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JORGE MIRANDA

CIENCIA POLITICA
FORMAS DE GOVERNO
Lisboa
1996
Título: Ciência Política - Formas de Governo Autor:

Jorge Miranda

Reservados todos os direitos para Jorge Miranda

composição e Impressão: Pedro Ferreira - Artes Gráficas Rua Jorge Castilho, 14 Telefone 916
17 08

2735 RIO DE MOURO Edição:

Pedro Ferreira - Editor


2735 RIO DE MOURO

Tiragem: 1000 exemplares Depósito Legal n.Q 104815/96 Lisboa - 1996

NOTA PRÉVIA

A parte IV do programa da disciplina de Ciência Política e Direito


Constitucional, do 1.2 ano (segundo o plano curricular de 1983), na turma a
meu cargo, versa sobre formas e sistemas de Governo, englobando também
sistemas eleitorais e sistemas de partidos.

Embora há muito deseje retomar, aprofundar e desenvolver o estudo destas


matérias, tal não tem sido possível por causa de outros trabalhos acadêmicos,
designadamente os derivados das sucessivas edições dos diversos volumes do
Manual de Direito Constitucional e da presidência do Conselho Directivo.

Em 1992, procedi a uma remodelação relativamente extensa das lições


policopiadas anterionnente. Agora nem isso: apenas aqui e ali algumas actualizações.
Tal vem a ser o alcance destes apontamentos.

Lisboa, 15 de Outubro de 1996


TITULO 1

FORMAS DE GOVERNO

EM GERAL
CAPITULO 1

CONCEITOS E TIPOLOGIAS

FUNDAMENTAIS
I.PRELIMINARES

Ao considerar-se a problemática dos sistemas político-constitucionais, é mister tomar


em conta:

a) A relativa confusão de conceitos e a multiplicidade de termos - formas de Estado,


tipos de Estado, regimes, formas de governo, sistema de governo, sistemas Políticos,
estruturas govemamentais, formas políticas, etc.;

b) A pesada carga doutrinal, derivada de a matéria dos sistemas políticos (ou, noutra
perspectiva, das formas políticas) ser das mais estudadas e discutidas desde os
primórdios da reflexão política;

c) A localização histórica dos sistemas políticos e, portanto, a localização histórica


das suas tiPologias - há classificações próprias de certas épocas e mesmo as
classificações aparente-
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mente mais constantes e universais têm de ser entendidas em função de cada época e, porventura, de
cada continente;

d) 0 carácter eminentemente interdisciplinar (o que não quer dizer de puro sincretismo) de qualquer
investigação ou exposição a empreender.

2. AS TIPOLOGIAS DE FORMAS POLíTICAS

EM GERAL

1 - Num relance geral pelas tipologias de formas políticas’ dir-se-á antes de mais:

a) Que nelas se encontram (como salienta, por exemplo, BOBBIO) quase sempre elementos de duas
ordens: não só descritivos mas também prescritivos - donde, classificações, umas sistemáticas e outras
axiológicas;

1. Cfr., entre tantos, BLUNTSCHLI, Théorie Générale de l’Etat, trad., 3.’ ed., Paris, 1891, págs. 294 e
segs.; G. JELLINEK, Allgemeine Staatslehre, 1900, trad. cast. Teoria General del Estado, Buenos
Aires, 1954, págs. 501 e segs.; NLÁRNOCO E SOUSA, Direito Político -Poderes do Estado, Coimbra,
19 10, págs. 83 e segs.; C. SCMITT, Verfassungslehre, 1927, trad. cast. Teoria de la Constitucián,
Madrid-México, 1934-1966, págs. 259 e segs.; EMILIO CROSSA, ”Sulla teoria delle forme di Stato”,
in Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, 193 1, págs. 18 e segs.; H. KELSEN, Teoria General
del Estado, trad. cast., Barcelona-Madrid, 1934, págs. 408 e segs.; SANTI ROMANO, Principii di
Diritto Costituzionale Generale, 2. ed., Milão, 1947,
12

b) Que as classificações axiológicas, enquanto exprimem juizos sobre a sociedade política e contêm
indicações de preferências vêm a ser instrumentos de intervenção com vista a determinados modelos ou
soluções - sejam esses modelos pensados a

págs. 142 e segs.; CHARLES EISEN1~ Cours de Droit Constitutionnel Comparé, policopiado, Paris,
1950-195 1; CABRAL DE MONCADA, Filosofia do Direito e do Estado, I, 2. ed., Coimbra, 1955;
QUEIROZ LIMA, Teoria do Estado, 8.2 ed., Rio de Janeiro, 1957, págs. 218 e segs.; K.
LOWENSTEIN, Verfassungslehre, trad. cats. Teoria de la Constitución, Barcelona, 1964, págs.
41 e segs.; GEORGE CATLIN, Systematic Politics, Toronto, 1962, trud. port. Tratado de Política, Rio
de Janeiro, 1964, págs. 193 e segs.; ROBERT MAC IVER, The Web of Government, 1965, trad. cast.
Teoria del Gobierno, Madrid,
1966, págs. 139 e segs.; G. BURDEAU, Traité de Science Polítique, V, 2. ed., Paris, 1970; C.
MORTATI, Lezione sulle forme de governo, Pádua, 1973, maxime págs. 73 e segs.; MANUEL
JI21ENEZ DE PARGA, Los Regimenes Políticos Contemporaneos, 5.2 ed., Madrid, 1974, maxime
págs. 120 e segs.; REINHOLD ZIPPELIUS, Allgemeinstaatslehre, trad. port. Teoria Geral do Estado,
Lisboa, 1974, págs. 72 e segs.; KLAUS VON BEY1VIE, ”Formas de dominación”, in Marxismo y
Democracia - Enciclopedia de Conceptos Básicos. Política 3, trad. cast., Madrid, 1975, págs. 70 e
segs.; NORBERTO BOBBIO, La Teoria delle Fórme di Governo, Turim, 1976; MARCELLO
CAETANO, Direito Constitucional, 1, Rio de Janeiro, 1977, págs. 409 e segs.; JOSÉ ALFREDO
OLIVEIRA BARACHO, Regimes Políticos, São Paulo,
1977; ADRIANO MOREIRA, Ciência Política, Lisboa, 1979, págs. 137 e segs.; PAULO
BONAVIDES, Ciência Política, 6.L’ ed., Rio de Janeiro, 1986, págs. 223 e segs.; JEAN-LOUIS
QUERMONNE, Les Régimes Politiques Occidentaux, Paris, 1986; CONSTATIN L.
GEORCOPOULOS, Contribution à la elassification des régimes politiques, Paris, 1987; VITALINO
CANAS, Preliminares de Estudo da Ciência Política, Macau, 1992, págs. 37 e segs.; GIUSEPPE DE
VERGOTTINI, Diritto Costituzionale Comparato, 4.2 ed., Pádua, 1993, págs. 95 e segs.; GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional,
6.-1 ed., Coimbra, 1993, págs. 707 e segs.

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partir da idealização de uma forma concreta verificada (como Atenas ou Esparta na
Antiguidade, a Inglaterra ou a Suíça na Idade Moderna), sejam pensados a partir de
uma síntese de elementos bons de várias formas de governo (dando origem aos
chamados governos mistos), ou sejam pensados em termos de pura construção ideal
ou utopia’;

c) Que as tipologias aparecem em ligação directa ou indirecta com as situações


vividas pelos seus autores - e daí as suas variações e constantes desactualizações;

d) Que, ao mesmo tempo, elas se projectam sobre a própria prática política, pelo
menos, a nível de legitimidade e de apreciação dos actos dos governantes (o que
mostra como os factores culturais e ideológicos agem sobre a realidade social e
política);

1. À letra, utopia significa porém (ou por isso mesmo) não lugar, lugar inexistente,
nenhures.

Têm sido muitos os livros com construções de Cidades ideais, mais felizes ou mais
justas. Entre todos, lembre-se o de TOMÁS MORUS (Utopia,
1516), sendo ”Utopia”, uma república insular descrita por um viajante português,
Rafael Hifiodeu. Para um relance panorâmico sobre o assunto, v. MANUEL
ANTUNES, ”Utopia”, in Pólis, V, págs. 1465 e segs.; JEAN SERVIER, L’Utopie,
Paris, 1979; PAULO FERREIRA DA CUNHA, Constituição, Direito e Utopia,
Coimbra, 1996.

Mas igualmente se conhecem anti-utopias ou descrições de organizações políticas


negadoras de liberdade e de felicidade das pessoas: v., por exemplo, no nosso tempo,
1984, de GEORGE ORWELL.

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e) Que, apesar de essencialmente voltadas para o poder, não ignoram, muitas vezes, os
elementos sociais ou os condicionamentos sócio-económicos do poder’.

11 - Importa discernir tipologias clássicas (antigas e modernas) e tipologias actuais


(tipologias surgidas no século XX, frente aos problemas da nossa época).

As tipologias clássicas possuem de comum:

a) São tipologias simples - cada uma delas, ao procurar a suma divisio, adopta, de
regra, um só critério de base;

b) Conferem todo o relevo à titularidade e ao exercício do poder, numa postura tanto


de observação de factos quanto de formulação de juízos de valor;

c) 0 elemento prescritivo entra, por um lado, através da distinção entre formas puras e
formas degeneradas e, por outro lado, através do apontar de formas mistas (desde
Políbio e Cícero a Harrington, Locke e Montesquieu, mas não Bodin, Hobbes ou
Rousseau).
Por seu turno, as tipologias propostas no século XX ostentam COMO características
gerais:

1. V. já o cap. III do livro VI da Política de Aristóteles.

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a) Adoptam critérios extremamente variados e, não raro, critérios múltiplos;

b) Situam-se quase todas no âmbito da democracia (que é a legitimidade prevalecente


hoje);

c) Atendem, não raro, a considerações de índole económica e social (ou implicam-


nas).

111 - As tipologias clássicas radicam em Platão e Aristóteles, e através de Cícero, S.


Tomás de Aquino, Maquiavel, Bodin e outros, prolongam-se até ao século XX. E é
usual contrapor tipologia tripartida e tipologia bipartida.

Na tipologia tripartida distinguem-se monarquia, aristocracia, democracia


(república, politeia, na expressão de Aristóteles). Na tipologia bipartida, ligada a
Maquiavel, monarquia (principado) e república.

IV - As tipologias propostas no século XX assentam, em grande parte, nas tipologias


clássicas, revendo-as ou adaptando-as às novas condições. Mas encontram-se,
igualmente, tipologias que apelam para outros critérios classificativos mais ou menos
exigentes.

ais coerente e a mais compreensível De entre as primeiras, a m

pelo homem da rua é a dicotomia democracia-ditadura. Também


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se fala em regimes de poder civil e regimes de poder militar. E no âmbito da


democracia, em democracia directa, democracia representativa e democracia
semidirecta (a que alguns aditam a democracia semi-representativa) e em
democracia censitária (ou burguesa) e democracia de massas.

Exemplos de tipologias para além da detenção do poder: pluralismo e monismo


político ou, de outra perspectiva, regimes pluripartidários e regimes
monopartidários; regimes liberais, autoritários e totalitários; e regimes capitalistas e
socialistas.

V - Ilustração da índole histórica das tipologias e a contraposição entre monarquia e


república:

a) Até ao século XVIII, a monarquia ou principado como governo de um só,


independentemente do processo da sua designação’, e a república (praticamente
quase sempre aristocrática) como governo de um colégio ou assembleia.

b) Durante a Revolução francesa, a monarquia como governo de um só (ligado às


características da monarquia absoluta) e a república como governo do povo (fundada
no princípio democrático, portanto).

1. Houve, assim, monarquias hereditárias, por cooptação (de algum modo, o Império
Romano) e por eleição (monarquia visigótica, Império Germânico, Polónia, etc.).

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c) Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos (MADISON) e depois, durante a maior parte do
século XIX, a república como governo representativo contraposto à democracia pura ou
governo directo’.

d) No século XIX conciliação entre monarquia (absoluta) e república (democrática) através


de uma forma mista, a monarquia constitucional (nuns casos com prevalência do princípio
monárquico - monarquia limitada - noutros com prevalência do princípio democrático -
monarquia parlamentar - e noutros ainda com equilíbrio entre eles, embora com
concentração de poderes no Rei - monarquia orleanista).

e) No século XX o desaparecimento do princípio monárquico e redução das características


da monarquia (agora só constitucional) à hereditariedade da chefia do Estado, mas, em
contrapartida, podendo entender-se que a república exprime um princípio democrático
qualificado (de onde, desde logo, a ausência de Chefe de Estado ou um Chefe de Estado
colegial ou singular electivo)2.

1. The Federalist, 1787, n.Q 14.

2. Cfr., por exemplo, GIOVANNI CASSANDRO, ”Monarchia”, in Enciclopedia del Diritto,


XX-VI, págs. 724 e segs.; ANTONIO PAPELL, La Monarquia espaflola y el Derecho
constitucional europeo, Barcelona, 1980; NICOLA ~EUCCI, Republica, in Dizionario di
Politica, 2.L’ ed., Turim,
1993, págs. 960 e segs.; NUNO ROGEIRO, República, in Polis, V, págs. 414

e segs.

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3. AS GRANDES CLASSIFICAÇõES DOUTRINAIS

1 - A primeira grande classificação doutrinária a referir é a de PLATAO (A República, As


Leis).

Na linha do seu pensamento, para ele todas as formas de governo existentes são corruptas e
Estado óptimo há um só.

Reduz essas formas a quatro, segundo graus crescentes de imperfeição (ou decrescentes de
perfeição):

1) a timocracia (governo da honra ou de homens honrados ou transição entre a Constituição


ideal e a Constituição real, como seria o caso de Esparta);

2) a oligarquia ou fornia corrupta -de aristocracia;

3) a democracia;

4) a tirania. E indica duas formas ideais, indiferentemente: a monarquia e a aristocracia


(de que é degenerescência a timocracia).

Para Caracterizar estas formas de governo, PLATÃO examina as virtudes e os vícios das
respectivas classes dirigentes e a legalidade ou a ilegalidade da actuação dos governos. A
passagem de uma forma a outra dá-se com a mudança de gerações e com a corrupção dos
seus princípios pelo excesso que conduz à discórdia.

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11 - Mas a mais célebre das análises das formas de governo pertence a
ARISTóTELES (Política, cap. V do livro 111), se bem que o critério fundamental em
que assente remonte a HERóDOTO.

É um critério quantitativo - quem governa (se é um homem só, se são poucos ou


muitos) a que acresce um critério valorativo
- como governa (qual o interesse ou o bem almejado pelos governantes, se o bem
geral, se o bem apenas deles).

Formas puras revelam-se a monarquia, a aristocracia e a ”politeia”. Formas


degeneradas a tirania, a oligarquia e a democracia (a democracia aparece como
governo em favor dos pobres, tal como a oligarquia se define como governo em favor
dos ricos). Cada uma destas formas compreende subdistinções (por exemplo quanto à
monarquia, a dos tempos heróicos, a de Esparta e a despótica, do Oriente).

Como hierarquia das formas de governo, propõe ARISTóTELES uma muito


semelhante à de PLATÃO (sendo a forma pior a degenerescência da melhor):
monarquia - aristocracia ”politeia” - democracia - oligarquia - tirania. Entende, porém,
que o melhor governo seria uma conjugaçao de governos diversos, numa preocupação
de mediania ou equilíbrio.

111 - POLíBIO (livro VI da História), escrevendo no século II antes de Cristo e


debruçando-se sobre a Constituição romana, procede a um estudo dos mais completos
das formas de governo.

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Segundo ele, existem seis fomias fundamentais de governo, três boas e três más; e há
uma sétima forma, síntese das três formas boas (e de que seria exemplo a Constituição
romana). É um tratamento simultaneamente sistemático, histórico e axiológico.

As formas boas de governo fundam-se no consenso e vêm a ser o reino, a


aristocracia e a democracia (esta, no sentido que perduraria). As formas más
repousam na força e vêm a ser a tirania, a oligarquia e a oclocracia. As formas boas
e más sucedem-se em ciclos, deste modo: a monarquia decai em tirania; daqui passa-
se a aristocracia, que depois degenera em oligarquia; segue-se a democracia, que, por
ser branda, cai em oclocracia (ou governo de multidão); volta-se à monarquia; etc.

A grande contribuição de POLíBIO é a sua formulação da tese do governo misto,


associada à teoria dos ciclos. Como os ciclos mostram a breve duração das formas
puras, para haver estabilidade toma-se necessário recorrer a governos mistos (como
em Roma, em que os consules traduziriam o elemento monárquico, o Senado o
elemento aristocrático e o povo o elemento democrático. Mas os governos mistos
também se modificariam; e haveria ciclos ainda no interior dos próprios governos
mistos.

IV - MAQUIÁVEL (0 Príncipe e Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio),


muitos séculos mais tarde, avança com uma concepção bastante diversa, no âmbito já
do Estado moderno.
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Propõe uma bipartição, correspondente à efectiva situação do seu tempo (ao passo que
na Grécia havia uma grande variedade de formas de organização): a contraposição
entre república (que se encontrava em Itália, na Flandres e em certas cidades alemãs)
e o principado (em rápido florescimento, então).

A república é o governo de vários, sejam alguns (aristocratas) Ou muitos ou todos


(democracia). 0 principado ou monarquia o governo de um só. Na república tem de se
formar uma vontade colectiva, na monarquia não há senão uma vontade individual.
Divide os principados em hereditários e novos (estes provenientes de uma recente
conquista do poder, num conceito que se aproxima do moderno conceito de ditadura).
Para além disso, não deixa de elogiar os governos mistos, exaltando, a esse propósito,
também ele, a República Romana.

V - Outra tipologia é a de JEAN BODIN, autor da obra celebérrima Os seis livros da


República, publicada em 1576. JEAN BODIN ficou conhecido, sobretudo, como o
teórico da monarquia centralizada (e, até certo ponto, da monarquia absoluta francesa)
e por ter definido e lançado com êxito - propiciado pelas condições históricas - o
conceito de soberania.

Contudo, nessa obra, BODIN procede a uma classificação formas políticas, tendo em
conta a distinção entre titularidexercício da soberania.

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0 poder político poderia pertencer a um só, a vários ou a todos - de onde,


respectivamente, monarquia

aristocracia e demo-

cracia. Entretanto, não bastaria atender à titularidade, era também necessário atender
ao exercício e às pessoas ou instituições às quais era confiado - o próprio Rei, uma
assembleia aristocrática ou uma assembleia popular.

Seria, assim, possível combinar as formas de governo em razão da titularidade com as


formas de governo em razão do exercício; poderia haver uma titularidade monárquica
e um exercício aristocrático ou até democrático do poder, assim como poderia haver
uma titularidade aristocrática e um exercício monárquico ou democrático, e uma
titularidade democrática com um exercício monárquico ou aristocrático. E daí não há
uma divisão tripartida segundo o pensamento de ARISTóTELES ou de POLíBIO, mas
uma divisão em nove grandes formas de governo:

- monarquia monárquica (que só aparentemente seria um pleonasmo);

- monarquia aristocrática;
- monarquia democrática;
- aristocracia aristocrática;
- aristocracia monárquica;
- aristocracia democrática;
- democracia monarquica;
- democracia aristocrática; e

- democracia democrática.

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Com isto, chega-se a formas aparentemente mistas. Só que o próprio BODIN vem,
polemicamente, pÔr em causa a existência de governos mistos, afirmando que, em
qualquer Estado, há sempre um princípio que prevalece.

Finalmente, num segundo momento ou de um ângulo prescritivo, BOD1N coloca a


problemática do modo como o poder é exercido, dos resultados e do valor desse
exercício, e vem então propor uma tripartição dos governos em legítimos,
despóticos e tirânicos. É outra maneira de pensar a velha distinção entre governos
puros e corruptos. A monarquia que BODIN preconiza é, obviamente, uma monarquia
legítima ou régia, em que os súbditos obedecem às leis do rei e o rei às leis da
natureza.

VI - outra formulação com interesse é aquela que no século XVIII, GIAMBATTISTA


VICO (autor de La Scienza Nuova) apresenta no âmbito da sua filosofia da história.
Não é que introduza novos termos; o que ele faz é uma correlação entre as formas
políticas e as fases da evolução histórica, tomando Roma como referência.

Haveria três idades: a dos deuses, a dos heróis e a dos homens. A idade dos deuses
corresponderia à teocracia, a dos heróis à aristocracia e a dos homens quer à
democracia ou república popular quer à monarquia. A sucessão de formas políticas
seria: aristocracia (a primeira forma de Estado), democracia e monarquia.

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VII - Muito mais influente viria a ser, contudo, MONTESQUIEU. 0 seu famosíssimo
De VEsprit des Lois compreende toda uma doutrina do governo, de que não é
senão um dos aspectos a separação de poderes.

MONTESQUIEU agrupa as formas políticas também a partir de uma tripartição. Mas


esta tripartição não obedece já ao esquema aristotélico, tende a ser uma combinação
da concepção aristotélica com a análise das formas do governo em boas e más e em
perfeitas e imperfeitas.

ao, pois, ess

S- as formas a república, a monarquia e o despotismo. A república e


monarquia vem na linha de MAQUIAVEL, e acrescenta-se uma terceira forma, o
despotismo, o qual corresponde ao governo imperfeito.

A república e o governo de todos por um grupo de homens, por um colégio de


homens, sejam alguns, sejam todos. A monarquia e o governo de todos Por um só
homem, mas um só homem que exerce o poder com equilíbrio, na perspectiva do bem
comum. 0 despotismo é o governo imperfeito geralmente exercido Por um só homem
sem ter em conta o bem comuin’.

1. Para MONTESQUIEU que escreve considerando não só a Europa mas também a


Ásia, a república e a monarquia seriam as formas europeias de governo e o
despotismo seria a forma asiática de governo. É óbvio o eurocentrismo.

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Daqui passa MONTESQUIEU para uma segunda classificação, agora sob prisma
prescritivO e valorativo, declarando a monarquia e a república governos moderados e
contrapondo-lhes o governo despótico. E é nesta distinção fundamental que vai
entroncar a separação dos poderes, porque os governos moderados se definem não já
pela titularidade ou pelo exercício, mas sim pela limitação de poder.

ou seja, segundo uma classificação descritiva, pode haver república, monarquia,


despotismo. Segundo uma classficação prescritiva, poder moderado e poder despótico.

VIII - Também KANT se ocupa (na Paz Perpétua) da análise das formas políticas,
observando a diferença das pessoas que possuem o supremo poder do Estado e o
modo de governar o povo.

Só há três formas possíveis de soberania (forma imperfl): ou a soberania é possuída


por um só, por alguns ou por todos os que formam a sociedade civil. De onde,
autocracia, aristocracia e democracia, ou poder do príncipe, da nobreza e do povo

Quanto à forma de governo (forma regiminis) ou modo como o Estado faz uso da
plenitude do seu poder, - ele ou é republicano ou é despótico. 0 princípio republicano
corresponde ao princípio político da separação do poder executivo do poder
leg,slatIvo; o
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despotismo é o princípio da execução arbitrária pelo Estado das leis que ele a si
mesmo deu (sendo, por conseguinte, a vontade pública manejada pelos governantes
como sua vontade privada).

Das três formas de Estado, a democracia é, no sentido próprio da palavra,


necessariamente um despotismo, porque funda o poder contra executivo no que todos
decidem sobre um e até, por vezes,

um - se não houve o seu consentimento. Para que a forma de governo seja adequada
ao conceito de direito deverá, portanto, basear-se no sistema representativo, único
capaz de tomar possível uma forma republicana.

IX - No século XX, HEGEL (na sua Filosofia do Direito) adoptaria uma análise algo
semelhante à de MONTESQUIEU, distinguindo despotismo, democracia e monarquia
(onde MONTESQUIEU falava em república, fala HEGEL em democracia).

HEGEL procede à contraposição não apenas tendo em conta a titularidade e o


exercício do poder político mas tendo em conta também a própria estrutura cultural e
social subjacente ao exercício do poder. 0 despotismo corresponderia a uma sociedade
não diferenciada, em que a ideia de direito não estaria ainda assente, a uma sociedade
atrasada ou primitiva; na democracia, já se verificaria uma determinada organizaçã9
política e social, mas

’a que se daríam a unidade da imperfeita; seria apenas na monarqui 1

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sociedade e a realização plena da ideia de História e da ideia de Sociedade.

A monarquia seria, pois, a forma mais perfeita e a última fase da organização política
que se verificaria ao longo dos tempos. Não se confundiria, contudo, com a monarquia
absoluta; seria a monarquia constitucional - a monarquia constitucional prussiana
(bem diferente da francesa) e em que se disporiam três poderes, o legislativo, o de
governo e o do soberano.

X - Tipologia bem característica do século XX é a de CARL SCHMITT (no seu livro


Legalidade-Legitimidade), assente numa determinante visão política das funções do
Estado.

Há quatro funções do Estado: a legislativa, a administrativa, a jurisdicional e a


política. Consoante cada uma destas funções predomine sobre as demais e consoante,
por conseguinte, o órgão correspondente a essa função prevaleça sobre os demais
órgãos, encontra-se uma forma política específica.

Assim, caberia distinguir: o Estado legislativo - aquele em que na forma de governo


prevalecem a função legislativa e os respectivos órgãos; o Estado jurisdicional ou
judicial - em que são os tribunais os órgãos centrais da vida pública; o Estado
administrativo - em que predomina a função administrativa, há um
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domínio do Estado pelos órgãos administrativos; e o Estado governamental - em que a


função de direcção política é a função essencial e são os órgãos de direcção política
que prevalecem.

0 Estado legislativo e o Estado jurisdicional teriam correspondido a formas do século


XIX, sendo o Estado legislativo característico da Europa e o Estado judicial
característico dos Estados Unidos da América.

0 Estado administrativo corresponderia aos Estados da primeira fase do século XX.

0 Estado governamental que se lhe seguiria, seria um Estado de decisão política, com
prevalência de poder no órgão ou nos órgãos aos quais incumbe imprimir sentido, em
cada momento, à vontade do Estado (repare-se na conexão com o conceito
decisionista de Constituiçao e com a situação vivida entre as duas guerras na Europa,
particulannente na Alemanha).

X1 - Nos antípodas de SCHMITT, fica a Teoria da Constituição de KARL


LOEWENSTEIN, toda construída (também não pouco por causa da experiência
histórica e pessoal de Autor) como teoria de limitação ou de controlo do poder, numa
renovação do pensamento vindo de LOCKE e de MONTESQUIEU.

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LOEWENSTEIN, por isso, apresenta uma bipartição das formas de governo em razão
de um critério da limitação:

- Autocracia: se o poder está concentrado em alguém, seja um homem só, seja um


grupo, seja um partido, seja uma assembleia;

- Constitucionalismo: se o poder está repartido por vários centros, por vários órgãos,
por várias entidades.

E esta classificação está directamente relacionada com aquela que KARL


LOEWENSTEIN faz das Constituições em normativas, nominais e semânticas. As
Constituições normativas são cumpridas como verdadeiros sistemas normativos,
representam uma limitação do poder e, portanto, são as Constituições próprias do
constitucionalismo; pelo contrário, as Constituições nominais e semânticas estão
ligadas à autocracia (pelo menos, à autocracia moderna).

X11 - No seu Tratado de Ciência Política, GEORGES BURDEAU estuda as formas


governamentais e os regimes políticos.

Dentro das formas governamentais, contrapõe governos monocráticos e


deliberativos (conforme os mecanismos de poder
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são animados por uma força única ou por uma pluralidade de forças). Os governos
monocráticos englobam as monocracias autoritárias e as monocracias populares. Os
governos deliberativos são aqueles em que há discussão e oposição.

Nos regimes, contrapõe regimes democráticos e autoritários e na democracia


considera ainda:

A democracia governada (própria do século XIX): o povo teria a titularidade, mas não
teria o acesso real ao poder, o povo seria um povo jurídico e não um povo real;

E a democracia govemante (própria do século XX): o povo real e a sua vontade real
teriam acesso ao poder, seja na democracia do poder aberto ou democracia pluralista
de tipo ocidental; seja na democracia de poder fechado ou democracia marxista,
equivalente a monocracia popular.

X111 - Muito diferente é a análise de GABRIEL ALMOND

(Política Comparada), tomando como critério a progressiva diferenciação de funções


de Estado.

Donde:

1. Sistemas primitivos: com indiferenciação de funções e órgãos;

31
2. Sistemas tradicionais - correspondentes a não acesso das pessoas, dos súbditos, ao
poder;

3. Sistemas modernos - nos quais ocorre a participação crescente no poder e a


diferenciação de funções do Estado.

XIV - Maneira de ver em estreitos moldes jurídicos e, naturalmente, a de KELSEN


(Teoria Geral do Estado). As formas de governo classificam-se segundo os processos
de criação do direito, e daí que:

- A democracia se caracterize pela participação dos destinatários das normas jurídicas,


dos governados, na formação de vontade estadual, pela autodeterminação dos
governados, pela liberdade;

- E a autocracia, pelo contrário, por a vontade estadual se formar sem participação dos
governados, sem autodeterminação, sem liberdade’.

1. Muitas outras tipologias poderiam ser resumidas.

Por curiosidade, vale ainda a pena citar o quadro das formas de governo de
FERNANDO PESSOA (”Considerações pós-revolucionárias”, in Páginas de
pensamento político - 1, 1910-1919, com organização de Antônio Quadros, Lisboa,
1986, pag. 58):

32

4. DISTINÇÃO DE CONCEITOS PROPOSTA

1 - Indicadas as principais tipologias de formas políticas, toma-se ainda mais evidente


que só é possível prosseguir no tratamento do tema, desde que se proceda a um
rigoroso balizar de fronteiras conceituais.

Temos, por um lado, conceitos de capital importância na teoria do Estado (tanto de


uma perspectiva jurídica como politológica), mas que devem a priori ser afastados
por, embora conexos com a matéria que nos ocupa, para ele só relevarem por via
indirecta. São os de tipo histórico do Estado, de tipo constitucional de Estado e de
forma de Estado.

E temos, por outro lado, aquelas figuras que se prendem com os problemas a abordar
aqui e a respeito das quais há-de ser feita a necessária destrinça. São as de forma de
governo, sistema de governo, forma institucional, sistema eleitoral, sistema de
partidos, regime e sistema político.

Aristocratismo Democratismo

Monarquismo Monarquia absoluta Monarquia democrática

Individualismo Cesarismo (?)

Republicanismo República aristocrática República democrática (pura)


Individualismo integral

Anarquismo Oligarquia Socialismo

Anarquia pura

33
II - Quando pensamos em Estado temos de pensar sempre numa certa concretização
do Estado, numa certa manifestação histórica de Estado; pois é disso que se cuida
quando se fala em tipos de Estado’. É diferente o Estado moderno do Estado romano,
por exemplo; e aqui só cabe cuidar do Estado moderno.

A noção de tipo constitucional de Estado tem (ou teve) particular interesse no século
XX, causa do confronto de diferentes formas organização política, económica e social
portanto, também, constitucional que nele verifica (ou verificou). Dentro do mesmo
histórico de Estado, o europeu, inserem-se tipos constitucionais tão diversos, e em luta
durante quase todo o século, como o Estado de Direito (primeiro liberal, depois
social), o Estado marxista,3

-lenínista e o Estado fascista

Uma coisa vem a ser a contraposição entre Estado simples ou unitário e Estado
composto (designadamente Estado federal), outra a distinção entre monarquia
absoluta e governo representativo, ou entre sistema parlamentar e sistema
presidencial, ou entre sistema monista e sistema pluralista, para só dar dois ou três
exemplos. Uma coisa é a forma de Estado, outra a forma ou o sistema de governo.

1. V. Manual de Direito Constitucional, I, 5.1 ed.,Coimbra. 1996, págs. 49 e segs.

2. V. Manual .... págs. 93 e segs.

3. Pelo contrário, o Estado islâmico fundamentalista (que existe no Irão e procura


emergir noutros países) já não pode integrar-se aí. Ele é out-,-) tpo histórico de
Estado.

34

III - A forma de governo (tomando governo em sentido lato, equivalente ao grau


mais denso de fenômeno político) tem, precisamente, que ver com a relação política
fundamental - a relação entre govemantes e governados. É o modo como se
estabelece e estrutura essa relação; e estabelece-se e estrutura-se em resposta a quatro
problemas - os problemas da legitimidade do poder, da participação, do pluralismo ou
da liberdade e da unidade ou divisão de poder.

Além destes problemas (de certa maneira pressupostos por eles e também, de outra
maneira como problemas autónomas), põem-se todos os problemas concementes às
relações entre órgãos de governo (entre órgãos de função política), ou até à existência
ou não de uma pluralidade de órgãos govemativos. E somente aqui é que, em rigor, se
encontra o conceito de sistema de governo. Ao passo que a forma de governo
abrange a totalidade da vida política, a forma de governo confirma-se à estrutura
interna do poder, as instituições e ao estatuto dos govemantes.

Melhor se compreenderá a diferença dos dois conceitos, se se observar a situação


política na Europa, na América e noutras partes do mundo: hoje prevalece ou tende a
prevalecer a mesma forma de governo - a democracia representativa - sem embargo da
grande variedade de sistemas de governo, sistemas parlamentares, presidenciais, etc1.
1. Cfr., embora não coincidente, a distinção entre formas de Estado e formas de
governo adoptada por alguma doutrina em Portugal e no estrangeiro: assim,
BARBOSA DE MELO, Democracia e Utopia, Coimbra, 1980, pág. 40.

35
Pelo contrário, Pouco conteúdo político tem hoje, corno se notou já, o contraste
entre monarquia (a monarquia constitucional) e república. Não deixa, porém, apesar
de tudo, de revestir algum significado a nível institucional e de cultura cívica, pelo
que se justifica propor um conceito autónomo para o contemplar - o de forma
institucional.

A compreensão das formas e dos sistemas de governo dos dois últimos séculos requer
o conhecimento dos sistemas eleitorais e dos sistemas de partidos. Realidades (de
direito e de facto) bem caracterizadas, entrelaçam-se com essas formas e esses
sistemas de governo, ora como seus condicionamentos, ora como suas decorrências,
sem com eles se confundirem.

IV - Por último, cabe aludir a conceitos mais amplos, mais complexos, de síntese; o
conceito de regime político e o conceito de sistema político.

o conceito de regime é, essencialmente, um conceito ligado ao conceito de


Constituição: regime político é a expressão política da Constituição material. A cada
Constituição material corresponde um regime político, uma concepção dos fins e dos
meios do poder e da comunidade. Regime político, aliás, não se esgota na mera
organização do poder político, prende-se também, e muito, com os direitos
fundamentais e com a organização económica e social.

36

Por seu turno, o sistema político atende muito mais à efectividade do que à
normatividade; e abarca não só os órgãos e instituições formais ou constitucionais
mas também as demais instituições e corporações políticas ou sociais politicamente
relevantes, as forças políticas (partidos) e económico-sociais (sindicatos, associações
patronais), a ideologia dominante e o enquadramento exterior do Estado’.

V - Na Constituição portuguesa actual, alguns destes conceitos aparecem mais ou


menos explicitamente.

A forma de Estado esta patente no art. 6.2: ”0 Estado é unitário ... - Os arquipélagos
dos Açores e da Madeira constituem regiões autónomas dotadas de estatutos político-
administrativos e de órgãos de governo próprios”.

A forma de governo é definida nos arts. 9.% alínea c), e 10.9, n.9 2 como democracia
política e no art. 112.2 como sistema democrático; e recortada através de elementos
como a soberania popular (arts. 2.2, 3.% ri.!’ 1. e 111.2), o pluralismo (art. 2.2), a
representação política (arts. 10.9, 49.` e 116.L» e a separação e a interdependência de
órgãos de soberania (arts. 113.2 e 114.9).

1. Cfr., por todos, DAVID EASTON, The Political System, Nova Iorque, 1953;
GEORGES BURDEAU, Traité .... VII, págs. 578 e segs.

37
0 sistema de governo decorre dos poderes, das acções recíprocas e dos estatutos dos
vários órgãos políticos - a nível nacional, do Presidente da República, da Assembleia
da República e do Governo (maxime arts. 123.2, 124.9, 136.1’ e segs., l64.2 e segs.,
193.L> e segs. e 201.2 e segs.); e a nível regional, da assembleia legislativa e do
governo regional (art. 233.2).

A forma institucional república - ligada à existência de um Presidente da República


electivo (mas não só)’ - é apresentada, menos correctamente, como forma de governo:
”As leis de revisão constitucional terão de respeitar: - b) A forma republicana de
governo” (art. 288.9, alínea b)”.

Os sistemas eleitorais - porque há tantos quantos os órgãos de base electiva -


aparecem em numerosos preceitos (arts. 116.9, n.2
5, 129Y, 152.2 e 155.2, 2319, n.2 2, 241.9, n.2 2, 247.2, n.2 2, 252.2 e
260.2). Já não, como não poderia deixar de ser, o sistema de partidos.

0 regime político, esse, é assim resumido no art. 2.9: ”A República Portuguesa é um


Estado de Direito Democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de
expressão e organização política democráticos e no respeito e na garantia da
efectivação dos direitos e liberdades fundamentais que tem por objectivo a realização
da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia
participativa”.

38

CAPITULO II

OS PROBLENIAS CARDEAIS
§ 1.o LEGITIMIDADE
5. SENTIDO DA LEGITIMIDADE

1 - Um princípio de legitimidade’ está presente em qualquer governo e em qualquer Estado.

1. V., entre tantos, MAX WEBER, Wirtschaft und Geselischaft, 1922, trad. cast. Economia y Sóciedad,
México, 1944-1969, 1, págs. 170 e segs.; GUGUELMO FERRERO, Pouvoir - Les Génies de la Cité,
Nova Iorque, 1942; Lidêe de Légitimité, obra colectiva, Paris, 1967; ALESSANDRO PASSERIN
UENTRÈVES, Obedienza e resistenza in una società democratica, Milão,
1970; REINHOLD ZIPPELIUS, op. cit., págs. 255 e segs.; MARCELLO CAETANO, op. cit., 1, págs.
293 e segs.; PouvoirS, n.9 5, 1978; AFONSO QUEIRó, ”Tirania”, in Verbo, X-VH, págs. 1579 e segs.;
Legitimation of Regimes, obra colectiva ed. por BOGI)AN DENITCH, Beverly HilIs e Londres,
1979; Conflict and Control - Challenge ofLegitimacy ofModern Governments, obra colectiva ed. por
Anthon J. Vidich e Ronald M. Glossman, Beverly HilIs e Londres, 1979; GOMES CANOTILHO,
Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, págs. 14 e segs.; Dictatures et
Légitimité, ob. col. sob direcção de Maurice Duverger, Paris, 1982; JOÃO BAPTISTA
41
Todas as formas de governo assentam numa determinada justificação. Pretendem
fundamentar-se, legitimar-se em certo princípio (ou ideia de Direito, para usar uma
expressão de

rini GEORGES BURDEAU). Para lá da legalidade - ou ’confo dade com o


próprio Direito positivo que criam - para se radicarem e durarem, precisam de
legitimidade - ou conformidade com critérios, objectivos, valores aceites na
comunidade’.

As tipologias básicas de formas de governo são (como Mostrámos) tipologias não


apenas descritivas mas também preceptivas: não compreendem só os governos que
existem mas também os que devem existir. Ora, isso liga-se directamente com as
concepções de legitimidade - de como deve o Estado ser, de como deve ser a

MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra,


1983, págs. 173 e segs.; OLIVEIRA BARACHO, ”Legitimidade do poder”, in Revista
da Associação dos Magistrados Mineiros, vol. 11, 1983, págs. 143 e segs.; n.2 de
1984 de Sociologia del Diritto; MARTIM DE ALBUQUERQUE, ”Legitimidade”, in
Polis, 111, págs. 1017 e segs.; Diritto e Legittimazione, obra colectiva dirigida por
Renato Treves, Milão, 1985; PAULO BONAVIDES, op.cit., págs. 113 e segs.;
JOAQUIM AGUIAR, ”Normas de dominação e sociedade: o caso do
neopatrimonialismo”, in Análise Social, 1987, 2.Q, págs.
241 e segs.; Coniparing Pluralist Democracies, obra colectiva ed. por MATTEI
DOGAN, Boulder, Westview, 1988; TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ, MARIA
HELENA DINIZ e RITINHA A. STEVENSON GEORGALIKAS, Constituição de
1988 - Legitimidade, Vigência e Eficácia, Supremacia, São Paulo, 1989; MARIA DE
ASSUNÇÃO ESTVES, A Constitucionalizaçâo da Direita de Resistência, Lisboa,
1989, págs. 19 e segs. e 101 e segs.

1. Assim como, em momentos revolucionários ou de ruptura, mesmo não havendo


ainda uma nova legalidade, a legitimidade proclamada serve de princípio - de direito,
e não de facto - por que se vai reger o Estado.

42

organização do poder político, de como deve o Estado organizar-se e funcionar para


cumprir os seus fins.

Mais ainda: conforme escreve JELLINEK, o poder tem de assentar na convicção


popular sobre aelecomitimaiidsaOduem.Esta aprovação, expressa por diferentes
maneiras enos

do Estado vigor, é uma condição permanente na forniaação concreta

e constitui uma das funções necessárias

omunidade popular como elemento constitutivo do Estado’.

Qualquer poder ou qualquer govemante, para ser poder, para governar ou realizar os
seus fins carece sempre de ser reconhecido como tal pela comunidade. Ele, em rigor,
só é poder político a partir dessa relação - a partir da relação bilateral que se
estabelece entre quem governa e quem é governado.

Não basta o governante invocar qualquer intenção do seu poder ou ter, pura e
simplesmente, a força material para se fazer obedecer; ou apresentar-se ao serviço
deste ou daquele projecto ou ideologia. Tem ainda de obter o consentimento, pelo
menos passivo, dos destinatários do poder. Tem ainda de se configurar como
autoridade.

Em que consiste ou em que se baseia esse consentimento? Antigamente, dir-se-ia


prevalecerem os factores espirituais (as

1 - QP. cit., pág. 318.

43
tradições, as crenças, as doutrinas políticas); mais recentemente, privilegiam-se os
factores económicos, seja o domínio de classe ou a conjuntura de riqueza ou bem-
estar; e também se tem procurado interpretá-los em meros moldes sociológicosi.

Mas afigura-se mais correcto integrar todos os elementos num conjunto complexo. A
questão da legitimidade não releva só da cultura política, ou só das concepções
jurídicas, ou só da situação económico-social, ou só dos condicionalismos
geográficos. Releva de todos eles e do modo como se dispõem em cada país e em cada
época.

Há uma problemática teórica geral da legitimidade e há tantos problemas de


legitimidade em concreto quanto os Estados e as formas de governo, simultânea ou
sucessivamente.

6. A LEGITIMIDADE NA HISTóRIA

1 - A temática da legitimidade está, pois, sempre presente ao longo dos tempos.


Revela-se, porém, mais importante ou mais candente em momentos de crise.

1. Cfr., por exemplo, P.11. PARTRIDGE, Consent and Consensus, Londres,


1971; Democracy, Consensus, Social Contract, obra colectiva editada por PIERRE
BIRNBAUM; ANDRES OLLERO, ”Consenso: racionalidad o legitimación?”, in
Anales de Ia Catedra Francisco Suarez (Universidad de Granada), 1983-1984, págs.
164 e segs.

44

Não é por acaso que ocupa um grande lugar na doutrina cristã da Idade Média, quando
se procura, no meio de enormes convulsões, estabelecer situações políticas com
estabilidade e que, ao mesmo tempo, sejam situações de limitação de poder (porque
legitimar o poder é ao mesmo tempo limitá-lo de acordo com os fins correspondentes
à legitimidade). E é então que BÁRTOLO fórmula a contraposição entre legitimidade
de título (ou legitimidade derivada do modo de designação) e legitimidade de
exercicio (ou legitimidade derivada do modo de exercício das funções ou do poder
político).

Nem é Por acaso que a questão volta a ter uma grande acuidade na Europa nos séculos
XVIII e XIX. Se na Inglaterra se transita, como se sabe, com relativa facilidade, para a
monarquia parlamentar, já na maior parte do Continente tal não acontece e, em alguns
países - entre os quais Portugal - a instauração de formas liberais e democráticos
mostra-se lenta e precária’.

0 século XX, século de revoluções e de transformações radicais por toda a parte, viria
a ser, finalmente, também ele marcado pela legitimidade: destruição de antigas
legitimidades monarquicas ainda subsistentes e- de legitimidades imperiais, conflitos
de legitimidades, assim como, em alguns casos, consolidação ou sedimentação de
princípios de legitimidade antes apenas afirinados nos textos constitucionais.

1. Recorde-se que no século XIX, português, espanhol e francês legitimistas eram


aqueles que defendiam a legitimidade monárquica e, particularmente, a legitimidade
monárquica absoluta.

45
11 - A propósito da passagem da legitimidade monárquica absoluta do século XVIII
para a legitimidade democrático-liberal ou monárquico-liberal ou monárquico-
constitucional ao longo do século XIX, GIGLIELMO FERRERO apontou três formas
de governo:

Em primeiro lugar, os governos legítimos: aqueles que são aceites pela colectividade,
aqueles em relação aos quais a colectividade professa a crença na sua razão de ser, na
sua qualidade legítima para exercer o poder.

Em segundo lugar, os governos quase/legítimos: aqueles govemos que invocam um


tipo de legitimidade, mas que têm de se defrontar com outra legitimidade que ainda
subsiste na colectividade. E, quando isto acontece, os governos quaselegítimos têm
muitas vezes que se impor pela força.

- Em terceiro lugar, os governos pré-legítimos: aqueles governos que estão em vias


de obterem, mas ainda não obtiveram, o assentimento na comunidade.

Esta análise pode estender-se a muitas situações do século XX.

111 - 0 problema da legitimidade não se suscita apenas no âmbito dos ordenamentos


internos dos Estados. Suscita-se outrossim a nível de relações internacionais’.

1. V. JORGE MIRANDA, Direito Internacional Público, 1, Lisboa, 1995, págs.


256 e segs e autores citados.

46

0 reconhecimento de Estado e de outros sujeitos de Direito internacional e o


reconhecimento de Governo (este, aliás, só ocorrendo quando haja rupturas
constitucionais) implica a observância de certas regras jurídicas e tem-se chegado
a pretender ainda o respeito de certos padrões de referência, valores ou objectivos
assumidos como dominantes pela comunidade internacional.

Pense-se no princípio das nacionalidades no século XIX e no da autodeterminação dos


povos do século YX como justificativos ou legitimadores de movimentos
irredentistas, secessionistas ou anticoloniais ou, ao mesmo tempo, na ilegitimidade da
intervenção estrangeira para provocar o desmembramento de um Estado.

Pense-se, quanto ao reconhecimento de Governo, na doutrina monárquica da Santa


Aliança até 1848 e nas doutrinas de legitimidade democrática difundidas na América
Latina. Ou, na Europa após 1945, na exigência de formas democráticas, com
parlamentos resultantes de eleições livres, para o acesso de qualquer Estado a
organizações internacionais (Conselho da Europa, Comunidades Europeias).

7. TIPOS DOUTRINAIS DE LEGITIMIDADE

1 - Além da já referida visão dicotómica legitimidade de título e legitimidade de


exercício, talvez a mais conhecida classificação de tipos de legitimidade seja a
tripartição proposta por MAX
47
WEBER de legitimidade tradicional, legitimidade carismática e legitimidade legal-
racional.

A legitimidade tradicional repousa na tradição, nas práticas costumeiras e em


determinadas crenças morais, culturais, etc. E aqui haveria a salientar, historicamente,
quatro sub-tipos, dois arcaicos ou originários e dois mais recentes. Os primeiros
seriam o patriarcalismo antigo e a gerontocracia; os segundos seriam a organização
patrimonial e a organização estamental.

Quanto à legitimidade carismática, corresponde ela ao poder personalizado e abrange


os casos em que o poder é reconhecido a alguém em virtude de uma qualidade, de um
dom específico dessa pessoa. Assim acontece, por exemplo, quando o poder remonta
a determinados factos bélicos, a feitos de heroísmo, a grandes virtudes pessoais, a
decisões políticas marcantes de um povo ou mesmo a laços de sangue.

A legitimidade legal-racional, essa assenta em normas jurídicas gerais e abstractas,


ditadas pela razão. Forma mais avançada assinala aquilo a que MAX WEBER chama
Estado administrativo-burocrático.

11 - Vale a pena aludir a, entre várias outras classificações, à que SERGIO COTTA
sugere, embora num plano não tanto de legitimidade em si mesmo quanto de ideologia
de legitimidade.

48

Seriam as seguintes essas concepções, ou ideologias: ideologias de legitimidade


histórica, de legitimidade racional e de legitimidade existencial. Os resultados, se não
são opostos, completam os da observação de MAX WEBER.

As ideologias de legitimidade histórica procuram a legitimidade no sentido da


História. E subdistinguem-se em ideologias de legitimidade histórica retrospectiva e
de legitimidade prospectiva. 0 que diferenciaria estas últimas das primeiras
(conservadoras, tradicionalistas) seria o facto de terem uma perspectiva de futuro, de
buscarem na História a justificação, a legitimação da mudança, maxime da revolução,
e não do status quo (assim, o marxismo).

Por seu turno, as ideologias de legitimidade racional baseiamse numa ideia de eficácia
do poder: será legítimo aquele que, em termos de racionalidade, seja mais eficaz.
Estas ideologias estão na base quer do despotismo esclarecido do século XVIII, quer
das modernas tecnocracias do século XX. Ideia semelhante se pode ver, já na
Antiguidade, em PLATÃO, ao referir-se aos filósofos-reis (que, em certa medida, se
podiam, contrapor aos pretensos reis-filósofos do século XVIII).

Por último, as ideologias de legitimidade existencial baseiam-se na capacidade de


promover a personalidade humana, a existência do homem em sociedade. Neste grupo
se integra, mormente, a concepcão cristã de legitimidade, que é a adoptada por
SERGIO COTTA.

49
111 - Importa também aqui fazer referência à mais sugestiva e fecunda das teses
empíricas, de matriz sociológica, sobre legitimidade: a da legitimação pelo
procedimento I. Pensada para o sistema jurídico em geral, aplica-se ainda à
legitimidade do poder e dos govemantes.

Segundo LUHMANN, normas jurídicas concebidas como decisões apenas podem


fundar-se noutras decisões, mas a legitimidade não repousa na decisão última.
Repousa, sim, no próprio procedimento: é este, e não cada um dos seus componentes,
que a confere.

Legitimidade pode então descrever-se como uma disposição generalizada para aceitar
decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância2.

8. TENTATIVA DE QUADRO GERAL

1 - Numa tentativa de enquadramento geral do fenômeno de legitimidade, podem ser


enunciados os seguintes critérios de destrinça:

1. É este, justamente, o título da obra famosa de NIKLAS LUHMANN (Legitimation


durch Verfahren, 1969, de que há tradução portuguesa, Legitimação pelo
Procedimento, Brasília, 1980).

2. Qp. cit., pag. 30.

50

- Objecto da legitimidade;
- Fundamento;

- Causa;
- Função; Forma.

11 - Os diferentes tipos de legitimidade distinguem-se em razão do objecto, dando


resposta a problemas relativos ao poder político ou ao Estado em si mesmo, a
problemas respeitantes à ilegitimidade das formas de governo e a problemas
respeitantes à legitimidade dos concretos govemantes actuais.

Há correntes negativistas que negam a legitimidade de qualquer poder político: assim,


designadamente, o pensamento anarquista. A grande maioria dos autores, no entanto,
toma uma posição positiva ou afirmativa em relação à legitimidade do poder político.

Dentro desta corrente, que toma uma posição positiva em relação à legitimidade do
poder político, duas teses se defrontam quanto ao fundamento dessa legitimidade.
Para as teses transcendentalistas, esse fundamento deve procurar-se fora da sociedade:
exemplo claro é o das teorias cristãs do direito divino, quer sobrenatural, quer
providencial - Omnis potestas a Deo. Para as teses imanentistas, o fundamento da
legitimidade do poder político deve buscar-se na própria sociedade. Exemplo bem
demonstrativo é o

das teorias contratualistas.


51
No tocante às formas de governo, cabe considerar quatro princípios: o da
legitimidade teocrática, o da legitimidade monocrática, o da legitimidade
aristocrática e o da legitimidade democrática. A estes princípios podem corresponder
grandes concepções de regime e de governo.

Quanto à problemática da legitimidade dos govemantes em concreto, ela pode


colocar-se em relação ao título ou ao exercício insista-se (esta última adquire
relevância autónoma quando os governantes exercem o poder em discrepancia com a
ordem estabelecida); e assim pode dizer-se que o título de um govemante é legítimo
ou ilegítimo ou que o exercício que faz do poder é, também, legítimo ou ilegítimo.

A distinção entre legitimidade de título e de exercício reporta-se aos governantes


actuais, mas não deixa de ter implicações na legitimidade da forma de governo em
concreto. No caso de um govemante possuir título legítimo, é porque se reconhece
legitimidade à forma de governo; se ele apenas possui legitimidade de exercício, está
a agir, o mais das vezes, à margem da forma de governo, por sua vez considerada ou
não legítima.

111 - Um segundo critério atenta ao fundamento da legitimidade e, trabalhando com


ele, será possível encontrar três contraposições:

52

a) Entre legitimidade de base religiosa e legitimidade de base laica;

b) Entre legitimidade de base histórica e legitimidade de base racional;

c) Entre legitimidade (do prisma jurídico) de base jusnaturalista e legitimidade de


base positivista.

IV - Terceiro critério de classificação é o da causa da legitimidade e traduz-se, de


novo, na referência a legitimidade que vem do título e a legitimidade que vem do
exercício.

A usurpação implica falta de legitimidade de título. A opressão e a corrupção


(económica)t falta de legitimidade de exercíci(e podem degenerar em tirania ou
despotismo.

VI - Quinto critério vem a ser o da forma como se manifesta a legitimidade ou como é


reconhecida pelos governados.

Haverá então legitimidade activa (através da adesão ou da aclamação) ou


legitimidade passiva (igual a mero consentimento).

53
§ 2.’

PARTICIPACÃO POUTICA

9. A PARTICIPAÇÃO POLíTICA EM GERAL

I - Da atribuição a qualquer pessoa da qualidade de cidadão de um Estado não resulta,


obrigatoriamente, o conferimento de uma interferência no exercício do poder. A soberania
da colectividade estadual satisfaz-se com a livre existência e acção de orgãos próprios ou de
govemantes que prossigam o interesse colectivo; não requer a participação dos membros da
colectividade.

Pode, por conseguinte, conceber-se a existência de governos que afastem, radicalmente, os


cidadãos - relegados para o estatuto de meros súbditos - de qualquer intervenção na gestão
da coisa pública, que lhes neguem qualquer influência nas decisões polí--’ ticas a tomar,
que, enfim, consagrem a liberdade dos govemantes
55
em face dos governados’. As monarquias territoriais da Antiguidade Oriental, as
monarquias absolutas da Idade Moderna e certas ditaduras contemporâneas
fornecem disso os exemplos mais frisantes.

Nos dois últimos séculos, porém, a tendência, primeiro europeia e americana, depois
universal, tem sido outra. Tem sido a de converter os súbditos em cidadãos
completos, a de elevar os homens na Cidade de simples sujeitos ao poder a
verdadeiros sujeitos do poder. Quer dizer: o sentido generalizado da evolução
política, sob formas diversas e não sem movimentos contraditórios, tem sido o de
fazer participar cada vez mais os governados nas tarefas da vida pública.

Não se trata de banir a distinção entre govemantes e governados. Mas trata-se, em


oposição ao Ancien Régime, de estabelecer uma relação permanente entre uns e
outros, de tal sorte que os governantes ajam como representantes do povo e prestem
contas ao povo pelos seus actos. Tal é o princípio representativo moderno, que, por
outro lado, se contrapõe também ao governo directo do povo (democracia directa),
praticado, designadamente, em Atenas e em diferentes cidades-Estados e municípios
ao longo dos tempos (e ainda hoje em alguns cantões da Suíça).

1. 0 que não significa - porque seria impossível - um total afastamento entre


govemantes e governados. Estes, ainda que indirectamente, conseguem agir ou reagir
sobre aqueles não só através da legitimidade que lhes reconhecem ou não mas
também através da aceitação e do maior ou menor grau de efectividade dos seus actos.

56

Por outro lado, sabe-se que a doutrina da origem popular da soberania (da soberania
popular alienável), por exemplo, precedeu na Europa de centenas de anos o triunfo
das ideias democráticas. E raros foram ou tem sido os regimes que, pelo menos, não
reconhecem aos cidadãos ou a grupos de cidadãos o direito de petição ou o de serem
ouvidos em defesa dos seus interesses ou do interesse geral.

De resto, o arredarem-se os indivíduos de qualquer participação política não implica


só por si, teoricamente, que eles não possam obter alguma ou muita participação no
interior das instituições sociais em que vivem. Podem estas estar fechadas para a
interferência no poder político e, não obstante, gozarem de apreciável autonomia na
prossecução dos seus interesses: em certa medida, foi o que sucedeu na Idade Média.

11 - A participação política não se insere sempre no mesmo contexto.

Ela pode ser decorrência natural da organização constitucional do país ou, ao invés,
ter cunho excepcional ou antagónico em face da filosofia própria da forma do
governo; pode constituir uma ideia dominante ou encontrar-se em concorrência com
outras ideias (quer em igualdade, quer em posição subalterna).

Se qualquer participação cívica implica a atribuição de direitos políticos, não traduz


já, necessariamente, um princípio funda-
57
mental de forma do governo ou do regime político, os quais, embora a ela desfavoráveis,
podem ser obrigados a acolhê-la por diversos motivos. Muito menos se poderá dizer que a
participação política significa só por si direcção dos negócios públicos pelos cidadãos com
direitos políticos ou acção determinante deles sobre

o governo.

111 - Os modelos ou tipos de colocação da participação política que se deparam na evolução


do Estado europeu são principalmente três: a monarquia limitada pelas ordens, em que a
participação se dá numa área circunscrita da vida política; a monarquia constitucional, em
que o princípio democrático se associa ao princípio monárquico; e o governo representativo,
em que o princípio fundamental da Constituição é aquilo que se chama a soberania do povo.

No primeiro modelo - historicamente correspondente ao Estado estamental, ou seja, a fase de


transição da organização política medieval para as formas modernas do Estado soberano - o
poder político entende-se que pertence ao rei, mas este deve exercê-lo com a ajuda e o
conselho do ”reino”, organizado em diferentes instituições, estamentos ou ordens, com vida
própria e larguíssima autonomia. Os estamentos participam, pois, no poder central através de
uma assembleia, em parte representativa e em parte não representativa, e de regra, com meras
atribuições consultivas.

58

No segundo modelo - característico do século XIX europeu, também ele época de transição -
há dois centros de poder, o rei e o Parlamento, com diferentes fontes de autoridade, a tradição
e o direito divino, por um lado, e a eleição por outro lado. 0 poder do rei não emana do povo,
nem o poder do Parlamento emana do rei; e o Parlamento, conquanto eleito por sufrágio
censitário, vai arrogar-se a representação de todo o povo para reforçar a sua posição perante o
rei’. Consoante os países, ora predomina o princípio monárquico, ora prevalece o princípio
democrático.

Por último, no terceiro modelo, fruto das revoluçoes amencana e francesa, o princípio da
organização política vem a ser o consentimento activo e explícito dos governados, de quem
dependem a designação e a conservação dos govemantes no poder. Porque se considera agora
que o poder pertence ao povo, os govemantes, eleitos e responsáveis políticamente perante o
povo, dizem-se representantes do povo. Mas há aqui que distinguir ainda, como se verá,
entre governo representativo liberal e democracia representativa.

10. MODOS DE PARTICIPAÇAO

1 - Os modos e as manifestações de intervenção do povo no processo político revelam-se,


naturalmente, variáveis com os

1 . E a da burguesia, de que é expressão, perante a velha nobreza.

59
países e as épocas, as formas de governo e os regimes políticos. Também o seu conteúdo
pode tomar-se mais ou menos rico e a sua prática mais ou menos autêntica’.

0 povo pode ser considerado através de cada cidadão a quem é reconhecido um direito de
participação, através de grupos de cidadãos ou de instituições sociais menores integradas no
Estado (famílias, municípios, organismos sócio-profissionais ou corporativos, etc.);
finalmente, através da totalidade dos cidadãos (ou das instituições) com direito de
intervenção na vida pública. Daí, modos individuais, institucionais e globais ou colectivos de
participação.

Como modos individuais e institucionais -porque a sua estrutura é idêntica, só divergem os


seus titulares - indiquem-se, por um lado, o direito de petição ou representação no interesse
geral2 o direito de acção popular e a iniciativa popular (legislativa ou constituinte)3 sem
esquecer as próprias liberdades públicas.

1. Cfr. MARNOCO E SOUSA, op. cit., pág. 99, falando (embora incidentalmente) na
importância da participação real dos cidadãos no governo, para determinar a diversidade e
fazer a classificação das suas formas.

2. Não o direito de reclamação ou queixa.

3. Porventura também o direito de resistência individual no interesse geral (mas parece que
só existe resistência individual no interesse geral, e não mera autodefesa, aí onde se admite,
pelo menos, um princípio de legitimidade democrática).

60

E, por outro lado (alguns, em zonas mais relevantes no campo administrativo, embora sempre
com significado político),’a intervenção em procedimentos da Administração, a audição, por
via de associações representativas de interesses, antes da tomada de decisão pelos órgãos
competentes, a participação em órgãos consultivos e auxiliares, a formação de associações
públicas, a gestão ou a participação na gestão de serviços públicos.

Quanto aos modos globais ou colectivos (globais ou colectivos, ainda que assentes em actos
individuais) são o sufrágio - traduzido ora em eleições, ora em referendo - e a assembleia
popular ou assembleia directa dos cidadãos.

Eles podem ser consagrados isoladamente e, assim, acontecer que se admitam uns e não
outros. Mas podem também ser consagrados em conjunto, desempenhando cada qual o seu
papel e reflectindo-se uns sobre os outros’. Começaram por aparecer os meios individuais e
institucionais de participação cívica e por se defender o princípio da resistência à opressão;
só muito depois surgiria o sufrágio e, mais recentemente, os institutos ditos de
2

democracia participativa .

I. Por exemplo: a petição ou representação dirigida a titulares de órgãos electivos.

2. Cfr. CAROLLE PATEMAN, Participation and Democratic Theory, Cambridge, 1970;


SAMUEL HUNTINGTON e JOAN M. NELSON, No easy choice. Polítical Participation in
Developing Countries, Harvard University Press, 1976; FRANCO LEVI, ”Partecipazione e
organizzazione”, in Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, 1977, págs. 1625 e segs.; CESAR
61
11 - Tanto os modos de participação individuais e institucionais como os modos
colectivos têm de comum o reconhecimento aos

indivíduos ou às instituições sociais de uma posição interessada e activa nos destinos


do Estado; têm de comum a atribuição aos cidadãos ou a essas instituições de direitos
políticos, ou direitos
1

relativos ao estabelecimento e ao exercício do poder público .

A participação política - o status activae civitatis de Jellinek assume um carácter


ambivalente. Tem ao mesmo tempo sentido objectivo e projecção subjectiva. Na sua
finalidade - a realizaçao do bem comum ou dos fins do Estado - e na sua atribuição a
cada indivíduo ou instituição como parcela do povo adquire um sentido objectivo e
funcional. Mas, na sua incidência, é essencialmente sub ectiva: é a participação feita
faculdade jurídica de agir frente j

aos govemantes.

Por isso, os direitos políticos em que ela se consubstancia não podem deixar de
revestir ainda uma dupla natureza, oscilando
2

entre poderes funcionais e direitos subjectivos stricto sensu

MARCELLO BAQUERO, ’Tarticipação política na América Lati-na Problemas de


conceituação-, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, n.2
53, Julho de 1981, págs. 7 e segs.; ARISTIDE SAVIGNANO, ”Partecipazione
política”, in Enciclopedia del Diritto, XXX11, págs. 1 e segs.; RONALD
INGLEHART, ”La nuova partecipazione nelle societá post-industriali”, in Rivista di
Scienza Política, 1988, págs. 403 e segs.

1. Cfr. art. 6W` do anterior Código Penal Português.

2. Dentro dos conceitos correntes. Não serão os únicos poderes jurídicos de natureza
ambígua; veja-se também o poder paternal.

62

Parece que são poderes funcionais, porque devem ser exercidos segundo o interesse
colectivo (tal como a competência dos órgãos de governo). Parece que são direitos
subjectivos, porque se destinam, simultaneamente, à prossecução de interesses
próprios dos seus titulares, interesses, por sua vez, a atender na síntese
do interesse colectivo’.

11. A REPRESENTACÃO POUTICA: FORMAÇÃO HISTóRICA

1 - No moderno Estado europeu2, instituições representativas encontram-se logo na


sua primeira fase, a estamental: são as assembleias, as Cortes, as Dietas, os Estados
Gerais, os Parlamentos, em que tomam assento não só membros por direito próprio
(do alto clero e da nobreza) como representantes ou procuradores (por exemplo, em
Portugal; procuradores dos concelhos).

1 . Compreende-se, sob este foco, por que razão a luta pela conquista de direitos
políticos, nomeadamente, do direito de sufrágio, não se esgota nunca na simples
participação, nem é sequer movida pela ideia de participação pela participação. Essa
luta faz-se quase sempre pela defesa de interesses sectoriais ou por certa maneira de
interpretar o interesse geral, na medida em que os direitos políticos constituem
instrumento primacial de protecção dos interesses dos seus titulares.

2. Não curamos aqui de instituições ou fenômenos análogos que houve ou tenha


havido na Grécia e em Roma. Cfr. J.A.0. LARSEN, Representative Government in
Greek and Roman Hístory, Bekerley e Los Angeles, 1966; AGERSON TABOSA, Da
Representação Política na Antiguidade Clássica, Fortaleza, 1981.

63
A representação é aqui, não uma representação da comunidade política como um todo, mas dos sectores
ou ordens provenientes da idade Média e que subsistem com maior ou menor autonomia; e os
representantes estão vinculados às instruções que recebem, num mandato imperativo semelhante ao
mandato civil. Por isso, e porque ao Rei se reconhece a plenitude do poder, a função da representação
exaure-se, praticamente, na garantia dos interesses e privilégios dos estamentos uns perante os outros e
perante o Rei.

0 desenvolvimento do absolutismo monárquico reduz as instituições representativas a uma pálida


recordação nos séculos XVI, XVII e XVIII. Apenas em Inglaterra se descobre continuidade no
Parlamento, mas as revoluções do século XVII e as transformações políticas e sócio -económicas
subsequentes vão levar à consideração dos Deputados como representantes de todo o país, de toda a
nação, e não já deste ou daquele grupo corporativo ou desta ou daquela entidade local ou
constitucional.

Por seu lado, quando no Continente, entre os séculos XVIII e XIX, se tenta a superação do Ancien
Régime e a construção de uma nova ordem política, assente nos direitos individuais e na divisão do
poder, a ela se liga, necessariamente, a formação de uma ou mais de uma assembleia representativa de
cidadãos enquanto tais. Sem representação de cidadãos não há liberdade e não há Constituição, no
sentido do art. 16.9 da Declaração de 1789.

A representação política na acepção rigorosa do termo, e não meras instituições representativas


sectoriais ou parcelares, radica,
64

portanto, historicamente, na confluência de dois fenômenos: a afirmação da unidade política


correspondente ao Estado moderno e a passagem do absolutismo ao liberalismo. A nova forma de
governo
- a representativa - surge conexa com o novo regime, o liberal’.

1 . Cfr., entre tantos, MONTESQUIEU, De 1 Ésprit des Lois, cap. VI do livro Xl; ROUSSEAU, Du
Contrat Social, cap. XV do livro 11j; SIEYÈS, Quest-ce que le tiers état, cap. IiI, § II e cap. IV, S V11;
BENJAMIN CONSTANT, Príncipes de Politique, Paris, 1815, págs. 23 e 62; DE LOLME,
Constitution de 1 Angleterre, Paris, 5. ed., 1819, págs. 269 e segs.; CUSTóDIO REBELO DE
CARVALHO, Bases de todo 0 governo representativo ou condições para que a Carta Constitucional
da Monarquia Portuguesa seja uma realidade, Londres, 1832; STUART MILL, Considerations on
RePresentative Government, Londres, 1861; ANTóNIO CUSTóDIO RIBEIRO DA COSTA,
Princípios e Questões da Filosofia Política - I - Condições Científicas do Direito de Sufrágio,
Coimbra, 1878; A. ESMEIN, ”Deux fonnes de gouvernemenf’, in Revue du droitpublic, 1894, 1, págs.
15 e segs.; V. E. ORLANDO, ”Du fondementiuridique de Ia réprésentation politique”, ibidem, 1895,
págs. 1 e segs,; ROCHA SAR_AIVA ”As teorias sobre a representação política e a nossa Constituição-,
in Revista de Justiça, ano 1, 1916, págs. 233 e segs. e 313 e segs.; LENINE, As eleições para a
assembleia constituinte e a ditadura do Proletariado, trad. port., Coimbra, 1975; CARL SCHMITT,
qp, cit., págs. 231 e segs.; CARRÉ DE MALBERG, ”Considérations théoriques sur Ia question de Ia
combinaison du reférendum avec le parlementarisme”, in Revue du droit public, 193 1, págs. 225 e
segs.; LUIGI ROSSI, ”La Reppresentanza Politica”, in Scritti Vari di Diritto Pubblico, V, Milão, 1939,
págs. 79 e segs.; CARLO ESPOSITO, ”La Rappresentanza Istituzionale”, in Séritti in onore di Santi
Romano, 1, Pádua, 1940; GERHARDT LEI13HOLZ, ”DénIocratie Réprésentative et État de Partis
Moderne”, in Revue internationale dhistoire politique et constitutionnelle, Janeiro-Março de 1952,
págs. 51 e segs., e Die Reprãsentation in der Demokratie, 1973, tradução italiana La
Rapprensentazione nella Democrazia, Milão, 1989; VINCENZO ZANGARA, La Rappresentanza
Istituzionale, Pádua, 2. ed., 1952; MAURICE DUVERGER, ”Esquisse d’une théorie de Ia
réprésentation politique”, in
65
11 - A doutrina da representação política é elaborada quase ao mesmo tempo pela doutrina política
inglesa (desde LOCKE a BURKE) e francesa (desde MONTESQUIEU a SIEYÈS e a B.
CONSTANT). No entanto, ainda no século XVIII, sofre a sua primeira grande contestação, a de
Rousseau. Vale a pena recordar os elementos mais significativos do pensamento destes autores, com os
seus matizes específicos.

L’évolution du droit public - Études en l’honneur dAchille Mestre, Paris,


1956, págs. 211 e segs.; ERNST FRANKEL, Die reprãsentative und die plebiszitãte Komponente im
demokratischer Verfassungstaat, 1958, trad. it. La componente representative e plebiscitaria nello
Stato costituzionale democratico, Turim, 1994; GlOVANN1 SARTORI, A teoria da representação no
Estado representativo moderno, trad., Belo Horizonte, 1962 e Théorie de Ia démocratie, trad., Paris,
1973, págs. 383 e segs.; HANS KELSEN, Teoria Pura do Direito (2. ed. port.), Coimbra, 1962, 11,
págs. 197 e segs.; PIER LUIGI ZAMPETTI, Dallo Stato Liberale allo Stato dei Partiti, Milão, 1965; J.
ROLAND PANOCK e JOHN W. CHAPMAN, Representation, Nova lorque,
1968; JEAN ROELS, Le concept de réprésentation politique au dix-huitième sièclefrançais, Paris,
1969; Representation, obra colectiva, Nova lorque,
1969; A.H. BIRCH, Representation, Londres, 1971; ACHILLE MESTRE e PHILIPPE GU1TINGER,
Constitutionnalismejacobin et constitutionnalisme soviétique, Paris, 1971, págs. 19 e segs.; HANNA
PITKIN, The Concept of Representation, Berkeley, 1972; Pouvoirs - Revue dÉtudes Constitutiormelles
et Politiques, n.-’ 7, 1978; OTTO BACHOF, 0 direito eleitoral e o direito dos partidos na República
Federal da Alemanha, trad. port., Coimbra, 1982; DAMIANO NOCILLA e LUIGI CIAURRO, ”
Rappresentanza política”, in Enciclopedia del Diritto, XXX, págs. 543 e segs.; LUIZ NAVARRO DE
BRITO, ”0 mandato imperativo partidário”, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1983, págs. 147
e segs.; a antologia ed. por DOMENICO FISICHELLA, La Rappresentanza politica, Milão, 1983;
SILVIO GAMBINO, ”Sovranità popolare e rappresentanza política”, in Política del Diritto, 1983,
págs. 293 e segs.; ANDREA PUBUSA, ”Riflessioni sul rapporti fra il popolo e
66

”0 Parlamento - diz Burke (Discurso aos eleitores de Bristol, em 1777) - não é um congresso de
embaixadores de interesses diferentes e hostis, interesses que cada um tem de sustentar como
representante e advogado contra outros representantes e advogados. 0 Parlamento é, sim, uma
assembleia deliberativa de uma única nação, com um só interesse, o do todo, e que deve guiar-se não
pelos interesses locais, mas pelo bem geral, resultado da razão geral do todo”.

MONTESQUIEU ocupa-se da representação política no mesmo célebre capítulo de De lÉsprit des Lois
(o VI do livro XI), em que formula a separação dos poderes. ”Como, num Estado livre, qualquer
homem que se repute dotado de uma alma livre, deve ser governado por si mesmo, o povo deveria ter
em si mesmo o poder legislativo. Mas, como isso é impossível nos grandes Estados e oferece muitos
inconvenientes nos pequenos, é preciso que o povo faça pelos seus representantes tudo aquilo que não
pode fazer a si próprio”.

alcuni organi dello stato”, in Jus, 1985, págs. 88 e segs.; E.W. BõCKENFõRDE, ”Democrazia e
rappresentanza”, in Quaderni Costituzionali, 1985, págs. 227 e segs.; PEDRO VEGA, ”Significado
constitucional de Ia representación política”, in Revista de Estudios Políticos, Março-Abril de
1985, págs. 25 e segs.; La Réprésentation, obra colectiva sob a direcção de François d’Arcy, Paris,
1985; Representatives of the People? - Parliamenis and Constituents in Western Democracies, obra
colectiva, Cambridge, 1985; PAULO BONAVIDES, qp. cit., págs. 235 e segs. e 309 e segs.; ANGEL
RODRIGUEZ DIAS, ”Un marco para el analisis de Ia representación política en los sistemas
dernocraticos11, in Revista de Estudios Politicos, OutubroDezembro de 1987, pags. 137 e segs.

67
MONTESQUIEU e, posteriormente, os autores liberais pronunciam-se contra os
sistemas democráticos, por temerem que em sistemas democráticos se verificasse uma
concentração do poder num único titular, que seria o povo, ou em órgãos, que,
baseados no povo, viessem a pôr em causa as liberdades individuais. Só a
representação permitiria a divisão de poder.

Na vês pera da Revolução Francesa, SIEYÈS (Qu’est-ce que le tiers état?) apela para
a representação política para justificar a transformação dos Estados Gerais em
Assembleia Constituinte, defende um governo exercido por procuradores do povo e
distingue entre aquilo a que chama a ”vontade comum real” e aquilo a que chama a ”
vontade comum representativa”. Esta, a vontade comum representativa, não é uma
plena vontade, não é uma vontade ilimitada, é uma porção da grande vontade comum
nacional, em que os delegados agem não por direito próprio, mas por direito de
outrem.

Cite-se ainda o que escreve BENJAMIN CONSTANT em


1815 (De la liberté des anciens comparée à celle des modernes): ”É necessário que
tenhamos liberdade, e tê-la-emos. Mas como a liberdade de que precisamos é
diferente da dos antigos, é preciso, para essa liberdade, outra forma de organização
política, que não seja a mesma que os antigos adoptaram. Na forma antiga, quanto
mais o homem consagrasse o seu tempo ou a sua força ao exercício dos seus direitos
políticos, mais ele se julgava livre. Na espécie de liberdade dos modernos, mais o
exercício dos nossos
68

direitos políticos nos deixa tempo para o exercício dos nossos direitos privados, mais
esta liberdade nos é preciosa. E daí, a necessidade do sistema representativo, que não
é outra coisa senão uma organização com a ajuda da qual uma nação descarrega
nalguns indivíduos dela mesma aquilo que ela não pode fazer por si só.

”Os pobres tomam conta dos seus próprios negócios; os ricos tomam intendentes. É a
História das nações modernas. 0 sistema representativo é uma procuração dada a um
certo número de homens pela massa do povo que quer que os seus interesses sejam
por eles defendidos.”

111 - Em contrapartida, são bem conhecidas as observações de ROUSSEAU (Du


Contrat Social, livro 111, cap. XVI) contra a representação: ”A soberania não pode
ser representada pela mesma razão por que ela não pode ser alienada: ela consiste
essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa; ela é a mesma ou é
outra, não há meio termo. Os deputados do povo não são, portanto, e não podem ser
seus representantes; eles apenas são seus comissários, e não podem, por si, concluir
nada definitivamente. Toda a lei que o povo em pessoa não ratifique é nula; não é lei.
0 povo inglês pensa ser livre, mas engana-se; só é durante a eleição dos membros do
parlamento; e logo que estes são eleitos, fica sendo escravo, não é nada. Nos curtos
momentos da sua liberdade, usa-a de tal modo que merece perdê-la.99

69
E mais adiante: ”Não sendo a lei senão a declaração da vontade geral, é claro que no
poder legislativo o povo não pode ser representado; mas pode e deve sê-lo no poder
executivo, que é apenas a face aplicada da lei.”

ROUSSEAU liga as ideias de representação ao feudalismo, pois nas antigas


repúblicas ela não existia, e propugna um sistema que possa reunir ”a autoridade
exterior de um grande povo com a polícia adequada e a boa ordem de um pequeno
Estado”: tal viria a ser a forma de governo democrático radical ou comissarial da
Constituição jacobina francesa de 1793.

12. DO GOVERNO REPRESENTATIVO LIBERAL À DEMOCRACIA


LIBERAL

1 - É a tese do governo representativo, e não de governo comissarial, que vinga com


as grandes revoluções do século XVIII e XIX ou que, sem revolução, é adoptada em
alguns países onde se consegue fazer a experiência de reforma ou transições pacíficas.

E as componentes principais do governo representativo vêm

a ser:

a) A soberania nacional ou princípio de que o poder reside essencialmente (isto é,


potencialmente) no povo, na nação entendida como colectividade distinta dos
indivíduos que a constituem;

70

b) A incapacidade da nação de exercer o poder e, por conseguinte, a necessidade de o


”delegar” em representantes por ela periodicamente eleitos, únicos que o podem
assumir (cfr. art. 26.2 da Constituição portuguesa de 1822);

c) 0 sufrágio restrito, só tendo direito de participação política os proprietários e, em


geral, os que tenham responsabilidades sociais;

d) A natureza puramente designativa da eleição, destinada apenas à selecção dos g


ovemantes entre os cidadãos mais aptos;

e) A autonomia dos representantes relativamente aos eleitores, em virtude da natureza


da eleição, do princípio de que representam toda a nação e não só os círculos por que
são eleitos e da proibição do mandato imperativo;

f) A limitação dos governantes pelas regras da separação dos poderes.

Na Europa, nesta época, subsistem as monarquias (desde a constitucional ou


representativa, em que prevalece o princípio monárquico, à parlamentar, em que
prevalece o princípio democrático) e domina a burguesia (de onde o sufrágio
censitário). 0 governo representativo aparece, por um lado, como um verdadeiro
governo misto, próprio de um período de transição e, por outro lado, como uma
oligocracia burguesa ou uma aristocracia electiva.
71
A representação reduz-se à legitimação dos govemantes pelo consentimento dos
governados, e a renovação que naqueles propicia resulta, sobretudo, da preocupação
de impedir os abusos da demasiado longa ocupação do poder. Mais importante do que
promover a participação de todos os cidadãos parece aos teóricos do liberalismo
promover um governo conforme à razão e que salvaguarde as liberdades e garantias
individuais.

11 - Apesar de estruturalmente avesso à democracia (confundida, como já disse, com


o governo de massas), o sistema representativo teve de apelar para o princípio
democrático - como seu necessário alicerce e como instrumento de luta contra os
anteriores

detentores do poder.

As Constituições (não as Cartas Constitucionais) proclamam, assim, a soberania


nacional, sem que instituam o sufrágio universal; mas a patente incoerência tanto iria
justificar a contestação do regime quanto determinar a sua ulterior evolução interna.
Também a questão social, se mostra aos operarios a necessidade de estarem presentes
nos Parlamentos para defesa das suas reivindicações, igualmente mostra à burguesia a
conveniência de os integrar, em vez de os deixar à margem do sistema.

0 progresso das ideias democráticas e as convulsões revolucionárias abertas em 1848


conduzem, pois, ao crescente alargamento do sufrágio e ao maior relevo dos órgãos
electivos no Estado - o que, por seu tumo, toma indispensáveis os partidos
72

políticos. Ora, o sufrágio universal envolve a abertura à vida política de estratos


sociais com posições e interesses divergentes e a criação dos partidos acentua as
divisões ideológicas; deste modo, as eleições passam a ser travadas à volta de grandes
correntes de opinião institucionalizadas nos partidos e o voto dos eleitores passa a
traduzir a adesão aos seus programas e aos seus candidatos.

A seguir à primeira guerra mundial precipitam-se as mudanças sociais e políticas:


queda de muitas monarquias europeias e esvaziamento do princípio monárquico
naquelas que perduram, sufrágio feminino, representação proporcional e representação
de interesses, referendo, unicameralismo, tentativas de ”racionalização” do
Parlamentarismo, etc. 0 governo representativo - evolutiva ou revolucionariamente -
cede o lugar à democracia representativa (também denominada, por vezes, governo
semi-representativo), dele distinta nas ideologias e nas tensões a que dá vazão, a
despeito da continuidade de certos princípios e da coincidência parcial de institutos e
formas constitucionais. E nos países que a adoptam é a democracia representativa que

no segundo pós-guerra, fornece o quadro em que se vão inserir as refôrmas do Estado


social de Direito.

111 - As traves mestras da democracia representativa são as seguintes:

a) A possibilidade de ter o povo, sujeito do poder, uma vontade, actual ou


conjectural, jurídica e politicamente eficaz;
73
b) 0 reconhecimento, por motivos técnicos e materiais, da impossibilidade de o povo
governar e, por isso, como sucedâneo, a necessidade de representação política;

c) A concorrência da vontade do povo, manifestada pelo colégio de todos os cidadãos


com direitos políticos, com a vontade manifestada pelos órgãos govemativos de
carácter representativo;

d) A responsabilidade política dos governantes, titulares desses órgãos, através do


cumprimento dos deveres constitucionais relativos ao exercício dos seus cargos e do
dever de informação do povo e, especificamente, através da eleição geral do termo do
mandato, de eleições parciais durante este ou de referendo.

IV - Os regimes autoritários e totalitários do nosso século, apesar de se oporem ao


Estado constitucional do liberalismo político (ou de o quererem ultrapassar) mantêm,
entre outras formas, a eleição e a representação política. Porém, não sem
modificações.

Nos regimes socialistas de tipo soviético, em certa medida retoma-se ao modelo


jacobino: democracia unânime, unidade do poder, precariedade do mandato dos
membros das assembleias (sem ser rigorosamente imperativo), sujeição a destituição.

74

Nos regimes fascistas e autoritários de direita, se não se chega a suprimir o sufrágio


directo e individual, a doutrina realça o sufrágio corporativo e a representação
institucional como mais conformes aos seus princípios.

Por outra banda, ao passo que nos regimes s

oviéticos é levada às últimas consequências a dependência dos governantes do partido


único, em certos regimes de direita a preocupação maior consiste em subtrair a
política a qualquer influência dos partidos (foi o caso do regime português de
Salazar), tudo num quadro de reduzido pluralismo, pelo que a eleição não pode ser
uma verdadeira escolha em sentido substancial.

13. A REPRESENTAÇÃO POLíTICA: ANÁLISE DO FENOMENO

1 - Não há representação política, quando (para empregar uma expressão de CARL


SCHMITT) se verifica identidade - seja em monarquia (pura), seja em democracia
directa - entre os titulares do poder e os govemantes, quando os governados tendem a
ser, simultaneamente, govemantes ou quando a divisão entre governantes e
governados se põe ao nível da distinção dos destinatários de normas jurídicas e não ao
nível de uma distinção funcional.

Pelo contrário, representação postula inidentidade e, depois, relação. Ela redunda num
fenômeno de relação e de comunicação:
75
para que os govemantes apareçam como representantes dos governados tem de haver
essa relação.

Para se analisar o seu conceito há que distinguir: entre representação do Estado e


representação do povo; entre representação de grupos existentes por si e representação
de toda a colectividade; entre representação gerada por um acto de vontade e
representação decorrente de um facto jurídico ou ope legis. Só é representação política
em sentido restrito e próprio à representação do povo, e do povo todo, fundada num
acto de vontade (a eleição) e destinada a institucionalizar, com variável amplitude, a
sua participação no poder.

11 - Em primeiro lugar, na representação política não se cuida da representação do


Estado:

a) Nem como expressão ou símbolo da unidade do Estado


- pois nesse sentido todo o governante representa o Estado e haverá tanto mais
representação quanto menor fôr a participação do povo e maior a concentração de
poderes num único govemante (C. SCHMITT);

b) Nem como essência dos seus órgãos - pois o órgão não representa o Estado, é um
elemento do Estado, e os actos que pratica são-lhe, directamente, imputados sem
distinção de esferas jurídicas; -

76

c) Nem como função ou competência cometida pelo Direito positivo a certos órgãos
em relações jurídicas em que o Estado intervenha (como ojus representationis
omnimodae conferido pelo Direito internacional comum aos Chefes de Estado e de
que é expressão o art. 123.9 da Constituição de 1976).

Cuida-se, sim, de representação do povo enquanto modo de tornar o povo (ou o


conjunto dos governados) presente no exercício do poder através de quem ele escolha
ou de quem tenha a sua confiança. A representação política é o modo de o povo,
titular do poder (ou um dos titulares do poder nas monarquias constitucionais
propriamente ditas), agir ou reagir relativamente aos govemantes.

Na época liberal, dir-se-ia traduzir a separação entre Estado e sociedade. Pelo


contrário, a teoria constitucional actual situa-a ao nível da organização interna do
Estado; vê-a como processo de aí estabelecer, insista-se, uma relação permanente
entre govemantes e governados (relação de natureza jurídica, conquanto não relação
entre sujeitos de direito diferenciados).

111 - Em segundo lugar, representação política implica consideração unitária do povo


e realização de fins e interesses públicos (com relevância ou não de outros interesses
que realmente existem na sociedade, muitas vezes em conflito). As pessoas nela
investidas representam toda a colectividade e não apenas quem as designou (é
77
o princípio explicitado, em Portugal, no art. 1.2 do Acto Adicional à Carta de 1885, no art. U,
§ 1, da Constituição de 1911 e no art. 152.!2, n.-’ 3, da Constituição de 1976); se assim não
fosse, não poderiam deliberar sobre assuntos gerais e elevar-se a govemantes.

Compreende-se deste jeito que tenha de se excluir do seu âmbito a representação estamental
ou de ”estados”, vestígio da desagregação medieval da sociedade política; que a doutrina da
soberania popular ou fraccionada de ROUSSEAU não se compadeça com o sistema
representativo; e que a mera representação de interesses, à imagem de uma nação orgânica ou
corporativa de povo, só possa aproveitar-se para a constituição de órgãos consultivos, e não
para a de órgãos deliberativos do Estado.

Que povo, porém, é representado? Nos dois últimos séculos, da imediatividade da posição do
cidadão perante o poder político, inerente ao conceito de Estado (ao contrário da estrutura
escalonada do feudalismo), extraiu a concepção dominante, de raiz individualista ou de raiz
personalista, a ideia do sufrágio individual e, em princípio, directo dos cidadãos. A ela
contrapôs o corporativismo político a ideia do sufrágio corporativo ou orgânico, ligado à sua
visão institucionalista da colectividade política, mas sem êxito.

Já a distinção entre representação maioritária e proporcional diz respeito tão-só aos sistemas
eleitorais, aos sistemas de tradução da vontade popular expressa pelo voto em mandatos; não
afecta nem a unidade do povo nem a dos órgãos representativos. 0 que
78

pode é este ou aquele sistema eleitoral, confonne os casos, ser mais ou menos integrador da
unidade política’.

IV - Em terceiro lugar, não há representação política sem eleição, acto jurídico ou feixe de
actos jurídicos. Mas a inversa não é verdadeira: v. g. as monarquias, electivaS2 ou a
eleição de presidentes de órgãos colegiais.

0 sentido da eleição política é que muda do governo constitucional clássico para o governo
democrático. Naquele, tem carácter instrumental: em ambiente social homogéneo, com
identificação natural entre a formação e os interesses de eleitores e elegíveis (o povo
burguês), reduz-se a técnica de designação dos govemantes (à laia do sorteio ou da rotação
nas Cidades-Estados da Antiguidade). Com a democracia representativa

a eleição toma-se a peça essencial do sistema, toma-se a via de assegurar a coincidência da


vontade dos govemantes com a vontade do povo e a prossecução do interesse colectivo de
harmonia com o titular deste, o povo. E ela tanto vai incidir sobre o futuro como sobre o
passado, pelo juizo individualizado ou global de responsabilidade política que exprime sobre
a acção dos govemantes no período ou legislatura anterior.

1 . C fr. infra.

2. Ou monarquias não electivas em momentos de vacatura de trono, como sucedeu em


Portugal em 1385, com a eleição do Mestre de Avis, D. João I.

79
Com efeito, ter um poder jurídico significa ter um poder de querer; por conseguinte,
atribuir o poder no Estado ao povo significa em democracia que a vontade do povo se
há-de converter em vontade do Estado; configurada, primeiro, fora do aparelho
estadual, a eleição (fonte da índole representativa dos órgãos governativos) é agora
um acto do Estado e o colégio eleitoral, porventura, um órgão sui generis.

V - Sustenta-se, por vezes, a possibilidade de prescindir da eleição: seria a


representação institucional, em que a investidura nos cargos políticos se faria por
inerência, mediante índices reveladores da capacidade de captar a vontade e os
interesses da colectividade.

Mas a representação institucional, se pode ser adequado meio de expressão de


determinadas instituições (v.g., a família, as confissões religiosas, certos organismos
profissionais, certas comunidades locais) e se pode bem articular-se com a represen~
tação de interesses, nunca cobre toda a riqueza da vida política, nem sequer a das
instituições sociais, e revela-se completamente inidónea para a formulação de
tendências e aspírações gerais e para a tomada de qualquer decisão obrigatória para
toda a colectividade. Só muito limitadanente tem, por isso, sido aplicada.

14. REPRESENTAÇÃO E MANDATO

1 - Em que medida se justifica qualificar de mandato a situação jurídica dos


representantes?

80

Decerto, não se pode assimilar ao mandato de Direito privado. A representação


política é uma espécie de representação necessária imposta pela lei, ao passo que o
mandato representativo civil pressupõe representação voluntária. E não há
transferência de poderes: os representantes eleitos são simples titulares de órgãos com
competências constitucionalmente prescritas (se bem que uma Constituição
democrática seja obra do povo e

assim, os poderes dos representantes mediatamente provenham do povo).

Sem embargo, o elemento volitivo patente na eleição habilita talvez a falar num
mandato de Direito público: na medida em que são os eleitores que, escolhendo este e
não aquele candidato, aderindo a este e não àquele programa, constituindo esta e não
aquela maioria de governo, dinamizam a competência constitucional dos órgãos e dão
sentido à actividade dos seus titulares (apesar de não lhe poderem definir o objecto).

11 - A representação não degrada a autoridade dos governantes: pelo contrário, num


mundo que só aceita uma legitimidade democrática, ela reforça-a. É apenas a sua
liberdade de acção que fica condicionada pelo duplo mecanismo ascendente da eleição
e descendente da responsabilidade política e por se entender que os govemantes
governam em vez e em nome do povo.

Este mecanismo não acarreta nem sujeição a instruções nem superintendência dos
eleitores sobre os actos de governo em parti-
81
cular; o povo cinge-se aos critérios, às linhas gerais, às grandes opções da política do
país. Além disso, como os tempos e as circunstâncias se modificam, o povo não fica
estritamente preso àquilo que antes tenha fixado e, portanto, os govemantes, com
conhecimento de causa e tendo em vista o interesse colectivo, poderão e deverão
adoptar as medidas oportunas e necessárias, a sancionar pelo povo em futura eleição
ou, eventualmente, referendo. 0 que não seria lícito moral e juridicamente seria que
um Governo eleito para fazer certa política viesse, depois de empossado, a fazer
política contrária.

111 - Resta o problema mais delicado hoje: o das relações entre os repre sentantes e os
partidos. Dele se tratará adiante ao estudar-se o fenômeno partidário.

82

§ 3.’ PLURALISMO

15. PLURALISMO POLíTICO E PLURALISMO SOCIAL

1 - 0 pluralismo de que aqui se trata é o pluralismo político, traduzido na existência e


na livre formação e comunicação de diferentes ideologias e correntes políticas ou
politicamente relevantes, bem como na possibilidade de organização dos cidadãos
para a crítica dos govemantes e para a sua eventual substituição pacífica.

Ele liga-se, pois, à liberdade política ou pública; não já à liberdade civil ou liberdade
das pessoas nas suas relações como privados, mas à liberdade das pessoas (enquanto
cidadãos) perante o poder; não já à liberdade na vida privada, mas sim na vida
Pública. 0 pluralismo é, simultaneamente, resultado da liberdade e garantia da
liberdade política.

83
Como qualquer liberdade, a liberdade política (que se decompõe em liberdade de
imprensa, de expressão por quaisquer outros meios, de associação, de reunião, de
manifestação, etc.) destina-se à realização da pessoa, individual ou institucionalmente
considerada. Todavia, o ter por objecto os poderes políticos leva-a, quase de imediato,
a correlacionar-se com a participação política. Não há regime político favorável à
liberdade que seja contrário à participação política dos cidadãos (mesmo se logo daí
não tira o corolário do sufrágio universal); nem pode haver participação sem liberdade
política’.

11 - Do pluralismo assim entendido deve distinguir-se o pluralismo social ou


configuração da sociedade como um conjunto (ou através de um conjunto) de grupos,
instituições e associações), portadores de interesses diferenciados (económicos e não
económicos) e dotados de mais ou menos autonomia perante o Estado.

Não existe uma relação necessária entre os dois princípios ou realidades. 0 pluralismo
social tanto pode ser favorável à liberdade política como pode mostrar-se ou se lhe
tem mostrado, objectiva e historicamente, desfavorável ou perigoso. Não custa
exemplificar.

1. Em síntese, pode dizer-se que a liberdade política resulta do enlace da liberdade dos
antigos com a liberdade dos modernos (nas lapidares locuções de BENJAMIN
CONSTANT), da síntese entre liberdade - participação e liberdade - autonomia.

Cfr. GlOVANNI SARTORI, Théorie .... cit., págs. 222 e segs.


84

A doutrina dos corpos intermediários, sustentada principalmente pela Igreja Católica,


tem-se voltado mais para a esfera não estritamente política e procurado, sobretudo,
propiciar a criação de anteparas para que o indivíduo isolado não fique à merce do
aparelho estatal ou dos Poderes económicos. Alguns regimes políticos (maxime o da
Itália de MUSSOLINI e o de Portugal de SALAZAR) serviram-se. do pluralismo, sob
a veste de corporativismo, para negar qualquer pluralismo político. Pelo contrário, as
tendências ditas neocorporativas das últimas décadas têm-se inserido de pleno
(embora não sem suscitarem problemas) no âmbito de democracias representativas’.

Adiante, retomar-se-á o assunto.

16. SISTEMAS PLURALISTAS E MONISTAS

1 - Pode falar-se, numa dialéctica histórica, de pluralismo e monismo político, ou de


sistemas políticos pluralistas e monistas. Uns entrecruzam-se com outros ou vêm
determinar outros. E, por vezes, ocorrem ciclos e não evoluções lineares.

De todo o modo, o pluralismo enquanto expressão de liberdade política apresenta-se


como algo de relativamente recente. Vem dos séculos XV11-XVIII, nascido em
Inglaterra, nos Estados Unidos e em França, em revoluções ou transições complexas.
As

1. Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, ’TIuralismo11, in Polis, IV, págs. 1280 e segs.,


maxime 1286 e 1287.
85
instituições em que se traduz variam bastante (não são as mesmas nesses países ou em
qualquer deles e na Suíça ou nos países nórdicos); mas, no fundo, para lá dos sistemas
de governo e das instituições são as características comuns que prevalecem.

Pelo contrário, o monismo político é algo de mais difuso em todas as épocas, mas, por
causa disso, reveste múltiplas formas. Das monarquias orientais às ditaduras
modernas, encontra-se o mesmo absolutismo do poder, sem dúvida; no entanto, quer
as instituições quer as ideologias quer as forças sociais e políticas dominantes são
completamente diferentes.

Verifica-se que os sistemas monistas correspondem tanto a regimes autoritários como


a totalitários e que os sistemas pluralistas coincidem com regimes liberais
(politicamente), estes com diversos sistemas de governo (parlamentares, presidenciais,
etc.)’.

Ill - Nos regimes totalitários, o poder político absorve todos os poderes sociais; nos
regimes autoritários ele impede apenas o exercício da liberdade política.

1. Cfr., por exemplo, a obra colectiva editada por J.L. SE=, La Démocratie Pluraliste,
Paris, 1981; ou FELIKS GROSS, Toleration and Pluralism, in Il Politico, 1985, págs.
181 e segs. (num relance mais amplo, por abranger também a religião, este autor
distingue quatro modelos de Estado: Estado inquisitorial, Estado intolerante, Estado
tolerante e Estado pluralista).

2. Para maior desenvolvimento, v. Manual de Direito Constitucional, IV, 2.! ed.,


Coimbra, 1993, págs. 26 e segs.

86

Por outro lado, enquanto que as monarquias absolutas eram até ao século XVIII
governos legítimos, na acepção de G. FERERRO (pela coincidência entre princípio
monárquico e o seu reconhecimento), já as ditaduras contemporâneas, ao apelarem
para o princípio democrático da legitimidade, revestem-se não apenas de uma
institucionalização precária (por causa da personalização do poder ocorrido) como
muitas vezes são mesmo governos ilegitimos (sejam revolucionários ou contra-
revolucionários).

IV - Tal como os sistemas políticos pluralistas, também não poucos dos sistemas
monistas contemporâneos têm feito apelo, nas Constituições ou na prática, à eleição.
Não, p .o.rém, evidentemente COM o mesmo significado que ela possui em
sistemas pluralistas.

Apesar de factores económicos, sociais e culturais nem sempre favoráveis e de as


organizações partidárias limitarem ou condicionarem, muitas vezes, os cidadãos
eleitores, a eleição em sistemas pluralistas envolve sempre uma margem útil de
escolha, dentro de um ambiente de segurança frente ao poder e de livre afrontamento
de ideias. E, seja mais ou menos amplo o seu objecto, sempre a eleição e não só acto
de efectivação de responsabilidade política dos governantes mas também mecanismo
de renovação periódica e de formação de altemâncias. Por isso, implica competição.

Diverso vem a ser o sentido de eleição em sistemas monistas, porque com ela nunca
se poem. em causa os govemantes, sob pena de então também se põe em causa o
próprio regime. A eleição
87
pode servir para reforçar ou para suscitar uma imagem de legitimidade dos
governantes; pode ser uma aclamação, não um acto de orientação política; pode conter
todos os elementos formais ou procedimentais, faltam-lhe os elementos substantivos
de uma vontade autónoma distinta do poder estabelecido

17. PLURALISMO E OPOSIÇÃO

1 - Oposição’ é designação que abrange pessoas, correntes de opinião pública, grupos


ou partidos políticos que em qualquer país

1. Cfr., por todos, sobre eleições competitivas, não competitivas e também


semicompetitivas, DIETER NOI1LEN, WaNsystem der Welt, 1978, trad. castelhana
Sistemas electorales del mundo, Madrid, 1981, págs. 22 e segs.

2. Cfr. KARL LOEWENSTEIN, ”Contrôle législatif de l’extrémisme politique dans


les démocracties curopéennes”, em Revue du droit públic, 1938; GEORGES
BURDEAU, ”L’évolution de Ia notion d’oposition’, in Revue internationale
d’histoire politique et constitutionnelle, 1954, págs. 119 e segs.; M. BON
VALSASSINA, ”Profilo dell’opposizione anti-costituzionale nello Stato
Contemporanco”, em Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico,
1957; Polítical Opposition in Western Democracies, ed. por Robert A. DahI, Yale,
1966; GHITA IONESCU e ISABEL DE MAPARIAGA, Opposition, Londres, 1968;
KLAUS VON BEYME e ROBERT V. DANIELS, Oposición, in Marxismo y
Democracia - Enciclopedia de Conceptos Basico-Políticos 5, trad., Madrid, 1975,
págs. 109 e segs.; GlUSEPPE DE VERGOTTINI, ”La forma de gobierno de
oposición garantizada”, in Revista de Estudios Políticos, Maio-Junho de 1979, págs. 5
e segs.; SYLVIE GlULZ, Le Statut de l’Qpposition en Europe, Paris, 1980; PIETRO
GRILLI, ”L’Opposizione política nei sistemi non competitivi: una premessa
Analítica”, in Rivista Italiana di Scienza Política, 1983, págs. 65 e segs.; SILVA
LEITÃO, Constituição e Direito de Oposição, Coimbra, 1987; MONICA
CAGGIANO, Oposição na Política, São Paulo, 1995.

se manifestam contrários ao Governo ou ao regime político vigente. No primeiro caso


(oposição só ao Governo) diz-se oposição constitucional; no segundo (oposição ao
regime e, portanto, também ao Governo) oposição anticonstitucional.

Até ao século XVIII não havia senão a atitude individual dos que, invocando a sua
consciência ética, negavam a legitimidade de certos governantes ou de alguns dos
actos destes; ou a atitude colectiva de insurreição, muitas vezes conduzindo à guerra
civil ou internacional.

É com o acordar da liberdade política e com o constitucionalismo que a oposição de


acto moral passa a fenômeno político, dentro de um processo de luta pacífica pelo
poder. É o primeiro pais em que isto sucede é naturalmente a Inglaterra, após as
revoluções anti-absolutistas e ainda por causa do sistema parlamentar que assenta no
debate contraditório entre Gabinete e ”Oposição de Sua Majestade”. Este exemplo vai
ser imitado por quase toda a parte: aparecem os partidos políticos nos Estados Unidos,
na Europa dominam as monarquias constitucionais ou as repúblicas burguesas e, em
Portugal, o rotativismo funciona durante meio século. Se bem que surjam correntes
fora do sistema (legitimistas ou socialistas e anarquistas), assiste-se ao jogo, real ou
fictício, da altemância de dois partidos no Governo.

Mas a situação altera-se no século XX: desaparece a homogeneidade de filosofia e de


classe dirigente ou dominante, sucedem-se as crises, o Parlamento deixa muitas vezes
de ser o centro da
89
vida política e desenvolvem-se movimentos de direitas e esquerdas, apostados em
destruir a ordem política e social.

Na lógica liberal, todos os partidos, mesmo os de contestação revolucionária,


deveriam ser reconhecidos enquanto os seus actos não ofendessem a lei penal. Na
prática, porém, o grau da sua admissibilidade tem dependido da sua prática e dos seus
programas, de circunstâncias de tempo e país, da relação de forças existentes (por
exemplo, pequeno ou grande número de aderentes ou militantes de que dispõem).

Providências bastante diversas têm, pois, sido adoptadas perante a oposição


anticonstitucional: desde providências relativas aos funcionários públicos (indo até à
exigência de ”leal colaboração com as instituições”) a providências que afectam a
subsistência dos partidos (suspensão ou dissolução, por via administrativa ou,
sobretudo, jurisdicional). Ao mesmo tempo, e com êxito igualmente variável, o
Estado de Direito (liberal ou, depois, social) confia em que a participação eleitoral e
parlamentar leve a integração, no sistema, dos próprios partidos extremistas.

11 - Na nossa época, o lugar conferido à oposição torna-se elemento definidor da


forma política.

A livre actividade, pelo menos de uma oposição constitucional, identifica os sistemas


políticos pluralistas; aqui a maioria deve governar e a minoria deve estar na oposição,
entendida como

90

fiscalização pública dos actos do Governo ou como poder de resistência ou de


garantia; a representação de minorias e a institucionalização dos grupos parlamentares
e dos partidos políticos são corolários jurídicos desse princípio.

Ao invés, os regimes totalitários recusam à oposição qualquer papel, em nome da


supremacia do Estado, da Nação, da raça ou do proletariado; oposição
anticonstitucional nos regimes pluralistas ou liberais, os partidos fascistas e
comunistas (e agora, também de fundamentalismo islâmico), quando chegam ao
poder, impedem ou reprimem as actividades políticas dos seus adversários, relegando-
os para a clandestinidade.

Por fim, os regimes autoritários ficam a meio caminho: concedendo embora aos
cidadãos o direito de estar na oposição, o que não permitem é a organização (ou a
organização permanente) de grupos divergentes da política oficial para a contestar e,
muito menos, para a substituir.

111 - Dentro dos sistemas pluralistas, a competitividade da oposição depende, em


larga medida, embora não completamente, do número e da natureza dos partidos, ou
seja, da extensão em que a oposição se encontra concentrada’.

1. ROBERT A. DAHL, ”Pattems of OppositiW’, in Polítical Opposition .... págs. 337


e segs. Fala em quatro tipos de sistemas de oposição: 1) estritamente competitivo; 2)
cooperativo-competitivo; 3) coolescente-competitivo; 4) estritamente coolescente.

91
§ 4.’

DIVISÃO DO PODER

18. A DIVISÃO DO PODER EM GERAL

1 - Ao abordar-se o tema da divisão ou da unidade ou divisão) do poder, importa


tomar nota de duas distinções do maior relevo:

- A distinção entre a análise conceptual do poder político e a afirmação de um


princípio de jure condendo (ou mesmo já dejure condito) de divisão do poder.

- A distinção entre divisão do poder, susceptível de ser operada de diversas formas e


segundo diferentes critérios, e a divisão específica em moldes de separação de
poderes.

11 - Uma coisa, com efeito, é o esforço científico ou paracientífico a que, desde o


início da reflexão sobre o Estado, procedem
93
politólogos e juristas de decomposição e estudo das faculdades ou potencialidades
compreendidas no poder político. Outra coisa vem a ser a procura, com base nisso ou
com vista a certos objectivos, de sistemas de divisão do poder.

Já ARISTóTELES discernia três potencialidades de soberania: a deliberação, o


comando e a judicatura. Assim como, muito mais tarde, HEGEL haveria de se referir
a um poder legislativo, a um poder de governo e a um poder do príncipe.

E outras distinções poderiam ser citadas - tal como, mais recentemente, ninguém
contesta a existência de várias funções do Estado. Mas isso não implica,
necessariamente, que a sua atribuição a vários órgãos ou instituições seja preconizada.

A divisão de poder afigura-se hoje requisito de limitação de poder. Nem sempre terá
sido entendido assim: também noutras épocas se pensou encontrar resposta para a
preocupação com a necessidade de limitar o poder noutras instâncias, fossem a nível
jurídico-político (maxime o direito de resistência), fossem a nível moral e religioso.

111 - A ideia de separação de poderes vem, desde os séculos XVII e XVIII, em


reacção contra o absolutismo monárquico e associada à filosofia política iluminista e
liberal.

94

Não é, porém, a primeira realização histórica de divisão do poder; pelo menos, duas
de grande significado tinham existido antes na Europa. E tão pouco, nos moldes em
que foi concebida nessa altura, é o único esquema coadunável com o
constitucionalismo moderno: não só é susceptível de várias interpretações como, para
ser aplicável na situação actual, carece de ser revista e enriquecida (e tem-no sido).

IV - As magistraturas clássicas da Grécia e de Roma traduziam limitação do poder, na


medida em que o poder, em vez de ser atribuído, concentrado num homem só ou
numa só magistratura era repartido por diversos órgãos, por diferentes magistraturas,
de regra colegiais, e, assim, se verificava uma recíproca repartição de poderes’.

Por seu turno, o Estado estamental assentava num dualismo de princípios: o princípio,
de origem medieval, da aceitação do papel político das corporações, das ordens, das
classes, dos senhorios locais; e o princípio de unidade ou de decisão central através do
Rei.

Nem por isso são menos nítidas as diferenças entre estas duas manifestações de
divisão de poder e a moderna concepção de separação de poderes:

1. Cfr. CíCERO De Legibus, trad. port. Das leis, São Paulo, 1967, pág. 101: se um
magistrado único tivesse mais autoridade que todos os seus pares, teríamos apenas
trocado a denominação do rei, sem alterar a essência da Realeza.

Não se esqueça, no entanto, que Roma conhecia, em tempos de crises (porque


saluspopuli suprema lex) a concentração do poder num dictator.

95
1.2) Tanto às magistraturas romanas como à organização estamental falta uma ideia de especialização
orgânico-funcional ou de distribuição de diversas faculdades, objectivamente consideradas, por mais de
um centro subjectivo de poder;

2.2) Tanto a uma como a outra falta a conexão com a ideia de direitos fundamentais, porque os antigos
não conheceram a liberdade política e o Estado medieval não curou senão de assegurar diante do Rei
imunidades, privilégios, prerrogativas em concreto de estamentos, e não direitos individuais dos
homens enquanto tais.

Em último termo, a separação de poderes, nas suas múltiplas concretizações, correcções e adaptações -
revelar-se-ia a projecção organizatória do Estado de Direito; e este só existiu com o constitucionalismo
moderno

1. Sobre a separação de poderes, deve, antes de mais, ler-se LOCKE, The Second Treatise of
Governinent (capítulos VII, X11 e XIV); MONTESQUIEU, De l’Esprit des Lois (capítulos IV e V do
livro XI); ROUSSEAU, Du Contrat Social (capítulo 1 do livro 111); MADISON, The Federalist (n.Os
47 e 48).

E depois, para aprofundamento da problemática, entre tantos, SAINT GIRONS, Essai sur la séparation
des pouvoirs dans Pordre politique, administratif etjudiciaire, Paris, 1881; E. ART=, lISéparation des
pouvoirs, et separation des fonctions”, in Revue du droitpublic, XIII, 1900, págs. 214 e segs. e 470 e
segs., XIV, 1900, págs. 34 e segs. e 436 e segs.), XVII, 1902, págs. 78 e segs., 234 e segs. e 439 e
segs.,-XX, 1903, págs. 415 e segs.; J. J. CHEVALIER, ”De Ia distinction établie par Montesquieu.
entre Ia faculté de statuer et Ia faculte d’empêcher”, in Mélanges Maurice Hauriou, 1929, págs. 139 e
segs.; CHARLES EISENMANN, ”’L’Ésprit des Lois’ et Ia separation des pouvoirs”, in Mélanges R.
Carré de Malberg, Paris, 1933, págs. 163 e segs.; BALLADORE PALLIERI, ”Appunti sulia divisione
dei poteri nella

96

19. A DOUTRINA DA SEPARAÇÃO DE PODERES

1 - Antes de MONTESQUIEU, pelo menos, outro grande autor’, LOCKE, já se tinha debruçado sobre a
problemática da

vigente Costituzione italiana”, in Rivista Tilmestrale di Diritto Pubblico, 1952, págs. 811 e segs.;
LOUIS ALTHUSSER, Montesquieti, la politique.et l’hístoire, Paris, 1959; M.C.J. VILE, Constitution
and the Separation of Powers, Oxónia, 1969; ROGÉRIO SOARES, Direito Público e
Sociedade Técnica, Coimbra, 1969, págs. 145 e segs.; MARQUES GUEDES, ”Separação de Poderes”,
in Verbo, XV, pág. 353; AFONSO QUEIRó, ”Poderes do Estado”, ibidem, págs. 353 e segs.;
REINHOLD ZIPPELIUS, op.cit., págs.
146 e segs.; GEORGES VLACHOS, La politique de Montesquieu, 1974; ARND MERKEL e GERD
MEYER, ”División de poderes”, in Marxismo y Democracia - Enciclopedia de Conceptos Basicos -
Política, 2, trad., Madrid,
1975, págs. 143 e segs.; MARCELLO CAETANO, op.cit., 1, págs. 232 e segs e 370 e segs.; PIERRE
LAVIGNE, ”L’unité du pouvoir d’État dans le doctrine constitutionnaliste socialiste contemporaine”, in
Mélanges offei-ts à Georges Burdeau, Paris, 1977, págs. 599 e segs.; AGOSTINO CARRINO, ”Uni
critica marxista alla ’divisione dei poteri”’, in Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, 1977,
págs. 904 e segs.; GAETANO SILVESTRI, La separazione dei poteri, 1, Milão, 1979; SOLOZABAL
ECHAVARRIA, ”Sobre el principio de Ia separación de poderes”, in Revista de Estudios Políticos,
NovembroDezembro de 1981, págs. 215 e segs.; PAULO BONAVIDES, op. cit., págs.
145 e segs.; SÉRVULO CORREIA, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos,
Lisboa, 1987, págs. 25 e segs.; JORGE REIS NOVAis, Contributo para uma teoria do Estado de
Direito, Coimbra, 1987, págs. 82 e segs.; NUNO PIÇARRA, A separação de poderes como doutrina e
princípio constitucional, Coimbra, 1989.

V. ainda os pareceres n.os 16/79 e 1/80 da Comissão Constitucional, de 21 de Janeiro -de 1979 e 8 de
Janeiro de 1980, in Pareceres, VIII, págs. 205 e segs., e M, págs. 23 e segs., respectivamente.

1 . E tão pouco pode esquecer-se PU17FENDORF.


97
separação ou divisão de poderes e tinha proposto (nos capítulos Vil, XII e XIV do seu
Tratado sobre o Governo) uma análise dos poderes do Estado. Segundo ele haveria
um poder legislativO, Um poder executivo, um poder federativo respeitante às
relações internacionais e, na linha do constitucionalismo inglês, a prerrogativa (que
podemos equiparar à função governamental).

Mas o livro de LOCKE não teve o impacto do De 1’Esprit des Lois não só por causa
de uma menor difusão como por ter sido escrito ainda cedo (ainda no século XVII) e
demasiado voltado para a situação inglesa após 1688. De resto, ele não propugnava
uma completa divisão de poder, visto que entendia que o poder primordial no Estado
era o poder legislativo (o qual determinava
4 diferentes formas de governo).

11 - o autor fundamental é, pois, o Barão de MONTESQUIEU e o seu pensamento


encontra-se exposto principalmente nos capítulos IV e VI do livro X1 do De 1’Esprit
des Lois, publicado em
1748, traduzido para inglês, divulgado na Europa e na América do Norte e que estaria
presente nas Revoluções americana e francesa e marcaria todo o constitucionalismo
liberal.

MONTESQUIEU começa por dizer no capítulo IV do livro XI aquilo que pode


afirmar-se ser o Leit-motiv da doutrina da separação de poderes: a ideia de que a única
maneira de limitar o poder consiste em criar outro poder que o limite; a única
maneira

98 ’

de limitar o poder é dividi-lo em diversos poderes que se condicionem, que se limitem


reciprocamente. ”Para que ninguém possa abusar do poder, é preciso que pela
disposição das coisas o poder limite o poder” (ilfaut que le pouvoir arrête le pouvoir).

Isso mesmo vem a ser desenvolvido no capítulo VI (aparentemente votado à


Constituição da Inglaterra): ”Em cada Estado, há três espécies de poderes: o poder
legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder
executivo daqueles que dependem do direito civil” (poder executivo das coisas que
depende do direito civil e aquilo que ele próprio vai chamar poder judicial). E
continua: ”Pela primeira, o príncipe ou magistrado faz leis por determinado tempo ou
para sempre, e corrige ou revoga as que tenha feito. A segunda faz a paz ou a guerra,
envia ou recebe embaixadas, garante a segurança, previne as invasões. Pela terceira,
pune os crimes ou julga os litígios entre os particulares. Chamar-se-á a esta última o
poder de julgar e à outra simplesmente o poder executivo do Estado.

”A liberdade política num cidadão ou de um cidadão é essa tranquilidade de espírito


que provém da opinião que cada um tem da sua segurança e para que haja ou para que
tenha essa liberdade é preciso que o governo seja tal que o cidadão não possa temer
qualquer coisa de outro cidadão”. ”Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de
magistrados o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não há liberdade.
Para que não se possa temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado façam leis
tirânicas que depois vão executar tiranicamente.”
99
”Não há também liberdade se o poder de julgar não está separado do poder legislativo
e do poder executivo. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo de
magistrados ou do povo exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as
resoluções públicas e o de julgar os crimes ou os diferendos de particulares.”

E MONTESQUIEU, que, no fundo, faz uma apologia do govemo misto, em


correspondência com diversas classes sociais, acrescenta: ”Na maior parte dos Reinos
da Europa o Governo é moderado porque o príncipe que tem os dois primeiros
poderes, deixa aos outros, aos súbditos, o exercício do terceiro. Nos turcos, em que
estes três Poderes estão unidos nas mãos de um Sultão, reina um terrível despotismo.
Nas Repúblicas da Itália, em que os três poderes estão reunidos, a liberdade encontra-
se menos estabelecida que nas nossas monarquias.`

111 - MONTESQUIEU não se cinge a decompor o poder em correspondência com


três funções, conferindo as faculdades resultantes a órgãos distintos, sem articulação
entre eles. Vai mais longe, discemindo, nesse mesmo capítulo VI, em cada poder uma
faculté de statuer e uma faculté d’empêcher.

1. É na linha destas considerações que MONTESQUIEU alude à representação


política que advoga, por temer que um governo directo do povo conduza à
concentração de poderes.

100

”Chamo faculté de statuer o direito de ordenar por si mesmo ou de corrigir aquilo que
tenha sido ordenado por outro. Chamo faculté d’emPêcher o direito de tomar nula ou
anular uma resolução tomada por quem quer que seja. Era nisto que consistia o poder
dos tribunos de Roma, embora aquele que tenha a faculdade de impedir possa ter
também o direito de aprovar, e a aprovação pão é outra coisa senão a declaração de
que não faz uso da sua faculdade de impedir e

deriva dessa faculdade.”

0 órgão que tem o poder legislativo deve ter um poder positivo de estatuir leis, mas
deve ter também um poder negativo de impedir que os outros órgãos façam algo que
ponha em causa os interesses gerais. Da mesma maneira, o órgão que tem o poder
executivo deve ter não apenas o poder positivo de estatuir, de fazer a execução das
leis, mas deve ter também um poder negativo, de tal modo que não sejam feitas leis
contrárias aos interesses gerais. Somente, a respeito do poder judicial (que considera
um poder sem relevância política) é que MONTESQUIEU não faz a distinção
entrefaculté de statuer efaculté d’empêcher.

Nem todos os intérpretes e seguidores de MONTESQUIEU terão dado toda a


importância a este ponto.

IV - As grandes divergências políticas modernas radicam todas no contraste entre


MONTESQUIEU eROUSSEAU. É no fundo o contraste entre os capítulos IV e VI do
livro XI do De
1 Esprit des Lois e o capítulo 1 do livro III do Contrato Social.

101
Neste capítulo 1 (sob a epígrafe ”Do governo em geral”) do Livro 111 do Contrato
Social, ROUSSEAU claramente vem opor-se à separação de poderes. ROUSSEAU
admite uma distinção de funções - legislativa e executiva. Mas considera que a função
legislativa é a única que é soberana, ao passo que a função executiva é uma função
intermediária, não soberana, que não tem nenhuma virtualidade de limitar o poder
legislativo.

Para MONTESQUIEU o poder legislativo deve ser limitado pelo executivo e vice-
versa. Para ROUSSEAU, pelo contrário, o único poder soberano é o poder legislativo.
0 poder executivo não é um verdadeiro poder soberano; não há mesmo em rigor um
poder executivo.

Há uma diferença essencial entre esses dois corpos - poder legislativo e executivo.
Este último não existe senão pelo soberano e para o soberano. A vontade dominante
do príncipe não e e não deve ser senão a vontade geral ou a lei. A sua força não é
senão a força pública concentrada nele de tal maneira que possa tirar dessa potência
soberana a força, através de qualquer acto absoluto independente.

Se acontecesse que o príncipe (governo, órgão executivo) tivesse uma vontade


particular mais activa que a do soberano e que a utilizasse para se subtrair à vontade
deste haveria dois soberanos e não um só. Ora, nesse momento a união social
desvanecer-se-ia e o corpo político seria dissolvido.

102

Para ROUSSEAU a unidade do corpo social tem que corresponder à unidade de


soberania. E esta tem a sua expressão no órgão do poder legislativo. Qualquer órgão
de poder executivo tem de ser sempre um órgão secundário ou derivado e que não tem
a capacidade de formar uma vontade autónoma em face da vontade do soberano.

A tese de ROUSSEAU vai determinar directamente a Constituição francesa do Ano 1


e, por vias diversas, não deixa de encontrar parecenças nas concepções adoptadas no
constitucionalismo marxista -leninista.

20. CONCEPÇõES DOUTRINAIS SUBSEQUENTES

1 - Em plano diverso do de MONTESQUIEU acha-se a elaboração de SIEYÈS em


Qu,es-ce-que le tiers-état? - obra que é, de certa sorte, a síntese entre o Contrato
Social e o Lesprit des Lois, a síntese entre a concepção de soberania popular de
ROUSSEAU e a concepção de separação de poderes de MONTESQUIEU; e sabe-se
como se projectou no movimento da Revolução Francesa.

SIEYÈS - tal como, quase ao mesmo tempo, HAMILTON no Federalist, nos Estados
Unidos - aponta a existência de um poder primário e originário dentro do Estado - o
poder de que deriva a Constituição, aquele que exprime mais directamente a soberania
ou que com ela se identifica, o poder constituinte; e este poder antecede, por
natureza, os demais poderes do Estado, os poderes constituídos.
103
Ao poder legislativo, um destes poderes, é vedado praticar actos que contrariem as
normas decretadas pelo poder constituinte.

Todavia, enquanto que a distinção proposta por MONTESQUIEU é pressuposto da


teoria das formas de governo modernas, a distinção de SIEYÈS e dos ”pais” da
Constituição americana só por via imediata e reflexa a ela vem a reconduzir-se; o seu
terreno próprio é o da teoria da Constituição.

11 - Já no século XIX situa-se a doutrina de BENJAMIN

CONSTANT, para quem, afora os poderes legislativo, executivo e judicial, deveria


haver um quarto poder a que ele chamou poder neutro (e a que as Constituições
brasileira de 1824 e portuguesa de .1926 chamaram poder moderador).

Partindo da ideia de que os três poderes do Estado, como foram consagrados aquando
da Revolução Francesa, poderiam dar lugar a conflitos e paralisar-se, CONSTANT
preconiza um quarto poder, dirimidor de conflitos, um poder de equilíbrio que
arbitraria os litígios entre os outros poderes de Estado, que poria em funcionamento a
máquina estadual ou evitaria que ela ficasse paralisada. E ele seria a ”chave de toda a
organização política”, como declarava o art. 71.2 da Carta Constitucional.

Na realidade, porém, esse poder - neutro, moderador, real (porque atribuído ao Rei
também detentor do poder executivo) era um meio de o monarca recuperar parte do
poder que perdera com o constitucionalismo.

104

III - Outra análise feita na mesma época é a de SAINT-SIMON. No seu ensaio Da


reorganização da sociedade europeia, publicada logo a seguir ao Congresso de
Viena, advoga uma monarquia constitucional em que deveria haver três poderes: um
poder de interesse geral, um poder de interesses particulares e um poder regulador.

0 primeiro seria o poder do rei. 0 poder de interesses particulares seria o da Câmara


dos Comuns ou equivalente. 0 poder regulador seria o da Câmara dos Lordes ou
equivalente.

IV - Não menos importante e a divisão, agora em cinco poderes, proposta por


SILVESTRE PINHEIRO-FERREIRA, talvez o maior juspublicista portugues do
século XIX. São eles o poder legislativo, o poder executivo, o poder judicial, o poder
conservador e o poder eleitoral.

0 grande interesse desta visão das coisas encontra-se.no poder eleitoral, o qual
consiste em eleger e em nomear para os empregos tanto civis como políticos e em
designar os cidadãos que pelos seus serviços se tenham tomado dignos de
recompensas nacionais’.

1. Principes du Droit Public, Constitutionnel, Administratif et des Gens ou Manuel du


Citoyen sous un Gouvernenent Représentatif, Paris, 1834, págs.
123 e segs. Apesar de se tratar de uma concepção de eleição como designação, de
algum modo liga ainda o poder eleitoral à responsabilidade política perante o ”tribunal
da opinião pública” através das eleições gerais anuais, em que há a possibilidade de
revogação do emprego dos titulares designados.

105
Quanto ao poder conservador não é simplesmente paráfrase do poder moderador de
BENJAMIN CONSTANT, pois que lhe cabe não apenas manter a independência e harmonia
dos outros quatro poderes mas também fazer observar os direitos de cada cidadão. Os
órgãos dos diferentes poderes exerceriam atribuições de poder conservador e deveria haver
ainda uma autoridade especial: o Conselho de Inspecção e Censura Constitucional,
composta por cinco membros escolhidos nas eleições gerais nos graus mais elevados da
hierarquia civil .

V - Merecem ainda ser conhecidas as análises de ARRENS e,

já no século XX, de HAURIOU e de LOEWENSTEIN.

AHRENS começa por contrapor a ”administração” à ”constituição”, e aí vai distinguir um


poder governamental, um poder legislativo e um poder executivo.

Por seu lado, HAURIOU considera um poder de sufrágio, um poder deliberante (que é o das
Assembleias) e um poder de execução (que é o dos órgãos executivos).

Finalmente, KARL LOEWENSTEIN que entende ultrapassada a doutrina de


MONTESQUIEU, acaba por formular uma divisão de funções na base da distinção entre a
decisão política

1. Semelhante ao poder eleitoral de SILVESTRE PINHEIRO-FERREIRA.

106

fundamental, a sua execução e o seu controlo ou fiscalização. Nesta última função reside o
contributo original do autor.

21. A SEPARAÇÃO DOS PODERES NA EVOLUÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO

1 - 0 princípio da separação dos poderes foi consagrado em todas as Constituições dos


séculos XVIII e XIX, em obediência ao dogma inscrito no art. 16.9 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Não foi, contudo, consagrado da mesma maneira
ou com a mesma rigidez.

Em França, em especial nas Constituições de 1791 e de 1795 (do ano 111) pareceu
prevalecer uma visão mecanicista, de apertada distribuição de poderes pelos diversos
órgãos e, ao longo de todas as Constituições até hoje, sempre, em nome da separação de
poderes, se recusou aos tribunais a fiscalização da constitucionalidade das leis.

Diversamente, nos Estados Unidos prevaleceu um sentido coordenador, com relacionamento


ou cooperação funcional, de checks and balances e, por isso, se estabeleceram processos
complexos de agir e se admitiu, desde o início, a judicial review. Não por acaso tem-se dito
que a Constituição de 1787 é a que melhor tem levado à prática a distinção de um pouvoir de
statuer e de um pouvoir dempêcher.

107
Em contrapartida, nos Estados Unidos, o sistema de governo presidencial tem-se
traduzido numa separação orgânica muito mais nítida do que nos países europeus de
governo parlamentar ou aparentado, nos quais os Ministros fazem parte dos
Parlamentos e estes podem ser dissolvidos pelo Chefe do Estado.

Entre uma e outra posições extremas, situa-se a maior parte das concretizações
constitucionais da Europa oitocentista. E para provar que não eram demasiado
radicais, recordem-se a doutrina da lei formal e da lei material lançada por LABAND,
a atribuição ao Rei de um poder de sanção das leis (verdadeiro poder positivo, e não
meramente negativo como o poder de veto), ou o exercício da iniciativa legislativa
pelos Ministros.

11 - No século XX, as transformações ocorridas nas relações entre Estado e sociedade,


o peso da Administração pública de prestação, as crises económicas, os desafios
trazidos por novas ideologias, a inaptidão dos Par lamentos para fazerem face a
muitos dos problemas colectivos, as exigências da vida internacional, tudo isso não
poderia deixar de afectar o princípio da separação de poderes.

De vários quadrantes, vai-se preconizar a sua superação. Cientificamente


insustentável, ele não seria mais politicamente adequado.

Nos regimes marxistas-leninistas, procurar-se-ia reconstituir a unidade do poder - do


poder agora ao serviço das classes trabalha-

108

doras - e afirma-se que em regime burgues a separação seria ilusória, porque, por
detrás das várias instituições formais de poder, se encontraria sempre a mesma classe
dominante. Nos regimes fascistas ou aparentados prevaleceria o culto da autoridade e
da ordem e a ideia de um Poder Executivo ”forte”. Nos regimes de muitos dos países
asiáticos e africanos saídos da descolonização seriam partidos únicos que deteriam
todo o poder.

E até em regimes pluralistas, se sentiria a necessidade de repensar todas as questões,


muito particularmente por causa das leis-medidas’, das delegações ou autorizações
legislativas, das leis de bases e de outras figuras, por causa da actividade internacional
do Estado e por causa de situações de excepção ou de urgência.

111 - A despeito de tudo, no entanto, a experiência do século X-X mostra que se a


separação de poderes já não pode ser adoptada tal como no Estado liberal, ela
continua a ser válida, pelo menos nos seguintes termos:

1 - Que é indispensável, por um imperativo de racionalidade jurídica e por


necessidades de ordem política, que o poder se encontre dividido por órgãos com
competências próprias de modo a os seus detentores se limitarem reciprocamente;

2 - Que nem é isso infirmado por se reconhecer que não existe coincidência entre os
três poderes - legislativo, executivo e

1 . V. Funções, órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, págs. 167 e segs.


109
judicial - de que ainda cuidam várias Constituições e as funções do Estado -política,
legislativa, administrativa e judicial’;

3 - Que se a atribuição do poder legislativo e do poder executivo (ou das funções


legislativa, governativa e administrativa) a órgãos absolutamente separados não é
possível ou não é conveniente, nem por isso se justifica menos o primado de
competencia legislativa do Parlamento, enquanto assembleia representativa, com
composição pluralista e que reune em condições de publicidade;

4 - Que é essencial ao Estado de Direito, pelo menos, a separação de poderes no


tocante ao poder judicial, ou seja, a reserva de função jurisdicional aos tribunaÍS2;

5 - Que é igualmente essencial ao Estado de Direito, pelo menos, a subordinação dos


órgãos administrativos à lei;

6 - Que, para além da repartição jurídica do poder, a efectividade da separação de


poderes depende da intervenção de diversos partidos e forças políticas no poder.

1. V. Funções, órgãos e Actos .... cit., págs. 19 e segs.

2. Especialmente sobre a separação entre o poder judicial e o poder legislativo, v.


CASTANHEIRA NEVES, Questão defacto - questão de direito, Coimbra,
1967, págs. 540 e segs.

110

IV - Finalmente, observe-se que as teorias jurídicas e políticas do século XX têm


ainda chamado a atenção para outros aspectos fulcrais de divisão de poder:

Para a divisão territorial de poder, manifestada através do federalismo, do


regionalismo político e até da simples descentralização administrativa local;

Para a divisão funcional do poder, manifestada através da descentralização


administrativa institucional (associações públicas, empresas públicas, institutos
públicos, etc.);

- Para a divisão pessoal, manifestada através de incompatibilidades entre cargos


públicos;

- Para a divisão temporal, manifestada através da fixação de tempo de exercício dos


cargos e de limitações à renovação de mandatos;

- Para a divisão económica, manifestada através da existência de diversos sectores de


propriedade de meios de produção (v.g., público, privado e cooperativo).

111
CAPITULO Iii,

FORMAS E SISTEMAS

DE GOVERNO
22. AS OITO FORMAS DE GOVERNO MODERNAS

São as seguintes as principais formas de governo modernas:

1) Monarquia absoluta, forma de governo dominante até


1789;

2) Governo representativo clássico ou liberal, que triunfa com a Revolução


Francesa e vai manifestar-se sobretudo no século Xlx;

3) Democracia jacobina (de aplicação efémera, mas doutrinalmente importante) ou


democracia radical com directo assento em Rousseau e expressão mais perfeita na
Constituição francesa de 1793 ou do Ano 1;

4) Governo cesarista, identificado com Bonaparte e muito próximo (daí o nome) da


prática de Júlio César em Roma, depois continuada no império ou principado com
Augusto;

115
5) Monarquia limitada, que corresponde a uma primeira época da Restauraçao e a
monarquia que ira prevalecer na Alemanha e na Áustria no século XIX;

6) Democracia representativa, que, no fundo, é o desenvolvimento do governo


representativo em sentido democrático, e que, pode dizer-se, é a forma de governo
dominante no Ocidente desde a Guerra Mundial;

7) Governo leninista, implantado na Rússia com a Revolução de 1917 e depois


difundido noutros países;

8) Governo fascista, que, não sendo uma forma tão homogénea como a do governo
leninista, é, mesmo assim, historicamente

bem demarcada.

Elas resultam, com mais ou menos nitidez, das diferentes respostas aos problemas
cardeais acabados de expor, da sua consideração como critérios taxonónicos. Mas
não pode, simultaneamente, deixar de se salientar a conexão histórica entre elas, bem
como a relatividade de alguns aspectos de distinção.

23. CARACTERIZAÇÃO SUMÁRIA

1 - A monarquia absoluta, dominante até 1789 e de que os últimos exemplos europeus


foram a Rússia e a Turquia antes de 1914,

116

é a forma de governo que extrai do princípio 1da legitimidade monárquica o


máximo de concentração do poder (e de exercício do poder) no rei.

11 - 0 governo representativo clássico ou liberal repousa numa legitimidade


democrática (embora diferida ou remota); aceita a representação política, mas com
sufrágio censitário e com autonomia dos representantes; aceita ainda a separação de
poderes com tendências mecanicistas, pelo menos na Europa.

111 - Em contraposição ao governo clássico ou liberal encontra-se a democracia


jacobina ou radical. Querendo agora levar às últimas consequências o princípio
democrático, recusa tanto a representação política como a separaç,5- de poderes.

IV - Também o governo cesarista assenta numa legitimidade democrática; todavia,


atenua a representação política através do recurso ao plebiscito. E, obviamente,
concentra o poder no césar, ainda quando não rejeita formalmente a separação de
poderes’.

1. Cfr. OLIVEIRA MARTINS, Histótia da República Romana, 1885 (na 7. ed.,


1987, 1 vol., pág. 221): o cesarismo põe os destinos de uma sociedade nas mãos de
um homem a quem uma nação dá procuração ampla e voto de confiança tácito sob
condição de esse homem trazer a felicidade ao povo.

117
Repare-se como duas formas de democracia, duas formas de governo que tão
fortemente invocam a democracia, podem chegar a resultados aparentemente tão
diferentes - a democracia jacobina e o governo cesarista - ainda que não tão
antagónicos em termos de pluralismo político (pois uma e outro conduzem ao
monismo).

V - A quinta forma de governo é a monarquia limitada, ou seja, a monarquia que se


autolimita, nomeadamente, através das Cartas Constitucionais.

Subsiste nela a legitimidade monárquica, embora já não tão pacífica e exclusivamente


como acontecia na monarquia absoluta. Fundamentalmente, a diferença entre o
governo representativo clássico e a monarquia limitada tem a ver com a legitimidade
política e com o papel do rei dentro do sistema político.

Embora a monarquia limitada aceite a separação de poderes, ela só se verifica no


domínio deixado às instituições representativas. Em tudo o mais subsiste uma ideia de
unidade política assente no rei. Separação de poderes na medida em que o rei não tem
já todo o poder; separação de poderes, sobretudo, dentro das instituições
representativas que são admitidas. E há tanto mais forte separação de poderes no
domínio das instituições representativas quanto mais, por essa via, se tenta dividi-Ias,
fraccioná-las, para não porem em causa o poder do rei.

118

VI - A sexta forma é a democracia representativa, que, no essencial, resulta da


modificação das instituições repres

efitativas pela realização do sufrágio universal, corolário lógico do princípio da


legitimidade democrática. Mas o sufrágio universal gera fenômenos desconhecidos no
século XIX; em especial, liga-se ao enorme papel adquirido pelos partidos políticos, a
ponto de alguns falarem então em Estado de partidos.

Ao mesmo tempo, se a democracia representativa continua a aceitar a separação de


poderes na linha do governo representativo, também a transforma. Transforma-a e
complica-a com recurso a outros instrumentos, conforme se viu.

VII - Na forma de governo leninista - correspondente ao regime marxista-leninista ou


de tipo soviético - o povo, que surge como titular do poder, já não é o mesmo que é
titular do poder no governo representativo clássico ou na democracia representativa.
Não é a universalidade dos cidadãos ou o povo identificado com a comunidade
política. É o povo igual a classes trabalhadoras (ou, noutra fase, o povo em que já não
há separação de classes ou de onde desapareceu a burguesia).

Esta forma de governo recusa a representação política (por causa, desde logo, dessa
visão classista), se bem que não adopte instituições puramente comissariais, como as
da forma de governo jacobina. E rejeita também o princípio da separação de poderes,
se bem que a concentração de poderes se venha a dar não tanto a
119
nível do Estado quanto a nível do partido. No fundo, o essencial ou específico da forma de
governo 1.eninista é o governo do Estado pelo partido comunista, pelo partido considerado
vanguarda da classe operária.

VIII - A forma de governo fascista é muito mais difícil de analisar ou caracterizar, porque
emerge de várias matrizes ideológicas e vai ter concretizações históricas extremamente
diversificadas. 0 seu paradigma é o governo do exactamente chamado Partido Fascista em
Itália, de 1922 a 1943; a sua expressão extrema é o nacional-socialismo alemão; e as suas
expressões mais atenuadas são (se se considerarem em rigor fascismos) o salazarismo
português e o franquismo espanhol.

0 governo fascista não proclama peremptoriamente, nem tão-pouco rejeita, a legitimidade


democrática. 0 que faz é substituir o povo (conjunto de cidadãos concretos) por um povo algo
diferente
- um povo identificado com o Estado em Itália, com a raça na Alemanha, com a nação
(transtemporal), em Portugal.

Dessas concepções de legitimidade resultam quer o afastamento do pluralismo quer a


negação da separação de poderes fiberal. Por outro lado, tal como o governo leninista, o
governo fascista leva ao domínio do poder por um partido único, um partido ideológico de
massas (e é, de resto, por isto não se verificar no Estado Novo português que pode contestar-
se que seja um verdadeiro governo fascista).

120

24. GRANDES CONTRAPOSIÇõES

1 - Se quisermos proceder a grandes contraposições, a primeira e aquela que se dá entre a


forma pré-constitucional (a monarquia absoluta) e as formas constitucionais (as restantes).

Formas de governo com legitimidade monárquica são a monarquia absoluta e a limitada;


formas de governo com legitimidade democrática - com várias concepções de povo e
várias expressões - são as demais.

Formas de governo com representação política são o governo representativo clássico ou


liberal, a monarquia limitada, a democracia representativa e, de certa maneira, o governo
cesarista. Não são formas de governo representativas as restantes. Mas somente na monarquia
absoluta e na democracia jacobina é que não há, em rigor, instituições representativas;
instituições representativas atenuadas, mitigadas, embora sem autenticidade, encontram-se
ainda no governo cesarista, no governo leninista e no governo fascista.

Há pluralismo no governo representativo clássico, na monarquia limitada e na democracia


representativa. Há, pelo contrário, monismo político, sob várias formas - com domínio do rei,
do césar, do ditador ou do partido (embora partido que assume feições históricas muito
diversas) - na monarquia absoluta, na democracia jacobina, no governo cesarista, no governo
leninista e no governo fascista.

121
E observe-se que pluralismo não equivale a pluricracia. Esta significa pluralidade de
centros de poder, como houve no Estado grego, no romano, na Idade Média e no
Estado estamental. Mas pluralismo (político e ideológico) é mais do que isso: é a
liberdade assumida como valor político com todas as suas consequências Oá o
dissemos).

Finalmente, formas de governo com separação de poderes são o governo


representativo clássico, a monarquia limitada e a democracia representativa; formas de
governo sem separação de poderes, a monarquia absoluta, o governo jacobino, o
governo leninista e o governo fascista; forma de governo com reduzida separação de
poderes, o governo cesarista.

11 - Pode ainda tentar-se um quadro susceptível de abranger não só formas de


governo modernas como antigas:

FORMAS DE GOVERNO

Quanto à legitimidade

Legitimidade monárquica.

Legitimidade democrática: Liberal.

Marxista-leninista. Nacional-socialista. Orgânica.

Quanto à participação dos cidadãos Autocracia:

Monarquia.

República aristocrática.

Democracia directa.

Governo representativo: Liberal.

Democrático.

122

Quanto ao pluralismo

Monismo: Monarquia:

Antiga (oriental). Moderna (absoluta). Ditadura:

Autoritária. Totalitária. Pluralismo

Quanto à decisão de poder

Monocracia: Monarquia:
Oriental Absoluta Cesarista

República democrática

Democracia monocrática: Democracia directa antiga. Governo jacobino.

Governo leninista. Governo fascista. Pluricracia:

Governo representativo clássico.

Monarquia limitada. Democracia representativa.

25. SISTEMAS DE GOVERNO EM GERAL

1 - Facilmente se vê que sistemas de governo e formas de governo não têm o mesmo


conteúdo. Há formas de governo que implicam determinados sistemas de governo:
assim a monarquia absoluta. Já no governo representativo clássico ou liberal vamos
encontrar diferentes sistemas de governo e o mesmo acontece na democracia
representativa e até certo ponto na monarquia limitada

I. Cfr., entre tantos, MARNOCO E SOUSA, Direito Político - Poderes do Estado,


Coimbra, 1910, págs. 105 e segs.; QUEIROZ LIMA, op. cit.,

123
Podemos dizer (embora isto carecesse de um mais longo exame) que as formas de governo
pluricráticas, ou mesmo as pluricracias, tendem a uma pluralidade também de sistemas de governo e
que as formas de governo monistas ou monocráticas tendem a um número reduzido de sistemas de
governo. Mas não há correlação necessária.

pags. 235 e segs.; K. LOEWENSTEIN, op- cit., págs- 173 e segs.; MANUEL JIMENEZ DE PARGA,
op. cit., págs. 128 e segs.; MANUEL GARCIA PELAYO, Derecho Constitucional Comparado, 8. ed.,
Madrid, págs. 249 e segs.; Comparative Government, obra colectiva editada por Jean Blondel,
Londres, 1969; PAOLO BISCARETTI DI RUFFIA, Introduzione al Diritto Costituzionale Comparato,
Milão, 1969, págs. 51 e segs.; MAURICE DUVERGER, op. cit., 1, págs. 229 e segs.; COSTANTINO
MORTATI, op- cit., págs. 157 e segs.; THEO STAMMEN, Sistemas politicos actuales, trad. cast.,
Madrid, 1974; MARCELLO CAETANO, op. cit., 1, págs. 416 e segs.; JEAN-CLAUDE COLLIARD,
Les Regimes Politiques Contemporains, Paris, 1978; MARCEL PRÉLOT e JEAN BOULOIS,
Institutions Politiques et Droit Constitutionnel, 8.4 ed., Paris,
1980, págs. 49 e segs.; ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, 0 semipresidencialismo em Portugal,
Lisboa, 1984; PAULO BONAVIDES, qp. cit., págs. 357 e segs; Les Régimes Semi-Presidentiels, obra
colectiva editada por Maurice Duverger, Paris, 1986; AREND LIJPHART, Las Democracias
Contemporaneas, trad., Barcelona, 1987; BERNARD CHANTEBOUT, Droit Constitutionnel et
Science Politique, 9.2 ed., Paris,
1989, págs. 297 e segs.; ARMANDO MARQUES GUEDES, Sistemas Políticos, Coimbra, 1990;
VITALINO CANAS, op. cit., págs. 129 e segs.; GIUSEPPE, DE VERGOTTINI, op. cit., págs. 542 e
segs.

124

11 - Para compreendennos os sistemas de governo - sistemas de relacionamento dos órgãos da função


política - temos de distinguir entre a visão jurídica e a visão política.

Devemos partir da visão jurídica para a política. Em primeiro lugar, porque os sistemas de governo se
definem, antes de mais, com base num determinado enquadramento de órgãos e estes vão ser descritos
e depender, antes de mais, das normas constitucionais. Em segundo lugar, mesmo quando os factores de
ordem política prevalecem sobre os jurídicos, mesmo assim estes conseguem resistir com autonomia; e
em momentos de crise ou de ruptura, ainda é o factor jurídico que vai agir e permitir determinadas
formas de transição.

Por outras palavras: há um conceito jurídico de sistema de governo em que se atende às normas
constitucionais reguladoras dos órgãos govemativos e das suas posições recíprocas, e um conceito
peculiar de ciência política, em que se atende ao funcionamento, ao modo como na prática esses órgãos
desenvolvem as suas actividades e se relacionam entre si; e há, naturalmente, uma conexão entre
ambos, como se acaba de dizer.

111 - De seguida, faremos apenas algumas considerações muito gerais, porque a matéria dos sistemas
de governo não pode ser estendida senão a par de uma visão descritiva e comparativa e dela já
cuidamos no volume 1 do nosso Manual de Direito Constitucional.

125
26. A PERSPECTIVA JURíDICA DOS SISTEMAS

DE GOVERNO

1 - No plano jurídico-constitucional, quando se pensa em sistema de governo têm-se em


mente três grandes conceitos jurídicos (para além de outros menos relevantes que poderiam
ser citados):

a) 0 da separação de poderes, no sentido de especialização orgânico-funcional,


paralelamente à fiscalização ou à colaboração dos vários órgãos para a prática de actos da
mesma função;

b) 0 da dependência, independência ou inter-dependência dos órgãos quanto às condições


de subsistência dos seus titulares ou quanto ao modo como certo órgão vem a projectar-se na
composição concreta de outro órgão (o modo, por exemplo, como determinado órgão
determina ou escolhe os titulares de outro órgão ou vem a determinar a cessação das suas
funções);

c) Como conceito aí compreendido, mas que tem adquirido autonomia, o conceito de


responsabilidade política - de responsabilidade política de um órgão ou dos titulares de um
órgão perante outro órgão.

11 - A partir destes três princípios, a grande divisão, no plano jurídico-constitucional - e


também no plano político - é a que se dá entre sistemas de governo com concentração de
poderes e sistemas de governo com desconcentração de poderes.

126

De um lado encontram-se sistemas de governo, em que não há separação de poderes, em que,


à volta de determinado orgão, se movem os demais órgãos, em que a responsabilidade
política se verifica em relação apenas a um órgão.

De outra banda, acham-se os sistemas de governo em que, Pelo contrário, há divisão ou,
mesmo, separação de poderes; em que se verifica interdependência dos órgãos, ou em que se
consegue alcançar uma independência recíproca na base da pluralidade.

11 - Os sistemas de governo posteriores à Revolução francesa com concentração de poderes


são fundamentalmente três:

1.’ -A monarquia limitada ou o sistema de concentração de poderes que corresponde à forma


de governo que é a monarquia limitada;

2.’ - 0 sistema de governo representativo simples;

3.’ - 0 sistema convencional.

Pode ainda, porventura, autonomizar-se como quarto tipo o sistema de governo soviético.

A monarquia limitada e o sistema representativo simples são sistemas de governo com


concentração do poder no Chefe do Estado; o sistema de governo convencional um sistema
de concentração de poderes na assembleia política. A monarquia limitada repousa, como se
disse, na legitimidade monárquica; o sistema
127
representativo simples e o sistema convencional na legitimidade democrática, e, de
resto o sistema representativo simples tanto pode dar-se em república como sob forma
monárquica (a monarquia cesarista).

A concentração de poder resulta na monarquia limitada da subsistência do princípio


monárquico, só limitado nos casos previstos na Constituição por um parlamento de
competência reduzida; no sistema representativo simples resulta do primado
representativo do Chefe do Estado; no governo convencional da tradução da unidade
política na unidade de poder da assembleia.

0 Chefe do Estado (rei, imperador, presidente da república) pode governar


directamente; ou pode governar com a colaboração de outro órgão, seja um órgão
colegial, o governo, seja um órgão singular que neste caso se chama chanceler. Cabe
então contrapor sistema de governo imediato pelo Chefe de Estado a sistema de
governo - monarquico ou representativo - de chanceler.

Os exemplos mais típicos e importantes de monarquia limitada dão-nos os Estados


alemães do século XIX; e eram também governos de chanceler. Já com monarquia
simplesmente representativa, em regra, não há chanceler; na França napoleónica, o
imperador era, ao mesmo tempo, Chefe do Estado e chefe do governo. Com república
simplesmente representativa, pelo contrário, tanto pode haver governo directo pelo
presidente da república como governo mediato, através de chanceler; e foi este o caso,
como se sabe, da Constituição portuguesa de 1933, do regime do ”Estado Novo”.

128

0 sistema de governo convencional é o sistema de governo com concentração de


poderes numa assembleia; e tira o seu nome da Convenção existente em França entre
1792 e 1795. É o sistema de governo correspondente à forma de governo jacobina e,
sob certa perspectiva, é também o sistema em que se traduz a forma de governo
leninista (embora este ponto seja duvidoso).

Na França revolucionária há uma só assembleia de comissários (não de representantes


do povo, em sentido estrito). Na Rússia revolucionária, diferentes assembleias - os
sovietes de operários, soldados e camponeses - em moldes de organização vertical de
poderes. Esta uma diferença sensível entre o constitucionalismo jacobino e o
soviético. Mas parece que bem que mais importante do que ela é a diferença que
decorre do domínio das assembleias por um partido ideológico leninista (só que esta
diferença releva não tanto do sistema de governo quanto, como vimos, da forma de
governo).

111 - Quanto aos sistemas de governo com desconcentração de poderes, aos sistemas
de governo baseados num princípio de separação de poderes, eles são quatro:

1 0 sistema parlamentar;
2.’ - 0 sistema presidencial;
3.’ - 0 sistema directorial;

4.’ - 0 sistema semiparlamentar.


129
No sistema parlamentar, o Governo assenta na confiança política do Parlamento, é
uma emanação da maioria parlamentar, é responsável politicamente perante o
Parlamento, e este pode ser dissolvido pelo Chefe do Estado. Tal 0 conceito geral;
mas a concretização política assume formas extraordinariamente diferentes; e as
próprias formas jurídicas podem variar extraordinariamente, desde o parlamentarismo
clássico ao chamado parlamentarismo racionalizado.

o sistema de governo presidencial e o sistema de governo directorial assentam ambos,


ao invés, na independência recíproca, quanto à subsistência dos titulares, do órgão de
poder executivo e do órgão de poder legislativo. Nem o primeiro responde
politicamente perante o segundo, nem a assembleia pode ser dissolvida em caso
algum. A diferença jurídica -porque política e historicamente consiste em muito mais
que isso - entre governos presidenciais e directorial está, essencialmente, em que no
governo presidencial o órgão de poder executivo é singular, um Presidente da
República, e no governo directorial é um órgão colegial restrito, um directório ou um
conselho.

0 sistema presidencial diz-se, por seu turno, perfeito, quando o único órgão
constitucional do poder executivo e o Presidente, apenas coadjuvado por certos
colaboradores; e diz-se imperfeito, quando a Constituição prevê a existência de
Ministros com poderes próprios, ainda que totalmente dependentes do Presidente. A
primeira hipótese é a dos Estados Unidos, a segunda de alguns países da América
Latina.

130

Em sistema parlamentar, há três órgãos políticos - o Chefe do Estado (Rei ou


Presidente), o Parlamento e o Governo - mas o Chefe do Estado ou é puramente
simbólico ou as suas competências são muito reduzidas ou, para se exercerem,
carecem de referenda ministerial. Em sistema presidencial e em sistema directorial, há
dois órgãos, o Parlamento e o Presidente ou o colégio directorial. Em sistema
semiparlamentar, são três os órgãos políticos activos -não só o Parlamento e o
Governo como o Chefe do Estado. Nesta existência de um terceiro centro autónomo
de poder está o cerne da categoria do sistema semiparlamentar, ainda que o conteúdo
desse poder varia bastante: pode suceder que o Governo seja tanto responsável
politicamente perante o Chefe do Estado como perante o Parlamento, e pode suceder
que a intervenção do Chefe do Estado seja mais na linha do ”Poder Moderador”.

0 sistema juridicamente semiparlamentar tem duas manifestações históricas. No


século XIX, é a monarquia orleanista (de Luís Filipe de Orleães) ou monarquia
constitucional de relativo equilíbrio entre o Rei e o Parlamento, a meio caminho entre
a monarquia limitada e a monarquia parlamentar. No século XX, em república, e o
semipresidencialismo - ou melhor, os semipresidencialismos (tão variados eles são,
em resposta a problemas políticos bem diversos).

IV - 0 esquema classificatório dos sistemas de governo, do prisma jurídico, é, por


conseguinte, este:

131
Sistemas de concentração de poder:

1 - Monarquia limitada

2 - Sistema representativo simples (monarquia ou república) A - governo imediato do


Chefe do Estado

B - governo de chanceler

3 - Sistema convencional

- sistema convencional jacobino


- sistema soviético.

Sistema de desconcentração de poder:

- Sistema parlamentar

- Sistema presidencial perfeito

imperfeito

- (independência recíproca dos órgãos políticos)

Sistema directorial

Sistema semiparlamentar orleanista

semipresidencial.

27. A PERSPECTIVA POLíTICA

1 - Uma tipologia estritamente política dos sistemas de governo afasta, primeiro, os


critérios jurídico-formais de diferenciação ou de relacionação e, em segundo lugar,
privilegia os factores de formação, desenvolvimento e prática das instituições.

132

11 - Deste prisma, os sistemas de concentração de poder modernos são, não já de três,


mas sim de seis tipos:

1.2 - Monarquia limitada, com governo imediato pelo Rei;

2.2 - Monarquia cesarista;

3.2 - República simplesmente representativa imediata;

4.9 - Governo de chanceler;

5.2 - Governo jacobino;


6.2 - Governo soviético.

E são também seis os sistemas de desconcentração de poder:

1.2 - Governo parlamentar de gabinete;

2.9 - Governo parlamentar de assembleia;

3.L> - Governo presidencial;

4.2 - Governo directorial;

5 .`- Governo orleanista;

6.9 - Governo semipresidencial.

Eventualmente (se não couber dentro do sistema parlamentar de gabinete) poderá


acrescentar-se o parlamentarismo racionalizado.

133
111 - A diferença entre sistemas de governo parlamentar de gabinete e sistema de
governo parlamentar de assembleia decorre, exclusivamente, de condições extrínsecas
às normas constitucionais de repartição de competências. Decorre do sistema eleitoral
e do sistema de partidos.

0 sistema parlamentar de gabinete é o de matriz britânica, traduz-se em governos de


legislatura e exige dissolução do Parlamento sempre que o Governo é por ele
derrubado. 0 sistema parlamentar da assembleia é o de matriz francesa, traduz-se em
maior dependência efectiva do Governo do Parlamento e admite sucessão de governos
durante a mesma legislatura.

0 chamado sistema parlamentar racionalizado’ baseia-se na definição de regras


jurídicas capazes de propiciarem estabilidade ministerial, numa tentativa de adaptação
do esquema fundamental de funcionamento do sistema britânico a outros países
(como a Alemanha ou a Espanha desde a Constituição de 1978). A sua regra mais
conhecida é a da moção de censura construtiva.

28. OS TIPOS DE GOVERNO COM INTERFERÊNCIA MILITAR

1 - Tem ainda interesse - em plano totalmente diverso dos até aqui adoptados - referir
os tipos ou graus de interferência ou parti-

1. Adoptando a célebre expressão de MIRK1NE-GUETZEVITCH da ”racionalização


do poder”.

134

cipação das Forças Armadas no processo político (porque tal se tem verificado
com grande frequência um pouco por toda a parte, salvo nos países anglo-saxórticos e
na Europa setentrional), com a sua consequente projecção nos regimes políticos mais
ou menos caracterizados a que corresponderal.

Olhando para a experiência dos últimos dois séculos, talvez se possa propor a
consideração de quatro grandes tipos: governos puramente militares, governos
militares ideológicos, governos de base militar e governos de vigilância militar.

11 - Assim:

1) Governos puramente militares ou ditaduras militares em sentido restrito, em


que as Forças Armadas conquistam o poder com certos objectivos - geralmente
negativos em relação ao Governo derrubado, sendo o mais frequente a reposição ou ”
restabelecimento da ordem” - e, logo que esgotados estes objectivos, se propõem ou
dizem propor-se voltar à normalidade constitucional (nova ou antiga).

2) Governos militares ideológicos ou ditaduras militares indirectas, em que as


Forças Armadas têm objectivos positivos,

1. Cfr., sobre Portugal, numa ampla visão cultural, EDUARDO LOURENÇO, Os


militares e o poder, Lisboa, 1975.
135
projectos políticos próprios, mas realizam-nos através de um governo misto ou
formalmente civil, ainda que presidido, quase sempre, por um militar.

Estes sistemas compreendem uma grande variedade, em função dos diferentes


condicionalismos sócio-económicos, de classe e de ideologia dominante.

Podem apontar-se historicamente quatro grandes subtipos:

a) Bonapartismo ou governo cesarista de estabilização pósrevolucionária;

b) Kemalismo (de Kemal Ataturk) ou governo militar de modernização e libertação


nacional e de que, ao cabo e ao resto, talvez não se afastam muito o nasserismo, a via
argelina de 1976 e a via peruana de 1968;

c) Franquismo ou variante militar do fascismo ou de regimes autoritários de direita;

d) Peronismo ou variante militar do populismo de certa época latino-americana.

3) Governos de base militar, em que as Forças Armadas já não governam, mas são o
sustentáculo indispensável dos regimes e, assim, estes entram em compromissos com
elas para se conservarem no Poder. Trata-se de regimes autoritários ou totalitários,
136

nuns casos provenientes, a médio prazo, de revoluções militares (como sucedeu com o
salazarismo), noutros casos ligados a revoluções políticas e sociais (como foi o regime
soviético, apoiado no Exército Vermelho), noutros casos, ainda, saídos de guerras de
libertação nacional (como foram alguns dos regimes africanos, com os exércitos de
libertação a ocuparem um importante lugar na vida dos respectivos países).

4) Governos de vigilância militar, em que as instituições políticas civis, geralmente,


ou por definição, democráticas, funcionam por si, mas em que as Forças Armadas não
estão completamente de fora do processo político que garantem ou fiscalizam com
vista à consecução de certas finalidades mínimas. Foi esta a situação da Turquia após
a revolução de 1960 e após 1980, a de Portugal entre 1976 e 1982, e tem-no sido
também a de alguns países da América Latina em certas épocas’.

1 Cfr. a tipologia de HERMANN OELHING, La funcián politica del Ejercito, trad.,


Madrid, 1967, págs. 279 e segs. Distingue (pág. 295) sistemas mistos, militares e de
cooperação. Nos primeiros, o Exército conserva os instrumentos do poder e a vontade
de os utilizar, mas admite a participação de civis em tarefas do governo; nos
segundos, o governo e a administração são exercidos inteiramente por militares; nos
terceiros, o Exército tem uma margem de intervenção real e compartilhada em face da
situação jurídico-política do país.

137
TITULO 11

A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
CAPíTULO 1

PRINCIPIOS E PROBLEMAS

GERAIS
29. DEMOCRACIA E SOBERANIA DO POVO

1 - Por democracia entende-se a forma política em que o poder é atribuído ao povo e


em que é exercido de harmonia com a vontade expressa pelo conjunto dos cidadãos
titulares de direitos políticos.

Não é simplesmente titularidade do poder no povo ou reconhecimento ao povo da


origem da soberania. Não basta-declarar que o poder em abstracto pertence ao povo,
ou que já lhe pertenceu num momento pretérito e que ele o exerceu de uma vez para
sempre - de onde uma legitimidade de tipo democrático. Nem que o poder
constituinte, a aprovação da Constituição positiva,’ compete ao povo, ficando os
poderes constituídos para os govemantes.

Democracia exige exercício do poder pelo povo, pelos cidadãos com direitos
políticos, em conjunto com os govemantes; e esse exercício deve ser actual, e não
potencial, deve traduzir a capacidade dos cidadãos de formarem uma vontade política
143
autónoma perante os govemantes. Democracia significa que a vontade do povo,
quando manifestada nas formas constitucionais, deve ser o critério de acção dos
govemantesl.

Na democracia representativa - a democracia própria da época moderna - o modo por


excelência de o povo formar e manifestar a sua vontade (e, portanto, o modo mais
característico de participação política, insistimos) torna-se a eleição. A sua prática não
é aqui algo de secundário, nem fica (a despeito de o ponto ser controverso) fora do
Estado; a eleição, e em geral o sufrágio, é a forma por que os cidadãos exercem o
poder político, a acrescer aquelas por que o exercem os govemantes.

11 - Numa análise puramente forinal, sem dúvida o poder, a soberania, não pode ser
senão um poder do Estado, tal como (mas por maioria de razão) o povo e o territorio
so são povo e território dentro do Estado. 0 poder não será o mesmo que o Estado,
mas somente o Estado tem poder ou soberania (soberania pessoal e soberania
territorial).

1. Cf. CARLO ESPOSITO (Ia Costituzione Italiana, Pádua, 1954, pág. 10): o
conteúdo da democracia não é que o povo constitua a fonte histórica ou ideal do
poder, mas que ele tenha o poder; não que ele tenha só o poder constituinte, mas que
lhe pertençam poderes constituídos; não que ele tenha a soberania nua, mas sim o
exercício da soberania.

144

A doutrina clássica alemã da soberania do Estado continua válida, desde que assim
entendida: a soberania é do Estado como entidade jurídica global e complexa, e não
dos órgãos do Estado, nem dos titulares dos órgãos, nem do povo, porque ligá-la aos
órgãos - meros centros institucionalizados de formação da vontade - ou aos
govemantes ou aos governados - indivíduos atomisticamente considerados -
representa fraccioná-la em visão unilateral’.

Se se conceber o Estado como su eito de direito, como pessoa i colectiva de Direito


interno e de Direito internacional, melhor se apreenderá ainda esta inserção da
soberania na sua estrutura.

Olhando ao Direito interno, a soberania surge como um feixe de faculdades ou


direitos que o Estado exerce relativamente a todos os indivíduos e a todas as pessoas
colectivas de Direito público e privado existentes dentro do seu ordenamento jurídico.
A regu-,- lam.entação dessas pessoas, a atribuição da capacidade de direitos, a
imposição de deveres e de sujeições, eis então algumas das manifestações do poder
político.

0 povo não é, porém, objecto da soberania. Configurado o Estado como pessoa


colectiva, o povo ou colectividade de cidadãos tem de ser, antes, o substrato de tal
pessoa jurídica. Apenas cada indivíduo ou cada uma das instituições em que os
indivíduos

1. V. JELLINEK, op. cit., pags. 327 e segs.

145
se incorporam podem ser objecto de direitos compreendidos na soberania ou, mais
rigorosamente, sujeitos de relações jurídicas com o Estado.

AI o de análogo se passa na ordem externa. Soberania aqui


9

equivale ou à própria subjectividade ou personalidade de Direito internacional do


Estado ou à capacidade plena de gozo e de exercícios dos direitos con feridas pelas
normas internacionais. Um Estado diz-se soberano, como se sabe, quando pode
manter relações jurídico-internacionais ou, em sentido mais restrito, quando tem a
totalidade daqueles direitos e, assim, participa em igualdade com os demais Estados
na comunidade internacional.

111 - 0 que acaba de ser recordado não esgota o exame do poder no Estado, porquanto
logo se vê que é imprescindível definir as posições relativas dos governantes e do
povo perante ele.

0 ponto de clivagem fundamental de todas as formas de governo está nisto. Ou os


govemantes (certo ou certos indivíduos) governam em nome próprio, por virtude de
um direito que a Cons-
1

tituição lhes reserva , sem nenhuma interferência dos restantes cidadãos na sua
escolha ou nos seus actos de govemantes. Ou os govemantes governam em nome do
povo, por virtude de uma

1. o mais das vezes, uma Constituição em sentido institucional e não verdadeira


Constituição em sentido material.

146

investidura que a Constituição estabelece a partir do povo, e o povo tem a


possibilidade de manifestar uma vontade jurídica e politicamente eficaz sobre eles e
sobre a actividade que conduzem.

No primeiro caso, estamos diante de autocracia (em diferentes concretizações


históricas, a que correspondem também diversas formas de governo). No segundo
caso, diante da democracia.

Poderá talvez atalhar-se que esta distinção não deixa de ser ainda excessivamente
formal. A objecção, porém, não procede, porque, para qualificar qualquer sistema
político não basta ler as proclamações constitucionais, importa confrontá-las com as
consequencias que o Direito, decretado e vivido, extrai das mesmas; e se se recorrer a
uma investigação interdisciplinar para se procurar o suporte real do poder (Chefe do
Estado, Governo ou Parlamento, órgãos formais ou partidos, govemantes ou classes
dominantes, etc.), haverá sempre aí que concluir pela coincidência ou não
coincidência do efectivo exercício do poder com o título jurídico da sua atribuição ou
não ao povo

1. 0 que não impede de reconhecer que sociologicamente o poder se fixa nos


governantes, nos seguintes aspectos: são eles que tomam, de facto, as decisões ou
quase todas as decisões políticas; são eles que, dando impulso unificado à vida
colectiva, marcam cada período histórico; são eles que directamente beneficiam do
seu exercício (seja qual for o beneficio - honrarias, vantagens económicas, realização
pessoal, influência sobre os outros homens, etc.).

147
IV - Para designar o princípio democrático, a Revolução Francesa lançou as locuções ”soberania do
povo” e ”soberania nacional”, as quais persistem ainda em numerosas Constituições, na linguagem
doutrinal e na prática política’.

Trata-se de uma réplica ou de uma importação do conceito de soberania do príncipe ostentado pelas
monarquias absolutas. À ideia de que os reis eram soberanos nos seus Estados, de que não deviam
obediência a ninguém, de que eram até superiores a todas as leis, substituiu-se a ideia de que o povo era
o único soberano, de que toda a autoridade dele dimanava e que a lei devia ser a expressão da sua
vontade. Como tem sido tantas vezes acentuado: ao direito divino dos reis sucedeu o direito divino dos
povos.

1. Cfr., entre tantos, EDMOND VELLEY, ”La souveraineté national&’, in Revue de droit public, 1904,
págs. 5 e segs.; ÉMILE BOUTMY, ”À propos de Ia souveraineté du peuple”, in Études Polítiques,
Paris, 1907, págs. 31 e segs.; MAURICE HAURIOU, La souveraineté nationale, Paris, 1912; A.
ESMEIN, Éléments de Droit Constitutionnelfrancais et comparé, V ed., 1, Paris, 1921, págs. 284 e
segs.; VEZIO CRISAFULLI, ”La sovranità popolare nella Costituzione italiana”, in Scritti giuridici in
memoria di V.E. Orlando, obra colectiva, 1, Pádua, 1957, págs. 409 e segs.; EMILIO CROSA, ”
Variazioni su un tema di V.E. Orlando”, ibidem, págs. 479 e segs.; LE MONG NGUY1EN, ”
Contribution à Ia théorie de Ia constitution souveraine par le peuple”, in Revue du droit public, 197 1,
págs. 923 e segs.; COSTANTINO MORTATI, ”La Costituente”, in Scritti, 1, Milão, 1972, págs. 73 e
segs.; ANTONIO PÉREZ LUf40, «Aproximación analitico-linguistica al términe ”soberania popular”»,
in Derecho y Soberania Popular - Anales de la Catedra Francisco Suarez (Universidad de Granada),
n.2 16, 1976, págs. 137 e segs.; MARTIN KRIELLE, Introducción a la Teoria del Estado, trad.,
Buenos Aires, 1980, págs. 315 e segs.; GUILLAUME BACOT, Carré de Malberg et Vorigine de la
distinction entre souveraineté du peuple et souveraineté nationale, Paris, 1985.
148

Se se analisarem um pouco mais em pormenor essas expressões, ver-se-á quanto elas tem de incorrecto,
de equívoco ou mesmo de perigoso (na lógica da própria concepção democrática).

Com efeito, se a certa altura, no moderno Estado europeu, se pôde afirmar que os reis eram soberanos
foi apenas porque eram os orgãos unicos ou Supremos de Estados que já não dependiam do Papa ou do
Sacro Império, nem se compadeciam com autoridades feudais. É sabido que, aproveitando a
identificação entre poder central e poder real, os teóricos do absolutismo dos séculos XVI a XV111
quiseram ir mais além e afirmar uma soberania sem limites jurídicos. Mas isso mais não era que um
desvio, de que nem sempre se aperceberam os políticos e juristas quando supuseram transferir a
soberania dos govemantes para o povo.

Por isso, não pode entender-se, apesar da apontada transposição, que a soberania do povo deva ser
ilimitada, sob pena de se abrir a porta à democracia absoluta. Pois esta, nas suas principais
concretizações conhecidas oacobina, cesarista e soviética), encontra-se nos antípodas dos princípios
enformadores da democracia representativa, por ser tão negadora como a monarquia absoluta das
liberdades individuais e institucionais e tão contrária como ela aos processos jurídicos de limitação do
poder político que o constitucionalismo se esforçou por instituir.

Por outro lado, tomar a soberania do povo no sentido de supremacia do povo no Estado tem de ser
entendido em termos hábeis. Se tal supremacia significa a necessidade de os govemantes serem da
149
confiança política do povo que os elege, e se significa mesmo que ao povo incumbe
(ou deve incumbir) o poder de tomar certas decisões mais transcendentes para a vida
colectiva através de ou referendo, nenhuma ob ecção há a fazer. Se soberania ou
supremacia do povo j

significa, porém, superintendência sobre os governantes e contínua subordinação


destes às injunções dos eleitores, então ela é desmentida pelas instituições e pela
prática da democracia representativa que, rejeitando o mandato imperativo e
procurando assegurar um mínimo de estabilidade governativa, impede os cidadãos de
determinar (salvo em caso de referendo) actos em concreto dos governantes.

V - Acrescente-se que as expressões soberania do povo ou da nação podem revelar-se


perturbadoras por se prestarem a interpretacões insustentáveis ou ambíguas.

Em primeiro lugar, poderia julgar-se que há uma soberania da nação ou uma soberania
da sociedade a par da soberania do Estado. Algumas correntes doutrinais e ideológicas
efectivamente chegaram a defendê-lo. Ora, o dualismo entre Estado e nação, no plano
jurídico-político, tem de ser rejeitado, por a colectividade humana, seja ela qual for,
correspondente ao Estado só - pode ganhar expressão política através do mesmo
Estado’.

Não resolve a dificuldade acentuar, como faz a ideologia do nacionalismo político,


que a nação é sobretudo uma comunidade

1. Cfr. Manual de Direito Constitucional, 111, 3.! ed., Coimbra, 1994, págs. 50

e segs.

150

transtemporal, de cujos fins, valores e interesses não são senhoras as gerações actuais,
pois vêm do passado e estão virados para o futuro. Ainda que assim seja, na verdade,
não se descortina como pode essa comunidade transtemporal ter outra projecção
política que não seja no Estado e como pode haver outra vontade juridicamente
relevante que não seja a dos governantes e dos cidadãos, a de um povo de homens
vivos e actuais.

Em segundo lugar, no constitucionalismo francês, soberania nacional e soberania


Popular possuem significações muito diversas e que não devem ser arbitrariamente
confundidas. Soberania nacional é a soberania do povo (ou nação, no sentido
revolucionário de 1789) como comunidade ou totalidade orgânica, o que implica a
atribuição do Poder à colectividade e não a cada um dos seus membros. Pelo
contrário, soberania popular significa a atribuição do poder ao povo visto
atomisticamente em cada um dos cidadãos, de tal modo que cada cidadão tem uma
parcela do poder Político (defímida pelo conjunto dos seus direitos políticos).

A doutrina da soberania nacional entronca na tradição que, da Idade Média a Suarez,


se prolonga mais ou menos conscientemente na filosofia política ocidental. Foi ela
que prevaleceu nas revoluções americana e francesa e foi a que teve se traduziu na
construção jurídica e política do Estado constitucional. A doutrina de soberania
popular deriva das teses do contrato social de ROUSSEAU1 e apenas triunfou em
1793.

1 . V. Du Contrat Social, de novo capítulo I do livro III.

151
VI - A despeito de todas estas observações e advertências, as Constituições directa ou
indirectamente influenciadas pelo constitucionalismo francês têm falado e continuam
a falar em soberania do povo, soberania da nação, soberania popular, soberania
nacional. Mas as expressões não podem deixar de ser interpretadas nos respectivos
contextos sistemáticos (assim, nos arts. 2.2 e
3.9 da actual Constituição portuguesa, no contexto do Estado de Direito democrático).

30. 0 PRINCíPIO DO SUFRÁGIO

1 - Dos diversos institutos de participação cívica é o sufrágio o único capaz de


proporcionar a formação e a manifestação de uma vontade unitária e o mais eficaz
meio de o povo agir sobre os govemantes.

0 carácter mais específico do sufrágio acha-se na forma por que é exercido. Sempre
que há eleição - ou referendo - todos os cidadãos com esse direito são chamados a
usá-lol - assim, a eleição ou o referendo é forçosamente geral, ainda quando de âmbito
local; e são chamados a intervir simultaneamente num mesmo acto ou pluraiidade de
actos jurídicos. Trata-se, portanto, de um direito político que, ao contrário da petição,
da acção popular ou mesmo da iniciativa popular, é de exercício conjunto por todos os
seus titulares.

1. Haja ou não o dever jurídico de votar, o que é bem diferente.

152

Daí que se exprima sempre por um resultado global, embora possa analisar-se em
resultados parciais. Cada cidadão vota por si, segundo a sua situação e as suas
aspirações, mas o seu voto somente tem valor somado aos dos restantes eleitores’ e
enquanto exibe uma posição do conjunto dos eleitores ou de parte considerável destes.

A eleição democrática distingue-se ainda de quaisquer outros modos de intervenção


dos cidadãos na vida pública por uma nota: a periodicidade. Na monarquia (ou na
aristocracia) electiva, a eleição vale, de ordinário, por toda a vida do eleito. Pelo
contrário, onde quer que se reflicta o princípio democrático, a eleição dá-se sempre
por períodos mais ou menos curtos, de maneira a garantir a renovação da escolha
popular e a própria renovação ou rotação dos titulares dos cargos políticos.

11 - Os cidadãos que possuem a faculdade de participação política através do sufrágio


como que assumem a plenitude da sua condição de membros do povo. 0 status activae
civitatis é o grau mais elevado de subjectivação da posição do indivíduo perante o
Estado.

2. Por isso, a validade do acto de sufrágio não depende da validade do voto de cada
eleitor, mas da validade das operações que possam afectar o resultado fmal.

153
Por isso, os cidadãos com direito de voto denominam-se cidadãos optimojure (na
expressão romana) ou cidadãos activos (na expressão devida, ao que parece, a
SIEYÈS); e o conjunto dos cidadãos activos forma o povo activo.

Mas diz-se também, numa acepção algo diversa, povo activo o povo em que, não
apenas uma minoria de pessoas, mas sim o maior número de cidadãos possível tem
acesso à vida política com o exercício do direito de sufrágio’. A quantidade de
cidadãos eleitores permite aqui qualificar a situação da comunidade política’.

0 povo activo no segundo sentido (em que se olha ao complexo de todos os cidadãos,
activos e não activos) é à imagem do povo activo no primeiro sentido (mera fracção
daquele); será o que este for. E isso porque - desde que o sufrágio funcione - são os
titulares do sufrágio que moldam a sociedade e o Estado. 0 conceito burguês de povo
conduz ao sufrágio censitário, o conceito democrático ao sufrágio universal.

1. E haveria ainda que distinguir: cidadãos com direito de sufrágio, cidadãos com
direito de sufrágio inscritos no recenseamento eleitoral e cidadãos inscritos que
efectivamente exercem o suftágio. A percentagem de qualquer destas categorias em
relação ao número total de cidadãos indica o estádio de participação política atingido
no país.

2. Num determinado povo pode faltar a atribuição do direito de sufrágio, mas dar-se a
atribuição dos outros direitos políticos (direitos políticos menores), assim como pode
acontecer que uns cidadãos tenham direito de sufrágio e outros apenas os restantes.

154

De onde, a conhecida relação entre o princípio democrático e a extensão do direito de


sufrágio. Declarado esse princípio, tomouse Possível reivindicar, dentro da sua
lógica, alargamento a todos os cidadãos’; e este não só altera a estrutura das
instituições electivas como contribui para o reforço dos seus poderes em face de
outros órgãos. Com sufrágio directo e universal, haverá não já uma mera assembleia
ou Conselho do Governo, mas um verdadeiro Parlamento; não j .à um Chefe do
Estado simbólico, mas um Presidente da República com poderes efectivos; etc.

De onde ainda, o papel do sufrágio nas grandes transformações sociais ocorridas nos
séculos XIX e XX. Ao passo que a participação política no Estado estamental (do alto
e baixo clero, da nobreza, das universidades, dos mosteiros, do povo dos concelhos ou
comunas) se destinava, essencialmente, a garantia da conservação de direitos e
privilégios adquiridos numa ordem social estática, a participação política realizada
através do sufrágio
- decerto não apenas por causa do sufrágio, também pelas características dinâmicas
dos novos tempos - mexe com todas as estruturas do poder e da sociedade.

Embora o referido alargamento do direito de voto

se tivesse feito não sem lutas e não sem mudanças de concepções políticas e sociais,
ele revelou-se um dos mais influentes meios de promover reformas económicas e
sociais, por terem obtido o sufrágio aqueles
1. Por isso, já ALEXIS DE TOCQUEVILLE (De Ia Démocratie en Amétique, 1,
183 5, na ed. de 195 1, pág. 90) considerava irresistivel a extensão do sufrágio.
155
que as reclamavam, mas, do mesmo passo, ele mostrou ser igualmente um veículo
de integração desses mesmos homens (os operários, as mulheres, os jovens e até os
cidadãos de territórios ultramarinos) na ordem política e social

111 - 0 sufrágio traduz-se, nas democracias modernas, na eleição e no referendo. A


eleição é a aplicação essencial, o processo ordinário do sistema representativo. 0
referendo, difundido apenas em alguns países e sobretudo no século XX, não tem
passado, mesmo aí, de processo acessório e extraordinário.

É relativamente habitual pôr em contraste a eleição e o referendo. Todavia, uma


análise mais aprofundada parece aconselhar uma contraposição mais atenuada dos
dois institutos.

Para além do diferente objecto imediato de um e outro (a designação de titulares de


órgãos e a deliberação ou a consulta sobre problemas concretos, respectivamente),
não são despiciendos os elementos que os aproximam. Nem a eleição é apenas
designação, nem o referendo decisão popular autónoma e determinante da vida do
Estado, em tudo do mesmo gênero das decisões de qualquer dos órgãos govemativos.

Por uma banda, a eleição não se reduz à escolha dos candidatos mais capazes ou
mais aptos. É também a escolha de progra-

1. 0 mesmo tinha sucedido, salvas as devidas proporções, na República Romana.

156

mas e partidos em concorrencia e, por aí, a escolha da política que o povo pretende
que o país siga. Não raro, aliás, a eleição geral realizada em certas circunstâncias
(vg., dissolução antecipada do Parlamento por causa de crise política) equipara-se
substancialmente a acto de referendo.

Por outra banda, o referendo (em si mesmo, instituto de democracia semidirecta)


enxerta-se no sistema representativo sem lhe modificar a raiz. Apenas se limita, nuns
casos, a corrigir o eventual afastamento da política levada a cabo pelos govemantes
relativamente às linhas programáticas assentes em eleições gerais e, noutros casos, a
inflecti-la no sentido da vontade actual do eleitorado. Como se realiza
esporadicamente e sobre problemas determinados, como sofre o vigoroso influxo dos
govemantes e como nele se formara maiorias fluídas e variáveis, o referendo é mais
um contrapeso a acrescer ao aparelho político do que um mecanismo de direcção
Permanente da vida do Estado.

3 1. 0 PRINCíPIO DA MAIORIA

1 - Se o sufrágio é o modo de participação dos cidadãos, a maioria é o critério de


decisão - de decisão, quer do conjunto dos cidadãos, na eleição e no referendo, quer
dos órgãos do Estado’.

1. Sobre o princípio da maioria, cfr. KELSEN, Von Wesen und Wert der Demokratie,
trad. fi-ancesa La démocratie - sa nature, sa valeur, Paris, 1932, págs. 5 e segs. e 63 e
segs.; HENRY B. MAYO, An Introduction to Democratic Theory, Nova Iorque, 1960,
págs. 67 e segs. e 166 e segs.; ROGÉRIO SOARES, Direito Público e Sociedade
Técnica, Coimbra, 1969, pág. 72;
157
0 povo vota para eleger os seus representantes e elege-os na base de um princípio de maioria (o que não
inculca, de per si, um único sistema eleitoral stricto sensu), assim como os eleitos, uma vez convertidos
em governantes, decidem à pluralidade de votos, por maioria.

joHN RAVTLS, ATheory of Justice, trad. Uma Teoria da Justiça, Brasília,


1981, págs. 258 e segs.; CLAUDE LECLERCQ, Le príncipe de la maiorité, Paris, 197 1; G.
LEIBI1OLZ, 0 pensamento democrático como princípio estruturador na vida dos povos europeus,
trad., Lisboa, 1974, pág. 29; CARL COHEN, Democracy, trad. Democracia, Lisboa, 1975, págs. 89 e
segs.; PIERRE FAVRE, ”Unanimité et majorité dans le Contrat Social de JeanJacques Rousseau”, in
Revue du droit public, 1976, págs. 111 e segs., e La décision de majorité, Paris, 1976; HANS DAUI)T
e DOUGLAS W. RAE, ”Social Contract and the Limits of Majority Rule”, in Democracy, Consensus
and Social Contract, obra colectiva editada por Pierre Bimbaum, Jack Lively e Gerant Parry, Londres,
1978, págs. 335 e segs.; BARBOSA DE MELO, op. cit., págs. 21 e 23 e segs.; NORBERTO BOBBIO,
CLAUS OFFE, e SIRO LOMBARDINI, Democrazia, maggioranza e minoranze, Bolonha, 1981;
JOÃO BAPTISTA MACHADO, Participação e descentralização, Democratização e neutralidade na
Constituição, Coimbra, 1982, págs. 70 e segs.; GIUSEPPE TRIPOLI, ”Osservazioni sul principio
maggioritario e sui Iiinit’, in Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, 1983, págs. 619 e segs.;
ELAINE SPITZ, Majority rule, Nova J6rsia, 1984; FRANCESCO GALGANO, ”Principio di
maggioranzá”, in Enciclopedia del Diritto, XXXV, 1986, págs.
547 e segs.; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6. ed., Coimbra,
1993, págs. 456 e segs.; ALESSANDRO P2ZORUSSO, Minoranze e Maggioranze, Turim, 1993;
JOSÉ DE SOUSA E BRITO, Jurisdição Constitucional e Princípio Democrático, in Legitimidade e
Legitimação da Justiça Constitucional, obra colectiva, Lisboa, 1995, págs. 46-47; AUGUSTO CERRI,
Riflessioni giuridiche sul cosidetto paradosso della ”maggioranze cicliche, in Rivista Trimestrale di
Diritto Publico, 1991, págs. 3 e segs.; F. RUBIO LLORENTE, Minorias y mayorias en el poder
constituyente, in Anuario de Derecho Constitucional y Parlamentar, 199 1, n.9 3, págs. 31 e segs.

158

11 - 0 princípio encontra-se consagrado, na Constituição portuguesa, por forma expressa: relativamente


à eleição de titulares de órgãos colegiais e singulares (arts. 117.9, n.Os 1 e 2, e l29.» e relativamente às
deliberações dos órgãos colegiais (art.
119.2, n.2 3).

111 - Por que motivo deve ser a maioria o critério da democracia? Por que devem governar os
que recebem mais votos? Por que deve ser a lei a expressão da maioria?

Não é pacífica a resposta. Há quem sustente que se trata de simples ficção ou convenção jurídica, de
mera regra técnica ou instrumental. Assim como há quem afirme que lhe subjaz um Princípio
substantivo ou axiológico, seja o princípio da igualdade, seja o princípio da liberdade, seja ainda
(porventura) um princípio diverso.

De acordo com a ideia de igualdade (que remonta a ROUSSEAU e, de certo modo, a ARISTóTELES),
é porque todos os cidadãos têm os mesmos direitos e o mesmo grau de participação na vida pública que
deve prevalecer a maioria; a vontade política do maior número entre iguais converte-se em vontade
geral; e esta fica sendo juridicamente imputada ao Estado.

De acordo com a ideia de liberdade (sobretudo enfatizada por KELSEN), a maioria resulta da
autodeterminação dos membros da comunidade política; qualquer decisão imposta deve ser reduzida
159
ao mínimo; tendo de haver uma ordem social, esta não pode estar em contradição senão com
a vontade do menor número possível de indivíduos’.

Quanto a nós, entendemos que a regra da maioria tem de assentar num fundamento
axiológiC02: sem ele não se explicam nem o consentimento, nem a própria obrigatoriedade
da decisão decorrente do voto. E entendemos que ele se encontra na conjugação da igualdade
e da liberdade. Não uma presunção puramente negativa, de que ninguém conta mais do que
os outros’, mas o reconhecimento da dignidade cívica de todos os homens. Não uma
liberdade com separação de uns dos outros, mas. uma liberdade com integração numa
sociedade de todos.

Em suma, a regra d a maioria é um corolário ou uma exigencia de uma igualdade livre


ou de uma liberdade igual para todos.

IV - A maioria, naturalmente, não é critério de verdade, é apenas critério de acção. Tem por
objecto decisões políticas, não decisões de foro não polítiCo4. Nem sequer todas as matérias

1. La Democratie .... cit., págs. 5 e 8.

2. Contra, BOBBIO, Democrazia .... cit., págs. 41 e segs.


3. Como diz criticamente KELSEN, op.cit., pág. 8.

4. Para estudo da problemática dos limites do poder constituinte e do poder de revisão, v.


Manual de Direito Constitucional, 11, 3. ed., Coimbra, 1991, págs.
105 e segs. e 175 e segs.

160

políticas a ela estão sujeitas, porque a maioria não pode afectar limites transcendentes do
poder político e, por maioria de razão, limites do poder político democrático; e, além disso,
há casos em que a regra da maioria não se afigura suficiente, ou suficientemente adequada.

A maioria não é critério de verdade. Não há, nem deixa de haver verdade nesta ou naquela
opção política; há só (ou tem de se pressupor que haja) referência ao’bem comum. Pelo
contrário, quando se suscitem problemas de verdade, sejam quais forem
- religiosos, morais, filosóficos, e até científicos ou técnicos - não cabe decisão por maioria.

A decisão por maioria versa sobre quaisquer questões políticas, inclusive as que se reportam
à estrutura do regime e do Estado - abrangendo, portanto, as que se prendem com limites de
revisão constitucional e com alguns dos limites imanentes do poder constituinte (originário)’.

1. 0 que pode acontecer é, para decisões sobre estas questões e sobre outras de maior
relevância (entre as quais as decisões irreversíveis - v.g. as que afectam a independência
nacional ou o património cultural e natural), requererem-se maiorias agravadas ou
qualificadas. Isso depende, porém, de cada Direito constitucional positivo.

Algo de semelhante se verifica nas hipóteses em que a maioria cede perante o exercício de
um poder de veto (de um pouvoir dempêcher).

161
De fora têm, contudo, de ficar os limites transcendentes do poder constituinte,
como sejam os respeitantes aos mais fundamentais dos direitos fundamentais
(direito à vida e à integridade pessoal e outros constantes do art. 19.2, n.2 6, da
Constituição); e os limites imanentes traduzidos no pluralismo e na existência da
oposição. Para que a democracia subsista a maioria não pode pôr em causa os
direitos das minorias.

Por último, na sociedade complexa e Plural dos nossos dias, nem sempre a
decisão de maioria tem força suficiente para se impor ou se mostra idónea para a
prossecução dos objectivos comunitários. Designadamente em questões atinentes
a salários, outros rendimentos e preços, a tendência é para a complementar ou
até para a substituir por métodos contratuais: é a chamada concertação social no
domínio das relações colectivas de trabalho e de outras relaçõeS2.

1. Por isso, escreve KELSEN (op. cit., págs. 65 e segs.): no princípio maioritário, o
fulcro não reside na maiona numenca, mas na força de integração social; e seria até
preferível falar em princípio maioritário-minoritário, porque a democracia
parlamentar, ao organizar os indivíduos em dois campos (maioria e minoria), toma
possível um compromisso na formação da vontade geral.

E, como nota JOÃO BAPTISTA I-v1ACHADO (Participação .... cit., pág.


73), quando se não limita o âmbito do poder político da maioria (a nível estatal),
limita-se, necessariamente, a liberdade ou o poder de todos os cidadãos, do povo em
geral e, portanto, do titular da soberania.

2. Cfr., por todos, BOBBIO, Contratto sociale, oggi, Nápoles, 1980; ou BARBOSA
DE NELO, ”Introdução às formas de concertação sociar’, in Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, 1983, págs. 18 e segs.
162

V - A efectivação do princípio da maioria implica a obs,ervância de regras processuais


ou procedimentais.

Não vale qualquer vontade maioritária, somente vale a que se forma e manifesta no
respeito das normas - constitucionais, regimentais, estatutárias, legais - que regulam o
processo de tomada de decisão. De onde, limites formais ou procedimentais a acrescer
aos limites materiais.

VI - Tudo quanto assim se diz está pensado para a democracia e para a esfera do
político. Mas a regra da maioria não se esgota (nem nasceu) na democracia e na esfera
do político.

Em qualquer sistema não monárquico - por exemplo, numa república aristocrática -


assim como em qualquer comunidade religiosa e em qualquer associação privada ou
em qualquer sociedade comercial, as decisões tem de ser tomadas à pluralidade de
votos. Salvo o consenso ou, a título excepcional, sorteio, a vontade correspondente a
qualquer colégio ou assembleia é a vontade da maioria que aí se manifesta, de
harmonia com as respectivas normas jurídicas.

A estas situações aplicam-se mutatis mutandis quer a fundaMentação, quer os limites


próprios de um processo democrático. A diferença está em que, em democracia, a
liberdade e a igualdade são de todos os cidadãos, e não uma liberdade e uma
igualdade
163
aristocrática, ou entre irmãos da mesma comunidade, ou entre privados. Ou seja: se a
democracia envolve princípio da maioria, é muito mais do que princípio da maioria.

32. DEMOCRACIA E PRINCIPIO REPUBLICANO

1 - Salientou-se atrás que a contraposição entre monarquia e república no século XX deixou


de se situar, na Europa e na quase totalidade do resto do mundo, no campo das formas de
governo para, quando Muito, se deslocar para o das formas institucionais. Tanto são
democracias representativas hoje a Grã-Bretanha ou a Espanha como a França ou Portugal.

Não quer isto dizer que a divergência entre uma ou outra seja de natureza afectiva ou
simbólica, que apenas tenha que ver com tradições de cultura política ou com efeitos de
imagem interna ou externa decorrentes da instituição de Chefia do Estado ou de outras
conexas. Ela também acarreta consequências importantes a nível de sistema de governo,
conforme se depreende do quadro classificatório exposto no capítulo anterior.

A subsistência da Coroa, com efeito, evita o contraditório político à volta do Chefe do


Estado, dispensando, por definição, a realização de eleições para o cargo. Em contrapartida,
reduz o leque possível de sistemas de governo, porque, obviamente, não sendo admissivel
atribuir ao Rei em monarquia constitucional

164

sujeita ao princípio democrático uma função de impulsão política, o único sistema de


governo com ela compatível é o parlamentar: a república pode ser presidencial, parlamentar,
directorial, semipresidencial; a monarquia só pode ser parlamentar.

E, por aqui também mais uma vez se confirma o interesse das distinções conceituais
enunciadas desde o início.

11 - Para além deste aspecto, pode ainda, contudo, encarar-se a república numa perspectiva
algo diversa - na perspectiva de uma democracia mais exigente e qualificada. Sendo nela o
poder do povo e constituindo o povo cidadãos livres e iguais, procura-se levar esta ideia até
ao fim, em total coerência. Pois, se a proscrição da hereditariedade se justifica por isso, então
outras consequências poderão e deverão estar-lhe ligadas, em nome do mesmo princípio
- do Princípio repubficano.

Não se trata apenas de eleger, e de eleger periodicamente; trata-se de eleger todos os titulares
de todos os órgãos políticos; e trata-se também, desde logo, de banir quaisquer
desigualdades, designadamente quaisquer privilégios de nascimento. Não se trata apenas de
eleger, directa ou indirectamente, o Chefe do Estado; trata-se ainda de qualquer cidadão
activo poder vir a ser eleito e de poder vir a ascender a qualquer magistratura.

1. Neste sentido, MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Política e Direito


Constitucional, 6. ed., 11, Lisboa, 1972, págs. 535 e 549.

165
111 - Mas, mais, o princípio republicano postula:

a) A configuração de todos os cargos do Estado, políticos e não políticos, em termos


de um estatuto jurídico, traduzido em situações funcionais, e não em direitos
subjectivos stricto sensu ou, muito menos, em privilégios;

b) A temporariedade de todos os cargos do Estado, políticos e não políticos, electivos


e não electivos;

c) Consequentemente, a proibição quer de cargos hereditários, quer de cargos


vitalícios, quer mesmo de cargos de duração indeterminada;

d) A duração curta de cargos políticos;

e) A limitação da designação para novos mandatos (ou do número de mandatos que a


mesma pessoa pode exercer sucessivamente), devendo entender-se a renovação assim
propiciada tanto um meio de prevenir a personalização e o abuso do poder como uma
via para abrir as respectivas magistraturas ao maior número de cidadãos 1, 2;

1. E ainda uma garantia de independência dos titulares dos órgãos, porque a


necessidade de, ao fim de certo tempo ou de certo número de mandatos, regressarem à
vida privada, impede ou atenua o carreirismo político a sua dependência dos
aparelhos político-partidários.

2. Quando sejam cargos jurisdicionais ou correspondentes a órgãos com competências


de fiscalização, poderá nem sequer permitir-se a reconduÇão, mas, em contrapartida, a
duração dos cargos ser relativamente longa - uma e outra coisa para assegurar a
independência dos respectivos titulares.

166

f) Após o exercício dos cargos, a não conservação ou a não atribuição aos antigos
titulares de direitos não conferidos aos cidadãos em geral (e que redundariam em
privilégios);

g) A não sucessão imediata no mesmo cargo do cônjuge ou de qualquer parente ou


afim mais próximo.

IV - A Constituição portuguesa actual, além de vedar quaisquer privilégios e


discriminações em razão de ascendência (art.
13.2, n.9 2), contém o Princípio da renovação, declarando que ”ffinguém pode exercer
a título vitalício qualquer cargo político de âmbito nacional, regional ou local” (art.
121 Q) 1, 2, 3.

Todavia, o Presidente da República é o único órgão em relação a cujos titulares se


estabelece uma cláusula de não reelegibilidade, não se admitindo a reeleição para um
terceiro mandato consecutivo, nem durante o quinquénio imediatamente subsequente
ao termo do segundo mandato consecutivo (art. 126.2,

1. Só há uma excepção, desde 1982: os antigos Presidentes da República eleitos na


vigência da Constituição e que não hajam renunciado ao cargo fazem parte por
inerência, sem limites, do Conselho de Estado (art. 145.Q, alínea ffi.

2. Na Assembleia Constituinte, tentou-se ir mais longe. 0 texto vindo da 5. comissão


(e que retomámos no Plenário) dizia: ”Ninguém pode exercer qualquer cargo político
a nível nacional ou local por tempo indeterminado ou por períodos ilimitadamente
renováveis”. V. Diário, n.2 109, reunião de 5 de Fevereiro de 1976, págs. 3535 e segs.

3. Cfr., sobre a república na Constituição de 1976, GOMES CANOTILHO, Direito


Constitucional, cit., págs. 483 e segs.

167
n.2 l)I. Significa isto que regra semelhante se não possa decretar ou aplicar a titulares
de outros órgãos do Estado, das regiões autónomas e do poder local?

0 ponto é algo duvidoso e postura negativa já foi adoptada pelo Tribunal


Constitucional. Para equacionarmos o problema, importa distinguir consoante o
estatuto dos titulares dos órgãos consta ou não da Constituição12.

Se se trata de .titulares de órgãos políticos do Estado (Assembleia da República,


Governo, Conselho de Estado) e do Tribunal Constitucional, os quais têm o seu
estatuto no essencial definido pela Constituição (porque Constituição da República,
do Estado)3 não parece possível fixar por lei ordinária qualquer norma limitativa de
reeleição ou de renomeação4. Pelo contrário, se se trata de titulares de outros órgãos
do Estado ou de órgãos das regiões autónomas e do poder local, cujos estatutos
constam de lei ordinária, já essa solução poderá ser adoptada no âmbito
1da liberdade de conformação do legislador.

1. Sobre a formação do art. 126Y, v. Direito da Assembleia Constituinte, n.2 114,


reunião de 4 de Março de 1976, págs. 3765-3766.

2. Acórdão nY 36419 1, de 31 de Julho de 199 1, in Diário da República, U série-A,


n.9 193, de 23 de Agosto de 1991.

3. Arts. 156.Q a 161% a respeito dos Deputados; art. 199.2, quanto aos membros do
Governo; art. 146.2, quanto aos Conselheiros de Estado; art. 224.2, quanto aos juizes
do Tribunal Constitucional.

4. Embora de jure condendo tal pudesse ser aconselhável, em nome ainda do princípio
republicano (conforme propusemos no nosso Projecto de Constituição, art. 259.2).

168

A Constituição não a imporá, mas tão pouco a impedirá: não a impedirá - desde que
observados os critérios gerais de proporcionalidade - enquanto lugar paralelo da
norma sobre reeleição do Presidente da República e enquanto decorrência do princípio
constitucional da renovação.

Nem procede contra este entendimento o regime das restrições de direitos, liberdades
e garantias, invocando-se que se estaria a abrir caminho a restrições ao direito de
eleger e ao de ser eleito (arts. 49..’ e 50.9) não previstas na Lei Fundamental (art. 18.o
, n.’ 2). Não seria assim, primo, porque a restrição se fundaria, em última análise, em
norma constitucional - o referido princípio do art.
12 I.L> - e, depois, porque é o próprio art. 5 V, n.2 3, da Constituição (introduzido em
1989) que dispõe ”no acesso a cargos electivos a lei só pode estabelecer as
inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a
isenção e independência do exercício dos respectivos cargos”.

V -As Constituições de 1911 e de 1933 tomavam inelegíveis para o cargo de


Presidente da República ”as pessoas das famílias que reinaram em Portugal” (art.
40.9, alínea a) da primeira) ou
44 os parentes até ao 6.2 grau dos reis de Portugal” (art. 74. da segunda)’.
I. A Constituição de 1911 ainda feria de inelegibilidade ---os parentes consanguíneos
ou afins, em 1.2 ou 2.2 grau, por direito civil, do Presidente que sai do cargo, mas só
quanto à primeira eleição p-)sterior a esta saída (art. 40.9, alínea b».

169
A Constituição actual não encerra preceito análogo, por força (mais uma vez) do princípio republicano
- da igualdade. Apenas circunstâncias históricas associadas à recente proclamação da república poderão
ter explicado os preceitos de 1911 e de 1933.

33. DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

1 - Assim como o referendo não afecta o essencial da democracia representativa, tão pouco a afecta
aquilo a que se vem chamando (por exemplo, no art. 2.2, in fine da Constituição desde
1982) democracia pafflcipativa.

Esta destina-se, sim, a complementá-la, a servir de estímulo crítico (contrariando até certas tendências
oligocráticas ou aristocratizantes dos govemantes, mesmo eleitos, e, em geral, da classe política) ou a
limitar o âmbito de decisão dos órgãos representativos do poder político. Só em alguns casos contados
vai um pouco mais além’ .

E no mesmo sentido, alargando a regra a todos os cargos politicos, iarn 0 art. 260.2 do nosso Projecto
de Constituição de 1975 e proposta que apresentámos (mas foi rejeitada) na Assembleia Constituinte (v.
Diário, cit.).

1. Cfr., além da bibliografia já citada sobre participação em geral, por exemplo, PIER LUIGI
ZAMPETTI, ”Demoerazia rappresentativa e democrazia partecipativa”, in Studi in memoria di Carlo
EspositO, obra colectiva, III, Pádua,
1973, págs. 1473 e segs.; J.R. LUCAS, Democracy and participation,

170

De resto, a democracia participativa encerra uma grande variedade de formas e mecanismos


,entre os quais também formas e mecanismos próprios de democracia representativa.

11 -0 nome democracia participativa antolha-se primafacie pleonástico, porquanto, por definição,


democracia implica exercício tanto dos direitos fundamentais de liberdade quanto de direitos de
participação política dos cidadãos (como os enunciados no capítulo 11 do título 11 da parte 1 da
Constituição portuguesa)’.

Londres, 1976; PIETRO CIARLO, ”La participazione dei lavoratori alla determinazione dell’indirizzo
político”, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1977, págs. 1648 e segs.; MARIO P.
CHITI, Partecipazione popolare e pubblica amministrazione, Pisa, 1977; GOMES CANOTILHO e
VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada,
1. ed., Coimbra, 1978, págs. 459 e segs.; JORGE MI1LkNDA, A Constituição de 1976 - Formação,
estrutura, princípiosfundamentais, Lisboa, 1978, págs.
459 e segs.; MANUEL SANCHEZ MORAN, Laparticipación del ciudadano en la administración
publica, Madrid, 1980; JEANNE LEMASURIER, ”Vers une démocratie administrative: du refus
d’infonner au droit d’être informé”, in Revue du droit public, 1980, págs. 1239 e segs.; JOÃO
BAPTISTA MACHADO, Participação .... cit., págs. 69 e segs. e 95 e segs.; ARYEH BOTWINTER e
PETER BACHRACH, ”Democracy and Scarcity - Toward a Theory of Participatory Democracy”, in
International Political Science Review, 1983, pags. 361 e segs.; Citoyen et Administration, obra
colectiva ed. por Francis DeIpérée, Lovaina, 1985; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional,
cit., págs. 428-429; FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 1, 2.` ed., Coimbra,
1994, págs. 726-727.

1 . Observe-se como no art. 9.2,alínea c) da Constituição, se liga a ”dernocracia política” à tarefa do


Estado de ”assegurar e incentivar a participação
171
Quando se fala em democracia participativa, pensa-se, porém, numa
participação de grau mais intenso ou mais frequente do que o voto de tantos em
tantos anos, ou mais próximo dos problemas concretos das pessoas. E isto em três
sentidos distintos ou dimensões:

a) No sentido de um reforço da participação ou animação cívica em geral, através


de um mais atento e empenhado aproveitamento dos direitos políticos
constitucionalmente garantidos, de uma integração activa em partidos e noutros
grupos de cidadãos eleitores e de uma maior disponibilidade para o desempenho
de cargos públicos;

b) No sentido da atribuição aos cidadãos, enquanto administrados, de específicos


direitos de intervenção no exercício da função administrativa do Estado;

c) No sentido da relevância de grupos de interesses, de associações e de


instituições existentes na sociedade civil e da sua participação em processos de
decisão ou em órgãos a nível do Estado.

democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais”; como no art.


227.Q, n.2 2 se diz que a autonomia das regiões dos Açores e da Madeira visa ”a
participação democrática dos cidadãos”; e como no art. 237.2, n.2 1 se estabelece
que ”a organização democrática do Estado compreende a existência de
autarquias locais”.

172

A primeira dimensão não traz nada de qualitativamente novo ou diferente no


confronto das formas vindas do constitucionalismo liberal; envolve apenas um
espírito de maior exigencia e responsabilidade democrática, de mais e melhor
democracia (o que, evidentemente, não é para menosprezar)’. já não o segundo e o
terceiro sentidos.

De todo o modo, em nenhuma das hipóteses se está diante de democracia directa,


porque em nenhuma delas os cidadãos assumem directamente o governo do Estado ou
a condução da sua política e administração .

III - Com a segunda dimensão, é uma mudança radical das relações entre
Administração pública e administrados que se realiza; é uma passagem da
Administração tradicional autoritária e burocrática para uma Administração aberta e
tendencialmente desencontrada e descentralizada que se regista; é a democracia
administrativa - a democracia estendida da função legislativa e da govemativa à
função administrativa - que se recorta.

1. Cfr. GABRIEL ALMOND c SIDNEY VERBA, The Civic Culture, Boston,


1965.

2. E quanto à função jurisdicional? Conhecem-se formas de participação dos cidadãos,


como o júri e os juizes sociais (cfr., entre nós, art. 210.2 da Constituição), e, em geral,
diz-se que a justiça é administrada em nome do povo (art. 205.Q). Contudo, por causa
da própria natureza da função
- confinada a estritos critérios jurídicos - não cremos correcto reconduzir os
173
Tal transformação desenvolve-se, por seu turno, em dois momentos ou situações:
nos processos ou procedimentos administrativos que afectam os direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos e na gestão dos serviços ou nas
estruturas organizatórias da Administração.

Como se lê no art. 267.9, n.9 4, da Constituição, o processamento da actividade


administrativa será objecto de lei especial, que assegurará a racionalização dos
meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação de
decisões que lhes disserem respeito. E, desde logo, se garantem os direitos de
informação dos interessados, de acesso aos arquivos e registos administrativos,
de notificação e de fundamentação dos actos administrativos (art. 268.2, n.Os 1, 2
e 3).

Mas a Constituição portuguesa dirige-se a mais do que isso: visa, conforme


entretanto prescreve o art. 267.2, n.s’ 1, a participação dos interessados na gestão
efectiva dos serviços administrativos, a qual se concretiza mediante a
participação em órgãos consultivos ou deliberativos de Administração, a nível
central ou local, e mediante a criação de pessoas colectivas públicas
correspondentes a interesses administrativos e sociais determinados.

fenômenos a democracia participativa. Quando muito, relativamente aos jurados


seria mais ajustado subsumi-los ainda na democracia representativa, sob uma
veste sui generis de representação eleição (porque os jurados, mesmo se
nomeados ou escolhidos por sorteio, representam ainda a comunidade).

174

Nesta altura, a participação torna-se factor gerador de desconcentração e de


descentralização - funcional ou institucional (não territorial)

Administração participada e desconcentrada encontra-se, por exemplo, na


segurança social (art. 63.2, n.2 2) e no ensino público básico e secundário (art.
77.2). Administração participada e descentralizada na saúde (art. 64.2, n.2 4), no
ensino público superior (art. 76.1» e na gestão das profissões livres (art. 267.%
n.2 3); as Universidades e algumas, pelo menos, das associações públicas (arts.
76.2. n.!’ 1, e 267.9, n.9 3) ficam mesmo a pertencer à Administração autónoma
(art. 202.2, alínea c».

No interior das Pessoas colectivas públicas assim estabelecidas hão-de ocorrer


vínculos representativos (como os que se reportam aos conselhos directivos e aos
senados universitários) e não são de excluir práticas de democracia directa.
Porém, no plano global do Estado trata-se de democracia participativa.

IV - Com o terceiro sentido, é o particular, o sectorial, o grupal que se manifesta,


que obtém acesso e voz junto dos órgãos políticos e que, por vezes, parece
alcançar uma parcela de poder público. Democracia participativa equivale então,
mais precisa-

1. Cfr. o nosso estudo As associações públicas no Direito português, Lisboa,


1985.
175
mente, a democracia pluralista de grupos, a democracia associativa ou (se se
quiser) a democracia neocorporativa.

Assente a existência de interesses diferenciados e, não raro, conflituantes, na vida


colectiva e acolhida a sua integração ou representação em grupos, associações,
instituições, procura-se trazê-los para dentro dos processos políticos, de modo,
por um lado, a tomar mais transparentes as suas posições e, por outro lado, a
inseri-los na ponderação do interesse geral pelos órgãos de poder. o interesse
geral sobrepõe-se, forçosamente, aos interesses sectoriais, mas pode fazer a sua
síntese.

São muito variados os veículos de projecção desses interesses e grupos de


interesses: direito de petição colectiva, qualificada ou não; audições ou
pareceres possíveis ou legal ou constitucionalmente necessários (chegando,
porventura, a ter carácter vinculativo para certos efeitos); participação em
órgãos consultivos; participação em órgãos de planeamento ou concertaÇão;
participação em acordos ou convenções obrigatórias para os parceiros sociais’;
participação na gestão de serviços; etc. E conhecem-se tanto formas classistas (vg., só
de trabalhadores ou só de estudantes) como formas intercIassistas, deintervenção.

1. Numa transposição para nível global e com interferência do Estado, do princípio da


contratação colectiva (art. 56.2, n.Os 3 e 4 da Constituição). E algo de semelhante
ocorre com a representação tripartida - de Governos, entidades sindicais e entidades
patronais - na Conferência Internacional do Trabalho (da OIT).

176

V - Por curiosidade histórica, recorde-se o poder popular oposto por algumas


correntes de opinião à democracia representativa, que teve certa voga em Portugal, em
1975, inspirando o Documento-Guia da Aliança Povo-Movimento das Forças
Armadas

Pretendia-se criar uma pirâmide de assembleias populares, desde as de moradores e


trabalhadores até, por sucessivos escalões (municipais, distritais e regionais), a uma
Assembleia Popular Nacional; e assim se construiria, senão uma democracia directa,
pelo menos uma democracia de base, a qual seria ainda uma espécie de democracia
participativa. Mas ressaltavam, à vista desarmada, a sua inexequibilid,ade e a sua
incapacidade de oferecer um esquema político altematiV02.

Em primeiro lugar, não se descortinava como poderiam formar-se espontaneamente


todos os organismos de base indispensáveis à realização da ideia. Depois, como
canalizar da base até ao topo um impulso político coerente, tendo em conta a miríade
de organizações de base e intermédias. Aquilo em que a Assembleia Popular Nacional
pudesse deliberar teria de ser à margem ou acima de manifestações de vontade -
forçosamente

I. V. o texto na nossa colectânea Fontes e Trabalhos Preparatórios da Constituição,


II, Lisboa, 1978, págs. 1182 e segs.

2. Como demonstrámos em 1975. V. Constituição e Democracia, Lisboa, 1976, págs.


119 e segs.

177
parcelares - vindas dessas organizações; teria de o ser a título de presunção ou ficção
de vontade popular ou mesmo de representação, e não a título de governo directo pelo
povo.

A experiência de países em que se tentou implantar o poder popular nesses moldes


(como de alguns dos países africanos de língua portuguesa até há pouco tempo)
mostra que o sistema não funciona sem um partido único de vanguarda ou dirigente da
sociedade, de tal sorte que, na realidade, se torna difícil distingui-lo da forma de
governo leninista.

Nas sociedades modernas para que haja liberdade política o único poder popular
parece ser o poder democrático de todos os trabalhadores e moradores do país, por
sufrágio universal, directo e secreto.

34. PLURALISM0 SOCIAL E DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

1 - Desde o início do século importantes orientações doutri-

nais (não sem antecedentes ilustres como os de MADISON e ALEXIS DE


TOCQUEVILLE) procuraram reinterpretar a estrutura da sociedade a partir do
pluralismo de grupos nela presente. E, um pouco mais tarde, os regimes políticos ditos
corporativos quiseram, também, em nome de ideia aproximada, substituir-se aos
regimes liberais e democráticos.

178

Independentemente do debate que possa travar-se acerca de tais concepções ou de tais


regimes, indiscutível é que, nas últimas décadas oá depois de derrubados esses
regimes) o Estado tem sido obrigado a admitir a sua coexistência com uma sociedade
civil heterogénea, dividida, com forças e interesses diferentes e divergentes; e tem
sido obrigado, como acaba de se ver, a conferir-lhes relevância política.

Por causa dos grupos, os elementos estritamente políticos e os económicos, sociais e


culturais interpenetram-se cada vez mais, o Estado socializa-se e a sociedade
estadualiza-se e, não raro, dir-se-ia dificil discernir zonas de fronteira. As decisões
políticas não são tão livres como antes, porque têm de atender às pressões dos grupos
ou dos correspondentes lobbies. E as decisões económicosociais adquirem um
significado político que talvez parecessem, à partida, não possuir’.

1. Sobre o assunto, cfr-, entre tantos, HARRY ECKSTEIN, ”Group Theory and the
Comparative Study of Pressure Group”, in Comparative Politics, obra colectiva, Nova
lorque, 1963, págs. 339 e segs.; K. LOEWENSTEIN, Teotia .... cit., págs. 422 e segs.;
JORGE ESTEBÁN, ”La representación de interesses Y su institucionalización: los
diferentes modelos existentes-, in Revista de Estudios Políticos, Set.-Out. de 1967,
págs. 43 e segs.; ROGÉRIO SOARES, Direito Público e Sociedade Técnica,
Coimbra, 1969, págs. 86 e segs.: G. LEIBHOLZ, Problemas fundamentales de la
democracia moderna, trad., Madrid, 1971, págs. 97 e segs.; G. BURDEAU, Traité...,
cit., 2.! ed., VII, Paris,
1972, págs. 559 e segs.; R. ZIPPELIUS, op. cit., págs. 111 e segs.; E. FORSTHOFF,
El Estado de Ia Sóciedad Industrial, trad., Madrid, 1975, págs.
199 e scgs.; KLAUS VON BEYME, ”Organizaciones sociales. Grupos de interesses.
Associaciones-, in Marxismo Y Democracia Politica, VI, trad., Madrid,
1975, págs. 1 e segs.; RAINER. EISFELD, Il pluralismo tra liberalismo e
179
11 - Sem embargo de algumas semelhanças entre este pluralismo social e o
corporativismo dos anos 30, 40 e 50 do século XX, não deixam de ser nítidas as
diferenças.

0 Estado corporativo definia-se em dois planos, o económico-social e o mais


estritamente político. Propunha-se organizar todas as actividades da Nação dentro de
organismos representativos de

socialismo, trad., Bolonha, 1976; NORBERTO BOBBIO, ”Pluralismo”, in Dizionario


di Politica (1976), págs. 717 e segs.; VIEIRA DE ANDRADE, Grupos de Interesse,
Pluralismo e Unidade Política, Coimbra, 1977; ”parecer n.> 2178 da Comissão
Constitucional”, de 5 de Janeiro, in Pareceres, IV, págs.
151 e segs.; LORENZO ORNAGHI, ”Interesse” e ”gruppi corporatii”. Introduzione
allo studi del fenomeno corporativo, in Il Político, 1980, págs. 221 e segs.; PHILIPPE
SCHMITTER, Democratic Theory and Neo-Corporatiste Practice, Florença, 1983;
GERARD LEI---IMBRUCH, ”Le condizioni logiche e strutturali del neo-
corporativismo”, in Quaderni Costituzionali, 1983, págs. 475 e segs.; MAURO
CAMELLI, ”Amministrazione e politiche neo-corporative”, ibidem, págs. 523 e segs.;
MANUEL DE LUCENA, ”Neocorporativismo?”, in Análise Social, 1985, págs. 819 e
segs.; LúCIA AMARAL, ”0 problema da função política dos grupos de interesse”, in
0 Direito, 1974-1987, págs. 47 e segs.; JOÃO BAPTISTA MACHADO, ”A hipótese
neocorporativa”, in Revista de Direito e Estudos Sociais, 1987, págs. 3 e segs.;
Polítical Stability and NeoCorporativism, obra colectiva editada por ILDA
SCHOLTER, Nova lorque,
1987; MARCELO REBELO DE SOUSA, ”La recherche sur les groupes d’intérêt au
Portugal”, in A coabitação política em Portugal, Lisboa, 1987, pdgs. 45 e segs.;
VICTOR V. MAGAGNA, ”Representing Efficiency: Corporativism and Democratic
Theory”, in The Review ofPolitics, 1988, pdgs.
420 e segs.; CRISTINA QUEIROZ, Sobre os conceitos de ’pluralísmo ” e ”
neocorporativismo”, in Boletim do Conselho Nacional do Plano, n.2 18, 1989, págs.
232 e segs.; PIERRE J. PARARAS, Le retour du corporativisme en France - La crise
du mandat représentatif, in Reme Internationale de Droit Comparé, 198 1, págs. 427
e segs.; CLAUS OFF, Partidos políticos y nuevos movimientos sociales, trad. Madrid,
1992, págs, 133 e segs.

180

interesses morais, culturais e económicos, organismos esses que procurava identificar


com instituições sociais naturais. A integração nestas instituições dissolveria os
conflitos e os antagonismos, nomeadamente os conflitos de classes: o corporativismo
afirmava a harmonia necessária de interesses e, por isso, proibia, por exemplo, a
greve. Nestas instituições é que o indivíduo realizaria a sua personalidade e a sua
cidadania e através d eles é que deveria participar na vida política: daí a noção
de sufrágio orgânico que, a despeito de só muito limitadamente ter sido
consagrado, se pretendia contrapor ao sufrágio individual ou ino
do do rganico, vin

constitucionalismo liberal e democrático.

Nada disto se depara no Estado social de Direito posterior a


1945. Este parte de uma visão dinâmica do processo social em que se reconhecem os
contrastes, os conflitos e os antagonismos de classes e de grupos. Não é uma harmonia
pré-estabelecida (ou estabelecida administrativamente) que se tenta conservar a todo o
custo, mas uma sociedade imperfeita que se pretende transformar no respeito de certas
regras de processo e de fundo. Especialmeirite acentuados são a ideia da autonomia
quer das classes trabalhadoras quer do patro-nato, o direito à greve, o movimento
sindical e a int

erligação com os partidos políticos.

35. DEMOCRACIA POLíTICA E DEMOCRACIA SOCIAL

1 - Ao longo do século XX multiplicaram-se e vulgarizaram-se, na acção política, nos


textos constitucionais e em estudos
181
teóricos e doutrinais, adjectivações da democracia. De entre todas, adquiririam maior
significado e carga emotiva locuções como democracia política ou formal e
democracia social ou material.

Conhecem-se as causas deste fenômeno: a correspondência observada de regimes


democráticos pluralistas e certos estádios de desenvolvimento económico, social e
cultural; a correlação estabelecida, de vários quadrantes, entre governos e classes
dominantes; a influência das ideologias socialistas e social -democratas; os evidentes
efeitos políticos das crises sociais; o peso das convulsões que ocorreram e continuam
ocorrendo por toda a parte. E sabe-se bem que historicamente a democracia
representativa - democracia de massas, assente no sufrágio universal - é coeva e está
em interacção com o Estado social - Estado que assegura não só direitos, liberdades e
garantias mas também direitos económicos, sociais e culturais.

Não obstante, raciocinando em estritos termos científicos, não se .justifica identificar


a democracia representativa - em si mesma uma forma de governo, portanto,
relevando apenas do domínio da política - com qualquer conteúdo económico, social e
cultural, nem, muito menos, afirmar qualquer separação ou contraposição. São
instâncias diversas, ainda que comunicantes, e confundi-Ias acaba, muitas vezes, por
obliterar os problemas específicos de cada um’.

1. Cfr., sobre o assunto, KELSEN, La démocratie ..., cit., págs. 104 e segs.;
GEORGES BURDEAU, Traité .... VII, 2.<1 ed., Paris, 1973, págs. 459 e segs.;
CARL COHEN, op. cit., págs. 79 e segs.; JUAN FERRANDO BADíA,
182

Aliás, se a democracia representativa (ou democracia política) se apresenta


relativamente bem caracterizada, já o mesmo não acontece com a democracia social,
susceptível de várias pré-compreensões e conotações de acordo com as respectivas
fontes filosóficas e ideológicas. Todavia, atendendo à acepção mais intensa e habitual
no Ocidente - com divisão da riqueza e dos rendimentos, forte intervenção e regulação
económica pelo Estado, forte compressão da iniciativa e da propriedade privada, largo
sector público e social de meios de produção, etc. - não são poucos e pouco
importantes os países com democracia representativa mais ou menos daí afastados
(basta pensar nos Estados Unidos e no Japão após 1946).

Uma das i 1deologias que se tem pretendido mais próxima da aspíração de


democracia social tem sido a marxista. E, no entanto, também seria suficiente
considerar os regimes em que se implantou para - admitindo que se concretizaram os
seus objectivos concluir pela sua não coexistência com democracia representativa
(recusada a priori como forma de governo).

Acrescente-se, para além de tudo, que não parece exacto qualificar a democracia
representativa como simplesmente formal, sem conteúdo. Ela tem um conteúdo:
precisamente o que é dado

Democraciafrente a Autocracia, Madrid, 1980, págs. 77 e segs.; ALF ROSS, ny


Democracy?, trad. cast. Por que democracia?, Madrid, 1989, págs. 169

e segs.
183
pela legitimidade, pela participação, pelo pluralismo e pela divisão de poder-

II - Coisas diferentes são as posturas que se adoptem ou que até sejam consagradas em
determinadas Constituições acerca da correlação da democracia representativa com
intenções e instituições de democracia social.

Poderá, porventura, sustentar-se que a democracia política não subsiste sem


democracia económica, social e cultural, nem esta sem a democracia política; que a
igualdade tem de se firmar tanto dentro do Estado como dentro da sociedade; que é
preciso que essa igualdade, como condição de liberdade, seja não só igualdade de
oportunidades mas também igualdade efectiva e concreta’. Será uma visão prescritiva,
não uma visão teórica das formas de governo.

Assim como poderá esta ou aquela Constituição ligar a democracia à democracia


económica, social e cultural (expressis verbis referida, como sucede na Constituição
portuguesa actual no art. 2.2). Será uma decisão de certo poder constituinte, uma
solução bem localizada de Direito público positivo, não uma exigência universal
comprovada pelo Direito comparado.

1. Como escrevemos em Constituição e Democracia, cit., págs. 79 e segs.


184

36. ESTADO DE DIREITO E PRINCíPIO DEMOCRÁTICO

1 - Nunca é demais insistir em que Estado de Direito não

equivale a Estado sujeito ao Direito, porque não há Estado sem sujeição ao Direito no
duplo sentido de Estado que age segundo processos jurídicos e que realiza uma ideia
de Direito, seja ela qual for. Estado de Direitosó existe quando esses processos se
encontram diferenciados por diversos órgãos, de harmonia com um princípio de
divisão do poder, e quando o Estado aceita a sua

inaçao a crit

subord* - érios materiais que o transcendem; só existe quando se dá limitação


material do poder político; e esta equivale a salvaguarda dos direitos fundamentais da
pessoa humana.

Sem entrar na análise quer da formação e evolução das instituições quer dos
problemas actuais que suscitam, devem figurar-se como postulados ou requisitos do
Estado de Direito (passíveis de graduação e de conformação específicas consoante os
sistemas políticos) os seguintes:

a) A definição rigorosa e a garantia efectiva, no minimo, dos direitos à vida e à


integridade pessoal, da liberdade fisica e da segurança individual, da liberdade de
consciência e religião, bem como da regra da igualdade jurídica entre as pessoas;

b) A pluralidade de órgãos govemativos, independentes ou interdependentes quanto à


sua subsistência, e com funções distintas, competindo, nomeadamente, ao Parlamento
o primado da função legislativa;
185
c) A reserva da função jurisdicional aos tribunais, independentes e dotados de
garantias de independência dos juizes;

d) 0 princípio da constitucionalidade, com fiscalização, de preferência jurisdicional,


da conformidade das leis com a Constituição;

e) 0 princípio da legalidade da Administração, com anulação contenciosa dos


regulamentos e actos administrativos ilegais;

f) A responsabilidade do Estado pelos danos causados pelos seus órgãos e agentes’.

11 - Ora, não há coincidência necessária histórica e conceitualmente - entre Estado de


Direito e democracia entendida como soberania do povo. 0 Estado de Direito hoje
postula a democracia representativa e pluralista, e vice-versa; mas é preferível então
falar em Estado de Direito democrático.

Historicamente, a ideia de Estado de Direito surgiu na Alemanha à margem de


qualquer base democrática e até de liberalismo político; tal como a democracia,
enquanto democracia jacobina, ou cesarista ou soviética, sempre repudiou a limitação
de poder àquela inerente. Além disso, não são menos extensas e intensas as
decorrências do Estado de Direito do que as de demo-

1. V. os autores citados em Manual .... IV, cit., págs. 179 e segs.

186

cracia representativa, e, não raro, se encontram ordenamentos jurídicos com


democracia representativa que não têm levado (ou ainda não levaram) até ao fim todos
os princípios acabados de enunciar (vg., os da fiscalização jurisdicional dos actos do
poder).

0 conceito de Estado de Direito democrático é, pois, o conceito - a nível de regime


político, e não só de forma de governo I destinado a abranger o máximo possível de
Estado de Direito e de democracia no conjunto das suas diferentes implicações
substantivas e adjectivas.

Numa linha extrema de irrestrito domínio da maioria, o princípio democrático poderia


acarretar a violação do conteúdo essencial de direitos fundamentais; levado aos
últimos corolários, o princípio da liberdade poderia recusar qualquer decisão política
sobre a sua modelação. 0 equilíbrio obtém-se através do esforço de conjugação,
constantemente renovado e actualizado, de princípios, valores e interesses, bem como
através de uma complexa articulação de órgãos políticos e jurisdicionais.

37. AS CONCEPÇõES E OS VALORES DA DEMOCRACIA

1 - Independentemente da análise dos grandes princípios

institucionais, importa ter presentes as diversas visões explicativas

1. Como dissemos supra, citando o preâmbulo e e3 arts. 2.2 e 9.`, alínea b) da


Constituição.

187
do cerne da democracia moderna à luz das respectivas pré-compreensões filosóficas e teóricas’.

1. Além das grandes obras clássicas, como as de ROUSSEAU (Du Contrat Social) ou de ALEXIS DE
TOCQUEVILLE (De Ia Déniocratie en Amerique), v., dentre autores dos últimos cinquenta anos,
CABRAL DE MONCADA, ”Valor e sentido da democracia”, 1930, in Estudos Filosóficos e
Históricos, 1, Coirabra, 1958, págs. 1 e segs.; DOMINGOS MONTEIRO, Bases da organização
política dos regimes democráticos - I - A organização da vontade popular e a criação da vontade
legislativa, Lisboa, 193 1; KELSEN, La démocratie - sa nature, sa valeur, cit., e General Theory of
Law and State, 1945, trad. portuguesa Teoria Geral do Direito e do Estado, Brasília, 1990, págs. 278 e
segs.; RUDOLPH LAUN, La démocratie - essai sociologique, juridique et de politique morale, Paris,
1933; JOSEPH SCHUMPETER, Capitalisni, Sócialisni and Democracy, 1942, trad. fi-ancesa
Capitalisme, Socialisme et Déniocratie, Paris, 1972, maxime págs. 354 e segs.; ALF ROSS, Why
Democracy?, trad. castelhana Por que democracia?; HENRY B. MAYO, An Introduction to
Democratic Theory, cit.; GUSTAV RADBRUCH, Filosofia do Direito, 4. ed. portuguesa, 1, Coimbra,
1961, págs. 170 e segs.; GEORGES BURDEAU, La Déniocratie - Essai Synthétique, trad. portuguesa
A Democracia, Lisboa, 1962; HERBERT TINGSTEN, The Problems of Democracy, trad., Nova
lorque,
1965; C.J. FRIEDRICH, La Democracia comoforma politica y comoforma de vida, 2.L’ed. castelhana,
Madrid, 1966; JEAN LACROIX, Crise da democracia, crise da civilização, trad. portuguesa, Lisboa,
1968; CAROLE PATEMAN, Participation and Democratic Theory, cit., págs. 1 e segs.; PONTES DE
MIRANDA, Democracia, Liberdade, Igualdade, 2.9 ed., São Paulo, 1979, págs.
135 e segs.; DOROTHY PICKLES, Democracy, Londres, 1970; GlOVANNI SARTORI, Democrazia e
Definizioni, trad. fi-ancesa Théorie de la Démocratie, Paris, 1973 e ”Democrazia”, in Elementi di
Teoria Política, Bolonha, 1990, págs. 25 e segs.; BARRY HOLDEN, The Nature of Democracy,
Londres,
1974; CARL COBEN, Democracy, cit.; C.B. MACPIlERSON, ne Life and Times of Liberal
Democracy, 1977, trad. castelhana La Democracia Liberal y su Época, Madrid, 1991; BARBOSA DE
MELO, Democracia e Utopia, cit.; JUAN FERRANDO BADíA, Democracia frente a autocracia, cit.;
NORBERTO BOBBIO, C. OFF e LOMBARDINI, Democrazia, maggioranza e
188

Vamos resumir algumas (só algumas) das mais paradigmáticas ou significativas que foram propostas
nas últimas décadas: as de KELSEN, RUDOLPH LAUN, SCHUMPETER, ALF ROSS, RENÉ
CAPITANT, KARL POPPER e NORBERTO BOBBIO.

11 - Para KELSEN, a ideia de liberdade é o núcleo da democracia. A igualdade entra também, mas de
maneira negativa, formal e secundária: cada um deve ser o mais livre possível, logo todos devem-no ser
igualmente; cada um deve participar na formação da vontade geral, logo todos devem participar de
forma igual’. E existe uma relação entre a posição metafisica-absolutista do mundo e a autocracia e
entre a posição crítico-relativista e a democracia.

minoranze, cit.; RENE CAPITANT, Études Constitutionnelles, Paris, 1982, págs. 19 e segs.; GOMES
CANOTILHO, Constituição diligente e vinculação do legislador, cit., págs. 462 e segs.; Teorias de ia
Democracia, obra colectiva editada por M. GONZÁLEZ GARCíA e FERNANDO QUESADA
CASTRO, Barcelona, 1988; NORBERTO BOBBIO, Liberalismo e Democracia, trad. portuguesa,
Brasília, 1988, e ”Democracia e Paz”, in Balanço do Século, obra colectiva, Lisboa, 1990, págs. 25 e
segs,: KARL POPPER, Em busca de um mundo melhor, trad., Lisboa, 1989, págs. 141 e segs., e ”
Alguns problemas práticos da democracia”, in Balanço do Século, págs. 75 e segs.; RAMóN
COTARELO, En torno a Ia teoria de la democracia, Madrid, 1990; JOHN S. DRYZEK e JEI7FREY
BERERIKJAN, ---Reconstructive democratic theory”, in American Political Science Review, Março
1993, págs. 48 e segs.; ENZO SCIAIA, Interpretacióli de la democracia, trad. Madrid, 1994.

1. La Démocratie ..., cit., pág. 104. Em Teoria Geral do Direito e do Estado, KELSEN fala, porém,
numa síntese das ideias de liberdade e igualdade (págs.
278 e segs.)

2. La Déniocratie .... cit., pág. 111.

189
LAUN define a democracia como o Estado cuja Constituição positiva não repousa sobre
direitos suprapositivos que possuam determinadas pessoas ou determinados grupos de
pessoas à competência da soberania ou a uma parte da competência da soberania. A
democracia é um Estado livre de direitos dogmáticos de domínio’ .

Segundo SCHUMPETER, o método democrático é 0 sistema institucional conducente a


decisões políticas no qual os indivíduos adquirem o poder de estatuir sobre essas decisões na
sequência de
2

uma luta concorrencial tendo por objecto os votos do povo .

Para ALF ROSS, o tipo ideal de democracia corresponde à forma de governo em que as
funções políticas são exercidas pelo povo com um máximo de intensidade, efectividade e
latitude de acordo com os métodos parlamentareS3.

RENÉ CAPITANT considera a democracia sob o aspecto jurídico, a partir de quatro


princípios:

a) o princípio da autonomia, segundo o qual qualquer obrigação deve ser aceite por aquele
que lhe está adstrito;

b) 0 princípio da igualdade, segundo o qual ninguém pode obrigar outrem sem se obrigar
também a si mesmo a uma obrigação idêntica ou equivalente;

1. Op.cit., pág. 123.

2. Op.cit., pág. 355.


3. Op.cit., pág. 96-

190

C) 0 princípio da laicidade, segundo o qual a obrigação não vincula a consciência de quem


lhe está adstrito;

d) 0 princípio da autoridade, segundo o qual a obrigação, se é válida, impõe-se àquele que


lhe está submetido e deve ser sancionada pela coerção pública’.

Por sua vez, KARL POPPER contrapõe àquilo a que chama a teoria clássica da democracia
uma teoria realista. Ela há-de ser o sistema em que os govemantes podem ser afastados do
poder sem violência, pacificamente, através do voto da maioria2.

E BOBBIO sustenta que a democracia é a forma de governo em que vigoram regras gerais (as
chamadas regras de jogo) que permitem aos cidadãos (como jogadores) resolver, sem recorrer
à violência, os conflitos que nascem inevitavelmente numa sociedade em que se formam
grupos cujos valores e interesses são contrastanteS3,4.

1. Op. cit, págs. 191 e segs.

2. Alguns problemas práticos ..., cit, loc.cit., págs. 79-80. V. também H. MARCUSE e KARL
POPPER, Revolução ou Reforma? Uma Confrontação, Lisboa, 1974, págs. 33, 34 e 42.

3. Democracia e Paz, cit, loc. cit, pág. 28.

4. Entre outras formulações, poderia ainda mencionar-se a de ROERT DAHL, considerando a


democracia como poliarquia (para a distinguir da democracia ideal), como um sistema
político baseado sobre partidos competitivos em que a maioria está no poder e respeita os
direitos das minorias. Mas não pudemos consultar o seu A Preface to Democratic Theory,
Chicago, 195 6.

191
111 - Seguindo o pensamento de KELSEN poderia quicá depreender-se que a
democracia não se carregaria de quaisquer valores. 0 relativismo dir-se-ia o seu
cunho próprio, o que não

seria correcto.

Com efeito, o relativismo democrático só pode ser um relativismo político, não,


de jeito algum, um relativismo filosófico; envolve um pluralismo de ideias, de
correntes de opinião, de forças políticas - acompanhado ou garantido pela não
assunção de nenhuma pelo Estado (quer dizer, pela laicidade ou a não
confessionalidade do Estado, nessa perspectiva); não equivale a indiferentismo
filosófico, convertido em atitude perante a vida ou erigido em doutrina oficial.

0 relativismo vale na esfera política, no jogo de ideologias, programas e partidos em


disputa pelo poder para o conformar através do voto da maioria. Não pode impor-se à
esfera individual, do pensamento, das convicções e das crenças das pessoas, sob pena
de se negar a si mesmo, absolutizando-se. Bem pelo contrário, como escreve um
Autor, afirmar o relativismo na ordem relativa é precisamente permitir ao absoluto
afirmar-se na ordem do absoluto’. 0 sistema democrático é o único que pressupõe o
convívio das diferençaS2; logo, por definição, ele não as nega ou esconde; reconhece-
as e salvaguarda-as, sim, na sua existência e na sua manifestação.

1. JEAN LACROlX, op. cit., pág. 110.

2. BOBBIO, Democracia e Paz, cit., loc. cit., pág. 29.


192

IV - Qualquer forma de governo fimda-se em certos valores que, conferindo-lhe


sentido, vêm, por um lado, alicerçar o consentimento dos governados e o projecto dos
govemantes e, por outro lado, construir o referente de ideal de todos quantos por ela
se batem.

Assim, por detrás da diversidade de concepções e formulações teóricas, avultam


valores políticos sem os quais a democracia aparece desprovida de razão de ser. E eles
são (importa sublinhar de novo) a liberdade e a igualdade’, tal como constam2 da
Declaração de Direitos da Vírgínia, da Declaração de 1789 e da maior parte das
Constituições de Estado de Direiro democrático.

É porque todos os seres humanos são livres e iguais que devem ser titulares de
direitos políticos e, assim, interferir conjuntamente, uns com os outros, na definição
dos rumos do Estado e da sociedade em que têm de viver. É porque todos são dotados
de razã

o e de consciência (como proclama, por seu lado, a Declaração Universal) que eles
são igualmente chamados à participação cívica, capazes de resolver os seus problemas
não pela força, mas pelo confronto de ideias e - à falta de critério transcendente - pelo
seu sufrágio pessoal e livre.

1. Cfr. já ALEXIS DE TOCQUEVILLE, De la Démocratie en Amérique, II, Paris,


1840 (na ed. de 195 1, págs. 29 e segs. e 392 e segs.).
2. Lidas objectivamente, não de acordo com estas ou aquelas premissas filosóficas dos
seus autores históricos.

193
A liberdade revela-se, portanto, do mesmo passo, fundamento e limite de democracia.
Revela-se fundamento, visto que a participação na condução dos destinos comuns
pressupoe a liberdade. E revela-se limite, visto que a democracia (insistimos ainda)
não pode pôr em causa a liberdade, e a maioria é sempre maioria de conjuntura, não
maioria definitiva, pronta a esmagar os direitos da

minoria’.

1. Cfr. JOÃO PAULO H, Evangelium Vitae, trad. 0 Evangelho da Vida, Lisboa,


1995,pág.125.

194

CAPITULO II

A ELEIÇÃO

E 0 REFERENDO
§ 1.2

A ELEIÇÃO

38. A ELEIÇÃO POLíTICA EM GERAL

1 - Em todas as épocas e mais ou menos por toda a parte se observa a prática da


eleição (e até da eleição política), por diverso que seja o ambiente em que se insira.
Não está ausente das repúblicas aristocráticas e as monarquias começam por ser
electivas ou baseadas na cooptação para somente mais tarde, quando consolidadas, se
tomarem hereditárias.

Por certo, quase todos os Estados europeus foram erguidos por dinastias que com eles
se identificavam e só no caso de uma dinastia se extinguir se recorria à eleição (que,
de todo o modo, nunca era considerada a fonte de autoridade do novo rei). Em
compensação, ainda muito depois de terminado o período estamental ou da
197
monarquia limitada pelas ordens subsistiram instituições municipais, de mesteres, de
universidades ou de ordens religiosas, em que o modo normal de selecção dos
dirigentes era a eleição.

Nada disto resiste, porém, a qualquer cotejo com o papel nuclear da eleição no
constitucionalismo moderno. Por outro lado, enquanto que as práticas e as normas
eleitorais antes se ofereciam extremamente heterogéneas, olhando para os dois
últimos séculos não custa divisar uma larga coincidência de regras e de técnicas
- mesmo se nem sempre (muito longe disso) traduzem opções pluralistas e um
autêntico alcance substantivo’.

11 - 0 sentido da eleição política está em relação estreita com o número, as


qualidades, o estatuto e as ligações institucionais das pessoas que nela tenham a
faculdade de participar; não é apenas o objecto ou a função a que se dirige que lhe
imprime carácter mas também o conjunto dos eleitores e a posição jurídica subjectiva
de cada um perante o Estado; e o seu resultado há-de reflectir a presença ou o
predomínio destes ou daqueles eleitores.

A diferença entre o período anterior e o posterior às Constituições transparece sob este


aspecto. No Estado estamental e no absoluto, se havia lugar a eleição, o poder de
eleger era apanágio de categorias muito restritas de pessoas e tomado como privilégio
seu ou das ordens a que pertenciam. No constitucionalismo, o voto

1. V. os nossos Estudos de Direito Eleitoral, Lisboa, 1995.

198

é conferido de harmonia com critérios objectivos e pretende-se que seja expressão da


comunidade política como um todo. Ainda aqui, no entanto, cabe recordar a extensão
do sufrágio a que aludimos mais de uma vez.

A extensão do sufrágio adquire um enorme significado político e social pela


correspondência que se verifica entre a composição do colégio eleitoral e os interesses
prosseguidos através dos corpos electivos e, portanto, através da eleição (e este
problema não escapou logo a escritores como B. CONSTANT e J. BENTHAM).
Na verdade, se um pequeno número de eleitores realiza os interesses de um pequeno
número de cidadãos, toma-se lícito presumir que um grande número (ou uma grande
proporção) de eleitores virá defender interesses comuns à maior parte da
colectividade.

39. SUFRÁGIO E COLÉGIO ELEITORAL

1 - Porque cidadãos activos são os cidadãos eleitores, tratar da organização do povo


activo o mesmo é que tratar da organização do sufrágio. Povo activo equivale então a
corpo ou colégio eleitoral. E porque o sufrágio pode assumir diferente natureza ao
povo activo podem corresponder um ou vários colégios eleitorais e, nestes, pode a sua
vontade fazer-se sentir de diversas maneiras.

As funções pedidas ao sufrágio (para eleição ou para referendo, para eleição de


membros do Parlamento ou do Executivo,
199
para eleição da U ou 2.I Câmara, etc.), a forma de Estado (unitário, centralizado ou
descentralizado, ou federal, perfeito ou imperfeito), a maior ou menor homogeneidade
social e política (força relativa das classes, dos interesses sectoriais e dos partidos), o
acordo ou a divergência a respeito do sistema eleitoral preferível
- tais são os factores que condicionam a unidade ou pluralidade de colégios eleitorais.

0 princípio do sufrágio não conduz a um só modelo nem a uma só forma de


organização eleitoral. Existem sufrágio directo e indirecto, sufrágio individual e
organico Ou corporativo, voto único e plural (bem como voto múltiplo). Mas a
democratização tem levado ao triunfo, por toda a parte, do sufrágio directo, universal
e único (one man, one vote)’

A outra grande opção a salientar dá-se entre representação maioritária e


representação proporcional. Dela vamos cuidar de seguida, com maior
desenvolvimento.

11 - A estrutura de cada colégio eleitoral político espelha, como não podia deixar de
ser, o princípio representativo em que se apoia e determina, consequentemente, uma
regulamentação específica do processo de eleição (ou, por analogia, de referendo).

1. 0 sufrágio indirecto fora já ultrapassado na segunda metade do século XIX e o


sufrágio corporativo ficou associado a regimes autoritários.

200

Assim, o sufrágio directo e individual traduz-se num colégio eleitoral homogéneo que
engloba a massa dos eleitores, geograficamente, porém, repartido em colégíos simples
(as assembleias ou secções de voto) e colégios já complexos (os círculos eleitorais).
As operações de voto desenrolam-se ao mesmo tempo em todo o país, mas é só nas
assembleias eleitorais, correspondentes de regra às menores circunscrições
administrativas, que os eleitores se encontram fisicamente congregados’.

Ao invés, o sufrágio indirecto, orgânico ou inorgânico, envolve sucessivos colégios


eleitorais escalonados no tempo e muitas vezes formados ad hoc para efeito da
eleição. Cada um destes colégios é preparatório em relação ao de grau imediatamente
superior, pois a sua função consiste em designar os eleitores que o vão constituir;
distingue-se bem, portanto, de cada um dos colégios eleitorais do sufrágio individual
directo, elementos do mesmo colégio eleitoral geral em que se integr am em
amplitude crescente.

Também em representação proporcional dir-se-ia que a eleição de deputados em


proporção de votos atribuídos às diferentes candidaturas equivaleria ao
fraccionamento do eleitorado em tantos colégios quantas as correntes políticas que
conseguem obter expressão relevante.

1. Já em sufrágio corporativo cada instituição ou ramo de interesses diferenciado


formaria aí colégios eleitorais relativamente autónomos uns em face dos outros, de
harmonia com o que fosse mais consentânco com a sua vida institucional, e
unicamente se poderia falar em colégio eleitoral de cúpula a posteriori, a partir dos
eleitos de cada colégio.
201
Imediatamente se há-de reconhecer que a estrutura jurídica do acto de sufrágio fica,
por seu turno, afectada pela estrutura do colégio em que decorre: pois se é fácil
reconduzir a eleição praticada no seio de um colégio eleitoral restrito de tipo orgânico
a um acto jurídico unitário similar ao que praticam os órgãos colegiais, imensas são as
dúvidas acerca da exacta natureza da eleição efectuada por milhões de eleitores
dispersos e acerca até da própria colegialidade técnico-jurídica do corpo eleitoral que
constituem.

111 - A variedade de tipos de colégios eleitorais - teórica ou historicamente propostos


ou presentes em certo momento em qualquer país - não pode fazer obnubilar que a sua
razão de ser é sempre a comunicaçao aos governantes das aspirações ou da vontade do
povo como unidade.

Definir a relação entre colégio eleitoral e povo vem a ser, todavia, também questão
altamente problemática. 0 colégio eleitoral é órgão do povo? Representa o povo?
Deve considerar-se gestor de negócios do povo? Seja qual for a resposta a esta ou a
outras interrogações’, se os eleitos representam o povo todo - e não apenas os
cidadãos que os elegem ou os cidadãos com direitos políticos - parece indiscutível a
necessidade de explicar o acto de sufrágio como tendo a sua base nesse mesmo povo.

Não significa isto, porém, que a eleição valha como acto do povo, sem poder ser
tomada como acto do Estado. Há quem o sus-
202

tente, decerto surpreendido pelo contraste entre o colégio eleitoral inorganicO e os


órgãos do Estado e entre o processo eleitoral e o processo de agir de qualquer dos
órgãos govemativos.

Na realidade, a eleição, podendo ser acto do povo, tem de ser necessariamente - até
por isso mesmo - acto do Estado. Pois o povo, repita-se o que em diversas ocasiões se
disse, só se concebe dentro do Estado e mal se compreenderia que a designação de
titulares de órgãos do Estado ficasse estranha ou exterior ao Estado (o que se verifica,
muito pelo contrário, é o Estado organizar e disciplinar, através das suas leis e como
actividade que assume como sua, toda a actividade dos colégios eleitorais).

40. OS SISTEMAS ELEITORAIS

1 - Em sentido amplo, sistema eleitora12 é o conjunto de regras, de procedimentos e de


práticas, com a sua coerência e a sua

1. Cfr. A Constituição de 1976 -Formação, estrutura, piincípiosfundamentais, cit.,


pág. 365.

2. V., entre tantos, THOMAS HARE, A Treatíse on the Election of Representatives,


Londres, 1859; A.C. RIBEIRO DA COSTA, Princípios e Questões de Filosofia
Política -I - Condições científicas de direito de s~, Coimbra,
1878; N. SARIPOLOS, La démocratie et Véléction proportion-nelle. Étude juridique,
histo),ique etpolitique, Paris, 1899; R. SALEILLES, ”La Représentation
Proportionnelle”, in Revue du droit public, IX, 1899, págs. 215 e segs. e 385 e segs.;
SIOTTO PINTOR, Le riforme del regime elettorale e le dottrine della reppresentanza
politica e dell’elettorato nel secolo ff, Roma,
203
lógica intema, a que está sujeita a eleição em qualquer país e que, portanto, condiciona
(juntamente com elementos de ordem cultural, económica e política) o exercício do direito de
sufrágio.

1912; LEÃO AZEDO, A questão eleitoral, Lisboa, 1915; F. A. HERMES, Democracy or anarchy?
A Study of the Proportional Representation, Indiana,
1941; M. DUVERGER, Linfluence des systèmes électoraux sur Ia vie politique, Paris, 1950;
CARLO LAVAGNA, -II sistema elettorale nella Costituzione italiana”, in Rivista Trimestrale di
Di),Itto Pubblico, 1952, págs.
849 e segs.; Comparative Politics, obra colectiva editada por Harry Eckstein e David E. Apter,
Nova Iorque, 1963, págs. 247 e segs.; DOUGLAS W. RAE, The Political Consequences of
Electoral Laws, New Haven, 1967 e 1971; A.J. MILNOR, Elections and Political Stability, Boston,
1969; ENID LAKEMAN, How Democracies Vote. A Study of Maiority and Proportional Electoral
Systems, Londres, 1970; J.M. COTTERET e CLAUDE EMERI, Les Systèmes Eléctoraux, Paris,
1970; DOMENICO FISICHELLA, Sviluppo democratico e sistemi elettorali, Florença, 1970;
NILS DIEDERICH, ”Elecciones. Sistemas electorales”, in Marxismo y Democracia, Politica 3,
Madrid, 1975, págs. 1 e segs.; DIETER NOI1LEN, Sistemas electorales del Mundo, cit.;
WILLIAM RIKER, ”The Two-party System and Duverger Law”, in The American Political
Science Review, 1982, págs. 753 e segs.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Os partidos políticos
no Direito Constitucional português, Braga, 1983, págs. 121 e segs. e 516 e segs.; RICARDO
LEITE PINTO, ”Democracia Pluralista Consensual”, in Revista da Ordem dos Advogados, 1984,
págs. 266 e segs.; PAULO BONAVIDES, op. cit., págs. 293 e segs.; ANDRÉ GONÇALVES
PEREIRA, Sistema eleitoral e sistema de governo, Lisboa, 1986; GlOVANNI SARTORI, ”Sistemi
elettoraW, in Elementi ..., págs. 237 e segs. e Ingegnaria costituzionale comparata, 2. ed., Bolonha,
1995, págs. 17 e segs.; Sistema elettorali e governo locale, obra colectiva editada por SILVIO
GAMBINO, Roma, 1991; ANDREW REEVE e ALAN WARE, Electorale Systems - A
comparative and theoretical introduction, Londres e Nova Iorque, 1992; LUíS SÁ, Eleições e
igualdade de oportunidades, Lisboa, 1992, págs. 85 e segs.

V. também o Projecto de Código Eleitoral publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.2 364
(de que há separata, Lisboa, 1987).

204

Em sentido restrito, é a forma de expressão da vontade eleitoral, o modo como a vontade dos eleitores
de escolher este ou aquele candidato, esta ou aquela lista, se traduz num resultado global final, o modo
como a vontade (psicológica) de cada eleitor ou do conjunto dos eleitores é interpretada ou
transformada na vontade eleitoral (vontade jurídica que se traduz, nomeadamente, na
distribuição dos mandatos ou lugares no Parlamento).

11 - No primeiro sentido, o sistema eleitoral depende de múltiplas variáveis: requisitos de capacidade


eleitoral activa e passiva, sufrágio directo e indirecto, recenseamento, processo de votação, apuramento
e contencioso, carácter da eleição dentro do sistema de governo.

No segundo sentido, abrange, em especial, a estrutura do colégio eleitoral, o regime de candidatura e o


critério da eleição; e, para além do elemento técnico-jurídico ou organizatório, implica necessariamente
uma Opção em matéria de repres

entação política.

Para qualquer tipo de eleição - geral ou local, política ou não política, do Presidente da República ou do
Parlamento - tem de ser definido o respectivo sistema eleitoral, mas esta definição tem-se tomado
sobretudo objecto de análise e discussao a respeito da eleição dos membros das assembleias políticas.
Pois, embora os deputados representem todo o povo, pode haver diferentes valorações jurídicas das
Correntes políticas que se manifestam através do sufrágio.

205
0 que é a vontade eleitoral? Ela identifica-se matematicamente com a vontade da
maioria ou, independentemente da distinção entre maioria e minoria, o
eleitorado pode entender-se cindido em tantos colégios eleitorais ideais ou
abstractos quantos os partidos ou tendencias que, de harmonia com a lei
eleitoral, conseguem estar presentes no Parlamento?

III - Antes de mais, um sistema eleitoral (em sentido restrito) assente num
determinado colégio eleitoral: devem os deputados ser eleitos por um colégio
único nacional ou por uma pluralidade de colégios, recortados, em regra, numa
base territorial (círculos eleitorais)?

Reporta-se, depois, ao objecto da eleição: por cada colégio deve ser eleito um ou
mais deputados?

1 0 eleitor vota em listas propostas por partidos e comissões eleitorais ou apenas


em candidatos? Como devem ser organizadas as listas: devem ser bloqueadas ou
admite-se que o eleitor estabeleça preferências entre os candidatos?

Enfim, um sistema eleitoral cura do critério da eleição: a maioria deve obter a


totalidade dos mandatos atribuídos ao colégio eleitoral ou deve prever-se alguma
forma de representação das minorias? Ou não deverá, antes, procurar-se a
representação de cada partido em proporção do número de votos que tiver alcançado?

206

41 -TIPOS DE SISTEMAS ELEITORAIS

1 - Se o sufrágio for uninominal (um deputado por colégio) o sistema será sempre de
representação maioritária. E considerar-se-á eleito o candidato com maior número de
votos, quer seja suficiente, desde logo, a maioria relativa - é o sistema britânico
(thefirst-past-the-post system) - quer se exija a maioria absoluta e, consequentemente,
se tenha de proceder a segunda volta ou segundo turno se ela não se verificar na
primeira volta - é o sistema da 111 e da V Repúblicas francesa (ou se não existir o
chamado voto alternativo ou preferencial como sucede na Austrália).

Se, porém, o sufrágio for plurinominal (vários deputados por colégio), já terá de se
escolher entre um destes sistemas fundamentais - representação maioritária, de
minorias ou proporcional - ou de se encontrar um sistema misto.

11 - A representação maioritária em escrutínio plurinominal conduz a Câmaras


monocolores ou em que se regista uma enorme desproporção entre maioria e minoria.
São raríssimos os sistemas políticos pluralistas que a consagram’.

1. Nos Estados Unidos é adoptada para a eleição dos eleitores presidenciais, mas aí
por uma razão: por causa da estrutura federal, para no colégio eleitoral presidencial se
manifestar a representação dos Estados. Nem por isso se evitam desequilíbrios.

207
111 - A representação de minorias assume as seguintes modalidades:

a) Voto limitado ou sistema de lista incompleta, caracterizado por o número de


candidatos em cada lista ser inferior ao número de deputados a eleger, de modo que a
lista maioritária nunca pode obter mais do que, por exemplo, 2/3 ou 3/4 dos mandatos
e os restantes cabem à minoria;

b) Voto único não transferível, em que cada eleitor vota num único candidato e são
eleitos os candidatos que, no conjunto do colégio, obtiverem maior número de votos;

c) Voto cumulativo, em que cada eleitor tem tantos votos quantos os mandatos
correspondentes ao colégio e em que pode conferi-los a um mesmo candidato, e, deste
modo, a minoria irá concentrar os seus votos nos candidatos que calcula poder eleger.

Como se vê, estes sistemas eleitorais têm de comum a sua natureza empírica e
probabilística. 0 sistema de voto limitado atribui à minoria certa representação a
priori, sem indagar do seu exacto peso e, quando a maioria for considerável, esta
poderá até desdobrar-se para lograr também a representação concedida à minoria. Os
outros dois sistemas eleitorais requerem, para fancionar, a efectiva realização do
comportamento dos eleitores que pressupoem.

208

Não admira, pois, que, salvo o sistema de voto único vigente no Japão, a
representação das minorias esteja por toda a parte abandonada.

IV - Pelo contrário, a representação proporcional possui (ou julga possuir) uma índole
científica e orgânica, com base no princípio, aliás muito simples, da correspondência
entre o número de sufrágios obtido por cada lista (ou partido) e o número de mandatos
no Parlamento de que dispõe.

A noção foi-se precisando a partir de meados do século passado, com os genebrinos


V. CONSIDÉRANT e E. MAVILLE, o dinamarquês ANDROE, os ingleses T. HARE
e STUART MILL e outros, mas sob explicitações divergentes em virtude de diversas
interpretações e diversas aplicações dos métodos matemáticos ao apuramento e à
repartição dos mandatos.

Assim, segundo o critério do quociente eleitoral (corrigido ou não), o mais


vulgarizado, divide-se o número total de votos expressos pelo número de mandatos; e
a cada lista pertencerão tantos candidatos eleitos quantas as vezes que o quociente
apurado couber no número de votos por ela recebido; se restarem mandatos por
atribuir, eles serão, entre outras soluções, para a lista ou listas com mais fortes restos
ou para a que tiver mais forte média.

No critério do divisor comum (cuja melhor expressão é o sistema da média mais alta
de Hondt), as cifras de votos obtidos por
209
cada lista são sucessivamente divididas por 1, 2, 3, ... (ou por 1, 1,5,
2, etc.) e os quocientes apurados dispostos por ordem decrescente; os mandatos do
círculo caberão então às listas a que pertencerem os quocientes mais elevados das
divisões assim efectuadas.

Em alguns países, tem-se experimentado também a chamada representação


proporcional integral, quer em círculo único nacional (Israel) quer em círculos plurais
com transferência dos restos para listas nacionais (sistema de Baden, usado na
Alemanha de Weimar e na Holanda).

É também uma espécie de sistema proporcional o do voto único transferível ou de


Hare (adoptado na Tasmânia e na Irlanda): cada eleitor, em colégios plurinominais,
vota num só candidato, mas deve indicar uma ordem de preferência entre todos os
candidatos; será eleito o candidato que alcançar o quociente eleitoral e os votos a mais
que tiver obtido serão repartidos, na proporção das segundas preferências, pelos
restantes candidatos.

Finalmente, é ainda um sistema proporcional (embora, à primeira vista, pareça um


sistema misto) o sistema adoptado na República Federal da Alemanha’. Aqui cada
eleitor tem dois votos e metade dos deputados é eleita por representação maioritária
uninominal e outra metade por representação proporcional. Mas o princípio da
proporcionalidade persiste, porque os mandatos obtidos nos círculos uninominais são
imputados ao colégio eleitoral geral (e daí falar-se em representação proporcional
personalizada).

1. E também, recentemente, na Nova Zelândia.

210

42- REPRESENTAÇÃO MAIORITÁRIA E REPRESENTAÇÃO


PROPORCIONAL

1 - Os debates sobre sistema eleitoral classicamente centram-se no confronto entre


representação maioritária com sufrágio uninominal e representação proporcional.
Durante muito tempo, aquela prevaleceu incontestada, até que, na passagem.do século
XIX para
0 século XX, o progresso das ideias democráticas fez crer a largos sectores da
doutrina e da opinião (mas não a todos) que a representação proporcional era uma
imposição evidente de justiça.

Conhecem-se os argumentos a favor e contra um e outro grande princípio.

11 - A representação maioritária não apenas legitima a eleição de candidato no qual


não votou a maioria dos eleitores (no caso de escrutínio a uma volta) como permite
que um partido com menos votos em todo o território eleitoral venha a ter a maioria
no Parlamento, desde que tenha vencido em maior número de círculos. E se um
partido, por hipótese, obtiver a maioria em todos os círculos, ele conseguirá a
totalidade dos lugares de deputados.

0 sistema propicia, no entanto, um mais directo contacto entre eleitores e eleitos, uma
maior responsabilização destes e, sobretudo, a simpificação da vida política do país
com a inerente vantagem da estabilidade governamental.

211
111 - Por seu turno, só a representação proporcional leva à constituição de uma assembleia à
imagem do eleitorado, na qual tomem assento todas as tendências políticas significativas do
país.

Todavia, é ela própria um factor de multiplicação e fragmentação partidária, com a


consequente dificuldade de formação de Governos duradouros ou que não sejam de
coligação.

Ao pa .sso que a representação maioritária, diz-se, não confere aos cidadãos senão o direito
de votar, a representação proporcional concede-lhes também o direito de eleger, o de eleger
os candidatos do grupo ou partido da sua escolha, assegurando uma igualdade de facto entre
todos eles. Mas foi sustentado pelos teóricos do governo representativo clássico que assim
acaba por se dar uma representação de cada cidadão (ou partido) contrária ao princípio da
soberania nacional.

Além disso, a representação proporcional, acrescenta-se, substitui um sufrágio de homens por


um sufrágio de ideias, o que parece coadunar-se melhor com a concepção moderna da eleição
política, não como acto designativo, mas como acto de escolha de um programa ou projecto
de sociedade. Em contrapartida, nessa escolha dilui-se o elemento de decisão: o eleitor vota
no partido que prefere, e não numa maioria da qual haja de sair o Governo (como sucede nas
democracias imediatas à inglesa).

212

IV - Em último termo, na representação maioritária a uma só volta, o sentido político


fundamental é a escolha do partido que deve formar Governo.

Na representação maioritária a duas voltas, a primeira’serve para as diferentes forças


políticas apresentarem os seus programas e os seus candidatos, mas somente na segunda os
eleitores fazem a opção decisiva.

Na representação proporcional neutralizam-se os contrastes ou as polarizações e procura-se a


distribuição dos mandatos pelas diversas forças políticas.

É difícil dizer em geral qual destas funções há-de prevalecer. Importa situá-las em cada
ordenamento em concreto.

43- SISTEMAS ELEITORAIS E SISTEMAS POLíTICOS

1 - É tema importante o das relações entre sistema eleitoral e sistema político, e a


doutrina cura de apurar a medida em que uma lei eleitoral contribui ou não para o reforço ou
para a sobre-representação de uns partidos em detrimento de outros.

11 - Em 1951 MAURICE DUVERGERI formulou três ”leis”, que ficariam célebres e que
assim podem ser resumidas: UI) a representação maioritária a uma volta provoca o dualismo
de

1. Em Les Partis Politiques. Na 6.4 ed., Paris, 1967, pág. 237 e segs.
213
partidos rígidos; 2.!) a representação proporcional provoca partidos múltiplos e
independentes; 3.2) a representação maioritária a duas voltas leva ao
multipartidarismo temperado por alianças eleitorais.

Outros Autores - designadamente, DOUGLAS RAE e GlOVANN1 SARTORI -


viriam depois, repensar, aprofundar e pormenorizar estes assertos, atenuando-os ou
complementando-os; donde, proposições e regras relativamente complexas.

Em especial, DOUGLAS RAE mostraria que a maior parte dos sistemas eleitorais
favorece os grandes partidos e penaliza os menores, embora sem pôr em causa os
diferentes efeitos de representação maioritária e de representação proporcional.
Por’outro lado, chamaria a atenção para a dimensão dos círculos’, para o contraste
entre os sistemas com círculos pequenos (sistemas uninominais ou com número
restrito de eleitos) e os demais sistemas: a proporcionalidade aumenta com a
magnitude dos círculos eleitoraiS2.

SARTORI acrescenta duas variáveis importantes: a consideração de sistemas


eleitorais fortes e débeis e a consideração de sistemas partidários estruturados e não
estruturados. Sem sistemas partidários estruturados não se passa de bipartidarismo
por círculos eleitorais a bipartidarismo de âmbito nacional’ 4

1. Qp. cit., págs. 114 e segs.


2. Qp. cit., pág. 125.

3. Sistemi ellettorali, cit., loc.cit., pág. 248-

4. Entre nós, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA (op. cit., pág. 11) adianta várias
hipóteses de trabalho, entre as quais as que se prendem com o funcionamento
214

111 - Desde que tomadas em termos não deterministas e não mecanicistasl, as leis de
DUVERGER, com as correcções e os complementos acabados de indicar (e outros,
porventura) oferecem o maior interesse. Mas os sistemas eleitorais influenciam tanto
os sistemas de partidos e os sistemas políticos em geral quanto são por eles
influenciados e, em última análise, têm de ser compreendidos à luz da cultura
cívica dominante em cada país.

A representação maioritária é produto de certa cultura política (basicamente, a dos


países anglo-saxónicos), surge como instrumento de sistemas bipartidários com
institucionalização de partidos de Governo e de oposição e altemância garantida a
médio prazo. Decerto, pode adequar-se bem a democracias há muito estabilizadas,
sem grandes fracturas ideológicas ou com despoliticização generalizada.

A representação proporcional, pelo contrário, traduz sociedades ideologicamente mais


fragmentadas, com maior conflitualidade política e social, a que se procura responder
com um

do sistema de governo e com a relação entre Deputados e eleitores: a representação


proporcional determina instabilidade governativa; a representação maioritária a duas
voltas conduz a coligações pré-eleitorais e a representação proporcional a coligações
pós-eleitorais; a representação maioritária acentua a importância individual dos
Deputados e a sua responsabilidade perante os eleitores; a representação proporcional,
ao invés, acentua a importância das máquinas partidárias.

1. Basta lembrar países com sistemas maioritários e com mais de dois partidos
significativos (assim, várias vezes, o Canadá) e países com sistemas proporcionais e
tendência para o bipartidarismo (assim, a Alemanha Federal e, entre 1987 e 1995,
Portugal).

215
espírito compromissório. Não por acaso, ao longo deste século, tem dominado na maior parte
dos países do Continente europeu e tem sido sempre adoptada por novas democracias.

A meio, de certa maneira, fica a representação maioritária a duas voltas ou dois turnos, à
francesa.

44. OS SISTEMAS ELEITORAIS EM PORTUGAL

1 - Em Portugal, desde a eleição das Constituintes, em 182 1, o sistema eleitoral atravessou


diversas fases:

A) até 1859 e de 1895 a 1896 vigorou a 1representação maioritária com sufrágio


plurinominal.

B) De 1859 a 1884 foi adoptado o sufrágio uninominal.

Q De 1884 a 1895 e de 1896 a 1901 vigorou um sistema misto de colégios uninominais e


plurinominais, com representação das minorias sob forma de lista completa, na lei de 1884.

D) De 1901 a 1910 regressou-se simplesmente ao sufrágio plurinominal, mas com listas


incompletas.

E) As Constituintes de 1911 foram eleitas com um sistema misto: nos círculos de Lisboa e
Porto, representação proporcional de harmonia com o método de Hondt; no Ultramar,
sufrágio uninominal; nos restantes círculos, sufrágio plurinominal com listas incompletas.

216

F) Na 1 República (inclusive no Decreto n.2 3997, de 1918) o sistema foi idêntico ao de


1901.

G) Na vigência da Constituição de 1933, adoptou-se, primeiro, a representação maioritária


em círculo único (só sendo eleitos os candidatos da lista vencedora e que tivessem obtido,
pelo menos,
1/10 dos votos atribuídos a essa lista); e, depois, desde 1945, a representação maioritária em
círculos distritais com sufrágio plurinominal.

H) Na eleição da Assembleia Constituinte em 1975 seguiu-se a representação proporcional


por círculos de base distrital, com o método de Hondt.

I) Finalmente, a Constituição de 1976 consagrou o princípio da representação proporcional


com carácter geral (art. 196.L’) e como limite material da revisão constitucional (art. 290.Q,
hoje
288.2)1 2.

11 - No projecto de Código Eleitoral3 elaborado em 1986-1987 por uma comissão de


juristas nomeada pelo X Governo

1. 0 método de Hondt só é constitucionalmente imposto para a eleição dos Deputados à


Assembleia da República(art. 155.9, n.Q 1) e, desde a revisão de
1989, para a eleição das assembleias das regiões administrativas quanto aos membros eleitos
pelas assembleias municipais (art. 260Y). Mas as demais leis eleitorais têm-no previsto nas
eleições para quaisquer órgãos colegiais.

2. Na revisão constitucional de 1989, admitiu-se, para eleição dos Deputados à Assembleia


da República, a existência de um círculo nacional a par dos círculos locais (art. 152.91 n.2 2).

3. Na separata do Boletim do Ministério da Justiça, págs. 16 e segs.


217
Constitucional propuseram-se alguns aperfeiçoamentos aos sistemas eleitorais para as
assembleias políticas, entre os quais:

- A possibilidade de coligações de candidaturas, para efeito de maior flexibilidade do


sistema e de maior clareza das escolhas dos eleitores (que poderão votar directamente
em candidatos da sua preferência, sem perda da utilidade - pois os seus votos
acresceriam aos das demais candidaturas coligadas).

- A limitação rigorosa da possibilidade de substituição temporária dos eleitos durante


o exercício do mandato - de modo a reforçar a autenticidade do vínculo entre eles e os
eleitores.

Ao mesmo tempo, aventaram-se algumas alternativas de sistemas eleitorais.

”a) Na alternativa A - concemente à eleição do Parlamento prevê-se a criação de um


círculo eleitoral correspondente a todo o território nacional e de círculos eleitorais
parciais.

”Numa primeira sub-hipótese, os círculos eleitorais parciais coincidem com os actuais


círculos eleitorais do território nacional, salvo quanto aos de Lisboa e Porto que são
divididos, respectivamente, em três e em dois círculos eleitorais. Na segunda sub-
hipótese, e para além desta divisão, agrupam-se alguns círculos eleitorais de
dimensões mais reduzidas, para se alcançar uma maior homogeneidade. Em qualquer
dos casos, a Comissão assegurou-se que a alternativa não conduzia a qualquer
distorção significativa dos resultados eleitorais.

218

”Uma das características essenciais desta alternativa consiste na divisão dos círculos
eleitorais parciais em tantas circunscrições de candidatura, quantos os mandatos que
lhe caibam, as quais correspondem a áreas de autarquias locais ou seus ajuntamentos,
de modo a abranger um número de eleitores o mais aproximado possível entre si; o
mapa das circunscrições é elaborado pela Comissão Nacional de Eleições; e os
mandatos são conferidos aos candidatos segundo a ordem decrescente das
percentagens sobre o número total de votos validamente expressos por eles obtidos
nas respectivas circunscrições.

”Este processo permite um contacto mais estreito entre eleitores e eleitos e aumenta,
de forma significativa, o poder de escolha dos cidadãos. Em compensação, e para
permitir que os partidos políticos mantenham uma certa margem de previsão da
composição dos respectivos grupos parlamentares, no círculo eleitoral nacional os
mandatos (sessenta e seis) continuam a ser atribuídos segundo a ordem de precedência
na lista.

”Simultaneamente, prevê-se que exista um só círculo correspondente aos eleitores


recenseados fora do território nacional.

b) Na alternativa B prevêem-se igualmente um círculo eleitoral nacional, um círculo


correspondente aos eleitores residentes em Macau e no estrangeiro, e cento e vinte e
três círculos eleitorais locais. A actualização da divisão eleitoral compete à Comissão
Nacional de Eleições.

219
”Por cada círculo eleitoral local, é eleito um só Deputado mas não se quebra o
princípio da proporcionalidade, visto que:

1 - nenhum partido pode apresentar candidaturas nos círculos eleitorais locais se não
apresentar, simultaneamente, candidaturas no círculo eleitoral nacional;

2 - os mandatos obtidos pelas diversas candidaturas nos círculos eleitorais locais não
podem exceder o número de mandatos que caberiam às mesmas candidaturas no
conjunto daqueles círculos por aplicação do método de Hondt, sendo-lhes subtraídos,
se tal se verificar, os mandatos correspondentes aos círculos eleitorais locais em que
tenham obtido menor percentagem relativamente ao número total de votos
validamente expressos.

”Trata-se de sistema semelhante ao adoptado na República Federal da Alemanha, com


o qual se procura realizar aquilo a que se tem chamado uma representação
proporcional personalizada. Devido, porém, às apertadas balizas constitucionais do
número de Deputados (art. 15V’ da Lei Fundamental) tem de se estatuir aqui uma
regra de subtracção em caso de não correspondência com os resultados eventualmente
alcançados pelos partidos no conjunto dos círculos eleitorais locais’.

1. A alternativa B já tinha constado do projecto de revisão constitucional da Acção


Social-Democrata Independente de 1980 (v. separata n.9 6/11 do Diário da
Assembleia da República, pág. 19).

220

”c) A alternativa C reporta-se às eleições para as assembleias das regiões autónomas e


é, em parte, a aplicação mutatis mutandis da alternativa A.

”Assim, o território de cada uma das regiões autónomas constitui um único círculo
eleitoral, que se divide em circunscrições de candidatura em número igual ao dos
Deputados a eleger; este é fixado em cinquenta.”

Estas propostas não tiveram seguimento até agora, se bem que no contraditório
político e em debates acadêmicos a questão da refonna do sistema eleitoral da
Assembleia da República apareça frequentemente, inclusive em projectos de revisão
constitucional.

45. 0 REGIME JURíDICO DA ELEIÇÃO POLíTICA

1 - A matéria das eleições (das eleições das Cortes) teve largo desenvolvimento nas
Constituições de 1822, 1826 e 1838, em capítulos próprios (arts. 32.2 a 74.2, 63.2 a
70.L> e 71.2 a 79.2, respectivamente). Já não nas Constituições de 1911 e 1933, que,
afora certas normas sobre a eleição do Presidente da República (arts. 38.2 e segs. e
72.L’ e segs.), remeteram para lei especial a organização dos colégios eleitorais e o
processo de eleição dos membros do Parlamento (art. 8.2, § único e art. 85.2, § 1.9).

3. V., por exemplo, Que reforma eleitoral?, obra colectiva ed. pela Comissão
Nacional de Eleições, Lisboa, 1992.
221
A Constituição de 1976 não se limita a contemplar de novo aspectos versados nas
Constituições do século XIX. Vai muito além, quer no plano dos preceitos, quer na
tentativa de explicitação de princípios gerais; e isto quer por considerações de ordem
técnico-jurídica, quer por considerações de ordem política, ligadas a uma mais clara
afirmação das regras de democracia representativa e à defesa contra as
desvalorizações do voto que se deram durante o Estado Novo e por parte de certos
sectores político-militares, em 1975.

11 - Para a Constituição, se a soberania reside no povo (art-


3.2, n.2 1), a forma primeira do seu exercício e o sufrágio universal, igual, directo,
secreto e periódico (art. 10.2, n.!’ ’??, aditado na revisão constitucional de 1982). Este
princípio, concretizado mais de uma vez (arts. 116.2, n.2 1, 124.9, n.2 1, 233.2, n.2 1,
e 241.2), vem a ser um limite material da revisão constitucional, juntamente (embora
noutro nível) com o princípio da representação proporcional (art. 288.9, alínea h».

Sufrágio universal e igual significa que o sufrágio é um direito de todos os cidadãos


maiores de 18 anos, ressalvadas as incapacidades previstas na lei geral (art. 49 .2 , n.9
1), não podendo estas ser senão as decorrentes do Estado de direito democrático. 0
mesmo princípio vale para a capacidade eleitoral passiva (art. 50.2, n.2 1).

0 exercício do sufrágio é pessoal (art. 49.9, n.9 2) - o que exclui qualquer tipo de
representação ou procuração, conquanto

222

não, dentro de limites razoáveis, o voto por correspondência, salvo na eleição do


Presidente da República (art. 124.2, nY 2). E o seu exercício constitui um dever cívico
- o que não implica, nem tão-Pouco impede, o chamado voto obrigatório ou obrigação
sancionada de votar; a esse dever acrescem o de recfeonnsneaamspernetoisetaos nde
Colaboração com a administração eleitoral, nas

lei (art. 11 6.Q, n.l’s 2 e 4).

Por seu turno, a periodicidade liga-se ao princípio da renovação ou da não


vitaliciedade dos cargos políticos (art. 121.p) e determina a repetibilidade dos actos
electivos ao longo dos tempos.

111 - Regras gerais sobre as eleições políticas, em termos institucionais, são as que
estipulam:

- 0 carácter oficioso, permanente e único para todas as eleições por sufrágio directo e
universal do recenseamento eleitoral (art. 116.% n.2 2).

- A marcação do dia das eleições do Presidente da República, dos Deputados à


Assembleia da República, dos Deputados portugueses ao Parlamento Europeu e
dos Deputados às assembleias legislativas regionais (mas não dos titulares dos órgãos
do poder local) pelo Presidente da República de harmonia com a lei eleitoral (art. l36.
`, alínea b».

- A liberdade de propaganda (art. 116 .2 , n.2 3, alínea a».


223
- A igualdade de oportunidades e de tratamento de diversas candidaturas (art.
116.2, n.2 3, alínea b», com direito a tempos de antena regulares e equitativos na
rádio e na televisão (art. 40.% n.2 3).

- A imparcialidade das entidades públicas perante as candidaturas (art. 116.2,


n.2 3, alínea c)

-A fiscalização das contas eleitorais (art. 116.2, n.2 3, alínea d».

- A representação proporcional nas eleições para órgãos colegiais ou, porventura,


numa interpretação mais restrita, nas eleições para assembleias (arts. 116.9, n.2
5, 155.2, 233.2, n.2 2, e
241.9).

- A necessidade de, no acto de dissolução de órgãos colegiais baseados no


sufrágio directo, ser marcada a data das novas eleições, a realizar nos 90 dias
seguintes e pela lei vigente ao tempo da dissolução, sob pena de inexistência
jurídica daquele acto (art. 116.2, nY 6).

- A competência dos tribunais para o julgamento da validade e da regularidade


dos actos eleitorais (art. 116.2, n.2 7).

IV - Formuladas a propósito da eleição dos Deputados à Assembleia da


República, devem ainda ter-se por extensivas às eleições das demais assembleias
políticas e das câmaras municipais as seguintes regras:

224

- No caso de a Constituição ou a lei prever círculos eleitorais, o número de titulares a


eleger por cada círculo é proporcional ao número de cidadãos eleitores nele
inscritos (art. 152.9, n.’2).

- Os titulares dos órgãos colegiais representam toda a colectividade - todo o país, toda
a região autónoma, toda a autarquia - e não os círculos por que são eleitos, quando por
eles sejam eleitos (art. 152.9, n.2 3).

- Ninguém pode ser candidato por mais de um círculo eleitoral ou figurar em


mais de uma lista (art. 154.2, nY 2).

- 0 preenchimento das vagas que ocorrerem, bem como a substituição


temporária dos titulares por motivo relevante, são regulados pela lei eleitoral (art.
156.2).

V - Além das eleições do Presidente da República, dos Deputados à Assembleia da


República e às assembleias legislativas regionais e -dos titulares dos órgãos do poder
local - todas elas, excepto as das juntas de freguesia, das juntas regionais e,
parcialmente, das assembleias municipais e das assembleias regionais (arts. 247.%
260.2, 251.2 e 259.9), eleições por sufrágio directo e universal - a Constituição
contempla três outros tipos de eleições:

a) Eleições para titulares de certos órgãos de Estado a partir de outro órgão, a


Assembleia da República - seja por representação proporcional, seja por maioria de
dois terços de deputados
225
presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efectividade
de funções (art. 166.2, alíneas g) e h»;

b) Eleições em certos órgãos de titulares de órgãos internos - as do presidente e


dos demais membros da mesa da Assembleia da República (art. 178.2, alínea b» e
as dos presidentes do Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal de Justiça e
do Supremo Tribunal Administrativo (arts. 224.2, nY 4, 211% n.2 2, e 214.% n.2
2);

c) Eleições das comissões de trabalhadores (art. 54.% n.2 2), dos dirigentes
sindicais (art. 56.9, n.2 3) e das comissões de moradores (art. 264.% nY 3) e,
implicitamente, por força da adopção do princípio da democraticidade interna,
eleições para os órgãos dos partidos (art. 51.2, n.2 1), das cooperativas (art. 61.2,
n.9 2) e das associações públicas (art. 267.2, n? 3).

Fácil é de ver que estas eleições possuem natureza diversa das eleições para os
órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local. Se as eleições
mencionadas em a) e b) são também políticas, enquanto se reportam a interesses
gerais, elas não constituem vínculos de representação política: por exemplo, os
juizes do Tribunal Constitucional não representam o Parlamento; são, por
definição, independentes dele, e o mesmo se diga dos presidentes eleitos pelos
titulares de qualquer órgão (quer dizer, a eleição esgota-se na mera designação).
Quanto às eleições mencionadas em c), elas decorrem em grupos existentes na
sociedade civil, ainda que em contacto com o Estado, e só vêm a ser políticas
pelas implicações que adquirem.

226

VI - 0 processo ou procedimento em qualquer das eleições políticas portuguesas


compreende ainda seis fases (cada uma com subfases):

1) marcação de eleições;

2) apresentação de candidaturas
3) campanha eleitoral; 5

4) constituição das assembleias de voto;


5) votação;

6) apuramento, parcial e geral.

VII - 0 Direito eleitoral adjectivo repousa na intervenção dos tribunais. Ao


contrário do que sucede noutros países, o contencioso respeitante a todos os
procedimentos eleitorais está-lhes confiado - em coerência, aliás, com os
princípios do Estado de Direito.

Trata-se de um contencioso de tipo administrativo, mas atribuído aos tribunais


judiciais e ao Tribunal Constitucional, e não aos tribunais administrativos, dada
a natureza especificamente constitucional da administração eleitoral (e daí a
necessidade de uma interpretação adequada do art. 214.2, n.2 3 da Constituição).
De resto ,’embora o art. 116.% n. 7 não fale especificamente em tribunais
judiciais, a competência destes aparece consonante com o princípio geral da sua
competência no domínio dos direitos, liberdades e garantias - pois que está em
causa (mesmo nas eleições para os órgãos das autarquias locais) um direito,
liberdade e garantia, o direito de sufrágio.

227
São regras tradicionais do nosso contencioso eleitoral duas: que as
irregularidades ocorridas no decurso da votação e do apuramento apenas podem
ser apreciadas em recurso, desde que hajam sido objecto de reclamação ou
protesto apresentado no acto em que se tenham verificado (assim, por toda a
legislação actual, o art.
117.9 da Lei ri.!’ 14/79, de 16 de Maio); e que a votação em qualquer assembleia
de voto (ou em qualquer círculo eleitoral) só é julgada nula, implicando a sua
repetição, quando as irregularidades possam influir no resultado geral da eleição
(art. 119.2 da mesma Lei n.2 14/79).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional forimilou também o princípio da


aquisição sucessiva. Todos os actos dos procedimentos eleitorais são impugnáveis
e não é possível passar de uma fase a outra sem que aquela esteja definitivamente
consolidada. Porém, não sendo os actos correspondentes a uma dada fase objecto
de reclamação ou recurso no prazo legal ou, tendo-o sido, não sendo declarada a
invalidade ou a irregularidade, já não mais poderão ser contestados no futuro.

À face do art. 225.2, n.2 2, alínea c) da Constituição, o Tribunal Constitucional


dir-se-ia funcionar apenas como tribunal eleitoral de última instância. Mas a Lei
n.9 28/82, de 15 de Novembro, dilatou a sua competência em matérias eleitorais,
fazendo-o intervir também sem ser como tribunal de recurso (dilatou-a talvez
demasiado, com sobrecarga de trabalho em certos períodos em detrimento, na
prática, da sua competência por natureza que é a de fiscalização da
constitucionalidade e da legalidade de normas jurídicas).

228

VIII - A par dos tribunais existe desde 1974 (salvo durante um pequeno lapso de
tempo) a Comissão Nacional de Eleições.

Não contemplada na Constituição, ela insere-se de pleno no âmbito da


administração eleitoral a que alude o art. 116.2, n.2 4. Segundo a Lei n.2 71/78,
de 27 de Dezembro (que continua a regulá-la), cabe-lhe, essencialmente,
assegurar a igualdade de tratamento tanto das candidaturas como dos cidadãos
em todos os actos de recenseamento e operações eleitorais. E, quer as sucessivas
leis eleitorais, quer as leis sobre referendos locais e nacional têm-lhe conferido
novos poderes, como a distribuição do número de Deputados a eleger por cada
círculo eleitoral do território nacional em razão do número de eleitores por ele
inscritos (art. 13.2 da Lei n.2 14/79) ou a verificação das declarações dos partidos
quanto à tomada de posição sobre questões submetidas ao eleitorado (art. 32.2 da
Lei n.9 45/91, de 3 de Agosto).

Nem por isso o nosso sistema se converte num sistema misto. Pode falar-se, sim,
num sistema complexo, com um duplo controlo dos procedimentos eleitorais -
jurisdicional e administrativo. A separação afigura-se clara e, se não é completa,
é apenas porque os tribunais ainda possuem certas competências materialmente
administrativas (as atinentes à apresentação das candidaturas) - ao passo que a
Comissão Nacional de Eleições deixou de exercer, em 1982, o poder de suspensão
do direito de antena dos partidos, por se reconhecer que ele era de natureza
jurisdicional. Aliás, das decisões da Comissão Nacional de Eleições há recurso -
ainda um contencioso administrativo constitucional - para o Tribunal
Constitucional [art.
9.!’, alíneaj) da Lei nY 28/82, de 15 de Novembro].

229
IX - 0 Direito eleitoral político constante da Constituição e da lei serve de direito
subsidiário da regulamentação de quaisquer outras eleições, públicas ou
privadas, que decorram no âmbito da ordem jurídica portuguesa. E há alguns
princípios constitucionais tão essenciais que se lhes aplicam directamente.

São tais princípios, pelo menos: o do sufrágio universal e igual relativamente aos
membros da categoria ou comunidade a que se reporte a eleição; o do sufrágio
secreto (como, de resto, a Constituição explícita para as eleições em grupos que
regula, as das comissões de trabalhadores, das associações sindicais e das
comissões de moradores); o princípio de sufrágio periódico; o da liberdade e da
igualdade de propaganda; o da jUnsdicionalidade da apreciação (ou da última
apreciação) dos recursos eleitorais, e, talvez, o da representação proporcional
para efeito de eleições de assembleias.

Retomaremos esta ideia a propósito dos partidos políticos

230

§ 2.2

0 REFERENDO

46. 0 REFERENDO E OS INSTITUTOS AFINS

1 - Por referendo entende-se (numa acepção genérica, susceptível de ser modelada à


face de vários sistemas jurídico-políticos) a votação popular, por sufrágio individual e
directo dos cidadãos, tendente a uma deliberação política (ou, mais raramente,
administrativa), a uma indicação, aos órgãos de governo ou de gestão ou, porventura a
outros efeitos constitucional ou legalmente previstol, 2.
1 .Trata-se de referendo no âmbito do Estado e de comunidades de base

territorial: aqui surgiu o fenômeno e desenvolveu-se a sua problemática. Mas o


princípio tem recebido aplicação, com adaptações, noutras áreas, sejam entidades
administrativas não territoriais (v.g., associações públicas), sejam pessoas colectivas
de direito privado não indiferentes para o Direito público associações sindicais e
partidos políticos).

2. Cfr. SARAH WAMBAUGH, ”La pratique des p1ébiscites internationaux’, in


Recueil des Cours .... 1927, 111, págs. 153 e segs.; MIRKINE-GUETÉVITCH,
231
11 - Em Roma, o plebiscitum era uma das espécies das leges rogatae (leis votadas em assembleias
populares): submetido pelos tribunos da plebe a deliberação dos concilia plebis, a partir de Lex
Hortensia de plebiscitis (287 a.C.) passou a vincular quer plebeus

”Le référendum et de système parlementaire”, in Revue politique et parlementaire, 193 1, págs. 304 e
segs.; CARRÉ DE MALBERG, ”Considérations théoriques sur Ia question de Ia combinaison du
référendwn et du parlementarisme”, in Revue du droit publie, 193 1, págs. 225 e segs.; MAURICE
BATELLI, Les institutions de démocratie directe en droit suisse et comparé moderne, Paris, 1931;
AFONSO COSTA, FILHO, Parlamentarismo, Dissolução, Referendum, Lisboa, 1936; GEORGES
FERRIÈRE, ”Dissolution et référendum”, in Revue du droit public, 1946, págs. 411 e segs.;
TEMISTOCLE ~TINES, Il referendum negli ordinamenti particolari, Milão, 1960; JEAN-MARIE
GARRIGOU-LAGRANGE, ”Le dédoublement constitutionnel - Essai de rationalisation de Ia pratique
référendaire de Ia V.è1e République”, in Revue du droitpublic, 1969, págs. 641 e segs.; BERVÉ
DUVAL, LEBLANC- DECHO1SAY e PATRICK MINOU, Référendum et P1ébiscite, Paris, 1970;
CIRO LIPARTITI, ”Plebisciti”, in Novissimo Digesto Italiano, XII1, págs. 133 e segs.; CARMELO
CARBONE, ”Referendun’, in Novissimo Digesto Italiano, XIV, págs. 106 e segs.; JULIAN
SANTAMARíA, ”Participación politica y democracia directa”, in Estudios de Ciencia Politica y
Sociologia - Rómenaje al Profesor Carlos Ollero, Madrid,
1972, págs. 743 e segs.; EUGENIO DE MARCO, Contributo allo studio del referendum nel diritto
publico italiano, Pádua, 1974; JEAN-MARIE DENQUIN, Référendum et P1ébiscite, Paris, 1976;
PETER SALADIN, ”Le référendum populaire en Suisse”, in Revue internationale de droit comparé,
1976, págs. 331 e segs.; JEAN-FRANÇOIS PRÉVOST, ”Le droit référendaire dans 1’ordonnancement
juridique de Ia Constitution de 1958”, in Revue du droit Public, 1977, págs. 5 e segs.; Referendums -A
Comparative Study of Practice and Theory, obra colectiva editada por DAVII) BUTLER e AUSTIN
RAUNNEY, Washington, 1978; ANGELO MATTIONI, ”Considerazioni sul referendum nella
organizzazione costituzionale”, in Il Politico, 1979, págs.
232

quer patrícios. Por seu lado, na Idade Média, os procuradores do povo, quando chamados a participar
em decisões para além dos seus poderes ou instruções, faziam-no sob reserva de confinnação, ou seja,
ad referendum (e esta expressão subsiste na prática internacional, na conclusão de tratados).

Mas as duas instituições têm de comum o chamarem os interessados, os cidadãos ou os titulares do


poder, a pronunciar-se sobre assuntos da política geral ou local. E, na época contemporânea, elas
aparecem a par (ou quase a par) ou identificam-se, embora razões de ordem jurídica ou utilizações
políticas historicamente localizadas expliquem algumas distinções ou contraposições.

496 e segs.; PEDRO CRUZ VILLALON, ”El referendura consultivo como modelo de racionalización
constitucional”, in Revista de Estudios Politicos, n.9 13, Janeiro-Fevereiro de 1980, págs. 145 e segs.;
MICHELE GUILLAUME-HOFNUNG, ”L’expérience italienne du référendum abrogatif’, in Revue
internationale de droit comparé, 1983, págs. 108 e segs.; ACHILLE CHIAPTETTI, ”Plebiscito”, in
Enciclopedia del Diritto, XXXIII, págs. 945 e segs.; ÁLVARO MARQUES e THOMAS B. SMITH, ”
Referendums in the Third World”, in Electoral Studies, 1984, págs. 85 e segs.; Référendum, obra
colectiva sob a direcção de Francis DeIpérée, Bruxelas, 1985; JEAN-LOUIS QUERMONE, ”Le
référendum: essai de typologie prospective”, in Revue du droitpublic, 1985, págs. 577 e segs.; ERNST-
WOLFANG BõCKENFõRDE, ”Democrazia e rappresentanza”, in Quaderni Costituzionali, 1985,
págs. 227 e segs.; RICARDO LEITE PINTO, Referendo local e descentralizaçâo política, Coimbra,
1988; Referendum e Democrazia e Referendum, obras colectivas, Roma-Bari, 1992 e 1994; LUíS
BARBOSA RODRIGUES, 0 referendo português a nível nacional, Lisboa, 1993, págs. 19 e segs.;
FRANCIS HAMON, Le référendum - Étude comparative, Paris, 1995.

233
111 - Entre estas, apontem-se:

a) 0 referendo, processo de governo realmente democrático, e o plebiscito, processo


de governo cesarista (como adiante se verá) ou acto pelo qual o povo delega o poder
num homem (DUGUIT);

b) 0 referendo, deliberação do povo que acresce à deliberação de um órgão do Estado,


formando um acto complexo, e o plebiscito, deliberação do povo só por si, com
efeitos imediatos (MAURICE BATELLI);

c) 0 referendo, acto norinativo ou tendo por objecto um acto normativo, e o plebiscito,


acto relativo a determinado facto ou evento, como a anexação de um território ou a
escolha de uma forrna de governo (SANTI ROMANO, COSTANTINO MORTATI);

d) 0 referendo, processo de governo ou de poder constituído, em espécial do poder


legislativo, e o plebiscito, processo constituinte para que se apela a fim de se decidir
uma modificação da Constituição (MARCELLO CAETANO, CLAUDE EMER1);

e) 0 referendo, instituto decorrente de normas constitucionais, e o plebiscito, instituto


não regulamentado previamente por normas sobre a constituição do ordenamento
(ACHILLE CHIAPPETTI).

Satisfatório não julgamos nenhum destes critérios. E como o acto do povo é, em si,
sempre o mesmo, tão-pouco divisamos
234

grande interesse na dicotomia. Por isso e porque é este o termo hoje mais divulgado,
preferimos falar aqui apenas em referendo.

IV - Em contrapartida, arredamos uma acepção amplíssima de referendo que


abrangesse o chamado referendo orgâníco (pelo qual um órgão se pronuncia sobre a
deliberação de outro órgão da pessoa colectiva, para efeito de alargamento
da sua representatividade ou de fiscalização). Ainda que este possa ser sucedâneo do
referendo, verdadeiro e próprio, dito então inorgânico (como sucedeu em algumas
fases da evolução do Direito municipal português, no século XX), a sua lógica
apresenta-se bem diversa: é a lógica da articulação entre órgãos do poder, e não já a da
participação dos cidadãos nas decisões colectivas.

De igual sorte, também não é de considerar referendo a deliberação ou qualquer outra


votação realizada em assembleia em que os cidadãos se reúnam (seja como tais, em
termos de assembleia ou de assembleia popular ou Landsgemeinde, seja, por exemplo,
como moradores).

0 instituto do referendo só existe quando os cidadãos não podem - pelo seu número,
pela extensão do território, pela complexidade dos problemas ou por outros factores -
estar fisicamente todos presentes, ao mesmo tempo, numa assembleia para deliberar
ou emitir um juizo; só existe quando, não podendo
235
haver assembleias orgânicas de cidadãos, se tem de recorrer ao sufrágio em múltiplas
assembleias de voto simultâneas.

V - 0 referendo não esgota os mecanismos habitualmente designados de democracia


semidirecta inseridos em sistema representativo. Cruzando-se com ele, encontram-se
outros institutos como a iniciativa popular, o veto popular ou a revogação popular de
mandato.

0 referendo e uma votação, deliberativa ou consultiva. A iniciativa popular e a


formulação de um projecto (de um projecto de lei, o mais das vezes) por um conjunto
de cidadãos perante a assembleia representativa (iniciativa indirecta) ou perante o
próprio povo (iniciativa directa) - e neste caso vem a ser por iniciativa popular que se
abre o processo referendário.

No veto popular e na revogação de mandato (recall no Direito norte-americano)


manifesta-se outrossim uma iniciativa que desemboca em referendo, só que iniciativa
de sinal negativo ou de controlo: oposição a certa lei aprovada pelo Parlamento que
leva determinado número de cidadãos a requerer uma votação do povo soberano, no
veto popular (contraposto a sanção popular, em que, a partida, o decreto destinado a
converter-se em lei carece de aprovação pelo povo); oposição, na revogação do
mandato, a certo magistrado ou titular de um órgão, a qual leva, por seu turno, a
solicitar um voto sobre a sua subsistência no cargo.

236

47. MODALIDADES DE REFERENDO

É muito largo o elenco das modalidades de referendo. Pode propor-se a seguinte


classificação:

a) Referendo de Direito interno (ou referendo no estrito domínio de uma ordem


jurídica estadual) e referendo de Direito internacional ou com relevância no plano
do Direito internacional (referendo respeitante a formação e a outras vicissitudes do
Estado ou do seu território, bem como a determinadas comunidades políticas não
estaduais);

b) Referendo de âmbito nacional, de âmbito regional e de âmbito local (ou, grosso


modo, referendo correspondente a actos jurídico-públicos do Estado, a actos de
regiões autónomas ou outras regiões ou territórios e a actos de autarquias locais);

c) Referendo constitucional, legislativo, político e administrativo (ou referendo


relativo a normas constitucionais, a actos legislativos, a actos políticos ou de governo
ou a actos da função administrativa), e subdividindo-se o primeiro em referendo
constituinte (de aprovação da Constituição ou atinente a grandes opções
constitucionais) e em referendo de revisão constitucional’;

d) Referendo necessário e referendo facultativo (ou seja: referendo de realização


ope legis, que tem de se efectuar verifi-

1 - Sobre referendo constituinte e referendo de revisão constitucional, v. Manual...,


111, 3. ed., Coimbra, 1991, págs. 93-94 e 157-158, respectivamente.

237
cados certos pressupostos constitucionais ou legais, e referendo dependente de uma
livre iniciativa de certos órgãos ou sujeitos);

e) Referendo de iniciativa popular, de iniciativa parlamentar, de iniciativa


governamental e de iniciativa presidencial ou monárquica (consoante os casos,
referendo que pode ser desencadeado por iniciativa dos cidadãos em determinado
número ou por
4%

decisão de um órgão govemativo ou homólogo);

f) Referendo deliberativo e consultivo (ou seja, referendo que se traduz numa


deliberação e referendo que, juridicamente - politicamente pode ser diferente - apenas
envolve uma indicaçao ou uma recomendação);

g) Referendo positivo e negativo (consoante o desencadear do processo de referendo


se destina a obter a aprovação, a sanção, a confirmação ou ratificação de um acto do
poder público ou, pelo contrário, a sua revogação ou a cessação dos seus efeitos);

li) Referendo suspensivo e resolutivo (ou seja, referendo de cujo resultado positivo
depende a perfeição ou a eficácia de um acto ou de que depende a cessação dessa
eficácia ou da vigencia das normas seu conteúdo).

48. HISTóRIA E DIREITO COMPARADO

1 - A prática de referendos começou em alguns Estados norte-americanos a seguir a


proclamação da independencia (entre 1778
238

e 1780), mas foi em França um pouco depois que surgiram as suas primeiras - e
contraditórias - elaborações político-constitucionais específicas.

Com efeito, na concepção da forma de governo jacobina, se tem de haver um órgão


electivo, ele encontra-se sempre dependente da decisão popular. Conforme previa a
Constituição do ano 1 (1793), os projectos aprovados pelo Corpo Legislativo seriam
submetidos a votação dos cidadãos se, nos 40 dias subsequentes ao seu envio as
comunas, na maioria dos departamentos um décimo das assembleias primárias tal
reclamasse.

Pelo contrário (como igualmente se sabe), na forma de governo cesarista, a


concentração do poder é num órgão singular (o primeiro-cônsul, o imperador).
Todavia, o Chefe do Estado, ainda quando investido numa dignidade monárquica, vai
procurar uma legitimação democrática e, na ocorrência de crises, um modo de
suplantar a oposição de corpos constituídos: e o apelo directo ao povo por via de
plebiscito. A ideologia e a prática do regime divergem das do governo jacobino, o
fundamento numa democracia absoluta revela-se muito próximo.

Só muito mais tarde se lograria desprender a ideia de referendo destas amarras,


autonomizá-lo, objectivá-lo.

11 - As Constituições francesas de 1793 e de 1795 (dos anos 1 e 111), primeiramente,


e depois as de 1799, 1802 e 1804, seriam
239
todas aprovadas por referendo ou plebiscito. E isso não pouco conf

riúiria para que, por reacção nos países influenciados pelo constitucionaliSmo francês,
durante muitas décadas, ele fosse repudiado. Por motivos diferentes (ligados ao bom
funcionamento das suas instituições), algo de semelhante ocorreria nos países
pertencentes às famílias constitucionais britânica e norte-americana.

A excepção significativa vem a ser a Suíça, devido às peculiaridades da sua


experiencia democrática em Estados (confederados até 1848, federados a seguir) com
carácter municipal. 0 esquema consagrado na sua primeira Constituição federal
(exactamente de
1848) - referendo constitucional obrigatório, referendo legislativo facultativo a nível
federal e obrigatório em certos cantoes, conjugação com iniciativa popular permanece,
no essencial, até hoje, com constantes e quase mensais aplicações.

Entretanto, no século XIX (tal como já sucedera em finais do século anterior) recorre-
se a votações populares, a plebiscitos, não tanto em nome do princípio democrático
quanto em nome do princípio das nacionalidades, para a formalização de mutações
territoriais: assim a anexação das ilhas Jónicas pela Grécia, a do Eslésvigo do Norte
pela Prússia e alguns momentos da unificação italiana.

111 - Na passagem do século XIX para o século XX, o avanço das ideias
democráticas, a extensão do suftágio e algum desencanto
240

perante o funcionamento das instituições parlamentares criam um terreno favorável a


introdução de elementos inovadores.

0 referendo e a iniciativa popular ganham incremento em muitos dos Estados norte-


americanos, na Austrália e em alguns países nórdicos (e é por essa via que a Noruega
se separa da Suécia em 1905).

No primeiro pós-guerra, o. entusiasmo constitucional e a procura de uma ”


racionalização do poder” vão no mesmo sentido, na Áustria, na Checoslováquia, nos
países bálticos, em Espanha (Constituição de 193 1) e na Irlanda. Caso mais
paradigmático é o da Constituição alemã de 1919 (Weimar)I. Os resultados não se
oferecem, todavia, muito satisfatórios no contexto da época, e não são poucos os
exemplos de aclamação ou manipulação plebiscitária.

No segundo pós-guerra, o instituto do referendo continua, apesar disso, a difundir-se.


Contemplam-no constituições como a italiana de 1947 (referendo legislativo
resolutivo ou revogatório, referendo sobre modificações das regiões e referendo
consultivo regional), a alemã ocidental de 1949 (para modificações das Lãnder), a
francesa de 19’58 (referendo sobre organização dos

1. Prevendo referendo para a resolução de conflitos, no interior do Reichstag, entre ele


e o Reichstag e entre as Câmaras e o Presidente do Reich; bem como para efectivação
da responsabilidade política deste perante o povo a pedido do Parlamento (e
importando a recusa de mandato a dissolução do Reichstag).
241
i poderes’públicOs e sobre certos tratados e referendo sobre a eventual separação de
tèrritórios ultramarinos).

Mais recentemente, ele consta da Constituição sueca de 1974, da espanhola de 1978 (com
referendo consultivo político e referendo obrigatório para revisão de princípios
constitucionaios fundamentais), da equatoriana de 1979, da brasileira de 1988 (com
referendo legislativo e, em 1993, plebiscito para escolha entre república e monarquia e entre
presidencialismo e parlamentarismo) ou da santomense de 19901.

Nuns casos, mostra-se o referendo um instrumento adequado’ ou simplesmente possível para


se ultrapassarem dificeis situações políticas; noutros, não deixa ele próprio de acarretar
problemas jurídico-constitucionais (como aconteceu em 1975 na Grã-Bretanha, por *causa da
sua conjugação com o princípio da soberania do Parlamento).

1. Registem-se ainda os seguintes importantíssimos referendos dos últimos 50 anos: de 1945,


em França, sobre a atribuição de poderes constituintes a Assembleia a eleger; de Abril e
Outubro de 1946, sobre a Constituição da IV República; e de 1958 sobre a Constituição da V
República e sobre a Comunidade Francesa (também realizado nos territórios ultramarinos e
donde resultou a independência da Guiné-Conacri); de 1946 em Itália, e de 1974, na Grécia,
sobre a opção entie monarquia e república; de 1950, na Bélgica, sobre a crise dinástica; de
1972, na Noruega, e de 1975, na Grã-Bretanha, sobre a integração na Comunidade
Económica Europeia (ali recusada, aqui aprovada); de 1976 e de 1978, em Espanha, sobre a
transição do regime autoritário para o novo regime constitucional democrático; de 1979, na
Escócia e em Gales, sobre autonomia regional; de 1983 e de 1995, em Quebeque, sobre a
evpntual secessão do Canadá; de 1992, na Dinamarca, sobre o Tratado de Maastricht (da
União Europeia.).

242

IV - 0 referendo também viria a ser acolhido, no século XX, fora da democracia


representativa: nas Leis Fundamentais espanholas do General Franco (após 1945), na
Constituição da República Democrática Alemã de 1974, na Constituição de São Toiné e
Príncipe de 1975, na Constituição argelina de 1976, etc.

Assim como algumas Constituições marxistas-leninistas consignaram o princípio da


revogabilidade do mandato pelos eleitores.

Naturalmente, em qualquer destas situações, as regras constitucionais e as práticas deveriam


ser apreendidas nos respectivos contextos.

Tal como a eleição, o referendo, em sistemas não pluralistas, não pode traduzir uma opção
livre e aberta as diversas correntes de opinião - o que não significa que não possa
desempenhar um papel de relevo ao serviço de finalidades precisas (afirmação da unidade
política, legitimação e reforço do poder dos govemantes, superação de
antagonismos culturais, religiosos ou etnicos, efeitos para o exterior).

V - Por último, também no domínio do Direito internacional tem prosseguido a prática do


recurso ao plebiscito ou referendo em variadas circunstâncias (questões de minorias
nacionais, anexações ou desanexações territoriais, estatuto de territórios sob tutela, acesso a
independência de comunidades coloniais).

243
A sua antenticidade tem sido, contudo, bastante variável, em face das circunstâncias,
dos estádios de desenvolvimento sociocultural e dos sistemas políticos envolventes,
mais ou menos pluralistas.

49. 0 REFERENDO EM PORTUGAL ANTES DE 1974

1 - Em PortugaV, a ideia do referendo de âmbito nacional aparece pela primeira vez


em 1872 na secção V do projecto de lei de reforma da Carta Constitucional subscrito
por José Luciano de Castro, sob a forma de ratificação popular das alterações
constitucionaiS2.

Muito mais tarde, durante a discussão do que viria a ser o art.


63.2 da 1Constituição de 1911, o deputado Goulart de Medeiros propôs a
substituição do preceito vindo da comissão que elaborou

1. Cfr. RICARDO LEITE PINTO, Referendo local e descentralizaÇãO política, cit.,


págs. 63 e segs.; LUíS BARBOSA RODRIGUES, op. cit., págs. 119

e segs.

2. Esta ideia, segundo o autor, poderia interessar o país na manutenção das suas
instituições políticas e daria a estas a força da opinião e o prestígio do sufrágio
popular. Seria de admitir a delegação ordinária dos interesses comuns, mas para
alterar a Constituição (em virtude da qual existem os poderes do Estado), pacto
fundamental (que estipula os direitos da nação e as atribuições do poder) só pelo
expresso consenso da nação se deveria julgar perfeita a reforma. ”A soberania popular
é inalienável. Deixaria de o ser se por uma delegação especial e sem ratificação,
pudesse ser alterada nestes pontos a sua Constituição política.

244

o projecto da Constituição por este: ”0 Supremo Tribunal de Justiça, como primeira


instãncia, julgará qualquer reclamação contra a promulgação de leis inconstitucionais.
Deste tribunal há recurso para a Nação, que será consultada directamente.” Era uma
modalidade algo singular de referendo sobre inconstitucionalidade.

Nenhuma destas sugestões teria seguimento.

11 - Seria a nível local que o referendo v

iria a obt .er, nessa altura, consagração no nosso Direito. Numa perspectiva
descentralizadora e municiplalista, o rta. 66.2, n.2 4. da Constituição de 1911
instituiu-o, embora nos termos que a lei determinasse.

veu
0 referendo, escre então MARNOCO E SOUSA, permitiria ao povo disciplinar
e orientar a administração local. E, assim, a Lei nY 88 de 7 de Agosto de 1913 previu
a intervenção obrigatória dos eleitores da paróquia relativamente a certas deliberações
das respectivas juntas e a intervenção facultativa dos eleitores do município a pedido
de 1/10 deles para se tomarem executórias Certas deliberações das respectivas
câmaras; e a Lei n.9 621, de 23 de Junho de 1916, estabeleceu o referendo obrigatório
para a criação de novas freguesias ou concelhos.

Contudo, essa mesma Lei n.2 88 e outras, mais restritivas, admitiram igualmente a
simples intervenção dos corpos administrativos de escalão inferior para confirmação
de actos de outros corpos administrativos.

245
Ill - 0 regime sa;do da revolução de 1926 não convocou uma assembleia constituinte
para a feitura da sua Constituição. Ao invés, foi o Govermo (na realidade, Oliveira
Salazar) que elaborou um projecto e que o apresentou, primeiro, a discussão pública
em
1932 e, depois, a ”plebiscito nacional” em 1933.

Como, entretanto, as liberdades públicas estavam suspensas ou restringidas, essa


situação não poderia deixar de afectar negativamente a democraticidade do processo.
Não foi em nome do princípio da soberania popular, mas contra aquilo que seria uma
sua consequencia - a eleição de uma assembleia livre que interviessa na feitura da
Constituição - que se preferiu seguir o

caminho do referendo.

De todo o modo, foi o único até agora realizado em Portugal.

IV - A Constituição de 1933 manteve o referendo local (art.


126.2), conquanto, também, ao fim de muito pouco tempo reduzido a referendo
orgânico. Se o Código Administrativo de 1936 ainda consagrou o referendo dos
chefes de família nas freguesias de 2.! e
3.! ordens, após a sua revisão em 1940 apenas subsistiu o referendo dos conselhos
municipais e provinciais (mais tarde, conselhos de distrito).

Em contrapartida, a revisão constitucional operada através da Lei n.2 1885, de 23 de


Março de 1935, editou uma revisão por
246

referendo, ao conferir ao Chefe do Estado a faculdade de, quando o bem público


imperiosamente o exigisse, ouvido o Conselho de Estado e em decreto assinado por
todos os ministros, ”submeter a plebiscito nacional as alterações da Constituição que
se refiram a função legislativa ou seus órgãos- (arts. 134.2, n.2 2; 138.2, n.!’ 2, no
texto vigente em 1974).

0 instituto introduzido nestes termos era harmónico não apenas com a origem
plebiscitária da Constituição (como salientou a Câmara Corporativa, em parecer
relatado por Fezas Vital) como, sobretudo, com a postura antiparlamentarista do
regime e com o intuito de concentração de poderes. Compadecia-se ainda com um
entendimento latíssimo da intervenção e da iniciativa presidencial.

Por um lado, pretendia-se evitar que a Assembleia, órgão da revisão constitucional,


pudesse paralisar todas as tentativas para ser reformada. Não havia motivo para que os
restantes órgãos do Estado estivessem sujeitos à Assembleia no tocante a conservação
ou modificação da sua estrutura e para que a Assembleia não fosse, por seu turno,
alterável por força de uma vontade estranha constituinte. Por outro lado, o sistema e
governo representativo simples mal se conciliaria com essa situação e exigia que ao
Presidente da República fosse dado um expediente para superar os obstáculos criados
à revisão; o Parlamento não devia resistir ao Chefe do Estado, neste aspecto como em
qualquer outro.

247
0 intuito de não fazer da’Assembleua Nacional um corpo político de posição superior a dos
outros corpos políticos (porque nenhum outro feria as suas prerrogativas) ganharia maior
força diante de proposta de alteração constitucional que reduzisse, se rejeitada por ela, ou
diante de projecto de alteração que as aumentasse, aprovado por ela. Neste segundo caso, a
oposição Chefe do Estado, em vez de revestir a forma recusa de promulgação com o
consequente reenvio decreto com as alterações a Câmara, viria revestir a forma de veto
translativo, na medida que transferia para o eleitorado a decisão

Este referendo nunca foi regulamentado, nem aplicado. Nem houve necessidade de o pôr em
prática.

1. 0 Presidente da República gozava, pois, de grande liberdade. Desde que satisfizesse


determinados requisitos materiais e formais podia, em qualquer momento, elaborar uma
proposta de revisão e levá-la a referendo, poderia subtrair ao Pa1rlamento uma proposta ou
um projecto ainda por discutir ou por votar; podia abrir um novo processo de revisão, a
seguir a uma deliberação parlamentar que aprovasse ou rejeitasse uma alteração à
Constituição (porque, se podia apresentar propostas de revisão da sua lavra, por maioria de
razão podia submeter a referendo projectos ou propostas apresentados por outros). Só havia
uma restrição: quanto a alterações da Constituição que tivessem sido votadas pela
Assembleia Nacional, independentemente do resultado, no uso de poderes de revisão
outorgados pelo próprio Chefe do Estado (isto para prevenir uma duplicação ou repetição
imediata de consultas populares sobre a mesma matéria, já que o eleitorado, ao eleger os
novos deputados, tivera ensejo de se manifestar acerca dos pontos especiais objecto desses
poderes).

248

50. 0 REFERENDO APóS 1974

1 - 0 problema do referendo colocar-se-ia logo após 25 de Abril de 1974, não só em relação


aos territórios ultramarinos (pois alguns sectores defenderam, sem êxito, que deveria
haver referendo para as populações escolherem entre a independência e qualquer forma de
ligação a Portugal) mas também em relação ao próprio Pais.

Invocando ”a premência das decisões sobre a economia e os problemas africanos”, a


necessidade de restabelecer a autoridade do Estado e os princípios democráticos, o primeiro-
ministro do U’ Governo Provisório, Adelino da Palma Carlo Junho s,
propos, em

de 1974, alterações à lei constitucional provisória (Lei n.2 3/74, de


14 de Maio) tendentes a rápida eleição do Presidente da República e à aprovação de uma
Constituição provisória que precederia a entrada em vigor da Constituição a elaborar pela
Assembleia Constituinte prevista no Programa do Movimento das Forças Armadas. 0
Projecto da Constituição provisória seria levado pelo Governo Provisório ao Conselho de
Estado e, depois, se por esta aprovado, submetido a referendo

11 - A maior parte dos projectos da Constituição submetidos a Assembleia Constituinte eleita


em 1975 admitia referendo e outras fôrmas de participação popular directa.

I. V. o texto in Fontes e Trabalhos Preparatórios da Constituição, Lisboa,


1978, 11, págs. 1153 e segs. Nenhuma destas propostas pôde prevalecer.

249
Eram: o referendo a nível local, de que poderiam ficar dependentes, por força da lei, as
deliberações dos órgãos representativos das autarquias e das regiões (art. 149.2, n.2 2, do
projecto do Partido Popular Democrático); o referendo sobre leis já aprovadas, excepto em
matéria de impostos, por deliberação da Assembleia Legislativa por maioria de dois terços
(art. 93.2 do projecto do Centro Democrático Social); o direito de 50.000 eleitores
apresentarem um projecto de lei perante o Parlamento (art. 92.2 do projecto do Partido
Socialista); e a iniciativa legislativa e o parecer das organizações populares (arts. 103 e 104.
£’ do projecto do Partido Comunista Português)’.

Meses depois, aquando das negociações com vista a 2Y Plataforma de Acordo Constitucional
entre os Partidos e o Movimento

das Forsas Armadas, um dos partidoS2 chegou ainda a propor que a Constituição fosse
submetida a referendo nos 15 dias imediatos ao decreto de aprovação da Assembleia
Constituinte; em caso de rejeição, continuariam em vigor as leis constitucionais vigentes,
tendo o Parlamento a eleger até 25 de Abril de 1976, poderes constituintes 3.

1. Quase ao mesmo tempo, dois projectos doutrinários de Constituição publicados em 1975


(o de nossa autoria e o de Lucas Pires) preconizavam referendo constitucional, legislativo e
político, em certos termos.

2. 0 Partido Popular Democrático.

3. V. o respectivo texto in Povo Livre, n.L’ 79, de 22 de Janeiro de 1976. A sugestão, se se


baseava no princípio democrático (contraposto ao referendo orgânico, a que, de algum modo,
a UI Plataforma abria caminho, ao
250

111 - A questão do referendo voltaria a ser discutida - muito mais intensa e dramaticamente -
a propósito das alterações a fazer na Constituição de 1976, sobretudo em 1980, no termo da
L! legislatura e do 1.2 mandato presidencial.

A despeito de a Constituição se ocupar ex professo da sua revisão, tendo cometido o poder de


a decretar à Assembleia da República (arts. 164.2, alínea a), 169.9, n.2 1, e 286Y’ e segs.),
houve quem invocasse a possibilidade de apelar ao povo através do referendo; foram
apresentados um projecto de lei e uma proposta de lei de autorização legislativa tendentes à
sua promoção’; e a campanha eleitoral para a Presidência da República daquele ano teve-o
como assunto primacial.

determinar a promulgação pelo Presidente da República ”ouvido o Conselho da Revolução”),


ter-se-á destinado sobretudo a tentar corrigir ou repensar o sentido de alguns dos preceitos já
aprovados (o que, em parte, se terá conseguido). Mas não foi aceite, por se considerar ser
tarde de mais para organizar referendo, por ele poder diminuir a autoridade da Assembleia
Constituinte e por se temer qualquer dos desenlaces possíveis da sua realização: uma rejeição
da Constituição prolongaria, com gravissimos custos, os inconvenientes do Governo
Provisório; e uma aprovação (bem mais provável) cristalizaria algumas soluções
constitucionais contingentes e tomaria mais difíceis futuras revisões. Isto mesmo se
depreende do debate então travado na Assembeia (o único, por sinal, que ela dedicou ao tema
do referendo).

1. Projecto de Lei n.!’ 501-1, e Proposta de Lei &’ 365-1, in Diário da Assembleia da
República, 2. série, U legislatura, 4. sessão legislativa, n.05 69 e 74, respectivamente.

251
0 referendo serviria para enfrentar a questão dos limites materiais da revisão
constitucional, pois só o povo, titular da soberania, os poderia ultrapassar; ou para
vencer o bloqueamento ideológico que a Constituição traria consigo; ou para eliminar
a regra da maioria qualificada de dois terços para a aprovação de alterações a
Constituição; ou, ainda, na hipótese de não se formar na Assembleia da República a
maioria qualificada exigida no art. 286.2 para viabilizar a própria revisão. Sendo,
embora, diversas as funções esperadas do referendo, era comum a fundamentação: o
princípio democrático - por o povo, por direito natural (segundo alguns), estar acima
da Constituição e esta mesma apelar para a participação directa e activa dos cidadãos
na vida pública (arts. 48.2 e 112.2).

Mas a fraqueza jurídica dos argumentos era notória, a face dos cânones gerais de
interpretação e das regras básicas do constitucionalismo ocidental (em que todo o
poder público tem de estar previsto e contido em regras jurídicas e em que prevalecem
os mecanismos representativos e pluralistas sobre os de democracia directa).

No fundo, o que estava em causa era a oposição a Constituição; era, não já um


processo para a modificar - o que pressupunha a aceitação das suas regras - mas um
processo para a substituir; era saber se deveria ou não dar-se e de que forma, ruptura
da ordem constitucional de 1976. Os resultados da eleição presidencial de Dezembro
de 1980 resolveram este problema no sentido da inadmissibilidade do referendo e do
respeito das regras constitucionais sobre revisão.

252

IV - Aberta, no entanto, na sua sede própria - o Parlamento a revisão constitucional,


um dos projectos apresentados, o dos deputados da Aliança Democrática’ incluiria
duas modalidades de referendo de âmbito nacional: um referendo sobre matérias
constitucionais e outro sobre ”questões de relevante interesse nacional2.

Nem uma nem outra das propostas de alteração logrou vencimento.

E percebe-se porque:

por, tendo em conta os antecedentes próximos, se recear ainda a associação de


referendo e ruptura institucional;

1 . Na esteira dos projectos doutrinários de Francisco Sã Carneiro e de Barbosa de


Melo, Cardoso da Costa e Vieira de Andrade.

2. Estipulava esse projecto no que deveria ser o art. 287.2 da Constituição:

”1. 0 Presidente da Repúbica, ouvido o Conselho de Estado, pode determinar que se


realize um referendo sobre as alterações à Constituição que não tenham obtido a
maioria prevista no n.2 3 do artigo anterior (mais de dois terços dos deputados
presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade
de funções), desde que hajam sido aprovadas pela maioria absoluta dos Deputads em
efectividade de funções. ”2. 0 referendo previsto no número anterior não pode ter por
objecto alterações à Constituição que modifiquem a repartição de atribuições e
competências entre os órgãos de soberania ou as regras relativas ao estatuto e eleição
dos seus titulares.---

Previa também o projecto, para o novo art. 142.L, referendo sobre ”questão de
relevante interesse nacional-, se e nos termos em que isso fosse solicitado ao
Presidente da República pelo Governo e pela Assembleia da República com
deliberação aprovada por maioria de deputados em efectividade de funções.

253
2.2 - por se considerar mais prudente começar pelo referendo a nível local, sobre
matérias mais concretas e imediatas, antes de se passar ao referendo a nível nacional -
e, efectivamente, a Assembleia consagrou-o’.

V - Diversamente, na segunda revisão constitucional, em quatro dos projeCtOS2


seria preconizado o referendo vinculativo a nível nacional e agora, num ambiente
político mais estabilizado, ele seria, sem dificuldade, enxertado na Constituição.

Ficou, portanto, a haver, em Portugal referendo político nacional e referendo local,


ainda que em termos muito restitivos.

VI - Por último, na revisão constitucional desencadeada em


1996, o problema do referendo seria retomado sem que se saiba ainda, neste
momento, quais os resultados a que se vai chegar.

2. Vindo dos projectos de revisão dos deputados dos partidos da Aliança Democrática
e da Frente Republicana e Socialista.

2. Os do Centro Democrático Social, do Partido Socialista, do Partido


SocialDemocrata e do Partido Renovador Democrático. Este último partido, além do
referendo político stricto sensu, propunha ainda um referendo legislativo: o Presidente
da República poderia, em alternativa ao veto político e a iniciativa de fiscalização
preventiva da constitucionalidade, submeter a referendo decretos da Assembleia da
República destinados a ser promulgados como lei ou decretos do Governo, no caso de
autorizações legislativas, destinados a ser promulgados como decretos-leis.

254

5 1. 0 REGIME DO REFERENDO POLíTICO NACIONAL

1 - 0 referendo político nacional tem a sua sede constitucional básica no art. 118.2,
que se situa nos Princípios Gerais da Organização do Poder Político (título 1 da parte
111 da Lei Fundamental).
0 novo preceito substitui - o que se entremostra bem significativo do desenvolvimento
constitucional operado desde 1976 - outro, sobre organizações populares de base
territorial (de resto, aí mal colocado, porquanto essas organizações, doravante
chamadas organizações de moradores, apenas participavam e participam no exercício
do poder local).

Não é, contudo, essa a única disposição da Constituição concernente ao instituto.


Referem-se-lhe também os arts. 122.Ç?, n.2 1, alínea i), 137.2, alínea c), 164.% alínea
1), e 200.9, alínea e); e, por outro lado, ocupam-se do seu tratamento legislativo (do
44 regime do referendo”), a fazer por lei orgânica os arts. 139.9, n.2 3, 167.2, alínea
b), 169.Q, n.2 2, e 171.% n.2s 4 e 5.

Todas estas normas têm, naturalmente, de ser interpretadas e integradas numa


perspectiva coerente do sistema jurídico-constitucional como um todo. 0 referendo
não e um a priori relativamente à Constituição; enquadra-se, sim, na Constituição, a
par de outras formas e figuras de exercício do poder político; está ao serviço dos fins
democráticos por ela almejados; implica o Estado de Direito democrático definido nos
arts. 2.2 e 9.9.

A Lei n.2 45/91, de 3 de Agosto, regulamenta os procedimentos referendários.

255
11 - A esta luz, são os seguintes os traços essenciais do regime do referendo político
nacional:

a) 0 referendo é de âmbito nacional - nele votam os cidadãos eleitores recenseados no


território nacional (art. 118.9, nY 1) e só pode ter por objecto questões de relevante
interesse nacional (art. 118.2, n.2 2, Ia parte); em caso algum, pode ter ambito
regional ou local;

b) 0 referendo tem por objecto questões que devam ser decididas pela Assembleia da
República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de
acto legislativo (art. 118.9, n.2 2, 2. parte); não tem por objecto, directamente, essa
aprovação;

c) Quer isto dizer que o referendo, embora em si um acto essencialmente político e,


enquanto tal, inserido na função de direcção suprema do Estado ou função política
strieto sensu, não tem como efeito imediato a conclusão de um tratado ou a feitura

de um acto legislativo; o efeito imediato e, tão só, a 1adstrição do Parlamento ou do


Governo a praticarem (ou a não praticarem) o acto da sua competência correspondente
a questão sobre a qual os eleitores são chamados a pronunciar-se;

d) 0 referendo é prévio relativamente à aprovação da convenção internacional ou da


lei causa; e a competência para a sua iniciativa concreto pressupõe a competência para
a prática acto subsequente; não se traduz em sanção ou veto popular;

256

e) 0 referendo não pode incidir sobre certas questões ou matérias enunciadas na


Constituição e ainda sobre outras que a lei acrescente (art. 118.2, n.9 3), se bem que
não tantas nem tais que se frustrem o alcance e a própria razão de existir do instituto;

f) 0 processo assenta num específico relacionamento dos órgãos de iniciativa - a


Assembleia da República ou o Governo - e de decisão - o Presidente da República -
com a interferência ainda de um órgão de fiscalização jurídica - o Tribunal
Constitucional (art. 118.2, nA 1 e 6); requer a concordância da Assembleia, ou do
Governo, e do Presidente da República, bem como a não oposição do Tribunal
Constitucional, para que venha a realizar-se; nenhum desses órgãos, de per si, o pode
promover;

g) 0 referendo e vinculativo (art. 118.2, n.9 1); a Constituição estipula-o


expressamente, ao invés do que ocorTe com o referendo local, cuja eficácia
eventualmente vinculativa fica dependente da lei (art. 241.2, n.’3);

h) Nenhuma questão está necessariamente sujeita a referendo; mas, se o orgão


competente para a decidir tomar a iniciativa de propor a realização do referendo e o
Presidente da República aceitar a proposta (não considerada inconstitucional ou
ilegal pelo Tribunal Constitucional), depois os resultados - sejam positivos ou
negativos
- do referendo impor-se-lhe-ão, limitando ou condicionando a sua liberdade de prática
de actos jurídico-constitucionais;
i) 0 carácter vinculativo acarreta (pela natureza das coisas, mesmo se falta preceito
constitucional específico) consequências determinantes quanto a alguns actos do
Presidente da República
257
- ratificação de tratados, promulgação e assinatura de decretos, veto e
requerimento de fiscalização preventiva da constitucionalidade - os quais, em
razão daqueles resultados, terão de ser ou não poderão ser já praticados;

j) A resposta afiruativa ou negativa do eleitorado repercute-se, outrossim, em


efeitos para o futuro; não só não podem ser renovadas propostas de referendo
recusadas na mesma sessão legislativa, salvo nova eleição da Assembleia da
República, ou até a demissão do Governo (art. 118.9, nY 8) mas também
(igualmente pela natureza das coisas e por imperativo do princípio democrático)
a convensão ou o acto legislativo aprovado em consequência do referendo tem de
gozar de um estatuto reforsado perante eventuais alterações;

1) Contra o incumprimento da obrigação de não aprovar convenção


internacional ou acto legislativo a reacção há-de consistir na recusa de
ratificação ou de promulgação e assinatura do Presidente da República e, para
além disso, nos remédios jurídicos adequados de fiscalização da
inconstitucionalidade (neste caso, orgânica) dos arts. 207.% 280.2 e 28U’ da
Constituição;

m) Contudo, contra o incumprimento da obrigação de aprovação, só existem os


meios gerais de controlo político e, em última instancia, a responsabilidade
política dos titulares dos órgãos representativos perante o povo (art. 120.2, n.2 1)
a efectivar em eleisões subsequentes’.

1. Para mais desenvolvimento, v. LUíS BARBOSA RODRIGUES, op. cit, págs.


157 e segs.

258

111 - Avultam a complexidade dos problemas jurídico-constitucionais e a


extrema prudência do legislador de revisão, ditada, por certo, quer pelo cuidado
de evitar qualquer subversão plebiscitãria, quer pela falta de experiência do
instituto em Portugal.

0 princípio geral do sistema, a democracia representativa, permanece intocado.


Por isso, as questoes políticas mais importantes ficam subtraídas ao referendo
(art. 118.% n. 3) e as questões de
44relevante interesse nacional” são questoes de segundo grau. Por isso, mantêm-
se, sem alteração, as competências em abstracto dos órgãos de soberania e elas
apenas são afectadas em concreto, no que toca a prática de certos actos. Por isso,
não é possível ao eleitorado subrogar-se a estes órgãos, quando eles não aprovem
os actos que, por forsa do resultado positivo do referendo, devam aprovar. Por
isso, se evita a coincidência entre a convocação e a efectivação do referendo e
qualquer processo eleitoral político (art. 11 U, n.2 5).

Do mesmo passo, prevalece em cada processo de referendo a regra da


interdependência dos órgãos de soberania (art. 114.9). Se não se pretende fazer
do referendo a solução de conflitos institucionais, também se procura que ele não
seja um gerador de conflitos e, pelo contrário, um instrumento de solidariedade
institucional. Com o referendo, o Presidente da República não se sobrepõe ao
Parlamento nem ao Governo: se recusa a proposta de referendo, nem um, nem
outro ficam inibidos de aprovar a convenção internacional ou o acto legislativo
de que, directa ou indirectamente, se trata (art. MY, n.` 8, a contrájlo); se aceita a
proposta, aceita integrar-se no processo, em conjugação com esses outros órgãos.

259
Enfim, por isso mesmo, o referendo encontra-se na dependência da maioria
parlamentar - embora não de modo absoluto, visto que só pode efectuar-se se o
Presidente da República concordar. E, ainda que o Presidente políticamente
esteja em sintonia com a maioria parlamentar, e de supor que a sua postura
independente dentro do sistema o leve a impedir que o referendo se converta em
meio de reforço da maioria ou do Governo em detrimento do equilíbrio geral.

0 referendo servirá, provavelmente, para a clarificação de crises no interior da


maioria, mormente quando as divisões ultrapassam o mero plano ideológico
partidário, ou para a tentativa do seu reencontro com os reais ou actuais
sentimentos da comuni-

dade. Para que não parece que possa servir e para arma da minoria contra a
maioria; a minoria, a oposição terá de buscar noutras instâncias a forma de
garantir os seus direitos ou de se afirmar como alternativa.

52. 0 REGIME DO REFERENDO LOCAL

1 - 0 art. 241.9, n.9 3 da Constituição e, por seu turno, o preceito definidor do


referendo local, eufemisticamente denominado ”consultas directas aos cidadãos
eleitores”.

A matéria entra, tal como a do referendo nacional, na reserva absoluta de competência


legislativa da Assembleia da República (art. 167.2, alínea b».

260

A regulamentação consta da Lei n.2 49/90, de 24 de Agosto.

11 - Os traços essenciais da figura podem ser assim recortados:

a) A realização de qualquer referendo depende de deliberação de um órgão da


respectiva autarquia local, não pode ser imposta por lei, pelos órgãos de tutela
(Governo da República ou governos regionais) ou por órgãos de autarquias de grau
superior;

b) Tem de haver uma deliberação, não exite um direito potestativo de qualquer titular
ou grupo de titulares do órgão da autarquia local de favorecer a realização do
referendo;

c) Essa deliberação pode resultar tanto de iniciativa interna no seio do órgão como de
iniciativa popular (embora a Lei n.9 49/90 não preveja esta, nada impediria que o
fizesse quer pela letra do art. 241 -9, n.Q 3, quer, sobretudo, por força de cláusula
aberta de direitos fundamentais do art. 16.9, n.2 1 da Constituição;

d) 0 referendo apenas pode incidir sobre matérias incluídas na competência exclusiva


dos órgãos das autarquias - o que abrange a pronúncia sobre a criação ou a extinsão de
municípios ou a alteração da respectiva área (art. 249.2) e a pronúncia sobre a
formação de regiões administrativas (art. 256.2);

261
e) Um órgão deliberativo não pode promover um referendo sobre matérias da
competência de um órgão executivo, ou vice-versa;

f) A lei pode subtrair certas matérias a votasao popular (vg., as financeiras);

g) Não pode haver a soma ou conjugação de referendos locais para a obtenção de


resultado equivalente a referendo nacional;

h) Têm direito de voto todos os cidadãos eleitores recenseados na área da autarquia, e


apenas esses;

i) Ao Tribunal Constitucional compete verificar previamente a constitucionalidade e a


legalidade das consultas (art. 225.2, n.9 2, alínea j» e aos tribunais, eventualmente
com recurso ate ele (se a lei o admitir), julgar a regularidade e a validade dos actos do
processo (art. 116.2, n.`7);

j) Apesar do nome, a votação popular tanto pode revestir eficácia consultiva quanto
deliberativa; a lei é que a fixa e pode estabelecê-la diversamente consoante os casos
ou atribuir aos órgãos autárquicos competentes o poder de a definir no momento da
correspondente deliberação.

0 art. 5.2 da Lei n.2 49/90 fixa, porém, eficácia deliberativa sempre.

262

CAPíTULO 111

PARTIDOS POLITICOS
53. NOÇÃO DE PARTIDOS POUTICOS

1 - É possível e necessário distinguir um conceito amplo e um conceito restrito de partido político, em


função de diferentes momentos e sisternas’.

1. Sobre os partidos em geral, em perspectiva de Ciência Política, v., por exemplo, MOISEI
OSTROGORSKI, La démocratie et les partis politiques,
1902; ROBERTO MICHELS, Zur Soziologie der Parteiwesens in der Modernen Dernokratie, 1911
(consultámos a edição francesa Les Partis Politiques, Paris, 197 1); MAURICE DUVERGER, Les
Partis Politiques, cit.; IVOR JENNINGS, Partiy Politics, 2 vols., Cambridge, 1960 e 1961; GUIDO
VESTUTI, II Partito Politico - Uma introduzione critica, Milão, 1962; E.E. SCHATTSCI1NEIDER,
Party Government, trad. castelhana Regimen de Partidos, Madrid, 1964; Modern Political Parties,
obra colectiva ed. por SIGMUND NEUMANN, trad. castelhana Partidos Polhicos Modernos, Madrid,
1965; PIER LUIGI ZAMPETTI, Dello Stato liberale allo Stato der partiti, Milão, 1965; Political
arties and Political Development, obra colectiva editada por JO§EPH LA PALOMBARA e MYRON
WE1NER, reimpressão, Princeton, 1972; PABLO LUCAS VERDU, Principios de Ciência Politica,
111, 2.` ed., Madrid, 1974; GlOVANNI SARTORI, Parties
265
Em sentido amplo, o partido vem a ser qualquer agrupamento de indivíduos destinado
a conquistar, exercer ou conservar o poder político. Em sentido restrito pode definir-se
(sem excessivo rigor) como a associação de carácter permanente organizada para a
intervenção no exercício do poder político, procurando, com o apoio popular, a
realização de um programa de fins gerais.

Em todas as épocas e em todos os países se encontram partidos políticos na primeira


acepção. A dinâmica política consiste, em larga medida, numa luta ou competição
pelo poder e, nesse processo, os homens dividem-se, sejam quais forem as motivações
(afectivas, ideológicas, económicas ou outras) em partidos. Apenas situações políticas
primitivas ou situações de grande estabilidade (por exemplo, monarquias legítimas,
na acepção de G. FERRERO, e com dinastias legítimas) os desconhecem No entanto,
basta surgirem problemas de sucessão no trono ou quaisquer crises graves na vida
interna ou externa do Estado para se constituírem grupos mais ou menos fortes,
coesos e duradouros à volta desta ou daquela pessoa, ideia ou interesse (conquanto,
não raras vezes degenerando em facção).

andparty systems, 1, Cambridge, 1976; DANIEL-LOUIS SEILEF, Partis et Familles


Politiques, Paris, 1980; Western European Party Systems - Continuity and Change,
obra colectiva ed. por HANS DAALDER e PETER MAIR, Londres, 1983; KLAUS
VON BEYME, Political Parties in Western Democracies, trad., Hampshire, 1985;
MANUEL GARCIA PELAYO, El Estado de Partidos, Madrid, 1986; JEAN
BLONDEL, Toward a Sistematic Analysis of Goverment - Party Relationships, in
International Political Seience Review, 1995, págs. 127 e segs.

266

A noção restrita corresponde a um espécie deste gênero tão fluído e tão variável. É a
espécie de partidos própria dos séculos XIX e XX - com o progresso da educação e da
consciência cívica, por um lado, e maiores tensões ideológicas e sociais, por outro
lado e da democracia liberal e representativa - em que se institucionaliza a luta
pacífica pelo acesso aos cargos govemativos. Mas a fórmula seria igualmente
adoptada por regimes não liberais, com alcance e contexto diversos.

11 - 0 partido em sentido restrito e moderno envolve:

a) Uma base de filiados ou militantes, composta directa ou indirectamente por


cidadãos (não é suficiente para haver partido o mero grupo ou ala parlamentar);

b) Autonomia perante os órgãos do Estado, ou seja, livre determinação e gestão e


também, em princípio, livre formação e livre inscrição de filiados (se o partido pode
assenhorear-se do Estado, como sucede em regimes totalitários, é dificil considerar o
partido o chamado partido único de não poucos países subdesenvolvidos da Ásia e de
África organizado pelo governo para servir

- 1.

de instrumento de animação civica e social);

c) Permanência por tempo indefinido, sem se circunscrever a circunstâncias ou acto


determinados (caso das comissões eleitorais ou de grupos de cidadãos eleitores que só
aparecem durante as eleições para promover candidaturas);

267
d) Serviço do interesse geral à luz das concepções perfilhadas pelos seus membros, ou
capacidade de definição de objectivos de política geral (o partido pode servir
interesses sectoriais, profissionais ou regionais, mas tem sempre de os enquadrar
numa visão dos interesses gerais; não é partido o grupo de pressão);

e) Dependência do apoio popular, sobretudo eleitoral, e acção de doutrinação e


propaganda para o obter - de onde uma relação dialéctica constante (o partido
conscientiza e canaliza aspirações, ideias e sentimentos presentes na colectividade e,
ao mesmo tempo, contribui para a formação ou para a manifestação de aspirações,
ideias e sentimentos coincidentes com a sua mensagem).

54. ORIGEM E EVOLUÇÃO

1 - Fenômeno ligado ao Estado constitucional contemporâneo, o partido político em


sentido restrito não surgiu logo que ele substituiu o Estado absoluto. Só despontou
quando as instituições representativas se consolidaram e como exigência do seu
funcionamento’.

No tempo da Revolução Francesa, por exemplo, não terá havido senão clubes
políticos (girondinos, jacobinos e outros). Precursores dos partidos são, todavia, já os
tories e os whigs, na Inglaterra, dos séculos XV11-XVIII e os grupos de federalistas e
de republicanos surgidos aquando da formação dos Estados Unidos.

1. Cfr. M.ARCELO REBELO DE SOUSA, Ospartidos..., cit, págs. 19 e segs.

268

As primeiras estruturas partidárias completas, da base à cúpula, recortam-se quase na


mesma altura em ambos estes países, entre 1825 e 1835. Nos Estados Unidos, além de
condições de momento propícias, elas decorrem naturalmente do primacial papel da
eleição na vida pública do país a todos os níveis. Quanto à Grã-Bretanha, são as
reformas eleitorais (a primeira das quais data de 1832) que levam, sobretudo, certos
sectores whigs a constituir associaçoes para a inscrição nos cadernos eleitorais dos
cidadãos com direito de voto.

De um modo geral, o advento dos partidos europeus vem conexo com a extensão do
direito de sufrágio na segunda metade do século XIX. Os partidos tomam-se
necessários para enquadrar um número crescente de eleitores e para estabelecer as
relações entre estes e os Deputados, e resultam, o mais das vezes, da integração de
comissões eleitorais com grupos parlamentares (noutros casos têm origem
extraparlamentar, fundados por sindicatos, Igrejas, associações secretas, grupos
económicos, etc.).

11 - 0 século XX assiste ao reforço do papel dos partidos e também a algumas


transformações. Ao passo que os partidos oitocentistas eram partidos de quadros ou
notáveis, os partidos actuais tendem a ser partidos de massas (entre outras causas,
devido ao sufrágio universal, à ligação com os sindicatos e à publicização da vida
social). Ao passo que os partidos oitocentistas reflectem uma estrutura social
aparentemente homogénea e a adesão a valores comuns,
269
os partidos novecentistas, mesmo se interclassistas, revelam clivagens sociais e,
sobretudo, antagonismos ideológicos.

A ideia de partido dir-se-ia implicar a concorrência na disputa do poder e a sucessão


ou altemância no exercício deste, consoante os resultados das eleições. Os regimes de
novo tipo posteriores a
1917 afastam a concepção pluralista: as ditaduras suprimem os partidos. Logicamente,
por recusarem a legitimidade eleitoral; e os partidos de vocação totalitária, quando
alcançam o governo, destroem todos os outros. 0 regime de partido único aparece com
o partido comunista soviético, obra de LENINE, e é transplantado para a Itália
fascista, para a Alemanha nacional-socialista e para muitos outros países; hoje, porém,
depois das vicissitudes dos últimos anos, está manifestamente em crise tanto na
Europa como fora da Europa.

55. PARTIDOS E SISTEMAS POLíTICOS

1 - Partido e sistema político influem-se reciprocamente.

Nas democracias pluralistas, os partidos exprimem, simultaneamente, o princípio da


liberdade política, o reconhecimento da diversidade de correntes de opinião pública e
a solidariedade dos indivíduos ao exercerem direitos políticos. Nos regimes
totalitários, as liberdades públicas e a ordem político -constitucional esgotam-se no
partido único; só se concebe expressão de ideias no
270

interior dele; as decisões fundamentais do Estado dimanam do aparelho do partido, e


não do aparelho forinal do Estado; a interpretação da Constituição faz-se segundo as
suas directrizes. A meio caminho ficam os regimes autoritários.

Correspondem a tipos diferentes o partido do pluralismo, que tem de concorrer com


outros partidos, e o partido único ou hegemónico que se identifica com o poder. Por
outro lado, a estrutura e as funções dos partidos afectam os regimes e as formas de
governo directamente: a democracia representativa possui instituições distintas das da
forma de governo leninista (como se sabe).

0 cerne da democracia pluralista ou liberal consiste no direito de todos os partidos de


acederem ao poder, mediante eleições, e no reconhecimento da liberdade de acção
política da oposição. A maioria constitui então Governo e a minoria fica na oposição
para a fiscalizar. Mas a minoria de hoje pode vir a ser a maioria de amanhã, e vice-
versa.

11 - Não surpreende, por isso, que se diga que é o sistema de partidos - ou forma e
modalidade da existência ou coexistência dos partidos’ - que melhor ou mais
ostensivamente, na nossa época, permite captar o sistema político de um qualquer país

1. MAURICE DUVERGER, op. cit, pág. 233.

271
Continuam a dominar os esquemas interpretativos a partir do número de partidos: sistemas
monopartidários, bipartidários (perfeitos e imperfeitos) e multipartidários (atomizados ou não). Mas
não parece que o critério numérico baste: é necessário atender ainda à força relativa dos partidos, ao
seu grau de aproximação ou distanciamento e ao papel que efectivamente desempenham’.

1. A mais brilhante análise nesta linha é talvez a de SARTORI (Parties and Party systems, cit., págs.
119 e segs.), para quem o número não é importante só por si (só o é enquanto afecta a mecânica ou o
funcionamento do sistema) e que considera também os conceitos de pólo, polaridade (estado do
sistema) e polarização (processo).

SARTORI começa por discernir sete sistemas de partidos, segundo um critério numérico: 1.2) de
partido único; 2.2) de partido hegemónico; 3.9) de partido predominante; 4.) de bipartidarismo; 5.L) de
pluralismo (multipartidarismo) limitado; 6.9) de pluralismo (multipartidarismo) extremo; e, 7.2) de
atomização.

Assim como enuncia diferentes estruturas de poder: 1.2) monopólio;


2.9) hierarquia; 3.2) concentração unimodal; 4.2) pouca fragmentação e(ou) seginentação
despolarizada; 5.L) fragmentação alta com polarização.

Contrapõe, de seguida, sistemas competitivos - sistemas pluralistas polarizados e moderados, sistemas


bipartidários e sistemas de partido dominante - a sistemas não competitivos - de partido único e de
partido hegemónico. E chega ao seguinte esquema:

Unipartidarismo/Sistemas unipolares/Monopartidarismo

Partido hegemónico (Partido predominante)

Bipartidarismo - sistemas -

bipolares

Multipartidarismo Polipartidarismo moderado

Multipartidarismo (sistema atomizado)

sistemas multipolares J
272

A diversidade de sistemas de partidos depende, por seu turno, de múltiplos factores: das estruturas
sociais de cada país, das suas tradições e cultura política, das normas constitucionais e legais. Muito
importante é, como vimos, a relação entre sistema eleitoral e sistema de partidos relação recíproca, e
não só num sentido, pois a escolha deste ou daquele sistema eleitoral faz-se em função do sistema de
partidos que preexiste ou que se pretende constituir’.

56. 0 TRATAMENTO CONSTITUCIONAL

DOS PARTIDOS

I - 0 Direito público do século XIX, naturalmente, ignorava os partidos políticos - quer por causa do
seu menor relevo então, quer por causa de uma postura menos favorável às associaçoes em geral ou da
concepção, dominante no liberalismo, de uma ordem político-social tanto mais idónea quanto menos
sujeita a intervençao ou regulação pelo Estado.

Pelo contrário, as leis e, muitas vezes, também as Constituições do século XX, cuidam dos partidos sob
múltiplos aspectos, seja no âmbito dos direitos fundamentais, seja no da organização do poder político
ou num e noutro; e conferem-lhe um estatuto

1. Cfr., por todos, DOMENICO FISICHELLA, Sviluppo democratico e sistemi elettorali, cit., págs.
109 e segs.; DIETER NOBLEN, Sistemas electorales del mundo, cit., págs. 161 e segs.

273
peculiar, mesmo se não os conformam como pessoas colectivas públicas ou (muito menos) como
órgãos do Estado’. Constem ou não da Constituição forinal, eles inscrevem-se, necessariamente,

1. Sobre o tratamento constitucional dos partidos políticos, cfr., entre tantos, ROBERT PELLOUX, ”
Les partis politiques dans les Constitutions d’après-guerre”, in Revue du droit public, 1934, págs. 238 e
segs.; SEGUNDO LINARES QUINTANA, Los Partidos Políticos Instrumentos de Gobierno, Buenos
Aires, 1945; PIETRO VIRGA, Il partito nelVordinamento giuridico, Milão, 1948; PASCAL
ARRIGHI, Le Statut des Partis Politiques, Paris,
1948; CARLO ESPOSITO, ”I partiti nella Costituzione italiana”, in La Costituzione italiana - Saggi,
Pádua, 1954, págs. 215 e segs.; C. MORTATI, ”Note introdutive a uno studio sui partiti politici
nell’ordinamento costituzionale italiano”, in Studi in memoria di V E. Orlando, II, Pádua,
1957, págs. 111 e segs.; GUSTAVE PEISER, ”L’institutionnalisation des partis politiques en
République Fédérale Allemande”, in Revue du droit public, 1959, págs. 639 e segs.; FRANCISCO
LEONI, ”A regulamentação do partido político nos países democráticos do Ocidente”, in Revista
Forense,
1966, págs. 43 e segs.; FRANCISCO RUIZ MASSIEU, Normación constitucional de los partidos
políticos en America Latina, México, 1984; GIUSEPPE UGO RESCIGNO, ”Alcune considerazioni sul
rapporto partito-statocittadino”, in Séritti in onore di Costantino Mortati, 111, Milão, 1977, págs. 957 e
segs.; OTTO BACHOF, 0 direito eleitoral e o direito dos partidos políticos na República Federal da
Alemanha, Coimbra, 1982; PAOLO RIDOLA, ”Partiti politici”, in Enciclopedia del Diritto, XXX11,
1982, págs. 66 e segs.; CESARE PINELLI, Discipline e controlli sulla Vemocrazia interna” dei partiti,
Pádua, 1984; PILAR DEL CASTILLO VERA, La financiación de partidos y candidatos en las
democracias occidentales, Madrid, 1985; n.2 3 do ano VIII, Dezembro de 1988, de Quaderni
Costituzionali; Derecho de partidos, obra colectiva coordenada por JOSt JUAN GONZALEZ
ENCINAR, Madrid, 1992; ALESSANDRO SOMMA, Aspetti della disciplina dei partiti
nell’ordinamento tedesco: dal BGB al Parteiengesetz, in Política del Diritto, 1993, págs. 67 e segs.

274

na Constituição material: a ideia de Direito da democracia representativa é indesligável daquilo a que


se tem chamado um Estado de partidos.

11 - Não se trata apenas do reconhecimento dos partidos, de uma garantia institucional da existência
dos partidos políticos. Trata-se, por imperativos de liberdade, igualdade e transparência da vida política
(ou, se se quiser, do mercado político) ou por decorrência de determinados princípios constitucionais,
de regras mais ou menos numerosas e minuciosas sobre requisitos de formação e registo, sobre
condição dos membros, sobre relações com outras entidades, sobre financiamento e fiscalização de
receitas e despesas, sobre intervenção nos processos eleitorais (desde o recenseamento e a apresentação
de candidaturas às campanhas eleitorais e às operações de apuramento), sobre outros direitos de
participação política, sobre inserção nos órgãos constitucionais.

Se a regulamentação externa (da actividade dos partidos) não levanta dificuldades de maior, já a
regulamentação interna tem por limite o respeito pela autonomia de cada partido e, portanto, a própria
garantia da liberdade de associação partidária. Não se afigura fácil compatibilizar aí duas exigências:
por um lado, a coerência com o princípio democrático - de onde, a transposição para a estrutura interna
de cada partido, para a formação da sua vontade e para a garantia dos direitos dos militantes, das regras
básicas que pautam a dinâmica da comunidade estatal; por outro lado, a coerência com o princípio
liberal, que tende a deixar a cada partido a livre
275
organização da sua vida interna e a adequação aos fins (desde que não sejam
penalmente ilícitos) que se propõem’.

0 que se afigura in limine de afastar, em regime pluralista, vem a ser a


institucionalização ideológica-programática, a integração do partido no sistema
político da Constituição, a não contradição dos seus fins com os princípios e os
fins da Constituição. Algumas Constituições (vg., a de Bona) prevêem-na, sem
grandes resultados Práticos, sob pena de se ferir a essência do regime. Pois se a
democracia pluralista é, por definição, democracia aberta a todos os conteúdos e a
todas as ideias políticas, não há que procurar qualquer credencial para qualquer
partido na Constituição; cabe somente fazer que os partidos observem as regras
constitucionais de concorrência política, o que dependerá não tanto de meios
preventivos ou repressivos quanto da cultura cívica e da consciência jurídica
colectiva.

111 - Discutível é a natureza jurídica dos partidos em face dos ordenamentos


constitucionais que os institucionalizam.

A sua fortíssima relevância não parece justificar, porém, em democracia


representativa, convertê-los nem em pessoas colectivas

1. Sobre democracia interna dos partidos, cfr., por todos, G. LEIBI---1OLZ, 0


pensamento democrático .... cit., págs. 42 e segs ou G. RIDOLA, Le regole
costituzionali del pluralismo político e la prospettive del diritto dei partiti, in
Giurisprudenza Costituzionale, 1993, n.2 4, págs. 2963 e segs.

2. Para maior desenvolvimento, v. JORGE MIRANDA, op. cit., IV, págs. 277 e segs.,
e autores citados.

276

de direito público, nem, muito menos, em órgãos do Estado. Serão, sim, associações
de Direito constitucional, pessoas colectivas de direito privado (porque fundadas no
princípio da liberdade de associação e desprovidos de poderes de autoridade) mas com
estatuto específico constante de normas constitucionais’.

57- OS PARTIDOS EM PORTUGAL ANTES DE 1974

1 - Na monarquia constitucional portuguesa houve organizações chamadas partidos,


mas pouco definidas ideologicamente, com reduzido número de membros e com
deficiente estruturação: eram essencialmente agrupamentos criados de cima para
baixo, dependentes do exercício e das vantagens do poder e com ramificações
identificadas com os caciques locais.

0 rotativismo subsequente à Regeneração, apesar de ter propiciado ao País um período


de estabilidade e de progresso material em liberdade, não poderia, por isso, assimilar-
se ao sistema britânico (até por causa das intervenções do Rei, dotado do poder
moderador). Mas a desagregação dos partidos dinásticos arrastaria consigo a própria
queda da instituiçao monarquica.
1. Cfr., sobre o assunto, cfr., entre nós, GOMES CANOTILHO, Ordem
Constitucional, Direitos fundamentais e partidos políticos, in Nação e Defesa, Abril-
Junho de 1979, pág. 98;, MARCELO REBELO DE SOUSA, Ospartidos ..., cit., págs.
80 e segs. e 522 e segs.

2. Cfr. JOSÉ TENGARPiNI-IA, ”Rotativismo”, in Dicionário da História de


Portugal, 111, 1968, págs. 694 e segs.; MARCELLO CAETANO, Manual de Ciên-
277
11 - A primeira república foi implantada por obra de um partido, o partido
republicano, de estrutura diferente da dos anteriores partidos e apoiado,
principalmente, na pequena e média burguesia urbana. Esse partido (dito também
democrático) seria hegemónico, salvo em brevíssimos intervalos, sem que isso,
porém, impedisse (devido não tanto a dissidências quanto a lutas de facções e a
factores externos) a sucessão de crises parlamentares e ministeriais’.

111 - A ditadura militar de 1926 surgiu em reacção contra o domínio do partido


republicano ou democrático. Depois, com Salazar, seriam todos os partidos que
ficariam proscritos.

0 específico da concepção de Salazar sobre a organização político-constitucional seria


mesmo a ideia de um Estado representativo sem partidoS2 , assente, por um lado,
numa postura orgânico-corporativa sobre a essência da Nação3 e sobre o papel do
cidadão e, por outro lado, numa crítica radical aos maleficios do sistema de partidos’.
Um Estado sem partidos, em contraposição quer ao

cia Política e Direito Constitucional, II, cit., págs. 443 e segs.; MARCELO REBELO
DE SOUSA, Os partidos.--- cit., págs. 147 e segs. e 157 e segs.; JORGE MIRANDA,
Manual.... cit., pág. 278.

1. Cfr., por todos, MARCELO REBELO DE SOUSA, op. cit., págs. 167 e segs. (fala
em multipartidarismo de partido dominante).

2. AFONSO QUEIRó, Partidos e partido único no pensamento político de Salazar,


Coimbra, 1970, pág. 12.

3. Ibidém, págs. 7-8.

4. Cfr., por todos, MARCELLO CAETANO, Direito Constitucional, 1, cit., págs. 450
e segs.

278

Estado pluripartidário ocidental, quer ao Estado de partido único, soviético ou


fascista, eis o que se pretenderia.

A Constituição de 1933 parecia pressupor o reconhecimento dos partidos políticos,


quando estipulava que os funcionários públicos estavam ao serviço da colectividade e
não de qualquer partido ou organização de interesses particulares (art. 22.2)1.
Todavia, se nenhuma lei os vedaria expressa e taxativamente, o regime legal da
liberdade de associação conduziria ao mesmo resultado, na medida em que, ao arrepio
do art. 8.`, n.!’ 14, da Constituição, sujeitava a formação de quaisquer associações
políticas a autorização2 - a autorização administrativa que nunca seria concedida.

Poderia falar-se num verdadeiro costume constitucional contra legem (ou, pelo
menos, praeter legem), estribado na convicção Jurídica e política ligada à ideologia e
exibido numa constante prática legal, jurisprudencial e administrativa3.

0 regime teve, porém, necessidade de criar uma associação cívica de apoio, cujo
papel mais significativo viria a ser o de apresentar Ou patrocinar candidatos às
eleições - presidenciais,

1 . Cuja fonte terá sido o art. 130.2 da Constituição de Weimar, de resto habitualmente
considerado (a par do art. 124.1’, 2.a parte) um dos primeiros preceitos constitucionais
que procederam à institucionalização dos partidos políticos.

2. V., designadamente, o Decreto-Lei nY 39.660, de 20 de Maio de 1954.

3. Contra: MARCELO REBELO DE SOUSA, op. cit., págs. 223 e segs., maxime
págs. 231-232.

279
parlamentares e locais - que realizou com toda a regularidade (embora sem valor
substantivo): foi a União Nacional, depois Acção Nacional Popular, tendo sempre
como presidente de comissão central, salvo entre 1968 e 1970, o Presidente do
Conselho de Ministros (que também por essa via, como se verificou especialmente em
1958, dominava o Presidente da República). A fraquíssima consistência desta
organização, a sua criação pelo próprio poder político e a sua reduzidíssima actividade
não permitem qualificá-la como partido

58. OS PARTIDOS APóS 1974

l - Logo após 25 de Abril de 1974, os partidos - fossem partidos clandestinos de antes


da revolução ou partidos recém-constituídos -, emergiram em força, penetraram ou
tentaram penetrar em todos os sectores da vida social e acabaram por alcançar, no
termo do período revolucionário e constituinte, toda a iniciativa política.

1. Cfr. MARCELLO CAETANO, Manual .... cit., 1, 1970, págs. 389-390, nota;
MARCELO REBELO DE SOUSA, op. cit., págs. 180 e segs.; ARLINDO M.
CALDEIRA, ”A União Nacional: antecedentes, organização e funções”, in Análise
Social, n.2 94, 1986, págs. 343 e segs.; MANUEL BRAGA DA CRUZ, Opartido e o
Estado no salazarismo, Lisboa, 1988, maxime págs. 127

e segs.

280

Anunciados em largo número, viriam a reduzir-se progressivamente, perante as


exigências de institucionalização e de competição (ainda que alguns outros tenham
surgido, de novo, entretanto). E seriam os que, efectivamente, conseguiram formar-se
e implantar-se os que mais se aproximam do conceito restrito de partido há Pouco
proposto, quer pelo alargamento de base de apoio, quer pela complexidade de
estrutura, quer pela latitude de fins que prosseguem. Denotam-se, no entanto, ainda
fragilidades, manifestadas na dependência da repartição de cargos públicos e de
financiamentos privados.

11 - 0 sistema até agora tem funcionado a partir de três partidos que participaram nos
Governos provisórios - o Partido Socialista, o Partido Popular Democrático (hoje
Social-Democrata) e o Partido Comunista - e ainda do Centro Democrático Social
(hoje Partido Popular); e tem girado, desde 1976, sobretudo à volta dos dois
primeiros, os partidos centrais e maiores do espectro político. Outros partidos, de
muito menos vulto (excepto o Partido Renovador Democrático entre 1985 e 1987), só
episodicamente têm conseguido representação parlamentar.

Houve até hoje treze Governos constitucionais, com diversas incidências partidárias:

1.1’ - Governos minoritários do Partido Socialista (o primeiro d

écimo-terceiro) e do Partido Social-Democrata (o décimo);

281
2.2 - Governos maioritários do Partido Social-Democrata (o décimo primeiro e o
décimo segundo);

3.2 - Governo de coligação não formal do Partido Socialista e do Centro Democrático


Social (o segundo);

4.9 - Governos de coligação (Aliança Democrática) do Partido Social-Democrata, do


Centro Democrático Social e do Partido Popular Monárquico (o sexto, o sétimo e o
oitavo);

5.2 - Governo de coligação (bloco central) do Partido Socialista e do Partido Social-


Democrata (o nono);

6.2 - Governos sem base partidária, ditos de intervenção presidencial (o terceiro, o


quarto e o quinto).

Nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira o Partido Social-Democrata obteve


repetidas maiorias absolutas. Nos municípios, as maiorias (absolutas ou relativas)
têm-se distribuído pelos quatro principais partidos’.

1. Sobre o actual sistema partidário, cfr. SANTANA LOPES e DURÃO BARROSO,


Sistema de governo e sistema partidário, Lisboa, 1980; MARCELO REBELO DE
SOUSA, op. cit., págs. 233 e segs.; JOAQUIM AGUIAR, A ilusão do poder - Análise
do sistema partidário português,
1976-1982, Lisboa, 1983; Portugal - 0 sistema político e constitucional -
1974-1987, obra colectiva, Lisboa, 1989, págs. 71 e segs.

282

59- A INSTITUCIONALIZAÇÃO DOS PARTIDOS EM PORTUGAL

1 - A mais remota forma de institucionalização constitucional dos partidos no Direito


português foi a operada pela Lei n.2 891, de
22 de Setembro de 1919, ao constituir um Conselho Parlamentar que o Presidente da
República devia consultar em caso de disso-

amaras e que

lução das C^ seria eleito pelo Congresso de forma a


44nele estarem representadas todas as correntes de opinião”, segundo certa proporção
(art. L2, n.2 10 e § 1.2 a § 4.2).

Quase no final da vigência da Constituição de 1933, um caminho tímido de


reconhecimento de pluralismo foi a admissibilidade pelo Decreto-Lei n.9 49.229, de
10 de Setembro de 1969, de comissões eleitorais ou comissões de apoio as
candidaturas a Deputados à Assembleia Nacional e que deveriam dissolver-se logo
que concluído o processo eleitoral.

0 Programa do Movimento das Forças Armadas apenas aludia a associações políticas,


44possíveis embriões de futuros partidos políticos” [B.5,b)] e a Lei n.2 3/74, de 14 de
Maio, a ”grupos e correntes políticas” (art. 7.9, n.!’ 3). Não tardariam, contudo, a ser
objecto de uma lei específica, o Decreto-Lei n.2 595/74, de 7 de Novembro (ainda
hoje no essencial em vigor, por não contrariar as normas constitucionais), além de
virem a ocupar um papel proeminente na legislação eleitoral para a Assembleia
Constituinte (Decretos-Leis n.01 62 1 -A e 62 1 -B/74, de 14 de Novembro).

283
As primeiras normas de força constitucional que se lhes reportaram viriam a ser o art.
1.9 da Lei n.2 4/75, de 13 de Março, ao prever a suspensão da actividade de partidos ”
cujo programa seja contrário ao Programa do Movimento das Forças Armadas ou cujo
comportamento se caracterize pelo incitamento à violência ou pelo seu uso perturbe a
disciplina das forças armadas”, e o art. 4.2, n.2 2, da Lei n.Q 6/75, de 26 de Março, ao
instituir um Conselho de Ministros restrito de que faziam parte os Ministros sem
pasta, ”representativos de cada um dos partidos da coligação governamental”.

Conhecem-se as tentativas de minimização e de redução do leque ideológico que os


partidos sofreram em 1975. Se a Plataforma de Acordo Constitucional os parecia
assegurar como interlocutores válidos do MFA, era ela própria que falava em ”
partidos autenticamente democráticos e empenhados no cumprimento do Programa do
MFA” (A.3) e as cláusulas que lhes diziam respeito eram principalmente restritivas
(C.2, C.6. D4.1 e D.4.2). Para responder a essas tentativas e como reacção contra as
concepções salazaristas é que o Regimento da Assembleia Constituinte’ e,
especialmente, os projectos de Constituição do PS, do PPI) e do C13S1, primeiro, e a
Constituição de 1976, depois, lhes deram tanto desenvolvimento.

1. V. arts. 12.Q, n.9 1, alínea c), 31.2,32.2 e 68.9.

2. Entre os numerosos preceitos atinentes aos partidos salientem-se: no projecto do


PS, os artigos 4.Q e 10.2, fontes dos arts. 1% n.2 3, e 47.% n.2 1 (depois, 10.Q, n.2 2,
e 51.2, n.2 1, respectivamente) da Constituição; no projecto do PPD, o art. L9, n.2 5, e
o art. 30.Q, n.Q 1, também fonte do art. 47.2, n.2 1, da Constituição; e no projecto do
CDS, os arts. 17.2a 25.2, formando um capítulo próprio.

284

11 - Assim, o ”pluralismo de expressão e organização política democráticas” do art.


2.2 da Constituição projecta-se, imediatamente, na contribuição reconhecida pelo art.
10.9, n.2 21, aos partidos - e não a quaisquer outras formações,
organizações ou grupos - ”para a organização e para a expressão da vontade popular”.
E este preceito surge em complemento imediato daquele que estabelece que o povo
exerce o poder através do sufrágio (art.
10.2, n.9 1) - o que sublinha o papel dos partidos na representação política.

0 tratamento de partidos vai dar-se de seguida, quer em sede de direitos, liberdades e


garantias quer ao nível da organização do Estado, segundo as duas perspectivas
reveladas pela comparação. ”A liberdade de associação compreende o direito de
constituir e participar em associações e partidos políticos e de através deles concorrer,
democraticamente, para a formação da vontade popular e a organização do poder
político” - diz, por um lado, o art. 51.2, n.2 1. ”Os partidos participam nos órgãos
baseados no sufrágio universal e directo, de acordo com a sua representatividade
eleitoral” - prescreve, por outro lado, o art. 117.2, n.2 1.

A matéria de associações e partidos políticos inclui-se na reserva absoluta de


competência legislativa da Assembleia da República (art. 167.2, alínea h».

1. Reportamo-nos aos preceitos segundo a localização e os termos subsequentes às


revisões constitucionais de 1982 e 1989.
285
60. PARTIDOS E DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS NA CONSTITUIÇÃO
ACTUAL

1 - Do ângulo dos direitos, liberdades e garantias, o regime dos partidos é, antes de mais, o da
liberdade de associação, positiva e negativa (art. 46.2, n.`s 1 e 3), individual e institucional
(art. 46.P, n.2s 1 e 2).

Enquanto associações (associações especiais de Direito constitucional), os partidos


constituem-se livremente e sem dependência de qualquer autorização (art. 46.9, n.2 1, l.
parte), só com o limite derivado da proibição da violência e de outros fins contrários a lei
penal (art. 46.2, n.9 1, 2. parte). Não são consentidos partidos armados, nem de tipo militar,
militarizados ou paramilitares, nem partidos que perfilhem a ideologia fascista (art. 46.2, n.2
4)’.

Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de um partido nem coagido por qualquer meio a
permanecer nele ( art. 46.2, ri.!’ 3), ou privado do exercício de um direito por estar ou deixar
de estar inscrito em partido legalmente constituído (arts. 51.2, ri.!’ 2,
2. parte, 59.2, n.L> 1, e 269.2, ri.!> 2).

Os partidos prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e
não podem ser dissolvidos ou

1. V. Lei nY64/78, de 6 de Outubro.

286

ter suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial
(art. 46.2, n.2 2).

Acrescem certas regras especiais.

Não podem constituir-se partidos que, pela sua designação ou pelos seus objectivos
programáticos, tenham índole ou âmbito regional (art. 51.% ri.9 4). Os partidos não podem,
sem prejuízo da filosofia ou ideologia inspiradora do seu programa, usar denominação que
contenha expressões directamente relacionadas com quaisquer religiões ou igrejas, bem como
emblemas confundíveis com símbolos nacionais ou religiosos (arts. 51.2, n.Q
3,e295.2).

Ninguém pode estar inscrito, simultaneamente, em mais de um partido político ( art. 5 l.1’,
n.L’ 2, 1.1 parte).

Ao Tribunal Constitucional compete verificar a legalidade da constituição de partidos


políticos e suas coligações, bem como apreciar a legalidade das suas denominações, das suas
siglas e dos seus símbolos, e ordenar a respectiva extinção, nos termos da Constituição e da
lei (art. 225.2, n.9 3, alínea e»’.

1. V. Lei n.Q 28/82, de 15 de Novembro, alterada pelas Leis n.9 143/85, de 29 de Novembro,
e 85/89, de 7 de Setembro.

287
Finalmente, a lei impõe um duplo condicionamento: a inscrição de um partido requer
um número mínimo de cinco mil cidadãos eleitores (art. 5.2, n.2 3, do Decreto-Lei
n.-’ 595/74)1 e um partido é extinto quando o número dos seus filiados se tornar
inferior a quatro mil (art. 2 L9, alínea a»2.

11 - Ainda no domínio dos direitos, liberdades e garantias, refiram-se garantias de


liberdade de filiação partidária; em contrapartida, garantias de isenção perante opções
políticas; e ainda direitos institacionais dos partidos.

Garantias de liberdade de filiação partidária são: a informática não pode ser utilizada
para o tratamento de dados referentes a convicções políticas ou a filiação partidária
(art. 35.% n.2 3) e não pode haver despedimentos por motivos políticos ou
ideológicos (art. 51% 2.1 parte).

Garantias de isenção e, portanto, limites à intervenção dos partidos são: o Estado não
pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer
directrizes políticas e ideológicas (art. 43.2, nY 2); as Forças Armadas são
rigorosamente

1. Já foi posta em causa esta exigência de um número mínimo de cinco mil cidadãos,
mas o Tribunal Constitucional decidiu pela não inconstitucionalidade: acórdãos n.os
367/91 e 368/91, de 28 de Agosto e de 18 de Setembro de 1991, in Diário da
República, 2. série, nY 218, de 21 de Setembro de
1991, e n.2 230, de 17 de Outubro de 1991, respectivamente.

2. Esta segunda regra não tem tido até agora aplicação prática, até porque a lei não
prevê nenhuma forma de verificação.

288

aPartidárias (art. 275.95 n.2 4); a lei pode estabelecer restrições

ao direito de associação dos militares e agentes militarizados dos quadros


Permanentes em serviço efectivo (art. 27W3)’; e o inesmo Princípio vale para Os
juizeS2

Para os magistrados do Ministério Público, para o Provedor de Justiça, para os


dirigentes da função pública Ou Para os diplomataS3.

Direitos institucionais dos partidos são o direito de antena na rádio e na televisão e,


quanto aos partidos representados na Assembleia da República e que não façam parte
do Governo, o direito de resposta e de réplica Políticas, de duração e relevo iguais aos
das declarações Políticas do Governo (art. 40.9)4.

61. PARTIDOS E ORGANIZAÇAO Do PODER POLíTICO


1 - Do ângulo da Organização do Poder político, Os partidos relevam na Constituição
em três sedes - a das eleições, a da acção parlamentar e a de certos poderes
qualificados de intervenção Política.

NO tocante às eleições, avultani as regras sobre apresentação de candidaturas e sobre


subsistência do mandato. Decorre do art. 117.2,

1 . V. art. 31.2 da Lei n.Q 29/82, de 11 de Dezembro.

2. V. art. 28.2 da Lei n.2 28/82, de 15 de Novembro, e art. 11 .5?, n.9 1, da Lei n.L>
21/85, de 30 de Julho.

3. V. a justificação em Manual .... ’V, cit-, Págs. 305-306.


4. V. a Lei n.9 36/86, de 5 de Setembro.

289
n.2 1, que os partidos teêm o direito de apresentar candidatos a todas as eleições por sufrágio
directo, salvo quando a Constituição disponha o contrário como sucede com a eleição do
Presidente da República (art. 127Y); esse direito é-lhes reservado quanto à Assembleia da
República, o que não impede que as listas integrem cidadãos não inscritos nos respectivos
partidos (art. 154.2, n.2 1); nas eleições das assembleias de freguesia, a Constituição garante
o direito de apresentação também a grupos de cidadãos eleitores (art. 246.% n.2 2); nas
demais eleições a lei pode ou não estabelecer o exclusivo dos partidos’, 2. Por seu turno,
perde o mandato o Deputado que se inscreva em partido diverso daquele pelo qual foi
apresentado a sufrágio (art. 163.2, n.2 1, alínea c)

Os Deputados à Assembleia da República eleitos por cada partido ou coligação de partidos


podem constituir-se em grupo parlamentar (art. 183.2, n.` 1), o que veda quer o
desdobramento de grupos parlamentares do mesmo partido ou coligação, quer grupos mistos
de diversos partidos ou coligações, quer o agrupamento de

1. Não seria legítimo extrair a contrario do art. 246.9, n.> 2, qualquer conclusão negativa
sobre a possibilidade de outro grupo de cidadãos, além dos partidos, apresentarem
candidaturas nas demais eleições. 0 debate travado na Assembleia Constituinte sobre os
órgãos das autarquias locais em geral apenas demonstra que o legislador constituinte não quis
resolver, ele, nesse sentido o problema: v. 1)iàrio n.11 104 e 105, de 15 e 16 de Janeiro de
1976, respectivamente, pág- 33-,,,, 3416 e segs. e 3431-3432.

2. Na prática, a legislaça,, ,i dinária tem estabelecido esse exclusivo.

3. A lei (mas só a lei) poderia estender esta regra às demais eleições para assembleias
representativas.

290

Deputados independentes, quando os haja. Duvidoso é saber se o grupo parlamentar, como


expressão de um partido, pode compreender um só Deputado’. Nada impede, porém, que em
quaisquer outras assembleias electivas haja organizações análogas, eventualmente com
poderes homólogos.

Os grupos são, com os Deputados, os sujeitos da acção parlamentar 2, e gozam de variados


poderes funcionais ( arts. 183.2,
170.2, 178.2, alínea c), 179.9 e 181.2): participar nas comissões em função do número dos
seus membros, indicando os seus representantes nelas: repartir entre si as presidências das
comissões e, quanto aos quatro maiores grupos, as vice-presidências da Mesa; requerer a
constituição de comissões parlamentares; ser ouvidos na fixação da ordem do dia, interpor
recurso para o Plenário da ordem do dia fixada e determinar a ordem do dia de certo número
de reuniões plenárias; solicitar à Comissão Permanente que promova a convocação da
Assembleia; exercer iniciativa legislativa e de proposta de referendo; provocar, por meio de
interpelação ao Governo, a abertura de dois debates em cada sessão legislativa sobre assunto
de política geral ou sectorial; apresentar moções de rejeição do programa do Governo, bem
como moções de censura.

1. V. o debate sobre o Regimento da Assembleia da República, in Diário, n.Q 7, de 16 de


Julho de 1978, Págs. 120 e segs.

2. Sobre grupos parlamentares, v., por todos, JORGE MIRANDA, ”Grupo parlamentar”, in
Polis, IV, págs. 131 e segs., e autores citados.

291
São, todavia, os partidos representados na Assembleia, e não especificamente os
grupos parlamentares, que devem ser ouvidos pelo Presidente da República
aquando da nomeação do Primeiro-Ministro (art. 190.2, n.> 1) ou da dissolução
da própria Assembleia da República (art. 136.2, alínea b». E todos os partidos
representados em quaisquer assembleias que não façam parte dos respectivos
executivos têm o direito de ser informados, regular e directamente, sobre o
andamento dos principais assuntos públicos (art. 117.9, n.9 2).

São também só os partidos parlamentares - esses e não quaisquer partidos


legalmente constituídos (o que levanta algumas hesitações quanto à
constitucionalidade da solução) - que têm o direito de receber uma subvenção,
proporcional ao número de votos obtido na mais recente eleição de Deputados à
Assembleia da República’.

11 - Por seu turno, a oposição democrática é declarada um verdadeiro direito das


minorias (art. 117.2, W’ 2). E ela compreende não só os já referidos direitos de
resposta e réplica política e de informação mas também a específica interferência
na fixação da ordem do dia, com vista a ressalvar a posição dos partidos
minoritários ou não representados no Governo (art. 179.2, n.2 3, infine)2.

1. Hoje, arts. 63.9 e 66.2 da Lei n.9 77/88, de 1 de Julho.

2. A Lei n.Q 5/77, de 5 de Agosto, sistematizou as principais regras da oposição


parlamentar e aditou dois ou três novos poderes ou direitos.

292

Além disso, são ou podem ser meios de oposição - a empregar, individual ou


colectivamente, pelos Deputados - a sujeição a apreciação de decretos-leis do
Governo (art. 172.1», o pedido de comissões de inquérito, as perguntas,as
interpelações e os pedidos de apreciação preventiva da constitucionalidade de leis
orgânicas (art. 278.2, n.2 4), e, naturalmente, só a oposição apresenta moções de
rejeição do programa do Governo e moções de censura.

111 - A par da projecção dos partidos na organização do poder político, é


perfeitamente plausível pensar na projecção da organização do poder político na
organização interna dos partidos.

Uma forma equilibrada de ultrapassar o problema (há momentos evocado) da


conciliação do postulado da autonomia interna com o da democraticidade - tendo em
conta até a experiência, nem sempre positiva, de congressos partidários - poderia
consistir em submeter os partidos aos princípios gerais de Direito eleitoral prescritos
na Constituição. Nem se compreenderia que fossem prescritas regras acerca das
eleições das comissões de trabalhadores e dos dirigentes sindicais (arts. 54.Q, &> 2 e
55.2, ri.9 3, atrás citados) e fosse constitucionalmente irrelevante a eleição de
dirigentes dos partidos, dotados de tão fortes poderes ou direitos de intervenção na
vida do Estado.

Não se trataria de lhes estender, pura e simplesmente, a legislação eleitoral. Tratar-se-


ia, sim, de repercutir na lei dos partidos os princípios constitucionais (eventualmente,
com adaptações), de
293
modo a ultrapassarem-se quaisquer dúvidas sobre a sua obrigatoriedade e, por
conseguinte, sobre a necessidade de os estatutos os consagrarem e
concretizarem’.

62. PARLAMENTO, DEPUTADOS E PARTIDOS

1 - Adopte-se a representação proporcional ou a maioritária, reserve-se ou não aos


partidos o exclusivo da apresentação de candidaturas, em todos os países
democráticos são os deputados eleitos por partidos que ocupam a totalidade ou a
quase totalidade dos luga-

1. Assim, designadamente:

a) Prescrição de voto exclusivamente individual, e não mais de voto por célula, secção
ou organização;

b) Proporção entre o número de representantes a eleger por cada estrutura de base e o


número de militantes nela inscritos;

c) Incapacidades eleitorais activas e passivas somente com fundamentos de carácter


geral expressamente constantes de normas estatutárias;

d) Possibilidade de conhecimento dos cadernos eleitorais, em prazos razoáveis, por


todos os candidatos;

e) Garantias de liberdade e igualdade das candidaturas, com neutralidade e


imparcialidade do aparelho partidário;

g) Representação proporcional nas assembleias de todos os graus; h) Eleição directa


dos dirigentes em todos os graus;

i) Após esgotamento de meios internos, garantia do acesso a tribunal para apreciação


da validade dos actos eleitorais.

V. o nosso artigo Por um direito eleitoral dos partidos, in Público, de 19 de Fevereiro


de 1995.

294

res dos Parlamentos. E, ainda que em círculos uninominais como em Inglaterra o


contacto eleitor-deputado seja muito mais forte do que aquele que pode dar-se em
círculos plurinominais com sufrágio por lista como sucede em Portugal (mas também
nas demais democracias europeias, com excepção da França), mesmo ali os deputados
aparecem enquadrados por organizações partidárias - tal como, em contrapartida, não
deixa nunca de ser relevante o factor pessoal na escolha dos candidatos e na sua
colocação nas listas nos países de representação proporcional.

Que relação deve haver, porém, entre deputados e partidos? Qual o grau de autonomia
de cada Deputado enquanto membro do Parlamento? Como inserir os Deputados
eleitos pelos diversos partidos uns em face dos outros, formando todos uma mesma
câmara? E como proceder em caso de conflito’9
Il - Uma tese radical tenderia a afirmar que a representação política se converteu em
representação partidária, que o mandato verdadeiramente é conferido aos Partidos e
não aos deputados e

1. Cfr., por exemplo, G, LEIBHOLZ, Démocratie représentative et État de partie


moderne, cit., loc. cit., págs. 54 e 59 e segs., e entrevista a Quaderni Costituzionali,
1981, págs. 482 e 483; K.C. ~ARE, Legislatures, 2. ed., Londres, 1968, págs. 43 e
segs.; RICARDO CHUECA RODRIGUEZ, ”La representación como posibilidade en
el Estado de partidos”, in Revista de Derecho Publico, 1988, págs. 25 e segs.;
ANTóNIO PORRAS NADALES, Representación y democracia avanzada, Madrid,
1994.

295
que os sujeitos da acção parlamentar acabam por ser não os deputados, mas os
partidos ou quem aja em nome destes. Por conseguinte, deveriam ser os órgãos dos
partidos a decidir, com maior ou menor democraticidade ou com maior ou menor
centralismo democrático, sobre as orientações de voto dos deputados, sujeitos estes a
uma obrigação de fidelidade a que não poderiam escusar-se senão em casos-limite de
consciência.

Esta concepção ignora que, embora propostos pelos partidos, os deputados são eleitos
por todos os cidadãos e não apenas pelos militantes ou pelas bases activistas dos
partidos, que neles avultam uma dimensão sócio-profissional e uma dimensão
regional e que juridicamente representam todo o povo. Levada às últimas
consequências, com as comissões políticas ou os secretariados, exteriores ao
Parlamento, a dizer como os deputados haveriam de votar, essa concepção
transformaria a assembleia política em câmara corporativa de partidos e retirar-lhe-ia
a própria qualidade de órgão de soberania, por afinal deixar de ter capacidade de livre
decisão. Somente regimes totalitários ou p .artidos totalitários, e não aqueles que se
reclamam da democracia representativa e pluralista, a poderiam, aliás, adoptar:
porque, se a democracia assenta na liberdade política e na participação, como admitir
que nos órgãos dela mais expressivos, os Parlamentos, os Deputados ficassem
privados de uma e outra coisa?

0 entendimento mais correcto, dentro do espírito do sistema, parece dever ser outro. A
representação política hoje não pode deixar de estar ligada aos partidos, mas não
converte os Deputa-

dos em meros porta-vozes dos seus aparelhos. Pode dizer-se que o mandato
parlamentar é (salvo em situações marginais) conferido tanto aos Deputados como aos
partidos; não é aceitável substituir a representação dos eleitores através dos eleitos
pela representação através dos dirigentes partidários, seja qual for o modo por que
estes são escolhidos. E, se em partidos fortemente ideológicos correspondentes a bem
identificadas minorias políticas como os colocados em extremos do espectro
político, não será muito grande o desfasamento entre eleitores e militantes, já nos
restantes partidos ele será acentuado; e cabe perguntar se os Deputados eleitos pelas
listas de um partido estão mais vinculados aos militantes do que aos cidadãos
eleitores, ou se têm mais base de apoio os órgãos representativos de 100.000 ou os
Deputados votados por 1 milhão.

Dando como certo o carácter bivalente da representação política, é preciso procurar o


enlace, o ponto de encontro específico dos Deputados e partidos. Ora, esse enlace não
pode ser senão o que oferecem os grupos parlamentares como conjuntos dos
Deputados eleitos pelos diversos partidos. São os grupos parlamentares que exercem
as faculdades de que depende a actuação dos partidos nas assembleias políticas e só
eles têm legitimidade democrática para deliberar sobre o sentido do seu exercício, não
quaisquer outras instâncias ou centros de decisão extraparlamentares. E por aqui se
afastam quer uma pura concepção individualista vendo o Deputado isolado ou
desinserido de uma estrutura colectiva quer uma pura concepção partitocrática em que
os homens dos apa-

296

297
relhos ou as bases se sobrepusessem aos deputados e aos seus eleitores.

Nem se excluem, assim, os corolários mais importantes do regime de eleição


mediatizada pelos partidos, designadamente quanto à disciplina de voto ou à perda de
mandato do deputado que mudar de partido. Pelo contrário, coloca-os à sua verdadeira
luz que em sistema democrático, só pode ser a da liberdade e da responsabilidade
políticas. Pois, se os grupos parlamentares implicam uma avançada institucionalização
dos partidos, são, ao mesmo tempo um anteparo ou um reduto da autonomia
individual e colectiva dos deputados - dos deputados que, por serem eles a deliberar,
mais obrigados ficam a votar, salvo objecção de consciência, confonne a maioria se
pronunciar.

Que, não obstante, possam surgir divergências entre os grupos parlamentares e


outros órgãos dos partidos, não se exclui a priori. Mas serão concretas e pontuais e
não degenerarão em conflitos, desde que se verifiquem autenticidade na vida interna
dos partidos e constante diálogo (eventualmente, por meio de comissões mistas ou de
reuniões alargadas) e desde que os principais dirigentes partidários sejam também
deputados - como deverão ser, se quiserem prestigiar a instituição parlamentar - e
participem nos trabalhos dos grupos parlamentares (mesmo se não escolhidos
directamente pelos deputados dos respectivos partidos, como sucede em Inglaterra).
Só um partido em crise conhecerá oposição permanente entre o partido oficial e o
partido parlamentar.

298

111 - É esta maneira de encarar o mandato dos deputados a que talvez melhor se
hannoniza com as regras que sobre o assunto, directa ou indirectamente, constam da
Constituição portuguesa’.

A representação de todo o povo conferida aos deputados está patente na definição da


Assembleia como assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses (art.
150.2) e no princípio de que os deputados representam todo o país e não os círculos
por que são eleitos (art. 152.9, n.2 3). Daí o seu estatuto como titulares de um órgão
de soberania (art. 156.2 e segs.), e não como comissários ou funcionários dos partidos.

Por outra banda, sem esquecer a regra da apresentação de candidatos só pelos partidos
(citado art. 154.2, n.9 1), como a Constituição autoriza a existência de deputados não
inscritos em nenhum partido - quer porque desde logo assim tenham sido propostos
como candidatos (art. 154.2, n.’ 1), quer porque, tendo saído do partido por que foram
eleitos, não tenham entrado para outro (art. 163.2, n.2 1, alínea c» - ressalta a distinção
entre a função dos partidos e a dos deputados e concede-se mesmo que, em caso de
ruptura, o deputado prevalece sobre o partido (se bem que outras razões possam impor
a renúncia ao mandato). Tão pouco têm os partidos qualquer meio de substituir os
deputados durante a legislatura: tal substituição faz-se nos termos da lei

1. Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, Os partidos .... cit., págs. 512 e segs.; ou
ANTóNIO COSTA, ”A natureza jurídica do mandato parlamentar”, in Revista
Jurídica, n.2 5, Janeiro-Março de 1986, pág. 156.

299
eleitoral e, quando temporária, é um direito dos deputados, e não dos partidos
(art. 156.2, nY 2).

A Lei Fundamental define os poderes dos partidos, dos Deputados e dos grupos
parlamentares; e, ao passo que os poderes constitucionais dos partidos - há
Pouco indicados - são exteriores à Assembleia, os poderes da interferência na
actividade desta ou são dos deputados individualmente considerados (art. 159.1’)
ou são dos grupos parlamentares (art. 183.9). Sem os deputados e os grupos
parlamentares os partidos não podem agir no Parlamento.

A prática (acentuada desde 1979) não tem salvaguardado, contudo, plenamente a


liberdade de acção dos Deputados e dos grupos, num Parlamento crescentemente
dominado pelos partidos’.

63. A CONDIÇÃO DOS CIDADÃOS NÃO INSCRITOS EM PARTIDOS

1 - Ainda que se encontre resolvido ou atenuado no sentido que preconizamos o


problema da relação entre Deputados e partidos, resta outra questão de não menor
importância: a dos direitos políticos dos cidadãos não inscritos em quaisquer partidos.

1. Cfr. MANUEL BRAGA DA CRUZ e MIGUEL LOBO ANTUNES, ”Parlamento,


partidos e governo - acerca da institucionalização política”, in Portugal- 0 sistema...,
págs. 351 e segs.

300

Evidentemente, quaisquer cidadãos podem constituir partidos, entrar para partidos já


exisfentes ou aceitar candidatar-se (mesmo sem serem militantes) em listas
partidárias, mas a experiência - em Portugal, como na generalidade dos países -
mostra que. o número de cidadãos inscritos em partidos é muito pequeno, não vai
além de
5% ou 6% do eleitorado, e são sempre escassas as possibilidades de independentes
conseguirem obter lugares elegíveis nas listas. Ora, tendo em conta a extensão dos
direitos e poderes concedidos pela Constituição e pela lei aos partidos, daqui não
resultam desigualdades efectivas? Porque só os filiados participam na tomada de
decisões dos partidos - mormente, na designação de candidatos a cargos políticos,
electivos ou não electivos - não vêm a ficar numa condição de superioridade frente
aos demais cidadãos?

Formulada a pergunta nestes termos, antolha-se que a resposta não pode ser senão
uma: desigualdades, ou algumas desigualdades, são inelutáveis, na medida em que
não se descortina (e tem-se procurado, por vezes, em vão) nenhum mecanismo que
evite ou que desempenhe melhor a tarefa cometida aos partidos de formação e
expressão de opções políticas (tanto mais necessariamente simplificadas quanto mais
complexas se tomam as sociedades). Assim como é legítimo entender que, implicando
igualdade o tratamento adequado ou proporcional à diferença de situações, se justifica
reconhecer aos militantes de partidos um grau maior de intervenção constitucional
porque eles mostram também um grau mais elevado de interesse, iniciativa e
participação política.

Tudo estará, de harmonia com os princípios, em garantir plenamente os direitos dos


militantes, reagindo às tentativas oligo-
301
cráticas ou até monocráticas presentes ou latentes nos partidos pois não faz sentido um
Estado de Direito democrático ser tão escru-

puloso com os direitos dos cidadãos em geral e ficar indiferente perante as violações dos
direitos fundamentais de cidadãos dentro dos partidos’ (embora não possa exceder os limites,
atrás aflorados, de não interferência na autonomia interna dos partidos); e é de supor que
quanto maior for tal garantia maior será a abertura da sociedade aos partidos e maior o
número de cidadãos que neles entrarão ou com eles colaborarão.

Tudo estará ainda, como resulta óbvio (mas não é fácil de alcançar), em que os direitos e as
interferências dos partidos não extravasem da esfera político -constitucional para outras
áreas, como a função pública, a da economia ou a das escolas.

11 - Apesar de todo o relevo que confere aos partidos, a Constituição portuguesa deixa
abertas formas muito significativas e ricas de arejamento do sistema político.

Mesmo sem considerar a democracia participativa (arts. 2.2,


9.9, alínea c), etc .)2, há mecanismos de participação à margem dos partidos ou em que estes
têm uma influência algo reduzida. São a

1. Estamos aqui perante um caso especial, e mais grave, do problema da vinculação de todas
as entidades, inclusive as privadas, ao respeito dos direitos, liberdades e garantias (art. 18.0.
n.Q 1, da Constituição): efr. JORGE MIRANDA, Manual .... IV, págs. 223-224 e 284 e segs.

2. Cft. supra.

302

eleição directa do Presidente da República, com candidaturas propostas por grupos de


cidadãos (art. 127.2, já citado); a possibilidade de candidaturas por grupos de cidadãos
eleitores para a assembleia de freguesia (art. 246.2, n.2 2, igualmente já mencionado), a
possibilidade de substituição das assembleias por plenários de cidadãos eleitores nas
freguesias de população diminuta (art. 246.2, n.2 3), os re ferendos locais (art. 241.2, n.2 3,
após 1982) e o referendo político vinculativo 1nacional (art. 118.% após 1989).

A experiência das eleições presidenciais desde 1980 corrobora-o perfeitamente e, por isso, a
manutenção do sufrágio directo não se torna apenas indispensável para a subsistência do
sistema de governo semipresidencial; é, sobretudo, fundamental para a divisão de poder entre
os partidos e os cidadãos; é indispensável para que não se perca uma via, já comprovada, de
comunicação entre o aparelho político e a comunidade.

111 - Numa óptica de jure condendo podem ser encaradas algumas reformas ou melhorias do
Direito eleitoral, umas mais viáveis, outras menos; assim como reformas no sentido de
democracia semidirecta.

A primeira dessas reformas (à volta de cuja vantagem se vai fazendo um consenso alargado)
consiste na possibilidade de candidaturas independentes nas eleições para os órgãos dos
municípios e das futuras regiões administrativas. Se nas eleições parlamentares - em que
prevalecem linhas de orientação ideoló-
303
gico-programáticas - os partidos são as entidades naturalmente vocacionadas para a
propositura de candidatos’, já nas eleições locais - nas quais avultam questões
concretas - os candidatos independentes podem desempenhar uma função
valiosíssima; podem-na desempenhar ainda mais na própria lógica do princípio da
descentralização2.

A segunda reporta-se ao sistema eleitoral para a eleição do Parlamento (e para as das


assembleias legislativas regionais). Sem prejuízo do princípio da representação
proporcional, bem poderiam ser admitidas formas de escolha individual dos
Deputados entre os candidatos propostos pelos partidos na linha do projecto de
Código Eleitoral de 1987 3,4.

Uma terceira reforma possível consistiria na introdução de iniciativa popular. A nível


nacional não se justificaria, porventura, encará-la antes de ser feita a experiência das
petições colectivas consagradas em 1989 (art. 52.2, n.> 2); já a nível local poderia,
desde já, ser instituída, mesmo sem revisão constitucional.

1. Até porque um Parlamento, por hipótese, só formado de independentes seria


insusceptível de viabilizar um Governo.

2. Até por causa da natureza centralizada, ou centralizadora, dos partidos.


3. Cfr. supra.

4. Menos facilmente praticáveis seriam a adopção do sistema de voto único


transferível, adoptado na Irlanda, ou a possibilidade de os eleitores fixarem a ordem
dos candidatos nas listas de candidatura.

304

Também nesta linha de democracia semidirecta, depois de concretizado na prática o


referendo, faltaria saber se não seria adequado alargar o seu alcance para além do
agora estrito quadro do art. 118.2.

Por último, seria interessante pensar em sistemas de participação na escolha dos


candidatos partidários não só pelos militantes mas também pelos simpatizantes e
eventuais eleitores dos respectivos partidos. Todavia, o esquema norte-americano das
eleições primárias exige tradições políticas sedimentadas, apagamento de clivagens
ideológicas e completa segurança cívica, o que ainda não se verifica em Portugal.

305
iNDICE

Nota Prévia ........................................ 5

TíTULO 1

FORMAS DE GOVERNO EM GERAL

CAPITULO 1

CONCEITOS E TIPOLOGIAS FUNDAMENTAIS ..... 9

1. Preliminares ..................................... 11
2. As tipologias de formas políticas em geral ............. 12 i

3. As grandes classificações doutrinais .................. 19


4. Distinção de conceitos proposta ...................... 33

CAPíTULO 11

OS PROBLEMAS CARDEAIS ...................... 39

§ 1.2 Legitimidade .................................. 41

5. Sentido da legitimidade ............................ 41


6. A legitimidade na História .......................... 44
307
7. Tipos doutrinais de legitimidade
8. Tentativa de quadro geral ......

§ 2.2 Participação

9. A participação política em geral ...................


10. Modos de participação ..........................
11. A representação política: formação histórica ........
12. Do governo representativo liberal à democracia liberal
13. A representação política: análise do fenômeno ......
14. Representação e mandato .......................

§ 3.9 Pluralismo

15. Pluralismo político e pluralismo social


16. Sistemas pluralistas e monistas ......
17. Pluralismo e oposisão .............

§ 4.2 Divisão do poder .............

18. A divisão do poder em geral ......


19. A doutrina da separação de poderes .
20. Concepções doutrinais subsequentes

47
50
55
55
59
63
70
75
80
83
83
85
88
93
93
97
103

2 1. A separação de poderes na evolusão do constitucionalismo 107

CAPíTULO Ill

FORMAS E SISTEMAS DE GOVERNO

22. As oito formas de governo modernas . .


23. Caracterização sumária .............
113
115
116

308

24. Grandes contraposições ..................


25. Sistemas de governo em geral .............
26. A perspectiva jurídica dos sistemas de governo
27- A perspectiva política ....................
28. Os tipos de governos com interferência militar

TITULO 11

A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

CAPíTULO 1

PRINCíPIOS E PROBLEMAS GERAIS ............

29. Democracia e princípio da soberania do povo .......


30. 0 principio do sufrágio ........................
3 1. 0 principio da maioria .........................
32. Democracia e princípio republicano ..............
33. Democracia representativa e democracia participativa
34. Pluralismo social e democracia representativa ......
35. Democracia política e democracia social ...........
36. Estado de Direito e principio democrático ..........
37. As concepções e os valores da democracia .........

CAPíTULO II

A ELEIÇÃO E 0 REFERENDO

§ 1.2 A eleição ................

38- A eleição política em geral ....

309
39. Sufrágio e colégio eleitoral ........................ 199
40. Os sistemas eleitorais ............................. 203
41. Tipos de sistemas eleitorais ........................ 207
42. Representação majoritária e representação proporcional . . 211
43. Sistemas eleitorais e sistemas políticos ............... 213
44. Os sistemas eleitorais em Portugal ................... 216
45. 0 regime jurídico da eleição política ................. 221

§ 2.2 0 referendo ................................... 231

46. 0 referendo e os institutos afins ..................... 231


47. Modalidades de referendo ......................... 237
48. Relance histórico-comparativo ..................... 238
49. 0 referendo em Portugal antes de 1974 ............... 244
50. 0 referendo após 1974 ............................ 249
5 1. 0 regime do referendo político nacional .............. 255
52. 0 regime do referendo local ........................ 260

CAPíTULO 111

PARTIDOS POLíTICOS ........................... 263

53. Noção de partidos políticos ........................ 265


54. Origem e evolução ............................... 268
55. Partidos e sistemas políticos ....................... 270
56. 0 tratamento constitucional dos partidos .............. 273
57. Os partidos em Portugal antes de 1974 ............... 277
58. Os partidos após 1974 ............................ 280
59. A institucionalização dos partidos em Portugal ......... 283
310

60. Partidos e direitos, liberdades e garantias na Constituição actual


.........................................

6 1. Partidos e organização do poder político ..............


62. Parlamento, Deputados e partidos ...................
63. A condição dos cidadãos não inscritos em partidos ......

311

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