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OS ARGONAUTAS

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 Atenção: Deixe em laranja seus acréscimos ao texto.

Por Daniel Násser

E uma grande sombra se espalhava sobre Ílion. Uma metrópole vazia, de prédios silenciosos
onde, por mais que buscasse, seu olhar não revelava nada além da escuridão. Outdoors sem
brilho, janelas sem o contraste da luz e das cortinas de neon, não havia a música alta, que era
tão costumeira nas ruas da maior cidade que já existiu, toda esta ausência só confirmava a
certeza de Idmon: ele estava sozinho. De súbito um ar frio dominou o ambiente levado por
uma neblina acinzentada, que não permitia ao jovem ver além de onde estava. E sentiu-se
tremer, sabia que não de frio, sabia que o medo o devorava. Um toque gelado em seu ombro e,
de soslaio, viu um olhar aterrador num rosto pálido, que também emoldurava uma boca cruel,
de lábios gélidos. A criatura aproximou-se de sua orelha e disse: “A verdade destruiria o mundo
a nossa volta”. E como um toque da morte, Idmon foi arremessado do grandioso edifício
Olimpus e sua queda, que deveria ter sido de segundos, prolongou-se por instantes que não
pôde saber ao certo ou descrever o horror que durante este tempo o tomou. E então uma voz
surgiu do nada, diferente da que lhe atirou à morte, uma voz ancestral, antiga como o tempo.
Sabia, sem entender como, que aquela voz já era velha quando Ílion era jovem e antes da
última guerra se abater sobre Gaia, ela já ressoava. “Liberte-os e a verdade o libertará”. E do
ar frio da noite surgiu uma imensa boca como que feita de pedra e o devorou antes que
alcançasse o chão.
Idmon acordou sobressaltado, atirando as cobertas para longe e buscando refúgio à
luz magnética que entrava pelas frestas de suas cortinas de neon escurecidas para que o
ambiente fosse mais propício ao seu descanso. O suor descia pelo rosto, frio. Estava ficando
preocupado com estes sonhos. Estas mesmas cenas passaram a se repetir durante todas as
noites e com mais e mais frequência nas últimas semanas. “Cada vez mais reais”, pensava
enquanto se dirigia à cozinha do seu apartamento em busca de uma bebida. Vasculhou todo
armário à procura de algo, até que esbarrou num pequeno frasco que mantinha
intencionalmente fora do alcance de seus olhos. Sorriu com amargura. “Justo o que eu
precisava: Antares”. Bem próximo do frasco da droga, uma garrafa de Winehouse 12 anos.
“Vai descer como um veneno”, atirou a pílula avermelhada na boca e fez com que fosse levada
a suas entranhas por uma dose generosa de álcool. Sua cabeça girou e ele riu por um instante
da possibilidade de que, nesta inconsciência, não teria mais sonhos. Adormeceu no chão da
cozinha, entre restos de um jantar pronto e embalagens vazias de leite.

***

Um enorme prédio de mármore negro se erguia em meio às estruturas de Ílion, com


suas colunas e anjos de pedra a capturar a atenção dos que passavam, mesmo os que
frequentaram suas dependências. A universidade de Ílion era um templo do saber, para onde
corriam todas as mentes sedentas de conhecimento e de respostas.
– Mestre, podemos rever as origens de Ílion antes dos testes trimestrais?
Éson, o mestre, olhou de forma séria por cima das lentes amareladas de seus óculos,
tentando intimidar o jovem que se erguera do auditório para questionar.
– Acho que este tema já foi bastante debatido, Sr. Calais.
– Mas, mestre... – tentou prosseguir o jovem, quando foi interrompido de forma
brusca pelo velho Éson.
– Se o assunto é tão interessante para o senhor, ligarei neste instante os projetores
holográficos e o repassarei uma última vez.
Então o mestre caminhou até uma imensa tela transparente e uma luz surgiu,
revelando o cenário de um mundo devastado e sem nenhum vestígio de vida.
– Este é Gaia, o mundo estéril de onde viemos – a voz do mestre era grave e mantinha
os olhos atentos dos jovens espantados. – Chamavam-no Terra. Ílion não existia. Todo este
lugar em que estamos era só um satélite sem vida a orbitá-la, conhecido como lua. Os
humanos vieram colonizá-lo no ano de 2098, como mostra de seu poderio de dominação, sua
primeira conquista entre as estrelas. Então, ergueu-se esta monumental cidade no Polo Sul da
Lua, sob um enorme domo de proteção, e alguns de nossos predecessores foram trazidos para
habitá-la. Havia na Lua a capacidade para a vida. Uma enorme bacia de água congelada fora
descoberta neste Polo e nós florescemos como cidade, enquanto em Gaia os homens
guerreavam mais e mais. No ano de 2353 eclodiu a última Grande Guerra, que varreu toda e
qualquer vida daquele planeta. Ílion tentou impedir este desastroso conflito enviando forças
de paz, conhecidas como os Argonautas, mas eles se perderam no conflito e nunca mais foram
vistos. Morreram como heróis de nosso mundo. Hoje nós somos tudo que sobrou da outrora
grandiosa civilização humana. Nós, os filhos de Ílion, somos os detentores do legado da raça
humana, que outrora habitou um lindo planeta azul.
– Por isso ainda é preservado o calendário da Gaia nos nossos dias atuais?
– Exato – assentiu Éson, satisfeito. – O ano de 3812 que segue o calendário ocidental
da Terra.
A projeção de imagens cessou e todos começaram a tomar suas notas sobre o assunto,
menos um jovem que permanecia adormecido nas últimas poltronas do auditório.
– Senhor Idmon! – Éson bateu com o livreto de anotações sobre a mesa em que ele
cochilava. – Não revisarei este assunto, muito menos para um aprendiz tão relapso que só
dorme na aula.
Idmon o olhou num misto de confusão e vergonha, até que falou, numa voz
embargada pelo sono:
– Perdão, mestre. Não tenho dormido bem...
– Talvez, Sr. Idmon, se os meus discursos não forem tão estimulantes para o senhor,
deva descer à biblioteca e me trazer algumas páginas pesquisadas nos antigos tomos sobre a
colonização de Ílion e a última Grande Guerra. Relatório de dez laudas, escritas a mão, na
minha mesa até amanhã.
Idmon tentou esconder sua infelicidade, mas ela foi expressa em sua resposta.
– Sim, mestre.

***

A biblioteca de Ílion era uma infinidade de prédios e túneis nos subterrâneos da cidade
com diversas portas de acesso, cuja principal era a que se abria para a universidade. Escavadas
em suas paredes de pedra negra estavam diversas estantes repletas de livros de todas as
épocas e lugares, manuscritos e objetos que fizeram parte do passado de Ílion e alguns vindos
até de Gaia. Idmon descia cada degrau se perguntando por que não poderia fazer esta
pesquisa utilizando a neuronet, de onde seria bem mais fácil absorver tantos conceitos. Já
havia visto livros nas aulas de história, mas seu manuseio parecia tão obsoleto que o irritava.
No subsolo viu as grandes estantes forjadas na rocha lunar que se erguiam do chão até
o teto da grande sala oval, e assim o era em todo emaranhado de salas iguais, como um
labirinto de pedras escuras a se perder de vista. Tal mundo era diferente do seu e isso o
deixava com um embrulho na boca do estomago.
Idmon passou os olhos por todos os volumes. Pensou por um instante em como achar
um livro relativo à última Grande Guerra e então se dirigiu a um console na parede e digitou as
palavras: “última guerra + história”. Apareceram diversos títulos organizados em uma lista,
com indicações de localização e proximidade, espalhados por toda biblioteca. Focou no título
mais próximo e se dirigiu à sala onde se encontrava.
– “A Última Grande Guerra e a colonização de Ílion”, de Euríalo – repetiu para si
mesmo enquanto caminhava pelos corredores silenciosos, tentando não esquecer o que
buscava.
Tudo era muito idêntico ali, as salas ovais, as grandes estantes de pedra negra, os
corredores silenciosos. Porém, Idmon começou a perceber que estavam sendo diferenciadas
por antigos caracteres de numeração romana feitos em metal dourado e postos sobre as
portas em arco. Caminhou até sentir-se perdido, quando, em meio àquele universo de livros,
viu surgir uma mão brotando da parede, uma espécie de porta se abriu no espaço, desafiando
por completo as leis da física.
Idmon refugiou-se nas paredes de uma sala próxima de onde observou a mão se
tornar um braço e depois um indivíduo que saltou para a sala. Era um jovem muito magro e de
aparência severa, tinha no corpo as marcas claras das agruras do seu mundo. Seus olhos
assustados buscavam algo entre os livros. Parou por um momento e apanhou um volume,
guardou algo em seu interior meio às pressas e o recolocou na estante, aparentando que
jamais houvesse saído. Lançou um olhar de soslaio na direção em que Idmon se encontrava e
colocou a mão sobre o peito, num gesto de reverência. Respirou fundo e fez menção de se
aproximar. Então, Idmon presenciou uma cena nunca vista: o desconhecido foi atingido por
uma arma de choque e caiu numa violenta convulsão. Logo estava inconsciente.
Nesta hora surgiu um esquadrão de homens vestidos de uniformes brancos com duas
serpentes sobre um caduceu no ombro direito. Portavam armas de choque apontadas para o
homem caído e uma espada curta presa a cintura.
– As forças de paz! – murmurou Idmon, se escondendo de novo nas sombras.
O grupo de soldados avançou sobre o invasor como uma grande onda e logo ele estava
dominado. Um deles aproximou-se com uma estranha algema e a colocou na mão direita do
homem caído.
– Pronto, Sr. Hilas. O inibidor de habilidades já está ativado.
– Excelente! – sorriu o homem que chefiava os soldados. – Um teleportador é uma
ameaça sem proporções à paz de Ílion.
Hilas passou um lenço sobre a fronte. Observou o invasor caído e o chutou com força
no estômago para que despertasse. Ele se forçou a abrir os olhos, motivado pela dor. Vendo
que o estranho se encontrava desperto, o líder virou-se para seus soldados e disse:
– Deixem-me a sós com ele por alguns minutos... – sua voz soou baixa, porém não
menos firme.
Todos se afastaram, sem questionar.
– Então – disse, forçando sua mão, como uma garra, no pescoço do teleportador –, o
que veio fazer em Ílion? O que sua gente pretende o mandando aqui? Fale e serei
misericordioso...
O invasor silenciou por um instante, aparentando ponderar sobre o que ele havia dito.
Sua boca se movimentou como se desejasse que suas palavras saíssem e por fim cuspiu na
cara do soldado.
- Liberdade! – escapou um último brado no instante em que teve seu pescoço partido
por seu algoz.
Hilas ergueu-se, apanhou o lenço e limpou de seu rosto a saliva misturada a sangue
que escorria por seu rosto. Deixou o delicado lenço, agora imundo, cair sobre o cadáver num
ato de grande desprezo e chamou as Forças de Paz para recolherem o corpo.
- Livrem-se dele, sem vestígios – disse no mesmo tom de voz comedido, mas ainda
mais firme. – Não podemos permitir que saibam que os filhos de Gaia ainda existem. Pior, que
ainda se reproduzem, propagando as aberrações em sua genética.
As Forças de Paz se foram e Idmon, das sombras, passou a observar Hilas, se detendo
mais nos detalhes. Tinha um rosto lindo e de traços delicados, femininos. Seus olhos eram
grandes e vivos, brilhantes como os de uma serpente. Sua boca fina parecia sempre estar
retorcida num sorriso cruel por baixo da forte tintura labial vermelha que se destacava da
palidez de seu rosto marmóreo. Sob a aparente calma, estava perceptível sua perturbação.
Revirava com mãos inquietas a estante próxima ao lugar onde estivera o teleportador, mas
nada achou de incomum. Então, suspirou e se foi.
Idmon aguardou na penumbra até ter certeza de que não havia mais ninguém, que o
perigo se fora. Caminhou até o local onde vira o homem, a quem Hilas chamou de filho de
Gaia, retirar um livro. Começou uma busca entre os tomos, sufocando seu medo. Súbito um
pergaminho amarelado caiu de dentro de um dos livros e ele percebeu que era justo aquilo
que estava procurando.
- “A Argonaútica”, Apolónio de Rodes... – sussurrou, passando os dedos pela capa do
velho livro.
Folheou suas páginas. Tratava-se de um poema épico escrito muitas eras atrás, em
Gaia. Uma incerteza se aproximou de sua alma mais uma vez. Colocou rapidamente o livro
dentro da mochila e saiu da biblioteca, onde aparentemente nada havia acontecido.

***

Idmon jamais conhecera a morte.


Na perfeita sociedade de Ílion, quando um cidadão era acometido de alguma moléstia
do corpo ou pelo avançar inclemente dos anos, era realizado um ritual de purificação do
espírito onde um sacerdote o absolvia de seus erros em vida, seu corpo era lavado em águas
das Fossas de Io e depois criogenicamente congelado. Assim não haveria morte, este
inominável pavor que espreita a alma dos seres humanos desde sempre.
Idmon segurou forte o livro que trouxera da biblioteca de Ílion e procurou um canto
reservado, onde pudesse examiná-lo de forma a passar despercebido a outros. Aquele volume
da Argonáutica de páginas roídas nos cantos, outras desgastadas para serem lidas, e dentro o
pergaminho amarelado deixado pelo teleportador.
O primeiro impulso de Idmon foi o de se dirigir às Forças de Paz e contar o que
descobrira, mas desta forma eles saberiam que ele testemunhara a cena e teria, com certeza,
o mesmo fim do invasor. Então ocorreu que o mais lógico seria queimar o papel e devolver o
livro ao local de origem.
Neste instante um pensamento o intrigou: quem seria aquele homem? Hilas o
chamara de filho de Gaia... ainda haveriam habitantes nas distantes terras inóspitas? E o que
seria tão importante a ponto de alguém arriscar uma travessia de Gaia até Ílion? Muitos
mistérios, o jovem não se conteve e, num ímpeto, compactuou do que havia ali.

“Sete virão
cavalgarão o vento leste
e colocarão fim ao reinado
da rainha do terror.
Cela 21 – Casa dos Esquecidos”

Que importância teria aquele papel? Qual seu significado para alguém se arriscar a vir
de Gaia até Ílion para entregar isso? Idmon não sabia responder, mas agora era prisioneiro do
segredo.

***

Idmon, em meio a tudo que vivenciara na biblioteca, não se recordou de escrever


sobre a última Grande Guerra e a colonização de Ílion, então, mesmo se arriscando a ser
descoberto, consultou a neuronet e apanhou as informações que deixaria sobre a mesa do
mestre Éson. Dirigiu-se à Casa dos Esquecidos. Era lá onde os cidadãos de Ílion sem vínculos
familiares, portadores de algum distúrbio mental ou envenenados por qualquer tipo de
substância que pudesse causar dependência, eram recolhidos e nunca mais vistos. Era a única
chaga na sociedade perfeita sob a grande cúpula que revelava as distantes estrelas.
– Como entrar ai? – murmurou para si mesmo, esperando que as palavras clareassem
a mente. Observou os grandes portões brancos, cerrados. Eles não se abriam, a menos que
houvesse mais um exilado do sistema para ser recebido em suas dependências.
Sorriu amargamente. Não seria ele mesmo um destes cidadãos esquecidos? Apanhou
no bolso algumas pílulas de antares e as atirou na boca, mastigando-as com a violência da sua
frustração. Sentiu as pernas tremerem e logo se viu atirado ao chão, numa violenta convulsão.
Tudo mais ficou perdido.
Acordou já numa cela de confinamento, onde tentou se recompor. Agora precisava
achar a cela 21. Passaram-se algumas horas antes que as irmãs de caridade viessem até sua
cela aplicar os desintoxicantes, que, apesar das boas intenções das religiosas, eram bem mais
nocivos do que qualquer droga. As irmãs de caridade eram uma organização de fundo
pseudorreligioso, que buscavam fazer boas ações para remissão de alguns erros cometidos em
sociedade. O adultério era o mais comum. Qualquer mulher que aceitasse esse fardo deixava
no mundo fora destas paredes seu nome e passado. A irmã, uma senhora de meia idade e
aparência gentil, cumprimentou Idmon, que retribuiu com um sorriso amigável, aparentando
ser inofensivo.
– Coitadinho – disse a irmã, passando uma lã com álcool em seu braço. – Ainda está
sob efeito do antares...
Introduziu a agulha direto na veia de Idmon e aplicou o líquido devagar. Neste
instante, ele se viu sem saída. Se não deixasse a cela agora, talvez nunca mais saísse. Apanhou
um penico ao lado da cama e nocauteou a irmã, deixando-a estendida no chão, enquanto saía
pela porta semiaberta, antes que a droga aplicada fizesse o efeito esperado.
Sob a porta de sua cela havia o número 123 escrito a giz, como que para marcar algo
que não tivesse importância. Observou, enquanto caminhava pelos corredores escuros, as
numerações que surgiam e iam mudando em ordem decrescente, até que, num cômodo
escondido num canto sombrio, viu acima da porta o número “21”.
Apanhou a chave que roubara da irmã de caridade e destrancou a porta. O lugar era
muito mais escuro do que a cela em que estivera e tinha um cheiro pútrido no ar frio, como
uma cova aberta depois de muitos anos.
– Esperava você.
Idmon virou-se célere em todas as direções, mas nada conseguiu distinguir das
sombras, menos ainda de onde viera a tal voz.
– A verdade não deve permanecer oculta – a voz continuou, profunda e antiga como a
de seus sonhos. – A verdade será libertadora para todos, no fim de tudo.
Idmon forçou seus olhos, agora já acostumados à penumbra e vislumbrou uma figura
esquelética sentada ao canto da parede. Suas vestes, muito puídas, pareciam ser de outra
época, de outro mundo. Trazia uma pulseira inibidora, como a que vira Hilas colocar no braço
do teleportador.
– Com o tempo, nem estas algemas podem conter a evolução... – disse, num sorriso
triste.
Atrás da criatura, agora podia ver, havia rabiscos por toda parede, feitos com fezes, o
que explicava a podridão do lugar. Seu rosto impressionava, aparentava ser esculpido em
pedra e onde deveria haver olhos, nada havia além de negras órbitas vazias.
– Quem...
– Quem sou eu? – interrompeu ela. – Sou Cassandra, aquela que chama nos seus
sonhos. Não reconhece minha voz?
O rapaz meneou a cabeça de forma afirmativa.
– A questão que deveria realmente ser de alguma valia seria: por quê? Por que lhe
chamei aqui? Por que você?
A criatura, que um dia parecia ter sido humana, riu e sua risada feriu o silêncio estéril
da cela fria.
– A verdade o trouxe até mim – continuou ela. – Você será a testemunha dela no
mundo lá fora. Você, Idmon, que também tem a visão.
– Visão... – Idmon tateou o bolso, nervoso, e apanhou uma drágea vermelha.
– Antares – ela disse, fazendo-o soltar no chão a droga. – Ela bloqueia a nossa
evolução, como espécie. Abafa os dons que a natureza nos proporciona e nos torna estéreis. É
assim que o sistema nos controla. Mas seu dom é tão forte que ultrapassa este controle. Você
vê mais do que os outros, enxerga a falsa utopia que se ergue lá fora e se questiona. Mas,
saiba... a verdade tem um alto preço.
Idmon a observou neste instante. Seu rosto parecia muito cansado e triste, como se
temesse o que iria ouvir.
– Está disposto a pagar? – continuou por fim.
– Sim... – a palavra fugiu de seus lábios.

***

Cassandra tremeu e as palavras brotaram de sua boca como que provindas de


profundas cavernas esquecidas.
– Há muitas eras, no mundo hoje abandonado de Gaia, outrora chamada Terra, o
homem havia se tornado um ser muito sedento de poder e sua ambição o levou a cobiçar as
estrelas. Ele construiu Ílion como a primeira fortificação no espaço e a povoou de cientistas,
que puderam estudar daqui outros pontos promissores neste sistema para a criação de novas
metrópoles fora da Terra. A verdade é que eles sabiam que, da forma como vinham abusando
de seus recursos naturais, seu planeta estava aos poucos se exaurindo. Precisavam de outras
opções. Acho que se passara quase um século inteiro e então surgiu algo que poderia salvar o
mundo deles. Através de muito estudo, e diversas falhas, os homens conseguiram simular o
coração de uma estrela e esta passou a ser a fonte de energia que sustentava todas as cidades
do planeta. Chamaram-na “Velocino de Ouro”, fazendo alusão a uma de suas lendas. E então
mais uma era se passou. A Terra começou a prosperar e Ílion a entrar em decadência, pois não
se via mais a necessidade de colonização de outros mundos, este era um pensamento quase
imperialista, que remetia aos dias sombrios de Gaia. Nesta época, já se haviam começado a
testar coquetéis de drogas, conhecidas como Ambrosia, em alguns soldados de Ílion. Estas
drogas lhes davam habilidades específicas para a guerra.
– Como entrar nos sonhos de outros... – Idmon murmurou sem perceber.
Cassandra meneou a cabeça.
– Sim, eu sou um destes experimentos, conhecidos como Projeto Olimpo. Porém não
era a única. Haviam homens com força ampliada, outros capazes de voar, outros de viver nas
grandes profundezas das águas. Muitas habilidades especiais diferentes para estes soldados.
No entanto, como a guerra não viria, eles seriam descartados, como tudo mais. Foi traçado um
plano, então, para que Ílion não sucumbisse ante a ignorância dos humanos. O general Pélias,
grande líder dos exércitos de Ílion, recrutou um grupo de soldados com diversas habilidades e
os enviou a Terra para roubar algo...
Cassandra tossiu e um pouco de sangue veio a seus lábios.
– O “Velocino de Ouro” – continuou ela. – Ele manteria Ílion em todo seu esplendor
para sempre. O grupo teve êxito em sua empreitada e a Terra ruiu sem a sua principal fonte de
energia, até se tornar um lugar difícil de sobreviver...
A criatura fez uma longa pausa, encarando o nada com a órbita vazia de seus olhos.
– Dos cinquenta soldados que partiram para esta jornada, apenas sete retornaram –
continuou ela, a voz triste. – Aprisionados para que a verdade se perdesse com eles...
Idmon ficou estático.
– A verdade, meu jovem... – ela suspirou. – Nunca houve uma guerra. Fomos nós que
destruímos Gaia ao roubar o “Velociono de Ouro”. As pessoas lá embaixo, abandonadas à
própria sorte, forçaram uma evolução acelerada e desenvolveram habilidades para
sobreviver...
– O teleportador... – murmurou de novo, quase sem sentir.
– Sim, eu o chamei em sonhos, assim como chamei você. Ele precisava acreditar que
ainda havia algo pelo que lutar, algo que o fizesse manter a esperança. Mas não desejava que
tivesse seu fim em tais mãos. Oh, pobre Autólico...
Cassandra pareceu pesarosa, mas meneou a cabeça para continuar.
– “O Velocino de Ouro” precisa voltar a Terra. Ele pode salvá-los, modificando o estado
em que o planeta se encontra, de forma radical. Ele deve ser levado de volta a Gaia pelos
Argonautas sobreviventes, eles devem expiar este pecado de uma vez por todas. Estão presos
há tanto tempo, já pagaram por seus erros e agora devem repará-lo. Você veio até aqui para
libertá-los. Estão aprisionados em campos de êxtase nas sete primeiras celas deste lugar
amaldiçoado.
– Se você conhece a verdade, por que ainda vive?
– Porque ela precisa de mim para aliviar seu fardo.
– Quem?
– A rainha das mentiras.
Neste instante um projétil atravessou a perna esquerda de Idmon, que tombou com
todo o peso para o lado e com um urro de dor buscou refúgio próximo a uma das paredes da
cela, ainda vestida de escuridão.
– Eu – a voz de Hilas estava gravada na lembrança de Idmon, sabia que era ele, mesmo
antes de entrar nas sombras daquela prisão. – Garoto, sabia que você me deu muito trabalho
rastrear?
Hilas riu.
Cassandra se manteve paralisada, onde estava.
– Pare de atraí-los, velha bruxa – disse Hilas, olhando a criatura envolta em sombras. –
Não acha que já tem esqueletos demais na sua alma? Se não fosse você minha irmã, estaria
morta como aqueles que ficaram para trás. Estou ligada a você de forma que o destino me
fulminaria se a matasse. Maldito seja o sangue que me prende a você.
– A verdade precisa...
– A verdade! – interrompeu-a Hilas. – A verdade, sempre a verdade! A verdade é uma
questão de perspectiva.
A forma de Hilas foi se desfazendo. A pele caiu ao chão e os ossos estalaram em seu
corpo, causando algum desconforto, isso era visível pelo seu rosto. Idmon virou-se, buscando o
olhar de Cassandra, ela encarava o chão, de alguma maneira ele sabia que a vidente já havia
vivido aquela cena muitas vezes. Quando Idmon olhou de novo em direção a Hilas ele não mais
existia. Revelou-se em seu lugar uma mulher de olhos cruéis e cabelos negros, emoldurando
um rosto amarelado. Por um instante ele ficou confuso. Entretanto os olhos traíram a criatura.
– Não concorda comigo, jovem Idmon? – a mulher o fitou e ele sentiu um frio
percorrer seu corpo. – A verdade destruiria o mundo à nossa volta, como um castelo de cartas
sopradas pelo vento. Não posso permitir.
– Você já a manteve nas sombras por muito tempo, Medeia...
– Cale-se, bruxa. Você está morta e não deve opinar nos assuntos dos vivos.
Seus olhos cintilaram de uma perversidade antiga ao encontrar os do jovem.
– Quanto a você...
Idmon retesou-se em seu canto, paralisado ao vê-la apontar a arma em sua direção.
- Meu jovem e tolo rapaz. – sorriu Medeia – A verdade o libertará... Ou não!
Uma bala atravessou o espaço entre os olhos de Idmon e seu corpo ficou ali mesmo,
estendido na cela pútrida de uma vidente cega. Medeia observou a cena por um instante e
partiu, sem nada dizer. Cassandra velou o corpo em silêncio, imaginando quantas vezes falhara
e quantos corpos velara, mesmo os dos que não haviam chegado até ali. Ficou infeliz ao pensar
em quando nasceria um outro que tivesse o dom.

***
Medeia, sentada em silêncio na sala de comando das Forças de Paz, no topo do edifício
Olimpus, lembrava-se de como descobrira que a ruína logo se abateria sobre Ílion,
abandonada pelos homens e sem recursos para existir. As medidas tomadas refletiram seu
desespero: assassinara o grande Pélias e tomara seu lugar, enviando os Argonautas para a
morte certa. Sete haviam retornado e não mais do que sete. Jasão entregara o “Velociono de
Ouro”, mas ela temia pelo que ele sabia. Quem mais havia retornado com ele?
Meneou a cabeça para espantar tais devaneios.
Assumiu a forma de Hilas, a pele e os ossos caindo de seu corpo, num processo
doloroso de metamorfose. Olhou-se no espelho sobre a mesa. Era Hilas mais uma vez. Chamou
à sala um dos seus soldados de confiança.
– Há um corpo na cela 21 – disse, sem explicações.
O soldado fez uma saudação e partiu para se livrar de mais um pecado que Medeia
carregava.
Quando Medeia encontrou-se a sós, lembrou-se dos que haviam retornado com Jasão:
Acasto, o filho de Pélias, a quem ela matara; Pólux, sem seu irmão Castor; o elemental Calais; o
construtor Argos; o caçador Órion. E a única mulher entre eles, Atalanta. Todos ameaças à sua
utopia. Todos aprisionados. Ela sorriu pesarosa.
– A verdade – suspirou, triste. – De que vale a verdade, quando tudo que ela pode
trazer é a ruína, a destruição e a morte?
A pergunta pairou por um instante no que sobrou de sua alma.
E então, Medeia levantou-se, bateu a porta da sala e, no seu interior escurecido,
trancou suas dúvidas e certezas.

“As verdades são ilusões que esquecemos serem ilusões”

Friedrich Nietzsche

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