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A FALA DAS IMAGENS

I. ENQUADRAMENTO e DISTÂNCIA SOCIAL

Na sua obra “Reading images” – the grammar of visual design” (Routlegde, 1996),
Gunther KRESS e Theo VAN LEEUWEN referem os diferentes enquadramentos
possíveis de uma imagem, da inevitável decisão que há que tomar relativamente a
esse elemento do design visual e da ligação desse aspecto sintático-semântico da
imagem às distâncias sociais que ela impõe.

A escolha mais geral a fazer é entre:

- CLOSE-UP
- MÉDIA DISTÂNCIA
- LONGA DISTÂNCIA

A questão aplica-se tanto à figuração de pessoas como de objetos (embora para


estes o vocabulário não tenha sido desenvolvido de um modo tão sistemático como
para os corpos humanos)

A escolha da distância sugere diferentes relações entre os “participantes”


(personagens representados) e os leitores.

“Nos manuais sobre filme e produção televisiva, o enquadramento é


invariavelmente definido em relação ao corpo humano. Embora a distância seja,
rigorosamente falando, um continuum, a ‘linguagem do cinema e da televisão´ impôs
um conjunto de pontos de corte nesse continuum, do mesmo modo que as
linguagens impõem pontos de corte no continuum das vocalizações que
produzimos.” (ob.cit., p.130)

Assim,
- a distância curta (ou close-up): mostra a cabeça e os ombros do indivíduo e a
distância muito próxima (big close-up’) nada mais do que isso;
- a distância média próxima (‘medium close shot’) corta o sujeito
aproximadamente pelo peito;
- a distância média (‘medium shot’) aproximadamente pelos joelhos;
- a distância média longa (‘medium long shot’) mostra toda a figura;
- na longa distância, a figura humana ocupa cerca de metade da altura da
moldura;
- a muito longa distância (‘very long shot’) é algo ainda mais acentuado que
isso.

“São possíveis variações estilísticas, mas são sempre vistas e referidas nos termos
deste sistema, como quando os produtores de cinema e televisão falam em ‘tight
close shots’ ou em ‘tight framing’ (enquadramentos apertados), ou sobre a
quantidade de ‘headroom’ numa imagem (i.e. o espaço entre o cimo da cabeça e a
linha superior da moldura).” (ob.cit., p.130)

Os autores implicam, na sua reflexão sobre enquadramentos e planos alguns


conhecimentos provenientes da proxémica (Edward T. Hall), interpretando o sentido
comunicacional destes elementos da linguagem, nomeadamente dos significados
produzidos pela distância criada, na imagem, entre os interlocutores. No sistema de
Hall:
- a distância pessoal próxima é uma distância que permite que ‘agarremos ou
toquemos’ (própria da relação íntima);
- a distância longínqua pessoal (far personal distance) é a distância que coloca os
interlocutores no espaço do “imediatamente após o toque fácil” – mais ou
menos a distância em que duas pessoas conseguem tocar-se com os dedos se
esticarem os braços (a distância a que assuntos de interesse e envolvimento
pessoais são tratados);
- a distância social próxima (close social distance) começa exactamente depois
desta linha de fronteira (espaço do ‘negócio’);
- a distância social longínqua (far social distance) é a distância a que as pessoas
se colocam quando lhes é dito: “põe-te aí de modo a que possa ver-te” (as
interações de negócio e sociais efetivadas a esta distância têm um carácter mais
formal e impessoal que na fase ‘close’);
- a distância pública (public distance), finalmente, é mais do que isso, a distância
entre pessoas que são e devem permanecer estranhas uma à outra.

“Estes estudos aplicam-se, obviamente, adentro de uma cultura particular e Hall cita
muitos exemplos de desentendimentos que podem emergir de diferenças
interculturais nesta interpretação da distância.” (ob.cit., p.131)
A estas distâncias correspondem diferentes campos de visão:
- Distância íntima: só vemos a face e a cabeça;
- Distância pessoal longínqua: vemos do tronco para cima
- Distância social próxima: vemos toda a pessoa
- Distância social longínqua: vemos toda a pessoa com o espaço em volta
- Distância pública: vemos o tronco de pelo menos 4 ou 5 pessoas

“É evidente que estes campos de visão correspondem …. às definições tradicionais


do enquadramento em cinema e televisão, por outras palavras, que o sistema visual
de enquadramentos (size of frame) deriva da proxémica, como Hall lhe chama, da
interacção diária.
Hall está consciente disto e de facto ressente a influência do trabalho de Grosser, um
pintor retratista, e das suas ideias. De acordo com Grosser (cit. In Hall, 1966: 71-2)1,
a uma distância de mais de treze pés, as pessoas são vistas como tendo pouca
conexão connosco e, consequentemente, ‘o pintor pode olhar para o seu modelo
como se ele fosse uma árvore na paisagem ou uma maçã numa natureza morta.´
Quatro a oito pés, por outro lado, é a distância do retrato:
‘o pintor está suficientemente próximo para que os seus olhos não tenham
problemas em compreender as formas sólidas do modelo, no entanto está
suficientemente longe para que a redução das dimensões da figura no desenho
não apresente problemas. Aqui, à distância normal da intimidade social e da
conversação fácil, a alma do modelo começa a aparecer... Mais perto que três
pés, a uma distância de toque, a alma está demasiado em evidência para
qualquer tipo de observação desinteressada.’” (K. & v.L., ob.cit., p.131)

“Tal como a imagem interpelativa (demand picture), o close-up veio da Renascença.


Ringbom (1965) argumenta que ele teve as suas origens nas imagens de devoção,
onde servia para fornecer a proximidade tão querida ao devoto.” (ob.cit., p.131)
Na pintura italiana e flamenga do início do séc.XVI adquiriu uma função ‘dramática’,
permitindo ‘a subtileza das relações emocionais com um mínimo de cenário
dramático.” (idem, p.131)

“As pessoas que vemos nas imagens são na sua maioria estranhos. É verdade que
vemos alguns deles (políticos, estrelas de televisão e cinema, heróis desportivos,
etc.) bastante mais que outros, mas este tipo de familiaridade não determina por si
se eles devem ser mostrados em enquadramento aproximado, ou médio ou longo.
A relação entre os participantes humanos representados nas imagens e o
observador é …. uma relação imaginária. As pessoas são retratadas como se fossem
amigos, ou como se fossem estranhos. As imagens permitem-nos aproximarmo-nos
imaginariamente das figuras públicas como se fossem vizinhos ou amigos ou que
olhemos para pessoas semelhantes a nós como estranhos, como outros.” (ob.cit.,
p.131-132)

Num compêndio de estudos sociais do ensino primário do qual os autores recolhem


vários exemplos, três rapazes aborígenes são mostrados numa distância longa,
ocupando apenas cerca de ¼ do espaço do formato ‘retrato’.
A legenda diz: ‘These people live in Redfern, a suburb of Sydney’.
São mostrados impessoalmente, como estranhos com os quais não precisamos de
estabelecer relação, como ‘árvores na paisagem’. Embora olhem para o leitor,

1
HALL; E. – The Hidden Dimension. New York: Doubleday, 1964.
fazem-no a uma distância que dificilmente nos afeta. De facto, são tão pequenos que
dificilmente distinguimos as suas feições. A sua alma ainda não começa a aparecer,
para citar as palavras de Grosser. A legenda, significativamente, não lhes dá nome2;
na verdade, onde rapazes mais “amigáveis” podiam ter sido representados, foram
preferidas personagens mais “formais”.

“Os padrões de distância podem tornar-se convencionais nos géneros visuais:


nos programas de televisão correntes, as ‘vozes’ de diferentes estatutos são
habitualmente enquadradas de modos diferentes: a câmara move-se para grandes
close-ups de sujeitos que estão revelando os seus sentimentos, enquanto que o set-
up para o perito é usualmente o mesmo do entrevistado – o enquadramento pelo
tronco. Ambos os modos de ‘estatutos de participantes’ tendem a ser nomeados (os
seus nomes aparecem no ecrã em legendas sobrepostas) e vêem-se as suas
contribuições enquadradas e sintetizadas.” (Brunsdon and Morley, 1978: 65).

“Por outras palavras, a distância é usada para significar respeito pelas autoridades de
vários modos, na televisão como nas interações diretas e pessoais.” (p.132-133)

O sistema da distância social também se aplica à representação de objetos:


“Como o tamanho do enquadramento é tradicionalmente definido nos termos de
secções específicas do corpo humano, os estudantes principiantes do cinema e da
televisão vêem-se normalmente um pouco perdidos quando têm de descrever
captações de imagens de objetos e paisagens. A escala de 7 tamanhos de
enquadramento é demasiado miúda. Não há cortes equivalentes para os ombros,
peito, joelhos. E os objetos apresentam-se com tamanhos e formas muito diferentes.
Apesar de tudo, sugeriríamos que pelo menos 3 distâncias significativas podem ser
distinguidas, e que há correspondências entre estas distâncias e a nossa experiência
quotidiana dos objetos e dos ambientes, por outras palavras, que o tamanho do
enquadramento pode também sugerir relações sociais entre o leitor e os objetos,
edifícios (construções) e contexto.” (p.133-34)
- Distância próxima: o leitor fica envolvido com o objeto – como se estivesse a
usar a máquina, a ler o livro ou o mapa, a preparar ou a comer o alimento. A
menos que o objeto seja muito pequeno, é apenas mostrada uma parte dele,
e usualmente a imagem inclui uma mão do utilizador, ou um instrumento,
por exemplo uma faca barrando a margarina num anúncio. Os cutways
televisivos e fílmicos (‘overshoulders’) de objetos, nos quais os objetos
mostrados são integrados numa ação através do editing, usam esta distância.

2
Note-se como, neste caso, a legenda reforça, não propriamente o conteúdo da representação, mas a
sua forma (no caso, o enquadramento assumido... distante). Isto é curioso: quando por vezes
consideramos que as legendas não traduzem a figura, podemos estar a cometer um erro, ao tomar
apenas as figuras do ponto de vista do conteúdo... De facto, a legenda pode estar a comentar (no
sentido do reforço ou noutro) a forma e o que ela também diz.
- Distância média: o objeto é mostrado na sua totalidade, mas sem espaço à
sua volta. É representado ao alcance do leitor, mas não apto a ser usado. Este
tipo de imagem é comum em publicidade: o produto anunciado é mostrado
na sua totalidade, mas de um ponto bastante próximo e de um ângulo alto,
como se o leitor estivesse de pé mesmo em frente da mesa na qual ele está
colocado.
- Distância longa: há uma barreira invisível entre o leitor e o objeto. O objeto
está lá para contemplação apenas, fora de alcance, como se apresentado
numa loja ou numa exibição de museu. Isto pode encontrar-se em textos de
ciência e também, por vezes, em anúncios de itens luxuosos, como perfumes
e carros caros.” (p.134)

“Deve lembrar-se que os anúncios impressos são frequentemente fotografias de


composição e portanto podem não ter molduras em torno dos objetos que
representam. Nesses casos o nosso sentido de distância pode ser deduzido de outros
fatores, tal como quantidade de detalhes que conseguimos destrinçar ou o nosso
ângulo de visão.” (p.134)

Edifícios e Paisagens:
Exemplo: um edifício à distância de alguém estar entrando nele, caso em que não
vemos a totalidade do edifício: frequente em sequências fílmicas em que o filme se
relaciona com qualquer ação.

Seguem-se, no texto que vimos utilizando, os paralelismos disto tudo com a


linguagem verbal:
Refere-se:
a “linguagem entre pessoas íntimas”: frequentemente têm nomes especiais para se
tratarem mutuamente e a linguagem é articulada minimalmente: basta meia-palavra
para os interlocutores se entenderem; expressões faciais, contacto visual, entoação,
qualidade vocal, etc., transportam a maior parte do sentido...;
A “linguagem pessoal”: dose significativa de coloquialismo e calão; a expressão
facial ainda transporta muito do significado, mas as meias-palavras já não são
suficientes;
Na “linguagem social”: a linguagem precisa de ser mais articulada, mais explícita
verbalmente, de tal modo que as expressões não-verbais já não são tão importantes
como no estilo íntimo e pessoal.
Na “linguagem pública”, finalmente, a linguagem torna-se monolítica: os ouvintes já
não participam como nos outros estilos de discurso. O discurso já não é improvisado,
mas pensado de antemão, mesmo total ou parcialmente redigido. A entoação e
outras formas de expressão não-verbal tornam-se mais formais, sujeitas a controlo,
tal como a sintaxe e a utilização de vocabulário. O discurso tem de ser totalmente
explícito e totalmente articulado verbalmente. Os coloquialismos são arredados.
[“Os escritores podem obviamente usar estes estilos para se nos dirigirem como
amigos ou mesmo íntimos, mesmo quando o não são, tal como as imagens nos dão
close-ups de pessoas que, na realidade, são e manter-se-ão estranhos para nós –
pensemos na informalidade coloquial com que somos interpelados em tantos
anúncios.” p. 135]

II. PERSPETIVA e IMAGEM SUBJETIVA

A perspetiva é um dos mais curiosos elementos da grafia visual e um dos que mais
contribuem para o estabelecimento de uma determinada relação entre a
representação e os leitores.

“O sistema da perspetiva que realiza a ‘atitude’ foi desenvolvido no Renascimento,


um período no qual a individualidade e a subjetividade se tornaram valores sociais
importantes, e desenvolveu-se precisamente para permitir às imagens serem
informadas por pontos de vista subjetivos. Paradoxalmente, enquanto estes eram os
significados codificados, a perspetiva permaneceu fundada num registo impessoal,
geométrico, tratando-se de uma construção que era quase um modo ‘mecânico’ de
registar imagens da realidade. Os pontos de vista socialmente determinados podiam,
deste modo, ser naturalizados, e apresentados como ‘estudos da natureza’, cópias
fiéis da realidade empírica.[…]
Só recentemente foi de novo possível perceber que a perspetiva é também uma
abstração audaciosa (Hauser, 1962: 69) e passar a discutir os seus efeitos
semióticos, por exemplo na teoria fílmica (ex: Comolli, 1971).” (p.135-36)

“As formas pré-renascentistas, frescos na parede da nave de uma igreja, por


exemplo, ou mosaicos...., não tinham perspetiva para a posição do leitor. Os leitores
de tais trabalhos eram posicionados, não pela estrutura interna do trabalho, mas
pela estrutura do contexto, simultaneamente o contexto imediato da igreja, a sua
proximidade do altar, por exemplo, e as circunstâncias sociais mais alargadas. Por
outras palavras, a sintaxe do objeto dependia, para se completar, para se terminar,
não de uma relação particular com o leitor, mas de uma relação particular com os
seus arredores, e o ponto de vista era a posição que efetivamente [fisicamente] o
leitor tomava em relação à imagem: ‘O mundo da imagem era experienciado como
uma continuação direta do espaço próprio do observador’ (Arnheim, 1974: 274).3
Como resultado, o leitor tinha uma certa liberdade em relação ao objeto, um certo
grau daquilo que hoje chamaríamos um ‘uso interativo’ do texto, embora no
contexto de uma ordem social altamente constrangedora.

3
ARNHEIM, Rudolf – Art and Visual Perception. Berkeley and Los Angeles: University of California
Press, 1974.
A partir do Renascimento, a composição visual tornou-se dominada pelo sistema da
perspetiva, com o seu ponto de vista único, centralizado. O trabalho tornou-se um
objeto autónomo, destacado dos seus arredores, movível, produzido para um
mercado impessoal, mais do que para localizações específicas. Uma moldura
começou a separar o mundo representado do espaço físico no qual a imagem era
vista: no tempo em que a perspetiva foi desenvolvida, as imagens começaram a ser
emolduradas precisamente para criar esta divisão, a separação da imagem do seu
ambiente, e torná-la uma espécie de ‘janela para o mundo’. Ao mesmo tempo, as
imagens tornaram-se mais dependentes do leitor para o seu completamento, o seu
fechamento, e os leitores tornaram-se mais distanciados da ordem social concreta
em que o mundo tinha sido precedentemente organizado: tinham agora de
aprender a internalizar a ordem social. Isto conferia maior liberdade em relação ao
contexto social imediato, concreto, mas diminuía a liberdade relativamente ao
trabalho, à obra.” (p.136)

“Há assim, desde o Renascimento, dois tipos de imagens nas culturas ocidentais: as
imagens subjetivas e as imagens objetivas, as imagens com perspetiva central (e
portanto com um ponto de vista construído internamente) e as imagens sem
perspetiva central (e portanto sem um ponto de vista construído internamente).
Nas imagens subjetivas o leitor pode ver aquilo que há para ver apenas de um ponto
de vista particular.
Nas imagens objetivas, a imagem revela algo que há para conhecer (ou que a
imagem produz supondo que é isso que há para conhecer) acerca dos participantes
representados, mesmo se, para fazer isso, é necessário violar as leis da
representação naturalista, ou mesmo, as leis da natureza.
A história da arte tem muitos exemplos notórios disto, por exemplo nas esculturas
de touros e leões alados que flanqueiam as portas dos templos assírios: de lado,
estes têm quatro pernas moventes, e de frente duas pernas estáticas, cinco ao todo,
de modo a promover, de qualquer das vistas, uma imagem em que nenhuma parte
essencial falte.” (pp. 136-137).
Os desenhos técnicos modernos podem ainda mostrar aquilo que sabemos acerca
dos participantes que representam, aquilo que objetivamente está lá, mais do que
aquilo que veríamos se estivéssemos a olhar para eles na realidade, mais do que
aquilo que subjetivamente está lá. Se estivéssemos, na realidade, a ver a frente de
um cubo do modo como sabemos ‘objetivamente’ que ele é (um quadrado), não
seríamos capazes de, ao mesmo tempo, ver o topo e o lado.4 É uma imagem

1 - cubo visto de frente; 2 - cubo na perspectiva frontal-isométrica; 3 - cubo na perspectiva angular-


isométrica; 4 - cubo visto a partir do ângulo da perspectiva central.
Tipos de perspectiva:
- “frontal-isométrica”: a frente do cubo não é distorcida, mas podem ver-se o lado e o topo. E as
paralelas horizontais não convergem para um ponto de fuga. A perspectiva frontal-isométrica é baseada
impossível.... do ponto de vista do que podemos ver na realidade. Contudo, em
certos contextos (por exemplo, em desenhos que dão instruções para
construção/montagem de peças de mobiliário) uma imagem ‘objetiva’ como esta é
inteiramente aceitável.
As imagens objetivas, neste sentido, dispensam o leitor. Elas dizem qualquer coisa
como: ‘Sou deste modo, independentemente de quem, ou quando ou onde tu
sejas/estejas.’” (p. 136-137)

“ O ponto de vista da imagem subjetiva foi selecionado para o leitor. Como


resultado há uma espécie de simetria entre o modo como o produtor da imagem se
relaciona com os participantes representados e o modo como o leitor deve
relacionar-se também com eles. O ponto de vista é imposto, não apenas aos
participantes representados, mas também ao leitor, e a subjetividade do leitor é
portanto sujeita no sentido original da palavra, o sentido de ‘ser sujeito a alguma
coisa ou alguém’.
Num curto ensaio sobre a arte chinesa, Bertold Brecht comentou:
“Como sabemos, os chineses não usam a perspetiva na arte. Eles não gostam de
ver tudo de um único ponto de vista. A composição chinesa, assim sendo,
dispensa a compulsão à qual todos nos tornámos acostumados... e rejeita a
subjugação do observador.” (Brecht, 1967: 278-9)

“O sistema da perspetiva é fundamentalmente naturalista. Ele desenvolveu-se num


período em que o mundo da natureza já não era visto como uma manifestação da
ordem divina (que era também e simultaneamente uma ordem social), mas uma
ordem autónoma e ultimamente sem significado, cujas leis também governavam a
conduta humana. Foi explicitamente enraizada no novo espírito científico,
legitimada pela autoridade da observação científica e as leis físicas da natureza. A
nova música, semelhantemente, era construída como congruente, não com uma
ordem (divina e) social, mas com as leis físicas do som.

em dimensões ‘objectivas’ dos objectos, naquilo que sabemos serem estas dimensões, mais do que no
como elas de facto se nos apresentam. Por esta razão, a perspectiva frontal-isométrica é usada em
desenhos técnicos, onde é importante medir as dimensões dos objectos representados a partir dos
desenhos. Na perspectiva frontal-isométrica, portanto, não há ainda uma escolha entre envolvimento e
afastamento. É a analogia visual da ‘impessoalidade’ característica da linguagem científica.” (p. 152-
153)
- “angular-isométrica”: a frente aparece distorcida, o quadrado deixando de ser representado como
um quadrado. Mas as paralelas verticais e horizontais não convergem. Não há fim para o espaço neste
tipo de perspectiva – ela acentua a própria perspectiva indefinidamente. A perspectiva angular-
isométrica foi usada, por exemplo, no século XVIII nos trabalhos em madeira japoneses – os artistas
japoneses deste período escolhiam sempre um ponto de vista oblíquo, bem como um ângulo
relativamente alto. Eles olhavam para o mundo sem um sentido de envolvimento, de um ponto de vista
destacado, de uma distância meditativa.” (p.153)
No século XIX tardio, depois de séculos de hegemonia, ambos os sistemas entraram
em crise, nas artes maiores (cubismo, música de 12 tons), bem como nas artes
populares.
O cinema, por exemplo, ainda usa imagens perspetivistas, mas, de um modo
aproximado do cubismo, providencia múltiplos pontos de vista, constantemente
mutantes, na sua edição.
A televisão moderna, especialmente em programas que não são baseados no
modelo do filme, como os informativos, avançou ainda mais, e desafia a perspetiva
mesmo dentro da imagem. Um locutor de noticiários pode ter, por detrás da sua
figura, na esquerda ou na direita, um texto verbal, na direita e na parede uma
imagem móvel chromakeyed (uma parede que é, na verdade, uma espécie de ecrã
bidimensional no qual se projeta um ‘layout’ e na frente do qual se posiciona o
apresentador).
Os layouts das revistas modernas formam outra categoria de trabalhos visuais que
não são mais baseados somente nos princípios compositivos da perspetiva. É claro
que ainda contêm muitas imagens em perspetiva mas isto foi subordinado a uma
estrutura que já não pode ser apelidada de perspetivista.

Dois exemplos podem ilustrar isto:


anúncio aos cigarros Special Mind: Ainda é predominantemente naturalista. Há um
texto sobreposto, mas foi feito para não se evidenciar demasiado do fundo, tendo
sido usado um azul ligeiramente mais carregado que o do fundo (do céu),.... Os
pacotes de cigarros estão com o tamanho exagerado, mas eles foram colocados num
ângulo que cria uma impressão de profundidade. A hierarquia semântica foi
estabelecida, não apenas pela saliência relativa dos participantes visuais, mas
também pelo sistema perspetivista do primeiro e segundo planos. Isto cria uma
relação especial em que o leitor é, por assim dizer, colocado atrás da janela, no
espaço do dono da casa, e portanto também do fumador de cigarros.
Mesmo que ligeiramente transgredindo na direção do surrealismo, a composição
está enraizada no natural. O que observamos aqui também podia ser observado na
realidade: podia haver uma janela aberta para o oceano desta maneira, com dois
pacotes de cigarros no parapeito.” (p.138-139)

anúncio aos cigarros Commodore: “Isto não pode dizer-se do anúncio aos
Commodore. Neste anúncio, o leitor, não está posicionado no mundo natural; pelo
contrário, é confrontado com um mundo que abertamente se apresenta como um
constructo semiótico, misturando elementos perspetivistas e não-perspetivistas de
um modo tal que dá a impressão de um continuum de formas do representacional
para o significacional, enquanto que o anúncio, no seu todo, permanece não-
naturalista: não pode dizer-se que os cigarros estão ‘acima’ do barco, do mesmo
modo que se diz, no outro anúncio, que eles estão ‘frente’ ao barco.” (p.139)
Os dois anúncios, assim sendo, exemplificam uma mudança da dominância da
natureza para a dominância da significação, e da dominância do percetivo para a
dominância do conceptual.

III. ENVOLVIMENTO E ÂNGULO HORIZONTAL

É importante ainda observar, nomeadamente se se trata de um ângulo oblíquo ou


frontal.
Quando a linha que corresponde ao plano frontal dos participantes representados
diverge da linha que corresponde ao plano frontal do fotógrafo (e, portanto,
também do leitor), estamos perante um ângulo horizontal oblíquo; quando
convergem, esse ângulo é frontal. O fotógrafo pode ou não alinhar com os
participantes representados...

“O ângulo horizontal é, pois, uma função da relação entre o plano frontal do


produtor da imagem e o plano frontal dos participantes representados. Os dois
podem ser paralelos, alinharem um com o outro, ou formar um ângulo, divergir um
do outro. A imagem pode ter um ponto de vista frontal ou oblíquo.” (p. 141-142)

“A diferença entre o ângulo frontal e oblíquo é a diferença entre o envolvimento e


o distanciamento.
O ângulo frontal diz qualquer coisa como: ‘o que vês aqui é uma parte do nosso
mundo, qualquer coisa com que estamos envolvidos.’
O ângulo oblíquo diz: ‘aquilo que vês não faz parte do teu mundo; é o mundo deles,
algo com que não estamos envolvidos.’” (p. 143)

“E como leitores não temos outra escolha senão ver estes participantes
representados tal como eles foram apresentados. Somos endereçados como
observadores para quem o ‘envolvimento’ toma estes valores concretos.
Na realidade, podemos não os ter – podemos [por exemplo] ser observadores
aborígenes. Uma coisa é o leitor estar limitado pelo modo como a fotografia mostra
(e entender o que isso significa, por exemplo exclusão, no caso do leitor aborígene);
outra é efetivamente identificar-se com o ponto de vista codificado na fotografia.
Podemos aceitar ou rejeitar, mas em qualquer dos casos precisamos primeiro de
entender o que significa.” (p. 143)

“Na representação de humanos e animais o ‘envolvimento’ ou ‘distanciamento’


pode interagir com a ‘solicitação/apelo’ e ‘oferta’ de modos complexos.
O corpo do participante pode ser ‘angulado’ do plano do leitor, enquanto a sua
cabeça ou olhar podem virar-se de costas [ou de lado] relativamente a ele – ou vice-
versa. O resultado é uma mensagem dupla: ’embora eu não seja parte do teu
mundo, no entanto estabeleço contacto contigo, a partir do meu próprio e diferente
mundo´; ou ‘embora esta pessoa faça parte do nosso mundo, seja alguém como eu e
tu, oferecemos-te a sua imagem como um objeto de reflexão desapaixonada.’
O último exemplo acontece, por exemplo, na ilustração de um texto escolar de
geografia de uma escola superior holandesa (Bols et al., 1986:21). Numa secção
intitulada ‘O Terceiro Mundo na nossa rua’, duas imagens são mostradas lado a lado.
Na da esquerda vemos três mulheres idosas [com um emblema que representa o
seu estatuto de imigrantes]. São fotografadas de um ângulo oblíquo.... e num plano
longínquo [...]. Na da direita vemos.... uma rapariga loura, claramente para ser
tomada como holandesa, com um amigo negro, que tem o seu braço à volta dela. O
ângulo é um bom bocado mais frontal que o da fotografia das três mulheres, e o
enquadramento é um close-up: ela é mostrada como ‘nós’, estudantes do ensino
superior holandeses, e a uma distância “de proximidade pessoal’. Mas ela não
estabelece contacto com os leitores. Não convida os leitores a identificarem-se com
ela, e com o seu relacionamento com um negro. Em vez disso, o leitor é convidado a
contemplar aquela relação distanciadamente, ponderado o facto de algumas
pessoas como nós terem relações com negros, mas não nós mesmos, enquanto
leitores. Ela é um fenómeno para ser observado, não uma pessoa dirigindo-se
directamente ao leitor.” (p. 144)

IV. PODER E ÂNGULO VERTICAL

“Os compêndios de análise cinematográfica nunca deixam de referir a altura da


câmara como um importante meio de expressão cinematográfico. Um ângulo alto,
diz-se, torna o sujeito pequeno e insignificante e um ângulo baixo fá-lo tornar-se
impositivo....[...]
Mas (estas apreciações) deixam o leitor fora da imagem. Preferimos dizer a coisa de
outro modo: se um participante representado é visto de um ângulo alto, então a
relação entre os participantes interativos (o produtor da imagem e
consequentemente também o leitor) e os participantes representados é fornecida
como uma relação em que o participante interativo exerce o seu poder sobre o
participante representado – o participante representado é visto do ponto de vista do
poder. Se o participante representado é visto de um ângulo baixo, então a relação
entre os participantes interativos e os participantes representados é estabelecida
como uma relação em que o participante representado tem poder sobre o
participante interativo. Se, finalmente, a imagem é fornecida ao nível do olhar, então
o ponto de vista é o da igualdade e não há diferenças de poder envolvidas.” (p.146)
“Isto é, novamente, uma questão de grau. [...] Em muitas ilustrações de textos
escolares olhamos de cima para baixo, mais que de baixo para cima para as pessoas:
trabalhadores; crianças no pátio da escola. Nestes livros o mundo social fica aos pés
do leitor, por outras palavras: o conhecimento é poder (cf imagem). Os modelos nos
anúncios e artigos das revistas, e os noticiáveis e celebridades, por outro lado,
normalmente olham de cima para o leitor: estes modelos são representados como
exercendo poder simbólico sobre nós. Com os produtos anunciados é, mais uma vez,
diferente: eles normalmente são fotografados de um ângulo alto, representados
como se estivessem ao alcance e sob comando do leitor.” (p.146)

V. NARRATIVIZAÇÃO DA IMAGEM SUBJETIVA

“Em muitos casos, não há motivação aparente imediata para o ponto de vista (ou
para o enquadramento). O ângulo pode ser alto ou frontal, e assim implicar poder
sobre e envolvimento com os participantes representados, mas a natureza precisa
da relação de poder e envolvimento não é dada. Assim uma imagem captada de um
ângulo alto de trabalhadores numa fábrica pode ser tomada como refletindo o
ponto de vista do supervisor num gabinete elevado relativamente ao nível da cena,
com uma janela de supervisão sobre a fábrica, mas isto permanece uma metáfora.
Não vemos o gabinete na imagem. Noutros casos o leitor (imaginário) intromete-se
na imagem incluindo as mãos na própria imagem. Estas mãos podem dizer-nos
muito acerca do leitor. Podem ser de mulher ou de homem, ‘enfeitadas’ de vários
modos; podem usar luvas de condução, anéis caros, etc. (cf imagem)
“Nos filmes, a sequência das imagens pode preencher esta função. O plano da
fábrica, mostrando os trabalhadores de um ângulo alto, pode ser precedido de um
plano em que se mostra, de um ângulo baixo, o gabinete do supervisor, com o
supervisor atrás da janela olhando para baixo. Nestes casos, o texto narrativiza o
ponto de vista e impõe um leitor ficcional entre os participantes representados e
interativos. Mas mesmo quando as suas origens não são mostradas, os pontos de
vista dos leitores podem sempre ser relacionados com situações concretas.
Pode sempre perguntar-se (e talvez se deva) ‘Quem poderia ver esta cena deste
modo?’ ‘Onde teríamos de estar para ver esta imagem deste modo, e que tipo de
pessoa teríamos de ser para ocupar este lugar?” (p.149)

VI. IMAGENS OBJETIVAS

“As imagens científicas e técnicas, como os diagramas, mapas e gráficos, usualmente


codificam uma atitude objetiva. Isto tende a ser feito de uma de duas maneiras: por
um ângulo frontal direto ou perpendicular de cima para baixo. Estes ângulos
sugerem as posições do leitor, mas no caso são posições especiais e privilegiadas,
que neutralizam as distorções que habitualmente derivam da perspetiva, porque
neutralizam a própria perspetiva. Para ilustrar isto com um simples exemplo,
quando um cubo é desenhado perspetivamente, os seus lados não são de igual
comprimento, e o grau de distorção depende do ângulo, depende da posição
codificada do leitor. O cubo não parece ‘como nós o conhecemos’ com todos os
seus lados de igual comprimento, mas tal como o vemos, de uma posição particular.
Diretamente de frente, a terceira dimensão desaparece, e o cubo aparece plano,
com todos os seus lados iguais. Se representado de cima, é exatamente o mesmo
efeito que se produz. A perspetiva e o seu efeito atitudinal foram neutralizados.”
(cf figura) (p. 149)
“Os ângulos frontais e de cima-para-baixo não codificam porém a objetividade do
mesmo modo. O ângulo frontal é o ângulo do envolvimento máximo. É orientado
para a ação. A figura do explorador pode ser transcodificada como ‘Estas são as
roupas que se devem usar e este é o modo como se devem usar se quisermos
explorar o Antártico.’ O ângulo frontal é o ângulo do ‘isto é como a coisa funciona’,
‘isto é como se usa’, ‘isto é como se faz’.

“O ângulo de cima para baixo, por outro lado, é o ângulo do máximo poder. É
orientado para o conhecimento objetivo, ‘teorético’. Contempla o mundo de um
ponto de vista favorável, coloca-o aos nossos pés, mais do que ao alcance das nossas
mãos. Os diagramas abstratos podem por vezes ser lidos de ambos os modos [...]”
(p.149)

“Um terceiro ponto de vista objetivo, o corte transversal e a vista “raio X” devem
também ser considerados: a sua objetividade decorre do facto de que não se detém
nas aparências, mas penetra além da superfície para níveis mais profundos, mais
escondidos. Na nossa cultura é usado quase exclusivamente em diagramas, embora
por vezes possamos observar experiências com ele nos desenhos das crianças.” (p.
150)
“Nem todos os diagramas, mapas e gráficos são, porém, completamente objetivos. O
ângulo vertical no mapa da Guerra do Golfo (cf figura) é alto, mas não
completamente ‘picado’, e o seu ângulo horizontal é oblíquo, provocando que
olhamos para o teatro da guerra do ponto de vista das margens, de um modo
relativamente desligado.
Em livros de ciência para crianças pequenas encontramos ângulos semelhantes,
sugerindo a sua figuração oblíqua, talvez, que as imagens ainda não são oferecidas
como imagens do ‘como se faz’.” (p.150)

“Elementos de perspetiva podem também ser adicionados a gráficos e secções


transversais, e em qualquer destes casos um sentido de realidade, de existência
física, é adicionado às imagens abstratas e bi-dimensionais. Tendo primeiro
abstraído do mundo concreto, tridimensional das pessoas, lugares e coisas, restaura-
se agora isso, mas de outro modo, como coisas e lugares feitos pelo homem. Assim
podemos ver, por exemplo nos relatórios anuais das companhias prósperas, gráficos
de barras tridimensionais, parecendo arranha-céus ou monólitos, contra um fundo
de colinas limpas e suaves que aparecem numa cor plana e primária. O gráfico
representativo do crescimento turístico, surgido no Sunday Morning Herald em 23
de Janeiro de 1991, torna-se um cenário para a ação: os turistas movem-se através
do mundo do negócio do turismo internacional, representado abstratamente e no
entanto tridimensional, tal como também poderia ser o caso nos gráficos noticiosos
da televisão, onde um sentido adicional de realidade pode ser acrescentado através
da animação.” (p. 151-52)

“Esta adição de perspetiva não acrescenta nada ao significado representacional


destes diagramas, mapas e gráficos; mas acrescenta significados atitudinais.
Em todos estes exemplos o ângulo é alto, explicitamente atitudinalizando a
proposição objetiva da vista picada, e frequentemente narrativizando-a5 como uma
vista de satélite, esse instrumento moderno da produção de conhecimento visual e
símbolo de poder informativo.

5
A questão da narrativização tem sobretudo a ver com a resposta a perguntas como. “Que história está
a ser contada?”, “Que cena é esta?”...
O ângulo horizontal, por outro lado, pode variar: no gráfico sobre o incremento do
turismo, somos diretamente envolvidos; os acontecimentos da Guerra do Golfo, por
outro lado, vemo-los das margens, como espectadores passivos.
Este processo de atitudinalização acontece, nem tanto nos contextos em que este
novo conhecimento visual é produzido e em que este novo poder informativo é
exercido, mas nos contextos em que eles se disseminam de uma forma
popularizada: aqui as imagens conceptuais e esquemáticas são vestidas com
roupagens de realidade visual, e literalmente e figurativamente ‘animadas’.”
(p.151)

Textos traduzidos e adaptados de KRESS e VAN LEEUWEN (1996) – Reading images – the grammar of
visual design. London: Routledge, p. 130-154.

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