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Documento publicado em 03 de agosto de 2021

Os pobres, o livre mercado, e a moralidade deste arranjo


Se o estado é visto como essencial em várias áreas, por que ele
deixaria de ser essencial em outras?

Por Leonard Read*

Se uma determinada atividade econômica sempre foi socializada, praticamente


todas as pessoas concluem que é assim que tem de ser e que não poderia ser de
outra maneira.
Com efeito, à primeira vista, imaginar como o livre mercado faria funcionar um
setor até então estatizado é difícil. Décadas de doutrinação estatista nas escolas
(públicas e privadas) geraram essa incapacidade de raciocínio.
Murray Rothbard certa vez comentou que se o governo fosse o único fabricante
de sapatos, a maioria das pessoas seria incapaz de imaginar como o mercado
poderia ser capaz de produzi-los. Disse ele:

Se o governo, e somente o governo, tivesse o monopólio da fabricação de


sapatos e fosse o dono de todas as revendedoras, como será que a maioria das
pessoas iria reagir a quem advogasse que o governo saísse do setor de calçados
e o abrisse para empresas privadas?
Sem dúvida nenhuma as pessoas iriam bradar: "Como assim? Você não quer
que as pessoas, e principalmente os pobres, usem sapatos! E quem iria fornecer
sapatos ao povo se o governo saísse do setor? Quais pessoas? Quantas lojas de
sapato haveria em cada cidade? Em cada município? Como isso seria definido?
Como as empresas de sapato seriam financiadas? Quantas marcas existiriam?
Qual material elas iriam usar? Quanto tempo os sapatos durariam? Qual seria
o arranjo de preços? Não seria necessário haver regulamentação da indústria
de calçados para garantir que o produto seja confiável? E quem iria fornecer
sapatos aos pobres? E se a pessoa não tiver o dinheiro necessário para comprar
um par?"

Troque a expressão "fabricação de sapatos" por qualquer outra e o raciocínio


continua idêntico.
Sem uma educação socializada, como os pobres conseguiriam pagar por seus
estudos? Se os Correios não fossem estatais, como as pessoas que moram naqueles
rincões mais afastados receberiam suas cartas? Sem a Previdência Social estatal e
compulsória, os idosos morreriam na miséria! Se o sistema elétrico não estivesse
sob o controle do estado, milhares de famílias estariam hoje às escuras! Se a
extração de petróleo não fosse de competência do estado, não haveria gasolina e
diesel nas bombas!
Pavorosamente, quando se aceita a "necessidade da socialização", a ideia do
absolutismo estatal passa a ser vista com naturalidade. Afinal, se o estado é visto
como essencial em várias áreas, por que ele deixaria de ser essencial em outras?
Para entender essa confusão mental não é necessário muito esforço.
Tão logo uma atividade foi socializada, torna-se impossível demonstrar, por meio
de exemplos práticos, como os indivíduos agindo em um mercado livre e irrestrito
poderiam efetuar esta mesma atividade de maneira mais eficiente, mais abundante
e mais barata.
Por exemplo, como seria possível comparar os Correios estatais a um Correio
privado quando a existência deste último é proibida por decreto estatal? Como
explicar que o mercado de telefonia seria melhor caso a entrada de concorrência
estrangeira fosse liberada, sendo que sempre tivemos o Estado regulando o setor e
especificando quem pode e quem não pode entrar?
É como tentar explicar para um povo que sempre viveu na escuridão como as
coisas seriam caso houvesse luz. A única coisa que você pode fazer é recorrer a
construções imaginárias.
Para ilustrar esse dilema: durante as últimas décadas, homens e mulheres
praticando trocas livres e voluntárias (isso se chama livre mercado) descobriram
como fazer a entrega da voz humana ao redor do globo em bem menos de um
segundo; descobriram como transmitir um evento, como uma partida de futebol
ou uma corrida de automóveis, e exibi-lo ao vivo e a cores na casa de qualquer
pessoa em qualquer ponto da terra; descobriram como transportar mais de 300
passageiros de um continente a outro em questão de horas; descobriram como
transportar gás de uma mina remota ao aconchegante lar de alguém em outra
cidade a preços inacreditavelmente baixos e sem subsídio; descobriram como
entregar vários barris de petróleo do Golfo Pérsico ao oeste americano — meia
volta ao mundo — por menos do que o governo cobra para entregar uma carta
de 50 gramas ao outro lado da rua!
No entanto, e ainda assim, esses e tantos outros fenômenos rotineiros que o livre
mercado nos proporciona ainda não são capazes de convencer a maioria das
pessoas de que os Correios poderiam ficar a cargo da livre concorrência sem que
isso causasse sofrimento aos usuários.
Agora, imagine este outro cenário: suponha que o governo federal, desde seu
surgimento, tenha decretado uma lei ordenando que todos os meninos e meninas,
desde o nascimento até a maioridade, recebam sapatos e meias "gratuitamente"
do governo federal. Imagine que essa prática de receber "sapatos e meias
gratuitamente" estivesse em prática desde o descobrimento do país.
Ato contínuo, imagine que um de nossos contemporâneos — alguém que acredite
nas maravilhas que podem ser alcançadas quando as pessoas são livres para
empreender — dissesse: "Não creio que dar meias e sapatos para as crianças
deveria ser uma responsabilidade do governo. Isso deveria ser uma
responsabilidade das famílias. Tal atividade jamais deveria ter sido socializada. Ela
seria muito mais adequadamente efetuada pelo livre mercado".
Quais seriam as reações a essa declaração? Baseando-se em tudo o que ouvimos
tão logo uma atividade é estatizada — mesmo que apenas por um curto período
de tempo —, a resposta-padrão a essa desestatização seria algo assim: "Ah, mas aí
você traria sofrimento para as crianças pobres, que ficariam completamente
descalças!"
No entanto, neste exemplo, como se trata de uma atividade que ainda não foi
estatizada, somos capazes de mostrar que as crianças pobres estão mais bem
calçadas naqueles países em que sapatos e meias são de responsabilidade da família
do que naqueles países em que sapatos e meias são responsabilidade do governo.
Somos capazes de demonstrar que as crianças pobres estão mais bem calçadas em
países que são mais livres do que em países que são menos livres.
Ignorando a todos, igualmente
Sim, é verdade que o livre mercado ignora os pobres — só que ele ignora os pobres
justamente porque ele não reconhece os ricos. O livre mercado não é um
"respeitador de pessoas". O livre mercado é simplesmente uma maneira
organizacional de criar bens e serviços por meio da livre concorrência..
Ou seja, trata-se de um arranjo em que a entrada na arena da produção e da
comercialização é livre, não dependendo de autorizações ou permissões estatais.
Trata-se de um arranjo que permite que milhões de pessoas cooperem e compitam
sem que seja necessário exigir autorizações preliminares de pedigree,
nacionalidade, cor, raça, religião ou riqueza.
Livre mercado significa transações voluntárias; significa uma justiça impessoal na
esfera econômica. Livre mercado não tolera protecionismo, subsídios e favores
especiais concedidos por aqueles que estão no poder. Por isso, o livre mercado é,
em sua essência, contra a coerção, a espoliação, o roubo e todos os outros
métodos anti-mercado criados por governos para privilegiar alguns poucos
poderosos em detrimento de todo o resto.
O livre mercado é o único arranjo que permite que qualquer indivíduo possa
concorrer em qualquer área da economia (mas que não dá garantia nenhuma de
sucesso). Ele permite que os mortais ajam moralmente porque eles são livres para
agir moralmente.
O livre mercado, em suma, não "fornece" um incentivo para você trabalhar; ele
permite que você seja livre para trabalhar. O livre mercado não "fornece" um
incentivo para você investir e empreender; ele permite que você utilize seu capital
livremente para obter um lucro ao servir o consumidor. Não existe um deus
chamado "mercado" que irá fornecer a você algum incentivo para ser produtivo.
No entanto, o mercado é o melhor arranjo institucional para se criar uma
harmonia entre os planos de um vasto número de indivíduos — daí o título da
obra magna de Frédéric Bastiat, Harmonias Econômicas.
A natureza humana
Sim, é necessário admitir que a natureza humana é defeituosa, e que essas
imperfeições muitas vezes serão refletidas no mercado (e muito mais no governo,
setor cujos integrantes detêm o poder e não estão submetidos à concorrência).
Porém, o livre mercado é o único arranjo que possibilita a cada indivíduo agir de
acordo com sua melhor moral e ser recompensado por isso, ao passo que o
estatismo e a abolição da concorrência é o arranjo que premia (ou não pune) os
imorais e desleixados.
Nenhum defensor do livre mercado nega a existência de empreendedores
salafrários. Apenas acreditamos — e para isto baseamo-nos na sólida teoria
econômica — que, quanto mais livre e concorrencial for o mercado, mais restritas
serão as chances de sucesso de vigaristas, e mais honestas as pessoas serão forçadas
a se manter. E elas terão de ser honestas não por benevolência ou moral religiosa,
mas sim por puro temor de que, uma vez descobertas suas trapaças, elas serão
devoradas pela concorrência, podendo nunca mais recuperar sua fatia de mercado
e indo a uma irrecuperável falência.
Por outro lado, quanto maior for a regulamentação estatal sobre um setor, mais
incentivos existirão para a corrupção, para o suborno, para os favorecimentos e
para os conchavos. Em vez de se concentrar em oferecer bons serviços e superar
seus concorrentes no mercado, as empresas mais poderosas poderão simplesmente
se acertar com os burocratas responsáveis pelas regulamentações, oferecendo
favores e, em troca, recebendo agrados como restrições e vigilâncias mais
apertadas para a concorrência.
Não há absolutamente nenhum motivo para crer que homens dotados com o
poder da coerção — como são os políticos e os empresários que atuam em um
mercado fechado pelo governo — irão se comportar mais moralmente do que as
pessoas em um ambiente de livre concorrência.
Por isso, o livre mercado é a única opção moral concebível.

* Leonard Read foi o fundador do instituto Foundation for Economic Education (FEE) – o primeiro
moderno think tank libertário dos EUA – e foi amplamente responsável pelo renascimento da
tradição liberal no pós-guerra.

De acordo com o site da FEE, sua missão é:


A missão da FEE é inspirar, educar e conectar futuros líderes com os princípios econômicos, éticos
e legais de uma sociedade livre. Esses princípios incluem: liberdade individual, economia de livre
mercado, empreendedorismo, propriedade privada, alto caráter moral e governo limitado.
(https://fee.org/about)

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