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E uma grande sombra se espalhava sobre Ílion. Uma metrópole vazia, de prédios silenciosos
onde, por mais que buscasse, seu olhar não revelava nada além da escuridão. Outdoors sem
brilho, janelas sem o contraste da luz e das cortinas de neon, não havia a música alta, que era
tão costumeira nas ruas da maior cidade que já existiu, toda esta ausência só confirmava a
certeza de Idmon: ele estava sozinho. De súbito um ar frio dominou o ambiente levado por
uma neblina acinzentada, que não permitia ao jovem ver além de onde estava. E sentiu-se
tremer, sabia que não de frio, sabia que o medo o devorava. Um toque gelado em seu ombro e,
de soslaio, viu um olhar aterrador num rosto pálido, que também emoldurava uma boca cruel,
de lábios gélidos. A criatura aproximou-se de sua orelha e disse: “A verdade destruiria o mundo
a nossa volta”. E como um toque da morte, Idmon foi arremessado do grandioso edifício
Olimpus e sua queda, que deveria ter sido de segundos, prolongou-se por instantes que não
pôde saber ao certo ou descrever o horror que durante este tempo o tomou. E então uma voz
surgiu do nada, diferente da que lhe atirou à morte, uma voz ancestral, antiga como o tempo.
Sabia, sem entender como, que aquela voz já era velha quando Ílion era jovem e antes da
última guerra se abater sobre Gaia, ela já ressoava. “Liberte-os e a verdade o libertará”. E do
ar frio da noite surgiu uma imensa boca como que feita de pedra e o devorou antes que
alcançasse o chão.
Idmon acordou sobressaltado, atirando as cobertas para longe e buscando refúgio à
luz magnética que entrava pelas frestas de suas cortinas de neon escurecidas para que o
ambiente fosse mais propício ao seu descanso. O suor descia pelo rosto, frio. Estava ficando
preocupado com estes sonhos. Estas mesmas cenas passaram a se repetir durante todas as
noites e com mais e mais frequência nas últimas semanas. “Cada vez mais reais”, pensava
enquanto se dirigia à cozinha do seu apartamento em busca de uma bebida. Vasculhou todo
armário à procura de algo, até que esbarrou num pequeno frasco que mantinha
intencionalmente fora do alcance de seus olhos. Sorriu com amargura. “Justo o que eu
precisava: Antares”. Bem próximo do frasco da droga, uma garrafa de Winehouse 12 anos.
“Vai descer como um veneno”, atirou a pílula avermelhada na boca e fez com que fosse levada
a suas entranhas por uma dose generosa de álcool. Sua cabeça girou e ele riu por um instante
da possibilidade de que, nesta inconsciência, não teria mais sonhos. Adormeceu no chão da
cozinha, entre restos de um jantar pronto e embalagens vazias de leite.
***
***
A biblioteca de Ílion era uma infinidade de prédios e túneis nos subterrâneos da cidade
com diversas portas de acesso, cuja principal era a que se abria para a universidade. Escavadas
em suas paredes de pedra negra estavam diversas estantes repletas de livros de todas as
épocas e lugares, manuscritos e objetos que fizeram parte do passado de Ílion e alguns vindos
até de Gaia. Idmon descia cada degrau se perguntando por que não poderia fazer esta
pesquisa utilizando a neuronet, de onde seria bem mais fácil absorver tantos conceitos. Já
havia visto livros nas aulas de história, mas seu manuseio parecia tão obsoleto que o irritava.
No subsolo viu as grandes estantes forjadas na rocha lunar que se erguiam do chão até
o teto da grande sala oval, e assim o era em todo emaranhado de salas iguais, como um
labirinto de pedras escuras a se perder de vista. Tal mundo era diferente do seu e isso o
deixava com um embrulho na boca do estomago.
Idmon passou os olhos por todos os volumes. Pensou por um instante em como achar
um livro relativo à última Grande Guerra e então se dirigiu a um console na parede e digitou as
palavras: “última guerra + história”. Apareceram diversos títulos organizados em uma lista,
com indicações de localização e proximidade, espalhados por toda biblioteca. Focou no título
mais próximo e se dirigiu à sala onde se encontrava.
– “A Última Grande Guerra e a colonização de Ílion”, de Euríalo – repetiu para si
mesmo enquanto caminhava pelos corredores silenciosos, tentando não esquecer o que
buscava.
Tudo era muito idêntico ali, as salas ovais, as grandes estantes de pedra negra, os
corredores silenciosos. Porém, Idmon começou a perceber que estavam sendo diferenciadas
por antigos caracteres de numeração romana feitos em metal dourado e postos sobre as
portas em arco. Caminhou até sentir-se perdido, quando, em meio àquele universo de livros,
viu surgir uma mão brotando da parede, uma espécie de porta se abriu no espaço, desafiando
por completo as leis da física.
Idmon refugiou-se nas paredes de uma sala próxima de onde observou a mão se
tornar um braço e depois um indivíduo que saltou para a sala. Era um jovem muito magro e de
aparência severa, tinha no corpo as marcas claras das agruras do seu mundo. Seus olhos
assustados buscavam algo entre os livros. Parou por um momento e apanhou um volume,
guardou algo em seu interior meio às pressas e o recolocou na estante, aparentando que
jamais houvesse saído. Lançou um olhar de soslaio na direção em que Idmon se encontrava e
colocou a mão sobre o peito, num gesto de reverência. Respirou fundo e fez menção de se
aproximar. Então, Idmon presenciou uma cena nunca vista: o desconhecido foi atingido por
uma arma de choque e caiu numa violenta convulsão. Logo estava inconsciente.
Nesta hora surgiu um esquadrão de homens vestidos de uniformes brancos com duas
serpentes sobre um caduceu no ombro direito. Portavam armas de choque apontadas para o
homem caído e uma espada curta presa a cintura.
– As forças de paz! – murmurou Idmon, se escondendo de novo nas sombras.
O grupo de soldados avançou sobre o invasor como uma grande onda e logo ele estava
dominado. Um deles aproximou-se com uma estranha algema e a colocou na mão direita do
homem caído.
– Pronto, Sr. Hilas. O inibidor de habilidades já está ativado.
– Excelente! – sorriu o homem que chefiava os soldados. – Um teleportador é uma
ameaça sem proporções à paz de Ílion.
Hilas passou um lenço sobre a fronte. Observou o invasor caído e o chutou com força
no estômago para que despertasse. Ele se forçou a abrir os olhos, motivado pela dor. Vendo
que o estranho se encontrava desperto, o líder virou-se para seus soldados e disse:
– Deixem-me a sós com ele por alguns minutos... – sua voz soou baixa, porém não
menos firme.
Todos se afastaram, sem questionar.
– Então – disse, forçando sua mão, como uma garra, no pescoço do teleportador –, o
que veio fazer em Ílion? O que sua gente pretende o mandando aqui? Fale e serei
misericordioso...
O invasor silenciou por um instante, aparentando ponderar sobre o que ele havia dito.
Sua boca se movimentou como se desejasse que suas palavras saíssem e por fim cuspiu na
cara do soldado.
- Liberdade! – escapou um último brado no instante em que teve seu pescoço partido
por seu algoz.
Hilas ergueu-se, apanhou o lenço e limpou de seu rosto a saliva misturada a sangue
que escorria por seu rosto. Deixou o delicado lenço, agora imundo, cair sobre o cadáver num
ato de grande desprezo e chamou as Forças de Paz para recolherem o corpo.
- Livrem-se dele, sem vestígios – disse no mesmo tom de voz comedido, mas ainda
mais firme. – Não podemos permitir que saibam que os filhos de Gaia ainda existem. Pior, que
ainda se reproduzem, propagando as aberrações em sua genética.
As Forças de Paz se foram e Idmon, das sombras, passou a observar Hilas, se detendo
mais nos detalhes. Tinha um rosto lindo e de traços delicados, femininos. Seus olhos eram
grandes e vivos, brilhantes como os de uma serpente. Sua boca fina parecia sempre estar
retorcida num sorriso cruel por baixo da forte tintura labial vermelha que se destacava da
palidez de seu rosto marmóreo. Sob a aparente calma, estava perceptível sua perturbação.
Revirava com mãos inquietas a estante próxima ao lugar onde estivera o teleportador, mas
nada achou de incomum. Então, suspirou e se foi.
Idmon aguardou na penumbra até ter certeza de que não havia mais ninguém, que o
perigo se fora. Caminhou até o local onde vira o homem, a quem Hilas chamou de filho de
Gaia, retirar um livro. Começou uma busca entre os tomos, sufocando seu medo. Súbito um
pergaminho amarelado caiu de dentro de um dos livros e ele percebeu que era justo aquilo
que estava procurando.
- “A Argonaútica”, Apolónio de Rodes... – sussurrou, passando os dedos pela capa do
velho livro.
Folheou suas páginas. Tratava-se de um poema épico escrito muitas eras atrás, em
Gaia. Uma incerteza se aproximou de sua alma mais uma vez. Colocou rapidamente o livro
dentro da mochila e saiu da biblioteca, onde aparentemente nada havia acontecido.
***
“Sete virão
cavalgarão o vento leste
e colocarão fim ao reinado
da rainha do terror.
Cela 21 – Casa dos Esquecidos”
Que importância teria aquele papel? Qual seu significado para alguém se arriscar a vir
de Gaia até Ílion para entregar isso? Idmon não sabia responder, mas agora era prisioneiro do
segredo.
***
***
***
Medeia, sentada em silêncio na sala de comando das Forças de Paz, no topo do edifício
Olimpus, lembrava-se de como descobrira que a ruína logo se abateria sobre Ílion,
abandonada pelos homens e sem recursos para existir. As medidas tomadas refletiram seu
desespero: assassinara o grande Pélias e tomara seu lugar, enviando os Argonautas para a
morte certa. Sete haviam retornado e não mais do que sete. Jasão entregara o “Velociono de
Ouro”, mas ela temia pelo que ele sabia. Quem mais havia retornado com ele?
Meneou a cabeça para espantar tais devaneios.
Assumiu a forma de Hilas, a pele e os ossos caindo de seu corpo, num processo
doloroso de metamorfose. Olhou-se no espelho sobre a mesa. Era Hilas mais uma vez. Chamou
à sala um dos seus soldados de confiança.
– Há um corpo na cela 21 – disse, sem explicações.
O soldado fez uma saudação e partiu para se livrar de mais um pecado que Medeia
carregava.
Quando Medeia encontrou-se a sós, lembrou-se dos que haviam retornado com Jasão:
Acasto, o filho de Pélias, a quem ela matara; Pólux, sem seu irmão Castor; o elemental Calais; o
construtor Argos; o caçador Órion. E a única mulher entre eles, Atalanta. Todos ameaças à sua
utopia. Todos aprisionados. Ela sorriu pesarosa.
– A verdade – suspirou, triste. – De que vale a verdade, quando tudo que ela pode
trazer é a ruína, a destruição e a morte?
A pergunta pairou por um instante no que sobrou de sua alma.
E então, Medeia levantou-se, bateu a porta da sala e, no seu interior escurecido,
trancou suas dúvidas e certezas.
Friedrich Nietzsche