao
pensamento mítico, embora este permaneça ainda estreitamente vinculado ao senso
comum, “à realidade empírica dos fenômenos, à realidade da natureza” (Cassirer, 1972: 15-
17). Neste primeiro momento, portanto, assinalamos a relação entre o mito e o conceito de
princípio ou “origens”, conforme a filosofia grega, em seus primórdios, o percebeu.
A importância da noção de princípio está atualmente impressa na medicina,
como método de pesquisa, através da anamnese (reminiscência, recordação desde o
princípio do processo da doença) e na psicanálise, como o próprio método de cura, através
da rememoração e reintegração de conteúdos inconscientes ao consciente, de forma que a
vida adquira um novo significado e possa transcorrer de forma mais satisfatória, do mesmo
modo que nos antigos rituais de cura sagrada, que eram acompanhados pela recitação e
compreensão do mito cosmogônico, o mito que falava sobre as origens e que colocava o
indivíduo em contato com o poder das forças primordiais. Podemos deixar sugerido que
tanto para a atual ciência médica como para a psicanálise, os pressupostos que assinalam a
importância da “origem” podem também constituir-se em mitos, mesmo que racionalmente
justificados ou transmutados.
Na intenção de verificarmos este instrumento, o mito, tentaremos fazê-lo
compreendendo-o no modo como se apresenta ao ser humano, particularmente nas
referências em que se apoia relativas ao tempo e espaço. Antes de prosseguirmos, no
entanto, vamos examinar algumas tentativas que se fizeram em defini-lo. Em linguagem
corrente, não é incomum observarmos o emprego do termo mito referindo-se a “fantasia” ou
“fantasioso”, “invenção”, “ficção”, “mentira” ou outra qualquer imagem despojada de valor.
Mas não é de hoje que esta noção apresenta um caráter ambíguo ou mesmo equívoco.
Eliade aponta que já os mesmos gregos vinham despojando o mito (mythos) de valor
religioso e metafísico. O mythos foi contraposto ao logos (conforme verificamos acima) e
posteriormente à história, definindo tudo o que não podia de fato existir (Eliade, 1986: 8).
Atualmente, certas tendências dentro da etnologia tendem a aplicar ao mito o mesmo
tratamento que a linguística aplica à palavra (estruturalismo), ao reduzir seu valor simbólico
e denotações religiosas e sociais ao seu estrito contexto semântico. Outros autores, no
entanto, como o próprio Eliade e Campbell, por exemplo, colocam-se entre aqueles que
compreenderam ampliativamente a noção de mito.
Para Eliade, o mito “é uma realidade cultural extremamente complexa”, sendo
difícil encontrar uma única definição capaz de demonstrá-lo. Afirma que esta realidade “pode
ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares” (1986:11).
Em sua definição (aquela que ele julga menos imperfeita), Eliade considera o mito como a
narrativa de uma história sagrada, relatando um acontecimento ocorrido no tempo
primordial. Conforme suas palavras:

O mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma


realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmos, ou apenas um
fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma
instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma criação: ele relata de que
forma algo foi produzido e começou a ser. (1986:11)

Desta forma, o mito também nos remete para o campo do sagrado, que na
percepção das sociedades tradicionais, é “o real por excelência”, e falando do sagrado, fala
do que realmente aconteceu, tornando-se, conforme Eliade, solidário das ontologias4.
Campbell assinala o caráter transcendente da mitologia ao referi-la como a
“penúltima verdade”. Afirma que

penúltima porque a última não pode ser transposta em palavras. Está além das
palavras, além das imagens, além da borda limitadora da Roda do Devir dos
budistas. A mitologia lança a mente para além dessa borda, para aquilo que pode
ser conhecido mas não contado. (Campbell, 1990:173)

Para o autor, os mitos são “pistas para as potencialidades espirituais da vida


humana” e são importantes por ajudarem a colocar a mente do homem em contato com a
experiência de estar vivo.

4
Para Eliade (1975:108), “tudo o que pertence à esfera do profano não participa do Ser, visto que o profano
não foi fundado ontologicamente pelo mito”, ou seja, “não tem modelo exemplar”.
Em consonância com os autores referidos, entendo que o mito media a relação
entre a terra e o céu, entre os deuses e os seres humanos, e hoje, entre o consciente e o
inconsciente. Se a experiência do mito não tinge a realidade que atualmente nós vivemos,
Jung ajudou-nos a compreender a sua presença nas dimensões mais profundas de nossa
psique, como elemento organizador de todo material inconsciente, material este que, ao
emergir, constitui-se em indicativo ou orientador desapercebido de quase todas as nossas
ações conscientes. Mais adiante, abordaremos um pouco mais esta questão.
A transcendência que a noção do mito evoca não o exime de funções precisas,
especialmente como um instrumento necessário para a compreensão do mundo e da
existência. Para Eliade, a sua principal função “consiste em revelar os modelos exemplares
de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento,
quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria” (1986:13) 5. Neste sentido e conforme
aponta em outro lugar, através das narrativas dos acontecimentos que se sucederam in
principio “num instante primordial e atemporal, num lapso de tempo sagrado” (1991:53) os
mitos também revelam importantes informações sobre a estrutura do tempo, tal como ele é
experienciado nas diversas culturas.
Jung sugere que os motivos mitológicos principais são comuns a povos e raças
diferentes, nas mais diversas épocas, e estariam relacionados com as estruturas psíquicas
por ele denominadas de arquétipos ou imagens primordiais. Estas estruturas, em sua
constatação, são sempre coletivas e como tal, comuns a povos inteiros ao menos em
determinadas épocas6. Do ponto de vista causal das Ciências Naturais, Jung afirma ser a
imagem primordial “um segmento mnêmico (engrama) produzido pela condensação de
inúmeros processos mutuamente semelhantes” (1981:515); como condensação, trata-se da
“forma típica fundamental de uma determinada vivência psíquica sempre corroborada”, o
que traduz a sua eficiência como motivo mitológico, como “uma expressão que
continuadamente estimula a vivência psíquica ou a formula de maneira apropriada” (no
mesmo texto). Por tratar-se, conforme Jung, de uma “expressão compreensiva do processo

5
Eliade afirma que, para um objeto ou ação tornarem-se efetivamente “reais”, exige-se que eles imitem ou
repitam um arquétipo, ou seja: “a realidade só é atingida pela repetição ou pela participação: tudo o que não
possui um modelo exemplar é desprovido de sentido, isto é, não possui realidade” (1985:49).
6
Embora ambos empreguem a mesma denominação (arquétipo), na referência de Jung a expressão é utilizada
para definir uma estrutura psíquica e que corresponde (psiquicamente) à imagem primordial; Eliade faz uso da
mesma expressão para referir-se ao gesto paradigmático (ou exemplar), que a noção do mito evoca.
vital”, o arquétipo possui um caráter ordenador e vinculador, orientando a energia psíquica
(que são forças naturais) para as formas espirituais.
O meu saudoso mestre, Pethö Sándor, assinalava a importância de se reaver a
capacidade de lidar com imagens para uma consciência unilateralmente desenvolvida
(1974:101-102). Os métodos de relaxamento foram então por ele sugeridos como um
recurso que permite a evocação destas imagens, num estado de consciência receptiva.
Compreendemos que a importância de tais procedimentos terapêuticos encontra-se também
na possibilidade de se “remitificar” a consciência do indivíduo, entendendo-se que “reaver a
capacidade de se lidar com imagens” (no mesmo texto) corresponde ao reencontro de
modelos (mitos = modelos exemplares) que orientem a elaboração destas.
Até este ponto, encontramos o mito relacionado com a origem dos tempos (illo
tempore) e como estando por trás de todas as realidades, como modelo exemplar e como
motivo comum em lugares e épocas diversas, transcendente na medida em que nos remete
para o campo do sagrado (separando o sagrado do profano), sendo que psiquicamente
manifesta-se como uma expressão coletiva e que, conforme ainda verificaremos mais
aprofundadamente, aparece deslocado das referências lineares de tempo e tridimensionais
de espaço. As visões de mundo, que variam de uma civilização para outra e correspondem a
“realidades”, não são percebidas da mesma forma em todas as culturas, como por exemplo
as vivências do tempo e espaço. A percepção que o homem histórico tem destes é diferente
daquela que a consciência mítica descreve: para compreendermos esta percepção,
necessariamente precisaríamos partir de pressupostos concernentes à realidade tal como
ela foi experienciada através da referida consciência mítica.
Poderemos entender assim que não existe uma única lógica, que nossos
pressupostos não são universais e que o modo como cada cultura apreende a sua realidade
somente pode ser entendido através das referências significativas da cultura em questão.
Encontramos os mitos ou a mitologia de cada povo por trás destas referências ou
constituindo-se nos próprios elementos significativos, de forma que através do entendimento
destes podemos nos aproximar da percepção de sua “realidade”. Examinemos a seguir
como, através do mito, as noções de espaço e tempo podem ser compreendidas.
Tempo mítico

Em seu livro Tempo e Religião, Rehfeld (1988) refere-se às duas dimensões


através das quais a humanidade percebe simultaneamente cada evento, ou seja, a
dimensão externa, que diz respeito ao espaço ocupado, e a dimensão interna, que diz
respeito ao tempo em que se sucedem as fases em progressão. O autor assinala que
atualmente a física quântica não considera as duas dimensões separadamente, falando-se
num continuum quadridimensional que reúne o espaço e o tempo “num modo único de
apercepção da realidade”, considerando-se que “a sucessão temporal se dá dentro do
espaço e o espaço é percorrido dentro do tempo” (1988:40), como duas dimensões
complementares.
Curiosamente, esta mesma correspondência entre tempo e espaço também é
encontrada em muitas outras referências religiosas ou míticas. O próprio Rehfeld observa
esta relação, exemplificada com a origem etimológica da palavra templo. Esta palavra (que
refere-se ao “santuário da divindade num determinado espaço”) origina-se, assim como
tempo (“determinada porção da duração do dia”) da palavra grega témenos (que é uma
gleba separada de terra). A temenos, segundo o autor, “parte separada de terra”,
corresponde tempus, “parte separada do céu em que se encontra o Sol durante
determinada parte de duração do dia” (1988:41). Usener, citado por Eliade, também explica
a correspondência etimológica entre templum e tempus, exprimindo o primeiro o espacial e o
segundo o temporal, constituindo-se o conjunto numa “imagem circular espaciotemporal”7.
Um pouco antes, no mesmo texto, Eliade menciona a natureza religiosa da
solidariedade cósmico-temporal, em que “o Cosmos é homologável ao Tempo cósmico” (que
corresponde ao “Ano”), porque ambos são realidades sagradas ou criações divinas, nas
concepções mítico-religiosas de diversos povos. Cita o exemplo de determinados grupos
norte-americanos, como os Algonkin e os Sioux, em que o Templo, que representa uma
imago-mundi, investe-se também de um simbolismo temporal (1975:86-86). A cabana
sagrada destes povos, segundo Eliade, possui quatro portas e quatro janelas que
simbolizam as quatro direções cardeais, forma como é concebido o Ano. Para os Dakota, o
Ano também é concebido como “um círculo em volta do mundo”, que Eliade afirma querer

7
Usener, Hermann. Götternamen, Bonn, 1920, p. 191 e segs., citado por Eliade (1975:87).
dizer “em volta de sua cabana sagrada, que é uma imago-mundi”. Ainda na América do
Norte, o autor cita os Yokut (1975:85), que utilizam a mesma expressão para designar
Mundo e Ano, de forma que quando dizem que “o mundo passou”, estão querendo dizer que
o ano acabou.
O tempo sagrado difere do tempo histórico pela linearidade e irreversibilidade
deste; os eventos se sobrepõe e criam elementos fixos através dos quais são assinalados,
conforme o deslocamento do tempo. O tempo sagrado, ao contrário, reevoca periodicamente
os eventos primordiais (as teogonias ou cosmogonias) que orientam a experiência de vida,
baseando-se este (o tempo) na mitologia que modela as crenças e práticas rituais de um
determinado povo. O tempo sagrado possui uma característica circular, sendo assinalado no
calendário pelo conjunto de festas ou comemorações que rememoram os acontecimentos
significativos e que tornam presente o tempo mítico primordial.
O homem religioso vive, na realidade, as duas espécies de tempo, sendo que o
tempo sagrado é o tempo verdadeiro através do qual ele “renasce” periodicamente e
encontra o sentido que o fugaz tempo profano não possui. O tempo profano são os hiatos
entre as datas que assinalam a recuperação do tempo.
Eliade compreende o comportamento do homem religioso em relação ao tempo
através de dois elementos considerados principais: a regeneração do tempo e a
solidarização com o illud tempus (1975:92). Simbolicamente, o homem coloca-se em contato
com as forças vitais presentes no instante do surgimento da vida, o que equivale a um
processo de purificação, de reencontro com sua substância espiritual. No exemplo do ritual
do batismo, que assinala mais adiante (1975:142) e também em outros textos, verificamos
esta situação, que “equivale a uma morte ritual do homem antigo, seguida de um novo
renascimento”, equivalendo, no plano cósmico, ao dilúvio, que simboliza “a abolição dos
contornos, fusão de todas as formas, regresso ao amorfismo” (1985:74).
Existem muitas outras circunstâncias coletivas onde encontramos a noção de
regeneração do tempo e que traduzem a idéia de reinício ou renascimento: a coroação de
um novo rei, a celebração de um casamento, o nascimento de uma criança, a chegada da
primavera (quando os campos são semeados), o ciclo lunar e outras situações que tanto
podem envolver o relacionamento entre os homens como entre os homens e a natureza.
Mas uma das circunstâncias mais exemplares são os rituais de cura dos povos primitivos,
que Eliade nos informa requererem um elemento essencial: a recitação do mito
cosmogônico. Através deste procedimento, o paciente é deslocado para além do tempo
profano e inserido junto às forças primordiais; esta evocação e reiteração do mito de origem
mobiliza as forças curativas internas do paciente, restituindo-lhe a saúde e a vida, que
ressurge remitificada. Em outro local, pudemos demonstrar analogicamente a relação “ritual”
existente entre a psicoterapia e a cura sagrada (Machado Filho, 1994:110-141).
Observaremos a seguir que a experiência de cada povo relativa ao tempo
sugere determinados pressupostos que estariam embutidos na mitologia de sua cultura.
Entre os chineses, por exemplo, existe uma noção qualitativa do tempo (que eles
denominam che). O tempo constitui-se num conjunto de sopros ativos produtores de vida e
inicialmente foi assinalado pela sua qualidade. A este respeito, refere-se Larre:

(...) Sabia-se apreciar a qualidade do tempo, tal como se fazia com o chá,
o papel, a seda, as mil comodidades da existência. O tempo vinha, passava e
voltava. O tempo do galho de ameixeira, do caule de bambu, da folha de bordo,
da ramagem do pinheiro, o tempo do grito agudo do ganso cinzento, do canto
suave do verdelhão, do grito da cordoniz. Tantos sabores e perfumes, misturando-
se à consciência, marcavam qualitativamente o tempo. (1975:42)

Estes atributos qualitativos do tempo (que também pode referir-se a uma


estação, dia, hora ou minuto) até hoje são associados ao caráter che, evocando o tempo
tanto em seu sentido mais geral como no mais preciso, mas ainda assinalando-o em sua
natureza qualitativa.
Nas tradições indianas, o tempo geralmente é uma percepção ilusória da
consciência encarnada, “é uma manifestação do estado de ignorância que desaparece no
estado de sabedoria”8; mas ele também é compreendido como um poder cósmico que se
relaciona estreitamente com a ação ritual, não existindo um sem o outro. Pannikar (1975:73-
101) afirma-nos que o tempo seria então o fluxo temporal dos seres ou a continuação dos
entes na existência, ação esta realizada conjuntamente entre os homens e os deuses
(constituindo-se assim em um produto teândrico), que nasce com o sacrifício (do purusha,
no Rig-Veda ou prajapati, nos Brahmanas, a essência cósmico-espiritual do homem) e pelo
sacrifício é novamente destruído, o que estaria na origem dos cultos. A cessação deste fluxo

8
Bhartrhari, Väkyapadîya, II, p. 233, cit. por Pannikar (1975:74).
eterno é uma das buscas das filosofias religiosas indianas, sendo que através de
determinados exercícios psicofísicos, o místico hindu (o iogue) procura a compreensão e a
iluminação através da qual descobre o milagre da superação ou saída do tempo, quebrando
o invólucro do ovo cósmico que o separa do eterno intemporal (Eliade, 1991:72). Já sob a
influência do budismo, considera-se o instante como o único aspecto verdadeiramente real
do tempo, constituindo-se na própria vibração da consciência. É através do instante (tempo
sutil) que se penetra na realidade atemporal.
Na cultura bantu, o tempo não existe enquanto não for assinalado por um fato
concreto. Este fato pode ser um evento mítico (um fato pré-existente), um evento
relacionado com o homem (um reinado, um mandato, por exemplo) ou com um fenômeno da
natureza, que marca ou sela o tempo, que é o tempo deste evento (Kagame, 1975:114).
Os judeus teriam sido o primeiro povo a estabelecer uma relação histórica (ou de
“Aliança”) e não mais mítica entre Deus e o mundo que criou, o que implicou na imanência
(onipresença, penetrando o Universo em toda parte) e transcendência concomitante de
Deus em relação a este mundo. A Sua transcendência provém do fato, conforme Neher, “de
que nada do que é criado é contemporâneo de Deus”, existindo uma absoluta exterioridade
Deste em relação à Sua criação. A criação realiza-se no tempo histórico e desaparece
quando esta é finda, “restando Deus em seu não-tempo” (1975:180). Na concepção bíblica
do tempo, a história é valorizada pelos próprios profetas, ultrapassando-se a concepção
cíclica e descobrindo-se um tempo com sentido único. Para Eliade, entre os judeus, a
própria história é considerada uma teofania, concepção esta que persiste no cristianismo,
embora retomada de um outro ponto (1985:117-120).
Apesar de algumas tradições não conceberem a noção de tempo sem vinculá-la
à noção de espaço, é principalmente na questão do ritual que ambas se encontram.
Obrigatoriamente realizado em um espaço consagrado (homologado ou sagrado), o rito
caracteriza-se pela repetição, neste local interdito, do gesto exemplar que reevoca as
sagradas forças primordiais. Para se transportar através do “tempo” do ritual, ultrapassa-se o
espaço profano adentrando-se no espaço regido pelo mito. A experiência do tempo no
interior deste espaço é própria do processo ritual e muitas vezes é dificultosamente descrita
pelo homem religioso, quando este não encontra referências externas ao rito para descrevê-
lo.
A transitoriedade e a inefabilidade (ausência de palavras que descrevam uma
dada experiência) além de alusões a uma atemporalidade são aspectos relativos ao tempo
descritos por muitos místicos que experienciaram o êxtase, como é o exemplo de Santa
Teresa e São João da Cruz, ao se referirem à progressão dos estados místicos. Outros
extáticos, como os xamãs, deslocam-se do tempo e espaço comuns e, através do êxtase,
submergem completamente no universo mítico. Na mística oriental, encontramos na yoga
(conforme já nos referimos acima) uma modalidade de exercícios psicofísicos que objetivam
abolir as diversas categorias de experiências (inclusive do tempo), substituindo-as por uma
experiência contemplativa, extra-racional e suprassensorial, que possibilita o revelar-se do
si-mesmo (purusha) e a obtenção da imortalidade. As experiências acima descritas são
dificilmente compreendidas através de pressupostos racionais e correspondem a Estados
Especiais de Consciência (EEC), conforme verifiquei em minha tese de mestrado (Machado
Filho, 1994:53-81).

Espaço mítico

Em minha tese de mestrado discuti amplamente a noção do espaço mítico,


ressaltando os aspectos da não-homogeneidade deste espaço, conforme a descrição do
filósofo alemão Cassirer e a ênfase dada por Eliade, e de sua função organizadora
(enquanto espaço consagrado) do ritual.
Como pudemos verificar, então, o espaço mítico (ou “a noção mítica do espaço”)
é definido provisoriamente por Cassirer como um espaço intermediário entre “o espaço
sensível da percepção e o espaço do conhecimento puro”, que também denomina-se como
o “espaço da intuição geométrica” (Cassirer, 1972:109).
O espaço geométrico (ou “Euclidiano”) define-se por três critérios considerados
fundamentais, que são a continuidade, o infinito e a homogeneidade. Este espaço é
contraditório com a percepção sensível, que não capta a noção de infinito.
O espaço intuitivo do mito possui tonalidades características (inversamente à
homogeneidade do espaço geométrico) “em cada lugar e em cada direção”, que conforme
Cassirer, “nos reenvia à acentuação fundamental própria ao mito, à distinção do sagrado e
do profano” (1972:111). Esta é a distinção espacial primária que faz o mito, separando a
região sagrada do resto do mundo exterior.
O espaço sensível da percepção (ou o “espaço fisiológico”) distingue-se do
espaço métrico (“Euclidiano”) pela impossibilidade do primeiro “trocar a direita e a esquerda,
a frente e atrás, o alto e o baixo, porque cada movimento em uma dessas direções é
acompanhado de sensações orgânicas particulares” (Cassirer, ibid.). A percepção sensível
capta apenas certos aspectos do espaço, cuja concepção geométrica só permite que seja
compreendido como um todo. Neste sentido, o “espaço fisiológico” assemelha-se (mas não
identifica-se) ao espaço mítico, distinguindo-se este pela “coloração” particular de cada um
de seus pontos, conforme já referimos.
A noção da não-homogeneidade do espaço mítico ou sagrado também é
assinalada por Eliade (1975:35-46), que afirma ser este o único significativo ou real para o
homem religioso, ao contrário do espaço não-sagrado que é caracterizado pelo amorfismo.
Em suas palavras, “a experiência religiosa da não-homogeneidade do espaço constitui uma
experiência primordial, homologável a uma <<fundação do mundo>>. A hierofania,
expressão cara a Eliade e que se refere à manifestação do sagrado, revela um ponto fixo
absoluto que equivale a um “Centro”, e que simboliza a criação do mundo ou uma orientação
prévia que trará sentido à vida. A “cosmicisação” do espaço (ou a organização do mesmo)
corresponde à sua consagração e equipara-se à reiteração da obra divina, ou à repetição da
cosmogonia, e somente neste (espaço consagrado) o sagrado pode manifestar-se. A
seqüência do ritual corresponde sempre ao modo como os deuses organizam este espaço.
Considerando, na seqüência do texto (Eliade, 1975:50), as concepções
religiosas das sociedades tradicionais juntamente com as imagens cosmológicas que lhe
são comuns, Eliade afirma que elas constituem-se em um “sistema”, que denomina “sistema
do mundo” dessas referidas sociedades, e que resume da seguinte maneira:

a) um lugar sagrado constitui uma rotura na homogeneidade do espaço; b)


esta rotura é simbolizada por uma <<abertura>>, por meio da qual se tornou
possível a passagem de uma região cósmica a outra (do Céu à Terra, da Terra ao
mundo inferior); c) a comunicação com o Céu expressa-se indiferentemente por
um certo número de imagens referentes todas elas ao Axis Mundi (pilar, escada,
montanha, árvore, liana, etc.); d) em torno desse eixo cósmico encontra-se o
<<mundo>>, encontrando-se este ao meio, no <<umbigo>> da Terra,

que é o centro do mundo e de onde o homem religioso deseja estar o mais próximo possível.
O corpo como expressão do espaço

As culturas tradicionais estabeleceram também relações interessantes entre o


corpo humano e o espaço. Descrevendo a unidade estabelecida pelo pensamento primitivo
entre o microcosmo e o macrocosmo, Cassirer (1972:117-119) informa-nos que o mundo
muitas vezes era concebido a partir dos membros do homem, ou seja, “o infinitamente
pequeno pode ser reproduzido no infinitamente grande”, como uma “anatomia mágica”. Esta
concordância mítica espacial e física entre o mundo e o homem sugere a unidade de origem
ou das essências, e, correspondendo a esta “anatomia mágica”, há uma geografia ou
cosmografia mítica “que define e descreve a estrutura da Terra segundo a mesma intuição
fundamental”. Este fato é exemplificado com a carta (mapa) das sete partes do mundo que
se encontra no tratado hipocrático sobre o número sete, o qual relaciona a Terra com o
corpo humano: “a cabeça é constituída pelo Peloponeso, o Istmo corresponde à medula
espinhal, o Jônio aparece como o diafragma, ou seja, como o que há de mais interior, o
<<umbigo do mundo>>”. Também é observada a relação existente entre as propriedades
éticas e espirituais dos habitantes de cada região e esta forma de “localização” 9.
Seguindo um raciocínio semelhante, Eliade sempre assinala a correspondência
que o homem religioso (nas sociedades arcaicas) estabelecia entre corpo/casa/cosmos.
Conforme encontramos em seu livro O Sagrado e o Profano (1975: 180-181), a habitação,
como o corpo, é considerada um microcosmo, sendo que o corpo, como o Cosmos, “é em
última instância, uma <<situação>>, um sistema de condicionamentos que se assume”.
Como exemplo para esta homologação, cita o pensamento indiano arcaico, que equiparava
a coluna vertebral ao pilar cósmico (skambha) ou à montanha Meru, identificava os sopros
aos ventos, o umbigo ou o coração ao Centro do Mundo, etc.
No início desta explanação já nos referimos ao templo como uma imago mundi,
concomitantemente representando e contendo o mundo. Eliade (1975:71-74) aponta-nos
ainda uma outra idéia que considera o plano arquitetural do templo como sendo obra dos
deuses, de forma que tal plano o protege de toda corrupção terrestre. A basílica cristã ou a
catedral não se excluem deste simbolismo, sendo que ela é concebida como uma imitação

9
Rorscher, Wilhelm H. Die Hippokratische Schrift von der Siebenzahl, Ab. D. Kön Säch. Ak. D. W., XXVIII, cit.
por Cassirer (1972:118-119).
da Jerusalém celeste (projeção cósmica da cidade de Jerusalém, que teria sido criada por
Deus juntamente com o paraíso). Eis como aparece a descrição da igreja bizantina,
conforme Sedlmayr, na citação de Eliade:

as quatro partes do interior da igreja simbolizam as quatro direções do


mundo. O interior da igreja é o universo. O altar é o paraíso, que foi transferido
para o oriente. A porta imperial do altar denomina-se também porta do paraíso.”
(...) “O meio do edifício da igreja representa a Terra”10.

Dentre as percepções tradicionais do espaço, mencionaremos ainda a


concepção indiana, apresentada pelo Lama Govinda (1960:147-148), onde o Universo é
definido através de duas propriedades fundamentais, ou seja, como movimento, e o espaço
(denominado akasa) onde se produz o movimento. O espaço é onde ocorrem as
manifestações visíveis, sendo que através dele as coisas possuem extensão ou
corporalidade, e sua natureza abrange nossas concepções exteriores de tridimensionalidade
(mahakasa) assim como as dimensões interiores e infinitas do plano espiritual (cittakasa, ou
seja, “espaço da consciência” ou dimensão da consciência). Existe ainda uma outra
dimensão do espaço, situada no plano mais alto da espiritualidade e onde são eliminadas as
dualidades do indivíduo e objeto, que é designada como ciddakasa.
Ainda na Índia, observamos na arquitetura tradicional de seus templos a
configuração da mandala, expressão que quer dizer “círculo” e que também representa uma
imago mundi ou o Centro do Mundo. Na realidade, a mandala indiana é representada por
uma série de círculos, concêntricos ou não, inscritos em um quadrado, sendo que o rito de
iniciação do neófito consiste “em penetrar nas diferentes regiões e ascender aos diferentes
níveis da mandala” (Eliade, 1991:49). A sua concepção é labiríntica e possui a função de
ajudar o iniciando a concentrar-se e encontrar seu próprio “centro”, além de protegê-lo das
forças nocivas exteriores.

10
Sedlmayr, Hans. Die Enstehung der Kathedrale, Zürich, 1950, cit. por ELIADE (1975:74).
Jung e outros seguidores (incluindo-se o exemplo de Nise da Silveira, aqui no
Brasil) observaram o surgimento de formas sugestivas de mandalas na produção onírica ou
criativa de pacientes, geralmente em períodos resolutivos dentro dos processos de
tratamento ou psicoterápico. A mandala configura aqui (do ponto de vista psicológico) o
processo de integração dos opostos e simboliza o Self ou o centro da personalidade.
Em resumo, pudemos destacar que o tempo mítico é o illud tempus ou o tempo
primordial, quando tudo se originou. O espaço mítico é o Centro do Mundo, o espaço não-
homogêneo que somente as formas exemplares do mito podem revelar. O ritual, realizado
no espaço consagrado (que é o espaço do mito), é o processo através do qual o ser humano
é colocado em contato com o tempo original, e por conseguinte, com as poderosas forças
criadoras que nesse tempo se originaram, constituindo-se num reencontro com sua
essência. O contato com estas forças é o que objetivam, por exemplo, os procedimentos de
cura sagrada (que transcorre “dentro” do mito) e que correspondem, assim como os
processos iniciáticos, a um ciclo simbólico de morte e renascimento. Desta forma, a cura
sagrada, como uma iniciação, possui o efeito de trazer um novo significado à vida do
indivíduo.
Através da representação simbólica que se pode fazer do processo de
individuação (no ponto de vista junguiano) como uma espiral, em que os processos
psíquicos vão se repetindo sucessivamente, mas sobrepondo-se sempre num outro e
superior plano de consciência (na medida em que ocorre a integração dos opostos),
podemos visualizar também um tempo “psíquico” que pode caracterizar-se por possuir, além
de uma configuração cíclica, uma progressão ascendente (como a espiral). Neste caso, a
experiência de vida (aquilo que “foi vivido”) do indivíduo subsidia os processos psíquicos
presentes e futuros, na direção dos referidos planos superiores de consciência.
Falando sobre o mito, é muito importante ressaltar o redimensionamento que
este propõe para a experiência de viver. O atual distanciamento de uma “disposição” mítica
referida à consciência constitui-se, talvez, na principal fonte de angústias do homem
moderno. Para o tradicional homem religioso, no entanto, o mundo verdadeiro era aquele
regido por deuses e mitos, e que num processo criativo contínuo atualizava o passado,
transformando o que foi naquilo que é e o que é no que virá a ser. O restante era maya ou
“ilusão”.
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REHFELD, Walter I. Tempo e religião. São Paulo, Perspectiva/EDUSP (Col. Estudos), 1988.
THE NIGHT SEA JOURNEY
Um recorte alquímico
Sylvia Mello Silva Baptista1

Esquinas
Djavan

Só eu sei
As esquinas por que passei
Só eu sei
Só eu sei
Sabe lá
O que é não ter e ter que ter
Pra dar
Sabe lá
Sabe lá
E quem será
Nos arredores do amor que vai
saber reparar
Que o dia nasceu
Só eu sei
Os desertos que atravessei
Só eu sei
Só eu sei
Sabe lá
O que é morrer de sede
Em frente ao mar
Sabe lá
Sabe lá
E quem será
Na correnteza do amor que vai
Saber se guiar
A nave em breve ao vento vaga
De leve e traz
Toda paz
Que um dia o desejo levou
Só eu sei
As esquinas por que passei
Só eu sei
Só eu sei

1
Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, trainee da Sociedade Brasileira de
Psicologia Analítica
Introdução
O meu interesse pelo tema da viagem tem várias vertentes, mas talvez a
mais significativa seja a curiosidade em mim despertada a partir da vivência de
consultório. É um clichê na clínica psicológica que cada psicólogo tem
determinados “tipos” de pacientes que o procuram indicando muitas vezes
temas a serem trabalhados e aprofundados por aquele profissional. Na
psicologia profunda junguiana é totalmente compreensível e possível verificar
que o Self propõe-nos situações para que entremos em contato com
determinados conteúdos que necessitam vir à consciência, e assim
incrementar o crescimento e o desenvolvimento do indivíduo.
Quando observamos coincidências significativas ocorrendo em nossas
vidas, é sempre importante que lhes demos atenção. Na vivência clínica
isso muita vezes se dá na recorrência de temas que os pacientes nos propõem
e que nos permitem aguçar a nossa “antena” além dos relatos pessoais.
Assim, há psicólogos que “curiosamente” atendem, em sua grande
maioria, pacientes depressivos, outros que recebem muitas pessoas com
quadros de fobia, ou outros que têm mais indicações de adolescentes, e assim
por diante. Claro que, para que as indicações sejam de fato instigantes, ou
saiam do plano da simples coincidência, descarta-se o fato de a fonte de
encaminhamentos ser específica, como por exemplo um profissional que trata
de depressão, ou de fobias, ou que trabalha numa instituição para
adolescentes.
Mas o fato é que na minha experiência pessoal, um número significativo
de pacientes que chegava até mim das mais variadas fontes, trazia a questão
da viagem implicada em sua história. Pessoas que forma para fora do país
viver experiências profissionais, pessoas que iniciaram seus processos e em
seguida receberam propostas de mudança de cidade, pessoas que viajam para
vir à sessão. Viagens. Sempre algum deslocamento que diz respeito à
mudança.
O tema começou a fascinar-me pela amplitude que alcança. A própria
psicologia está intimamente ligada à nossa capacidade de “viajar” na mente do
outro, a visitar e descobrir novos territórios da alma humana. Quando falamos
em viagem automaticamente a nossa tendência é de prontidão para nos
transportarmos no tempo e no espaço. A nossa identidade é fruto do
cruzamento dos vetores tempo e espaço. Portanto, por mais cartesiano que
possa soar, a viagem é uma experiência que diz respeito à identidade.
Interessou-me inicialmente olhar para a viagem concreta e a sua possibilidade
efetiva de interferência na construção da identidade e como fator fundamental
no processo de transformação do indivíduo.

A Viagem Concreta
Comecemos por esta alteração espaço-temporal. Quando viajamos
vamos de um lugar a outro num deslocamento espacial que pode se dar de “n”
formas. A mudança de lugar abre sempre a oportunidade de entrada em
contato com algo novo: uma nova cidade, uma nova geografia, um novo país,
uma nova cultura, novos hábitos. Mesmo que se viaje para um lugar já
conhecido, cada experiência é única, e aquela cidade estará modificada: ou
viajou-se na primavera e agora é outono, ou com uma companhia e agora se
está só; enfim, a viagem tem essa propriedade, que é tão humana, de trazer
em si sempre a possibilidade do novo, do diferente, do único.
Mudei de lugar, mudei de rotina. A quebra de rotina é algo fascinante na
vivência do viajante. É muitas vezes o que ele mais busca. E novamente
voltamos ao “novo”, já que sair da rotina nada mais é do que romper com a
monotonia do cotidiano repetitivo.
É interessante notar que o impulso do homem para estabelecer uma
rotina é algo muito intenso, subcutâneo eu diria. Pois, mesmo quando saímos
da rotina conhecida, numa viagem, acabamos por estabelecer uma nova. A
rotina está implicada com o ritmo, com o nosso pulsar na vida e é uma
referência importante que dá suporte à identidade; permite-nos transitar mesmo
no novo, sem que nos esqueçamos de quem somos e onde estamos. É um
fator que nos contextualiza. De qualquer forma, o fato de exercermos o papel
de construtores de uma nova rotina em um novo ambiente é uma experiência
revitalizadora.
Quando se vai para fora do país e pode-se encontrar uma nova cultura,
com diferentes hábitos e valores, o efeito é de um impacto inesquecível. Não
há nada que nos coloque tão em contato com nossa identidade cultural quanto
estar num país estrangeiro. Jung, que fez muitas viagens ao longo de sua vida
(América, Norte e Leste da África, Novo México e Índia) nos dá um depoimento
interessante sobre a necessidade que temos de olhar nossa própria nação de
fora para termos consciência de peculiaridades nacionais:

Nós sempre precisamos olhar de um ponto de vista externo para


pôr em prática a alavanca da crítica. Como, por exemplo, podemos nos
tornar conscientes de peculiaridades nacionais se nós nunca tivermos tido
a oportunidade de olhar nossa própria nação de fora? Olhá-la de fora
significa olhá-la do ponto de vista de outra nação. Através da minha
vivência com muitos americanos, e minhas viagens para e na América, eu
tive uma quantidade enorme de compreensões (insights) sobre o caráter
europeu. Sempre me pareceu que não há nada mais proveitoso para um
europeu do que uma vez ou outra dar uma olhada na Europa do topo de
um arranha-céu. (Jung, 1979, p.149).

Em termos psicológicos trata-se da vivência do diferente. Eu me


reconheço como “eu” a partir da minha experiência com o “outro”. Na viagem o
outro é a nação desconhecida, é o cidadão do lugar, é a culinária típica, é a
música, a dança, o folclore, a paisagem, a forma como a natureza se
apresenta, a língua, as cores e odores, a vestimenta. A todo momento eu me
confronto com os modos de falar, de se comportar, de comer, de trabalhar, de
se relacionar deste outro. Neste confronto, ou encontro, melhor dizendo,
características minhas vão ficando mais evidentes. Já aí, por si só, o gérmen
da ampliação da consciência está presente. Mesmo que o indivíduo não o
busque, basta estar aberto a esse intercâmbio de impressões que a
experiência pode enriquecê-lo.

Viajante ou Turista?
Mas, quem viaja? Para quê viaja? Em que momento da vida viaja? Com
quem viaja? Questões que fazem toda a diferença. Se a viagem é um
transportar-se no espaço e no tempo capaz de repercutir nesse eixo formador
de identidade, quem sou eu, viajante ou turista? Há que se diferenciar. Posto
que a viagem, assumida quase como um ente vivo, tem esse poder
transformador, nem todos os que viajam o fazem por desejarem mudanças ou
ficam atentos a elas. Há quem se recuse a ingressar nessa dimensão do
imprevisto, do inusitado que a viagem traz, e busque garantias de que tudo
continuará igual. Há inúmeros artifícios usados como defesa do receio de se
perder neste percurso. A diferença entre turista e viajante passa por aí. O
estereótipo do turista é o sujeito que sai de seu espaço para conhecer, mas
evita grandes mudanças, tentando ao máximo manter hábitos e rotinas que lhe
são familiares. O objetivo da viagem nem sempre é de fato estar aberto ao
novo. Muitas vezes ele realmente “vive” a viagem ao rever as fotos com os
amigos. Momentos estáticos, flashes que registram sua passagem e ponto. Às
vezes somos viajantes, às vezes, simples turistas.
Se pensarmos na viagem como símbolo da abertura do eu para o
desconhecido, para o outro, o diferente, a flexibilidade do ego, a sua
“porosidade”, nos dirá muito da capacidade de contato profundo, ou não, do
indivíduo com o Self. A vida não deixa de ser uma grande viagem, e essa
imagem já foi usada inúmeras vezes para ilustrar a nossa experiência enquanto
seres humanos neste mundo. Nós, tripulantes de uma grande nave. “Navegar é
preciso, viver não é preciso...” Com que instrumentos eu posso contar para ser
de fato um viajante, e tirar proveito profundamente deste meu caminho?
O olhar é fundamental. E aí se esbarra em outra faceta não menos
instigante. A questão da exposição. Certamente todos já experimentaram uma
certa liberdade que se usufrui ao perceber-se como alguém que não está mais
circunscrito ao seu meio (micro ou macro) social; um cidadão do mundo, e
portanto livre para ser o que se é. É interessante como algumas pessoas se
permitem viver situações muito diversas das que estão habituadas no seu
contexto usual, como se pudessem se experimentar “em outra pele”; brincando
com a possibilidade de serem um personagem da própria história, alterando
muitas vezes esta história.

A Viagem e Os Processos Alquímicos


Gostaria agora de convidar o leitor a transportar-se para uma dimensão
simbólica, e pôr foco numa outra viagem de caráter bastante especial: “The
night sea journey”. A viagem do herói, impelido ao encontro da escuridão num
movimento descendente que o levará ao encontro consigo mesmo, com um
lado luminoso, caso vença “o dragão”.
O herói é uma figura mitológica encantadora pela sua significação
psicológica que nos faz enxergá-lo em nós mesmos em tantos momentos de
nossas vidas. Assim, sempre que há uma situação de vida que envolva risco,
enfrentamento de um perigo ou uma dificuldade, o arquétipo do herói é ativado.
Joseph Campbell (1992), em entrevista ao jornalista Bill Moyers, nos diz que “a
jornada básica do herói é abandonar uma condição, encontrar a fonte da vida e
chegar a uma condição diferente, mais rica e mais madura”. O que há por trás
da tarefa heróica é, sempre, a transformação da consciência.
Jung menciona a “night sea journey” ao compará-la à fase alquímica da
“imersão no banho” (1985, par. 454-455), motivo presente no texto medieval
Rosarium Philosophorum, que trata justamente da imersão no “mar”,
significando do ponto de vista psicológico, solutio, em seus dois aspectos: a
dissolução, ou seja, a submersão do ego na psique inconsciente, mas também
a solução de problemas (este último aspecto atribuído a outro autor, Dorn).
Vejo como curiosa essa possibilidade de leitura desse momento e penso que
poderíamos considerar que nesta viagem – night sea journey –, haveriam
quatro etapas alquímicas envolvidas, ou mais presentes, a meu ver: Solutio,
Mortificatio, Separatio e Sublimatio (que paradoxalmente se aliaria à Re-
coagulatio). A primeira etapa é, pois, a descida aos ínferos que se dá pela
água.

A travessia noturna do mar é uma espécie de descensus ad


inferos (descida aos infernos), uma descida ao Hades, uma viagem ao
país dos espíritos, portanto a um outro mundo que fica além deste
mundo, ou seja, da consciência; é, pois, uma imersão no inconsciente
(JUNG, 1987, par. 455).

Segundo Campbell (1992, p.155), o significado mitológico da Baleia (a


night sea journey nos remete diretamente à história de Jonas e a baleia) é o da
personificação de tudo o que está no inconsciente. Entrar na barriga da Baleia
é entrar no reino da escuridão. Ela é uma criatura da água, e portanto está
imersa no dinamismo inconsciente, que é sentido como perigoso e que tem que
ser controlado pela consciência. A tarefa heróica já se desenha desde aí:
Deixar o reino da luz, do conhecido, do controlado, e dirigir-se até o umbral do
outro reino, o da escuridão. É ali que o monstro do abismo vem encontrá-lo, diz
Campbell. Jung cita Heráclito, concluindo que “Tornar-se água é morte para as
almas”. Pensando no porquê nós enfrentamos essa descida ao Hades,
podemos ver que há ocasiões em que o nosso herói o faz com consciência,
sabendo ser necessário o contato com aquele símbolo para dar continuidade
ao seu processo. Mas, às vezes, ele é impelido a essa entrada, e sua tarefa
heróica parece ser, num primeiro momento, aceitar a sua nova condição de
encharcado em banho de água fria, e aí sim, entregar-se à necessária viagem.
Neumann (1995, p.117) nos lembra que “Ao submeter-se ao incesto
heróico, penetrando no inconsciente devorador, a maneira de ser do ego é
transformada e ele renasce como “o outro”. E há que se frisar, como o faz
Jung, (NEUMANN, 1995, p.122) o caráter regenerador deste “incesto”.
Novamente a imagem da entrada de Jonas na barriga da Baleia vem à mente,
ilustrando o caráter incestuoso de volta ao útero materno; mas o que adjetiva
essa situação como heróica é justamente a sua meta não defensiva e sim de
abertura para o novo, para o imprevisível. Segundo Neumann:

Na luta do herói com o dragão, trata-se sempre da ameaça do


dragão urobórico ao princípio espiritual-masculino, do perigo para este de
ser devorado pelo inconsciente maternal. O arquétipo mais amplamente
disseminado da luta com o dragão é o mito do sol, em que o herói é
devorado todas as noites, no oeste, pelo monstro noturno do mar (...)
nascendo no leste como ´sol invictus´, realizando assim seu próprio
renascimento (1995, p. 126).

Há aí um detalhe interessante, que gostaria de ressaltar. Ao entrar no


reino da escuridão, a luz com que o herói terá que contar como guia terá de ser
gerada de seu próprio interior. Tal qual Tirésias, que na sua cegueira concreta
fez-se vidente, terá que confiar numa iluminação de outra ordem; terá que
acreditar que “há luz no fim do túnel”, terá que se deixar conduzir com os olhos
da alma.
Após a entrada nesta viagem, passamos à etapa seguinte, talvez a mais
difícil delas, a mortificatio. Ela diz respeito ao suportar para transformar.
Segundo Edinger, “Em termos psicológicos (...) o suportar consciente da treva
e o conflito entre os opostos nutrem o Si-mesmo” (1995, p. 182). Chamo
atenção ao fato de a consciência estar presente. Caso contrário, a solutio em
que o ego estava envolvido causaria apenas, e tragicamente, dissolução. O
fermento da transformação é a consciência. Não se trata da compreensão
intelectual do que se passa. Aqui estamos no terreno dos paradoxos:
Compreensão, e sofrimento e dor; desprezado e valioso, desespero e fé;
fragilidade e força; nada e tudo; inconsciência e consciência; morte e
renascimento. “A mortificatio é experimentada como derrota e fracasso.
Desnecessário dizer que raramente alguém opta por ter essa experiência.”
(Edinger, 1995, p. 189). Ao lado disso: “... A origem e o crescimento da
consciência parecem estar vinculados de maneira peculiar à experiência da
morte” (Edinger, 1995, p. 185). Não é à toa que Edinger lembra de Jó ao
comentar sobre a consciência deste em relação à sua impotência frente a
morte, fazendo de sua mortalidade, ao mesmo tempo, sua fraqueza e sua
força. Digo que não é à toa, porque nesta parte da travessia em que se adentra
a escuridão, a paciência é uma grande virtude a se ter como aliada.
Diz Jung:

Patientia et mora (paciência e lentidão) são indispensáveis nesse


trabalho. Temos que saber esperar. Há trabalho suficiente com a
elaboração dos sonhos e dos demais conteúdos inconscientes. (1987,
par.466)

À mortificatio diz respeito um tempo desacelerado, que requer a


paciência da entrega, da permanência na dor e no silêncio, no recolhimento,
tão difíceis para nós que identificamos o trabalho, seja ele interno ou externo, à
ação. No escuro, o sentido da visão torna-se de menor valia, e há que se
escutar mais do que ver. São quarenta dias de provação, lembra Jung (1987,
par.512) citando um alquimista inglês, John Pordage , para que só aí a
semente da vida desperte. Há uma quarentena necessária, uma passividade
maior que se impõe ao ego neste período. Supera-se a morte pela firmeza, ou
pela persistência, no sentido chinês contido no livro sagrado I Ching.
É bom que não nos esqueçamos que “a sensação de sofrimento e de
perda é tão forte que, pelo menos à primeira vista, não parece compensar o
ganho criador” (Neumann, 1995, p. 94).
Maria Zélia Alvarenga descreve a noite do herói numa cena belíssima e
dramática:

(...) Porém à noite, quando o herói adormece dentro da alma,


usufruindo do repouso merecido, o eu descobre que “se comprometeu”
demais em fazer coisas “impossíveis” e o desespero vem. O eu “dentro”
do corpo se dobra e se encolhe sobre si mesmo tentando diminuir o
espaço ocupado pela ufania do herói. O pranto silencioso, no escuro do
quarto, povoa a noite. O desejo de ter um colo que o segure e não o deixe
partir o atormenta.” (1999, v.17, p.51)

É nesse ponto que começamos a adentrar o terreno da Separatio.

Com a existência do ego e da consciência não apenas surge a


solidão, mas também o sofrimento, o trabalho, a penúria, o mal, a doença
e a morte, na medida em que são percebidos pelo ego. O ego que se
sente solitário e, simultaneamente com a descoberta de si próprio,
percebe também o negativo e o relaciona consigo mesmo, estabelece
uma conexão entre as duas situações e interpreta o seu nascimento como
culpa e o sofrimento, a doença e a morte como castigo. (Neumann, 1995,
p.94)

A compreensão da descida aos ínferos e de sua necessidade neste


ponto do processo não elimina a dor e a descrença de que haja afinal algum
sentido em tudo o que se passa, na vivência de dissolução e morte, de treva e
agonia. A experiência de se ir até o seu limite denuncia as fronteiras do terreno
da Separatio, onde os limites dos opostos passam a ser lentamente “de-
limitados”, e assim alguma ordem começa a se esboçar no caos. “Morremos na
medida em que não nos distinguimos” (Edinger, 1995, p.221). Todos os mitos
de criação trazem a separação como elemento fundador. O mito do herói
também fala de uma diferenciação que aponta para o indivisível, para o
indivíduo, para o singular que se destaca do coletivo. Não nos esqueçamos
que o propósito maior por trás dessa viagem é a individuação, e, portanto, o
herói há que se “des-cobrir”. E descobre-se quem se é, sendo, vivendo,
navegando. É do vislumbre desses paradoxos que vai se percebendo que “tudo
já aconteceu e ainda está por acontecer. Tudo está morto e ainda está por
nascer” (Jung, 1987, par. 529). Começa-se a distinguir que o que morre são
valores antigos para dar lugar a novos valores.
O movimento de elevação da saída do herói do mundo das trevas em
direção a uma nova luz, a um novo dia, a um despertar, nos sugere a
Sublimatio. Na verdade, no encadeamento das etapas alquímicas que Jung
nos apresenta, a Sublimatio é anterior à Mortificatio, que por sua vez é anterior
à Separatio. A idéia aqui é justamente nos permitirmos pensar uma nova ordem
neste olhar específico à night sea journey, e à elevação da sublimatio, eu
acrescentaria uma etapa que poderíamos chamar de re-coagulatio. Na
realidade o termo é usado por Edinger quando este alerta para conteúdos
arquetípicos que são incorporados ao ego, ou seja, coagulados, de forma
distorcida. Há que se recorrer a um processo de destruição e re-coagulação
sob circunstâncias mais favoráveis (1995, p.116). Esta é a base do trabalho
analítico. O que fazemos nós analistas, que não propor re-coagulações aos
nossos pacientes, reescrevendo com eles a sua história, reinventando seu
passado e seu futuro? Na emergência do herói renovado, a sublimatio eleva ao
sublime, mas pede a corporiedade da coagulatio para a encarnação dos
elementos nascedouros.
Ainda a respeito desta elevação, Neumann nos esclarece:

O mito do herói (é) o mito da autotransformação. (...) O caminho


para isso varia, (... mas) o objetivo é sempre o homem superior, a
conquista da parte espiritual, luminosa e celeste.”; e conclui: “O mito do
herói só se cumpre quando o ego se identifica com esse Self, ou seja,
quando no momento da morte do ego, o apoio celeste se realiza como o
seu próprio nascimento divino. Somente essa situação paradoxal, em que
a personalidade experimenta a si mesma simultaneamente morrendo e
autogerando, leva ao nascimento genuíno do homem dúplice
integralizado. (1995, pp. 186-188)

Conclusões
A reflexão sobre essas questões levaram-me de volta a um texto que me
foi especialmente significativo em uma night sea journey por que passei
recentemente, e do qual retiro apenas algumas idéias para incrementar esta
visão. Nilton Bonder, um rabino do Rio de Janeiro, em seu livro A Alma Imoral,
trata, entre outras coisas, da necessidade de o homem transgredir além de
reproduzir. Une pares de opostos como corpo e alma, traidor e traído, e afirma
que “achar-se é construir identidades e desfazer-se delas”. Fala da “traição” do
ponto de vista da alma, como algo necessário, na medida em que “promove
mudanças e mutações e expõe a necessidade de um novo ‘bom’ e a
subseqüente busca de um novo ‘correto’ ”. Enfatiza, assim, que “o verdadeiro
grande crime do ser humano é que ele pode dar-se ‘uma simples volta’ a
qualquer momento, mas não o faz” chamando atenção à nossa possibilidade
permanente de reorientação na (e da) vida.

O Messias que tanto esperamos, e que sistematicamente


crucificamos, está vivo em nós esperando a paz da convivência de duas
características antagônicas que nos compõem. A relação entre a tradição
e a traição tem um papel fundamental nesse esforço. (Bonder, 1998, pp.
69;80-81;118)

A partir destas colocações vemos que o autor toca na questão dos


paradoxos, das polaridades de que somos feitos, do Self e de sua
intencionalidade que nos impulsiona a um movimento de crescimento, a uma
viagem para dentro de nós mesmos, onde a ´traição´, a transgressão do que
está posto e paralisado clama por atualizar-se e fazer-se transcendência. Tal
traição é arquetípica, uma vez que desde o Jardim do Éden foi ela que abriu a
porta para a luz, a lucidez, a consciência, o insight. Falando de uma
perspectiva religiosa, Bonder nos traz também para perto da trajetória do herói
que temos em nós.
No entanto, para que esse trajeto se faça de forma fértil, há que se abrir
para a viagem. No processo analítico – uma longa viagem a dois – a night sea
journey tem lugar cativo. Fazemos as malas, lemos alguns guias, na tentativa
de nos prepararmos, mas sabemos que somente a vivência tem a capacidade
de nos impactar e nos impregnar com o novo. A tintura alquímica só tinge de
fato se houver uma abertura do ego para que ela aja. É o que eu chamo da
“porosidade” do ego, qualidade que diz respeito à sua capacidade de absorver
conteúdos do meio, deixar-se penetrar, tocar, trocar.
Se na viagem concreta temos a oportunidade de ganhar em
subjetividade, e sairmos transformados, revendo valores, pontos de vista,
olhando a vida de um novo ângulo, redimensionando problemas,
reconsiderando amizades e afetos, também, em contrapartida, o percurso
interno pode, e, ouso dizer, deve, implicar em mudanças efetivas na vida
cotidiana do indivíduo. Como na imagem tão conhecida do Yin –Yang, que
formam um círculo branco e preto que contêm, cada um, em si, o gérmen de
seu oposto. Os limites do dentro e do fora, assim, se dissolvem. A verdadeira
viagem traz em si não só a promessa, como a concretização de um transformar
que abrange todo o indivíduo, rompendo as fronteiras da causalidade e
fazendo transbordar o novo em todas as direções.
Como diz Maria Zélia Alvarenga, “falar do herói é dizer do que cada um
tem de esplendor radiante e único, quando se busca”. Busquemo-nos, pois.
RELÓGIO DO ROSÁRIO
Carlos Drummond de Andrade

“Era tão claro o dia, mas a treva,


Do som baixando, em seu baixar me leva

pelo âmago de tudo, e no mais fundo


decifro o choro pânico do mundo,

que se entrelaça no meu próprio choro,


e compomos os dois um vasto coro.

Oh dor individual, afrodisíaco


selo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,


em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada,


nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,


em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer,


a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome,


ativa mesmo se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa


indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência


como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,


nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas,


do tempo que há de vir, das velhas eras!
Não é pois todo amor alvo divino,
E mais aguda seta que o destino?

Não é o motor de tudo e nossa única


fonte de luz, na luz de sua túnica?

O amor elide a face ... Ele murmura


algo que foge, e é brisa e fala impura.

O amor não nos explica. E nada basta,


nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência


ao contato furioso da existência.

Nem existir é mais que um exercício


de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo,


estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário,


foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas,


já se permite azul, risco de pombas.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVARENGA, M. Z. (1999). O Herói e a Emergência da Consciência


Psíquica. Junguiana, Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia
Analítica. São Paulo, n. 17, pp. 47-56.
ANDRADE, C. D. (1993). Antologia Poética. pp. 211-213, São Paulo:
Record.
BONDER, N. (1998). A Alma Imoral. Rio de Janeiro: Roxo.
CAMPBELL, J. (1992). O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena.
EDINGER, E. F. (1995). A Anatomia da Psique. São Paulo: Cultrix.
JUNG, C. G. (1979). World and Image. Princeton: Princeton University
Press.
JUNG, C. G. (1985). The Practice of Psychotherapy. Princeton:
Princeton University Press.
JUNG, C. G. (1987). Ab-Reação, Análise dos Sonhos, Transferência.
Petrópolis: Vozes.
NEUMANN, E. (1995). História da Origem da Consciência. São Paulo:
Cultrix.
A DEUSA DURGĀ – Uma Imagem Arquetípica do
Desenvolvimento Pleno da Mulher
Maria Helena R. Mandacarú Guerra1

Um dos principais méritos de Jung foi ter ressaltado a importância dos símbolos
como elementos prospectivos e portadores de significados que ultrapassam seu aspecto
óbvio e literal. Byington (2004) amplia ainda mais a importância dada aos símbolos ao
considerá-los a célula tronco da Psique e, portanto, os elementos que estruturam a
Consciência. A elaboração dos símbolos é o principal componente do desenvolvimento
psicológico do indivíduo e da cultura. Um símbolo inclui opostos e possui sempre múltiplos
significados, dependendo de quem o vivencia, seja uma pessoa ou uma comunidade.
Interpretar um símbolo, e sobretudo um símbolo cultural, é trilhar um caminho dentre os
inúmeros possíveis, e não necessariamente o que nos permitirá ver mais longe. Ao me
propor a abordar aqui, neste breve artigo, um símbolo proveniente da Índia, uma cultura
extremamente rica, sensível e minuciosa na expressão de suas vivências, não pretendo de
forma alguma esgotar seus significados. Ao apresentar a imagem e o mito de Durgā, estou
fazendo um pequeníssimo recorte no universo do Hinduísmo e na própria mitologia da
deusa, e extraindo daí uma parte diminuta, com o intuito de ilustrar um dinamismo que me
parece bastante atual e também prospectivo: a contribuição que a mulher pode dar ao
homem e à cultura ao realizar-se como pessoa.

-.-.-.-.-.-

O Hinduísmo é uma religião extremamente complexa, com um panteon no qual as


divindades adquirem milhares de formas e expressões. Há nele uma tentativa de incorporar
quaisquer novos sistemas ou idéias, buscando neles coerência e alguma raiz em sua
tradição. Isto o torna uma religião propícia ao sincretismo e a inclusões que apontem uma
melhor e mais detalhada expressão da estrutura do Cosmos.
Durgā é uma importante deusa do Hinduísmo, bastante popular e reverenciada, e
que traz consigo elementos paradoxais. Originária das culturas tribais e associada a áreas
periféricas, sua função mitológica básica é combater os demônios que desafiam a
estabilidade do Cosmos. Dentre as muitas versões sobre sua origem e seus feitos, a mais
conhecida diz que o demônio Mahisha, depois de realizar práticas de austeridade, conseguiu
a dádiva de tornar-se invencível frente a qualquer oponente masculino, mas não a uma
mulher. Lutando contra os deuses, deixou-os furiosos diante de sua vitória aparentemente
definitiva e da impossibilidade de eles o vencerem. Em sua fúria, os deuses emitiram tanta
energia que uma grande massa de luz e força condensou-se no corpo de uma mulher, cujo
esplendor alastrou-se por todo o universo. Durgā recebeu de cada deus uma parte de seu
corpo e uma arma, além de um leão, que ela cavalga e com o qual é freqüentemente
representada. Personifica, assim, a força dos deuses (Kinsley, 1987). Daniélou (1991)
acrescenta a esta versão que Mahisha era o rei dos antideuses e que, com a sua vitória,
conquistou o céu e nele se estabeleceu, deixando os deuses sem moradia. Guiados por
Shiva e Vishnu, eles concentraram sua energia, que se manifestou como um jato de fogo.
Das chamas unidas surgiu Durgā.
Durgā é considerada rainha das batalhas. Luta contra demônios masculinos e
sempre os vence, mas combate somente com o auxílio de ajudantes femininas, e nunca com
o suporte de homens ou deuses. Traz uma forma diferente de enfrentar o demônio,
introduzindo na luta um contato pessoal. Ao contrário dos deuses, o confronto é feito com
suas próprias mãos, o que indica uma disponibilidade de estabelecer contato, de tocar, de
lidar com o oponente dentro de um campo de maior proximidade e envolvimento. Uma
passagem interessante nesse sentido é a luta que Durgā trava com o demônio Raktabīja, do
qual, do sangue que jorrava a cada ferimento que recebia durante a batalha, nasciam novos
demônios. Cheia de ódio, de sua sobrancelha surge Kālī, e esta vence o demônio ao sorver
o sangue que brotava de suas feridas (Kinsley, 1987, p. 118).
A criação de Durgā, e depois de Kālī, tem elementos comuns. Ambas surgem da
agressividade e para que lutem e subjuguem um demônio que se mostrava, até então,
invencível. Durgā introduz na luta aspectos de sedução e encantamento; Kālī acrescenta a

1
Psicoterapeuta junguiana, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, coordenadora do
curso de especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Abordagem Corporal, no
Instituto Sedes Sapientiae.

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capacidade de abrir-se para a ferida do outro, para a essência, representada pelo sangue, e,
assim, ultrapassa a simples polarização e exclusão do inimigo ao incorporá-lo em si própria
por sua absorção.
A deusa Durgā emergiu num contexto de uma crise cósmica precipitada por um
demônio que não poderia ser subjugado pelos deuses masculinos, cujos recursos utilizados
eram insuficientes para vencer Mahisha. Para que esse conflito pudesse ser ultrapassado,
os deuses precisaram sair de sua onipotência, reconhecer as limitações de suas ações
realizadas até então e criar uma nova estratégia para lidar com a situação. Ao constelarem
sua energia, seu brilho, sua força, no corpo de uma deusa, fizeram emergir de dentro deles
um elemento novo e vigoroso. Assim, como uma saída para o impasse, surgiu Durgā. Ela é,
portanto, um produto da força, da grandeza, da agressividade e da impotência dos deuses.
Podemos, pois, considerá-la uma imagem da alma dos deuses, da Anima, numa linguagem
junguiana, ou da shakti, como os hindus denominam a força que põe o homem em
movimento. Estamos, pois, diante de elementos religiosos e culturais que apontam para a
expressão de uma dinâmica que, embora possa ilustrar o funcionamento do indivíduo, não
se restringe a ele. Do ponto de vista psicológico, uma crise dessa magnitude – ameaça ao
Cosmos – ocorre quando um paradigma que norteia a Consciência coletiva ou de um
indivíduo está para sofrer uma transformação, pois seu modelo de funcionamento já está, ou
começa a dar indícios de estar ficando obsoleto, ou quando algo extraordinariamente novo
emerge no Self. Este tema é encontrado no rei velho ou doente que precisa ser substituído,
ou no cacique já não tão forte, que precisa ceder seu lugar. É a necessidade de renovação
que aí se expressa, e, quando Durgā é criada, temos então um símbolo bastante forte de
uma situação que, para ser resolvida, precisa introduzir novos elementos. Caberiam aqui,
portanto, as perguntas: quem era esse demônio? E no que se diferenciam os deuses e a
deusa?
Na Índia, a mulher ocupou um lugar familiar e social muito particular e diferente
daquele reservado ao homem. Nos livros da lei, como, por exemplo, o Código de Manu
(Manu-dharma-shastra), as mulheres são consideradas incapazes de lidar com seus
próprios assuntos e de ser socialmente efetivas sem estarem vinculadas ao homem. Dentro
da tradição, a mulher indiana é importante como irmã, filha, mãe de homens e como esposa
(Kinsley, 1986, p.8). Se ficasse viúva, seria cuidada pela família do marido (dependendo da

3
situação, caberia ao cunhado dar a ela um filho) ou “devolvida” à família original, mas jamais
se tornaria dona de si mesma. Mesmo atualmente, a opressão e submissão da mulher
constituem um problema a ser ultrapassado. Acredita-se até mesmo que houve épocas em
que meninas eram mortas ao nascer, sobretudo as de famílias muito pobres, pois estas
viriam a ser uma fonte de sofrimento para sua família, a qual teria dificuldade de prover a ela
um casamento digno e, portanto, uma vida feliz (Altenkar, 1983).
Uma das interpretações do símbolo do demônio é que ele significa tudo aquilo com
que os deuses não sabem lidar, que não conseguem ultrapassar, isto é, sua Sombra. Nesse
contexto, numa sociedade na qual o homem ocupa o lugar do poder, da liberdade,
independência, iniciativa, autonomia, e na qual a mulher, ainda que possa haver variações
de casta para casta, fica restrita a atividades intramuros ou, de qualquer modo, dependente
do homem, é plausível supor que muito desta Sombra recaia na mulher, em seus atributos
ou nos papéis tradicionalmente a ela relegados.
A distância geográfica não nos afasta muito deste problema cultural da Índia, no que
tange às desigualdades entre o homem e a mulher. O fato de a cultura ocidental associar a
mulher a uma maior abertura para o mundo subjetivo, para o irracional, o mistério, o
espontâneo, o corpo e até mesmo para o inconsciente, fez com que, muitas vezes, o
demônio fosse a ela comparado e lhe fosse atribuída a capacidade de enfeitiçar, de dominar
sub-repticiamente, de seduzir. Banidas da luz pela perspectiva patriarcal defensiva, que
considera inimigo o diferente, muitas delas foram consideradas bruxas e terminaram a vida
nas fogueiras da Inquisição. Esse ponto de vista ajusta-se perfeitamente na famosa (e
infelizmente tão atual) frase “quem não está comigo está contra mim”. Colocada à margem
do que foi oficialmente tido como bom, valoroso, importante, eficiente e certo, a mulher foi
unida ao demônio na projeção do bode expiatório que recaiu sobre eles.
Chama-nos a atenção o fato de Mahisha ser um demônio que praticava
austeridades, ou seja, que era capaz de fazer sacrifícios e reverenciar um princípio superior
a ele. Atributo pouco comum ao demônio, a ligação de Mahisha com a transcendência faz-
nos lembrar a figura de Lúcifer, o portador da Luz, mas também o anjo caído. Ao exercitá-la,
Mahisha termina por conquistar o direito de ser equivalente, em força, aos deuses. É essa
equivalência, estabelecida por um princípio que está além dos deuses e do demônio, que
revela a impossibilidade de um subjugar o outro, como é comum se acreditar possível dentro

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do funcionamento patriarcal defensivo, no qual existe a ilusão de se ser capaz de liqüidar o
inimigo pela força. Mas as coisas não funcionam assim. Sabemos que, se quisermos
extinguir um comportamento ou um sintoma pela força, acabaremos de alguma maneira
fortalecendo-o. Em outras palavras, a Sombra não pode ser extinta à força. É preciso muito
trabalho de elaboração para que seus conteúdos possam vir a ser integrados à Consciência.
Quando o homem tenta lutar patriarcalmente com seu potencial não desenvolvido e fixado
em sua Sombra, muitas vezes projetada na mulher ou no demônio, ele está fadado à
derrota. Neste caso, a figura de Durgā é uma denúncia de que a Sombra do homem
repressor é presa fácil da sedução, da vingança traiçoeira e da agressividade milenar
reprimida da mulher. A repressão da mulher pela cultura a transforma num poderoso inimigo
em qualquer momento de ajuste de contas.
Podemos compreender também os demônios como a expressão da impossibilidade
de os deuses manterem a ordem cósmica, ou seja, os demônios representam a desordem, a
desarmonia, que, do ponto de vista da totalidade, é a unilateralidade. Para o Arquétipo
Central, que impulsiona a pessoa rumo a seu Processo de Individuação, a fixação na
unilateralidade é uma grande disfunção, pois fica obstruído o caminho para a síntese entre
as polaridades, que são inerentes ao Todo.
Segundo Kinsley (1987), a situação exigia uma mulher, ou uma guerreira superior,
ou um poder peculiar que Durgā possui e com o qual o demônio poderia ser iludido, ou as
três coisas. Em sua vitória contra os deuses, Mahisha imagina-se invencível. Sem que
tivessem outro recurso, os deuses fazem emergir uma deusa muito bela, sedutora, mas
também combativa, agressiva e forte.
Durgā, ao vencer o demônio que era imbatível pelos deuses, revela a força da
mulher, contrariando os estereótipos da mulher indiana ao não ser submissa nem
subordinada a uma divindade masculina, ao não desempenhar as obrigações de uma dona
de casa e ao se mostrar excelente naquela área considerada própria do homem: lutar numa
batalha. E mais. Ao invés de fortalecer o consorte, de ser a “companheira por trás do
guerreiro”, como manda a tradição, ela retira o poder dos deuses para desempenhar, por ela
mesma, seus feitos heróicos.
Enquanto deuses e demônios lutam para impor sua superioridade, Durgā aponta
para algo além deles, transcendendo-os ao unir em si mesma a figura da mulher e do

5
guerreiro, atributo até então exclusivo do homem. Sua montaria, o leão, revela que ela é
capaz de lidar criativamente com forças terríveis, agressivas, poderosas e fecundas. Durgā
modifica a ordem na qual a mulher é relegada a um segundo plano, e o mito mostra que o
demônio só será vencido quando esse princípio, simbolizado pela força e ação da mulher,
puder ser expresso em toda sua grandiosidade.
Sua independência e capacidade de enfrentar um oponente masculino no campo de
batalha, e assim subverter os papéis tradicionais, coloca-a à margem da sociedade. Seu
lugar é, por isso, o da periferia, o do limiar. Podemos ver na deusa uma representação não
apenas da mulher subjugada pelos milênios de dominância patriarcal, mas também de
vivências e emoções reprimidas pelo homem e da força contida na Sombra Social, nas
minorias reprimidas. Lembremos aqui a origem aborígine (pré-ária) de Durgā, que é
reverenciada nos lugares fronteiriços e de difícil acesso, como as montanhas e a periferia da
civilização. Durgā representa também os excluídos, os que vivem à margem, os que não têm
lugar no mundo “civilizado”. Atual, apesar dos seus aproximadamente 1600 anos, Durgā é a
força da massa oprimida, os recursos dos despossuídos, das minorias, dos que são gauche,
dos não inseridos no status quo, dos artistas, das pessoas criativas e revolucionárias. Seu
lado contra o sistema, que em seu aspecto criativo denuncia a opressão da parte e a
inviabilidade do Todo, expressa-se em seus ritos pela ingestão de carne, bebida alcoólica e
ofertas de sangue, assinalando sua abertura para a dimensão do prazer matriarcal, e até do
desregramento, numa sociedade que valoriza a austeridade e o sacrifício. Protege os
marginais, os enjeitados, os renegados, aqueles que não têm nada ou ninguém por eles.
Nesse contexto, é a grande mãe, generosa, capaz de acolher e abrigar o desespero de seus
filhos.
Durgā une, assim, características tradicionais dos papéis da mulher e do homem,
não apenas lutando e vencendo, mas agindo independentemente dos deuses masculinos,
sabendo se defender e cuidar de si mesma. A deusa não permaneceu subordinada a seus
criadores, mas adquiriu completa autonomia, inclusive para lutar exclusivamente com o
auxílio de outras deusas. É preciso perceber, porém, que ao convocar outras deusas, e não
deuses, para auxiliá-la nas batalhas, Durgā não visa expressar uma homofobia, mas
reafirmar a identidade da mulher. Note-se que ela não luta contra os deuses, mas por eles,
e que juntos, celebram suas vitórias.

6
Uma passagem interessante do mito nos diz que alguns demônios que a deusa
desafiava não acreditavam que ela pudesse vencê-los. O próprio Mahisha disse que, como
mulher, ela era delicada demais para lutar, bonita demais para qualquer coisa que não fosse
o amor, e que deveria ser protegida e conduzida por um homem para poder se realizar, e lhe
propôs casamento. Porque ela não estava protegida por uma divindade masculina, Mahisha
pressupôs que Durgā fosse desamparada. Outros demônios fizeram o mesmo, e ainda que
ela recusasse a se casar com eles, dizendo que queria confrontá-los no campo de batalha,
os antideuses viam em sua resposta uma mensagem cifrada, que decodificavam como
sendo o desejo da deusa de participar de um jogo amoroso (Kinsley, 1987). Sua beleza
passa a ser usada não em função do amor, mas para conduzir suas vítimas à batalha final.
Incentivando a vaidade e beleza da mulher como produto para seu consumo, o homem
reduz a mulher ao corpo, à sensualidade e à sexualidade, mutilando sua integridade ao
destituí-la de sua alma. Eilberg-Schwartz, na introdução do livro Off with her Head, sugere
que o excesso de valorização do rosto da mulher, de seu cabelo, sua maquiagem, seus
olhos, sua boca, erotizando, deste modo, tudo que compõe externamente sua cabeça, é
uma maneira pela qual o poder da fala e do pensamento lhe é negado (Eilberg-Schwartz,
1995). De maneira semelhante aos demônios, que não conseguem perceber o significado
verdadeiro da resposta de Durgā, o homem torna-se incapaz de reconhecer a força da
mulher e de perceber a frustração dela ao não ser vista. Muitas vezes também não se dá
conta da agressividade destrutiva da qual a mulher fica imbuída e assim é pego numa
armadilha criada também por ele.
Durgā utiliza, assim, a agressividade através da sedução e abusa da submissão do
homem aos encantos da mulher. Invertendo os papéis defensivos tradicionais do homem e
da mulher, subjuga o homem, manipulando-o, dominando-o e induzindo-o ao erro e à morte.
O potencial que o homem tem para se relacionar com a mulher e com a vida pela
sensibilidade, delicadeza, ternura, gentileza, e a possibilidade de troca com uma parceira
equivalente a ele em capacidade de luta, determinação, firmeza e empenho, ao ser relegado
à Sombra, volta-se contra ele, seja através de sintomas, situações, experiências ou até
mesmo de mulheres simbolicamente tão sanguinárias e destrutivas como Durgā. Essas
mulheres transformam muitos homens em suas vítimas; fascinando-os pela beleza e pela
sedução, os despontecializa e paralisa – em sua relação com o deus Vishnu, Durgā o

7
enfraquece e desvitaliza tanto, que ele fica inconsciente e só consegue agir quando ela o
deixa. Mas, convém lembrar, Durgā sempre luta a favor dos deuses, que podemos
compreender como aspectos criativos da personalidade, combatendo sua Sombra (os
demônios). Luta, assim, a favor da luz e da justiça, a favor da construção e afirmação da
identidade da mulher e, conseqüentemente, da do homem.
Durgā pode ser vista também como exemplo da exasperação da mulher para
mostrar ao homem sua força, sua independência, autonomia, capacidade de luta e
determinação. Durgā nos mostra que, se sua força e integridade forem reconhecidas,
aceitas, acolhidas e respeitadas, ela funcionará de modo benevolente e protetor. Caso
contrário, atuará a sedução e a agressividade de maneira defensiva e levará à destruição. A
representação de uma mulher como essa força, criadora e destruidora a um só tempo,
aponta para as grandes mudanças que partem dos oprimidos, pois eles é que estão em
posição desconfortável e, por isso, querem mudança.
Determinados atributos de Durgā, alguns expressos em seus diversos epítetos, são
elementos fundamentais para abordarmos o significado profundo de seu dinamismo.
Elevada às vezes à condição da divindade que cria, mantém e destrói o Cosmos, para
recriá-lo depois, tem o atributo da Ira, que representa a força dos deuses, que não pode ser
controlada. Dentre uma série de estereótipos que carregamos, está aquele que identifica a
agressividade com o Mal. É claro que, se não houver elaboração dessa força, ela poderá se
tornar destrutiva, mas isso vale para qualquer função estruturante, seja ela o amor, a
esperança ou a fé – ainda que estas vivências sejam classificadas, também
estereotipadamente, como sendo apenas algo bom. A ira de Durgā, por um lado, pode ser
compreendida como o resultado da exclusão da mulher, da retirada de seu lugar como ser
independente e autônomo, com direito a se expressar e a ser ela própria, impedida de lidar
com forças terríveis, agressivas, destrutivas, mas que fazem parte de sua natureza tanto
quanto a habilidade de proteger e cuidar. Por outro, no entanto, pode ser compreendida
como a destruição do que é ilusório, do aparente. Durgā como salvadora diz o “não” criativo,
que vem para colocar limite a uma situação insuportável, inaceitável. Ao fazê-lo, aponta para
a ultrapassagem do perecível, do superficial, de valores que não são essenciais, mas vividos
como se fossem. Vem na proporção do incômodo. Significativamente, é Durgā quem dá
origem a Kālī, a deusa que, dentre outros feitos, destrói o tempo. O tempo (Kāla), que a tudo

8
consome, só é destruído por Kālī (a que devora o tempo), mostrando que o significado pleno
da existência é inseparável do reconhecimento e da transcendência da finitude. O tempo no
qual o Ego vive é transitório, mas, se o Ego tiver a Consciência da presença do Arquétipo
Central, perceberá que em nossa essência habita a eternidade.
Durgā é também a deusa que preside o intelecto (buddhi) em sua unidade cósmica
ou em sua manifestação nos seres humanos (Daniélou, 1991, p. 265). Como Logos, revela a
percepção da grandeza cósmica e do ser humano, mostrando que a possibilidade de ser
consciente não depende do gênero. Enquanto ao homem associou-se o Verbo, à mulher foi
associada a fofoca... Às mulheres é negado o privilégio do dom da palavra e, quando elas
falam, o que dizem é visto como simplesmente “conversa jogada fora”. Silenciada sua
subjetividade, sua identidade não pode ser afirmada. Assim, o significado simbólico da
deusa mostra-se aqui, mais uma vez, revolucionário, já que a palavra, o pensamento, a
razão e a identidade foram tradicionalmente ligados e vistos como pertencentes apenas ao
homem. Lembremos, porém, que o simples fato de serem homens era o que impossibilitava,
aos deuses, a vitória. Na verdade, o mito de Durgā coloca-nos diante de um padrão coletivo
de funcionamento que, ao longo de milênios, desvalorizou a mulher, privou-a de sua
identidade, subestimou sua força, apropriou-se de seu corpo, violentou sua alma, restringiu
sua liberdade, limitou sua determinação, escravizou sua conduta, desconsiderou sua
criatividade, aniquilou sua capacidade de propor idéias e buscou calar sua voz. O mito ilustra
de maneira emblemática o quanto toda esta desqualificação da mulher termina por
despotencializar o homem, formando uma Sombra que só poderá ser resgatada com o
desenvolvimento pleno da mulher, que é inseparável de uma transformação da Consciência
do homem. Sem isso, todos saem perdendo: mulher, homem, família, cultura e civilização.
Nesse sentido, a afirmação do Budismo de que nenhuma pessoa atingirá a iluminação
enquanto todos os seres humanos não forem Buddha, aplica-se de forma extraordinária à
relação entre a identidade do homem e a identidade da mulher.
Durgā é também o desejo, a alegria e o prazer, sentimentos resultantes do encontro
com o Centro, da vivência de plenitude, de totalidade, de Consciência da onipresença do
Arquétipo Central. Ela pode ser vista como uma expressão tão ampla do Todo que se
manifesta em diferentes âmbitos da vida; é associada às colheitas, à terra que produz
(Arquétipo Matriarcal), à luta, ao campo de batalha, com vistas a manter a ordem do Cosmos

9
(Arquétipo Patriarcal). Ao ser capaz de associar os opostos e lidar com eles dialeticamente,
representa o padrão de alteridade e, ao mesmo tempo, zela pela ordem cósmica, pelo Todo
– Arquétipo de Totalidade. Ao conjugar em um único símbolo todos estes padrões
arquetípicos da Consciência, Durgā aponta para uma Consciência que reúne os opostos,
capaz de perceber que tudo é a manifestação da unidade e que o Uno está em tudo. Talvez
seja essa a grande missão de Durgā ao buscar manter a ordem do Cosmos.
Ao destruir o obsoleto, a ilusão, o artificial, os valores supérfluos e criar uma nova
ordem, Durgā aponta para o futuro, para o que está mais além, e por isso também é
chamada a Inatingível, a que está além da compreensão, aquela além de quem não há
além. Provavelmente é por isto que Durgā é considerada a parceira de Kalki, o avatar de
Vishnu que ainda estar por vir (Daniélou, 1991, p. 262). Como imagem messiânica, ela
aponta, possivelmente, para a efetivação de um padrão de Consciência no qual todos
seremos Buddha, isto é, o Todo será percebido na unidade, e a unidade no Todo.
Aprenderemos então, quem sabe, que somos expressões de um único ser, que temos a
mesma mãe – a Terra – e o mesmo pai – o Cosmos, e essa Consciência unirá em
comunhão a mulher, o homem e a natureza.

Referências Bibliográficas

ALTENKAR, A.S. (1938, 1959). The Position of Women in Hindu Civilization. Delhi: Motilal
Banarsidass, 1983.

BYINGTON, Carlos A. B. (2004). Psicologia Simbólica Junguiana. Em preparação.

DANIÉLOU, Alain (1964). The Myths and Gods of India. Rochester: Inner Traditions
International, Ltd., 1991.

EILBERG-SCHWARTZ, Howard e DONIGER, Wendy, ed. (1995). Off With Her Head – The
Denial of Women’s Identity in Myth, Religion, and Culture. Berkeley: University of California
Press, 1995.

KINSLEY, David (1986). Hindu Goddesses – Vision of the Feminine in the Hindu Religions
Tradition. Delhi: Motilal Banarsidass, 1987.

10
REFLEXÕES SOBRE O FUNDAMENTO PSICOLÓGICO DO
PENSAMENTO RELIGIOSO DE C.G.JUNG
João Bezinelli1

A forma como Jung entendeu religiosidade sempre foi motivo das maiores
controvérsias. Ele foi visto ora como ateu, ora como místico; ora reduzindo o
transcendente ao imanente, ora deificando a psique. Para alguns ele aproximava o
homem de Deus, enquanto outros achavam que para ele Deus era apenas uma
projeção do homem... Durante quase toda a sua vida travou calorosas polêmicas a
respeito da religião e até o fim da sua existência julgou-se incompreendido.
Religiosidade foi o tema da sua vida. Pré-ocupação tão precoce, tão intensa e
torturante, matriz de tantos conflitos com ele mesmo e com o mundo, parece-nos
ser, por vezes, além da busca de uma transcendência, a necessidade de um
resgate, de uma reparação. O desenvolvimento do conceito psicológico de
religiosidade para Jung como sendo também uma tentativa de resgate da imagem
paterna, e um possível complexo materno como uma condicionante de sua visão
de religião é o objetivo desta reflexão. Não se trata de uma psicanálise redutiva do
homem Jung, mas uma tentativa de ver um trajeto teleológico da ferida do
complexo impulsionando-o para a busca do significado.
É importante que fique claro que estamos falando sempre a partir de um
ponto de vista psicológico, ou seja, partimos do princípio da existência de uma
condicionante interna (complexo) pessoal e cultural que nos faz ter (e buscar,
através da projeção) um determinado enfoque do religioso, e não do divino em si.
Reafirmando: esta reflexão busca entender as raízes psicológicas complexuais
que fundamentam a forma como Jung entendia religião. Levanta-se a questão:
quais complexos da sua psicologia o fizeram buscar na cultura certas matrizes
que, ao mesmo tempo, passaram a constituir parte dos seus complexos?
Das condicionantes externas, culturais, que contribuíram para a elaboração da
conceituação de religião como desenvolvida por Jung, creio ser da maior
importância, em termos filosóficos, o Romantismo. Nesta visão filosófica

1
Psicoterapeuta junguiano. Professor do curso de Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada
a Técnicas Corporais, no Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: joaobezinelli@uol.com.br
valorizava-se a vivência e, para Jung, a religião é uma vivência, uma experiência
imediata. Além da vivência, o Romantismo veiculava a importância do instinto
(para ele a religião é instintiva), da intuição, da imaginação, dos símbolos. O
Romantismo valorizava o mítico e a ancestralidade. Buscava uma cosmologia que
incluísse o espírito. Era uma filosofia não dualista (Clarke 1993, p.86). Uma
filosofia, se pudermos dizer assim, simbolicamente feminina.
Das condicionantes internas, que é nosso objetivo maior neste espaço,
diria que vemos na conceituação psicológica de religiosidade, como desenvolvida
por Jung, a presença da força de um complexo materno e a concomitante
debilidade da imagem paterna. Um pai com o qual Jung não estabeleceu uma
identificação satisfatória e que foi falho em retirá-lo do “mundo das mães”. Diria
que a visão religiosa de Jung, em termos psicológicos, principalmente nos seus
primórdios, era “materna”.
A ausência da mãe, por cerca de seis meses, hospitalizada quando Jung
tinha três anos de idade, afetou-o profundamente. Nas Memórias, ele classifica
essa fase da vida como importante e traumática, afirmando inclusive ter
desenvolvido problemas somáticos, como um eczema generalizado. Talvez esteja
aqui o trauma inicial do complexo. No rascunho da sua autobiografia Jung
explicava que a mãe, para desgosto do marido, era histérica, e na versão original
ele chega a incluir detalhes dos problemas mentais dela. Afirma que ela recuperou
a saúde apenas após o falecimento do seu pai (aos 21 anos de Jung)2 (Smith
1996, p.17). Foi também nesse mesmo período que Jung diz ter vivido o seu
primeiro trauma consciente: a aparição, “saindo da floresta”, de um jesuíta, que lhe
causou um “pavor mortal”. Certamente a essa imagem está associada a do Sr.
Jesus, que foi visto como responsável por chamar para junto a si as pessoas que
então “subitamente desaparecem. Ouço dizer que foram enterradas”, lembra Jung.
Nas suas Memórias, neste ponto, como em vários outros em que ele fala da sua

2
O original em inglês das Memórias, uma doação do Dr. James S. Cheaton, encontra-se na
Countway Library (Smith 1996, p.17). Esse fato foi também relatado por Ruth Bailey, a governanta
de Jung, e encontra-se no Arquivo histórico Oral sobre Jung, da Countway Library. Esses trechos
foram retirados das Memórias, antes que elas fossem publicadas, a pedido da família (Noll 1996,
p.331, nota 4).
infância, diz que sentia angústia durante a noite. É dessa época o conhecido
sonho do falo, a contraparte ctônica do Sr. Jesus.
A importância que pode ter a ausência da mãe na vida de um indivíduo é
explicada didaticamente pelo próprio Jung numa carta ao Sr.McCullen, que ficara
órfão aos seis anos de idade e que, desde então, sofria de sentimento de culpa e
medo. Diz Jung:

A perda da mãe nos primeiros anos da infância deixa muitas vezes


traços em forma de complexo materno. A influência muito forte da mãe viva
tem o mesmo efeito quando está ausente. Em ambos os casos será a
causa de semelhante complexo. Uma das principais características do
complexo materno é o fato de estarmos por demais sob a influência do
inconsciente. (Jung 2003, p.27)

A grande influência da mãe deu-se por sua ausência e mais ainda pela
presença, percebida muitas vezes como invasiva e onisciente. Uma figura que, por
causa da hospitalização, também desaparecera subitamente (obra do Sr.Jesus?)
e retornara revestida de poderes sobrenaturais. Um só exemplo pode demonstrar
a forma mágica como ela era vista por Jung:

Eu dormia no quarto do meu pai. Da porta que conduzia ao quarto de


minha mãe vinham influências inquietantes. De noite, minha mãe tornava-
se temível e misteriosa. Uma noite vi sair de sua porta uma figura algo
luminosa, vaga, cuja cabeça se separou do pescoço e planou no ar, como
uma pequena lua. Logo apareceu outra cabeça que também se elevou.
Esse fenômeno repetiu-se umas seis ou sete vezes. Eu tinha sonhos de
angústia ... (Jung 1975, p.30)

Ainda sobre suas angústias infantis, ele relata que, um pouco antes
dessas visões, quando tinha sete anos, sofreu de pseudocrupe, com acesso de
sufocação. Via um círculo azul-brilhante onde se moviam formas douradas que
tomava por anjos. A visão, diz Jung, “aliviava a angústia da sufocação. Mas a
angústia reaprecia nos sonhos. Creio que um fator psicogênico desempenhou em
tudo isto um papel decisivo: a atmosfera começava a tornar-se irrespirável” (Jung
1975, p.31).
Jung dizia que a mãe revelava repentinamente “uma personalidade
inconsciente de um poder imprevisto – um aspecto sombrio, imponente, dotado de
uma autoridade intangível” (Jung 1975, p.54).
Quando criança tive sonhos de angústia motivados por ela. Durante o
dia era uma mãe amorosa, mas de noite a julgava temível. Parecia uma
vidente que ao mesmo tempo é um estranho animal, uma sacerdotisa no
antro de um urso, arcaica e cruel. Cruel como a verdade e a natureza.
(Jung 1975, p.56)

Essa poderosa mãe noturna também invadia seus dias, murmurando


distraída verdades a respeito do próprio Jung que ele não revelara a ninguém!
Dela, como fonte do seu complexo, escreve o próprio Jung numa carta
endereçada a André Eickoff:

Freud pensava naturalmente que minhas idéias mais positivas sobre


religião e a importância dela para a nossa vida psíquica nada mais eram
do que um afloramento de minhas resistências frustradas contra meu pai
que era pastor. Na verdade, meu problema e meu preconceito pessoal
nunca estiveram centrados em meu pai, mas bem mais enfaticamente em
minha mãe. [E um pouco mais à frente:] Possivelmente o senhor acha que
eu, sob o influxo do meu complexo materno, supervalorizei a importância
da religião – uma crítica que eu mesmo considerei seriamente. (Jung,
2003, p.19)

A força do complexo materno pode ser vista num pequeno episódio


relatado pelo próprio Jung num dos seus Seminários, e acontecido quando ele já
era psiquiatra do Burghölzli. Conta ele que sua mãe foi visitá-lo no Hospital, onde
ele morava, numa época em que trabalhava nos “Experimentos de Associação” e
tinha as paredes do quarto forradas de tabelas. Sua mãe olhou em torno e disse:
“Essas coisas têm realmente algum significado?” Após esse comentário da mãe,
diz Jung, “não pude pegar na caneta por três dias”. A luta para escapar da força
de atração do complexo ainda atuante evidencia-se no comentário a seguir:

Se eu tivesse sido um garoto fraco estaria aniquilado e diria


‘evidentemente isto não está bom’ e desistido. Minha mãe teria dito que me
amava e que não queria dizer nada com aquele comentário, mas o homem
é um ser civilizado e para ele o maior perigo é a natureza3 [...]. Bem, eu
tive um terrível ataque de raiva e então pude trabalhar novamente. (Jung
1984, p.97)

Creio que é possível ver no episódio da “descoberta” da anima, quando


Jung tinha 38 anos, o momento em que o complexo materno perde grande parte


Grifo nosso
3
Jung refere-se aqui à “mente natural” da mulher – e, por extensão, ao inconsciente feminino.
da libido, transferindo-a para o da anima. Mas uma anima ainda completamente
contaminada pelo aspecto negativo do complexo materno, percebida como a
“mulher interna” que desperta desconfiança, como uma inimiga, destrutiva e
perigosa. Nas Memórias, Jung fala-nos desse momento quando anotava suas
fantasias e se perguntou o que de fato estava fazendo, e uma voz interna
respondeu-lhe: “O que fazes é arte”. Jung replicou energicamente à voz,
protestando que não era arte, mas natureza, e conta “o que me impressionou em
primeiro lugar foi o aspecto negativo da anima. Em relação a ela eu sentia timidez
como se tratasse de uma presença invisível”. Mais à frente diz que essa voz, que
ele reconheceu ser de uma paciente internada, “exercia uma influência desastrosa
sobre os homens”4 (Jung 1975, p.164-66).
Como vimos, a desconfiança em relação à mulher tinha raízes profundas
no seu complexo materno, associada principalmente a um sentimento de
abandono. (Em uma sentença, que foi excluída da versão final das Memórias,
Jung diz que sentia o temor de que pudesse haver uma nova separação da sua
mãe) (Smith 1996, p.18).
Para finalizar o assunto abandono, que já se estende além do necessário,
duas citações do próprio Jung:

O mundo era belo e desejável, mas estava cheio de perigos vagos e


de coisas incompreensíveis. Por isso sempre queria saber previamente o
que ia me acontecer e a quem confiar. Estaria isto ligado ao fato de que a
minha mãe me abandonara durante vários meses? (Jung 1975, p.44). [Ou
então:] A longa ausência de minha mãe me preocupava intensamente. A
partir desse momento a palavra amor sempre me suscitava a
desconfiança. O sentimento que associei com a palavra feminino foi
durante muito tempo a desconfiança. Pai significava para mim integridade
de caráter e... fraqueza. (Jung 1975, p.22)

Assim, chegamos ao pai, o Reverendo Paul. Para Jung, o pai fracassara


no casamento e no desejo de uma vida acadêmica que nunca se cumpriu.
Fracassara também como profissional de Deus, corroído pela dúvida que não
queria admitir. Melancólico, irritadiço, hipocondríaco, seu declínio, aos olhos do

4
Especula-se que a “voz” era de Sabina Spielrein (ver McGuirre, Analytical Psychology, p.42, nota
de rodapé). Sobre Sabina recaiu a projeção da anima de Jung, que com ela manteve intensa e
conturbada relação erótica.
filho, era o resultado de uma crise espiritual. Não tinha mais a fé singela e nem a
coragem de mergulhar na descrença e na falta de sentido. Não pensava, pois
devia crer, e não mais acreditava. Assim, ao longo da vida, perdera a fé, o afeto e
a saúde. Do pai pastor Jung esperou receber uma religião viva, que aquele nunca
foi capaz de viver.
Um bom exemplo da expectativa religiosa de Jung, que nunca se
cumpriu, foi o evento da sua crisma. O preparo para o dia solene, ao qual o pai
dava tanta importância, foi grandioso. O próprio pai lhe ministrou as aulas de
religião, o que por sinal lhe aborrecia profundamente. Interessou-se pela
“Trindade”; aí havia o mistério de uma unidade que são três, mas ao chegar a
esse ponto o pai passou por alto, falando que não a compreendia.

Apesar do tédio que sentia, fiz todas os esforços para crer sem
compreender – atitude que parecia corresponder à de meu pai – e assim
me preparei para a comunhão, na qual pusera minha última esperança.
Atingira o apogeu da iniciação religiosa, da qual esperava algo de inédito –
e nada aconteceu. Aquela celebração solene não manifestara qualquer
traço de Deus. Falara-se d’Ele, mas tudo se limitou a palavras. [...] Aquela
comunhão fora uma deplorável experiência. Para mim não se tratava de
uma religião, mas uma ausência de Deus. [...] Senti uma piedade imensa
de meu pai. Compreendi o trágico de sua profissão e de sua existência. Ele
lutava contra uma morte, cuja presença não podia admitir. (Jung 1975, p.
59-60)

O Deus da “crença” do pai, um Deus que nunca se experiencia, o Deus


que o pai não pode lhe ensinar, foi o Deus que Jung experienciou e quis ensinar
ao pai. Isso se deu no episódio da Catedral, quando ele tinha doze anos. Ao
passar pela resplandecente Catedral da Basiléia num dia de sol, Jung pensa em
Deus sentado em seu trono no céu azul, e então tem uma sensação terrível, que o
asfixia, que o paralisa. Um pensamento que não se pode pensar, que não se pode
concluir, mas que ao mesmo tempo teima em se concluir. Reluta, à noite não
consegue dormir, até que deixa o pensamento emergir: Deus está em seu trono e,
debaixo deste, um enorme excremento, que cai sobre o teto da Catedral, que
desmorona. Ao permitir o pensamento, em vez da danação entra em estado de
graça. Cumprira a vontade de Deus até o fim e conheceu “um Deus que está
acima da Bíblia e da Igreja, que chama o homem à sua liberdade e que também
pode obrigá-lo a renunciar às próprias convicções, a fim de cumprir a Sua
vontade”. Diz Jung: “Fiz a experiência que meu pai não tinha tentado” (Jung 1975,
p.48). Jung vivera o Deus vivo.
Essa experiência o fez duvidar de tudo o que o pai dizia. “Suas palavras
eram insípidas, vazias, tal como as de uma história contada por alguém que nela
não crê, ou que só a conhece por ouvir dizer” (Jung 1975, p.50). Quis compartilhá-
la com o pai, ajudá-lo em seu conflito religioso, mas uma espécie de pudor o
impediu. Para o pai, o importante era crer.
A religiosidade da mãe e do pai fundiu-se em Jung e foram
condicionantes importantes, consciente e inconscientemente, da elaboração do
seu conceito de religiosidade.
Da mãe, a religiosidade vivenciada, telúrica, ctônica, misteriosa, instintiva,
intuitiva, imediata, mítica, mística, espiritualista. Um mundo que o aterrorizava e o
fascinava. Um mundo que encontrou sua melhor definição no conceito de
numinosidade, um termo de Rudof Otto descoberto muitos anos mais tarde: aquilo
que nos causa fascínio e medo, amor e reverência.
Do pai, uma outra história: navega-se em outras águas. Numa vivência
polar, no pai a religião perde a experiência, perde o corpo, perde a terra e o
feminino. Desmaterializa-se de tal forma na busca do espírito, apóia-se de tal
forma na crença, que esta, de sem apoio, claudica, e a religiosidade vira angústia
pura.
Como vimos, imensa foi a tarefa de resgatar a imagem desse pai
atormentado, e Jung buscou resgatá-lo no ponto onde o pai naufragou: elaborou,
como gostava de dizer, uma psicologia para quem não mais crê, para quem não
tem a graça da fé. Uma psicologia que servia ao pai. Uma psicologia que, como
ambição última, esperava levar o homem à experiência de Deus; uma ponte que
substituísse a fé. Numa carta a Hélène Kiener, escreve:

A psicologia analítica ajuda-nos a conhecer as potencialidades


religiosas [...] A psicologia analítica só nos serve para encontrar o caminho
da experiência religiosa totalizante. (Jung 2002, p.432)
A problemática religiosa do pai foi um fardo que o menino Jung carregou por
boa parte da vida; um “karma” familiar que coube a ele equacionar. Talvez ele se
referisse a isso quando escreveu nas Memórias:

Tenho a forte impressão de estar sob a influência de coisas e


problemas que foram deixados incompletos e sem resposta por parte dos
meus pais, meus avós e de outros antepassados. Muitas vezes parece
haver numa família um karma impessoal que se transmite dos pais aos
filhos (Jung 1975, p.208).

Claro, é apenas uma fantasia que fazemos, mas é fascinante pensar que
houve um momento na vida de Jung que talvez revelasse o fim do “karma”
religioso e o reencontro com o pai. Um amigo perguntou a Jung, já envelhecido,
qual o fato mais comovente da sua vida, e ele respondeu:

Posso dizer-lhe imediatamente. Há algum tempo, num domingo, eu


velejava no lago. Era quase meio-dia; não se via ninguém numa distância
de milhas e milhas; céu azul. Cochilei. De repente aproxima-se meu pai e
bate-me nas costas, dizendo: ‘Obrigado, meu filho, você tem agido bem’.
(Stern 1977, p.190, nota de rodapé)

Referências Bibliográficas

Clarke, J.J. (1993). Em busca de Jung. Indagações históricas e filosóficas. Rio de


janeiro: Ediouro.

Jung, C.G. (1975). Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira.
__________ (1984). Dream analysis. Notes of the seminar given in 1928-1930.
London, Melbourne e Henley: Routledge & Kegan Paul.
__________ (1989). Analytical Psychology. Notes of the seminar given in 1925.
Edited by William McGuire. Princenton: Princenton University Press.

__________ (2003). Cartas 1956-1961. Petrópolis: Vozes.


Noll, Richard (1996). O Culto de Jung. Origens de um movimento carismático. São
Paulo: Editora Ática.
Smith, Robert C. (1996). The Wounded Jung. Illinois: Northwestern University
Presss.
HEPATITE C: Uma Revisão da Literatura

Maria Helena Monteiro Balthazar 1


Ceres Alves de Araújo2

Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar uma revisão da literatura existente
sobre a Hepatite C. A maioria dos estudos encontrados são médicos, falam da
descoberta do vírus C, dos tratamentos disponíveis, que não são eficazes para
todos os indivíduos atingidos, e assinalam os aspectos ainda desconhecidos sobre
essa doença que atinge milhões de pessoas em todo o mundo. Apenas duas
pesquisas tratam de questões psicológicas relacionadas à situação de ser
portador desta doença. Foram também encontrados estudos realizados na área da
Psiconeuroimunologia que se referem às doenças virais, que não falam
especificamente da Hepatite C, mas que nos pareceram bastante pertinentes.
Como proposta de estudo nesta área, foram feitas pesquisas a respeito do
adoecer psicossomático de acordo com a visão de diversos autores, numa
tentativa de compreensão dos aspectos psíquicos envolvidos no aparecimento das
doenças, seu significado, e possibilidades de intervenções psicológicas, que junto
às intervenções médicas possam contribuir para o tratamento das mesmas.

Palavras-Chave: Hepatite C, Literatura sobre HepatiteC, Psicossomátca, A


doença e a teoria psicológica de C. G. Jung.

1
Mestre em PsicologiaClinica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Psicoerapeuta Junguiana, Professora
do curso de Especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais do Instituto Sedes
Sapientiae..

2
Doutora em Distúrbios de Comunicação pela Universidade Federal de São Paulo, Analista Junguiana, Professora e
Orientadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.
INTRODUÇÃO

Apesar do grande número de conquistas científicas em todos os campos do


saber, ainda hoje o ser humano é atormentado por doenças desconhecidas, sobre
as quais não consegue ter controle, e não conhece a cura. Entretanto,
independente do avanço tecnológico, a humanidade sempre conviveu com
situação semelhante, sempre teve que enfrentar desafios que constituíam uma
ameaça a sua sobrevivência, como doenças que levavam à morte. Quando se
descobria a cura de uma doença, novas doenças surgiam, desconhecidas e
ameaçadoras, se constituindo em novos desafios a serem ultrapassados.
A Hepatite C, causada pelo vírus HCV, no início, para a maior parte das
pessoas atingidas, tem uma longa fase assintomática, que pode durar anos.
Entretanto, apesar de não provocar um sofrimento físico nesta fase, provoca um
grande sofrimento psíquico, que se traduz na insegurança e angústia relacionadas
ao desconhecimento daquilo que terão que enfrentar. Essa situação pode levar o
indivíduo a dois caminhos: o isolamento e depressão, por se sentir vítima de algo
poderoso e desconhecido, que o faz sentir impotente, ou a consciência da
necessidade de reformulação, modificando-se profundamente, aprendendo a
conviver com o imprevisível, o que obrigatoriamente levará a uma reorganização
da vida com relação a valores, metas e prioridades.
As doenças graves trazem à consciência do indivíduo atingido por elas, a
possibilidade de risco e imprevisibilidade. A própria vida contém em si mesma,
esta condição do risco do imponderável, mas muitas vezes é preciso uma situação
concreta como uma doença, para que se possa perceber a suscetibilidade da vida.
Só então somos levados a uma grande reavaliação de nós mesmos, tanto
internamente como nas nossas relações com o mundo em que vivemos. Temos
que mudar nossos pontos de vista, descobrir o que realmente é importante para
nós, pois passamos a perceber a realidade da finitude da vida, pelo menos daquilo
que nos habituamos a entender como vida. É preciso então, entrar em sintonia
com o que há de mais profundo em nós, com aquilo que nos caracteriza como
únicos. Precisamos acreditar em nossa capacidade de nos harmonizar
internamente, e ter fé na possibilidade de encontrarmos um caminho mais
verdadeiro, aceitando que a doença pode ter sido um meio para nos lançar na
direção deste equilíbrio tão necessário. Daí a necessidade de entendermos o
significado da doença na vida de cada um.
A resiliência necessária para o enfrentamento das doenças graves está
baseada aí. Se pudermos realmente acreditar numa finalidade maior para o
sofrimento, teremos forças para enfrentar o que for necessário enfrentar,
procurando viver o melhor que pudermos viver, e por vezes até nos
surpreendermos ao perceber que passamos a ter uma vida até melhor do que a
que tínhamos antes da doença nos atingir.
As pessoas atingidas por doenças graves, sobretudo as pouco conhecidas,
como a Hepatite C, vivem uma situação de grande ansiedade, angústia e
estresse. O desconhecimento da doença, que existe tanto no meio leigo como no
meio médico, gera informações contraditórias e em sua maioria aterrorizantes, o
que aumenta o medo e a insegurança. Os meios de comunicação, televisão e
algumas revistas, trazem muitas vezes informações incorretas, e utilizam frases de
efeito para chamarem a atenção para suas reportagens como: “Hepatite C mata!,
veja no próximo jornal da noite” (TV Globo, 2000 ), provavelmente sem se darem
conta ou se importarem com o efeito altamente negativo que provocam nos
portadores da doença, sem se preocuparem em dar informações que esclareçam
o público e sejam úteis como orientação. Estes dados apontam para a
constatação do impacto emocional provocado pelo diagnóstico de Hepatite C.
De acordo com Achtenberg (1996[1985]), pesquisas realizadas nos últimos
30 anos vêm demonstrando o poder do estresse no comprometimento da função
imunológica. Embora o sistema imunológico seja agredido por muitos tipos de
comportamentos e pensamentos, sabe-se que ele pode ser favorecido por atos
conscientes. Segundo a mesma autora, estudos recentes tem demonstrado que
várias técnicas como trabalho com imagens, sentimentos positivos, sugestões,
resiliência a fatores estressantes, têm o poder de aumentar os recursos do
sistema imunológico para se contrapor às doenças. Embora o mecanismo deste
fenômeno não esteja completamente esclarecido, sabe-se que há uma profunda
relação entre cérebro, comportamento, fatores psicológicos, e sistema
imunológico.
Nas doenças virais, existe uma questão importante a ser considerada: a
doença é provocada por um agente externo, no caso um vírus, que invade o
organismo. Entretanto, é preciso ressaltar que o vírus não é por si só a causa da
doença, pois esta só ocorre quando o organismo como um todo, psíquica e
fisicamente considerado, se constitui num terreno propício para o aparecimento da
doença. Daí a necessidade de compreender as condições físicas e psicológicas
que predispõem um indivíduo à ação de um vírus.
Considerando que a doença manifesta no corpo pode ser observada do
ponto de vista simbólico, cuja compreensão visa rearmonizar o eixo Ego–Self,
proposta da psicologia junguiana, como poderíamos pensar a respeito das
doenças virais?
Pesquisas recentes tem demonstrado, como veremos nesta revisão de
literatura, que nas situações de estresse, onde aparecem sentimentos de angústia
e insegurança, o sistema imunológico é atingido, passando a produzir respostas
defensivas “enfraquecidas”, que se constituem em “portas abertas” para a entrada
de organismos estranhos, como por exemplo, os vírus.
No núcleo de Psicossomática e Psicologia Hospitalar da PUC-SP, o
conceito de psicossomática é discutido no sentido de ressaltar sua direcionalidade
única, alertando para a necessidade de estudos transdisciplinares, na
compreensão e tratamento das doenças. Há a preocupação de uma leitura holista
do fenômeno da doença, levando-se em conta fatores fisiológicos, psicológicos,
sociais, ambientais, além de questões éticas e morais. Esta compreensão da
psicossomática justifica, portanto, a utilização de intervenções psicológicas como
abordagem importante no conjunto de procedimentos realizados no tratamento de
qualquer doença.
Diante da situação acima descrita achamos que seria relevante a realização
de uma psicoterapia para estas pessoas, com vistas a uma boa qualidade de vida.
A descoberta do significado de ser portador deste vírus teria como propósito a
ampliação da consciência destes indivíduos, possibilitando transformações
pessoais. Estas questões se constituem em pontos centrais da psicologia
junguiana, que procura descobrir o significado simbólico da doença. Foi então
importante buscar, na literatura existente sobre Hepatite C, as pesquisas mais
recentes sobre a doença e o tratamentos utilizados, tanto os relacionados à área
médica como os relacionados à área psicológica.

REVISÃO DE LITERATURA

A Hepatite C: descrição da doença


A revelação e identidade do vírus da Hepatite C (HCV), entre a comunidade
científica, ocorreu na década de 1980, em estudos realizados pelo Centro de
Controle de Doenças de Atlanta, nos Estados Unidos.
Em 1989, através de estudos de biologia molecular, foi identificado por Qui-
Lim Choo e outros pesquisadores do laboratório “Chiron”, Estados Unidos, o
genoma do agente viral responsável por 80% das hepatites pós transfusionais, até
então conhecidas por Hepatite Não-A e Não-B. O novo agente foi denominado
vírus da Hepatite C (HCV), com características peculiares, diferentes dos vírus da
hepatite A e B, já conhecidos.(Choo, Q-L.et al, 1989 e Kuo, G et al, 1989).
De acordo com Simmonds et al (1993), o HCV possui muitas variantes,
apresentando diferentes genótipos, que são apresentados em diferentes
classificações, sendo a classificação 1 a, 1 b, 1 c, 2 a, 2 b, 2 c, 3 a, 3 b, 4 a, 5 a, e
6 a., a de maior consenso entre os pesquisadores, embora ainda considerada
provisória. Existe uma distribuição dos sub- tipos nos diferentes paises, sendo que
no Brasil, de acordo com Cavalheiro, Barone e Tengan (2002), existe a
predominância do tipo 1, responsável por 70% das infecções por HCV.
Segundo Di Bisceglie (2000), a principal via de transmissão do HCV é a via
parenteral, sobretudo transfusão de sangue e seus derivados, uso compartilhado
de seringas no consumo de drogas, desinfecção inadequada de instrumentos na
realização de tatuagens e tratamentos dentários, e em alguns casos em relações
sexuais. Ainda não são conhecidos todos os meios de transmissão, e grande parte
dos indivíduos infectados não sabem como foram contaminados.
Liang et al, (2000) revelam que a estimativa de predominância da infecção
pelo HCV chegue a 3% da população mundial por volta de 100 milhões de
pessoas (cálculo do ano 2000), sendo grande parte destas pessoas
assintomáticas e sem conhecimento de serem portadoras do vírus. Segundo Alter
et al (1992), a particularidade deste vírus é a de sua infecção poder ser
asssintomática por muitos anos. Para Di Bisceglie (2000 ) isto se constitui num
dos grandes problemas deste tipo de hepatite, pois sua evolução é silenciosa, e
quando os sintomas aparecem, a doença já se encontra num estágio bastante
avançado, o que muitas vezes inviabiliza a cura. Dos portadores, grande parte
permanece assintomática, com níveis de transaminase normal por anos, até
décadas e alguns por toda vida, outros conseguem combater o vírus sem
medicação, com seus próprios recursos imunológicos, embora sejam casos raros,
outros têm doença hepática na forma incipiente, outros se tornam doentes
crônicos, com sintomas que prejudicam sua qualidade de vida, e a minoria
apresenta a doença na forma mais agressiva, com altos níveis de transaminase
podendo evoluir para Cirrose, e carcinoma Hepatocelular (HCC). Na década de
1990, Kiyosawa e outros pesquisadores, conduziram estudos para esclarecer a
relação entre Hepatite C (HCV) crônica e carcinoma Hepatocelular (HCC). Em sua
pesquisa entre 54 pacientes com HCC e Hepatite Não-A e Não-B, 51 (94%) eram
soropositivos para anti-HCV, e 21 (39%) tinham histórico de transfusão de sangue
anterior. A pesquisa incluiu uma comparação com grupos de pacientes com
Hepatite B crônica, dos quais 29 com HCC. Surpreendentemente, 10 entre eles
(35%) tinham também anti-HCV detectável no soro, mas poucos tinham histórico
de transfusão de sangue anterior. Um dos mais importantes achados deste estudo
foi o de que HCV relacionado a HCC quase sempre ocorre na presença de doença
grave do fígado, sendo Cirrose a mais freqüente. Cirrose é documentada em 18
de 21 pacientes com Hepatite C pós transfusional e HCC. Os 3 pacientes que não
tinham Cirrose, presumivelmente tinham fibrose e distorções na arquitetura do
fígado, o que foi muito relevante para a compreensão dos mecanismos da
hepatocarcinogenese. A partir deste estudo verificou-se que não existe evidência
conclusiva que o HCV seja diretamente carcinogênico. As evidências sugeriram,
que o HCC tem uma ligação muito grande com Cirrose, e em muitos casos esta é
causada pelo vírus da Hepatite C. Como relatam Satoor e Raufman (2001), a
Cirrose causada por Hepatite C é atualmente a maior causa de transplantes de
fígado.
Darko. et al (2000) ressaltam que além de se constituir num desafio para os
especialistas em doenças hepáticas, a Hepatite C também se constitui num
desafio para a psiquiatria. Indivíduos portadores da doença tem maior
probabilidade de ter uma desordem psiquiátrica, sendo Depressão a mais
freqüente. A relação entre Hepatite C e Depressão, embora estatisticamente
sugerida, ainda é muito pouco compreendida. As pesquisas realizadas ressaltam a
necessidade de estudos mais profundos, que possam esclarecer melhor esta
questão.
Di Bisceglie (2000), citando um estudo retrospectivo e prospectivo de 1999,
realizado pelo “The Irish Hepatology Research Group”, assinala, que a evolução
da Hepatite C para um prejuízo hepático mais grave, está estreitamente
relacionada com a idade da infecção, o sexo do indivíduo infectado, e o hábito de
consumir álcool em excesso. O prognóstico costuma ser melhor para mulheres
infectadas quando jovens e com boas condições de saúde nesta época.
Dados da Sociedade Brasileira de Hepatologia de 1997 revelaram que a
infecção do HCV variava de 0,5 % a 2,5% nas várias regiões do país, estimando-
se a existência de cerca de 3 milhões de portadores crônicos no Brasil.
Michielsen, Brenard, e Reynart (2002), afirmam que, geralmente, a doença
quando assintomática, é detectada por volta dos 20 anos, em indivíduos doadores
de sangue. No exame feito no sangue doado é detectado o anti-HVC positivo, o
que leva a pesquisa do HCV-RNA que revelará a existência ou não de viremia.
Quando o RNA é positivo, acompanhado de alterações significativas das provas
sanguíneas referentes ao processo inflamatório do fígado e da biópsia hepática, o
tratamento é indicado. Na ausência de indicações inflamatórias significativas o
paciente não é tratado, mas acompanhado através de exames semestrais, e
eventualmente por uma biópsia a cada 3 ou 5 anos.

Tratamentos médicos
De acordo com Reichard et al (1992), a associação de Ribavirina e
Interferon Alfa, no tratamento de indivíduos com Hepatite C, conseguia levar a não
detecção do vírus, o que podia significar sua eliminação, e a normalização do
funcionamento do fígado, em aproximadamente 40% dos casos. Mesmo quando
não se consegue a eliminação do vírus, pesquisas revelam que o tratamento
diminui o risco de Cirrose e Hepatocarcinoma (“Canadian Journal of Public
Health”, 2000).
A combinação de Ribaverina e Interferon Alfa, medicação extremamente
cara, é distribuída gratuitamente na rede pública de hospitais e pela prefeitura de
muitas cidades brasileiras. Este tratamento tem efeitos colaterais fisiológicos,
psíquicos, e até psiquiátricos. Os pacientes tratados com estes medicamentos
apresentam perda de apetite, dores musculares, febre, fadiga, diminuição de
concentração e prejuízo de memória. Algumas pessoas apresentam Depressão
durante o tratamento, principalmente se tiverem um histórico anterior desta
doença. O Inteferon Alfa, é ministrado a cada três dias, e seus efeitos colaterais
prejudicam a qualidade de vida de quem o utiliza, porque o mal-estar por ele
provocado permanece praticamente contínuo.
Segundo Manns et al (2001), depois de 1999, surgiu um tratamento mais
eficaz para eliminar o vírus HCV, que é a associação da Ribavirina com Interferon
peguilado, o peguinterferon Alfa 2b, e em seguida, de acordo com Fried (2002), o
peguinterferon Alfa 2a, que chega a obter por volta de 80% de sucesso na
negativação do vírus. Seu custo financeiro é maior do que o do outro Interferon,
não peguilado, e ainda não está disponível em toda rede pública, embora a mídia
tenha anunciado que isto ocorreria em junho de 2002. Esta medicação oferece
uma qualidade de vida muito melhor ao paciente, por provocar menos efeitos
colaterais, que duram por volta de dois dias, e por ser administrado uma só vez
por semana. Estas características permitem ao paciente continuar com quase
todas as suas atividades habituais. O tratamento com qualquer um dos
medicamentos pode durar de seis meses a um ano, e em alguns casos até mais
tempo.

A relação entre doenças virais e descobertas importantes realizadas na área


da psiconeuroimunologia

Investigações
O papel que a mente pode ter na saúde física é uma questão muito antiga
na história da humanidade. A psiconeuroimunologia é o campo científico, que há
mais de 25 anos, tem pesquisado e estudado a respeito deste assunto,
investigando a ligação entre a psique, a mente e o sistema imunológico,
comprovando a interação entre estes sistemas e sua implicação na saúde.
Na pesquisa que pudemos realizar não encontramos nenhum trabalho que
relacionasse Hepatite C com psiconeuroimunologia, então buscamos pesquisas
que tratassem de doenças virais e psiconeuroimunologia.
Glaser e Kiecolt–Glaser, pioneiros em pesquisas sobre
psiconeuroimunologia, realizaram uma série de estudos a fim de confirmar a
hipótese de que o estresse provoca suscetibilidade à infecção por vírus em seres
humanos. Em sua pesquisa a respeito da Síndrome de Fadiga Crônica (1998), os
autores relatam que em seus estudos realizados anteriormente, puderam
confirmar a hipótese acima citada. Um deles foi realizado com estudantes de
medicina de Ohio em 1986, onde se examinou o impacto do estresse nas células
do sistema imunológico. Foram selecionados períodos de baixo e alto estresse
durante o ano acadêmico. As amostras de sangue foram colhidas nos dois
momentos e os períodos de estresse foram confirmados pelos dados obtidos por
um questionário específico para avaliação de estresse. A análise dos resultados
concluiu que havia mudanças significativas nas respostas imunológicas nos
períodos de estresse acadêmico, onde se verificou a queda de células NK e
células T, diminuição dos anticorpos e respostas de células T à vacinação de
Hepatite B e evidência de reativação de vírus latente de Herpes, Epstein-Barr, e
Herpes Simplex.
Outro estudo feito por Glaser e Kiecolt-Glaser (1987), com parentes
cuidadores de pessoas com Doença de Alzheimer, verificou a mesma diminuição
nas respostas de defesa do sistema imunológico que no grupo de estudantes.
Neste caso, a situação imunológica era também agravada pelo “déficit”
imunológico provocado pela idade destas pessoas, em sua maioria com mais de
70 anos. Observou-se que os cuidadores tiveram respostas imunológicas muito
mais fracas para combater o vírus de gripe do que as respostas verificadas no
grupo controle. Estes resultados provam a vulnerabilidade à infecções em
indivíduos estressados.
Os autores concluíram que os sintomas clínicos associados a um agente
infeccioso, como um vírus, são devidos à combinação da patologia produzida pelo
próprio vírus e a imunopatologia produzida pelo estresse, que resulta numa
resposta imunológica inadequada. Os mecanismos deste fenômeno são bastante
complexos, e ainda necessitam ser mais amplamente estudados.
Kennedy, Kiecolt-Glaser e Glaser (1988), realizaram um estudo com o
objetivo de examinar as conseqüências do estresse agudo e crônico no sistema
imunológico, considerando o papel das relações interpessoais. Apresentaram uma
pesquisa feita com estressores prolongados, como os existentes numa separação
conjugal, ou no cuidado de um parente com Doença de Alzheimer, esta última já
citada acima. Neste artigo ressaltaram a relação entre variáveis psicológicas tais
como solidão, angústia e depressão, vividas pelas pessoas que se encontram
nestas situações, com alterações imunológicas. Foram utilizados inventários para
avaliar as condições psicológicas e exames de sangue para verificar as condições
imunológicas dos indivíduos que compunham a amostra. Na discussão dos dados
obtidos, constataram que a qualidade do relacionamento interpessoal podia
atenuar as alterações imunológicas adversas associadas à angústia, podendo
diminuir a suscetibilidade a doenças constatadas em tais pessoas.
Glaser e Kiecolt-Glaser (1994), ressaltam que a relação, entre estresse
como causador de uma imunopatologia, tem que ser cuidadosamente considerada
e cuidada em pesquisas. Em primeiro lugar é preciso definir o que será
considerado fator estressor. Um estressor físico pode alterar diretamente o
sistema fisiológico. Outros estressores ocasionam modificações através de
mecanismos do sistema nervoso central envolvendo processos cognitivos e
emocionais. Ao considerar fatores estressores é também necessário considerar
se estes são agudos ou crônicos, sociais e não sociais, porque destas
características dependem as alterações que provocam no sistema imunológico.
Os estressores sociais provocam efeitos mais complexos e talvez mais poderosos
do que os estressores não sociais.
De acordo com Glaser e Kiecolt-Glaser (1994), as reações ao estresse são
presumidamente ligadas ao impacto de estressores nas funções endócrinas e
imunológicas e seus resultados na saúde. Depressão, raiva, ansiedade, medo são
reações psicológicas relacionadas ao estresse. Elas variam quanto à severidade e
tempo de duração. Estas reações são muito complexas e variam de indivíduo para
indivíduo. Dependem de condições genéticas, reações fisiológicas, tipo de
personalidade e tipo de enfrentamento (“coping”). A adequação do enfrentamento
é influenciada por vários aspectos, entre eles motivação, auto-estima, otimismo ou
pessimismo. Além disto, todos estes efeitos podem ser modificados por fatores
tais como qualidade e quantidade de suporte social.
Eles ressaltam ainda as dificuldades éticas e metodológicas das pesquisas
realizadas em laboratório para verificar a influência de fatores psicológicos nas
doenças virais em seres humanos, advertindo quanto ao cuidado necessário para
evitar conclusões erradas, por influência de inúmeras variáveis não controladas.
Por questões éticas, nas pesquisas com seres humanos, não se pode inocular um
elemento patogênico para analisar seus efeitos, e as medidas do sistema
imunológico são limitadas e superficiais, pois as medições mais acuradas são
também invasivas. Além disto, investigações do funcionamento do baço, timo e
linfonodos são inacessíveis na prática de pesquisas laboratoriais, por serem, na
maioria das vezes, inviáveis financeiramente.
É amplamente aceito que o estresse, e as reações psíquicas nele
envolvidas provocam um impacto negativo que afeta o equilíbrio da função
endócrina e imunológica, o que fragiliza o indivíduo tomando-o suscetível a
doenças.
Glaser e Kiecolt-Glaser (1998) afirmam que a literatura relacionada às
pesquisas em Psiconeuroimunologia considera a possibilidade do estresse induzir
a uma imunopatologia, ligada à queda de respostas dos anticorpos, que tornam o
indivíduo mais vulnerável a infecções virais.
De acordo com Vasconcellos (1998), “todo fenômeno de saúde ou doença
para ser compreendido na sua constituição integrada, precisa ser refletido sobre o
aspecto físico, químico, biológico (fisiológico), psicológico (mental e emocional),
social e espiritual”. Essa afirmação corrobora nossa convicção a respeito da
relevância da realização de uma psicoterapia com portadores de Hepatite C
assintomática. Por este motivo nos pareceu importante buscar pesquisas que
tivessem utilizado algum trabalho psicoterapêutico como um recurso no tratamento
desta doença. Entretanto, nenhum trabalho com estas características foi
encontrado.
A respeito da Hepatite C, a maior parte dos estudos existentes é médica, e
fala daquilo que se pôde descobrir a respeito da doença até hoje, no que diz
respeito a diagnóstico, prognóstico, meios de contaminação, prevenção e
possibilidades de tratamento.
Os aspectos psicológicos levantados e mais estudados pela maioria das
pesquisas são a Depressão e as alterações cognitivas (“déficits” de memória e
concentração) provocadas pelo tratamento existente, que ainda não garante a
cura da doença. Entretanto, foram encontradas duas pesquisas dirigidas a
pessoas portadoras de Hepatite C na fase imediatamente pós diagnóstico,
procurando investigar o impacto emocional da informação recebida, e suas
conseqüências na vida destas pessoas. Estas pesquisas nos pareceram
particularmente importantes, por tratarem da fase da doença que este trabalho se
propõe a lidar.
Rowe W., Rowe J. e Malowaniec (2000), realizaram um estudo que
abordou a situação emocional do indivíduo diagnosticado como portador de
Hepatite C, desde a época da identificação do vírus (1989), até o ano 2000. Os
autores relataram a situação de quase total desconhecimento da doença, na
época da identificação do vírus C (HCV), por parte dos médicos, que não podiam
esclarecer as dúvidas de seus pacientes relativas à doença, e o quanto esta
situação provocava uma enorme angústia nos doentes e também nos próprios
médicos.
No ano 2000, apesar da evolução da doença ainda não ser completamente
conhecida, os médicos estavam mais bem informados sobre as emoções
experienciadas pelas pessoas diagnosticadas com HCV. Estas emoções eram:
choque por se sentirem repentinamente frente a uma grande ameaça, medo,
negação, confusão, vergonha, pesar, culpa, idéias suicidas, ansiedade aguda e
raiva.
O estudo apontou a necessidade de suporte adequado, para que reações
agudas possam ser previstas e atendidas, para poderem evoluir para estratégias
de enfrentamento adaptativas. Foi apontado como alerta o fato constatado de que
pessoas isoladas, na ocasião do diagnóstico de doenças que ameaçam a vida,
podem chegar a resultados muito piores do que aquelas que tiveram algum
suporte. O diagnóstico de uma doença grave tem um efeito devastador no
indivíduo atingido e em sua família, quando não há suporte psicológico. Muitas
vezes o médico é inábil em sua tarefa de dar a má notícia, e não sabe como lidar
com a angústia do paciente, diante da situação que lhe foi comunicada. Na
conclusão deste estudo os autores advertiram para a necessidade de formação de
grupos de suporte para os portadores de HCV e seus familiares, e de um
programa de informação sobre Hepatite C para os profissionais de saúde
envolvidos no seu tratamento.
Glacken, Kernohan e Coates (2001), em outra pesquisa, focaram seu
objetivo em procurar entender o que significou para o indivíduo portador do vírus
da Hepatite C, receber este diagnóstico, quais foram seus sentimentos no
momento em que ficaram sabendo de sua situação de saúde. Os autores usaram
uma abordagem qualitativa, realizando uma exploração descritiva a respeito da
experiência de tais pessoas. A amostra foi composta por nove pessoas, com quem
foram feitas entrevistas de 90 minutos, porque este instrumento foi considerado
mais apropriado para explorar a perspectiva dos participantes com relação ao
diagnóstico recebido.
A experiência de viver com Hepatite C foi considerada um processo
transitório. Pensar sob a perspectiva de um processo de transição, segundo os
autores possibilita um caminho interessante para conceitualizar respostas
humanas a mudanças.
Os pesquisadores discutiram os dados obtidos levando em conta:
- Fatores percebidos como impedidores da transição
- Fatores percebidos como facilitadores da transição
- Indicadores de transição saudável
Os dados obtidos permitiram concluir que, para todos os participantes, o
diagnóstico de Hepatite C consistiu em fator desencadeante para experienciar
uma transição de vida, entendendo transição como sendo a afirmação de uma
mudança no estado de saúde do indivíduo e as conseqüentes extensões disto na
própria pessoa e sua família.
Os autores falam que a disrupção precipitada por uma transição na vida de
uma pessoa, requer do indivíduo uma reestruturação que facilitará o surgimento
de novos significados em sua vida. Isto subseqüentemente servirá como base de
sua nova existência pós transicional.
A Hepatite C é vista pelos médicos como uma doença benigna, para grande
parte das pessoas infectadas. Porém para nenhum dos participantes deste estudo
a doença foi vista desta maneira. Alguns participantes se engajaram com sucesso
no processo de reconstruir suas vidas integrando nelas a doença e suas
conseqüências. Outros permaneceram nos estágios primários de assimilação da
situação trazida pela doença. Ficou evidente que uma experiência transicional não
é linear.
O diagnóstico de Hepatite C desencadeou a transição na vida dos
indivíduos afetados. As transformações que ocorreram como resultado de uma
transição pessoal na vida destes indivíduos precipitaram uma série de outras
transformações que atingiram também suas famílias. Este fato é bastante
compreensível se pensarmos no caráter sistêmico da organização familiar, na qual
a transformação de um dos membros atinge o núcleo como um todo. O
reconhecimento das conseqüências sofridas pela família diante do diagnóstico, de
um de seus membros, tornou necessária a utilização de modelos de atuação, que
incluíssem também o cuidado das mesmas.
O estudo delineou vários fatores que dificultaram a transição de pessoas
diagnosticadas como portadoras da Hepatite C, fornecendo muitos dados que
podem ser utilizados pelos profissionais de saúde para criar intervenções com o
objetivo de transformar o que foi percebido como barreiras para a transição, em
fatores facilitadores para tal processo.
Os portadores de Hepatite C crônicos apresentam uma série de sintomas,
tais como fadiga, dores musculares, dores nas articulações, dores abdominais,
náuseas e falta de apetite, que prejudicam sua qualidade de vida. Por esta razão,
os autores sugeriram que os profissionais de saúde realizassem intervenções que
pudessem ajudar tais pessoas a conviverem o melhor possível com tal situação.
Os autores citaram ainda as limitações de seu trabalho quanto à estratégia
para escolha da população que compôs a amostra. Entretanto, ressaltaram que
ele serviu para que se pudesse perceber a experiência vivida pelos indivíduos
diagnosticados com Hepatite C, uma questão muito importante, da qual não havia
referência na literatura. O conhecimento destes dados deveria passar a ser
considerado no tratamento desta população o que facilitaria o engajamento destas
pessoas no processo de transição desencadeado pelo diagnóstico.
Em nossa pesquisa não encontramos nenhum trabalho que relacionasse
portadores de Hepatite C e intervenção psicológica.

CONCLUSÃO

O adoecer psicossomático
Atualmente é indiscutível a visão de corpo e mente como uma totalidade, e
é indiscutível, portanto, a influência de uma instância sobre a outra. Siegel (1996
[1989]), ressalta o efeito devastador de mensagens negativas transmitidas ao
doente, principalmente quando fornecidas por figuras de autoridade como médicos
e meios de comunicação tidos como confiáveis. Destaca o fato de que as palavras
do médico podem matar ou curar, à medida que podem condenar ou dar
esperança ao indivíduo. Em toda a sua obra ressalta a importância de uma
postura positiva frente à doença para o alcance da cura, e do poder destrutivo de
uma postura negativa. A possibilidade de ter esperança, e uma perspectiva
positiva frente à possibilidade de vida são fundamentais na luta contra a morte.
A imaginação tem um papel de grande importância em todas as práticas
médicas até na medicina ocidental ortodoxa. Informações distorcidas podem levar
o indivíduo a uma fantasia apavorante, podendo provocar alterações físicas
importantes. “As imagens se traduzem tão prontamente em uma alteração física
que morrer por ter recebido um diagnóstico temido, formulado por um médico de
credibilidade, é tão factível quanto à morte provocada por bruxaria, para um
haitiano vitimado por uma maldição. Estes casos já não são mais questionados
pela comunidade médica e muitos deles foram relatados na literatura científica”
(Achtenberg,1996 [1985], p.80 ).
Ainda como diz a mesma autora, “Diagnósticos têm nomes estapafúrdios,
culturalmente determinados, e têm muito pouco significado ou poder em si e por
si. Não é o diagnóstico que mata (ou cura), mas as expectativas e as imagens que
o acompanham. Não é o que se diz aos pacientes que é tão crítico para a saúde,
mas como se diz, como são atendidos ao receberem o diagnóstico e, obviamente,
como escolhem receber a mensagem no contexto de seu próprio sistema de
crenças”. (idem, p.83). Além disto também considerando o poder das crenças de
um indivíduo, tudo aquilo em que ele acredita lhe faz bem. Isto tem sido
comprovado em vários casos clínicos e pesquisas.
Os estudos sobre placebos confirmam que a mente pode provocar
alterações na química do corpo. “O principal ingrediente é o sistema de crenças
dos seres humanos, a capacidade de mobilizar os próprios recursos é uma
prodigiosa força em si”. (ibidem, p. 88).
A psicologia junguiana também diz algo muito semelhante a esta colocação
quando se refere à existência de um curador interno que habita cada um de nós.
Esse precisa ser mobilizado para que ocorra o processo de cura. Como diz
Guggenbühl-Craig (1978), quando alguém fica doente o arquétipo terapeuta-
paciente se constela. O doente procura o terapeuta exterior, mas ao mesmo
tempo se constela nele o terapeuta intrapsíquico, que é o “fator de cura”. Este é o
medico interno do paciente, cuja ação é tão importante quanto a do profissional
que atua externamente.
De acordo com a visão de Ramos (1994), a teoria Analítica de Carl Gustav
Jung fornece subsídios teóricos para a compreensão da doença como um
fenômeno que envolve a psique e o corpo. Assim, toda doença é um símbolo que
tem um significado para o indivíduo que é portador dela. Os sintomas psíquicos
bem como os somáticos podem ser relacionados a complexos patológicos.
Entender este significado traz a possibilidade de elaboração do complexo que está
por trás do sintoma e conseqüentemente a ampliação da consciência, o que
contribui para o desenvolvimento da personalidade, possibilitando transformações
tanto na maneira de se ver e ver o mundo, como na maneira de ser no mundo. É a
elaboração dos símbolos que o Self manda para a consciência por meio de
sonhos, imagens ou enfermidades, que equilibra o eixo Ego-Self. No caso de
manifestação por doenças, este equilíbrio interno atua positivamente na retomada
da saúde.
É importante ressaltar que o complexo nem sempre se relaciona a um
conteúdo negativo, mas por vezes diz respeito a um conteúdo positivo que está na
Sombra do indivíduo, em seu inconsciente, e que por alguma razão não foi
adequadamente elaborado e integrado. Esse conteúdo pode tornar-se o centro de
um complexo que atua patológicamente na psique, prejudicando o
desenvolvimento da personalidade, precisando, então, ser incorporado à
consciência.
“O sintoma orgânico pode corresponder a uma cisão na representação de
um complexo arquetípico, onde a parte abstrata/psíquica ficou reprimida. Ao ficar
desconectado do ego, esse sintoma se repetirá compulsivamente, como tentativa
de se integrar na consciência, a fim de que o processo de individuação possa
prosseguir”. (Ramos, 1994, p.59). A conscientização da polaridade deste
complexo ocorre através da transdução do símbolo de sua polaridade patológica
para sua polaridade psíquica, abstrata. A conscientização do símbolo, e sua
integração levam a uma melhora da saúde geral do indivíduo doente.
Transdução, segundo Rossi (1997[1993]) diz respeito à conversão de
matéria, energia e informação de uma constituição física para outra. Com relação
à questão mente-corpo, existem evidências de que o sistema límbico-
hipotalâmico se constitua no maior transdutor de informações.
É possível fazer um paralelo entre os princípios do xamanismo e da visão
da doença como símbolo na concepção da psicologia junguiana. Nesta
concepção, a cura se dá quando ocorre a integração de um complexo autônomo
que se manifestou simbolicamente através da doença. No xamanismo a doença
era vista como algo espiritual, isto é, também como uma desarmonia interna do
indivíduo, uma questão pessoal, algo que levava o indivíduo a se enfraquecer
tornando-o sujeito a enfermidades.
Desde 1987, de acordo com as informações encontradas, as pesquisas
sobre psiconeuroimunologia, realizadas por Glaser e Kiecolt-Glaser vêm tentando
estuda-la com relação a doenças virais. Através destas pesquisas, constatou-se
que situações de estresse, onde aparecem acentuados sentimentos de angústia e
insegurança, afetam o sistema imunológico, o que resulta num sistema de defesa
menos eficaz, que torna o organismo suscetível a ser invadido por um vírus.
Assim, de acordo com estes autores, pode-se dizer que o estresse pode provocar
uma imunopatologia.
Segundo Mello (1999), atualmente a Psicossomática reconhece a
interdependência fundamental entre mente e corpo em todos os estágios de
doença e saúde. Não existem doenças com causas puramente psicológicas ou
puramente orgânicas. Assim, todas as doenças são psicossomáticas, pois
envolvem uma inter-relação mente-corpo.
A abordagem atual holista da Psicossomática, é coerente com a teoria e o
método psicoterápico proposto por Jung, embora a Psicologia Analítica não tenha
contribuído diretamente para a Psicossomática. Como propõe Ramos (1994), é
possível entender o fenômeno psicossomático através do modelo analítico. O
teste de Associação de Palavras, usado por Jung no início de sua carreira,
forneceu as bases para a compreensão do fenômeno mente-corpo. De acordo
com Hannah (2003 [1999]), Jung começou a trabalhar com o teste de Associação
de Palavras, criado pelo médico alemão Wilhelm Wundt, em 1904. Jung foi o
primeiro a investigar as perturbações surgidas nas reações às palavras indutoras,
constatando a conexão das respostas dadas a alterações fisiológicas, medidas por
um polígrafo, estabelecendo assim, uma relação indiscutível entre psique e corpo.
A partir destas experiências postulou o conceito de complexo, como um núcleo de
intensa carga afetiva que agrupa em torno de si conteúdos psíquicos, também
carregados de afetividade. Os complexos funcionam como uma entidade
inconsciente e autônoma e por isto são capazes de contrariar as intenções do
indivíduo. Tanto na neurose como na psicose, os sintomas de natureza somática
ou psíquica originam-se dos complexos.
Como afirma Ramos (1994) a psicologia junguiana, aborda a doença como
símbolo de um desequilíbrio psíquico provocado por um complexo que está
represando uma quantidade de energia suficiente para impedir o fluxo adequado e
necessário ao desenvolvimento da personalidade. A doença surge, então, como
uma oportunidade de elaboração de um complexo, que poderá restaurar o
equilíbrio intrapsíquico necessário à retomada do Processo de Individuação,
objetivo principal da psicologia junguiana.
Esta revisão dá força à crença da psicossomática, da
psiconeuroimunologia, e da psicologia junguiana de que psique e corpo se
constituem num todo indissolúvel que se influenciam mutuamente, reafirmando a
necessidade do trabalho transdisciplinar, no atendimento à saúde. Acreditamos,
que o equilíbrio psíquico resulta numa qualidade de vida mais satisfatória, e que
uma intervenção psicoterápica poderia favorecer o desenvolvimento de resiliência
nos indivíduos que a vivenciassem. Resiliência foi entendida de acordo com a
definição de Rutter (1993), como um caminho onde o indivíduo enfrenta e
ultrapassa uma situação nociva, com mudanças e sucessos. Ainda segundo
Grotberg (1999), é uma capacidade universal de superar as adversidades da vida
e ser fortalecido por elas. É parte do processo evolutivo e pode ser promovido
desde o nascimento. É um potencial humano, presente nos seres humanos em
todas as culturas e em todos os tempos.

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