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Revista Jung Corpo 4 Edição
Revista Jung Corpo 4 Edição
Boa Leitura!
LER/DORT - O Príncipe que Virou Sapo e...
A história que vou contar é sobre um lindo menino, que um dia virou sapo
e...
Era uma vez um menino chamado Vinícius, que nasceu em uma pequena
cidade bem longe daqui.
Sua mãe era uma pessoa forte e dominadora, que o reprimia muito, e não
permitia que brincasse com outras crianças. Estava sempre a repreendê-lo,
deixando-o de castigo por qualquer coisa.
Seu pai era um homem fraco, que vivia doente, não conseguia defender os
filhos das garras da mãe, e não protegia nem apoiava o pequeno Vinícius.
Vinícius sentia-se sozinho e muito fraco, não conseguia fazer amigos, e era
muito tímido e medroso.
Um dia aconteceu uma grande festa em sua cidade, com um suntuoso
desfile militar.
Sua mãe ficou encantada com a beleza e a força dos soldados, e naquele
dia traçou o destino do filho. Decidiu que ele seria um forte guerreiro, como
aqueles soldados, e por mais que a criança dissesse que não queria ser como
eles, a mãe não lhe deu ouvidos, dizendo que quando se tornasse soldado seria
forte, admirado e respeitado...
E assim aconteceu. Aos 17 anos Vinícius foi para a Escola Militar. Longe da
família, sentia-se muito isolado, não conseguia fazer amigos, sentia-se diferente
dos colegas, seu modo de falar e seu corpo eram diferentes; tudo fazia com que
se sentisse cada vez mais fraco e isolado. Nada estava acontecendo como sua
mãe havia dito...
Não se sentia forte e poderoso, nem era admirado ou respeitado pelas
pessoas. Ao contrário, sentia-se muito infeliz. Não conseguia se libertar do destino
escolhido por sua mãe, e por não conseguir satisfazer esse desejo, sentia-se sem
importância, pequeno e desvalorizado.
Vinícius descobriu que era respeitado e admirado apenas quando jogava
futebol. Era o melhor da equipe, sempre convidado para fazer parte dos melhores
times.
Nesses momentos, em que se tornava o centro das atenções, sentia-se
como um rei, importante, respeitado, grande e feliz. Mas não podia viver apenas
de futebol; tinha de ser o “forte soldado” sonhado por sua mãe, embora fora do
campo voltasse a sentir-se fraco e incompetente, voltasse a ficar triste e
deprimido.
À medida que os dias passavam, mostrava ser um péssimo soldado. Seus
chefes lhe chamavam a atenção, e era rejeitado pelos colegas, pois sempre
fracassava em combate.
A cada derrota tornava-se mais fraco, e seu corpo doía muito. Sua
aparência mudava; seu corpo se tornava rígido e duro, suas mãos não mais o
obedeciam. Sua única alegria era o futebol, mas como seu corpo estava muito
duro, seus joelhos também ficaram doentes, inchavam e doíam muito, e Vinícius
não pôde mais jogar bola e ser o “rei do campo”.
Ele ficou desesperado, não sabia o que fazer, e procurou ajuda com todos
os médicos do seu país. Contudo, quanto mais se tratava, pior ficava.
Um dia, ao consultar um novo médico, este disse a Vinícius que ele estava
doente e se transformando em um sapo, pois não havia cuidado da sua alma.
Vinícius levou um grande susto, achou tudo muito estranho, pois não acreditava
nessa história de alma doente; achava que apenas suas mãos e joelhos estavam
doentes.
O médico recomendou que ele procurasse uma velha senhora que tratava
de almas. Seu sofrimento era tanto, que mesmo sem acreditar resolveu procurar a
velha senhora. Com ela Vinícius descobriu que havia abandonado sua alma, e por
isso seu corpo estava morrendo, ficando duro e doente. A única solução era
encontrar sua alma onde a havia perdido.
Vinícius chorou muito, talvez pela primeira vez em sua vida, e pensou que
faria qualquer coisa para ser feliz. Percebeu que suas lágrimas amoleciam o seu
corpo rígido, e suas dores começaram a diminuir. Passou a observar-se mais,
procurando descobrir seus verdadeiros sonhos, conhecendo-se e cuidando-se
com amor.
Percebeu que seu corpo mudava, sentia-se mais feliz, respeitava suas
emoções, e começou a se dar conta de quem de fato era: uma pessoa muito
diferente daquela que fora a vida inteira, fechado, tímido, rígido e retraído. O novo
Vinícius era alegre, festeiro, gostava de si e das pessoas, não sentia medo e
queria muito namorar.
Um belo dia, ele conheceu uma linda princesa, por quem seu coração bateu
com tamanha força que Vinícius se assustou, pois nunca havia sentido algo tão
forte. Seu amor foi correspondido. Vinícius sentiu a vida voltando para dentro de
si. Percebeu que havia reencontrado sua alma.
Nesse momento foi capaz de abraçar e beijar a linda princesa, voltando a
ser o príncipe que um dia se transformara em sapo. Notou que suas mãos não
mais o contrariavam, que desenvolviam as tarefas com prazer, porque agora
gostavam do que faziam. Como suas mãos, seus joelhos também deixaram de
doer.
Vinícius descobriu o quanto era forte, e se tornou uma pessoa inteira e feliz.
E desse modo ele foi capaz de compartilhar sua vida com a bela princesa.
É o corpo que nos sinaliza quando estamos bem ou não, e esse sinal vem
através de uma doença, uma dor. Nosso corpo nos aponta nossos conflitos, e
também pode nos apontar quando estamos bem, quando estamos no nosso
verdadeiro caminho, quando estamos realmente dentro da nossa existência. No
caso de Vinícius, havia uma grande pressão externa para que ele corporificasse a
imagem do Soldado, do Guerreiro, mas a sua essência era outra, e seu corpo
expressou esse conflito, negando-se a ser o que ele de fato não era. Vinícius
deprimiu por acreditar que o “erro” estava nele, e não nas expectativas sem
ressonância interna. Somente ao reconhecer suas verdadeiras expectativas ele foi
capaz de se libertar das amarras e caminhar em direção à realização plena de seu
potencial.
Quem você deve ser - isto é, quem lhe pedem que seja, de acordo com
seu papel em determinada sociedade, pode ser muito diferente de quem
você nasceu para ser. (Keleman, 2001, p. 33)
Referências Bibliográficas
BERTHERAT, T. O Corpo tem suas Razões. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
KELEMAN, S. Mito e Corpo; Uma Conversa com Joseph Campbell. São Paulo:
Summus, 2001.
Sites
http://www.bristol.com.br/saude/ler-dort/fasc3/ler3-05.htm
http://www.neuro.med.br/ler.htm
O TRABALHO CORPORAL APLICADO A PESSOAS COM
SÍNDROME DE DOWN
Apresentação
Introdução
1
Psicóloga, Especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais
pelo Instituto Sedes Sapientiae. Coordenadora do Setor de Psicologia da ADID – Associação para
o Desenvolvimento Integral do Down.
A Síndrome de Down ou Trissomia do 21 é uma anomalia nos
cromossomos que apresenta características bastante visíveis, malformações,
alterações orgânicas e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, presentes em
algum grau.
O ritmo mais lento nas etapas de desenvolvimento de uma pessoa com
Síndrome de Down faz com que ela seja submetida a programas sistemáticos de
estimulação desde o nascimento, como ocorreu com a atual geração de jovens e
adultos da ADID. A cada etapa de suas vidas, enfrentaram e superaram novos
desafios, apresentando respostas muito positivas às estimulações recebidas.
Apesar do amadurecimento e sucesso em vários aspectos de suas vidas, a
maioria dos jovens ainda demonstrava certa imaturidade, inclusive na percepção
de si mesmo e do mundo, dificuldades na relação com o próprio corpo e grande
dependência emocional da família. Apresentavam, em alguns casos, uma
indiferenciação, principalmente em relação à mãe.
Casarin (2001) constatou que a pessoa com Síndrome de Down é aceita
dentro da família que a assume e procura proporcionar as melhores condições de
desenvolvimento. Entretanto, a insegurança quanto à sua capacidade impede que
a família incentive sua autonomia e lhe permita uma vida independente, e assim
não possibilita o desenvolvimento de uma identidade diferenciada. As mães, ao se
colocarem próximas dos filhos com Síndrome de Down, associam sua vida à vida
deles, formando um par indiferenciado e conduzido por elas. Esse relacionamento
alimenta a dependência afetiva e social e fortalece características infantis.
Neumann (1980) afirma que, no mundo matriarcal, o predomínio é do
inconsciente e a consciência egóica ainda não se desenvolveu. É esperado que
durante a primeira metade da vida predomine a psicologia do ego. A síntese e a
ampliação da consciência, e a integração da personalidade, ocorrem sob o
comando da centroversão. Na segunda metade da vida, cada vez mais a
consciência vai expandindo e o ego vai se colocando a serviço do centro da
personalidade (Self), no processo descrito por Jung como individuação.
Partindo desses estudos e das observações realizadas na ADID, o projeto
de pesquisa com base nas técnicas integrativas de desenvolvimento da unidade
corpo-mente, foi incluído no programa da psicologia desta Instituição.
O problema da pesquisa consistia em verificar se o trabalho corporal
poderia favorecer maior consciência do próprio corpo, melhorando a qualidade da
respiração e da postura, contribuindo conseqüentemente para estimular a
estruturação egóica e construção da identidade em pessoas com Síndrome de
Down. Observou-se a evolução e a integração através do enfoque Junguiano.
Jung foi um dos pioneiros na abordagem da unidade corpo-mente. Como
médico, ele questionava o conceito de doença e sugeria que os próprios médicos
reconhecessem e olhassem o paciente em sua totalidade.
Para Byington (1988a), os sistemas corporais (respiratório, digestivo,
cardiovascular, neuroendócrino e locomotor) afetam de forma característica vários
símbolos que estruturam, tipicamente, nossa identidade e nossa forma de estar e
conhecer o mundo... O corpo estrutura simbolicamente a consciência, nela
incluindo suas características e limitações. A função estruturante da consciência
através dos símbolos constitui o processo de elaboração simbólica, no qual se faz
a discriminação do ego e do outro na consciência.
Trabalhando a pele
PELE
“Se não tivesse pele, seria só ossos
Importante para sentir o toque
A pele é tudo que a gente tem
É um sentimento
A pele está no corpo todo, até o coração tem pele
A gente sente a emoção através da pele:
Triste ou apaixonada, a pele sente
Em mim a pele é áspera: no amor é lisa, na família é áspera
Pele é bonita e elegante
A pele é bonita quando nós nos preocupamos com ela.
Sorrir faz bem para a pele
E o coração também fica feliz
Sinto energia quando toco a minha pele”
(Poesia sobre a pele humana - construção coletiva - 17/09/01)
A PELE
“Sentir que a
Pele é áspera
Pelo ar do horizonte
E nas plantas
Aparecem vendavais
E respiram pela natureza
Limpa como uma pele
Tão bonita e bem tratada
Pela união dos
Corações de uma força
Irresistível das peles
Do mundo”
(Poesia sobre a pele humana feita pelo aluno JD de 24 anos - 17/09/01)
Trabalhando a respiração
Resultados Iniciais
. Síndrome de Down: O assunto já havia sido discutido, mas desta vez a reflexão
passou a ser mais profunda sobre o “ser diferente” na família, no trabalho e na
sociedade. O “olhar” das pessoas na rua, no shopping, nas viagens, no trabalho,
foi motivo de muitos relatos, observações e reflexões.
Preconceito, discriminação, inclusão e responsabilidade social foram alguns
dos conceitos estudados e trabalhados no momento dos relatos de experiências.
Avaliação
Aluna JF - 25 anos:
CORPO
“O corpo é uma confiança muito importante que temos.
Mesmo cuidando dele quando for preciso e necessário a ajudar.
A auto estima está em primeiro lugar na nossa vida.
Um grau de muito potencial e jogo que deve soltar mais.
O corpo é uma forma de saúde mais radical e moderada.
O corpo é um exercício muito grande de relaxamento e de aceitação e firmeza
E sempre acreditando no seu sucesso
E pés para a frente aonde se anda no caminho da vida
Ser firme é sempre ser feliz
O quanto você quiser, vá a luta”. (JF – 02/12/02)
Des.1 (2001) Des.2 (2002) Mod.1(2001) Mod.2 (2002)
Aluna DC - 27 anos:
Aluno FF - 34 anos:
CORPO
“Eu gostei de fazer os exercícios do corpo
De pegar laranja
Gostei de fazer a massagem com a bolinha
Eu gostaria para fazer
De voltar a toalha
Fazer o flamingo
Foi bom para mim fazer a respiração
Para se soltar
Eu gostei”
(FF– 02/12/02)
Aluno GD - 26 anos
CORPO
“Corpo é tudo que tem na minha vida
E ele sustenta
E o corpo tem muitas articulações
Faço academia e mexo todas as articulações
Corpo da minha vida”
(GD – 02/12/02)
Des.1 (2001) Des.2 (2002) Mod.1(2001) Mod.2 (2002)
Figuras 13, 14, 15, 16 - Desenhos e Modelagem do Corpo – GD 26 anos – sexo masculino
Conclusões
Discussão
Referências bibliográficas:
Livros
Suzana Delmanto1
1
Psicóloga Clínica, Especialista em Cinesiologia pelo Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, SP.
complementa: “deduziu Jung que a escuridão noturna corresponde à noite psíquica
primordial, ao estado de inconsciência e que o anhelo pela luz é o anhelo pela
consciência” (Silveira, 1992, p. 19).
O medo ou o pânico noturno repercute na disposição funcional do organismo,
acarretando disfunções que podem configurar quadros de indisposições, desde os
mais simples até os de mais alto grau de complexidade. Os distúrbios ansiógenos e
as tensões cronificadas, a somatória de desequilíbrios tanto psíquicos quanto físicos,
podem ser considerados como agentes de doença, prejudicando ou impedindo a
possibilidade de a pessoa escolher o rumo das suas ações ou usufruir das suas
condições de vida. Nas noites, costumam ser mais gritantes os ressentimentos e as
tristezas, assim como os medos e a solidão; enfim, na escuridão as dores da alma
parece que se potencializam e se expressam no corpo numa linguagem primária e
visceral. A respeito da configuração das neuroses no corpo, podemos encontrar nos
trabalhos apresentados por Jung com a imaginação ativa, observações claras que
apontam para a linguagem corporal dos sentimentos e das emoções, como está
registrado na seguinte passagem: “são poucos os casos de neurose nos quais as
vísceras não estão perturbadas” (Jung, 1976, p. 52). Nesse mesmo sentido,
considerando a expressão das emoções na linguagem corporal, Walther Bühler,
numa postura antroposófica, falando do corpo como instrumento da alma e
comentando sobre as interligações com os sentimentos, a consciência e a vontade,
asseverou: “O vai-e-vem dos sentimentos se manifesta nos processos rítmicos da
respiração e do batimento cardíaco; ... o desabrochar da vontade de nossa alma se
expressa no sistema metabólico-motor” (Bühler, 1990, introd.). Como a calatonia
trabalha diretamente na escuta das manifestações corporais, promovendo condições
para a livre ocorrência de movimentações orgânicas que visam o reajuste das
respectivas funções, podemos visualizar o seu potencial de alcance não só no
trabalho com os quadros das neuroses, mas com os desequilíbrios físicos e
psíquicos que vão se configurando no dia-a-dia em diferentes intensidades e
composições. A melhora na qualidade da noite e do sono é um dos importantes
conseguimentos desta técnica, que favorece naturalmente o aflorar de sonhos. Em
uma das colocações feitas por Jung sobre os sonhos, ele comenta: “funcionam
principalmente no sentido de reações de defesa, como auto-reguladores de posições
conscientes demasiado unilaterais ou anti-naturais” (Silveira, 1992, p. 106).
A calatonia, aplicada sistematicamente no contexto terapêutico como um
recurso auxiliar, encontra condições ideais para que os seus benefícios possam se
potencializar. Como é reconhecido em todos os trabalhos de cura, incluindo o campo
analítico, também na calatonia a confiança do paciente no terapeuta e a qualidade do
vínculo estabelecido são de vital importância e têm relação direta com a efetividade
do trabalho. Assim, ao se desenvolver “uma efetiva ressonância bipessoal” (Sándor,
cit., p. 100), se expandem as condições para a entrega aos toques calatônicos,
favorecendo uma maior soltura do corpo e da mente. O efeito dos toques pode
alcançar vários níveis ao mesmo tempo, desde a repercussão no funcionamento
mais visceral do organismo até a mobilização de sentimentos e de memórias
esquecidas, ativando o aflorar de imagens ou de fantasias que podem ser
consideradas de valor onírico. O método de relaxamento calatônico, na medida em
que promove um estado de rebaixamento da fiscalização da mente racional, criando
um estado crepuscular da consciência, propicia condição para que o corpo possa
criar seus próprios movimentos na direção de auto-regulação, sem os bloqueios
causados pela interferência da mente racional. O estado crepuscular da mente, que
costuma se manifestar durante a vivência com os toques calatônicos, pode não só
favorecer o aflorar daqueles conteúdos que, segundo Jung, “repousam no leito mais
superficial do inconsciente e que constituem a intimidade pessoal, mas também, aos
que repousam num leito mais profundo, conteúdos de natureza mais universal”
(Jung, 1971, pp. 13-14). A expressão em imagens ou vivências simbólicas de tais
conteúdos costuma ser facilitada pelo rebaixamento da fiscalização da consciência,
aspecto que pode ser freqüentemente constatado durante o trabalho calatônico. Uma
das principais características do estado crepuscular da mente é o não apagamento
total da consciência. Nesse estado similar ao da vigília, costuma ficar favorecido não
só o potencial de captação das mensagens simbólicas, das expressões instintivas ou
dos conteúdos de tonalidade afetiva, mas também, a digestão desses conteúdos
através de um vivenciar corpóreo, criando condições para serem assimilados ou
absorvidos pela consciência. Conforme Jung assevera, “só se pode reconhecer a
existência psíquica através daqueles conteúdos que vão se tornando conscientes
(cit., p. 14).
As razões pelas quais a calatonia costuma apresentar um alcance que, por
vezes, se faz tão profundo e abrangente, podem ser encontradas na análise das
bases do método. A essência dos conseguimentos fundamenta-se principalmente na
riqueza da plasticidade sensorial e do potencial do tato. Conforme comentários de
Pethö Sándor e de Asheley Montagu, “é um campo ainda pouco explorado o da
plasticidade sensorial” (Sándor); e ainda: “as bases psicofísicas e
psiconeuroimunológicas do tato continuam sendo campos abertos e promissores
para a realização de pesquisas internas” (Montagu, in Delmanto, 1992, pp. 127 e
181). O potencial da pele de captação de estímulos e de propagação por todo
organismo deve-se à sua interligação com o sistema nervoso, podendo encontrar
uma das suas explicações “na sua origem ectodérmica, que na fase embrionária é a
mesma do sistema nervoso” (Sándor, cit., pp. 99 e 100). Montagu “ressalta a pele
como órgão tátil, estando envolvida diretamente no desenvolvimento e no
crescimento do organismo, tanto na sua expressão física como afetiva-sentimental e
comportamental” (Montagu, 1988, pp. 21 a 61). O conceito “a mente da pele” (cit., p.
16) é introduzido nesta abordagem de origem cientifica, assim como a visão de que
“o sistema nervoso é a parte escondida da pele ou, ao contrário, a pele pode ser
considerada como a porção exposta do sistema nervoso” (cit., p. 23).
A relação do ritmo do corpo na dinâmica de dormir e acordar com o significado
humano do contato pelo toque vem sendo considerada e pesquisada em todas as
áreas relacionadas com saúde e comportamento. Nessa esteira, o estudioso dos
comportamentos humanos Lionel Tayler pondera que: “o maior sentido do nosso
corpo é o tato. Provavelmente, é o mais importante dos sentidos para os processos
de dormir e acordar” (Tayler, 1921, p. 157). O ser humano necessita da nutrição pelo
toque, principalmente nos períodos de desequilíbrio com somatizações e anseios,
emoções tumultuadas e opressão dos sentimentos. Nestes períodos nebulosos, os
toques calatônicos são de incontestável adequação. A calatonia favorece a abertura
de condições para que os “dinamismos da natureza”, como faz referência Jung,
possam trabalhar a favor de um reequilíbrio organísmico.
Entre as qualidades amplas da calatonia, temos que os toques cuidadosos,
delicados e não invasivos podem mobilizar sensações por vezes esquecidas, de um
acalento que promove plenitude. Anna Freud, numa linguagem psicanalítica,
menciona os cuidados do início da vida, ressaltando o valor do contato corporal, o
valor da importância de ser tocado de leve ou aconchegado para consolidar uma
imagem corporal e um ego corporal saudáveis (Montagu, 1988, p. 203). Nos
períodos de stress, nas fases conturbadas da vida que se caracterizam por queixas
de disfunções orgânicas e pressões psíquicas, costumam se manifestar mais
intensas as necessidades de contato assim como dos anseios orais. A tendência a
regressão ou a comportamentos regressivos podem aparecer nos períodos obscuros
da vida, quando não são visualizadas as orientações sobre o rumo do caminho a ser
tomado, acentuando a impotência das soluções racionais. Podemos encontrar um
comentário de Jung, dizendo: “a regressão em geral ocorre quando na frente há um
obstáculo; ao regredir é retomado um modo mais primitivo de resolver o problema do
obstáculo.” (Jung, 1976, p. 36). Nesses períodos, a orientação trazida pela natureza
primária é preciosa, conforme também nos aponta Jung: “Se seguirmos as leis que
estão na nossa própria natureza, ela nos conduzirão ao fim correto” (cit., p. 82); e
ainda: “aqueles que seguem os instintos estão melhor protegidos do que com toda a
sabedoria do mundo.” (cit., p. 33). Continua fazendo no transcorrer dos Seminários
das Visões – material colhido no seu trabalho com a imaginação ativa – mais
observações sobre a importância das indicações instintivas nos momentos difíceis da
vida, nos momentos de grandes depressões, quando tudo que foi aprendido se
desvanece (Jung, 1976).
O vivenciar da calatonia favorece a escuta da linguagem corporal,
promovendo um mergulho nas profundezas da mente e do corpo, podendo mobilizar
com naturalidade o aflorar de orientações advindas da natureza dos instintos. Em
todos os tempos e nas mais distintas culturas foi sempre reconhecida a importância
do contato no transcorrer de toda a vida, desde o nascimento até a morte. Faz parte
da natureza humana o diálogo pelo contato corporal para um desenvolvimento
saudável, tanto físico quanto psíquico. São numerosas as pesquisas na atualidade
nesse sentido, reconhecendo que o contato físico é fonte de alimento e
imprescindível para a vida. Montagu cita numerosos estudos com crianças que, pela
falta de contato (criadas em creches públicas) apresentam características de
definhamento ou marasmo, assim como aquelas em que a mãe, por problemas
psicológicos, não aceita a criança (Montagu, 1988, p.104). Como a base da calatonia
são toques suaves aplicados nos pés, esse contato sutil e prolongado costuma
favorecer o vivenciar de um berço de acolhimento que é nutritivo, podendo mobilizar
sensações de proteção com cuidado e delicadeza. Este trabalho favorece uma
soltura sem constrangimento e sem medo, dando à pessoa condições de sentir um
contato pleno. A vivência do trabalho corporal calatônico costuma preencher os
espaços vazios da alma, produzindo por vezes um efeito calmante e nutritivo de tal
grandeza que os medos e as somatizações se dissipam naturalmente, fazendo com
que as noites se tornem bem-vindas, com o mergulho em sonos profundos.
No transcorrer dos atendimentos semanais com a vivência calatônica, a
análise da qualidade do sono, assim como de outros distúrbios somáticos que
possam ter sido trazidos, servem como pontos de avaliação para a eficiência dos
trabalhos. O alívio promovido pelo apaziguamento das disfunções somáticas, que
costuma também se manifestar em noites mais calmas, além do bem-estar
decorrente, com freqüência se faz acompanhar de um estado de ânimo com
manifestações de mais leveza. Costumam ser marcantes as alterações que podem
ser observadas na qualidade da dinâmica psíquica no decorrer de um trabalho
terapêutico que usa como recurso o método calatônico. Uma amplitude ou uma visão
mais panorâmica da realidade e dos focos problemáticos costuma se evidenciar na
fala terapêutica.
O estado de reflexão pode encontrar um campo de ressonância no contexto
calatônico. A reflexão costuma favorecer o acalmar dos instintos e dos impulsos,
trazendo o auxílio da luz da consciência. De modo habitual a reflexão é associada a
um estado consciente da mente. Porém, podemos encontrar com Jung a reflexão
visualizada numa outra dimensão. Ele faz referência dizendo: “a reflexio é um voltar-
se para dentro, tendo como resultado que, em vez de uma reação instintiva, surja
uma sucessão de conteúdos ou de estados que podemos chamar de reflexão ou de
consideração” (Jung, 1986, p. 54). O processo calatônico pode ser compreendido
como também tendo condições de abranger, eventualmente, a reflexão da visão
junguiana.
Considerando a importância da leitura das mensagens corporais, Nise da
Silveira nos lembra que são numerosos os biólogos que realçam a finalidade das
atividades orgânicas como fenômenos de regulação vital, classificando os sonhos
entre as atividades desse tipo, exercendo funções importantes ou mesmo vitais para
a economia psíquica (Silveira, 1992, p.107). Jung, comentando sobre o corpo e os
sonhos, faz um paralelo dizendo:
Referências Bibliográficas
MONTAGU, A. Tocar: o significado humano da pele. São Paulo: Ed. Summus, 1988.
SILVEIRA, Nise da. Jung, Vida e Obra. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1992, 13ª
edição.
TAYLER; J. L. The stages of human life. New York: E.P. Dutton and co, 1921.
Neusa M. L. Sauaia1
Ceres Alves Araújo2
Resumo
1. Compreendendo a Resiliência
1
Psicoterapeuta junguiana. Professora e Supervisora do curso de Psicoterapia de Orientação Junguiana
Coligada a Técnicas Corporais, no Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
2
Psicóloga, Analista Junguiana pela SBPA, Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela
UNIFESP. Professora do Núcleo de Psicossomática e Psicologia Hospitalar e do Núcleo de Estudos
Junguianos do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUCSP.
Anthony e Cohler (1987) foram os organizadores do livro considerado pioneiro na
discussão da temática da resiliência – The Invulnerable Child. Nessa obra,
Anthony aborda os conceitos de risco, vulnerabilidade e resiliência, referindo-se à
surpresa de muitos investigadores quanto a uma aparente “psico-imunidade” de
determinados indivíduos diante de adversidades.
Spacarelli e Kim (1995) consideram resiliência como a capacidade de
manter um funcionamento adaptado apesar de situações adversas. A resiliência
não equivale a resistência, pois não é apenas a possibilidade de suportar
condições adversas, mas sim, a capacidade de recuperar-se e voltar a viver com
uma qualidade de vida normal.
Inicialmente pensava-se que as pessoas consideradas resilientes
possuiriam atributos especiais, inatos ou desenvolvidos ao longo da vida. No
entanto, muitos estudiosos abandonaram tal idéia em favor de considerar a
resiliência como um processo dinâmico que leva em conta múltiplos aspectos que
envolvem fatores de risco e proteção. Rutter (1981,1985,1987,1993) aponta sete
possíveis mecanismos envolvidos nos fatores de proteção:
Buscar recursos para enfrentar essa triste realidade torna-se não apenas
desejável, mas inevitável para a sobrevivência de cada indivíduo e da própria
humanidade. Alguns dos recursos ou fatores de proteção apontados na literatura
são: inteligência, autonomia, boa saúde, amigos, familiares, religião, hobbies,
bichos de estimação.
Por outro lado, encontram-se aquelas situações ou circunstâncias que
funcionam como fatores de risco e que causam vulnerabilidades no enfrentamento
das situações de vida. Entre elas estão: baixo peso ao nascer, uso de drogas,
divórcio, traumas de massa – furacões, tufões, terremotos, maremotos – pobreza,
acidentes, morte de familiares, problemas psiquiátricos.
Embora, as definições do conceito de resiliência ainda levem a muitas
controvérsias entre os pesquisadores, Luthar e Cichetti (2000) apontaram as
vantagens do uso do paradigma da resiliência nas pesquisas sobre tratamentos e
intervenções:
Referências Bibliográficas
Rutter, M. Stress. Coping and Development: Some Issues and Some Questions.
Journal of Child Psychology and Psychiatry and allied disciplines, v. 22, n. 4, pp.
323-56,1981.
Spaccarelli, S.; Kim, S. Resilience criteria end factors associated with resilience in
sexually abused girls. Child Abuse and Neglect, v.19, n.9, pp. 1171-82, 1995
HISTÓRICO
Estávamos em junho de 1998 quando este caso chegou até mim. Florzinha era
uma menina de 5 anos que morava com seus pais, um irmão de 11 anos e sua avó
materna. Os pais vieram procurar um atendimento psicológico devido a um pedido da
escola. A queixa era de que ela não falava com adultos fora de casa. A princípio, os pais
achavam que fosse vergonha, pois Florzinha, até então, passara a maior parte do tempo
em casa com a família. Só quando passou a freqüentar a escola é que este não falar se
evidenciou. Havia começado a freqüentar a escola no ano anterior; nos primeiros dois
meses não falava com a professora, mas depois passou a falar. No entanto, aos 5 anos,
passou para o Jardim II e já estava no meio do ano e ainda nada falava com a
professora. Por outro lado, seu comportamento com as outras crianças era tranqüilo;
tinha vários amigos, era criativa, liderava as brincadeiras e participava com desenvoltura
de todas as atividades propostas, inclusive das apresentações de coral, desde que a
professora ou qualquer outro adulto não ficasse ao seu lado.
1
Psicóloga junguiana. Especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo
Instituto Sedes Sapientiae.
No decorrer das entrevistas de anamnese não havia nada que indicasse qualquer
dificuldade orgânica. Seu desenvolvimento havia transcorrido normalmente. Quanto aos
dados da dinâmica familiar, a análise dos desenhos e da observação lúdica no processo
de psicodiagnóstico não sugeriam nada que apontasse para o porquê ou justificasse tal
comportamento. Um dado relevante que os pais levantaram foi quanto ao impacto
positivo e a importância que a vinda de Florzinha ao mundo havia representado. No ano
anterior ao seu nascimento um tio sofrera um acidente e ficara em cadeira de rodas;
meses antes seu pai havia passado por um período depressivo e há dois dias de seu
nascimento seu avô materno falecera. Portanto, a vinda dela foi tida como uma dádiva
em meio a tanto sofrimento.
HIPÓTESES DIAGNÓSTICAS
Em minha busca de tentar compreender este caso foram sugeridas diferentes
hipóteses quanto à causa deste comportamento de não falar.
“Se hoje existe um campo, em que é indispensável ser humilde e aceitar uma
pluralidade de opiniões aparentemente contraditórias, esse campo é o da psicologia
aplicada...” (Jung – O.C. vol. XVI § 71). Sabemos que as interpretações refletem apenas
visões de determinados ângulos e pontos de vista, e não são necessariamente verdades
absolutas.
Meu questionamento diante do caso não era mais: por que Florzinha não falava
com adultos? Mas sim: que função este não falar tinha em sua vida?
Foi com perguntas em aberto que fiz a devolutiva e partimos para o processo
psicoterapêutico. As sessões foram realizadas duas vezes por semana, no período entre
junho/1998 e dezembro/2000.
FUNÇÃO DA TERAPIA
A função da terapia não seria a de fazer Florzinha falar, não tinha por objetivo
convertê-la para a normalidade. A busca era de conhecê-la e abrir um espaço em que
pudesse conquistar o que necessitava, à sua maneira e em sua própria linguagem.
O PROCESSO PSICOTERAPÊUTICO
Nos primeiros atendimentos Florzinha não se sentia segura em entrar na sala sem
a companhia da mãe. Propus que ficássemos de porta aberta e que sua mãe ficasse na
sala ao lado durante todo o atendimento e garantindo ainda que, a qualquer momento,
ela poderia ir verificar se a mãe estava de fato à sua espera. Esse medo é algo esperado
em crianças de sua idade e teve que ser respeitado até ela ter segurança suficiente para
entrar sozinha.
Sua linguagem, embora fosse apenas gestual, era rica e bastante inteligível. Os
jogos predominantes desta fase foram os de mímica e um chamado “Senha”; assim o
verbal, de fato, era pouco necessário na relação. É claro que eu, enquanto terapeuta, não
deixava de provocá-la e sempre que tinha oportunidade também fazia as minhas
explorações quantos aos recursos e limites de Florzinha.
Resgatado o instinto, foi possível haver força suficiente para quebrar a barreira da
palavra. O cachorrinho agora era utilizado como o boneco do ventríloquo, porta-voz de
Florzinha. A fala aqui era sempre na 3ª pessoa.
LINGUAGEM DO CORPO
“Alguns já disseram que o corpo não mente. Mais que isso, ele conta muitas
histórias e em cada uma delas há um sentido a descobrir”. (Leloup, 1998)
Felizmente a sincronicidade está aí, basta que estejamos atentos. Nesta ocasião, a
porta da sala de atendimento emperrou. Não tive dúvidas em propor-lhe para nos
aventurarmos em pular a janela, darmos a volta pelos fundos e surpreendermos sua mãe
na recepção entrando por outra via de acesso. Tudo isto, é claro, com a minha
sonoplastia da música tema de “Indiana Jones”. Esta ação foi inesperadamente lúdica e
altamente simbólica. Recusamo-nos a permanecer trancafiadas e nos entregamos à
liberdade corporal e suas benéficas conseqüências na estrutura egóica.
As estruturas, antes enrijecidas, agora estavam uma a uma ruindo. Havia espaço
para o riso, a raiva, a descontração e tudo o mais que uma criança tem direito.
LINGUAGEM DO SILÊNCIO
Quebradas algumas barreiras defensivas, o temor pôde vir à tona. Num certo dia,
Florzinha veio para a terapia, porém, diferente das outras vezes. Seu olhar, enquanto
subíamos a escada até a sala e ao entrarmos, era tenso e, ao mesmo tempo, triste.
Como não sou o tipo sensação não entendi a princípio e perguntei-lhe o que estava
acontecendo. Ela permanecia imóvel; foi então que notei que ela havia “esquecido” o
cachorrinho de pelúcia, seu protetor, companheiro e auxiliar em nossa comunicação. A
angústia e o peso do não falar ficaram fortemente marcados. Apontei a sua dor e sentei-
me quieta ao seu lado. Aos poucos, Florzinha se aninhou em meu colo e permanecemos
no mais absoluto silêncio durante a sessão inteira.
LINGUAGEM DA CRIAÇÃO
LINGUAGEM DA CONSCIÊNCIA
O medo é uma experiência normal e não precisa ser combatido. Opera como um
estímulo transpessoal para o desenvolvimento da consciência. O medo é até necessário,
pois nos faz buscar recursos para enfrentá-lo.
Florzinha montou uma cena que ilustra bem isso. Na época eu estava
colecionando “geloucos” (monstrinhos florescentes). Havia diversos deles e Florzinha
espalhou-os pelo chão, alguns de costas para nós. Pegou sua lanterna, apagou as luzes
e, sentada em meu colo na poltrona, ia iluminando-os um a um. Seu medo era grande,
encolhia-se em meu colo, apertava a minha mão e tornava a iluminá-los. Na sessão
seguinte, montou a mesma cena, porém desta vez todos estavam de frente e ela não
precisou sentar-se no meu colo. Com a lanterna passou a conversar, a brigar com eles e
até ficou amiga de uns e outros.
Nesta etapa da terapia, a fala surge então na primeira pessoa e sem intermediário.
No decorrer do desenvolvimento da consciência o pensamento mágico (citado
anteriormente) vai dando espaço para o modo mitológico da experiência. As bruxas e
dragões podem ser mortos por figuras heróicas. O pai aqui assume grande importância,
pois servirá como guia para a realização da ordem, independência e autoconfiança.
Nesta mesma época, Florzinha havia solicitado que o pai a trouxesse à terapia e permitia
apenas a sua entrada na recepção, enquanto que a mãe passou a ser limitada à porta do
consultório.
LINGUAGEM DO FOGO
Numa das sessões, Florzinha quis fazer uma fogueira e queimar antigas
bandeirinhas que havia confeccionado no ano anterior e guardado em sua caixa. O brilho
em seus olhos e sua expressão demonstravam a força e o poder do fogo enquanto
purificador. O que não mais servia, o velho, podia ser queimado e abria-se espaço para o
novo.
Em outra ocasião quis utilizar o fogão para fazermos brigadeiro. Que delícia de
sessão! O aspecto do fogo enquanto aquele que aquece e possibilita a mistura, a
integração dos diferentes elementos que servirão de alimento, ficou evidenciado.
Por fim passamos a confeccionar velas. Todo o processo terapêutico pôde ser
simbolizado. Começamos pela quebra da parafina em barra e o seu derretimento, assim
como a quebra das amarras e da rigidez do início. Florzinha passou a experimentar
diferentes cores e formas, como havia feito na linguagem criativa. A transformação e as
misturas mágicas experienciadas eram agora claramente percebidas.
Entre as diversas velas feitas, duas foram reveladoras. Uma que não deu muito
certo, tanto pela forma como pela cor. Florzinha a deixou fora de sua caixa e recusava-se
a aceitá-la; colocou-a em um lugar afastado na sala e ficou sessões sem sequer tocá-la
(literalmente o conteúdo sombrio). Outra foi uma vela que quis enformar numa latinha
com saliências que impediam a retirada da vela; mesmo sendo prevenida da possível
dificuldade, quis utilizá-la como forma. Era uma vela que havia levado sessões para fazê-
la, pois, por ser tricolor, era preciso que uma camada esfriasse para colocar a próxima.
Era, portanto, muito especial. Como fora previsto, não havia meio de retirar a vela da
latinha. Florzinha tentou de tudo, inclusive recorreu às ferramentas de seu pai. A cada
sessão vinha com uma ferramenta diferente para tentarmos cortar a latinha e... em vão.
Estávamos diante de um impasse: como retirar a “casca” sem danificar o interior?
Sabíamos, porém, até mesmo por experiência própria, que forçar de nada adiantava. Por
fim aceitou a alternativa de derreter a vela e enformá-la em outro recipiente. O fogo
possibilitou uma nova transformação e com a mistura das cores surgiu uma tonalidade
totalmente inesperada, mas ainda assim bonita. A vela pôde ser desenformada inteira,
intacta e, sua beleza inédita, apreciada. Assim foi o processo de Florzinha, uma menina
superpoderosa, de especial beleza e riqueza, mas que para ser apreciada integralmente
precisou ser respeitada e passar por transformações a princípio sequer vislumbradas.
LINGUAGEM DO AMOR
Foi com amor que “a minha criança interior” pôde ser acessada nos diferentes
momentos, quer para me divertir como em um parque de diversões nas brincadeiras de
aventura, quer para respeitar e entender o medo e o sofrimento que Florzinha trazia em
situações cruciais. Através desta criança é que o estar junto foi possível.
Amar a criança até que para mim não foi difícil, mas, como já disse Jung, é preciso
muito amor para olharmos para a sombra. Esta constelou-se no momento em que a
psicóloga da escola, psicanalista, aconselhou os pais procurarem outra terapeuta, pois,
afinal, após um ano de terapia Florzinha ainda não falava com adultos e sequer eu havia
diagnosticado a causa traumática. O meu lado sombrio, possessivo e autoritário, rugiu
como um leão diante da presa e em defesa de seu território. Reconhecer estes aspectos
e acolhê-los possibilitou que eu os reelaborasse. Foi possível entender a postura da
psicóloga da escola, não como uma ameaça, mas como um ponto de vista diferente o
qual exigiria um diálogo. Afinal, eu só havia falado com ela no período inicial e na
devolutiva do psicodiagnóstico. Ela não tinha qualquer informação sobre o andamento do
processo. Tivemos a conversa, coloquei clara e calmamente os meus pontos de vista
teóricos, prestei-lhe os devidos esclarecimentos e me coloquei à disposição sempre que
ela achasse necessário. Isto bastou para que ela não mais interpelasse os pais com
cobranças e encaminhamentos.
Referências Bibliográficas
Embora a base teórica que orienta a minha prática profissional, ou seja, a visão
integrativa fisiopsíquica com enfoque junguiano, não se refira exatamente à procedência
formativa dos participantes deste Encontro de Fenomenologia, entendemos, no entanto,
existirem paralelos entre a psicologia de Jung e a fenomenologia que nos autoriza a
contribuir com algumas reflexões à temática proposta. Dentre estes paralelos, assinalo o
aspecto “instaurador”, construtivo ou ampliativo das hermenêuticas fenomenológicas e da
referida psicologia, que, conforme Jung (1981), são metodologicamente orientadas do
individual para disposições coletivas, ou seja, realizando amplificações, em oposição ao
método redutivo, que caracteriza a psicanálise ou a psicologia do comportamento, por
exemplo. Estas últimas, retrocedem “do individual para disposições fundamentais ou fatos
genéricos” (Jung, 1981: 490-539), procedendo à redução do significante a dados objetivos
de análise. Neste sentido, na perspectiva das “hermenêuticas instauradoras”3, se tomarmos
como exemplo o símbolo, verificaremos que ele não esgota o seu sentido, não recebendo o
tratamento de signo (não sendo “reduzido” ou considerado um elemento semiótico),
circunstância em que expressaria apenas uma forma econômica na maneira de se
representar o objeto. Ao defini-lo, Jung descreve o símbolo como constituindo-se “na melhor
designação possível para um estado de coisas relativamente desconhecido mas que se
reconhece como existente ou como tal é reclamado” (1981:542) e que não se saberia
designar de modo mais claro ou característico, ou seja, remetendo-nos para adiante de seu
conteúdo manifesto. Desta forma, estas teorias de conhecimento estabelecem uma relação
compreensiva na análise dos fatos e dos conceitos (para Kant, organizações instauradoras
1
Palestra realizada pelo autor no IV Encontro de Fenomenologia, realizado em 22/10/1994, na PUC – São
Paulo. Trata-se de uma reflexão sobre a fenomenologia do mito, verificando-se as suas várias definições, suas
correlações com as noções de imagem primordial e arquétipo, conceito de cura sagrada e a compreensão
mítica dos fenômenos de tempo e espaço. O autor mantém a estrutura acadêmica do texto, conforme foi
apresentado, na época, à coordenação do Encontro de Fenomenologia.
2
Psiquiatra e Psicoterapeuta Junguiano, Mestre em Ciências Sociais pela USP. Professor do curso de
Especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais – Instituto Sedes
Sapientiae.
3
Expressão utilizada por Gilbert DURAN (1988:57), derivada do pensamento de Kant, referindo-se às teorias
de conhecimento que não procedem a reduções, como a própria filosofia de Kant, a psicologia junguiana e a
fenomenologia poética de Bachelard, por exemplo.
da realidade, na referência de Durand), assim percebendo a ciência, as artes, a mitologia, as
religiões, etc.
Através desta visão instauradora e compreensiva, portanto, faremos algumas
considerações sobre um tema que começou a interessar a Jung quando este começou a
investigar a dementia praecox através da observação clínica de alguns de seus pacientes –
o mito, e culminou com a proposta de uma das hipóteses fundamentais de sua psicologia,
que é a noção do inconsciente coletivo. Jung percebeu, durante estas observações, que
determinados conteúdos do delírio daqueles pacientes faziam algum sentido quando
confrontados analogicamente a certos temas míticos, muitas vezes estranhos à procedência
cultural do indivíduo; esta mesma situação pode ser verificada posteriormente na análise dos
conteúdos oníricos de outros pacientes, assim como também na produção criativa de muitos
artistas e poetas, em reforço à sua hipótese. O que Jung percebeu foi que, embora
inconscientes, os mitos continuavam presentes na psique do homem moderno.
Curiosamente, a atenção relativa aos mitos parece ressurgir na atualidade,
justamente quando a humanidade atinge um elevado grau de racionalismo e assepsia
intelectual, como se comprovando que esta nunca deixou de necessitar em seu íntimo de
uma vibração que traga um sentido transcendente, que ultrapasse a ordem das explicações
racionais possíveis, à experiência de viver. Em vista deste atual interesse, portanto, é que
orientaremos nossas reflexões acerca do mito, tentando perceber como ele modela e orienta
a realidade vivida pelas pessoas e como ele se insere como elemento reconhecidamente
importante em certos procedimentos culturais, como por exemplo nas ações de cura
sagrada, condição esta que assinala sua pertinência e presença na estrutura psíquica dos
seres humanos.
Um dos interesses da filosofia sempre foi o de compreender filosoficamente os
conteúdos da “consciência mítica”, observando-se que o pensamento mítico, fundado em
imagens e coreografado através dos ritos, predominou na humanidade antes de ocorrer uma
diferenciação nos planos de consciência, de ordem mais simbólica e coletiva, nas chamadas
sociedades arcaicas, para uma perspectiva mais individualizada e racionalista, pelo menos
na cultura ocidental. Dentre estes conteúdos, citamos o problema das “origens”, conforme é
assinalado por Cassirer (1972). O autor referido afirma que o pensamento filosófico, em seu
princípio, hesitou entre uma concepção mítica e uma concepção estritamente filosófica do
problema de origem. Reportando aos antigos filósofos gregos, Cassirer verifica a
ambigüidade destes ao considerar o conceito de ARQUE (princípio). Este conceito
estabeleceria a fronteira entre o mito e a filosofia; constituir-se-ia, em sua referência, “no
ponto indiferenciado e de passagem entre o conceito mítico de começo e o conceito
filosófico de princípio”, entre a concepção de origem atribuída ao mundo de forças e deuses
míticos e aquela orientada pelo logos, que passaria a considerar o “princípio” como uma
produção autônoma. É quando o pensamento filosófico começa a sobrepor-se ao
pensamento mítico, embora este permaneça ainda estreitamente vinculado ao senso
comum, “à realidade empírica dos fenômenos, à realidade da natureza” (Cassirer, 1972: 15-
17). Neste primeiro momento, portanto, assinalamos a relação entre o mito e o conceito de
princípio ou “origens”, conforme a filosofia grega, em seus primórdios, o percebeu.
A importância da noção de princípio está atualmente impressa na medicina,
como método de pesquisa, através da anamnese (reminiscência, recordação desde o
princípio do processo da doença) e na psicanálise, como o próprio método de cura, através
da rememoração e reintegração de conteúdos inconscientes ao consciente, de forma que a
vida adquira um novo significado e possa transcorrer de forma mais satisfatória, do mesmo
modo que nos antigos rituais de cura sagrada, que eram acompanhados pela recitação e
compreensão do mito cosmogônico, o mito que falava sobre as origens e que colocava o
indivíduo em contato com o poder das forças primordiais. Podemos deixar sugerido que
tanto para a atual ciência médica como para a psicanálise, os pressupostos que assinalam a
importância da “origem” podem também constituir-se em mitos, mesmo que racionalmente
justificados ou transmutados.
Na intenção de verificarmos este instrumento, o mito, tentaremos fazê-lo
compreendendo-o no modo como se apresenta ao ser humano, particularmente nas
referências em que se apoia relativas ao tempo e espaço. Antes de prosseguirmos, no
entanto, vamos examinar algumas tentativas que se fizeram em defini-lo. Em linguagem
corrente, não é incomum observarmos o emprego do termo mito referindo-se a “fantasia” ou
“fantasioso”, “invenção”, “ficção”, “mentira” ou outra qualquer imagem despojada de valor.
Mas não é de hoje que esta noção apresenta um caráter ambíguo ou mesmo equívoco.
Eliade aponta que já os mesmos gregos vinham despojando o mito (mythos) de valor
religioso e metafísico. O mythos foi contraposto ao logos (conforme verificamos acima) e
posteriormente à história, definindo tudo o que não podia de fato existir (Eliade, 1986: 8).
Atualmente, certas tendências dentro da etnologia tendem a aplicar ao mito o mesmo
tratamento que a linguística aplica à palavra (estruturalismo), ao reduzir seu valor simbólico
e denotações religiosas e sociais ao seu estrito contexto semântico. Outros autores, no
entanto, como o próprio Eliade e Campbell, por exemplo, colocam-se entre aqueles que
compreenderam ampliativamente a noção de mito.
Para Eliade, o mito “é uma realidade cultural extremamente complexa”, sendo
difícil encontrar uma única definição capaz de demonstrá-lo. Afirma que esta realidade “pode
ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares” (1986:11).
Em sua definição (aquela que ele julga menos imperfeita), Eliade considera o mito como a
narrativa de uma história sagrada, relatando um acontecimento ocorrido no tempo
primordial. Conforme suas palavras:
Desta forma, o mito também nos remete para o campo do sagrado, que na
percepção das sociedades tradicionais, é “o real por excelência”, e falando do sagrado, fala
do que realmente aconteceu, tornando-se, conforme Eliade, solidário das ontologias4.
Campbell assinala o caráter transcendente da mitologia ao referi-la como a
“penúltima verdade”. Afirma que
penúltima porque a última não pode ser transposta em palavras. Está além das
palavras, além das imagens, além da borda limitadora da Roda do Devir dos
budistas. A mitologia lança a mente para além dessa borda, para aquilo que pode
ser conhecido mas não contado. (Campbell, 1990:173)
4
Para Eliade (1975:108), “tudo o que pertence à esfera do profano não participa do Ser, visto que o profano
não foi fundado ontologicamente pelo mito”, ou seja, “não tem modelo exemplar”.
Em consonância com os autores referidos, entendo que o mito media a relação
entre a terra e o céu, entre os deuses e os seres humanos, e hoje, entre o consciente e o
inconsciente. Se a experiência do mito não tinge a realidade que atualmente nós vivemos,
Jung ajudou-nos a compreender a sua presença nas dimensões mais profundas de nossa
psique, como elemento organizador de todo material inconsciente, material este que, ao
emergir, constitui-se em indicativo ou orientador desapercebido de quase todas as nossas
ações conscientes. Mais adiante, abordaremos um pouco mais esta questão.
A transcendência que a noção do mito evoca não o exime de funções precisas,
especialmente como um instrumento necessário para a compreensão do mundo e da
existência. Para Eliade, a sua principal função “consiste em revelar os modelos exemplares
de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento,
quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria” (1986:13) 5. Neste sentido e conforme
aponta em outro lugar, através das narrativas dos acontecimentos que se sucederam in
principio “num instante primordial e atemporal, num lapso de tempo sagrado” (1991:53) os
mitos também revelam importantes informações sobre a estrutura do tempo, tal como ele é
experienciado nas diversas culturas.
Jung sugere que os motivos mitológicos principais são comuns a povos e raças
diferentes, nas mais diversas épocas, e estariam relacionados com as estruturas psíquicas
por ele denominadas de arquétipos ou imagens primordiais. Estas estruturas, em sua
constatação, são sempre coletivas e como tal, comuns a povos inteiros ao menos em
determinadas épocas6. Do ponto de vista causal das Ciências Naturais, Jung afirma ser a
imagem primordial “um segmento mnêmico (engrama) produzido pela condensação de
inúmeros processos mutuamente semelhantes” (1981:515); como condensação, trata-se da
“forma típica fundamental de uma determinada vivência psíquica sempre corroborada”, o
que traduz a sua eficiência como motivo mitológico, como “uma expressão que
continuadamente estimula a vivência psíquica ou a formula de maneira apropriada” (no
mesmo texto). Por tratar-se, conforme Jung, de uma “expressão compreensiva do processo
5
Eliade afirma que, para um objeto ou ação tornarem-se efetivamente “reais”, exige-se que eles imitem ou
repitam um arquétipo, ou seja: “a realidade só é atingida pela repetição ou pela participação: tudo o que não
possui um modelo exemplar é desprovido de sentido, isto é, não possui realidade” (1985:49).
6
Embora ambos empreguem a mesma denominação (arquétipo), na referência de Jung a expressão é utilizada
para definir uma estrutura psíquica e que corresponde (psiquicamente) à imagem primordial; Eliade faz uso da
mesma expressão para referir-se ao gesto paradigmático (ou exemplar), que a noção do mito evoca.
vital”, o arquétipo possui um caráter ordenador e vinculador, orientando a energia psíquica
(que são forças naturais) para as formas espirituais.
O meu saudoso mestre, Pethö Sándor, assinalava a importância de se reaver a
capacidade de lidar com imagens para uma consciência unilateralmente desenvolvida
(1974:101-102). Os métodos de relaxamento foram então por ele sugeridos como um
recurso que permite a evocação destas imagens, num estado de consciência receptiva.
Compreendemos que a importância de tais procedimentos terapêuticos encontra-se também
na possibilidade de se “remitificar” a consciência do indivíduo, entendendo-se que “reaver a
capacidade de se lidar com imagens” (no mesmo texto) corresponde ao reencontro de
modelos (mitos = modelos exemplares) que orientem a elaboração destas.
Até este ponto, encontramos o mito relacionado com a origem dos tempos (illo
tempore) e como estando por trás de todas as realidades, como modelo exemplar e como
motivo comum em lugares e épocas diversas, transcendente na medida em que nos remete
para o campo do sagrado (separando o sagrado do profano), sendo que psiquicamente
manifesta-se como uma expressão coletiva e que, conforme ainda verificaremos mais
aprofundadamente, aparece deslocado das referências lineares de tempo e tridimensionais
de espaço. As visões de mundo, que variam de uma civilização para outra e correspondem a
“realidades”, não são percebidas da mesma forma em todas as culturas, como por exemplo
as vivências do tempo e espaço. A percepção que o homem histórico tem destes é diferente
daquela que a consciência mítica descreve: para compreendermos esta percepção,
necessariamente precisaríamos partir de pressupostos concernentes à realidade tal como
ela foi experienciada através da referida consciência mítica.
Poderemos entender assim que não existe uma única lógica, que nossos
pressupostos não são universais e que o modo como cada cultura apreende a sua realidade
somente pode ser entendido através das referências significativas da cultura em questão.
Encontramos os mitos ou a mitologia de cada povo por trás destas referências ou
constituindo-se nos próprios elementos significativos, de forma que através do entendimento
destes podemos nos aproximar da percepção de sua “realidade”. Examinemos a seguir
como, através do mito, as noções de espaço e tempo podem ser compreendidas.
Tempo mítico
7
Usener, Hermann. Götternamen, Bonn, 1920, p. 191 e segs., citado por Eliade (1975:87).
dizer “em volta de sua cabana sagrada, que é uma imago-mundi”. Ainda na América do
Norte, o autor cita os Yokut (1975:85), que utilizam a mesma expressão para designar
Mundo e Ano, de forma que quando dizem que “o mundo passou”, estão querendo dizer que
o ano acabou.
O tempo sagrado difere do tempo histórico pela linearidade e irreversibilidade
deste; os eventos se sobrepõe e criam elementos fixos através dos quais são assinalados,
conforme o deslocamento do tempo. O tempo sagrado, ao contrário, reevoca periodicamente
os eventos primordiais (as teogonias ou cosmogonias) que orientam a experiência de vida,
baseando-se este (o tempo) na mitologia que modela as crenças e práticas rituais de um
determinado povo. O tempo sagrado possui uma característica circular, sendo assinalado no
calendário pelo conjunto de festas ou comemorações que rememoram os acontecimentos
significativos e que tornam presente o tempo mítico primordial.
O homem religioso vive, na realidade, as duas espécies de tempo, sendo que o
tempo sagrado é o tempo verdadeiro através do qual ele “renasce” periodicamente e
encontra o sentido que o fugaz tempo profano não possui. O tempo profano são os hiatos
entre as datas que assinalam a recuperação do tempo.
Eliade compreende o comportamento do homem religioso em relação ao tempo
através de dois elementos considerados principais: a regeneração do tempo e a
solidarização com o illud tempus (1975:92). Simbolicamente, o homem coloca-se em contato
com as forças vitais presentes no instante do surgimento da vida, o que equivale a um
processo de purificação, de reencontro com sua substância espiritual. No exemplo do ritual
do batismo, que assinala mais adiante (1975:142) e também em outros textos, verificamos
esta situação, que “equivale a uma morte ritual do homem antigo, seguida de um novo
renascimento”, equivalendo, no plano cósmico, ao dilúvio, que simboliza “a abolição dos
contornos, fusão de todas as formas, regresso ao amorfismo” (1985:74).
Existem muitas outras circunstâncias coletivas onde encontramos a noção de
regeneração do tempo e que traduzem a idéia de reinício ou renascimento: a coroação de
um novo rei, a celebração de um casamento, o nascimento de uma criança, a chegada da
primavera (quando os campos são semeados), o ciclo lunar e outras situações que tanto
podem envolver o relacionamento entre os homens como entre os homens e a natureza.
Mas uma das circunstâncias mais exemplares são os rituais de cura dos povos primitivos,
que Eliade nos informa requererem um elemento essencial: a recitação do mito
cosmogônico. Através deste procedimento, o paciente é deslocado para além do tempo
profano e inserido junto às forças primordiais; esta evocação e reiteração do mito de origem
mobiliza as forças curativas internas do paciente, restituindo-lhe a saúde e a vida, que
ressurge remitificada. Em outro local, pudemos demonstrar analogicamente a relação “ritual”
existente entre a psicoterapia e a cura sagrada (Machado Filho, 1994:110-141).
Observaremos a seguir que a experiência de cada povo relativa ao tempo
sugere determinados pressupostos que estariam embutidos na mitologia de sua cultura.
Entre os chineses, por exemplo, existe uma noção qualitativa do tempo (que eles
denominam che). O tempo constitui-se num conjunto de sopros ativos produtores de vida e
inicialmente foi assinalado pela sua qualidade. A este respeito, refere-se Larre:
(...) Sabia-se apreciar a qualidade do tempo, tal como se fazia com o chá,
o papel, a seda, as mil comodidades da existência. O tempo vinha, passava e
voltava. O tempo do galho de ameixeira, do caule de bambu, da folha de bordo,
da ramagem do pinheiro, o tempo do grito agudo do ganso cinzento, do canto
suave do verdelhão, do grito da cordoniz. Tantos sabores e perfumes, misturando-
se à consciência, marcavam qualitativamente o tempo. (1975:42)
8
Bhartrhari, Väkyapadîya, II, p. 233, cit. por Pannikar (1975:74).
eterno é uma das buscas das filosofias religiosas indianas, sendo que através de
determinados exercícios psicofísicos, o místico hindu (o iogue) procura a compreensão e a
iluminação através da qual descobre o milagre da superação ou saída do tempo, quebrando
o invólucro do ovo cósmico que o separa do eterno intemporal (Eliade, 1991:72). Já sob a
influência do budismo, considera-se o instante como o único aspecto verdadeiramente real
do tempo, constituindo-se na própria vibração da consciência. É através do instante (tempo
sutil) que se penetra na realidade atemporal.
Na cultura bantu, o tempo não existe enquanto não for assinalado por um fato
concreto. Este fato pode ser um evento mítico (um fato pré-existente), um evento
relacionado com o homem (um reinado, um mandato, por exemplo) ou com um fenômeno da
natureza, que marca ou sela o tempo, que é o tempo deste evento (Kagame, 1975:114).
Os judeus teriam sido o primeiro povo a estabelecer uma relação histórica (ou de
“Aliança”) e não mais mítica entre Deus e o mundo que criou, o que implicou na imanência
(onipresença, penetrando o Universo em toda parte) e transcendência concomitante de
Deus em relação a este mundo. A Sua transcendência provém do fato, conforme Neher, “de
que nada do que é criado é contemporâneo de Deus”, existindo uma absoluta exterioridade
Deste em relação à Sua criação. A criação realiza-se no tempo histórico e desaparece
quando esta é finda, “restando Deus em seu não-tempo” (1975:180). Na concepção bíblica
do tempo, a história é valorizada pelos próprios profetas, ultrapassando-se a concepção
cíclica e descobrindo-se um tempo com sentido único. Para Eliade, entre os judeus, a
própria história é considerada uma teofania, concepção esta que persiste no cristianismo,
embora retomada de um outro ponto (1985:117-120).
Apesar de algumas tradições não conceberem a noção de tempo sem vinculá-la
à noção de espaço, é principalmente na questão do ritual que ambas se encontram.
Obrigatoriamente realizado em um espaço consagrado (homologado ou sagrado), o rito
caracteriza-se pela repetição, neste local interdito, do gesto exemplar que reevoca as
sagradas forças primordiais. Para se transportar através do “tempo” do ritual, ultrapassa-se o
espaço profano adentrando-se no espaço regido pelo mito. A experiência do tempo no
interior deste espaço é própria do processo ritual e muitas vezes é dificultosamente descrita
pelo homem religioso, quando este não encontra referências externas ao rito para descrevê-
lo.
A transitoriedade e a inefabilidade (ausência de palavras que descrevam uma
dada experiência) além de alusões a uma atemporalidade são aspectos relativos ao tempo
descritos por muitos místicos que experienciaram o êxtase, como é o exemplo de Santa
Teresa e São João da Cruz, ao se referirem à progressão dos estados místicos. Outros
extáticos, como os xamãs, deslocam-se do tempo e espaço comuns e, através do êxtase,
submergem completamente no universo mítico. Na mística oriental, encontramos na yoga
(conforme já nos referimos acima) uma modalidade de exercícios psicofísicos que objetivam
abolir as diversas categorias de experiências (inclusive do tempo), substituindo-as por uma
experiência contemplativa, extra-racional e suprassensorial, que possibilita o revelar-se do
si-mesmo (purusha) e a obtenção da imortalidade. As experiências acima descritas são
dificilmente compreendidas através de pressupostos racionais e correspondem a Estados
Especiais de Consciência (EEC), conforme verifiquei em minha tese de mestrado (Machado
Filho, 1994:53-81).
Espaço mítico
que é o centro do mundo e de onde o homem religioso deseja estar o mais próximo possível.
O corpo como expressão do espaço
9
Rorscher, Wilhelm H. Die Hippokratische Schrift von der Siebenzahl, Ab. D. Kön Säch. Ak. D. W., XXVIII, cit.
por Cassirer (1972:118-119).
da Jerusalém celeste (projeção cósmica da cidade de Jerusalém, que teria sido criada por
Deus juntamente com o paraíso). Eis como aparece a descrição da igreja bizantina,
conforme Sedlmayr, na citação de Eliade:
10
Sedlmayr, Hans. Die Enstehung der Kathedrale, Zürich, 1950, cit. por ELIADE (1975:74).
Jung e outros seguidores (incluindo-se o exemplo de Nise da Silveira, aqui no
Brasil) observaram o surgimento de formas sugestivas de mandalas na produção onírica ou
criativa de pacientes, geralmente em períodos resolutivos dentro dos processos de
tratamento ou psicoterápico. A mandala configura aqui (do ponto de vista psicológico) o
processo de integração dos opostos e simboliza o Self ou o centro da personalidade.
Em resumo, pudemos destacar que o tempo mítico é o illud tempus ou o tempo
primordial, quando tudo se originou. O espaço mítico é o Centro do Mundo, o espaço não-
homogêneo que somente as formas exemplares do mito podem revelar. O ritual, realizado
no espaço consagrado (que é o espaço do mito), é o processo através do qual o ser humano
é colocado em contato com o tempo original, e por conseguinte, com as poderosas forças
criadoras que nesse tempo se originaram, constituindo-se num reencontro com sua
essência. O contato com estas forças é o que objetivam, por exemplo, os procedimentos de
cura sagrada (que transcorre “dentro” do mito) e que correspondem, assim como os
processos iniciáticos, a um ciclo simbólico de morte e renascimento. Desta forma, a cura
sagrada, como uma iniciação, possui o efeito de trazer um novo significado à vida do
indivíduo.
Através da representação simbólica que se pode fazer do processo de
individuação (no ponto de vista junguiano) como uma espiral, em que os processos
psíquicos vão se repetindo sucessivamente, mas sobrepondo-se sempre num outro e
superior plano de consciência (na medida em que ocorre a integração dos opostos),
podemos visualizar também um tempo “psíquico” que pode caracterizar-se por possuir, além
de uma configuração cíclica, uma progressão ascendente (como a espiral). Neste caso, a
experiência de vida (aquilo que “foi vivido”) do indivíduo subsidia os processos psíquicos
presentes e futuros, na direção dos referidos planos superiores de consciência.
Falando sobre o mito, é muito importante ressaltar o redimensionamento que
este propõe para a experiência de viver. O atual distanciamento de uma “disposição” mítica
referida à consciência constitui-se, talvez, na principal fonte de angústias do homem
moderno. Para o tradicional homem religioso, no entanto, o mundo verdadeiro era aquele
regido por deuses e mitos, e que num processo criativo contínuo atualizava o passado,
transformando o que foi naquilo que é e o que é no que virá a ser. O restante era maya ou
“ilusão”.
Referências bibliográficas
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito (trad. de Carlos Filipe Moisés). São Paulo, Palas-
Athenas, 1990.
______________ Mito e Realidade (trad. de Pola Civelli). São Paulo, Perspectiva (Col.
Debate), 1985.
JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos (trad. de Álvaro Cabral). Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
MACHADO Filho, Paulo Toledo. Gestos de Cura e seu Simbolismo (tese de Mestrado). São
Paulo, FFLCH-USP, área de Antropologia Social, 1994.
REHFELD, Walter I. Tempo e religião. São Paulo, Perspectiva/EDUSP (Col. Estudos), 1988.
THE NIGHT SEA JOURNEY
Um recorte alquímico
Sylvia Mello Silva Baptista1
Esquinas
Djavan
Só eu sei
As esquinas por que passei
Só eu sei
Só eu sei
Sabe lá
O que é não ter e ter que ter
Pra dar
Sabe lá
Sabe lá
E quem será
Nos arredores do amor que vai
saber reparar
Que o dia nasceu
Só eu sei
Os desertos que atravessei
Só eu sei
Só eu sei
Sabe lá
O que é morrer de sede
Em frente ao mar
Sabe lá
Sabe lá
E quem será
Na correnteza do amor que vai
Saber se guiar
A nave em breve ao vento vaga
De leve e traz
Toda paz
Que um dia o desejo levou
Só eu sei
As esquinas por que passei
Só eu sei
Só eu sei
1
Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, trainee da Sociedade Brasileira de
Psicologia Analítica
Introdução
O meu interesse pelo tema da viagem tem várias vertentes, mas talvez a
mais significativa seja a curiosidade em mim despertada a partir da vivência de
consultório. É um clichê na clínica psicológica que cada psicólogo tem
determinados “tipos” de pacientes que o procuram indicando muitas vezes
temas a serem trabalhados e aprofundados por aquele profissional. Na
psicologia profunda junguiana é totalmente compreensível e possível verificar
que o Self propõe-nos situações para que entremos em contato com
determinados conteúdos que necessitam vir à consciência, e assim
incrementar o crescimento e o desenvolvimento do indivíduo.
Quando observamos coincidências significativas ocorrendo em nossas
vidas, é sempre importante que lhes demos atenção. Na vivência clínica
isso muita vezes se dá na recorrência de temas que os pacientes nos propõem
e que nos permitem aguçar a nossa “antena” além dos relatos pessoais.
Assim, há psicólogos que “curiosamente” atendem, em sua grande
maioria, pacientes depressivos, outros que recebem muitas pessoas com
quadros de fobia, ou outros que têm mais indicações de adolescentes, e assim
por diante. Claro que, para que as indicações sejam de fato instigantes, ou
saiam do plano da simples coincidência, descarta-se o fato de a fonte de
encaminhamentos ser específica, como por exemplo um profissional que trata
de depressão, ou de fobias, ou que trabalha numa instituição para
adolescentes.
Mas o fato é que na minha experiência pessoal, um número significativo
de pacientes que chegava até mim das mais variadas fontes, trazia a questão
da viagem implicada em sua história. Pessoas que forma para fora do país
viver experiências profissionais, pessoas que iniciaram seus processos e em
seguida receberam propostas de mudança de cidade, pessoas que viajam para
vir à sessão. Viagens. Sempre algum deslocamento que diz respeito à
mudança.
O tema começou a fascinar-me pela amplitude que alcança. A própria
psicologia está intimamente ligada à nossa capacidade de “viajar” na mente do
outro, a visitar e descobrir novos territórios da alma humana. Quando falamos
em viagem automaticamente a nossa tendência é de prontidão para nos
transportarmos no tempo e no espaço. A nossa identidade é fruto do
cruzamento dos vetores tempo e espaço. Portanto, por mais cartesiano que
possa soar, a viagem é uma experiência que diz respeito à identidade.
Interessou-me inicialmente olhar para a viagem concreta e a sua possibilidade
efetiva de interferência na construção da identidade e como fator fundamental
no processo de transformação do indivíduo.
A Viagem Concreta
Comecemos por esta alteração espaço-temporal. Quando viajamos
vamos de um lugar a outro num deslocamento espacial que pode se dar de “n”
formas. A mudança de lugar abre sempre a oportunidade de entrada em
contato com algo novo: uma nova cidade, uma nova geografia, um novo país,
uma nova cultura, novos hábitos. Mesmo que se viaje para um lugar já
conhecido, cada experiência é única, e aquela cidade estará modificada: ou
viajou-se na primavera e agora é outono, ou com uma companhia e agora se
está só; enfim, a viagem tem essa propriedade, que é tão humana, de trazer
em si sempre a possibilidade do novo, do diferente, do único.
Mudei de lugar, mudei de rotina. A quebra de rotina é algo fascinante na
vivência do viajante. É muitas vezes o que ele mais busca. E novamente
voltamos ao “novo”, já que sair da rotina nada mais é do que romper com a
monotonia do cotidiano repetitivo.
É interessante notar que o impulso do homem para estabelecer uma
rotina é algo muito intenso, subcutâneo eu diria. Pois, mesmo quando saímos
da rotina conhecida, numa viagem, acabamos por estabelecer uma nova. A
rotina está implicada com o ritmo, com o nosso pulsar na vida e é uma
referência importante que dá suporte à identidade; permite-nos transitar mesmo
no novo, sem que nos esqueçamos de quem somos e onde estamos. É um
fator que nos contextualiza. De qualquer forma, o fato de exercermos o papel
de construtores de uma nova rotina em um novo ambiente é uma experiência
revitalizadora.
Quando se vai para fora do país e pode-se encontrar uma nova cultura,
com diferentes hábitos e valores, o efeito é de um impacto inesquecível. Não
há nada que nos coloque tão em contato com nossa identidade cultural quanto
estar num país estrangeiro. Jung, que fez muitas viagens ao longo de sua vida
(América, Norte e Leste da África, Novo México e Índia) nos dá um depoimento
interessante sobre a necessidade que temos de olhar nossa própria nação de
fora para termos consciência de peculiaridades nacionais:
Viajante ou Turista?
Mas, quem viaja? Para quê viaja? Em que momento da vida viaja? Com
quem viaja? Questões que fazem toda a diferença. Se a viagem é um
transportar-se no espaço e no tempo capaz de repercutir nesse eixo formador
de identidade, quem sou eu, viajante ou turista? Há que se diferenciar. Posto
que a viagem, assumida quase como um ente vivo, tem esse poder
transformador, nem todos os que viajam o fazem por desejarem mudanças ou
ficam atentos a elas. Há quem se recuse a ingressar nessa dimensão do
imprevisto, do inusitado que a viagem traz, e busque garantias de que tudo
continuará igual. Há inúmeros artifícios usados como defesa do receio de se
perder neste percurso. A diferença entre turista e viajante passa por aí. O
estereótipo do turista é o sujeito que sai de seu espaço para conhecer, mas
evita grandes mudanças, tentando ao máximo manter hábitos e rotinas que lhe
são familiares. O objetivo da viagem nem sempre é de fato estar aberto ao
novo. Muitas vezes ele realmente “vive” a viagem ao rever as fotos com os
amigos. Momentos estáticos, flashes que registram sua passagem e ponto. Às
vezes somos viajantes, às vezes, simples turistas.
Se pensarmos na viagem como símbolo da abertura do eu para o
desconhecido, para o outro, o diferente, a flexibilidade do ego, a sua
“porosidade”, nos dirá muito da capacidade de contato profundo, ou não, do
indivíduo com o Self. A vida não deixa de ser uma grande viagem, e essa
imagem já foi usada inúmeras vezes para ilustrar a nossa experiência enquanto
seres humanos neste mundo. Nós, tripulantes de uma grande nave. “Navegar é
preciso, viver não é preciso...” Com que instrumentos eu posso contar para ser
de fato um viajante, e tirar proveito profundamente deste meu caminho?
O olhar é fundamental. E aí se esbarra em outra faceta não menos
instigante. A questão da exposição. Certamente todos já experimentaram uma
certa liberdade que se usufrui ao perceber-se como alguém que não está mais
circunscrito ao seu meio (micro ou macro) social; um cidadão do mundo, e
portanto livre para ser o que se é. É interessante como algumas pessoas se
permitem viver situações muito diversas das que estão habituadas no seu
contexto usual, como se pudessem se experimentar “em outra pele”; brincando
com a possibilidade de serem um personagem da própria história, alterando
muitas vezes esta história.
Conclusões
A reflexão sobre essas questões levaram-me de volta a um texto que me
foi especialmente significativo em uma night sea journey por que passei
recentemente, e do qual retiro apenas algumas idéias para incrementar esta
visão. Nilton Bonder, um rabino do Rio de Janeiro, em seu livro A Alma Imoral,
trata, entre outras coisas, da necessidade de o homem transgredir além de
reproduzir. Une pares de opostos como corpo e alma, traidor e traído, e afirma
que “achar-se é construir identidades e desfazer-se delas”. Fala da “traição” do
ponto de vista da alma, como algo necessário, na medida em que “promove
mudanças e mutações e expõe a necessidade de um novo ‘bom’ e a
subseqüente busca de um novo ‘correto’ ”. Enfatiza, assim, que “o verdadeiro
grande crime do ser humano é que ele pode dar-se ‘uma simples volta’ a
qualquer momento, mas não o faz” chamando atenção à nossa possibilidade
permanente de reorientação na (e da) vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Um dos principais méritos de Jung foi ter ressaltado a importância dos símbolos
como elementos prospectivos e portadores de significados que ultrapassam seu aspecto
óbvio e literal. Byington (2004) amplia ainda mais a importância dada aos símbolos ao
considerá-los a célula tronco da Psique e, portanto, os elementos que estruturam a
Consciência. A elaboração dos símbolos é o principal componente do desenvolvimento
psicológico do indivíduo e da cultura. Um símbolo inclui opostos e possui sempre múltiplos
significados, dependendo de quem o vivencia, seja uma pessoa ou uma comunidade.
Interpretar um símbolo, e sobretudo um símbolo cultural, é trilhar um caminho dentre os
inúmeros possíveis, e não necessariamente o que nos permitirá ver mais longe. Ao me
propor a abordar aqui, neste breve artigo, um símbolo proveniente da Índia, uma cultura
extremamente rica, sensível e minuciosa na expressão de suas vivências, não pretendo de
forma alguma esgotar seus significados. Ao apresentar a imagem e o mito de Durgā, estou
fazendo um pequeníssimo recorte no universo do Hinduísmo e na própria mitologia da
deusa, e extraindo daí uma parte diminuta, com o intuito de ilustrar um dinamismo que me
parece bastante atual e também prospectivo: a contribuição que a mulher pode dar ao
homem e à cultura ao realizar-se como pessoa.
-.-.-.-.-.-
1
Psicoterapeuta junguiana, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, coordenadora do
curso de especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Abordagem Corporal, no
Instituto Sedes Sapientiae.
2
capacidade de abrir-se para a ferida do outro, para a essência, representada pelo sangue, e,
assim, ultrapassa a simples polarização e exclusão do inimigo ao incorporá-lo em si própria
por sua absorção.
A deusa Durgā emergiu num contexto de uma crise cósmica precipitada por um
demônio que não poderia ser subjugado pelos deuses masculinos, cujos recursos utilizados
eram insuficientes para vencer Mahisha. Para que esse conflito pudesse ser ultrapassado,
os deuses precisaram sair de sua onipotência, reconhecer as limitações de suas ações
realizadas até então e criar uma nova estratégia para lidar com a situação. Ao constelarem
sua energia, seu brilho, sua força, no corpo de uma deusa, fizeram emergir de dentro deles
um elemento novo e vigoroso. Assim, como uma saída para o impasse, surgiu Durgā. Ela é,
portanto, um produto da força, da grandeza, da agressividade e da impotência dos deuses.
Podemos, pois, considerá-la uma imagem da alma dos deuses, da Anima, numa linguagem
junguiana, ou da shakti, como os hindus denominam a força que põe o homem em
movimento. Estamos, pois, diante de elementos religiosos e culturais que apontam para a
expressão de uma dinâmica que, embora possa ilustrar o funcionamento do indivíduo, não
se restringe a ele. Do ponto de vista psicológico, uma crise dessa magnitude – ameaça ao
Cosmos – ocorre quando um paradigma que norteia a Consciência coletiva ou de um
indivíduo está para sofrer uma transformação, pois seu modelo de funcionamento já está, ou
começa a dar indícios de estar ficando obsoleto, ou quando algo extraordinariamente novo
emerge no Self. Este tema é encontrado no rei velho ou doente que precisa ser substituído,
ou no cacique já não tão forte, que precisa ceder seu lugar. É a necessidade de renovação
que aí se expressa, e, quando Durgā é criada, temos então um símbolo bastante forte de
uma situação que, para ser resolvida, precisa introduzir novos elementos. Caberiam aqui,
portanto, as perguntas: quem era esse demônio? E no que se diferenciam os deuses e a
deusa?
Na Índia, a mulher ocupou um lugar familiar e social muito particular e diferente
daquele reservado ao homem. Nos livros da lei, como, por exemplo, o Código de Manu
(Manu-dharma-shastra), as mulheres são consideradas incapazes de lidar com seus
próprios assuntos e de ser socialmente efetivas sem estarem vinculadas ao homem. Dentro
da tradição, a mulher indiana é importante como irmã, filha, mãe de homens e como esposa
(Kinsley, 1986, p.8). Se ficasse viúva, seria cuidada pela família do marido (dependendo da
3
situação, caberia ao cunhado dar a ela um filho) ou “devolvida” à família original, mas jamais
se tornaria dona de si mesma. Mesmo atualmente, a opressão e submissão da mulher
constituem um problema a ser ultrapassado. Acredita-se até mesmo que houve épocas em
que meninas eram mortas ao nascer, sobretudo as de famílias muito pobres, pois estas
viriam a ser uma fonte de sofrimento para sua família, a qual teria dificuldade de prover a ela
um casamento digno e, portanto, uma vida feliz (Altenkar, 1983).
Uma das interpretações do símbolo do demônio é que ele significa tudo aquilo com
que os deuses não sabem lidar, que não conseguem ultrapassar, isto é, sua Sombra. Nesse
contexto, numa sociedade na qual o homem ocupa o lugar do poder, da liberdade,
independência, iniciativa, autonomia, e na qual a mulher, ainda que possa haver variações
de casta para casta, fica restrita a atividades intramuros ou, de qualquer modo, dependente
do homem, é plausível supor que muito desta Sombra recaia na mulher, em seus atributos
ou nos papéis tradicionalmente a ela relegados.
A distância geográfica não nos afasta muito deste problema cultural da Índia, no que
tange às desigualdades entre o homem e a mulher. O fato de a cultura ocidental associar a
mulher a uma maior abertura para o mundo subjetivo, para o irracional, o mistério, o
espontâneo, o corpo e até mesmo para o inconsciente, fez com que, muitas vezes, o
demônio fosse a ela comparado e lhe fosse atribuída a capacidade de enfeitiçar, de dominar
sub-repticiamente, de seduzir. Banidas da luz pela perspectiva patriarcal defensiva, que
considera inimigo o diferente, muitas delas foram consideradas bruxas e terminaram a vida
nas fogueiras da Inquisição. Esse ponto de vista ajusta-se perfeitamente na famosa (e
infelizmente tão atual) frase “quem não está comigo está contra mim”. Colocada à margem
do que foi oficialmente tido como bom, valoroso, importante, eficiente e certo, a mulher foi
unida ao demônio na projeção do bode expiatório que recaiu sobre eles.
Chama-nos a atenção o fato de Mahisha ser um demônio que praticava
austeridades, ou seja, que era capaz de fazer sacrifícios e reverenciar um princípio superior
a ele. Atributo pouco comum ao demônio, a ligação de Mahisha com a transcendência faz-
nos lembrar a figura de Lúcifer, o portador da Luz, mas também o anjo caído. Ao exercitá-la,
Mahisha termina por conquistar o direito de ser equivalente, em força, aos deuses. É essa
equivalência, estabelecida por um princípio que está além dos deuses e do demônio, que
revela a impossibilidade de um subjugar o outro, como é comum se acreditar possível dentro
4
do funcionamento patriarcal defensivo, no qual existe a ilusão de se ser capaz de liqüidar o
inimigo pela força. Mas as coisas não funcionam assim. Sabemos que, se quisermos
extinguir um comportamento ou um sintoma pela força, acabaremos de alguma maneira
fortalecendo-o. Em outras palavras, a Sombra não pode ser extinta à força. É preciso muito
trabalho de elaboração para que seus conteúdos possam vir a ser integrados à Consciência.
Quando o homem tenta lutar patriarcalmente com seu potencial não desenvolvido e fixado
em sua Sombra, muitas vezes projetada na mulher ou no demônio, ele está fadado à
derrota. Neste caso, a figura de Durgā é uma denúncia de que a Sombra do homem
repressor é presa fácil da sedução, da vingança traiçoeira e da agressividade milenar
reprimida da mulher. A repressão da mulher pela cultura a transforma num poderoso inimigo
em qualquer momento de ajuste de contas.
Podemos compreender também os demônios como a expressão da impossibilidade
de os deuses manterem a ordem cósmica, ou seja, os demônios representam a desordem, a
desarmonia, que, do ponto de vista da totalidade, é a unilateralidade. Para o Arquétipo
Central, que impulsiona a pessoa rumo a seu Processo de Individuação, a fixação na
unilateralidade é uma grande disfunção, pois fica obstruído o caminho para a síntese entre
as polaridades, que são inerentes ao Todo.
Segundo Kinsley (1987), a situação exigia uma mulher, ou uma guerreira superior,
ou um poder peculiar que Durgā possui e com o qual o demônio poderia ser iludido, ou as
três coisas. Em sua vitória contra os deuses, Mahisha imagina-se invencível. Sem que
tivessem outro recurso, os deuses fazem emergir uma deusa muito bela, sedutora, mas
também combativa, agressiva e forte.
Durgā, ao vencer o demônio que era imbatível pelos deuses, revela a força da
mulher, contrariando os estereótipos da mulher indiana ao não ser submissa nem
subordinada a uma divindade masculina, ao não desempenhar as obrigações de uma dona
de casa e ao se mostrar excelente naquela área considerada própria do homem: lutar numa
batalha. E mais. Ao invés de fortalecer o consorte, de ser a “companheira por trás do
guerreiro”, como manda a tradição, ela retira o poder dos deuses para desempenhar, por ela
mesma, seus feitos heróicos.
Enquanto deuses e demônios lutam para impor sua superioridade, Durgā aponta
para algo além deles, transcendendo-os ao unir em si mesma a figura da mulher e do
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guerreiro, atributo até então exclusivo do homem. Sua montaria, o leão, revela que ela é
capaz de lidar criativamente com forças terríveis, agressivas, poderosas e fecundas. Durgā
modifica a ordem na qual a mulher é relegada a um segundo plano, e o mito mostra que o
demônio só será vencido quando esse princípio, simbolizado pela força e ação da mulher,
puder ser expresso em toda sua grandiosidade.
Sua independência e capacidade de enfrentar um oponente masculino no campo de
batalha, e assim subverter os papéis tradicionais, coloca-a à margem da sociedade. Seu
lugar é, por isso, o da periferia, o do limiar. Podemos ver na deusa uma representação não
apenas da mulher subjugada pelos milênios de dominância patriarcal, mas também de
vivências e emoções reprimidas pelo homem e da força contida na Sombra Social, nas
minorias reprimidas. Lembremos aqui a origem aborígine (pré-ária) de Durgā, que é
reverenciada nos lugares fronteiriços e de difícil acesso, como as montanhas e a periferia da
civilização. Durgā representa também os excluídos, os que vivem à margem, os que não têm
lugar no mundo “civilizado”. Atual, apesar dos seus aproximadamente 1600 anos, Durgā é a
força da massa oprimida, os recursos dos despossuídos, das minorias, dos que são gauche,
dos não inseridos no status quo, dos artistas, das pessoas criativas e revolucionárias. Seu
lado contra o sistema, que em seu aspecto criativo denuncia a opressão da parte e a
inviabilidade do Todo, expressa-se em seus ritos pela ingestão de carne, bebida alcoólica e
ofertas de sangue, assinalando sua abertura para a dimensão do prazer matriarcal, e até do
desregramento, numa sociedade que valoriza a austeridade e o sacrifício. Protege os
marginais, os enjeitados, os renegados, aqueles que não têm nada ou ninguém por eles.
Nesse contexto, é a grande mãe, generosa, capaz de acolher e abrigar o desespero de seus
filhos.
Durgā une, assim, características tradicionais dos papéis da mulher e do homem,
não apenas lutando e vencendo, mas agindo independentemente dos deuses masculinos,
sabendo se defender e cuidar de si mesma. A deusa não permaneceu subordinada a seus
criadores, mas adquiriu completa autonomia, inclusive para lutar exclusivamente com o
auxílio de outras deusas. É preciso perceber, porém, que ao convocar outras deusas, e não
deuses, para auxiliá-la nas batalhas, Durgā não visa expressar uma homofobia, mas
reafirmar a identidade da mulher. Note-se que ela não luta contra os deuses, mas por eles,
e que juntos, celebram suas vitórias.
6
Uma passagem interessante do mito nos diz que alguns demônios que a deusa
desafiava não acreditavam que ela pudesse vencê-los. O próprio Mahisha disse que, como
mulher, ela era delicada demais para lutar, bonita demais para qualquer coisa que não fosse
o amor, e que deveria ser protegida e conduzida por um homem para poder se realizar, e lhe
propôs casamento. Porque ela não estava protegida por uma divindade masculina, Mahisha
pressupôs que Durgā fosse desamparada. Outros demônios fizeram o mesmo, e ainda que
ela recusasse a se casar com eles, dizendo que queria confrontá-los no campo de batalha,
os antideuses viam em sua resposta uma mensagem cifrada, que decodificavam como
sendo o desejo da deusa de participar de um jogo amoroso (Kinsley, 1987). Sua beleza
passa a ser usada não em função do amor, mas para conduzir suas vítimas à batalha final.
Incentivando a vaidade e beleza da mulher como produto para seu consumo, o homem
reduz a mulher ao corpo, à sensualidade e à sexualidade, mutilando sua integridade ao
destituí-la de sua alma. Eilberg-Schwartz, na introdução do livro Off with her Head, sugere
que o excesso de valorização do rosto da mulher, de seu cabelo, sua maquiagem, seus
olhos, sua boca, erotizando, deste modo, tudo que compõe externamente sua cabeça, é
uma maneira pela qual o poder da fala e do pensamento lhe é negado (Eilberg-Schwartz,
1995). De maneira semelhante aos demônios, que não conseguem perceber o significado
verdadeiro da resposta de Durgā, o homem torna-se incapaz de reconhecer a força da
mulher e de perceber a frustração dela ao não ser vista. Muitas vezes também não se dá
conta da agressividade destrutiva da qual a mulher fica imbuída e assim é pego numa
armadilha criada também por ele.
Durgā utiliza, assim, a agressividade através da sedução e abusa da submissão do
homem aos encantos da mulher. Invertendo os papéis defensivos tradicionais do homem e
da mulher, subjuga o homem, manipulando-o, dominando-o e induzindo-o ao erro e à morte.
O potencial que o homem tem para se relacionar com a mulher e com a vida pela
sensibilidade, delicadeza, ternura, gentileza, e a possibilidade de troca com uma parceira
equivalente a ele em capacidade de luta, determinação, firmeza e empenho, ao ser relegado
à Sombra, volta-se contra ele, seja através de sintomas, situações, experiências ou até
mesmo de mulheres simbolicamente tão sanguinárias e destrutivas como Durgā. Essas
mulheres transformam muitos homens em suas vítimas; fascinando-os pela beleza e pela
sedução, os despontecializa e paralisa – em sua relação com o deus Vishnu, Durgā o
7
enfraquece e desvitaliza tanto, que ele fica inconsciente e só consegue agir quando ela o
deixa. Mas, convém lembrar, Durgā sempre luta a favor dos deuses, que podemos
compreender como aspectos criativos da personalidade, combatendo sua Sombra (os
demônios). Luta, assim, a favor da luz e da justiça, a favor da construção e afirmação da
identidade da mulher e, conseqüentemente, da do homem.
Durgā pode ser vista também como exemplo da exasperação da mulher para
mostrar ao homem sua força, sua independência, autonomia, capacidade de luta e
determinação. Durgā nos mostra que, se sua força e integridade forem reconhecidas,
aceitas, acolhidas e respeitadas, ela funcionará de modo benevolente e protetor. Caso
contrário, atuará a sedução e a agressividade de maneira defensiva e levará à destruição. A
representação de uma mulher como essa força, criadora e destruidora a um só tempo,
aponta para as grandes mudanças que partem dos oprimidos, pois eles é que estão em
posição desconfortável e, por isso, querem mudança.
Determinados atributos de Durgā, alguns expressos em seus diversos epítetos, são
elementos fundamentais para abordarmos o significado profundo de seu dinamismo.
Elevada às vezes à condição da divindade que cria, mantém e destrói o Cosmos, para
recriá-lo depois, tem o atributo da Ira, que representa a força dos deuses, que não pode ser
controlada. Dentre uma série de estereótipos que carregamos, está aquele que identifica a
agressividade com o Mal. É claro que, se não houver elaboração dessa força, ela poderá se
tornar destrutiva, mas isso vale para qualquer função estruturante, seja ela o amor, a
esperança ou a fé – ainda que estas vivências sejam classificadas, também
estereotipadamente, como sendo apenas algo bom. A ira de Durgā, por um lado, pode ser
compreendida como o resultado da exclusão da mulher, da retirada de seu lugar como ser
independente e autônomo, com direito a se expressar e a ser ela própria, impedida de lidar
com forças terríveis, agressivas, destrutivas, mas que fazem parte de sua natureza tanto
quanto a habilidade de proteger e cuidar. Por outro, no entanto, pode ser compreendida
como a destruição do que é ilusório, do aparente. Durgā como salvadora diz o “não” criativo,
que vem para colocar limite a uma situação insuportável, inaceitável. Ao fazê-lo, aponta para
a ultrapassagem do perecível, do superficial, de valores que não são essenciais, mas vividos
como se fossem. Vem na proporção do incômodo. Significativamente, é Durgā quem dá
origem a Kālī, a deusa que, dentre outros feitos, destrói o tempo. O tempo (Kāla), que a tudo
8
consome, só é destruído por Kālī (a que devora o tempo), mostrando que o significado pleno
da existência é inseparável do reconhecimento e da transcendência da finitude. O tempo no
qual o Ego vive é transitório, mas, se o Ego tiver a Consciência da presença do Arquétipo
Central, perceberá que em nossa essência habita a eternidade.
Durgā é também a deusa que preside o intelecto (buddhi) em sua unidade cósmica
ou em sua manifestação nos seres humanos (Daniélou, 1991, p. 265). Como Logos, revela a
percepção da grandeza cósmica e do ser humano, mostrando que a possibilidade de ser
consciente não depende do gênero. Enquanto ao homem associou-se o Verbo, à mulher foi
associada a fofoca... Às mulheres é negado o privilégio do dom da palavra e, quando elas
falam, o que dizem é visto como simplesmente “conversa jogada fora”. Silenciada sua
subjetividade, sua identidade não pode ser afirmada. Assim, o significado simbólico da
deusa mostra-se aqui, mais uma vez, revolucionário, já que a palavra, o pensamento, a
razão e a identidade foram tradicionalmente ligados e vistos como pertencentes apenas ao
homem. Lembremos, porém, que o simples fato de serem homens era o que impossibilitava,
aos deuses, a vitória. Na verdade, o mito de Durgā coloca-nos diante de um padrão coletivo
de funcionamento que, ao longo de milênios, desvalorizou a mulher, privou-a de sua
identidade, subestimou sua força, apropriou-se de seu corpo, violentou sua alma, restringiu
sua liberdade, limitou sua determinação, escravizou sua conduta, desconsiderou sua
criatividade, aniquilou sua capacidade de propor idéias e buscou calar sua voz. O mito ilustra
de maneira emblemática o quanto toda esta desqualificação da mulher termina por
despotencializar o homem, formando uma Sombra que só poderá ser resgatada com o
desenvolvimento pleno da mulher, que é inseparável de uma transformação da Consciência
do homem. Sem isso, todos saem perdendo: mulher, homem, família, cultura e civilização.
Nesse sentido, a afirmação do Budismo de que nenhuma pessoa atingirá a iluminação
enquanto todos os seres humanos não forem Buddha, aplica-se de forma extraordinária à
relação entre a identidade do homem e a identidade da mulher.
Durgā é também o desejo, a alegria e o prazer, sentimentos resultantes do encontro
com o Centro, da vivência de plenitude, de totalidade, de Consciência da onipresença do
Arquétipo Central. Ela pode ser vista como uma expressão tão ampla do Todo que se
manifesta em diferentes âmbitos da vida; é associada às colheitas, à terra que produz
(Arquétipo Matriarcal), à luta, ao campo de batalha, com vistas a manter a ordem do Cosmos
9
(Arquétipo Patriarcal). Ao ser capaz de associar os opostos e lidar com eles dialeticamente,
representa o padrão de alteridade e, ao mesmo tempo, zela pela ordem cósmica, pelo Todo
– Arquétipo de Totalidade. Ao conjugar em um único símbolo todos estes padrões
arquetípicos da Consciência, Durgā aponta para uma Consciência que reúne os opostos,
capaz de perceber que tudo é a manifestação da unidade e que o Uno está em tudo. Talvez
seja essa a grande missão de Durgā ao buscar manter a ordem do Cosmos.
Ao destruir o obsoleto, a ilusão, o artificial, os valores supérfluos e criar uma nova
ordem, Durgā aponta para o futuro, para o que está mais além, e por isso também é
chamada a Inatingível, a que está além da compreensão, aquela além de quem não há
além. Provavelmente é por isto que Durgā é considerada a parceira de Kalki, o avatar de
Vishnu que ainda estar por vir (Daniélou, 1991, p. 262). Como imagem messiânica, ela
aponta, possivelmente, para a efetivação de um padrão de Consciência no qual todos
seremos Buddha, isto é, o Todo será percebido na unidade, e a unidade no Todo.
Aprenderemos então, quem sabe, que somos expressões de um único ser, que temos a
mesma mãe – a Terra – e o mesmo pai – o Cosmos, e essa Consciência unirá em
comunhão a mulher, o homem e a natureza.
Referências Bibliográficas
ALTENKAR, A.S. (1938, 1959). The Position of Women in Hindu Civilization. Delhi: Motilal
Banarsidass, 1983.
DANIÉLOU, Alain (1964). The Myths and Gods of India. Rochester: Inner Traditions
International, Ltd., 1991.
EILBERG-SCHWARTZ, Howard e DONIGER, Wendy, ed. (1995). Off With Her Head – The
Denial of Women’s Identity in Myth, Religion, and Culture. Berkeley: University of California
Press, 1995.
KINSLEY, David (1986). Hindu Goddesses – Vision of the Feminine in the Hindu Religions
Tradition. Delhi: Motilal Banarsidass, 1987.
10
REFLEXÕES SOBRE O FUNDAMENTO PSICOLÓGICO DO
PENSAMENTO RELIGIOSO DE C.G.JUNG
João Bezinelli1
A forma como Jung entendeu religiosidade sempre foi motivo das maiores
controvérsias. Ele foi visto ora como ateu, ora como místico; ora reduzindo o
transcendente ao imanente, ora deificando a psique. Para alguns ele aproximava o
homem de Deus, enquanto outros achavam que para ele Deus era apenas uma
projeção do homem... Durante quase toda a sua vida travou calorosas polêmicas a
respeito da religião e até o fim da sua existência julgou-se incompreendido.
Religiosidade foi o tema da sua vida. Pré-ocupação tão precoce, tão intensa e
torturante, matriz de tantos conflitos com ele mesmo e com o mundo, parece-nos
ser, por vezes, além da busca de uma transcendência, a necessidade de um
resgate, de uma reparação. O desenvolvimento do conceito psicológico de
religiosidade para Jung como sendo também uma tentativa de resgate da imagem
paterna, e um possível complexo materno como uma condicionante de sua visão
de religião é o objetivo desta reflexão. Não se trata de uma psicanálise redutiva do
homem Jung, mas uma tentativa de ver um trajeto teleológico da ferida do
complexo impulsionando-o para a busca do significado.
É importante que fique claro que estamos falando sempre a partir de um
ponto de vista psicológico, ou seja, partimos do princípio da existência de uma
condicionante interna (complexo) pessoal e cultural que nos faz ter (e buscar,
através da projeção) um determinado enfoque do religioso, e não do divino em si.
Reafirmando: esta reflexão busca entender as raízes psicológicas complexuais
que fundamentam a forma como Jung entendia religião. Levanta-se a questão:
quais complexos da sua psicologia o fizeram buscar na cultura certas matrizes
que, ao mesmo tempo, passaram a constituir parte dos seus complexos?
Das condicionantes externas, culturais, que contribuíram para a elaboração da
conceituação de religião como desenvolvida por Jung, creio ser da maior
importância, em termos filosóficos, o Romantismo. Nesta visão filosófica
1
Psicoterapeuta junguiano. Professor do curso de Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada
a Técnicas Corporais, no Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: joaobezinelli@uol.com.br
valorizava-se a vivência e, para Jung, a religião é uma vivência, uma experiência
imediata. Além da vivência, o Romantismo veiculava a importância do instinto
(para ele a religião é instintiva), da intuição, da imaginação, dos símbolos. O
Romantismo valorizava o mítico e a ancestralidade. Buscava uma cosmologia que
incluísse o espírito. Era uma filosofia não dualista (Clarke 1993, p.86). Uma
filosofia, se pudermos dizer assim, simbolicamente feminina.
Das condicionantes internas, que é nosso objetivo maior neste espaço,
diria que vemos na conceituação psicológica de religiosidade, como desenvolvida
por Jung, a presença da força de um complexo materno e a concomitante
debilidade da imagem paterna. Um pai com o qual Jung não estabeleceu uma
identificação satisfatória e que foi falho em retirá-lo do “mundo das mães”. Diria
que a visão religiosa de Jung, em termos psicológicos, principalmente nos seus
primórdios, era “materna”.
A ausência da mãe, por cerca de seis meses, hospitalizada quando Jung
tinha três anos de idade, afetou-o profundamente. Nas Memórias, ele classifica
essa fase da vida como importante e traumática, afirmando inclusive ter
desenvolvido problemas somáticos, como um eczema generalizado. Talvez esteja
aqui o trauma inicial do complexo. No rascunho da sua autobiografia Jung
explicava que a mãe, para desgosto do marido, era histérica, e na versão original
ele chega a incluir detalhes dos problemas mentais dela. Afirma que ela recuperou
a saúde apenas após o falecimento do seu pai (aos 21 anos de Jung)2 (Smith
1996, p.17). Foi também nesse mesmo período que Jung diz ter vivido o seu
primeiro trauma consciente: a aparição, “saindo da floresta”, de um jesuíta, que lhe
causou um “pavor mortal”. Certamente a essa imagem está associada a do Sr.
Jesus, que foi visto como responsável por chamar para junto a si as pessoas que
então “subitamente desaparecem. Ouço dizer que foram enterradas”, lembra Jung.
Nas suas Memórias, neste ponto, como em vários outros em que ele fala da sua
2
O original em inglês das Memórias, uma doação do Dr. James S. Cheaton, encontra-se na
Countway Library (Smith 1996, p.17). Esse fato foi também relatado por Ruth Bailey, a governanta
de Jung, e encontra-se no Arquivo histórico Oral sobre Jung, da Countway Library. Esses trechos
foram retirados das Memórias, antes que elas fossem publicadas, a pedido da família (Noll 1996,
p.331, nota 4).
infância, diz que sentia angústia durante a noite. É dessa época o conhecido
sonho do falo, a contraparte ctônica do Sr. Jesus.
A importância que pode ter a ausência da mãe na vida de um indivíduo é
explicada didaticamente pelo próprio Jung numa carta ao Sr.McCullen, que ficara
órfão aos seis anos de idade e que, desde então, sofria de sentimento de culpa e
medo. Diz Jung:
A grande influência da mãe deu-se por sua ausência e mais ainda pela
presença, percebida muitas vezes como invasiva e onisciente. Uma figura que, por
causa da hospitalização, também desaparecera subitamente (obra do Sr.Jesus?)
e retornara revestida de poderes sobrenaturais. Um só exemplo pode demonstrar
a forma mágica como ela era vista por Jung:
Ainda sobre suas angústias infantis, ele relata que, um pouco antes
dessas visões, quando tinha sete anos, sofreu de pseudocrupe, com acesso de
sufocação. Via um círculo azul-brilhante onde se moviam formas douradas que
tomava por anjos. A visão, diz Jung, “aliviava a angústia da sufocação. Mas a
angústia reaprecia nos sonhos. Creio que um fator psicogênico desempenhou em
tudo isto um papel decisivo: a atmosfera começava a tornar-se irrespirável” (Jung
1975, p.31).
Jung dizia que a mãe revelava repentinamente “uma personalidade
inconsciente de um poder imprevisto – um aspecto sombrio, imponente, dotado de
uma autoridade intangível” (Jung 1975, p.54).
Quando criança tive sonhos de angústia motivados por ela. Durante o
dia era uma mãe amorosa, mas de noite a julgava temível. Parecia uma
vidente que ao mesmo tempo é um estranho animal, uma sacerdotisa no
antro de um urso, arcaica e cruel. Cruel como a verdade e a natureza.
(Jung 1975, p.56)
Grifo nosso
3
Jung refere-se aqui à “mente natural” da mulher – e, por extensão, ao inconsciente feminino.
da libido, transferindo-a para o da anima. Mas uma anima ainda completamente
contaminada pelo aspecto negativo do complexo materno, percebida como a
“mulher interna” que desperta desconfiança, como uma inimiga, destrutiva e
perigosa. Nas Memórias, Jung fala-nos desse momento quando anotava suas
fantasias e se perguntou o que de fato estava fazendo, e uma voz interna
respondeu-lhe: “O que fazes é arte”. Jung replicou energicamente à voz,
protestando que não era arte, mas natureza, e conta “o que me impressionou em
primeiro lugar foi o aspecto negativo da anima. Em relação a ela eu sentia timidez
como se tratasse de uma presença invisível”. Mais à frente diz que essa voz, que
ele reconheceu ser de uma paciente internada, “exercia uma influência desastrosa
sobre os homens”4 (Jung 1975, p.164-66).
Como vimos, a desconfiança em relação à mulher tinha raízes profundas
no seu complexo materno, associada principalmente a um sentimento de
abandono. (Em uma sentença, que foi excluída da versão final das Memórias,
Jung diz que sentia o temor de que pudesse haver uma nova separação da sua
mãe) (Smith 1996, p.18).
Para finalizar o assunto abandono, que já se estende além do necessário,
duas citações do próprio Jung:
4
Especula-se que a “voz” era de Sabina Spielrein (ver McGuirre, Analytical Psychology, p.42, nota
de rodapé). Sobre Sabina recaiu a projeção da anima de Jung, que com ela manteve intensa e
conturbada relação erótica.
filho, era o resultado de uma crise espiritual. Não tinha mais a fé singela e nem a
coragem de mergulhar na descrença e na falta de sentido. Não pensava, pois
devia crer, e não mais acreditava. Assim, ao longo da vida, perdera a fé, o afeto e
a saúde. Do pai pastor Jung esperou receber uma religião viva, que aquele nunca
foi capaz de viver.
Um bom exemplo da expectativa religiosa de Jung, que nunca se
cumpriu, foi o evento da sua crisma. O preparo para o dia solene, ao qual o pai
dava tanta importância, foi grandioso. O próprio pai lhe ministrou as aulas de
religião, o que por sinal lhe aborrecia profundamente. Interessou-se pela
“Trindade”; aí havia o mistério de uma unidade que são três, mas ao chegar a
esse ponto o pai passou por alto, falando que não a compreendia.
Apesar do tédio que sentia, fiz todas os esforços para crer sem
compreender – atitude que parecia corresponder à de meu pai – e assim
me preparei para a comunhão, na qual pusera minha última esperança.
Atingira o apogeu da iniciação religiosa, da qual esperava algo de inédito –
e nada aconteceu. Aquela celebração solene não manifestara qualquer
traço de Deus. Falara-se d’Ele, mas tudo se limitou a palavras. [...] Aquela
comunhão fora uma deplorável experiência. Para mim não se tratava de
uma religião, mas uma ausência de Deus. [...] Senti uma piedade imensa
de meu pai. Compreendi o trágico de sua profissão e de sua existência. Ele
lutava contra uma morte, cuja presença não podia admitir. (Jung 1975, p.
59-60)
Claro, é apenas uma fantasia que fazemos, mas é fascinante pensar que
houve um momento na vida de Jung que talvez revelasse o fim do “karma”
religioso e o reencontro com o pai. Um amigo perguntou a Jung, já envelhecido,
qual o fato mais comovente da sua vida, e ele respondeu:
Referências Bibliográficas
Jung, C.G. (1975). Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira.
__________ (1984). Dream analysis. Notes of the seminar given in 1928-1930.
London, Melbourne e Henley: Routledge & Kegan Paul.
__________ (1989). Analytical Psychology. Notes of the seminar given in 1925.
Edited by William McGuire. Princenton: Princenton University Press.
Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar uma revisão da literatura existente
sobre a Hepatite C. A maioria dos estudos encontrados são médicos, falam da
descoberta do vírus C, dos tratamentos disponíveis, que não são eficazes para
todos os indivíduos atingidos, e assinalam os aspectos ainda desconhecidos sobre
essa doença que atinge milhões de pessoas em todo o mundo. Apenas duas
pesquisas tratam de questões psicológicas relacionadas à situação de ser
portador desta doença. Foram também encontrados estudos realizados na área da
Psiconeuroimunologia que se referem às doenças virais, que não falam
especificamente da Hepatite C, mas que nos pareceram bastante pertinentes.
Como proposta de estudo nesta área, foram feitas pesquisas a respeito do
adoecer psicossomático de acordo com a visão de diversos autores, numa
tentativa de compreensão dos aspectos psíquicos envolvidos no aparecimento das
doenças, seu significado, e possibilidades de intervenções psicológicas, que junto
às intervenções médicas possam contribuir para o tratamento das mesmas.
1
Mestre em PsicologiaClinica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Psicoerapeuta Junguiana, Professora
do curso de Especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais do Instituto Sedes
Sapientiae..
2
Doutora em Distúrbios de Comunicação pela Universidade Federal de São Paulo, Analista Junguiana, Professora e
Orientadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.
INTRODUÇÃO
REVISÃO DE LITERATURA
Tratamentos médicos
De acordo com Reichard et al (1992), a associação de Ribavirina e
Interferon Alfa, no tratamento de indivíduos com Hepatite C, conseguia levar a não
detecção do vírus, o que podia significar sua eliminação, e a normalização do
funcionamento do fígado, em aproximadamente 40% dos casos. Mesmo quando
não se consegue a eliminação do vírus, pesquisas revelam que o tratamento
diminui o risco de Cirrose e Hepatocarcinoma (“Canadian Journal of Public
Health”, 2000).
A combinação de Ribaverina e Interferon Alfa, medicação extremamente
cara, é distribuída gratuitamente na rede pública de hospitais e pela prefeitura de
muitas cidades brasileiras. Este tratamento tem efeitos colaterais fisiológicos,
psíquicos, e até psiquiátricos. Os pacientes tratados com estes medicamentos
apresentam perda de apetite, dores musculares, febre, fadiga, diminuição de
concentração e prejuízo de memória. Algumas pessoas apresentam Depressão
durante o tratamento, principalmente se tiverem um histórico anterior desta
doença. O Inteferon Alfa, é ministrado a cada três dias, e seus efeitos colaterais
prejudicam a qualidade de vida de quem o utiliza, porque o mal-estar por ele
provocado permanece praticamente contínuo.
Segundo Manns et al (2001), depois de 1999, surgiu um tratamento mais
eficaz para eliminar o vírus HCV, que é a associação da Ribavirina com Interferon
peguilado, o peguinterferon Alfa 2b, e em seguida, de acordo com Fried (2002), o
peguinterferon Alfa 2a, que chega a obter por volta de 80% de sucesso na
negativação do vírus. Seu custo financeiro é maior do que o do outro Interferon,
não peguilado, e ainda não está disponível em toda rede pública, embora a mídia
tenha anunciado que isto ocorreria em junho de 2002. Esta medicação oferece
uma qualidade de vida muito melhor ao paciente, por provocar menos efeitos
colaterais, que duram por volta de dois dias, e por ser administrado uma só vez
por semana. Estas características permitem ao paciente continuar com quase
todas as suas atividades habituais. O tratamento com qualquer um dos
medicamentos pode durar de seis meses a um ano, e em alguns casos até mais
tempo.
Investigações
O papel que a mente pode ter na saúde física é uma questão muito antiga
na história da humanidade. A psiconeuroimunologia é o campo científico, que há
mais de 25 anos, tem pesquisado e estudado a respeito deste assunto,
investigando a ligação entre a psique, a mente e o sistema imunológico,
comprovando a interação entre estes sistemas e sua implicação na saúde.
Na pesquisa que pudemos realizar não encontramos nenhum trabalho que
relacionasse Hepatite C com psiconeuroimunologia, então buscamos pesquisas
que tratassem de doenças virais e psiconeuroimunologia.
Glaser e Kiecolt–Glaser, pioneiros em pesquisas sobre
psiconeuroimunologia, realizaram uma série de estudos a fim de confirmar a
hipótese de que o estresse provoca suscetibilidade à infecção por vírus em seres
humanos. Em sua pesquisa a respeito da Síndrome de Fadiga Crônica (1998), os
autores relatam que em seus estudos realizados anteriormente, puderam
confirmar a hipótese acima citada. Um deles foi realizado com estudantes de
medicina de Ohio em 1986, onde se examinou o impacto do estresse nas células
do sistema imunológico. Foram selecionados períodos de baixo e alto estresse
durante o ano acadêmico. As amostras de sangue foram colhidas nos dois
momentos e os períodos de estresse foram confirmados pelos dados obtidos por
um questionário específico para avaliação de estresse. A análise dos resultados
concluiu que havia mudanças significativas nas respostas imunológicas nos
períodos de estresse acadêmico, onde se verificou a queda de células NK e
células T, diminuição dos anticorpos e respostas de células T à vacinação de
Hepatite B e evidência de reativação de vírus latente de Herpes, Epstein-Barr, e
Herpes Simplex.
Outro estudo feito por Glaser e Kiecolt-Glaser (1987), com parentes
cuidadores de pessoas com Doença de Alzheimer, verificou a mesma diminuição
nas respostas de defesa do sistema imunológico que no grupo de estudantes.
Neste caso, a situação imunológica era também agravada pelo “déficit”
imunológico provocado pela idade destas pessoas, em sua maioria com mais de
70 anos. Observou-se que os cuidadores tiveram respostas imunológicas muito
mais fracas para combater o vírus de gripe do que as respostas verificadas no
grupo controle. Estes resultados provam a vulnerabilidade à infecções em
indivíduos estressados.
Os autores concluíram que os sintomas clínicos associados a um agente
infeccioso, como um vírus, são devidos à combinação da patologia produzida pelo
próprio vírus e a imunopatologia produzida pelo estresse, que resulta numa
resposta imunológica inadequada. Os mecanismos deste fenômeno são bastante
complexos, e ainda necessitam ser mais amplamente estudados.
Kennedy, Kiecolt-Glaser e Glaser (1988), realizaram um estudo com o
objetivo de examinar as conseqüências do estresse agudo e crônico no sistema
imunológico, considerando o papel das relações interpessoais. Apresentaram uma
pesquisa feita com estressores prolongados, como os existentes numa separação
conjugal, ou no cuidado de um parente com Doença de Alzheimer, esta última já
citada acima. Neste artigo ressaltaram a relação entre variáveis psicológicas tais
como solidão, angústia e depressão, vividas pelas pessoas que se encontram
nestas situações, com alterações imunológicas. Foram utilizados inventários para
avaliar as condições psicológicas e exames de sangue para verificar as condições
imunológicas dos indivíduos que compunham a amostra. Na discussão dos dados
obtidos, constataram que a qualidade do relacionamento interpessoal podia
atenuar as alterações imunológicas adversas associadas à angústia, podendo
diminuir a suscetibilidade a doenças constatadas em tais pessoas.
Glaser e Kiecolt-Glaser (1994), ressaltam que a relação, entre estresse
como causador de uma imunopatologia, tem que ser cuidadosamente considerada
e cuidada em pesquisas. Em primeiro lugar é preciso definir o que será
considerado fator estressor. Um estressor físico pode alterar diretamente o
sistema fisiológico. Outros estressores ocasionam modificações através de
mecanismos do sistema nervoso central envolvendo processos cognitivos e
emocionais. Ao considerar fatores estressores é também necessário considerar
se estes são agudos ou crônicos, sociais e não sociais, porque destas
características dependem as alterações que provocam no sistema imunológico.
Os estressores sociais provocam efeitos mais complexos e talvez mais poderosos
do que os estressores não sociais.
De acordo com Glaser e Kiecolt-Glaser (1994), as reações ao estresse são
presumidamente ligadas ao impacto de estressores nas funções endócrinas e
imunológicas e seus resultados na saúde. Depressão, raiva, ansiedade, medo são
reações psicológicas relacionadas ao estresse. Elas variam quanto à severidade e
tempo de duração. Estas reações são muito complexas e variam de indivíduo para
indivíduo. Dependem de condições genéticas, reações fisiológicas, tipo de
personalidade e tipo de enfrentamento (“coping”). A adequação do enfrentamento
é influenciada por vários aspectos, entre eles motivação, auto-estima, otimismo ou
pessimismo. Além disto, todos estes efeitos podem ser modificados por fatores
tais como qualidade e quantidade de suporte social.
Eles ressaltam ainda as dificuldades éticas e metodológicas das pesquisas
realizadas em laboratório para verificar a influência de fatores psicológicos nas
doenças virais em seres humanos, advertindo quanto ao cuidado necessário para
evitar conclusões erradas, por influência de inúmeras variáveis não controladas.
Por questões éticas, nas pesquisas com seres humanos, não se pode inocular um
elemento patogênico para analisar seus efeitos, e as medidas do sistema
imunológico são limitadas e superficiais, pois as medições mais acuradas são
também invasivas. Além disto, investigações do funcionamento do baço, timo e
linfonodos são inacessíveis na prática de pesquisas laboratoriais, por serem, na
maioria das vezes, inviáveis financeiramente.
É amplamente aceito que o estresse, e as reações psíquicas nele
envolvidas provocam um impacto negativo que afeta o equilíbrio da função
endócrina e imunológica, o que fragiliza o indivíduo tomando-o suscetível a
doenças.
Glaser e Kiecolt-Glaser (1998) afirmam que a literatura relacionada às
pesquisas em Psiconeuroimunologia considera a possibilidade do estresse induzir
a uma imunopatologia, ligada à queda de respostas dos anticorpos, que tornam o
indivíduo mais vulnerável a infecções virais.
De acordo com Vasconcellos (1998), “todo fenômeno de saúde ou doença
para ser compreendido na sua constituição integrada, precisa ser refletido sobre o
aspecto físico, químico, biológico (fisiológico), psicológico (mental e emocional),
social e espiritual”. Essa afirmação corrobora nossa convicção a respeito da
relevância da realização de uma psicoterapia com portadores de Hepatite C
assintomática. Por este motivo nos pareceu importante buscar pesquisas que
tivessem utilizado algum trabalho psicoterapêutico como um recurso no tratamento
desta doença. Entretanto, nenhum trabalho com estas características foi
encontrado.
A respeito da Hepatite C, a maior parte dos estudos existentes é médica, e
fala daquilo que se pôde descobrir a respeito da doença até hoje, no que diz
respeito a diagnóstico, prognóstico, meios de contaminação, prevenção e
possibilidades de tratamento.
Os aspectos psicológicos levantados e mais estudados pela maioria das
pesquisas são a Depressão e as alterações cognitivas (“déficits” de memória e
concentração) provocadas pelo tratamento existente, que ainda não garante a
cura da doença. Entretanto, foram encontradas duas pesquisas dirigidas a
pessoas portadoras de Hepatite C na fase imediatamente pós diagnóstico,
procurando investigar o impacto emocional da informação recebida, e suas
conseqüências na vida destas pessoas. Estas pesquisas nos pareceram
particularmente importantes, por tratarem da fase da doença que este trabalho se
propõe a lidar.
Rowe W., Rowe J. e Malowaniec (2000), realizaram um estudo que
abordou a situação emocional do indivíduo diagnosticado como portador de
Hepatite C, desde a época da identificação do vírus (1989), até o ano 2000. Os
autores relataram a situação de quase total desconhecimento da doença, na
época da identificação do vírus C (HCV), por parte dos médicos, que não podiam
esclarecer as dúvidas de seus pacientes relativas à doença, e o quanto esta
situação provocava uma enorme angústia nos doentes e também nos próprios
médicos.
No ano 2000, apesar da evolução da doença ainda não ser completamente
conhecida, os médicos estavam mais bem informados sobre as emoções
experienciadas pelas pessoas diagnosticadas com HCV. Estas emoções eram:
choque por se sentirem repentinamente frente a uma grande ameaça, medo,
negação, confusão, vergonha, pesar, culpa, idéias suicidas, ansiedade aguda e
raiva.
O estudo apontou a necessidade de suporte adequado, para que reações
agudas possam ser previstas e atendidas, para poderem evoluir para estratégias
de enfrentamento adaptativas. Foi apontado como alerta o fato constatado de que
pessoas isoladas, na ocasião do diagnóstico de doenças que ameaçam a vida,
podem chegar a resultados muito piores do que aquelas que tiveram algum
suporte. O diagnóstico de uma doença grave tem um efeito devastador no
indivíduo atingido e em sua família, quando não há suporte psicológico. Muitas
vezes o médico é inábil em sua tarefa de dar a má notícia, e não sabe como lidar
com a angústia do paciente, diante da situação que lhe foi comunicada. Na
conclusão deste estudo os autores advertiram para a necessidade de formação de
grupos de suporte para os portadores de HCV e seus familiares, e de um
programa de informação sobre Hepatite C para os profissionais de saúde
envolvidos no seu tratamento.
Glacken, Kernohan e Coates (2001), em outra pesquisa, focaram seu
objetivo em procurar entender o que significou para o indivíduo portador do vírus
da Hepatite C, receber este diagnóstico, quais foram seus sentimentos no
momento em que ficaram sabendo de sua situação de saúde. Os autores usaram
uma abordagem qualitativa, realizando uma exploração descritiva a respeito da
experiência de tais pessoas. A amostra foi composta por nove pessoas, com quem
foram feitas entrevistas de 90 minutos, porque este instrumento foi considerado
mais apropriado para explorar a perspectiva dos participantes com relação ao
diagnóstico recebido.
A experiência de viver com Hepatite C foi considerada um processo
transitório. Pensar sob a perspectiva de um processo de transição, segundo os
autores possibilita um caminho interessante para conceitualizar respostas
humanas a mudanças.
Os pesquisadores discutiram os dados obtidos levando em conta:
- Fatores percebidos como impedidores da transição
- Fatores percebidos como facilitadores da transição
- Indicadores de transição saudável
Os dados obtidos permitiram concluir que, para todos os participantes, o
diagnóstico de Hepatite C consistiu em fator desencadeante para experienciar
uma transição de vida, entendendo transição como sendo a afirmação de uma
mudança no estado de saúde do indivíduo e as conseqüentes extensões disto na
própria pessoa e sua família.
Os autores falam que a disrupção precipitada por uma transição na vida de
uma pessoa, requer do indivíduo uma reestruturação que facilitará o surgimento
de novos significados em sua vida. Isto subseqüentemente servirá como base de
sua nova existência pós transicional.
A Hepatite C é vista pelos médicos como uma doença benigna, para grande
parte das pessoas infectadas. Porém para nenhum dos participantes deste estudo
a doença foi vista desta maneira. Alguns participantes se engajaram com sucesso
no processo de reconstruir suas vidas integrando nelas a doença e suas
conseqüências. Outros permaneceram nos estágios primários de assimilação da
situação trazida pela doença. Ficou evidente que uma experiência transicional não
é linear.
O diagnóstico de Hepatite C desencadeou a transição na vida dos
indivíduos afetados. As transformações que ocorreram como resultado de uma
transição pessoal na vida destes indivíduos precipitaram uma série de outras
transformações que atingiram também suas famílias. Este fato é bastante
compreensível se pensarmos no caráter sistêmico da organização familiar, na qual
a transformação de um dos membros atinge o núcleo como um todo. O
reconhecimento das conseqüências sofridas pela família diante do diagnóstico, de
um de seus membros, tornou necessária a utilização de modelos de atuação, que
incluíssem também o cuidado das mesmas.
O estudo delineou vários fatores que dificultaram a transição de pessoas
diagnosticadas como portadoras da Hepatite C, fornecendo muitos dados que
podem ser utilizados pelos profissionais de saúde para criar intervenções com o
objetivo de transformar o que foi percebido como barreiras para a transição, em
fatores facilitadores para tal processo.
Os portadores de Hepatite C crônicos apresentam uma série de sintomas,
tais como fadiga, dores musculares, dores nas articulações, dores abdominais,
náuseas e falta de apetite, que prejudicam sua qualidade de vida. Por esta razão,
os autores sugeriram que os profissionais de saúde realizassem intervenções que
pudessem ajudar tais pessoas a conviverem o melhor possível com tal situação.
Os autores citaram ainda as limitações de seu trabalho quanto à estratégia
para escolha da população que compôs a amostra. Entretanto, ressaltaram que
ele serviu para que se pudesse perceber a experiência vivida pelos indivíduos
diagnosticados com Hepatite C, uma questão muito importante, da qual não havia
referência na literatura. O conhecimento destes dados deveria passar a ser
considerado no tratamento desta população o que facilitaria o engajamento destas
pessoas no processo de transição desencadeado pelo diagnóstico.
Em nossa pesquisa não encontramos nenhum trabalho que relacionasse
portadores de Hepatite C e intervenção psicológica.
CONCLUSÃO
O adoecer psicossomático
Atualmente é indiscutível a visão de corpo e mente como uma totalidade, e
é indiscutível, portanto, a influência de uma instância sobre a outra. Siegel (1996
[1989]), ressalta o efeito devastador de mensagens negativas transmitidas ao
doente, principalmente quando fornecidas por figuras de autoridade como médicos
e meios de comunicação tidos como confiáveis. Destaca o fato de que as palavras
do médico podem matar ou curar, à medida que podem condenar ou dar
esperança ao indivíduo. Em toda a sua obra ressalta a importância de uma
postura positiva frente à doença para o alcance da cura, e do poder destrutivo de
uma postura negativa. A possibilidade de ter esperança, e uma perspectiva
positiva frente à possibilidade de vida são fundamentais na luta contra a morte.
A imaginação tem um papel de grande importância em todas as práticas
médicas até na medicina ocidental ortodoxa. Informações distorcidas podem levar
o indivíduo a uma fantasia apavorante, podendo provocar alterações físicas
importantes. “As imagens se traduzem tão prontamente em uma alteração física
que morrer por ter recebido um diagnóstico temido, formulado por um médico de
credibilidade, é tão factível quanto à morte provocada por bruxaria, para um
haitiano vitimado por uma maldição. Estes casos já não são mais questionados
pela comunidade médica e muitos deles foram relatados na literatura científica”
(Achtenberg,1996 [1985], p.80 ).
Ainda como diz a mesma autora, “Diagnósticos têm nomes estapafúrdios,
culturalmente determinados, e têm muito pouco significado ou poder em si e por
si. Não é o diagnóstico que mata (ou cura), mas as expectativas e as imagens que
o acompanham. Não é o que se diz aos pacientes que é tão crítico para a saúde,
mas como se diz, como são atendidos ao receberem o diagnóstico e, obviamente,
como escolhem receber a mensagem no contexto de seu próprio sistema de
crenças”. (idem, p.83). Além disto também considerando o poder das crenças de
um indivíduo, tudo aquilo em que ele acredita lhe faz bem. Isto tem sido
comprovado em vários casos clínicos e pesquisas.
Os estudos sobre placebos confirmam que a mente pode provocar
alterações na química do corpo. “O principal ingrediente é o sistema de crenças
dos seres humanos, a capacidade de mobilizar os próprios recursos é uma
prodigiosa força em si”. (ibidem, p. 88).
A psicologia junguiana também diz algo muito semelhante a esta colocação
quando se refere à existência de um curador interno que habita cada um de nós.
Esse precisa ser mobilizado para que ocorra o processo de cura. Como diz
Guggenbühl-Craig (1978), quando alguém fica doente o arquétipo terapeuta-
paciente se constela. O doente procura o terapeuta exterior, mas ao mesmo
tempo se constela nele o terapeuta intrapsíquico, que é o “fator de cura”. Este é o
medico interno do paciente, cuja ação é tão importante quanto a do profissional
que atua externamente.
De acordo com a visão de Ramos (1994), a teoria Analítica de Carl Gustav
Jung fornece subsídios teóricos para a compreensão da doença como um
fenômeno que envolve a psique e o corpo. Assim, toda doença é um símbolo que
tem um significado para o indivíduo que é portador dela. Os sintomas psíquicos
bem como os somáticos podem ser relacionados a complexos patológicos.
Entender este significado traz a possibilidade de elaboração do complexo que está
por trás do sintoma e conseqüentemente a ampliação da consciência, o que
contribui para o desenvolvimento da personalidade, possibilitando transformações
tanto na maneira de se ver e ver o mundo, como na maneira de ser no mundo. É a
elaboração dos símbolos que o Self manda para a consciência por meio de
sonhos, imagens ou enfermidades, que equilibra o eixo Ego-Self. No caso de
manifestação por doenças, este equilíbrio interno atua positivamente na retomada
da saúde.
É importante ressaltar que o complexo nem sempre se relaciona a um
conteúdo negativo, mas por vezes diz respeito a um conteúdo positivo que está na
Sombra do indivíduo, em seu inconsciente, e que por alguma razão não foi
adequadamente elaborado e integrado. Esse conteúdo pode tornar-se o centro de
um complexo que atua patológicamente na psique, prejudicando o
desenvolvimento da personalidade, precisando, então, ser incorporado à
consciência.
“O sintoma orgânico pode corresponder a uma cisão na representação de
um complexo arquetípico, onde a parte abstrata/psíquica ficou reprimida. Ao ficar
desconectado do ego, esse sintoma se repetirá compulsivamente, como tentativa
de se integrar na consciência, a fim de que o processo de individuação possa
prosseguir”. (Ramos, 1994, p.59). A conscientização da polaridade deste
complexo ocorre através da transdução do símbolo de sua polaridade patológica
para sua polaridade psíquica, abstrata. A conscientização do símbolo, e sua
integração levam a uma melhora da saúde geral do indivíduo doente.
Transdução, segundo Rossi (1997[1993]) diz respeito à conversão de
matéria, energia e informação de uma constituição física para outra. Com relação
à questão mente-corpo, existem evidências de que o sistema límbico-
hipotalâmico se constitua no maior transdutor de informações.
É possível fazer um paralelo entre os princípios do xamanismo e da visão
da doença como símbolo na concepção da psicologia junguiana. Nesta
concepção, a cura se dá quando ocorre a integração de um complexo autônomo
que se manifestou simbolicamente através da doença. No xamanismo a doença
era vista como algo espiritual, isto é, também como uma desarmonia interna do
indivíduo, uma questão pessoal, algo que levava o indivíduo a se enfraquecer
tornando-o sujeito a enfermidades.
Desde 1987, de acordo com as informações encontradas, as pesquisas
sobre psiconeuroimunologia, realizadas por Glaser e Kiecolt-Glaser vêm tentando
estuda-la com relação a doenças virais. Através destas pesquisas, constatou-se
que situações de estresse, onde aparecem acentuados sentimentos de angústia e
insegurança, afetam o sistema imunológico, o que resulta num sistema de defesa
menos eficaz, que torna o organismo suscetível a ser invadido por um vírus.
Assim, de acordo com estes autores, pode-se dizer que o estresse pode provocar
uma imunopatologia.
Segundo Mello (1999), atualmente a Psicossomática reconhece a
interdependência fundamental entre mente e corpo em todos os estágios de
doença e saúde. Não existem doenças com causas puramente psicológicas ou
puramente orgânicas. Assim, todas as doenças são psicossomáticas, pois
envolvem uma inter-relação mente-corpo.
A abordagem atual holista da Psicossomática, é coerente com a teoria e o
método psicoterápico proposto por Jung, embora a Psicologia Analítica não tenha
contribuído diretamente para a Psicossomática. Como propõe Ramos (1994), é
possível entender o fenômeno psicossomático através do modelo analítico. O
teste de Associação de Palavras, usado por Jung no início de sua carreira,
forneceu as bases para a compreensão do fenômeno mente-corpo. De acordo
com Hannah (2003 [1999]), Jung começou a trabalhar com o teste de Associação
de Palavras, criado pelo médico alemão Wilhelm Wundt, em 1904. Jung foi o
primeiro a investigar as perturbações surgidas nas reações às palavras indutoras,
constatando a conexão das respostas dadas a alterações fisiológicas, medidas por
um polígrafo, estabelecendo assim, uma relação indiscutível entre psique e corpo.
A partir destas experiências postulou o conceito de complexo, como um núcleo de
intensa carga afetiva que agrupa em torno de si conteúdos psíquicos, também
carregados de afetividade. Os complexos funcionam como uma entidade
inconsciente e autônoma e por isto são capazes de contrariar as intenções do
indivíduo. Tanto na neurose como na psicose, os sintomas de natureza somática
ou psíquica originam-se dos complexos.
Como afirma Ramos (1994) a psicologia junguiana, aborda a doença como
símbolo de um desequilíbrio psíquico provocado por um complexo que está
represando uma quantidade de energia suficiente para impedir o fluxo adequado e
necessário ao desenvolvimento da personalidade. A doença surge, então, como
uma oportunidade de elaboração de um complexo, que poderá restaurar o
equilíbrio intrapsíquico necessário à retomada do Processo de Individuação,
objetivo principal da psicologia junguiana.
Esta revisão dá força à crença da psicossomática, da
psiconeuroimunologia, e da psicologia junguiana de que psique e corpo se
constituem num todo indissolúvel que se influenciam mutuamente, reafirmando a
necessidade do trabalho transdisciplinar, no atendimento à saúde. Acreditamos,
que o equilíbrio psíquico resulta numa qualidade de vida mais satisfatória, e que
uma intervenção psicoterápica poderia favorecer o desenvolvimento de resiliência
nos indivíduos que a vivenciassem. Resiliência foi entendida de acordo com a
definição de Rutter (1993), como um caminho onde o indivíduo enfrenta e
ultrapassa uma situação nociva, com mudanças e sucessos. Ainda segundo
Grotberg (1999), é uma capacidade universal de superar as adversidades da vida
e ser fortalecido por elas. É parte do processo evolutivo e pode ser promovido
desde o nascimento. É um potencial humano, presente nos seres humanos em
todas as culturas e em todos os tempos.
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