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TRÊS PEÇAS NÔ

Carmen Ollé
Tradução: Hugo Villavicenzio

Diferentemente do dia, a noite é livre.


Yukio Mishima. Seis peças Nô.

Hilária

Personagens
Hilária Hilária Acabei ficando, desde que ele me bateu
Foi uma camponesa da cidade de Cuzco. com aquele troço duro. O pessoal achou que
Homem fosse a culatra dum rifle, mas eu acho que foi
uma pá.
Vivo foi um filósofo, agora é um vagabundo.
Homem Está vendo aqueles chafarizes de água
A visão borbulhante? Antigamente, quando eu era
Espectro com aparência de Jesus Cristo. jovem e vagabundeava por aqui, este lugar era
frequentado só por apaixonados, por vagais,
por um ou outro estudante de medicina e por
Cenário bêbados que recitavam poemas ao luar...
Hilária Minha mãe sabia cantar em quéchua...
Jardim no centro de Lima, enfeitado com vários Não consigo olhar para aqueles chafarizes sem
chafarizes de água. ficar assustada, às vezes tenho a impressão de
que a força d’água que jorra das bicas vai levar
A ação acontece num canto do Parque das Águas, minha vida.
ao entardecer, numa colina artificial. Homem É engraçado o jeito de você falar...
Hilária Por quê?
Hilária Este lugar lembra o mirador das três cru- Homem Por nada, não. É melhor nem saber. Me
zes, falavam que lá dava pra ver três sóis, ape- fala como foi que acertaram você? Conta pra
sar de nunca ter visto mais do que um, o sol mim que é pra não esquecer.
de sempre. Daqui posso vigiar o que fazem as Hilária Mamãe tinha me mandado pastorear
minhas filhas, embora não consiga fazer nada as ovelhas, eram as últimas que tinham fica-
por elas. do com a gente porque o frio tinha acabado
Homem Você sempre foi tão incrédula assim? com as outras coitadinhas, o frio tinha mata-
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do Retamita,1 minha favorita, ela era cria da Homem (sorrindo) Não dá para entender, mes-
ovelha mais velha. Eu ainda estava chorando mo? Falam do cuco das bailarinas que apare-
quando o vi, ele estava parado debaixo de uma cem na televisão. Cuco é mais importante do
árvore, achei que o cara estivesse morto, fedia que coco, você sabia?
a aguardente, como fedem todos os adultos Hilária O que é isso?
nas festas de Santiago em Lamay.2 Eu estava Homem Eu também não sei, deve ser uma ente-
prestes a sair correndo quando ele, muito es- léquia. (solta uma gargalhada, Hilária olha-o
perto, me segurou prendendo-me pelo pé. surpreendida)
Homem Então, foi desse jeito que ele te seduziu? Hilária Você me faz lembrar do prefeito da minha
Hilária Escuta, Hilária, você já está morta. Foi o cidade, às vezes, ele também misturava espa-
que minha mãe falou um dia se eu fosse casar nhol com quéchua e acabava falando cada pa-
com o Hermes. Você já está morta. Isso é o lavra esquisita!
que estou sentindo, minha filha, aqui dentro, Homem Hilária, cuco é bunda, acho que tem a
no meu peito. Minha mãe tinha muita raiva ver com relógio de cuco, aquele que marca as
dele. horas. Cuco-cuco, cuco-cuco! (pula imitando
Homem E estava coberta de razão, também. o passarinho do relógio de cuco)
Hilária usa as mãos como uma corneta e “toca” Hilária Lá em Lamay, o prefeito gostava de pegar
uma melodia. no cuco das garotas.
Hilária Nas festas do povoado, eu adorava tocar Homem Esses rapazes também gostam de fazer
corneta na fanfarra. Hiláriaaaa! Hiláriaaa! Era isso, dá pra ouvir? Presta atenção. Falam das
desse jeito que me chamavam pra ir às festas. pernas e dos quadris das garotas, parece que as
Lá todo mundo dançava, menos o Hermes estão tocando pelas caretas que fazem.
que só ficava enchendo a cara. Hiláriaaa! Hilária Que nojo, aquele barbudo está mexendo
Como? A minha mãe está me procurando nas partes.
para contar a verdade às minhas filhinhas, elas Homem (olhando para os lados) Se pudesse o pe-
não sabem que morri. Mamãe prefere mentir, gava pelo pescoço e jogava no chafariz, que é
tem medo do Hermes. para ver se apaga esse fogo!
Homem Impunidade é tema eterno. Olha lá, as Hilária (num tom ausente) Logo que morri, o
pessoas estão chegando. Rápido, vamos ficar Hermes tirou a Noemi da minha mãe, levou
detrás desse mato! a menina pra trocá-la por roupa, precisava de
Hilária Eles não conseguem nos ver. Por que te- roupa nova para mandar-se com a outra. O
mos que nos esconder? Hermes foi sustentar os filhos da outra mulher.
Homem Porque eles podem sentir presenças es- Foi-se embora pra longe. Ameaçou minha
quisitas, o peso das nossas almas. mãe com tacar fogo na casa, meu pai estava
velho e doente. Pouco tempo depois, morreu.
Os passeantes conversam sobre frivolidades. Homem Anda, dá corda à sua memória, apesar de
Hilária Do que está falando esse pessoal? que já não pode ser chamada assim, mas...

1 Retama: Arbusto da família das Leguminosas Papilionoídea, tem aproximadamente um metro de altura, com muitos galhos finos, compridos e
flexíveis, de cor verde acinzentada, folhas pequenas e muito escassas, flores amarelas e fruto com uma semente enegrecida. Giesta em português.
2 Lamay é um dos oito distritos da província de Calca, em Cuzco, Peru.
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Hilária Ele deixou a caçula com a avó pra lhe fazer a gente morre disso, mas quando os dentes
companhia. A Noemi berrava e chutava, essa doem, doem mesmo. Acontece que depois
menina sempre foi inteligente, percebi desde do golpe do Hermes, eu não senti mais nada,
seu nascimento, desde que mamava nos meus fiquei entorpecida, como quando ficava dor-
peitos. Ela tinha sete anos e foi trocada por mida no pasto acariciando Retamita.
roupa com uns artesãos de Lamay. Homem (em voz baixa) Dá o fora, sai Medusa da
Homem A memória pode ser chamada de arqui- memória! Fui apenas um descaminho na vida
vo, não, de livro aberto, ou melhor, baú, arca, de Diamantina.
tonel, como os das caves. Ah... Hilária Porém, não foi por causa do dente estraga-
Hilária A Noemi fugiu, vagou sozinha pela serra, do que, aliás, tinha me machucado um boca-
depois os artesãos a trouxeram de volta. A mi- do, já que nunca fui ao dentista mesmo, eu não
nha mãe deu de presente umas peles de ove- sei o que é escancarar a boca para tratar de um
lha pelo bom coração dos artesãos. Então, a dente. Além do mais, todos os meus dentes
menina foi entregue pra meu meio irmão, que
foram caindo por causa dos socos do pai das
era filho só do meu pai. Ele a levou pra longe, a
minhas filhas quando ele chegava bêbado e eu
trouxe pra Lima.
não queria satisfazê-lo.
Homem Nas caves, como falam alguns, mas que
Homem Aquela mulher tinha esse nome não por-
para mim são tabernas, passei minha vida
que valesse um diamante. E olha que ela valia
inteira. Foi com estas mãos, que também
acariciaram belos (falando baixo) cucos, que por vários, hein? Era por ser diáfana, por ser
deixei meu destino encharcado em todo tipo mais transparente do que as águas dessas fon-
de versos, nas paredes, nos guardanapos, Ah, tes artificiais.
por que não rabisquei também na bunda da Hilária Os rapazes já foram embora, agora pode-
Diamantina? mos sair. Não tem ninguém mais, parece que
vão fechar o parque. O que está acontecendo
Os rapazes começam a cantar como se estivessem
com você? Está esquisito. Por que enfiou esse
bêbados, a letra das canções é sentimental, fala de
amores traídos e amigos desleais. saco plástico na cabeça?
Homem Lá está ele! Hilária? Você foi embora?
Hilária A Noemi estudou na escola e conseguiu
Por que se esconde, menina? Ele aparece só
se virar com o espanhol, já a Maria, que ficou
pra me contrariar, diz que é Cristo. Hilária,
com a avó, só fala quéchua. Maria é bonita, alta
você reparou nas sandálias dele? São de ouro.
e muito doce. Noemi também é bonita, po-
Para com isso, vai embora, me deixa em paz.
rém baixinha.
Hiláriaaa! O espectro vai nos obrigar a passar
Homem (num tom de voz cada vez mais íntimo) A
por aquele túnel, é o túnel dos condenados.
Diamantina tinha uma tatuagem no ventre.
Corre menina, foge. Aquelas sandálias de
Você já não lembra mais, seu besta, seu idiota?
ouro, ah, se o brilho falasse.
Escuta-se a letra da canção brega: “Mozo sírvame Hilária Estou aqui, bem atrás de você.
otra copa”.4
Hilária puxa o saco plástico da cabeça do Homem,
Hilária A avó falava pra minhas duas filhas que
ele agradece.
eu tinha morrido de dor de dente. Não sei se

4 “Garçom sirva-me outro copo”.


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Homem O evangelista falou pra mim que o brilho Ele pensa em cenas de antigos quadros eróticos ja-
de ouro nos pés dele representa um pedaço do poneses e continua falando.
inferno. Homem Essas eram umas cambalhotas bem ex-
Hilária ri. travagantes mesmo. Rá, rá, rá, rá!
Homem Puxa vida, menina, você não tem dentes Hilária Shhh! Não faz barulho, está acontecendo
mesmo. alguma coisa por aqueles lados. (aponta para
longe com o dedo índicador)
Hilária cobre a boca, mas continua falando, usa a Homem Está falando dos tetos? O que tem de
mão como silenciador. esquisito? O tetos dos bairros populares de
Hilária Mas, eu vi os pés dele, não tinha nenhuma Lima ou dos emergentes como se fala agora,
sandália dourada. Ele estava descalço, os pés são todos parecidos. A maioria do pessoal
eram grandes, rapados e toscos como os dos constrói casas de pau a pique ou de tijolos,
camponeses de Lamay. Eram desse jeito. mas sem telhado; eles colocam umas chapas
de zinco e pronto, moram sob o acachapante
Hilária recolhe o saco plástico do chão e tenta en-
calor no verão e na umidade que rói os ossos
fiar na cabeça, mas o Homem a impede.
no inverno. A umidade do inverno limenho é
Homem Não, de jeito nenhum, nesse saco só en- bem esquisita, o turista acha que lá não faz frio,
tra a minha cabeça. mas se ficasse pelo menos um par de anos, ele
Hilária Mas, o que está acontecendo com você? iria perceber que seus ossos, seus brônquios,
Está muito pálido. Não faça isso de novo. suas articulações... Que tudo ficou pela hora
Homem Fazer o quê? da morte.
Hilária Não volte a lembrar dessa mulher. Como Hilária O teto da casa do meu tio Emiliano, que
era o nome dela, Diamante? em realidade é meio irmão da minha mãe, esse
sim era de concreto, ele construiu uns cubícu-
Homem A Diamantina era o próprio demônio,
los de madeira e papelão para alugar, a Noemi,
pode crer. Ela pintava divinamente, desenhava
minha filhinha, dormiu num deles desde
cenas eróticas direto na pele dos seus amantes.
criança. Ela ficava lá, trancada e quando ficava
Mostra a barriga. de castigo, ela perdia o almoço, meu tio não a
Homem É uma pena, aqui tinha um desenho dela, deixava ir à escola. E tudo isso só porque o tio
mas só dava para ver quando eu estava vivo. queria, ele o tio sinistro que tirou a minha filha
Quando a gente perde o sopro vital, os dese- da casa da minha mãe. Um dia pegou de mau
nhos escapam como quando a chuva para. jeito a mascote dela, de apenas dois meses, e a
Mas, alguma coisa ficou ainda. estrangulou na frente da menina de oito anos,
isso segundo ele, porque a cadelinha sujava
Hilária agacha-se para olhar melhor. tudo, mijava e fazia cocô em tudo que era can-
Hilária Olha... Aqui tem um pé pequenino, é um to. (Noemi abre a porta de compensado do seu
pedacinho de pé, parece de criança... quarto e sai no terraço para lavar-se. É uma casa
Homem (rindo) Até que ficou alguma coisa, você rústica, sem acabamento, como a maioria das ca-
viu? Esse era o pé da minha Diamantina me fa- sas dos bairros populares da cidade) Ela perdeu a
zendo cócegas no... Cof, cof! Ainda bem que o hora de ir à escola, ficou fazendo compras para
resto do desenho apagou, não quero que você sua tia na feira, preparou o café da manhã para
ache que eu sou um tarado. o tio e os primos, três meninos entre 10 e 16
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anos, muito tímidos eles, diferentes do velho Novamente sente o barulho, pega o espelho
pai que é rude e vulgar. A tia devia continuar e o posiciona na direção de onde parece vir o
no mercado, na sua banca de frutas, ela acor- som.
dava muito cedo e sempre pedia para Noemi – Tio? O que está acontecendo? Você quer
tomar conta dos meninos. alguma coisa?
Noemi está de sutiã e de saia do uniforme es- O peso do homem grudado ao corrimão de
colar. Por ser novembro, já faz um pouco de madeira da escada ao ganhar um dos degraus
calor. Mas, na torneira a água ainda está fria, só delata sua presença. Emiliano não responde,
no verão a água ficará morna. Como é gostosa desce apressadamente. Ele é encorpado, gran-
a água morna, ela pensa, deve ser uma delícia de, tem uma barriga proeminente que cresce
tomar banho de banheira com água morna. dia a dia. O cabelo preto e ondulado cobre
A piscina do complexo esportivo que ela viu seu rosto avermelhado como se fosse uma
no inverno tinha água temperada. Ela abaixa peruca. Ele passa a impressão de ter brigado
as tiras do sutiã para ensaboar as axilas e os com alguém recentemente porque apresenta
braços, depois enxuga bem porque não usa olheiras profundas. Sua expressão, seu olhar,
desodorante. Também com que grana, se a tia aqueles olhos cavernosos, provocam medo
não tem dinheiro, e mesmo tendo, a tia não lhe em Noemi. Medo e repulsa. A despeito de ser
paga pelas compras nem pelo café da manhã seu tio, de ser o irmão da sua mãe.
que ela prepara. Muitas vezes nem consegue – Tia, tia! Grita Noemi, debruçando-se no
tomar o café da manhã, queixa-se em silêncio. balcão com a esperança de ver alguém pas-
Ainda que nesse caso, quando chega à escola, sar no térreo da casa, mas ninguém responde.
a sua imaginação voa a mil por hora, chega a Emiliano ergue a cabeça e levanta o punho
sonhar, mesmo que seja com um pacote de partindo em direção dela. Noemi foge escon-
bolacha de água e sal. Felizmente, nunca falta dendo-se no seu quarto.
uma colega preguiçosa que suplica para você Hilária Essa é a minha filha mais velha, Noemi, ela
fazer a tarefa dela e paga com uma laranja ou fez o colegial, é inteligente. Agora acabou a es-
um pedaço de bolo. Mesmo depois das aulas, cola e graças a Deus, ela não mora mais com
na casa da colega de turma, com um pouco de os tios.
sorte você consegue ganhar um bom almoço, Homem Ainda bem. Quando foi que aconteceu
se a mãe da colega estiver em casa e não for- aquilo?
mão de vaca, claro.
Hilária Faz alguns anos.
Examina seu rosto num espelho, tomara que
Homem E só ficou sabendo agora?
não tenha aparecido aquela pereba do mês,
Hilária Eu já sabia, mas consigo ver de novo a cada
pois já está na hora da regra... Escuta um ba-
certo tempo, quando fico triste e apreensiva
rulho detrás dela, é o vento agitando a roupa
pela minha Noemi. A caçula, a Maria, também
pendurada, varrendo as garrafas de plástico
me deixa muito angustiada... Ela foi violenta-
vazias que sua tia guarda para revendê-las no
da pelo patrão. Uma psicóloga cuida dela, mas
mercado. Se ainda vivesse Motita, sua cade-
a Maria não entende nada do que lhe falam.
linha, não se sentiria tão só, ela teria hoje seis
Às vezes ela leva uma bronca, mas eu já falei
anos, era uma cachorrinha linda, uma verda-
pra psicóloga, minha filha caçula só entende
deira nuvenzinha, branca como a neve que fa-
quéchua. O que pode falar aquela doutora
lam que cobre as montanhas da serra, mas que
para que minha filha compreenda? Mas, escu-
para falar verdade, eu nunca consigo lembrar.
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te aqui, o que está acontecendo? Por que está A Visão Sem dúvida nenhuma, mas da arte para
fazendo de novo? ela, ô bulhufas. Espera, tenho algo para você.
O vagabundo voltou a enfiar o saco plástico na (entrega-lhe umas fivelas) São de ouro mesmo,
cabeça. você vai colocá-las nas minhas sandálias opor-
tunamente, quando tiver reencontrado sua fé.
Homem Você novamente por aqui? Aquela garo-
Homem Nunca, jamais! (grita tentando livrar-se do
ta estava certa, não tem sandália de ouro que
saco plástico, mas A Visão o impede)
segundo a cabeleireira evangélica você usa
Hilária Porém, não é bem a minha filhinha Maria
quando aparece pra os incrédulos. Eu não sou
quem está correndo perigo agora, escute aqui,
discípulo de vossa senhoria e vejo que seus pés
já está na hora de tirar esse saco da cabeça, va-
são realmente toscos, que tem calos, joanetes e
mos, me ajude a olhar o que está acontecendo
que são verdadeiramente horrendos. Percebe-
lá embaixo.
se que caminha muito à procura de fiéis ou
mesmo pra converter os descrentes. O vagabundo continua brigando com a Visão, ele
A Visão Se você não consegue enxergar minhas tenta retirar o saco da sua cabeça. Finalmente con-
sandálias de ouro e só percebe estes pés de segue, joga o saco no chão e pula sobre ele. A Visão
camponês morto de fadiga e de fome é porque desaparece. Depois o vagabundo fica dormindo
ainda não tem olhos para ver. serenamente, aparenta estar sob o efeito de drogas.
Homem Sou vagabundo, mas não sou bobo. Só Hilária Olha lá embaixo. Está me ouvindo? Onde
os dogmáticos falam como você, aqueles que você se enfiou que não consigo enxergá-lo? (o
não têm ideias nem argumentos. Rá, rá, rá, rá... saco plástico parece flutuar no ar) Para onde você
A Visão E agora, por que está rindo? fugiu? Você é um aproveitador, só quer que eu
Homem Acabei de me lembrar dos Budas gigan- fique ouvindo você falar da Diamantina, não
tes que foram dinamitados no final do século é?
passado pelos integrantes de uma seita dog- Os galhos das árvores balançam com o vento im-
mática. pulsionando o saco plástico de um lugar para ou-
A Visão Por que você ficou tão comovido assim? tro. Parece que vai estourar uma tormenta, uma
Aquilo aconteceu do outro lado do planeta. ventania, porém nessa capital não existem tormen-
Homem Porque amo a arte acima de todas as coi- tas, apenas vento e pó.
sas... Hilária O que é isso que estou vendo? Você não
A Visão ri às gargalhadas, acordando Hilária, que faz ideia do que está acontecendo lá embaixo,
caminha como se estivesse hipnotizada ou fascina- aquela garota parece uma velhota desbocada.
da olhando alguma coisa ao longe. A mãe, que a esteve seguindo, a viu entrar no
Hilária Ô moço, seu moço, tira essa sacola da ca- barraco do rapaz, ele deve ter uns vinte anos
beça, você vai morrer sufocado. (o Homem ri de idade. Você está me ouvindo? Está ouvin-
da ingenuidade de Hilária) do? A garota se enfiou na cama do rapaz que
parece dormir o sonho dos bêbados.
A Visão Você está percebendo, seu incrédulo? O
amor pela arte não comove esta simples mu- O vagabundo se espreguiça e acorda.
lher, ela está preocupada com outras coisas, ela Homem Maldita visagem descalça, deixou mi-
fica lembrando como foi que o vendedor de nha alma contrafeita, meu peso anímico ficou
frangos violentou sua filha. reduzido ao de um caranguejo ressuscitado,
Homem Que era um idiota completo. é desse jeito que me sinto. Mas, o que diabo
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está acontecendo no interior desse barraco? Homem Não sentimos mais nada, nosso peso
(faz sombra com a mão) Certamente, aquela ficou tão leve que é impossível ficar excita-
que vemos lá embaixo tem o corpo de criança, do. (fala baixinho essa palavra para Hilária não
mas fala como gente grande, dá a impressão de entender. Depois, para ele mesmo.) Quem conse-
estar drogada, isso só confirma que o rapaz en- gue excitar-se está vivo, vivinho da Silva, como
trou numa enrascada. Porém, o que isso tem a a gente falava na outra... Mmm! É aquela sensa-
ver com você, Hilária? ção de estar jogando faíscas feito uma fogueira,
Hilária Até que enfim, achei que não voltaria a vê- um verdadeiro incêndio. Bom, agora assim é
-lo mais... (vira e estica a mão para tocá-lo. O va- demais. Com quem estou falando, hein? (fala
gabundo pula, acha que a mulher sem dentes não olhando para Hilária, que está apoiada no muro
pode tocá-lo porque isso fará acontecer coisas piores do parque observando a cena sangrenta)
do que as provocadas pela aparição do espectro das Hilária Parece que o rapaz apanhou feio mesmo,
sandálias) olha aqueles caras fugindo, os que carregam
Hilária O rapaz é o namorado da minha fi- os paus, correm que é uma beleza aqueles
lha Maria, a garota o denunciou por tê-la covardes. E aquilo atrás, o que é? Ajuda-me a
violentado, mas o rapaz não fez nada, como ver direito, aquela garota, não é? Não é minha
você viu. Ela ficou grávida de outro cara, po- filhinha Maria que vai atrás deles? Caralho, é
rém, bota a culpa no namorado da minha filha. ela mesma. Isso eu não tinha percebido, quer
Homem Oh, não! É melhor não olhar, Hilária. dizer que a minha Maria... Onde estava a mi-
Tem dois sujeitos armados de paus que aca- nha filhinha?
bam de entrar no barraco do pobre rapaz. Oh, Homem Estava atrás da cortina. Não deu para
ai, coitado, coitado, isso não dá nem pra con- ver? Rebobina a fita, Hilária, pode rebobinar a
tar. Não olha, Hilária. vontade. (o Homem também se apoia no muro)
Hilária Tem sangue? Fala se tem sangue por tudo Hilária Isso quer dizer que a minha Maria...
quanto é lado. Quando minha Retamita foi Homem Esqueça. Isso não quer dizer nada.
morta, tinha sangue espalhado por todo o cur- Temos que perdoar tudo dos filhos, não faça
ral. Falaram que ela estava encantada, por isso julgamentos apressados na atual situação.
meu pai a sacrificou. Tem sangue? Para quê? Você já morreu atormentada, não
Homem Mmm… Esse pessoal sabe o que está pode ser pior. (observa Hilária minuciosamen-
fazendo, não deixam marcas, não. te, como se estivesse procurando algo nela) Não,
esta mulher aqui é uma espiga de trigo, seu
Hilária retira a mão que cobria os olhos e faz som-
peso anímico é tão leve que a fina linha que
bra para ver melhor.
a desenha dissolve-se dando a impressão de
Hilária São o pai e o tio da endemoniada, da garo- que ela vai sumir. Mas devia ter algum jeito de
ta de doze anos que fala como um mulherão. atrair os homens, como a minha Diamantina.
Homem Mulherão? Ninguém fala desse jeito, Oh, aquela sim era uma mulher de carne e
pelo amor de Deus, mulherão, mulherão. Ah, osso. Isso mesmo, de carne e osso, algo do qual
minha Diamantina era muito mais do que um nem eu nem você podemos nos gabar agora
mulherão, se eu contasse pra você... É uma Hilária. (cai na grama às gargalhadas)
pena que a leveza do meu ser agora não per- Hilária O que está acontecendo com você?
mita... Homem Nada, nada demais. Não dá pra perce-
Hilária Não permita o quê? Do que você está fa- ber que estou morrendo de rir? (ele continua
lando?
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rindo.) E agora, por que você está me olhando Hilária Foi desse jeito então. Quer dizer que você
desse jeito? Fiz alguma coisa que de você não não conseguiu chegar ao chafariz. Por que
gostou? você não casa agora?
Hilária Enquanto todo esse pessoal passeava pelo Homem Se não casei com a Diamantina, não vou
parque, você dormia... casar com mais ninguém. Não sei por que fico
Homem Eu dormia? Isso é muito engraçado. explicando isso para você. Por mais que tento
Quem é que consegue dormir depois de ter esclarecer parece que você continua dormin-
sido esvaziado de si mesmo? do a sesta no meio do mato. Toma cuidado
Hilária Não, de verdade, de verdade verdadei- que lá vem o Hermes, o malvado.
ra. Era desse jeito que eu falava com meu pai Hilária Olha quem agora está sendo muito ruim
quando era criança e ele me batia por não ter é você, seu homem cruel. Por que ri de mim
cuidado das ovelhinhas e eu continuava falan- desse jeito? Foi o Hermes que me matou de
do que elas tinham escapado. tanto bater.
Homem Mas, não era de verdade, de verdade ver- Homem Mulher, até que enfim chegamos ao as-
dadeira. sunto. Agora você está na outra margem do
Hilária Não era de verdade, claro que não era. O rio, não dá para fugir disso. O termo kenosis em
pessoal ficou passeando pelo parque durante grego significa esvaziamento, por exemplo, fa-
muito tempo, alguns se enfiavam no mato e lam que Jesus Cristo se esvaziou a si mesmo
os guardas os perseguiam com seus casse- para aceitar a vontade divina. Logo, eu e você
tetes para tirá-los de lá. Tinha homens com estamos... Mas, desculpe, de repente voltou
mulheres, homens com homens, uma garota meu passado de filósofo, não liga para mim,
perseguiu outra maior e mais velha, elas cor- não. Tá?
reram até o mato, estavam um pouco assusta- Hilária Então, quando Hermes me bateu com a
das. Você não estava acordado... Pensei muito pá, eu desencarnei.
em você... Por que você não casou nem teve Homem Muito bem, menina, você desapegou,
filhos? está bom assim. Ah, meu bom e velho eu, ago-
Homem Ai, ai, ai! Você tinha que pensar nisso? ra nada me deixa excitado. (pronuncia a última
Por quê? Para quê? Que bicho mordeu você, palavra baixo, muito baixinho) Na verdade...
menina? Não, nunca casei nem tive filhos, de (tenta olhar seus pés, acaba abraçando a si mes-
verdade, de verdade verdadeira. mo) Estou no nada, no nada. Outono amaldi-
Hilária Mas, não pensa em casar e ter filhos? çoado! Bom, e agora por que você está rindo
Homem Mmm. Vejamos, como posso explicar? A de mim?
vida é como se fosse um... Não, não é isso. O Hilária Quando você gritou lembrei-me da can-
que estou falando? A vida é um longo cami- ção dos bêbados de Lamay. (canta) “Maldito
nho que vai desde aqui, onde a gente está até amor/Que me ha destrozado el corazón/Que me
aquele chafariz lá longe. Consegue enxergar? ha robado el aire y la respiración”.5
Muito bem, se continuarmos por esse cami- Homem Mmm… Escuta Hilária, em quem você
nho talvez a gente consiga chegar inteiro no estava pensando agora? Parece que você fosse
chafariz, ou então a gente pode ficar esgotado chorar. (para ele mesmo) Embora você já não
no meio do caminho. consiga chorar como antes. As lágrimas são

5 Maldito amor/Que tem destroçado meu coração/Que tem me roubado o ar e a respiração.


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98,3% de água, acompanhada de 1,0% de sais deve se deixar bolinar por ninguém. (ele desce
minerais e 0,7% de proteínas e aminoácidos, do armário e joga uma pedra com seu atirador.
além de alguns resíduos de hidrocarbonetos, Ruído de madeira quebrando)
lipídios e outros. Esses componentes, menina, Hilária Lá foi a pedra, meu irmão, você sempre foi
já não existem em você nem em mim. Esse bri- muito bom disso, mas também muito burro,
lho nos seus olhos é apenas a resplandecência quebrou o armário. Os donos, os sinchis6 de
das luzes do parque. (em voz alta) Hilária, fala Lamay, vão matar você.
qual foi o maior amor da sua vida, menina. Irmão Mais Velho 2 (em off) Esses já foram mor-
Não vai falar que foi o Hermes porque não tos pelos revolucionários, você não lembra?
vou acreditar. Hilária Onde você está? Por que fala assim, ô pas-
Hilária Foi a Retamita, foi. torzinho pelado?
Homem Você não tem jeito mesmo garota, escuta Irmão Mais Velho 2 (tem treze anos) Não fala des-
aqui eu vou subir no galho daquela árvore. Se se jeito comigo. Eu não vou ser um pastorzi-
quer me ver amanhã de novo no fim da tarde, nho pobre, não. Fui embora do povoado para
você tem que prometer que vai enfiar-se nesse fugir da pobreza, mas você já estava amaldiçoa-
monte de folhas antes de o sol ir embora, sem da, mãezinha falava, era por causa do Hermes.
se mexer para nada. Nossos corpos não chei- Hilária, isso aconteceu quando eu fui embora.
ram como os dos bichos, se a gente não se me-
O Irmão mais velho II aparece por entre ternos
xer ninguém vai perceber nada esquisito.
amarrotados e remendados que cheiram a naftali-
Hilária caminha até um amontoado de folhas na e umidade.
secas numa esquina afastada do parque e deita-se
Hilária Por que você fugiu, irmãozinho? O que eu
lá. O vagabundo pula até um galho bem alto da
fiz pra você? O que fizeram contigo?
árvore na área escura do parque, fica pendurado
nela como um tamanduá, e desaparece no cume Irmão Mais Velho 1 Não chora à toa mulher,
frondoso. ele foi embora seguindo os amigos. Andou
demais pelo mato, tanto que algum bicho o
Luz branca indireta num armário antigo de duas mordeu e perdeu as vistas. Ele não consegue
portas. Nas gavetas e compartimentos do armá- enxergar você.
rio surgem os personagens da infância de Hilária Escuta-se música de fanfarra andina. Na gaveta
e também outros da sua curta vida adulta. Sobre aberta dos lençóis, desfilam os cidadãos de Calca
o armário de madeira pintado de negro, está ao ritmo de melodias populares. No meio deles, as
Retamita. No interior do armário, o irmão caçula autoridades locais e suas esposas, a mãe, a avó e o
de Hilária está pendurado por uma mão na barra pai de Hilária. Hermes e seu avô. Todos cumpri-
das calças, na outra ele carrega um estilingue. mentam Hilária com uma reverência.
Irmão Mais Velho 1 (quatorze anos de idade apro- Mãe Hiláriaaa! Foge, foge!
ximadamente. Tem o rosto roxo pelo frio da puna.)
Hilária É o Hermes que quer sair da roda, ele está
Hiláriaaa! Achei meu estilingue que você per-
com uma foice na mão.
deu quando foi pastorear com Retamita, está
Mãe Hiláriaaa! Foge, foge!
aqui ô, olha meu estilingue. Vou atirar no
Hermes com ele, porque ontem vi que estava Hermes tenta sair da roda dos dançantes, Hilária
te agarrando e mamãe já falou que você não recua protegendo-se das ameaças dele. Depois pula

6 Sinchis, nome dado aos soldados do exército peruano especializados em luta antissubversiva.
lhares
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Três peças Nô / Dramaturgia Latino-Americana


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em direção ao guarda-roupa, arranca a foice do Homem Mmmm… Pelo visto, nós dois temos
Hermes, fecha com violência as gavetas e as portas feito uma viagem ao passado, mas eu tenho
destruindo o móvel com o machado. Escutam-se voltado triste, muito triste e deprimido.
gritos abafados. Hilária Você falou deprê... O que, mesmo?
Homem Fico deprimido, deprimido, muito depri- Homem (o vagabundo tira uma fotografia do bolso)
mido. Mas o que é isso? O que é? Ah! Achava Finalmente consegui, eu que nem você tam-
que isso era impossível no meu estado atual. bém trouxe algo do sonho, por falar de algum
Será que é a lembrança da Diamantina me faz jeito. (mostra-lhe a fotografia)
sentir assim? Será que evocar essa mulher ser- Hilária Ela é uma mulher muito bonita.
pente, não pelo veneno senão pela graça, vai Homem Certo, minha Diamantina é uma mu-
conseguir me preencher de novo? Vou reen- lher muito bonita, mas isso é apenas uma
carnar? Vou renascer? De tanto ficar deprimi- fotografia. (o Homem se enfia na fotografia, possa
do voltarei a ser o que era antes? ao lado dela e desaparece)
O vagabundo leva nas mãos as fivelas que a espec- Cantarolando, as águas movimentam-se ao ritmo
tro lhe entregara. Olha-as e joga no jardim. Hilária de uma música melancólica. Por alguns momentos
corre levando a foice numa mão e com a mão livre não enxergamos Hilária nem o Homem. Hilária
recolhe as fivelas. Depois volta. vai atrás de uma moita, procura pela foice para
Homem O que você está fazendo com essa foice conferir se tem rastros de sangue. A fotografia é le-
vada pelo vento e desliza pela calçada afastando-se
horrorosa na mão? Onde você pegou? Já sei,
do cenário. Hilária volta.
foi quando fiquei dormido. O que aconteceu?
Conta pra mim. Hilária Não tinha sangue na foice, mas está acon-
Hilária Desta vez consegui matá-lo. tecendo comigo algo muito esquisito. Já não
ligo mais por não ter batido antes no besta do
O vagabundo a olha incrédulo, aproxima-se, tira Hermes, se ele continua vivo não tenho mais
a foice dela e joga fora. Hilária estreita as fivelas nada com isso. Ele vai ter uma vida sofrida,
douradas no colo. Depois de um tempo coloca as fi- sei que ele não tem dinheiro, que ficou men-
velas no peito do pé pressionando para que o metal digando comida pra minhas filhas. Uia! Estou
penetre na sua pele, finalmente as fivelas cintilam sentindo algo muito esquisito e você... Você é
nos seus pés. o culpado.
Hilária Ele voltou e eu o matei, estava bem aqui, Homem O que está acontecendo? Você está fi-
bem próximo, bati com a foice, escutei ele cho- cando pálida, na verdade não sei como pode
rar, berrar que nem um porco quando é sacrifi- ficar pálida nesse estado, quer dizer mais páli-
cado naquelas festas onde se faz linguiça com da ainda? O que está acontecendo com você?
sua carne. Hilária A fotografia. (mostra a fotografia que encon-
Homem Você está falando de quem, criatura? Se trou perto da foice) Esta fotografia, você viu?
você matou um ser vivo com essa foice, deve- Não percebeu nada?
ria ter sangue por tudo quanto é lado, mas não Homem Do quê?
estou vendo nada disso, tudo está limpo. Hilária Que a garota apoiou a cabeça no seu om-
Hilária Era o Hermes que estava lá dentro do bro, porém antes você não estava com ela, ago-
guarda-roupa, era ele, veio junto com toda a ra ela o abraça e o beija... Ai, ai, ai, papito, estou
sentindo algo esquisito aqui dentro! (massa-
turma do povoado, queria me bater, mas eu
geia o colo).
bati primeiro com o negócio.
lhares

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Dramaturgia Latino-Americana / Três peças Nô
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Homem Ciúmes? Estou achando que você está Homem Hiláriaaa! Traga a foice, vou cortar mi-
com ciúmes, Hilária. Não fique com ciúmes, nhas veias, quero ver se sai alguma coisa delas.
mulher. É impossível amar alguém de outra Hiláriaaa! Volte mulher, eu suplico! Se não
dimensão. A garota da fotografia não é minha consigo amar essa menina, a filha de minha
Diamantina, é a filha dela, tenho certeza, é Diamantina, eu quero me suicidar.
muito parecida, mas não é ela. Isso me dá mui- A Visão (oferecendo um saco plástico) Não seja idio-
ta dor. Como é que eu posso amar uma garota ta, o céu inteiro vai rir de você.
que está viva e tem sangue nas veias?
Hilária corre em direção à parte mais escura do
parque levando a foice e a fotografia.

2. Melancolia
O mar do vinho escuro

Fico tão preguiçosa com o barulho doméstico.


Pilar Dugh

Personagens
Escritora vra inglesa tem uma conotação de filme de desenho
Autora de um romance e três livros de contos. Não animado, é mais cândida e naïf, menos romântica
conseguiu atingir os cinquenta anos. Morreu há seis que ocaso ou crepúsculo.
anos. Karen Em O ano de Saeko, de Kyoichi Katayama,
Karen o personagem principal interroga-se sobre o
Poeta, 59 anos estado emocional de sua amante, antes desta
Elba morrer. O romance fala de maternidade, mas
também de morte, é isso que me faz pensar que
Filósofa, 54 anos
existe contradição em tudo. Tudo! Vai ver que
a contradição é budista mesmo. Teria sido in-
Cenário teressante fazer as mesmas perguntas para ela,
já que nossa amiga escritora era fascinada pela
Um café defronte ao mar na orla de Miraflores.
literatura japonesa, apesar de ela não ter sido
Uma praça em Helsinki.
budista. Eis as perguntas de Katayama que eu
Fim de tarde na orla de Miraflores, a Escritora gos- faço minhas: Antes dela morrer... “Realmente
tava dos fins de tarde. Os limenhos assim como ela não estaria seguindo alguma coisa? Uma es-
também, preferem chamá-los de “sunset”. A pala- pécie de caminho? Ela estaria disposta a dar
lhares
O

Três peças Nô / Dramaturgia Latino-Americana


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o primeiro passo sem que ninguém soubes- Karen (pensando: “Acaso, só uma, só uma letra e aca-
se, sem que ninguém percebesse? Na direção so vira ocaso.”) Você não sabe?
de um espaço que está muito além da vida e Escritora Não tenho como sabê-lo, só quando
da morte. Num lugar que não admite impu- você diz que me ouve, mas que não consegue
rezas.” Por que Katayama emprega a palavra enxergar nos meus olhos outra coisa senão
impurezas nesta reflexão? Por que impurezas? uma luz apagada. (rindo) Você sempre foi uma
Talvez este drama Nô devesse... Talvez, dizem poetisa revoltante.
que talvez é uma palavra muito usada por nós Karen Tudo bem, fala para Elba.
mulheres. Talvez Katayama devesse encerrar Escritora Onde está você, Elba? Vou ter que falar
o livro citando um poema de Izumi Shikibu, na linguagem do surdo-mudo. Não é verdade
pondo os versos na boca de Saeko: “Logo que a nossa amiga Karen sempre foi uma poe-
deixarei este mundo. Gostaria de levar como tiza revoltante?
lembrança para o além, uma última noite com
Elba aparece em um barquinho de madeira no
você.” Considerando que nossa amiga escrito-
mar azul-celeste de papelão como nos cenários de
ra nunca foi nada explícita na questão erótica,
Hollywood do começo do século XX.
acredito que a explicação do autor caberia
como uma luva para este possível e lírico final Elba Entendi, acho que você tem cinquenta por
que evoca uma época muito remota, o perío- cento de razão, gosto da expressão poetisa re-
do Heian. O autor continua: “Mas, mudando voltante; olha aqui como rebolam as ondas, dá
a ordem estabelecida, onde as primeiras pa- para perceber o balanço. Mas não acredito que
lavras ‘logo deixarei este mundo’ são as que o termo se aplique a nossa amiga Karen, já que
prendem a nossa atenção, mudaremos a or- ela sempre escreveu com o coração na mão.
dem da leitura, se começamos por ‘lembrança’ Escritora Isso é o que ninguém deveria fazer. É
a expressão ‘para o além’ ficará em destaque. coisa que eu sempre recusei. Nada de autobio-
Assim podemos entender que essas palavras grafia, nem de coração aberto.
conectam este mundo com o outro, que am- Durante toda a peça a Escritora lerá os lábios de
bos os mundos encontram-se conectados.” As Elba e às vezes empregará a linguagem de Libras.
primeiras palavras da Escritora ganham força
nesse sentido. Elba Porém, você falou que estava escrevendo um
romance baseado nas suas experiências.
Escritora Da mesma forma que estou olhando
pelo vão desta janela, tenho certeza que conti- Escritora (cobrindo os olhos) Elba, já que você só
nuarei me comunicando com vocês duas. consegue me ver e não consegue me ouvir,
talvez se eu não lhe enxergar você possa me
Karen Isso você falou antes de...
ouvir. Minhas amigas, vocês acham que posso
Escritora Morrer? Estou morta por acaso? Como continuar escrevendo meu romance na outra
é que consigo falar com você, então? Só com margem do rio, na morada de Caronte? Ih,
você, porque Elba não consegue me ouvir, mas vou ter que pagar o óbolo pela passagem.
nem eu a ela. (rindo de repente) De jeito nenhum! Vou ter
Karen Mas ela vê você, ela consegue ver e até que trabalhar para pagar o óbolo de Caronte?
cheirar seu medo. Elba Você falava que era o tripalium.
Escritora De que medo você está falando, Karen Karen Primeiro preceito da fada sinestésica, se
querida? No meu caso, não existe medo. você cobrir os olhos, certamente escutará com
Pergunta: Por acaso estou morta? eles.
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Dramaturgia Latino-Americana / Três peças Nô
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Elba Essa fada saiu de onde? tos, vampiros humanos, glamour. (tira um pe-
Karen Do absinto, de l’absynt como falava daço de brownie duma sacola de papel)
Rimbaud. A Escritora cobre o nariz e faz gestos de afastar o
Escritora A fada verde de losna. Tratando-se de demônio.
você que gosta dos poetas malditos, isso é
Escritora O meu espírito não suporta um grama
mais do que previsível.
de peso. Inclusive, não posso nem olhar esse
Karen Você não gosta? Melhor dizendo, não gos- doce porque ele pode transubstanciar-se. (ri)
tava? Por falar nisso, você ainda não topou
com algum deles? Karen e Elba caminham na direção de um café
Elba O que é isso, Karen? O humor negro está próximo, com vista para o mar, para curtir o sun-
fora de moda, ou melhor, está em baixa. set. Sentam-se em uma mesa estratégica do terraço
por sobre o barranco. O nevoeiro que sobe do mar
Escritora A pequena Elba tem razão, nesta mar-
encobre a encosta.
gem do rio é até démodé. Baudelaire não tem
mais esse olhar sério e penetrante das fotogra- Karen Este mar tem alguma coisa que estimula
fias de época. Seus olhos estão mais parecidos diretamente a minha imaginação, começo
com os de sua indolente amante, são “belos sofrendo como uma adolescente, o mar atra-
relicários sem joias”. Aquela mulher que o vessa meus sonhos, quer dizer, me deixa me-
deixou literalmente na rua, sem um tostão, era lancólica.
uma mestiça haitiana. Jeanne Duval era co- Elba Toma cuidado com sua queda pelos piratas.
nhecida como a Vênus negra. (ri)
Karen Por que, por que, meu querido Hamlet? Karen Sabe de uma coisa? Tenho pensado que
Elba Que aconteceu, o que você viu? Será que foi esta peça poderia chamar-se a janela, o vão da
o cadáver do seu pai? janela. É por meio dela que nossa amiga se co-
Karen Você é bem, é bem... Por que será que os munica com a gente.
subalternos ou os provenientes de países sub- Elba Pode ser, é como se ela estivesse perante
terrâneos, para nomear de algum jeito os po- uma janela, era assim que ficava quando viva.
bres, têm tanto fascínio pelos bens materiais? Olhando tudo: “Vales pequeninos e aperta-
Escritora Por causa do asqueroso dinheiro, mi- dos, cheios de eucaliptos e pinhos coloridos. A
nhas queridas amigas. estrada imensa e desolada”...
Elba O que está acontecendo? Perdeu o glamour Escuta-se a voz distante da Escritora e também o te-
querida? Fala de um jeito... clar de uma antiga máquina de escrever. A imagem
A Escritora fita Elba com o olhar destroçado pela dela não aparece.
melancolia, tal qual o verso de Baudelaire. Escritora (voz em off) “...Comunidades abando-
Escritora Engraçado, é o glamour do morcego nadas, comunidades no meio de paragens
fantasma. floridas, casas caiadas e abandonadas, outras
habitadas. Era de noite. Subíamos até o cume
Karen Fantasmal...
coberto de neblina onde era impossível en-
Escritora Hum, hum! Morcego-fantasmal de asas
xergar alguma coisa, nem uma alma sequer.
transparentes e rosto humano. Nunca viram
Durante a noite, observando as estrelas e as
um?
nebulosas, a gente sente que é um ser muito
Elba Esta conversa está parecendo com as que a pequeno perante o universo. Talvez, esse te-
gente tinha antigamente. Eram poetas maldi- nha sido o ponto de partida, a origem. Nesse
lhares
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Três peças Nô / Dramaturgia Latino-Americana


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momento deve ter aparecido Deus e as cren- me lembro de onde eram as palmeiras, mas
ças humanas. Bem, quem pode sabê-lo. Diante podiam ser avistadas desde o balcão, aliás po-
da infinita desesperança deste mundo, acredi- diam ser vistas desde abaixo, desde o pátio que
tar em Deus acaba sendo um consolo necessá- era um terraço onde havia uma cadeira otoma-
rio. Não sei se para todas as almas”. na, tenho certeza de que ela nunca deitou lá
para descansar ou ler um livro da sua abastada
Uma lufada, um golpe de vento, afasta ainda mais
biblioteca. Acredito que ela preferia ler à noite,
a voz da Escritora, que vai quase se perdendo na
na sua cama, protegida das fantasias que pal-
bruma.
meiras e canapés pudessem despertar em al-
Seu avô paterno nasceu em Monticello, co- guém que é fascinado pela ficção. De repente,
muna de Bedonia, província de Parma, Itália, seu caráter severo podia ficar desvirtuado pelo
e chegou ao Peru em 1895. Sua avó paterna tom telenovelesco, por uma faixa que poderia
era filha de um espanhol e de uma peruana. ser chamada de...
Ela era filha única e ficou órfã muito pequena. Elba Haitiana. (ri)
Foi criada num convento de freiras. Aos de- Karen Certo, tem Madame Edwarda, Juan del
zoito anos, saiu do convento para casar com diablo, Marcel Aymé, Caridad Bravo Adams,
o avô italiano. Nasceram dois filhos do casa- Felix B. Caignet. Ufa, é melhor parar por aí.
mento dos avós paternos, um morreu com 21 Elba Olha! Madame Edwarda, não é por aca-
anos, o outro foi Juan, seu pai. O avô materno so uma personagem de Truman Capote, de
nasceu em Tordesilla de la Abadesa, comuna Bataille ou de? De você mesma? Não provoca,
da província de Valladolid da Comunidade mulher.
Autônoma de León e Castilla. Sua avó mater- Karen Prefiro continuar com a casa. Uma frase...
na também era de Castilla. Durante a guerra Ela escreveu uma frase para mim a propósito
civil, seu avô deixou sua mãe Ana Maria, que da casa assinalando o estado de ânimo que
nascera em 1926, em Valladolid, com seus antecedeu ao momento final. “O ruído fami-
avós e depois partiu da Espanha. Entre os anos liar desta casa me faz sentir tanta preguiça que
de 1930 e 1940, primeiro foi para o México e acaba parecendo um castelo impregnado de
depois para Cuba antes de chegar ao Peru. Em maldições”. Depois de umas linhas, acrescen-
1942, quando morreram seus avós maternos, ta: “Viajar sem rumo algum deve ser a coisa
Ana Maria veio ao Peru, conhecer seu pai. mais maravilhosa do mundo”.
Elba Por que viajar sem rumo algum? Já estava
A casa paterna muito doente, se mal não lembro ela estava
pensando em viajar para Alemanha para visi-
(não existe registro fotográfico) tar uma amiga. O médico tirou essa ideia da
Karen Existia alguma coisa que emanava do inte- cabeça dela, por causa do tratamento.
rior da casa de nossa escritora, o que de algu- Karen Porque fui eu quem disse para ela que
ma maneira a sua fachada testemunhava, era quando era criança sonhava em viajar sem
algo extraordinariamente silencioso apesar rumo algum, como os ciganos dos romances.
do barulho que entrava pelas janelas que da- Elba Sei, você e os ciganos, você e os beduínos,
vam para a avenida, uma grande artéria que se você e os judeus.
dirigia para as áreas vitais da cidade, onde cir- Karen A casa dela tinha três andares, era de tijolos.
culavam muitas linhas de ônibus provenientes Agora é uma loja de tecidos de paredes rebo-
da zona norte rumo à zona sul da cidade. Não cadas. Nossa amiga assomava pelo balcão do
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Dramaturgia Latino-Americana / Três peças Nô
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último andar, onde era seu apartamento, no Elba Shhhhh!
segundo andar morava sua mãe e no térreo, Karen Toda vez que passava perto da casa dela, eu
seu irmão mais velho. tinha a impressão de que se tratava daquelas
Elba Façamos uma parada antes de continuar casas de escritor que a gente encontra nas bio-
com esses detalhes. Essa informação tem algu- grafias. Como por exemplo, o prédio londrino
ma serventia para o leitor? Pelo que sei, se um onde Rimbaud e Verlaine passaram uma tem-
personagem dá, oferece, presenteia, ou como porada infernal, tinha algo semelhante, a facha-
você queira chamar, alguma informação que da de tijolinho à vista sem rebocar, as janelas
não tenha sabido encaixar devidamente na oclusivas – gosto de falar assim, que impedem
trama, isto é uma estratégia errada... enxergar o que esses dois safados faziam lá
Karen Além de tosca, pelo visto. Mas, quem se dentro. Ou como a mansão de Nabokov em
importa com isso? Você por acaso? São Petersburgo, essa casa sim que era grande
Elba Nem um pouco. E pelo jeito, você também e de pedra, diferente da de Tchekhov que não
não. tinha nada demais, Tchekhov era pobre.
Karen De qualquer forma, quem dá, oferece, pre- Voz (off) Durante o terceiro ano de escola secun-
senteia, ou como você queira chamar, é uma dária, quando ela ainda tinha catorze anos, a
voz off, uma voz impessoal. Escritora viajou para a Espanha onde preten-
Elba No teatro, no drama, não existe narrador em dia estudar medicina. Na parte materna da sua
terceira pessoa, mas pode-se ouvir uma voz família havia cirurgiões, médicos e biólogos.
off, aliás é algo que eu não gosto muito. O que Cursou um ano e meio na Espanha, depois
podemos fazer, ou melhor, o que você pode viajou sozinha para a Itália e Grécia durante o
fazer? Já que você foi quem teve a ideia de falar verão.
dos ancestrais dela. Escritora Eu aparentava ser muito mais velha do
Karen Nada. Foi ela mesma quem deixou esse que era na realidade. (sussurra, mas as duas ami-
testemunho numa entrevista dada para uma gas não a escutam).
pesquisadora de temas de grande destaque, Karen Nossa amiga também tinha certa predile-
segundo falam os políticos nas suas discus- ção pelo tema judaico. Para ela, o holocausto
sões, como é a influência da literatura japone- nazista era um assunto ao qual dedicava mui-
sa nos escritores peruanos do século XX. The tas horas de leitura. De alguma maneira, esse
Closed Hands: Images of the Japanese in modern assunto estava conectado com os dos assassi-
Peruvian literature, by Rebecca Tsurumi. nos seriais, obsessão ou especialização literária
Elba Você está querendo dizer os sociólogos. que podemos encontrar em um dos seus con-
Afortunadamente, nenhum filósofo destaca tos mais estranhos, “Ave da noite”.
nada. Elba Hmmm! Quem narra não é uma voz femini-
Karen Como já falou o poeta, a filosofia é uma na, não é ela, não é a autora quem narra, é um
grande metáfora, os destaques não significam assassino que espera pela vítima na sala, de-
nada. pois de uma comemoração. A descrição dos
estragos da festa é perfeita, cria o clima neces-
Ouvem-se as risadas das duas amigas e uma tosse- sário para o desfecho. (lendo as frases iniciais do
zinha por detrás do nevoeiro. conto) “Estou como uma coruja na escuridão,
Karen É ela, nossa amiga. Ela tinha essa mania ainda sem ter chegado o momento do canto.
provocada por uma alergia qualquer, tossia o Então, é agradável observar a tranquilidade do
tempo todo. lar no silêncio da noite. Ver as sobras da ceia
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Três peças Nô / Dramaturgia Latino-Americana


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em cima da mesa do comedor, o copo com que não existem carmas, melhor dizendo, não
restos de refrigerante, o guardanapo jogado existem lembranças que virem carmas. (olha
displicentemente sobre o carpete, a roupa do para suas amigas que estão conversando no terraço
dia abandonada nos móveis, como se alguém do café. Ela escuta e entende o que as outras falam)
tivesse ficado cansado de organizar as coi- Mas, que mania de falar dos meus sapatos.
sas deixando a tarefa para amanhã. Sentir-se Elba Eram de ponta quadrada.
fazendo parte deste mundo de quadros, es- Karen Eram muito másculos, assim como os co-
pelhos, cinzeiros, almofadas, aparentemente letes e as camisas brancas de gola reta e engo-
desconexos, colocados apenas para vestir um mada que ela usava. E o corte de cabelo à altura
espaço nu, mas que a desordem transforma dos ombros, com as pontas para dentro, então.
em algo íntimo e familiar. Resulta cômodo Mas o detalhe dos sapatos foi o que mais me
ficar sentado, quieto na penumbra da sala, impressionou aquela vez que vi as fotos da
dominando a paisagem humana, escutando a Highsmith, ela tinha pés grandes e nossa escri-
música tênue do dormitório ao lado”. tora também era alta como a americana.
Karen A propósito, ontem vi um programa sobre Escritora Mas, a gringa era um pouco selvagem,
crianças assassinas seriais, se você pensa um não era?
pouco, as infelizes tiveram uma infância terrí-
O vento leva a figura da Escritora até um barranco,
vel, foram maltratadas, abusadas, deixadas na
onde fica afastada das pessoas que entretidas pas-
solidão carentes de um lar etc. A exceção era seiam e conversam. Ela contempla as ondas do mar
um garoto chamado Guy George que tinha ou algo que fica muito além. Num céu sem pontos
sido adotado e recebido apoio familiar, porém de apoio deve ser difícil descansar o olhar na imen-
era um psicopata. Imagino que nossa amiga te- sidão. É meio-dia numa cidade dos Andes, muitos
ria gostado de assistir a esse programa. metros acima do nível do mar. Hamlet faz contato.
Elba Teria sim, mas para ela isso só serviu para
Escritora O livro de Hannah Arendt será meu
aumentar seus enredos, nunca lançou mão da
prato principal nesta cidade solitária. Quando
psicologia para explicar o comportamento das
falo de cidade solitária ou deserta, trata-se
suas personagens. (escuta-se a tosse por detrás da
sempre de Abancay. Não consigo saber que
névoa) Ela era uma digna discípula de Patrícia
cidade possa ser mais solitária do que esta, tal-
Highsmith .
vez seja Huancavelica. Lá consigo ler qualquer
Karen Especialmente nos detalhes como sendo coisa, e geralmente o faço com muito mais
os verdadeiros detonadores da ação. Mas, tem prazer. Trouxe também o livro “Regras para
coisas entre nossa amiga e a Highsmith que o parque humano” do filósofo alemão Peter
encaixam, se você quiser literalmente às mil Sloterdijk que tem tido enorme sucesso na
maravilhas. Os sapatos, para não ir mais longe. Alemanha. Ontem tive um dia muito literário
Percebe-se na orla a figura da Escritora pairan- lendo a biografia de Nabokov. Foi um prazer e
do no vento, no momento de pisar terra ela tanto! Agora está começando a cair uma chu-
olha para seus sapatos. Com uma mão, limpa va pesada, e não trouxe guarda-chuva. Chuva!
a ponta de um e depois a do outro. Bom, pelo menos é algo divertido.
Escritora Não faz sentido que fiquem empoei- Karen É como certas partículas que podem estar
rados, supõe-se que isso não acontece mais, em diferentes lugares ao mesmo tempo, de
já nada enche de pó nem fica sujo. É por isso onde surge também a ideia de Deus onipre-
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Dramaturgia Latino-Americana / Três peças Nô
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sente . Mas por que estou falando isto? O que é A Escritora volta a rir às gargalhadas, seus dentes
que pode ser igual a certas partículas que con- reluzem como pérolas perfeitamente alinhadas.
seguem estar em diferentes lugares ao mesmo Escritora Eu que as honrei sistematicamente para
tempo? Estrelas, nebulosas, crenças humanas, depois cair em mim. “Certa feita, morri de rir
desesperanças? Não, é ideia de Deus onipre- sozinha diante do espelho do armário da sala,
sente e indivisível. do mesmo jeito que ri agora. Estava falando
Escritora Como é complicado o mundo! No para mim mesma que, além do mais, eu não
meio desta roda-viva ingrata de trabalhos e tinha um único leitor, nem ninguém que espe-
objetivos pessoais, deveríamos ter nascido rasse que eu escrevesse uma linha sequer, nem
ricas, bom não sei se vocês conseguirão sê-lo nada do gênero. Quando percebi aquilo, não
um dia, sim, ficar ricas. Aposentar-se e poder consegui fazer outra coisa senão rir. Ao final,
dedicar-se unicamente ao lazer, ao prazer, a tanto a pressão como a motivação eram es-
meditação, a viajar etc. e tal. tritamente internas. Porém existe, ou existiu,
Karen “É sempre uma corrida na luta contra o porque a gente precisa escrever à margem de
tempo”, foi o que você falou certa vez. outras motivações que certamente estão vivas,
Escritora Certo, porque para início de conver- o que não é exatamente o meu caso, porque se
sa nosso ganho econômico é precário. Quer for assim imagine você, faz muito tempo que
dizer, o meu sempre foi, os de vocês também eu teria entregado os pontos, e sei que isso era
nunca foram maiores. E sem nenhum mari- impossível. Ai, nem sei o que estou falando,
do que facilitasse a minha vida. Oh! Será que mas se meu cabelo consegue ficar molhado
todo verbo deve ser conjugado desse jeito tão pela chuva, então posso continuar pensan-
mórbido? do como vocês pensam, apesar de saber que
Elba Eu até tenho ganhado dinheiro ultimamente, vocês não vão conseguir me compreender,
mas não posso disser que sou autônoma nem como não conseguiram me compreender an-
independente. E você Karen, muito menos tes de... Quando, em frente ao mar, falei com
ainda. Sempre atrapalhada por dividas e mais vocês tomando uma xícara de café num bar de
dívidas, você chegou a escrever um romance Miraflores. Acontece que vocês não podiam
alegórico sobre o assunto. saber de nada, as duas estavam na minha fren-
te e eu estava diante de vocês duas, essa era a
A Escritora deixa-se molhar pela chuva, ela quer
única verdade, tudo nos afastava nesse instan-
saborear cada gota que escorre pelo seu corpo. Seu
te, absolutamente tudo... Porque quando nos-
cabelo vai ficando liso e encharcado pela chuva,
so espírito fica na ‘Alta e trágica cultura’, falo,
para ela isto é como se fosse um milagre. As três
por exemplo, quando estou navegando men-
amigas riem e celebram o evento.
talmente entre divagações filosóficas e deses-
Escritora Um romance alegórico, logo você peranças, entre ser e não ser, entre essas coisas
Karen? Detestava isso. hamletianas e shopenhauerianas...”
Karen A gente não tem ideia do que é capaz de
Elba e Karen deixam a Escritora monologar,
fazer pela grana. Escrevi por causa do adianta-
sentam-se numa mureta de barro, apoiam os quei-
mento em dinheiro vivo, depois foi a imagina-
xos em suas mãos sentindo que a chuva lava suas
ção que me levou até o meu mar de sargaços,
aflições.
ao tema de ficar eternamente condenada a
nunca “honrar as dívidas”. Escritora “Toda essa divagação intelectual mer-
gulhada num espírito sombrio e desencanta-
lhares
O

Três peças Nô / Dramaturgia Latino-Americana


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do do mundo”. Não no meu, pois na verdade a Escritora A Finlândia foi província da Suécia du-
minha autoestima costuma ficar bastante alta. rante oito séculos, depois ficou mais de cem
Ela não suporta leituras com argumentações anos sob o domínio russo, até 1917, quando
demasiado banais, não estou me referindo à conseguiu a independência. É um país muito
linguagem banal, porém a argumentações ba- russo. Os prédios são amplos e grandes como
nais. Existem romances que contam histórias os de São Petersburgo, ao final fica mais per-
fúteis, como por exemplo, o de Murakami que to de São Petersburgo do que de outra cidade
você me emprestou Karen. Em situações de europeia. Existe um jornal que é distribuído e
‘Alta e trágica cultura’ eu prefiro leituras com se chama The San Petersburgo Times. Gosto
certo tom épico ou trágico, provavelmente por muito de Helsinque porque tem papelarias,
causa dos aspectos associados à identificação estou falando dos cadernos, agendas, cader-
leitor-leitura. Por isso fico mais identificada netas etc. A indústria da papelaria é a segunda
com Heinrich Böll ou com Robert Walser. depois da telefonia celular, é maravilhosa, eu
Como são parecidos os alemães, em ambos sou louca por papéis e cadernos, acho que só
os casos, existe um racionalismo que flui nos por causa disso ficaria em Helsinque.
seus textos de uma maneira impressionante. Elba e Karen (falando baixo) Ela agora fala no
Suponho que esse assunto está relacionado presente como se...
com o que defende Castoriadis sobre o imagi-
Mas, a Escritora consegue ler os lábios delas.
nário social quando fala que ele institui e é ins-
tituído. Acredito que os alemães são reflexivos Escritora Como se estivesse viva e assanhada
e justificativos. Acho que estou numa atmosfe- que nem vocês? Vocês não são capazes de
ra bastante silenciosa. Pensando no meu atual compreender. A iminência da morte é algo
trabalho literário, tenho feito também algumas que nem o próprio suicida consegue suportar,
leituras interessantes, trouxe vários livros para ninguém, porque o que se passa pela cabeça
ler, como As vinhas da ira, de Steinbeck. Já que ou talvez pelo fluxo sanguíneo do suicida que
agora só estou comendo uvas, acho que é um alcançou o seu objetivo, mas também naquele
livro ad hoc. Atualmente, no lugar de tomates, que fracassou, isso não tem a menor impor-
estou me alimentando com uvas. Uvas ver- tância, é só impulso não é sentimento. E não
melhas, brancas, amarelas etc. Especialmente, estou falando agora como psiquiatra, é apenas
uvas sem caroço. Também trouxe um livro de uma intuição, porque acho que tenho o direito
contos de Malamud, umas revistas, o livro de de não abrir mão da minha intuição. Porém,
viagem de um sujeito que percorre os Estados saber que você vai embora daqui a três ou cin-
Unidos, também outro livro de Sloterdijk para co meses, que você está condenada. Vocês es-
não descuidar o tema dos pensamentos eleva- tavam sentadas na minha frente, tomando café
dos e não ficar no estágio inferior. Estou muito, ou bebendo vinho, numa cafeteria elegante de
mas muito aborrecida. Eis a pergunta que não Larcomar, tinham toda uma vida pela frente,
quer calar: na minha idade ainda é possível mesmo que essa vida pudesse esvaziar-se em
mudar de vida? qualquer momento, virar vento, ar ou areia.
O fato é que não ter conhecimento daquilo
Ela desaparece, dando as costas para as amigas.
tornava-as poderosas...
Suas duas amigas ficam paralisadas durante um
Elba e Karen (ao mesmo tempo) Sua doença er-
tempo. A Escritora reaparece embaixo da estátua
gueu um muro entre nós três.
de Alexander II, no meio da Praça Central de
Helsinque. Escritora O que nos separou foi a morte anun-
lhares

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Dramaturgia Latino-Americana / Três peças Nô
Carmen Ollé v. 5
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ciada, como no romance de Gabriel Garcia suas reformas. Ou talvez leve você até o mes-
Márquez. míssimo Kawabata.
Karen Que, aliás, nem li. Mas, você sim, não é A Escritora sorri com certa ironia.
Elba?
Karen (lendo) “Era assaltado por uma repugnân-
Elba não responde, o seu olhar contempla a estátua cia quase histérica, quando os outros me obri-
em que se transformou sua amiga escritora. gavam a ouvir falar de vocês”. Está falando dos
Escritora Gabriel Garcia Márquez sabe construir seus falecidos pais. “Minha triste infância ficou
entrechos, algo bastante difícil de achar nos marcada pelo medo de morrer jovem”.
dias de hoje, acredito que deva continuar com Escritora Sim, ele tinha uma alma revoltante, no
essa habilidade... Hoje a maioria escreve ape- sentido borrascoso do termo. A casa das belas
nas o que lhe acontece, o que lembra de repen- adormecidas foi considerado um dos melho-
te da sua vida, além do mais, acha que sua vida res romances por Gabriel Garcia Márquez.
é importante... (sorrindo) E o que é mais revol- Kawabata era doentio.
tante, acha-a interessante. Escrever sobre a do- Karen Meio lobisomem, vampiro, necrófilo e feio.
ença, por exemplo, no estilo de Kawabata, me Elba Este último me parece um pouco frívolo. Ao
digam quem de nós conseguiria escrever do final, o que é feio, o que é belo?
jeito que ele escreve? A relação dos japoneses Karen Rolin lembra que em A casa das belas
com a morte e as doenças é bem mais natu- adormecidas o velho Eguchi evoca sua mãe
ral. Gosto de imagens que descrevem a morte como sua primeira mulher, só que a mãe era
como algo natural, não como algo dramático. uma moribunda, mas o narrador acha isso na-
Karen Mmm... Esse Kawabata era um sujeito es- tural. (para a Escritora) Do mesmo jeito que
quisito e solitário, porém sem o estilo doido você acha. Rolin afirma em outro trecho, “a
sua primeira mulher” é um cadáver, e noutra
da Highsmith. Era um homem totalmente
passagem a noite de núpcias é um crepúsculo
retorcido e segundo um escritor francês, o
fúnebre.
Kawabata falava isso dele próprio.
Escritora Um espírito revoltante, não dá para ne-
Escritora Quem era? Quem?
gar, ele me transporta. Na Espanha, as práticas
As duas amigas riem ao mesmo tempo. do curso de medicina eram péssimas. Não
Elba Pelo visto, você não mudou nada, continua eram feitas com cadáveres, porém com corpos
a mesma. de borracha. Quando percebi que não estava
Karen Tenho aqui boas frases de Kawabata cita- aprendendo nada decidi voltar ao Peru.
das por Olivier Rolin . Karen “O teu conto póstumo, O piscar do des-
tino”, é um relato cheio de saudade e melan-
A Escritora sussurra o nome do autor para ela mes- colia por ter escolhido como protagonista
ma. Elba e Karen se olham e voltam a rir. uma professora envelhecida, com uma idade
Karen (apontando para a estátua de Alexander próxima da minha e da Elba. No conto, a pro-
II) Ele pode te levar à algum lugar encanta- tagonista está escrevendo um ensaio sobre
dor onde encontrar o livro de Olivier Rolin. Schopenhauer
Alexander II foi um autocrata, mas não impu- Escritora Algumas das minhas personagens fe-
nha suas ideias à força. Foi mais longe ainda, mininas são mais velhas ainda, se fossem mais
convocou as classes ilustradas para fazer as jovens elas não conseguiriam ter a parcimônia
nem a sabedoria própria da experiência.
lhares
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Três peças Nô / Dramaturgia Latino-Americana


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Elba (empregando a linguagem de sinais, o que acaba pode chegar a ser um roteiro porque existem
resultando um tanto cômico) Mas o personagem os sonhos recorrentes.
masculino é um velho tristonho e aparente- Karen Tenho a impressão de que não dava a mí-
mente deprimido. Falando de si mesmo, ele nima para o sonho surrealista, aquele mundo
quem afirma que as almas são sombras. onírico sem pés nem cabeça. Se bem que, ela
Escritora Bom, acredito que uma mulher enve- não desdenhava a pintura de De Chirico. O
lhecida, leitora de Schopenhauer, sem ambi- sonho transformado em imagens surrealistas
ções amorosas, tem capacidade para analisar pode ganhar outro sentido. Nossa amiga ado-
os dois casais do conto, nos seus dramas par- rava Otto Dix , um pintor... Dadaísta?
ticulares e sentimentais, desprovida de qual- Elba Não era expressionista?
quer julgamento de valor. Escritora Na minha vida, no cotidiano, sempre
Karen (para Elba) É a saudade do que nunca foi andei com um livro nas mãos tentando ler um
vivenciado, a nossa amiga intuiu que nunca parágrafo. Nem sempre consegui. Mas, tem a
chegaria a ostentar cabelos brancos. No conto campanha dos fins de semana. Acontece que
comparece seu alter ego num futuro que nun- sou devagar, adio muito as coisas, mas não é
ca viverá. (lendo um trecho do conto) “Num po- só uma questão de tempo, é a forma de criar.
voado da China, os nakhi comunicam-se com Posso escrever um conto num fôlego só, mas
os espíritos dos mortos num transe semelhan- demoro duas ou três semanas para revisa-lo.
te ao sonho, quando existe uma grave crise Consigo até mudar completamente o ponto
familiar ou quando alguém vai morrer. Sabia de vista dum relato. O fiz com um conto quan-
disso? Acontece no meio da noite, quando do descobri que a leitura ficava melhor desde
todo mundo dorme”. outra perspectiva. Aconteça o que acontecer,
Escritora Ah, é o professor quem fala isso. Sim, ele eu não consigo deixar de escrever, mesmo
parece triste, mais do que triste, abatido. escrevendo apenas duas vezes por semana.
Karen Em troca, a mulher está sempre mais do Nossa vida sempre será assim. Quero dizer, a
que ativa. nossa história, suponho. Juntando nossos fia-
Elba Excessivamente ansiosa. pos de tempo do jeito que for. Ontem fiquei
Escritora Uma combinação letal, não é? pessimista. Estava tão pessimista que escrevi
As duas amigas voltaram para a orla de Miraflores, e ainda revisei muito melhor do que quan-
a Escritora voltou a desaparecer. Silêncio, ape- do fico otimista. Hipotecamos nosso tempo
nas silêncio. porque não existe alternativa. Você consegui-
ria escrever sem luz, sem água, sem moradia,
Elba É o silêncio criador.
sem computador? Tudo isso não se converte
Karen Não era o lazer criador?
num obstáculo maior? Nunca conseguiremos
Elba É sim, mas no caso da nossa amiga, acho que saber se o futuro será pior ou melhor do que
era o silêncio criador. o presente. Essa é nossa incerteza, mas talvez,
Karen Ela não acreditava em sonho como deto- ao mesmo tempo o nosso consolo. Estou mui-
nante ou matéria literária. Certa vez, li para ela tíssimo chateada por ficar longe da literatura.
um fragmento que eu tinha escrito a partir de Estou contente por ter conseguido acabar o
um sonho meu. Não gostou da ideia. Acho livro de contos, mas fico chateada por não ter
que ela tinha razão, é como abusar da ficção. um romance para revisar. Ao menos quando
Elba Ou do ficcional. O sonho é uma ficção sem você tem só que revisar, já é um prazer.
motorista, sem roteiro consciente, mas que Karen Tamara de Lempicka, era uma doida essa
lhares

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mulher, boêmia, cocaína, amores furtivos, po- Elba Não é de estranhar que nossa amiga gostasse
rém à noite, com ressaca ou sem ressaca, ela tanto de Otto Dix. (fala confidencialmente para
pintava como uma possessa. Karen) Olha o que encontrei na Wikipédia,
Escritora Também, o marido era Barão e tinha a enciclopédia coletiva como a poesia coleti-
grana. Desse jeito qualquer um. Tamara foi va de Lautreamont. (lendo) “Otto Dix foi um
uma espécie de ícone durante um tempo na dos poucos pintores da modernidade que
década dos anos trinta, – mas pelo que eu sei, se atreveu a pintar a decadência corporal.
não pela sua biografia, senão pela sua obra-, ela Movimentando-se entre os limites do feio, in-
era considerada “decorativa”, pintava quadros cluído o repulsivo, e o cômico. A decrepitude,
perfeitos para decorar os salões das grandes a dualidade Eros e morte foram os dois polos
mansões, teve o azar de viver justo durante o do seu mundo e o tema central de sua obra.
auge do expressionismo alemão. Dá para ima- Pouco antes da sua morte em 1969 ele de-
giná-la ao lado de Otto Dix? Falei azar porque clarava: ‘Não é que eu tivesse obstinação por
seus quadros, perante as tendências intensas mostrar o feio. Acontece que tudo o que tenho
e carregadas, eram uma espécie de retratos visto me parece belo’. Para Dix as categorias,
decorativos para os salões da alta burguesia. belo e feio, não eram validas”.
Além do mais, pelo que eu sei, ela era fascitoi- Elba A decrepitude, esse tema preocupava muito
de apesar de não curtir o populacho nacional a nossa amiga.
socialista, detestava o populacho. Quando A Escritora está sentada numa mureta da orla,
a guerra estava prestes a estourar fugiu para não olha para o mar, olha atentamente para
Suíça e depois para os Estados Unidos onde suas unhas, aparentemente está absorta exami-
foi uma melindrosa, ao estilo dos anos vinte, nando seus dedos. As duas amigas contemplam a
como Zelda Fitzgerald, ficando conhecida Escritora de longe.
pelo seu exuberante esnobismo: propiciava
grandes banquetes, aos que eram convidados Elba Ela continua com aquela mania, antes de
tout le monde, banqueiros especialmente. Ela morrer ficava prestando atenção nas mudan-
adorava grana e frivolidade. ças de cor dos dedos e das unhas das suas
mãos, achava que quando ficassem roxas se-
Karen Essas artistas foram esquecidas por não
ria a hora fatal. Pediu para que lhe comprar-
fazer a coisa certa, literária ou artisticamente
-se uma lixa de unhas. Toda essa higiene fazia
falando. Por exemplo, essa polonesa que obe-
parte do processo, era uma reação perante o
deceu ao marido suprimindo a criação para
iminente. No seu livro A horda primitiva, o pe-
dedicar-se a decoração. Puta merda!
núltimo conto, “Alguma novidade”, também
A Escritora ri com gosto pelo jeito de falar de trata da decrepitude, o mesmo acontece em
Karen. “Temos que lavar”. Idosos, homens e mulheres
Karen Ela foi esquecida porque a decoração que ficam no limite da decadência, da doença
não era considerada importante na época. A e da pobreza, é uma combinação retratada em
Lempicka também foi etiquetada como art alguns dos seus contos com resultados que a
deco, mas só foi descoberta nos anos setenta aproximam mais de Kawabata e de Otto Dix
por alguém muito influente, é a partir de então do que de Ribeyro, como já foi dito.
que cresceu a sua fama. Muito lúcida, boa de- Escritora (falando para elas) Vocês já leram o livro
coradora, não se deixou levar pelas tentações, de Coetzee, No coração do país? Parece interes-
em arte sempre fez o que lhe dava na telha. sante.
lhares
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Karen e a Escritora conversam sentadas na mureta a fazer por causa da sobrevivência e que ago-
da orla. A cena aconteceu antes do desenlace fatal, é ra não servem para mais nada. Aleluia! Eu
a encenação de uma espécie de raconto sobre o tema continuo pensando que a tarefa de eliminar,
central: “Não preciso trabalhar”. de excluir todos aqueles documentos vincu-
Escritora Ontem tive que cuidar do corretor e lados a políticas, planos, programas etc. e tal,
resolver alguns problemas domésticos. Tive são um dos melhores momentos desta etapa
que encarar um incidente familiar, um daque- da minha vida. Enquanto for preciso trabalhar
les que nunca faltam nos momentos de crise, temos que fazê-lo. O bom do teu caso é que
foi com minha mãe. Parece que nossas mães, você tem uma força e uma motivação literária
a tua, a de Elba e a minha, são, foram e sempre à prova de balas, porque você sabe muito bem
serão, o carma que carregamos desde algum qual é o lugar que lhe corresponde ao traba-
lugar desconhecido. Em algum momento lho de sobrevivência que mesmo sendo ne-
deve ter sido bom para você morar no mes- cessário é limitado. Tenho um prazer enorme
mo prédio que tua mãe, talvez nos momentos de pensar que não preciso mais de trabalhar,
finais, mas imagino também que antes deve isso que é o máximo. Decidi ler um livro que
ter sido uma tortura. No entanto, lembro- é um compêndio de religiões, só para conferir
-me da tua determinação, da tua calma e da as ideias que podem surgir disso. Sou cética e
tua paciência quando falavas dela muito antes agnóstica, como devo ter comentado alguma
da doença, tua extraordinária compreensão vez para você, mas na circunstância atual fico
apesar dela ser tão difícil, às vezes eu pensa- muito tentada a revisitar as fontes e refletir um
va como é paciente a Karen. Acho que nos pouco sobre o além. (risadas) Minha rotina é
últimos anos você atingiu aquela tolerância sempre a mesma, excepcionalmente, como
perante tua mãe que só é possível pela dife- falei, deixarei de trabalhar. Acho que estou
rencia de idades, lembro também que você começando a ver as coisas de uma maneira
falava dela algo assim com, “essa foi sua vida, diferente, o que não deixa de ser curioso, e
essa foi ela”. Como você pode imaginar ago- também um pouco emocionante, no meio de
ra eu não consigo ter tolerância nenhuma e todo esse ser e não ser. O que você acha?
às vezes perco as estribeiras. Mas, tudo bem, Elba, queimada pelo sol, sobe pela ladeira com sua
são ossos do ofício. A melhor conclusão a gata Malu, tem o cabelo ruivo e curto grudado na
que podemos chegar é que pessoas como nuca, como as cantoras francesas dos anos cinquen-
nós, amantes de liberdade, autonomia, in- ta. Karen corre para alcança-la e lhe sussurra algo
dependência e de certa misantropia perante no ouvido. A Escritora continua contemplando o
a banalizada vida social, que deixa felizes as mar, sem perceber as amigas que conversam alguns
outras pessoas e que não nos entusiasma nem metros embaixo dela.
um pouco. Para nós não é nada bom ter que Karen Acho que nossa amiga está mais relaxada,
suportar esse modelo de “pacto familiar” im- mas isso não quer dizer esteja menos metida.
posto pelo mundo. Assim que acabar com os
Elba Ela falou que viu um garoto vendendo incen-
problemas domésticos, contratar o corretor
so e que ela também queria ter um trabalho
para vender a casa, então eu vou poder ar-
desse tipo.
rumar mais tempo para fazer minhas coisas,
mas quero fazer isso aos poucos, depois de As amigas aproximam-se em silêncio. Elba conti-
conseguir tirar aquela papelada horrorosa, nua acariciando sua gata. A Escritora observa cui-
aqueles trabalhos todos que fomos forçados dadosamente a gata Malu.
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Escritora (passando a mão no lombo da gata e diri- tempo, ganhar dos outros, um tempo ganha-
gindo-se a ela) Por enquanto faça as coisas do dor ou competitivo. As decisões são pressio-
jeito que der. Não espere mais do que você nadas pelo tempo, nossa vida está em eterno
consiga fazer. Você precisa relaxar um pouco. movimento. (repentinamente, a sua voz fraqueja.
Por exemplo, hoje não trabalhe, nem leia, faça Pensa no seu filho, pensa no neto que nunca conhe-
bobagens. Beba um uísque, vá ao cinema ou, cerá, mas depois se recompõe)
simplesmente, assista à televisão. Amanhã, vai Elba É um paradoxo ler sobre a cinética de
ser diferente. Sloterdijk numa cidade congelada no tempo,
As três mulheres, incluída a gata Malu, parecem quase inerte. Mais do que paradoxal é esquisi-
estar detidas no tempo. to, talvez seja o único jeito de marcar presença,
Escritora A cada minuto que passa, nós temos a de perceber que você também está em movi-
convicção de que o tempo nos mutila, falou mento, no lugar de ficar parada, já que não ga-
Sloterdijk. O que vocês acham? nha nada correndo incansavelmente à procura
de nada, por nada.
A Escritora esboça um sorriso imitando a gata gor- Escritora Gosto de Sloterdijk porque tem um
da que foi zanzar nos arbustos do parque. Elba e tom nietzscheano. Não sei qual é a opinião do
Karen continuam impassíveis, a Escritora continua mundo acadêmico sobre ele, depois de ter po-
sua falação. lemizado com a vaca sagrada de Habermas. Li
Escritora Porém, não foi essa a sensação que tive um artigo onde de certa forma o chamam de
em Abancay , vocês nem conseguem imagi- doido, inclusive.
nar como é essa cidade congelada no tempo. Malu volta procurando pela sua dona, esta lhe faz
O que existe lá é uma infinidade de cabines um carinho.
de internet em que dúzias de pessoas digitam
Elba Ela sabe voltar para casa sozinha.
febrilmente. É uma cidade perdida no meio
do país, acho que esse lugar está mais perdido As três amigas acompanham a corrida da gata
do que eu, apesar de que a última vez fui mais pela orla.
generosa com aquelas ruas que já sinto reco- Elba A crítica da razão cínica, de Sloterdijk foi publi-
nhecer. Quando cheguei, para variar, fiquei cada em 1983 com um êxito de vendas com-
um pouco deprimida, parece que essa sensa- parável a A decadência de ocidente, de Sprengler
ção se torna cada vez mais comum na nossa dos anos vinte.
idade. Ou estou errada? Quis beber um copo Escritora Amigas, o que vocês acham disso aqui:
de vinho, mas lá não tinha um local apropria- “Os homens são seres insulares, dotados de
do para isso. O álcool está mais voltado para o uma insociabilidade sociável”. (ri brincalhona)
consumo familiar. Só tinha cafeterias e docei- Olha, essa aqui, é do O estranhamento do mun-
ras, ufa, uma chatice. Então aproveitei para ler do. (lendo outra anotação) “Pensa o homem
e escrever um pouco. como mediocridade insatisfeita, semidepres-
Karen (acordando da sua letargia) O que você fi- siva, como vitalidade atordoada que triunfa,
cou lendo? como animal triste que se menospreza afun-
Escritora Euro-taoismo de Sloterdijk. Ele fala dado na ambiguidade do seu próprio eu.”
muito ironicamente que a moral dos nossos Elba “Vitalidade atordoada que triunfa”, esta fra-
tempos é a cinética. Todo mundo corre de um se me autoriza a afirmar que é esquisito ler
lugar para outro, todo mundo quer ganhar do Sloterdijk numa cidade congelada no tempo.
lhares
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Três peças Nô / Dramaturgia Latino-Americana


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Karen É quase o diagnóstico do narcisista per- não podemos nos encher de dias VP. O que é
verso. uma verdadeira pena.
Escritora É bom esclarecer que quando Sloterdijk Karen fica de costas para Elba. A Escritora esfu-
fala dos homens está pensando tanto no ho- ma-se. A noite cai, desde a orla, mal conseguimos
mem como na mulher. divisar as luzes do litoral ao longe. Tudo fica na
Elba Hoje vou assistir a um filme que é uma penumbra.
obra prima, Um olhar a cada dia, do grego
Karen No começo me perguntei por que
Angelopolus, vocês não podem perder.
Katayama utilizou o termo palavra impuro,
Escritora (falando para si mesma) Ah, as jornadas nessa espécie de início de O ano de Saeko. A
da vida. (escreve no ar as letras J e V) E os dias ideia original de vida e de morte é uma luta
de vida prazerosa. (escreve V e P) As JV estão entre o puro e o impuro, porém, nenhuma
sempre brigando com os VP. A qual delas per- das duas, nem a vida, nem a morte, igualam-
tencemos? Para diminuir a depressão a gente -se a esses termos garrafais, no sentido estrito.
devia ter dias VP, que é como beber um bom Ou as duas são puras ou impuras, não per se,
vinho uma que outra vez. Temos que reduzir senão irremediavelmente por que sim. Não
os dias JV, apesar dos dias JV serem mais so- existe maneira de explicar o inexplicável, a não
brecarregados, temos que conseguir tempo ser subindo numa nuvem, pois só ela saberá
para os dias VP. Mas, como de praxe, temos aonde vai nos levar.
que evitar a dissipação. O que quer dizer que

Três facadas por um puxão de orelhas

Um homem que escolhe ficar dormido.


Uma morte certa, isso é o que eu sou.
Jaime Bayly

Personagens Cenário
Elmer Uma favela.
Jovem morto aos 21 anos.
Choupana de Elmer no areal, a névoa tem esfriado
Lucero
as paredes de palha. A lâmpada florescente de um
Irmã de Elmer, garota de 16 anos.
poste solitário banha com sua luz leitosa o pátio
Um Anjo dos fundos. Sábado, quase dez da noite. No úni-
Uma espécie de dançarino celestial. co cômodo que faz as vezes de sala e dormitório,
Mãe Lucero não consegue dormir. O quadro da Virgem
Já foi empregada doméstica, agora é comerciante, do Carmo está sobre um rústico criado-mudo. Um
50 anos. espelho recém-comprado apoia-se na parede refle-
tindo o corpo nu da garota. Surge um anjo vestindo
Digna um colante branco de dançarino, ele recolhe suas
Namorada de Elmer, mulher de uns 40 anos. asas e faz acrobacias no marco do espelho.
lhares

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Dramaturgia Latino-Americana / Três peças Nô
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Anjo Você tem de se alimentar melhor, seu corpo Lucero (sentada na cadeira escondendo os pés nas
está flácido. Você está cheia de marcas roxas. suas sandálias velhas) O porta-retrato deve ser
caro, não é não?
Lucero examina as manchas roxas de seu corpo,
tem uma na coxa direita, outra no braço e uma Elmer Foi presente da patroa da mamãe... Ontem
menor no pescoço. briguei com a Digna. Gosto dela, mas é muito
pentelha. Falou que está grávida, que a gente
Lucero (tenta tocar no Anjo sem consegui-lo) São vai ter um filho... Você está pálida, maninha.
dele. Só podem ser dele. Lucero É só um mal-estar.
Anjo (aponta o céu com o indicador) Lembra, foram Elmer Você sabe, ela não é muito... Como posso
três facadas por um puxão de orelha. ter certeza que o filho é meu. Além do mais,
O Anjo desce do espelho dando uma cambalhota que negócio é esse de ser pai à toa, hein? (ob-
no ar, pega Lucero nos seus braços, fazendo-a ro- serva admirado) Escuta, mamãe está sabendo
dopiar como se fosse sua dupla de dança e senta-a que você está aqui?
numa cadeira. Depois, a garota deita-se na cama, Lucero Não está sabendo.
pega o quadro da virgem e cobre o rosto com o Elmer Você é louca. Vai embora logo daqui.
cobertor. Ouvem-se gritos de rapazes e barulho de Desculpe de novo. Acho que não sei tratar as
vidros quebrados. No sábado, bandos de marginais mulheres, nem a Digna, nem a você que é...
escolhem o descampado do bairro para saldar suas (olhando com malícia) Menos esperta que ou-
contas. Lucero beija a imagem da virgem para dar- tras mulheres, você é uma boa garota, de ver-
-se valor. Elmer abre a porta e entra. dade, maninha.
Elmer O que você está fazendo aqui, maninha, Lucero Agora pouco você falou que era louca.
não deveria estar na sua casa? A mãe falou que Elmer Mas não falei que era pentelha. O que você
você estava doente. tem, maninha? Está com cara de assustada.
Lucero Estou um pouco doente só, mas você está Lucero Acho que alguém está andando lá trás.
cheirando a rum. Elmer Devem ser os gatos ou os cachorros. Não,
Elmer (alisando a fronte com a palma da mão, do devem ser as salamandras.
mesmo jeito que faz sua mãe) Estive bebendo lá Lucero Salamandras?
em baixo, problema é o que nunca falta. Elmer Mmm! Tem um pernilongo no copo de
Encaminha-se para o pátio dos fundos, onde fica o água.
banheiro que é um fosso. Lucero ouve o irmão vo- Os irmãos ficam olhando o inseto flutuando no
mitar. No criado-mudo também tem uma foto da copo de água.
família. Nela, seu irmão mais velho aparece bem
penteado junto à mãe. Aparenta uns quinze ou de- Elmer (dando uma gargalhada estrondosa e olhan-
zesseis anos na fotografia. do curioso para sua irmã) Não tem lagartixas
na casa do padrasto, maninha? São parecidas,
Lucero Você era muito bonito, mas envelheceu
quase iguais. Os iguanas também são. Porém
com tanta bebida e ficou macilento.
a salamandra é perigosa. Os jacarés nem tanto.
Elmer (volta à habitação, fala com saudade, apon-
tando para a foto familiar) Foi no sitio da vovó. Lucero Como nem tanto?
(serve um copo de água duma jarra) Elmer Só quando ficam com fome. (continua rin-
do) Gosta de dançar? Quer dançar? (encosta
Lucero observa os olhos puxados do seu irmão, são
seu rosto na irmã)
de um castanho esverdeado por causa da luz ama-
relada do quarto. Ele calça mocassim negro com Lucero Agora?
fivela de couro. Elmer É, por que não?
lhares
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Três peças Nô / Dramaturgia Latino-Americana


v. 5 Carmen Ollé
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Lucero Não estou ouvindo música. estava sentimental demais. Para a mãe ele era,
Elmer faz um gesto para ela fazer silêncio. Ouve-se sem sombra de dúvidas, o melhor de todos os
o barulho de uma lata caindo no chão, seguido de seus filhos homens. Como ela poderia imagi-
um clarão luminoso. Os dois correm nessa direção. nar uma coisa dessas, se no dia anterior, no sá-
O fundo do casebre que delimita com um terreno bado, os dois tinham ficado juntos desde cedo,
baldio, onde se acumula toda sorte de objetos im- chorando perante os escombros da choça. Foi
prestáveis, está pegando fogo. ciúme? Vingança? O incendiário, um menor
de idade, andava se gabando do incêndio pelo
Elmer (tentando apagar o fogo com panos) Puta bairro. Nesse mesmo dia, mãe e filho tinham
merda! perseguido o moleque, quem sabe o Elmer
Lucero Não tem água? exagerou um pouco no corretivo. Devia ter
Elmer Que bosta! Vai, corre, avisa o pessoal. previsto a desgraça.
Os vizinhos aproximam-se atraídos pelo incêndio. Lucero Fale de que jeito? Você sempre fala a mes-
ma coisa, toda noite me aparece para lembrar a
Lucero Traga água, por favor, meu irmão está lá
mesma coisa. De que jeito eu poderia predizer
dentro.
a morte dele? Como ia saber que o moleque
Uma mulher decidida abre espaço no meio da mul- ia furá-lo? Só porque o Elmer lhe deu um es-
tidão e entra na casa, depois de alguns segundos re- porro e pediu para reconstruir a choupana?
aparece puxando Elmer. Só por isso o garoto, quase uma criança, tacou
Todo mundo contempla o desabar da choça em ferro.
silêncio. Elmer soluça nos braços de Digna. Um A Mãe quebra um ovo num copo, no interior sur-
homem apaga uma brasa com o pé e depois vai gem agulhas em forma de cruzes.
embora. Os outros fazem o mesmo depois de cum- Anjo Se você tivesse prestado atenção nos sinais...
primentar o casal que está fundido num abraço.
Lucero (aborrecida) Outra vez a mesma coisa.
Anjo Tua mãe ficou conhecida por ter visões. Em
A Mãe e Elmer depois do incêndio. São Miguel, todo mundo sabia que ela tinha
Raconto. frequentado a Mishka, o ritual daquela região
ao lado do rio, onde teve sua primeira revela-
No cair da noite, mãe e filho se abraçam perante os ção quando era apenas uma criança. O bruxo
escombros da choupana de Elmer. tinha lhe dado as boas-vindas e a convidou
Mãe (acariciando o cabelo castanho do seu filho, um para compartilhar de sua poção. A mesa estava
homem que já tem 21 anos) Você não tinha que posta com o material necessário. Porém, um
ficar discutindo com esse moleque, olha o que ajudante tentou seduzi-la aproveitando-se da
ele é capaz de fazer. Isso acontece com você sua condição de novata, mas depois sua mãe
por ficar bebendo com os moleques lá embai- vingou-se dele.
xo, no asfalto. O bruxo mexe num objeto da mesa e o ajudante
Elmer (chorando no ombro da Mãe) O imprestável fica profundamente adormecido. Em seguida, o
do Ratinho queimou a minha casa, ele tem bruxo indica à mãe-moça que pode começar, que
que construir outra para mim. Vou dar uma chegou a sua vez. A mãe-moça joga-se por cima do
surra nele, você vai ver. Você é a culpada ma- adormecido com a força de uma potranca. O aju-
mãe. Quem mandou casar com aquele velho? dante acorda como se uma rocha tivesse atingido
Anjo Ainda não tinha bebido um único copo e já seu peito.
lhares

O
Dramaturgia Latino-Americana / Três peças Nô
Carmen Ollé v. 5
105
Ajudante (suplicando para a mulher) Benção! Elmer O que você está fazendo aqui, maninha?
Benção! Lucero Mamãe falou que você viajava para a Itália,
A mãe-moça borrifa a poção feita de milho cru vim para...
moído e açúcar branco, repetindo três vezes o sinal Elmer Essa é a minha nova casa. (bate no peito com
da cruz na fronte e na nuca do ajudante. orgulho) Acabei de erguer, mas está faltando
tudo, só tem a cama.
Anjo Até esse momento ela nem conhecia os po-
Lucero Tuas roupas estavam jogadas pelo chão. Já
deres que tinha. guardei.
Lucero (falando baixo) Mas, desta vez seus pode- Elmer (deitando-a na cama suavemente) Deita, dei-
res não serviram de nada. ta, maninha. (joga-se ao seu lado, põe as mãos
O novo casebre são quatro paredes de palha seca, debaixo da cabeça. Olha o teto e cantarola) Quer
recém-enfiada na areia, limpas e brilhantes, com a saber uma coisa? A Digna não está grávida,
bandeira peruana ondulando no teto. O único ma- não está grávida. (limpa o suor do seu rosto com
terial nobre é um pequeno muro para a caixa de as mãos)
luz. Nas paredes estão pendurados vestidos estam- O rapaz levanta-se, tenta ficar em pé, mas não con-
pados que levam santinhos da Virgem do Carmo segue e desmonta.
costurados próximos das golas. Lucero arranca um
Lucero Meu Deus, Elmer!
santinho, todos têm o mesmo rosto resplandecente e
Elmer (trazendo-a para si) Você é tão boazinha,
o olhar meigo.
maninha.
Lucero Os olhos da virgem são castanhos como De repente, tudo fica escuro. Quando Lucero acor-
os de Elmer. da, Elmer já desapareceu.
Tira do baú um vestido de cetim azul e veste-o. Lucero Foi só um sonho, nossa senhora! Foi sim,
O traje é justo na cintura, ela desfila na choupana tudo não passou de um sonho. Não é verda-
com trejeitos de modelo. de, nossa senhora? Toda vez que durmo nesta
Lucero (falando para o quadro da Virgem) Meu casa é sempre o mesmo sonho.
irmão só tinha sete anos quando minha mãe
casou com meu pai. Tinha os olhos castanhos, Três facadas por um puxão de orelha.
quase verdes, minha mãe sempre falava que
eram da hora, o seu caboclo mais bonitão. (já É noite na enorme pampa cheia de mato e lixo nas
deitada na cama, murmura algo como se estivesse proximidades da choupana de Elmer. Escuridão.
em transe enquanto agasalha-se com o edredom) Elmer e Ratinho duelam rodeados por um grupo
Não posso dormir, Nossa Senhora, tenho que de vizinhos que chegaram trazidos pelos gritos.
descobrir o assassino de Elmer, caso contrário Chega Lucero.
a minha vida não terá sentido. (ouvem-se gritos Elmer (desafiador, esbofeteia e puxa a orelha de um
vindos da rua e barulho de vidros quebrados, cobre menino bastante pequeno) Escuta aqui Ratinho,
o rosto para não ouvir) O que está acontecen- devolve a minha casa! Quando vai ser, hein?
do, Nossa Senhora? Essa voz, eu conheço essa (continua batendo)
voz. (pula da cama e assoma-se por uma peque-
O menino solta um grito. Elmer imobiliza Ratinho
na janela, mas não consegue enxergar nada. Abre
e o exibe perante os outros.
a porta, Elmer está tremulante no umbral. Olha
para ela com seus olhos puxados, quase fechados, Elmer Este lixo queimou minha casa. Ele tem que
como se não a reconhecesse) devolver. É ou não é?
lhares
O

Três peças Nô / Dramaturgia Latino-Americana


v. 5 Carmen Ollé
106
Silêncio. a criança para a casa de Elmer, esse vai ser seu
refúgio.
O menino consegue safar-se, avança uns metros e
Lucero (carrega a criança, a abraça como se fosse seu
agacha-se para pegar algo do chão. Lucero olha
brinquedo favorito e sorri. Depois de andar um
como Ratinho arremete na direção de Elmer. Em
momento, olha fixamente para a criança e começa
questão de segundos, os dois caem por terra. Depois,
a chorar) Deus do céu, nossa senhora! Você
o menino fica em pé, sai correndo e desaparece na
não vai ser como o Elmer, não é? Tem a mes-
escuridão. Elmer levanta-se e olha em todas as dire-
ma cara, os mesmos olhos. (Lucero não conse-
ções. Lucero corre até o irmão. Os olhos assustados
gue parar de chorar)
de Elmer a contemplam fixamente antes de desa-
bar. A orelha do Ratinho está jogada no chão. Anjo (perseguindo-a) O que você tem, por que
tanto barulho, garota triste?
A luz do cenário escurece. Quando volta a ilumi- Lucero (sempre com a criança nos braços, vira furio-
nar-se, Lucero caminha atordoada pelo mercado. sa para o Anjo) Você não percebe? Não é você
Num canto do cenário, debaixo de uma banca que tudo vê? Não percebe o que eu vejo nos
de frutas, tem uma criança de dois ou três anos de olhos castanhos desta criança?
idade. Anjo (pula da escada fazendo um arabesco no ar)
Lucero (chorando) Quem é você? Qual é seu Vejo sim, claro que vejo...
nome? O que está fazendo aqui, sozinho? Lucero Já sabia de tudo e não falou nada para
Anjo (surge no alto de uma escada dupla) É o filho mim. (o Anjo continua fazendo arabescos)
de Elmer e da Digna. Não sabia? Como ia sa- Mesmo assim, pede que leve a criança para a
ber se só fica desfilando na frente do espelho e casa do Elmer. Isso vai salvá-lo do seu inimigo
soluçando feito uma Madalena. Espero que o quando crescer?
chefe não se zangue por falar da sua protegida. Anjo Ninguém conseguirá salvá-lo, sempre há
A Digna matou-se depois de... Essa criança vive um Ratinho. Você mesma está vendo isso no
da caridade dos outros. Você notou que é... reflexo dos seus olhos, mas mesmo assim, ele
Lucero O retrato vivo. Qual é teu nome, criatura? será sua salvação.
Anjo Não sabe falar ou então não consegue, leva

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