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282 COMMUN.

ESSAI SUR LA RÉVOLUTION AU XXIE SIÈCLE / Toni Negri

Commun. Essai sur la Vamos então ao livro. Enquanto a


révolution au XXIe siècle obra anterior dos autores era caracteriza-
Pierre Dardot e Christian Laval da por uma resoluta “des-teologização”
Paris: La Découverte, 2014 do socialismo (vale dizer, por uma ar-
gumentação crítica contra qualquer te-
Comum, entre Marx e Proudhon
oria socialista que tentasse encapsular
Toni Negri127 o projeto final e a força de libertação
comunista dentro do desenvolvimento
capitalista); a nova obra se caracteriza
A metafísica do comum128 por uma resoluta “des-materialização”
Depois de seu livro juntos, Marx. do conceito de socialismo – esta é a ope-
Prénom: Karl (ed. Gallimard, 2012), ração desenvolvida neste Ensaio sobre
Pierre Dardot e Christian Laval nos apre- a revolução: uma verdadeira e própria
sentam um Proudhon. Prénom: Pierre- liquidação do materialismo histórico, da
-Joseph. Na Itália, tal título fictício bas- crítica marxista da economia política do
taria para liquidar o livro, lembremos a capitalismo avançado, tudo em nome de
operação reacionária conduzida, entre um novo “princípio”. “Comum”: não co-
outros, por Pellicani e Coen na revista muns [commons], não “o” comum, mas
Mondo Operaio nos anos 1970, sob ins- “comum” – “comum” como princípio
piração de Bettino Craxi. Mas este livro que anima tanto a atividade coletiva dos
não está por certo do lado deles. Ele intro- indivíduos na construção de riqueza e
duz na França e reabre, assim esperamos. vida, quanto o autogoverno interno a esta
na Europa, o debate sobre o “comum”. atividade.
No livro, um quadro ideal preciso
é apresentado e discutido, segundo este
escopo. Ele parte “da prioridade do co-
127 Resenha originalmente publicada no Il
mum como princípio de transformação
Manifesto, em 6/5/2014. Trad. UniNômade
do social, afirmado antes de ser estabele-
128 Para Negri, o comum além de superar a
cida a oposição entre um novo direito de
dialética público x privado, permite situar os
uso e o direito à propriedade”. A seguir,
problemas práticos da organização, instituição
e produção no contexto das lutas hoje, com
se estabelece que “o comum é princípio
conceitos fortes para enfrentar as formas de de libertação do trabalho, além do mero
dominação capitalista. No livro dos autores princípio de que a empresa comum e a
franceses, no entanto, Negri aponta insuficiên- associação devam prevalecer na esfera
cias devido à tendência proudhoniana do “as- da economia”. É afirmada, além disso,
sociacionismo” — que transcende as relações “a necessidade de refundar a democra-
de produção capitalista — e da ideia de pro- cia social, assim como a necessidade de
priedade como roubo — e não, como em Marx, transformar os serviços públicos numa
como concreção de relações de força decorren- verdadeira instituição do comum. En-
tes da relação do capital, que é um processo fim, é estabelecida a necessidade de for-
produtivo de integração do trabalho. (N. T.)
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mar comuns mundiais e, nesta finalida- crítica e reconstrução do conceito de


de, “inventar uma federação global dos comum, neste livro, porque, retomando
comuns”. Proudhon contra Marx, à ruptura corre-
ta e sempre mais efetiva contra qualquer
Uma visão idealista telos do socialismo, se segue dessa ma-
nobra uma não menos obsessiva desma-
A explicitação política do princípio
terialização do conceito de capital e do
do “comum” é precedida de um longo
contexto da luta de classe – por conse-
trabalho de análise crítica e construtiva,
guinte, no fim do livro, não se entende
desenvolvido em dois tempos. Um pri-
mais como o comum é reivindicado,
meiro – chamado “a emergência do co-
onde estão os sujeitos que o constituem,
mum” – consiste em reconstruir o con-
e quais são as figuras do desenvolvimen-
texto histórico em que se afirmou o novo
to do capital que lhe desdobram o pano
princípio do comum, bem como em criti-
de fundo.
car os limites das concepções de comum
Num cenário idealista, do livro sopra
e comuns, elaboradas nos últimos anos
um vento gélido – um pessimismo forte,
por economistas, filósofos e juristas, bem
quase uma constatação resignada de que
como por militantes.
a produção de subjetividade, da parte ca-
Na segunda parte – “Direito e ins-
pitalista, seja materialmente implacável
tituições do comum” –, o livro pretende
e historicamente irresistível. Diante do
mais diretamente refundar o conceito de
que estão a submissão dos trabalhadores
comum. Faz isso situando-o sobre o ter-
e a internalização do comando, sempre
reno do direito e da instituição. O livro,
mais duras na época do capital cognitivo
que nasce da influência do seminário “Do
– como gostaria a atual ciência do mana-
público ao comum” (realizado de manei-
gement, e como testemunharia o novo so-
ra ampla e contraditória no Collège Inter-
frimento sentido pelos próprios trabalha-
national de Philosophie, de 2011 a 2013)
dores (psicologia do trabalho adjuvante).
e aprofunda a ideia de comum ao referi-
Então, que mais é o “comum”? Uma
-la, fundamentalmente, àquela corrente
comunhão de sofrimento? Algum deus
do “socialismo associacionista”, que vai
que nos virá salvar? A mim parece, para
de Proudhon à Jean Jaurès e Maxim Le-
retomar o conceito de “comum”, que se
roy e, a seguir, até Mauss e Gurvitch, até
deva indubitavelmente começar seguin-
chegar ao último Castoriadis (aquele de
do uma via análoga àquela percorrida por
Instituição imaginária do social) – sem
Dardot-Laval. A crítica que eles condu-
nunca subtrair-se à tentativa de absorver
zem à noção de “comum”, seja em sua
qualquer traço do pensamento marxia-
figura teológica, jurídica, ecológica – em
no, neste desenvolvimento “idealista”
suma, em todas as formas de objetivação/
da projeção de um socialismo vindouro
reificação que se repetem incansavel-
próximo.
mente nesse fio condutor – seja também
Desenvolvimento idealista: não po-
naquela filosófica, que tende a banalizar
deria ser outro o efeito produzido pela
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o “comum” como um novo ou alternativo ploração) de serem “inconscientemente”


“universal” – essa crítica é uma via justa. proudhonianos.
Um verdadeiro conceito de “comum” Vejamos como se põe o problema,
pode dar-se somente como produto de com quais apontamentos poderemos ca-
uma práxis política consciente e, assim, minhar para além desta confusão.
compor-se num “processo instituinte”, É de todo evidente (e sem dúvida
num dispositivo de “instituições do co- também a Dardot-Laval), que o desen-
mum”. O “comum” encontra sua origem volvimento capitalista atingiu tal nível de
não em objetos ou condições metafísicas, “abstração” (no senso marxiano de de-
mas somente na atividade. finição do valor) e, portanto, uma capa-
cidade de exploração que se estende por
Além da tragédia dos comuns toda a sociedade. Nesta dimensão da ex-
ploração, se constrói uma espécie de “co-
Neste quadro, a crítica que Dardot-
mum perverso”, de uma exploração exer-
-Laval conduzem à ecologia dos comuns
cida sobre e contra a sociedade inteira.
[commons] de Elinor Ostrom é sem dúvi-
Sobre a vida inteira. O capital se tornou
da magistral, porque esclarece a natureza
biopoder capitalista. Em Dardot-Laval, o
liberal e individualista dessa ecologia –
alerta a respeito desta globalidade e per-
em que um sistema de normas é trazido
vasividade do biopoder, – ou melhor, da
à baila para responder ao problema da
potência do “comum perverso”, – retoma
“tragédia dos comuns”. Seguindo a via
as razões da crítica à teleologia, tão de-
indicada por Dardot-Laval, nós nos en-
nunciada no socialismo marxista, quase
contramos rapidamente diante de uma
como se o dado do biopoder por si só já
encruzilhada – que se abre quando é aler-
levasse a uma nova deriva teleológica.
tado que o comum não é simplesmente
Porém, assinalar corretamente o limite
produzido por uma atividade genérica
marxiano da análise dialética do desen-
(antropológica e sociológica) – mas, sim,
volvimento capitalista pode, talvez, anu-
produzido pela atividade produtiva. Aqui,
lar ou nos fazer esquecer as dimensões
o confronto com Marx se torna inevitável
atuais do biopoder capitalista?
e decisivo. Dardot-Laval aparentam, no
A crítica que Dardot-Laval fazem à
entanto, estar esmagados pela complexi-
“exploração por desapossamento”, con-
dade da questão.
forme D. Harvey, e de todas as análises
Por um lado, de fato, os autores es-
neomarxistas que apareceram no modelo
tão encorajados pelas próprias hipóte-
marxiano da “acumulação originária”,
ses radicalmente dessubstancializadoras
análogas ao que está havendo agora em
(idealistas?) do comum, subvalorizando
nível global – isto é, uma “exploração ex-
a sua dimensão “social” – inclusive da-
trativa” – essa crítica é equívoca, porque
quela proposta de Proudhon; por outro
termina por negar o problema, ao mesmo
lado, ao acusar os marxistas que enfren-
tempo em que critica sua solução. E é
taram o tema do “comum” (tendo bem
tanto mais equívoca porque ignora total-
presente a nova figura “social” da ex-
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mente a função do capital financeiro (ou, certo ao mesmo tempo que o capital tam-
mais diretamente, a função produtiva do bém seja apropriado pelo mais-valor dos
dinheiro, juro e renda), ao acusar outros trabalhadores individuais. O “roubo” in-
autores marxistas – atentos à recompo- tegra a exploração de mais-trabalho e tor-
sição do rentismo como instrumento de na o capital tanto mais indecente quanto
exploração e nova figura do lucro – de mais a produção se desenvolve.
terem reduzido (proudhonianamente) No Marx de Dardot-Laval, se sen-
o lucro a mero “roubo” de um comum tia pulsar uma veia foucaultiana (penso
substancializado, “coisificado”. com isto uma abordagem histórica atra-
vessada pela atenção às subjetividades
Um roubo de mais-valor agentes). Agora, essa veia floresceu –
florescendo, ela é conduzida em direção
Aqui, a posição de Dardot-Laval
à frutificação, numa consideração vivaz
parece esquecer, nos fogos da crítica, os
e dinâmica da história do capitalismo.
lineamentos mais elementares do pensa-
Aqui há – na ausência de uma metodo-
mento marxista – e, em particular, que o
logia historicamente reflexiva – uma
capital não é uma essência independen-
abordagem, certamente, durkheimiana
te, um Leviatã, mas sempre uma relação
(talvez diretamente categorial, kantiana)
produtiva de exploração. E que, na con-
ao desenvolvimento capitalista. O capital
dição atual, o capital financeiro investe
fica parecendo uma máquina atemporal
o mundo produtivo socialmente organi-
e onipotente. A “subsunção real” não é
zado, acumulando nos procedimentos de
mais vista como conclusão de um pro-
extração de mais-valor: quer a exploração
cesso histórico, mas considerada apenas
direta do trabalho operário, quer o desa-
como figura do processo da “reprodução
possamento de bens naturais, territórios e
alargada” do capital.
estruturas de bem estar social [welfare],
quer a extração indireta de mais-valor so-
Sem a classe e o capital
cial, por meio do exercício da dominação
monetária. Se quiserem chamar tudo isto Ao lado disso, todavia, uma certa
de “roubo”, não me escandalizarei – não historicidade é reintroduzida na conside-
se está sendo proudhoniano porque ao ração – de maneira historicamente dis-
usar tal ou tal palavra, desde que se dê tendida – da eficácia destrutiva (sempre
a ela o significado que hoje o capital lhe mais realizada) da produção capitalista
dá: isto é, um modo de acumulação di- das/sobre as subjetividades no trabalho.
retamente enervado em novas formas do A luta de classe não existiria mais. Esta
processo laboral e de sua socialização – parece ser a hipótese conclusiva de uma
tanto na dimensão individual, quanto em concepção que começou com a exclusão
sua figura associativa. Quando Marx diz da luta de classe – entendida marxiana-
que o capitalista se apropria do excedente mente – pela constituição do conceito de
de valor que a cooperação entre dois ou capital. Parece que a desmaterialização
mais trabalhadores produz, não nega de- do “comum”, assim conduzida tão labo-
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riosamente (e a definição exclusiva do ria da atividade, da instituição: isto não


“comum” como “ação”, como princípio se funda sobre o real, mas funda o real;
de atividade), implica de maneira corres- não o conquista mas (eles longamente
pondente a desmaterialização da “luta de argumentam enquanto o conceito vai pra
classe” – como se também a exasperada outro lugar) eventualmente o administra.
insistência sobre uma produção capitalis- Por que então lutar?
ta de subjetividade laboral, interiormente Além de cada uma das críticas, este
assujeitada pelo comando, implicasse a livro reabre o debate sobre o comum e
negação da subjetividade produtiva en- ninguém se surpreenderá que, dessa for-
quanto tal. ma, seja reaberto também o debate sobre
Mas sem subjetividade produtiva o comunismo.
não há nem sequer conceito de capital.
Assim se conclui que, diante da mutação
histórica da exploração (no livro, incom-
preendida), diante da definição do capital
sempre mais como “poder social” (no
livro, negada), diante da emergência tão
intensificada do “comum”, imposta à re-
alização de um novo modo de produção
(e se nota que esta emergência já deter-
minou novas formas de processo laboral)
– em face de tudo isto, se esquece que só
o “trabalho vivo” é produtivo. Que só a
subjetividade é resistente. Que somente a
cooperação é potente. Que o comum não
é, portanto, simplesmente “atividade”,
mas atividades produtivas de riqueza e de
vida – e transformadoras do trabalho. O
“comum” não é um ideal (pode também
sê-lo), mas é a forma mesma na qual a
luta de classe hoje se define.
Perguntamos a Dardot e Laval: se o
comum não é hoje um desejo plantado
pela crítica da atividade produtiva, e se
somente brilha diante de nossa consci-
ência atordoada ante a violenta penetra-
ção do biopoder, se é simplesmente um
“princípio” – que coisa então nos leva a
lutar? Dardot e Laval parecem responder
que o princípio do comum é uma catego-

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