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Fuga do estereótipo
ANA PAULA PAIVA/VALOR
Literatura Michel
Laub parte da
comunidade
judaica em meio
ao extremismo
para refletir o
Brasil. Por Dirceu
Alves Jr., para o
Valor, de São Paulo
Purgatório dos
nipulador, chegou a uma posição ao extremismo de direita o deixou essas vozes em
privilegiada na empresa de seguros bastante perturbado. “Embora não conflito tem a ver
do sogro. Em fevereiro de 2018, com chegue a ser uma surpresa sob alguns comigo”, diz Michel
lábia digna de um pastor, ele reuniu aspectos, isso me incomodou a ponto Laub sobre
privilegiados
personagens de
centenas de amigos, empresários e de eu ter feito um romance a esse res-
novo livro
colaboradores da comunidade is- peito”, diz. “Meu ponto de vista está
raelita para arrecadar fundos para a no livro, claro, mas não quis que ele
campanha política de um candida- se sobressaísse ao conteúdo literário,
to — uma ação que, em um futuro que é sempre mais difícil de definir.”
próximo, passaria a assombrá-lo. A melancolia do primeiro ano da Para o Valor, de São Paulo breve, lhe renderia cobranças e custa-
O livro se descortina através de re- pandemia do coronavírus atravessa- ria muito caro à sua consciência.
constituições e fluxos de pensamentos da no Brasil e o fato de, na sua opi- O garoto Davi Rieseman, de 12 Laub, com extrema fluência literá-
que remetem a essa palestra. O perso- nião, o governo de Jair Bolsonaro pre- anos, era bolsista da escola particu- ria, constrói um painel sobre a eleição
nagem rememora as relações com a gar a desordem e lutar contra o com- lar em que sua mãe, Dona Rute, tra- do ex-presidente Jair Bolsonaro e as
mãe, o sogro, a mulher e a filha sob a bate à crise sanitária levaram Laub a balhava como professora. Ao con- consequências da pandemia do coro-
luz de temas como a eleição presiden- sentir a necessidade de um respiro trário dos colegas, não usava tênis navírus para uma elite que compac-
cial que levou Jair Bolsonaro ao poder, em terras nem tão estrangeiras assim. de marca, relógio caro ou era leva- tuou e poderia, mas não neste caso,
a ascensão evangélica, o antissemitis- “De minha parte, acho que nunca do e buscado por motoristas. Enca- ter atravessado quase ilesa a tragédia
mo e os conflitos no Oriente Médio. estive tão perto de um estado depres- bulado, ele comia o lanche de quei- coletiva dos últimos anos. Escrito em
“Mas não acho que Davi seja um perso- sivo como naquela época e tenho jo, tomate e maionese trazido de capítulos curtos divididos em blocos
nagem típico da direita sionista, por- flashes a respeito até hoje, no mau casa na biblioteca vazia, longe do de textos, o romance chega ao leitor
que mesmo nela se encontra um dis- sentido”, declara. A ideia entediante olhar de quem comprava pastel e como uma sucessão de situações
curso moral de justificação da violên- de um tempo que não passa está re- refrigerante na hora do recreio. descritas em um fluxo de pensamen-
cia, e isso foi algo que me interessou presentada em “Passeio com o gigan- Um dia, flagrado no seu esconderijo tos que atordoam o protagonista.
nele porque escrever ficção é tentar te”, como o próprio autor define, na por Dona Rute, ouviu uma verdade ja- Quando o seu percurso individual
fugir do estereótipo”, justifica. forma de um sonho repetido. “É mais apagada da memória: “Você tem pode ter interferido no do mundo?
Laub, que se formou em direito e aquela sensação de que estávamos vergonha da nossa casa e da nossa vi- Vozes de um coro fantasmagórico
advogou por pouco tempo nos anos condenados a um presente contí- da, então é bom saber que teve um começam a atormentá-lo diante dos
90, garante que não tem nada a ver nuo, feito de um tédio contraditório, momento que a sua mãe também sen- traumas vividos — por ele ou por seus
com o protagonista. O seu pai em- coalhado de estímulos vindos dos tiu vergonha (...). Eu só me livrei dis- semelhantes. Aos poucos, o livro se
barcou com a mãe dele e uma irmã noticiários e das redes sociais.” so quando abracei a vergonha. Quan- revela uma história surpreendente
para o Brasil em 1939, em um dos A chegada a Berlim aliviou um pou- do olhei para a vergonha sem desviar que traz à tona a agonia dos pacien-
últimos navios com refugiados do co a tristeza, e o distanciamento geo- os olhos, e aí parei de ter medo”. tes morrendo sufocados nos hospitais
nazismo. Criado em uma família li- gráfico acelerou o processo criativo do Esta cena, quase na metade do ro- na pandemia e o remorso de quem
beral e não religiosa, o garoto cres- romance antes travado. Sendo a cidade mance “Passeio com o gigante” (Com- não consegue se distanciar da culpa
ceu indo, no máximo, duas vezes por paterna, inevitáveis reflexos vieram à panhia das Letras, 160 págs., R$ vinculada, inclusive, às memórias do
ano a uma sinagoga de Porto Alegre, tona na sua ligação com a memória fa- 69,90), de Michel Laub, pode não justi- Holocausto e de estereótipos cons-
onde nasceu e viveu até se mudar miliar e até possíveis conexões entre o ficar as atitudes do protagonista, mas truídos em torno do povo judeu.
para a capital paulista, em 1997. Holocausto e o morticínio da covid-19 ajuda a compreendê-las um pouco Entre as tantas imagens formadas
“Não fazíamos shabat [o sétimo dia que podem ser interpretados na obra. melhor sem a precipitação de julga- por Laub com suas palavras está a de
da semana dedicado ao descanso] “Em Berlim, você tropeça na heran- mentos. Ainda no colégio, Davi come- Davi, poucos dias depois de enterrar a
ou comíamos comida kosher, esse ça do nazismo, do comunismo, por- çou a namorar Lia e, aos 17 anos, não mulher, vendo na internet o líder que
tipo de coisa, mas a questão judaica que a memória histórica é muito pre- virou as costas para as oportunidades. ajudou a colocar no poder rindo e fa-
não é só religiosa, é também histó- servada e discutida, e veio também es- Ganhou a simpatia do sogro podero- zendo o som de alguém sem ar dian-
rica e cultural”, explica. “Quando sa questão da morte, do Estado, que, so, casou-se e construiu uma brilhante te do comentário de que pessoas
adolescente, frequentei por um num certo momento, não cuida da carreira na empresa de seguros da fa- morriam nos hospitais. “Passeio com
tempo breve um desses movimen- saúde e da vida das pessoas”, comenta. mília que o recebeu de braços abertos. o gigante” se diferencia da maior
tos juvenis, mas não fez parte da “Anos de discurso da extrema direita, É, em outro momento, desta vez parte das publicações brasileiras da
minha vida de modo importante.” porém, nos ensinaram que compara- muito mais emblemático para a defi- atualidade por isso, por abordar as
O escritor estudou em uma escola is- ções só servem à própria extrema di- nição da obra que para o caráter do perdas e, quem sabe, uma reflexão
raelita — experiência relatada em seu reita, embora, nos debates práticos, a personagem, que o autor transcende o de um possível de arrependimento
livro “Diário da queda”, publicado em ação do governo brasileiro na pande- enredo de ascensão de um pobre garo- para os muito ricos confrontados
2011 — e, somente com os anos, um mia seja criminosa, assim como a do to judeu para ampliá-lo de significa- com a calamidade pandêmica.
pouco mais velho, despertou o interes- atual governo de Israel em Gaza.” dos e estabelecer conexões com a his- Em uma época de saudável polifo-
se por parte da cultura dos seus ante- O autor reafirma que vê “Passeio tória recente do Brasil — e do mundo. A nia, Laub tem a coragem de trazer à to-
passados. Entre essas questões, ele de- com o gigante” mais como uma obra adesão aos avanços da extrema direita na a voz dos privilegiados — aquela
dicou uma atenção à diáspora, tema sobre a divisão da comunidade judai- de parte da comunidade israelita é re- que sempre foi ouvida e, por repara-
que aparece muito ligado ao conceito ca, uma história individual, no caso a presentada por uma palestra mediada ção, ficou um pouco de escanteio no
de dúvida e angústia atacado pelo per- de Davi Rieseman, que pode ilustrar e por Davi com o objetivo de arrecadar mercado editorial. Pode ser questio-
sonagem Davi, principalmente quan- comentar essa cisão. “O livro é muito fundos para a campanha política de nado por isso? Pode, mas é inegável
do se refere a uma certa vitimização do mais sobre o Brasil, e Israel é o gancho um candidato em fevereiro de 2018. que o autor os coloca a penar no pró-
povo judeu. “Não sei se há algo de mim que o personagem usa para justificar O protagonista, que sempre criti- prio purgatório que eles investiram.
diretamente em nenhuma das vozes as próprias ações por aqui”, explica. cou a imagem de vítima associada ao Talvez Davi Rieseman até aquela ida-
do livro, mas o fato de botar essas vozes “Na ficção, as coisas mudam um seu povo, ressalta a raiz humilde e de, homem maduro, nunca tenha tido
em conflito tem a ver comigo.” pouco, ali as analogias e tantas ou- apela para a emotividade da plateia. coragem de encarar a vergonha de
Os últimos anos da história recente tras ideias e expressões sensíveis po- Na tentativa de comover a todos com seus atos, mas, em algum momento,
brasileira pesaram para o escritor — o dem ser testadas, remodeladas, iro- um herói capaz da admirável supera- não se escapa. Talvez ele — e outros —
que não deixou de representar uma nizadas, enfim, porque é dessa ambi- ção, espera e consegue que a maioria aproveite essa hora e faça parte do
diáspora interna para ele também. A guidade, a da exceção artística, que abra a sua carteira. O que ele não po- processo de dar ouvidos também a es-
constatação de que parte da comuni- nascerão outros debates possíveis.” deria imaginar é que essa ação, em sa versão. (DAJr) ■
14 | Valor | Sexta-feira, 22 de março de 2024
REPRODUÇÃO
Outros Escritos
O absurdo
CRIS BIERRENBACH
Continuo aqui nas minhas leituras mas poderia estar livre. “Vivera de uma
de Albert Camus e hoje queria escrever certa maneira e poderia ter vivido de
sobre dois livros dele que adoro: o ro- outra”, constata. Nada tem um senti-