Você está na página 1de 8

Lucas Ferla

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra


2º Ciclo de Estudos em Direito
Mestrado em Direito: Especialidade de Ciências Jurídico-Forenses

Pisos abaixo do solo no cômputo da altura máxima do prédio, interpretação do acórdão


08540/12 do Tribunal Central Administrativo Sul

Profª. Dr.ª Fernanda Paula Oliveira

Coimbra, 2018
Sumário

1. Aspectos Introdutórios
2. Análise do Acórdão
2.1. Dos fatos
2.2. Problematização
2.3. Solução adotada pelo acórdão
3. Conclusões
Bibliografia
1. Aspectos Introdutórios

Instituir e regular uma política de controle de construção das edificações tem


como escopo mais do que auferir se determinado pedido de licenciamento observou os
requisitos técnicos que toda a obra necessita para fins de segurança, mas também de
garantir à sociedade, através desta política, a existência de um plano de urbanização das
cidades que considere as idiossincrasias que lhe são inerentes. Assim, fica a cargo do
legislador, pensando na realidade de cada município, definir os parâmetros e aspectos
das construções a doravante serem licenciadas.
Dentre as matérias urbanísticas reguladas pelos Planos Diretores dos
Municípios está a limitação do número de andares e altura máxima dos edifícios,
definidos por região e de acordo com a política de urbanização da municipalidade.
Todavia, a prática por vezes suscita dúvidas quanto a finalidade que o
legislador pretendeu ao estatuir determinada política de controle de construção, tendo o
aplicador do direito que harmonizar os comandos legais entre si e extrair a correta
interpretação da norma para aplicar o seu extrato ao caso concreto, mormente quando a
redação da norma deixa espaço à interpretações diversas.
Neste ínterim, como auxílio à elucidação do problema acima apresentado,
vamos analisar, à luz do Direito do Urbanismo, a decisão do 2º Juízo do Tribunal
Central Administrativo Sul, ao decidir, em 22/11/2012, recurso oriundo do Processo n.º
08540/12, onde é objeto Deliberações da Câmara Municipal de Alcobaça.

2. Análise do Acórdão

Processo: 08540/12
Secção: CA – 2º Juízo
Data do Acordão: 22/11/2012
Relator: Teresa de Souza
Descritores: PLANO DIRECTOR MUNICIPAL
CONSTRUÇÃO DE IMÓVEL
PISOS
CÉRCEA
FUNDAMENTAÇÃO
Sumário: I – Quando a lei fixa o limite do número de pisos, tem em vista a
cércea do edifício, Ou seja, o valor máximo que é permitido em
altura numa determinada zona, excluindo as caves sem frente
livres abaixo do solo;
II – Como a edificação aqui em causa possui 4 pisos acima da
cota média do terreno, nada se demonstra sobre a frente livre do
piso abaixo dela, a deliberação impugnada a os actos
consequentes não violam os preceitos dos arts. 50º, n 2 do PDM
de Alcobaça e 14º, nº 1 do Dec. Reg. 32/93, de 15/10.
III – Se um parecer, face ao tipo de acto administrativo em
concreto, expressa através de sucinta exposição dos fundamentos
de facto e de direito os motivos por que se propõe o deferimento
da pretensão, tendo o acto impugnado, ao remeter para este
parecer, concordando com o mesmo, mostra-se cumprida a
previsão do art. 125º, nº 1 do CPA.

2.1. Dos fatos

Subsume-se a controvérsia ao controle da legalidade de decisão camarária do


município de Alcobaça, quanto ao deferimento de um pedido de licenciamento de
construção de edifício habitacional de um proprietário de terreno sito na freguesia de
São Martinho do Porto. Conforme extrai-se do corpo do acórdão se trata (o pedido de
licenciamento) de “obra com 4 pisos acima da cota de soleira e 1 piso abaixo da mesma
(destinada ao estacionamento automóvel) e de um muro de vedação”.
A problematização aflora ao passo que, conforme alega o autor da ação, o
Plano Diretor Municipal de Alcobaça, que faz remissão ao Decreto Regulamentar n.º
32/93, de 15/10, quanto ao mister de conceituar o “número máximo de pisos”, não
permite edificações com mais de 4 pisos, ainda que os excedentes se encontrem abaixo
do solo. Ou seja, qualquer desrespeito numérico quanto aos pisos que compõem um
determinado prédio deve culminar com a nulidade do ato camarário que autorizou a
construção.

2.2. Problematização
Recorrendo da decisão que julgou procedente o pedido de declaração de
nulidade do ato camarário, que deferiu a construção referida, o Município interessado
argumenta o erro do julgador ao interpretar a norma do n.º 1 do artigo 14º do Decreto
Regulamentar nº 32/93, de 15 de outubro, combinado com o que dispõe o n.º 2 do artigo
50º do Plano Diretor Municipal de Alcobaça, onde se estabelece o número máximo de
pisos nos novos edifícios de São Martinho do Porto.
Pelas razões do recorrente entende-se que: (i) primeiramente, aplica-se no
espaço urbano de São Martinho do Porto as regras do Dec. Reg. nº 32/93 em relação aos
pedidos de licenciamento de obra, obedecida a norma do n.º 2 do art. 50 do Plano
Diretor Municipal, sendo importante, in casu, ressaltar o enunciado do nº 1 do art. 14º
onde se prevê que as novas edificações não podem exceder o número máximo de quatro
pisos; (ii) no tocante a norma ressaltada é que o julgador a quo induziu-se em erro ao
dar ao caso a interpretação literal da norma que o rege, pois, muito embora haja
previsão expressa de que edificação não deve ultrapassar os quatro pisos, a ratio júris da
norma diz respeito “a integração urbanística dos novos edifícios, a salvaguarda da
estética urbana e a proteção de direitos de terceiros a um ambiente urbano sadio, arejado
e iluminado”, de modo que, visto sob a ótica finalística da lei, percebe-se que o
legislador não quis impedir a construção de pisos subterrâneos nas hipóteses em que o
pedido de construção já contém quatro pisos acima da cota média do terreno, mas tão
somente estabelecer um limite para a altura dos prédios.
Em resposta aos argumentos em epígrafe o recorrido expõe que: (i) não houve
erro de interpretação e que o Tribunal recorrido privilegiou a literalidade da lei, partindo
da premissa que, acaso o legislador quisesse regular a altura dos prédios e não o número
de pisos, que teria utilizado no texto da lei expressão que desse azo a tal interpretação,
considerando ainda que a pretensão da recorrente é contra legem; (ii) e argumenta que
“não é inocente a opção do legislador quanto à escolha da cota média do terreno e não
da cota soleira. Pois, <ao ser referido na norma em exegese a cota média do terreno (e
não a cota soleira), o legislador evita aquela possível situação (relativa à cave com e
sem frente livre) e as suas querelas conceituais e abraça uma realidade que impõe
como nível de aferição, mais objectivamente, a cota média do terreno)>;
fundamentando no art. 9º n.ºs 2 e 3 do Código Civil expõe que o aplicador deve
presumir que o “legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o
seu pensamento em termos adequados”, não sendo possível que se dê, ao n.º 1 do art. 14
do Dec. Reg. 32/93 interpretação diversa.

2.3. Solução adotada pelo acórdão

O acórdão, ao dar início à solução do imbróglio, começa por delimitar o seu


objeto colocando a questão de responder à indagação se, para o cálculo do número
máximo de pisos permitido (4), são considerados apenas os que se situam acima da cota
soleira, desconsiderando os pisos abaixo, ou deve-se somar a quantidade de pisos
independente da altura que atinjam e aplicar a literalidade dos comandos do art. 14, n.º 1
do Dec. Reg. 32/93, de 15 de Outubro.
De acordo com o art. 47º, al. b) do Plano Diretor Municipal de Alcobaça, São
Martinho do Porto está inserto como espaço urbano de nível de II, sendo que, conforme
dicção do art. 50º, n.º 2 do mesmo diploma aplica-se as regras do Dec. Reg. nº 32/93,
donde se extrai conceitos importantes à elucidação da controvérsia, precisamente o 3º
alínea e) que define cércea como “dimensão vertical de construção, contada da parte da
cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado ou
platibanda ou guarda do terraço”; e f) quanto ao número de pisos sendo “a demarcação
do número de pisos da edificação acima ou abaixo da cota média do terreno”.
Os conceitos acima harmonizam-se com o preceituado do art. 7º onde se
estabelece os princípios que as novas edificações devem obedecer incluindo-se “a
adequada integração paisagística” e “adequada integração urbanística mantendo-se,
tanto quanto possível, a topologia arquitectónica na região”.
Pela leitura da decisão em evidência percebe-se que a técnica interpretativa do
julgador priorizou a harmonização das normas do regulamento, ao passo que estatui que
a melhor interpretação ao art. 14º, n.º 1 leva ao entendimento de que o legislador buscou
a “integração urbanística dos novos edifícios, a salvaguarda da estética urbana e a
proteção de direitos de terceiros e um ambiente sadio, arejado e iluminado”, afastando-
se, portanto, a interpretação literal que o recorrido aduz.
Como argumento ao decisum invoca o saber expresso no acórdão do STA de
26/05/2010, Proc. 0183/10 onde, ao enfrentar o conceito de <altura total das
construções>, a define como sendo: “dimensão vertical da construção a partir do ponto
da cota média do terreno no alinhamento da fachada até ao ponto mais alto da
construção”, o que faz sentido já que é senso comum ninguém considerar alto um prédio
que se prolonga, em extensão, para baixo do solo.
Assim, o acórdão dá provimento ao recurso por entender que não há razão para
a lei limitar o número de pisos abaixo do solo, quando eventual limitação imposta tem
como finalidade questões de estética e paisagem do município.

3. Conclusões

Considerando as peculiaridades do caso em tela cremos que a solução adotada


pelo colegiado, reformando o posicionamento singular de primeira instância, foi a mais
acertada, vez que proporcionou a construção de um novo edifício no munícipio que,
conforme consta do seu sítio eletrônico1, carece de novos recursos, e, ao mesmo tempo,
deu à norma interpretação coerente e respeitante dos limites impostos pelo legislador.
Isso por, ao analisarmos o imbróglio à luz do Direito Urbanístico,
identificamos que a verdadeira ratio legis dá correspondência à solução encontrada no
acórdão, vez que a redação, abordada por via de uma interpretação sistemática, aflora o
intento de conservar a estética, beleza, harmonia e caráter histórico do espaço urbano;
de modo que, eventual limitação de altura do edifício não pode ser confundida com
proibição para aumento da área de construção abaixo do solo, por razões de logicidade.
Impor tal restrição a novas construções, quando apresentem características que
permitam, do ponto de vista técnico-construtivo, tal dimensão, é não apenas negar a
licença, mas também ceifar o processo evolutivo da comunidade, freando o
desenvolvimento e impedindo a sua renovação, e a própria aplicação do Plano de
Reabilitação Urbana. Dito de outra forma, a decretação da nulidade da licença não
salvaguarda o Direito do Urbanismo, mas, sim, vai de encontro a sua finalidade maior,
que certamente reside em ver o crescimento e renovação harmoniosos da região.
Oportuno frisar, como lembra a doutrinadora Fernanda Paula Oliveira 2, in
Escritos Práticos do Direito do Urbanismo, que eventuais custas para regularização da
licença construtiva devem, a rigor, ficar a cargo da municipalidade, vez que o ato
impugnado é proveniente de decisão da Câmara Municipal.
Bibliografia
1
http://www.cm-alcobaca.pt/pt/menu/1056/area-de-reabilitacao-urbana-de-alcobaca.aspx
2
OLIVEIRA, Fernanda Paula, Escritos Práticos do Direito do Urbanismo, Almedina, Coimbra, 2017, p.
15.
- Câmara Municipal de Alcobaça. [Online]. Disponível em (http://www.cm-
alcobaca.pt/pt/menu/1056/area-de-reabilitacao-urbana-de-alcobaca.aspx).

- OLIVEIRA, Fernanda Paula, Escritos Práticos de Direito do Urbanismo, Almedina,


Coimbra, 2017.

Você também pode gostar