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COMENTÁRIO

de

MARCOS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Edwards, James R.
O comentário de Marcos / James R. Edwards; tradução de Helena
Aranha. — São Paulo : Shedd Publicações, 2018.

632 p.
Bibliografia
ISBN: 978-85-8038-071-2
Título original: The Gospel According to Mark
1. Bíblia N.T. Marcos - Comentários 2. Jesus 3 .1. Título II. Aranha, Helena

18-1763 CDD-226.307

Indices para catálogo sistemático:


1. Bíblia N .T.: Marcos - Comentários
o
COMENTÁRIO
de

MARCOS
Tradução
Helena Aranha

GO
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SHEDD
C o p y rig h t © 2002 W m . B. E e rd m a n s P ub lish in g Co.
2140 O a k In d u strial D riv e N . E .
G ra n d R apids, M ichigan 49505

O riginally p u b lish ed in E n g lish u n d e r th e title


PNTC: The GospelAccording to Mark
(978-0-8028-3734-9)

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I a E d içã o - N o v e m b ro de 2018

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IS B N 978-85-8038-071-2

Printed in Brazil / Im p re sso n o Brasil

T r a d u ç ã o - H elen a A ran h a
R e v isã o - R egina A ra n h a
D ia g r a m a ç ã o & C apa - E d m ilso n F razão B izerra
P ara m in h a m ãe,
M ary E le a n o r C allison E dw ards,
que, d e ac o rd o c o m H e b reu s 13.7,
foi q u em p rim eiro falou p ara m im a palavra de D eu s,
e cuja vida te m sid o u m a in sp iração p a ra m in h a fé.
Sumário

Prefácio da série em in g lê s...................................................................


Prefácio d o a u t o r ........................................................................................................... 11
A b re v ia ç õ e s.................................................................................................................... 15
O b ra s citados co m fre q u ê n c ia ...................................................................................25

INTRODUÇÃO..................................................................... 27
1. HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DE MARCOS...................... 27
2. AUTORIA E LOCAL DA COMPOSIÇÃO..................................... 29
3. DATA................................................................................................ 33
4. CONTEXTO HISTÓRICO............................................................37
5. CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS ESPECÍFICAS....................37
5.1 E s tilo ......................................................................................................................... 37
5.2 T écnica de s a n d u íc h e .............................................................................................39
5.3 Ir o n ia ......................................................................................................................... 39
6 . JESUS NO EVANGELHO DE MARCOS......................................40
6.1 A au to rid ad e d e J e s u s ............................................................................................ 40
6.2 O serv o d o S e n h o r................................................................................................. 42
6.3 O Filho d e D e u s ......................................................................................................43
7. TEMAS CARACTERÍSTICOS....................................................... 44
7.1 O d isc ip u la d o .......................................................................................................... 44
7.2 A f é .............................................................................................................................44
7.3 O s que p erte n cem ao g ru p o ín tim o e os d e f o r a .............................................45
7.4 O s g e n tio s ................................................................................................................46
7.5 A o rd e m p ara silen ciar.......................................................................................... 46
7.6 A jo rn a d a ..................................................................................................................47
8 . A ESTRUTURANARRATIVA.................................................... 48

COMENTÁRIO SOBRE MARCOS


1 .0 E V A N G E L H O A P A R E C E E M P E S S O A (1.1( 13‫־‬.................................51
2 . 0 IN ÍC IO D O M IN IS T É R IO G A L IL E U (1.14-45)...................................73
Excurso: O motivo do segredo e a autoconsáênáa messiânica deJesus (1 .3 4 ) ..................96
3. O S P R O B L E M A S C O M A S A U T O R ID A D E S (2.1— 3 .1 2 )................... 107
Excurso: O F ilho do H om em (2 .1 2 ) ............................................................................114
Excurso: O homem divino (3 .1 2 ) ..................................................................................145
4. O S Q U E P E R T E N C E M A O G R U P O ÍN T IM O
E O S D E F O R A (3.13— 4 .3 4 )..........................................................................151
5. “ Q U E M É E S T E ?” (4.35— 6 .6 a ).......................................................................195
6. T E S T E M U N H O PA R A O S J U D E U S (6.6b— 7 .2 3 )................................. 229
7. T E S T E M U N H O PA R A O S G E N T IO S (7.24— 8 .9 )............................... 275
8. A R E M O Ç Ã O D O V É U (8.10— 9 .2 9 )............................................................297
Excurso: Cristo (8 .3 1 ) ...................................................................................................316

E xcurso: Como a transfiguração deveria ser compreendida? (9 .8 ) ................................340


9. M E R O D IS C IP U L A D O (9 .3 0 -5 0 ).................................................................. 355
10. “ S U B IN D O A PA R A JE R U S A L É M ” A TR A V ÉS
D A J U D E I A (1 0 .1 -5 2 )................................................................................... 373
1 1 . 0 T E M P L O E S T É R IL (11.1 - 2 6 )................................................................... 415
12. JE S U S E O S IN E D R IO (11.27— 1 2 .4 4 ).....................................................435
13. V IG ÍL IA N A T R IB U L A Ç Ã O E T R IU N F O (13.1-37).......................... 475
1 4 .0 A B A N D O N O D E JE S U S (1 4 .1-72)........................................................507
Excurso: A s mulheres no evangelho de M arcos (1 4 .9 ) ..................................................515
15. A C R U Z E O T Ú M U L O V A Z IO (15.1— 1 6 .8 )........................................ 557
E xcurso: Pondo Pilatos (1 5 .1 ) ...................................................................................... 558
Excurso: O F ilho de D eus (1 5 .3 9 ) .............................................................................. 591
16. A C O N C L U S Ã O M A IS L O N G A D E M A R C O S (16.9-20)..................611
A P Ê N D IC E : O E V A N G E L H O S E C R E T O D E M A R C O S ......................625
Prefácio da série em inglês

O s c o m en tá rio s têm objetivos específicos, e esta série n ão é exceção. O s


co m en tá rio s Pillar, planejados p ara p asto re s e p ro fesso res de Bíblia, buscam
acim a d e tu d o esclarecer o tex to d a E sc ritu ra c o n fo rm e o tem o s em m ãos.
O s acad êm ico s e sc rev en d o estes v o lu m es in tera g em co m o d eb a te con-
tem p o rá n e o m ais im p o rta n te e b em in fo rm a d o , evitan d o com plicarem -se
in d ev id am en te c o m detalhes técnicos. O ideal desses acadêm icos é m isturar
a exegese rig o ro sa e a exposição, co m u m o lh a r a te n to tan to à teologia bíblica
q u an to à relevância c o n te m p o râ n e a da Bíblia, sem c o n fu n d ir o co m en tário
e o serm ão.
A ideia p ara essa ab o rd ag em é q u e a v isão d a “ academ ia objetiva” (um a
vã quim era) p o d e ser d e fato pro fan a. D e u s está acim a d e nós, e n ão p o d em o s
julgá-lo. Q u a n d o D e u s fala c o n o sc o p o r in te rm é d io d e sua Palavra, aqueles
que p ro fessam co n h ecê-lo têm d e re sp o n d e r d e u m a fo rm a apropriada, e isso
com certeza é d iferen te de u m a p o sição em q u e o acadêm ico p ro jeta um a
im agem d e distância au tô n o m a. C o n tu d o , esse n ã o é u m apelo sub-reptício
p ara a subjetividade d esc o n tro la d a. O s escrito res d esta série objetivam a
ab ertu ra im parcial ao texto, o m e lh o r tip o d e “ o b jetividade” d e todos.
Se o tex to é a Palavra de D e u s, é a p ro p ria d o q u e re sp o n d am o s co m re-
verência, ce rto tem o r, alegria santa e ob ed iên cia investigativa. E sses valores
devem se r refletidos na fo rm a c o m o os cristãos escrevem . O s com en tário s
Pillar, co m a ad o ç ão desses valores, serão b em receb idos n ão só p o r pastores,
pro fesso res e estu d an tes, m as ta m b é m pelo s leitores em geral.
* * * *

O s b o n s co m en tário s so b re os evangelhos canônicos são particularm ente


difíceis d e escrever. A s exigências são consideráveis: sen so histó rico refinado
P re fá c io da sé rie 10

e m atu rid ad e teológica; habilidade para trab alh ar c o m diversos gên ero s literá-
rios; co m p re e n sã o m eticu lo sa d o c o n te x to judaico e g reco -ro m an o ; d o m ín io
da vasta literatu ra secu nd ária sem p e rm itir q u e essa literatura d ite a agenda
o u faça c o m q u e o leito r m erg u lh e em detalhes p eriféricos sem -fim . Jam es
E dw ard s re ú n e ad m irav elm en te essas qualidades. Seu co m en tá rio reflete o
estu d o de u m a v id a to d a, a qualidade d e ju lg am en to inteligente e c o m capa-
cidade de d iscern im en to , c o m o ta m b é m equilibrado. A lém disso tu d o , ele
acrescen ta u m a reverência seren a p elo texto, atitu de ap ro p riad a e edificante.
E u m p ra z e r e u m a h o n ra incluir seu co m e n tá rio n e sta série.

D. A. C arso n
Prefácio do autor

E ste v o lu m e re p re sen ta u m a Ueblingsarbeit em m in h a vida acadêm ica


— u m trab a lh o p re cio so p ara m eu coração. Isso é v erd ad e n ão só p o r causa
do a ssu n to em si, m as tam b é m pelas pessoas a q u e m ele m e ap resen to u . F ui
apresentado pela prim eira vez ao estu d o acadêm ico de M arcos trinta anos atrás
n o S em inário so b re o N o v o T estam e n to , m in istra d o p elo p ro fe sso r E d u ard
Schw eizer, e m Z u riq u e, Suíça. O co m e n tá rio de Schw eizer so b re M arcos
cau so u u m a p ro fu n d a influência em m im , e as conversas que d esfru tei com
E d u ard , em especial em m inhas freq u en tes visitas a sua casa, co n tin u am entre
as ricas m em ó rias de m in h a vida. Q u a n d o dei início ao m eu d o u to ra d o n o
F uller Sem inary, em m ead o s d a d écad a de 1970, tive a felicidade d e co n tin u ar
m eus estu d o s c o m o u tro im p o rta n te e stu d io so de M arcos, p ro fe sso r R alph
M artin, cujo d o m ín io da am p litu d e e d etalh es d o s e stu d o s acadêm icos do
N o v o T esta m e n to m e o rien ta ram n a co n clu são d e m in h a d issertação sobre
o F ilh o d e D e u s n o evangelho d e M arcos. M in h a dívida co m esses dois aca-
dêm icos cristão s é e n o rm e e d u rad o u ra.
N o s últim os vinte anos ensinei o evangelho d e M arcos, prim eiro em Jam es-
tow n College e, agora, em W h itw o rth College. A lém disso, ensinei M arcos em
sem inários para Y oung Life In stitu te e F uller C olorado, b em co m o em m uitas
conferências, palestras e serm ões. E ste co m entário com eçou a criar form a
(em bora em u m fo rm a to m ais m odesto) c o m o u m apoio para m inhas aulas.
E m b o ra não ten h a antevisto à época, fui m uito feliz em co n tin u ar a ap ren d er
sob re M arcos co m u m g ru p o d iferen te de p ro fesso res, e m b o ra n ão m en o s
estim ulante — m eu s alunos. A o lo n g o d o s anos, deleitei-m e co m as p ercep -
ções notáveis q u e os estu d an te s e m e m b ro s d e m in h a co n g reg ação — alguns
n o prim eiro sem estre d o s estu d o s universitários e alguns o ctogenários — que
contribuíram p ara q u e c o m p re en d esse ainda m ais o evangelho de M arcos. As
P re fá cio d o a uto r 12

vozes de m u ito s am igos n a sala d e aula e n o s b an co s da igreja, ju n to co m os


sábios co m q u em estudei, ta m b é m d eram fo rm a a este com entário.
E screv i a fo rm a p u b licad a d este co m en tá rio n a T yndale H o u se em C am -
bridge, In g laterra, o n d e, d e fevereiro a ag o sto de 2000, passei u m p erío d o
sabático d e o ito m eses g e n e ro sa m e n te financiado pelo W h itw o rth College.
Ali, o evangelho de M arcos m ais u m a vez m e ap resen to u p ara u m estim ulante
g ru p o de acadêm icos, dessa vez p ro v e n ie n tes d o m u n d o tod o . S ou g ra to a
B ru ce W in ter, d ire to r da T yndale H o u se , pela p erm issão de co n tin u a r m eu
p ro je to em m eio a acadêm icos veneráveis e recursos excelentes da biblioteca;
a E lizab e th M agba e K irsty C orrigall, bibliotecárias da Tyndale H o u se, que
são lon gân im es e habilidosas p ara e n c o n tra r volu m es p o sto s em prateleiras
equivocadas. Sou g ra to a D a v id In s to n e B rew er p elo auxílio g e n e ro so e
freq uente, em especial c o m sua m aestria n o co m p u tad o r. U m a palavra em
particular d e ag rad ec im en to é d ev id a a P eter H ead q u e se v o lu n tario u p ara
ler e c o m e n ta r seções d o m anuscrito. D o is colegas acadêm icos d a Tyndale
H o use, G e o rg e B ru n k e R alph K lein foram de g ra n d e auxílio e extrem am en te
en co rajad o res n este trabalho, m ais d o q ue p o d e m im aginar. U m d o s atrativos
da Tyndale H o u s e é a reu n ião p ara o café da m a n h ã e o chá d a tard e co m os
académ icos q ue resid em ali. E ra raro o dia em q ue o c o n h e cim en to d e u m
acadêm ico, u m a dica bibliográfica o u u m c o m en tá rio casual n ão expandia
m in h a c o m p re e n sã o d o N o v o T e sta m e n to e d o evangelho de M arcos. E m
m eio ao g ru p o de testem u n h as a q u em so u d ev ed o r en contra-se D. A . C arson,
ed ito r geral d a série Pillar, p o r sua aceitação de m in h a p esso a co m o figurante
n a série e p o r seu e stu p e n d o c o n h e c im e n to acadêm ico e in stin to editorial.
T am b é m so u g ra to a u m d o a d o r an ô n im o pela dádiva que m e en c o rajo u e
ajudo u a financiar esse p erío d o sabático em C am bridge. A tarefa considerável
de com pilar os índices p ara este co m en tário foi h abilm ente realizada p o r S cott
S tarbuck, a q u em so u sin ceram en te grato. P o r fim , so u g ra to à co n stân cia fiel
de m in h a esp o sa Jan e, q u e p e rm itiu q u e o trab a lh o so b re este co m en tário
tivesse p reced ên cia aos p asseios e viagens na Inglaterra.
A cim a d e tu d o , so u h u m ild e m e n te g ra to ao S e n h o r p o r sua pro v id ên cia
ao fazer da m an eira m ais n o táv el co m q u e este co m en tário fosse publicado.
D e n tre as várias séries d e co m en tá rio s publicadas hoje, o ideal da série Pillar
so b re o N o v o T e sta m e n to d e a p resen tar u m a exegese d e prim eiríssim a e o
calor h u m a n o evangélico é o m ais p ró x im o d e m inhas p ró p rias aspirações
co m o acadêm ico da igreja.
13 Prefácio do autor

O fo rm a to d este co m en tário segue aquele de ou tras séries, co m a exceção


de co m en tário s m ais lo n go s o u m ais breves so b re term o s-ch av e relacionados
a M arcos, os quais salientei c o m n eg rito ; e d o s excursos m ais lo n g o s sobre
tem as de m aio r im p o rtân cia em locais d esig n ad o s em m eu com entário. O
objetivo d este volum e, em co n so n â n cia co m os p ro p ó sito s d o s editores e
p ub licado res da séries Pillar, é co m e n ta r so b re o tex to recebido d o evangelho
de M arcos, e n ã o so b re h ip ó teses de sua p ro c e d ê n c ia o u as várias escolas de
in terp re ta ç ã o desse evangelho. O co m en ta rista d o N o v o T estam en to , em
especial d o s evangelhos sinóticos, é h e rd eiro de u m n ú m ero crescente de
m eto d o lo g ias de in terp re ta ç ã o — algum as históricas, ou tras literárias, outras
aind a filológicas, algum as o u tras sociológicas e psicológicas e ainda outras
políticas e relacionadas ao g ênero. B usquei e m p re g a r essas m eto d o lo g ias se
e q u a n d o m e p arecessem de ajuda p ara a c o m p re e n sã o d o tex to de M arcos,
m as n ã o m e esforcei p ara ser u m apologista de n e n h u m a delas. M eu principal
objetivo foi o de m e c o n c e n tra r n o s três asp ecto s d o evangelho de M arcos
que, em m in h a opinião, são essenciais p ara sua c o m p re en são apropriada: o
cenário e a narrativa históricos-, os m éto d o s literários·, e os p ro p ó sito s teológicos. N a
discussão desses p ro p ó sito s, esfo rcei-m e p ara n ã o su b estim ar a inteligência
do s leitores e p ara n ão su p erestim a r o co n h e c im e n to deles da P alestina do
século I, m as p ro c u rei e x p o r o evangelho de M arcos de tal m aneira que os
leitores co n sig am ser capazes d e v er Jesu s c o m o o F ilho de D e u s e segui-lo
co m o seus discípulos.
Jam es R. E dw ard s
Abreviações

lC r 1Crônicas
1Ciem. / Clemente
IC o 1C orintios
lEnoque lEnoque
lE d lE sd ra s
IJo ljo ã o
lR s IReis
IM ac IM acabeus
lP e 1Pedro
lQ F lo r Florilegium da Caverna U m , M anuscrito do M ar M o rto (MMM)
1QM Manuscrito deguerra, MMM
lQ p H a b Pesher on Habakkuk [Comentário sobre Habacuque], M MM
1QS Regra da comunidade, M anual de disciplina, M M M
lQ S a A pêndice A (Regra da congregação) até 1QS, M M M
ISm 1Samuel
lT s ITessalonicenses
lT m 1T im óteo
2Apoc. Bar. G rego, Apocalipse de Baruque
2Apoc. Tg 2Apocalipse de Tiago
2Bar. Siríaco Apocalipse de Baruque
2Cr 2Crônicas
2Clem. 2Clemente
2Co 2C oríntios
2Ed 2Esdras
2Jo 2João
2Rs 2Reis
2Mac 2M acabeus
2Pe 2Pedro
A b re v ia ç õ e s 16

2Sm 2Samuel
2Ts 2Tessalonicenses
2Tm 2T im óteo
3Jo 3João
4E d 4 E sdras
4M ac 4M acabeus
4Q N ah 4Q N au m , M M M
4 Q P rN a b 4Q Oração de Nabonido, M M M
4Q 175 Antologia messiânica, M M M
11Q T Manuscrito do templo, M M M
AB A n ch o r Bible
AB D Anchor Bible Dictionary [Dicionário Anchor Bible], 6 vols.,
ed. D. Freedm an
A tos A tos dos A póstolos
Atos deJoão Atos deJoão
Atos de Pedro Atos de Pedro
Atos de Pilatos Atos de Pilatos
Atos de Tomé Atos de Tomé
Adv. Haer. Ireneu, Contra as heredas
Ag.Ap. Josefo, Contra Apião
AnBib A nalecta bíblica
Ann. Tácito, Anais
Ant. Josefo, Antiguidades dosjudeus
Ap. Platão, Apologia
Ap. Tg. Apócrijo de Tiago
Apoc. Ab. Apocalipse deAbraão
Apoc. Elias Apocalipse de Elias
Apoc. Pe. Apocalipse de Pedro
Apol. Justino M ártir, Primeira Apologia
Aram. A ram aico
art. artigo
Ase. Isa. Ascensão de Isaías
AsiaJournTheol AsianJournal of Theology
As. Mos. Assunção de Moisés
A SN U A cta seminarii neotestam entica upsaliensis
ATANT A bhandlungen zu r Theologie des A lten und
N eu en T estam ents
BA BiblicalArchaeologist [.Arqueólogo bíblico]
BAG A Greek-English lexicon of the New Testament and
Other Early Christian Literature,
ed. W Bauer, rev. W A rn d t e F. G ingrich, 1967
17 A b re v ia ç õ e s

BAGD M esm o volum e, ed. W. Bauer, rev. W. A rndt,


F. G ingrich e F. D anker, 1979
BARev BiblicalArchaeology Review
Barn. Epístola de Barnabé
BBB B onner biblische Beitráge
b. Ber. Berakhot, Talmude babilonio
BDF F. Blass, A. D e b ru n n e r e R. Funk, A Greek Grammar
of the New Testament and Other Early Christian Lit
Bel Bel e o dragão
b. Hag. Hagigah, Talmude babilônio
Ben. As 18 bênçãos
Bib Bíblica
Bib. Ant. Antiguidades bíblicas (Pseudofílon)
Biblnt Biblical Interpretation
BibKir Bibel und Kirche
BibLeb Bibel und Leben
BibToday The Bible Today
BibZeit Biblische Zeitschrifi
BJRL Bulletin of theJohn Rylands Library Studies
BJS B row n Judaic Studies
b. Mo’ed. Q. Mo’edQatan, Talmude babilônio
BN Biblische Notion
b. Nid. Niddah, Talmude babilônio
BNTC C om entário d o N o v o T estam ento de Black
b. Pes. Pesahim, Talmude babilonio
BR Biblical Research
BRev Bible Review
b.Qid Qiddushin, Talmude babilonio
b. Sanh. Sanhedrin, Talmude babilonio
b. Shab. Shabbat, Talmude babilonio
b. Sot. Sotah, Talmude babilônio
b. Suk. Sukkah, Talmude babilônio
b. Ta'an. Ta'anit, Talmude babilônio
BTB Biblical Theology Bulletin
BTZ Berliner Theologische Zeitschrifi
b. Yoma Yoma, Talmude babilônio
BZNW Beihefte zur Zeitschrififir die neutestamentliche Wissenschaft
c. cerca
Ct C ântico dos Cânticos
CBQ Catholic BiblicalQuarterly
A b re v ia ç õ e s 18

CD Documento de Damasco, M M M
sec. século
cf. com pare
cap(s). capítulo(s)
Cl C olossenses
Com. Comentário
ConB C oniectanea bíblica
Contra Celsum O rígenes, Contra Celso
C R IN T C om pendia R erum Iudaicarum ad N ovum Testam entum
m. m o rto
Dn D aniel
Dt D eu tero n ô m io
Dial. Sav. Diálogo do Salvador
Dial. Trif. Justino M ártir, Diálogo com Trifio
Did. Didaquê
diss. dissertação
MMM M anuscritos d o M ar M o rto
Ec Eclesiastes
ed. editado
ED NT Exegetical Dictionary of the New Testament, 3 vols.,
ed. H. Balz e G. Schneider
Eg. Pap. Evangelho de Egerton ou Papiro de Egerton
EKKNT E vangelish-katholischer K om m entar zum
N eu en T estam ent Ench. Enchiridion
Encjud. EncyclopaediaJudaica, 1971
Ing. Inglês
Port. Português
Ep. Ap. Epistula Apostolorum [Epístola dos apóstolos]
Ef Efésios
Disc. Epict. Discursos de Epicteto, organizadopor Arriano,
Ep.Jer. Epístola deJeremias
Ep. Pe. Fil. Carta de Pedro a Filipe
Ep. Pol. Fp. Epístola de Policarpo aosfilipenses
esp. especialm ente
EstBih Estudios Bíblicos
Et Ester
ETL Ephemerides theologicae Lovanienses
ETR Etudes théologiques et religieuses
E vT Evangelische Theologie
Ex E xodo
19 A b re v ia ç õ e s

ExpTim Expository Times


Ez Ezequiel
Ed E sdras
G1 Gálatas
GeistLeb Geist und Leben
Gn G ênesis
gen. geral
gf· grego
GNT G rundrisse zum N eu en T estam ent
Evg. Bart. Evangelho de Bartolomeu
Evg. Eb. Evangelho dos ebionitas
Evg. Eg. Evangelho dos egípcios
Evg. Heb. Evangelho dos hebreus
Evg. Mani Evangelho de Mani
Evg. Maria Evangelho de Mana
Evg. Na% Evangelho dos Nazarenos
Evg. Nic. Evangelho de Nicodemos
Evg. Pe. Evangelho de Pedro
Evg. Phil. Evangelho de Filipe
Evg. Pseud.-Mt Evangelho Pseudomateus
Evg. Tomé Evangelho de Tomé
He H abacuque
Ag Ageu
H ALO T L. K oehler, W. B aum gartner e J. J. Stam m , The Plebrew and
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Hb C arta aos H ebreus
Heb. hebraico
Herm. Man. Pastor de Hermas, Mandato
Herm. Sim. Pastor de Hermas, Semelhanças
Herm. Vis. Pastor de Hermas, Visões
Plist. Tácito, Histórias
Hist. Eel. E usébio, História eclesiástica
HNT H andbuch zum N eu en T estam ent
Os O seias
HTKNT H erders theologischer K om m entar zum N euen Testam ent
HTR Harvard Theological Review
Ibid. ibidem, no m esm o lugar
A b re v ia ç õ e s 20

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IEJ Israel ExplorationJournal
Ign. Ef. Carta de Inácio aos efésios
Ign. Rm. Carta de Inácio aos romanos
Ign. Trail. Carta de Inácio aos trallians
In t In te rp re ta ç ã o
Is Isaías
JAM A Journal of the American MedicalAssociation
Tg T iag o
j. Ber. Berakhot, T alm u d e Jerusalém
JBL Journal of Biblical Literaturel
JBTh JahrbuchfúrBiblische Theologie
Jdt Judite
Jr Jeremias
JerusalemPersp Jerusalem Perspective
JETS Journal of the Evangelical Theological Society
JJS Journal of Jewish Studies
j. Kil. Ki’ajim, T alm u d e Jerusalém
Jó Jó
J1 Jo e l
Jo Jo ã o
Jn Jo n a s
Jos. Asen. Joseph andAseneth
Js Jo su é
JR Journal of Religion
JSN T Journalfor the Study of the New Testament
JSNTSup Journalfor the Study of the New Testament, S u p p le m e n t Series
JSP Journalfor the Study of the Pseudepigrapha
JTS Journal of TheologicalStudies
Jub. Jubileus
Jd Ju d as
Jz Juizes
KEK K ritisch -ex eg etisch er K o m m e n ta r ü b e r das N e u e T e sta m e n t
(M ey er-K o m m en tar)
Lm L am en taçõ es
L at. L atim
LC L Loeb Classical Library
21 A b re v ia ç õ e s

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Lv Levi tico
Vida Josefo, Vida
Vida deAp. Filóstrato, Vida deApolônio
lit. literalm ente
log. Logion, leitura
TSJ A Greek-English Lexicon, ed. H. Liddell, R. Sc
e R. M cK enzie
Lc Lucas
LX X Septuaginta, tradução grega do A T hebraico
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Ml M alaquias
Mc M arcos
Mari. Isa. Martino de Isaías
Mart. Pol. Martírio de Policarpo
Mt M ateus
m. B. Bat. Bava Batra, M ishná
m. Ber. Berakhot, M ishná
m. B. Qam. BavaQamma, M ishná
Mek. Exod. Mekilta on Exodus [Êxodo de Mekilta]
Mem. Apost. Memoria Apostolorum
m. Git. Gittin, M ishná
m. Hag. Hagiga, M ishná
m. Hul. Hullin, M ishná
m. Kel. Kelim, M ishná
m. Ker. Keritot, M ishná
m. Ket. Ketubbot, M ishná
m. Kil. Kilayim, M ishná
m. Mid. Middot, M ishná
m. Miqw. Mikwa’ot, M ishná
m. Ned. Nedarim, M ishná
m. Neg. Negaim, M ishná
m. Pes. Pesahim, M ishná
m. Ohal. Ohalot, M ishná
Mq Miqueias
m. Rosh HaSh. Rosh HaShana, M ishná
m. Sanh. Sanhedrin, M ishná
m. Shah Shabbat, M ishná
m. Sheq. Sheqalim, M ishná
m. Sot. Sotah, M ishná
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TM T exto M assorético
m. Ta‘an. Ta'anit, M ishná
m. Teh. Teharot, M ishná
m. Yad. Yadayim, M ishná
m. Yoma Yoma, M ishná
m. Zav. Zavim , M ishná
m. Zev. Zevahim, M ishná
n. nota
Na N au m
s.d. sem data
Ne N eem ias
NHL N a g H am m adi Library, ed. f . Robinson
N eo t Neotestamentica
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N IC N T N ew International C om m entary o n the N ew Testam ent
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3 vols., ed. C. B row n
N otesTrans N o ta s sobre tradução
N ovT N ovum Testamentum
n° núm ero
NT N o v o T estam ento
N TA poc N ew Testament Apocrypha, ed. rev., 2 vols., ed. W.
Schneem elcher, trand. R. Mcl. W ilson
NTD D as N eue T estam ent D eutsch
NTG N ew T estam ent G uides
NTS N ew Testament Studies
N TTS N ew T estam ent Tools and Studies
Nm N ú m ero s
Ob O badias
O des Sol Odes de Salomão
AT A ntigo T estam ento
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P· página(s)
Pan. Epifânio, Refutação de todas as heresias
par. Paralelo
Fédon Platão, Fédon
Fp Filipenses
P ol Fp. Policarpo, E pístola aos Filipenses
Fm Filem om
23 A b re v ia ç õ e s

pi. plural
P.Ox. Papiros de O xirrinco
O r A zar O ração de Azarias
O r M an O ração de M anassés
Prot. Tg. Protoevangelho de Tiago
Pv Provérbios
SI Salmos
SI. Sol. Salmos de Salomão
Quest. Bart. A s questões de Bartimeu
Rab. Exod. Êxodo de Rabá
RB Revue Biblique
Refut. Om. Haer.: H ipólito, Refutação de todas as heresias
reimpr. reim pressão
ResQ Restoration Quarterly
Ap A pocalipse
rev. revisado
RevBib Revue biblique
RevistB Revista Bíblica
RevQ Revue deQumran
RIDA Revue Internationale des droits de Fantiquité
Rm R om anos
Rt Rute
SBLDS Society o f Biblical L iterature D issertation Series
SBLSS Society o f Biblical Literature Semeia Studies
SBT Studies in Biblical T heology
ScEs Science et Esprit
Sib. Or. Oráculos Sibilinos
Sir Eclesiástico ou Sabedoria de Jesus B en Sirac
SJLA Studies in Judaism in Late A ntiquity
SJT ScottishJournal of Theology
SNTSMS Society for N ew T estam ent Studies M onograph Series
SNT(SU) Studien zum N eu en T estam ent (und seiner Umwelt)
Spec. Leg. Fílon, Leis especiais
Str-B Kommentar tçumNeuen Testament aus dem TalmudundMidrasch,
6 vols., eds. H. Strack e P. Billerbeck
Suz Suzana
T.Adão Testamento deAdão
TBei Theologische Beitrãge
T. Benj. Testamento de Benjamim
t. Ber. Berakhot, Toseftá
A b re v ia ç õ e s 24

TCGNT B. M etzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament


T. Dã Testamento de Dã
TDNT TheologicalDictionary of the New Testament, 9 vols.,
ed. G. K ittel e G. Friedrich, trad. G. Bromiley
TDOT TheologicalDictionary of the Old Testament, 8 vols.,
ed. G. B otterw eck e H. R inggren
Testim. Verdd O testemunho da verdade
Tg. Ket. Qoh. Targum dos escritos, Coélet
TGl Theologie und Glaube
Tg.Jon. TargumJonathan
THKNT Theologische H an d kom m entar zum N euen Testam ent
Thorn. Cont. O livro de Tomé, 0 Adversário
Tiid. Theol Tijdschrift voor Theologie
T.Iss. Testamento de Issacar
Tt Tito
T.Jud. Testamento deJudá
T. Levi Testamento de Levi
Tob Tobias
trad. traduzido
Traí. Res. Tratado sobre a ressurreição
Trat. Set O segundo tratado dogrande Sete
T.Sol. Testamento de Salomão
TToday Theology Today
TynBul The Tyndale Bulletin
TZ Theologische Zeitschrift
T.Zeb. Testamento de Zebulom
v. versículo
w. versículos
VitaApol. Filóstrato, A vida de Apolónio
Guerra Josefo, A guerrajudaica
W BC W ord Biblical C om m entary
W ordW orld Word and World
Sab Sabedoria de Salomão
W UNT Wissenschaftliche Untersuchungen sçumNeuen Testament
Zc Zacarias
Sf Sofonias
ZNW Zeitschriftfur die neutestamentliche Wissenschaft
ZTK Zeitschriftftir Theologie und Kirche
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Introdução

1. H IS T Ó R IA D A IN T E R P R E T A Ç Ã O D E M A R C O S

O evangelho de M arcos, até os te m p o s m o d e rn o s, receb eu considerável-


m en te m e n o s aten ção q u e os o u tro s três evangelhos. E m co m p aração co m
Jo ão co m sua teologia sublim e, M ateus c o m su a e stru tu ra narrativa o u Lucas
co m suas paráb o las e histórias inim itáveis, M arcos é c o m frequência julgado,
até m e sm o p o r acadêm icos, u m evangelho sem arte e u m ta n to pro saico .1 A
eclipse d e M arcos re m o n ta aos p rim o rd io s da trad ição d os evangelhos, e essa
tradição, de a c o rd o co m o c o n se n so geral de m u ito s pais da igreja, atribui a
escrita d o evangelho m ais antigo a M ateus.12 U m a vez que M arcos co n tém
apenas três p eríc o p es que n ão se e n c o n tra m em M ateus o u Lucas, nem em

1 G. D eh n, Der Gottessohn. Eine Einfiihrung in dasEvangelium desMarkus (Hamburg: Im


Furche-Verlag, 1953), p. 18, declarou que Marcos não era “nem historiador nem
autor. Ele reuniu seu material da maneira mais simples imaginável” . R. Bultmann,
TheHistory of the Synoptic Tradition, trad. J. Marsh (New York: H arper Sc Row, 1963),
p. 350, escreveu que “Marcos não é suficientemente mestre de seu material para ser
capaz de se aventurar ele mesmo em uma construção sistemática” . E. Trocmé, The
Formation of the GospelAccording to Mark, trad. P. Gaughan (London: SPCK, 1975),
p. 72, ridicularizou a realização literária de Marcos. “N ão há dúvida quanto a este
ponto: o autor de Marcos era um escritor atrapalhado que não merece menção
em nenhum a história da literatura” .
2 Seis pais — Ireneu, Clemente de Alexandria, Orígenes, Eusébio de Cesareia,
Epifânio e Jerónim o (e sete se considerarmos Papias) — afirmam que o registro
mais antigo de Mateus foi escrito em hebraico (embora não exista nenhum texto
hebraico do evangelho hoje). O Hadith Islâmico tam bém preserva a tradição de
um rem oto evangelho hebraico: “Kadija, então, acom panhou [Maomé] até a casa
de seu primo Waraqa ibn Naufal ibn Asad ibn ‘abdul ‘Uzza, que, durante o período
pré-islâmico se tornou cristão e costumava escrever em hebraico, fundamentado
no evangelho, tanto quanto Alá queria que ele escrevesse” {Sahih al-Bukhari 1:3).
Introdução 28

am b o s (M c 4.26-29; 7.31-37; 8.22-26), e n tão o evangelho d e M arcos, d e m ea-


d o s d o século I I em d ian te (e.g., Ire n e u ,Adv. Haer. 3.1.1), foi co n sid erad o o
seg u n d o (e algum as vezes o q u arto ) n o cân o n e, c o m o u m re su m o u m tan to
in fe rio r d e M ateus. A s citações d o s evangelhos, ao lo n g o d e to d o o p erío d o
patrístico, eram d o s evangelhos d e M ateus e Jo ão, nessa o rd em ; citações de
L ucas v in h a m em u m d istan te terc eiro lugar, e as d e M arcos em ú ltim o e
apenas raram en te. U m d ito d e A g o stin h o co m relação ao evangelho de M ar-
cos tipifica n ã o só o ju lg am en to d o s pais antes dele, m as tam b ém aquele d os
séculos su b seq u e n tes até a era d o Ilu m in ism o : “M arcos im ito u M ateus co m o
u m lacaio (lat. pedisequus) e é co n sid erad o c o m o seu sin tetizad o r” .3 A igreja
cristã, em razão dessa visão, fu n d a m e n to u , ao lo n g o da história, seu retrato de
Jesu s b asicam en te n o ev an g elh o d e M ateus. C o m o M ateus aparece p rim eiro
n o c â n o n e d o N o v o T e sta m e n to e en fatiza q u e Jesu s é o c u m p rim e n to das
p ro m essa s d o A n tig o T estam en to , a igreja, p o r dezessete séculos, co n sid ero u
M ateu s c o m o o evangelho m ais an tig o e o m ais confiável. A s leituras do s
d o m in g o s e dias san to s eram retiradas d e M ateus, e o s o u tro s evangelhos
eram utilizados em geral só q u a n d o se co nsiderava q u e M ateus apresentava
deficiências s o b re alguns tem as.
A o p in ião s o b re o v alor d e M arco s so fre u u m a m u d an ça radical n a pri-
m eira m e ta d e d o século X IX q u a n d o os acadêm icos,4 co m base em investi-
gação cu id ad o sa d o s p rim eiro s três evangelhos, levantaram a h ip ó tese de que
M arcos n ão era u m seguidor sem originalidade de M ateus, m as era na verdade
o mais antigo d o s evangelhos e a fo n te p rim eira p ara os evangelhos de M ateus
e Lucas. E ssa reavaliação afeto u d e m o d o radical o in teresse acadêm ico p o r
M arcos. N o ú ltim o século e m eio, M arco s re ceb e u atenção de p ro p o rç ã o de
celebridade, e o re su ltan te a u m e n to d e estu d o s acadêm icos so b re o según-
d o evangelho é tão p ro lífico q u e n e n h u m acadêm ico p o d e reivindicar ter
lido to d a a literatu ra so b re o assu n to , e m u ito m e n o s d o m in a r a fu n d o esse
tem a. A teo ria d a p rio rid ad e m arcan a, em b o ra essa afirm ação n ão fique sem
co n testa çõ es, co n tin u a a ser su sten tad a pela m aioria d os acadêm icos de hoje,
in clu ind o o p re se n te autor. O re la cio n am en to d o s q u atro evangelhos — em
especial d o s três p rim eiro s — re p re se n ta u m d o s p ro b lem as m ais difíceis de
so lu cio n ar n a h istó ria das idéias e n ã o p o d e ser relatado em detalhes n este

3 D e Consensu Evangeliorum, 1.2.4.


4 K. L achm ann, 1835; C. H . W eisse e C. G. Wilke, 1838; H . J. H o ltzm an n , 1863; B.
Weiss, 1886; B. H . Streeter, 1924.
29 Autoria e local de composição

co m en tário .5 O m e lh o r q ue p o d e ser feito n esta o b ra c o m re sp eito à priori-


dade d e M arco s é ch a m a r a aten ç ão p ara o n ú m e ro de passagens relevantes
em que, d e m o d o razoável, é possível s u p o r a p recedência de M arcos em
relação aos o u tro s evangelhos sin ó tico s e o fato d e q u e os influenciou, em
particu la r M ateus. E sse dilúvio d e estu d o s re cen tes d ev o tad o s a M arcos foi
b em -su c ed id o em fazer calar, assim creio, os ju lg am en tos p ejorativos de aca-
dêm icos m ais an ü g o s d e qu e M arcos era u m esc rito r desajeitado e sem arte.
A p o sição re p resen ta d a nesse c o m en tá rio é q u e M arcos era u m habilidoso
artista literário e teólogo. E m b o ra o estilo d e M arcos se aproxim e d o greg o
falado n o dia a dia, em vez d e ap resen tar a qualidade to c an te d a alta literatura,
o evangelho, ainda assim , d e m o n stra considerável sofisticação n a in ten ção
e p lan eja m e n to literário, c o n fo rm e fica ev id en ciad o n ã o só pela técnica de
sanduíche e o u so da iro n ia p o r M arcos, c o m o ta m b é m pelo s tem as especiais
dos qu e p e rte n c e m ao círculo ín tim o e os de fo ra, pela o rd e m p ara silenciar
e pela jornad a. E ssas e o u tras co n v en çõ es literárias são em pregadas p elo au-
to r d o seg u n d o evangelho a fim d e re tra ta r u m a c o n c e p çã o p ro fu n d a m e n te
teológica d e Jesu s c o m o o F ilh o au to ritativ o d e D e u s, ainda que sofredor.

2. A U T O R IA E L O C A L D A C O M P O S IÇ Ã O

O evangelho d e M arcos, c o m o os o u tro s evangelhos canônicos, não iden-


tífica em n e n h u m trech o seu autor, nem , tam pouco, c o m o acontece com Lucas
(1.1-4) e Jo ã o (20.30,31), a ocasião d a escrita. O s títulos d e cada u m dos q uatro
evangelhos, designados com base n a tradição d a igreja, aparecem n a prim eira
m etade d o século II. A n o m enclatura n o rm al é “E v ang elho segundo M ateus”
(gr. euangelion kata Maththaioii), “E v an g elh o seg u n d o M arcos” (gr. euangelion
kata Markon) e assim p o r diante. A igreja prim itiva, c o m relação à tradição d o
evangelho, usava a palavra para “E v an g elh o ” (gr. euangelion) co m regularida-
de no singular e raras vezes n o plural, indicando que concebia a tradição do
Evangelho c o m o u m a unidade, o u seja, o único E v an gelho em q u atro versões.6

5 H.-H. Stoldt, History and Criticism of the Marcan Hypothesis (Macon, Ga.: Mercer
University Press/E dinburgh: T. & T. Clark, 1980), p. 1: “A análise crítica das fon-
tes do evangelho é justificavelmente considerada um dos problemas de pesquisa
mais difíceis na história das ideias. [...] É possível afirmar que nenhum outro
empreendimento na historia das ideias foi sujeito a um escrutínio acadêmico tão
amplo e profundo quanto esse” .
6 M. Hengel, Studies in the Gospel of Mark, trad. J. Bowden (Philadelphia: Fortress
Press, 1985), p. 64-69; M. Hengel, TheFour Gospels and the One Gospeloffesus Christ,
trad. J. Bowden (Harrisburg: Trinity Press International, 2000), p. 34-115.
Introdução 30

A prim eira referên cia ao a u to r e à circu n stância d o seg u n d o evangelho


veio de Papias, b isp o d e H ierapólis, n a Á sia M en or, em u m a o b ra intitulada
Exposição dos oráculos do Senhor; c o m p o sta em algum m o m e n to antes d a m o rte
de Papias em 130 d.C..7 E m b o ra o livro Exposição dos oráculos do Senhor ten h a
sido p erd id o h á m u ito tem p o , o te ste m u n h o d e Papias foi p re serv ad o p o r
E u sé b io na seg u in te versão:

M arcos to rn o u -se o intérprete de P edro e escreveu com precisão tudo


que ele se lem brava, não, de fato, na ordem das coisas ditas e feitas pelo
Senhor. Pois M arcos não ouvira o Senhor nem o seguira, m as mais tarde,
co nfo rm e eu disse, seguiu Pedro que costum ava ensinar conform e a
necessidade exigia, mas não fazendo, p o r assim dizer, um a organização
dos oráculos do Senhor, de fo rm a que M arcos não fez nada errado
em escrever dessa fo rm a p o n to s isolados co n fo rm e se lem brava deles.
C ontudo, ele deu atenção a um a coisa, não deixar de fora nada do que
já ouvira nem fazer afirm ações falsas em seu relato {Hist. Ecl. 3.39.15).

E sse co m en tário , ap esar de te r sid o escrito n o início d o século IV, é


p ro v e n ie n te de fo n tes d e d o is séculos an tes e re p resen ta u m a tradição m uito
confiável. E u sé b io p ro d u z a trad ição acim a n ão só a p artir d e Papias, m as
tam b é m d o re sp eita d o pai d a igreja d o século II, Iren eu . E u sé b io inclui u m
p refácio lo n g o p ara o te ste m u n h o d e P apias, o b se rv an d o que esse últim o,
e m b o ra n ã o te n h a o u v id o d ire ta m e n te o s ap ó sto lo s, fez u m a cu id ad o sa
investigação nas o rig en s da trad ição d o evangelho e receb eu a in fo rm aç ão
acim a p o r in term éd io dos sucessores im ediatos deles, u m João, o A ncião e u m
certo A rístion, discípulos d o ap ó sto lo João. E sse fato data a tradição de Papias
en tre o a n o 90 e 100. A confiabilidade da citação de E u sé b io é fortalecida
ainda m ais pelo d etalh e d e q u e E u séb io , n essa ocasião, está d isp o sto a confiar
o te ste m u n h o a u m h o m e m a q u em ele n ã o co n sid erava au to m aticam e n te
c o m o u m a fo n te confiável.8
O s p o n to s salientes d o te ste m u n h o de Papias são de q u e o seg u n d o
evangelho é p ro v e n ie n te de M arcos, e este, em b o ra n ã o fosse u m ap ó sto lo ,
era u m in térp re te fiel d o te ste m u n h o d o ap ó sto lo P ed ro. Papias testifica ainda

7 W. R. Schoedel, “Papias”, ABD 5.140, localiza a atividade literária de Papias em


aproximadamente 110.
8 Eusébio, em uma ocasião, desmerece Papias “com o um hom em pouco inteligente,
conform e fica claro em seus livros” {Hist. Ecl. 3.39.13). A disposição de Eusébio
de confiar na tradição de Papias relacionada a Marcos indica que tinha razão para
fazer isso, apesar de sua avaliação da reputação de Papias. Para toda essa discussão,
veja Hist. Ecl. 3.39.1-17.
31 A u to ria e lo c a l de c o m p o s iç ã o

que M arcos escreveu co m precisão e se esfo rço u para n ão fazer n en h u m a


afirm ação falsa; q u e ele escreveu apenas tu d o o q u e se lem brava; m as que
não escreveu in teiram en te em o rd e m cronológica. A últim a afirm ação m ostra
que Papias tin h a co n sciên cia q ue M arcos, p elo m e n o s em alguns círculos, foi
criticado p o r ap re se n ta r u m a cro n o lo g ia diversa d a v id a d e Jesus. E ssa crítica
prov av elm en te se origina d o fato de a cro n o lo g ia de M arcos se distanciar, em
certo s particulares, d o evangelho de Jo ão , a q u em o s p ro teg id o s de Papias
aderiram .
A referência a P ed ro “ ensinar co n fo rm e a necessidade exigia” é elaborada
ainda m ais n o te ste m u n h o de E u séb io , cujo c o n te ú d o ele atribui ao pai da
igreja d o final d o século II, C lem en te d e A lexandria:

Q u a n d o P e d ro p re g o u p u b licam en te a palavra em R o m a e, pelo E sp írito ,


p ro c la m o u o evangelho para aqueles presentes, qu e eram m u ito s, ex o rto u
M arco s, c o m o u m d o s seguidores [de P edro] p o r u m lo n g o p e río d o e
aquele q u e se lem b rav a d o q u e fora falado, a fazer u m reg istro d o que
fo ra d ito ; e q u e ele fez isso e d istrib u ía o evang elh o e n tre aqueles q u e
lhe p e d ia m u m a có p ia {H ist. E cl. 6.14.6-7).

P o d em o s acrescen tar a esse relato o c o rro b o ra n te te ste m u n h o de Iren eu


d o m ead o d o sécu lo I I de q u e M arcos, “ o discípulo e in té rp re te de P edro,
após P ed ro e P aulo p reg arem e lançarem os fu n d a m e n to s da igreja em R om a,
tam b ém e n tre g o u ele m e sm o u m esc rito d o s fato s p re g ad o s p o r P e d ro ”
(A dv. H aer. 3.1.1). A tradição d e q ue P ed ro era u m a fo n te essencial p ara o
evangelho de M arcos — n a v erdade, o se g u n d o ev angelho era em m uitos
aspectos as “m em ó rias d e P e d ro ” — e n c o n tro u , que saibam os, concordância
unânim e n a igreja prim itiva.9 A ssim , a p a rtir de u m a variedade d e tradições *V
.

9 O p rólogo antim arcionita; Ju stin o M ártir, D ial. T rif.p. 106; Iren eu , A dv. Haer.
3.1.1; H ipólito, sobre lP e 5.:13; C lem ente de Alexandria (citado em E u séb io H ist.
Ecl. 6.14.6; O rígenes (citado em E usébio, H ist. Ecl. 6.25.5); Jerónim o, Com. deM t,
Prooemium 6). Veja mais, Eusébio, H ist. Ecl. 2.15; 5.8.2. Veja o m aterial reunido em
V. Taylor, The GospelAccording to St. M ark,p. 1-8; W. G ru n d m an n , D as Evangelium nach
Markus, p. 22-23; e H. Y íoestet, Ancient Christian Gospels: Their History and Development
(Philadelphia: Trinity Press International, 1992), p. 289-90. A os testem u n h o s
acima, tam bém poderia ser acrescentado o C ânone M uratório que co n tém um a
lista de livros reconhecidos p o r sua autoridade em R om a n o p erío d o de 170-190.
A parte inicial d o C ânone M uratório foi perdida, e a porção sobrevivente co n tém
apenas um fragm ento da afirm ação final sobre M arcos (“ na qual, n o entanto, ele
estava presente e assim a escreveu”). A afirm ação acima, em b o ra incom pleta, é
razoavelm ente explicada, com o nas tradições preservadas p o r Papias, Iren eu e
Introdução 32

d o final d o século I em diante, v em o s u m te ste m u n h o co m p lem en tar de que


o a u to r d o seg u n d o evangelho é M arcos, o in té rp re te d e P edro, q u e co m p ô s
o evangelho em R om a.
O M arco s em co n sid eraçã o é ev id en te m e n te Jo ã o M arcos, filho d e um a
m u lh er ch am ad a M aria, em cuja casa a igreja prim itiva se reunia em Jeru sa-
lém (A t 12.12). E ssa m esm a hab itação foi a p a re n tem e n te tam b ém o local
d a últim a ceia (A t 1.13,14; M c 14.14).10 N o N o v o T estam en to , Jo ã o M arcos
aparece só em associação co m as personalidades e eventos m ais proem inentes.
E le a c o m p a n h o u B arn a b é e Saulo (Paulo) c o m o u m assistente na prim eira
viagem m issionária destes (A t 12.25; 13.4), sen d o ev id en tem en te responsável
pelos arran jo s d e viagem , alim en to s e h o sp ed ag em . E m Perge, ele ab an d o -
n o u a viagem p o r m o tiv o s n ã o revelados (A t 13.13). A q u estão se M arcos
deveria p artic ip a r d a seg u n d a viagem m issionária em ap ro x im ad am en te 50
d.C. re su lto u em u m a sep aração e n tre Paulo e B arnabé: Paulo, co n sid eran d o
injustificável a d eserção d e M arcos n a prim eira viagem e não estan d o disp o sto
a levá-lo em u m a seg u n d a viagem , levou Silas e re to rn o u p ara a Á sia M enor;
e n q u a n to B arn ab é re to rn o u p a ra C h ip re co m M arcos (A t 15.37-41). N ã o se
ouve m ais falar em Jo ã o M arcos p o r u m a década, q u an d o referências esparsas
m o stra m q u e ele se reco n cilio u co m P au lo (Cl 4.10; F m 24; 2T m 4.11). U m a
referên cia final d o N o v o T e sta m e n to o m o stra trab alh an d o co m P ed ro em
R om a (lP e 5.13). M arcos, d e ac o rd o co m a tradição patrística, evangelizou no
E gito e aü estabeleceu igrejas caracterizadas pelo asceticism o e rigor filosófico,
to rn a n d o -se p o r fim o p rim eiro b isp o de A lexandria (E usébio, Hist. Ecl 2.16).
E m b o ra n ão p o ssam o s co m p ro v a r q ue Jo ã o M arcos foi o au to r d o según-
d o evangelho, o p e so d a evidência está firm em e n te a seu favor. O evangelho
tem inú m eras características d o relato de u m a te ste m u n h a ocular, e terem o s
várias ocasiões n este c o m en tá rio de m o stra r em q u e p o n to s a histó ria de
M arcos se apoia plausivelm ente n o te ste m u n h o de Pedro. N e n h u m a tradição
da igreja prim itiva e n e n h u m pai da igreja atribui o evangelho a alguém o u tro
que n ão M arcos. U m a vez q u e os livros d o N o v o T e stam e n to n o rm a lm e n te
exigem au to ria p o r u m ap ó sto lo p ara q ue p o ssam ser aceitos n o cân o n e, é
im provável q u e a igreja prim itiva te n h a atrib u íd o u m evangelho a um per-

Eusébio, como uma referência à presença de Marcos na pregação de Pedro, ou


seja, “Marcos, no entanto, estava presente na pregação de Pedro e a escreveu”.
1(1G rundm ann, Das Evangelium nach Markus, p. 21, sugere que o rapaz carregando a
jarra de água em Marcos 14.13 era o próprio Marcos, o autor do evangelho. Não
existe nenhum a outra evidência disso, quer a favor dessa ideia quer contra ela.
33 Data

so nagem m e n o r c o m o Jo ã o M arcos, cujo n o m e n ã o aparece em n en h u m a


lista apo stó lica, a m en o s q ue ele fosse o autor. O títu lo n ão elab o rad o “ O
evangelho seg u n d o M arco s” sugere o ú n ico M arcos que co n h e cem o s no
N o v o T e sta m e n to — J o ã o M arco s.11

3. DATA
A d ata d o evangelho de M arcos é tão o b sc u ra q u a n to seu autor. E m ne-
n h u m tre c h o o evangelho d e M arcos, n em q u aisq uer do s o u tro s evangelhos
canônicos, fo rn ece in fo rm aç õ es específicas p o r m eio das quais p o ssam ser
datados. U m a d ata ap ro x im ad a da co m p o siçã o d e p e n d e de u m a com b in a-
ção d e relato s d e fo n tes ex tern as e n o q u e a evidência in te rn a n o p ró p rio
evangelho su g ere c o m re sp eito à datação. E m a m b o s os casos, a evidência é
lim itada, e, p o r conseguinte, as conclusões so b re a data d o segundo evangelho
têm d e ser tentativas.
Iren eu , co m resp eito à evidência ex tern a, relata q u e M arcos só escreveu
o evangelho d ep o is d o “ êx o d o ” (gr. êxodos) d o s a p ó sto lo s P ed ro e Paulo em
R om a (Adv. Haer. 3.1.1). O u so d o te rm o “ êx o d o ” na passagem significa
a m o rte d e P ed ro e P aulo (co m o ta m b é m o u so d a palavra em 2P e 1.15; e
E usébio, Hist. Ecl. 5.8.2). Isso é co n firm a d o p elo te ste m u n h o d o P ró lo g o
antim arcio n ita — u m a fo n te c o n te m p o râ n e a d e Ire n e u , se n ão an terio r —
que m e n cio n a de fo rm a explícita a m o rte de P e d ro antes d a com posição
do evangelho p o r M arcos (lat. post exceáonem ipsius Petri). E ssa tradição não
é u nânim e, n o en tan to , p o r causa d e dois pais d o século III, C lem en te de
A lexandria (E usébio, Hist. Ecl. 6.14.6-7; 2.15.2) e O ríg e n e s (Flusébio, Hist. Ed.
6.25.5), en q u a n to ela silencia co m resp eito a Paulo, relata que M arcos co m p ô s
o evangelho em R o m a durante o p e río d o d e vida de P edro. N ã o é m ais p os-
sível julgar quais dessas duas trad içõ es é c o rreta, m as as evidências externas
com binadas, d e q u alq u er m o d o , localizam a co m p o sição de M arcos p e rto
do fim da vida de P ed ro o u lo g o d ep o is dela. A trad ição da igreja prim itiva é1

11Taylor, The GospelAccording to St. Mark, p. 7, conclui a análise crítica completa dos
antigos testem unhos do evangelho de Marcos, portanto: “ Em suma, podemos
dizer que, desde o início do século II, a evidência externa concorda em atribuir a
autoria do evangelho de Marcos, ‘o intérprete de Pedro’, e [...] em designar o local
de sua composição em Roma” . D a mesma forma, J. Wenham, Reading Matthew,
Mark and Luke (Downers Grove: InterVarsitv Press, 1992), p. 142: “Todos esses
testemunhos apontam para um cerne sólido da tradição, o que torna Marcos o
autor do evangelho e também um cooperador de Pedro, e isso torna seu livro um
registro fiel do que o apóstolo ensinou em Roma.
Introdução 34

u n ân im e de q ue P ed ro m o rre u d u ra n te os ú ld m o s anos d o rein ad o de N e ro ,


que g o v e rn o u d e 54 a 68. A evidência ex tern a sugere um a d ata para M arcos
en tre m ead o s e o final d a d écad a de 60 d o século I.
A rg u m e n to s d a evidência in tern a p ara a d atação de M arcos fu n d am en -
tam -se em três e talvez q u a tro possíveis datas relevantes. P rim eiro, a ênfase
de M arco s em Jesu s c o m o o F ilh o sofredor de D e u s e a c o n c o m itan te ênfase
n o discipulado s o fre d o r (8.31— 9.1; 13.3-13), sugere q ue o seg u n d o evangelho
foi escrito para cristãos so fre n d o perseguições. T em os co n h ecim en to de duas
perseguições d u ra n te as décadas após a crucificação de Jesus, a prim eira sendo
a tentativa d e Caligula d e erigir u m a estátu a d e si m e sm o so b a aparência de
Z eu s n o tem p lo d e Jeru sa lém (Josefo ,A nt. 18.261-309). A am bição insana de
Caligula foi p o ten cia lm en te catastrófica, m as, em razão d e seu assassinato em
41 d.C., to d o esse assu n to foi evitado. A seg u n d a perseguição, real e bárbara,
o co rre u em R om a, so b Ñ ero . O im p e ra d o r — b u sca n d o u m b o d e ex p iató rio
p ara o in c ê n d io em R o m a — e sa b e m o s q u e o h is to ria d o r ro m a n o T ácito
p ô s a cu lp a d esse in c ên d io n as o rd e n s d o p ró p rio N e ro — a p re sso u -se a
culp ar os cristãos e os sujeitou aos h o rro re s m ais cruéis (Tácito, Anais 15.44).
A conflagração ro m a n a o c o rre u n o an o d e 64, co m a perseguição d o s cristãos
p o r N e ro a c o n te c en d o logo depois. Isso coincide com o local e d atação ap ro -
xim ada d e M arcos sugerida pela evidência ex tern a e em p resta apo io plausível
à inferência de q ue o p an o d e fu n d o da perseguição em M arcos era o m assacre
d e N e ro , e esta foi a p rim eira p erseguição oficial e n fren tad a pelos cristãos.
O se g u n d o p o rm e n o r relevante para a d atação de M arcos é a afirm ação
em 13.14 so b re “ ‘o sacrilégio terrível’ n o lugar o n d e n ão deve estar” . A palavra
grega p ara “ n o lugar” ( hestêkotà) está n o m asculino, o que, para m u ito s co-
m entaristas, sugere q u e a afirm ação é u m a referência enigm ática da destruição
d o te m p lo p o r T ito em 70 d.C . Se essa sugestão p u d esse ser co n firm ad a,
en tão a d atação d a c o m p o siçã o de M arcos teria d e ser dep o is dessa data.
C o n tu d o , é m u ito d u v id o so q u e essa sugestão p o ssa ser co n firm ad a. U m a
co m p araçã o d a referên cia enigm ática em 13.14 co m a descrição detalh ad a de
Jo se fo da c a p tu ra e d estru içã o d o tem p lo n o livro 6 de A guerrajudaica não
e n c o n tra paralelos ex ato s e se d e p a ra co m várias discordancias reais. U m a
en tra d a ap o te ó tica d o v ito rio so T ito n o tem p lo d e stru íd o n ão é n arrad a em
n e n h u m o u tro tex to d e J o se fo d e u m a fo rm a re m iniscente d e 13.14 (Veja
Guerra 6.409-13). Jo sefo , p o r sua vez, enfatiza rep etidas vezes a d estru ição
d o te m p lo p elo fogo, e esse fato n ã o é m e n cio n a d o em M arcos 13. A cim a
de tu d o , a referên cia p ara fugir p ara as m o n ta n h a s q u an d o “ virem ‘o sacri­
35 Data

légio terrível’ n o lugar o n d e n ão deve estar” dificilm ente se refere ao cerco


ro m an o , pois q u a n d o T ito e n tro u em Jeru sa lém , a cidade já estivera sitiada
pelo m u ro d o ce rco ro m an o , o circumvallatio, to rn a n d o a fuga de Jerusalém
p ratic am en te im possível. A am biguidade de 13.14 é u m ta n to su rp reen d en te
se M arcos estivesse c o m p o n d o seu evangelho d e p o is d a q u ed a de Jerusalém .
Se M arco s so u b esse d a q u ed a de Jeru sa lém , seria de esp erar um a correlação
mais óbvia com o cerco ro m a n o , c o n fo rm e , p o r exem plo, fica ap aren te em
Lucas 21.20,24. E ssa evidência relacionada a M arcos 13.14, p o r conseguinte,
sugere u m te m p o an te rio r à q u ed a de Jeru salém em 70 .12
A terceira p eç a d e evidência p o d e talvez estar o cu lta n a opaca referência
na cena da ten taç ão de Jesu s em q u e ele estava “ c o m os anim ais selvagens”
(1.13). E ssa frase n ão tem n e n h u m paralelo ó b v io n a Bíblia e ainda n ão foi
explicada d e fo rm a satisfatória. E s to u in clin ad o a v er nessa frase u m a refe-
rência velada à p erseguição d e N e ro , em p artic u la r o estad o d o s assuntos
descritos m ais tard e na afirm ação d e T ácito q u e os cristãos estavam “ co b erto s
com as peles d o s anim ais selvagens e fo ram d esp e d aça d o s p o r cães” (Anais
15.44). C o n sid e ran d o os arg u m en to s acim a p ara a perseguição de N e ro co m o
o p an o d e fu n d o de M arcos, n ão é im plausível que M arcos te n h a incluído
um a referên cia aos anim ais selvagens n o relato d a ten tação d e Jesu s a fim de
encorajar os cristãos ro m an o s su b m etid o s às atro cidades de N e ro afirm an d o
que o p ró p rio Jesu s e n fre n to u os anim ais selvagens — e, ao fazer isso, foi
m inistrado pelo s anjos.
U m a q u arta possível peça d e evidência relev an te para a co m p o sição de
M arcos v em d o re tó ric o ro m a n o Q u in tilian o , que m o ro u em R om a d o breve
reinado de G alb a (68 d.C.) até o rein ad o d e D o m ic ia n o (81-96). Q uintiliano,
no livro 1 de seu Institutio Oratorio, d ev o tad o à ed ucação infantil, faz um a
referência d e passag em aos jovens estu d an te s precoces, m as sem m aturidade
e p ro fun did ad e. A referên cia é cu rio sa m e n te rem in iscen te da p arábola do
sem ead or (M c 4.3-9, par.) e d a p aráb o la d a sem en te q u e cresce (Mc 4.26-
29), e essa ú ltim a é única d e M arco s.13 Q u in tilian o , n a ép o ca em que estava

12 Veja ainda a discussão dessa questão em 13.14, e tam bém H engel, Studies in the
Gospel o f M ark, p. 18.
13 “N o n m ultum praestant, sed cito; n o n subest uera uis nec penitus inmissis ra-
dicibus nidtur, u t quae sum m o solo sparsa sund sem ina celerius se effundunt et
imitatae spicas herbulae inanibus aristis ante m essem flauescunt. Placent haec
annis com parata; deinde stat profectus, adm irado decrescit” (Institutio Oratorio
1.3.5). H. E. B utler (LCL; 1963) traduz o texto acim a desta form a: “ Eles não
Introdução 36

e sc re v e n d o Institution e ra tu to r d e d o is jo v e n s p rín c ip e s, o s filh o s d e D o m itila ,


s o b rin h a d e D o m ic ia n o , e s e u m a rid o C le m e n te . “T u d o q u e s a b e m o s s o b re
Q u in tilia n o d e m o n s tr a q u e ele faria o m e lh o r p o ssív e l p a ra m a n te r u m rela-
c io n a m e n to ín tim o c o m o s p a is d a q u e le s s o b su a re s p o n s a b ilid a d e ” , e sc re v e
F. H . C o ls o n .14 O z e lo d e Q u in tilia n o n e ssa o c a siã o é re le v a n te , p o is a m ã e
d o s m e n in o s (e ta lv e z o p a i ta m b é m ) e ra c ristã c o n fe ssa . A s a fin id a d e s d a
m e tá fo ra d e Q u in tilia n o c o m as d u a s h istó ria s s o b re h o r tic u ltu r a n o s e v a n -
g e lh o s, u m a d as q u ais o c o r r e a p e n a s e m M a rc o s, p o d e su g e rir q u e o re tó ric o ,
talv ez p o r in te r m é d io d e D o m itila e C le m e n te , tiv e sse a lg u m a fa m ilia rid a d e
a n te rio r c o m o e v a n g e lh o d e M a rc o s .15 E s s a p o ssib ilid a d e , e m b o r a n ã o n o s
p e rm ita a v a n ç a r o g ra u d e p re c isã o c o m re la ç ã o à d a ta d o s e g u n d o e v a n g e lh o ,
p o d e e m p r e s ta r u m a e v id ê n c ia c o rro b o ra tiv a d e q u e M a rc o s e ra c o n h e c id o
e m R o m a e m a lg u m m o m e n to d e p o is d e 68.
E m su m a , e m b o r a n e n h u m d o s a r g u m e n to s e d a s e v id ê n c ia s p re c e d e n -
tes se ja m c o n c lu siv o s e m si m e s m o s , u m a c o m b in a ç ã o d o s d a d o s e x te rn o s
e in te r n o s p a re c e m a p o n ta r p a ra a c o m p o s iç ã o d o e v a n g e lh o d e M a rc o s e m
R o m a e n tr e o g r a n d e in c ê n d io d e 6 4 e o c e rc o e d e s tru iç ã o d e J e ru s a lé m p o r
T ito e m 7 0, o u seja, p o r v o lta d o a n o 6 5 .16

têm poder de fato, e o que você tem não passa de um crescimento raso: é como
quando lançamos a sem ente na superfície do solo: ela nasce com rapidez, a folha
imita a espiga com grãos, e os amarelos anunciam o tem po da colheita, mas não
há grãos. Essas trapaças nos agradam quando as contrastamos com a idade do
executor, mas o progresso logo é interrompido, e nossa admiração murcha” . Sobre
a similaridade do texto acima com a versão de Marcos da parábola do semeador,
H. J. Rose, “ Quintilian, T he Gospels and Corned}'” , Classical Review 39 (1925), p.
17, escreve que “essa passagem nos apresenta um paralelo mais próximo do texto
original que conheço, não apenas pela tendência geral da parábola do semeador,
mas graças à form a com o se desenvolve um detalhe dela. [...] Aqui, detalhamos
um paralelismo que se estende até mesmo às palavras usadas, quando levamos em
consideração as diferenças entre o estilo simples de Marcos e o estilo elaborado
de Quintiliano”.
14 F. H. Colson, “Quintilian, the Gospels and Christianity,” ClassicalReview?>9 (1925),
p. 167.
15 Ibid.,p. 169: “N ão hesitaria em dizer que a explicação natural era [...] que Quin-
tiliano tinha, quer por interm édio de Domitila quer pela leitura direta do texto,
em prestado do evangelista, e que temos aqui a primeira adaptação dos evangelhos
em um escritor pagão e talvez o primeiro em qualquer escritor” .
16 Wenham, ReadingMatthew, M ark and Cuke, p. 146-72, argumenta que Pedro visitou
Roma no início do reinado de Cláudio (em 42-44), e que Marcos foi escrito logo
depois disso em c. 45. Apesar dos argumentos corajosos de Wenham e outros
37 C aracterísticas literárias específicas

4. C O N T E X T O H I S T Ó R I C O
D e ta lh e s relevantes n o se g u n d o evangelho c o rro b o ra m a reco n stru çã o
histórica p re c e d e n te d e q ue a in ten çã o d o evangelho d e M arcos era retratar
a p esso a e m issão d e Jesu s C risto p ara os cristão s ro m a n o s en fren tan d o
perseguição so b N e ro . N ã o resta a m e n o r d ú v id a d e q u e M arcos escreveu
para os leitores g entios, e o s g en tio s ro m a n o s e m particular. M arcos cita com
relativa p o u c a frequência o A n tig o T e sta m e n to e explica os co stu m es judai-
cos p o u c o s fam iliares a seus leitores (7.3,4; 12.18; 14.12; 15.42). E le traduz
frases aram aicas e hebraicas p o r seus equivalentes greg o s (3.17; 5.41; 7.11,34;
10.46; 14.36; 15.22,34).17 E le ta m b é m in c o rp o ra u m a série d e latinism os ao
transliterar ex p ressõ es latinas fam iliares p ara os caracteres g re g o s.18 P o r fim,
M arcos ap re se n ta os ro m a n o s em u m a luz n e u tra (12.17; 15.1,2,21,22) e al-
gum as vezes favorável (15.39). E sses d ad o s in d icam que M arcos escreve para
leitores g re g o s cuja e stru tu ra p rim ária d e referên cia era o Im p ério R om ano,
cuja língua nativa era ev id en te m e n te o latim , e p a ra os quais a te rra e o éthos
judaico de Jesu s n ã o lhes eram fam iliares. M ais u m a vez, R om a p arece ser o
lugar o n d e e p ara o qual o seg u n d o evangelho foi c o m p o sto .

5. CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS ESPECÍFICAS


5.1 Estilo
M arcos é o m e n o r e m ais c o m p a c to d o s q u a tro evangelhos. A brevidade
do evangelho de M arcos se deve ao fato de que M arcos inclui m en o s histórias

(e.g., G. E d m undso n; recentem ente C. P. T hiede), nenh u m a evidência externa


nem interna para essa data é convincente. E verdade que a tradição da igreja do
século IV em diante pressupõe a perm anência rem ota e longa (25 anos) de Pedro
em Rom a, m as o N o v o T estam ento se silencia totalm ente sobre o assunto, e, até
o século IV (incluindo E usébio), há apenas evidência am bígua e esparsa sobre o
assunto. D e qualquer m odo, a questão a ser resolvida não é quan d o P edro estava
em Rom a, m as quando o evangelho de M arcos foi escrito, e a evidência interna
no evangelho parece favorecer a perseguição de N e ro na década de 60, em vez
da década de 40, um período relativam ente sem m uitos eventos.
17Veja G ru n d m an n , D as Evangelism nach M arkus, p. 23. H engel, Studies in the Gospel o f
M ark,p. 46, declara: “N ã o conheço nen h u m o u tro trabalho em grego que tenha
tantas palavras em aram aico ou hebreu e preceitos em um espaço tão dim inuto
quanto o tem o segundo evangelho” .
18 Essas palavras são derivativas com base latina em M arcos: modius, 4.21; legio, 5.9,15;
speculator, 6.27; denarius, 6.37; census e Caesar, 12.14; praetorium, 15.16; e centurio,
5.39,44. Para um a discussão das frases gregas em M arcos que derivam dos originais
latinos, veja B D F, 4-6.
Introdução 38

em seu evangelho q ue os o u tro s evangelistas. A s histórias q u e M arcos inclui,


n o en tan to , são, via d e regra, n arrad as de u m m o d o m ais co m p leto q u e as
m esm as histórias n o s o u tro s ev angelhos.19 M arcos co m p õ e seu evangelho
co m um to tal d e 1.270 palavras gregas distintas, excluindo os n o m es próprios.
E ssa ex ten sã o relativam ente m o d e sta de vocabulário, q u e é quase o m esm o
n ú m e ro d e palavras latinas d iferen tes usadas p o r C ésar em u m a o b ra m u ito
m ais exten sa A s guerras da Gália, indica q u e M arcos, co m o C ésar, utiliza o vo-
cabulário d a fala c o m u m a fim d e tran sm itir ev en to s extraordinários. M arcos
evita o estilo cu lto e co m freq u ên cia afetad o q u e caracteriza as obras-p rim as
áticas e ta m b é m m uitas palavras gregas helenistas. E le escreve em u m estilo
sem re b u scam en to s, em b o ra vivido, q u e se co m unica de im ediato co m o
leitor. E le m a n té m u m ritm o v ig o ro so ao iniciar de m o d o u b íq u o sentenças
co m “ e” (gr. kai), b em c o m o p o r ligar o raçõ es co o rd en ad as p o r kai, e não
p elo u so d o s p articip ios o u o ra çõ es su b o rd in ad as; ao uso igualm ente u b íq u o
d o “ te m p o p re se n te h istó ric o ” d o s v erb o s gregos; e pelo uso freq u en te de
palavras co m o “ im ed iatam en te” (gr. euthys), “ d e n o v o ” (gr. palin) e m uitas
palavras p ara ex p ressar esp a n to e asso m b ro . E m alguns m o m en to s, a rapi-
dez da n arrativ a d e M arcos é rivalizada p o r sua d en sidade n a expressão ou
arte de dizer, c o m o p o r exem plo, em 5.26,27, em que seis particip io s em
rápida sucessão p re c e d e m o v erb o finito. Igualm ente característico d o estilo
de M arcos é a p re ferê n cia p elo s d im inutivos e, c o n fo rm e o b serv ad o antes,
sua pred ileção p ara incluir palavras e frases gregas que devem sua m en ção
aos originais latinos, q u er tran sliteraçõ es das palavras latinas q u er ecos da
sintaxe e fraseologia latinas. A n arrativ a vivaz de M arcos deixa a im p ressão
de b astan te p ro x im id ad e d o s ev e n to s d escrito s, e suas períco p es são po stas
lado a lado, c o m o tijolos d e u m a co n stru ç ã o pra tic am en te sem argam assa
editorial en tre elas. D eta lh e s n arrativ o s org an izad o res — p o r exem plo, o n d e
e q u an d o Je su s estava em u m d a d o m o m e n to o u qu em estava co m ele — são
red u zid o s a u m m ín im o , e o re su ltad o dessa estratégia narrativa se aproxim a
das peças m o d e rn a s c o m p o u c o cen ário e p a n o de fu n d o , a fim de fo car a
aten ção to ta lm e n te em Jesu s.

19 Por exemplo, em Marcos, a história de Jesus curando a filha de Jairo e a mulher


com hemorragia (Mc 5.21-43) contém 383 palavras cm grego. Os paralelos em
Mateus 9.18-26 e Lucas 8.40-56 contêm 138 palavras (= 36% da extensão de
Marcos) e 285 palavras (= 74% da extensão de Marcos), respectivamente.
39 C a ra c te rís tic a s lite rá ria s e s p e c ífic a s

5 .2 Técnica de sanduíche
O se g u n d o ev an g elh o in te rro m p e c o m fre q u ê n c ia u m a h istó ria ou
p eríc o p e ao in serir ali u m a seg u n d a h istó ria a p a re n tem e n te sem qualquer
relação co m a prim eira. P o r exem plo, n o cap ítu lo 5, Jairo, u m dirigente da
sinagoga, p ed e a Jesu s p ara cu rar sua filha (w . 21 -24). U m a m u lh er c o m u m a
h em o rrag ia in te rro m p e Jesu s q u a n d o este estava a cam in h o para a casa de
Jairo (w . 25-34) e só ap ó s o reg istro d a cu ra d a m u lh er é q u e M arcos re to m a
de fato a ressu rreição da filha d e Jairo q ue m o rre ra n esse ín terim (w . 35-43).
E sse sand u ích e em p articu lar é so b re a fé, m as o u tro s sanduíches, co m nove
o co rrên cias n o evangelho,20 en fatizam tem as co n c o m itan tes de discipulado,
testem u n h o s o u perig o s d a apostasia. O s sanduíches, p o r conseguinte, são
co nv ençõ es literárias co m p ro p ó sito s teológicos. C ada unidade de sanduíche
co nsiste d a sequência A ’-B -A 2, em que o c o m p o n e n te -B fu n cio n a co m o
um a chave teológica p ara as m etad es q u e o ladeiam . P o d e haver ru d im en to s
da técnica d e san d u ích e nas trad içõ es q u e M arcos recebeu, m as u m a com -
paração d e M arco s c o m os o u tro s sin ó tico s revela q ue ele em p reg a a técnica
sanduíche de u m a fo rm a p ro n u n c ia d a e única p ara salientar os principais
tem as d o evangelho.21

5.3 Ironia
M arcos é o m estre d o inesperado. O seg u n d o evangelho, além desse
estilo n arrativ o vivaz e da técnica de sanduíche, é caracterizado pela ironia. O
uso da iro n ia é im p o rta n te p ara o se g u n d o evangelista que, ao lo n g o de to d o
o evangelho, d escreve Jesu s c o m o aquele q u e desafia, c o n fu n d e e algum as
vezes q ueb ra os estereó tip o s convencionais, q u er religiosos, q u er sociais, quer
políticos. A re sp o sta de Jesu s a várias pessoas e situações — e a resp o sta delas
a ele — n ão é de fo rm a algum a o q u e o leito r antecipa. O s líderes religiosos
e m orais, c o n fo rm e re p re se n ta d o s pelos escribas e Sinédrio, p o r exem plo,
estão em incessante co m b ate co m Jesu s ao lo n g o d o evangelho, ao p asso que
a m ulh er g en tia siro-fenícia sem n e n h u m a re p u ta ção é elogiada p o r sua fé
(7.29). D a m esm a fo rm a, aqueles m ais p ró x im o s de Jesus — seus discípulos
(8.14-21,33; 10.35-45) e até m esm o sua p ró p ria fam ília (3.21,31-35; 6.1-6) —
perceb em sua m issão e ser apenas g ra d u alm en te e c o m dificuldade, ao passo
que os de fora, c o m o o cego B artim eu (10.46-52) e o cen tu rião g entio (15.39)

20 3.20-35; 4.1-20; 5.21-43; 6.7-30; 11.12-21; 14.1-11; 14.17-31; 14.53-72; 15.40— 16.8.
21 VejaJ. R. E dw ards, “ M arkan Sandwiches: T h e Significance o f In terp o latio n s in
M arkan N arratives”, N opT 31 (1989), p. 193-216.
Introdução 40

re sp o n d e m a Jesu s in tu itiv am en te e m ais d e im ediato. Jesus, em ainda o u tro


exem plo, restau ra os estran g eiro s d e fora, c o m o um lep ro so (1.40-45) e um
d em o n íac o hostil (5.1-20) à saúde e à sociedade — e, ao fazer isso, to rn a-se
ele m esm o u m d e fora. Jesu s en tra em u m a g ra n d e variedade de cenários em
M arcos, em cada u m deles co n tin u a a ser sua p ró p ria p esso a em liberdade e
au to rid ad e so b eran as, d esafian d o a fo rm a c o m o as coisas são e e sten d e n d o
esp erança p ara o q u e p o d e m se to rn ar. O s leitores d o evangelho de M arcos
ach am necessário a b a n d o n a r suas p re co n ce p çõ es d o que D e u s e o M essias
de D e u s são a fim d e ex p e rim en tar u m “ n o v o en sin o — e c o m au to rid ad e”
(1.27) — e a p ren d er que o v in h o n o v o exige um a vasilha de co u ro nova (2.22).

6 . JESUS NO EVANGELHO DE MARCOS


C ada u m a das p eríco p es em M arcos é so b re Jesus, exceto p o r duas so b re
Jo ã o B atista (1.2-8; 6.14-29), ap re se n ta d o c o m o o p re c u rso r de Jesus. D o
início ao fim , Jesu s é o a ssu n to in c o n te ste d o evangelho de M arcos, sen d o
re tra ta d o c o m o u m h o m e m de ação. A ação d o evangelho é im p o rtan tíssim a
para o sen tid o d o evangelho, pois a p re n d e m o s q u em Jesus é, n em ta n to pelo
que diz q u a n to p elo q u e /αχ. M arcos, em relação a esse assunto, escreve com
u m pincel cheio d e cores. M arcos — de fo rm a d istin ta d o evangelho d e João,
p o r exem plo, em q u e os principais tem as ficam explícitos — ap resen ta os
principais tem as d e fo rm a implícita, exigindo que os leitores en tre m n o dram a
d o evangelho a fim d e c o m p re e n d e r seu sentido. M arcos, em b o ra se refira
co m freq u ên cia a Jesu s c o m o m estre, ra ram en te relata o c o n te ú d o de seus
ensinam en to s. Fica ra p id a m en te ap a ren te q u e a p esso a d o m estre é m ais
im p o rta n te q u e o c o n te ú d o d e seus en sin am en to s. M arcos, d en tre os q u atro
evangelistas, tam b ém é o q u e m ais p ro n tam e n te retrata a hum anidade de Jesus,
incluin do seu p esa r (14.34), d e sa p o n ta m e n to (8.12), d esagrado (10.14), raiva
(11.15-17), p erp lex id ad e (6.6), fadiga (4.38) e até m esm o ignorância (13.32).
A trad ição d o evangelho su b seq u e n te a M arcos revela u m a ten d ên cia sutil
p ara suavizar e em u d ecer o re tra to n ítid o d a h u m an id ad e de Jesu s p in tad o
p o r esse evangelista. O re tra to d e Jesu s feito p o r M arcos, acim a de tud o , é
caracterizado p o r três fatores: a au to rid a d e divina, a m issão c o m o o S ervo
so fre d o r d e D e u s e a filiação divina.

6.1 A autoridade de Jesus


A característica d e Jesu s q ue d eixou a im p ressão m ais d u ra d o u ra em
seus seguidores e m ais o fe n d e u seus o p o n e n te s foi a exousia, sua liberdade
41 J e s u s no e v a n g e lh o de M a rc o s

so b eran a e au to rid ad e m agistral. Jesus, em sua p rim eira aparição pública em


M arcos, deixa a co n g reg ação da sinagoga estarrecida co m sua suprem acia
so b re o m u n d o d em o n íac o e o e n sin am e n to da T o rá m in istrad o p o r especia-
listas n o a ssu n to (1.21-28). O s dois efeitos — os en sin am en to s e a expulsão
de d e m ô n io s — originam -se de sua au to rid a d e divina.
A exousia de Jesus se ap resen ta pela prim eira vez em sua liberdade ousada
para re o rg an iza r as p rio rid ad es políticas e sociais. O ch am ad o d o s do ze dis-
cípulos, cujo n ú m e ro c o rre sp o n d e às d o ze trib o s de Israel (3.13-19), sugere
um c u m p rim e n to d o d estin o d e Israel n o c o n se lh o ap o stó lico d o s seguido-
res. O re la cio n am en to co m a m ãe e os irm ão s é re d efinido de aco rd o com o
fazer a v o n tad e d e D eu s, e n ão pela linhagem d e sangue (3.31-35; 6.1-6). N o
reino político, Jesu s p re su m e declarar o q u e é — e o q u e n ão é — d evido a
C ésar (12.13-17).
A exousia de Jesu s tam b é m se m an ifesta em sua audácia para redefinir os
m an d am e n to s da T orá. A resp o n sab ilid ad e de u m filho d e p ro v e r para seus
pais deve, c o n fo rm e d eclarad o p o r Jesus, su p lan tar a o p ção legal de C o rb ã
(7.8-13). Jesu s faz u m a crítica v eem en te à trad ição oral rabínica (7.1-23) e,
em c o n tra ste co m a trad ição d o s anciãos e a lei m osaica, abraça u m lep ro so
(1.40-45), p u b lícan o s e p ecad o res (2.13-17) e g en tio s im u n d o s, incluindo a
m ulher siro-fenícia (7.24-30). Jesu s tran sg rid e a p ro ib ição de trab alh ar aos
sábados c o lh e n d o grão s (2.23-26) e c u ra n d o (3.1-6); e ele red efin e o p ró p rio
p ro p ó sito d o sáb ad o c o m o u m a o rd e m co n stitu tiv a da criação (2.27,28). A s
discussões rabínicas n a Palestina d o século I eram o rientadas prin cip alm en te
em to rn o d e q u a tro p o n to s b em delim itados: a o b servância d o sábado, o ritual
de lim peza, alim en to s e ca sam en to — cad a u m d o s quais se desenvolvería
mais tard e em trata d o s individuais o u divisões inteiras d a M ishná. C ada um
desses q u a tro asp ecto s é desafiad o d e fo rm a v ig o ro sa p o r Jesus.
P or fim e ainda m ais im p o rtan te, a autoridade d e Jesus se m o stra na fo rm a
com o afirm a suas prerro g ativ as que, d e o u tra fo rm a , p e rte n c e m só a D eus.
Jesus tem a habilidade d e cu rar as m ais variadas e as m ais sérias d o en ças —
habilidade essa re co n h ec id a até m e sm o p o r seus o p o n e n te s (3.22; b. Shab.
104è; b. Sanh. 25 d). Sua au to rid a d e ta m b é m se esten d e à suprem acia so b re
a natureza. Q u a n d o ele acalm a a te m p estad e (4.35-41), sua “ repreenfsão]”
ao v en to e a o rd e m p ara o m a r “ aquiet[ar-se]” as frases são co m p o stas na
linguagem de expulsão d e d em ô n io s, re m e m o ra n d o o p o d e r de D e u s so b re
o caos n a criação. D o m esm o m o d o , Jesu s a n d a r so b re a água (6.45-52) sig-
nifica que Jesus p o d e an d a r o n d e só D e u s o p o d e ria fazer (Jó 9.8,11; SI 77.19;
Introdução 42

Is 43.16) e designa Jesu s pela m esm a ex p ressão (egõ eimi; “ E u S ou”) usada
p o r D e u s q u an d o ele se revela a M oisés (E x 3.14, LX X ). O u tra s exibições
d a au to rid a d e divina de Jesu s incluem seu a m arrar d e Satanás, o “ h o m e m
fo rte ” (3.27); sua afirm ação de p e rd o a r p ec ad o s (2.10) e sua su b stituição d o
tem p lo em Jeru salém c o m o o locus Dei, o lugar o n d e D e u s se e n c o n tra co m
a h u m an id ad e (15.38,39). Sua fala p ara D e u s e c o m ele é única e n tre os rabis
judaicos: ao p refaciar as declarações c o m Amén (“D ig o a v erd ad e” o u “ E m
v erd ad e” [ARA, A R C ]), ele o u sa falar co m a au to rid a d e d e D eu s; e sua re-
ferência a D e u s c o m o “A b d ’ (14.36) exibe u m a intim idade filial co m D eus,
algo sem paralelos n o judaísm o. Jesus, q u an d o q u e stio n ad o so b re a fo n te de
sua au to rid ad e, a p o n ta para seu b atism o p o r Jo ão , m o m e n to em q u e a voz o
d eclarou F ilh o d e D e u s, e o E sp írito q ue lhe d á p o d e r c o m o serv o d e D e u s
lhe co n fere a exousia d e D e u s (11.27-33).22

6.2 O Servo do Senhor


A au to rid ad e d e Jesus, a qual em to d o s os lugares p erm e ia seu co m p o r-
tam en to e atitude, é em p re g ad a n ão p ara si m esm o, m as p ara o serviço aos
outros. M arcos, p o r co n seg u in te, descreve Jesu s u san d o o perfil d e u m servo,
em especial c o m o o cu m p rim e n to d o serv o s o fre d o r de D eu s, c o n fo rm e
ap resen tad o em Isaías. A característica m ais im p o rta n te d o S ervo d o S en h o r
de Isaías é o efeito d e seu so frim e n to ex p iató rio e vicário (Is 53.5,10), n ão
e n c o n tra d o em n e n h u m o u tro tex to d o A n tig o T estam ento. E p recisam en-
te esse asp e cto d o S ervo q u e Jesu s cu m p re em sua m issão co m o F ilho do
h o m em de “ d ar a sua vida em resg ate p o r m u ito s” (10.45). E co s d o s S ervo
d o S e n h o r são in terc ep tad o s em m o m e n to s críticos e essenciais n o re trato
d e Jesu s feito p o r M arcos. Já n o b atism o a v o z d o céu (1.11) define a filiação
divina nas categorias d o serv o (Is 42.1; 49.3). Jesus, n o início de seu m inistério,
m o stra te r co n sciên cia d e q u e su a vida tem de ser tirada dele (2.20) e, m ais
tarde, Jesus co m p reen d e sua m o rte co m o u m a p a rte essencial de seu trabalho,
u m “b a tism o ” (10.38). U m crism a lu x u o so d e u m a m u lh er cujo n o m e n ão é
m en cio n a d o é re ceb id o c o m o u m a u n çã o para o sep u ltam en to (14.8). A s três
p redições d a paixão (8.31; 9.31; 10.33,34) serv em c o m o m arco s n a jo rn ad a
para Jeru salém n a segunda m etad e d o evangelho, às quais p o d e ser adicionada
a frase rev elad o ra na p aráb o la da v in h a n a qual o F ilh o am ad o é en treg u e nas
m ãos assassinas d o s lavradores arren d a tá rio s (12.6-8). N a últim a ceia, Jesus

22J. R. Edwards, “T he Authority o f Jesus in the Gospel o f Mark”,JETS37/2 (1994),


p. 217-33.
43 J e s u s n o e v a n g e lh o de M a rc o s

m ais um a vez in te rp re ta sua m o rte im in en te em categorias rem iniscentes do


Servo d o S e n h o r c o m o o “ sangue da aliança, q ue é d erram ad o em favor de
m u ito s” (14.24).

6.3 O Filho de Deus


M arcos utiliza vários títulos p ara se re ferir a Jesu s — m estre, rabi (ARC),
Filho d e D avi, C risto, S en h o r, F ilh o d o h o m e m e F ilho de D eus. D estes, o
últim o m e n c io n a d o é sem so m b ra d e d ú vida o m ais im p o rtan te. F ilho de
D eus define ta n to o c o m eç o q u a n to o fim d o evangelho: esse título o co rre
no p ro n u n c ia m e n to de a b e rtu ra d o evangelho, “ P rin cíp io d o evangelho de
Jesus C risto, o F ilh o de D e u s ” (1.1), c o m o ta m b é m n a co nfissão apoteó tica
e conclusiva d o cen tu rião na cruz: “ R ealm ente este h o m em era o F ilho de
D eu s!” (15.39). A filiação divina d e Jesu s é a p e d ra angular teológica d o
evangelho de M arcos. M arcos, em p o n to s decisivos, ap resen ta dicas para des-
vendar o m istério da p esso a de Jesus. N o b atism o (1.11) e na transfiguração
(9.7), o Pai n o céu ch am a Jesu s de “ m eu F ilh o am a d o ” , in d ican d o que Jesus
co m partilh a um re la cio n am en to ú n ico de a m o r e ob ediência co m o Pai. O s
dem ôn ios ta m b é m reco n h ec em Jesu s c o m o o F ilh o de D e u s (1.24; 3.11; 5.7),
testificando q u e lhe foi co n c ed id a au to rid a d e divina.
M arcos estabelece n ão só queJesus é F ilh o d e D e u s, m as tam b ém que tipo
de F ilho d e D e u s ele é. Jesus, de fo rm a d istin ta d o s vários heró is e h o m en s
divinos d o m u n d o helenista q u e eram elevados acim a d o m u n d an o , exibe sua
filiação divina em m eio a um m u n d o co n tu rb a d o . A su rp resa — e a chave
— p ara e n te n d e r o F ilh o d e D e u s está em seu so frim en to . Jesu s tem d e ser
obediente à v o n ta d e d o Pai, até a m o rte na c ru z (14.36). N as narrativas da
paixão, M arcos retrata Jesus p rincipalm ente de acordo co m o m odelo d o servo
sofred or d e Isaías. L o g o antes d a paixão Jesus c o n ta u m a p aráb o la so b re o
filho d o p ro p rie tá rio d e u m a v inha q u e so fre rejeição e m o rre nas m ãos de
insolentes lavradores arren d a tá rio s (12.1-12). A p arábola, em ú ltim a análise,
reflete o p ró p rio d estin o d e Jesus, e isso tran sp ira n o relato da crucificação.
Iro nicam ente, sua m o rte na cru z é o local p ara o n d e co n v erg em sua m issão
e sua iden tid ad e c o m o F ilho d e D e u s, e c o m o tal é o p rim eiro local em que
a h um anid ad e o re co n h ec e c o m o F ilh o d e D e u s (15.39).23

23 Além disso, veja o excurso sobre o Filho de D eus em 15.39. J. R. E dw ards, “T h e


Son o f G od: Its A ntecedents in Judaism and Hellenism , and Its U se in the Earliest
G ospel” , dissertação de d o utoram ento, Fuller T heological Seminary, 1978. Para
um resum o, veja Studia Bíblica el Theologica 8 /1 (1978), p. 76-79.
Introdução 44

7. T E M A S C A R A C T E R Í S T I C O S

7 .1 Discipulado
H á em M arcos u m rela cio n am en to causai en tre o m inistério de Jesu s e o
dos discípulos. A ssim c o m o Jesus está co m o Pai, tam bém os discípulos têm de
estar c o m ele (3.13). Jesu s o u to rg a p o d e r aos discípulos p ara em p re en d erem
o m in istério d o m estre de p ro clam ação e p o d e r so b re as forças d o m al (3.14;
6.7-13). A ssim c o m o o F ilh o d o h o m e m serv e em h um ildade sem co n sid erar
a si m esm o e até m e sm o co m so frim en to , assim ta m b é m devem agir os dis-
cípulos (10.42-45). “ Se alguém quiser acom panhar-m e, negue-se a si m esm o,
tom e a sua cruz e siga-m e” (8.34). Iro nicam ente, n o entanto, q u an d o alguém
p erd e a vida p o r C risto acaba a e n c o n tran d o em C risto (8.35). O discipulado é
definido repetidas vezes em M arcos pela sim ples proxim idade co m Jesus: estar
co m ele (3.13), sentar-se em volta dele (3.34; 4.10), ouvi-lo (4.1-20) e segui-lo
“pelo c a m in h o ” (1.16-20; 10.52). O ato sim ples, m as im p o rtan tíssim o , de
o u v ir e seguir Jesu s an teced e e é m ais im p o rta n te q u e a co m p re en são total
dele p o r p a rte d o s discípulos. O s discípulos, e em especial os D o z e , são
m o stra d o s co m freq u ên cia c o m o indivíduos a q u em falta co m p re en são e até
m esm o c o m co ração d u ro (8.14-26). É su rp re e n d e n te o b serv ar que isso não
co m p ro m e te o d iscipulado deles. O q u e Jesu s tem de en sin ar só p o d e ser
en sin ad o em u m re la cio n am en to de ap ren d iz q u e re q u er q u e os discípulos
estejam co m ele m ais d o que ten h am a plena co m p reen são de quem realm ente
é o m estre. N a verd ad e, a c o m p re e n sã o deles só p o d e vir d a p erspectiva da
cru z, q u a n d o a c o rtin a d o tem p lo é rasg ad a e o sen tid o da filiação divina de
Jesu s é final e to ta lm e n te revelada (15.38,39).

7.2 Fé
P ara M arcos, fé e d iscip u lad o n ão têm sen tid o à p a rte d e seguir o F ilho
so fre d o r de D eu s. A fé, p o r co n seg u in te, n ã o é u m a fó rm u la m ágica, m as
d ep e n d e d o o u v ir re p etid as vezes sua palavra e p articipação n a m issão. M ar-
cos m o stra d o is tip o s d istin to s d e resp o stas de fé em relação a Jesus. P o r um
lado, vários ind iv íd u o s d e m o n stra m p erc e p ç ã o e ato s d e fé notáveis p o r sua
rapidez e ausência d e p reced en te. Iro n ic am en te, essas p essoas via d e regra
são p ro v e n ie n tes d e fo ra d o círculo im ed iato d o s seguidores d e Jesu s e são
em geral m ulheres o u gentios. Q u a tro c o m p an h e iro s de u m paralítico, sem
qualqu er m e n ç ã o ao n o m e deles, são elogiados p o r sua fé (2.5), c o m o tam -
b ém o é u m lep ro so (1.40-42), u m a m u lh e r im p u ra q u e so fre d e hem o rrag ia
(5.34), u m a m u lh er siro-fenícia (7.24-30), o pai de u m g a ro to epilético (9.24),
45 T em as c a ra c te rís tic o s

um cego (10.52), u m a viúva p o b re (12.41-44), u m a m u lh er q u e unge Jesus


em B etân ia (14.3-9) e, so b re tu d o , o cen tu rião n a crucificação (15.39). E ssas
pessoas d e m o n stra m g ra n d e reso lu ção e sacrifício de u m a fo rm a o u de o u tra
e não são d esa p o n ta d as p o r d ep o sitare m sua fé em Jesus.
P o r o u tro lado, aqueles q ue parecem te r u m a v antagem n a fé — a família
de Jesus (3.31-35), o p o v o de sua cidade n atal (6.1-6) o u os religiosos espe-
cialistas (11.27-33) — são, iro n ica m e n te , os q ue m e n o s c o m p re en d em Jesus
e os m ais resisten tes a ele. A té m esm o a re sp o sta de fé d o círculo ín tim o de
Jesus, e p artic u la rm en te d o s D o z e , é vacilante e in com p leta. P ara esse g ru p o ,
a fé vem de fo rm a lenta, até m esm o lab o rio sa, p elo ou v ir repetidas vezes,
receb e n d o e d a n d o p o r fim fru to s (4.10-20). O s D o z e q u estio n am q u em é
realm ente Jesu s (4.41) e, às vezes, eles o ex asp eram (9.19). N ã o o b stan te,
eles, c o m o o cego em B etsaida, tam b ém p o d e m v ir a ver, m as apenas pela
presen ça p ro lo n g ad a e to q u e re p e tid o de Jesu s (8.14-26).

7.3 Os que pertencem ao grupo íntimo e os de fora


O s tem as d o d iscipulado e da fé estão in tim am e n te relacionados co m o
tem a d o s q u e p e rte n c e m ao círculo ín tim o e os d e fora. Jesus, falando co m o
o círculo ín tim o , diz: “A vocês foi d ad o o m istério d o R eino d e D eu s, m as
aos qu e estão fora tu d o é d ito p o r p arábolas [ ...] ” (4.11). H á en tre os segui-
dores d e Jesu s u m g ru p o ín tim o in teirad o d o seg red o d o R eino d e D e u s e
ou tro g ru p o d o s d e fo ra q u e n ã o p o d e m p a rtic ip a r d o que é confid en ciad o
ao p rim eiro g ru p o . A su rp resa, n o en tan to , é v er q u em p e rte n c e a cada u m
dos g ru p o s. E sp eraríam o s q ue a família de Jesus, p o r exem plo, estivesse entre
os d o g ru p o íntim o. C o n tu d o , u m ep isó d io in q u ietan te n o início d o evan-
gelho revela a m ãe e os irm ão s d e Jesu s fora d o g ru p o ín tim o e u m g ru p o
de seguidores n ão m en cio n a d o s p elo n o m e p artic ip a n d o d o g ru p o íntim o,
sentados em v o lta d e Jesu s e fazen d o a v o n ta d e de D e u s (3.31-35). Mais u m a
vez, os “ d e fo ra” — m ulheres, g en tio s o u judeus c o n sid erad o s “ im u n d o s”
— d e m o n stra m co m freq u ên cia c o m p re e n sã o e fé em Jesus, ao p asso que
os líderes religiosos, a fam ília d e Jesu s e até m e sm o seus discípulos n ão têm
essa c o m p re en são e fé. N a verdade, M arcos re trata co m frequência Jesus
com o um “ d e fo ra” (1.45; 5.17; 8.23; 11.19; 12.8; 15.22). E le n ão se ajusta
em n e n h u m a das categorias sociais p re d o m in a n te s e, ao lo n g o d e to d o seu
m inistério, en fren ta co m p reen sõ es equivocadas, dureza e rejeição. O reino que
Jesus proclam a e inaugura n ão é identificável co m n e n h u m a n o rm a social nem
instituições existentes, m as é sin g u larm en te ce n trad o em sua p ró p ria pessoa.
Introdução 46

7 .4 Gentios
O evangelho d e M arcos n ão só é escrito para um a audiência gen tia (veja
4 . Contexto histórico), c o m o ta m b é m re trata Jesus m in istran d o aos gentios
e aos judeus. O Jesu s d e M arcos é o Jesu s “ d o n o rte ” , o rien ta d o para as re-
giões além d a ó rb ita d o judaísm o d efin id o p o r Jeru salém . A G alileia, o ce n tro
d o m in istério inicial e fo rm a tiv o d e Jesus, fica n o ex trem o n o rte d a nação,
m as ainda na jurisdição d e Jeru sa lém , de o n d e re p resen ta n te s eram enviados
p ara esp io n ar o m in istério d e Jesu s (3.8,22; 7.1). A G alileia, n ão o b stan te,
tin h a um a relev an te p o p u laçã o g en tia (daí “ G alileia d o s g e n tio s” , Is 9.1; M t
4.15). Jesus, d e a c o rd o co m M arcos, deixa c o m frequência a G alileia para
ad e n tra r nas regiões d o s g en tio s: em D ecap ó lis n o leste d o m ar d a G alileia
ele cu ra u m h o m e m p o ssesso (5.1-20) e alim enta q u a tro mil pessoas (8.1-10),
d e m o n stra n d o o m esm o p o d e r em m eio ao s g entios q u e d em o n stra ra antes
en tre os judeus (6.31-44). E le em p re e n d e u m a jo rn ad a longa e to rtu o s a na
direção n o rte até T iro e S idom na Fenicia, o n d e, em m eio aos g ran d es rivais
pagãos de Israel, e n c o n tra u m a m u lh er de fé infatigável (7.24-30) e m ais tar-
d e cura u m su rd o -m u d o (7.31-37). D e ac o rd o c o m M arcos, Jesus, p o r p arte
d o s g entio s e nas regiões d o s g en tio s, e n c o n tra m aio r receptividade que nas
regiões judaicas. A s d u as g ra n d es co n fissõ es cristológicas d e M arcos são
relacionadas aos gentios: em C esareia d e Filipe, Jesus foi d eclarado o C risto
(8.27-30); e n a cru z, o c e n tu rião declara q u e Jesu s é o F ilho de D e u s (15.39).

7.5 A ordem para silenciar


N a prim eira m etad e d o evangelho d e M arcos, Jesus o rd en a co m frequên-
cia as pessoas curadas p o r ele, o bservadores, discípulos e até m esm o d em ônios
a silenciar (1.25,34; 1.44; 3.12; 5.43; 7.36; 8.26,30; 9.9). H á m u ito te m p o os
leitores ficam su rp re e n d id o s c o m a razão d e Jesus, q u e veio para se to rn a r
con hecido , trab a lh ar os p ro p ó sito s d a cru z co m sua p esso a p e rm a n e c e n d o
escondida. H á três m o tiv o s q ue p o d e m ser ap resen tad o s para essa atitude.
Jesu s sem d ú vida u so u a o rd e m p ara silenciar para se p ro teg e r das falsas
expectativas m essiânicas. O “ m essias” , p ara a m aioria d o s co n te m p o râ n e o s
de Jesus, invocava im agens de u m h eró i m ilitar c o m o o rei D av i que expul-
saria os ro m a n o s d a P alestina o cu p ad a. Jesu s abraçava alguns asp ecto s do
m essianism o davídico (2.25; 12.35-37) e foi reco n h ec id o p o r fazer isso (e.g.,
“ F ilho de D avi” , 10.47,48; 11.10), m as evitava os m é to d o s m ilitaristas para
efetu ar seu reino. O m o d elo q ue ele ab raço u foi o da to alh a d o servo, co n -
fo rm e p re d ito p o r Isaías, e n ão o da espada d o guerreiro.
47 Tem as c a ra c te rís tic o s

O u tra razão p o r q u e Jesu s e sc o n d eu seu p o d e r m ilagroso foi que ele


sabia q ue a fé n ão p o d ería ser coagida p o r u m espetáculo (e.g., M t 4.5-7).
N ã o a visão, m as a percepção na vida e n o p ro p ó s ito d e Jesu s p o d ería evocar
a v erdadeira fé. O c o n h e c im e n to salvífico precisa v ir p o r in term éd io da sua
experiência de Jesus, e n ão só p o r m eio de fó rm u las e títulos n em pelos re-
latos d e feitos m ilagrosos.
P o r fim , M arco s em p re g a o tem a d o seg red o a fim de en sin ar que até a
cruz Jesu s n ão p o d e ser c o n h e cid o c o rre ta m e n te p o r q u em ele é. O leproso
p o d e ser lim po (1.44), m as Jesus o rd en a q ue esse h o m e m silencie para que não
pro clam e Jesu s m e ra m en te c o m o u m o p e ra d o r de m aravilhas; os d em ônios
p o d e m ch a m a r Jesu s de “ F ilh o de D e u s ” (3.11,12), m as Jesu s os silencia por-
que aqueles q u e se o p õ e m a ele n ão p o d e m ser seus m ensageiros; até m esm o
o prin cip al a p ó sto lo receb e o rd e m p ara silenciar ap ó s co n fessar que Jesus é
o C risto (8.30) — n ão p o rq u e ele estivesse errad o , m as p o rq u e ele n ão havia
ap reen d id o p le n a m e n te o sen tid o d e sua confissão. N e m p o d ería ter essa
com p reen são . Só n a cru z é q ue Jesu s p o d e ser co n h e cid o co rretam en te , não
apenas c o m o u m g ran d e m estre de m o ral o u c o m o a p esso a m ais n o b re que
já viveu na face da terra; n em , tam p o u co , c o m o u m o p e ra d o r d e m ilagres ou
com o u m a re sp o sta a essa o u aquela q u estão p re m e n te d o m undo. Jesus, na
cruz, é revelado c o m o o Filho so fre d o r de D eus, cuja rejeição, cujo sofrim ento
e cuja m o rte revelam o triu n fo de D eu s. Só n o G ó lg o ta é q u e Jesu s p o d e ser
co rre ta m e n te co n h e c id o c o m o o D e u s in có g n ito q ue se revela àqueles que
estão d isp o sto s a n eg ar a si m esm o s e a segui-lo n esse discipulado custoso.24

7 .6 A jornada
O tem a final n o evangelho é o d a jornada. U m a citação d e Isaías n o início
descreve o evangelho d e Jesu s C risto c o m o “ o c a m in h o ” (1.2,3). N a prim eira
m etade d o evangelho, o ca m in h o é in d e te rm in a d o e está desfocado. Jesus
cruza c o m freq u ência o m a r da G alileia e, em u m a ocasião, faz um a longa e
sinuosa jo rn a d a p ara as regiões gentias a n o rte e a leste d a Galileia. E le está
co n tin u am en te em m o v im e n to , m as n ã o h á d estin o ap a ren te p ara seus m o-
vim entos. Só n o s lim ites m ais lo n g ín q u o s d e C esareia de Filipe (8.27) é que
as andanças na G alileia se fu n d e m em u m objetivo fo cad o que d eterm in a a
estru tu ra d o re sta n te d o evangelho. Ali P ed ro declara q u e Jesu s é o M essias,
e Jesus, daí e m d iante, v o lta sua face p ara Jeru sa lém e dirige seus passo s p ara
essa cidade. “ N o c a m in h o ” to rn a -se o refrão tem ático d a seg u n d a m etad e

24 Sobre a o rd em para silenciar, veja mais adiante em 1.34.


Introdução 48

d o evangelho (8.27; 9.33,34; 10.17,32,52; 11.8). “ N o c a m in h o ” , Jesu s declara


p o r três vezes a n ecessid ad e d e ir p ara Jeru sa lém p ara so frer rejeição e ser
executado para, p o r fim , ser levantado d o s m o rto s (8.31; 9.31; 10.33,34). “N o
c a m in h o ” está n ã o só o d estin o d e Jesus, m as ta m b é m o d estin o d e seus dis-
cípulos (10.32,52). O “ cam in h o ” o u jo rn ad a, p o rta n to , descreve o cam in h o
que Jesus precisa seguir e o ca m in h o q ue os discípulos têm d e seguir se fo r
para am b o s cu m p rire m o p lan o d e D eus.

8. A E S T R U T U R A N A R R A T IV A

O evangelho d e M arcos divide-se n atu ra lm e n te em duas m etades: a pri-


m eira diz re sp eito ao m inistério d e Jesu s n a G alileia (1.1— 8.26); e a segunda,
à jo rn a d a p ara Jeru sa lém e sua p aixão ali (8.27— 16.8). A prim eira m etad e
co m eç a c o m a d eclaração d o p ro p ó s ito d o ev an gelho (1.1), seguida pela
aparição d e J o ã o B atista (1.2-8) e o b atism o d e Jesus (1.9-11). A ten taç ão no
d ese rto é m en cio n a d a, m as n ão d e fo rm a elab o rad a (1 .1 2 ,1 3 ),e a in tro d u çã o
conclui c o m u m a b rev e m en sag e m d e Jesus: “ Ό te m p o é ch eg ad o ’, dizia ele.
Ό R eino d e D e u s está p ró xim o. A rre p e n d a m -se e creiam nas boas-novas!’ ”
(1.14,15).
A seguir, h á u m a série d e treze v in h etas cu id ad o sa m en te elaboradas que
d escrev em Jesu s c o m o m estre e aquele q u e cura e expulsa d em ô n io s em
C afarnaum e em suas cercanias, em geral em co n flito c o m as au toridades
judaicas (1.16— 3.25). O cap ítu lo 4 é u m a reu n ião seleta de parábolas de
Jesus, a m aio ria das quais so b re sem en tes em crescim ento.
M arcos re to m a o m in istério d e Jesu s c o m o u m p re g a d o r ao ar livre e
aquele q u e efe tu a curas em 4.35— 8.26. A o p o sição a Jesu s p o r p a rte de
H e ro d es A n tip as e d o s líderes religiosos judeus o fo rça a sair da G alileia e
em b arcar em u m a jo rn ad a sinuosa nas regiões gentias da Fenicia e D ecápolis.
O s gentios, os “ d e fo ra” , d e m o n stra m notável a b e rtu ra a Jesu s e aceitação
dele e d o evangelho, ao p asso q u e “ o g ru p o d o s q ue p e rte n c e m a seu círculo
ín tim o ” , em especial os discípulos, são tão e m p ed e rn id o s q u an to os líderes
religiosos, e m b o ra sem q u alq u er in ten çã o m aldosa.
A seg u n d a m etad e d o evangelho co m eça em 8.27 com Jesus já n ã o m ais
circu nd an d o o m ar d a Galileia, m as “n o cam in h o ” para Jerusalém . O cam inho
para Jeru salém co m eça co m a co n fissão de P ed ro em C esareia de Filipe. Jesus
p erg u n ta a seus discípulos: “ Q u e m o p o v o diz q u e eu sou?” (8.27). P ed ro
resp o n d e: “T u és o C risto ” (8.29). Jesu s c h o c a seus discípulos ao explicar
q u e o C risto tem d e so fre r e m o rre r; e ainda m ais, que quem desejar ser seu
49 A estru tu ra narrativa

discípulo tem de estar p re p a ra d o p ara o d iscip u lado (8.31— 9.1). U m a glo-


riosa transfiguração d e Jesu s se segue a esse p ro n u n c ia m e n to terrível, o que
m o stra que o Pai n o céu c o n firm a o p ap el d e Jesu s c o m o o F ilho so fre d o r
do h o m e m (9.2-13).
A narrativa, d ep o is d e C esareia d e Filipe, é direcion ada de fo rm a resoluta
para Jerusalém . “N o c a m in h o ” , Jesu s p red iz p o r três vezes o so frim ento,
m o rte e ressu rreição im in en tes (8.31; 9.31; 10.33,34). As gran d es m ultidões
que o buscavam n a Galileia o ab a n d o n am , e Jesus foca o ensino d e discipulado
para os D o z e : “ [...] q u em q u iser to rn ar-se im p o rta n te en tre vocês deverá ser
servo; [...] Pois n em m esm o o F ilh o d o h o m e m veio para ser servido, m as
para serv ir e d ar a sua v ida em resgate p o r m u ito s” (10.43,45). E m b o ra Jesus
entre em Jeru salém c o m o u m celeb rad o p ereg rin o (11.1-10), M arcos ap o n ta
para a ru p tu ra d e Jesu s c o m a C idade S anta p o r m eio de sua p artid a n o tu rn a
para B etânia, fora de Jeru sa lém (11.11) e p o r seu julgam ento so b re o tem plo
(11.12-21). O s capítulos 11— 13 c o n tê m u m a série d e testes e arm adilhas no
tem plo e em seus arred o res, a m aioria d o s quais evidencia a hostilidade do
Sinédrio p ara c o m Jesu s e a c o rre s p o n d e n te rejeição d o tem p lo p o r Jesus.
N o capítu lo 13, a d estru içã o d o tem p lo se tra n sfo rm a em u m sím b o lo para
a angústia q u e assolará os fiéis antes d o D ia d o S e n h o r e o re to rn o d o Filho
do h o m em . O s capítulos 14— 15 en g lo b am o ce rn e d o relato da paixão. U m a
solene últim a ceia co m os discípulos é p re p a ra d a em m eio às intrigas e à
traição, n ã o só pelos adversários judeus e ro m an o s, m as até m esm o p o r seus
discípulos. U m a p risão clan d estin a c o m duas audiências, u m a p elo Sinédrio
judaico (14.53-72) e o u tra p o r P ô n cio P ilatos, o g o v ern ad o r ro m an o (15.1-20).
A ênfase n a cen a da crucificação é m ais em seu a b a n d o n o (até m esm o p o r
D eus, 15.34) e n a zo m b aria d e seus adversários q u e n o so frim en to físico de
Jesus. U m cen tu rião g en tio , n o m o m e n to d a m o rte d e Jesus, co n fessa Jesus
com o F ilho d e D e u s (15.39). A d e rro ta , p o r co n segu inte, é tran sfo rm ad a em
vitória q u an d o o Filho d e D e u s é revelado n o sofrim ento. A fo rm a m ais antiga
do evangelho term in a co m u m an ú n cio feito p o r anjos em q u e proclam am
a ressu rreição (16.1-8); u m final sec u n d ário p o ste rio r inclui várias aparições
do Jesus re ssu rreto (16.9-20).
capítulo um

O Evangelho aparece em Pessoa


M A R C O S 1 .1 1 3 ‫־‬

A C H A V E P A R A M A R C O S (1.1)

O s escrito s da A n tig u id ad e n o rm a lm e n te co m eç am co m um a dedicação


form al d esc rev en d o o p ro p ó sito d o livro o u co m u m a linha de ab e rtu ra tra-
tando d o p rim eiro assu n to d iscu tid o .’ A in tro d u ç ã o fo rm al d o evangelho de
Lucas e d o livro de A to s segue o p rim eiro padrão. O evangelho de M arcos
com eça da seg u n d a m aneira: “ P rincípio d o evangelho de Jesus C risto, o Filho
de D e u s ” (1.1). Se M arco s tivesse a in ten çã o d e seu trab alh o ter u m título,
seria esse. A p rim eira palavra de M arcos — c o m o em G ênesis, O seias e o
evangelho d e J o ã o — é apenas “P rin cíp io ” . M arcos sem d ú vida a escolheu
com o u m le m b re te d a atividade de D e u s na história: n o p rin cíp io D e u s criou
o m u n d o ; assim , tam b ém , a era d o evangelho é m an ifesta q u a n d o o Filho
de D eu s se to rn a u m ser h u m a n o em Jesu s C risto. A palavra grega traduzida
por “ p rin cíp io ” , archê, p o d e in c o rp o ra r dois sentidos: p rim eiro n a o rd em da
sequência tem p o ral, o u p rim eiro em te rm o s d e o rigem o u princípio. E com
esse últim o sen tid o q u e o te rm o é u sad o aqui, u m a vez que M arcos tem a
intenção q u e to d o o evangelho, e n ã o apenas sua a b e rtu ra, seja in c o rp o rad o
p o r archê. O te rm o “ p rin c íp io ” , p o rta n to , identifica n a p alavra inicial d o
evangelho a au to rid a d e de q u e m o evangelho se origina, o p ró p rio D eus, o
autor e o rig in ad o r d e tu d o q u e existe.12 L o h m ey e r está c o rre to em dizer que
0 term o “ p rin cíp io ” assinala o “ c u m p rim e n to da palavra etern a de D e u s ” .3
Para M arcos, a in tro d u çã o d e Jesu s n ão é m e n o s g ra n d io sa que a criação d o
m undo, pois, em Jesus, u m a n o v a criação está à m ão.

1 H. K oester, A n d en t Christian Gospels (Philadelphia: T rinity Press International;


L ondon: SCM Press, 1992), p. 14.
2 R. P. M artin, N ew Testament Foundations (G rand Rapids: E erdm ans, 1975), 1.27.
3 E. Lohm eyer, D as Evangelium des M arkus, p. 10.
M a rc o s 1.1 52

O evangelho d o q u a l M a rc o s fala n ã o é u m liv ro , c o m o a c o n te c e e m


M a te u s (1.1, “ R e g istro [gr. biblos] d a g e n e a lo g ia d e Je s u s C risto , filh o d e D a v i,
filh o d e A b r a ã o ”). A n te s, p a ra M a rc o s , o e v a n g e lh o é a h is tó ria d a salv ação
e m Jesu s. A p a la v ra p a ra “ e v a n g e lh o ” (gr. euangelion) sig n ifica p ra tic a m e n te
“ b o a s -n o v a s ” . O te r m o euangelion, ta n to n o A n tig o T e s ta m e n to q u a n to n a
lite ra tu ra g re g a , e ra c o m u m e n te u s a d o p a ra re la to s d e v itó ria s n o c a m p o d e
b a ta lh a . Q u a n d o o s filisteu s d e r r o ta r a m as tr o p a s d e S au l n o m o n te G ilb o a ,
“ e n v ia ra m m e n s a g e iro s p o r to d a a te rra d o s filisteus p a ra p ro c la m a r a n o tí-
cia (euangeligesthai) [...] n o m e io d o se u p o v o ” (IS m 31 .9 ; veja ta m b é m 2 S m
1.20; 18 .19,20; l C r 10.9). O m e n s a g e iro q u e tro u x e e sse re la to e ra o p o r ta d o r
d a “ b o a n o tíc ia ” (2S m 4.10; 18.26). O te rm o , e n tr e o s g re g o s , ta m b é m e ra
u s a d o p a ra a v itó ria n a b a ta lh a , c o m o ta m b é m p a ra o u tra s fo rm a s d e b o a s
n o tíc ia s. E m 9 a.C ., n a d é c a d a d o n a s c im e n to d e Je s u s , o a n iv e rsá rio d e
C é sa r A u g u s to (63 a .C .-1 4 d .C .) fo i a c la m a d o c o m o euangelion (pl.). U m a v e z
q u e C é sa r A u g u s to e ra a c la m a d o c o m o u m d e u s, se u “ a n iv e rsá rio a ssin alav a
o in íc io d a s B o a s -N o v a s p a ra o m u n d o ” .4*N o m u n d o g re c o - r o m a n o , essa
p a la v ra s e m p re a p a re c e n o p lu ra l, c o m o s e n tid o d e u m a b o a n o v id a d e e n tr e
o u tra s ; m a s n o N o v o T e s ta m e n to euangelion a p a re c e a p e n a s n o sin g u la r: a b o a
n o tíc ia d e D e u s e m J e s u s C risto , e a lé m d e s s a b o a -n o v a n ã o h á n e n h u m a
o u tr a .’ O c o n c e ito d e “ b o a s -n o v a s ” , n o e n ta n to , n ã o se lim itav a às v itó ria s

4 Retirado da inscrição do calendário de Priene; citado em A. Deissmann, Light


from the Ancient E ast, trad. L. Strachan (London: H odder and Stoughton, 1927),
p. 366. O m undo greco-romano honrava seus heróis ao elevá-los à posição similar
à de um deus. O culto em torno de César Augusto tinha particularmente esse viés.
Acreditava-se que Augusto, de acordo com a lenda popular, fora concebido por
uma serpente (a qual representava o espírito de um deus; veja Suetônio, Lives o f
the Caesars, “T he Deified Augustus”, p. 94). Seu reino foi celebrado como o cum-
primento de urna era dourada, conform e sugere o seguinte encomio: “A natureza
imortal e eterna de todas as coisas graciosamente concedidas ao maravilhosamente
bom César Augusto para realizar as boas ações em abundância para os homens a
fim de que pudessem desfrutar da prosperidade da vida. Ele é o pai de sua divina
terra natal, Roma, herdada de seu pai Zeus, e um salvador das pessoas comuns. Sua
presciência não só cumpriu as súplicas de todos os povos, mas os sobrepujou, tra-
zendo paz à terra e ao mar, enquanto as cidades floresciam com ordem, harmonia
e bons tempos; a produtividade de todas as coisas é boa e em seu pleno vigor, há
esperanças extremosas para o futuro, e boa vontade durante o presente que enche
todos os homens, de forma que devem produzir os sacrifícios agradáveis e hinos”
(citado H. Kleinknecht, PA N TEIO N : Religiose Texte des Gñechentums [Tubingen:
Mohr, 1959], p. 40).
‫ י‬G. Stanton, Aula inaugural com o professor do N ovo Testamento de Lady Mar-
garet, Cambridge, England, 27 de Abril de 2000.
53 M a rc o s 1.1

p o lític a s e m ilitares. N o p r o f e ta Isaías, o u s o d e “ b o a s -n o v a s ” é tra n s fe rid o


p a ra ir r u p ç ã o d e D e u s e m s e u a to salv ífico fin al q u a n d o a p a z , as b o a s -n o v a s
e lib e rta ç ã o d a o p re s s ã o se rã o d e rra m a d a s s o b r e o p o v o d e D e u s (Is 52.7;
6 1.1-3). P a ra M a rc o s, o a d v e n to d e J e s u s é o p rin c íp io d o c u m p r im e n to das
“ b o a s -n o v a s ” a n u n c ia d a s p o r Isaías.
Se M arco s, c o m o p a re c e p ro v áv el, é o p rim e iro evan g elista, e n tã o ele ta m -
b é m in a u g u ra u m n o v o g ê n e ro literário n a ap licação d o te r m o “ e v a n g e lh o ” à
vida e m in isté rio d e Je su s C risto .6 P a ra M a rc o s, o e v a n g e lh o se re fe re a o cu m -
p rim e n to d o re in o e salvação d e D e u s n a p le n itu d e d o te m p o (Is 52.7; 61.1).
A ap a riç ã o d e Je su s n a G alileia tra z o alv o re c e r d e u m a n o v a é p o c a q u e exige
a rre p e n d im e n to e fé. O re g istro e sc rito d a v id a d e Je su s fe ito p o r M a rc o s é e m
si m e s m o c h a m a d o d e ev an g elh o , e, p o rta n to , esse m e s m o Je su s q u e v e n c e u o
se p u lc ro n a re ssu rre iç ã o d e n tre o s m o r to s é a g o ra o S e n h o r v iv o e m o p e ra ç ã o
na igreja e n o m u n d o , c h a m a n d o as p e sso a s à fé n o ev an gelh o . N a c o m p re e n sã o
d e M a rc o s, p o r ta n to , o e v a n g e lh o é m ais q u e u m c o n ju n to d e v e rd a d e s o u u m
c o n ju n to d e crenças. É u m a pessoa, o “ e v a n g e lh o d e Je su s C ris to ” .7 O re in o q u e
D e u s in a u g u ra e stá c o r p o ra lm e n te p r e s e n te e m J e s u s d e N a z a ré .

6 “Evangelho” , euangelion, é uma palavra frequente em Marcos e um a de suas


favoritas, com sete ocorrências em Marcos, e apenas quatro em Mateus, e nenhuma
em Lucas e João nem na fonte hipotética de ditos “Q ” . Marcos, portanto, não só
é o primeiro a aplicar a com preensão do “evangelho” a Jesus, mas ele também é
o primeiro a inventar o gênero “evangelho” para descrever a vida e m orte dele.
Veja Martin, N ew Testament Foundations, 1.23-27.
7 W. Marxsen observa corretam ente que Jesus Cristo pode ser substituído por
“evangelho” e, além disso, que “evangelho”, conform e empregado por Marcos,
é um título ou descrição para toda a narrativa de Jesus do batismo até sua m orte
e ressurreição (veja M ark the Evangelist, trad. J. Boyce, D. Juel, W. Poehlmann e
R. Harrisville [N ashville/N ew York: Abingdon Press, 1969], p. 130-31). Marcos
dificilmente pode ser considerado uma coletânea de ditos (e.g., fonte hipotética de
ditos “Q ”) nem uma mera descrição de Jesus com o um m ero mestre de sabedoria
(e.g., o Evangelho de Tomé ou muitos docum entos gnósticos de N ag Hammadi),
mas deve ser visto com o um “evangelho” no sentido em que ele introduziu esse
term o na tradição sinótica. Tampouco, a igreja primitiva o consideraria assim, pois
para ela os quatro evangelhos eram versões (e.g., “segundo Mateus” , “segundo
Marcos”) de um evangelho (veja M. Hengel, Studies in the Gospel o f M ark, trad. J.
Bowden [London: SCM Press, 1985], p. 65). E m uma crítica do Jesus Seminar
sobre esse ponto, N. T. Wright observa corretam ente que “chamar [o Evangelho
de Tomé e Q] ‘evangelhos’ obscurece a diferença óbvia de gênero entre eles e os
quatro com um ente assim denom inados” (“Five Gospels but N o Gospel: Jesus
and the Seminar”, em Authenticating the Activities o f Jesus, ed. B. Chilton e C. Evans,
NTTS 2 8 /2 (Eiden, Boston, Koln: Brill, 1999), p. 92.
M a rc o s 1.1 54

Je s u s , c u jo n o m e e m h e b ra ic o é u m a v a ria n te d e “ Y e h o s h u a ” (p o rt.
“J o s u é ”) e cu jo s e n tid o é “ D e u s é salvação” , é d e fin id o n o p ró lo g o d e M a rc o s
c o m o o “ C risto ” e o “ F ilh o d e D e u s ” . (Veja os e x c u rso s s o b re Cristo e m 8.29
e s o b re Filho de Deus e m 15.39.) O F ilh o d e D e u s é u m títu lo m ais c o m p le to
p a ra a p e s s o a e m issã o d e Je su s q u e M essias, e é o títu lo d e p rim e ira o rd e m p a ra
Je su s d a d o p o r M a rc o s, a p rin c ip a l a rté ria d o ev an g elh o .8 A frase “ P rin c íp io
d o ev a n g e lh o d e Je s u s C risto , o F ilh o d e D e u s ” (1.1) é o p ró lo g o , n a v e rd a d e a
se n te n ç a tó p ic o , d o e v a n g e lh o d e M arco s. P o d e se r até m e s m o c o n sid e ra d o o
títu lo d o ev an g elh o , d e s d e q u e n ã o esteja d isso c ia d o d o q u e se seg u e, c o m o a
c o n e x ã o c o m J o ã o B a tista n o v e rsíc u lo 2 ev id en cia. N o v e rsíc u lo 1, M a rc o s
d e c la ra o c o n te ú d o e sse n c ia l d e euangelion, c o m o “ b o a s -n o v a s ” . O e v a n g e lh o
d e M a rc o s, p o r ta n to , n ã o é u m a h is tó ria d e m is té rio e m q u e o s le ito re s tê m
d e ju n ta r as p e ç a s aq u i e ali p a ra d e s c o b r ir se u s e n tid o ; n e m é u m a c rô n ic a
e n f a d o n h a d e d a ta s e lu g a re s se m p r o p ó s ito o u re le v â n c ia, n e m ta m p o u c o é
re d u z ív e l a u m m e r o siste m a d e p e n s a m e n to . A n te s , M a rc o s, d e s d e o in ício ,
a n u n c ia q u e o c o n te ú d o d o e v a n g e lh o é a p e s s o a d e Je su s, o C ris to e F ilh o

8 Veja O. H ofius,“IstJesus der Messias? Thesen”,/A7/Í1993) 8 ‫)׳‬, p. 117, que enfatiza


com correção que “Messias” designa o agente humano, ao passo que “Filho de
Deus” é um term o mais plenam ente metafísico que designa a divindade de Jesus
Cristo: “O título metafísico ‘Filho de D eus’ que aparece como um título de exaltação
para Jesus no N ovo Testam ento pressupõe a com unhão essencial e original de
Jesus com Deus e com sua divindade preexistente (Gottsein)” (itálico no original).
“Filho de D eus” é omitido em dois manuscritos uncíais de peso, Sinaítico (séc. IV)
e Koridethi (séc. IX), em bora o m ero número, variedade e peso dos manuscritos
apoiem essa inclusão em 1.1. Contra sua autenticidade temos o fato de que os
escribas com frequência sucumbiam à tentação de expandir títulos e quasitítulos
dos livros. Além disso, é difícil explicar por que um escriba omitiría um título
tão im portante, se estivesse no original. Em favor de sua autenticidade, por sua
vez, está a possibilidade do equívoco dos escribas na cópia devido à similaridade
das terminações do genitivo das quatro palavras precedentes. Ainda, “Filho de
Deus” desempenha um papel essencial na cristologia de Marcos e está presente
em pontos críticos do evangelho (batismo, 1.11; expulsão de demônios, 3.11;
5.7; transfiguração, 9.7; julgamento de Jesus, 14.61; e em especial a confissão do
centurião, 15.39). A evidência e propósito geral do manuscrito de Marcos parece
argumentar em favor da originalidade do “Filho de D eus” em 1.1. Veja B. Metzger,
TC G N T, p. 73. N. Perrin (“T he Christology o f Mark: A Study in M ethodology” ,
em A Modern Pilgrimage o f N ew Testament Christology [Philadelphia: Fortress, 1974],
p. 115) observa o seguinte: “se [o título] não fizesse parte do sobrescrito original,
ele deveria estar lá, e o escriba que o adicinou pela primeira vez era marcano em
propósito, se não em nom e” .
55 M a rc o s 1.2-3

de D eus. É u m a b rev e co n fissão de fé, o sen tid o da qual se d esenrolará só à


m ed ida q ue o leito r seguir a ap resen taç ão d e Jesu s n o evangelho de M arcos.

J O Ã O B A T IS T A : O P R E C U R S O R D E J E S U S (1.2 -8 )

2,3 O evangelho de M arco s foi escrito p ara os ro m an o s gentios. M arcos,


o q ue é b a sta n te co m p reen sív el, faz p o u c o u so das citações d o A n tig o Tes-
tam en to , u m a vez q ue os tex to s de c o m p ro v a ção d a pro fecia hebraica não
alcançariam o g rau de au to rid ad e co m as audiências gentias que alcançariam e
alcançavam co m as audiências judaicas. É ainda m ais notável, p o r conseguinte,
que M arcos co m ec e sua h istó ria co m u m a referên cia ao A n tig o T estam ento.
A citação é in tro d u z id a co m u m a fó rm u la au to ritativa co m u m n o m u n d o
g re co -ro m a n o e n o judaico: “ C o n fo rm e está esc rito ” (gr. kathõsgegraptaí). N o
m u n d o helen ista a fó rm u la aparece fre q u e n te m e n te em in tro d u çõ e s às leis
ou às declarações c o m fo rça legal. N o A n tig o T estam en to , ela reivindica a
influência n o rm ativ a so b re os o u v in tes o u leitores ao d esignar a autoridade
de D eus, da T o rá, d o rei o u d o p ro feta.9
A citação de 1.2,3 é identificada c o m o p ro v e n ie n te d o p ro feta Isaías, em -
bora seja d e fato u m a co m b in aç ão de três passagens d o A n tig o T estam en to .10*
A referên cia ao envio d o m en sag eiro n o versículo 2 segue a p rim eira m etade
de Ê x o d o 23.20 e de M alaquias 3.1, e m b o ra n ão exista u m a c o n tra p arte exata
no A n tig o T e sta m e n to à ú ltim a m etad e d o versículo 2 (“ ele p re p ara rá o teu
cam inho”). A m aio r p arte d a com binação d e textos aparece n o versículo 3 que
rep ro d u z Isaías 40.3 d e fo rm a p ra tic am en te exata. O tex to de Isaías 40.3 é ci-
tado pelos q u atro evangelhos co m referên cia a Jo ã o B atista co m o o p recu rso r
de Jesus (M t 3.3; M c 1.3; L c 1.76; J o 1.23). A citação d e Isaías n o versículo 3
foi co n sid erad a c o m o o elem e n to d efin id o r d essa c o m b in ação d e citações.11
O tod o , p o rta n to , é atrib u íd o a Isaías, c o n sid erad o o m aio r d o s p ro fetas e
cuja au to rid a d e na igreja prim itiva su p lan ta a d e Ê x o d o e a d e M alaquias.12

9 G. Schrenk, “grapbõ”, T D N T \ .747-49.


10Vários d os m anuscritos uncíais (A K P W Π ) atribuem a citação nos w . 2,3 aos
“profetas” , em vez de específicam ente a Isaías. E ssa m udança p o d e ser explica-
da pelo desejo de copistas posteriores de criar um a fórm ula in trodutória mais
abrangente, um a vez que a citação nos w . 2,3 é um a com binação. A atribuição da
citação a Isaías é mais firm em ente atestada, n o entanto, e deve ser preferida. Veja
M etzger, T C G N T , p. 73; e E . H oskyns e N. Davey, The Riddle o f the N ew Testament
(London: Faber and Faber, 1958), p. 44-46.
"S tr-B 2.1.
12 Sobre as citações do A ntigo T estam ento nos w . 2,3, veja J. M arcus, The Way o f the
Lord (Edinburgh: T. & T. Clark, 1992), p. 12-17, que argum enta que a com posição
se origina de M arcos.
M a rc o s 1.2-3 56

T a n to n o T M q u a n to n a L X X , “ n o d e s e rto ” designa o locai o n d e D e u s


p rep ara rá o ca m in h o p ara seu p o v o ; p o r co n seg u in te, “ U m a voz clama: ‘N o
d ese rto p re p a re m o ca m in h o p ara o S e n h o r ’ ” (Is 40.3). O s M M M , seguin-
d o essa co m p re en são , citam o versículo n a justificação da fu n d ação de u m a
co m u n id ad e d a T o rá longe d o s “ h o m e n s d o p e c a d o ” (= Jerusalém ) n a estepe
ou d e se rto d e C u n rã (1Q S 8.14). M arcos, n o en tan to , alinha a expressão “ n o
d e se rto ” co m o m en sag eiro (“v o z d o q u e clam a n o d e se rto ”), em vez do
lugar da p re p a ra ç ão de D e u s, c o n fo rm a n d o -se desse m o d o co m a aparição
de Jo ã o B atista n o d e se rto d a Judeia. A citação apresen ta Jo ã o B atista co m o
o “ m en sag e iro ” en v iad o à fren te, a “ v oz d o q u e clam a n o d e se rto ” (1.2,3).
A tarefa d e Jo ã o é “ preparfar] o c a m in h o ” p ara aquele que viria a seguir.
E m Ê x o d o 23.20,23, o “ a n jo ” q u e liderará o p o v o n ão é u m guia h u m an o
n em m e sm o M oisés, m as u m m en sag eiro divino d o S en h o r ( Yahmh). A pli-
car esse tex to a J o ã o B atista in d ica m ais q u e a alta estim a q u e M arcos tin h a
p o r Jo ã o B atista; indica seu p ro p ó s ito d iv in am ente ord en ad o . A passagem
de M alaquias (tam b ém M l 4.5,6), d a m esm a fo rm a , identifica o p re p a ra d o r
d o ca m in h o co m E lias que, d e a c o rd o c o m 2Reis 2.11, n ão m o rre u , m as foi
a rre b a ta d o p ara o céu em u m ca rro d e fogo. H avia u m a expectativa m uito
d ifu n d id a n o ju d aísm o d e q u e E lias re to rn a ria co m o o p re c u rso r d o reino
escato lóg ico d e D e u s n o dia fin al.13 P ressu p õ e-se co m frequência q u e Elias,
a q uem M arcos aqui identifica c o m Jo ã o B atista, seria o p re c u rso r d o M essias.
Todavia, n o s tex to s judaicos pré-cristãos, p reserv ado s n o A n tig o T estam en to
e n a literatu ra in tertestam en tá ria, E lias prefig u ra a aparição d o p ró p rio D eu s,
n ão d o M essias.14 E sse fato eleva d e fo rm a considerável a im p o rtân cia da
citação d o A n tig o T e stam e n to em 1.2,3. N a citação, vários d o s p ro n o m e s e a
frase “ o ca m in h o p a ra o Senho!<**(grifo d o au to r) re ferem -se a D eus. M arcos,
n o en tan to , aplica esses tex to s a Jesus. Isso in d ica q u e Jo ã o B atista n ão só é o
m ensageiro d o M essias, m as d o p ró p rio D eus, aparecendo em Jesus de N azaré.
A p assa g em 1.2,3, p o r c o n se g u in te , a p re se n ta Jo ã o B atista c o m o o
p re c u rso r d e Jesu s d iv in am en te o rd e n ad o , e Jesu s c o m o a m an ifestação de
D eus. A citação tem ainda o efeito d e ligar a vida e m inistério de Jesu s com o
A n tig o T estam en to . Jesu s n ã o é u m a ideia tardia d e D eus, c o m o se u m p lan o
d e salvação a n te rio r tivesse d a d o errado. A n tes, Jesu s está em co n tin u id ad e
com o trab alh o de D e u s em Israel, o cu m p rid o r d a lei e d os p ro fetas (M t 5.17).

13 Ml 3.1; Sir 48.10; P seudofílon, Bib. A n t. 48:1; 4 E d 6.26; Sib. O r 2:187-89; Apoc.
E lias 5.32,33; 4Q 558.
14 M. Ò hler, “T h e Expectation o f Elijah and the Presence o f the K ingdom o f G o d ”,
J B L \\% (1 9 9 9 ),p. 641-76.
57 M a rc o s 1.4

A co m b in aç ão das citações d o A n tig o T e sta m e n to feita n a in tro d u çã o não


só liga a p esso a e m in istério de Jesu s de m o d o inseparável co m a revelação
preced e n te de D e u s n o A n tig o T estam e n to , m as ta m b ém to rn a a pessoa e
m inistério d e Jesu s n ão com preensíveis à p a rte dela. D a perspectiva teológi-
ca cristã, isso u n e o N o v o T e sta m e n to d e fo rm a ú n ica e inseparável co m o
A n ú g o T estam en to . O evangelho é co m p reen sív el apenas c o m o a conclusão
de algo q ue D e u s c o m eç o u na h istó ria de Israel. Isso exclui a possibilidade de
os cristãos d esp rezarem o u dim inuírem a im p o rtân cia d o A ntigo T estam ento,
ou de te n ta re m “p u rg a r” o evangelho das origens e d o co n te x to judaicos.
U m se g u n d o efeito dessa c o m b in aç ão de citações é que ela o ferece um a
pista p ara a c o m p re en são da p esso a de Jesus. O u tro asp ecto im p o rtan tíssim o
é que as citações, co m seus c o n te x to s d o original h eb raico se referem direta
ou in d iretam en te ao S e n h o r ( Yahrnh), são aqui aplicadas a Jesus. A citação de
abertu ra de M arcos tran sfere o cu m p rim e n to d o reino escatológico d e D eu s
de m o d o sutil, m as direto, p a ra je su s. O fu n d a m e n to q ue define e caracteriza
a influência de Jesu s ao lo n g o de to d o o evangelho — em q u e Jesus de fo rm a
desp retensio sa, m as autoritativa, u n e seu ca m in h o ao cam in h o de D eu s; sua
obra co m a o b ra de D eu s; su a p esso a co m a p esso a d e D e u s — já aparece
em 1 .2,3.'‫י־‬
P o r fim , a c o m b in ação de citações fo rn ece u m a pista p ara a n atu reza d o
m inistério de Jesus. H á três o co rrên c ia s das palavras “ c a m in h o ” e “ v eredas”
em 1.2,3. A referên cia inicial ao “ evangelho d e Jesu s C risto ” (1.1) é, p o rta n -
to, um caminho (cf. A t 9.2). A h istó ria d e Jesus, d esd e o início da narrativa,
direciona seus o u v intes a algo p rá tic o e tra n s fo rm a d o r — e n ão à m etafísica
e m isticism o, n e m às regras e sistem as éticos — u m caminho de salvação via-
bilizado p o r D eus. M arco s resu m irá e refinará esse tem a n a seg u n d a m etade
do evangelho em q u e a ex p ressão “ n o ca m in h o ” d irecio n a Jesu s — e seus
discípulos — ao c u m p rim e n to d e sua m issão em Jeru salém . E m M arcos, o
caminho d e D e u s é d errad e iram en te o ca m in h o de Jesu s para a cruz.
4 Jo ã o B atista, apenas c o m o u m a c o n ju n çã o segu indo a citação, aparece
em 1.4.1516 A im ediação da ap resen tação de Jo ã o B atista o identifica co m o o

15 Marcus, The Way of lhe Lord, p. 31-41, vê corretam ente a importação cristológica
da abertura mosaica do Antigo Testamento. “O caminho para o Senhor” não é
basicamente uma referência ao com portam ento ético, mas à presente irrupção
de Deus em Jesus. Marcos, portanto, assinala que onde Deus agiu anteriormente,
Jesus age agora.
16A tradição manuscrita está dividida quanto ao v. 4, se baptism (“batizando”) deve
ser com artigo definid() ou sem artigo definido, ou seja, se é um título de João 0
M a rc o s 1.4 58

m ensag eiro d a p re p aração p ara Jesus. A descrição de Jo ã o n o s versículos 4-8


está m ais fo c ad a e m ais definida q u e o re tra to d e Jo ã o B atista n o s o u tro s
evangelhos. O m itid o s em M arcos estão as circunstâncias m aravilhosas do
n asc im e n to de J o ã o (Lc 1), seu desafio am eaçad o r às escolas farisaicas e sa-
duceias d o ju d aísm o (M t 3.7-10; L c 3.7-9) e seu clam o r pela re fo rm a social
(Lc 3.10-14). M arcos restrin g e seu re trato de Jo ã o a u m único tem a, descrever
Jo ã o B atista c o m o aquele q u e cu m p riu o p ap el ap o teó tico de E lias c o m o o
p re cu rso r d o “ m ais p o d e ro so ” (1.7), cujas sandálias ele era in digno de desatar.
Jo ã o B atista, c o m o E lias (lR s 17.2,3), é id en tificado c o m o d e se rto —
as terras estéreis e vastas d e Ju d á, assoladas p elo v en to e calor. O d ese rto
re p re se n ta rep etidas vezes u m local d e a rre p e n d im e n to na h istória de Israel
e, p o r co n seg u in te, u m lu g ar d a g ra ça d e D e u s.17 O d eserto , d o s p rim o rd io s
de Israel, é o local o n d e D e u s traz a lib ertação p ara seu povo, p rim eiro n o
d e se rto d o Sinai a p ó s o êx o d o (E x 15.22ss) e, daí em diante, em u m d ese rto
sim bólico d e esp eran ça p ro c la m ad a p elo s p ro fetas (Jr 2.2,3; O s 2.14ss.). A
aparição d e Jo ã o B atista n o d ese rto c u m p re p ro tó tip o s p ro fético s e m osaicos:
é um a no v a en c en ação d o p o d e ro s o ev e n to inaugural da histó ria de Israel
em Ê x o d o e ta m b é m c u m p re as p ro m essa s d o s p ro fetas, u m a vez que “ to d a
a região p ró x im a ao J o rd ã o ” (Lc 3.3) freq u en tad a p o r Jo ã o B atista é preci-
sám en te a região associada c o m E lias (2Rs 2.6-14). Jo ã o reú n e as pessoas
tirand o-as d e suas rotinas, d o c o n fo rto d o s dom icílios u rb a n o s e em especial
da h eg e m o n ia estatu tária d o te m p lo d e Jeru salém , “ p reg an d o u m b atism o de
a rre p e n d im e n to p ara o p e rd ã o d o s p e c a d o s” n o deserto.
Jo ã o B atista, co m o u m sím b o lo d e regen eração m oral e espiritual, cha-
m a as p esso as ao batismo. A palavra g reg a p ara “ b atism o ” , da raiz baptein,
significa “ afu n d a r to talm e n te, m erg u lh a r o u su b m erg ir” . As origens precisas
d o b atism o são o b scu ras, e m b o ra os rituais d e b an h o s sagrados e os rituais
de lavagem sejam co n h e cid o s em to d o o O rie n te P ró x im o da A n tiguidade.18
O judaísm o p ré -cristão co n c o rd av a co m a necessidade de a rrep e n d im en to
antes d o fim d o s dias {eschatori) q u a n d o D e u s purificaria seu p o v o p o r m eio
d o E sp írito S an to (Jub. 1.22-25). A p e sa r d e o mikwa’ot (ritual d e lavagem an-
tes da adoração) ser u m e lem e n to co n stitu tiv o d o judaísm o (veja m. Miqwà)

Bateador ou uma descrição dele batizando no deserto. A última opção é a leitura


preferida uma vez que (1) tem o apoio manuscrito mais diverso e mais vigoroso
e (2) porque “o Batizador” pode ser explicado com o uma assimilação a passagens
com o 6.25 e 8.28. Veja Metzger, TCGNT, p. 73.
17 U. W. Mauser, Christ in the Wilderness, SBT (London: SCM Press, 1963), p. 46-52.
18 A. Oepke, “baptõ”, TD N T\.528-29.
59 M a rc o s 1.4

e de haver algum as evidências p ara o b atism o d o s pro sélito s n o judaísm o,


o principal ex em p lo d o ritual de lavagens n o ju d aísm o deriva-se da com u-
nidade da aliança o u c o n c e rto em C u n râ, p ró x im o d o m a r M o rto , o n d e a
purificação diária sim bolizava a purificação escatológica de D eus. “ [Deus]
respingará s o b re ele o esp írito d a v erd ad e c o m o a água p u rificad o ra (a fim de
purificá-lo) d e to d as as rep u g n an cias d o en g a n o e d a p ro fan aç ão d o espírito
im u n d o ” (1Q S 4.21-22).
H á m u ito s d eb ates se, e até q ue p o n to , o b atism o de Jo ã o reflete esses
vários p recu rso res de rituais co m água. O b atism o de João, d e m uitas m aneiras
im portantes, difere d o q u e co n h ecem o s d o batism o d o prosélito e das lavagens
em C unrã. O b atism o d e J o ã o — d e fo rm a d istin ta d o ritual d e mikwa’ota dos
banho s em C u n rã, u m a vez q ue estes eram autolavagens — era adm inistrado
para (‫ נ‬p en iten te p o r J o ã o c o m o u m seg u n d o partícipe. A lém disso, o b atism o
do p ro sélito e as lavagens em C u n rã eram rituais d e iniciação nas com uni-
dades d e fé, ao p asso q u e o b atism o de Jo ã o significava renovação espiritual
e m oral. O s acadêm icos, p re s su p o n d o q u e J o ã o batizava no s arred o res da
com unidad e d e C u n râ, su p õ e m em geral q u e Jo ã o o u estava associado com
os essênios o u foi influ en ciad o p o r eles.19 N o e n ta n to , fu n d a m e n tad o s na
escassa evidência q u e tem os, parece q ue Jo ã o batizava um p o u co m ais a n o rte
no rio Jo rd ã o , p e rto d a G alileia (veja a n o ta 23 abaixo). N ã o há, além disso,
n en h u m a evidência n o N o v o T e sta m e n to d e q u e J o ã o estava associado com
a co m u n id ad e d e C unrã; e, caso ele estivesse, os co stu m es deles deixaram
um traç o re d u zid o em seu m inistério. C o n sid e ran d o -se as diferenças en tre o
b atism o d e J o ã o e os rituais de lavagem judaicos em geral, é questionável se o
batism o d e Jo ã o b ro ta d e algum c o stu m e d o s essênios de C unrã. P arece p ro -
vável q ue o b atism o d e Jo ã o lem b re e reviva a aliança fu n d am en tal co m Israel
n o Sinai em q u e to d o o p o v o era re u n id o p ara ser um “re in o de sacerdotes
e um a nação san ta” (Êx 19.6; 23.22; ta m b é m lP e 2.9). E ste era o ideal único
e peculiar (“tes o u ro p esso a l” , Ê x 19.5, heb. segullah) de toda a nação de Israel
desde seus p rim o rd io s, e n ão apenas d o sacerd ócio d escen d en te de Arão.
O s israelitas d em o n strav a m a aceitação d e seu re la cio n am en to com D eu s

19 Os prós e os contras à influência de Cunrã sobre João Batista são discutidos em O.


Betz, “Was John the Baptist an Essene?” BRev 6 /6 (1990), p. 18-25. Betz acredita
que João Batista foi educado em Cunrã, sendo muitíssimo influenciado por esse
contato, mas que, mais tarde, ele abandonou essa facção para pregar para uma
comunidade mais ampla de judeus. A associação de João com Cunrã, no entanto,
continua conjectural, e as diferenças entre João Batista e os essênios são mais
numerosas e mais impressionantes que as similaridades.
M a rc o s 1.4 60

fu n d a m e n ta d o n a aliança o u c o n c e rto p o r m eio da lavagem das ro u p as e da


purificação deles m esm o s antes de e n tra rem na aliança n o Sinai (Ê x 19.10).
E ssa lavagem sim bolizava a tra n sfo rm a ç ã o m o ral e espiritual necessária para
e n tra r n o re la cio n am en to c o m D e u s fu n d a m e n ta d o n o c o n c e rto o u afiança.
O “ batism o d e a rre p e n d im e n to ” de J o ã o d estin ad o a to d o s os judeus (e não
apenas p ara a elite religiosa) c o rre s p o n d e fav orav elm ente aos elem en to s
essenciais d a p re p a ra çã o p ara o dia d o S e n h o r na afiança original d o Sinai.
A chave p ara co m p re e n d e r o b atism o de Jo ã o é que ele é proclamado, o que
significa q u e é u m a ação d e D e u s, em o p o sição a u m a m era ação h u m an a.2“
É ta n to u m a dádiva divina q u a n to u m a o p o rtu n id a d e divina realizada p o r
in te rm é d io d o a rrep e n d im e n to . O “ a rre p e n d im e n to ” (gr. metanoia) é u m a
palavra c o m p o sta co m o sen tid o d e “ m u d a r a m e n te d a p esso a” o u “ alterar
o e n te n d im e n to d e alguém ” , c o n o ta n d o , p o rta n to , decisão racional e ato
deliberad o em o p o sição ao se n tim e n to em otivo. Todavia, a etim ologia gre-
g a d a palavra p recisa ser arg u m e n tad a p elo co n c eito de a rre p e n d im e n to e
co n v ersão n o A n tig o T estam e n to , em p articu lar n o s p ro fetas, se fo r p ara o
ch a m a d o d e J o ã o ao a rre p e n d im e n to ser apreciado.21 O a rre p e n d im e n to era
a m en sag em d e J o ã o B atista re d u zid a a u m a palavra. E le exige, de aco rd o
co m o b reve relato d e M arcos n o versículo 4, d a r as costas p ara o p ecad o , e
tam b ém , de a c o rd o co m M ateu s 3.8 e Lucas 3.8, um sinal o u “ fru to ” , talvez
o b atism o co m água, m as m ais p ro v av elm en te a tran sfo rm açã o m oral. A cim a
de tudo, o ch am ado de Jo ã o ao a rrep e n d im en to é m ais u rg en te que aquele dos
p ro fetas; é a ú n ica atitu d e necessária p ara p re p a ra r o p o v o p ara o julg am en to
im inente de D eus. T am pouco, o cham ado de Jo ã o ao arrep en d im en to p o d e ser
com partim en tafizad o . Im p lica a to talid ad e da vida d a p essoa, e n ão é apenas
para p ecad o res n o tó rio s (Lc 3.12,13) o u g en tio s (Lc 3.14), m as até m esm o
para os ju d eu s ju sto s (M t 3.7-10).22 Jo sefo , na única referência ao b atism o
de Jo ã o fo ra d o N o v o T estam en to , salienta a in ten ção da re fo rm a in ere n te

211\ ‫׳‬eja Lohm eyer, D as Evangelium des M arkus, p. 13-15; e M arcus, The W a jo f theLord,
p. 18-31, que argum enta que, n o N o v o T estam ento, o o b jeto do verb o kêryssein
(“ proclam ar”) é um a ação de D eus.
21 Metanoia e metanoeõ não oco rrem com frequência na L X X , em geral co m o um a
tradução de naham , “lam entar” o u “sentir rem o rso ” . As condições da pregação
para o a rrep en d im en to de Jo ã o B atista, em particular co m o p reservadas p o r
M ateus 3.7-10 e Lucas 3.7-9, revelam um padrão mais rem iniscente d o hebraico
J'hub, “voltar” , que o co rre m ais de mil vezes n o TM .
22 H . M erklein, “metanoia’’, E D N T 2 A \5 -\9 ■ J. B ehm , “metanoeõ”, 7 D A T 4 .1 .0 0 0 -
1.001.
61 M a rc o s 1.5-6

ao ch a m a d o d e Jo ã o ao a rrep e n d im en to . “ [João] e x o rto u os judeus a levar


um a vida justa, a p ra ticar justiça em relação a seus cam aradas e p iedade em
relação a D e u s, e, ao fazer isso, juntar-se ao b a tism o ” (Ant. 18.116-18). O
batism o em tal estad o de re fo rm a m o ral alcançava, nas palavras d e M arcos,
“ o p e rd ã o d o s p e c ad o s” .

5 M arcos n ão diz ex a ta m en te o n d e J o ã o batizava ao lo n g o d o rio Jo r-


dão, e m b o ra vários fato res sugiram a região im ed iatam en te a sul d o m ar
da Galileia.23 “A ele [João] v in h a to d a a região da Ju d eia e to d o o p o v o de
Jeru salém ” , d e ac o rd o co m M arcos. A m en çã o ex pressa de Jeru salém indica
que o m in istério d e Jo ã o (e talvez os co n v ertid o s) c h a m o u a aten ção da elite
do tem p lo em Jeru salém , c o m o ta m b é m de o u tro s locais n o interior. A no-
to riedade d e Jo ão , c o m o in d ica a d escrição d e M arcos, era b em d ifu n d id a e
im pressio n an te. O ap ó sto lo Paulo, duas o u três d écadas m ais tarde, em cerca
de 55 d.C., e n c o n tro u o s discípulos d e Jo ã o na d istan te E fe so (A t 19.1-7); e
Josefo, escrev en d o p ró x im o d o fim d o século I, d ev o ta m ais aten ção a Jo ã o
que a je s u s {Ant. 18.116-19). A atração e influência de João, em sum a, fizeram
história. A in te n çã o d e Jo ão , n o en tan to , n ão era g a n h a r popularid ad e, m as
iniciar u m m o v im e n to d e a rre p e n d im e n to e re fo rm a em Israel para p rep arar
para “ alguém m ais p o d e ro s o ” p o r v ir (1.7; L c 1.17).

6 A descrição da fo rm a c o m o Jo ã o se vestia, quase tão in co m u m n a época


de Jo ã o q u a n to seria n a n o ssa, relem b ra a v estim en ta de u m p ro fe ta (Z c 13.4)
e, em particular, d o p ro fe ta E lias q u e “vestia ro u p a s de pelo s e usava um
cinto d e c o u ro ” (2Rs 1.8). O h eb raico d e 2R s 1.8 descreve a ro u p a de Elias

23 A localização precisa do local o n d e João batizava é incerta. M arcos (1.5) e M ateus


(3.6) dizem apenas que Jo ão batizava n o rio Jordão. Lucas 3.3 relata que João
“percorreu toda a região próxim a ao Jo rd ão ” , deixando implícito que João batizava
em mais de um local do rio e talvez nos tributários saindo do Jordão. B. Pixner,
pegando a descrição de Lucas com o um a pista, sugere que Jo ão batizava em vários
locais associados com Elias ( W ith Jesus Through Galilee, p. 19-20). O evangelho de
João localiza Jo ão batizando em “ E n o m , p e rto de Salim, p o rq u e havia ali m uitas
águas, e o povo vinha para ser batizado” (Jo 3.23). T an to E n o m qu an to Salim
ficam logo a oeste do rio Jordão, cerca de quarenta quilôm etros a sul do m ar da
Galileia. Isso localiza o batism o de João em D ecapólis, p erto da Galileia. Para
um a discussão detalhada da questão, veja R. Riesner, “ Bethany Beyond the Jo rd an
(John 1:28): T opography, T heology and H istory in the F o u rth G o sp el” , TjnB ul
38 (1987), p. 29-63 (em bora o argum ento de R iesner p o r B atanea sudeste do m ar
da Galileia seja talvez m uito especulativo).
M a rc o s 1.7-8 62

c o m o u m a veste ásp era d e pele de b o d e que, em M arcos, se to rn a a veste de


pelo d e cam elo d e J o ã o B atista. O alim entar-se de g afan h o to s, e m b o ra p ossa
parecer e stra n h o p ara alguns paladares m o d e rn o s d o O cid en te, fazia p a rte
das regras dietárias d o s judeus (Lv 11.22; m. Hui. 3.7), sen d o u m a alta fo n te
de p ro teín a e m inerais. A veste rú stica e a d ieta d e J o ã o o separavam d o culto
refinado n o tem p lo em Jeru sa lém e o identificava ainda m ais co m a região de
“ d ese rto ” (1.4). N ã o só a v estim enta d e Jo ã o o associa co m Elias, m as tam bém
sua crítica d estem id a d e H e ro d e s A n tip as (6.18) ecoa as co n fro n taçõ e s de
Elias co m o rei A cab e (IR s 18.18).24 A ssim , M arcos associa Jo ã o a E lias na
v estim en ta, n o cenário e n a p ro clam ação , o p ro fe ta e stro n d o so que ren o v o u
o c o n c e rto o u aliança de D e u s co m Israel n o m o n te C arm elo (IR s 18.30-45).
As m ultid õ es q u e visitam Jo ão , p o rta n to , fazem um a p ereg rin ação até um a
figura q ue é u m arau to d o c u m p rim e n to d o d estin o de Israel.

7 M arcos, ao co n trá rio de M ateus 3.7-10 e Lucas 3.7-9 q u e cham am


aten ção p ara a m en sag em d e re fo rm a de Jo ão , foca a p reg ação de Jo ã o em
“ alguém m ais p o d e ro s o ” p o r \tir. E ssa descrição de Jesu s an tecip a a p arábola
co m p ac ta de u m versículo em 3.27 em q u e Jesu s se refere a si m esm o c o m o
o ú n ico p o d e ro so o suficiente p ara a m arrar o h o m em fo rte, Satanás. Jo ã o
Batista, d e a c o rd o c o m a m e táfo ra da ép o ca, considerava-se in d ig n o de desa-
m arrar as sandálias daquele q u e estava p o r vir. O d esa m arrar as sandálias e o
lavar os p és eram tarefas d o s escravos, n a v erdade apenas de escravos gentios,
n o judaísm o d o século I. A m e tá fo ra evidencia a hum ildade e su b o rd in ação
de Jo ã o em relação ao M essias (v e ja jo 3.30).25

8 O b atism o de J o ã o era sim b ó lico e p ro v isó rio de u m a realidade m ais


p e rm a n e n te e m ais p o d e ro sa p o r vir: “ E u os b atizo co m água, m as ele os
batizará co m o E sp írito S an to ” .26 E ssa é u m a declaração ex traordinária, pois,

24 Veja M. Hengel, The CharismaticLeader and His Followers, trad. J. Greig (New York:
Crossroad, 1981), p. 35-37.
25 Veja Str-B 2.557.
26 A tradição do manuscrito do versículo 8 é dividida se João Batista batizava “na
água” ou apenas “por meio da água”. A primeira opção sugere imersão, ao passo
que a segunda é mais ambígua. E m bora um campo um tanto mais robusto do
manuscrito traga “na água” , apenas bydati (“por meio da água”) é preferível (1) por
causa do apoio dos principais manuscritos alexandrinos (‫ א‬B Δ) e (2) porque os
escribas tendiam a acrescentar en (“em ”) antes de bydati (“água”) para concordar
com passagens como Mateus 3.11 e jo ã o 1.26. Veja Metzger, TCGNT, p. 74.
63 M a rc o s 1.7-8

no A n tig o T estam e n to , a co n cessão d o E sp írito p e rte n c e exclusivam ente a


Deus. A d eclaração d e Jo ão , d e a c o rd o co m M arcos, tran sfere a concessão
do E sp írito p ara Jesus, in d ican d o m ais u m a vez q ue Jesus, c o m o aquele m ais
podero so , virá co m p o d e r e c o m u m a p re rro g ativ a de D e u s.27 O p o d e r es-
piritual d o b atism o m essiânico, p o rta n to , sup lan tará o sím b o lo d a água n o
batism o h u m an o . O “ E sp írito Santo” identifica o p o d e r espiritual d e Jesus
com D eus, g u ard an d o , p o rta n to , o p o d e r divino d e ser co m p re en d id o de
fo rm a equivocada co m o algo satânico o u m al (e.g., 3.22).
A eco n ô m ic a in tro d u ç ã o d e Jesu s p o r M arcos, em b o ra seja considera-
velm ente tru n c a d a em co m p araçã o à d o s o u tro s evangelhos, testifica, não
o b stante, q u e o ev e n to -C risto n ã o é u m a o c o rrê n c ia arb itrária e aleatória. A o
contrário, o alvorecer da era da salvação em Jesus é a c o n su m aç ão d e um a
p o d ero sa h istó ria d a revelação d e D e u s, e ste n d e n d o -se aos p rim o rd io s de
Israel em Ê x o d o . D e u s, d o Sinai em d ian te e p artic u la rm en te n o s profetas,
estava p re p a ra n d o p ara u m n o v o c o m eç o em Jesus Cristo.

O B A T IS M O D E J E S U S (1.9 -11)

M arcos relata o b atism o d e Jesu s em apenas 53 palavras n o original em


grego. A relevância d o evento, n o en tan to , é m uitíssim o d esp ro p o rcio n al ao
seu tam an ho . O b atism o , c o m o o ev e n to inaugural d o m in istério pú b lico de
Jesus, não n o s diz o que Jesus faz, m as o qu e D e u s faz p ara ele. U m a referência
em A to s 1.21,22 testifica q u e o b astim o d esd e os p rim o rd io s d o m o v im e n to
cristão foi co n sid erad o c o m o u m fato d efin id o r e indispensável n a vida de
Jesus. Q u a n d o os a p ó sto lo s acharam necessário esco lh er u m su b stitu to p ara
Judas, o prin cip al critério era e n c o n tra r alguém que tivesse aco m p a n h ad o
Jesus d o batismo em diante. E m b o ra o evangelho d e J o ã o se inicie co m a
preexistência d a Palavra d e D e u s; e os evangelhos d e M ateus e Lucas, co m
circunstâncias p o rte n to sa s em to rn o do nascim en to d e Jesus, M arcos com eça
a história d e Jesu s c o m o ev e n to inaugural qu e a igreja d esd e seus p rim o rd io s
considerava co m o o p rin cíp io d a relevância salvífica d a vida e m inistério de
Jesus — o b atism o n o rio J o rd ã o p o r Jo ã o Batista.

27 Uns poucos manuscritos uncíais (B L) trazem pneumati hagioi (“ com o Espírito


Santo”; seguido pela NVI) e um (P) que Jesus será batizado “no Espírito Santo e
no fogo” . Essa última leitura é uma assimilação óbvia de Mateus 3.11 e Lucas 3.16.
A leitura preferida, no entanto, é representada pela maioria dos manuscritos “no
Espírito Santo” que intensifica a união entre Jesus e o Espírito Santo. Veja Metzger,
TCGNT, p. 74.
M a rc o s 1.9-10 64

9 A in tro d u ç ã o d o b atism o n a p rim eira p a rte d e 1.9 tem o to q u e d e u m


H eb raísm o , su g erin d o u m a n arrativ a h eb raica o u aram aica n o original. A
m en çã o de q u e “Jesu s veio d e N a zaré d a G alileia” é a única m en ção p elo
n o m e da cidade o n d e Jesu s cresceu em M arcos, e m b o ra N azaré seja aludida
m ais u m a vez em 6.1. M arcos liga o b atism o ao m inistério de Jo ã o B atista
p o r m eio d o p aralelo d e palavras n o s versículos 5 e 9.28 N ã o o b sta n te , Jesu s
n ão é p o s to n o m e sm o p la n o q u e J o ã o Batista. A m u d an ça estratégica p ara
a voz passiva (“Jesu s [...] foi b a tiza d o p o r J o ã o n o Jo rd ã o ”) tran sfere Jo ã o
B atista, q u e fo ra o sujeito d o s versículos 4-8, p ara o p ap el de m ediador, es-
tab elecen d o Jesu s d e fo rm a p ro e m in e n te c o m o o sujeito. M arcos tam b ém
m u d a o te m p o verbal, p a ssa n d o d o ao risto (p retérito sim ples) n o versículo
9 p ara o im p erfe ito (ação co n tín u a n o passado) no s versículos 10,11, te n d o
o efeito d e atrair o leito r p ara o d ra m a im inente. Jesus, q u an d o sai da água,
ex p erim en ta três coisas que, n a trad ição judaica, significam a inauguração
d o rein o escatológico d e D eu s: os céus fo ram a b e rto s acim a dele, o E sp írito
d esceu so b re ele e a v o z celestial falou dele. A co n c o m itân cia desses eventos
m o m e n to so s n o b atism o assinalam q u e Jesu s é o “ m ais p o d e ro s o ” (1.7) p ro -
m etid o n o A n tig o T estam e n to e o in au g u rad o r d o reino escatológico d e D eus.

10 O p ro fe ta Isaías (64.1) foi o p rim eiro a falar d o ro m p im e n to d o céu


e d a descida d o M essias. A tradição judaica su b seq u e n te elab o ro u a im agem
d e Isaías. O Testamento deLevi, c o m p o s to talvez em 250 a.C., antecipa a narra-
tiva d o b atism o d e M arcos ao m e n c io n a r ex p ressam en te to d o s os três sinais
escatológicos o b serv ad o s acim a.

O s céus abrir-se-ão, e d o Santuário da G lória descerá sobre Ele a santida-


de, num a voz paternal, com o a de A braão e Isaque. A G lória do Altíssimo
ser-lhe-á adjudicada, e o espírito do entendim ento repousará n’Ele, da
m esm a fo rm a com o o espírito da santidade [na água]. Ele transm itirá
realm ente aos seus descendentes a m ajestade do Senhor, para sem pre
{T. Levi 18.6-8; C harlesw orth, OTP,. 1.795).

28 1.5: exepereueto [ . . .] .
pasa héloudaia chõra k a i hot Ierousolymitaipantes
k a i ebapti^onto hyp' autou en tç Jordan!! potamç
1.9: Uthen
Ièsous apo Nadaret tês Galilaias
k a i ebaptisthê eis ton Iordanèn.
Veja L ohm eyer, D as Evangelimn des M arkus, p. 20.
65 M a rc o s 1.9-10

U m a p assag em sim ilar d o Testamento deJudá fala d o rei m essiânico co m o


a E strela de Jacó, so b re q u em “ os céus se ab rem [...], d e rram an d o o espírito
e a b ên ção san ta d o Pai” ( T Ju d . 24.1-3; C h arlesw orth, O T P , p. 1.801). O
ro m p im e n to o u a b e rtu ra d o céu é altam en te relevante p o rq u e o judaísm o do
segundo tem p lo c o m u m e n te acreditava q u e o E sp írito Santo, com a cessação
dos grandes p ro fetas d o A n tig o T estam en to , cessara d e falar diretam ente com
o p ov o d e D e u s.29 A ausência d o E sp írito su p rim iu a p rofecia, e acreditava-se
que D e u s falava aos fiéis apenas co m u m eco d istan te, u m a batqol (heb. “ filha
de um a v o z ”). A a b e rtu ra d o s céus n o b atism o , p o r conseguinte, inaugura
o havia m u ito esp e rad o re to rn o d o E sp írito d e D eus. U m p erío d o de graça
com eça em Jesu s, em q u em D e u s, d e m o d o sem paralelos, revela a si m esm o
no m un do .
E sp ec ia lm e n te relevante são as palavras d e M arcos de q u e os céus foram
literalm ente “ rasga[dos]” (ARA) (gr. schi^ein), u m a descrição suavizada p o r
M ateus 3.16 e L ucas 3.21 q u e usam “ ab rir” (anoigein). Schispin é a tradução
ap rop riada d o te rm o h eb raico qara (“rasgar”) em Isaías 64.1. Schi^ein tam b ém
traduz o h eb raico d o Testamento de L e v i e d o Testamento deJudá , acim a. O term o
aparece na literatu ra judaica p ara d em o n straç õ es cataclísm icas d o p o d e r de
D eus, tais c o m o a divisão d o m ar V erm elh o (E x 14.21), M oisés fen d eu a
rocha (Is 48.21), a divisão ao m eio d o m o n te das O liveiras n o D ia d o S en h o r
(Zc 14.4) o u a descida d o h o m e m celestial em José e A ven a te (Jos. A%en. 14.3).
M arcos em p re g a a palavra p ara te r u m efeito sim ilar n o batism o. O te rm o
schi^ein o c o rre apenas m ais u m a vez em M arcos, q u a n d o o centurião, confes-
sa na crucificação q ue Jesu s é o F ilho de D e u s, m o m e n to em que a co rtin a
do tem p lo “ rasgou-se em duas partes, de alto a b aixo” (15.38). E sses dois
relatos — p rim eiro em seu b atism o e, dep o is, na crucificação — tratam de
ocorrências sobrenaturais, revelando Jesus c o m o o F ilho de D eus. O em prego
estratégico dessa palavra p o r M arco s indica q ue a con fissão de Jesus co m o

29 Salmos 74.9; T. Benj. 9.2; 2Apoc. Bar. 85.3; IM ac 4.46; 9.27; 14.41; Josefo, A g . A p .
1.41. VejaJ. Jerem ias, N ew Testament Theology, trad.J. Bow den (N ew York: Scribner’s,
1971), p. 80-81. Veja Str-B 1.125-34 para mais evidencia de que o E spírito Santo
(o E spírito de profecia), após a m o rte dos últim os profetas Ageu, Zacarias e Ma-
laquias, desapareceu de Israel e, desse m o m en to cm diante, passou a se com unicar
apenas ocasionalm ente p o r interm edio do inferior B ath-Q o l (veja ainda, Str-B
2.128-34). C unrã, não obstante, era um a exceção a essa crença. Para um a visão
contraria de que os rabis não negavam a presença do E spírito Santo no judaísm o
do segundo tem plo, mas que eram indiferentes a ele, cm p arte devido ao desejo
deles de defender a autoridade deles do desafio do cristianism o nascente, veja F.
G reenspahn, “W hy P rophecy C eased” , J B L 108 (1989), p. 17-35.
M a rc o s 1.9-10 66

o F ilho d e D e u s n ão su rg e d e recu rso s h u m an o s, m as apenas da revelação e


e m p o d e ra m e n to divinos (veja I C o 12.3).
O se g u n d o sinal p re se n te n o b atism o é a d escida d o E spírito. O s aca-
d êm icos de u m a geração a n terio r a esta aceitaram com m uita segurança o
ju lg am en to de D a lm an d e q ue falar d o “ E sp írito ” n o sen tid o ab so lu to era
algo q u e n ão se o uvia n o judaísm o, e q u e a p resen ça d o “ E sp írito ” em M ar-
cos 1.10 se deriva o u d o h elen ism o o u d o cristianism o.30 O d ito d e D a lm an
era u m exagero até m e sm o n a ép o ca, e isso foi revelado p o r o u tro s textos
d o p erío d o in te rte stam e n tá rio e, m ais re cen tem e n te , pelas d esco b ertas de
C u n rã.31 A creditava-se, so b re tu d o , q ue o M essias, n a era escatológica, seria
p ro v id o co m o E sp írito de D e u s.32 E ssa p ro v isão é in tensificada n a descrição
da d escida d o E sp írito em M arcos. A N V I trad u z a frase c o m o “ o E sp írito
d esc en d o c o m o p o m b a so b re ele” , m as o g re g o intensifica a união de Jesus
e d o E sp írito : “ o E sp írito estava d esc en d o nele”, in d ican d o o p re en ch im en to
co m p le to e o eq u ip ar p a ra o m in istério p elo E spírito. A ssem elh ar o E sp írito
d e D e u s a u m a p o m b a é in co m u m n o judaísm o (Str-B 1.124-25), m as n ão
to ta lm e n te d esco n h ecid o . E m F ilón, a p o m b a sim boliza a sab ed o ria e pa-
lavra de D e u s; n o targ u m p ara G ên esis 1.2, o E sp írito se m o v en d o so b re a
água é visto c o m o u m a p o m b a (b. Hag. 154); e, em Odes de Salomão 24.1, u m a
p o m b a adeja so b re a cabeça d o M essias (em b o ra essa últim a passagem seja
p rov avelm en te d e influência cristã). M arcos, d e fo rm a d istin ta de L ucas que
descreve o E sp írito em “ fo rm a c o rp ó re a ” (Lc 3.22), vê a p o m b a c o m o um a
sem elhan ça (“ c o m o p o m b a ”), o u seja, co m o u m a im agem visual q u e sugeria
u m a p o m b a. A im ag em d e u m a p o m b a p ara a descida d o E sp írito em Jesus,
p o rta n to , é u m a o c o rrên c ia so b re n atu ral q u e p o d e se assem elhar a u m a rea-
lidade em pírica, e n ão u m a m e tá fo ra p ara a ilum inação espiritual n em para
u m a experiência m ística em pírica. M arcos — ap esar de o relato d o b atism o
em seu evangelho fo car estritam en te em Jesus, e n ão no s espectadores, co m o
no s relatos d e M ateus e d e L ucas — n ã o descreve u m a experiência in te rn a e
subjetiva d e Jesus. A ênfase n o q u e foi v isto e o u v id o atesta da objetividade
em pírica d o evento.33

3(1 G. D alm an, TheWords o f Jesus, trad. D. M. K ay (Edinburgh: T. & T. Clark, 1909),
p. 203.
31 lEnoque 49.3; 62.2; 1Q S 4.6; para um a discussão detalhada, vejaJ. R. Edw ards, “T he
Baptism o f Jesus A ccording to the G ospel o f M ark” ,J E T S 34 (1991), p. 46-47.
32 Veja o m aterial reunido em E . Schweizer, “pneuma”, T D N T , 6.384.
33 O b serv e o julgam ento de R. B ultm ann: “N ã o existe um a palavra so b re a experi-
ência íntim a de Jesus. [...] M ateus e Lucas estão m uito co rreto s em co n sid erar a
67 M a rc o s 1.11

H O sinal escato ló g ico final é a declaração d o céu: “T u és o m eu Filho


am ado; de ti m e a g rad o ” . E m g reg o , a v o z n ã o é m ais o o b jeto de “viu” no
versículo 10, c o m o o são os dois p rim eiro s sinais. A v oz está n o caso nom ina-
tivo, tra n sfo rm a n d o -a n o sujeito d o que vem a seguir e significando a n atureza
clim ática da declaração divina. A p en as aqui e na transfiguração (com exceção
d e jo 12.28) é q ue v em o s o d iscu rso d ireto divino co m Jesu s n o s evangelhos,
e D eus, em cada u m d o s casos, refere-se a Jesu s co m “ m eu F ilh o ” .34
S ob a declaração divina h á u m a riqueza das im agens d o A n tig o T esta-
m ento. U m a d e suas an tec en d en te s m ais clara é Isaías 49.3, em que o servo
hum ilde d o S enhor, apesar de seus sen tim en to s de total futilidade, é declarado
ser aquele em q u em D e u s d e m o n stra seu esp len d o r: “ V ocê é m eu servo, Is-
rael, em q u e m m o strare i o m eu e sp le n d o r” . O paralelism o en tre a declaração
ao serv o d o S e n h o r e a declaração a Jesu s em seu b atism o fica ap aren te de
im ediato (tam b ém Is 42.1). O Filho, c o m o o serv o d o S enhor, tam b ém realiza
a v o n tad e d e D e u s p o r in te rm é d io da ocultação. N a verdade, a ocultação é
essencial p ara a revelação de D e u s, pois a vida d o F ilh o só p o d e ser transpa-
rente da v o n ta d e d e D e u s q u a n d o ele se d esp o ja de suas p rerrogativas p o r
direito. O m in istério de Jesus, c o m o o d o m isterio so servo de Isaías, estará
repleto de o p o sição e ap a ren te d e rro ta , m as seu serv iço vicário terá efeitos
de revelação (“ um a luz para os g en tio s”) e d e salvação (“ para que você leve
a m in h a salvação até os co n fin s d a te rra ” ; Is 49.6).
A d eclaração n o b atism o , além d o c o n c eito d e serv o e de servir, iden-
tífica sem a m e n o r so m b ra de d ú vida Jesu s c o m o o F ilho de D eu s ao ecoar
o e n tro n a m e n to d o rei d e Israel em Salm os 2.7. A intim idade e obediência
filiais, im p erfe ita m e n te p re n u n ciad a p elo rei israelita, estão agora to talm en te
com p letad as em Jesus. E s te é o c u m p rim e n to p erfeito d o co n c eito original
de filiação ligado ao ch a m a d o de Israel em Ê x o d o 4.22,23: Jesus é Israel
reduzido a um .

história de Marcos como a descrição de um acontecimento objetivo” (The History


of the Synoptic Tradition, ed. rev., trad. J. Marsh [New York: H arper and Row, 1963],
p. 247-48).
34A tradição do manuscrito grego está dividida em com o descrever a voz do céu. A
NVI segue a maioria da tradição de que “veio dos céus uma voz” (‫ ' א‬A B K L P W
Δ Π), mas a leitura mais simples dc ‫ * א‬e D (“uma voz do ccu”) é impressionante
(1) por causa das diferentes tradições representadas pelos dois manuscritos, e (2)
porque os escribas tenderiam a suprir um verbo. A leitura de Θ, de que a voz “foi
ouvida” , é provavelmente um aprim oram ento posterior feito pelos escribas. Veja
Metzger, TCGNT, p. 74.
M a rc o s 1.11 68

U m terceiro an tec e d e n te à v o z n o b atism o é o co n ceito d o F ilh o amado.


O p ro fu n d o a m o r d e A b ra ã o p o r Isa q u e q u a n d o foi ch am ad o a sacrificá-lo
n o m o n te M o riá é o tip o m ais claro p ara esse asp e cto da declaração celestial
(G n 22.2,12,16). A p ro clam ação divina expressa o a m o r leal d o Pai p o r seu
Filho, c o m o ta m b é m a u n id ad e essencial deles. O u tro s escritores d o N o v o
T estam e n to (R m 4.24; 8.32; H b 11.17-19) e os pais d a igreja prim itiva (Barn.
7.3 em diante) ta m b é m viam n o sacrifício de Isaq u e a prefiguração d o sacri-
fício d e Jesus.
N a sublim e declaração p ara Jesu s n o b atism o , e n c o n tram o s a m o r pa-
te rn o e o b ed iên c ia filial, m ajestad e e serviço so fred o r. C ad a u m a dessas
facetas re p re se n ta o q u e significa ser F ilh o d e D eus. A s palavras ditas a Jesus
n o b atism o n ão fo ram ditas a n e n h u m p ro feta. A b ra ão era am igo de D eu s
(Is 41.8); M oisés, serv o d e D e u s (D t 34.5); A rão, u m esco lh id o de D e u s (SI
105.26); D avi, u m h o m e m se g u n d o o co ração de D e u s (IS m 13.14); e Paulo,
um a p ó sto lo (R m 1.1). A p en as Israel (Ê x 4.23) — e o rei c o m o o líder de
Israel (SI 2.7) — já fo ra ch a m a d o d e F ilh o d e D eus. C o n tu d o , em tu d o que
Israel falhou, Jesu s assu m iu seu lugar.
O b atism o é a p ed ra angular na vida e m in istério d e Jesus. O em p o d era-
m e n to p elo E sp írito p ara ser o S ervo d e D e u s e a declaração d o céu: “T u és
o m eu F ilh o ” , cap acito u Jesu s n ã o só para falar e agir em nome de D eu s, m as
tam b ém como D eu s. Isso é d e m o n s tra d o p elo fato d e ele p e rd o a r pecados
(2.5), aceitar os p ec ad o re s (2.15), ch a m a r os p u b lícan o s p ara o discipulado
(2.13), cu ra r os d o e n te s (1.40ss.), ex p u lsar d e m ô n io s (1.24), re c u p e ra r a
verdadeira in ten çã o d o sáb ad o (2.28) e desafiar a p osição da elite religiosa
judaica c o n fo rm e re p rese n ta d a n a trad ição oral (7.1ss.), n o tem p lo (11.12ss.)
e n o S inédrio (14.61ss.). N ã o é coincidência q u e Jesus, q u a n d o é m ais tarde
c o n fro n ta d o pelo S inédrio co m esta perg u n ta: “ C o m que au to rid ad e estás
fazen do estas coisas?” , leve os q u e o q u estio n am de v olta ao seu b atism o
(11.27-33). O q u e Jesu s faz c o m o o serv o d e D e u s, afinal, só faz sen tid o p o r
causa d e q u em ele é c o m o o F ilh o d e D eus.
A ssu m e-se algum as vezes q u e o b atism o en sina o adocionism o, o u seja,
que Jesus se to rn a F ilho de D e u s pela prim eira vez n o rio Jordão. E m b o ra essa
perspectiva seja possível, n ão é convincente. P re ssu p o n d o que a originalidade
da frase “ o F ilh o de D e u s ” em 1.1, M arcos já an un cia a filiação divina de
Jesus. A s palavras d a declaração divina: “T u és o m eu F ilho am ad o ; d e ti m e
ag rad o ” n ã o estabelecem u m re la cio n am en to ta n to q u an to p re ssu p õ e m um
relacio nam en to .35 N o b atism o , a v oz celestial declara e co n firm a, prim eiro,

35 “ D ie G ottesstim m e setzt nich t erst Jesu Sohnschaft, so n d e m setzt sie voraus” .


K. H . R engstorf, D as Evangelium nach Lukas, N T D (G ottingen: V andenhoeck &
69 M a rc o s 1.12

quem é Jesus: o F ilh o de D e u s, que, c o m o tal, é u n g id o e eq u ip ad o com o


E sp írito de D e u s p ara ex p ressar sua p o sição filial em te rm o s de seu serviço
— n a v erdade, serv iço co m so frim en to . O b atism o assinala a co n firm ação
da filiação d e Jesu s e o p rin cíp io de seu serviço.36

O F IL H O D E D E U S S E E N C O N T R A C O M O A D V E R S Á R I O D E
D E U S (1.12 ,13 )

Jesus, ap ó s a declaração d e q ue ele era o F ilh o de D e u s e d a inauguração


de seu m in istério público, n ão é co n v id ad o , c o m o se p o d ería esperar, para
um a re cep ç ão o u celebração. A n tes, ele é d esig n ad o p elo E sp írito para um a
tarefa m u ito d iferen te — u m a reu n ião co m S atanás n o deserto. A descrição
da ten taç ão p o r M arcos, e m b o ra m e n o s desen v o lv id a que n os relatos de M a-
teus 4.1-11 e L ucas 4.1-13, deixa claro q ue a p o sição de Jesu s c o m o o Filho
de D e u s e o e m p o d e ra m e n to p elo E sp írito são d ad o s para a p ro m o çã o do
reino de D e u s, e a p rin cip al p a rte dessa tarefa é a d e rro ta d o adversário de
D eus, Satanás.

12 A s características estilísticas m arcanas ficam claram ente evidentes n o


relato da tentação. “ L o g o a p ó s” (gr. euthys, com cerca de q u aren ta o corrências
em M arcos), o te m p o p re se n te “ im p ele” (NV1, “ im p eliu”) e a b revidade da
estru tu ra d o relato são asp ecto s típicos d e M arcos. A p ressa e im ediacidade
da te n taç ão lo g o a p ó s o b atism o cria u m a sensação de im inência e em oção
intensa n o leitor. N ã o há te m p o para se d elo n g ar n a glória d o batism o. Je-
sus, sem u m m o m e n to p ara respirar, p o r assim dizer, é im pelido para a luta
de b u sca r seu m in istério ao qual foi o rd e n a d o e p ara o qual foi d o tad o . O
apócrifo Evangelho de Filipe (74.29-31) ap resen ta Jesu s em erg in d o d o batism o
rindo c o m d esd é m d o m u n d o , c o m o se seu m in istério fosse u m m elodram a.
Isso n ão ac o n te ce em M arcos, em q ue a sin cerid ad e ex trem ad a p erm eia a
narrativa da tentação. O m esm o E sp írito q ue d esceu so b re Jesus n o batism o
tem u m e n c o n tro para ele n o deserto. A linguagem é v igo ro sa e sem am bigui­

R uprecht, 1965), p. 27. A lém disso: “ O s autores d o N o v o T estam ento desejam


deixar claro o seguinte: aquele p rom etido nas E scrituras com o o Filho de D eu s é
na verdade, de acordo com seu início e ser e, p o rtan to , desde seu p ró p rio princípio,
o Filho divino que está ao lado de D eus. D a m esm a form a, em nenhum lugar no
N ovo T estam ento há qualquer m enção sobre o ho m em Jesus de N azaré sendo
adotado com o M essias” (H ofius, “ 1st Jesus der Messias? T h esen ” ,/577> 8 [1993],
p. 125 — grifo n o original).
16 Edw ards, “T h e Baptism o f Jesus in the G ospel o f M ark” , / ¿ : 73'34 (1991), p. 43-
57.
M a rc o s 1.13 70

dade. O E sp írito “im pei[e]” Jesu s o u “ e m p u rra p ara fo ra” (gr. ekballem) para
c o n fro n ta r Satanás. A im ag em é rem in iscen te d o b o d e expiatório carregado
co m os p ec ad o s d e Israel e expulso p ara o d e se rto (Lv 16.21). A v o z passiva
(“ sen d o te n ta d o p o r S atanás”), co m o as palavras usadas em 1.9 acim a, esta-
belecem m ais u m a vez Jesus c o m o o sujeito o u assun to inconteste. O E sp írito
qu e em p o d e ra o F ilh o p ara o m in istério o testa agora p ara d e te rm in a r se ele
usará sua filiação divina p ara sua p ró p ria van tag em o u se ele se su b m eterá
em ob ed iên cia a D eus.
A ten taç ão de Jesu s n ão é ap resen tad a co m o u m a circunstância infeliz
o u u m a dificuldade resu ltan te de u m lap so o u falha p o r p a rte de Jesus. O
qu e aco n tece co m Jesu s n o d e se rto é o rq u e stra d o d ivinam ente co m o o que
aco n te ceu co m ele n o Jo rd ão . O b atism o , c o n fo rm e o b serv am o s, é algo que
D e u s fez p ara Jesus; a ten tação , da m esm a fo rm a , é seu co rolário necessário,
p ara q u e Jesu s n ão seja im aginado co m o u m clone d ivino n em u m au tô m ato
que n ã o te m esco lha n e m desejo p ró p rio . A ten taç ão estabelece a ação sobe-
ran a e livre d e Jesu s que, c o m o to d o s os agentes h u m an o s, tem de escolher
fazer c o m q ue a v o n ta d e d e D e u s seja sua p ró p ria escolha. A relevância
daquela esco lh a p o d e ser efetu ad a n o co n te x to d e u m a alternativa e escolha
o p o sta ap resen tad a p elo adversário de D eus. Jesus, p o r conseguinte, tem de
ser “ te n ta d o p o r S atanás” .

13 A h istó ria d a ten tação d e M arcos, co m o sua descrição de Jo ã o B atista,


é firm e m e n te aparada, p elo m en o s q u a n d o co m p arad a co m os dram as da
ten taç ão m ais c o m p leto s de M ateu s 4.1-11 e L ucas 4.1-13. M arcos red u z a
narrativa d o s vários testes ex isten tes em M ateus e L ucas a fim de salientar
o e n c o n tro c o m Satanás n o deserto. “ S atanás” , d o heb raico satan, significa
literalm ente “ adversário” ; m as, aqui e em o u tro s tex tos d o N o v o T estam ento,
o te rm o designa o in im ig o p esso al e so b re n atu ral de D eus. M arcos n ão usa
o te rm o m ais fu n cio n al “ d e m ô n io ” p ara se referir ao adversário de D eus,
e m b o ra esse ú ltim o te rm o o c o r ra a p ro x im a d a m e n te o m e sm o n ú m e ro
de vezes n o N o v o T esta m e n to (34 o corrências) q u e a palavra Satanás (36
ocorrên cias). E m b o ra as referências explicitas a Satanás sejam relativam ente
in fre q u en tes n o se g u n d o evangelho,37 o u so d o te rm o “ Satanás” p o r M arcos
indica sua co m p re en são d a ação p esso al d o adversário de D eu s, abaixo de
qu em h á legiões d e “ d em ô n io s” su b o rd in ad o s a ele. Satanás, c o m o o adver-
sário d e D e u s, esforça-se p ara su b v erte r o reino de D e u s c o m o m an ifestad o

37 1.13,3.23,26; 4.15; 8.33.


71 M a rc o s 1.13

p o r in te rm éd io d e seu F ilh o am ado. E m M arcos, o p rim eiro m ilagre de Jesus


(1.21-28) e a p rim eira p aráb o la (3.27) são ofensivas c o n tra Satanás co m o o
“ h o m e m fo rte ” . O b rev e re su m o d e ljo ã o so b re a razão pela qual “ o Filho
de D e u s se m an ifesto u : p ara d e stru ir as o b ras d o D ia b o ” (3.8) é igualm ente
descritivo d o evangelho de M arcos.
O teste d e q u aren ta dias d o F ilh o d e D e u s co n tin u a o tem a bastim al
de Jesu s c o m o Israel-red u zid o -a-u m . Israel esteve n o d ese rto p o r qu aren ta
anos (D t 8.2), M oisés esteve n o m o n te Sinai p o r q u aren ta dias e q u aren ta
noites (Ê x 34.28), e E lias foi c o n d u z id o p o r q u aren ta dias e q u aren ta noites
até o m o n te H o re b e (lR s 19.8). E m cada u m desses eventos, o d ese rto era
um c a m p o de provas, u m teste d e fidelidade e u m a p ro m e ssa d e libertação.
O s m esm o s co n traste s estão p re sen tes n a te n taç ão d e Jesus, pois Jesus, n o
deserto, é te n ta d o p o r S atanás e cu id ad o p o r anjos.
O d e se rto c o m o u m local d e teste e lib ertação p ro v ê u m a pista p ara a
co m p reen são d o elem en to m ais cu rio so n o relato da ten taç ão de M arcos —
sua referên cia a je s u s estar “ co m os anim ais selvagens” . N ã o existe paralelo
exato p ara essa afirm ação n a Bíblia. U m a ten tativ a de explicar seu sentido
invoca o ev en to em q u e A d ã o no m eav a os anim ais n o É d e n (G n 2.19), a
nova aliança (O s 2.18,19) e, so b re tu d o , a tra n sfo rm a ç ã o d a criação h o stil em
um rein o d e p a z (Is 11.6-9; J ó 5.22,23). O s anim ais selvagens, de aco rd o co m
essa in terp retação , rem e m o ra m u m a im agem d e re d en ção e nova criação na
qual as bestas, an tes h ostis, são pacificadas e p assam a ser su b serv ien tes a
Cristo, o S en h o r delas. A p ro v e ita n d o esse tem a, u m evangelho ap ó crifo fala
das bestas selvagens adorando e p ro te g e n d o o b e b ê Jesu s n o d e se rto (Evg.
Pseud.-Mt 19.1).
E ssa in terp retação , n o en tan to , n ã o é to ta lm e n te satisfatória. N e n h u m a
das passag en s d o A n tig o T e sta m e n to citadas acim a se ap ro x im a o suficiente
das palavras o u p e n sa m e n to d o versículo 13 p ara to rn á-lo u m p a n o d e fu n d o
ou paralelo co n v in cen te.38*A m en çã o d o s anim ais selvagens, da m esm a fo r­

38 Para um a exposição dos animais selvagens com o u m sím bolo d o reino messiânico
de paz inaugurado p o r Jesus, veja R. B auckham , “Jesus and the W ild Animals
(Mark 1.13): A C hristological Im age for an Ecological A ge” , em Jesus o f Nazareth
Lord and Christ. Essays on the HistoricalJesus and N ew Testament Christology, eds. J.
G reen e M. T u rner (G rand Rapids: E erdm ans/C arlisle: Paternoster, 1994), p. 3-21.
Bauckham , n o entanto, não m ostra de form a bem -sucedida que esse é o sentido
do conceito em M arcos 1.13. T am pouco, seu argum ento convincente de que a
preposição “ com ” (e.g., ‘'1com os anim ais selvagens” ; grifo d o autor) “ não pode
p o r si m esm a transm itir hostilidade” , mas apenas proxim idade física amigável e
positiva (p. 5). E m M arcos 3.4,6, p o r exem plo, meta (“ com ”) é usado para a raiva
e para a tram a para m atar Jesus co n fo rm e planejada pelos herodianos.
M a rc o s 1.13 72

m a, v em im ed iatam en te ap ó s a m en çã o d e Satanás, o te n ta d o r e adversário,


su g erin d o u m a ligação dessas b estas co m Satanás. A lém disso, se os anim ais
selvagens têm a in ten çã o d e sim b o lizar a n o v a criação, então, a referência
seguinte aos anjos cu id an d o d e Jesu s é u m non sequitur, pois Jesus dificilm ente
precisa ser m in istra d o (gr. diakonein) n o paraíso.
T odas essas o b jeçõ es são ab ran d ad as se v irm o s as bestas c o m o sím bolos
de “ h o rr o r e p e rig o ” d o vasto, selvagem e a sso m b ro so d ese rto da Ju d eia.39
E s to u in clin ad o a v e r n essa re ferê n cia aos anim ais selvagens u m p o n to
m u ito específico d e c o n ta to c o m os leitores ro m a n o s d e M arcos. T ácito
falou so b re a selvageria de N e ro em relação aos cristãos n a d écad a d e 60 d o
século I, u sa n d o estas palavras: “ eles eram c o b e rto s co m as peles d os ani-
m ais selvagens e d esp ed aça d o s p elo s cães” {Ann. 15.44).40 C o n sid eran d o -se
o ex term ín io d e cristão s p o r anim ais selvagens d u ra n te o rein ad o de N ero ,
não é difícil im aginar M arco s in clu in d o essa frase in c o m u m “ co m os anim ais
selvagens” a fim d e le m b ra r seus leitores ro m a n o s que C risto tam b ém foi
lançado aos anim ais selvagens, e assim c o m o os anjos m in istraram p ara ele,
tam b é m eles m in istra rão p a ra os leitores ro m a n o s e n fre n ta n d o o m artírio.41
Se essa explicação estiver c o rreta, e n tã o a frase “ com os anim ais selvagens”
é u m a im p o rta n te p eç a de evidência p ara localizar a p ro ced ên cia de M arcos
em R om a d u ra n te o rein a d o de N e ro .
D eu s, e m b o ra leve Jesu s p ara u m teste n o d e se rto — da m esm a fo rm a
co m o ele leva os leitores ro m an o s d e M arcos — , n ão ab an d o n a n em Jesus nem
esses leitores ali. O te m p o verbal im p erfe ito d o v e rb o g reg o p ara “ servijr]”
indica que os anjos m in istraram p ara Jesu s n ão n o fim d o teste (tam b ém em
M t 4.11), m as ao lo n g o d o s q u a re n ta dias. E ssa conclusão desp reten sio sa
p ara a ten taç ão é u m exem p lo d a c o m p re en são d o d ram a que caracteriza o
evangelho d e M arcos. O ca m in h o d o F ilh o d e D e u s tem a b ên ção d o Pai,
e Jesus, até m e sm o em seus testes p elo arqui-inim igo, é su sten tad o pelos
aten d e n tes celestiais d o Pai.

v>M auser, Christ in the Wilderness, p. 37,100-101.


4(1 “ ferarum tergis contecti laniatu canum interirent” . A palavra latina “ ferus” é a
tradução regular d o term o grego thêr (“bestas de rapina”), u m derivativo do qual,
thérion, é usado p o r M arcos no versículo 13. N a prim eira década do século II, Iná-
cio {Rm. 5.2-3) usa o m esm o term o grego {thérion) para se referir ao seu m artírio
im inente p o r bestas selvagens em Roma.
41 Inácio {Rm. 4—5) repete a m esm a palavra {thêriõn; “bestas selvagens”) seis vezes
com referência ao seu m artírio im inente p o r bestas selvagens em Roma.
capítulo dois

O início do Ministério Galileu


M A R C O S 1.14 -4 5

M arcos fo rn e c e in fo rm aç õ es so b re ép o ca e local de m o d o m o d era d o


em seu evangelho. P o r co n seg u in te, o fato d e ele fo rn e c e r essas in fo rm açõ es
n o p rin cíp io d o m in istério p ú b lico de Jesu s em 1.14 é relevante. M arcos não
m en cio na d e fo rm a específica u m a viagem d e Jesu s na Judeia, c o m o o faz o
evangelho d e J o ã o (3.22-36), m as os c o m en tá rio s p o r alto em seu p ró lo g o de
que “Jesu s veio de N a za ré d a G alileia” (1.9; g rifo d o autor) e re to rn o u “para
a Galileia” (1.14; g rifo d o au to r) in d icam u m a viagem de Jesu s n a Judeia. Se
o re to rn o de Jesu s p ara a G alileia fosse u m a consequência da prisão de Jo ão
em 1.14, e n tã o é possível su p o r, c o n fo rm e afirm a J o ã o (3.22), que Jesus
colab o ro u de algum a fo rm a c o m J o ã o n o m in istério na Judeia. C o n tu d o , é
mais provável q u e M arcos ten h a a in ten çã o de q ue 1.14 seja co m p re en d id o
de m o d o tem p o ra l, o u seja, quando ] 02.0 foi traído, então Jesu s se to rn o u pú-
blico. D e v em o s, de q u alq u er m o d o , p ro v av elm en te co n sid erar u m intervalo
de te m p o e n tre M arcos 1.13 e 1.14, talvez d ev id o a u m m inistério inicial na
Judeia.1 T a n to M arco s q u a n to J o ã o relatam q ue Jesus, ap ó s u m in terv alo de
tem p o n ã o especificado, re to rn o u p ara a G alileia (M c 1.14; Jo 4.1-3). M ar-
cos fixa o re to rn o d e Jesu s c o m o u m m o m e n to decisivo e o m o d ela em um
anúncio fo rm a l em 1.14, u m tip o de “ en trev ista coletiva” insatisfatória, para
indicar o p rin cíp io d o m in istério p ú b lico de Jesus.

O E V A N G E L H O E M P O U C A S P A L A V R A S (1 .1 4 ,1 5 )
C o m o é notável o fato de Jesu s esco lh er a G alileia para iniciar seu mi-
nistério. “ E le n ão se p re p a ro u p ara u m a ca m p a n h a m issionária, p rim eiro em

1 Veja J. M u rp h y -O ’C onnor, “W hy Jesus W ent Back to G alilee”, BRev 1 2 /1 (1996),


p. 20-29.
M a rc o s 1.14 74

Jerusalém e d ep o is n o re sto d o m u n d o ; não, ele p erm a n eceu na insignificante


Galileia” .2Jesus inicia seu m inistério n a Galileia, a região co m colonos judaicos
a o este d o m a r d a G alileia, e, em te rm o s de apelo p o pular, é o n d e d esfru ta
d e seu m aio r su cesso (1.28; 3.7). A G alileia é tam b ém o n d e Jesus, ap ó s sua
m o rte e ressu rreição , reú n e seus seguidores d isp ersos e d e rro ta d o s (14.28;
16.7) e os com issio na de n o v o para o m inistério. A descrição de Jeru salém p o r
M arcos, p o r sua vez, é caracterizad a pela m arcan te ausência de fé e o p o sição
d o tem p lo e d o s líderes religiosos, c o n tra sta n d o co m a G alileia, ap esar de sua
insignificância, c o m o o lugar d a p ro m e ssa e o p o rtu n id a d e p ara o evangelho.3

14 O b atism o d e Jesu s p o r Jo ã o B atista e a prisão d este fo ram m arcos


p o r m eio d o s quais a igreja prim itiva d e m arco u o início d o m inistério pú-
blico de Jesu s (A t 1.22; 10.37). E m b o ra a N V I fale que Jo ã o foi “ p re so ” , o
tex to g re g o n ã o m e n cio n a esp ecíficam en te o ap risio n am en to , m as, antes, o
“ entregar-se” o u “ ap resen tar-se” . E v erdade, nas inscrições em g reg o e nos
papiros, o te rm o é e n c o n tra d o co m frequência n o jargão policial e legal para
“ en tre g ar alguém c o m o p risio n eiro ” ,4 m as, em M arcos, o te rm o n ão p o d e se
restring ir apenas a esse sentido. A palavra “ en tre g ar nas m ão s” (paradidom)
d ese m p e n h a u m p ap el especial em M arcos p ara o d estin o do s fiéis. A m esm a
palavra será u sad a p ara Jesu s “ se en tre g a n d o ” c o m o o F ilho d o h o m em (9.31;
10.33; m ais o ito o co rrên c ia s n o s caps. 14— 15) e ta m b ém para os cristãos
(13.9,11,12). “ E n treg a r-se ” co m b in a n ão só co m as adversidades às quais
os fiéis estão sujeitos, m as ta m b é m à su p erv isão d a v o n tad e de D e u s q u e é
o p erad a p o r in te rm éd io deles (14.21!).
A p risão d e Jo ã o e o início d o m in istério d e Jesu s estão in ten cio n alm en te
relacionados p ara m o stra r q u e o evangelho é p ro c la m ad o e co n h e cid o n a ad-
versidade e so frim en to , n ã o n a facilidade e co n fo rto . O an ú n cio de Jesus das

2 E . Schweizer, The Good N e m According to M ark, p. 47.


3 Veja R. Pesch, D as Markusevangelium, 1.104-5. S. Legasse, L ’Évangile de Marc, p. 102-
3, está co rreto em observar o contraste m arcante entre a Galileia c Jerusalém em
M arcos, mas está equivocado em su p o r que a Galileia representa a recepção do
evangelho p o r gentios pagãos em oposição a sua rejeição pela Jerusalém judaica.
M arcos enfatiza de fato um ím peto g endo no m inistério de Jesus (e.g., 7.24— 8.10),
m as não é representado pela Galileia perse. A costa n oroeste do m ar da Galileia,
o foco do início do m inistério de Jesus, era em sua m aioria um a região judaica da
Galileia, co n fo rm e evidenciado pelas m uitas sinagogas (1.21ss.,39; 6.2), sacerdotes
(1.44) e costum es judaicos (2.16,24; 3.4; 7.1-23).
4 C. E. B. Cranfield, The GospelAccording to Saint M ark, p. 61-62.
75 M a rc o s 1.14

boas-no vas (1.14) n o c o n te x to im ed iato da p risão e execução d o justo Jo ão


Batista é um exem plo p erfeito d a apresentação d o evangelho p o r M arcos. João
B adsta é o p re c u rs o r de Jesu s n ã o só em su a m en sagem , m as tam b ém em seu
destino, o q u e inclui so frim e n to e m o rte. E Jo ã o B atista n ão é um tip o só de
Jesus. A prisão e execução d e J o ã o B atista, c o n fo rm e v erem o s n a técnica de
sanduíche de 6.7-30, ta m b é m estabelece o p ad rão p ara os discípulos de Jesus.
Se o evangelho de M arcos, co m o parece provável, foi c o m p o sto em R om a em
m eados da d écad a de 60, e n tão o efeito incitativo de ligar o evangelho co m a
prisão de Jo ã o B atista n ão passaria d esp e rce b id o d o s leitores de M arcos que
sofriam co m as perseg u içõ es so b N ero .
O sen tid o d o te rm o “ ev an g elh o ” (euangelion) foi discutido em 1.1.5 O ter-
m o evangelho, c o n fo rm e u sad o em 1.14, refere-se a u m a narrativa resum ida
do en sin am e n to deJesus, co n te n d o , p o rta n to , sua m ensagem . N o s prim o rd io s
da trad ição cristã, o te rm o p asso u a incluir cada vez m ais a proclam ação
sobreJesu s c o m o a h istó ria d e sua vida, m o rte e ressurreição. Jesus, p o r con-
seguinte, p ro c la m o u o evangelho, m as ele ta m b é m era o evangelho. O fato
de os cristão s prim itivos se referirem ta n to à m en sagem d e Jesu s q u an to à
m ensagem so b re Jesu s c o m essa palavra — e deixar p ara a p o sterid ad e u m
terceiro sen tid o p ara o te rm o ao d esig n ar os relatos escritos da vida de Jesus
com o “ evan g elh o s” — indica o q u a n to inseparáveis essas várias co m p re en -
sões estão p re sen tes nesse term o.
E ssa é a única referên cia n o evangelho de M arcos às “ b o as-novas de
Deu/ ’ (grifo d o au to r), u m a ex p ressão rem in iscen te de Paulo (R m 1.1; 15.16;
2Co 11.7; lT s 2.2,8,9; tam b é m lP e 4.17). U m a vez q ue M arcos já in tro d u ziu
o evangelho (gr. euangelion-, N V I, “ b o as-n o v as”) c o m referên cia a Jesus em
1.1, é provável q u e ele, co m a frase “ b o as-n o v as d e D e u s” , n ão quis dizer
as boas-novas sobre D e u s, m as, antes, as b o as-n o v as de D e u s que se to rn a m
conhecidas em Jesu s C risto. A frase “ as b o as-n o v as de D e u s ” , p o rta n to , é a
som a d o e n sin am e n to e p ro clam ação de Jesu s e será elaborada ainda mais
pelo “ R eino de D e u s ” n o versículo 15. A palavra g reg a para “ p ro c la m an d o ”
(gr. kêryssein) foi u sada p ara Jo ã o B atista em 1.4, e a re p etição da palavra aqui
significa a associação ín tim a d a m en sag em de Jesu s com a de Jo ã o Batista.

5 Um número respeitável de manuscritos gregos, incluindo a maioria da tradição


bizantina, traz “as boas-novas do reino de D eus” no versículo 14. E provável, no
entanto, que as palavras do reino tenham sido inseridas por copistas de forma a se
conformar à expressão com um “o Reino de D eus”, com o no versículo 15. Veja
B. Metzger, TCGNT, p. 74.
M a rc o s 1.15 76

E m b o ra a palavra kêrjssein n ã o seja u sad a co m frequ ência n o s p ro fetas d o


A n tigo T estam e n to , ela o c o rre em Isaías 61.1 e Jo e l 2.1, duas p assagens que
an un ciam o re in o escatológico d e D eu s. O u so de kbyssein n o versículo 15
sugere que, n a p ro clam ação d e Jesu s das “ b o as-n o v as de D e u s ” , o R eino de
D e u s p re v isto p elo s p ro fe ta s chegou.

15 A p assag em 1.14,15 é u m a sin o p se d e Jesus e sua m en sag em , em que


o versículo 14 p ro v ê o cen ário histórico, e o versículo 15, sua interp retação .
M arcos é capaz de re su m ir to d a a vida e e n sin a m e n to de Jesus em u m ú nico
conceito, “o Reino de Deus” (1.15). O R eino d e D e u s assum e sua fo rm a
inicial d o co n c eito d e Israel d e D e u s c o m o rei (E x 15.18; IS m 12.12; SI 5.2).
D eu s, c o m o o C riad o r d o m u n d o , é exaltado acim a d e suas criaturas, gover-
n a co m e sp le n d o r m ajesto so , z o m b a d o s deuses de m adeira e p e d ra e red u z
reino s a nada. O R eino d e D e u s foi inicialm ente m an ifestad o n a h istó ria de
Israel n o êx o d o d o E g ito e n a e n tre g a d a T o rá n o m o n te Sinai, m as seria
su p re m a m e n te m a n ife sta d o n o a d v e n to d e u m fu tu ro M essias, cujo rein o
in tro d u z irá o re in o e te rn o e celestial d e D eus.
Jesu s a firm o u a d escrição acim a d o R eino de D eus. C o n tu d o , ele apre-
se n to u u m c o n c e ito d istin to das o u tra s c o n c e p ç õ e s de re in o su ste n ta d o
p o r seus c o n te m p o rân eo s. A literatu ra judaica d o p erío d o , e em especial as
referências fo rm alistas aos “ filhos d a luz e os filhos das trevas” n o s M M M ,
m o stra u m a p ro p e n s ã o a dividir a h u m an id ad e em duas classes, os ju sto s e
os injustos. O s ju sto s prev isiv elm en te p u seram so b re si m esm o s o jugo da
obed iên cia à T orá, ao p a sso q u e os in ju sto s n ão fizeram isso; e os justos,
p o r causa d e sua o b ed iên cia, p o d iam esp e rar ser re c o m p en sad o s n o fu tu ro
apó s D e u s aniquilar os injustos. O reino, de a c o rd o co m a visão prevalente,
d ep e n d ia d e rrad e iram en te d e D e u s, m as sua chegada fu ndam entava-se n os
pré-requisitos de justiça e obediência hu m an as, o que p o d e ser p en sad o co m o
os “ fu n d o s c o rre s p o n d e n te s ” p ara a barg an h a.
O en sin o d e Jesus, em c o n tra ste co m essa co m p reen são , é o u sad o e
inovador. E le ra ra m e n te — e n u n c a em M arcos — fala de D e u s c o m o rei
o u de sua so b eran ia s o b re Israel o u so b re o m u nd o. A ntes, ele fala d e entrar
n o re in o c o m o e n tra r em u m n o v o estad o d e ser. O R eino d e D e u s n ão é
o resultad o d o e sfo rço h u m a n o n em evolui em direção a sua co m p letu d e,
nem , ta m p o u co , é id ên tico ao p o n to de vista o u afiliação religiosos. E le,
co m o u m m istério (4.11) q u e n ão p o d e ser d ecifrad o e calculado, é m ais bem
d escrito p o r m eio d e analogias o u paráb o las (4.26,30). O reino está o cu lto
77 M a rc o s 1.15

no m o m e n to , ap esar d e esp e rar as fu tu ras m an ifestaçõ es de p ro p o rç õ e s sem


preceden tes, in clu in d o p o d e r e glória (9.1; 14.25,61). M esm o em seu estado
velado, as pessoas têm de to m a r u m a decisão p ara recebê-lo o u rejeitá-lo, e
sua m anifestação fu tu ra to rn a a escolha p re se n te u m a q u estão de urgência.
A té m e sm o ag o ra em su a fo rm a em b rio n ária, h á surpresas. O rico e o con-
fiante dificilm ente e n c o n tra rã o a e n tra d a (10.23-25), ao p asso que o p obre,
o insignificante e os d e fo ra — até m e sm o as crianças — e n c o n tra m p ro n ta
entrada (10.14,15). E m b o ra o reino ainda n ão esteja p len am en te concretizado,
o c o n trito e o sincero já estão a sua p o rta (12.34). A ssim , n ão só o R eino de
D eus é a substância d o en sin am en to d e Jesus (1.15), m as tam b ém co rresp o n d e
a sua p esso a e m in istério e é id en tificad o d a m an eira m ais p ró x im a possível
com sua p esso a e m inistério. A escolha de v erb o s p o r M arcos p arece refor-
çar a ligação d o reino co m a p esso a de Jesus, p o is M arcos, ao d eclarar q u e o
reino está “p ró x im o ” (v. 15), em p re g a u m v erb o (gr. engigein) que o c o rre co m
frequência n o N o v o T esta m e n to em referên cia a p ro x im id ad e espacial, e não
tem po ral.6 E m Jesu s d e N a zaré , o R eino de D e u s faz u m a aparição p essoal.7
“ O te m p o é chegado.” O an ú n cio d o re in o n a estreia n a G alileia é apre-
sentado p o r M arco s c o m o o m o m e n to definitivo d a história. O alvorecer da
salvação, à qual P aulo se refere c o m o a “ p len itu d e d o te m p o ” (G1 4.4; E f
1.10), resulta d a p ro v id ên c ia e te m p o de D e u s, kairos em grego, cujo sentido
é “ o m o m e n to o p o rtu n o o u crítico ” (em o p o sição ao te m p o progressivo).
D eu s tro u x e o te m p o d a p ro fecia c o n fo rm e re p re se n ta d o n a citação de
1.2,3 a u m e n c e rra m e n to e in au g u ro u a fase final da história. Jesu s n ão vem
atro p elan d o o u v e n d e n d o o reino. A ntes, ele se su b m e teu p acien tem en te ao

6 R. H . Fuller, The Mission and Message o f Jesus (L ondon, 1954), p. 20-25. As três
ocorrências de engi^ein em M arcos (1.15; 11.1; 14.42) acontecem em relação à
proxim idade espacial; p o rtan to , “ com o aparecim ento de Jesus, o R eino de D eus
está se aproximando” (D. D orm eyer, “engibo”, E D N T \3 1 \) .
7 D. F lusser,yír»r (Jerusalem: M agnes Press, H ebrew University, 1997), p. 110-11,
observa que “ [Jesus] é o único judeu dos tem pos antigos que conhecem os que
pregava não só que as pessoas estavam próxim as d o fim dos dias, m as tam bém
que a nova era da salvação já com eçara. [...] Para Jesus, o reino d o céu não é só
o gov ern o escatológica de D eus que já alvorecera, m as um m ovim ento divino e
voluntário que se dissem ina p o r toda a terra. O reino do céu não é apenas um a
questão da m ajestade de D eus, m as tam bém diz respeito ao dom ínio de seu go-
verno, um reino em expansão abraçando cada vez mais pessoas, u m reino no qual
alguém pode entrar e encontrar sua herança, um reino ond e há grandes e pequenos.
E ssa é a razão p o r que Jesus cham ou os D o z e para que fossem pescadores de homens
e tam bém curassem e pregassem em to d o s os lugares” .
M a rc o s 1.15 78

tem p o divino e esp e ro u pelo m o m e n to propício, p re p arad o p o r m uito tem po,


e d o qual ele é o arauto. A chegada d o kairos de D e u s exige u m a m u d an ça
d e p en sa m e n to . A n o v a possibilidade, e sem paralelos, apresen tad a para a
h u m an id ad e n o evangelho ch am a p o r u m a re sp o sta única. E ssa re sp o sta está
c o n ü d a n a palavra “ a rrep e n d am -se” (1.15, veja a discussão d o te rm o em 1.4),
q ue exige u m a m u d an ça decisiva.
J u n to co m a o rd e m p ara se a rre p e n d e r está a o rd e m p ara “ cre[r]” . Sc o
a rrep e n d im e n to d e n o ta aquilo de q u e se volta, a cren ça d e n o ta aquilo para o
que no s voltam os — o evangelho. O s dois v erb o s n o greg o estão n o im perad-
vo presen te, o u seja, eles im p õ em viver em u m a co n dição de a rrep e n d im en to
e crença, e n ã o em atos m o m en tân eo s. O a rre p e n d im e n to e a cren ça p o d e m
ser aplicados a certas áreas d a vida, m as n ã o a o u tras; antes, eles exigem a
total aliança d o s q u e creem n o evangelho. O a rre p e n d im e n to (gr. metanoeiri) é
u sad o na d escrição su cin ta d a p ro clam ação d e J o ã o B atista (1.4), Jesu s (1.15)
e os discípulos (6.12), e n ão é u sad a m ais em M arcos. A sequência d o s term o s
“arrep end am -se” e “ creiam ” sugere q u e a crença p re ssu p õ e o arrep en d im en to
e d e p e n d e dele. A cren ça ap arece co m freq u ên cia em M arcos, tan to a palavra
q u a n to o co n ceito , e su p õ e o ato d e arrep e n d im en to .
M arcos en q u a d ra seu re su m o in tro d u tó rio d a pro clam ação de Jesu s em
1.14,15 de a c o rd o c o m u m esquem a característico d o A ntigo T estam en to que
ap resen ta a revelação d e D e u s em te rm o s das b ênçãos divinas e das obri-
gações hum anas. A gracio sa atividade de D e u s evoca e exige u m a resp o sta
ap ro p riad a d a h u m a n id a d e (e.g., Ê x 19— 20; D t 29.2-8,9-15). D a m esm a
fo rm a , o evangelho, c o m o p ro c la m ad o p o r Jesu s e p re sen te nele, p o d e ser
resum id o de fo rm a notável em u m ú n ico indicativo: a b ên ção divina está
p re sen te n o “ R eino d e D e u s ” , e a o b rig ação h u m a n a está co n tid a em dois
sim ples im perativos — “ arre p e n d a m -se ” e “ creiam ” .

O C H A M A D O D O S P R IM E I R O S D I S C Í P U L O S (1.1 6 -2 0 )

O p rim eiro ato d o m in istério d e Jesu s reg istrad o em M arcos n ão é algo


sensacional — u m m ilagre esp etacu lar o u u m serm ã o p o d e ro so — , m as ape-
nas u m a sim ples co n v o c açã o de q u a tro trab alh ad o res co m u n s à co m u n h ão
co m ele. O cen ário é o mar da Galileia, u m lago p ito resco c o m cerca de
o n ze q u ilô m e tro s d e largura e v in te d e c o m p rim e n to de u m a extrem idade à
outra. O m ar d a G alileia, ap ro x im a d am en te 213 m etro s abaixo d o nível do
m ar, está co n fin a d o p o r u m a cadeia d e m o n ta n h a s íngrem es a leste e p o r
colinas m ais suaves a oeste. V isto d o alto, ele tem ap ro x im ad am en te a fo rm a
79 M a rc o s 1.16-20

de um a h arp a, d e o n d e p o d e te r receb id o seu n o m e em hebraico, Q uinerete.


Josefo enaltece o m ar d a G alileia p o r sua água d o ce p u ra e m uitas espécies
de peixe, seu so lo fértil e clim a agradável q u e su p re fru tas e p ro d u ç ão p o r
dez m eses d o ano. T o d a a região, afirm a ele, é aquela d a qual “ a n atu reza se
orgulha” ( Guerra, 3.516-21).

16-20 M arco s n ão especifica o n d e ex atam en te ao lo n g o d o lago Jesus


ch am ou o s q u atro .8 A co sta n o s arred o res d e C afarn au m , p resu m iv elm en te a
localização geral d o ch am ad o , é fo rm a d a p o r m assa d e basalto p re to rugoso,
to rn a n d o difícil o c a m in h a r e a ch eg ad a de b arco s à praia. Sim ão e A n d ré, de
acordo c o m M arcos, estavam “ lan ça n d o redes ao m a r” (1.16). A palavra para
“lançan do re d e s” (gr. amphiballein), cujo sen tid o é “ lan çar ao re d o r” , designa
um a re d e circular; amphiblêstron, d e ac o rd o co m M ateu s 4.18; m ed in d o cerca
de seis m etro s de d iâm etro co m b arras pesadas d e m etal ou ped ras am arradas
no perím etro . O lançar redes, co m p rática e d estreza, só p o d ería ser feito p o r
um p e sc a d o r so z in h o que, d e pé em u m b arco o u , c o m o era o caso aqui,
cam inh an d o n a água, reco lh e a re d e em seu b ra ç o e a arrem essa co m força
em u m m o v im e n to circular d e fo rm a que caia n a água c o m o u m paraquedas,
en red an d o os peixes e n q u a n to afu n d a até o leito d o rio o u lago. O s peixes
são re colh id o s q u a n d o o p e sc a d o r m erg u lh a até o fu ndo, ju n ta os p esos da
rede e arrasta a re d e e os peixes p reso s ali até a praia.9
N o século I, a pescaria era u m a in d ú stria flo rescente n o m ar da G alileia,
co n ta n d o co m m ais d e dezesseis p o rto s m o v im e n ta d o s n o lago e em várias
cidades n a co sta n o ro este , in clu in d o B etsaida (“ casa d o peixe”), M agadã,
tam b ém c o n h e c id a p o r M agdala (“ to rre d o p eix e”) e T arich eae (“ peixe
salgado”), n o m es recebidos p o r causa d o co m ércio de peixe. O s b arco s de
pesca eram tão n u m ero so s q u e Jo se fo co n seg u iu requ isitar 230 deles d u ran te

8 D ois acadêm icos que passaram a vida investigando o m ar da Galileia, M endel N u n


e Bargil Pixner, localizam o cham ado em T abgha, cerca de três quilôm etros a sul
de C afarnaum . O p equeno p o rto de Pedro, co n fo rm e se enco n tra hoje, é sugerido
com o o local d o cham ado de quatro pescadores p o r causa da pequena queda de
água que desagua n o lago, o n d e os pescadores podiam lavar suas redes (Lc 5.2)
e p orque as fontes de água quente que desaguavam no lago nesse local atraíam
cardum es de peixes no inverno e prim avera, p ro m eten d o pescas com pensadoras.
Veja B. Pixner, W ith Jesus Through Galilee, p. 30-32; M. N u n , “P orts o f Galilee” ,
B A R ev 2 5 /4 (1999), p. 27-28.
9 Veja M. N u n , The Sea o f Galilee and Its Fishermen in the N ew Testament (K ibbutz Ein
G ev: K innereth Sailing Com pany, 1989), p. 23-27.
M a rc o s 1.16-20 80

a g u erra d a G alileia em 68 d.C. (Guerra 2.635). T a m p o u c o os peixes eram


co n su m id o s só pelos m erc ad o s locais. D e v em o s n o s lem b rar que o peixe, e
n ão a carne, era o alim ento d e c o n su m o d o m u n d o g re co -rom ano. O peixe do
m a r da G alileia era e x p o rta d o e ap reciad o n a d istan te A lexandria, n o E gito,
e A ntio qu ia, n a Síria. O fato d e os pescad o res n a G alileia co m p etire m co m
os m ercad o s m aio res testifica de sua habilidade, p ro sp e rid ad e e en g en h o si-
dade — e p ro v av elm en te d e seu d o m ín io d o g reg o, a língua intern acio n al
d os n egó cio s e d a cultura. O s p esc ad o re s a q u e m Jesus cham ava n ão eram
trab alh ad o res diaristas q u e passavam necessidades. A fim de sobreviver n a
liga de m ercad o , eles precisavam se r — e sem d ú vida eram — h o m en s de
n eg ó cio sagazes e b em -su c ed id o s.,‫״‬
T rês aspectos d eterm in a m o cham ado ao discipulado. P rim eiro e m ais im -
p o rtan te , Jesus é o sujeito abso lu to d o cham ado. Ele, e n q u an to passa ao longo
da praia e vê os dois pares de irm ãos, p ro fere a convocação: “ Sigam -m e” . N esse
m o m e n to em p articular, Jesu s era u m líd er d iferen te d o s rabis e escribas d o
judaísm o. N ã o existem h istó rias análogas ao ch a m a d o do s discípulos, pois
os rabis n ão c o n su m a ram o re la cio n am en to m estre-alu n o pela convocação:
“ S igam -m e” . A e n tra d a em u m a escola rabínica, ao co n trá rio d o ch am ad o
q u e v em d e Jesus, d e p e n d ia d a iniciativa daquele q u e aspirava ser aluno, e
n ão d o ch a m a d o d o rab i.11 A p ro e m in ê n cia pesso al que Jesu s assu m e n o
ch am a d o d o s q u a tro p escad o res é m uitíssim o in c o m u m na tradição judaica
c o m o u m to d o . A p rin cip al aliança d o s alunos rabínicos era a T orá, e n ão
u m rabi em particular. N o A n tig o T estam e n to , a ideia de “ seguir D e u s ” é
rara, se n ã o ausente. N e m M oisés, n em o s reis, n em os vários “ h o m en s de
D e u s” , n e m o s p ro fetas, n in g u ém , via de regra, ch am a o p o v o p ara segui-lo.
A convocação, antes, é p ara an d a r n o s cam in h o s de D e u s e de ac o rd o com
os estatu to s divinos (e.g., D t 5.30). C o n tu d o , Jesu s cham a os q u a tro p ara si
mesmo. O ú n ico p re ced e n te an álogo n o A n tig o T e stam en to para u m cham ado
para si m e sm o é o ch a m a d o de E liseu p o r E lias em IR eis 19.19-21, e m b o ra
até ali o paralelo n ão seja c o m p leto , p o is E lias p e rm ite que E liseu re to rn e
para sua casa e se d esp eça d a m ãe e d o pai, ao p asso que a aliança que Jesus
esp era d o s discípulos n ão p e rm ite n em m e sm o u m a desp ed id a da família 10

10 Veja J. M urphy-O ’Connor, “Fishers o f Fish, Fishers o f Men: W hat We Know


o f the First Disciples from Their Profession” , BRev 15 /3 (1999), p. 22ss.; e Nun,
“Ports o f Galilee” , BARev 2 5 /4 (1999), p. 18-31.
11 K. H. Rengstorf, “mathêtês”, TDNT 4.446-50; M. Hengel, The Charismatic Leader
andHis Followers, trad. J. Greig (Edinburgh: T. & T. Clark, 1981), p. 50-51.
81 M a rc o s 1.16-20

(Le 9.57-62). O ch a m a d o d o s q u a tro p esc ad o re s n ã o está fu n d a m e n tad o na


Torá n em m e sm o n o n o m e d e D e u s, m as apenas na au to rid ad e m essiânica
de Jesus. N ã o existe n e n h u m a evidência q u e ap o ie esse ch am ad o — nem
m ilagres, n e m d eb a te s, n e m p e rsu a sã o m o ral. O s p esc ad o re s, d e fo rm a
distinta d o s asp iran tes a rabi, n ão precisam fazer n ad a an tes d e se to rn arem
discípulos; n ã o p recisam exibir c o n h e c im e n to d a T o rá n em p assar p o r um
exam e d e qualificação em teologia. O q u e p recisam a p re n d e r e fazer só p o d e
ser ap ren d id o e feito en q u a n to seguem Jesu s (10.52). P ara M arcos, o ato de
seguir Jesu s ac arreta u m risco d a fé, e a fé tem de ser u m ato antes q u e seja
um c o n te ú d o d e crença. Só à m ed id a q u e se segue Jesu s é q u e ele p o d e ser
conhecido.
O ev an g elh o d e J o ã o (1.35-42) o b serv a q u e P e d ro e A n d ré, e talvez os
ou tro s discíp u lo s, tin h am algum a fam iliaridade a n te rio r c o m Jesu s antes
desse cham ado. M arcos, n o en tan to , o m ite a referên cia a essa fam iliaridade
e fu n d a m e n ta o ch a m a d o d o s discípulos apenas n o ch am ad o au toritativo de
Jesus. E les n ã o o b u scam , m as ele os busca. É n o m u n d o deles q u e o discipu-
lado tem início. Q u a n d o Jesu s, c o m o o F ilh o de D e u s, inicia sua co m u n h ão
hum ana, o e n c o n tro ac o n te ce n o te rre n o deles e e m m eio às suas atividades
de trabalh o em m eio a b arco s e red es e d e la b o r d o alvorecer ao entardecer,
e não n o te rre n o de Jesus, n em , tam p o u co , n o te rre n o sagrado da sinagoga
ou d o tem plo. H á apenas u m a coisa q u e os p escad o res p o d e m fazer, e esta é
resp o n d er à palavra de o rd e m de Jesus, fu n d a m e n tad a apenas na autoridade
de sua pessoa.
U m a seg u n d a característica d o c h a m a d o ao d iscip u lad o é q u e é um
cham ado ao serviço. “ S igam -m e” , disse Jesus, “ e eu os farei pescad o res de
h o m en s” (1.17). A s palavras gregas têm de fato m ais nuanças, dizendo: “ E u
os farei se tornarem p esc ad o re s d e h o m e n s ” . O p ro c e sso de se to rn a r discipu-
los de Jesu s é len to e d o lo ro so p ara os D o z e ; n ão é fácil e n te n d e r (8.14-21),
ob servar (14.37), seguir (14.50), so fre r p erseguição p ara a causa de Jesus
(13.13). A vida p ara a qual Jesu s ch am a seus discípulos exige u m a m udança
fund am en tal d e perspectiva, o u seja, te r em m e n te as coisas de D eus, e não
de si m e sm o (8.33). Só dessa fo rm a os discípulos p o d e m particip ar d o reino
e servi-lo. Jesus, c o m o o S ervo cujo ob jetiv o é servir, e n ão ser servido, e d ar
sua vida em resgate de m u ito s (10.45), é o m o d elo d aqueles que o seguem .
Esse serviço é custoso, exigindo a separação das alianças antigas a fim de estar
livre para a no v a aliança co m Jesus. O s p esc ad o re s n ão só p recisam deixar
M a rc o s 1.16-20 82

as redes p ara trás, m as ta m b é m têm d e d eixar suas famílias.12 N ã o há nada


in ere n tem en te errad o co m as redes, e m u ito m en o s c o m as famílias. A s redes
são essenciais p ara a pescaria; e as fam ílias, para a vida. C o n tu d o , até m esm o
estas p recisam ser ab an d o n ad as caso se to rn e m em pecilhos que im p ed em
a p esso a d e p re sta r aten ç ão ao c h a m a d o p ara a v e n tu ra d o discipulado com
Jesu s (veja M t 5.29,30).13
P o r fim, o ch am ad o d o s q u atro p escadores indica que o trabalho essencial
de Jesus co n siste n a fo rm a ção d e u m a co m u n h ão , e é só nessa c o m u n h ão que
o ch a m a d o d e Jesu s é o u v id o e o b ed ecid o . A co m u n id ad e que Jesu s fo rm a
n ão é u m a m assa sem n o m e e sem face, m as u m a co m u n id ad e de indivíduos
cujos n o m e s são c o n h ecid o s — Sim ão, A n d ré, T iag o e Jo ão , e o u tro s p o r
vir. A ên fase d e M arco s n o ch a m a d o d o s q u atro p escadores, c o m o tam b ém
seu relato relativam ente m o d e sto d a cen a d a ten taç ão (que p õ e Jesu s em um a
batalh a individual c o m Satanás), têm o efeito de to rn a r Jesus o iniciador e
cen tro d e u m a n o v a co m u n id ad e q u e en globa to d o s os asp ecto s da v id a.14
N ã o é exagero dizer que as sem entes d a igreja cristã se originaram n o prim eiro
ato d o m in istério p ú b lic o d e Je su s em q u e ele ch am a q u a tro p escad o res p ara
fo rm a r u m a co m u n id ad e c o m ele.

12 A transposição de euthys do cham ado de Jesus em M arcos 1.20 (“L ogo jjesus]
os cham ou”) até a resposta dos irm ãos Z ebedeu em M ateus 4.21,22 (“ deixando
m e d ia ta m e n te seu pai e o b arco”) é um refinam ento sintático que argum enta pelo
uso de M arcos p o r M ateus.
13 E . Schweizer, Lordship and Discipleship, SBT 28 (L ondon: SCM Press, 1960), p.
12-13.
14 E ssa é a tese de J. D. C rossan (The HistoricalJesus: The L ife o f a Mediterranean Jewish
Peasant [Edinburgh: T. & T. Clark 1991], ρ. 345-48) de que Jesus era um repre-
sentante de um “ reino sem interm ediários” , um preg ad o r itinerante radical do
“igualitarism o sem interm ediários” que se o p unha a qualquer “in term ediação” de
sua m ensagem ou m inistério p o r Pedro e os D oze. C ontra essa concepção de Jesus,
deve-se observar que a escolha de M arcos para com eçar seu relato d o m inistério
público de Jesus com o cham ado dos discípulos sugere claram ente que Jesus tinha
planos além daqueles de cura, mágica e operação de m ilagres (co n fo rm e C rossan
caracteriza seu m inistério). Se esses últim os aspectos citados fossem a som a do
plano de Jesus, então ele, co m o A polônio de Tiana ou vários o u tro s pregadores
itinerantes n o m u n d o greco-rom ano, realizaria seus in ten to s m elh o r sozinho que
em com unidade. N o entanto, Jesus, p o r todos os relatos d o E vangelho, cham ou
seus discípulos e os investiu com sua m issão e autoridade (apenas em Mc, veja,
e.g., 6.7-13,41; 8.6; 9.38-40!), com o a expressão-chave “pescadores de h o m e n s”
(1.17) indica.
83 M a rc o s 1.21

A A U T O R ID A D E D E J E S U S (1.2 1-2 8 )

A in tro d u ç ã o ao m in istério d e Jesu s n a G alileia em 1.16-45 exibe o es-


tilo ec o n ô m ic o de M arco s ao co m b in a r vários ep isód ios juntos co m apenas
conectivos (“ e” , “ lo g o ” , “ e n tã o ” , etc.) e c o m p o u c o o u n e n h u m co m en tário
editorial. Ig u alm en te m arcano, ap re n d e m o s p o r in te rm éd io de u m a varieda-
de de e n c o n tro s (cham ados, expulsões d e d em ô n io s, curas e viagens) quem
Jesus é p o r in te rm é d io d o q ue ele /αχ. M arcos, n a sinagoga de C afarnaum ,
d em o n stra a au to rid a d e de Jesu s ao m o s tra r o q ue ac o n te ce q u a n d o um
h om em co m u m esp írito im u n d o se e n c o n tra c o m aquele u n g id o co m o E s-
pírito d e D eus. A h istó ria co m b in a dois ep isó d io s q ue ap resen tam o m esm o
ponto. N a p rim eira, M arcos m o stra q u e Jesu s en sin a co m autoridade única, de
form a d istin ta d a d o s escribas e m u ito su p erio r ao e n sin o destes ( w . 21,22).
A seg un da p a rte é u m relato so b re expulsão de d em ô n io (w . 23-26). E sses
dois ep isó d io s são en trelaçad o s p elo versículo 27, em que M arcos observa
que to d o s os p re sen tes — e ele enfatiza todos — ficam m aravilhados, pois a
autoridade p o r m eio da qual Jesu s expulsa u m d em ô n io é a m esm a autori-
dade p o r m eio d a qual ele ensina. A s histórias co m b inadas d e m o n stra m que
apalavra deJesus é ação.

21 Cafarnaum, d e ac o rd o co m M ateus 4.13; 9.1 (e o sten siv am en te M c


2.1; 9.33), to rn o u -se a residência de Jesu s ap ó s deixar N azaré. N ã o sabem os
por que ele se m u d o u p ara lá, e m b o ra p o ssa ser p o r causa de C afarn au m ser a
terra de seus p rim eiro s convertidos. C afarn au m estava pro p iciam en te situada
para u m m in istério na Galileia. E la fica ao lado da V ia M aris, a principal ro ta
de com ércio e n tre a planície costeira m e d iterrân ea e D am asco , n o n o rte. N a
Galileia, esse era o p o n to m ais d istan te das principais cidades helenistas de
Séforis, B ete-S eã e esp ecialm en te T ib eríad es o n d e H e ro d es A ntip as estabe-
leceu sua capital, de fo rm a que Jesu s conseguiu, p elo m en o s de início, evitar
a interferência d o s líderes políticos e religiosos. A p risão de Jo ã o B atista p o r
H erodes A ntipas (1.14; 6.14-29) to rn a essa segunda o p ção nada insignificante.
C afarn au m , localizada n a co sta n o rte d o m ar d a G alileia recebeu seu
nom e d o hebraico KepharNahum (“ vilarejo de N a u m ”). A evidência arqueoló-
gica indica q u e n o século I u m p o rto se esten d ia ao lo n g o de um a alam eda de
cerca de 762 m e tro s ap o iad a p o r u m m u ro d e arrim o co m q uase 2,5 m etros.
O cais se esten d ia da alam eda até p o u c o m ais de trin ta m etro s d e n tro d o
lago. C afarn au m era u m a cidade d e fro n te ira en tre as tetrarquias de Filipe e
H erodes, sen d o , p o rta n to , o local da co leto ria (2.14). A m aioria d e seus ha-
M a rc o s 1.21 84

h itantes (em b o ra n ão tod o s) eram judeus q u e trabalhavam c o m o pescadores,


fazendeiros, artesão s, m ercad o res e au to rid ad es, in cluindo os publícanos. A
p o p u lação já m ista foi au m en ta d a graças a u m a p eq u e n a g u arn ição ro m an a
que habitava em lugares m elh o res q u e os locais e d esfru tav am as am enidades
de um b a n h o ro m a n o c o m caldarium (caldário, o local m ais q u en te e cheio de
vapor), tepidarium (tepidário, local d o b a n h o m o rn o ) e frigidarium (frigidário,
o n d e se to m av a u m b a n h o frio). O relacio n am en to en tre judeus e g en tio s era
ev id en te m e n te cordial u m a vez que, d e a c o rd o c o m Lucas 7.1-10, u m cen tu -
rião ro m a n o n ão só c o n stru iu u m a sinagoga p ara os judeus em C afarn au m ,
m as tam b ém , em certa ocasião, en co n tram -se ro m an o s ap resentando seu caso
dian te d e Jesus. A s v an tag en s com erciais de u m local em que a principal ro ta
de co m ércio circundava as terras férteis e a p esca v o lu m o sa d eterm in av am
C afarn au m c o m o u m local c o m u m g rau invejável de p ro sp erid ad e.
A p ro sp e rid a d e d e C afarn au m c o n tin u o u p o r vários séculos, pois, no
século IV, a cidade teve m eios p ara c o n s tru ir u m a sinagoga — a m ais im pres-
sio nante a ser escavada até o m o m e n to n a T e rra S anta — d e p ed ra calcária
branca, em vez de u sarem a p e d ra local, o basalto p re to , co m o o b serv ad o n a
cidade v izin h a de C orazim . O calcário b ra n co resp lan d ecen te d a sinagoga
apresenta u m co n traste m arcan te co m as estruturas em basalto p re to em to rn o
dela. E ssa sinagoga d ata d o século IV e n ã o é aquela visitada p o r Jesus. U m a
série d e fossos escavados abaixo de seu p iso em 1969, n o en tan to , revelou u m
p av im en to de p e d ra b asalto q ue p o d e ser d atad o d o século I (estava co b e rta
co m p o te s d e cerâm ica e m o ed as d o século Γ). E sse su b p av im en to p arece ter
sido o p iso original d a sinagoga visitada p o r Jesus. A fu n d ação da sinagoga
d e b asalto p re to q ue Jesu s c o n h e c e u está claram ente visível n o nível d o solo
abaixo da sin ag o g a de calcário d o século IV.15
Jesus, d e a c o rd o c o m o co stu m e, en tra n a sinagoga n o sábado e com eça
a ensinar. A s sinagogas judaicas, d e m o d o d istin to d o tem p lo em Jeru salém
o n d e o sacrifício anim al era p ra tic ad o pelo s sacerd otes, eram , de ac o rd o
co m a n o m en cla tu ra rabínica, “ saguões de reu n iã o ” o u auditó rio s o n d e a
T o rá era lida e exposta. H avia ap en as u m te m p lo (em Jeru salém ), ao p asso

1‫ נ‬Sobre C afarnaum , veja S. Loffreda, Recovering Capernaum (Jerusalem: T erra Santa,


1985); R. Riesner, “N eues von d en Synagogen K afarn au m s” , Biblische Umschau
40 (1985), p. 133-35; V. C. C orbo, “ C apernaum ” , A B D 1.866-59; M. N u n , “ Ports
o f Galilee” , B A R ev 2 5 / 4 (1999), ρ. 23-27. A descrição de C afarnaum p o r J. M.
O ’C o n n o r com o um lugar p o b re e insignificante (The H oly L and1 [New York:
O x fo rd U niversity Press, 1992], p. 223-25) é injustificavelm ente desdenhosa da
relevância dos restos arqueológicos ali encontrados.
85 M a rc o s 1.22

que as sinagogas, e o te rm o g re g o d erivado d este significa apenas “local de


reunião” , p o d iam ser en c o n tra d o s em to d o o m u n d o M ed iterrán eo o n d e dez
ou m ais h o m e n s judeus, c o m treze an o s o u m ais velhos, estariam presentes.
A única au to rid a d e resp o n sáv el p ela sin ag o g a era o “ d irigente d a sinagoga” ,
um a fu n ç ão q u e incluía as re sp o n sab ilid ad es d e bibliotecário, co m itê d e ado-
ração, c u stó d ia e talvez p ro fesso r. O dirigente da sinagoga, n ão o b stan te, não
pregava n e m e x p u n h a a T orá, o que q ueria d izer q u e o en sin o e exposição
do sábado ficavam nas m ão s d o s leigos e, nessa ocasião, nas m ão s de Jesus.16

22 O en sin o q ue a co n g reg ação ou v e de Jesu s é d istin to d e qualquer coisa


que tivessem o u v id o antes. O e sp e c tro das reações d aqueles p resen tes foi do
espanto à in cred u lid ad e — “ T o d o s ficaram tão ad m irados q u e perguntavam
uns aos o utro s: Ό q u e é isto? U m n o v o en sin o — e c o m autoridade!’ ” (1.27).
O ú nico p a d rã o ao qual o en sin o d e Jesu s p o d e ser c o m p a ra d o é aquele dos
mestres da lei. N o século I, an tes d o a d v e n to da edu cação universal e d o
d o m ínio d a escrita, havia u m a g ra n d e d e m a n d a p a ra os m estres d a lei ou
escribas e m to d o o m u n d o d a A n tig u id ad e, em especial n o judaísm o em que
o có digo d a T o rá regulava a vida d o s judeus. A palavra h eb raica para m estres
da lei o u escribas, sopherim , tem q u e v er co m co n tas, avaliação e m an u ten ção
dos d o c u m e n to s escritos, p ro v e n d o , p o rta n to , u m a c o m p re en são inicial das
funções d e u m m e stre d a lei judeu. O te rm o “ m estres d a lei” o c o rre n o início
da m o n arq u ia davídica p ara d esig n ar u m a au to rid ad e real que tem u m secre-
tário geral e u m reg istra d o r (2Sm 8.16,17; 20.24,25; lR s 4.3). N o judaísm o
pós-exílio, o te rm o “ m estre da lei” o u escriba p asso u a designar u m especia-
lista n a T orá, d o s quais E sd ra s foi o p rim eiro em u m a linhagem reco n h ecid a
e ilustre (E d 7.6,11). A im p o rtâ n c ia e fam a d o s m estres da lei au m en taram
duran te o p e río d o a sm o n ea n o o u m aca b ean o q u and o, en tre os judeus, os
ideais helenistas co m eç aram a rivalizar co m o e n sin o d a T orá. O s m estres da
lei, em p rim eiro lugar, eram especialistas d a T o rá capazes d e em itir decisões
obrigatórias so b re sua interp retação . O c o n h e c im e n to relativo à escrita da
Torá e os m eio s pelo s quais ele é o b tid o eram c o m frequência considerados
com o ilum inação esotérica e, p o r isso, m ais autoritativo. E m segundo lugar, os
escribas, c o m o crescim en to d a sinagoga, to rn a ra m -se m estres d a T orá, cuja

16 Sobre as sinagogas, veja S. J. D. C ohen, From the Maccabees to the Mishnah, L E C , ed.
geral W. M eeks (Philadelphia: W estm inster Press, 1987), p. 111 -15; G. F. M . M oore,
Judaism in the F irst Centuries o f the Christian E ra (N ew York: Schocken, 1971), 1.29-
36, 281-307; Str-B I V /1 .115-88; E. Schiirer, Flistory o f theJewish People, p. 423-53.
M a rc o s 1.22 86

rep u ta ção era h o n ra d a co m o títu lo “ rab í” , co m o sen tid o d e “ m eu g ran d e


ind iv íd u o ” . P o r fim , os escribas eram juristas legais n o sen tid o am p lo d o
term o. “ M estres da lei” , p o r co n seg u in te, re u n ia m os cargos de p ro fe sso r da
Torá, m estre e m o ralista e adv o g ad o civil, nessa o rd em . A erudição e prestígio
deles alcança p ro p o rç õ e s lendárias p o r v o lta d o século I, su p lan tan d o em
algum as ocasiões a eru d iç ão e p restígio d o s su m os sacerd o tes (b. Yoma 71 b).
Só os m estres d a lei (à p a rte d o s principais sacerdotes e m em b ro s das famílias
aristocráticas) p o d iam e n tra r n o Sinédrio. A s pessoas co m u n s d em o n strav am
deferência p a ra c o m os escribas q u a n d o estes cam inhavam pelas ruas. O s
prim eiros assen to s d a sinagoga eram reservados p ara os escribas, e as pessoas
ficavam d e p é q u a n d o esses m estres d a lei en travam em u m recin to .17
E m M arcos, d aqui em diante, ta n to as sinagogas q u a n to os m estres da
lei d e se m p e n h a m o papel, n a m aio r p a rte da narrativa, de o p o sito res d e je -
sus. A distân cia e n tre Jesu s e a sinagoga já é p erceb id a n o versículo 23 co m
a referên cia à frase “ n a sin ag o g a deled' (ARC; g rifo d o autor). A s sinagogas
aparecem m ais o u tras seis vezes em M arco s c o m o locais o n d e os d em ô n io s
estão p re sen tes (1.39), e o n d e h á a n tag o n ism o d o s líderes religiosos (13.9).
H á, d a m e sm a fo rm a , ap en as u m a referên cia positiva a u m m estre da lei em
M arcos (veja 12.28-34); as o u tras d ez o ito referências restantes re tratam os
m estres da lei c o m o an tag o n istas d e Jesu s e sua m issão. O an tag o n ism o geral
das sinagogas e m estres d a lei, p o rta n to , p re n u n ciam a rejeição p o r v ir de
Jesus ta n to n o te m p lo q u a n to p elo s líderes religiosos em Jerusalém . O efei-
to n arrativ o d isso é re fo rç a r a p aráb o la d e 2.21,22 d e que o n o v o v in h o d o
evangelho n ão p o d e ser c o n tid o pelas vasilhas d e co u ro velha d o judaísm o.
A afirm ação d e M arcos d e q u e “ [Jesus] ensinava c o m o alguém .que tem
au to rid ad e e n ã o c o m o os m estres d a lei” (1.22) é m en o s u m a d ep reciação
dos m estres d a lei q u e u m a aclam ação d e Jesus. A palavra que M arcos usa
para a autoridade d e Jesus, exousia, é u m te rm o p re em in en te em sua apresen-
tação d e Jesus. A palavra exousia, nas últim as p o rç õ e s da L X X e n a literatura
in tertestam en ta l, é u sad a c o m m ais freq u ên cia q u e o co n trá rio p ara designar
os p o d eres so b ren atu rais e as au to rid ad es, em especial de D e u s e das o bras,
d o s re p resen ta n te s e em issários d e D e u s, c o n fo rm e exp resso p o r in term éd io
d o s reis, sacerd o tes e santos. O s M M M ac o m p a n h a m essa tradução, e m b o ra

17 Sobre os escribas, veja G. F. M. M o o re,Judaism in the F irst Centuries o f the Christian


Era, p. 37-47; E . P. Sanders, Judaism: Practice and Belief, 63 B C -6 6 A D (Philadelphia:
Trinity Press In tern ad o n al, 1992), p. 170-89; G. B aum bach, “grammateus”, E D N T
1.259-60; J. Jerem ias, Jerusalem in the Time o f Jesus, trad. F. H. e C. H . Cave (L ondon:
SCM Press, 1969), p. 233-45.
87 M a rc o s 1.22

os term o s h eb raico s d o C u n rã q ue estão p o r trás d o te rm o exousia n a L X X 18


com frequência se refiram aos p o d eres so b ren atu rais d e n atu reza dem oníaca.
Exousia, de q u alq u er m an eira, designa d e m o d o típico a au to rid ad e sob reñ a-
tural na literatura im ed iatam en te an terio r à tradição cristã. E m M arcos, exousia
o co rre n o v e vezes, seis co m referên cia a Jesu s (1.22,27; 2.10; 11.28,29,33) e
três co m referên cia à au to rid a d e co n ferid a aos ap ó sto lo s p o r Jesu s (3.15; 6.7;
13.34). T o d as as o co rrên cia s d e exousia, p o rta n to , refletem d ireta o u indire-
tam ente a au to rid a d e de Jesus. O u so d e M arcos desse te rm o d efin id o r logo
no início d o m in istério p ú b lico de Jesu s estabelece a au to rid ad e dele acim a
das m ais altas au to rid ad es n o rein o tem p o ra l, c o n fo rm e re p resen ta d a pelos
m estres d a lei, e as a u to rid a d es so b ren atu rais, c o n fo rm e re p resen tad a pelo
d em ô n io em 1.23ss.19*
O s m estres da lei derivam sua au to rid a d e das “ tradições d o s h o m en s”
(7.8-13) — os pais d o judaísm o, p o d eria m o s d izer; ao p asso que Jesu s recebe
sua au to rid ad e d iretam e n te d o Pai n o céu (1.11). A au to rid ad e d o s m estres da
lei é c o n tin g e n te à au to rid a d e da T o rá e, p o r isso, é um a au to rid ad e m ediada;
ao p asso q u e Jesu s apela p ara a au to rid a d e su p e rio r e im ediata resid en te em
si m esm o receb id a em seu b atism o .21’ O m arav ilh am en to do s p resen tes na
sinagoga d ian te d o en sin o de Jesu s n ã o se deve apenas ao fato de que eles
viram u m m estre m aio r em Jesu s q u e n o s m estres da lei. A ntes, o ensin o de
Jesus é q ualitativ am en te diferen te, “ n ão c o m o os m estres da lei” .21

18 M asbal e sbalai.
‫ ’יי‬Sobre exousia, veja ainda: ‘T h e A uthority o f Jesus” , Introdução 6.1; e J. R. Edw ards,
“T h e A uthority o f Jesus in the G o sp el o f M ark” , J E T S 37 (1994), p. 2 1 7 2 2 ‫־‬.
2l) “T odas as ações e palavras [de Jesus] estão conectadas co m Jo ão e rem o n tam ao
espírito da descida de D eu s sobre ele após te r aceitado o batism o pelas m ãos de
João B atista” (B. Μ. E van Iersel, Reading M ark [Edinburgh: T. & Τ . Clark, 1989],
ρ.148).
21 D. D au b e (”exousia in M ark 1 22 and 27” , /7 3 '3 9 [1938], p. 45-59) ten ta explicar a
oposição dos m estres da lei a Jesus argum entando que havia duas classes d e m estres
da lei na época de Jesus, um a classe inferior de m estres elem entares, cham ada em
hebraico de sopherim (gr. grammateis), e um g ru p o m e n o r d e m estres da lei da elite
que ensinavam com reshut {exousia). Jesus, de acordo co m a percepção de D aube,
pertencia ao últim o grupo, e esse relato sobre o m aravilham ento das m ultidões
ocorre na rem ota Galileia o n d e apenas os m estres da lei m enores eram em geral
encontrados. N o entanto, contra a tese de D aube, é preciso dizer que o N o v o
T estam ento não m ostra nen h u m a consciência de classe d o s superm estres da lei,
nem que Jesus pertencia a esse grupo. U m a vez que os m estres da lei não são
m encionados nem e m jo s e fo nem em Filón, o testem u nh o do N o v o T estam en to
M a rc o s 1.22 88

D av id F lusser, o acadêm ico judeu estu d io so d o judaísm o d o seg u n d o


tem plo, arg u m e n ta c o n tra a ten d ên cia n o s estu d o s acadêm icos c o n tem p o râ-
neos so b re o N T a relegar os testem u n h o s da autoconsciência p reem in en te de
Jesus aos estágios p o sterio re s d a trad ição d o evangelho. F lusser fu n d am en ta
seus arg u m e n to s n a evidência d a a u to p ro e m in ê n cia in co m u m de Hillel e d o
M estre d a ju s tiç a d o C unrã. Flusser, ap esar das sem elhanças en tre Jesus e H il-
lei, declara q u e “ há u m a g ra n d e d iferen ça en tre os dois. A a u to co m p reen são
d e H illel n ão se lim itava a su a p ró p ria p esso a, m as, antes, era u m tip o para
to d as as pessoas. A co n sciên cia de Jesu s d e seu v alor exaltado v inha, c o m o a
d e Hillel, ac o m p a n h a d a pela h u m ild ad e pesso al e o p u n h a-se a q u alq u er sinal
d e u m ‘cu lto à p erso n alid a d e’, m as estava inextricavelm ente ligada c o m o co-
n h ec im e n to d e q ue su a p ró p ria p e sso a n ã o era intercam biável co m qu alq u er
o u tra pessoa. E le co m p re e n d ia a si m e sm o co m o ‘o F ilh o ’, o q u e significava
que tin h a u m a co m issão e tarefa centrais n o p lan o d e D e u s ” .22
M arcos observa o m aravilham ento da congregação com o ensino de Jesus,
m as n ã o relata o c o n te ú d o desse ensino. A ênfase recai so b re Jesus, o m estre.
H á 35 o co rrên cias em várias fo rm a s d a palavra p ara “ en sin o ” em M arcos,23
e em to d as elas, exceto u m a, Jesu s é o sujeito. N a sinagoga de C afarn au m , o
“ en sin o ” su rp re en d e d e fato a con g reg ação , m as p o r causa da au to rid ad e d o
m estre, m u ito d istin ta daquela d o s m estres d a lei. N o evangelho de M arcos, a
p esso a d e Jesu s é m ais im p o rta n te q ue o assu n to de seu ensino. Se q u iserm o s
saber d o q ue co n siste o evangelho o u en sin o d e Jesus, so m o s direcio n ad o s
a sua perso n ificação em Jesu s, o m estre.

transform a-se em um a peça de evidência contrária à tese de D aube. T am p o u co ,


a tentativa de D aube para equacionar reshut com exousia é bem -sucedida. Reshui
o co rre em apenas três textos fragm entados em M M M (1Q M 12.4; 4Q M 1 1 + 1.3;
4QM 1 8+1.5), e nen h u m deles carrega a força de m ashalou de shalat.
22 D. Flusser, E ntdeckungen im N euen Testament. Band 1:Jesusworte undihre Uberlieferung
(N eukirchen-V luyn: N eu kirchener Verlag, 1987), p. 210-15 [m inha tradução].
O b serv e ainda, o julgam ento de M. H engel sobre a autoridade de Jesus: “A afir-
m ação de Jesus à autoridade [...] vai m uito além de qualquer coisa que po d e ser
alegada com o um tipo profético ou paralelos para o cam po do A ntigo T estam ento
e do p eríodo do N o v o Testam ento. [...] [El]e perm anece co m o o últim o recurso
incom ensurável e co n fu n d e de m o d o tão básico todas as tentativas de ajustá-lo
nas categorias sugeridas pela fenom enología ou pela sociologia da religião” (The
Charismatic Leader and H is Followers, p. 68-69).
23Didaskein, “ensinar” (dezoito ocorrências), didaskalos, “m estre” (doze ocorrências),
didachê, “ ensino” (cinco ocorrências).
89 M a rc o s 1.23-26

23-26 M arcos, p ara a p rim eira aparição pública de Jesus, escolhe um


en c o n tro n a sinagoga de C afarn au m n o qual o R eino de D e u s b ate de frente
com seu d errad e iro o p o n e n te , e m b o ra este seja invisível — a estru tu ra de
p o d er d o m al. O d u ro teste d a au to rid a d e de Jesu s v em em 1.23. A inda mais
im p ressio n an te q u e a au to rid a d e d e Jesu s c o m o m estre é sua suprem acia no
reino so b ren atu ral. C o m eça n d o co m essa h istó ria (veja tam b ém 3.7-12; 5.1-
20), as ex pu lsõ es de d e m ô n io em M arcos d escrev em o con flito em o cio n an te
entre o R eino d e D e u s e o d o m ín io de Satanás, e n tre o ungido co m o E spí-
rito de D e u s e aqueles cativos de espíritos im u n d o s. A irru p ç ã o d o R eino de
D eus em Jesu s co m eça p rim eiro , de a c o rd o co m M arcos, n ão em um a arena
hum ana, m as em u m a arena cósm ica, a fim de a m arrar o “ h o m em fo rte ”
(3.27) q ue exercita p o d e r so b re a o rd e m natural. N a v erdade, os d em ônios,
com o os p ró p rio s p o d eres sobrenaturais, re co n h ec em a m issão e a autoridade
de Jesus an tes q ue a h u m an id ad e o faça (1.24; 3.11; 5.7). O s d em ô n io s se
tran sfo rm am n a seg u n d a p a rte da ap resen tação de Jesu s p o r M arcos, após a
voz d o céu n o b atism o (1.11), p ara an u n ciar a filiação divina d e Jesus.
O d em o n íac o grita: “O q ue queres co n o sco , Jesus de N azaré? V ieste para
nos d estru ir? Sei q u em tu és: o S an to de D e u s!” (v. 24). A ex pressão “ espírito
im un do ” é u m a ex p ressão favorita de M arcos (onze ocorrências) para desig-
nar os esp írito s m alignos, o c o rre n d o ap ro x im a d am en te o m esm o n ú m ero de
vezes q u e “ d e m ô n io ” (treze o co rrên cias), e os dois te rm o s o c o rrem apenas
na p rim eira m e ta d e d o evangelho. “ Im u n d o ” in d ica o q u e é p o lu íd o ou
co ntam inad o , o que, d a persp ectiv a judaica, equivale a im piedoso. O apelo
m elancólico d o d em o n íac o traz à m em ó ria as palavras d esesperadas d a viúva
de S arepta p ara E lias (lR s 17.18). A frase “ O q u e q u eres co n o sc o ?” (lit. “ O
que [é] p ara n ó s e você?”) o c o rre co m frequência n a L X X e n o N o v o T esta-
m ento.24 A frase, c o m exceção d e Jo ã o 2.4, indica q ue os dois co n c ern e n te s
nesse relato n ão tê m n ad a q u e v er u m co m o o u tro . O d em ô n io aqui, co m o
em o u tro s trec h o s (5.9), refere-se a si m e sm o n o plural, talvez p o rq u e isso
reflita a experiência subjetiva da p esso a p o ssu íd a p o r d e m ô n io que abriga as
forças m alignas q ue estão a tu a n d o em seu ín tim o (tam bém 5.9). O u talvez
o espírito im u n d o saiba que a m issão de Jesu s n ão é apenas d e rro ta r u m de-
m ônio, m as d e stru ir to d a a e stru tu ra de p o d e r dem oníaca. A palavra grega
po r trás d e “ re p re e n d e u ” (v. 25, epitimari) é u m te rm o técnico n o judaísm o
“p o r m eio d o qual os p o d e re s m alignos são su b m etid o s e o cam inho, atra­

24 LXX: Juizes 11.12; 2Samuel 16.10; 19.23; IReis 17.17; 2Reis 3.13; 9.18; 2Crôni-
cas 16.3; 35.21; N T : M arcos 5.7 par.; M ateus 27.19; Lucas 4.34; Jo ão 2.4.
M a rc o s 1.27-28 90

vés disso, é p re p a ra d o p ara o estab elecim en to d o g o v ern o justo de D e u s no


m u n d o ” .25 O p rim eiro e m b ate co m os su b o rd in ad o s após a ten taç ão é u m
ev e n to sem luta. O fo rte F ilh o de D e u s prevalece so b re o m al e am arra o
“ h o m e m fo rte ” (3.27).
O d e m ô n io refere-se a “Jesu s d e N a z a ré ” co m o “ o S an to de D e u s ” . Isso
p o d e refletir a cren ça de q u e falar o n o m e d e u m inim igo espiritual garantia
àquele q u e o p ro feria o d o m ín io so b re ele. O título “ o S anto de D e u s ” n ão
só traz à lem b ra n ça a filiação divina d e Jesu s co n firm a d a n o b atism o (1.11),
m as a p a re n te m e n te co m p a ra Jesu s a Sansão, o su bju lg ad o r p o d e ro so dos
filisteus, a ú n ica p esso a n a Bíblia ch am ad a d e “ nazireu de D e u s ” (Jz 16.17;
ARC). E possível ac resc en tar u m a co rrelação e n tre o v o to de “ nazireu ” de
Sansão e a referên cia ao fato d e Jesu s v ir d e “ N a z a ré ” , pois esses dois te rm o s
são p ro v e n ie n tes d a m esm a raiz h eb raica.26Jesus, m ais u m a vez an tecip an d o
a im agem d o “ h o m e m fo rte ” em 3.27, su b ju g a o p rín cip e m aligno e seus
su b o rd in ad o s pelo p o d e r d o R eino d e D eus.

27,28 A expulsão d o d e m ô n io te rm in a co m o m arav ilh am en to d e to-


d o s os presen tes. O te rm o “ to d o s ” é en fático em g reg o (hapantes), c o m o
sen tido literal d e to d o s ali p resen tes. A palavra p a ra “ ad m irad o s” (gr. tham-
beiri) deriva-se d a raiz “im p re ssio n a r” , co m o sen tid o d e causar su rp resa ou
su rp re en d er.27 A eu fo ria d e 1.27, d e m o d o b a sta n te in teressan te, re su lto u na
tradição textual g re g a c o n fu n d id a p o r u m rebuliço d e leituras variantes.28 A

25 H . C. K ee, “T h e T erm inology o f M ark’s E xorcism Stories” , N T S 14 (1968), p.


235.
26 A correlação com Sansão se to rn a plausível pelas designações “N a zaren o ” (N V I
“N azaré”) e “o Santo de D eu s” , e essas duas designações são aplicadas a Sansão
em Juizes 16.17 (LXX), que n o texto A é cham ado de na^iraios theou·, e no texto B,
hagiostheou. O term o hebraico p o r trás de na^iraios, ni%ir, significa “ ser consagrado
ou devotado” , daí a correlação com “o santo de D e u s” . Veja, E . Schweizer, “E r
wird N azo rãer heissen” , em N eo testamentica. Deutsche und Englische A ujsàt^e 1951-
1963 (Z ü rich /S tu ttg art: Zwingli Verlag, 1963), p. 51-55. A tentativa de L ohm eyer
(D as Evangelium des M arkus, p. 37) de explicar “ o Santo de D e u s” com referência
ao su m o sacerdote A rão é m enos plausível.
27 M arcos registra com frequência o efeito público da autoridade de Jesus co m su-
perlativos: ekplêssõ (6.2; 7.37; 10.26; 11.18); thauma^õ (5.20; 15.5, 44); ekthaumasp
(12.17); thamboumai (1.27; 10.24,32); ekthamboumai (9.15; 16.5); existêmi (2.12; 5.42;
6.51);phoboumai (4.41; 5.15, 33, 36; 6.50; 9.32; 10.32; 11.18; 16.8). Veja Cranfield,
The GospelAccording to Saint M ark, p. 73.
28 Veja M etzger, TC G N T, p. 75.
91 M a rc o s 1.27-28

im pressão da au to rid a d e d e Jesu s causa u m p ro fu n d o im pacto, m as tam b ém


as “ notícias a seu resp eito se esp alh aram ra p id a m en te p o r to d a a região da
Galileia” (v. 28). O relato inicial so b re Jesu s n a sinagoga de C afarnaum n ão é
apenas de u m a vitória d o Santo de D e u s so b re as forças m alignas e subjugadas,
com o se dois jo g ad o res de xadrez estivessem m an ip u lan d o peões so b re um
tabuleiro b u sc a n d o a p ró p ria vantagem . A d e rro ta d o “ h o m e m fo rte ” (3.27)
não aco n tece às custas das vítim as de Satanás, m as em favor delas. N ã o só
os espíritos im u n d o s são expulsos, m as ta m b é m as pessoas destru íd as são
restauradas à saúde e in teg rid ad e e à possib ilid ad e de restauração co m seu
C riador, em cuja im agem são feitos. A exousia d e Jesu s é su rp re en d en te , não
com o um a d em o n straç ã o d a g ra n d eza de Jesus, m as co m o u m p o d e r de
redenção d o s cativos.

U M D I A N A V I D A D E J E S U S (1.2 9 -3 4 )

M arco s a p resen ta os ev e n to s d e 1.21-38 c o m o ev en to s aco n tecen d o


em apenas u m dia e cujas atividades são unidas co m cinco o co rrên cias de
euthys (w . 21,23,28,29,30; trad u z id o pela N V I de várias fo rm as p o r “ lo g o ” ,
“justo naquele m o m e n to ” , etc.). O te rm o euthys, co m o n ze o co rrên cias no
capítulo u m (e m ais d e q u aren ta o co rrên c ia s n o evangelho co m o u m tod o ),
tem pera o relato co m u m sen so de urgência. O ritm o ráp id o da ação e a
estru tura te m p o ra l co m p rim id a sinalizam que a au to rid ad e d e Jesus co m o o
Filho de D e u s em erg e em ação decisiva. E ainda sábado (1.21,32), e Jesus,
após deixar a sinagoga, en tra n a casa d e S im ão e A n d ré co m T iag o e João,
os q u atro p esc ad o res ch am ad o s em 1.16-20. A cura d a sogra de P ed ro nos
versículos 30,31 é m en o s excepcional q u e a m aio ria d o s m ilagres de Jesus
e p o d e te r sido eclipsada p o r ob ras e m aravilhas ap a ren tem e n te m ais rele-
vantes. A história, n o en ta n to , tem u m to q u e de um a rem iniscência pessoal
e foi incluída p o r causa d a influência de P edro.29 A inclusão desse m ilagre
m odesto, e sua su b seq u en te m ultiplicação em m eio a “ to d a a cid ad e” (1.33)

29 T. Z ah n (seguido p o r m uitos outros) sugere que a história surge de um relato


em prim eira pessoa feito p o r Pedro, e este seria assim: “ V iem os diretam ente da
sinagoga para nossa casa, e T iago e Jo ão nos acom panharam ; e m inha sogra es-
tava doente com febre, e falam os com ele [Jesus] de im ediato co n cernente a ela”
(Introduction to the N ew Testament, 2.496-97). A sugestão de Z a h n tam bém pode
lançar luz sobre a confusa tradição textual grega d o versículo 29. E m b o ra m uitos
m anuscritos de peso apoiem o pro n o m e singular (“ ele [Jesus] foi à casa”), a leitura
plural (“ fom os à casa”) explica m elhor as variantes e co n co rd a co m o testem unho
de Pedro sugerido p o r Z ahn. Veja tam bém , M etzger, T C G N T , p. 75.
M a rc o s 1.29-31 92

e “ to d a a G alileia” (1.39), assevera a solidariedade d e Jesu s e o en g ajam en to


co m as pessoas co m u n s e suas necessidades com uns.

29 A u m a distância d o arrem esso de u m a p edra d a sinagoga d e C afarnaum


fica u m a e stru tu ra que, razo av elm en te, p o d e ser identificada c o m o a casa de
Pedro. A casa faz p a rte d e u m am p lo co m p lex o “ insular” , n o qual as p o rtas
e janelas se ab rem p ara o p átio in terio r, e n ão p ara o exterior, p ara a rua. O
pátio, acessado p o r u m p o rtã o n a ru a, era o ce n tro d a vida das casas ao seu
red o r, c o n te n d o lareiras, m o in h o s p ara os grãos, p ren sas m anuais e escadas
p ara os telh ad o s das casas. E ssas casas fo ram co n stru íd as c o m o p ared es pe-
sadas d e b asalto p re to so b re as quais era p o s to u m telh ad o p lan o de m adeira
e palha. E m b o ra a casa em q u estão te n h a so frid o vários desen v o lv im en to s
em séculos sucessivos, as investigações arqueológicas d esco b riram grafites
devocionais e sagrados em g reg o , latim , siríaco e aram aico, rabiscados nas
p ared es d e argam assa, in d ican d o q u e foi ven erad a c o m o u m lugar de reunião
p ara os cristãos, e talvez c o m o u m a igreja, d o fim d o século I o u início do
século II. H á u m a g ra n d e p ro b a b ilid ad e de q u e o local p reserv e a casa de
P edro.30 N e n h u m local, in cid en talm en te, foi id en tificado na E scritu ra o u na
tradição c o m o a casa d e Jesus, e é possível q ue Jesus viveu c o m P ed ro em
C afarnaum .

30 N a casa, a so g ra de P ed ro está d o e n te “ co m feb re” . A palavra para


“ feb re” (gr .pyresso) é m u ito in fre q u e n te n o N o v o T estam e n to e m u ito gené-
rica para id en tificar a n atu re z a o u causa d a d o e n ç a (veja Jo 4.52; A t 28.8). N o
N o v o T e sta m e n to e n a trad ição rabínica, as febres em geral são atribuídas
à p u n ição divina o u p o ssessão d em o n íaca, e isso ainda é v erd ad e em m eio
a m u ito s b e d u in o s n o O rie n te M édio. N o s s o relato n ão ap resen ta n e n h u m
indício de p u n iç ã o divina o u p o ssessão d em o n íaca, m as o relato paralelo em
Lucas identifica o m ilagre c o m o u m a expulsão de d em ô n io s.31

31 M arcos, em vez de discutir a natureza d a febre, enfatiza a to tal suficiên-


cia de Jesu s c o m o aquele q u e cura. N ã o existem feitiços n em en can tam en to s
típicos d o s o p erad o re s d e m aravilhas helenistas. A n tes, Jesus, ao o u v ir so b re
a febre, “ se ap ro x im o u dela [a so g ra d e P edro], to m o u -a pela m ão e ajudou-a

3u Corbo, “Capernaum ”,ABD 1.867-68.


31 “ [Jesus] [...] repreendeu a febre, que a deixou” (Lc 4.39). A palavra grega “repre-
endeu”, epüiman, é um term o técnico com um para a expulsão de demônios. Sobre
“febre” , veja K. Weiss, “pjressõ”, ΊΌΝΤ6.956-59.
93 M a rc o s 1.32-34

a levantar-se” . O g re g o ap re se n ta “ aju d o u -a a levantar-se” n o te m p o verbal


im perfeito (“ ele a estava aju d an d o a se lev an tar”), c o m o se a cu ra estivesse
sendo lem b rad a, d e n o v o u m a su g estão de u m a rem iniscência pessoal de
Pedro. A cura d e p e n d e apenas d e Jesus, cujo to q u e p esso al e com paixão
restauram a saúde d a m u lh e r d o en te.32
E m re sp o sta à cura, a so g ra d e P e d ro “ c o m e ç o u a serv i-lo s” (1.31).
Esse versículo é citad o c o m frequência p ara a a p o iar a ideia d e relegar as
m ulheres p ara as fu n çõ es d e serviço. Isso n ã o p o d e ser co n sid erad o co m o
um a c o n o ta ç ã o d a ideia d e su b serv iên cia o u in ferio rid ad e p ara M arcos, pois
a palavra greg a p ara “ serv ir” (gr. diakonein) é a m e sm a palavra usada para os
anjos q u e “ serv ia m ” Jesu s d u ra n te a te n taç ão (1.13). A lém disso, a m esm a
palavra é trad u z id a p o r “ serv ir” em 10.45, em q u e Jesu s declara q u e o Filho
do h o m e m n ã o “veio p ara ser servido, m as p ara serv ir e d a r a sua vida em
resgate p o r m u ito s” . S erv ir é o ca m in h o d e Jesu s e d aqueles que o servem , e,
p o rtan to , descrev e u m a característica essencial d o R eino d e D e u s q u e Jesus
apresenta e exem plifica. P ara M arcos, a re sp o sta ap ro p riad a daquele q u e foi
tocado p o r Jesu s é serv ir (“ serv i-lo s”) os o u tro s, o u seja, a co m u n h ã o cristã.
(Sobre servir, veja ainda os co m en tá rio s em 9.35.)

32-34 A co m p aix ão q u e Jesu s d e m o n s tro u pela sog ra de P ed ro é agora


estendida às m ultidões. O sáb ad o se esten d ia d o p ô r d o sol da sexta até o
pôr d o sol d o sábado. O d ese sp ero d o d o e n te e d o p o ssu íd o p o r d em ô n io
é expressa n o sim ples páthos m arcano: “T o d a a cidade se reu n iu à p o rta da
casa” . A p o rta da co m p aixão e p o d e r de Jesu s está ab e rta para eles, pois ele
“curou m u ito s q ue sofriam de várias d o e n ç a s” .33 Q u a n d o M arcos diz que

32 É interessante observar a facticidade com que os milagres d e je su s são descritos em


contraste com aqueles operadores de m aravilhas helenistas, bastante conhecidos.
E m m uitos relatos helenistas, o verbo “parecer” (dokein), ou algum term o simi-
lar, acom panha a descrição de um milagre. A ssim , a m enina a quem A polônio,
conform e se supõe, levantou dos m o rto s apenas “parecia” m o rta, de acordo
com Filóstrato ( Vida deA pol., 4.45). Esculápio, tam bém co nhecido pelo nom e de
Asclépio, parece “ ter trazido m uitos que m orreram à vida” (D iodoro, 4.71.1-2).
As pessoas “ supunham ” (hjpolambanein) que H eracles foi ficar com os deuses após
ser crem ado (D iodoro, 4.38), e um relâm pago “parece” que caiu no nascim ento
de A polônio (Filóstrato, Vida d eA p o l 1.4).
33 Uma m udança sutil na ordem das palavras na passagem paralela em M ateus argu-
m enta em favor da prioridade m arcana. E n q u an to M arcos diz que “ to d o s” foram
trazidos a Jesus, dos quais “ m uitos” foram curados (1.32,34), M ateus 8.16 afirm a
que “ m uitos” foram trazidos, e “ to d o s” foram curados. A o rd em das palavras em
M a rc o s 1.32-34 94

Jesus “ c u ro u m u ito s” , ele n ã o quis d izer que Jesus cu ro u apenas alguns, e


n ão o u tro s. E le em p re g a o te rm o “ m u ito s” co m o sen tid o h eb raico (rabbim),
o u seja, p ara a b ran g er “ to d a a co m u n id a d e ” . Jerem ias sugere u m a tradução:
“ G ra n d e foi o n ú m ero d aqueles cu ra d o s” .34
O te rm o demônios (1.34) d e se m p e n h a um p apel im p o rta n te aqui e em
o u tro s trec h o s d o evangelho d e M arcos. M arcos situa to d o s os d em ô n io s
e expulsão d e d em ô n io s n a prim eira m etad e d o evangelho, aju d an d o co m
isso o leito r a c o m p re e n d e r a id en tid ad e de Jesus. O s p ro fetas p rev iram que
D e u s baniría os n o m e s de íd o lo s n o D ia d o S e n h o r (Z c 13.2); p ara M arcos,
o D ia d o S e n h o r é re p re se n ta d o p elo fato d e Jesus v en cer e b an ir as o b ras e
os servo s de Satanás. N o b atism o (1.11), a voz d o céu anuncia que Jesu s é o
F ilho de D eus. E ssa declaração é re fo rça d a p o r u m a série de q u estõ es e res-
p o stas altern ad as n o s capítulos subsequentes. A p erg u n ta so b re a iden tid ad e
d e Jesu s veio d o lado h u m a n o (1.27; 2.7; 4.41; 6.2; 6.14-16), e as resp o stas
vieram , em p arte , d o lado d em o n íac o (1.24; 1.34; 3.11; 5.7). O efeito da ação
d e in teração e n tre as p erg u n tas h u m an as e as re sp o stas dem oníacas revela
que os p artic ip a n tes h u m a n o s ainda n ão e n te n d e m a iden tid ad e de Jesus, ao
p asso q u e os d em ô n io s a co m p re e n d e m , pois eles, c o m o ele, p e rte n c e m ao
m u n d o espiritual.35
O s dem ô n io s, p o r sua vez, estão in tim am en te relacionados à ordem para
que silenciem q u e o c o rre aqui pela seg u n d a vez (veja 1.24,25). “ [Jesus] n ão
p erm itia, p o ré m , q u e estes [os dem ônios] falassem , p o rq u e sabiam qu em

M arcos levanta perguntas n a m ente dos leitores que se questionam p o r que Jesus
não curou todos os doentes. É mais razoável su po r que M ateus m u d o u o texto
de M arcos e, co m isso, livrou-o de um a possível dim inuição do p o d e r de Jesus,
do que M arcos tenha introduzido essa dim inuição n o texto de M ateus, de resto
bastante feliz.
34 N a literatura talm údica, harabbim designa consistentem ente “ to d a a com unidade” .
E m Cunrã, da m esm a form a, o term o designa a associação de m em bros totalm ente
capacitados. E m R om anos 5.15, o texto grego hoipolloi (“ os m u ito s”) transm ite
um sentido inclusivo e igualm ente universal. O adjedvo anartro, sem artigo, p o d e
transm idr a m esm a conotação (e.g., lEnoque 62.3,5). Veja J. Jerem ias, The Eucharistic
Words o f Jesus, trad. N. P errin (London: SCM Press, 1964), p. 179-82.
35 U m a série de m anuscritos gregos (B L W Θ C, mais correções para ‫ ) א‬trazem que
os dem ônios reconheceram Jesus com o o M essias {Christos). Parece im provável,
p ortanto, que M arcos ten h a incluído Christos, com pouquíssim as ocorrências (sete
apenas) no segundo evangelho. A inclusão do título é explicada mais provavelm ente
com o um a assim ilação de Lucas 4.41. Se o título fosse original de M arcos, ficaria
difícil im aginar um escriba o om itíndo.
95 M a rc o s 1.32-34

ele era.” Λ o rd e m p ara silenciar to ca u m d o s n erv o s m ais co n tro v e rso s do


evangelho. P o r q u e Jesu s a p a re n te m e n te trab a lh a c o m p ro p ó sito s con trário s
a si m esm o p o r p ro ib ir q u e o s cu rad o s o to rn e m co n h e cid o ? A o rd e m para
silenciar p arece fru stra r a pu b licação d o R eino d e D e u s p ara o qual ele veio
(1.14,15).
U m a explicação ad eq u ad a so b re a o rd e m p ara silenciar p arece exigir
três co m p o n en te s. P rim eiro, se g u n d o u m a esfera estratégica e prática, era
necessário q u e Jesu s silenciasse as falas m essiânicas so b re ele m esm o um a
vez que estas carregavam c o n o ta ç õ e s d e lib ertação m ilitar (veja ainda so b re
Cristo em 8.29). E ssas c o n o ta ç õ e s n ã o só eram in ap ro p riad as a sua m issão,
mas tam b é m a p u b licid ad e d o títu lo “M essias” (ou algum o u tro equivalente)
convidaria u m a ráp id a in terv e n ç ã o d a o cu p a ção ro m ana. A lém disso, Jesus
rejeita q u alq u er an ú n cio so b re sua p esso a e m issão p elos d em ô n io s que se
opõem ao R eino d e D eus.
Todavia, a o rd e m p ara silenciar está en raizad a em interesses m ais que
estratégicos. S egundo, e ainda m ais im p o rta n te , p arece derivar d o perfil do
Servo d o S e n h o r se g u n d o o qual Jesu s m o d ela de fo rm a co n scien te seu
m inistério. O S ervo é d efin id o pela m o d era ção e hum ildade: “ N ã o q u eb rará
o caniço ra c h a d o ” (Is 42.3). E ssa m o d era ção chega à m ais plena expressão
em Isaías 49.1-6. E m b o ra o S ervo sinta q ue tem se “ afadigado sem qualquer
p ro p ó sito ” e “g astad o [...] [sua] fo rça em v ão ” , D e u s g aran te o co n trário
para seu servo, o u seja, d e q u e ele será “luz p ara os g e n tio s” . A habilidade da
m ensagem d o S ervo (“ fez d e m in h a b o ca u m a espada afiada”) e a abrangência
de sua influência (“ ele m e to rn o u u m a flecha p o lid a”) estão guardadas na
ocultação (“ n a so m b ra d e sua m ão ele m e esc o n d e u [...] e esco n d eu -m e na
sua aljava”). O s Salm os sab em q u e o ju sto tem d e estar velado (17.8; 27.5;
64.3), m as a ideia ch eg a a sua p len a ex p ressão n o s h in o s d o S ervo em Isaías,
em que a o cu ltação se to rn a u m e lem e n to d efin id o r da m issão d o servo. O
tipo d o S ervo d o S e n h o r parece exercer a influência m ais fo rte possível so b re
o m inistério d e Jesu s (M t 12.15-21). N e n h u m a o u tra figura, A braão, M oisés,
Samuel o u u m d o s reis o u pro fetas, c o rre sp o n d e in tim am en te ao m inistério
de Jesus n e m in flu encio u seu m in istério m ais p ro fu n d a m e n te q u e o Servo
do Senhor.
O m o tiv o d o S ervo é seg u ram en te a chave p ara a p e rg u n ta p o r q u e o
Filho d e D e u s canaliza sua au to rid a d e e p o d e r n a ocultação. A quilo que
v erdadeiram ente m u d a o co raçã o h u m a n o e co n stra n g e d errad eiram en te
a pessoa a re c o n h e c er e seguir Jesu s jam ais p o d e ac o n te cer p o r in term éd io
E x c u rs o : o m o tiv o d o s e g re d o 96
da co erção o u d e m o n stra ç ã o de p o d e r m ilagroso. Jesus n ão q u e r n en h u m a
aliança fo rçad a p o r m eio d o m arav ilh am en to e perplexidade. A fé de seus
discípulos te m d e ser evocada p o r in te rm é d io da hu m ild ad e e b asicam ente
p o r m eio d o so frim en to . Se a p e sso a n ã o re ceb e r Jesu s dessa fo rm a, tam b ém
não o re ceb e rá em to d o seu p o d e r e m ajestade.
A o rd e m p a ra silenciar, p o r co n seg u in te, re p resen ta in teresses estra-
tégicos e tipológicos n o m in istério h istó rico d e Jesus. C o n tu d o , o tem a do
silenciar d e se m p e n h a u m terceiro p ap el n o evangelho de M arcos.36 A lém de
seus papéis n o m in istério h istó rico d e Jesus, M arcos em p reg a o tem a para
seu p ró p rio p ro p ó s ito cristológico, a saber, q ue to das as especulações so b re
Jesus, antes d a co n su m aç ão d e sua o b ra na cru z, são p rem aturas. Só n a cru z
Jesu s p o d e ser c o rre ta m e n te co m p re e n d id o p o r qu em ele é. T o d as as falas
so b re Jesu s — e em especial aquelas vindas dos m em b ro s d a rebelião — antes
da co nfissão d o cen tu rião aos p és d a cru z (15.39), são p re m a tu ras o u falsas.
P o r co n seg u in te, o s m o tiv o s estratégicos e tipológicos na v ida d e Jesu s e os
m o tiv os cristológicos na h istó ria d e M arcos são co e ren tes na o rd e m de Jesus
para silenciar.

Excurso: O motivo do segredo e a autoconsciência


messiânica de Jesus (1.34)
O m o tiv o d o seg red o é u m a p a rte in ere n te d a tram a d o evangelho de
M arcos. O s demônios, em três ocasiões, são o rd e n a d o s a silenciar (1.25; 1.34;
3.11). Jesu s o rd e n a o silêncio a p ó s q u a tro milagres (a purificação de u m lep ro -
so, 1.44; o ressu scitar d e u m a m en in a, 5.43; a cura de u m su rd o -m u d o , 7.36;
a cu ra d e u m cego, 8.26). O s discípulos são o rd e n a d o s duas vezes a silenciar
(8.30; 9.9). Jesu s, p o r duas vezes, se afasta das multidões p ara escapar da d eten -
ção (7.24; 9.30). M arcos, além dessas ad m o esta çõ es para o segredo, deixa o
seg red o im plícito em o u tro s asp ecto s d o m inistério p úblico de Jesus. Jesus só
explica os m istério s d o re in o q u a n d o está em “p artic u lar” co m os discípulos,
ao p asso que, em público, o re in o é velado nas p arábolas (4.10-12). E le for-
nece in stru ç ã o p articu la r aos discípulos so b re a c o rru p ç ã o in te rn a (7.17-23),
o so frim en to m essiânico (8.31; 9.31; 10.33) e a seg unda v in d a (13.24-27).
Jesus esco lh e revelar o m istério e glória d e sua filiação divina apenas p ara os
seguidores ín tim o s e, depois, em cenários reserv ad o s (4.10-20; 8.27— 9.13).

36 Sobre o uso d o m otivo do Servo de lavé na retratação do m inistério de Jesus,


v ejaj. M arcus, The Way o f the Lord: ChristologicalExegesis o f the O ld Testament in the
Gospel o f M ark (E dinburgh: T. & T. Clark, 1992), p. 186-94; e R. E . W atts, Isaiah’s
N ew E xodus and M ark, W U N T 88 (Tübingen: M o h r Siebeck, 1997), p. 119-21.
97 E x c u rs o : o m o tiv o d o s e g re d o

Todavia, iro n ica m en te , a o rd e m p ara silenciar resulta em geral n o o p o sto :


“ C o n tu d o , q u a n to m ais ele os p ro ib ia [de c o n ta r a o u tras pessoas], m ais eles
falavam ” (7.36; 1.45; 5.20; 7.24).
W illiam W rede, em The Messianic Secret [O seg red o m essiânico],37 ten to u
argu m entar q ue as ad m o estaçõ es para o seg red o em M arcos n ão passavam
de adições derivadas da trad ição p ré -m arc an a e d o p ró p rio M arcos. W rede
acreditava q u e a igreja prim itiva foi p eg a na c o n tra d ição en tre o que é rece-
hido so b re Jesu s e o q ue p o r fim acreditavam so b re ele. W rede sugeriu que as
tradições m ais prim itivas da vida de Jesu s eram n ão m essiânicas, em b o ra a
igreja, ap ó s a Páscoa, veio na realidade a c rer q u e Jesu s era de fato o M essias.
A p re sen ça d o m aterial so b re o seg red o fo rn ece u a chave, na avaliação de
W rede, p ara resolver a contradição. A igreja, e M arcos o evangelista, inseriram
adm o estaçõ es p ara o seg red o em vários p o n to s n o evangelho para explicar
p o r qu e a vida te rre n a de Jesu s p arecia n ão m essiânica, b em c o m o p ara ex-
plicar c o m o as g eraçõ es p o sterio re s d ep o is da re ssu rreição (e.g, 9.9) vieram
a con sid erá-lo m essiânico.
A teo ria de W rede, p ro p o s ta pela prim eira vez em 1901, en can ta h á u m
século os e stu d o s acadêm icos so b re M arcos. Sua influência, p o rta n to , foi
d esp ro p o rcio n al ao seu m érito .38 A teoria é fu n d a m e n tad a n o p re ssu p o sto
essencial d e q u e o Jesu s h istó rico n ão acreditava que era o M essias nem ,
tam po uco , era o M essias. Se a consciência de Jesu s de sua filiação divina
pode ser ra zo av elm en te estabelecida, e n tão a teo ria de W rede cai p o r terra.
E p recisam en te essa cren ça q u e o evangelho d e M arcos p re ssu p õ e em to d o s
seus textos, pois u m estra to n ã o m essiânico d a trad ição d o evangelho tem
ainda d e ser d esco b erto . A co n sciên cia m essiânica d e Jesus está p ro fu n d a-
m ente e n tra n h a d a n a fala, ações e c o m p o rta m e n to de Jesus, em especial
co n fo rm e ex p resso em sua exousia, sua au to rid a d e divina q u e co m eç o u em
seu b atism o .39 E p re ciso le m b ra r q u e a p ro clam ação e escrita d o evangelho

37 W W rede, The Messianic Secret, trad. J. G reig (C am b rid g e/L o n d o n : Clarke, 1971).
38Já em 1926 Geerhardus Vos expôs e refutou as falhas na tese de Wrede (TheSelf-Disclosure
of Jesus [Grand Rapids: Eerdm ans, reimpr. em 1954]). Veja tam bém V Taylor, The
GospelAccording to St. M ark, p. 122-24; O. Betz, “D ie Frage nach dem messianischen
Bew usstsein Jesu” , N o vT 6 (1963), p. 28-48; G. E . L add, Λ Theology o f the N ew Tes-
tament (G rand Rapids: E erdm ans, 1974), p. 169-71; R. P. M artin, M ark, Evangelist
and Theologian (G rand Rapids: Z o n d erv an , 1972), p. 148-50; N. T. W right, The N ew
Testament and the People o f God (London: SPC K , 1992), p. 391.
39 “E m últim o recurso, o segredo messiânico rem onta à misteriosa autoridade messiâ-
nica de Jesus. Portanto, não é invenção d o evangelho da com unidade prc-m arcana,
E x c u rs o : o m o tiv o d o se g re d o 98

surgiu n o seio d o judaísm o. C o n sid e ran d o -se a relevância fu n d am en tal d o


Shema (D t 6.4) e o m o n o te ísm o n o judaísm o, dificilm ente é concebível que
os judeus q u e creram q u e Jesu s era o M essias teriam in v en tad o sua filiação
divina. A única re sp o sta razoável p ara fazer cair so b re eles m esm o s a aversão
dos co m p atrio tas judeus p o r p ro clam arem o evangelho é que criam que Jesus
era o F ilh o d e D e u s e o M essias. Jesu s dificilm ente p o d ería ser p ro clam ad o
c o m o o M essias d ep o is d a ressurreição, a m e n o s qu e já tivesse sido re co n h e-
cido c o m o tal d u ra n te seu m inistério. A lém disso, é u m salto considerável
de fé c rer q u e os judeus estivessem d isp o sto s a e n treg ar seu tru n fo d o m o -
n o te ísm o em tro c a d a aceitação d o evangelho p o r “g en tio s p ec ad o re s” (G1
2.15) e id ó latras (R m 1.23), c o n fo rm e se su p õ e co m frequência. P o r fim , a
crucificação é p ra ticam en te inexplicável, a m e n o s q u e R om a suspeitasse que
Jesu s era u m im p o s to r m essiânico.
A teo ria d e W rede resulta em u m a visão to ta lm e n te cética d o v alor his-
tó rico d e M arcos e d a co erên cia teológica e literária desse evangelho. N ã o
é n ecessário re c o rre r a u m a teo ria atesta d a c o m p re ssu p o sto s literários e
h istó rico s questionáveis a fim d e re sp o n d e r à p erg u n ta p ro p o s ta p o r W rede.
A evidência in te rn a n o s p ró p rio s evangelhos, m últipla e variada, é de que o
g ên e ro d o m in a n te d a au to co n sc iên cia m essiânica de Jesu s foi tran sm itid o
p ara a igreja prim itiva e p a ra M arcos p elo p ró p rio Jesus. O m o tiv o d o segre-
d o surgiu d a id en tificação co n sc ie n te de Jesu s co m o m o tiv o d o S ervo d o
S en h o r em Isaías e da n ecessid ad e de g u ard ar sua id en tid ad e m essiânica das
co m p re en sõ es p re m a tu ra s e falsas. C o m relação à o rd e m p ara silenciar, os
fatores h istó rico s e literários arg u m e n tam q u e a ap resen tação d e Jesu s p o r
M arco s está em co n tin u id ad e essencial c o m o Jesu s da história.

A J O R N A D A IN T E R N A , A J O R N A D A E X T E R N A (1.3 5 3 9 ‫)־‬
M arcos se m ove agora d o particular para o geral. A cura da sogra d e P edro
em 1.30,31 d á lu g ar a u m re su m o geral da m issão de Jesu s n o s versículos 35-
39, sem d etalh es de localização n e m duração. O efeito d o re su m o é m o strar

mas um a expressão do m istério d o p ró p rio Jesus que avança para a questão do


Messias. [...] O m istério da exousia m essiânica de Jesus e o m istério do reino em
4.11 estão indissoluvelm ente conectados na pessoa histórica de Jesus. [...] C om
um a figura tão única q u an to Jesus, que destrói todas as estru tu ras históricas,
não podería haver n enhum a ‘tradição unidim ensional’ sem tensões e aparentes
contradições. Sua pessoa e atividade não p o d e m ser forçadas nas fronteiras das
teorias cristológicas triviais e pouco originais” (M. H engel, Studies in the Gospel o f
M ark, trad. J. B ow den [London: SCM Press, 1985], p. 45).
99 M a rc o s 1.35

que o m in istério de Jesu s se esten d e além ta n to d o s co n fin s de C afarnaum


quanto d o esc o p o da narrativa d o evangelho até agora. A p esar de sua natureza
geral, esse breve re su m o h istó rico avança o p ro p ó s ito teológico de M arcos de
que Jesus, em seu m in istério de e n sin o e cura, c o n tin u a essencialm ente m al
co m p reen d id o , e n ão só pelo s líderes religiosos e m ultidões, m as tam b ém
p o r seus p ró p rio s discípulos.

35 A a b e rtu ra desajeitada e re d u n d a n te de 1.35 em g re g o {kaiprõi ennycha


lian‫׳‬, N V I: “ D e m ad ru g a d a, q u a n d o ainda estava e sc u ro ”) soa m ais coloquial
que literária, talvez refletin d o u m a lem b ra n ça d e P edro. Jesu s aco rd a cedo
e vai para C afa rn au m p ara o ra r em solitude. A palavra g reg a para “lugar
d ese rto ” (eremos) é a m esm a palavra p ara o d e se rto o n d e Jo ã o pregava (1.4)
e o n d e Jesu s foi te n ta d o (1.12). C o n fo rm e o b se rv a m o s a n terio rm en te, essa
palavra em M arcos n ão c o n o ta u m d e se rto arrasad o, m as, refletin d o a jor-
nada d e Israel n o d e se rto d ep o is d o êxodo, u m lu gar de arrep en d im en to ,
restauração e c o m u n h ão co m D e u s.40 M arcos registra Jesu s o ra n d o apenas
três vezes n o evangelho; aqui (1.35), ap ó s alim en tar cinco m il pessoas (6.46)
e n o G e tsê m a n i (14.32-39). T o d as as três vezes o c o rre m à n o ite e em lugares
solitários. T o d as as três o c o rre m em c o n te x to s d e o p o sição ao m inistério de
Jesus, q u e r d e m o d o im plícito q u e r d e fo rm a explícita. Jesus, em m eio a u m
red em o in h o d e atividade, b u sca u m lugar quieto, u m p o n to im óvel, para o rar
para o Pai. H á u m paralelo sugestivo nas palavras en tre Jesu s sair para o ra r (v.
35) e sair p ara p re g ar e expulsar d em ô n io s (v. 39). A o b ra d o F ilh o de D e u s é
um trab a lh o ta n to in te rn o q u a n to externo. Jesu s n ão p o d e esten d e r a si m es-
m o em co m p aix ão sem p rim eiro a te n d e r à fo n te d e sua m issão e p ro p ó sito
com o Pai; e, in v ersam en te, sua u n id ad e c o m o Pai o im pele para fora em
sua m issão. A relevância d o m in istério de Jesu s co n siste n ão só n o que faz
pela h u m an id ad e, m as ta m b é m e m q u em ele é em relação ao Pai. Jesus, de
acordo co m a n arrativ a d e M arcos, n ão é n em u m asceta co n tem p lativ o n em
um ativista social. E le n ão p ro m o v e u m a agenda, m as deriva u m m inistério
de u m re la cio n am en to c o m o Pai. E le é o Filho, u m em ser co m o Pai; e o
Servo, um em p ro p ó s ito co m a v o n tad e d o Pai.

4u “A errância de Israel sob a liderança de Moisés foi uma marcha sob a orientação
do Espírito de Deus (Is 63.11), e o Espírito deu às pessoas descanso (Is 63.14).
Como o primeiro êxodo foi uma jornada sob a liderança do Espírito de Deus, não
é de surpreender que o profeta [Isaías] espere um novo derram am ento na época
do segundo êxodo” (U. Mauser, Christin the Wilderness [London: SCM Press, 1963],
p. 52; veja tam bém p. 105-8).
M a rc o s 1.36-37 100

36 A trad u ç ão d a N V I (“ Sim ão e seus co m p an h e iro s fo ram p ro c u rá-lo ”)


é anêm ica co m p arad a co m as palavras vig o ro sas de M arcos: Sim ão e seu
g ru p o o “ b u sca ram co m diligência” (gr. katadiõkeiri). O v erb o g re g o p o d e
até m e sm o c o n o ta r “ caçad o ” . L ucas 4.42 diz q ue Jesu s foi perseg u id o pelas
“ m u ltid õ es” , e n ã o p o r Sim ão, talvez p ara p o u p a r u m a o fen sa a Sim ão e aos
discípulos. M arcos, n o en tan to , identifica in ten cio n alm en te o in tru so co m o
Sim ão P e d ro e os o u tro s discípulos. E ssa in tru sã o a p a ren tem e n te in ó cu a e a
o p o sição m ais in fam e d e P e d ro em 8.32,33, a qual fo rm a o divisor de águas
em M arcos, são cu rio sam e n te parecidas. N a s duas passagens Sim ão P ed ro
é o ú n ico d iscípulo m e n c io n a d o p elo n o m e, e em am bas ele ten ta im p ed ir
Jesus d e cu m p rir sua m issão. N a s d u as ocasiões, d esc o b rim o s que o principal
ap ó sto lo é o prin cip al an tag o n ista d o F ilh o de D eus. E sse ep isó d io p renuncia
a v erd ad e m ais en fática de 8.31-39, d e q u e o discipulado co n siste em seguir
o F ilho d e D e u s, e n ão em te n ta r c o n tro la r o trab a lh o de D eu s.41

37 O s discípulos, q u a n d o en c o n tra ra m Jesus, anunciaram : “T o d o s estão


te p ro c u ra n d o !” . M ais u m a vez, a linguagem é enganosa. A palavra grega
p o r trás d e “ p ro c u ra n d o ” ( içêtein) o c o rre dez vezes em M arcos, e, em cada
ocasião, ela carreg a c o n o ta ç õ e s negativas. A s duas prim eiras o co rrên cias da
palavra re fere m -se à in terfe rên c ia d e Jesu s e à o b stru ç ã o de seu m inistério
(1.32; 3.32); as duas o co rrên cias seguintes referem -se à d escren ça e falta de
fé (8.11; 8.12); e as o co rrên c ia s re sta n te s referem -se às tentativas de m atar
Jesus (11.18; 12.12; 14.1; 14.11; 14.55).42“ P rocur[ar]” sugere u m a tentativa de
d eterm in a r e c o n tro la r, em vez d a atitu d e d e se su b m e te r e seguir. N e sse as-
pecto , p ro c u ra r Jesus n ã o é u m a v irtu d e n o evangelho d e M arcos. T am p o u co ,
as m u ltid õ es clam an d o é u m sinal d e su cesso o u ajuda p ara m inistrar. A qui,
co m o em o u tro s trech o s de M arcos, o en tu siasm o n ã o deve ser co n fu n d id o
co m fé; n a v erdade, ele p o d e se o p o r à fé.

41J. Crossan (The HistoricalJesus, p. 346-47), com correção, reconhece o conflito entre
Pedro e Jesus em 1.36, mas não há nenhum a sugestão, nem aqui nem na rejeição
de Jesus em Nazaré (6.1-6), de que esse conflito resultou, conform e argumentou
Crossan, da esperança dos discípulos e família de Jesus colherem os benefícios de
sua fama e dádivas. O problem a não é de “comissão ou corretagem ”, para citar
Crossan, mas de descrença e com preensão equivocada.
42 A ocorrência final de %êtein em 16.6 é menos pejorativa, mas aqui, também, ela
parece questionar as mulheres que buscam Jesus. E provavelmente muito especu-
lativo sugerir que Marcos, com essa referência final mais positiva, pretende sugerir
que só é possível buscar Jesus após a ressurreição.
101 M a rc o s 1.38-39

38,39 O s discípulos e v id en te m e n te q u erem q ue Jesu s capitalize sua no-


toriedade c o m o o p e ra d o r de m ilagres. Já n o p rim eiro dia de seu m inistério
público, d e ac o rd o c o m M arcos, a m issão d e Jesu s é p o sta em perigo, e isso
pelos m ais p ró x im o s dele. Jesus, n o e n ta n to , n ã o se desvia de seu p ro p ó sito ,
resp o n d en d o de fo rm a sim ples e c o m decisão: “ F o i p ara isso q u e eu vim ” .
Jesus, c o m essa declaração d esp reten sio sa, re afirm a sua com issão batism al
de serviço q u e ele c u m p re “p ro c la m a n d o as b o a s-n o v a s” (1.14,15). E m
M arcos, a palavra para “ p ro c la m ar” (gr. kêryssein), o c o rre n d o duas vezes nos
versículos 38,39, n ão se reserv a apenas à atividade d e Jesu s o u Jo ã o Batista.
U m a am p la variedade d e arautos p ro clam a o ev ang elho — Jesus, Jo ã o Ba-
tista, u m le p ro so q u e foi lim po, u m d em o n íac o cu rado, os discípulos, até
m esm o as m ultidões. O evangelho é p ro c la m ad o p o r fo n tes inesp erad as e
im prováveis, m as o assu n to d o s seus vários m en sageiro s é co n sisten tem en te
as boas-n ov as d e Jesus.43
M arcos localiza a p reg ação d e Jesus e a expulsão de d em ô n io s nas “ sina-
gogas deles” (1.39; A R A )44 O fo c o d o m in istério de Jesu s m ais u m a vez nas
sinagogas judaicas (1.21) o identifica c o m o m estre de Israel. E le n ão é, co m o
os filósofos itin eran tes d o m u n d o g re c o -ro m a n o , u m d issidente c o m estilo
próp rio n em individualista. O evangelho n ã o é revelado em u m vácuo, n em
em m o v im e n to s extáticos e v o lu n tário s, d o s quais havia u m b o m n ú m ero
na Palestina d o século I. Jesu s d irecio n a seu m inistério p ara com unidades
praticantes d a fé n o judaísm o em cu m p rim e n to de u m a h istória an terio r
da revelação (1.2,3). Sua m issão é d efin id a e direcion ada pelo co m p letar do
p ro p ó sito d e D e u s p ara Israel.

43 H á dois conjuntos de variantes textuais n o versículo 39. O prim eiro co n ju n to de


variantes diz respeito a èlthen kèryssõn (“veio preg an d o ”), favorecida p o r ‫ א‬B L Θ.
O apoio textual para essa leitura é levem ente inferior ao im perfeito perifrástico
èn kêtyssõn (“ estava preg an d o ” ; A C D K W Δ Π ), tipicam ente um a construção
m arcana. C ontudo, um a decisão no prim eiro conjun to de variantes não pode
ser traduzida à p arte do segundo conjunto de variante. O segundo conjunto de
variantes eis tas synagògas autõn (“d en tro das sinagogas deles”), ad o tad o p o r quase
todos os m anuscritos m árcanos e claram ente superior a en tais synagògais autõn (“ na
sinagoga deles”), atestado apenas nos m anuscritos m inúsculos e tardios. A variante
bem atestada eis tas synagògas autõn exige ser precedido p o r um verbo transitivo, e
isso argum enta em favor da originalidade d o transitivo èlthen, em vez do intransitivo
ên, no prim eiro conjunto de variantes.
44 As cidades visitadas p o r Jesus eram grandes os suficientes para co m p o rtar sina-
gogas, as quais exigiam dez hom ens já com barmityyah. A palavra de M arcos para
“povoados” (v. 38), kõmopoleis, tam bém sugere cidades de pelo m enos tam anho
m oderado, e não pequenos povoados. Veja Str-B 2.3-4.
M a rc o s 1.40 102

J E S U S T R O C A D E L U G A R C O M U M L E P R O S O ( 1 .4 0 - 4 5 )

M arcos, ao anexar essa história a 1.35-39, leva-nos a com preendê-la co m o


u m exem plo d o alcance m issio n ário de Jesu s n o s “p o v o ad o s vizin h o s” (v. 38)
de C afarn au m . E ssa narrativa, c o m o a an terio r, b a sta n te típica d e M arcos,
n ão ap resen ta especificidade geográfica. M arcos, assim c o m o u m a e stru tu ra
elabo rad a p o d e p reju d icar u m a g ra n d e p in tu ra, o m ite co m regularidade os
detalhes co n tex tu áis d e m o d o a n ão p re ju d ic ar o fo co essencial d a narrativa.

40 “U m lep ro so aproxim ou-se dele” n ão faz jus a esse en co n tro altam ente
p ro v o c a d o r e ofensivo. A le p ra era u m a d o en ç a d issem inada n a Palestina.
Isso fica ap a re n te n ã o só pelos vários lep ro so s q ue Jesu s e n c o n tro u em seu
m inistério, m as tam b ém pelo excesso de in stru çõ es so b re a d o en ça n a M ishná.
A lepra, naquela é p o c a c o m o agora, era u m m o tiv o de su p erstição e m edo. A
lepra é u m a d o e n ç a d a p ele e, c o m o to d as as d o enças da pele, é difícil d e ser
diagn osticad a e curada. A s co n d içõ es dessa d o en ç a são discutidas em dois
lo n g o s capítulos em L evítico 13— 14 q u e se assem elham a u m antigo m anual
so b re d erm ato lo g ia. O te rm o h eb raico tsara‘at c o b re ou tras d o en ças d a pele
além da lepra, incluindo a ferida p u ru len ta (Lv 13.18), queim aduras (Lv 13.24),
coceiras, m ico se e co n d içõ es d o co u ro cabeludo. O s escribas co n taram até
72 d o en ç as d istin tas definidas c o m o lepra. N o A n tig o T estam en to , a lepra
era em geral co n sid erad a c o m o u m a p u n ição divina, cuja cura só p o d eria ser
efetu ad a p o r D e u s (N m 12.10; 2Rs 5.1,2). O p av o r de ser c o n tam in ad o é
refletido na seguinte passagem : “ Q u e m ficar leproso, a p resen tan d o quaisquer
desses sintom as, u sará ro u p a s rasgadas, an d ará descabelado, co b rirá a p arte
in ferio r d o ro s to e gritará: ‘Im p u ro ! Im p u ro !’ E n q u a n to tiver a d o en ça, estará
im puro. V iverá sep arad o, fo ra d o a c a m p a m e n to ” (Lv 13.45,46).
Isso n ã o é apenas a descrição d e u m a d oença. E u m a sentença, cujo p ro -
p ó sito era p ro te g e r a saúde d a co m u n id ad e de um co n tag io apavorante. O
trata d o Negaim (“ P rag as”) d a M ish n á, e lab o ran d o so b re L evítico 13— 14,
discute a d issem in ação d a lep ra n ã o só em m eio às pessoas, m as tam b ém em
relação às vestes (m. Neg. 3.7; 11.1-12) e casas {m. Neg. 3.8; 12-13). O s leprosos
eram vítim as d e m u ito m ais além d a d o en ça. A d o e n ç a lhes roubava a saúde,
e a sen ten ça im p o sta a eles em razão d a d o e n ç a lhes ro u b av a o n o m e, a o cu -
pação, os h áb ito s, a família, o convívio social e a c o m u n id ad e de adoração.
O s lep ro so s, p ara evitar o c o n ta to co m a sociedade, tin h am de to rn a r sua
aparência o m ais re p u g n a n te possível. J o se fo fala d o b a n im en to d o s lep ro so s
co m o aqueles q u e “ n ão se d istin g u em d e fo rm a algum a d e u m cadáver” (Ant.
103 M a rc o s 1.41-42

3.264). A referên cia à lep ra d e M iriã em N ú m e ro s 12.12 estim ulou vários


rabis a se referir aos lep ro so s c o m o “ m o rto s-v iv o s” cuja cura era tão difícil
q u anto ressu scitar d o s m o rto s.45 O d iag n ó stico da lepra, p o rta n to , englobava
tan to as d im en sõ es m édicas q u a n to as sociais. A lepra co ntam inava a posição
de Israel c o m o p o v o san to (em b o ra n ão c o n tam in asse os gentios, u m a vez
que estes já eram c o n sid erad o s im u n d o s, m. Neg. 3.1; 11.1). O u tra s doenças
tinh am de ser curadas, m as a lep ra tin h a d e ser purificada (e.g., M t 11.5). O
relato de M arcos so b re Jesu s e o lep ro so é o e sp e lh a m en to d a im agem dessas
trágicas realidades, pois n ã o h á referência à “ cu ra” , m as há q u atro referências
ao “ p u rificar” em seis versículos.
A o fen sa da ação d o lep ro so lo g o fica aparente. Exigia-se que os leprosos
ficassem “ a certa d istância” (Lc 17.12) de cin q u en ta passos. Se u m lep ro so
entrasse em u m a casa, ele a co n tam in av a im. Negaim 12— 13), o u se ele ficasse
em baixo de u m a árv ore acabava p o r co rro m p e r to d o s que passassem em baixo
dela (m. Neg. 13.7), e n tão a a b o rd ag em desse lep ro so c o m p ro m e te o ritual de
purificação d e Jesus. O lep ro so , n ã o o b sta n te , arrisca tu d o , q u e b ra n d o a lei e
os co stu m es, n a possibilid ad e d e ser c u rad o e re sta u rad o p o r Jesus. N e n h u m
obstáculo, n e m m e sm o os d ec reto s d a T orá, o im p e d em d e se aproxim ar de
Jesus. E ssa ap ro x im ação e p o s tu ra o b seq u io sas, “ suplicou-lhe de joelhos: ‘Se
quiseres, p o d e s purificar-m e!’ ” , traem a lo n g a hu m ilh ação d e sua aflição.46
C on tud o , c o n tid o n o p ed id o d o lep ro so estão o s p rincípios d a fé d e q u e Jesus
p o d e salvá-lo. Sua fé é revelada p elo fato d e q u e ele n ã o q u estio n a a habilidade
de Jesus p ara salvá-lo, ap en as a disposição d e salvá-lo. O anseio d o lep ro so é
p ro fu n d a m e n te h u m an o , p o is ele n ão d u vida d a habilidade d e D e u s, m as
apenas de su a disp osição — se ele fará o q u e esse h o m e m pediu.

41,42 S u rp re en d en tem en te , a re sp o sta d e Jesu s n ã o é m en o s escandalosa


que a audácia d o lep ro so . D ia n te d e ta m a n h a in tru são , é possível esp erar um
judeu o b se rv a d o r se e n c o lh e r p ara se p ro te g e r e d efender. C o n tu d o , co m Je-
sus, a co m p aix ão su b stitu i o d esp rezo . Jesus, em vez de se afastar d o leproso,
volta-se para ele; n a v erdade, ele toca esse h o m e m d o e n te, fazen d o co m que

45Veja Str-B 4/2.750-51; sobre a lepra em geral, veja 4/2.743-63.


46A tradição textual grega é confusa sobre se “de joelhos” é original ou não. A tra-
dição dos manuscritos favorece sua exclusão, sendo uma palavra rara, ocorrendo
apenas uma outra vez, em Mc 10.17. Todavia, se fosse original, sua omissão po-
deria ser explicada por homoeoteleuton, ou seja, um erro do escriba causado pelos
olhos passarem inadivertidamente de uma palavra para outra que tem a mesma
sequência de letras no final. Veja Metzger, TCGNT, p. 76.
M a rc o s 1.43-44 104

tivesse c o n ta to p le n o c o m a in to cab ilid ad e ritual e física. O b raço esten d id o


d e Jesu s é u m lo n g o alcance p ara su a é p o c a ... p ara qu alq u er época. E ssa
atitu d e rem o v e as separaçõ es social, física e espiritual p rescritas pela T o rá e
tam b é m d o s co stu m es. O to q u e de Jesu s fala m ais alto q u e suas palavras; e as
palavras de Jesu s to c a m o lep ro so m ais p ro fu n d a m e n te q u e q u alq u er ato de
am o r h u m an o . Jesu s n ã o só é capaz d e curá-lo, m as tam b ém deseja fazer isso:
“ Q uero . Seja purificado!” . Jesus, d e fo rm a d iferen te d e u m rabi co m u m , não
fica co n tam in a d o n em c o rro m p id o pela d o en ç a d o lep ro so ; antes, o lep ro so
é p u rificad o e cu rad o pela san tid ad e co n tag io sa d e Jesus.
A N V I descreve Jesus c o m o “ cheio d e co m p aix ã o ” . O q u e a N V I não
o b serv a é q u e u m m an u scrito im p o rta n te e m u ito an tig o (D) traz “ cheio de
ira” . N e sse c o n te x to e v in d o d e Jesu s, a ira d e início p arece equivocada. N o
en tanto , isso p o d e a rg u m e n tar p o r sua originalidade, u m a vez que os copistas
ten d iam a m u d a r as leituras difíceis p ara o u tras m ais aceitáveis. A lém disso,
o fato de que ta n to M ateu s 8.3 q u a n to L ucas 5.13 o m ite m a palavra q u an -
d o re co n ta m essa h istó ria é m ais co m p reen sív el se a palavra original fosse
“ira” d o que se fosse “ co m p aix ã o ” . A ira p o d e n ão ser tão ofensiva q u an to
p arece ser à p rim eira vista se re c o rd a rm o s q u e D e u s, em Juizes 10.16, “ n ão
p ô d e m ais su p o rta r o so frim e n to d e Israel” , atitude m u ito parecida co m a
d em o n stra d a p o r Jesu s aqui. Se “ ira” era a leitura original, ela c o m certeza
indicava que Jesu s estava in d ig n ad o c o m a m iséria d o le p ro so (tam b ém Jo
11.33-38), po is Jesus, d e b o a v o n tad e, o cu ro u .47 M arcos, c o m o se a lepra
tivesse sido dissipada pela ira santa, declara: “ Im ed ia ta m e n te a lepra o deixou,
e ele foi p u rifica d o ” .

43,44 D e m o d o a b ru p to e firm e, “Jesu s o d esp ed iu , co m u m a severa


advertência: ‘O lh e, n ã o c o n te isso a n in g u ém ’ ” . A palavra para “ severa ad-
v ertên cia” significa literalm en te “ esfo leg ar o u b u fa r” em grego, deriv an d o
da palavra heb raica p ara ira (’ap), cujo sen tid o é “ ab rir as narinas” . A palavra
para “ d esped iu ” é tam b ém m ais fo rte em g reg o que o te rm o usado n a N V I. A
ex pressão (gr. ekballein ), em geral u sad a para expulsão de d em ô n io s, significa
que Jesus o m a n d o u em b o ra co m certa rispidez. A o rd e m para silenciar Ç‘Olhe,
n ão c o n te isso a n in g u ém ” ; g rifo d o autor) p arece ser u m a trad u ção literal

47 A leitura splangnistheis (“cheio de com paixão”) perm anece, no entanto, um a leitura


m uito forte, co n fo rm e evidenciada pelos argum entos de M etzer em seu favor
(T C G N T , p. 76).
105 M a rc o s 1.43-44

de um a in ju n ção h eb raica falada.48 O en c arg o sem sen tid o p ara o lep ro so


curado reflete a m esm a d eterm in a ção c o m q u e Jesu s o rd e n o u os d em ô n io s
a silenciar em 1.25 e 1.34. Jesu s é sério e in siste n te so b re g u ard ar o véu de
sua id en tidad e m essiânica a fim d e p reserv á-la da co m p re en são equivocada
e de re p o sta s falsas (veja A o rd e m p a ra s ile n c ia r em 1.34).
Jesus o rd e n a q ue o h o m e m siga o ritual trad icio nal de purificação, con-
form e especificado em L evítico 14 e m ais ta rd e elab o rad o em m. Negaim 14
do M ishná. O le p ro so tem p rim eiro de se m o stra r ao sacerdote. E m b o ra os
sacerdotes estivessem oficialm ente associados c o m o tem p lo cerca d e 144
quilôm etros a sul, em Jeru sa lém , n ão era in co m u m en c o n trá-lo s nas regiões
afastadas, c o m o a G alileia. O s a c e rd ó c io de A rão era u m a p o sição heredi-
tária; sacerdotes, c o m o os levitas, em o u tras palavras, n asciam sacerdotes, e
não se to rn av a m u m . Jo sefo relata que, em su a épo ca, havia cerca de vinte
mil sacerdo tes na P alestina (Ag. Ap. 2.108). E les se dividiam em 24 famílias
sacerdotais o u “ fileiras” . C ada fileira precisava se ap re sen tar em Jeru salém
a fim d e serv ir os p ereg rin o s nas principais festas d a P ásco a (prim avera),
Pentecostés (ou F esta das sem anas, final da prim avera) e D ia da E xpiação,
seguido pela F esta das C ab an as (ou T ab ern ácu lo s, n o o u to n o ). D e sd e en-
tão, cada fileira d e sacerd o tes serv ia n o tem p lo p o r u m a sem ana, duas vezes
anualm ente. A s tarefas d e um sacerdote, p o r conseguinte, eram cum pridas em
algumas sem an as d o ano. D e a c o rd o co m a Carta deAristeias (92— 95), essas
tarefas incluíam oficiar a adoração, queim ar incenso, co n d u zir a liturgia, aceitar
sacrifícios e ofertas, o u v ir confissões e, acim a de tud o , m atar os anim ais para
o sacrifício. O serv iço d e u m sacerd o te, nessa ro ta ç ã o deles, n ão era m u ito
pesado, m as, n as festas, o serviço sacerd o tal n o te m p lo p o d eria ser longo,
exigindo m u ito deles. A ssim q u e as tarefas d o tem p lo fo ssem cum pridas, os
sacerdotes ficavam livres p ara re to rn a r p ara suas casas, m esm o que, co m o
aqui, fosse n a d istan te Galileia. Eles, em p erío d o s em q u e não trabalhavam
no tem plo, serviam c o m o escribas, juizes e m ag istrad os em seus respectivos
locais.49
U m a possib ilid ad e legal d o s sacerd o tes envolvia p ro n u n c ia m en to s con-
cem ente às doenças: “ só o sacerd o te p o d e p ro n u n c ia r peprosos] im u n d o s ou
purificados” (m. Neg. 3.1; ta m b é m L v 13.50; 14.2-4). U m a vez q u e era tarefa

48 Hora —dh (também Êx 28.40). Veja A. Schlatter, Der EvangelistMatthaus (Stuttgart:


Calwer Verlag, 1959), p. 272.
49Sobre o sacerdocio, veja E. P. Sanders, The HistoricalFigure ofJesus (London: Pen-
guin Press, 1993), p. 41-43.
M a rc o s 1.45 106

d o sac erd o te g aran tir a p u reza ritual de Israel, a in sp eção de alegados casos
de lepra d ese m p e n h av a u m p ap el n atu ral em seu trabalho. Se um a n o ta de
saúde fosse em itid a e certificada p o r escrito {m. Neg. 8.10), a p esso a curada
era in stru íd a a a p resen tar d u as aves, u m a das quais era m o rta n o tem p lo em
Jerusalém . A o u tra ave era m erg u lh ad a n o sangue d a ave m o rta e libertada.
A p ó s esp e rar p o r u m p e río d o d e o ito dias, a p esso a cu rad a ainda trazia três
co rd eiro s p ara o sacerdo te, um pela o fe rta p elo p ecado, u m pela o fe rta de
culpa e u m p ara o h o lo cau sto o u o fe rta queim ada (Lv 14.10,11; m. Neg. 14.7).
Se o suplicante fosse m uito p o b re para ap resen tar três cordeiros, u m a redução
na o fe rta era p erm itida.

45 E sse era o p ro to c o lo p ara a purificação d e u m leproso. O fato de Jesus


o rd e n a r o h o m e m a seguir tu d o p re scrito pela lei revela q u e ele h o n rav a a
lei m osaica. A G alileia, é claro, ficava m u ito d istan te d e Jeru salém , e o sacri-
fício p re scrito p o d ería ser feito n a visita seguinte desse h o m e m ao tem plo,
p resu m iv elm en te em u m p e río d o d e festa. N e sse ín terim , as notícias de sua
cu ra co m eçam a se espalhar. Se esse h o m e m seguiu o ritual de purificação
p rescrito o u n ã o é algo q u e n ã o ficam os sabendo. Só sab em o s q u e ele não
o b ed e ce u à o rd e m de Jesu s p ara silenciar. “ E le, p o ré m , saiu e co m e ç o u a
to rn a r p ú b lic o o fato, e sp a lh a n d o a notícia.” A sin cerid ad e e hu m ild ad e
d o le p ro so (1.40), ap ó s ser cu rado, tra n sfo rm o u -se em com p lacên cia e até
m esm o descaso. U m a iro n ia adversa resulta dessa atitu d e d o leproso. Jesus
lib erto u o le p ro so de seu fardo, m as este, ao an u n ciar as notícias, im p ô s um
fardo p ara Jesus, p o is ele “ n ão p o d ia m ais e n tra r p u b licam en te em n e n h u m a
cidade, m as ficava fora, em lugares solitários” .
M arcos c o m eç o u essa h istó ria co m Jesus d e n tro e o lep ro so fora. N o fim
dela, Jesu s está “ fora, em lugares solitários” . Jesus e o lep ro so tro caram de
lugar. Jesus, n o início de seu m inistério, já é um de fo ra n a sociedade hum ana.
M arcos o re tra ta n o pap el d o S ervo d o S e n h o r que carrega as iniquidades dos
o u tro s (Is 53.11), e o c o m p o rta m e n to deles faz co m que Jesu s seja “ co n ta d o
en tre os tra n sg re sso re s” (Is 53.12)
capítulo três

Os problemas com as autoridades


M A R C O S 2 .1 — 3 .12

M arcos re to rn a a ação p ara C afarn au m o n d e, em u m a sequência de cinco


narrativas com pactas, o ferece u m vislum bre so b re a au to ridade de Jesus. C ada
história reflete a vida diária em C afarn au m e em seus arred o res, e, c o m exce-
ção da p rim eira h istó ria, cada u m a é ap ro x im a d am en te d o m esm o tam anho.
A prim eira h istó ria co m eça co m o u tra cura, m as in e sp erad am en te se volta
para u m a p e rg u n ta s o b re a id en tid ad e de Jesu s (2.1-12). E n tã o , Jesus, em um
m ovim ento in au d ito ch am a u m h o m e m q u e an d a em m á co m p an h ia, um
publicano, p ara se ju n tar a seu g ru p o de seguidores (2.13-17). A isso se segue
p ro nunciam entos so b re o jejum (2.18-22) e o sáb ado (2.23-28), duas questões
de considerável in teresse na é p o c a de Jesus. M arcos co m p leta a sequência
mais um a vez n a sinagoga d e C afa rn au m o n d e u m a cura n o sábado traz um
julgam ento ho rrív el c o n tra Jesu s (3.1-6). E m cada u m a dessas histórias, Jesus
entra em co n flito co m as au to rid ad es religiosas, p rin cip a lm en te os fariseus
(2.16,18,24; 3.6), m as tam b ém co m os m estres d a lei (2.6) e h ero d ia n o s (3.6).
E m cada u m desses episó d io s, Jesu s su p lan ta a T o rá e a tradição do s anciãos,
m ostrando o q u e a c o n tece q u an d o o M essias se to rn a p ú blico, d e stru in d o os
costum es e co n v en ções da época. O evangelho d e jo ã o relata que “ [a Palavra]
veio para o q ue era seu, m as os seus n ão o receb eram ” (1.11). E ssa colagem de
cinco histórias é u m a b o a elab o ração e co m en tá rio dessa declaração.1M arcos
conclui a série d e histórias c o m u m re su m o d a au to rid a d e de Jesu s so b re os
poderes hostis, físicos e espirituais, e u m a seg u n d a co n fissão d os d em ô n io s
de que ele é o F ilh o de D e u s (3.7-12).

1 Veja a breve discussão de D. E . N in eh am sobre as cinco histórias de conflito em


2.1— 3.6 em The Gospel o f S t M ark, p. 88-89.
M a rc o s 2.1-4 108

A A U T O R ID A D E D O F I L H O D O H O M E M (2 .1 -1 2 )

O s te m p o s verbais g reg o s dessa narrativa p o d e m p ro v e r um a pista sobre


sua com posição. A cu ra d o paralítico se assem elha a u m a histó ria m ais antiga
apresentad a n o te m p o p resen te (em grego, 2.3-11) que M arcos estru tu ra com
u m a in tro d u ç ã o e co n clu são n o te m p o p re té rito (mais um a vez em grego,
w . 1 ,2 /1 2 ). A n arrativa n o te m p o p re se n te n o s versículos 3-11 tem um a
qualidade d e te ste m u n h o o cular que, d e m o d o concebível, deriva-se d e Pedro.

1 A frase “ p o u c o s dias d e p o is” sep ara a narrativa p re sen te d a viagem de


pregação d e Jesus relatada em 1.35-45. A n o to ried ad e d e Jesus está crescendo,
e esp alh ou -se a n o tícia d e q ue ele “ estava em casa” . O g re g o en oikõi, que
p o d e ser trad u z id o p o r “ em casa” , sugere u m local familiar, presu m iv elm en te
a casa d e P e d ro d e 1.29 (veja a descrição em 1.29). O s telh ad o s das casas
palestinas, acessíveis p o r escadas d e p e d ra externas, eram tipicam ente planos,
ap oiad os p o r vigas en co stad as nas p ared es externas da casa. A s vigas eram
cruzadas p o r estacas e ripas m e n o re s, as quais eram co b ertas co m palha, e
esta, p o r sua vez, era c o b e rta c o m u m a cam ad a de b arro (daí a referência a
“rem o v e ram p a rte d a c o b e rtu ra ” , v. 4). O nível d o teto , necessitan d o d e u m a
correção periódica da superfície co m u m ro lo d e teto , funcionava m u ito co m o
os deques d e h o je em dia, o fe re c e n d o alívio d o s c ô m o d o s ú m id o s abaixo,
acesso ao a r fresco e u m lugar p ara secar a ro u p a, c o m e r e até m e sm o o ra r
em solitude (veja A t 10.9).

2 -4 U m a m u ltid ão de p esso as se acotovela à p o rta d a casa o n d e Jesus


está (1.33). A multidão d e se m p e n h a u m papel im p o rta n te n o evangelho de
M arcos.2 M arcos atesta d a p o p u larid a d e d e Jesu s n a G alileia ao se referir à
m u ltid ão p e rto d e q u aren ta vezes antes d o capítulo 10. A s m ultidões fo rm a m
audiências p ara seu e n sin a m e n to e são o b je to d a co m paixão d e Jesus, m as
M arco s jam ais d escrev e as m u ltid õ es se v o ltan d o a Jesu s em a rre p e n d im e n to
e crença, c o n fo rm e exige o evangelho (1.15). Q u a n to à co m p re en são e à fé,
as m ultidõ es em geral d e m o n stra m passividade e, c o n sid eran d o -se a redu-
ção súbita delas apó s o e n sin a m e n to de Jesu s em C esareia d e F ilipe em que
ele fala so b re o so frim en to , d e m o n stra m até m e sm o m aio r in constância. O
atrib u to m ais c o m u m das m u ltid õ es em M arcos é que o b stru e m o acesso

2 Ochlos, 38 ocorrências; polys, em referência às multidões, 14 ocorrências. Sobre as


multidões em Marcos, veja D. Kingsbury, The Christology of Mark’s Gospel (Phila-
delphia: Fortress Press, 1983), p. 78-80.
109 M a rc o s 2.1-4

a Jesus. A ssim , ap esar d a p o p u larid a d e d e Jesus, as m u ltidões n ão são um a


m edida d o sucesso em M arcos. E las co n stitu em “os de fora” que d em o n stram
am bivalência o u o p o sição a Jesus. E n tã o , Jesu s m ascara seus en sin am en to s
para elas em p aráb o las (e.g., 4.33,34; 7.17). É b astan te in teressan te o b serv ar
que as palavras gregas p ara “m u ltid ão ” (ochlos) e “ casa” {oikos) p ro d u z e m um a
rim a co m aliteração. E m M arcos, as casas o u locais reservados, p o r contraste,
provêm cen ário s p a ra a revelação e en sin o especiais p ara os discípulos e os
que p erte n c e m ao g ru p o íntim o.34Só em particular é que Jesu s explica as coisas
claram ente a seus discípulos e p erm ite v islu m b res, se possível, d e sua filiação
divina. O c o n tra ste en tre “ m u ltid ão ” e “ casa” ajuda a ilu strar um tem a m ais
am plo em M arco s, aquele en tu siasm o p o r Jesu s e até a p ro x im id ad e dele n ão
são o m esm o q ue fé — e p o d e m até se o p o r a ela (e.g., 11.1-11).
O q u e atrai essas m u ltid õ es a Jesu s? M arcos o fe rece o re su m o m ais
simples possível: “ ele lhes pregava a palavra” . M arcos, em algum as ocasiões,
descreve a m en sag em d e Jesu s apenas c o m o “ a palavra” (2.2; 4.33; 8.32), p o r
m eio da qual ele q u er d izer a m en sag em d o “ evangelho d e D e u s ” (1.14,15).
Mais q u e q u alq u er o u tra ex p ressão n o cristian ism o prim itivo, “ a palavra”
define a essência d o m in istério d e Jesus. E m especial em M arcos, que raras
vezes reg istra o c o n te ú d o d o en sin o d e Jesus, é possível, equivocadam ente,
p ressu p o r q u e o m arav ilh am e n to das m u ltid õ es se deve aos m ilagres e m ara-
vilhas fascinantes. A o c o n trá rio , a p ro clam ação d o evangelho é tão essencial
para o p ro p ó s ito d e Jesu s q u e M arco s p o d e incluir to d o o m inistério d o
M estre n e sta frase: “ ele lhes p regava a palavra” . A v erd ad e q u e ele p ro clam a
é a m esm a v erd ad e que ele in co rp o ra, e, diante dela, seus o u vintes n ão p o d em
perm an ecer passivos. A “palavra” exige de seus o u v in tes um a re sp o sta de fé
que só p o d e re m e te r a Jesus.
O en sin am en to d e Jesus em casa em C afarn au m , n o entanto, é o co n tex to
para u m a h istó ria m ais im p o rta n te . M arcos in tro d u z o ep isó d io d o paralítico
pela dinâm ica d o te m p o verbal n o p re se n te (em g rego ), to rn a n d o co n tem p o -
rânea a narrativ a e en fatizan d o sua im ediação p ara o leitor: “ trazen d o -lh e um
paralítico, carre g ad o p o r q u a tro deles” (2.3)7 O a m o n to a d o d e pessoas n o
pátio está im p e d in d o u m g ru p o n ecessitad o de ch e g ar a Jesus. F azer p a rte da
m ultidão em to rn o d e Jesu s n ão é o m esm o q u e ser discípulo de Jesus. A m ui-

3 Oikos: 2.1; 7.17; oikia: 7.24; 9.33; 10.10; kata monas: 4.10; katidian: 4.34; 6.31,32;
7.33; 9.2,28; 13.3.
4 O fato dessa frase em grego ser um tanto inábil, e que tanto Mateus 9.2 quanto
Lucas 5.18 a melhorarem, argumenta pela prioridade marcana.
M a rc o s 2.5 110

tidão fica ali e o b serv a; os discípulos têm de se e m p e n h a r n a ação, co n fo rm e


ilustrado pelo corajoso g ru p o de q u atro deles. Se n ão é possível en c o n trar um a
ab ertu ra p ara Jesu s, en tão é p reciso fazer um a. E ssa é a descrição d e fé: ela
rem overá qu alq u er o b stáculo — até m esm o u m telhado, se necessário — para
ch egar até Jesus.56A re m o ç ão d o telh ad o p o d e te r d e rra m ad o d esresp eito e
tam b ém sujeira n o s co n v id ad o s em baixo d o b u raco feito. O T alm ude (b. Mo’ed
Q. 25 d) c o n ta u m a h istó ria p arecid a co m essa (em bo ra três séculos depois)
so b re a m o rte d o rabi H u n a (297 d.C.), cujo esquife era m u ito g ra n d e para
p assa r pela p o rta d e su a casa. F oi su g erid o q u e o esquife fosse tirad o através
d o teto, ao q u e os discípulos d e H u n a p ro testaram : “A p re n d em o s co m ele
q u e a h o n ra de u m m e stre exige acesso p ela p o rta ” . N o caso d o rabi H u n a,
a p o rta foi alargada.

5 Jesus, n ã o o b sta n te , n ão se o fe n d e u p o r aqueles h o m e n s rem o v erem o


telhado, m as encorajou-os. Q u a n d o ele vê “ a fé que eles tinham , Jesus disse ao
paralítico: ‘Filho, o s seus p ec ad o s estão p e rd o a d o s ’ ” (2.5). O u so d e “ filho”
(gr. teknorr, ta m b é m 10.24; L c 16.25; J o 13.33; l j o passim) p ara se dirigir ao
paralítico p ro v av elm en te reflete o te rm o h eb raico beni, “ m eu filho” . E m ais
q ue u m te rm o ca rin h o so o u afetu o so , em b o ra seja isso tam b ém . E basica-
m en te u m te rm o d e u m su p erio r q u e age co m au to rid a d e e b en e v o lê n cia/’
A prim eira m e n çã o de fé (2.5) em M arcos liga de fo rm a relevante a fé
à ação, e n ão co m c o n h e c im e n to o u sen tim en to . N ã o sab em o s n ad a so b re
as crenças d o s q u a tro am igos d o paralítico, exceto pelo fato de q u e agiram ,
ação essa in clu in d o ro d e a r as m u ltid õ es e re m o v e r o telh ad o p ara g aran tir
que aquele so b sua resp o nsab ilid ad e chegasse até Jesus. A fé é em prim eiro
lugar con fian ça ativa d e q u e Jesu s é suficiente p ara n ossas m ais p ro fu n d as e
m ais sinceras n ecessidades, e n ão co n h e c im e n to so b re Jesus.
A q u estão so b re se “ a fé q u e eles tin h a m ” inclui a fé d o paralítico n ão é
trata d a n o s tex to s relevantes d o evangelho (M t 9 .2 // M c 2 . 5 / / L c 5.20). P or
u m lado, é difícil im ag in ar os q u a tro carreg ad o res tra z e n d o o paralítico até
Jesus c o n tra a v o n ta d e dele; ce rtam en te, c o n fo rm e o b serv a L agrange, seria

5 A tradição textual divide-se entreprosenenkai (“oferecer”),prosengisai (“aproximar-se”)


e proselthein (“aproxim ar-se”) no versículo 4. E m b o ra a segunda leitura afirm e ter
o mais forte apoio nos m anuscritos, é provável, com o M etzger sugere (T C G N T ,
p. 77), que a ausência de objeto direto (exigido p o r prosenenkai) induziu os copistas
a substituir as duas outras palavras que não necessitam de o b jeto direto.
6 Sobre teknon (“ filho”), veja W. G ru n d m a n n , D as Evangelium nach M arkus, p. 56-57.
111 M a rc o s 2.5

um caso ra ro se u m paralítico n ã o esperasse se r cu rad o d e sua d o en ça.7 N ã o


o bstante, o p ro n o m e plural (“ a fé que eles tinham‫■ ״‬
, g rifo d o autor) inclui a fé
dos carregad o res, e isso n ã o n o s deveria s u rp re e n d e r d e fo rm a algum a. O s
evangelhos p re serv am várias instâncias d e Jesu s c u m p rin d o a p etição de um
grupo em fav o r d e o u tro .8 O p o d e r d e Jesu s é d e fato fo rtalecid o nas curas
intercessórias, pois a cu ra n ã o p o d e ser atrib u íd a à a u to ssu g estão n em à
preparação in te rn a d a vítim a.9 Jesus, p o r co n seg u inte, revela a si m esm o ao
paralítico p o r in te rm é d io d a fé; e os evangelhos p arecem m ais p re o cu p ad o s
com o fato d a fé q ue co m os agentes específicos d a fé.101
O rela cio n am en to en tre o p ec ad o e a d o e n ç a im plícito em 2.5 é d e m aio r
interesse. N ã o é provável q u e Jesu s levante a p erg u n ta d o s p ecad o s d o para-
lítico p ara p ro v o c a r os m estres da lei e p ro v e r u m a ocasião p ara d e m o n stra r
sua autorid ad e. N ã o é característico d e Jesu s usar u m a p esso a p ara u m m o-
tivo velado. P o r que, p o rta n to , Jesu s m e n cio n a ex p ressam en te os p ecados
do h o m em ? A m aioria d o s co m en taristas tip icam en te n egam que havia algo
incom um o u n o tó rio so b re o p ec a d o d o paralítico, in sistindo, antes, q u e a
resposta d e Jesu s trata d a c o n e x ão inevitável e o rg ân ica e n tre o p ec ad o e a
doença característica d e to d a a h u m a n id a d e .11 E m b o ra afirm a n d o a verdade
geral dessa visão, vale a p en a co n sid erar se ela explica to talm e n te p o r que só
aqui Jesus, d en tre todas as curas realizadas p o r ele, correlaciona explícitam ente
pecado e en ferm id ad e. A lém disso, “ seus p e c a d o s” p arece tra ta r de pecados
específicos, e n ão da co n d içã o geral d o pecado. P arece possível que a fo rm a

7 M.-J. L agrange, Evangile selon Saint Marc, p. 35.


8 Por exemplo, o pai que pediu para Jesus curar sua filha (5.21-43); a m ulher siro-fenícia
que im plora ajesus para que cure a filha possuída p o r dem ônio (7.24-30); o oficial do
rei que roga a je s u s p o r seu filho (Jo 4.46-53) ou o centurião que pede pelo servo
(Mt 8.5-13).
9 E. Schweizer, The Good News According to M ark, p. 61.
111O bserve as palavras felizes de Schlatter sobre esse ponto: “W ird die Bitte zur Für-
bitte, so w ird sie dadurch nicht geschwãcht; vielm ehr gilt ihr gegenüber erst recht
die Regei Jesu, dass er keinen G lauben zerstõrt” (“A petição não é enfraquecida p o r
se to m ar intercessão; um a intercessão ilustra ainda m elhor a regra de Jesus, que não
é destruir a fé” ; D er Evangelist Matthaus [Stuttgart: Calwer Verlag, 1959], p. 297-98).
11 U m problem a com essa linha de pensam ento é que ela perpetu a (conscientem ente
ou não) a ideia de que a doença é o resultado do pecado, ideia característica do
judaísm o da época de Jesus (veja a evidência reunida em Str-B 1.496). Algumas
doenças e infortúnios, é claro, resultam do pecado, m as não to d o s eles (e.g., Lc
13.1-5). D e acordo com Jo ão 9.2,3, Jesus nega a equação categórica de pecado
com doença. O fato de n enhum a outra cura de Jesus com binar expressam ente
enferm idade com pecado parece sugerir que o pecado d o paralítico precisa ser
perdoado antes que sua paralisia seja curada.
M a rc o s 2.6-7 112

c o m o Jesu s se dirige ao paralítico reflita o co n h e cim en to d e seus p ecad o s


pessoais, e o rela cio n am en to d estes co m sua paralisia. N ã o h á n ad a m ais
característico d a p esso a q u e seus pecados. Jesus, p o rta n to , trata d o paralítico
n a esfera m ais p ro fu n d a d e seus pecad o s, e isso p o d e ser p artic u la rm en te
ap ro p riad o p ara que o paralítico n ão ache que a fé d o s am igos é u m substitu to
aceitável p a ra su a p ró p ria re sp o sta a Jesus.

6,7 A m en ção d o p erd ão d o s p ec ad o s cria u m a reviravolta in esp erad a


n a história. O paralítico n ão fo ra trazid o p o rq u e acreditava que seus p ecad o s
precisassem ser p e rd o ad o s, m as p o rq u e queria ser cu rad o da paralisia. A o
o u v ir so b re o p e rd ã o d o s p ecad o s, a h istó ria m u d a a b ru p ta m e n te d o para-
Utico p ara os m estres d a lei. E ste s n ão reivindicam o p erd ão d o s p ecad o s e
se escandaU zam q u a n d o Jesu s o u sa fazer isso. Jesu s e os m estres d a lei m ais
u m a vez se d e fro n tam , e m b o ra n ã o so b re o en sin am e n to c o m o em 1.21-28,
m as s o b re a p re su n ç ã o d e Jesu s d e p e rd o a r pecados. O que co m e ç o u co m o
u m a cu ra re c o n fo rta n te tran sfo rm a-se d e rep en te em u m c o n fro n to perig o so
so b re a au to rid a d e religiosa.12
O s judeus c o m u m e n te acreditavam que o p ecad o era a causa da d o en ça
0Ó 4.7; J o 9.2; T g 5.15,16), m as, u m a vez q u e o p e rd ã o do s p ecad o s era um a
p re rro g ativ a exclusiva d e D e u s, os judeus que o peravam cu ra p ro n u n ciav am
o p e rd ã o d o s p ec ad o s raríssim as vezes, se algum a vez, em suas curas.13 À
p a rte d o ato d e absolvição n o D ia d a E xpiação, n em m esm o o su m o sacer-
d o te p o d ia p e rd o a r pecad o s, n e m p ro m e te r isso, q u er p ara u m indivíduo

12 K losterm ann tenta minimizar o fato de Jesus perdoar o pecado argum entando que ele,
com o um sacerdote, apenas media o perdão de D eus para o paralítico: “O uso passivo
de aphientai significa: ‘D eus perdoa você!’Jesus, p o r conseguinte, não perdoa p o r si
m esm o, mas, antes, arrisca estender de si m esm o o perdão divino para aquele cuja
doença o m arcou com o ‘pecador contra D eus’ ” (Das Markusevangelium, p. 23). Essa
afirm ação não faz justiça à autoridade radical de Jesus no versículo 5. Jesus não diz,
por exemplo, com o o fez N atã falando com Davi, “ O S enhor perdoou o seu pecado”
(2Sm 12.13). Jesus afirm a que ele m esm o afasta os pecados, assum indo claramente,
portanto, o lugar de Deus. Além do mais, Jesus não afirm a perdoar pecados contra
si m esm o (o que estaria em seu poder hum ano fazer); mas, sim, perdoar pecados
contra o outro (w. 5,10). J. D. G. D u n n observa corretam ente: “é impossível suavizar
a força cristológica de 2.7,10: Jesus é capaz de perdoar pecados e tem autoridade para
isso, não apenas para declará-los perdoados” (Jesus, Paul, and the Law: Studies in M ark
and Galatians [Louisville: W estm inister/John K nox, 1990], p. 27).
13 U m texto de C unrã publicado recentem ente correlaciona a cura de um a úlcera
com o perdão dos pecados (4Q P rN ab). E m b o ra esse seja um texto notável, o
divinador judaico perd oa os pecados em nom e de D eus, ao passo que Jesus profere
o perd ão p o r sua própria autoridade. Veja R. G undry, M ark, p. 116.
113 M a rc o s 2.8-9

quer p ara a co n g reg ação coletivam ente. “ Q u e m p o d e p e rd o a r pecados, a


não ser so m en te D e u s?” , re sp o n d e m os m estres d a lei. E les estão certos. Só
D eus p o d e p e rd o a r os p ecad o s (Ê x 34.6,7; SI 103.3; Is 43.25; M q 7.18). N a
realidade, n e m m e sm o o M essias afirm aria tal p o d er. A descrição clássica
do M essias em Salmos de Salomão 17— 18 fala q u e ele d o m in ará os dem ô n io s,
introduzirá u m g o v e rn o p erfeito , julgará os ím pios, salien tan d o sua jusdça
e até m esm o de seu ser im acu lad o (17.36), m as n ão de sua habilidade para
p erdo ar pecados. Strack e B illerbeck co n clu em c o rre ta m e n te q u e “ n ão existe
nenhum lugar q ue co n h eçam o s em que o M essias tem autoridade para p roferir
o perdão d o s p ec ad o s p o r seu p ró p rio p o d e r (‘M ac h tv o llk o m m en h eit’). O
perdão d o s p e c a d o s co n tin u a em to d o s os tex to s a ser d ireito exclusivo de
D eus” .14 A razão é q ue em to d o p ecad o , até m esm o no s p ecad o s co m etid o s
ostensivam ente só c o n tra o p ró xim o, D e u s é a p arte m ais o fendida. P o rtan to ,
Davi, em seu ad u ltério co m B ate-S eba e o assassinato de U rias, p ec ad o esse
que queb ra p elo m e n o s três o u talvez q u a tro leis d os D e z M an d am en to s,
confessou a D eu s: “ C o n tra ti, só c o n tra ti, p eq u e i” (SI 51.4).

8,9 Jesus, sem n in g u ém lhe d izer nada, c o n h e ce a crise na m en te dos


m estres da lei — e, a p a ren tem e n te , a desejou! Q u a n d o M arcos diz: “Jesus
percebeu lo g o em seu esp írito ” (veja 8.12; J o 2.25), ele q u er dizer m ais que
co nh ecim ento h u m an o ; Jesu s n ão só c o n h e ce os p ec ad o s d o paralítico, m as
tam bém co n h e c e o co ração d o s m estres da lei. E ste s n ã o têm nad a a dizer
sobre a co n d içã o espiritual o u física d o h o m em . Jesu s tem algo que dizer
para essas duas facetas da v id a d o paralítico, m as o q u e ele diz o fe n d e p ro -
fundam ente os m estres d a lei. “ E s tá blasfem an d o !” (2.7), clam am eles.15 A
blasfêm ia era p u n id a c o m a p e n a de m o rte (Lv 24.16).16

14Str-B 1.495.
15O livro apócrifo Atos dePilatosdeixa passar a autoridade de Jesus para perdoar pecados
e apresenta a cura do paralítico com o um exemplo de violação do sábado: “Então
um dos judeus veio para a frente e perguntou ao governador [Pilatos] se podia falar
uma palavra. O governador disse: ‘Se deseja falar algo, diga’. E o judeu disse: ‘Por
38 anos fiquei em uma cama, angustiado e com dores, e quando Jesus veio, muitos
demoníacos e aqueles doentes com várias doenças foram curados por ele. E um
jovem se apiedou de mim e me carregou com cama e m e trouxe até ele. E quando
Jesus me viu, sentiu compaixão e disse-me: ‘Pegue sua cama e ande’. E peguei minha
cama e andei. O judeu disse a Pilatos: ‘Pergunte a ele que dia da semana era quando
ele me curou’. O hom em curado disse: ‘Era sábado’ ” (Acts Pil. 6:1; citado dej. K.
Elliott, TheApocryphalNew Testament [Oxford: Clarendon Press, 1993], p. 175).
1Í' O medo da blasfêmia levou os judeus a evitar proferir o nom e divino sempre que
possível. Seguindo Núm eros 15.30, a Mishná decreta a expulsão da comunidade
E x c u rs o : O F ilh o d o hom em 114

10,11 Jesu s p o d e cu ra r a paralisia d e u m h o m em ; a q u estão m ais am pla é


se ele p o d e cu rar a paralisia espiritual do s m estres d a lei. E stes, p ara a o b ra de
D eu s, são tão d ep e n d e n te s d e Jesu s q u a n to o paralítico, m as o ap ren d izad o
e a p o sição deles p o d e deixá-los m e n o s co nscientes dessa necessidade. Jesus
q u e r que eles saibam (v. 10) isso, o u seja, ex p e rim en tem em p rim eira m ão a
au to rid ad e p o r m eio da qual ele p o d e p e rd o a r p ec ad o s (v. 9). N o versículos 7,
os m estres d a lei p erg u n ta m q u em “ p o d e ” (gr. dynatai) p e rd o a r p ecad o s, ou
seja, q u em te m essa habilidade. Jesu s declara q u e o F ilho d o h o m e m não só
tem habilidade p ara p e rd o a r pecado s, m as ta m b é m tem autoridade p ara fazer
isso. A palavra p ara “ au to rid a d e” (exousia) é a m esm a palavra usada para des-
crever o e n sin o de Jesu s e a expulsão de d em ô n io na sinagoga de C afarn au m
(1.21-28). D a p ersp ectiv a h u m an a, é segu ro p ro fe rir o p erd ão d o s pecados,
um a vez q u e essa asserção n ão p o d e ser falsificada. Jesus, n o en tan to , p ro v erá
evidência d o p e rd ã o d o s p ec ad o s c u ra n d o o paralítico, ev en to que p o d e ser
o b se rv a d o p o r to d o s. Sua au to rid a d e p ara p erd o ar, n ão m en o s eficaz p o r sua
invisibilidade, será c o m p ro v a d a pela cura d o paralítico. A au to rid ad e p ara
cu rar e a au to rid a d e p ara p e rd o a r são a m esm a au toridade. “ ‘M as, p ara que
vocês saibam q u e o F ilh o d o h o m e m te m na terra au to rid ad e p ara p e rd o a r
p ec a d o s’ — disse ao paralítico — ‘eu dig o a você: L evante-se, peg u e a sua
m aca e vá p a ra casa’.”

12 M arcos relata que o paralítico “ se levantou, p eg o u a m aca e saiu à vista


de to d o s ” . A ssim , em re sp o sta à p erg un ta: “ Q u e m p o d e p e rd o a r pecados,
a n ão ser so m e n te D e u s?” , os o u v in tes e os leitores são co n v id ad o s a su p rir
o n o m e de Jesus. A v itó ria d e Jesu s so b re a d o en ç a e o p ec ad o é co m p leta,
pois Jesus faz o q u e só D e u s p o d e fazer. A singularidade d o ev en to é ecoada
n a exclam ação d a m ultidão: “N u n c a vim o s n ada igual!”

Excurso: O Filho do homem (2.12)


“ F ilh o d o h o m e m ” , títu lo q ue o c o rre pela p rim eira vez em M arcos no
versículo 10, é u m títu lo am bíguo, to ta lm e n te livre das co n o taç õ es m ilitares
e políticas associadas co m o M essias. O título, em si m esm o, n ão p arece te r
feito algum a afirm ação especial aos o u v id o s d o s c o n te m p o râ n e o s d e Jesus.
E m n e n h u m tre c h o as p esso as p arece m su rp reen d id as de que Jesu s se cha-
m e d e “ F ilh o d o h o m e m ” , p o r exem plo, n em fizeram objeção p o r ele fazer

com o punição por tom ar o nom e de Deus em vão (m. Ker. 1.1-2; m. Sanh. 7.5). A
mesma punição foi decretada em Cunrã por proferir o nom e de Deus frivolamente
(1QS 7).
115 E x c u rs o : O F ilh o d o hom em

isso. “ F ilho d o h o m e m ” , p o r co n seg u in te, o ferece a v an tag em d e u m título


desim pedido d e associações indesejáveis, d a n d o a Jesu s a possibilidade de
falar de si m e sm o em público, n a v erd ad e c o m freq u ên cia dian te d a o p o sição
e hostilidade, d e u m a fo rm a q u e os ouvintes p o ssam d esco b rir sua identidade,
se conseguirem d esco b ri-la d e algum m odo.
H á q u a to rz e o co rrên c ia s d o títu lo “ F ilh o d o h o m e m ” em M arcos, e só
proferidos p o r Jesus. O “ F ilh o d o h o m e m ” , c o m o n o s o u tro s sinóücos, é
dividido em três categorias em M arcos. E m três ocasiões (8.38; 13.26; 14.62),
o título o c o rre em c o n te x to s apocalíticos, c o m o em seu u so em D an iel 7 e
lEnoque 37— 69, em q ue se refere ao F ilh o d o h o m e m v in d o em julgam en-
to. O títu lo se refere duas vezes à autoridade te rre n a de Jesu s p ara p e rd o ar
os pecado s (2.10) e su p lan tar o sáb ad o (2.28). O u so m ais p ro e m in e n te , n o
entanto, diz re sp eito ao sofrimento d e Jesu s (nove o corrên cias: 8.31; 9.9,12,31;
10.33,45; 14.21 [duas vezes], 41). C ada u m a das três categorias se refere a
um atrib u to divino, o u , c o m o n o caso da terceira, ao c u m p rim e n to de um
p ro pó sito d iv in am en te o rd e n ad o . Fica, p o rta n to , ap a ren te que “ F ilho do
hom em ” n ão é, c o n fo rm e se su p õ e co m freq u ên cia hoje, m era m en te um a
circunlocução p ara “ o h u m a n o ” . N a p assag em em q u estão (2.10), “ F ilho do
h om em ” descreve a au to rid a d e de Jesu s de p e rd o a r pecados, alud in d o p o r
meio d isso à figura d o “ filho d e h o m e m ” em D an iel 7.13,14 que, d o m esm o
m odo, é cap acitad o co m a au to rid a d e de D e u s (“vi alguém sem elh an te a um
filho de h o m em , [...] E le receb eu au to rid ad e [LXX, exousia], glória e o rein o ”).
A au to rid a d e d o F ilh o d o h o m e m , n ão o b sta n te , é p re d o m in a n te m e n te
exibida n a hum ilhação, n o so frim e n to e na m o rte .17 “ F ilho d o h o m e m ” —
com o “ F ilh o d e D e u s ” , o títu lo m ais im p o rta n te em M arcos p ara Jesu s —
inclui o so frim e n to c o m o seu c o n te ú d o principal. Isso é re p resen ta d o pela
maioria de seus u so s n o evangelho. E m cinco d e seus nove uso s relacionados
ao sofrim en to , Jesu s é “ traíd o ” (gr. paradidonai) nas m ãos d o s pecadores. A

17Em um artigo notável por sua brevidade e sensibilidade, C. F. D. Moule, “ ‘The


Son o f M ari: Some o f the Facts’ ”, N TS 41 (1995), p. 277-79, salienta a associa-
ção do “Filho do hom em ” com um indivíduo (em oposição a um a compreensão
popular do term o) que precisa sofrer: “Ainda creio que a explicação mais simples
da consistência quase inteira com que o singular definitivo está confinado a ditos
cristãos é postular que Jesus se referiu a Daniel 7, falando de ‘0 Filho do homem
[a quem você conhece a partir daquela visão]’, e que ele usou a figura humana de
Daniel com o um símbolo — e não basicamente como um título — da vocação
para a vitória por interm édio da obediência e martírio ao qual ele foi chamado e
ao qual reuniu seus seguidores (para que eles juntos constituam ‘o povo dos santos
do Altíssimo’)” .
M a rc o s 2.13 116

traição ao F ilh o d o h o m e m n ão é arbitrária, m as é a v o n ta d e d e D e u s e o


m eio p elo qual a v o n tad e de D e u s é realizada, p o is o F ilho d o h o m e m “ tem
d e ” (gr. dei) so fre r p o r a m o r a seus discípulos e d a r sua vida em resgate de
m uitos (10.45).
É digno de n o ta o fato de Jesu s escolher “ F ilho d o h o m em ” p ara designar
sua fu nção c o m o F ilh o d e D e u s. E le n ão fala de sua v ocação n a prim eira
p esso a, o u seja, “ E ssa é a fo rm a c o m o faço isso” , m as n a terceira pessoa,
que, p o r m eio disso, designa su a hu m ilh ação , so frim e n to e exaltação co m o
o ca m in h o o rd e n a d o d e D eus.

O E S C Â N D A L O D A G R A Ç A (2 .13 -17 )

E ssa história, em c o n te ú d o , faz paralelo ao ch a m ad o d o s q u atro pes-


cado res em 1.16-20. A s d u as histó rias descrevem Jesu s p assa n d o ao lo n g o
d o m ar d a G alileia, e nas d u as narrativas Jesu s ch am a pessoas p ara segui-lo,
pessoas essas q ue estão n o lim ite d a respeitabilidade religiosa o u fo ra dela.
Levi, c o m o os p escad o res, segue Jesu s sem n e n h u m a in fo rm aç ão adicional
n em q u alq u er q u estio n am en to . E m estru tu ra , n o e n ta n to , a histó ria aqui faz
paralelo c o m a p ro g ressã o d o p artic u la r p ara o geral em 1.29-34. A li, Jesus
cu ro u a sog ra d e P edro, cu ra essa seguida p o r m uitas o u tras; aqui, ele cham a
Levi, ch a m a d o esse seguido p o r m u ito s ou tro s. Já v em o s n o m inistério de
Jesu s u m p a d rã o em ergindo. Jesu s n ã o é u m filósofo itin eran te livre q u e an d a
sem m ap a n e m bússola. T am p o u c o , a c o m u n h ão co m ele é algo que acontece
p o r co incid ên cia e capricho. A n tes, h á u m p la n o d e e n sin o e cu ra itinerantes
já ap a ren te n o m in istério d e Jesus, e é daí q u e ele, c o m intencionalidade,
re cru ta u m g ru p o d e ap ren d izes e seguidores. 13

13 “Jesu s saiu o u tra vez p ara beira-m ar.” N o Evangelho de Tomé e em


m uitos ev angelhos g n ó stico s d e sc o b e rto s em N a g H am m ad i, a so m a da
vida e o b ra d e Jesu s co n siste d e d ito s e p ro n u n c ia m en to s. N esse s d o cu m en -
tos, n ã o h á p ra tic a m en te referên cia ao m in istério e à atividade itin e ran te de
Jesus; ele é, antes, u m a “ cab eça falante” , u m m estre sed en tário q u e ocupa,
b em literalm ente, u m a cadeira d a religião. M arcos, ao co n trário , d ev o ta seu
evangelho q u ase to ta lm e n te à atividade d e Jesus c o m o m estre itinerante. O
evangelho n ã o é algo m era m en te falado, m as vivido, u m a encarnação. Jesus,
p o r con seg u in te, n ão está sen tad o em casa re c e b e n d o cham ados, m as faz
ativ am ente esses cham ados.
117 M a rc o s 2.14

M arcos m ais u m a vez resu m e o m in istério d e Jesu s em u m a palavra,


“e ele os ensinava” (ARA) {edidaskerr, N V I “ e ele c o m eç o u a ensiná-los”).18
O te rm o em si m e sm o e a fo rm a c o m o M arco s o u sa re petidas vezes para
caracterizar o m in istério d e Jesus, in d icam o p ap el essencial que o ensin o
desem penhava n o m in istério de Jesu s (e.g., 10.1; 14.49). O ensin o de Jesus
para g ra n d es m u ltid õ es, n essa ocasião ao lad o d o lago, revela q u e ele era um
m estre p ú b lico c o m u m a m en sag e m p ara as m assas (tam b ém 1.14,15), e não
um m estre eso téric o p ara u m n ú m e ro d e iniciados seletos.

14 Jesus, p assa n d o ao lo n g o d o lago, v ê Levi sen tad o n a coletoria e o


chama: “ Siga-m e” . A palavra p ara “ siga” (gr. akolouthein) é u sada n o s evan-
gelhos só p ara os discípulos d e Jesus, n u n c a p ara aqueles q u e se o p õ e m a
ele. O v erb o seguir, c o m d ez en o v e o co rrên c ia s e m M arcos, é u m te rm o de
peso q u e d escreve a re sp o sta a p ro p riad a d e fé (10.521), sendo, n a verdade,
praticam en te sin ô n im o d e fé. “ Seguir” é u m ato q u e envolve risco e custo;
é algo q u e alguém faz, n ã o apenas algo em q u e p e n sa o u crê. Levi, prova-
velm ente, deve ser id en tificad o co m “M ateu s” d e M ateus 9.9.19 N o N o v o
T estam ento, é b a sta n te c o m u m a m esm a p e sso a ser co n h ecid a p o r m ais de
um n o m e (e.g., C e fa s /S im ã o /P e d ro ). M arco s n ão registra n e n h u m diálogo
nesse ch am ad o ; Levi, c o m o o s q u a tro p escad o res (1.16-20), tem apenas de
resp o n d er à a u to rid a d e d e Jesu s e a seu cham ado.
N ã o é de su rp re e n d e r q u e Jesu s e n c o n tre p u b líc a n o s em C afarn au m ,
a cidade fro n te iriça co m as colinas d e G o lã. A M ishná descreve os publica-
nos fazen d o ro n d a s diárias, exigindo p ag a m e n to d e h o m en s c o m o u sem
o c o n se n tim e n to deles” , o u , c o m o aqui, sen tad o s n a coletoria co m livros
caixa e can eta n a m ão {m. Avot 3.17). O s viajantes ch e g an d o a C afarn au m , do
território d e H e ro d e s Filipe e d a D ecáp o lis a leste e n o rte , eram taxados p o r
agentes c o m o L evi, trab a lh a n d o p ara H e ro d e s A ntipas, tetra rca d a G alileia
e Pereia. O sistem a ro m an o d e taxas era co m p lexo e variado, até m esm o
em um p e q u e n o país c o m o a Palestina. A s taxas so b re a te rra e pedágios
eram co letad o s p elo s ro m an o s, m as as taxas so b re b en s tra n sp o rta d o s eram
cobradas p o r co leto res locais, a m aioria d o s quais eram judeus étnicos, m as
provavelm ente n ã o ju d eus q u e g u ardavam a lei, u m a vez que n ão se esperava

18Diclaskein descreve e resume a atividade de Jesus quinze vezes em Marcos.


19 Códices D e Θ trazem ‘T iago, filho de Alfeu”, e não “Levi, filho de Alfeu” , mas
essa leitura é provavelmente uma harmonização subsequente com 3.18, e não a
original.
M a rc o s 2.14 118
que os judeus co m en te n d im e n to so b re a T orá fizessem tran saçõ es c o m os
gentios.20 Levi era u m desses in term ed iário s (ou trabalhava a serviço d e um
deles) q u e fazia o fe rta s prévias p a ra co leta r im p o sto s em u m a dad a área. Seu
p ró p rio lu cro v in h a d o q ue ele con seg u ia d esp o jar seus p ró p rio s co n stitu in -
tes, e u m a p o rç ã o d os im p o sto s receb id o s p o r ele ficava em seus bolsos.21 O
sistem a ro m a n o d e taxação d e p e n d ia d o su b o rn o e co b iça e atraia indivíduos
em p re e n d e d o re s q u e n ão eram co n trá rio s a esses m eios.22
O s co leto res d e taxas o u p u b lícan o s eram o b v iam en te d esp rezad o s e
odiados. Q u a lq u e r p e sso a fam iliarizada co m “ d e d o s-d u ro s” e in fo rm an te s
em regim es co m u n istas e n azista p o d e m avaliar a aversão q u e os judeus d o
século I sen tiam p elo s publícanos. A M ish n á e o T alm ude (em b o ra escrito
m ais tarde) reg istram ju lg am en to s rig o ro so s d o s p ub lícanos, c o n tan d o -o s
co m os lad rõ es e assassinos. U m ju d eu q u e fosse p u b lican o n ão p o d ia atu ar
co m o juiz n e m te ste m u n h a em u m trib u n al, era ex pulso d a sinagoga e a cau-
sa de d esgraça p ara a fam ília (b. Sanh. 25b). O to q u e de u m p u b lican o fazia
c o m q u e u m a casa fosse co n sid erad a im u n d a (m. Teh. 7.6; m. Hag. 3.6). O s
judeus eram p ro ib id o s de re ceb e r d in h eiro e até esm olas de u m publicano,
u m a vez q u e a re n d a p ro v e n ie n te d o s im p o sto s era co n sid erad a ro u b o . O
d esp rezo d o s judeus p elo s p u b lícan o s é re p re se n ta d o na reg ra de q u e o s ju-
deus p o d ia m m e n tir p ara os p u b lícan o s im p u n e m e n te (m. Ned. 3.4) — u m a
regra, p o r sinal, co m a qual as casas d e Hillel e S ham m ai (n o rm a lm e n te em
p o lo s o p o sto s) co n co rd av am . O s p u b lícan o s eram u m lem b re te tangível da
d o m in açã o ro m a n a , d etesta d o s p o r sua injustiça e im undícia gentia. M uitos
judeus extrem istas, in clu in d o u m e n tre os discípulos d e Jesu s (3.18), consi-
deravam a su b m issã o ao ju g o ro m a n o , b em c o m o a seu sistem a de taxação
(veja 12.13-17), u m ato d e traição a D eus.

20Josefo (Guerra 2.285-88) registra a história em que os judeus de Cesareia chamaram


um coletor de im postos ou publicano chamado João para interceder em favor
deles perante Floro, prefeito da Judeia de 64 a 66 d.C. João foi capaz de produzir
uma propina para Floro de cerca de oito talentos de prata (= mais de US$40.000
ou mais de R$127.000,00), o que ilustra o poder e riqueza de alguns publícanos
ou coletores de impostos.
21 Observe a descrição de Fílon de um publicano em cerca de 40 d.C., apenas uma
década após a m orte de Jesus. “ Capito é o coletor de im postos para a Judeia e
sente desprezo pela população. Q uando chegou ali era um hom em pobre, mas
amealhou muita riqueza de várias formas, espoliou o povo por meio de fraudes e
desfalques (nosphi^etai kaipareklegei)” (Embassy, p. 199).
22 Sobre o sistema de taxação rom ana na Palestina, veja E. Schürer, History of the
Jewish People, 1.372-76.
119 M a rc o s 2.15-16

15,16 O L evi q u e Jesus c h a m o u c o m o alu n o -a p ren d iz p erten cia a essa


categoria de pessoas. C o m p reen siv elm en te, o ch a m ad o de Levi, aos olhos
dos c o n te rrâ n e o s judeus, cau so u g ra n d e co n stern açã o . Isso faz c o m que
Jesus en tre em c o n ta to n o v am en te co m pessoas im undas; n ão com doenças
im undas, c o m o n o caso d o le p ro so (1.40), m as c o m u m indivíduo que, p o r
causa d e sua co lab o ração c o m a o cu p a ção g en tia, é ta n to m o ralm en te inso-
lente q u a n to ritu alm en te im undo. P o d e ser q u e o c o n ta to co m Levi fosse de
fato m ais o fen siv o q ue o co n ta to c o m u m lep ro so , u m a vez que a co ndição
do lep ro so n ã o foi escolhida, ao p asso q u e a d o p u b lican o o foi.
E m vez d e p a ra r co m Levi, n o en tan to , a o fe n sa crio u m etástases. Jesus
se ju n to u a Levi p ara o jan tar em sua casa o n d e há “ m u ito s publícan o s e
pecadores” , cujo sen tid o é q ue o ch a m a d o de u m p e c a d o r n ão é u m a exce-
ção para sua m issão, m as algo típ ico dela. A fim de c o m p re e n d e r o term o
“pecad ores” , p recisam o s p e n sa r so b re os “ ím p io s” de Salm os, q u e n a L X X
aparece co m o “ p ecadores” (gr. hamartõloi). O s “ím p io s” n ão são transgressores
ocasionais d a T o rá, m as aqueles q u e se p o sicio n am fu n d a m e n talm e n te fora
dela. São ca te g o rica m e n te co n d e n ad o s. A M ish n á descreve os “ p ec ad o re s”
com o ap o stad o res, agiotas, pessoas q ue fazem brigas de p o m b o s p o r espor-
te, pessoas q u e fazem co m ércio n o an o sabático, ladrões, p essoas violentas,
pastores e, é claro, p u b lícan o s (m . Sanh. 3.3). A lguns d o s casos m en cio n ad o s
acima são in d iv íd u o s crim in o so s, todavia, m u ito s são apenas trab alh ad o res
e pessoas co m u n s, m as m u ito ocu p ad as, m u ito p o b re s o u m u ito ignorantes
para viver d e a c o rd o co m as regras das au to rid ad es religiosas. A os n o sso s
olhos, é claro, c o n ta r p esso as co m u n s co m ladrões é c o m o jogar p ed estres
im pru d en tes na cadeia ju n to c o m o crim in o so s p erig oso s, m as essa n ão era
a form a d e p e n sa r d os fariseus. A M ishná, citan d o o rabi M eir, afirm a que

aquele que se ocupa com o estudo da Lei [...] m erece to d o o m undo.


Ele é cham ado de amigo, am ado de D eus, am ante de D eus, am ante da
hum anidade; e isso o cobre de hum ildade e reverência e o ajuda a se
to rn ar justo, santo, reto e fiel; o m antém longe do pecado e o traz para
p erto da virtude, e os hom ens apreciam seu conselho e conhecim ento
são, com preensão e força (m. A v o t 6.1).

Esse elogio testifica q ue a T o rá é o p ad rão p ara d o “ m ere c e d o r” e “ re to ” .


Por inferência, aqueles q u e n ã o estu d am a T o rá p e rte n c e m a o u tra classe, a
de “p ec ad o re s e p u b lícan o s” (tam b ém Lc 15.1).
A s trad u ç õ es em p o rtu g u ê s (em especial A R A , A R C , ACF, A R , A21;
mas N V I e N T L H m en cio n a m apenas q u e Jesu s fazia u m a refeição, sem
M a rc o s 2.15-16 120

q u aisq u er o u tra s especificações) deixam a im p ressão d e q u e Jesu s estava


sen tad o à m esa n a casa de Levi, m as o g reg o de 2.15 indica que ele estava
reclinado, a p o s tu ra culinária co stu m eira, em especial em festas e festivais,
co m a cabeça n a direção d a m esa e os p és se este n d e n d o p ara u m a posição
m ais d istan te dela. A palavra p ara sentado à mesa (ARC; “ reclinar” em grego,
katakeimaia; N V I, “ d u ra n te u m a refeição ”) o c o rre apenas q u atro vezes em
M arcos, c o m referên cia a se reclin ar c o m p ec ad o re s (2.15; 14.3) o u c o m um
d o e n te (1.30; 2.4). A s q u atro o co rrên cias são sutis, lem bretes da solidariedade
d e Jesus co m p esso as necessitadas e alienadas. A aceitação d e Levi p o r Jesus
envia u m sinal a o u tro s c o m o ele, pois “ m uitos pu b lícan o s e p ec ad o re s” se
ju n taram a ele e aos discípulos. A s leis dietárias dos judeus tin h am a intenção
(e ainda têm ) d e excluir o c o n ta to c o m g entios, em especial n a in tim id ad e da
c o m u n h ã o à m esa. O d esresp eito de Jesu s p o r essa fro n teira judaica essencial
causa g ra n d e o fe n sa aos m estres d a lei.
O c o m p o rta m e n to d e Jesu s ex acerb a m ais u m a vez u m a ten são latente
em u m c o n flito a b e rto co m os m estres da lei. E m 2.1-12, o co n flito foi p o r
causa d o p e rd ã o d o s p ecad o s; aqui, p o r ele c o m e r co m os pecadores. Jesus,
nessas duas ocasiões, p ô d e alcançar o m e sm o objetivo, o u algum sim ilar, ao
evitar o conflito. A s duas histó rias deixam a im pressão, n o en tan to , d e que
o con flito n ã o é o re su ltad o d a negligência, m as da provocação. O s publi-
can o s e p ec ad o re s o co n v id am para jantar, ao p a sso que os m estres da lei
ficam de fora ju lg and o essa atitude.23 A fissura en tre Jesu s e os m estres da lei
é acen tu ad a pela palavra “ seguiu” : L evi segue Jesus (v. 14), c o m o tam b ém
o fazem os p u b lícan o s e p ec ad o re s (v. 15). C o n tu d o , “ os m estres da lei que
eram fariseus” n ã o seguem Jesus.24 A lição é vigorosa: a c o m u n h ão co m Jesu s
fun d am en ta-se em p ad rõ es radicalm ente distin tos daquele d a T o rá . A o passo
q ue o estu d o d a T o rá, para citar o rabi M eier m ais u m a vez, to rn a o indiví-
d u o “ m e re c e d o r” e “ ju sto ” , Jesu s ch am a aqueles q ue são a b e rtam en te n ão
m ereced o res e n ão c o n sid erad o s ju sto s e se reclina co m estes. A co m u n h ão

23 Um bom núm ero de manuscritos gregos expandem a pergunta para: “Por que ele
co m eífcfeco m publícanos e pecadores?” (v. 16). A leitura mais breve, no entanto,
é preferível. Ela tem apoio de manuscritos mais robustos, e a adição de “e bebe”
pode ser explicada com o um acréscimo dos escribas, talvez em conformidade
com Lucas 5.30 (veja Metzger, TCGNP, ρ. 67).
24 Sobre os mestres da lei, veja em 1.22. O s copistas gregos aparentemente alteraram
o texto hoigrammateis tõn Pharisaiõn (também B ‫ א‬L) de Marcos para se conform ar
aos “mestres da lei” e “fariseus” mais tradicionais (Metzger, TCGN'P, p. 67). Para
uma discussão de fariseus, veja em 2.18).
121 M a rc o s 2.15-16

com Jesus viola a co n v en ção religiosa e social, em vez de prom ovê-la. E ssa
história, n o en tan to , ilustra a v erd ad e d e 2.1-12: ali Jesu s p ro fe re o p erd ão
dos pecados, e aqui ele p e rd o a pecadores, e n tra n d o em suas casas em co m u n h ão
com eles e se reclin an d o à m esa co m eles.
O fato de p ec ad o re s e p u b lícan o s se reclinarem c o m Jesus sugere que
ele — e n ã o L evi — é o v erd ad eiro anfitrião d o g ru p o . O fu n d a m e n to p ara
a co m u n h ão à m esa é o p erd ã o q u e Jesu s o fe rec e c o m o M essias, e esse per-
dão antecipa o b a n q u e te m essiânico n o fim d o s tem p o s.25 A c o m u n h ão de
Jesus co m os p u b lícan o s e p ecad o res — e sua co n d e n a ç ã o pelo s m estres da
lei — ilustra a n a tu re z a radical d a graça. A “ trad ição d o s an cião s” justifica o
status quo das d istin çõ es e erige barreiras en tre as p essoas; o evangelho busca
transfo rm ar e reconciliar essa co n d ição c o n stru in d o u m a p o n te en tre Jesus
e a necessidade h u m an a. O ch a m a d o de L evi e o fato d e Jesu s fazer u m a
refeição c o m aqueles c o m o ele são d escrições vividas d e R o m an o s 9.30,31:
a justiça d e D e u s n ã o alcança aqueles q ue b u sca m estabelecer sua p ró p ria
justiça; ao p asso q u e a justiça d e D e u s é g ra cio sam en te esten d id a àqueles que
estão m u ito d istan tes p ara esp e rar p o r ela.
E lugar c o m u m q u e os m estres d a lei e os fariseus se o p õ e m a Jesu s p o r
ele com er co m “ pecadores e publícanos” . M as o que exatam ente na associação
de Jesus co m essas pessoas é q u e os ofendia? S erá q u e Jesu s fazia a refeição
com os p ec ad o re s co m a co n d içã o d e q u e eles m u d assem o ru m o d a vida?
Essa associação co m os p u b lícan o s, p ro stitu ta s e ré p ro b o s fu n d am en tav a-se
no fato de eles ab an d o n arem sua perversidade e se to rn arem pessoas piedosas?
Jesus c e rtam en te ficaria feliz se esse fosse o resu ltad o. C o n tu d o , se essa fosse
sua in ten ção , p o d eria m o s esp e rar q ue os líderes religiosos o aplaudissem , e
não o o p o sto . S abem os, n o e n ta n to , q u e eles se o p u n h a m a ele — sem p re e
em tod os os locais. A o p o sição deles é m ais explicável seg u n d o o fu n d am en to
de que a re fo rm a n ã o era o p re ssu p o sto fu n d a m e n tal d o m in istério de Jesu s,
com o, p o r ex em p lo , a co n teceu c o m o m in istério d e J o ã o B atista. N ã o existe
nenhum a m en çã o n o ch am ad o d e L evi e n o jan tar c o m p ecad o res so b re o
arrependim ento. N a v erd ad e, o a rre p e n d im e n to está cu rio sam en te ausente
da proclam ação d e Jesu s em M arcos.26 O escân d alo dessa histó ria é que Jesus

25Veja W. Lane, The Gospel According to M ark (G rand Rapids: E erdm ans, 1974), p.
106.
26 Há apenas duas ocorrências do verbo “arrepender” (metanoein) proferido p o r Jesus
em M arcos (1.15; 6.12), e não há nenhum a ocorrência do substantivo. A penas
em Lucas, A tos e A pocalipse é que o arrependim en to desem penha um papel
proem inente na proclam ação do evangelho.
M a rc o s 2.17 122

n ão to rn a o arrep e n d im en to m o ral u m a p ré-co n d ição de seu am o r e aceitação.


A ntes, Jesu s am a e aceita os p u b lícan o s e p ec ad o re s c o m o eles são. Se eles
ab a n d o n a m seu m al e c o n se rta m sua vida, eles o fazem , c o m o o fez Z aq u eu
(Lc 19.1-10), n ão p ara g a n h a r o favor de Jesus, m as p o rq u e Jesu s os am o u
en q u a n to ainda eram p ecadores. A associação d e Jesu s c o m esse tip o de
pessoas n ã o é u m a coincidência. E le n ão está co m eles p o r acaso n em espera
pelos convites. E le inicia a co m u n h ão : “ Q u e ro ficar em sua casa h o je ” (Lc
19.5). N ã o ficam os sab en d o q u an to s pecad o res e publícanos se arrep en d eram
e m u d ara m o cu rso d e sua vida. A p en as ficam os sab e n d o q u e Jesu s sem eo u
am o r co m liberalidade e d e fo rm a n ã o calculada c o m o o sem ea d o r q u e joga
sem entes em lugares n ão p ro m isso re s (M c 4.3-9). E ra isso que escandalizava
os líderes religiosos d e su a ép o ca, co m o escandaliza aqueles de n o ssa ép o ca
q ue d efin e m o ev an g elh o em te rm o s d e m era re fo rm a m o ral e fo rm ação
d e caráter. Jesu s co m u n ica n a palavra e ação q u e aceitá-lo e segui-lo é m ais
im p o rta n te q u e seguir a T orá. Q u a n d o os indivíduos n ão re fo rm a d o s e não
reg en erad o s fazem isso, e n tra m n o R eino de D e u s an tes d o s m estres da lei
e fariseus. Jesu s, em su a c o m u n h ã o à m esa c o m “p ecad o res e p u b lícan o s” ,
afirm a d e m o d o esc an d alo so sua exousia, sua p ró p ria p esso a acim a da T o rá
e o a m o r p ró d ig o d e D e u s acim a d o m érito. E sse é o escândalo d a graça.27

17 A cen a é re su m id a e m u m d ito m em orável: “N ã o são os que têm


saúde qu e p re cisam d e m édico, m as sim os d o en tes. E u n ão vim p ara ch am ar
justos, m as p ec ad o re s” . E sse versículo foi re m e m o ra d o e p reserv ad o em um a
série d e fo n te s cristãs prim itivas, in clu in d o C lem en te d e R om a (2Clem. 2.4),
o Didaquê (4.10), a Epístula deBarnabé (5.9) e Ju stin o M ártir (Apol. 1.15.8). O
d ito é u m a d efesa feita p o r Jesu s d o alcance d o s ind ivíduos sem reputação, e
n ão u m a su g estão d e q u e h á alguns q u e são isen to s de seu cham ado. O fato
de q u e Jesu s p o d e ser e n c o n tra d o n a co m p an h ia d e p esso as c o m o Levi nos
lem b ra d a d iferen ça en tre sua m issão e aquela d o s m estres d a lei. E les vêm
p ara in stru ir; ele v em p ara redim ir. C o n sid e ran d o -se essa m issão, n ão faz
sen tid o Jesu s ev itar o s p u b lícan o s e p ecad o res, assim c o m o n ão faz sentido
um m éd ico evitar os d o en tes. A graça d e D e u s se esten d e às pio res fo rm as de
d ep rav ação h u m a n a e as so b rep u ja. Iro n ic am en te, de certa fo rm a o s m aiores
pecadores estão m ais pró x im o s d e D e u s q u e aqueles que se consideram justos,
p ois os p ec ad o re s têm m ais co n sciên cia d e su a n ecessidade de tra n sfo rm a ­

27 Veja E . P. Sanders, The Historical Figure o f Jesus (L ondon: Penguin Press, 1993), p.
230-37.
123 M a rc o s 2.18

ção pela graça de D eus. “A Lei foi in tro d u z id a p ara q ue a tran sg ressão fosse
ressaltada. M as o n d e a u m en to u o p e c a d o tra n s b o rd o u a graça” (Rm 5.20).

J E J U M E F E S T A S ( 2 . 1 8 2 2 ‫)־‬

A s cin co histó rias em 2.1— 3.6 d e m o n stra m u m a intensificação firm e


do co nflito e n tre Jesu s e os lideres religiosos, em particu lar os m estres da
lei e fariseus. N a p rim eira h istó ria (2.1-12), o a n ta g o n ism o p e rm a n ece em
grande p a rte n ã o explícito. N a s três histórias seguintes (2.13-17,18-22,23-
28), o co n flito resu lta em co n fro n ta ç õ e s verbais. N o final d a h istória (3.1-6),
há um a tram a p ara p ô r fim à vida d e Jesus. A au to rid a d e de Jesus, em cada
um desses en c o n tro s, d estró i as fó rm u las e categorias em que as pessoas o
colocam . Jesu s, c o m o n a p aráb o la d o v in h o n o v o e d a vasilha d e co u ro n o
versículo 22, é co m o o v in h o n o v o q ue precisa de sua p ró p ria vasilha de couro.

18 O s co n tem p o rân eo s d e je s u s viram possíveis analogias a seu m ovim en-


to em dois o u tro s m o v im e n to s d o dia, a saber, naquele d os discípulos de Jo ão
Batista e naquele d o s fariseus. M arcos só faz um a o u tra referência de passagem
aos discípulos d e J o ã o B atista (6.29); m ais in fo rm a ç õ e s so b re o m o v im en to
de Jo ã o B atista, b asta n te lim itadas, p o d e m ser am ealhadas em referências
dissem inadas n o N o v o T estam e n to e em Jo sefo .28 S ab em o s m u ito m ais so b re
os fariseus. A o rig em exata d o s fariseus n ã o é clara, m as sab em o s que eles
surgiram n a é p o c a d a R evolta d o s M acabeus (168 a.C.), o que significa que
eles já existiam havia dois séculos na ép o ca d e je s u s . O n o m e deles significa
ou “separado” o u “ san to ” , duas interpretações q ue n ão são incom patíveis um a
com a ou tra. O s fariseus, d esd e seu su rg im en to , o p u n h a m -se firm em en te ao
helenism o, o u seja, à ten d ên cia, clara o u sutil, p ara a c o m o d a r a vida judaica
aos ideais p rev alen tes n o m u n d o g re co -ro m a n o . E les ficaram d ecididam ente
sobre a ro c h a d a T orá, “ o in s tru m e n to p re cio so p o r m eio d o qual o m u n d o
foi criado” , a ex p ressão p erfeita d a sab ed o ria e v o n ta d e de D eu s, e o o b jeto
inigualável d a existência h u m a n a {PirkeAbot 3.19). E les n ão eram u m p artid o
político e, na realidade, eram u m ta n to in d iferen tes aos g o v ern an tes políticos
desde q ue tivessem p erm issão d e b u sc a r e co n se g u ir estabelecer sua vida de

28Mt 11.2; 14.12; Lucas 7.18; l l.l;J o ã o 1.35,37; 3.25. D ois dos discípulos dejesus,
de acordo com o evangelho de João, pertenciam originalmente aos seguidores de
João Batista (Jo 1.35-42). A fama e os seguidores de João Batista sobreviveram à
morte dele, talvez, em alguns setores e em alguma medida, até mesmo competindo
com o m ovim ento d ejesu s (Jo 1.19-23; A t 19.1-7;Josefo, Ant. 18.116-19).
M a rc o s 2.18 124

aco rd o co m a T orá. O farisaísm o era u m m o v im e n to leigo que, d e aco rd o


co m a estim ativa de Jo sefo , tin h a cerca d e seis m il pessoas n o século I (A nt.
17.42), o u ap ro x im ad am en te 1% d a população. O s fariseus, e m b o ra fossem
u m g ru p o p e q u e n o e apenas u m d e n tre m u ito s o u tro s g ru p o s n a Palestina,
eram m ais n u m e ro so s e m ais in flu en tes q ue os saduceus, essênios, herodia-
no s e zelotes. O farisaísm o tin h a a rep u ta ção de te r altos ideais e era, nas
palavras d e Jo sefo , “ e x tre m am en te in flu en te em m eio às p essoas c o m u n s”
(Ant. 18.14-15). O s fariseus eram co n sid erad o s c o m o os sucessores autori-
zado s d a T orá, aqueles qu e se asse n ta ram n a “ cadeira de M oisés” (M t 23.2).
A força e ad ap tab ilid ad e d o s fariseus eram c o m p ro v ad as p elo fato de que,
d e n tre to d o s os g ru p o s judaicos m en cio n a d o s acim a, só eles sobreviveram
à g u erra c o m R o m a em 66-70 d.C. T o d o o judaísm o su b seq u e n te à catás-
tro fe devia su a existência às o rig en s farisaicas. A s crenças fu n d am en tais dos
fariseus, esclarecidas p o r u m a dinastia rabínica c o n h e cid a c o m o “ a tradição
d o s líderes religiosos” (7.5), incluía a cren ça n a so b eran ia d e D e u s integrada
co m a resp o n sab ilidade h u m an a pela v irtu d e e depravação; a ressurreição dos
m o rto s; os anjos e d em ô n io s; e a ad erên cia esc ru p u lo sa à T o rá escrita e às
trad ições orais fu n d am en tad as nela, integradas c o m a expressão de d esd ém
p o r aqueles q u e eram ig n o ran te s, negligentes o u v io ladores da T orá.29
Jesu s m e sm o se aproxim ava m ais das crenças fu n d am en tais d os fariseus
que das de qualquer o u tro g ru p o d o judaísm o. O s evangelhos registram apenas
conversas esp o rád icas e co in cid en tes en tre Jesu s e os saduceus, e os h ero d ia-
n o s, e os zelotes, e n e n h u m a en tre Jesu s e os essênios; m as Jesus, ao lo n g o de
seu m inistério, está em p e rm a n e n te d eb a te co m o farisaísm o, prin cip alm en te
so b re a q u estão d a tradição. A d iferen ça essencial fica especialm ente evidente
em M arco s 7.1-23, em q u e Jesu s acusa os fariseus de avaliar em d em asia a
tradição e desvalorizar a intenção d a p ró p ria lei. N a ép o ca d e Jesus, o fe rv o r e
vitalidade inicial d o s fariseus já havia se calcificado em fo rm alism o em vários
p o n to s de p rática e o b servância, em q u e a co n fo rm id a d e às prescrições legais
sub stituía a d isp o sição d o coração, d isto rc e n d o desse m o d o a verdadeira
in ten çã o d a lei. O s fariseus, p o r crerem q ue a T o rá era prescritiva p ara to d a a
vida, teciam u m a teia cada vez m ais in tricad a d e regras em to rn o da T orá, cujo

29 Sobre os fariseus, veja Str-B 4/1.334-52; Schürer, History of the Jewish People,
2.381-403; S. J. D. Cohen, From the Maccabees to the Mishnah, LEC (Philadelphia:
W estminster Press, 1987), p. 143-64; G. E M. M oor e.,Judaism in the First Centuries
of the Christian Era (Cambridge, Mass.: H arvard University Press, 1927), 1.56-71.
125 M a rc o s 2.18

propósito p o d e te r sido h o n rá-la, m as cujo efeito foi co n fin a r e até m esm o


esmagar c o m u m fard o excessivo a existência h u m an a.30
E m 2.18, s o b re a q u estã o d o jeju m , o m o v im e n to d e Jesu s é co m p arad o
aos m o v im e n to s d e J o ã o B atista e d o s fariseus. O s três principais pilares d o
judaísm o eram a oração, a carid ad e e o jejum . O ju d aísm o exigia apenas u m
jejum n o D ia d a E x p iação (Yom Kippur, L v 16.29,30; m. Yoma 8.1,2). C o n tu -
do, o trata d o d a M ish n á Talanit, d ev o ta d o às ob servancias ap ro p riad as do
jejum, especifica p elo m e n o s três o u tro s tip o s d e jejuns. U m tip o de jejum
era aquele q u e lam entava as tragédias nacionais, c o m o a d estru ição d o tem -
pio p o r N a b u c o d o n o s o r (Z c 7.3,4; 8.19); o u tro era o jejum em tem p o s de
crise, co m o na g u erra, pragas, secas e fom e; e u m terc eiro tip o de jejum era
aquele a u to im p o sto p o r q u aisq u er razõ es pessoais (2Sm 12.16; SI 35.13).
Os fariseus n o rm a lm e n te jejuavam às segundas-feiras e quinta-feiras {Did.
8.1; b. Ta‘an. Í2a), e m b o ra isso n ão fosse exigido. O jejum exigido n o D ia da
Expiação d u rav a 2 4 horas, ao p asso q u e os jejuns v o lun tários, via d e regra, se
estendiam ap en as d o a m an h e cer ao en tard ecer. O jejum , e m b o ra n ão fosse
uma exigência legal, exceto p o r u m a instância, to rn ara-se , na ép o ca de Jesus,
um p ré-requ isito d o co m p ro m isso religioso, u m sinal da expiação d o p ecad o
e da h u m ilh ação e p en itên c ia d ian te de D e u s, e u m a ajuda geral p ara orar.
Os rabis se referiam c o m frequência ao jejum c o m o “ u m a aflição da alm a” ,
designando-o c o m isso c o m o u m a característica e ato sacrificial da piedade.31
A queles q ue desafiam Jesu s so b re a q u estão d o jejum são identificados
por M arcos em te rm o s m u ito gerais (“A lgum as p esso a s”). E v id en tem en te ,

3(1Dois intérpretes judeus m o d ern o s produziram estudos relevantes do farisaísmo,


e am bos concluem que o retrato dos fariseus n o N o v o T estam en to não é um a
interpretação equivocada do m ovim ento, nem está enraizado na inclinação antiju-
daica, mas, em essência, é fiel às outras testem unhas do farisaísm o desse período
de tem po. Jaco b N eusner, The Idea o f Purity in A n á en tJudaism, SJLA (Leiden: Brill,
1973), p. 65, escreve: “A s questões legais atribuídas p o r rabinos posteriores aos
fariseus anteriores a 70 são tem áticam ente congruentes co m as historias e ditos
sobre os fariseus nos evangelhos do N o v o T estam ento, e os considero precisos
em substancia, se não em detalhes, com o representações das principais questões
da lei farisaica” . D a m esm a form a, E. Rivkin, A Hidden Revolution (Nashville:
A bingdon Press, 1978), p. 123-24,147-79, argum enta que a im agem dos fariseus
nos evangelhos e em Paulo se co n fo rm a em aspectos essenciais com as da M ishná
e do Talm ude; e, além disso, que os vários rabis, Jo h an an ben Zakkai en tre eles,
criticavam alguns rabis, e particularm ente os saduceus, de fo rm a tão severa quanto
Jesus os criticava.
31 Sobre o jejum , veja J. B ehm , “nêstis”, 7 D A T 4.924-35; Str-B 2.241-44; 4/1.77-114.
M a rc o s 2.19 126

elas eram p esso as co m u n s, e n ã o fariseus, o q u e re fo rça a im p ressão de que o


jejum era co n sid erad o c o m o p a rte e parcela d a v erdadeira pied ad e n o m u ndo
judaico da é p o c a d e Jesus. A p e rg u n ta dessas pessoas: “ P o r que os discípulos
de Jo ã o e os d o s fariseus jejuam , m as os teus n ão ?” , insinua q u e era m elhor
Jesus e seus discípulos, se tivessem a in ten ção de ser levados a sério, prestarem
m ais aten ção ao p ro to c o lo d o jejum .

19 Jesus, n esse p a n o d e fu n d o so m b rio so b re o jejum , ap resen ta um a


im agem festiva d e u m a festa d e c a sa m e n to . U m a celebração d e casam ento
em u m vilarejo ju d eu d em o rav a em geral sete dias p ara u m a noiv a virgem e
três dias p ara u m a viúva c o n tra in d o novas núpcias. O s am igos e convidados
n ão tin h a m n e n h u m a re sp o n sa b ilid a d e, ex ceto d e s fru ta r as festividades.
H avia u m a ab u n d â n cia d e alim en to s e vin h o , b em c o m o m úsica, dan ça e
diversão n a casa e n a rua. E sp erav a-se q u e até m e sm o os rabis abrissem m ão
d a in stru ç ã o d a T o rá e se ju n tassem n a celebração c o m seus alunos. A frase
“ os co n v id ad o s d o n o iv o ” (gr. hot huioi tou nymphõnos, “ filhos d o n o iv o ” , um
sem itism o literal) re trata a reu n ião de u m a festa d e casam ento, esp eran d o
im paciente p a ra com er. Q u a lq u e r p e n sa m e n to so b re o jejum em tais m o-
m e n to s estava fo ra d e questão!
O uso da im agem d o casam en to c o m relação à p erg u n ta so b re o jejum
altera rad icalm en te o d esafio d e sua autoridade. Jesu s n ão tem n ad a co n tra
o jejum per se, c o n fo rm e p ra tic ad o pelos discípulos de Jo ã o B atista e pelos
fariseus. E le ad m ite q u e q u a n d o o no iv o fo r tirado, “ nesse te m p o [seus dis-
cípulos] jeju arão ” . A d iferen ça en tre Jesu s e os discípulos de Jo ã o B atista e
o s fariseus diz re sp eito a u m a atitu d e em relação ao m inistério de Jesus. E ste
descreve sua m issão c o m o u m ca sam en to — ele c o m o o noivo e seus disci-
pulos c o m o os “ co n v id ad o s d o n o iv o ” . U m ca sam en to n ão é um te m p o de
se abster, m as d e vivê-lo. Jesus, m ais u m a vez, im pu lsio na sua p esso a e m issão
d e fo rm a p ro e m in e n te e inescapável p ara o ce n tro d o palco. O s discípulos
d e Jo ã o B atista e os fariseus, se cap tassem a relevância da p esso a d e Jesus,
co m p re en d ería m p o r que deveríam celebrar, em vez de jejuar.32 A n ão aquies-
cência co m a festa, n o en tan to , atesta d a n ão aceitação da p esso a de Jesus.
A im a g e m d o c a sam e n to , d e fo rm a b e m in c o m u m , é p ro v o c ativ a,
e m b o ra su a p len a relevância n ã o seja co m freq u ên c ia captada. O fato de o

32 N o Evangelho de Tomé, p. 104, Jesus instrui seus ouvintes a jejuar e orar quando o
virem saindo do quarto nupcial. Esse dito une dois conjuntos de imagens e parece
subordinar Jesus ao jejum, ao passo que, de acordo com Marcos, Jesus subordina
o jejum a si mesmo.
127 M a rc o s 2.20

Messias n ão te r sido ap rese n ta d o em n e n h u m tex to d o A n tig o T estam en to


com o u m noivo, e apenas raram en te fora d o A n tig o T estam e n to ,33 levou u m
bom n ú m e ro de estu d io so s a d u v id ar da relevância cristológica d o uso da
imagem d o no iv o p o r Jesus em 2.19.34 A p esar de n ã o ser possível estabelecer
uma ligação firm e en tre o M essias e o noivo, isso n ã o exclui n em dim inui
a relevância cristológica d a im agem d o noivo. N e sse caso, d e fato, o noivo
parece a u m e n ta r essa relevância, pois, n o A n tig o T estam en to , o m arid o e
am ante de Israel n ã o é o M essias, m as D e u s (Is 5.1; 54.5,6; 62.4,5; E z 16.6-
8; O s 2.19). E ssa m esm a im agem nupcial au m e n ta n o jud aísm o p o sterio r.35
As associações divinas in ere n tes n a im agem d o noiv o são co n so a n te s co m a
cristologia d e M arcos, cuja princip al categ oria cristológica n ão é o M essias,
mas o F ilho d e D eu s. E sse últim o tran sm ite n ã o só o serv iço m essiânico de
Deus, m as ta m b é m a n atu re za c o m p artilh ad a e a u n ião essencial c o m D eus.
Jesus, n o batism o , é d eclarado ser o F ilho de D e u s e é d o ta d o co m o E sp írito
de D eus. Sua p o sição e e m p o d e ra m e n to divinos c o m b in a m co m sua exousia,
sua au to rid ad e divina, d e rro ta os p o d eres d em o n íac o s (1.25) e até m esm o
perdoa os p ec ad o s (2.10). A im agem d o n oiv o re m e m o ra n ão um a função
messiânica, m as a p esso a d o p ró p rio D eus. N e ssa m e táfo ra sugestiva, Jesus
continua, natu ra lm e n te e sem arrogância, a p re su m ir as prerrogativas de D eus
para si m esm o. O resu ltad o d a im agem d o casam ento, p o r conseguinte, n ão é
diferente d o p e rd ã o d o s p ecad o s em 2.7, em q u e os o u v intes são co n v id ad o s
a suprir sua p ró p ria re sp o sta à iden tid ad e de Jesus. O s dois ep isó d io s são
provocações p ara v e r q u e o p apel e a m issão d e D e u s estão ag o ra p resen tes
em Jesus.36

20 Jesus, ap esar d e ainda estar n o início de seu m inistério, n ão tem ilusões


sobre a o p o sição potencial. A m en çã o d e qu e o “ n oiv o lhes será tirad o ” é
uma im ag em a b ru p ta e asso m b ro sa. E m u m ca sam en to n o rm al, são os con-

33A Midrash judaica sobre Ê xodo 12.2 afirma: “N os dias do Messias, o casamento
acontecerá” (Exodus Rabbah 15 [79b]). O N ovo Testamento, é claro, emprega a
imagem do noivo messianicamente (Ap 19.7-9).
34Por exemplo, Nineham, The Gospel of St Mark, p. 103.
35W. Eichrodt, Theology of the Old Testament, trad. J. Baker (London: SCM Press, 1961),
p. 250-58; J. Jeremias, “nymphè”, TDNT 4.1,101-3.
36No texto gnóstico Tripartite Tractate de Nag Hammadi, a imagem do noivo perde
o poder de seu relacionamento com Deus e com o ministério terreno de Jesus,
sendo espiritualizada com o a união da alma com Cristo no quarto nupcial da
eleição (122:14-30).
M a rc o s 2.21-22 128

vidad o s q ue p o r fim deixam o n o iv o e a noiva p ara que estes iniciem um a


vida em co m u m . C o n tu d o , Jesu s in tro d u z u m p e n sa m e n to estra n h o d o noivo
sen d o rem o v id o p ela fo rça d a celebração d o casam ento. A ligação de M arcos
d a inau gu ração d o m in istério d e Jesu s co m a p risão de Jo ã o B atista em 1.14
já p ro je to u n u v en s de te m p estad e n o m in istério de Jesus. A quelas nuvens
de te m p e sta d e au m en ta m n o ep isó d io d a co n ste rn a çã o do s m estres da lei
pela p re su n ç ã o de Jesu s d e p e rd o a r p ecad o s em 2.10. A referência ao noivo
que “lhes será tirad o ” revela q u e Jesu s está co n sc ie n te das consequências
futuras d a m ald ad e das au to rid ad es (tam b ém 3.6). N a prim eira das m uitas
rem iniscências e alusões ao S ervo d o S en h o r d e Isaías, M arcos sugere que
Jesu s ta m b é m será “ elim inado d a te rra dos v iv en tes” (Is 53.8).
O R eino d e D e u s faz u m a ap arição pessoal em Jesus, m as a vitó ria final
está lo n g e d e ser realizada. O noivo, a fim de so b re p u ja r o p ec ad o e a m o rte,
tem de se to rn a r a v ítim a deles. O s seguidores de C risto, além disso, têm de
ex p e rim en tar d e algum a fo rm a o d estin o d e Jesus, o S en h o r deles, experi-
m e n ta r em especial o estar esc o n d id o e o silêncio d e D eus. A referên cia ao
noiv o ser tirad o d o s discípulos, e o jejum su b seq u e n te deles, era c o m certeza
u m le m b re te d a perseveran ça e fidelidade d a co n g reg ação d e M arcos em
R om a, co n g reg ação essa v ítim a d a p erseguição cru el e p erv ersa d e N ero.
H av erá dias q u a n d o Jesu s estará longe deles, c o m o o Pai ficou lo n g e d e Jesus
d u ra n te a paixão (14.36; 15.34). “ C o n flito s ex tern o s, tem o re s in te rn o s ” , essa
é a fo rm a c o m o P aulo d escreveu os lo n g o s p ercu rso s e vigílias solitárias do
discipulad o cristão (2C o 7.5). F oi c o m referên cia ao su sten to da vida de fé e
crescim en to na sem elh an ça a C risto q u e o jejum c o n tin u o u a ser p raticad o
n o cristian ism o prim itivo.37 A disciplina da privação física n o jejum era um a
ajuda p ara a vigilância, co n trição , força e sensibilidade n a vida cristã.

21,22 A im agem d o ca sam en to m essiânico é seguida p o r duas parábolas


concisas e diretas de Jesus, a prim eira n o evangelho de M arcos. A localização
ap ós o versículo 20 p arece ligá-las in tim am e n te co m o m in istério de Jesus,
e n ão esp ecíficam en te co m o jejum n em c o m o ilustrações gerais d o Reino
de D eus, n ã o m e n cio n a d o (veja 4.26,30). E ssas duas parábolas, c o m o todas
as o u tras d e Jesus, in c o rp o ra m im agens d o dia a dia. A p rim eira re trata um
re m e n d o de p a n o n o v o em u m a veste velha. Q u a n d o lavada, esse rem en d o
novo encolhe, c au san d o u m a ru p tu ra tan to n a veste q u a n to n o rem en d o

37 A tos 13.2,3; 14.23; IC o 7.5; 9.25-27; 2C o 6.5; 11.27; D id. 8.1.


129 M a rc o s 2.21-22

(veja J ó 13.28).38 A seg u n d a descreve vasilhas velhas de co u ro cheias com


vinho n o v o q u e fe rm e n ta e ex p an d e, ro m p e n d o , desse m o d o , a vasilha de
couro velha e frágil (veja J ó 32.19). T a n to o v in h o q u a n to a vasilha de co u ro
ficam arru in ad o s.
A prin cip al im p ressão das duas paráb o las é sua finalidade. O rem en d o
não en co lh id o “ fo rçará” a veste velha, “ to rn a n d o p io r o rasg o ” . A palavra
grega p a ra “ fo rçará” , airein, é a raiz d a palavra n o versículo 20 descrevendo
o noivo sen d o “ tirad o ” deles (gr. apairein). A vasilha d e couro, da m esm a
form a, se “ re b e n ta rá ” e ta n to o v in h o q u a n to a vasilha “ se estrag arão ” (gr.
apollymi, “ d e stru íd o s”). N essa s duas ocasiões, algo q ue já serviu p ara algum a
coisa é d e stru íd o e n ão tem m ais valor.39 O re m e n d o n o v o e o v in h o novo
são incom patíveis co m a veste e a vasilha d e c o u ro velhas; e se h o u v er algum a
tentativa p ara com biná-las, as novas su b stân cias d estru irão as velhas.
“A s duas p aráb o las são so b re a relação d e Jesus, n a v erd ad e d o cristianis-
mo, c o m o ju d aísm o tradicional.”40 A s p aráb o las ilustram a p o stu ra radical
e ousadia d e Jesus. E ste é o re m e n d o n o v o e o v in h o novo. E le n ão é um
adendo, u m a adição o u ap ên d ice d o status quo. E le n ã o p o d e ser in teg rad o nas
estruturas p ré -ex isten tes n e m c o n tid o p o r elas, in d e p e n d e n te m e n te de quais
sejam elas — o judaísm o, a T o rá e a sinagoga. E le, claro, n ão é ascético nem
anarquista e particip a, p o rta n to , c o m o ser h u m a n o das estru tu ras hum anas.
Ele vai à sinagoga, m as n ão da fo rm a c o m o as o u tras p essoas vão à sinagoga.
Jesus vai co m um n o v o en sin o (1.27). E le é co m o os m estres da lei naquilo que
ensina, m as sua au to rid ad e su p lan ta a deles (1.22). E le h o n ra a T o rá q u an d o
envia o paralítico p ara fazer as o fe rtas exigidas p o r M oisés, m as ele n ão fica
circunscrito à T orá; ele q u eb ra os p receito s ali en sin ad o s q u a n d o im p ed em
seu m inistério (2.24; 3.1-6) e a su b o rd in a a si m esm o (M t 5.17; R m 10.4). Seus

38 O s m anuscritos gregos m ostram um a diversidade incom um nas palavras utilizadas


no versículo 22 (veja R. W. Sw anson, ed., N ew Testament Greek Manuscripts: Variant
Readings Arranged in H orizontal lanes Against Codex Vaticanus: M ark [Sheffield: Aca-
demic Press, 1995], p. 32-33). A reconstrução oferecida p o r M etzger parece ser a
m elhor resolução dentre as inúm eras leituras possíveis ( TC G N 1*, p. 67-68).
39 O Evangelho de Tomé, p. 47 inclui duas parábolas em M arcos 2.21,22 em conjunto de
pequenas parábolas sobre a im possibilidade de cavalgar dois cavalos, lançar duas
flechas sim ultaneam ente ou servir dois senhores. O Evangelho de Tomé em prega as
parábolas com o um alerta contra as alianças divididas, p erd en d o com isso o efeito
violento e final em M arcos.
J. D rury, The Parables in the Gospels: History and Allegory (L ondon: SPC K , 1985), p.
45.
M a rc o s 2.23-24 130

c o n te m p o râ n e o s exclam am : “N u n c a v im os n ad a igual!” (2.12). E le renuncia


to talm e n te a si m esm o , e m b o ra jam ais ren u n cie a sua au to rid ad e divina. E le
en treg a-se ao serviço, e m b o ra n ã o faça a aliança c o m n inguém , exceto D eus.
E le dá su a vida p ara o m u n d o , n ão é cativo d o m un do . A q u estão p ro p o sta
pela im ag em d a festa d e ca sam en to e as duas p arábolas m u ito concisas n ão é
se os discípulos, c o m o c o stu ra n d o u m re m e n d o n o v o em u m a veste velha ou
en c h e n d o u m a vasilha d e c o u ro velha co m v in h o novo, ab rirão espaço para
Jesu s em sua vida e agendas já cheias. A q u estão é se eles abrirão m ão dos
n eg ócios c o m o d e c o stu m e e se ju n tarã o à celebração d o casam en to ; se eles,
em sua vida, se to rn a rã o recep tácu lo s to ta lm e n te n o v o s p ara a fe rm en taçã o
expansiva d e Jesu s e d o evangelho.

S E N H O R D O S Á B A D O (2 .2 3 -2 8 )

A m aioria das religiões d o m u n d o v en eram lugares sagrados: o islam ism o


h o n ra M eca; o h in d u ísm o , o rio G a n g es; e o x in toísm o , a ilha d o Japão. O
judaísm o ta m b é m v enerava Jeru sa lém e em especial o tem p lo co m o o lugar
sagrado, m as v enerava algo m ais e talvez acim a desses dois locais: o tempo,
o sábado.
A p e ríc o p e ap resen tad a aqui, e m b o ra d iferen te em c o n te ú d o d a h istória
an terio r so b re o jejum , é em geral sim ilar em co n stru ção. N as duas narrativas,
Jesu s é te sta d o pelo s fariseus p o r causa d o c o m p o rta m e n to de seus discípu-
los, e as du as co n c lu em c o m dois d ito s d e Jesu s (e m b o ra n ão c o m parábolas
n a p re se n te narrativa). A s sim ilaridades fo rm ais c o m o essa são indícios d o
m o d elar co n sc ie n te n a n arraç ão e transm issão. O fato d e cada u m a das qua-
tro histó rias em 2 .1 3 — 3 .6 c o n te re m a p ro x im a d am en te o m esm o n ú m e ro
d e palavras p o d e fixar su a ex ten são e fo rm a n o estágio d a tran sm issão oral.

23,24 A in d ifere n ça o cid en tal em relação à o b serv ân cia d o sáb ad o faz


co m que os leitores m o d ern o s fiquem em desvantagem q u an to à co m p reen são
d a im p o rtâ n c ia d o sáb ad o n o judaísm o. D u a s observ âncias, acim a d e tudo,
definiam o s ju d eu s e os separavam das nações: a circuncisão e o sá b a d o ,
que se esten d ia d o p ô r d o sol d a sexta-feira até o p ô r d o sol d o sábado. O
q u arto m an d a m e n to , o m ais lo n g o d e n tre os D e z M a n d a m e n to s (E x 2 0 ; D t
5) m a n d a q u e o s judeus se a b ste n h a m d e q u alq u er tip o d e trab alh o u m a vez
q u e D e u s m e sm o d escan so u n o sétim o dia d a criação (E x 2 0 .8 -1 1 ). Incluído
n o d escan so d o sáb ad o estavam n ão só os judeus q u e g uardavam o sábado,
m as tam b ém os escravos e anim ais, e até m esm o a vegetação que n ão p o d eria
131 M a rc o s 2.23-24

ser co rta d a, co lh id a n e m a rran c ad a (Filón, V id a de M oisés, 2.22). O sábado,


o ú nico d o s D e z M an d a m e n to s, está firm ad o n a o rd e m da criação e atesta
da o rd e m divina d o u n iv erso (M ek. E x o d . 20.17). D eus, d e aco rd o co m a
tradição judaica, esco lh eu Israel d e n tre to d o s os p o v o s da te rra e instituiu
o sábad o c o m o u m sinal ete rn o e b ê n ç ã o da p o sição singular d e Israel (E z
20.12; Jub. 2.18-33). O s trata d o s (.Shabbai) d a M ish n á e d o T alm u d e oferecem
orientações p ro liferas so b re o q u e é c o n sid e ra d o perm issível n o sábado. O
Talm ude descrev e o sábad o co m u m a o rd e n a n ç a san ta d e D e u s e decreta
que q u em o b se rv a o sáb ad o se to rn a p arceiro d e D e u s n a criação d o m u n d o
e traz salvação p ara o m u n d o (b. Shab. 118-99 b). O s M M M p re serv am as re-
gulam entações m ais rig o ro sas d o sáb a d o n o judaísm o, p ro ib in d o até m esm o
carregar crianças, aju d ar n o n asc im e n to d e anim ais o u re cu p erar u m anim al
que tenha·caído em u m fo sso n o sáb ad o (C D 10— 11). A s tradições farisaicas
e rabínicas eram apenas u m p o u c o m e n o s rig o ro sas em sua interpretação. A
M ishná, a m p lian d o Ê x o d o 35.1-3, en u m era 39 tip o s de trab alh o q u e p ro fa-
nam o sábad o , in cluin d o aqueles q u e p o d eria m o s esperar, c o m o arar a terra,
caçar e m a ta r anim ais, e aqueles q ue n ã o esp eraríam o s e n c o n tra r ali, co m o
am arrar e d e sa m a rra r n ó s, c o stu ra r m ais q u e u m p o n to o u escrever m ais que
um a letra (m. Shab. 7.2). A reg ra geral d a o b serv ân cia era para não co m eçar
um tra b a lh o q u e p u d esse se e ste n d e r até o sábado, e n ão fazer qualquer
trabalho n o sáb ad o q ue n ão fosse a b so lu tam en te n ecessário — entenda-se
po r “ n ecessário ” q u alq uer coisa q ue am eaçasse a vida (m . Yoma 8.6). Tal es-
cru p ulosidad e resultava inevitavelm ente em novas regras. P o r exem plo, era
proib id o c o n se rta r u m pé o u m ão d eslo cad o n o sáb ado (m . Shab. 22.6) ou
co n sertar u m telh ad o caído (em bora pudesse ser esco rad o tem p o rariam en te;
m. Shab. 23.5). O s rabis se esforçavam para o fe rec er u m a regra, o u pelo m enos
um p re ced e n te , p ara cada q u estão concebível p ara o sábado. A abrangência
da trad ição é revelada na seguinte regra: se u m p ré d io caísse n o sábado, parte
considerável d o s e sc o m b ro s p o d eria ser rem o v id a p ara d esc o b rir se havia
vítim as m o rta s o u vivas. Se estivessem vivas, p o d ería m ser resgatadas, m as
se estivessem m o rtas, os cadáveres tin h am de ser deixados ali até o p ô r do
sol {m. Yoma 8.7).41
A co n tro v é rsia na passagem atual reflete a d e term in a ção farisaica para
susten tar e h o n ra r o sábado. Parece q ue Jesu s e seus discípulos violam de
fato duas categorias d e trabalho, a p rim eira é viajar. A n d a r m ais que 1.999
passos (= 800 m etro s) era c o n sid erad o u m a jo rn ad a e, p o r conseguinte, um a

41 Sobre o sábado, veja Schürer, History o f theJewish People, 2.467-75; Str-B 1.610-22.
M a rc o s 2.25-26 132

q uebra d o sáb a d o (C D 11.5,6). C u rio sam en te, os fariseus n ão m en cio n aram


essa infração. A reclam ação deles é q ue os discípulos, ao ap a n h ar espigas de
m ilho, estavam “ c o lh e n d o ” (E x 31.13-17; 34.21). D e a c o rd o c o m D e u te ro -
n ô m io 23.25, re co lh er g rão s d o c a m p o d e seu v izin h o era p erm itid o — m as
n ão n o sábado, se g u n d o u m a regra rabínica p o ste rio r {m. Shab. 7.2). D a í a
rep ro v ação a Jesus: “ O lh a, p o r q u e eles [os discípulos] estão fazen d o o que
n ão é p erm itid o n o sáb ad o ?”

25,26 A reclam ação d o s fariseus era so b re os discípulos de Jesus, m as


este re sp o n d e em n o m e deles, d a m esm a fo rm a q ue o E sp írito S anto resp o n -
d erá pela igreja n a h o ra d a p erseg u ição (13.11). Jesu s em geral apela p ara sua
p ró p ria exousia o u au to rid a d e q u a n d o fazen d o p ro n u n c ia m e n to s o u julga-
m entos. C o n tu d o , o p o rtu n a m e n te ele segue o p re c e d e n te rab ín ico de apelar
p ara a E sc ritu ra n a reso lução d e u m a co n tro v érsia, c o m o faz aqui (tam bém
12.35-37). Jesu s p erg u n ta: “V ocês n u n c a leram o qu e fez D avi q u an d o ele e
seus co m p a n h e iro s estavam n ec essitad o s e co m fo m e?” E prossegue: “ N o s
dias d o su m o sac erd o te A biatar, D av i e n tro u na casa de D e u s e co m eu os
pães da P resen ça, q u e apenas aos sacerd o tes era p e rm itid o co m er, e os d eu
tam b é m aos seus c o m p a n h e iro s” . O p re ced e n te ao qual Jesus apela vem
do s anos em q u e D av i p asso u n o d e se rto q u a n d o ele e seus h o m en s foram
p ro sc rito s pelo rei Saul (1 Sm 21.1-6). D avi, co m fom e e em d esespero, en tro u
“ na casa d e D e u s ” (i.e., o tab ern ácu lo ) em b u sca de alim ento. O s pães em
q u estão re fere m -se aos d o ze pães p o sto s so b re o altar n o sábado p ara servir
de alim ento p ara os sacerd o tes (E x 40.23; L v 24.5-9). A m en ção a A biatar é
pro b lem ática n o relato p o rq u e o sacerd o te em N o b e de q u em D avi p eg o u
os pães foi A im eleque (IS m 21.1), e n ão A biatar, seu filho (IS m 22.20), que
sucedeu ao su m o sac erd o te d u ra n te o rein ad o de D avi. A N V I trad u z p o r
“ n os dias d o su m o sacerd o te A b iatar” — em b o ra n ã o seja tecn icam en te
p reciso c o m o a trad u ç ão d a A R A , “ n o te m p o d o su m o sacerd o te A biatar”
— parece, n ão o b sta n te , m e lh o r p ara ca p ta r a in ten ção d e M arcos, pois o
evento em co n sid eraçã o p arece estar associado n a m em ó ria p o p u la r co m o
su m o sac erd o te A biatar.42

42 O problem a com A biatar em 2.26 não parece ter sido resolvido ao sim plesm ente
atribuir um erro a Jesus o u M arcos. P or um lado, o fato de que D avi apareceu
diante de A im eleque em 1Samuel 21.1-6, com o tam bém o fato adicional de que
tanto M ateus 12.4 q u anto Lucas 6.4 o m item a referência a A biatar em seus textos
paralelos, parecem argum entar em favor de um erro. E sse erro p oderia facilm ente
ser explicado com o um a falha da m em ória, em especial considerando-se o fato
133 M a rc o s 2.25-26

O p eso d o a rg u m en to d e Jesus, n o en tan to , n ã o re p o u sa n o sacerd o te de


N o b e, m as em D avi. O eco m essiânico v elad o n a im agem d o noivo em 2.19
está m ais u m a vez p re sen te aqui em relevo m u ito m ais enfático. D avi foi o
m aior rei d e Israel e o p re c u rso r d o M essias (2Sm 7.11-14; SI 110.1). “ ‘D ias
virão’, declara o S e n h o r , ‘em q u e levantarei p ara D a ta u m R en o v o justo, um
rei que reinará co m sab ed o ria e fará o q u e é ju sto e c e rto na te rra ’ ” (Jr 23.5;
veja ta m b é m Sl Sol. 17.21). A esp eran ça m essiânica davídica foi guardada
com o relíquia nas D e z o ito B ênçãos recitadas n a sinagoga: “ R apidam ente faze
com que a d esc en d ên c ia d e D av id , seu servo, p a ra florescer, e levante a sua
glória pela sua ajuda divina, p o rq u e esp eram o s p o r tu a salvação to d o o dia”
(Ben. 15 [14]). N a E scritu ra, n a trad ição e n a liturgia D av i era consid erad o
com o o in a u g u ra d o r d e u m fu tu ro rein o m essiânico q u e seria m ais glorioso
que seu re in o histórico.
A alusão d e Jesu s ao ep isó d io de N o b e é apenas aproxim ada, pois sua
form a d e re c o n ta r essa história difere em detalhes d o original. N ã o o b stan te,
a referência à visita d e D av i a A im eleque é relevante. D av i co m era os pães
consagrados co m o u m a exceção, q u an d o ele e seus h o m en s estavam fam intos.

de que os m anuscritos com pletos do A ntigo T estam ento eram raros c de difícil
m anuseio (tam bém Schweizer, The Good N e m According 10 M ark, p. 72). C ontu-
do, o p ro blem a é mais com plexo que isso. As discussões mais úteis da questão
são aquelas de L agrange (Evangile selon Saint Marc, p. 53-54) e E . L ohm eyer {Das
Evangelium des M arkus, p. 64). J á n o A ntigo T estam en to , A biatar e Aim eleque
parecem ser confundidos. E m 1Samuel 22.20, afirm a-se que A im eleque c filho
de A itube e pai de A biatar, m as, em 2Sam uel 8.17 e 1C rônicas 18.16, afirm a-sc
que Z ad o q u e é filho de A itue e A im eleque é filho de Abiatar! E m 1C rônicas 24.6,
Aimeleque tam bém é cham ado de filho de A biatar. A genealogia da família é
ostensivam ente: A itube, pai de A im eleque, pai de A biatar, pai de A im eleque
(lC r 24.3,6,31). Parece haver dois A im eleques, o avô e o n eto , com A biatar entre
eles; n o entanto, conform e observado acima, o segundo e o terceiro m em bros da
linhagem sào algumas vezes invertidos. A biatar, de acordo com a opinião geral,
o m em bro dom inante da genealogia p o r ter sobrevivido ao m assacre de seu pai
por D ocguc e fugiu para ficar com D avi. Ali se to rn o u sum o sacerdote durante
todo o reinado de D avi (tam bém Josefo, A n t. 6.269-70), o que po d e explicar a
associação de D avi com ele em M arcos 2.26. M arcos com as palavras, epiAbiathar
archiereõs, em prega epi tecnicam ente para significar “n o tem p o d e” (tam bém IM ac
13.42; Lc 3.2; A t 11.28; Martírio de Policarpo, p. 21). A N V I traduz por: “N o s dias
do sum o sacerdote A biatar”, parecendo, p o rtan to , traduzir o sentido pretendido
por M arcos. E m b o ra D avi tenha de fato com ido os “pães da Presença” sob Ai-
meleque, o evento parece ter sido lem brado e transm itido em associação com o
sum o sacerdócio dom inante de Abiatar.
M a rc o s 2.27-28 134

Jesus, n o en tan to , n ão u sa aquele in cid en te p ara p e d ir p o r u m a exceção no


sáb ado p ara seus discípulos fam intos. E le cita a violação da T o rá p o r D avi
n ão c o m o u m a d escu lp a p o r sua ação, m as c o m o u m precedente. Jesus, ao fazer
a alusão a D avi, co n v id a os o u v in tes a fazerem u m a co m p aração en tre sua
p esso a e o tip o m essiânico real d e Israel. E ssa é a prim eira de várias referen-
cias o u alusões a D avi n o evangelho d e M arcos, e essas referências ajudam
a definir q u e tip o d e F ilh o d e D e u s é Jesus. O cego B artim eu ch am ará Jesus
de “ F ilho de D a v i” (10.47), e m ais tard e n o tem p lo — n o ce rn e de Israel —
Jesus m en cio n a o a ssu n to ao q u estio n ar os líderes religiosos: c o m o é possível
para o M essias se r ta n to “ filho” e “ S e n h o r” de D avi (12.35-37)? O que fica
im plícito é q u e o M essias é o “ filh o ” d e D av i p o rq u e ele é d esc en d en te de
D avi, m as o “ S e n h o r” d e D av i p o rq u e é u m a au to rid a d e m ais alta. O apelo
a D avi em n o ssa passag em co m eç a a d efin ir a au to rid a d e de Jesu s c o m o o
F ilho de D e u s real an tecip ad o d esd e o rein ad o de D av i (veja o excurso sobre
O homem divino em 3.12).

2 7 ,2 8 M a rco s c o n c lu i a c o n tro v é rs ia s o b re o c a m p o d e g rã o s co m
duas falas d e Jesus. E m 2.27, fica esclarecido o re la cio n am en to en tre a vida
h u m an a e o sábado: as p esso as n ão foram feitas p ara as regras d o sábado,
m as o sáb a d o foi in stitu íd o a fim d e ab e n ç o a r a h u m an id ad e e fortalecer seu
bem -estar. E ssa reg ra expressa u m p rin cíp io n o tav elm en te sim ilar àquele
d o v in h o e das vasilhas d e co u ro em 2.22: assim c o m o as vasilhas de co u ro
têm d e se c o n fo rm a r ao v in h o , ta m b é m a lei co n firm a a vida hum ana. Jesus
corrige u m a in terp retação equivocada q u e to rn a a T orá u m jugo p esado sobre
a existência h u m a n a e re cu p era sua verdadeira in ten ção c o m o u m a ajuda e
gu ardiã d a vida. A regra d e Jesu s so b re o sáb ado tin h a algum a analogia no
judaísm o. U m rabi d o final d o século II, em essência, co n c o rd o u : “ O sábado
foi d a d o p ara você; v ocê n ão foi d a d o p ara o sáb a d o ” (Mek. Exod. 31.13).
C o n tu d o , co m q u e au to rid a d e Jesu s tran sg rid e a co n v en ção d o sábado
e o u sa redefini-la? A re sp o sta é d ad a n o p ro n u n c ia m en to p ro m ete ic o do
versículo 28. O v erd ad eiro sen h o rio so b re o sábado está investido n o F ilho
d o h o m em . A lguns estu d io so s arg u m en tam que o F ilho d o h o m e m n o ver-
sículo 28 é em essência u m a circu n lo cu ção para “ h o m e m ” n o versículo 27;
assim , se o sáb ad o foi feito p ara a h u m an id ad e , e n tão a h u m an id ad e é aquela
que g o v e rn a esse dia.43 E sse arg u m e n to p o d e ser atra en te em fu n d am en to s

43 P or exem plo, R. Funk, R. H o o v er e o Jesus Sem inar, The Five Gospels: W hat D id
Jesus Really Saj? (San Francisco: H arperSanFrancisco, 1997), p. 49, traduz M arcos
135 M a rc o s 2.27-28

hum anísticos, m as d ep ara-se co m o b jeçõ es form idáveis. Se, c o n fo rm e ob-


servam os an te rio rm e n te, o sáb ad o estava fu n d a m e n ta d o na criação e era a
característica m ais distintiva d o judaísm o, é inconcebível que Jesus o u qualquer
o u tro rabi declare a su p rem acia h u m an a so b re ele.44 Segundo, essa solução
não re sp o n d e a p erg u n ta d o s fariseus n o versículo 24: “ O lh a, p o r que eles
estão fazen d o o q u e n ão é p e rm itid o n o sáb ad o ?” Se o “ F ilho d o h o m e m ”
significa apenas “ h o m e m ” , e n tão o versículo 28 n ão é u m a re sp o sta p ara os
fariseus, m as u m a m era tautología. P o r fim , n ão h á instâncias d o uso de “ Filho
do h o m e m ” n o s evangelhos em referên cia à h u m an id ad e em geral. A qui esse
título, c o m o sem p re q u e “ F ilh o d o h o m e m ” ap arece n o s lábios de Jesus, traz
o artigo d efin id o “ 0 F ilh o d o h o m e m ” , referin d o -se à v ocação única d e Jesu s
com o F ilh o d o h o m e m co m au to rid a d e e p o d e r div inos d e D an iel 7.14.45
Até m e sm o q u a n d o “ F ilh o d o h o m e m ” refere-se ao so frim en to h u m an o
de Jesus, c o m o em geral aco n tece, esse títu lo q u ase sem p re se refere àquele
sofrim ento c o m o u m cu m p rim e n to d o m a n d a to divino (veja o excurso so b re
O Filho do homem em 2.12). O títu lo p o d e significar as várias fun çõ es de
Jesus, m as, n o s ev angelhos (com o, p o r exem plo, em Salm os e em E zequiel),
não significa apenas “ h o m e m ” .
A única c o m p re en sã o plausível d e “ F ilh o d o h o m e m ” n o versículo 28 é
com referên cia a Jesus. A sintaxe g reg a d o versículo 28 é arrojada. A palavra
para “ S e n h o r” (gr. kyrios) foi m u d ad a d e fo rm a p ro e m in e n te p ara o início
da sen ten ça, to rn a n d o -a en fática n o g reg o , ac e n tu a n d o quem é o v erdadeiro
Senhor d o sáb ad o . P o d e m o s trad u zi-la d a seg uin te form a: “ E q u em é o
Senhor d o sáb ad o ? O F ilh o d o h o m e m é!” N o s evangelhos, o títu lo “ F ilho
do h o m e m ” é u sad o ap en as p o r Jesu s p ara se referir a si m esm o , q u e r a sua
presente p o sição , ta n to d e h u m ilh a ção q u a n to d e au to rid ad e, q u e r a sua
futura glória. A qui, tam b ém , é u m a referên cia à au to rid ad e d e Jesu s, e não
uma circunlocução p ara a h u m an id ad e em geral. D e u s, co n fo rm e observam os
antes, in stitu ira o sáb a d o (G n 2.3), e Je su s ag ora p re su m e p reem in ên cia
sobre ele! Je su s, m ais u m a vez, p õ e a si m esm o n o lugar d e D e u s. A ssim , o

2.27,28 desta forma: “ Ό sábado foi criado para Adão e Eva, e não Adão e Eva
para o sábado. Assim, o filho de Adão governa até mesm o o sábado”’. Por “Adão
e Eva” e “ filho de Adão” , o Jesus Seminar quer dizer qualquer m em bro da raça
humana. Veja a discussão e crítica dessa leitura em R. Guelich, Mark 1-8:26, p.
125-27.
44F. W. Beare, “T he Sabbath Was Made for Man” ,/A L 79 (1960), p. 130-36; Nine-
ham, The Gospel of St Mark, p. 108.
45Moule, “ T h e Son o f Man’: Some o f the Facts” , N TS 41 (1995), p. 277-79.
M a rc o s 2.27-28 136

versículo 27 o ferece o prin cíp io ; e o versículo 28, a au to rid ad e efetiva p o r


trás dele; o u seja, o p rin cíp io d o versícu lo 27 é v erdadeiro p o rq u e o F ilho
d o h o m e m d o versículo 28 é o S enhor! A au to rid ad e d e Jesu s c o m o o Filho
d o h o m e m se esten d e so b re o sáb ad o .
O te x to d e 2.27,28 p re s e rv a u m im p o rta n te ind ício q u a n to ao rela-
cio n a m e n to de Jesu s co m a T o rá, o evangelho e a lei, algo que há m u ito é
u m p o n to d e c o n tro v é rsia n o cristianism o. O s ex tre m o s d o legalism o e do
an tin o m ia n ism o são evitados. A q u i, a lei n ão é co n sid erad a c o m o u m a re-
velação a u tô n o m a , a qual n o legalism o ten d e a su b stitu ir a p esso a de D eus.
Jesus, tam p o u co , é u m ag en te livre q u e anula o sábado, a o rd e m m o ral ou
a v o n ta d e revelada d e D e u s, c o m o ac o n te ce n o an tin om ianism o. A ntes, as
falas do s versículos 27,28 e n sin am q u e o p ro p ó s ito justo de D eu s, c o n fo rm e
m an ife sta d o n a T orá, p o d e ser re c u p e ra d o e c u m p rid o apenas em relação a
Jesus, q ue é o S e n h o r dela.

U M A Q U E S T Ã O D E V I D A E M O R T E (3 .1-6 )

E m estilo, esse relato re p e te u m p ad rão d e ep isód ios anteriores. M arcos


p re p a ra o p alco p a ra a n arrativ a u sa n d o o ao risto g re g o (pretérito, v. 1) e,
a seguir, atrai o leito r d ra m a tic am en te p ara u m a ação co n tín u a u san d o os
im p erfeito s e p re sen tes g re g o s (w . 2-5). A urgência da narrativa sugere m ais
u m a vez u m a rem iniscência p esso al, talvez d e P edro .46 M arcos, co m esse
episódio, conclui as h istó rias d e co n flito iniciadas em 2.1. Jesu s, em cada
h istó ria, re g istra u m c u rso s o b e ra n o , livre d a m e sm a fo rm a das n o rm a s da
so cied a d e e d a ex p e ctativ a d o s m e stre s d a lei, d o s fariseus e in te rp re ta ç ã o
rab ín ic a d a T o rá. Sua aliança é ex clu siv am en te co m as b o as-n o v as.d e D e u s
(tam b é m 1.14,15), as quais, nessas cinco histórias, é dirigida d ireta m e n te
aos n ec essitad o s e p esso as p ro scritas. Sua m issão, n o en tan to , n ão ficou
sem oposição. A p ro clam ação e a p rática das b o as-n o v as o c o rre m em m eio
à resistência e até m esm a hostilidade, c o n fo rm e M arcos quis tran sm itir esse
sen tid o ao ligar o início d o m in istério de Jesu s co m a p risão de Jo ã o B atista
(1.14). Já Jesu s tem a re p u ta ç ã o d e ser b lasfe m a d o r (2.7), u m colega d o s pe-
cado res (2.16), um ap o stata d o co stu m e religioso (2.18) e u m tran sg resso r
d o sáb ado (2.24). E sses sen tim en to s se to rn a rã o m an ife sto s em um c o n tra to
s o b re su a vida n essa ú ltim a h istó ria d e co n flito , p o is “ os fariseus saíram
e co m eç ara m a c o n s p ira r c o m os h e ro d ia n o s c o n tra Jesu s, so b re c o m o

46 T am bém V. Taylor, The GospelAccording to St. Mark, p. 220; C. E. B. Cranfield, The


GospelAccording to Saint Mark, p. 119.
137 M a rc o s 3.1-4

p o deríam m a tá -lo ” (3.6). Jesus, co m to d a a estrad a ainda adiante de si, tem


de co n d u z ir sua jo rn ad a n a so m b ra d a cruz.

1,2 E sáb ad o , e Jesu s está d e n o v o n a sinagoga, p resu m iv elm en te em


Cafarnaum . U m h o m em ali p resen te tem “u m a das m ãos atrofiada” . A palavra
traduzida p o r “ atro fiad a” (gr. xêraineiti) o c o rre várias vezes em M arcos, cujo
sentido se esten d e en tre “ cess[ar]” (5.29), “ s e e [ar]” (4.6; 11.20,21) e “ rígido”
(9.18). A m ão rígida e d efo rm ad a parece se ajustar ao p re sen te co n tex to . E les
“o observav am aten ta m e n te ” está n o te m p o verbal im p erfeito (gr. paretêrom),
com o sen tid o de “ ficar em su sp en se” . C o n scien tes d e q u e Jesu s já curara ali
no sábado (1.21-28), to d o s os o lh o s se v o ltaram “p ara ver se ele iria curá-lo
[o h o m em co m a m ão atrofiada] n o sáb ad o ” . A lguns, em m eio à congregação,
não são apenas o b serv ad o res n e u tro s e im parciais. N a realidade, estão m o -
tivados p ara “ acu sar Jesu s” . A iro n ia d e M arco s está m ais u m a vez presente:
as autoridades negam a Jesu s o d ireito de fazer o b em n o sábado, e n q u a n to
conspiram p a ra fazer o m al n o sábado.
A s regras d o sábado, c o n fo rm e o b se rv a m o s an te rio rm en te, p o d iam ser
suprim idas apenas em casos d e p erig o de vida {m. Yoma 8.6). C aso co ntrário,
as várias escolas d o ju d aísm o co n c o rd av a m q ue o sáb a d o deveria ser total-
m ente o b serv ad o .47 O s p rim eiro s so c o rro s eram c o n sid erad o s adm issíveis
para prev en ir q u e algum ferim e n to ficasse pior, m as os esfo rço s em direção à
cura eram co n sid erad o s c o m o trab a lh o e tin h am d e e sp e rar o fim d o sábado.
A m ão atro fiad a, co m certeza, n ão era u m m al q ue p u n h a em risco a vida
e não era co n sid erad a u m a exceção às regras d o sábado. N a v erd ad e, “ eles,
[no sábado], n ão p o d iam en d ireitar um c o rp o d e fo rm a d o nem p ô r n o lugar
um m e m b ro q u e b ra d o ” (m. Shab. 22.6).

3 ,4 Je su s, n o e n ta n to , o rd e n a c o m d e s tre z a ao h o m e m d eficien te:


“Levante-se e v en h a p ara o m eio ” . E possível até m e sm o sen tir o h o rro r
do h o m em . Se tivesse im agin ad o q ue sua deficiência se to rn aria um espetá-
culo público, ele, co m certeza, jam ais teria se a v e n tu rad o a co m p arece r na
sinagoga. O m aio r p av o r da m aioria das p esso as c o m algum a deficiência ou
deform idade é q ue as pessoas a en carem de frente, e n ão passar pelos luga-
res sem ser n o tad o : o h o m e m é ch a m a d o p o r Jesu s p ara ir para o cen tro da
sinagoga. Jesu s pergunta: “ O q u e é p e rm itid o fazer n o sábado: o b em o u o
mal, salvar a v id a o u m atar?”

47 Veja a discussão sobre guardar o sábado em 2.23.


M a rc o s 3.1-4 138

A prim eira p a rte d a p erg u n ta so b re fazer o b em o u o m al obviam en te


se refere à cura d o h o m e m deficiente. A necessidade h u m an a, p ara Jesus, re-
p re se n ta u m im p erativ o m oral. O n d e o b e m precisa ser feito, n ão p o d e haver
neutralidade, e deixar d e fazer o b e m é co n trib u ir para o mal. A ssim , n ão só é
p e rm itid o cu rar n o sábado, m as é correto cu rar n o sábado, q u e r isso esteja de
ac o rd o co m o q u e é legal o u lícito q u e r não. U m teste decisivo da verdadeira
religião versus a falsa é a re sp o sta à injustiça. As au to ridad es religiosas, diante
d a necessidade d esse h o m e m , “p e rm a n e c e ra m em silêncio” , m as Jesu s fica
“irado [...] e p ro fu n d a m e n te e n tristec id o ” (v. 5). O silêncio das au toridades
religiosas é a evidência d e que, p ara elas, a religião n ad a m ais é q u e o cum -
p rim e n to d e estipulações, c o m o dirigir n a velocidade p e rm itid a (usando um a
analogia m o d e rn a ), e m b o ra haja o desejo d e dirigir m ais rápido. E sse tipo
d e religião p o d e m u ito facilm ente estar sep arad o d a n ecessidade h u m an a. A
religião ap ro p riad a, p ara os o b se rv a d o re s coniventes, não diz respeito à in-
ten çã o d o coração, m as se tra ta daquilo q u e p o d e ser em p íricam en te testad o
e m edido, das q u estõ es da c o rre ç ã o teológica, dos assu n to s ligados à pureza
e d o c u m p rim e n to das exigências legais. O s o b serv ad o res estão d isp o sto s a
to lerar a co n d içã o lam entável de o u tro ser h u m a n o e, nessa ocasião, usá-la
c o m o u m a o p o rtu n id a d e c o n tra Jesus. C o n tu d o , Jesus n ão usa as pessoas,
q u e r p o d ero sas q u e r im p o te n te s, p ara p ro p ó sito s en c o b erto s. Para Jesus, o
evangelho d e D e u s (1.14) é d iferen te d a religião, p ois ele trata da disposição
d o co ração q ue n ã o p o d e ficar inabalável d ian te d o so frim ento. A p en as no
G etsê m a n i (14.34) é q u e o p esa r e a angústia de Jesu s se expressam de m o d o
m ais vee m e n te em M arco s d o q u e em face d a d u re za en c o n trad a na reunião
da sin ag og a d ian te d o so frim e n to desse h o m em . A s q u estõ es da o rto d o x ia
teológica e d o c o m p o rta m e n to m o ral n ã o p o d e m ser resp o n d id as de fo rm a
abstrata, m as apenas p o r m eio d e u m a re sp o sta co ncreta ao cham ado de D eus
n a vida d e alguém e às n ecessid ad es h u m an as à m ão. P o d e-se p assar o u ser
re p ro v a d o n o teste d e to d a teologia e m o ralid ad e p o r m eio da re sp o sta aos
m em b ro s m ais fracos e m ais in d efeso s d a sociedade. P ara Jesus, o cham ado
d e D e u s apresen ta-se u rg e n te m e n te n a n ecessid ad e desse h o m e m particular.
N e sse p o n to d a h istória, o fo co m u d a a b ru p ta m e n te, c o m o aco n teceu
co m a cu ra d o paralítico (2.5,6). A seg u n d a p a rte da q u estão v em c o m o u m a
surpresa. O q u e se q u e r dizer p o r “ salvar a vida o u m atar” ? A q u estão na
sin ag og a é so b re se Jesu s efetu ará a cu ra n o sáb ado o u não, e n ão so b re viver
o u m o rre r.48 O u assim parece. N o en tan to , Jesus, m ais um a vez, co n h ece as

48 A versão de Mateus da história (Mt 12.9-14) omite a referência a “salvar a vida ou


matar” , m antendo desse m odo o foco da história na cura. O mesmo é verdade
139 M a rc o s 3.5

intenções daqueles q ue seguiram esse evento (2.8; J o 2.28), e talvez até tenham
planejado isso. A segunda p a rte da q u estão n ão se refere m ais ao h o m em com
a m ão atro fiad a, m as ao p ró p rio Jesus. E sse h o m e m é apenas u m joguete.
Se Jesus to rn a r a violação d o sáb ad o u m h áb ito ,49 as au to rid ad es terão razão
para m atá-lo. O e n q u a d ra m e n to da p e rg u n ta n o versículo 4, d e fo rm a sutil
e p o d ero sa, liga o d estin o de Jesu s in ex trin cav elm en te c o m o d o h o m em
com a m ã o atrofiada. F azer “ o b em o u o m al” refere-se à re sp o sta d e Jesus
ao h o m e m d esa fo rtu n a d o ; “ salvar a vida o u m a ta r” refere-se à re sp o sta dos
observadores a Jesus. A re sp o sta d e Jesu s p ara o h o m em co m a m ão atrofiada
determ inará a re sp o sta deles a ele. “M as eles p erm a n ece ram em silêncio.”
D essa vez, u m a rg u m e n to d o silêncio é conclusivo.

5 Jesús, d e a c o rd o c o m M arcos, “ o lh o u p a ra os q u e estavam a sua v olta” .


O term o g re g o periblepesthai, u m dos favoritos d o v ocabulário d e M arcos,
descreve u m a in sp eção b rev e e p o d e ro sa , em geral seguida p o r u m p ro n u n -
ciam ento au to ritativ o (3.5,34; 5.32; 10.23; 11.11). A d escrição d e M arcos da
ira de Jesu s d ian te d a d u re za dos o b se rv a d o re s é vivida e im pressionante.
Ele usa três palavras gregas m u ito v ee m e n tes q u e n ão ap arecem em n en h u m
outro tre c h o d o evangelho. Jesus, a p ó s in sp ecio n a r a m ultidão, fica “irad o ”
(gr. m et’ orgês)·, e ele fica “ p ro fu n d a m e n te e n tristec id o ” (syllypoumenos) co m o
coração “ e n d u re c id o ” (põrõsei). A palavra trad u zid a p o r “ en d u recid o ” n ão
significa m a l-in ten cio n a d o (em b o ra, n esse caso, ela p areça ab ran g er esse
sentido tam b ém ) ta n to q u a n to n ã o estar d isp o sta a en ten d e r.30 T am p o u co ,

sobre a versão da história preservada em Jeró n im o (Com. sobre M t 12.13), co m a


inclusão da vocação do hom em : “N o evangelho que os nazarenos e os ebionitas
usam, recentem ente traduzido d o hebraico para o grego e cham ado pela m aioria
das pessoas d o autêntico [Evangelho de] M ateus, o h o m em co m a m ão atrofiada
é descrito com o um pedreiro que pediu ajuda com as seguintes palavras: ‘E ra um
pedreiro e ganhava a vida com m inhas m ãos; im ploro a ti, Jesus, para que restaure
minha saúde para que eu não ten h a a ignom ínia de ter de m endigar p o r m eu p ã o ’”
(N TApoc 1.160).
49 E m M arcos, o sábado, para Jesus, é um dia de contendas. A s curas (1.21; 3.2,4); o
trabalho, o u seja, “ fazer o que não é lícito” (2.23,24,27); e a redefinição do sábado
(2.28); essas atitudes atraíram a oposição a Jesus, com o quando visita N azaré (6.2).
Apenas n o sepulcro é que Jesus descansa n o sábado (16.1,2,9)!
50Veja K. L. e M. A. Schm idt, “põroõ”, T D N T 5.1025-28. A palavra grega para “en-
durecido” o u obstinado o co rre nas form as nom inais e verbais em 3.5; 6.52; 8.17;
João 12.40; R om anos 11.17,25; 2C oríntios 3.14; e E fésios 4.18 para descrever os
judeus, os gentios e os discípulos.
M a rc o s 3.6 140

tal d u re za e o b stin a ç ã o d izem re sp eito apenas aos o p o n e n te s d e Jesus; ela


descreve igualm ente seus p ró p rio s discípulos (6.52; 8.17). A ira d e Jesu s é
u m a descrição d a in d ig n ação justa. O m aio r inim igo d o a m o r e da justiça
divinos n ão é a o p o sição , n e m m e sm o a m alícia, m as a d u reza d o co ração e
a in diferença pela graça divina, às quais n em m esm o os discípulos d e Jesus
são im unes.
Jesu s n ã o se equivoca. E le n ão d ecid e agir o u n ão d e p e n d e n d o d e sua
p o sição nas pesquisas de o p in ião n em nas co n sequ ên cias pessoais p ara si
m esm o. “E s te n d a a m ã o ” , o rd e n a ele. A q u ilo q ue o h o m e m c o m a m ão
atrofiad a m ais tem e está d ian te dele. U m a escolha precisa ser feita. E le p o d e
se recu sar a e ste n d e r a m ão e se p o u p a r d a hum ilhação. C o n tu d o , ao fazer
isso, ele só será c o m o o s líderes religiosos q u e se recusam a ab rir a si m esm os
p ara a palavra de Jesus. O u ele p o d e assu m ir o risco da fé e agir seg u n d o o
c o m a n d o d e Jesus. “ E le a e ste n d e u ” , diz M arcos, “ e ela foi restau rad a” . E sse
h o m e m , ao se e x p o r a Jesus, foi curado. M arcos, m ais u m a vez, descreve a
fé sem usar essa palavra. A fé n ã o é u m a a p o sta p articu lar e privada, m as um
risco p úb lico d e q u e Jesu s é dig n o de co n fian ça q u a n d o n ão se p o d e confiar
em n e n h u m a o u tra esperança.

6 A co m p aix ã o d e Jesu s é livre, m as custosa. A m ão é restaurada, m as


os fariseus e h ero d ia n o s “ co m eç ara m a co n sp ira r [...] c o n tra Jesus, sobre
c o m o p o d ería m m atá-lo ” . A s razõ es p ara essa decisão n ão são apresentadas,
m as a evidência c o n tra je s u s é n u m erosa: violações d o sábado (1.21-25; 2.23-
28); co n fra te rn iz a r co m p ec ad o re s (1.40; 2.13-17); d esresp eitar os co stu m es
rabínicos (2.18-22); e p re su n ç ã o d e p e rd o a r p ecad os (2.10,11).
M arcos localiza a tram a c o n tra je s u s n o s fariseus e herodianos. A iden-
tidade d o s h ero d ia n o s, em c o n tra ste co m a d o s fariseus (veja em 2.18), é ex-
trem a m e n te am bígua.51 M ateu s 12.14 e L ucas 6.11 o m ite m os h ero d ia n o s de
suas versões d a história. O te rm o “ h ero d ia n o s” , à p a rte de três referências de
passagem n o N o v o T esta m e n to (3.6; 12.13 [8.15?]; M t 22.16), está au sen te da
literatura d a A ntiguidade. A referência em Jo se fo aos “ partidários de H ero d es
(o G ra n d e )” {Ant. 14.447) p o d e se referir a esse g ru p o sem n e n h u m a o u tra

51 O s trabalhos de referência clássicos, em geral, negligenciam os herodianos, em


grande p arte p o r causa da escassez de inform ações sob re eles. Boas discussões
p o d em ser encontradas em Η . H . Rowley, “T h e H erodians in the G o sp els” , J T S
41 (1940), p. 14-27; S. Sandm el, “ H erodians” , ID B 2.594-95; e G uelich, M ark
1-8:26, p. 138-39.
141 M a rc o s 3.6

identificação além d essa.5253Jo sefo , em u m a referência separada, o b serv a que


H erodes (o G ra n d e) “ d e m o n s tro u favor especial àqueles d o p o v o da cidade
que estiveram d o seu lado e n q u a n to ele ainda era u m a p esso a c o m u m ” (A n t.
15.2). E ssas alusões sugerem q u e os h ero d ian o s n ão eram u m a facção distinta
do judaísm o n e m u m p a rtid o político, c o m o o eram os fariseus, os saduceus
ou os essênios, p o r exem plo, m as, antes, eram sim patizantes e apoiadores
da causa d e H e ro d es e d a dinastia h ero d ian a. N o N o v o T estam en to , os he-
rodianos se m p re ap arecem em aliança c o m o s fariseus. E ssa é um a aliança
curiosa e inesp erad a, pois os fariseus se o p u n h a m c o m firm eza ao h elenism o
e tinham p o u c o em co m u m c o m aqueles liv rem en te c o m p ro m e tid o s com
as influências helenistas e c o m os políticos ro m a n o s.33 A aliança desses dois
grupos, q u e d o co n trá rio seriam antagonistas, tem d e a rg u m e n tar em favor
da m agn itu d e d a o p o sição deles a Jesus. A inclusão d o s h ero d ian o s n o ver-
sículo 6 é u m aviso an tecip ad o d e q u e a ()posição a Jesu s n ão é só religiosa,
mas talvez ta m b é m política (6.14-29; 12.13; 15.1,2).

52 Rowley o bserva que a Peshita siríaca entende os herodianos dessa m aneira, tradu-
zindo 3.6 com o “ aqueles da casa de H ero d es” (“T h e H erodians in the G o sp els” ,
J T S 41 (1940), p.23. C. D aniel, “Les ‘H ero d ien s’ du N o u veau T estam en t sont-ils
des E sseniens?” RevQ 6 (1967), p. 31-53, faz a p ro p o sta altam ente insustentável
de que os herodianos eram essênios que ganharam o apelido de “ h ero d ian o s” dos
inimigos de H erodes que se ressentiam do fato deste p ro teg er e apoiar os essênios.
A clara ausência de dados objetivos sobre os herodianos p õ e em dúvida a tese de
Daniel e seus apoios conjecturais. Veja a refutação de W. B raun, “W ere the N ew
T estam ent H erodians E ssenes? A C ritique o f an H ypothesis” , RevQ 14 (1989),
p. 75-88.
53 Sanders, The HistoricalFigure ofJesus, p. 1 3 0 3 2 ‫־‬, considera a m enção dos herodianos
anacronistica em 3.6. E le considera os conflitos em 2.1— 3.6 co m o “razoavelm en-
tc m enores” e duvida da oposição herodiana em um m o m en to m uito inicial do
m inistério de Jesus. E le explica a m enção desse g ru p o aqui ao su p o r que 2.1— 3.6
era originalm ente u m prefácio para o relato da paixão que M arcos tran sp ô s para
o início de seu evangelho! E ssa é um a hipótese extrem ada e n ão com provada. O s
conflitos em 2.1— 3.6 dificilmente podem ser considerados “m enores” ; a blasfêmia
(2.7) já lança o fund am ento para um caso capital c o n trajesu s. A suposição de que
2.1— 3.6 já funcionou com o um prefácio para a narrativa da paixão é totalm ente
conjectural. P o r fim, as sugestões dogm áticas sobre os hero d ian o s são surpreen-
dentes, considerando-se a obscuridade destes. Sabem os que H erodes, o G rande,
governou inicialm ente a Galileia antes de desalojar seu irm ão Fasael em jerusalém .
E totalm ente razoável su p o r que seus apoiadores continuaram a constituir um a
presença política relevante na Galileia, e que os fariseus, p ercebendo a am eaça
de Jesus a sua hegem onia religiosa, perceberam que deveríam se aliar com os
herodianos, politicam ente astutos, para tram ar a m orte de Jesus.
M a rc o s 3.7-8 142

A d em o n stração d a auto rid ad e de Jesus é co m u m a cada u m a dessas cinco


histórias em 2.1— 3.6: p e rd o a r p ec ad o s (2.1-12); co m e r co m p ecad o res e pu-
blicanos (2.13-17); abster-se d o jejum (2.18-22); su p lan tar o sábado (2.23-28);
e cu rar n o sáb ad o (3.1-6). Paralela à au to rid ad e d e Jesu s está a o p o sição das
auto rid ades, a qual co m eça co m a acusação silenciosa (2.6,7), intensifica-se
co m o q u estio n am en to (2.16; 2.24); e conclui co m um a tram a co n tra a vida de
Jesu s (3.2,6). T odavia, q u a n to m aio r a op o sição , m aio r a au to rid ad e de Jesus.
Sua au to rid a d e é ta n to a p re sen ça p ró x im a e útil d e D e u s q u a n to u m a pedra
de tro p eço . E ssa m e sm a au to rid a d e — e os conflitos re sultantes dela — será
d em o n stra d a d e n o v o co m os líderes religiosos n o tem p lo (11.27— 12.37). A
referên cia ao “ no iv o [que] lhes será tira d o ” (2.20) e a tram a c o n tra a vid a de
Jesu s (3.6) já lança a p e d ra angular p ara a paixão e a m o rte d o F ilho de D eus.

O P R E G A D O R A O A R L IV R E ( 3 - 7 1 2 ‫)־‬

E sse su m ário editorial d o m in istério d e Jesus fo ra de C afarn au m não


tem u m paralelo ex ato n o s evangelhos, em b o ra seja sim ilar à d escrição ante-
rio r d o su m ário d o m in istério d e Jesu s em 1.35-39. O evangelho de M arcos
é in c o m u m e n te p articu lar e c o n c reto , n a rra n d o o qu e Jesu s fez e disse em
situações específicas. C o n tu d o , M arcos n ã o p o d e fo rn ece r u m a “ vida com -
p leta” d e Jesus, relatos gerais resu m id o s co m o esse aqui in fo rm am e lem bram
os leitores d e q u e o m inistério d e Jesu s su p lan ta as histórias incluídas no
evangelho d e M arcos. A rep u ta ção e o m in istério d e Jesu s d esfru tara m de
extensa influência g eo g ráfica e d o m ín io so b re as forças dem oníacas, b em
co m o d a o p o sição m u n d an a.

7,8 “Jesus retirou-se co m os seus discípulos para o m ar [...].” E m b o ra essa


seja a única ocasião em que vem os o u so d o verb o “retir[ar-se]” (gr. anachõreiti)
em M arcos, as m uitas ocorrências d o te rm o em M ateus sugerem retirada para
u m iso lam en to e solitude. E possível que Jesus, co nsiderando-se a b atería de
testes q u e e n fre n to u em 2.1— 3.6, deseje escap ar de ou tras im p o rtu n açõ e s
das au to rid ad es religiosas. A d escrição dessa retirada “p ara o m a r” em M ar-
cos é enigm ática e su rp re e n d e n te p o rq u e C afarn au m , o local d eclarado de
3.1-6, fica n o m ar. A fraseologia talvez indique q u e Jesu s saiu de C afarn au m
para ir a faixas da co sta m ais d esertas e a n o rte , o n d e o rio Jo rd ã o deságua
nesse m ar o u lago.
“ U m a g ra n d e m u ltid ão ” se re ú n e ali, essas p essoas são p ro v en ien tes de
u m a extensa região geográfica, n ão só da G alileia, m as tam b ém da Ju d eia
143 M a rc o s 3.9-12

(incluindo Jeru salém ), d a Id u m eia, cerca d e 190 q u ilô m e tro s a sul, d e p o n to s


a leste d o rio J o rd ã o e tam b é m d e T iro e S idom , cerca de 80 qu ilô m etro s
a norte. Ig u a lm e n te n o táv el é a diversidade étn ica da m ultidão. A Galileia,
a Judeia e Jeru sa lém eram te rritó rio s p rin cip a lm en te judeus; a Id u m eia e a
Transjordânia eram regiões m istas de judeus e gentios; e T iro e S idom eram em
grande parte, se n ão to talm ente, regiões gentias (veja Lc 6.17; M t 11.21,22).54 A
fama d e Jesu s é d e lo n g o alcance e ab ran g e to d o s, o q u e é ainda m ais notável
considerando-se as segm entações sociais d a época. O esc o p o da influência de
Jesus excede aquele d e J o ã o B atista q ue atraía apenas m u ltidões d e Jeru salém
e da Ju d eia (1.5). Jesus, co m essa re p u ta ção e m ag n etism o, é de n o v o “ mais
p o d ero so ” (1.7) q u e Jo ã o Batista. A descrição d a influência geográfica de
Jesus em M arcos, c o m o o re tra to d o S ervo d o S en ho r, designa-o c o m o “ luz
para os g e n tio s” (Is 49.6).

9,10 A m u ltid ão d e tam a n h o considerável atraída pela fam a d e Jesu s é


mais u m a vez u m a força am bivalente, p ro v e n d o ta n to um a o p o rtu n id a d e
quanto u m im p e d im e n to p ara o en sin o e m in istério de Jesu s (veja a discussão
de multidão em 2.2). A pressão d a m ultidão exige a p ro n tid ão de “u m peque-
no barco, p ara evitar q ue o c o m p rim issem ” . O s tip o s p asto ral e p o p u lar de
Jesus cercad o p o r ovelhas e crianças são caricaturas d isto rcidas da descrição
em M arcos d o início d o m in istério de Jesu s n a G alileia. A chegada de um
líder p o p u la r aco to v elad o pelas m u ltid õ es e im p o rtu n a d o pelos re p ó rtere s é
mais apro priad a. A m u ltid ão é n a verd ad e descrita, antes, c o m o am eaçadora.
A palavra p ara “ co m p rim ire m ” (gr. thlibein) seria m ais b em trad u zid a p o r
“p ren sar” o u “ e sp re m er” ; e, n o g reg o , “ e m p u rra n d o ” sugere o sen tid o de
“cair so b re alguém ” o u “ fazer p ressão s o b re ” Jesus. A m ultidão é paradoxal.
Ela precisa d e o rd e m e da aten ç ão de Jesus, e este está to talm e n te a ten to à
miséria p re se n te em g ra n d e qu an tid ad e, m as o clam o r dessas pessoas n ão é
uma re sp o sta de fé.

11,12 A s m u ltid õ es p o d e m cair so b re Jesus, m as o s espíritos m alignos


“prostravam -se diante dele” . O v erb o “p ro strar-se” (gr.prospipteiri) o co rre oito
vezes n o N o v o T e stam e n to e, em cada u m a delas, exceto p o r um a, transm ite
a im agem d e u m in ferio r p ro stra n d o -se em h o m e n a g e m a u m superior. A
tradução p o r “ esp írito s im u n d o s” , u m a fo rm u laç ão judaica, é a m ais ad e­

54 O texto grego dos versículos 7,8 é incom um ente diferente em detalhes e ordem
das palavras, talvez devido ao resumo prolixo dos locais em Marcos. Veja Metzger,
TCGNT , p. 68.
M a rc o s 3.9-12 144

quada da palavra g rega.55 A palavra g reg a u sad a p ara descrever a visão deles
d e Jesu s é theorem, u m a palavra u sad a co m frequência n o evangelho de Jo ão
e a qual indica a c o m p re e n sã o in tern a , n a verd ad e quase fé. Seu sentido, no
entan to , fica aq u ém d esse sen tid o em M arcos. N a s sete o co rrên cias d o term o
em M arcos, ele indica u m a o b serv açã o u m ta n to im parcial, sem qualquer
senso de co n v icção n o qu e é o b serv ad o . O s esp írito s m alignos, c o m o forças
espirituais, re c o n h e c em aquele ch eio c o m o E sp írito d e D eu s, m as n ão par-
ticipam n o o b je to d e su a visão (veja m ais so b re theorem em 15.40,41). E les
declaram a p len a id en tid ad e divina de Jesus: “T u és o F ilh o d e D e u s ” (veja
Filho de Deus em 1.1; 15.39). A lém d o Pai (1.11), os d em ô n io s são, até esse
p o n to da narrativa, o ú n ico o u tro g ru p o em M arcos a co n fessar a filiação
divina de Jesu s (1.24; 3.11; 5.7). O fato d e eles, n essa ocasião, fazerem isso
n a p re sen ça d o s discípulos, ac en tu a a in co m p letu d e d o c o n h e cim en to que
estes tin h am de Jesus. A lguns estu d io so s su g erem q ue os d em ô n io s expu-
seram a id en tid ad e d e Jesu s a fim d e escap ar d a au to rid ad e deste so b re eles,
e até m e sm o p ara ro u b a r-lh e a fo rça e prevalecer so b re ele.56 Todavia, essa
passagem , c o m o em 5.7, sugere u m ev e n to sem con testação, rem in iscen te de
T iag o 2.19: “A té m e sm o os d em ô n io s creem [que D e u s existe] — e tremem!”
(grifo d o autor). A ên fase n ã o está n a expulsão d o s d em ô n io s per se, m as
em Jesus su b ju g an d o o m u n d o d em o n íac o a sua au to rid ad e (veja A ordem
para silenciar em 1.34). A característica d a au to rid a d e divina d e Jesu s so b re
o m al é p assa d a p elo te rm o g re g o epitiman (“ ele lhes dava o rd e n s severas”).
A palavra epitimian, u sad a n o A n tig o T e sta m e n to p ara se referir à Palavra de
D e u s q u e so b re p u ja as fo rças d a n atu re za (SI 106.9) e das forças dem oníacas
(Zc 3.2), re p re se n ta a o rd e m so b eran a de D e u s p ara re p re e n d e r e subjugar
o m al (1.25; 4.39; 9.25). A au to rid a d e d e Jesu s so b re o rein o d em o n íac o é
total. A s forças d em o níacas n ã o tê m o u tra esco lha a n ã o ser co n fessar sua
so b eran ia p o r m eio d a sujeição a ele.
E m b o ra p o rç õ es d a p re se n te narrativa apareçam em M ateus 4.24,25;
12.15,16; e L ucas 6.17-19, n e n h u m a destas inclui a co nfissão d e Jesus co m o

55 A. Y. Collins, “M ark and H is Readers: T h e Son o f G o d A m ong Jew s” , H T R


9 2 /4 (1999), p. 398-99, sugere que a expressão “ espíritos im u n d o s” rem em ora
os anjos caídos de G ênesis 6.1-4; lEnoque 15.3-4, Jub. 7.21; 10.1; e Testamento de
Salomão. O s dem ônios em Testamento de Salomão, n o en tanto, não passam de pragas
desfiguradoras e erráticas; e aqueles de G ênesis, lEnoque e jubileus são im undos
p o r causa de transgressões sexuais. N e n h u m a das categorias parece fazer justiça
ao p o d er mais opressivo e sinistro do dem oníaco em M arcos.
16 G ru n d m an n , D as Evangelium nach M arkus, p. 75-76.
145 E x c u rso : O hom em d iv in o

Filho de D eu s. A confissão, p ara M arcos, é um a con clu são necessária das


curas e exp u lsõ es de d em ô n io s p o r Jesus. N ã o existe com patibilidade nem
coexistência en tre Jesus e as forças dem oníacas. Q u a n d o o m ais p o d ero so
se en co n tra co m os esp írito s im u n d o s, isso se d á na capacidade de to tal su-
prem acia so b re eles. A casa deles é pilhada, p ara an tec ip ar a im agem de 3.27.
A suprem acia de Jesus é tã o definitiva que é reco n h ec id a pela confissão deles
de que ele é “ o F ilh o d e D e u s ” .

Excurso: O homem divino (3.12)


A q u estão essencial n o e stu d o d o evangelho de M arcos relaciona-se aos
títulos e nom en clatu ras usados para Jesus. T o rn o u -se praticam ente axiom ático
nos estu d o s m o d e rn o s d o N o v o T e sta m e n to co n sid erar c o m o secu n d ário as
afirm ações n o s evangelhos q u e atrib u em títu lo s m essiânicos p ara Jesus. A
cristologia d o s evangelhos, q u er explícita (e.g., n o s títulos) q u er im plícitas (e.g.,
com em exousid), é em geral co nsiderada c o m o resultado d o e n c o n tro da igreja
prim itiva c o m as categorias d o p e n sa m e n to g re g o n a m issão gen tia (com o
“hom em d iv in o ” e “ F ilh o de D e u s ”) o u de te r sido p ro jetad a n os relatos d o
evangelho pela igreja prim itiva co m o resu ltad o de seu d esejo de atrib u ir ao
Jesus h istó rico u m a h o n ra p ro p o rc io n a l à experiência p ó s-ressu rreição do
senhorio dele p o r p a rte da igreja. E m b o ra estu d o s acadêm icos recentes sobre
o N ovo T e sta m e n to co n c e n tre m -se m ais n a investigação d o p an o de fu n d o
judaico d o N o v o T estam en to , a su p o sição das influências g re co -ro m a n as e
helenistas s o b re a cristologia d o N o v o T e sta m e n to co n tin u a a ser fo rte .’' A 57

57 A história dessa interpretação é extensa. N o início do século XX (1913), ela


recebeu uma expressão clássica por W. Boussct, Kyrios Christos: A History of the
Belief in Christfrom the Beginnings of Christianity to Irenaeus, trad. J. Steely (Nashvil-
le: Abingdon Press, 1970). Ela, subsequentemente, tornou-se lugar-comum na
cristologia do N ovo Testamento. Bultmann afirma: “Em Marcos, ele [Jesús] é
lheios anthropoT (The History of the Synoptic Tradition, trad. J. Marsh [New York and
Evanston: H arper and Row, 1963], p. 241). T. J. Wceden, mais tarde, escreve: “N a
década passada um número cada vez maior de estudiosos de Marcos reconheceram
que uma grande parte do material marcano está impregnado por uma cristologia
fundamentada na tradição helenista lheios aner (homem divino)” . Além disso, “não
existe o m enor indício na primeira metade do evangelho [de Marcos] de que o
messiado autêntico deveria conter qualquer outra dimensão cristológica [além
de theios anêi\ (Mark — Traditions in Conflict [Philadelphia: Fortress Press, 1971],
p. 55-56). Urna obra de referencia recente descreve Jesus totalmente no molde
de theios anêr (“ hom em divino”): “A ação de Jesus na história do evangelho (em
Mc 3.1-6), portanto, corresponde com pletamente à imagem contem porânea de
E x c u rso : O hom em d iv in o 146

teoria d o “h o m e m d iv in o ” é u sad a em especial para explicar a expulsão de


d em ô n io s p o r Jesu s e o fato de ele su b ju g ar as forças dem oníacas.58 M arcos,
de ac o rd o co m essa teoria, d escreve Jesus c o n fo rm e os m o d elo s helenistas
de o p erad o re s d e m ilagres.
A teo ria d o “ h o m e m d iv in o ” , ap esar d a rap idez co m q u e alguns estu-
diosos associam o Jesu s d o evangelho de M arcos co m esse “ h o m e m d ivino”
helenista, está cercad a de o b stácu lo s e n ão foi b em -su ced id a em conseguir
u m a o p in iã o de c o n se n so e n tre o s estu d io so s d o a ssu n to .59 O p rim eiro
p ro b lem a é co m a p ró p ria n o m en cla tu ra. “ F ilh o de D e u s ” n ão era u m título
co m u m n o helenism o. T ítu lo s m ais im p o rta n te s e m ais freq u en tes eram neos
(“ n o v o ” a c o m p a n h a d o p o r u m n o m e), epiphanès (“ epifanía”), euergetês (“ ben-
fe ito r”) e sõtér (“ salvad o r”). E ssa term in o lo g ia está visivelm ente au sen te no
N o v o T estam en to . O “ h o m e m d iv in o ” n ã o o c o rre n o N o v o T estam en to , e
o adjetivo theios (“ d ivin o ”) ap arece ap en as três vezes (A t 17.29; 2Pe 1.3,4), e
p ara se referir apenas a D eu s, e n ão a seres h um anos. “ N o v o ” o co rre 24 vezes
n o N o v o T estam e n to , m as n u n c a em referên cia a Jesu s c o m o algo “ N o v o ” .
“ E p ifan ía” ap arece apenas u m a vez n a variante textual (A t 2.20) em um a
citação de Jo e l 3.4. “ B en fe ito r” , c o m u m e n te u sad o p ara o s im p erad o res e
figuras notáveis d a A ntigu id ad e, ta m b é m o c o rre apenas u m a vez n o N o v o
T estam e n to , e m q u e o títu lo é ex p ressam en te rejeitado (Lc 22.25,26). P or
fim, sõtèr o c o rre 24 vezes n o N o v o T estam e n to , m as apenas três vezes nos
evangelhos (Lc 1.47; 2.11; J o 4.42); ap a rec en d o p rin cip alm en te em Paulo.
E u sad o apenas co m relação a Jesu s o u p ara D e u s nas epístolas pastorais.60
A ssim , o v o cab u lário co m m u ito p e so d e “ h o m e m d ivino” n o h elenism o

benfeitor público. Ele, com o um rei filósofo, afirma ter o direito de determ inar
ele mesmo o critério para a conduta correta ou errada ( HCNT, p. 86).
38 L. Keck argumenta que as histórias de milagre em 3.7-12; 4.35— 5.43; 6.31-52; e
6.53-56 brotam das fontes helenistas uma vez que são desprovidas de referências
aos conflitos com o judaísmo, debates sobre o sábado ou a autoridade de Jesus,
não tendo nenhum a conexão com o Reino de D eus nem com o perdão dos
pecados. Ele conclui que “o poder sobrenatural reside em Jesus de uma forma a
torná-lo diferente dos outros homens. [...] São manifestações do Filho de Deus
e, de uma form a particular, o theios anêr (“Mark 3:7-12 and Mark’s Christology” ,
JBL 84 [1965], p. 341-58).
59 Veja P. Achtemeier, “Gospel Miracle Tradition and the Divine Man”, Inf26 (1972),
p. 174.
60 Sobre “salvador” e “benfeitores”, veja A. D. Nock, “Soter and Euergetes”, em
Essays on Religion and theAncient World, ed. Z. Stewart (Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 1972), 1.720-35.
147 E x c u rs o : O hom em d iv in o

está co n sp icu a m en te au sen te d o N o v o T estam e n to , e em u m a ocasião foi


d esd enh osam en te p o s to d e lado.
A ind a m ais p ro b lem ático q u e a n o m en cla tu ra, n o en tan to , é o co n ceito
de “h o m e m d iv in o ” . E ssa expressão, “ h o m e m d iv in o” , o c o rre apenas rara-
m ente n a literatu ra d a A ntiguidade. N ã o é u m c o n c eito fixo, m as u m coletivo
abstrato d e derivação m o d e rn a p ara u m a série d e fe n ó m e n o s sem irrelacio-
nados, in clu in d o ind iv id u o s in co m u n s e talen to so s — g o v ern an tes, guerrei-
ros, filósofos, p o etas, heró is de to d o s os tipos e o p e ra d o re s d e m ilagres. O
m undo h elen ista designava várias pessoas in c o m u n s c o m u m o u m ais dos
títulos acim a, aos quais os estu d io so s m o d e rn o s re fere m -se u m ta n to indis-
crim inadam ente c o m o “ h o m e n s d iv in o s” . C o n sid e ran d o -se a am biguidade
do conceito, é in su ficien te assu m ir o u arg u m en tar, sem o u tra identificação e
sem mais precisão, q ue esse g ên e ro coletivo está na raiz d o re trato de Jesus em
M arcos.61 Jesu s tin h a m u ito p o u c o em co m u m c o m o p o eta in sp irad o pelas
musas o u co m o cu lto d ec ad en te e exagerado a C ésar. A s façanhas heroicas
de H éracles dificilm ente são tip o s p ara o ca rp in teiro de N azaré. A té o tip o d o
operador de m ilagres helenista, a analogia m ais p ró x im a de Jesus, é d e utili-
dade questionável. D ev e-se lem b ra r q u e o m o d elo d o “ h o m e m d iv in o ” que,
conform e se su p õ e, in flu en cio u a h istó ria d e Jesu s em M arcos é u m m o d elo
pós-cristão. H istó rias d e in d iv íd u o s q u e o p erav am m aravilhas só co m eçam
a aparecer n a seg u n d a m etad e d o século II d.C . e d epois, p elo m en o s no s
casos d e F iló strato , P orfirio, Jâm b lico e D ió g e n e s Laércio, c o m a in ten ção
de criar u m a p o lêm ica an ticristã.62 C o n tu d o , m e sm o p re ssu p o n d o que esses
relatos p re se rv a m as trad içõ es an terio res, tais tradiçõ es estão lon g e de re-
presentar u m paralelo à trad ição d e Jesu s n o s evangelhos. E m b o ra as curas
e ressuscitações sejam en c o n trad as c o m freq u ên cia n a literatu ra helenista, a
expulsão d e d em ô n io s era in co m u m en tre os “ h o m e n s d iv in o s” helenistas.63
M arcos, em c o n tra p a rtid a , re tra ta os d e m ô n io s c o m o o s p rincipais
oponentes d e Jesu s e o primeiro g ru p o a re co n h ec ê-lo e co n fessá-lo co m o
Filho d e D e u s. O s o p erad o re s d e m ilagres d a A n tigu idade, c o m relação à

61 Veja D. L. Tiede, The Charismatic Figure as Miracle Worker, SBLDS (Missoula: Scholars
Press, 1070), p. 289; W. von M artitz, “huios”, 7Ϊ9Λ Τ 8 .33 9.
42 E. Schweizer, Jesus Christus im vielfàltigen Zeugnis des Neuen Testaments (M iin ch en /
H am burg: S iebenstern T aschenbuch Verlag, 1968), p. 127.
63Veja o m aterial reunido em H . D. B etz, F ukian von Samosata und das Neue Testament
(Berlin: Akadem ie-Verlag, 1961). B etz, que de o u tra form a aprova o m otivo “ho-
m em divino” , adm ite que há urna pro fu n d a diferença entre os relatos de L uciano
sobre exorcism os e aqueles do N o v o T estam ento em que Jesus expulsa dem ônios.
E x c u rs o : O hom em d iv in o 148

cura, praticavam n o rm a lm e n te seu trab alh o c o m ostentação, pois “ to d o s os


sinais n o m u n d o an tig o eram exigidos p ara su b stan ciar a afirm ação d e ser
u m ‘filho de D e u s ’ ” .64 T íp ico dessa o sten taç ão é a h istó ria de A p o lô n io de
T ian a que, te n d o “p a rtid o d a vida en tre os h o m e n s” , apareceu em u m so n h o
de u m jovem ateu p ara co n v e n cê-lo d a im ortalidade da alm a (F ilóstrato, Vida
deApol 8.31).65
M arcos, n o en tan to , re trata Jesu s co m o u m serv o hu m ild e cuja autorida-
de n ão é em p reg ad a p ara fazer u m a d e m o n stra ç ã o de sua p esso a n em para
engrandecê-lo.66 O s o p erad o re s d e m aravilha helenistas, em co n tra ste com
Jesus, p re su m e m p e rd o a r pecados. F iló stra to re co n ta a h istória de A p o lô n io

64 G. P. Wetter, Der Cotíes Sohn (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1916), p. 64-
65.
65 Apolônio de Tiana, o mais famoso dos operadores de milagres da Antiguidade,
é uma analogia distante a Jesus. Filóstrato produziu esse relato de Apolônio
150 anos depois de Jesus, com o objetivo de reabilitar Apolônio da acusação de
charlatanismo. A obra Vida de Apolônio não tem proximidade com seu sujeito,
uma característica dos relatos do evangelho sobre Jesus, e tam bém é muitíssimo
lendária. Apolônio conhece todas as línguas (até mesmo dos pássaros e animais)
sem tê-las aprendido previamente, conhece os eventos futuros e passados e até
mesmo se lembra das encarnações anteriores. Os 21 milagres relatados como
feitos por ele têm a intenção de evidenciar sua posição preternatural. N o Egito,
ele era considerado um deus, as pessoas de todos os lugares se maravilhavam com
sua bondade. Apolônio, no entanto, não reivindicou o título de deus para si mes-
mo, nem Filóstrato o chama de filhei de deus. Filóstrato equivoca-se ao registrar
uma série de seus milagres, relatando que Apolônio “parecia” efetuar curas, etc.
Filóstrato tam bém é um tanto nebuloso sobre a m orte de Apolônio, referindo-se
vagamente a ele com o “passando” desta vida. Apolônio, em suma, é o clássico
sábio ou profeta helenista que é assim idolatrado.
66 Atanásio (século IV), que conheceu em primeira mão os operadores de milagres
helenistas, diferenciava Jesus da seguinte maneira: “Bem, se eles perguntarem:
Por que, então, [Deus] não apareceu por outros meios e em partes mais nobres
da criação e não usou algum outro instrum ento mais nobre, como o sol, a lua, as
estrelas, o fogo ou o ar em vez de um mero homem? Que essas pessoas saibam
que o Senhor não veio para fazer uma exibição de poder, mas veio para curar e
ensinar os que sofrem. Pois o caminho daquele que busca fazer uma demonstra-
ção de poder seria, só para aparecer, deixar perplexos os observadores; mas para
aquele que busca curar e ensinar o caminho, e não apenas residir temporariamente
aqui, é dar a si m esm o para ajudar aqueles necessitados e aparecer de uma forma
que aqueles que necessitam dele possam suportar; que ele não possa, ao exceder
às demandas dos sofredores, perturbar as mesmas pessoas que precisam dele,
tornando inútil a aparição de D eus para elas” {On the Incarnation, ρ. 43).
149 E x c u rs o : O hom em d iv in o

para d e m o n stra r c o m o ele diferia da h u m an id ad e n o rm al. É im p o rta n te de-


m onstrar, c o m F iló stra to e ta m b é m co m o u tro s escrito res da A ntiguidade, a
moira (“ m é rito ”) d o h eró i c o m o o fu n d a m e n to p a ra sua ap o teo se final à di-
vindade. C o n tu d o , os evangelhos enfatizam a identificação e solidariedade de
Jesus com a h u m an id ad e (M c 10.42-45). A revelação d o relacionam ento único
de Jesus co m D e u s n o c o n te x to d o s re la cio n am en to s h u m an o s definidos
pela co nfian ça e d iscipulado é essen cialm en te d iferen te d o papel, que segue
uma fó rm u la, d o “ h o m e m d iv in o ” n o cu lto oficial, c o n fo rm e exem plificado
pelas referências aos faraós m o rto s c o m o “ pai d iv in o ” o u aos im p erad o res
rom anos c o m o “ salvador e b e n fe ito r d o m u n d o h a b ita d o ” .
U m tip o de literatu ra influenciada pelo c o n c eito d o “ h o m e m d ivino”
helenista n o cristian ism o prim itivo foi a dos evangelhos apócrifos, e não
dos evangelhos canônicos. N o s evangelhos ap ó crifo s, o b serv am o s as elabo-
rações s o b re Jesu s rem in iscen tes d o s m otiv o s d o “ h o m em d iv in o ” , e m ais
especialm ente naqueles relatos q ue n ão en c o n tra m paralelos n o s evangelhos
canônicos.67 Isso indica q ue os evangelhos can ô n ico s exercem um a influência
contida so b re a descrição de Jesu s c o m o o “ h o m e m d ivino” . C o m relação
aos evangelhos ca n ô n ico s, a evidência p re c e d e n te indica que M arcos e os
evangelistas d o N o v o T e stam e n to resistem a u sar o vo cabulário e os concei-
tos associados c o m o “ h o m e m d iv in o ” em suas ap resen taçõ es de Jesus. O
m odelo fo rm a tiv o d a filiação divina de Jesus, seja qual fo r ele, n ão é aquele
do “ h o m e m d iv in o ” g reco -ro m an o . A filiação divina de Jesus é definida pelos
conceitos d o A n tig o T e stam e n to d e a m o r filial e o bed iên cia e expressada de
acordo c o m o m o tiv o d o S ervo d o S e n h o r em Isaías.68

61Achtem eier, “ G osp el M iracle T radition and the D ivine M an”, In t 26 (1972), p.
174-97.
68 Sobre o “ h o m em divino” , veja J. R. E dw ards, ‘T h e Son o f G od: Its A ntecedents
in Judaism and H ellenism and Its U se in the E arliest G o sp el” (dissertação de
doutorado, Fuller T heological Seminary, 1978), p. 48-81,1 2 5 -3 5 . E n tre aqueles
que, co rretam ente, resistem ao canto da sereia do conceito d o “ h o m em divino”
estão O. Betz, “T h e C oncept o f the So-called ‘D ivine M an’ in M ark’s Christology” ,
em Studies in N ew Testament and Early Christian Literature: Essays in Honor o f A llen
P. Wikgren (Leiden: Brill, 1972); C. H . Holladay, Theios A n êr in Hellenistic Judaism:
A Critique o f the Use o f This Category in N ew Testament Christology, trad. J. B ow den
(Philadelphia: F ortress Press, 1976); W Liefeld, “T h e Hellenistic ‘D ivine M an’ and
the Figure o f Jesus in the G ospels” , J E T S \ 6 (1973), p. 195-205; E . Schweizer,
“N euere M arkus-Forschung in USA” , EvT2>3 (1973), p. 533-37; J. D. Kingsbury,
‘T h e ‘D ivine M an’ as the Key to M ark’s Christology— T h e Find o f an E ra?” In t
35 (1981), p. 243-57.
capítulo quatro

Os que pertencem ao grupo


íntimo e os de fora
M A R C O S 3 .1 3 — Φ 3 4

A sequência rápida das histórias em 2.1— 3.12 descreve a au to rid ad e de


Jesus em u m a variedade d e cenários públicos. M arcos foca agora a autoridade
d ejesu s c o m resp eito a seus seguidores, p rim eiro n a co n stitu ição fo rm al dos
D oze (3.13-19), m as tam b é m c o m re sp eito aos g ru p o s relacionados com
Jesus d e o u tras fo rm a s, in clu in d o os associados a ele (3.21; 4.10) e a família
(3.3135‫)־‬. N a p re sen te seção, M arcos desenvolve co m especial atenção o tem a
dos que p e rte n c e m ao g ru p o ín tim o e os de fora, tem a esse im p o rta n te ao
longo d e to d o o evangelho. N o en tan to , esse n ão é u m tem a separado daquele
referente à au to rid ad e d e Jesu s, m as u m su b tem a, pois a p o sição daqueles
que p e rte n cem ao g ru p o ín tim o e os d e fo ra é d e te rm in a d a pela p roxim idade
com Jesu s e recep tivid ad e a ele.

A N O V A I S R A E L (3 .13 -19 )

O tem a de seguir Jesus, d ep o is d o s tem as d a filiação divina e da autori-


dade d e je s u s , é o m ais im p o rta n te n o evangelho d e M arcos. Jesus, d esd e o
início d e seu m in istério galileu, ch am a as pessoas p a ra a c o m u n h ão co m ele
a fim de estab elecer sua m en sag em e m issão n o m eio delas. A palavra para
“discípulos” , n a raiz g rega e n a hebraica, significa “ e stu d an te” o u “ ap ren d iz” ,
especificam ente aquele q u e a p re n d e em c o m u n h ã o ativa, daí u m aprendiz.
Jesus já reu n iu alguns discípulos antes desse episódio. E le, ali ao lado d o lago,
cham ou q u atro p escado res (1.16-20) e um p u b licano (2.13,14). E sses e o u tro s
seguidores são m e n cio n a d o s de passag em ao lo n g o d o s capítulos anteriores.
O s seguidores d e je s u s , n o en tan to , excedem os discípulos m en cio n ad o s até
o m o m en to , c o n fo rm e d e m o n s tra su a esco lh a d o s D o z e d en tre u m g ru p o
m aior de seguidores n ão m en cio n a d o s p o r n om e. A lguns d o s n o m es n es­
M a rc o s 3.13 152

se g ru p o m aio r d e seguidores ainda são p reserv ad o s, incluindo os d e José


B arsabás e M atías q u e estiveram co m Jesu s d esd e seu b atism o (A t 1.21-23).
O u tro s seguidores eram as m ulheres, “M aria M adalena, Salom é e M aria, m ãe
de T iago, o m ais jovem , e d e J o s é ” (15.40). A igreja prim itiva tam b ém con-
to u os n o m es de Paulo, B arn ab é e T iago, o irm ão d e Jesus, co m o discípulos
tardios qu e n ão estiveram en tre os D o ze.
Jesus, n o início d e seu m inistério, elegeu d o ze h o m en s d o círculo m ais
am plo d e seus seguidores p a ra se ju n tare m fo rm a lm e n te a ele c o m o ap ren -
dizes.1E sse círculo in te rn o é co n h e c id o p o r “ a p ó sto lo s” , o u seja, seguidores
co m issio n ad o s d e Jesus. E m 3.13-19, M arcos descreve m ais ex atam en te o
q u e acarreta o d iscipulado p o r Jesus. O s versículos 13-15 explicam a função
d o s D o z e; e os versículos 16-19, a id en tid ad e deles.

13 “Jesu s su b iu a u m m o n te e c h a m o u a si aqueles que ele quis, os quais


vieram p ara ju n to dele.” A linguagem d essa sen ten ç a é m ais solene e m ais
sim bólica em g re g o d o q u e em p o rtu g u ês. O p rim eiro sinal d isso é q u e Jesus
“ subiu a u m m o n te ” . E m b o ra o cen ário d o ch am ado d os D o z e te n h a sido
p rov av elm en te os m o n te s n o lado o cid en tal à beira d o m a r d a Galileia, “ o
m o n te ” é u m a trad u ç ão in ad eq u ad a d o te rm o g reg o oros (“ m o n ta n h a ”) no
versículo 13. A s m o n tan h as são co m frequência em M arcos locais de revelação
o u co n ju n tu ras relevantes n o m in istério d e Jesu s (3.13; 6.46; 9.2; 11.1; 13.3;
14.26), pois são locais d e revelação n o A n tig o T estam en to.12Jesus subir em um

1 O cham ado e o com issionam ento dos D o z e p o r Jesus é um a certeza histórica.


D o ze, à parte de um a referência aos d oze concilios dos anciãos em C unrâ (1QS
8.1), não é um núm ero com um para as reuniões judaicas de com unhão (veja A t 6.3,
e.g., em que os apóstolos escolheram sete diáconos). T am pouco, é provável que os
D o ze ten ham sido projetados em retrospectiva na vida de Jesus pela com unidade
cristã, pois dificilm ente seria concebível que a igreja prim itiva ten h a incluído o trai-
d o r de Jesus nesse círculo de seguidores. P or fim, a consciência e reco n h ecim en to
de Paulo dos D o z e (IC o 15.5; G1 2.9) atestam de seu fun dam en to n o m inistério
de Jesus. Veja E . Schweizer, The Good News According to M ark, p. 127-28.
2 O A ntigo T estam ento associa com frequência as m o ntan h as com a presença e
revelação de D eus: do m o n te E bal e do m o n te G erizim vêm bênçãos e m aldições
(D t 11.29; 27.12,13; Js 8.33); Isaque é oferecido em um a m o n tan h a (G n 22.2);
M oisés ora em um a m ontanha (Êx 17.9,10), com o tam bém o faz Elias (lR s 18.42);
a arca é po sta em um a m o n tan h a (1 Sm 7.1; 2Sm 6.3); e lavé habita nas m ontanhas
(lC r 16.39). A cim a de tudo, D eu s entrega seus m andam en to s no m o n te Sinai (Êx
19— 20); o m o n te Sião é lugar de habitação de D eus (SI 15.1; 24.3); e D eu s julgará
a terra do m o n te das Oliveiras (Z c 14.4). Veja W. Foerster, "oros”, T D N T 5.475-87.
153 M a rc o s 3.13

m onte para ch a m a r os D o z e tem a relevância da su b id a de M oisés ao m o n te


Sinai p ara re ceb e r e tran sm itir os D e z M a n d a m e n to s (Ê x 19.1-25; 20.18-20).
Jesus “ c h a m o u a si aqueles q u e ele q u is” . O g re g o é m ais enfático; o
sentido é q u e ele reuniu aqueles q ue ele desejava. Jesu s d e te rm in a o cham ado.
Os discípulos n ã o decidem seguir Jesus n em fazer u m favor para ele ao aceitar
0 cham ado; antes, seu ch a m a d o su p lan ta a v o n tad e deles, re u n in d o aquele
que não tem a in te n ç ã o d e segui-lo (10.21) e im p e d in d o aquele que desejava
segui-lo (5.19). A sociedade p ara a qual ele os ch am a é d eterm in a d a p o r seu
chamado, e n ã o pelas p referên cias deles. Seus m e m b ro s n ão têm nada em
com um , exceto o ch a m ad o so b e ra n o de Jesus, à p a rte d o qual a com unidade
não p o d e existir. C o n fo rm e o b serv am o s em 1.16-20, o em b rião da igreja já
está significado n o ch am a d o d o s seg u id o res-ap ren d izes para fo rm ar um a
nova co m u n id ad e em to rn o de Jesus.
P o r fim , os a p ó sto lo s vieram “ p ara ju n to dele” . O s rabis, co n fo rm e ob-
servam os em 1.16-20, n ão cham avam os discípulos, m as eram escolhidos p o r
seus discípulos, da m esm a fo rm a c o m o os alunos escolhem sua universidade.
Tam pouco, u m rabí ousaria deixar a im p ressão de q ue sua pessoa suplantava a
Torá. O s discíp u lo s rab ín ico s veríam id ealm en te em seu tu to r um m eio de se
especializar n a T o rá e d e m o d elar o q ue eles m esm o s p o d e m vir a se tornar.
C ontudo, o p ro g ra m a de Jesus, c o n fo rm e d escrito p o r Jesus, é de u m a o rd em
distinta. Jesu s é o ú nico e exclusivo sujeito d o cham ado. N a d a ——nem m esm o
a Torá o u D e u s — é ap rese n ta d o c o m o m ais im p o rta n te que Jesus. E ste, de
form a d istin ta d a d e u m rabi, n ão é um m eio p ara u m b em u lterior, m as ele
m esm o é o b e m d erradeiro. N ã o existe a possibilidade de se igualar a Jesus
ou suplantá-lo. A q u estão é em q u em Jesu s p o d e tra n s fo rm a r seus pró p rio s
discípulos, e n ão o q ue eles p o d e m fazer p o r si sós.3

’ Sobre a natureza radical do cham ado de Jesus, veja K . H . R engstorf, “matbêtês”,


7 Z W 7’5.444-47, que declara o seguinte: “ [A iniciativa de Jesus] dom ina todos os
relatos do evangelho sob re a m aneira com o jos discípulos] com eçaram a seguir
Jesus” . A característica do cham ado de Jesus é captada p o r Schwcizer, The Good
News According to M ark, p. 49: “E sse conceito de discipulado é um a criação de Jesus.
Os gregos e rabis de um a época po sterio r falam sobre os ‘discípulos de D eu s’; no
entanto, eles queriam dizer com isso ‘tornar-se com o ele’ em um sentido ético, ou
a obediência a seus m andam entos. O relacionam ento dos rabis com seus alunos
parecia ser um paralelo mais próxim o a esse discipulado. A principal diferença é
que o rabi não cham a seus discípulos — ele é procurado p o r eles. Além disso, os
rabis jamais poderíam ter concebido um cham ado tão radical a p o n to de deixar
claro que estar com Jesus é mais im portante que todos os m andam entos de Deus.
M a rc o s 3.14-15 154

14,15 A n o v a co m u n id ad e , em to d o s os aspectos, é o b ra de Jesus. A


N V I afirm a: “ [Ele] esco lh eu d o z e ” , m as o tex to g reg o diz: “ ele fe% D o z e ” .
D e sig n a r é selecionar d e u m g ru p o ex isten te e elevar a u m a nova posição,
m as father significa tra z er à existência. O v erb o d e M arcos ('epoiésen) é o m esm o
u sado em G ên esis 1.1 (LX X). E m b o ra esse seja u m v erb o co m u m , é bem
concebível q u e M arco s tivesse a in ten ção de re m e m o rar a linha de abertura
d e G ênesis: “ N o p rin cíp io D e u s criou os céus e a te rra ” (grifo d o au to r), com
o sen tid o d e q u e o s D o z e são u m a n o v a criação.*45O d iscipulado n ão consiste
n o q ue os discípulos p o d e m fazer p o r C risto, m as n o que C risto p o d e father
d os discípulos.‫כ‬
A n ov a p o sição d o s discípulos é significada p elo fato de serem chamados
(N V I, “ d esig n an d o -o s”) d e “ ap ó sto lo s” . Isso m ais u m a vez rem em o ra o tem a
da criação, em q u e A d ã o d á n o m e aos anim ais (G n 2.19). N o m u n d o bíblico,
o direito de d a r n o m e p e rte n cia a u m su p erio r — criador, sen h o r, pais — que
d eterm in a v a a essência e p ro p ó s ito daquilo nom eado .
O cen ário d o ch am a d o d o s D o z e n o s versículos 13,14 salienta d e todas
as m aneiras concebíveis a au to rid a d e d e Jesu s p ara d e te rm in a r e constituir
seus seguidores. N o s versículos 14 b ,15, o ch a m a d o é ainda defin id o p o r duas
o rações e x p rim in d o p ro p ó sito . O s D o z e são co n stitu íd o s para estarem com
ele e p ara serem enviados·, o ú ltim o p ro p ó s ito se divide d a m esm a fo rm a em
duas o u tras responsabilidades: p re g a r e te r au to rid a d e so b re os d em ô n io s. O
ap o sto lad o , p o rta n to , é u m a q u estão d e ser e ser enviado, refere-se àquele que
está em re la cio n am en to c o m Jesu s e àquilo q u e a p e sso a faz c o m o resultado
desse relacio n am en to .
A frase sim ples p rep o sic io n a l “ p ara q u e estivessem co m ele” tem rele-
vância dim inuta n o evangelho de M arcos. O discipulado é u m relacionam ento

O discípulo de um rabí p o d e sonhar, algum dia, em se to rn a r ainda m elhor, se


possível, que seu m estre; m as um discípulo de Jesus jamais p odería esperar que
algum dia ele m esm o possa ser o ‘Filho do h o m e m ’. Jesus n u n ca d eb ate co m os
discípulos, com o u m rabi faria. A ssim , a palavra ‘seguir’ recebeu u m n o v o tom
quan do Jesus a proferiu, u m to m que não se en co n tra em n e n h u m o u tro lugar
naquelas passagens do A ntigo T estam ento que declaram que é preciso ser seguidor
de Baal o u de lavé” .
4 Veja E. L ohm eyer, D as Evangelium des M arkus, p. 74-75.
5 O texto gnóstico Carta de Pedro a Filipe (p. 133-34) em N ag H am m ad i ignora a
autoridade de Jesus para cham ar os discípulos e d eterm in ar quais seriam eles. A
Carta de Pedro a Filipe, ao contrário de M arcos, faz os discípulos o sujeito do rela-
cionam ento, e estes não se reúnem à pessoa de Jesus, m as a “ um a g ran d e luz” e
“voz” para a ilum inação a p artir da Plenitude (Plerom a).
155 M a rc o s 3.14-15

antes d e ser u m a tarefa, u m “ q u e m ” antes de u m “ o q u ê ” . Se, co m o em


G ênesis 3.4,5 indica, a essência d o p ec ad o fo r su b stitu ir u m falso deus pelo
verdadeiro D e u s, estar co m Jesu s se to rn a o m eio p ara a b a n d o n a r os ídolos
hum anos p ara h o n ra r o v erd ad eiro D eu s, re cu p eran d o dessa fo rm a a im agem
de D eus (G n 1.26,27). E s ta r c o m Jesus, p o r co n segu inte, é o m istério mais
profun do d o discipulado. D e sse m o m e n to e m d ian te, a p esso a e a o b ra de
Jesus d e te rm in a m a existência d o s D o ze.
O se g u n d o p ro p ó s ito d o ch a m a d o é ser “ envia[do]’\ E m grego, a fo rm a
verbal d a palavra p ara “ a p ó sto lo ” (apostólos) é apostellein, co m o sen tid o de
“com issionar” o u “ enviar c o m u m p ro p ó s ito esp ecífico ” . A ênfase em M ar-
cos não é so b re d esig n ar u m a categ o ria especial d e su perseguidores distintos
dos o u tro s seguidores, o u seja, ap ó sto lo s versus discípulos. Isso fica evidente
pelo fato de q ue a palavra p a ra “ a p ó sto lo ” , c o m certeza, o c o rre apenas um a
vez em M arcos 6.30,6 ao p asso q ue a palavra “ d iscípulo(s)” o c o rre 45 vezes,
com ainda o u tras ex p ressõ es p ara os seguidores de Jesus (3.34; 4.10; 10.32;
11.9).7 O ch a m a d o e co m issio n a m e n to d o s D o z e é re p resen tativ o daquilo
que diz re sp eito a to d o s os seguidores d e Jesus.
O s D o z e são enviados p o r Jesu s específicam ente “ a p re g ar” e ter “ au-
toridade p ara ex p u lsar d em ô n io s” . A palavra g rega trad u zid a p o r “ p re g ar”
(kêrjssein) é a m esm a palavra usada em 1.14 p ara a p roclam ação d o evangelho
de D eus p o r Jesus. E la tran sm ite o sen tid o d o d iscu rso público, co n seq u en -
tem ente a proclam ação. O evangelho n ão é u m m istério inefável além das
palavras, m as u m a h istó ria — a h istó ria de Jesu s — q ue p o d e ser articulada
e co m preen d id a em linguagem co m u m . A p ro clam ação n ão é a verbalização
da experiência subjetiva d o cristão, m as to rn a r c o n h e cid o a atividade salvífica
de D eus em Jesus. N ã o o q u e os discípulos p en sa m e sen tem , m as o que eles
veem e ou vem é o a ssu n to da proclam ação; “ é isso q u e preg am o s, e é nisso
que vocês crera m ” (IC o 15.11). E n tã o , a p esso a n ã o p ro clam a o evangelho
de acordo c o m as p ró p ria s palavras n em p o r m eio d o p ró p rio p o d er; antes,
ela tem de ser enviada p o r Jesu s (5.19; 6.7).
E m adição à verbalização da m en sag em , os a p ó sto lo s são em p o d erad o s
para agir co m au to rid ad e para ex p u lsar d em ô n io s. E ssa co n stitu i a segunda

6 N ão é certo que a frase explanatória “designando-os apó sto lo s” {bous ka i apostolous


õnomaseri) foi escrita p o r M arcos. E m b o ra esteja presen te em vários m anuscritos
antigos ( B ‫ א‬C Θ ), é om itida em m uitos m anuscritos im portantes. Sua presença
aqui p o d e se dever a um a interpolação de Lucas 6.13.
7 Veja W. R. T elford, M ark, N T G (Sheffield: Sheffield A cadem ic Press, 1995), p.
141.
M a rc o s 3.16-19 156
razão para o envio deles. A té o m o m en to , o p o d e r p ara proclam ar o evangelho
e expulsar d em ô n io s era u m a p re rro g ativ a só de Jesu s q u e “p e rc o rre u toda
a G alileia, p re g a n d o nas sinagogas e ex p u lsan d o os d e m ô n io s” (1.39). Jesus,
em um ato in ten cio n al d e em p o d e ra m e n to , co n fere aos D o z e sua autoridade
p ara p ro c la m ar as b o as-n o v as e p revalecer so b re os p o d e res d em o n íaco s (At
5.12-16; 16.16-18). Isso os co n stitu i c o m o iguais, e n ão c o m o seguidores
servis o u fas ap aixonados, e lança o fu n d a m e n to p ara a m issão p o sterio r
deles em n o m e d e Jesu s (6.7). A força sim bólica desse em p o n d e ra m e n to é
tão im p o rta n te q u a n to seu efeito real. O judaísm o p o p u lar acreditava que
sub jug ar os d em ô n io s caracterizaria a era m essiânica.8 E sse é o u tro exem plo
d a “ cristologia im plícita” d e M arcos, a saber, q u e a au to rid ad e e a c o n d u ta de
Jesu s a p o n ta m p a ra a fo n te divina p o r trás d e suas palavras e ações.
A com issão ap o stó lica ab ran g e os três elem ento s co n stitu tiv o s da ex-
periên cia h u m a n a — relacionai, verbal e co m p o rta m e n ta l. O d iscipulado é
u m a q u estão d e estar ¿‫ ?«ש‬Jesus, d e falar sua m en sag em e de agirem seu n o m e
exp u lsan d o d e m ô n io s e o p o n d o -s e ao m al. C o m relação à terceira caracte-
rística, a c o m p o rta m e n ta l, os discípulos n ão são apenas d efinidos pelo que
d efen d em , m as ta m b é m p o r aquilo a q u e se o p õ e m . E les são com issionados
p ara c o n fro n ta r os p o d eres m alignos e d em o n íac o s — q u alq u er que seja a
fo rm a c o m o se m an ife sta m — e p a ra c o n fro n tá-lo s n ão só em p en sa m e n to s
e palavras, m as em ações.

16-19 O s n o m es d o s discípulos são ap resen tad o s im ed iatam en te após


a descrição da tarefa.9 A o rd e m d o s p ratican tes de ações é im p o rtan te: as
tarefas n ã o são m o ld ad as p ara se ajustar aos discípulos, m as os discípulos
são d efinid o s e fo rm a d o s pela co m issão d o evangelho (tam bém R m 6.17). O
n ú m e ro Doze é relevante. O N o v o T e sta m e n to p ro v ê q u atro listas do s doze
ap ó sto lo s (3.16-19; M t 10.2-4; L c 6.14-16; A t 1.13).10 A relevância de cada

8 “E Belial será am arrado pelo [sumo sacerdote da era messiânica] e ele (o sumo
sacerdote) deverá dar poder a seus filhos para pisotear os espíritos malignos” (/.'
L m 18.12).
9 Mais uma vez é difícil decidir qual a m elhor reconstrução textual do versículo 16.
A evidência do manuscrito para kai epoiêsen tons dõdeka não é melhor do que o era
para a leitura variante no versículo 14 (veja n. 5 acima). Contrário a B. M etzger
( TC G N l\ p. 69), a omissão da frase não prejudica o sentido do texto.
10 Epifânio {Pan. 30.13.2-3) apresenta uma lista separada de discípulos que ele afirma
derivar do Evangelho dos ebionitas. “E [Jesus], quando entrou em Cafarnaum na casa
de Simão, chamado de Pedro, abriu sua boca e disse: ‘enquanto andava ao longo
157 M a rc o s 3.16-19

lista está m e n o s n o s n o m es específicos (há diferenças m e n o re s n o s n o m es e


na ordem ) d o q u e em seu número, sem p re D o z e. N o versículo 14, o greg o traz
literalm ente, “ ele fez D o z e ” , u m u so cu rio so das palavras u m a vez que D o z e
é algo q ue as p esso as co n ta m o u n ú m ero s, e n ã o algo q ue se “ faz” . A frase
indica u m a u n id ad e o u co n se lh o c o m p leto e fixo.11 O n ú m ero D o z e , é claro,
rem em ora as d o ze tribo s d e ja c ó (G n 3 5 . 2 2 4 9 . 1 - 2 8 ;26‫)־‬. O cham ado de Jesus
dos D o z e à c o m u n h ã o co n sig o e ao serviço p ara ele significa u m a reconsti-
tuição de Israel. O s D o z e, d e ac o rd o c o m M ateus 19.28 e Lucas 22.30, não
são apenas u m a ex ten são d o m in istério te rre n o de Jesu s, m as a função deles
se estende além d o te m p o q u a n d o se sen tarão n o ju lg am ento so b re Israel.
O cham ado d o s D o z e foi c o m ce rteza relevante p ara os leitores ro m an o s de
Marcos, ta n to os g en tio s q u a n to os judeus. P ara os g en tios, é um lem b rete
de que “ a salvação vem d o s ju d eu s” (Jo 4.22), o u seja, q u e o ú nico salvador
proclam ado p ara o m u n d o é aquele preparad() p ara isso em A b raão e agora
presente em Jesus. P ara o s judeus, da m esm a fo rm a , os D o z e é u m lem b rete
de que Israel só cu m p re seu d estin o na c o m u n h ã o e serviço de Jesus.
O n o m e de P ed ro , co m relação aos n o m e s d o s D o z e , está n o to p o de to-
das as listas apostólicas existentes n o N o v o T estam en to , seguido pelos irm ãos
filhos de Z e b e d e u (em geral T iag o seguido p o r Jo ão ). P edro, T iag o e Jo ã o
formam o círculo m ais íntim o entre os D o z e e aco m p anham Jesus em ocasiões
especiais (5.37; 9.2; 14.33). Sim ão recebe o apelido de “ a p ed ra” (aram. Cephas·,
gr. Petros), e m b o ra d e m o re algum te m p o p ara q u e ele v en h a a viver à altura
desse apelido. S u p õ e-se co m frequência q u e o apelido de Sim ão reflete seu
caráter sem elh an te a u m a rocha. A firm eza e a estabilidade, n o en tan to , não
caracterizam o re tra to d e P e d ro em M arcos, n em m esm o após o P en teco ste
(veja G 12.11-14). O apelido é m ais b em explicado c o m o u m indício d o papel
fundam ental d e P e d ro em m eio aos apóstolos. A d istinção d e ser um a p ed ra
angular da co m u n id ad e é tran sm itid a apenas p elo ch am ad o d e Jesus, e não 1

do lago de Tiberíades, escolhí João e Tiago, filhos de Z ebedeu , e Sim ão e A ndré


e Tadeu e Simão, o zelote e Judas Iscariotes; c você, M ateus, escolhí en quanto
você ainda estava sentado na coletoria, e você m e seguiu. São vocês quem desejo
tornar d oze apóstolos para o testem unho a Israel” (tradução d o autor). A lista de
Epifânio dos discípulos difere das listas d o N o v o T estam ento em vários aspectos:
c a única lista narrada na prim eira pessoa, apenas oito nom es são m encionados,
salienta M ateus e o n o m e de Simão não está no to p o da lista.
11N o N o v o T estam ento pseudoepígrafo, “D o z e ” é ocasionalm ente usado quando
se quer dizer apenas onze apóstolos; veja, e.g., Evangelho de Pedro, p. 59; Ase. Isa.
3.17; 4.3.
M a rc o s 3.16-19 158

pelo m é rito d e P ed ro .12 T iag o e Jo ã o são ch am ad o s d e “ B o an erg es” apenas


em M arcos, e esse n o m e em h eb raico sugere “ os b a ru lh e n to s” , o u talvez “ o
p a r colérico ” , q u e M arcos ch am a d e “ filhos d o tro v ã o ” .13 A adequabilidade
d o apelido é evidenciada pela descrição d o s irm ão s em 9.38 e L ucas 9.54! A
p o sição de T iag o nas listas d o s sin ó tico s sugere u m a p o sição em segundo
lugar n o co m an d o , d ep o is d e P ed ro .1415M ateus é a p a re n te m e n te o Levi de 2.13
(tam bém M t 9.9). Q u a n to a A n d ré , Filipe, T o m é e Ju d as Iscariotes, só ocasio-
n alm en te esc u ta m o s de n o v o o n o m e deles; e q u a n to a B arto lo m eu , M ateus,
T iago, o filho de A lfeu, T ad eu e Sim ão, o zelote, nada m ais além dessa m enção
aqui. O sen tid o d e “ Isc ario tes” , o so b re n o m e d e Jud as, é obscuro. O sentido
m ais provável é “ o h o m e m d e Q u e rio te ” (heb. ish Keriot), id en tifican d o Judas
c o m a cidade d e Q u e rio te , cerca d e 32 q u ilô m e tro s a leste d o m ar M o rto Qr
48.24; A m 2.2). O u tra sugestão, m e n o s provável, m as n ão im possível, deriva
d e sicarius (“ [hom em ] d a adaga”), q u e identificava Ju d as co m u m g ru p o de
zelotes radicais assassinos q u e viviam à m arg em d a sociedade.1’
A lém d o s n o m e s em si, a lista d o s D o z e é relevante em p elo m enos
três aspectos. P rim eiro, à p a rte das várias lendas piedosas, m as n ão confiá-
veis, n o sso c o n h e c im e n to d e vários n o m es d o s a p ó sto lo s é escasso o u não
existente.16 N ã o sab em o s quais fo ram suas co n trib u içõ es específicas p ara o
avan ço d o evangelho. O n o m e deles, n o e n ta n to , c o m o a lista ainda m aior
em R o m an o s 16.1-16, estão ali c o m o te stem u n h as silenciosas da verdade

12 Veja E . K lo sterm an n , D as Markusevangelium, p. 34-35.


13 Veja C. E . B. Cranfield, The GospelAccording to Saint M ark, p. 130-31.
14 O nom e de A n d ré aparece em M ateus 10.2 e Lucas 6.14 só p o rq u e ele é irm ão de
Pedro.
15 Sobre a leitura Iskariõth (ou Iskariõtês), veja M etzger, T C G N T , p. 21-22. As várias
opções de explicação d o n om e são exploradas em R. G uelich, M ark 1—8:26, p. 163.
B. P ixner apresenta a sugestão intrigante, m as especulativa, de que a conexão do
nom e de Judas com “Simão, o zelote” (tam bém Lc 6.15,16) po d e ser explicada por
su po r que os dois são provenientes de G am ala, o nin h o da águia zelote a nordeste
do m ar da Galileia ( Wege des Messias undStàtten der Urkirche, H erausgegeben vo n R.
Riesner [Basel: B runnen Verlag, 1991], p. 76). M. H engcl, no en tanto, acautela-se
co n tra presum ir que Judas era um zelote (The Zealots, trad. D. Sm ith [Edinburgh:
T. & Τ. Clark, 1989], ρ. 338).
16 Veja W B auer e M. H o rn sch u h , “T h e Picture o f the A posde in Early Christian
T radition” , em N ew Testament Apocrypha, ed. E . H ennecke e W. Schneem elcher,
2.35-74; e W. B ienert, “T h e P icture o f the A posde in Early C hristian T radition” ,
em JSTTApoc, 2.5-27.
159 M a rc o s 3.16-19

que a existência d a igreja se d ev e ao trab a lh o d aqueles qu e, em g ran d e parte,


perm anecem d esc o n h ecid o s e incógnitos.
Segundo, q u e saibam os, n e n h u m d o s ap ó sto lo s é p ro v en ien te da lideran-
ça e elite religiosa judaica. T o d o s eles são p ro v e n ie n tes d o g ru p o co m u m e
diverso de cam aradas c o n h ecid o s p o r am -ha’aret^ “ p esso as d a te rra ” . N essa
categoria d e ind iv íd u o s q u e n ão p e rte n c e m a n e n h u m a classe o u categoria
definidas, n o m e s c o m o P ed ro , A n d ré, T iag o e J o ã o re p re sen ta m o respeitá-
vel (ou aceitável) m eio ;17 co m os ex tre m o s o p o s to s em M ateus, o p ublicano
colaborador, e Sim ão, o zelote, q ue é (ou fora) m e m b ro de u m m o v im e n to
com pro m etid o c o m a g u e rra santa c o n tra R om a. A s d iferenças en tre esses
dois últim os, em especial, excedem q u alq u er coisa que, d e m o d o concebível,
possa uni-los, ex ceto p elo ch a m a d o au to ritativ o de Jesus.
P o r fim , o n o m e “Ju d a s Iscariotes, q u e [...] traiu” Jesus, é especialm ente
relevante. O te rm o “ traiu ” re m e m o ra a traição so frid a p o r Jo ã o B atista em
1.14 e é ainda u m o u tro indício (2.7,16,18,23; 3.6) d o d estin o sinistro d e je s u s
(14.10). M arcos, esc rev en d o cerca de trin ta an o s ap ós a deserção e m o rte
de Judas, deve ter se sen tid o te n ta d o a tirar da lista d o s D o z e o n o m e que
causou tal escândalo. O fato d e ele n ão fazer isso é u m te ste m u n h o ta n to de
sua veracidade h istó rica q u a n to de sua c o m p re e n sã o d a igreja. N e m m esm o
0 g ru p o cristão re c ru ta d o e trein a d o p o r Jesu s é u m a sociedade u tó p ica e
imaculada. Ju d as serv e c o m o um lem b rete de q ue os seguidores de Jesus
não são perfeito s, n e m têm d e sê-lo p ara realizar os p ro p ó sito s p ara os quais
ele os c h a m o u . A n tes, Jesu s realizo u seus p ro p ó sito s apesar das falhas deles,
talvez até m e sm o através dessas falhas. Será, d e fato, na n o ite em que Jesus
é traído (14.18) q u e ele in au g u ra a n o v a aliança.

A Q U E L E Q U E A M A R R O U O H O M E M F O R T E ( 3 -2 0 3 5 ‫)־‬

U m a das técnicas literárias m arcantes de M arcos é inserir u m a história no


meio de o u tra história. M arcos, ao fazer isso, n ão só significa u m relacionam ento
entre duas histórias, m as, p o r m eio da com binação delas, é bem -sucedido em
apresentar u m p o n to to talm en te novo. A unidade atual é u m exem plo dessa
técnica sanduíche, A ’-B -A 2. 0 cenário das duas p arte s A é a “ casa” o n d e Jesus
é cercado p o r “ m u ita g e n te ” (w . 20,32). N a s d u as p a rte s A , as com panhias
dejesu s te n ta m co n tro lá-lo , talvez até m esm o a b a fa n d o -o — n o versículo 21
quando “ saíram p ara trazê-lo à fo rça” (gr. krateiri)·, e n o s versículos 31,32

17Barn. 5.9, ao contrário, afirm a que os discípulos eram “pecadores em to d o s os


pecados” , a fim de dem o n strar que Jesus cham ou os iníquos.
M a rc o s 3.20-21 160

q u a n d o a m ãe e irm ão s e Jesu s ficam d o lado de fo ra “ ch am a [ndo-o]” (gr.


kaleirí) e “ p ro c u ra[n d o -o ]” (gr. spteiri). N a s partes A n o s flancos, os seguidores
de Jesus te n tam am arrá-lo, ao p asso que, na p a rte B central, Jesus am arra o
h o m em fo rte, Satanás, e lib erta os cativos para q ue se to rn e m seguidores do
fo rte F ilh o d e D eus. A p a rte B cen tral d o s sanduíches de M arcos apresenta
a chave d o sen tid o das histórias. N o p re sen te sanduíche, M arcos procura
tran sm itir o sen tid o d e q ue a au to rid a d e d e Jesu s am arra até m esm o o prín-
cipe d o s d em ô n io s, m as os seguidores d e Jesu s n ã o devem e n em p odem
am arrá-lo. E le é aquele q u e am arra o h o m e m fo rte e é ele m esm o irre strito .18
Jesus n ã o p e rm ite n em q u e “ seus fam iliares” (v. 21) n em “ a m ãe e os
irm ã o s” dele (v. 31) assum issem a p rio rid ad e d a nova sociedade que ele for-
m o u n o s D o z e. O g re g o d o versículo 21 {hoipar autou) é m ais vago que a N V I
“ seus fam iliares” . A frase q u er d izer apenas “ aqueles em to rn o d e Jesu s” e
parece ser u m a am b ig u id ad e calculada. M arcos c o n tra sta os associados de
Jesu s q u e creem q u e têm u m a reivindicação so b re ele n o versículo 21 co m os
verdadeiro s seguidores de Jesu s (“ os q u e estavam assentados ao seu re d o r”,
hoipen aulon kyklõè. kathêmenoi, v. 34; sim ilarm ente, 4.10), que p e rm ite m que
Jesus ten h a u m a reivindicação so b re eles! E stes estão sen tad o s em sua pre-
sença e fazen d o a v o n ta d e d e D e u s, realizando o ideal de 3.14,15. E sses são
os verd ad eiro s “ irm ã o ” , “ irm ã ” e “ m ã e ” d e Jesu s (3.34,35).

20,21 M arco s co n clu iu a h istó ria p re ced e n te so b re a n o ta da traição de


Ju d as (v. 19). E le ag o ra descreve, se n ã o u m a traição, u m m al-en ten d id o sério
e p e n o so n o círculo ín tim o d e Jesus. M arcos, co m u m a ec o n o m ia típica de
linguagem , re to rn a à cen a da “ casa” .19 A única casa identificada n o evange-
lho até aqui é a d e P edro, em C afarn au m (1.29), o local d eclarado da cura do
paralítico (2.1-12). P o d e ser q u e seja a m esm a casa aqui. O m ag n etism o de
Jesus atrai p esso as em g ra n d es m ultidões. A casa, c o m o na histó ria da cura
d o paralítico, está tão cheia q u e Jesu s e os discípulos “ n ão conseguiam nem
c o m e r” . A m u ltid ão é m ais u m a vez u m o b stácu lo , e não algo benéfico, para
a m issão d e Jesus.

18 Sobre a técnica de sanduíche de Marcos, veja a Introdução, 5.2; e J. R. F.d\vards,


“Markan Sandwiches: T he Significance o f Interpolations in Markan Narratives”,
NovT?>\/3 (1989), p. 209-10.
19 Vários manuscritos im portantes trazem erchontai (“eles entraram ”), em vez do
singular erchelai (“Jesus entrou”). O verbo no singular é preferível, porque tem o
apoio de uma diversidade de dpos de texto, além de o verbo no plural poder ser
explicado com o uma acomodação aos sujeitos no plural dos versículos 16-19.
161 M a rc o s 3.20-21

“ Q u a n d o seus fam iliares o u viram falar disso, saíram para trazê-lo à força,
pois diziam : ‘E le está fo ra d e si’. ” E ssa afirm ação su rp re e n d e n te é om itida
pelos paralelos em M ateu s 12.22 e L ucas 11.14. A s palavras gregas usadas
são ainda m ais explícitas: “ eles fo ram p ren d ê-lo , ac red itan d o q u e Jesus estava
incontrolável” (Jo 10.20). A palavra g reg a p ara “ a p reen d ê -lo ” (gr. krateiri) é
regularm ente u sad a em M arco s co m esse sen tid o d e te n ta r am arrar Jesus
e privá-lo d a lib erd ade, o q ue faz sen tid o aqui.20 H á o b v iam en te m ais em
relação a esse in cid ente d o q u e M arcos relata. E x ata m e n te quem am eaça Jesus
não fica to ta lm e n te claro. A s trad u ç õ es em p o rtu g u ê s m en cio n am os “ seus
parentes” (ARA; A R C ) o u “ os seu s” (A C F), m as a frase grega p ro p o sicio n al
é sim ples e am bígua, “ aqueles dele” (hoi par autoü), q u e p o d eria significar
associados, p a ren tes o u seguidores, b em c o m o am igos o u fam ília.21 A m ãe e
irm ãos d e Jesus, d e ac o rd o c o m Jo ã o 2.12, visitaram Jesu s e seus discípulos
em C afarn au m n o início de seu m inistério. T alvez haja u m a co n e x ão en tre
essa visita e a ten tativ a de in terv e n ção aqui. O u talvez te n h a m in terv in d o
lá de N azaré. D e q u alq u er m o d o , os m ais p ró x im o s d e Jesu s acreditam que
seus con flito s c o m as au to rid ad es é u m e rro e vieram p ara buscá-lo, talvez até
m esm o “ esfaque[á-lo]” o u can celar seu p ro g ra m a (Z c 13.3!).22 A referência
d esconcertan te d e q ue Jesu s está “ fo ra d e si” traz à lem b ran ça d os leitores
de M arcos q u e as au to rid ad es religiosas n ão estão sós em suas apreensões
equivocadas em relação a Jesus. A o p o sição deles fica m ais explicável, pois,
com o os d e fora, p o d e m ser vítim as d a ignorância, relatos falsos, ciúm es o u
zelo m al o rien tad o . A o p o sição d o s q ue p e rte n c e m ao círculo m ais ín tim o é
mais p ro b lem á tica , p o is os associados d e Jesu s tê m d e ser advogados, e não
adversários. A p ró p ria am biguidade das palavras d e M arcos, “ os seus” (ACF),
é um lem b re te calculado d e q u e os m ais p ró x im o s a Jesu s p o d e m de fato se

211Há quinze ocorrências de kratein em M arcos. E m três ocasiões, o term o se refere a


Jesus segurando a m ão da pessoa curada (1.31; 5.41; 9.27), m as, em o ito ocasiões,
ele o co rre em contextos abertam ente hostis a je su s (3.21; 6.17; 12.12; 14.1,44,46,
49,51). A s instâncias restantes do term o em “apegando-se, assim , à tradição dos
líderes religiosos” (7.3,4,8) ou “guardaram o assunto apenas entre si” (9.10), em-
bora não hostis, são antagônicas ajesu s.
21 Sobre o papel e o vocabulário dos discípulos em M arcos, veja T elford, M ark, p.
141.
22Veja B. Pixner, W ith Jesus Through Galilee, p. 49-51. A lguns po u co s m anuscritos
gregos (D W) to rn a m “ os m estres da lei e o u tro s” os culpados, m as o p eso e a
maioria dos m anuscritos identificam corretam ente os culpados com o os associados
de Jesus.
M a rc o s 3.22 162

o p o r a ele, e q u e a p ro x im id ad e c o m Jesus — até m esm o relacio n am en to de


sangue o u ser ch a m ad o p o r ele — n ão é su b stitu to p ara a aliança co m Jesus,
em fé e seguim ento.

22 O s m estres d a lei são os o p o n e n te s naturais d e Jesus em M arcos (veja


a discussão so b re os m estres d a lei em 1.22). O fato de, nessa ocasião, terem
v in d o d e Jeru sa lém (tam b ém 7.1), o asse n to d e au to rid ad e d o tem plo, m ais
sua fre q u e n te m e n çã o ju n to c o m os líderes religiosos (8.31; 10.33; 11.18;
11.27; 14.1,43,53; 15.1,31), significa o p o sição oficial p re p ara d a c o n tra Jesus.
A o p o sição é m ais o u sad a e m ais c o n fro n ta d o ra na p re sen te narrativa. E les
já n ão fazem p erg u n ta s sugestivas (“P o r q u e esse h o m e m fala assim ?” , 2.7).
E les já fizeram u m ju lgam en to v en en o so : Jesu s “ está co m B elzebu!” , e: “ Pelo
prín cip e d o s d e m ô n io s é q u e ele expulsa d e m ô n io s” . E im p o rta n te o b serv ar
a n a tu re z a precisa d a o p o sição deles. N ã o n eg am o p o d e r d e Jesu s d e realizar
m ilagres n e m o acu sam d e se r u m im p o sto r. E les re c o n h ec em d e fato seu
p o d e r d e realizar m ilagres, m as im p u g n am a fonte d e seu p o d er, atrib u in d o -a
a B elzebu, e n ã o a D eus.
O ju lg am en to m al-in ten cio n a d o d o s m estres da lei é evidência de q u e a
fé e d esc ren ç a n ã o são o resu ltad o d e provas. H á u m a visão equivocada em
circulação d e q u e se apenas v íssem o s os m ilagres indiscutíveis de Jesus, en tão
creriam os — o u acred itaríam o s m ais. O s m estres d a lei, n o en tan to , viram
p recisam en te essa evidência — m as n ão creram . A fé, em ou tras palavras, não
é u m a c o n se q u ên cia necessária, inevitável o u au to m ática d o te ste m u n h o dos
atos d e D eus. A s palavras e ações d e Jesu s são de fato evidência d a p resen ça
de D e u s, m as a evidência exige u m a decisão d o o b se rv a d o r q u a n to à fo n te
e à relevância. A fé julga q u e a p esso a e o b ra d e Jesu s está em co n tin u id ad e
co m o caráter d e D e u s e, c o m isso, te m relevância salvífica; a d escren ça julga
q ue a p esso a e trab a lh o d e Jesu s n ã o derivam d e D e u s m as, c o n fo rm e os
m estres d a lei su g erem nessa ocasião, são d o d em ônio.
O sen tid o exato d e “Belzebu” é difícil, se n ã o im possível, d e recuperar,
em p a rte d ev id o às várias grafias. O te rm o “ B aal-Z eb u b e” aparece apenas
raram en te n a literatu ra judaica, e o te rm o “ B elzeb u ” (a leitura n o v. 22) não
aparece em n e n h u m o u tro tex to além d o s evangelhos. B aal-Z ebube, u m deus
sírio d e E c ro m (2Rs 1.2), o rig in alm en te significava algo c o m o “ S en h o r da
H ab itaç ão (= T em p lo )” , m as, já n a L X X , foi tra n sfo rm a d o em u m te rm o
de d ésd em , Baalmuian, “ S e n h o r d o s cadáveres o u m o scas” , o u seja, algo pu-
trefa to e repulsivo. Isso lev o u m u ito s in té rp re te s a sugerir q u e “ B elzebu” , a
163 M a rc o s 3.22

tradução da Ν Ύ Ί n o versículo 22, p e rp e tu a a in serção d e palavras d o A ntigo


T estam ento, significando “ S e n h o r d o m o n te de e ste rc o ” .23 E m b o ra essa seja
um a explicação freq u en te d o term o , ela p arece te r o a rg u m e n to da etim olo-
gia co n tra ela, p o is o g reg o d o versículo 22 lê Belzebu, e n ão B aal-Z ebude. O
hebraico %eboulo c o rre cinco vezes n o A n tig o T e sta m e n to (lR s 8.13; Is 63.15;
Hc 3.11; SI 49.14; 2 C r 6.2). E m cada ocasião, ele se refere a u m prín cip e o u
g o v ern ad o r exaltado o u ao lugar d e h ab itação deste. O s targ u n s c o rro b o ra m
esse sentido, c o m o tam b é m o fazem as duas o co rrên c ia s de tçebouln o M M M
(1QM 12.1,2; 1Q S 10.3). A m e lh o r sugestão de sen tid o de B elzebu, p o rta n to ,
parece ser “ Baal o p rín cip e” o u , c o rre sp o n d e n te m e n te , “ a dinastia o u residên-
cia d e B aal” . O p rin cipal rival da fé em lav é — n ã o só d u ra n te a m o n arq u ia
do A n tig o T estam en to , m as ta m b é m n o p erío d o helenista su b seq u en te — era
o culto d o ‫ ׳‬Baal celestial. O s escrito res bíblicos explicaram co m frequência
os deuses estra n g eiro s c o m o d em ô n io s (SI 96.5; I C o 10.20) e, n essa ocasião,
Belzebu é v isto c o m o o g o v e rn a n te astu to d e u m a dinastia de d em ô n io s e
espíritos m alignos (v. 30).24 E m b o ra Satanás n ão seja ch am ad o de B elzebu em
n enhum te x to d a literatu ra judaica, os versículos 22,23 eq uiparam claram ente
Belzebu c o m Satanás, o “ p rín cip e d o s d e m ô n io s” (tam bém M t 9.34; 10.25;
12.24; L c 11.15).25 E ssa co m p re en são d e B elzebu c o m o Baal, o g o v ern an te de
uma dinastia d em o n íaca, é re fo rça d a pela su b seq u e n te conversa en tre Jesus e
os m estres d a lei n o s versículos 23-27, em que Jesu s fala d o re in o d e Satanás
com o u m a “ casa” e “ re in o ” , cujo p ro p ó sito afirm ad o é ro u b a r e dom inar.

23T am bém B A G D , p. 139; Str-B 1.631-35; seguido p o r V. Taylor, The GospelAccording


to St. M ark, p. 238. Veja a discussão geral do problem a em T. Lewis, “ B eelzebul”,
A B D 1.638-40.
24Veja L. G asto n , “B eelzebul” , T Z 18 (1962), p. 247-55; E . C. B. M acLaurin, “Beel-
zeboul” , N o vT 2 0 (1978), p. 1 56-60.0 artigo de G asto n fez um a im p o rtan te con-
tribuição à com preensão do term o “Belzebu” . E le conclui co m o argum ento que a
controvérsia de B aal-Z ebude b ro ta das afirm ações de Jesus so b re o tem plo é, não
obstante, totalm ente especulativa. Sobre “ Baal, o príncipe” , veja W H errm an n ,
Dictionary o f Deities and Demons in the B ib Id, eds. K . van der T o rn , B. B ecking e P.
W. van d er H o rst (Leiden: B rU l/G rand Rapids: E erd m ans, 1999), p. 154-56.
25 T. Sol. 3.5-6; 6.1-11 tam bém cham ado B elzebu, o “Principe dos D em o n io s” , a
hierarquia mais alta de anjo no céu. O Belzebu no Testamento de Salomão, n o entanto,
é mais cóm ico que feroz, pois o rei Salom ão o subjuga com u m anel mágico, e,
quando o dem ônio reclam a, Salom ão o força a c o rta r m árm o re para a construção
do templo!
M a rc o s 3.23-27 164

2 3-27 E m re sp o sta à acusação d e estar em co n lu io c o m Satanás, Jesus


com eça co m u m a série d e exem plos fu n d am en tad o s em lógica sim ples. “Jesus
os ch am o u .” O v e rb o u sad o p o r M arco s (gr. proskaleomat) o c o rre em oito
instâncias q u a n d o Jesu s faz p ro n u n c ia m e n to s im p o rta n te s e solenes. A força
d a lógica d e Jesu s é en treg u e aqui “ p o r p aráb o las” . Se o trab alh o de Jesu s é
d iam etra lm e n te o p o s to a Satanás, e n tã o co m o Jesu s p o d e ser em p o d erad o
p o r Satanás? Se o q u e o s m estres d a lei d izem é v erdade, e n tã o Satanás está
claram ente trab a lh a n d o co m p ro p ó sito s o p o sto s ao dele, e isso só apressaria
sua queda. “ Se u m re in o estiver dividido c o n tra si m esm o, n ão p o d e rá sub-
sistir.” N ã o existe n e n h u m a caricatura d o d em ô n io aqui, c o m o é co m u m no
m u n d o m o d e rn o . “ R ein o ” e “ casa” d e n o ta m rein o s d esp ó tico s e p o d ero so s
g o v e rn a d o s p o r Satanás.
A im agem d a “ casa d o h o m e m fo rte” n o versículo 27 é provavelm ente um
jogo de palavras c o m “ B elzeb u ” n o versículo 22, o u seja, “ a casa o u dinastia
de Baal, o d eu s m alig n o ” .26 “D e fato, n in g u ém p o d e e n tra r n a casa d o ho-
m em fo rte e levar dali o s seus bens, sem q ue antes o am arre. Só en tão p o d erá
ro u b a r a casa dele.” Jesus, c o m essa b rev e p aráb o la, m as essencial, rem em o ra
a m issão d o su m o sac erd o te m essiânico d e am arrar Satanás: “ E Belial deve
ser am arrad o p elo [sum o sac erd o te m essiânico], e ele deve co n c ed er a seus
filhos a au to rid a d e p ara p isar os esp írito s p e rv e rso s” ( T. Levi 18.12). E ssa
passagem , c o n fo rm e n o ta m o s e m 1.10, d ese m p e n h a u m p ap el im p o rtan te
n o esclarecim ento d o b atism o d e Jesu s p o r J o ã o Batista. N a discussão sobre
a o rd e m p ara silenciar em 1.34, o b serv am o s ainda a im p o rtân cia d o Servo
d o S e n h o r de Isaías p ara a co n c e p ç ã o d o m in istério d e Jesus. O ch am ad o do
S ervo d o S e n h o r p ara resg atar os cativos d o s sen h o res cruéis é ainda m ais
im p o rta n te q u e o Testamento de Levi:

Será que se p o d e tirar o despojo dos guerreiros,


ou será que os prisioneiros p o dem ser resgatados do p oder dos violentos?
Assim , porém , diz o S e n h o r :
“Sim, prisioneiros serão tirados de guerreiros,
e despojo será retom ado dos violentos;
brigarei com os que brigam com você, e seus filhos, eu os salvarei.

26 A visão de Taylor (The GospelAccording to St. Mark, ρ. 240-41) de que o versículo 27


é um novo argum ento e era originalm ente um a fala separada é, em nossa com -
preensão de B elzebu, desnecessária e incorreta. A parábola d o saque na casa do
hom em forte n o versículo 27, em vez de introduzir um novo argum ento, apresenta
um padrão de acordo com a im agem apresentada no versículo 22 de B elzebu com o
o m estre da casa dos dem ônios.
165 M a rc o s 3.28-30

Farei seus opressores com erem sua própria carne;


ficarão bêbados com seu p ró p rio sangue,
com o com vinho.
E n tão to d o m u n d o saberá que eu,
o Senhor, sou o seu Salvador,
seu R edentor, o Poderoso d e Ja c ó ” (Is 49.24-26).

D e a c o rd o c o m Salm os de Salomão 5.3: “ N in g u ém p o d e saquear o h o -


m em fo rte ” . C o n tu d o , isso é p re cisam en te o q u e Jesus, c o m o o fo rte F ilho
de D e u s, faz. E le alude a si m e sm o c o m o o “ m ais p o d e ro so ” , c o n fo rm e
p ro fetizado p o r Jo ã o B atista (1.7) q ue cu m p re a m issão d e lavé d e saquear a
casa d o o p re s so r e lib e rta r os cativos (Tob 3.17). A p aráb o la d o versículo 27,
tam bém p re se rv a d o cu id ad o sa m en te n o Evangelho de Tomé 35, o ferece um a
percepção in c o m u m e n te clara n a a u to c o m p re e n sã o d e Jesus. E ste, c o m o o
Filho d e D e u s, faz algo pela h u m an id ad e an tes d e fazer algo p a ra ela. E le tem
de lib ertar a h u m an id ad e d o p o d e r d o m al ( l j o 3.8) antes d e restaurá-la à
im agem de D eu s. N ã o é m era coincidência q u e a p rim eira histó ria d e m ilagre
em M arcos foi a d a expulsão de d e m ô n io (1.21-28). A cura d o paralítico em
2.1-12 ilustra u m p rin cíp io similar: Jesu s, p rim eiro , p e rd o a e, d epois, cura. A
m issão d e Je su s n ã o é cu m p rid a n a co n cessão n e m n a coexistência, m as na
invasão e d o m ín io d e B elzebu, “ o d o n o d a casa” (M t 10.25), “ p re n d e r” (gr.
deomai·, N V I “ am arrfar]”) Satanás e “ saq u ear” (gr. diarpa^ein·, N V I, “ ro u b a r”)
seus “ b e n s” . S u b seq u en te à im agem de B elzebu c o m o m e stre da casa, os
“bens” d o h o m e m fo rte tê m d e se referir ao s espíritos d em o n íaco s, e estes,
com o seu m estre, se d ep araram c o m u m s e n h o r su p erio r em Jesus.

28-30 U m p ro n u n c ia m e n to so len e d e Jesu s se segue à linguagem pito-


resca e vivida d o s versículos 23-27. O p ro n u n c ia m e n to é in tro d u zid o pela
fórm ula solene: “ E u asseg u ro ” — ou: “ E m v erd ad e v o s dig o ” [ARA] — (gr.
A m én lego hym in ), u sad o m ais de d o ze vezes em M arco s p ara p refaciar um a
adm oestação séria. A qui, significa a seriedade d a acusação d e que Jesus está
associado c o m Satanás. O s versículos 28,29 ex ib em u m a série de elem entos
hebraicos q u e p o d e m ser trad u z id o s p ro n ta m e n te d e v olta p ara o hebraico,
o que sugere u m a cu id ado sa tran sm issão d o s d ito s de Jesus p o r p a rte da
igreja prim itiva. O p ec ad o c o n tra o E sp írito S anto é u m a das afirm ações
mais p e rtu rb a d o ra s d e Jesu s n o s evangelhos. E ssa afirm ação tam b ém deve
ter sido p e rtu rb a d o ra p ara a co m u n id ad e d e M arcos. M arcos, em um a rara
inserção editorial, p ro v ê a chave p ara a co m p re e n sã o dessa fala q u an d o diz
M a rc o s 3 .2 8 3 0 ‫־‬ 166

que Jesu s estava sen d o acu sad o de estar p o ssu íd o p o r u m espírito m aligno (v.
30). A palavra p ara “p e c ad o s” n o s versículos 28,29 n ã o é u m a palavra grega
n o rm a l p ara “p e c a d o ” {harmaüa), m as u m derivativo (hamartlmà). E ssa últim a
palavra carreg a u m a nu an ça u m p o u q u in h o d iferen te d e p ecad o s c o m o atos
pecam in oso s e ações ofensivas em o p o sição à natureza e m otivos d o pecado.27
E sse p ec a d o é ch a m a d o de “ p e c a d o e te rn o ” (v. 29), o u seja, u m p ec ad o com
co n se q u ên cia etern a.28 “ B lasfem ar” , co m o sen tid o de caluniar o u difam ar,
é u sad o p re d o m in a n te m e n te n o N o v o T esta m e n to p ara as infrações co n tra
o D e u s verdadeiro.
O p ec a d o c o n tra o E sp írito S an to tem d e ser en te n d id o à luz d o teste-
m u n h o inicial d e J o ã o B atista. E s te an u n cio u a era m essiânica ao p ro fetizar
a v in d a d o m ais p o d e ro s o q u e batizaria co m o E sp írito S an to (1.7,8). A qui,
Jesus se descreve co m o o m ais p o d e ro so que, pelo p o d e r d o E sp írito de D eus
am arra S atanás e d e rro ta seus su b o rd in a d o s (v. 27). A gravidade da ofensa
d o s escribas, c o n fo rm e M arcos declara n o versículo 30, é que eles acusam
Jesu s d e te r u m esp írito im u n d o o u m aligno. O p ec a d o c o n tra o E sp írito
Santo, p o rta n to , n ã o é u m a o fe n sa n ã o identificável c o n tra D eu s,29 m as um
ju lgam en to eq u iv o cad o específico d e q u e Jesus é m o tiv ad o pelo m al, em vez
de pelo b em ; d e q u e ele é e m p o d e ra d o p elo d em ô n io , e n ão p o r D eus.
Jesus c o m o o F ilh o d e D e u s, d e seu b atism o em dian te, foi au to rizad o
pelo E sp írito d e D eus. Q u e m , c o m o fizeram os m estres d a lei, p o d e o lhar
p ara ele e dizer: “ E sse é o d e m ô n io ” ; o u , d e m o d o inverso, q u em p o d e o lhar
p ara o d e m ô n io e ch am á-lo F ilh o d e D e u s, c o m o o faz o Satanás de J o h n
M ilton, q u e “ sen tiu o q u a n to a b o n d a d e é h o rrív el” e disse: “M al, sejas tu
m eu B em ” ,30 essa p esso a está d ese sp erad a m en te perdida. E sse é u m “p ecad o
e te rn o ” (v. 29) u m a vez q u e q u alq u er p esso a que, d e fo rm a v o luntária ou
não, n ã o co n sig a d istin g uir o m al d o b e m e o b e m d o m al, as trevas d a luz e
a luz das trevas, está m u ito d istan te d e u m pálido a rrep en d im en to . “A i dos

27 G. Stahlin, ‫״‬hamartanõ”, TDNT 1.293-94.


28 A frase “ pecado ete rn o ” é um a expressão incom um . O s escribas ten d em a am eni-
zar essa estranha leitura ao substituir p o r “julgam ento” ou “ to rm e n to ” eterno. A
evidência d o m anuscrito, n o entanto, favorece firm em ente u m “p ecad o e te rn o ” .
29 P or exem plo, Gos. Bart. 5.3-4, “E B artolom eu disse: ‘Q ual é o p ecad o co n tra o
E spírito Santo?’Jesus respondeu: T o d o s que fizerem um decreto co n tra qualquer
hom em que serve m eu Pai blasfem a contra o Espírito Santo. Pois to d o h o m em que
serve D eus com reverência é digno do E spírito Santo, e aquele que falar qualquer
mal co n tra ele não será p erd o ad o ’.”
30 Paradise L ost 4.846 e 4.108, respectivam ente.
167 M a rc o s 3.28-30

que ch am a m ao m al b e m e ao b em , m al, q u e fazem das trevas luz e d a luz,


trevas, d o am argo, d o c e e d o do ce, am argo!” (Is 5.20).
M arcos, ao tra ta r d o alerta d e 3.28-30 p ara os m estres d a lei (veja v. 22),
quer tran sm itir a ideia d a q u ed a única q u e esse p ec a d o p o d e re p resen ta r
para as p esso as religiosas. H á m e n o s p ro b a b ilid ad e de p ecad o res e publícanos
praticarem esse p e c ad o q u e os indivíduos in stru íd o s, religiosos e m orais. A
esse respeito , a p erv ersid ad e re p re se n ta um p ro b le m a m e n o r p ara a graça
de D e u s q u e o o rg u lh o e o sen tim en to d e ju steza m oral. A igreja prim itiva, é
claro, re co n h ec ia o p ap el q u e os líderes religiosos d e se m p e n h ara m n a m o rte
de Jesus.31 O u so da técnica d e san d u ích e p o r M arcos p ara n a rra r esse alerta
entre d o is ep isó d io s relacionados aos seguidores e asso ciados d e Jesus, não
o bstante, é u m le m b re te so len e d e q u e o p e rig o d ian te d o s m estres da lei,
o que era ·óbvio, é d e fato u m paradigm a d e u m p erig o sim ilar d ian te dos
discípulos d e Jesu s, o q u e n ã o era tão óbvio.32 M arcos, tam p o u co , está só
nessa p re o c u p a n te adm o estação . H á evidência de o u tro s setores da igreja
prim itiva d e q u e os cristãos re ceb e ram em essência o m esm o alerta que fora
entregue aos judeus (H b 6.4-6; 10.26; l j o 5.16; Evangelho de ToméAA). C o m o a
igreja esteve e rrad a ao sep a rar a rejeição judaica d e Jesu s c o m o algo distinto!
E sse é u m p ro b le m a h u m an o , e os c o n fid e n te s m ais p ró x im o s d e Jesus são
tão passíveis d e julgar eq u iv o cad am en te e rejeitar Jesu s q u a n to os m estres
da lei. P o r fim , é im p erativ o o b se rv a r q u e M arco s p õ e essa fala c o m o um
alerta, n ão c o m o u m a co n d e n açã o o u causa p ara ansiedade. A m esm a fala que
alerta c o n tra a trib u ir o m al a Jesu s ta m b é m g aran te a d isposição d e D e u s de
p erd o ar “ to d o s o s p ecad o s e blasfêm ias d o s h o m e n s ” . Q u a lq u e r p esso a que
estiver p re o c u p a d a so b re ter c o m etid o p ec ad o c o n tra o E sp írito S an to ainda
não o c o m ete u , p o is a ansiedade d e fazer isso é evidência d o p o ten cial para
o arrep e n d im en to . N ã o existe reg istro n a E sc ritu ra d e n in g u ém q u e ten h a
pedido p e rd ã o a D e u s e n ã o o te n h a recebido!

31 N ão é de surpreender que a igreja prim itiva tenha sido fulm inada pela condenação
pelos líderes judeus de exatam ente daquele a quem esperavam co m o o Messias.
O bserve o alerta que Lucas atribui a Paulo em A tos 13.27: “O p o v o de Jerusalém
e seus governantes não reconheceram Jesus, mas, ao condená-lo, cum priram as
palavras d os profetas, que são lidas todos os sábados” .
32 As palavras de Cranfield sobre o versículo 29 ainda continuam válidas: “A queles
que mais particularm ente deveríam prestar atenção a esse versículo (29) são os
professores de teologia e os líderes oficiais da igreja” (The GospelAccording to Saint
M ark, p.143).
M a rc o s 3.31-35 168
3 1 ,3 2 M arcos conclui a u n id ad e de sanduíche re to rn a n d o aos seguidores
d e Jesu s em 3.31-35, os quais já n ã o são m ais apenas aqueles assen tad o s “ ao
seu re d o r” (v. 32), m as sua “m ã e ” e “irm ã o s” . O cen ário co n tin u a a ser a casa
cheia de pessoas d o versículo 20. A m en sag em , em algum p o n to d o coloquio,
é passada p ara Jesus: “T u a m ãe e teu s irm ão s estão lá fora e te p ro c u ra m ” . A
cena n ão c o n té m detalhes, exceto p o r alguns indícios. F icam os sab e n d o p o r
duas vezes q ue a m ãe e irm ão s d e Jesu s estão d o lado d e fo ra (w . 31,32) e
que a m u ltid ão está lá d e n tro co m Jesus. Isso é irô n ico u m a vez que as casas
em geral têm m e m b ro s d a fam ília em seu in terio r e as m ultidões d o lad o de
fora. C o n tu d o , aqui a o rd e m é reversa: a família de Jesu s está fo ra e m an d am
“ ch am á-lo ” (gr. kalein, v.31). E m o u tra passagem de M arcos, Jesu s é o sujeito
d o verb o “ ch am ar” (1.20; 2.17), m as aqui sua família te n ta declarar seu direito
so b re ele. E les tam b ém o “ p ro c u ra m ” . O te rm o g re g o tçêtein o c o rre dez vezes
em M arcos, e, em cada u m a dessas o co rrên cias, d escreve u m a tentativ a de
d elim itar Jesu s e ad q u irir c o n tro le so b re ele (veja a discussão d o te rm o em
1.37). Sua fam ília, c o m o seus seguidores d o s versículos 20,21, assum e que
tem d ireito s q u e Jesu s é o b rig ad o a h o n rar.

3 3-35 Jesus, n o en tan to , n ão co m p a rtilh a desse p re ssu p o sto . “ Q u e m é


m in h a m ãe, e q u e m são m eu s irm ão s?” , p erg u n ta ele.33 E ssa re sp o sta solene
n ão é ex atam en te u m in su lto a sua família, m as ta m b é m n ão é u m a afirm ação
inequívoca. O s ouv in tes de Jesus têm de p o n d e ra r so b re as im plicações p ara si
m esm os: aqueles q u e p re ssu p õ e m q ue estão p ró x im os d e Jesus devem p en sar
de no v o ; aqueles q u e assu m em q u e estão distantes dele devem ter esperança.
A q u estão in q u ieta os q u e se sen tem co nfortáveis e encoraja os desanim ados.
M ais u m a vez, em u m a investigação autoritativa (gr. periblepomai, 3.5), Jesus
“ o lh o u p ara os q u e estavam assen tad o s ao seu re d o r” e declara: “A qui estão
m in h a m ãe e m eu s irm ão s!” Jesus, ao fazer isso, redefine a família. E le, sem
qualqu er m ald ad e, alerta sua fam ília natural que o re lacio n am en to d e san-
gue n ão p o d e reivindicar n e n h u m privilégio. A afirm ação indica ao m esm o
te m p o qu e aqueles q u e se se n ta m ao seu re d o r e fazem a v o n ta d e d e D eu s
são sua família. H á apenas dois tipos d e pessoas: aquelas que estão sentadas
n o in te rio r d a casa aos p és d e Jesu s e aquelas q ue ficam d o lad o de fora com

33 D e acordo com o Evangelho dos ebionitas (log. 5), a pergunta de Jesus: “ Q u em é


m inha mãe, e quem são m eus irm ãos?” (v. 33) era evidência para alguns cristãos
prim itivos que Jesus não era totalm ente hum ano. N o entanto, esse dificilm ente é
o p ro pó sito dos versículos 31-35. A pergunta foi feita em um co ntexto de disci-
pulado, e não de um a revelação de si m esm o p o r p arte de Jesus.
169 M a rc o s 3.31-35

pressu p o sto s falsos. O d iscip u lad o d e p e n d e d e estar n a p resen ça de Jesus e


fazer a v o n ta d e d e D e u s, características essenciais d o a p o sto lad o esb o çad o
em 3.14,15 (tam b ém L c 11.27,28!).
O acréscim o d e “irm ã ” n o final d a declaração en fatiza o lugar legítim o
das m u lheres n a c o m u n h ã o cristã.34 O fato d e Jesu s n ã o ac rescen tar “p ai”
provavelm ente indica q ue J o s é já m o rrera. C o n tu d o , a ausência de “ pai” p o d e
indicar ainda q u e o p ap el d o pai n ã o p o d e se r tra n sfe rid o sim bolicam ente a
outros. N in g u ém , exceto D e u s, p o d e ser ch a m a d o dé Pai p o r Jesus. A filiação
divina d e Jesu s n ã o é co m p artilh ad a, e seu re la cio n am en to ú n ico co m D e u s
Pai n ão é transferível. A p e rg u n ta in stig an te d e Jesus: “ Q u e m é m in h a m ãe,
e quem são m eu s irm ão s?” , foi u m a afirm ação esp ecialm ente p u n g e n te para
o m o m e n to em q u e M arcos escreveu seu evangelho, cerca d e q u aren ta anos
depois d a m o rte de Jesus, q u an d o T iago, o irm ã o d e Jesus, assum iu a liderança
da igreja d e Jeru sa lém , e sua m ãe, M aria, alcançara u m a estatu ra honorífica.
Se M arcos está d isp o sto a te sta r essas pesso as, ce rta m e n te nin g u ém p o d e
pressupor estar “ d e n tro ” co m Jesu s à p a rte d a fé e co m p rom isso. N ã o há, p o r
assim dizer, a m em b resia n o R eino d e D eus. Se aqueles “ ao re d o r” d e Jesus (v.
32), até m e sm o a fam ília santa, são p o s to s em d ú vida, e n tão M arcos p õ e em
dúvida to d o s o s q u e crescem em m eio às ciladas d o cristianism o, quaisquer
que sejam elas — o b atism o , lares cristãos, co n firm ação , co m p arecim en to
à igreja o u d o a ç ã o p a ra fins de caridade. Q u a lq u e r p esso a que se sente aos
pés de Jesu s e faça a v o n ta d e d o Pai p o d e fazer p a rte d os q u e p e rte n c e m
ao círculo ín tim o d o M estre, e n in g u ém q ue n ão faça isso p o d e fazer p a rte
desse círculo m ais íntim o.
Isso n o s traz de v o lta à co n clu são da n arrativ a san d u ích e a p resen tan d o
duas histó rias em 3.20-35. E sse san d u ích e faz a afirm ação c o rta n te , em b o ra
não dita, so b re o v erd ad eiro discipulado versus o falso. O s verd ad eiro s disci-
pulos estão co m Jesu s (tam b ém 3.13) e fazem a v o n ta d e de D eus. E les são

34Dois m anuscritos relevantes (A D ) acrescentam “irm ãs” no s versículos 32, o u seja,


“Tua m ãe e teus irm ãos e tuas irm ãs estão lá fora e te p ro cu ram ” . N o entanto,
a influência e a m aioria dos m anuscritos o m item “ irm ãs” , term o provavelm ente
acrescentado p o r um escriba posterior n o versículo 32 em acom odação ao p ro-
nunciam ento de Jesus n o versículo 35. A lém disso, M etzer está provavelm ente
correto ao sugerir que “ é extrem am ente im provável que as irm ãs de Jesus tenham
se juntado na busca pública p ro cu ran d o controlá-lo em seu m inistério” (Metz-
ger, TCGNT, 82). Se as “irm ãs” não pertencem originalm ente ao versículo 32, o
acréscimo de “irm ãs” p o r Jesus n o versículo 35 é um testem u n h o dom inical para
o papel das m ulheres na com unhão cristã, e sem qualquer distinção dos “irm ão s” .
M a rc o s 4.1 170

a v erd ad eira fam ília de Jesus.35 O s falsos discípulos ten tam rep rim ir Jesus
im p ed in d o -o de seguir c o m sua m issão o u red irecioná-lo p ara outra. E sse é
um en g a n o p erig o so e p o te n cia lm en te tão b lasfem o q u a n to c o n fu n d ir Jesus
co m Satanás. B u scar d esviar Jesu s de sua m issão é satânico, c o n fo rm e , mais
tarde, a re p re e n sã o de P ed ro p o r Jesu s indica: “ Para trás de m im , Satanás!
V ocê n ã o p e n sa nas coisas d e D e u s, m as nas d o s h o m e n s” (8.33).

A P A R Á B O L A D O S E M E A D O R E O M I S T É R I O D O R E IN O
( 4 . 1‫ ־‬2 0 )
A p e n as dois cap ítu lo s n o evangelho d e M arcos afastam -se d o fo rm a to
d e narrativa p ara incluir consideráveis b lo co s d o ensin o de Jesus; um deles é
a coleção das p aráb o las n o ca p ítu lo 4, e o o u tro é u m discu rso so b re o fim
dos te m p o s n o cap ítu lo 13. E m 4.1-20, h á o u tro san du íche m arc an o em que
a paráb o la d o sem ea d o r (w . 3-9) e sua explicação (vv. 14-20) são divididos
pela in stru ç ã o p articu la r p o r Jesu s so b re o m istério d o R eino de D eus. A
c o n stru ç ã o d o san d u ích e significa q u e M arco s tem a in ten ção q u e o to d o seja
co m p re e n d id o c o m o u m a unidade. O c e n tro d o sand uíche n o s versículos 10-
13 é a chave p ara a c o m p re e n sã o d o to d o — d e q u e apenas em co m u n h ão
c o m Jesu s é q ue as paráb olas d e sc o rtin a m o sen tid o d o R eino d e D eus.

1 0 cen ário ao lado d o m a r d a G alileia já é ag o ra fam iliar p ara os leitores


d e M arcos (1.16; 2.13; 3.7). A im en sa m u ltid ão atraída pelo m ag n etism o de
Jesus é m ais u m a vez u m o b stácu lo e u m a o p o rtu n id ad e . E u m obstácu lo
n o fato de q u e fo rça Jesu s a u sa r u m b arco co m o u m p ú lp ito flu tu an te (veja
3.9). C o n tu d o , a m u ltid ão ta m b é m p ro v ê u m a o p o rtu n id a d e p ara Jesu s en-
sinar. N ã o é possível a firm a r c o m c e rteza ex atam en te o n d e Jesus ensinou,
m as u m possível local é u m an fite atro n atu ral situ ad o a m eio cam in h o entre
C afarn au m e T ab g h a, a sul, o n d e a en c o sta desce suavem ente até u m a ado-
rável baia. O s cientistas israelitas já verificaram q u e a “ Baía das P aráb o las”
p o d e tra n sm itir a v o z h u m a n a sem e sfo rço p ara vários m ilhares d e pessoas
n a praia.36 A d escrição d a cena p o r M arcos é ap resen tad a em u m g re g o de-
sajeitado, “ [Jesus] subiu n o b a rc o e s e n to u n o m ar” . M ateus (13.2) m elh o ra a

35 O b serv e o dito preservado n o Evangelho dos egípcios 9.11: “ Pois o S en h o r tam bém
diz: ‘M eus irm ãos são aqueles que fazem a vontade de m eu Pai’ ” .
36 Veja B. C. Crisler, “T h e A coustics and C row d Capacity o f N atural T heaters in
Palestine” , B A 39 (1976), p. 137. Sobre a localização da Baía das Parábolas, veja
Pixner, Wege des Messias und Stãtten der Urkirche, p. 88-89; o m esm o autor, W ith Jesus
Through Galilee, p. 41-42.
171 M a rc o s 4.2

escolha de palavras, e L ucas o m ite a cena, e esses d o is d etalhes argum entam


pela p ro c ed ên c ia d o ev an g elh o d e M arcos. A s palavras desajeitas de M arcos,
não o b stan te, p o d e m te r a in te n ç ã o d e ap re se n ta r u m p o n to teológico, pois,
de aco rd o c o m Salm os 29.10, “ O S e n h o r asse n to u -se so b eran o so b re o
Dilúvio” . Se M arco s teve a in ten çã o d e fazer essa alusão, e n tão Jesu s é p o sto
mais um a vez n o lu g ar d e D eus.

2 M arcos, p ela p rim eira vez n o evangelho, relata m ais de u m a o u duas


falas d o e n sin o d e Jesus, cujo c o n te ú d o é a p re se n ta d o nas p a rá b o la s. A re-
ferência a paráb o las n o plural, além de u m g ra n d e n ú m e ro d e paráb o las em
Mateus e Lucas, é u m le m b re te de q u e as paráb o las eram a fo rm a preferid a
de Jesus para o en sin o público. Jesu s n ã o in v e n to u o g ên e ro da parábola,
pois há ocasionais exem plos delas n o A n tig o T e sta m e n to (2Sm 12.1-14; E z
17.1-10) e, em m eio aos rabis judeus d o século II em diante. H avia, é claro,
muitas histórias e fábulas n a A n tig u id ad e g re c o -ro m a n a , algum as das quais
se assem elham a p aráb o las.37 C o n tu d o , as paráb o las de Jesus, em qu an tid ad e
e excelência, n ã o tê m paralelos n o m u n d o da A ntiguidade. O s evangelhos
registram sessenta parábolas diferentes de Jesus, a m aioria das quais se encon-
tram em M ateu s e Lucas, p o u ca s em M arcos e n e n h u m a em João. A palavra
“parábola” significa algo q u e é p o s to ju n to c o m algo m ais com o p ro p ó sito
de esclarecim ento. O a ssu n to m ais c o m u m das paráb olas de Jesu s é o Rei-
no de D e u s, q u e ele ilu stro u p o r ep isó d io s d a vida co tid ian a — p escaria e
agricultura, cu id ad o s co m a casa e vida em família, realeza e b anquetes. A s
parábolas d e Jesus n ão exigem que seus ouvintes ten h am algum co n h ecim en to
ou vocabulário especial p ara co m p reen d ê-las. A s parábo las p o d e m refletir a
vida diária, m as n ã o são sim ples e fáceis de en ten d er. M uitas das parábolas
de Jesus são d e sc o n certan te s, d esestab ilizan d o os o u v in tes d e m o d o que
tenham d e v er o s a ssu n to s tra ta d o s so b u m a n o v a luz. E m b o ra algum as
das parábolas d e Jesu s p o ssa m te r e têm qualidades alegóricas, essa alegoria
não é u m a eq u ação sim ples e n tre u m ele m e n to na p aráb o la e um a realidade

37As parábolas são encontradas apenas em m eio aos rabis palestinos, e não em meio
aos rabis babilônios. O assunto dessas parábolas é invariavelm ente a T orá, e não o
Reino de D eus. D e acordo com Str-B 1.654, a única parábola rabínica conhecida
por ser an terior a Jesus é de Hillel (c. 20 a.C.). Para exem plos das histórias hele-
nistas que se assem elham a parábolas, veja H C N T , p. 89-92. As diferenças nessas
últimas, todavia, são dignas de nota. As “parábolas” helenistas não são sobre o
Reino de D eus, elas quase invariavelm ente têm um com p lem en to m oral e não é
preciso “ entrar” nelas para serem com preendidas.
M a rc o s 4.3-9 172

m ais p ro fu n d a que, u m a vez d ecodificada, leva a h istória a destacar o u tro


significado e relevância. U m a alegoria p o d e ser en tend ida de “ d e n tro ” , m as as
parábo las só p o d e m ser c o m p re en d id as d e d e n tro , ao p erm itir q u e a pessoa
seja levada p ara a h istó ria e o u ç a q u e m D e u s é e em q u em os seres h u m an o s
p o d e m ser tran sfo rm ad o s. A s p aráb o las são c o m o vitrais co lo rid o s em um a
catedral, sem graça e sem vida d o lad o d e fora, m as brilhantes e radiantes
d o lado d e d e n tro . O u p ara p eg a r e m p re sta d o u m a analogia de Jesu s (1.7),
são c o m o a pescaria. H á u m an z o l esc o n d id o n a isca. O an zo l é a Palavra
de D e u s, p erso n ific ad a em Jesu s. A s paráb o las n ão p o d e m ser en ten d id as à
p arte daquele q u e as co n ta. E las n ão são apenas u m b o m co n selh o , m as são
as bo as-n o v as; p o is a vida d e Jesu s é em si m esm a u m a p arábola, n a verdade
a m aio r p aráb o la d e todas.

3 -9 A p aráb o la d o se m e a d o r co m eça e te rm in a c o m o ch am ad o para


“ esc u ta r” (N V I, “ O u ç a m ” , w . 3,9), o qual ac o n te c e d ez vezes em M ar-
co s 4. “ O u ç a m ” (v. 3) está n o m o d o im perativo, salien tan d o sua urgência
e im p o rtân cia. Sim ilar à co n fissão fu n d a m e n tal de Israel, “ O u ça, ó Israel:
O Se n h o r , o n o sso D e u s , é o ú n ic o S e n h o r ” (D t 6.4), escutar é a única
fo rm a p ossív el d e c o m p re e n d e r as paráb o las d e Jesu s (tam b ém R m 10.17).
E scu tar, o u m e lh o r prestar atenção, exige o en v o lvim ento c o m o q u e é dito e
a recep tivid ad e d essa fala.
A p aráb o la fala de u m sem ea d o r q u e espalha a sem en te n o solo. A lgum as
sem en tes caem n o cam inh o , o u tras em te rre n o ro c h o so , o u tras ainda em
m eio aos e sp in h o s e algum as o u tra s em b o m solo.38Isso tipifica as condições
austeras p ara a agricultura prevalentes em u m te rre n o ro ch o so c o m vegetação
c o m p o sta d e arb u sto s d a G alileia. A agricultura n a P alestina era u m negócio
sem gratificação (Jr 4.3; T g 1.11), e o fazen d eiro sem eia g en ero sam en te. As
in stru çõ es p ara a agricultura n a M ish n á d ec retam qu e essa atividade deve ser
o rd eira e m etó d ica, em q u e cu id ad o especial deve ser d ad o p ara n ão m istu rar
as sem entes (m. Kil. 2.3ss). C o n tu d o , a sem ead u ra n a p aráb o la de Jesu s não
é n e m d e lo n g e o rd eira e m etó d ica; ela é esb an jado ra, q uase u m desperdício.
A sem ead ura in d iscrim inad a é c o m frequência explicada co m o u m resultado
d o arar depois d a sem ead u ra n a Palestina d o século I. E ssa é u m a h ip ó tese
atraente, p o is ela ajudaria a explicar p o r que a sem en te foi lançada em locais
n ão p ro m isso res. N o en tan to , a evidência, co n sid erad a em sua totalidade,
sugere q u e o s fazen d eiros d a A n tiguidade, c o m o os de hoje, aravam antes

38 E ssa m esm a ordem de sem eadura está preservada n o Evangelho de Tomé 9.


173 Marcos 4 .3-9

de sem ear — e m b o ra haja algum a evidência d e q u e c o m algum a frequência


arassem a te rra ta m b é m ap ó s a sem ea d u ra a fim de p ro v e r u m a cam ada p ro -
tetiva d e so lo p a ra a sem en te.39 O fazen d eiro está tã o d e te rm in a d o a te r u m a
colheita q u e lança sem en tes em to d o s os c a n to s d o c a m p o “ n a esp eran ça de
que o b o m so lo p o ssa ser e n c o n tra d o em algum lugar” , disse Ju stin o M ártir
quando re c o n to u a p a rá b o la u m século m ais ta rd e {Dial. Trif. 125.1-2).40
M esm o assim , as pedras, os e sp in h o s e os e lem e n to s adversos fazem co m
que três q u a rto s d o trab alh o sejam p erd id o s.41
E ssas são adversidades d esencorajadoras. C o n tu d o , a p aráb o la, irônica-
m ente, n ão te rm in a c o m u m a n o ta d esen co rajad o ra. “ G e rm in o u , cresceu e
deu b o a colheita” , o solo b o m p ro v ê u m a co lh eita im pressionante. O s verbos
gregos d o versículo 8 ascen dem em u m cresce n d o de momentum. U m a colheita
de cem p o r u m a era ex trao rd in ária na P alestina, u m sinal seguro d a b ên ção
divina (G n 26.12). M arco s sinaliza p ara a co lh eita m aravilhosa p o r um a sutil
m udança n o n ú m e ro d e “ o u tra ” . N o s versículos 4,5 e 7, a “ o u tra ” sem en te
perdida está n o singular, m as n o versículo 8, a “ o u tra ” sem en te p ro d u z “ trinta,

wJ. Jerem ias, The Parables o f Jesus, ed. rev., trad. S. H . H oo ke (L ondon: SCM Press,
1963), p. 11, afirm a que, “ na Palestina, a sem eadura preced e o arar da terra” .
K. D. W hite refuta de fo rm a veem ente essa afirm ação em “T h e Parable o f the
Sower” ,/ 7 3 Ί 5 (1964), p. 300-307. E ssa questão foi reexam inada p o r P. B. Payne,
“T he O rd e r o f Sow ing and Ploughing in th e Parable o f th e Sow er” , N T S 25
(1978), p. 123-29. Payne é capaz de sustentar sua conclusão d e que “o arar da
terra regularm ente acontece depois da sem eadura a fim de en terrar a sem ente” (p.
127), adm itindo apenas que o arar da terra na prim avera precede a sem eadura do
ou ton o na Palestina. O arar a terra, co n fo rm e indicam Isaías 28.24, O seias 10.12,
Jeremias 4.3 e ou tro s textos d o A ntigo T estam ento, precede n o rm alm en te a se-
m eadura e, algum as vezes, é feito após a sem eadura a fim de co b rir a sem ente.
Veja J. D rury, The Parables in the Gospels (London: SPC K , 1985), p. 57-58.
40 O po d er e o p ropósito do sem eador são perdidos no apócrifo Memoria Apostolorum,
em que os discípulos acusam Jesus de ser um péssim o fazendeiro p o r ter lançado
a sem ente o n d e ela não consegue crescer (veja N T A poc 1.376).
41 Os inim igos da colheita são inúm eros. Veja G. E . M. Suess, “E nem ies o f the
H arvest” , JerusalemPersp 53 (1997), p. 18-23, que enum era cerca de 125 espécies
de cardo na Palestina que sufocam o produto. D o m esm o m odo, M. P. K nowles,
“A bram and the Birds in Jubilees 11: A Subtext for th e Parable o f th e Sower?”
N T S 41 (1995), p. 145-51, cham a atenção para as sim ilaridades en tre os corvos
arrebatadores em Jubileus 11.10 e o papel das aves na parábola d o sem eador. E m
Jubileus, os corvos são enviados p o r M astem a/Satanás, príncipe dos dem onios. Isso
pode p ro ver um a ligação possível da parábola d o sem ead or co m a controvérsia
precedente de Belzebu.
M a rc o s 4.3-9 174

sessenta e até cem p o r u m ” é plural.42 P ara “ d eu b o a colheita” , o g re g o diz


“ d a n d o fru to ” (edidou karpori), u m sem itism o que p o d e refletir a fala d e Jesus.
C laram ente, essa n ão é u m a co lh eita com um ! A “ co lheita” , co m bastan te
frequência n a literatu ra judaica, é u m a m etáfo ra p ara a irru p ç ã o d o R eino de
D e u s (Is 9.3; SI 126.6). A p aráb o la d o sem eador, c o m o as parábolas so b re
sem ear a seguir (4.26-29,30-32), relata resu ltad o s astro n ô m ico s ap esar do
início desfavorável.
A paráb o la d o se m e a d o r é em geral in te rp re ta d a co m o u m a paráb o la de
solos, v en d o o so lo en d u recid o , as p ed ras, os e sp in h o s e o b o m solo com o
exem plos d o d iscip u lad o erra d o e certo. N o en tan to , a paráb o la é m ais que
u m a m etáfora d a psicologia h u m a n a o u declarações d e atitude, tão interessan-
te q u a n to estes o são p ara n ó s.43 A p aráb o la re p re se n ta a irru p ç ã o histórica
d o R eino d e D e u s em Jesus, o se m e a d o r d o evangelho. A im p ressio n an te
colheita n o versícu lo 8 é u m sinal im p o rta n te d e q u e o crescim en to n ão se
deve à atividade h u m an a, m as ao p o d e r pro v id en cial de D e u s.44 D e u s está

42 A expressão “p o r um ” significa o aum ento do núm ero d e grãos colhidos em


relação ao núm ero de sem entes plantadas. Evangelho de Tomé 9, aum enta a colhei-
ta na parábola do sem eador “ a trinta, sessenta e até cem p o r u m ” . O tam anho
m édio da colheita no século I na Palestina ainda é m otivo de debate. Jerem ias, The
Parables o f Jesus, ed. rev., p. 150, seguindo G. D alm an, A rbeit und Sitte in Palàstina
(H ildesheim : G. O lm s, 1964), p. 153-65, m antinha que 7,5 p o r u m d e pro d u ção
era a m édia na Palestina n o século I, e trinta ou mais p o r um era um a quantidade
desconhecida. W. D. D avies e D. A llison questionam esse julgam ento em A Criticai
and Exegetical Commentary on the Gospel according to Saint Matthew, IC C (E dinburgh: T.
& T. Clark, 1991), 2.385, dizendo que os núm eros apresentados na parábola do
sem eador “n ão parecem ser obviam ente extraordinários” . E provável q ue essas
duas posições sejam exageradas. H á evidência de V arro, T eofrasto, E strab ão e
Plínio, bem com o de G ênesis 26.12, essas colheitas volum osas eram possíveis
em alguns lugares em alguns anos. M as a m édia da colheita parece ser m uito m e-
nor, talvez tão reduzida q u anto três e quatro p o r u m (veja R. K . M clver, “ O n e
H un dred-fold Yield — M iraculous o r M undane? M atthew 13:8,23; M ark 4:8,20;
Luke 8:8” , N T S 40 [1994], p. 606-8, que pesquisa a literatura e m an tém que “ um a
p ro du ção de trinta p o r um [...] não só era excepcional, m as tam b ém m ilagrosa na
Palestina d o século I ”). N ã o h á evidência na literatura antiga d e q ue os núm eros
na parábola do sem eador eram norm ais. T rinta, sessenta e cem p o r um assinalam
um a colheita notável, se não m ilagrosa.
43 Veja D rury, The Parables in the Gospels, p. 51.
44 A referência à parábola d o sem eador c m A p . Zg 8.15 em N ag H am m adi reflete a
tendência de separar a parábola do m inistério de Jesus para focar as sem entes e
os solos.
175 M a rc o s 4.10

em o p eraçã o — d e fo rm a e n c o b e rta e sem ser o b serv a d o — em Jesu s e no


evangelho p ara p ro d u z ir fru to s to ta lm e n te d e sp ro p o rcio n ais p ara os p ro s-
pectos e m érito s h u m an o s. A sem ead u ra p ró d ig a e cu id ad o sa d o sem eador, a
qual d e início parecia equivocada e fútil, é v in d icada pela colheita ab u n d an te.
Jesus, ao lo n g o d e to d o o evangelho, ensina, p re g a e p ro clam a (2.2; 4.33; 8.32;
9.10; 10.22,24; 11.29; 13.31; 14.39) tã o in can sav elm ente q u an to o sem ead o r
semeia. A frase u m sem ea d o r “ saiu” a sem ear (4.2) usa a m esm a palavra
em g re g o (exêlthen) co m a qual Jesu s declara seu p ro p ó sito em 1.38.45 H á,
apesar d a resistên cia e rejeição, um e m p o d e ra m e n to irrepreensível p o r trás
da o b ra d e Je su s, tã o m o m e n to sa q u a n to a agência g e rad o ra d a sem en te que
“g erm inou, cresceu e d eu b o a co lh eita” . E s ta será a ú ltim a palavra a fim de
não p erm itir q u e os ouvintes p re ssu p o n h a m a op o sição d os m estres da lei, dos
fariseus, dás m u ltid ões e até m esm o de seus associados, tão adversos q u an to
a terra d u ra n ão cultivada, as p ed ras e os e sp in h o s da G alileia. A colheita
no m in istério d e Jesu s, ap e sar das adversidades d esen co rajad o ras, será algo
incom parável. A palavra g rega akouõ n a e s tru tu ra d a p aráb o la d o sem ead o r
nos versículos 3 e 9 indica q u e só resta u m a coisa p ara os discípulos fazerem :
ouviA O d iscip u lad o n ão se trata d o q u e p o d e m o s fazer co m n ó s m esm os,
mas p e rm itir q u e o S em ead o r e a sem en te p ro d u z a m u m a colheita da qual
nós p o r n ó s m esm o s so m o s incapazes. C lem en te de R om a, p ró x im o d o final
do século I, d e te c to u c o rre ta m e n te a p ro v id ên c ia de D e u s n o m inistério de
Jesus, o b se rv a n d o q ue assim c o m o o M estre levanta as sem en tes caídas do
solo estéril e seco, ta m b é m levantará Jesu s d e n tre os m o rto s e d o sepulcro
(1Ckm. 24.5).

10 M arcos, en tre a paráb o la d o sem ead o r e sua in terp retação em 4.13-20,


insere a razão de Jesu s p ara falar em paráb o las n o s versículos 10-12. E ssa
inserção é ta n to a chave p ara a c o m p re e n sã o d o san d uíche em 4.1-20 q u an to
uma das seções m ais im p o rta n te s n o evangelho. E tam b ém u m a das passa-
gens m ais difíceis d e ser in te rp re ta d a n o evangelho. C o n fo rm e o b serv ad o
na “In tro d u ç ã o 3 e 4 ” , Papias relato u q ue M arcos to m o u certas liberalidades
na organização de suas histórias. U m exem plo dessa reorganização é apa-
rente n os versículos 10-34, q ue n ão fazem p a rte d o serm ão à beira d o m ar
(observe a p re sen ça d o b o te em 4.1,36), m as é feito em particu lar em o u tro
m om ento e apenas p ara os discípulos (“Q u a n d o ele ficou so zin h o ” , v. 10).

45VejaJ. Marcus, “Blanks and Gaps in the Markan Parable”, Biblnt5 (1997), p. 255.
M a rc o s 4.11 176

O s versículos 10-20 são, p o rta n to , u m a in serção m arc an a a fim d e co m en ta r


so b re o p ro p ó sito das parábolas.
M arcos co m eça a in serção ao declarar q u e Jesu s ficou so zin h o c o m os
“ D o z e e os o u tro s q u e estavam ao seu re d o r” . O círculo in te rn o d e Jesu s é
definido co m o os D o z e esco lh id o s (3.14-19) e “ os o u tro s q u e estavam ao
seu re d o r” . E sse ú ltim o g ru p o re p e te as palavras de 3.34 (boi peri auton) e
q u er d izer aqueles qu e estão e m co m u n h ã o co m Jesu s e fazem a v o n tad e
d e D eus. E sses d o is g ru p o s — “ o s D o z e e os o u tro s que estavam ao seu
re d o r” — ouvem a p aráb o la c o m o Jesu s o rd e n o u e in d ag am em particular
so b re o sen tid o dela. O s cen ário s p articulares, c o n fo rm e o b serv am o s, são
co m freq uên cia o p o rtu n id a d e s p ara a revelação em M arcos, e, nesse cenário,
esse evangelista oferece a chave in terp re tativ a p ara a p aráb o la d o sem ead o r
n o s versículos 10-20.

11 E m 1.27, M arco s a n u n c io u q u e Jesu s tro u x e u m “ n o v o e n sin o ” .


Jesus tran sm ite esse n o v o e n sin o n o s versículos 10-12 p ara duas audiências
separadas: “v o c ê s” e os “ q u e estão fo ra” . O fato de M arcos p ô r esses dois
g ru p o s n o to p o em suas respectivas o raçõ es em g reg o o s enfatizam , acen-
tu an d o d essa fo rm a a d iferen ça en tre as d u as audiências. C ada audiência
receb e u m a fo rm a d istin ta d e ensino. O s “ os D o z e e o s o u tro s q u e estavam
ao seu re d o r” são aqueles q u e p e rte n c e m ao círculo íntim o, “ só p ara os
m e m b ro s” , a q u e m “ foi d a d o o m isté rio d o R eino d e D e u s ” . E ssa últim a
frase é u m “ passivo d iv in o ” , cujo sen tid o é q ue o c o n h e c im e n to d o m istério
é u m d o m d e D e u s, e n ã o u m a co n q u ista h u m an a. O segredo, o u “ m istério”
(gr. mystêrion), significa c o n h e c im e n to de D e u s q ue n ã o p o d e ser o b tid o p o r
m eios naturais (D n 2.27,28; Sab 2.22).46 P o r isso o m istério é “ d a d o ” , e não

46 Nessa presente passagem e no N ovo Testam ento com o um todo mystêrion (“mis-
tério”) não se refere ao conhecim ento esotérico reservado a iniciados seletos,
como acontece com jâm blico Vida de Pitágoras 23.104-5; nem, como nas histórias
modernas de detetives, a inform ações desconhecidas que têm de ser espionadas
com discrição e astúcia. Antes, “mistério” significa a verdade de Deus disponível
apenas com o um a revelação de Deus. N ão existe nenhum a pesquisa que possa
revelar o mistério de Deus, pois no N ovo Testamento, com o no judaísmo, o
mistério tem de ser revelado do céu a fim de ser conhecido e, por isso, é recebido
pela fé com o o resultado do ouvir. O propósito do mistério não é apenas reduzir a
ignorância, mas produzir maravilhamento e reverenda. E m especial, em Marcos 4.11,
tanto o mistério quanto o Reino de Deus estão inescapavelmente presentes e cum-
pridos nas palavras e obras dejesus. Sobre “mistério”, veja H. Kràmer, “mystêrion”,
177 M a rc o s 4.11

conquistado. A qui, m ais u m a vez, h á u m a g ra n d e iron ia, pois e m b o ra Jesus


seja o c u m p rim e n to d o m istério, as p esso as n ã o v ee m isso; n a realidade, de
acordo c o m o ev an gelho d e Jo ão , p re cisam en te porque Jesu s fala a verdade
sobre si m e sm o é q u e elas n ão acred itam nele (Jo 8.45!). “ O seg red o é q u e o
Reino d e D e u s veio n a p esso a , palavras e o b ra s d e Jesus. Isso é u m segredo
porque D e u s reso lveu revelar a si m e sm o in d iretam en te , d e u m a fo rm a ve-
lada. A Palavra en c arn ad a n ã o é óbvia. Só a fé p o d e re co n h ec er o F ilho de
Deus n a figura h u m ild e d e Jesu s de N azaré. O seg red o d o R eino de D e u s é
0 segredo d a p e sso a d e Jesu s47.‫״‬
D e u s, c o m o seu au to r, co n h e ce, é claro, o m isté rio (1.11; 9.7). O s de-
m ônios tam b é m o c o n h e c em p o rq u e p e rte n c e m ao re in o espiritual (1.24,34;
3.11; 5.7; 9.20). O círculo d o s m ais ín tim o s d o versículo 10 co m p artilh a o
m istério apen as p o r u m a disp en sação d e Jesus, e em v irtu d e d o m érito ou
inteligência h u m an o . O m isté rio d o versículo 11 é o en sin o da p aráb o la do
sem eador — d e q u e a p rov id ên cia d e D e u s é eficaz em Jesu s p ara p ro d u z ir
uma colheita frutífera n o m undo. Foi revelado a eles precisam ente p o rq u e eles
são ouvintes. M ateu s 13.11 e L ucas 8.10 falam q u e “ foi d ad o c o n h e c im e n to ”
aos discípulos, m as M arco s é m ais reserv ad o : foi d a d o o m istério aos disci-
pulos, m as eles n ão o c o m p re e n d e m to ta lm e n te (6.52; 8.18!)
A o s “ q u e estão fo ra” , p o r c o n tra ste , “ tu d o é d ito p o r p aráb o las” . H á
doze referên cias às paráb o las em M arcos, e cada o co rrên c ia é p o sta em u m
contexto d e o p o sição (e.g., 3.23). A s p arábolas, p o rta n to , são u m a fo rm a de
Jesus falar c o m o s d e “ fo ra ” q ue tê m o u v id o s p ara ouvir, m as n ã o ouvem .
Os de fo ra são fo rm a d o s p o r to d a a g am a pública, d a o p o sição declarada no s
m estres d a lei e n o s fariseus àqueles q u e p o d e m até m e sm o sim patizar co m
Jesus, m as q u e o u v em apenas de fo rm a casual o u sem cu id ad o e “ n ão deu
fruto” (v. 7). A parábola d o sem eador, p o rta n to , recapitula o m otivo d o círculo

E D N T 2 .4 4 6 -4 9 ; J. M arcus, “M ark 4:10-12 an d M arcan E pistem o lo g y ” ,J B L 103


(1984), p. 558-61; M. B ockm uehl, Revelation and Mystery in AncientJudaism and Pau-
line Christianity, W U N T 2 /3 6 (Tübingen: M ohr-Siebeck, 1990). K . B arth (Church
Dogmatics, 1 /1 , trad. G. T. T h o m so n (Edinburgh: T. & Τ. Clark, 1960], ρ. 188)
afirma: “Mysterium não significa apenas o fato de D eu s estar velado, mas, antes, o
fato de que ele se to rn o u m anifesto de um a fo rm a velada, o u seja, de um a fo rm a
não aparente que fornece inform ações indiretam ente, não diretam ente. Mysterium
é o velar de D eus em que ele nos encontra ao se desvelar de fato para nós: pois
ele não se desvelará, nem p o d e se desvelar, para nós de n enhum a o u tra form a
que pelo velar a si m esm o” .
47 Cranfield, The GospelAccording to S t M ark, ρ. 153.
M a rc o s 4.11 178

d os ín tim o s e d o s d e fo ra d e 3.20-35. A s categorias d o s q u e p e rte n cem ao


círculo ín tim o e d o s d e fo ra estavam b a sta n te fam iliarizadas co m os ouvintes
de Jesus, e estes achavam ev id en te q u e os judeus o b serv an tes (m estres da lei,
fariseus, zelotes e talvez saduceus e essênios) fo ssem o círculo íntim o, e que
os judeus negligentes, “ am -h a ’a retz” (pessoas com u n s), e o s g en tio s fossem
os de fora. E ssa divisão, n o en tan to , n ão ajudará c o m p re e n d e r aqueles que
p erte n cem ao círculo ín tim o e os de fora em relação a Jesus; de fato, o reverso
com freq u ên cia é o q u e o b serv am o s.48Jesus, ta n to em sua p esso a (3.20-35)
q u an to em suas paráb o las (4.1-20), p articip a d e u m a crise em m eio a seus
ouvintes, d iv id in d o-o s ao lo n g o d e linhas b em diferentes. O s que perten cem
ao círculo m ais ín tim o são aqueles p ara q u em a c o m u n h ão co m Jesu s e a
v o n tad e d este são m ais im p o rta n te s e têm p recedên cia so b re tu d o (tam bém
3.14,15,34,35). E les “ o u v em a palavra, aceitam -na e d ã o ” fru to s (4.20), e esta
é a definição d e fé ap resen tad a p o r M arcos. E les só p o d e m o u v ir estando
co m Jesus, e p ara eles o m istério é revelado.
O s q ue p e rte n ce m ao círculo ín tim o e os d e fo ra, em o u tras palavras,
c o rre sp o n d e m à sem en te sem ead a em so lo b o m e so lo ruim . À queles que
o uvem co m fé (m esm o se n ã o c o m p re e n d e re m to talm ente) foi d ad o o m isté-
rio d o reino. A P alavra d e D e u s faz co m q u e o fru to cresça e au m en te neles,
a trin ta, sessen ta e até m e sm o cem p o r u m (v. 8). A queles q u e falham em
ou v ir p e rm a n e c e m os perp lex o s d e fora. “A q u em tiver, m ais lhe será dado;
de q u em n ã o tiver, até o q u e te m lhe será tirad o ” (4.25).49 A d iferen ça entre
a sem en te p e rd id a e a sem en te fru tífe ra d e p e n d e d o ouvir emfé.
M arcos, n o en tan to , n ão co n sid era os q u e p e rte n c e m ao círculo ín tim o e
os d e fo ra c o m o p o siçõ es d istin tas im utáveis. A p o sição deles é determ in ad a
apenas pelo o u v ir e crer q u e Jesu s, co m o o S em eador, traz o evangelho frutí-
fero d e D e u s (1.14). A lguns d o s d e fo ra se to rn a ra m aqueles que se to rn am
os d o círculo ín tim o — o h o m e m g erasen o p o ssu íd o p o r d em ô n io s (5.1-20),
a m u lh er co m fluxo de sangue (5.25-34), a m u lh er siro-fenícia (7.24-30), um
cen tu rião g en tio (15.38,39), talvez até m e sm o u m m estre da lei (12.28-34).
A lguns daq u eles d o círcu lo m ais ín tim o , d a m e sm a fo rm a , c o m o Judas,

48J. D o n ah u e, S.J., The Gospel in Parable (M inneapolis: F ortress Press, 1990), p. 42-44,
observa corretam ente que os que pertencem ao círculo ín tim o e os de fora não
se referem aos discípulos versus m ultidões nem aos discípulos versus judeus hostis,
m as se refere a todas as categorias e depende apenas d o ouvir.
49 M ateus 3.12 transpõe esse versículo em sua explicação do p ro p ó sito das pará-
bolas, salientando, p o r conseguinte, a necessidade da fé para a co m preensão das
parábolas.
179 M a rc o s 4.12

passarão p ara o g ru p o d os d e fo ra (14.1,2,10,11,21,43-46). A fé, c o m o as


sem entes da p aráb o la, é dinâm ica, e n ão estática: ela am ad u rece pelo ouvir,
receber e d ar fru to (4.20) — o u ela seca e deteriora.

12 Isso n o s traz à citação d e Isaías 6.9,10 n o versículo 12, em q u e as


parábolas são ap resen tad as c o m o p o rta s q ue b a rra m a en tra d a do s d e fora
no R eino d e D e u s, e n ão c o m o janelas através das quais eles p erceb em o
Reino d e D e u s. E sse versículo su rp re e n d e n te ap resen ta u m Jesu s u m tan to
diferente d aq u ele Jesu s m o raliza d o r e racionalista d o Ilum inism o. A citação
de M arcos, c o n fo rm e se o b se rv a co m frequência, segue o T arg u m ,50 e n ão
a versão h eb raica de Isaías n e m a trad u ç ão g reg a d a L X X .51 S ugere-se com
frequência q ue M arcos enfatizou o u até m esm o traduziu de fo rm a equivocada
o original aram aico m ais suave p ro fe rid o p o r Jesus. P o r con seg u in te, vários
com entaristas o fe rec em em en d as co n jectu rais da citação5253que faz co m que
os versículos 11,12 em co n c o rd ân c ia geral co m as versões c o rre sp o n d e n te s
de M ateus 13.10-17 e Lucas 8.9,10, em q ue a d u re z a d o coração d o s o u vintes
é a causa d a falha deles de c o m p re e n d e r as parábolas, n ão sen d o essa falha o
resultado de D e u s im p edir que eles o uçam , c o n fo rm e é indicado p o r M arcos.33

511Paráfrases aram aicas dos textos do A ntigo T estam ento usados nas leituras da
sinagoga.
51 Isso se to rn a aparente pelo uso de M arcos da terceira pessoa do plural, em vez
da segunda pessoa do plural, em Isaías 6.9; seu uso de “ p erd o ad o s” , em vez de
“curados” em Isaías 6.10; e a voz passiva “ ser p e rd o ad o s” . Sobre esses pontos,
Marcos e o T argum concordam e se o p õ em às form as gregas e hebraicas de Isaías.
52M uitos estudiosos aceitam a p ro p o sta de T. W. M anso n de que os ditos aram aicos
de Jesus refletem o T argum e trazem : “ Para vocês é dad o o segredo do Reino de
Deus; m as todas as coisas vêm nas parábolas para os de fora que
Veem de fato mas não percebem ,
E ouvem de fato, mas não com preendem
Para que não se arrep endam e recebam o p erdão” .
Veja T. W. M anson, The Teaching o f Jesus: Studies in Its Form and Content (Cam bridge:
C am bridge U niversity Press, 1963), p. 75-81; tam bém J. Jerem ias, D ie Gleichnisse
/« * 7(G ottingen: V andenhoeck & R uprecht, 1965), p. 9-14.
53 Mateus, em particular, atribui o fracasso de receber o m istério à dureza de coração
do povo, co n fo rm e evidenciado pela longa citação de Isaías em M ateus 13.14,15
que fala sobre o coração d u ro das pessoas. A lém disso, im ediatam ente antes da
citação, M ateus fala de “ um a geração perversa e adúltera” (12.39,45) que fica sob
julgam ento mais severo que o de N ínive (12.41).
M a rc o s 4.12 180

Por mais atraente que seja essa solução, é improvável por vários motivos.
Primeiro, e mais importante, não existe evidência textual de uma tradução
equivocada em 4.12. Se Marcos entendeu de forma equivocada ou traduziu
erroneamente uma fala de Jesus nesse ponto de sua narrativa, esperaríamos
variantes e emendas na tradição textual. Todavia, não há nenhuma delas; de
fato, há notável concordância na evidência manuscrita nos versículos 10-12.54
Além disso, até mesmo as versões de Mateus e Lucas, com mais nuanças, não
estão totalmente livres da correspondência misteriosa do coração duro com
a vontade de Deus. Por fim, a citação de Isaías 6.9,10 ocorre seis vezes no
Novo Testamento, sempre em contextos de descrença e dureza de coração.
O versículo 12 no texto recebido, apesar de suas dificuldades, merece nossa
atenção. O sentido de 4.11,12 é que as parábolas dejesus confirmam o estado
do coração das pessoas: os que pertencem ao círculo íntimo que estão com
Jesus receberão a compreensão do mistério, e os de fora que não estão com
Jesus serão confirmados em sua descrença.55
Marcos não demonstra nenhuma disposição de relaxar a tensão entre a
soberania divina e o livre-arbítrio humano na realização da vontade de Deus.56

54 Veja a crítica ao argumento de M anson em M. Black, A n Aram aic Approach to the


Gospels and A c ts’ (Oxford: Clarendon Press, 1967), p. 211-16, que conclui que
“nada é mais certo que o que Marcos escreveu e que ele queria” o texto com o se
apresenta.
55 Observe, por contraste, Evangelho de Tomé 62 em que Jesus desvela seus mistérios
aos dignos, m udando o foco da soberania de D eus para o mérito humano. Veja
E. Kellenberger, “Heil und Verstockung. Zu Jes 6,9f. bei Jesaja und im Neuen
Testam ent”, T Z 48 (1992), p. 268-75, que argumenta que Marcos compreende
apropriadam ente Isaías 6.9,10 para m ostrar a tensão inseparável entre salvação e
julgamento, e essas duas facetas são proclamadas em Isaías 6.9,10 sem referência
aos méritos humanos. Kellenberger argumenta que até mesmo os discípulos em
Marcos têm o coração endurecido (6.52; 8.17), mas Cristo os fará ver (8.22-26),
assim com o Paulo acreditava que D eus tornará possível para os judeus descrentes
verem (Rm 11.26,32). Tanto Kellenberger quanto Cranfield {The GospelAccording
to Saint M ark, p. 157-58) argumentam, no entanto, que o fato de Deus endurecer
o coração é uma ação penúltima, e não final, e que seu propósito derradeiro é a
salvação.
56 Essa tensão é com frequência ignorada pelos comentaristas. B. H. Branscomb,
The Gospel o f M ark, p. 78, argumenta totalmente pelo livre-arbítrio, m antendo que
uma divisão entre os que pertencem ao círculo íntimo e os de fora determinada
pela vontade de Deus “representa de form a totalmente equivocada” a atitude de
Jesus em relação às pessoas com uns e ao propósito das parábolas, propósito esse
que era revelar. Essa é uma visão popular, já representada por Crisóstomo e Vitor
181 M a rc o s 4.12

Antes, ele p õ e esses dois asp ecto s em justaposição. A ten são já estava p resen te
em Isaías 6, em q u e D e u s en v io u seu p ro fe ta p ara u m p o v o q u e n ão resp o n -
deu a ele. F ic o u ev id en te n a d u re z a d o faraó, atrib u íd a altern ativ am en te a sua
própria esco lh a (Ê x 7.14,22; 8.15,19,32; 9.7,35; 13.15) e à v o n tad e de D eu s
(Êx 4.21; 7.3; 9.12; 10.1,20; 11.10). Fica ev id en te n a p aráb o la d o sem ead o r
em que u m fazen d eiro sem eia em u m so lo q u e n ão p o d e p ro d u z ir frutos. A
tensão é p re serv ad a n a reflexão d e M arcos so b re a d ese rção d e Judas, u m dos
escolhidos d e Jesu s q u e o traiu: “ O F ilh o d o h o m e m vai, c o m o está escrito
a seu respeito. M as ai daquele q u e trai o F ilh o d o h om em ! M elh o r lhe seria
não h aver n asc id o ” (14.21). A d escren ça e a rejeição ex p erim en tad as p o r
Jesus ta m b é m fo ram ex p erim en tad as m ais tard e pela igreja prim itiva, e mais
uma vez Isaías 6.9,10 (junto co m J r 5.21) falou so b re o p ro b le m a d o coração
endurecido (A t 28.26,27; J o 12.40).
N a in tera ção inescrutáv el e n tre os p ro p ó sito s ex p ressos d e D e u s e os
fatos co n trá rio s d a h istória, M arcos e a igreja p rim itiva v iam m ais q u e u m a
luta decisiva en tre iguais e forças o p o stas. A n tes, a sob eran ia de D e u s estava
exercitando u m p ro p ó s ito teológico. O D e u s q ue d á o m istério (v. 11) tam -
bém cega os o lh o s d aqueles n ã o disp o sto s. A s p arábo las, c o m o ó p ró p rio
m inistério d e Jesus, são veladas e m isterio sas, e só d essa fo rm a é que p o d em
revelar p ara aqueles q u e realm en te o u v em .57Jesu s ap resen ta o R eino d e D eu s

no p erío do patrístico, mas falha em levar o texto a sério. M arcus, p o r sua vez, em
“M ark 4:10-12 an d M arcan E pistem ology” , J B L 103 (1984), p. 566, argum enta
totalm ente pela predestinação: “Algum as pessoas são solo bo m , mas outras são o
solo à beira d o cam inho, outras ainda o terreno pedregoso ou cheio de espinhos;
o prim eiro g ru p o p o d e receber a palavra, mas os últim os não. N ã o há sugestão
de que o indivíduo possa alterar o tipo de solo que é” . Tal determ in ism o falha
em levar a sério o cham ado de Jesus para ouvir (4.3,9) e fazer a v o n tad e de D eus
(3.35). O sanduíche m arcano de 4.1-20 evita esses dois extrem os. O m istério da
providência divina, m anifestada no m inistério de Jesus, é dad o para aqueles que
estão com Jesus (3.14,34) e que ouvem (4.3,9) sua palavra.
57 O bserve a percepção de M. Hengel: “ O que tem os [em parábolas] é o que eu
gostaria de cham ar um ‘encobrim ento revelador’. A revelação p o d e encobrir, e
o enco brim ento p o d e revelar. [...] H á circunstâncias que só p o d em ser expres-
sadas adequadam ente na fo rm a de um a revelação q ue encobre, e acredito que
os ‘m istérios’ de Jesus são um a dessas circunstâncias. N ã o p o rq u e o indivíduo
que fala sobre tais circunstâncias q u er ser m isterioso, [...] mas p o rq u e a natureza
dessas circunstâncias não p erm ite qualquer o u tro tipo de linguagem com o um a
expressão adequada” {Studies in the Gospel o f M ark, trad. J. B ow den [London: SCM
Press, 1985], p. 95-96).
M a rc o s 4.13-20 182

d e tal fo rm a q u e e ste cria u m a crise e divisão, u m a “ esp ada” , d e ac o rd o com


M ateus 10.34, p o is esses são pré-req u isito s necessários p ara a decisão e ar-
rependim en to . A p esso a e o m in istério de Jesus criaram u m a linha divisória
en tre os qu e p e rte n c e m ao círculo ín tim o e os de fora, e isso c o rre sp o n d e à
v o n tad e d e D eu s. O evangelho d e J o ã o expressa m u ito b em a co m p reen são
d e M arcos d essa crise: “ E u vim a este m u n d o p ara julgam ento, a fim d e que
os cegos vejam e os q u e v eem se to rn e m ceg o s” (Jo 9.39).

13 “ V ocês n ã o e n te n d e m esta parábola? C o m o, então, co m p re en d erão


todas as o u tras?” M arcos, co m essa p erg u n ta , re to rn a à segunda m etad e do
sandu ích e n a in te rp re taç ã o da paráb o la d o sem eador. A p resen ça desse versí-
culo, o m itid o p o r M ateus 13.18 e L ucas 8.11, indica a im p o rtân cia da parábola
d o sem ea d o r p ara M arcos. A falha em o u v ir essa p aráb o la significa falha em
co m p re e n d e r as parábo las em geral. O q u e h á n a paráb o la d o sem ea d o r que a
to rn a u m parad ig m a p a ra to d a s as o u tras p arábolas? A re sp o sta, q u e se to rn a
aparente n a in terp re taçã o d o s versículos 14-20, é q u e a paráb o la d o sem eador
co m b in a os d o is elem en to s q u e fo rm a m o c e rn e d a histó ria d e M arcos e
que são necessárias p ara a c o m p re e n sã o d o evangelho, a saber, a cristologia
e o discipulado. A p rim eira n arraç ão d a p aráb o la em 4.3-9 explica o sentido
de Jesus, e a seg u n d a n arraç ão em 4.14-20 explica o sen tid o d o discipulado.

1 4 -2 0 A m u d a n ç a d o tem a d o d iscip ulad o na explicação da p aráb o la é


inequívoca. U m a leitu ra cu id ad o sa d e 4.14-20 revela q u e a sem en te, q u e no
versículo 14 é id en tificad a c o m o palavra (= evangelho), tran sfo rm a-se os
o u vintes n o s versículos 15ss. M u ito s estu d io so s co n sid eram essa m u d an ça
c o m o evidência d e u m a in te rp re ta ç ã o p o ste rio r d a igreja p ro jetad a em Jesus.
E ssa é a possível conclusão, m as n ã o é tã o necessária q u a n to m uitos estudio-
sos supõ em . H á várias circunstâncias n a tradição judaica em q u e os fiéis são
p lantad os, ex a ta m en te c o m o eles estão aqui (O s 2.23; J r 31.27; 1Enoque62.8;
2E sdras 8.41).38 O ap ó sto lo P a u lo ta m b é m fala s o b re o sem ear d e pessoas
(IC o 15.42-48), c o m o ta m b é m o faz o P a s to r d e H e rm as (Herm. Sim. 9.20.1;
Herm. Vis. 3.7.3).
O u tra característica d a explicação d a p aráb o la é a p resen ça d e palavras e
expressões q u e são únicas. E ssas palavras, as quais n ão o c o rre m em o u tro s *

8‫ י‬L. R am aroson, “Jesus sem eur de parole et de peuple en M c 4:3-9 et par.” , ScEs
47 (1995), p. 287-94, exam ina nove passagens em q ue D eu s sem eia as pessoas de
seu reino e argum enta que a explicação da parábola do sem eador em 4.14-20 é
fiel ao p ensam ento de Jesus.
183 M a rc o s 4.13-20

textos em M arcos, m as o c o rre m p a rtic u la rm en te em Paulo, sugerem para


m uitos estu d io so s q u e a explicação d a p aráb o la surge d a igreja prim itiva, e
não de Jesus. A estatística d o vocabulário, n o en tan to , n ão é tão co n v in cen te
quanto su gerem seus p ro p o n e n te s. H á ap en as cinco te rm o s q u e o co rrem
apenas aqui em M arcos e em n e n h u m o u tro tre c h o n o s sinóticos fo ra da
explicação d a p aráb o la d o sem ead o r.39 E sse é u m n ú m e ro n otável, m as não
é a p ro va d e u m a p ro v en iên cia p o ste rio r d o texto.
P o r fim , su p õ e m -se q ue os vários o b stácu lo s p ara o u v ir refletem u m pe-
ríodo m ais tardio. A credita-se q ue as situações d e “ tribulação o u perseguição”
(v. 17), “ ab a n d o n a m ” (v. 17), “ as p reo cu p açõ es d esta vida, o engano das tique-
zas e os anseios p o r o u tras coisas” (v. 19) se ajustam m ais às circunstâncias da
igreja prim itiva q ue ao m in istério itin eran te d e Jesus. M ais u m a vez, em b o ra
essa p erspectiv a p u d esse ser p o ssiv elm en te verdadeira, esses m esm o s d ad o s
tam bém se aju stam co m a narrativa d o m in istério de Jesu s em M arcos. P o r
exemplo, a referên cia a Satanás re tira n d o a palavra sem eada (v. 15) tran sp ira
na experiência d e P e d ro em 8.32; o a b a n d o n o p o r causa das tribulações e
perseguições (v. 17) é co n cretizad a em 14.43-50, q u a n d o Ju d as e seu g ru p o
fazem os discípulos fugirem ; e os cuidados d o m u n d o e os enganos da riqueza
são co n cretizad o s n a h istó ria d o h o m e m rico em 10.17.5960
E n tã o , será q u e a in terp re taçã o ap resen tad a n o s versículos 14-20 é um a
explicação au tên tica d e Jesu s o u u m acréscim o d a igreja prim itiva? A localiza-
ção artificial da explicação das paráb o las n o s versículos 10-20 n o serm ã o de
Jesus à beira d o m ar, o vocabulário novo, a m u d an ça de sem entes p ara pessoas
e o cenário d a vida refletin d o a igreja prim itiva p o d e m , é claro, ser lidos co m o
evidência p ara a p ro v en iên cia d a igreja prim itiva. C o n tu d o , n ão precisam
ser lidos d essa fo rm a .61 A discussão p re c e d e n te o fe rec e ta n to d ad o s q u an to
razões q u e p o d e m ig u alm en te e de m o d o plausível localizar a explicação da

59 C. H. D o d d , The Parables o f the Kingdom (London: Collins, 1965),p. 14-15, ejerem ias,
The Parables o f Jesus, ed. rev., p. 78, apresentam um a lista com binada de quatorze
palavras únicas para a explicação da parábola do sem eador. E ssa é um a contagem
muito im precisa. N a realidade, há apenas cinco term o s que o co rrem apenas aqui
em M arcos e em n en h u m o u tro texto dos sinóticos fora d a explanação da pará-
bola: akarpos (“infrutífera”), apafe (“ enganador”), paradechomai (“ aceitar”), ploutos
(“riqueza”) e proskairos (“p o r um breve m o m e n to ”). M arcos 4.14-20 consiste de
cem palavras em grego; cinco palavras únicas entre as outras são insuficientes
para provar a proveniência tardia da passagem .
60 Drury, The Parables in the Gospels, p. 51.
61A discussão sensível de C ranfield dos versículos 14-20 em The GospelAccording to
Saint M ark, p. 158-61, é evidência de que o caso contra a autenticidade de 4.14-20
está longe de ser estabelecida.
M a rc o s 4.13-20 184

p aráb o la n a vida d e Jesus. D e q u alq u er m o d o , a explicação da p aráb o la, que


d e início parecia p ro b lem á tica , fo rça-n o s a re co n sid erar o q u e u m a parábola
é e faz. A s paráb o las são u m m eio p lástico e m aleável, e n ão estático. N ã o são
tijolos, q u e secam e en d u rece m ra p id a m en te n o sol, m as argila m o lh ad a que
conv id a a novas im pressões. É difícil d izer se as novas im p ressõ es são feitas
pelas m ãos d o o leiro o u p o r ap ren d izes p o sterio res, e isso n ão é im p o rtan te
p ara os p ro p ó sito s d e M arcos. O im p o rta n te é afirm a r q u e as novas im pres-
sões n ão são e rro s n e m aberrações. E u m equívoco s u p o r que u m a parábola
tem u m sen tid o ú nico, fixo e estático, e q u e q u alqu er m u d an ça da garantida
ipsissima voxJesu, a palavra d o p ró p rio Jesus, tem pro v en iên cia e im p o rtân cia
secundárias. U m a p ará b o la re p re se n ta u m ce rto quantum d ian te d o s ouvintes
q u e tem o p o ten cia l d e tratá-las d e várias m aneiras em níveis distintos. A
dialética en tre a palavra falada d e Jesu s e o o u v ir co m co m p re e n sã o p o r parte
d o s cristãos é a in te n ç ã o rev elad o ra d a parábola. A n arrativa e interp retação
d a p aráb o la d o se m ea d o r c o m b in a n a h istó ria dois tem as centrais de M arcos,
o sen tid o d e Jesu s e o sen tid o d o discipulado.62
O p ro p ó s ito su p re m o n a in te rp re ta ç ã o d o s versículos 14-20 é a ênfase
n o ouvir. O d iscip u lad o d e p e n d e d esse term o , p o is tu d o d e p e n d e da recepti-
vidade. O s discípulos — os q u e p e rte n c e m ao círculo ín tim o — são aqueles
que re ceb e m o m istério d o re in o (v. 11) e q u e o u vem o que Jesu s diz. O vo-
cabulário d e M arco s é inequívoco. H á o ito o co rrên cias d o te rm o “ palavra”
(gr. logos) n o s versículos 14-20, e a o rd e m para “ ou vir” (gr. akouein) tem apenas
q u atro ocorrências. O s p rim eiro s três tip o s d o o u v ir — aqueles d e quem
Satanás ro u b a a palavra (v. 15), aqueles sem raiz que, n a dificuldade, aban-
d o n a m a palavra (v. 17) e aqueles cuja riq u eza e desejos m u n d an o s sufocam
a palavra (v. 18,19) — são d escrito s p o r M arcos n o te m p o ao risto em grego.
O te m p o verbal g re g o ao risto indica a ação em u m d e te rm in a d o p e río d o de
tem p o , algo feito sim ples e finalm ente. O s três p rim eiro s tip o s d o ouvir, p o r
co nseg u in te, in d icam o o u v ir superficial e rápido, aquele q u e en tra p o r um
o u vid o e sai p elo o u tro , o o u v ir feito sem q u alq u er esfo rço n e m atenção.
Satanás, a p erseguição e os cu id ad o s d este m u n d o q u erem d izer co n fu são
p ara aqueles q u e d ão ao evangelho apenas u m o u v ir casual. A falha em ouvir
os co n firm a c o m o os de fora, e a Palavra de D e u s se to rn a in fru tífe ra para
eles (v. 19). C o n tu d o , n o v ersículo 20, u m tip o d istin to d e o u v ir é indicado

62 A o b ra de M. Fishbane, Biblical Interpretation in Ancient Israel (O xford: C larendon


Press, 1985) oferece um a perspectiva útil sobre o m o d o co m o a tradição autorita-
tiva (;traditum) foi transm itida (iraditio) na Israel da A ntiguidade. A o b ra de D rury,
The Parables o f the Gospels oferece um a perspectiva igualm ente útil so b re a form a
com o as parábolas funcionam nos evangelhos.
185 M a rc o s 4.13-20

ali. O te m p o ao risto é re p e n tin a m e n te su b stitu id o p elo te m p o p re sen te d o


verbo, in d ican d o u m o u v ir co n tín u o e sem in terru p ç ão , em o p o sição ao ouvir
desatento e descuidado. A s p esso as engajadas n o q u a rto tip o de o u v ir são os
que p e rte n c e m ao círculo ín tim o q u e “ o u v em [...] re ceb e m [...] e d ão um a
[boa] co lh eita” . O u v ir, re ceb e r e d a r fru to s são as m arcas d o s discípulos de
Jesus. U m o u v ir re sp o n siv o p ro d u z u m a co lh eita m ilagrosa — “ trin ta, ses-
senta e até ce m p o r u m ” !
Q u al é o sen tid o geral d o sanduíche m arcan o em 4.1 -20? A chave para sua
interpretação é a p arte-B central n o s versículos 10-12. O indício para receb er
0 m istério d o R eino d e D e u s e n c o n tra -se em Jesus. A queles co m Jesu s e que
fazem a v o n ta d e d e D e u s (3.34,35) são os q ue p e rte n c e m a q u em o m istério
do R eino d e D e u s é revelado. A queles que n ão estão c o m Jesu s são os de
fora, p a ra q u e m as paráb o las selam sua descrença. A p a ráb o la d o sem ead o r
é com o u m a n u v em q u e separava os israelitas fu gin do d a p erseguição dos
egípcios, tra z e n d o “ trevas p ara u m e luz p ara o o u tro ” (Ê x 14.20). A quilo
que foi cegueira p ara o E g ito foi revelação p ara Israel. O m esm o ev e n to era
um veículo ta n to d e luz q u a n to d e trevas, d e p e n d e n d o d a p o sição d a p esso a
com D eus. A p aráb o la d o sem ea d o r su ste n ta a cristologia e o discipulado em
união sim biótica, assim c o m o M arcos as su ste n ta rá m ais u m a vez em união
no ensino em Filipe d e C esareia (8.27-38). A co n fissão c o rreta de Jesus leva
ao discipulado co rreto . A p aráb o la d o sem ead o r in fo rm a e alerta os discípulos
que o m in istério d e Jesus, e m b o ra assediado p o r o bstácu lo s, p ro d u z irá um a
colheita sem p reced en tes. O s discípulos ta m b é m serão enviados a sem ear
a palavra e ta m b é m c o n h e cerão a tre m e n d a fru straçã o d o sem ear em locais
onde as chances d e colheita p arece m p ra tic a m e n te im possíveis. N o en tan to ,
a sem ente, c o m o ex p e rim en tara m na p ró p ria vida, e n c o n trará de fo rm a ines-
perada o solo b o m na vida d o s o u tro s. A queles q ue ouvem co m p re en d erão
0 m istério d o R eino d e D eu s, pela graça de seu p o d e r g erad o r, p ro d u z irão
uma colheita além d o q u e p o ssam im aginar.

0 E N C O B R IM E N T O Q U E R E V E L A (4 .2 1-2 5 )

As falas n essa u n id ad e p o d e m ser en c o n trad as espalhadas em M ateus e


Lucas, co m o ta m b é m na tradição d a igreja prim itiva.ί;·, Isso indica que M arcos
reuniu o m aterial nessa seção de u m c o n ju n to d e falas d e Jesu s reunidas antes *

“ Versículo 21: M ateus 5.15; Lucas 8.16; Evangelho de Tomé 33; versículo 22: Ma-
teus 10.26; Evangelho de Tomé 5— 6; P. Oxy. p. 654, n° 4; versículo 23: M ateus 11.15;
Atos de Tomé, p. 82; versículo 24: M ateus 7.2; 1Clemente 13.2; P 0L Fp. 2.3; versículo 25:
Mateus 13.12; Evangelho de Tomé 41; 4E sdras 7.25?
M a rc o s 4.21 186

de escrever seu evangelho e as quais p ro v av elm ente circularam p o r u m bom


te m p o n a fo rm a oral d ep o is d o s ev e n to s n arrad o s. A s falas são em pregadas
em co n tex to s d istin to s e p ara p ro p ó sito s d iferentes pelos escritores citados
acim a. M arcos tece-as n o p re se n te c o n te x to d o capítu lo 4 p ara co m en ta r 0
sen tido das parábolas. A re to m a d a d a fala p o r m eio de paráb o las n o versícu-
lo 21, em b o ra isso n ão seja esp ecíficam en te afirm ado, leva-nos a assu m ir que
Jesu s está d e n o v o en sin an d o p u b licam en te às m argens d o m a r d a Galileia.

21 A falta d e jeito desse versículo n o original g re g o é u m indício para


seu sentido. A N V I p õ e o fo co n o caso objetivo a fim de to rn a r o versículo
m ais ajeitado (“ Q u e m traz u m a candeia para ser co locada debaixo de uma
vasilha o u d e u m a cam a?”). M ateu s 5.15, L ucas 8.16 e o Evangelho de Tomé
33, to d o s eles p re serv am a fala e ta m b é m p õ e m a candeia n o caso objetivo.
M arcos, n o en tan to , tra n sfo rm a a candeia n o sujeito d a sentença, sem dúvida
p o r m o tiv o s teológicos: “A can d eia vem a fim d e q ue p o ssa ser p o sta sob
u m a vasilha o u debaixo da cam a?” N o A ntigo T estam ento, a candeia é com
frequência u m a m etáfo ra para D e u s (2Sm 22.29) o u p ara o M essias davídico
(2Rs 8.19; SI 132.17) o u a T orá (SI 119.105). M arcos n ão só distingue a can-
deia ao torná-la u m sujeito atu an te, m as ta m b é m se refere a ela co m o artigo
definido, a candeia. P o r fim , a referên cia à candeia vindo (gr. erchetaí) é mais
ap ro p riad a p ara u m a p esso a q u e p ara u m o b jeto , e foi de fato u sada antes
p ara se re ferir a Jesu s (1.7; 3.20). E sses p articu lares sinalizam q u e essa n ão é
u m a candeia c o m u m . A im ag em a p o n ta p ara Jesu s c o m o o agente im plícito,
p ara q u e m a can d eia é u m a m etáfo ra. Jesu s é a candeia d e D e u s que veio
traz er luz e revelação (Jo 1.5; 8.12).
A s lâm padas a óleo, u m d o s arte fato s m ais co m u n s d esc o b e rto s por
arqu eó log o s, lan çam u m a ó tim a luz q u a n d o erguidas em u m a área ab erta, e
n ão q u a n d o p o stas so b algo c o m o “ u m a vasilha64 o u ca m a” . A fala p o d e ter
sido estim ulada pela co lo cação d a lâm p ad a n o ta b ern ácu lo p ara to d o s verem
(Ê x 25.37). O tex to d e 4.21 re p ete o p e n sa m e n to d e 2.21,22, e m b o ra use um a
im agem distinta. A ssim c o m o Jesu s n ão p o d e ser c o n fo rm a d o co m ro u p as e
vasilha d e c o u ro velhas, tam b é m n ão p o d e ser p o s to debaixo “ d e u m a vasilha
o u de u m a ca m a” . T alvez as vasilhas e as cam as (gr. kline) rem e m o rem os
cântaros, e chaleiras e cam as (gr. kline!) d e 7.2. Se esse fo r o caso, a parábola
declara m ais u m a vez a in d e p e n d ê n c ia e so b eran ia de Jesus so b re os ritos

64 A palavra grega para “vasilha” (modios) referia-se a um container comum existente


nas casas palestinas, cujo volume era de cerca de dois galões (3.78 litros nos EUA;
e 4.51 litros no UK).
187 M a rc o s 4 .2 2 2 4 ‫־‬

judaicos d e purificação. D e q u alq u er m o d o , a lâm p ad a n o can d elab ro afirm a


que Jesus n ão se su b o rd in a a nad a, m as é su p re m o so b re to d as as coisas, e é
a luz p o r m eio d a qual as p esso as são capazes d e ver. A candeia, ju n to co m o
tema da revelação n o s versículos 21-25, testifica d e q u e o p ro p ó sito d e D eu s
em Jesus é ilu m in ar e revelar.65

22 P o r ora, n o en tan to , o R eino d e D e u s e o papel d e Jesus nele continuam


em grande p a rte e n c o b erto s (4.22). A in d a assim , até m e sm o o e n c o b rim en to
da h o ra p re se n te (refletindo em retro sp ectiv a os versículos 11,12) co n tém
as sem entes d o q u e será revelado. A p e sa r de o p rin cíp io d o rein o p arecer
ser desfavorável e n ão p ro m isso r, isso serve o p ro p ó s ito d e D eus. A p ró p ria
hum anidade d e Jesu s g o v ern a a glória d e D e u s p ara q ue esta n ão so b rep u je
nem cegue o m u n d o e co n v id a as p esso as a d esc o b rir o rein o p o r experiên-
cia.66A atividade u m tan to d esc o n c e rta n te de D e u s em Jesus é co m o u m jogo
de esco nd e-esco n d e: só q u e aquilo q u e está esc o n d id o p o d e ser en co n trad o .

2 3 ,2 4 Jesu s está esco n d id o afim de ser m an ifestad o. O en c o b rim en to tem


a intenção d o desvelar. O R eino d e D e u s — e as paráb olas que testem u n h am
dele — são u m a peça d e u m b o rd a d o : u m lado é feito de u m a m assa de n ós e
entrelaçam entos, e n q u a n to a o u tra é u m p ad rão term inado. A ssim tam b ém é a
imagem d e Jesus. P ara os d e fora, ele é u m sim ples rabi sem as credenciais de
uma escola rabínica, u m galileu surgido d o nada. C o m o alguém p o d e detectar
nas linhas co m u n s dessa vida o p ad rão d o R eino de D e u s em erg in d o ali? Só
pelo ouvir. O p o n to é re p etid o d e fo rm a re d u n d a n te n o s versículos 23,24, em
que a o rd e m p ara o u v ir o c o rre três vezes n o g re g o n o s dois versículos. A ex-
plicação da p aráb o la d o sem ead o r alerto u co n tra p erm itir que a vida seja po sta
na barrela pelas exigências e atraçõ es d o m u n d o , n ão d eix an d o n e n h u m solo
no qual a sem en te da vida p o d e ser n u trido. “ C o n sid e rem aten ta m e n te o que
vocês estão o u v in d o ” , diz Jesus, p o is vocês são c o m o p risioneiros cuja única

65 K losterm ann, D as Markusevangelium, p. 42-43, vê um a contradição entre a ideia de


revelação n o versículo 21 e encobrim ento n o versículo 11. C on tu d o , R. G undry,
M ark, p. 212, está co rreto ao n o tar que “a fala sobre enco brim en to e m anifestação
naturalm ente significa que nada está escondido em um a parábola transm itida para
uma g ran de m ultidão que não se fará m anifesta para os discípulos de Jesus em
explicação particular” .
66P Ox. 654, n° 4, expande a fala no versículo 22 para incluir “ [...] e nada enterrado
que não ressuscitará” . E ssa adição sugere que o véu e o encobrim ento do ministério
terreno d e Jesus serão levantados na sua ressurreição d en tre os m ortos.
M a rc o s 4.25 188

ch an ce d e escap ar d e p e n d e d o o u v ir e so lu cio n ar a charada. A en tra d a p ara o


R eino d e D eu s, c o m o n a p aráb o la d o sem ead o r, é p o r in term éd io d o ouvir.
M arcos, p ara o tem a d o e n c o b rim e n to e revelação, acrescen ta u m a fala
d e Jesus em 4.24 so b re ser m ed id o p elo p ad rão q u e alguém estabelece para
os outros. E sse é u m an tig o p ro v é rb io judaico q u e o c o rre em u m a variedade
de form as, u m a das quais diz: “ N o p o te em q u e c o z in h a os o u tro s, v o cê será
co zin h a d o ” .67
O s versículos 23,24 tra e m os sinais inequívocos d e terem sido estrutu-
rados em u m m eio judaico e tran sm itid o s n esse m eio. São palavras hebraicas
co m v estim en ta g re g a e p o d e m se r facilm ente trad uzidas d e v o lta p ara o
h eb raico.68 U m a tra d u ç ão literal d o g re g o seria: “ E m q u alq u er m ed id a que
vo cê m ed ir será m ed id o p a ra v o cê e será acrescen tad o p ara v o cê” .69 O uso
d e v o z passiva n o s d o is v erb o s são “ passivos div in os” , cujo sen tid o é: “D eus
m ed irá isso e acrescen tará p a ra v o cê” . O u so freq u en te d a v o z passiva nessas
falas p re se rv a a co n v en ção judaica d e evitar o n o m e d e D e u s p o r te m o r de
profaná-lo.

25 M arcos aplica esse d ito d e sab ed o ria judaica à c o m p re e n sã o das pará-


bolas. P arece ilógico q u e m ais seja d a d o àquele q u e te m q u e àquele q u e não
tem , m as dois ditos tardios d o T alm u d e co n co rd am em essência.70A qualidade
co m q ue a p e sso a o u v e as p aráb o las e a extensão co m q u e ela p e rm ite que
o rein o irro m p a so b re si m esm a d e term in a rão a m ed id a da co m p re en são da

67 Str-B 1.445 [tradução do autor].


68 A fonte e co n tex to que m elh o r explica o sentido dos versículos 21-25, de acordo
co m J. Jerem ias, A bba: Studien %ur neutestamentlichen Theologie und Zeitgeschichte (G ot-
tingen: V andenhoeck & R uprecht, 1966), p. 99-102, é o p ró p rio Jesus.
69 A frase de conclusão, “ e ainda mais acrescentarão para vocês” não está presente
n o texto ocidental (D ), talvez devido a homoeoteleuton (quando o o lho de u m co-
pista om ite inadvertidam ente um a palavra devido a sua sim ilaridade co m outra
palavra). E sse é u m potencial para o erro nos versículos 24,25, em que, n o grego,
quatro palavras term inam com esetai. Veja M etzger, TC G N T, p. 83-84. U m copista,
p o r sua vez, p o d e ter om itido as palavras acrescentadas p o rq u e elas destroem o
paralelism o das palavras anteriores e parecem redundantes.
70 D eu s “ p õe mais em um a vasilha cheia, mas não em um a vazia; pois diz: ‘Se você
ouvir continuará a o uvir’ (E x 15.26), indicando o seguinte: ‘Se você ouvir conti-
nuará a ouvir, e se não, você não ouvirá’ ” (b. Ber. 40d); de acordo com o padrão
do h o m em m ortal, um a vasilha vazia é capaz de co n ter [o que é p o sto nela], e
um a vasilha cheia n ão p o d e c o n ter isso; mas, de aco rd o co m o padrão do Santo,
abençoado seja ele, um a vasilha cheia é capaz de co n ter isso en q u an to a vazia não
o é” (b. Suk. 46a-b). C itado de M. H ooker, The GospelAccording to S t M ark, p. 134.
189 M a rc o s 4.26-28

pessoa. A queles q u e o u v em e q ue b a te m até a p o rta se r a b e rta en c o n trarã o


0 reino d esvelado p ara eles. C o n tu d o , aqueles q u e b u sca m co m pressa, cuja
batida à p o rta d a v id a é b rev e o u efêm era, d esc o b rirã o q u e aquele convite
alegre p ara e n tra r n o re in o se esm o rece e m u m a m irag em d e descrença. E m
particular, o d ito co n v id a à aplicação p ara Jesus, pois o m e sm o v erb o (“ da[rj” ;
gr. didomi) liga o d a r o re in o n o versículo 11 co m o versículo 25. A queles a
quem o m istério d o R eino d e D e u s é d a d o em Jesu s receb erão até m esm o
capacidade m a io r p ara e n tra r nele. A queles q u e falham em re ceb e r o m is-
tério em Jesus, p o r su a vez, d esc o b rirão q u e “ até o q u e tem lh e será tirad o ”
(veja P v 1.5,6; 9.9). A c o m p re e n sã o d o R eino d e D e u s n ã o é u m a habilidade
humana, m as u m a cap acid ad e criada p o r Jesu s C risto n o coração d o cristão.

DO IN S I G N I F I C A N T E A O I N C O M P R E E N S Í V E L ( 4 .2 6 3 4 ‫)־‬

M arcos conclui o en sin o de Jesus nas parábolas co m duas parábolas sobre


o Reino d e D e u s (4.26-29,30-32) e u m re su m o d o p ro p ó sito das parábolas
(4.33,34). A p rim eira p aráb o la (4.26-29) é única de M arcos e n ão é en co n -
trada em n e n h u m o u tro trec h o n o s evangelhos. A s duas parábolas ilustram
a plasticidade in e re n te n o en sin o p o r m eio d e parábo las q ue o b serv am o s n a
explicação d a p aráb o la d o sem eador. A s duas paráb o las re p etem a im agem de
uma p esso a sem ea n d o (cf. 4.3ss.), m as co m efeitos to ta lm e n te distintos. N a
primeira p aráb o la, a ên fase cai so b re o p ro c esso d o crescim ento, ao p asso que
a im agem sim ilar n a seg u n d a p aráb o la ac en tu a o c o n tra ste en tre o p rincípio
pequeno e os g ra n d es resultados. A s duas parábolas são histórias de surpresa.
Não é possível im aginar a co n clu são a p a rtir d o início. Tal é o R eino de D eus.

26 “ O R eino de D e u s é sem elh an te a u m h o m e m q u e lança a sem en te


sobre a terra.” N ã o seria possível im aginar u m a co m p a ra çã o m ais banal. O
Reino d e D e u s deveria se assem elh ar a algo g ra n d io so e glorioso: a picos de
m ontanhas cintilantes, p o re s d o sol v erm elh o s, a o p u lên cia d e so b eran o s, a
glória cobiçada d e u m gladiador. C o n tu d o , Jesu s assem elha o R eino d e D e u s a
sementes. O p arad o x o d o evangelho — n a verdade, o escândalo d a E n carn ação
— é d isfarçad o nesses lugares-com uns. O D e u s a q u em Jesu s in tro d u ziu n ão
será m an tid o n a ex ten sã o d e b raço s celestiais. Jesu s n ã o n o s diz q u ão alto e
eminente D e u s é, m as c o m o ele está p ró x im o e p re sen te, e c o m o as rotinas
de plantar e c o lh er são indícios m u n d an o s p ara a n atu re za e p lan o de D eus.

27,28 Jesu s assem elha o R eino d e D e u s a u m p ro c esso d e crescim ento.


Uma sem ente n ão é espetacular, n em seu laborioso crescim ento atrai a atenção
M a rc o s 4.26-28 190

das pessoas. O fazen d eiro esp era n o ite e dia pelas sem entes;71 “ e stan d o ele
d o rm in d o o u ac o rd a d o ” , e a vida c o n tin u a c o m o sem pre. C o n tu d o , sim ulta-
n ea m e n te e co m in d ep en d ê n cia d o fazendeiro, o u tro p ro c esso está em ação.
C o m vagar e d e m o d o im perceptível, “a sem ente g erm ina e cresce” . A sem ente
é to talm e n te distinta d a b u sca m undial p elo po d er, c o m o na p arábola de Jotão
d o esp in h eiro (Jz 9.7-15), a am b ição em seu estad o n atural assegura u m lugar
p ara si m esm a pela violência e revolução. Jesus, m ais tarde, alertará contra
essa b u sca e te n taç ão (10.42-45). A sem en te, de ce rta fo rm a , é tão inofensiva
e insignificante q u e o fazen d eiro de início p o d e n em tomar c o n h e c im e n to de
seu crescim ento. E le “ n ã o sa[be] [nem m esm o] c o m o ” isso acontece. N o
en tan to , ap esar d a ausência e ig n o rân cia d o fazendeiro, a te rra p ro d u z “ por
si p ró p ria ” (gr. automatè), te rm o d o qual deriva n o ssa palavra “ au to m ático ” .72
A sem en te c o n té m em si m e sm a u m p o d e r d e g erar e u m p ro c esso o rd en ad o
de crescim en to — “p rim eiro o talo, d ep o is a espiga e, então, o g rão cheio na
espiga” — q u e se revela à p a rte d e q u alq u er ação d o fazendeiro.73
U m a teo lo g ia a n te rio r ten d ia a en fatizar o papel da atividade hum ana
p ara in tro d u z ir o R eino d e D eus.

Levante-se, ó hom ens de Deus! Seu reino tarda m uito;


Traga o dia da irm andade, e term ine a noite de erros.74

‫׳‬l A ordem dos eventos no versículo 27, “N oite e dia, estando ele dorm indo ou
acordado”, reflete o costum e judaico de reconhecer o novo dia no pôr do sol.
'2 Veja G. Theissen, “D er Bauer und die von selbst Frucht bringende E rde”, ZNW
85 (1994), p. 167-82, que localiza o cerne da parábola em automates (“por si pró-
‫ י‬pria”).
73 Uma ordem de crescimento similar aparece em 1Clemente 23.4,5 e 2Clemente 11.3.
O Apócrifo de Tiago 12.20-30, um texto gnóstico do século III, muda o ponto da
parábola do Reino de Deus com o obra de Deus para a responsabilidade da hu-
manidade de colher e de se apropriar do processo: “Pois o reino dos céus é como
urna espiga de grão depois que brota em um campo. E quando ela amadurece,
espalha seus frutos e mais uma vez enche o campo com espigas para o ano seguinte.
Vocês também: apressem-se para colher uma espiga de vida para si mesmos para
que possam ser enchidos com o reino” .
74 Mais recentemente, J. D. M. D errett escreve: “A parábola do crescimento secreto
da semente indica que as boas obras e as boas intenções são meritórias, embora o
‘semeador’ (o homem) não esteja ciente de sua eventual participação nos lucros”
(“Ambivalence: Sowing and Reaping at Mark 4:26-29”, EstBib 48 [1990], p. 489-
510). Com o essa interpretação hum anista deriva-se de 4.26-29 é surpreendente.
O versículo 27, em particular, relega a humanidade a um papel totalmente passivo
na realização da colheita. A parábola tem três sujeitos (o semeador, a semente, a
terra), e a responsabilidade do único sujeito hum ano é apenas esperar em fé.
191 M a rc o s 4.29

E sse h in o n ã o p o d ería te r sido escrito p o r Jesu s n em p o r M arcos. A única


atividade h u m an a nessa parábola, à p arte d o sem ear, é esperar em fé, confiante
da colheita p o r vir (veja T g 5.7). A v in d a d o R eino d e D e u s é sem elhante a um
processo d e crescim en to , m as u m p ro c esso estra n h am e n te in d ep en d e n te da
atividade hu m an a. A sem en te , ap esar d o in eq u ív o co p rin cíp io e da ausência
do en v o lv im en to h u m an o , c o n té m em si m esm a o po ten cial de d ar frutos.
A sem ente, c o m o o evangelho, p ro sp e ra p o r si m esm a, e, u m a vez sem eada,
põe em m o v im e n to u m p ro c esso q u e leva à colheita.75

29 P egar a foice p ara a colheita sim boliza c o m freq uência a chegada do


Reino de D eu s, em especial n o julgam ento 014.13; A p 14.15; Evangelho de Tomé
21). E ssa p aráb o la a d m o esta q u e o R eino d e D e u s, ju n to co m a “ atividade
laboriosa de se m p re ” e nela, está p re sen te ali e crescendo, m esm o q u e este
não seja observável. O m u n d o p o d e lam entar: “ O que h o u v e co m a p ro m essa
da sua v in d a?” (2Pe 3.4). T al ceticism o é o re su ltad o d e esp erar a chegada do
Reino de D e u s c o m o se fosse u m raio, o rd e n a n d o e so b re p u jan d o . D e u s não
arrem essa o re in o c o m o P o seid o n o faz c o m seu trovão. D e u s o plan ta co m o
uma sem en te, p re se n te até m esm o agora n o m in istério de Jesus, en c o b erta
e im perceptível, m as a n u n c ia n d o a colheita e o julgam ento.
O s zelo tes76 te n taram fo rçar o rein o a e n tra r n o p alco p o r m eio de um a
revolução; o ap o calip ticism o esp e rad o p o r m eio d e cuid adosas observ açõ es
e cóm pu tos p ara an u n ciar o fu turo; os fariseus acreditavam que a em ergência
do reino p o d e ría ser p artejad a pela o b serv ân cia legal escrupulosa. A parábola
da sem en te c resce n d o alerta c o n tra casar a v in d a d o rein o c o m previsões,
projeções, calendários e estratégias. Jesus, ao lo n g o d e to d o o evangelho de
Marcos, d estró i to d as as tentativas de p ô -lo em categorias, fórm ulas e p ro -
gramas. E o m e sm o ac o n te ce c o m o R eino d e D eus. A n co rá-lo n o s so n h o s
hum anos é p erdê-lo, p o is D e u s o rd e n o u o q u e “ n e n h u m o u v id o p ercebeu,
e olho n e n h u m viu ” 0 s 64.4). Jesus, c o m o o fazendeiro paciente, está supre-
m am ente co n fia n te n a v in d a d o reino. Jesus, em b o ra ce rcad o pela oposição

75 Sobre a possível relevância de 4.26-29 para a datação de M arcos, veja a “Introdução


3”, p. 33-36.
76 Os zelotes eram um a facção judaica que com binava a teologia dos fariseus (veja
em 2.18) com as aspirações m ilitares dos guerreiros m acabeus da liberdade que
libertaram a Palestina d o jugo selêucida no século II a.C. D e acordo co m Josefo, o
m ovim ento com eçou com Judas, o galileu, em 6 a.C. (A nt. 18.22-25). A revolta dos
zelotes contra o controle rom ano da Palestina em 66 d.C. resultou na catastrófica
derrota da nação quatro anos mais tarde e o exterm ínio d o m o v im en to zelote.
M a rc o s 4.30-32 192

d o s líderes religiosos e co m p re e n sã o equivocada d o s seguidores, n ão fica


desalentado, c o n fu so n em desesperado. T am p o u co , deve haver ansiedade em
m eio a seus discípulos. A fé q u e Jesu s exige d o s discípulos é d o rm ir e levan-
tar em h u m ild e co n fian ça d e q u e D e u s invadiu esse m u n d o pro b lem ático e
p e rtu rb a d o c o m u m a sem en te, e n ão u m a cruzada; essa sem en te é a “ quinta
co lu n a” q ue crescerá em u m a co lh eita fru tífera.77

3 0 -3 2 A p a rá b o la d a se m e n te d e m o sta rd a ap arece sim ilarm en te em


M ateus 13.31,32, L ucas 13.18,19 e Evangelho de Tomé 20. Jesus, c o m palavras
rem iniscen tes d e Isaías 40.18, m ais u m a vez assem elha o R eino d e D eu s à
sem eadu ra das sem entes. A p aráb o la d a sem en te d e m o stard a é sim ilar em
sen tid o à p aráb o la d a sem en te crescen d o , em b o ra o en sin o d a sem en te de
m o stard a re p o u se n o contraste m ais q u e n o crescim ento. A sem en te d e mos-
tard a, q u e é anual e p ro lifera n o v a m e n te a cada prim avera, n ão é de fato a
m e n o r das sem en tes, m as re p resen ta v a algo p ro v e rb ialm en te p e q u e n o na
Palestina (M t 17.20). A se m e n te d e m o stard a, p o r m ais m icro scó p ica que
seja, p ro d u z u m g ra n d e a rb u sto em q u e as aves p o d e m fazer ninho.
Jesus, c o m o a h ip érb o le d e u m b o m c o n ta d o r de histórias, ad a p ta a
sem en te de m o stard a p ro v e rb ial p ara u m a ilustração d o reino. O advento
d o reino, c o m o n a p aráb o la p re c e d e n te , n ão é algo q u e a h u m an id ad e faz
acon tecer, m as algo q u e D e u s n o s dá. O m aio r ensino, n o en tan to , é que o
R eino d e D e u s surge d a o b scu rid a d e e insignificância. A quilo q u e ninguém
consegu ia im aginar — o u se alguém conseguisse p arecería to talm e n te im-
possível — se agigantará in ev itav elm en te d ian te de nós. O rein ad o d e D eus
n ão só será m ais real d o q u e o m u n d o p o d e im aginar, m as ta m b é m será
m aio r e m ais ab ran g en te.78 C o n tu d o , c o m o n a p aráb o la anterior, a ênfase

7' “U m dia, talvez, q u ando olharm os em retrospectiva d o tro n o de D eu s para os


últim os dias, digam os com perplexidade e surpresa: ‘Se tivesse so n h ad o co m isso
quando estava à beira d o sepulcro de m eus am ados e tu d o parecia ter chegado
ao fim; se tivesse son h ad o com isso q u ando vi o espectro da g u erra atôm ica se
avizinhando sobre nós; se tivesse son h ad o com isso quand o enfrentei o destino
sem sentido de um a prisão sem -fim o u de um a doença maligna; se tivesse sonhado
que D eus só estava levando a cabo seu p ro p ó sito e plano em m eio a to d o s esses
ais, que sua colheita, em m eio a m eus cuidados e problem as e desespero, estava
am adurecendo e que tudo estava pressionando na direção de seu últim o dia régio
— se eu soubesse disso, teria mais calma e confiança; isso m esm o, então seria mais
alegre e m uito mais tranquilo e mais sereno” (H. Thielicke, The WaitingFather, trad.
J. D o b erstein [San Francisco: H arp er & Row, 1959], p. 88).
78 Séneca, u m contem porâneo de Jesus, com parou as palavras e razão hum anas com
sem entes que, quando espalhadas, crescem do tam anho insignificante para “os
193 M a rc o s 4.33-34

está n o s co m eç o s o b sc u ro s e p eq u en o s. A g o ra está e n c o b e rto e p o d e ser


facilm ente ig n o rad o . Se Jesu s desejasse en fatizar o p o d e r e a gloria d o Reino
de D eus, p o d e ria c o n ta r urna p aráb o la so b re o cedro, u m sím b o lo de p o d e r
(SI 80.10; 9.10; Z c 11.2) e esp le n d o r (C t 1.17; J r 22.23). Todavia, o m istério
do reino n ã o está p re se n te n o cedro; está p re se n te em u m a p eq u en a sem ente
de m o stard a. “ O q u e parece ser o m e n o r é, n ã o o b sta n te, o m aior. N aquilo
que está e n c o b e rto , o fu n d a m e n to d e u m tra b a lh o é lançado, e esse trab alh o
englobará o m u n d o to d o .”*79
O s p ro fetas d o A n ü g o T estam en to usam algum as vezes a im agem d e aves
fazendo n in h o s em galhos p ara aludir à inclusão d o s g en tios n o p o v o escolhi-
do de D e u s (SI 104.12; E z 17.23; 31.6; D n 4.9-21).80 Isso o ferece u m indício
para o versículos 32, “ as aves d o céu p o d e m abrigar-se à sua so m b ra ” . A lém
do crescim en to su rp re e n d e n te d o reino, a p aráb o la da sem en te de m o stard a
contém u m a p ista da graça de D e u s p ara todos os povos. Isso p o d e explicar
sua po sição an c o rad a n o cap ítu lo 4, p o is sinalizaria para os leitores ro m an o s
e gentios d e M arco s q u e a inclusão deles n o rein o foi o rd e n ad a de antem ão
pelo Senhor. “D e u s, a p a rtir de c o m eç o s insignificantes, invisíveis aos olhos
hum anos, cria seu p o d e ro s o R eino q u e abraça to d o s os p o v o s d o m u n d o .” 81

3 3 ,3 4 M arcos conclui sua com b in ação d e parábolas com um a explicação


do pro p ó sito delas que rem em o ra 4.10-12. A s parábolas incluídas n o capítulo 4
não passam de u m a am o stra de “ m uitas parábolas sem elhantes [nas quais] Je-
sus lhes anunciava a palavra” . M arcos, pela décim a vez n o capítulo 4, enfatiza
a im portância d o ouvir. “Jesus lhes anunciava a palavra, tan to q u an to p odiam
receber” . A últim a p arte da descrição é im p o rtan te, “ tan to q u an to podiam
receber” (veja tam b ém IC o 3.1). A s parábolas ilum inam o u obscurecem , de-
pendendo da habilidade para ouvir. A queles que ouvem acham -nas reveladoras

maiores crescim entos” (Epistles; “L etter to Lucilius” , 4.38.2; citado em H C N T , p.


94). A analogia de Séneca celebra o po d er inerente na razão e linguagem hum anas,
ao passo que a im agem de Jesus afirm a a ironia m ilagrosa de D eu s de produzir
seu reino n o m u n d o a p artir de com eços insignificantes.
79A. Schlatter, D ie Evangelien nach M arkus und Lukas, p. 48.
8‫ ״‬Uma ideía similar é preservada em José e Avenate, um rom ance judaico datando
talvez da época de M arcos: “ E seu nom e não será mais A zenate, mas seu nom e
deverá ser Cidade de Refúgio, porque, em você, m uitas nações terão refúgio com
o Senhor D eus, o Altíssimo, e sob suas asas m uitos povos que confiam n o Senhor
serão abrigados (Jos. Asen. 15.7).
81Jeremias, The Parables o f Jesus, ed. rev., p. 149.
M a rc o s 4.33-34 194

— e até m ais lhes será d ad o (w . 24,25). A queles incapazes de ouvir acham as


parábolas opacas. O o u v ir d eterm in a se alguém p erte n ce ao g ru p o d o círculo
ín tim o o u aos d e fora. E sse é o p rim eiro p asso to ta lm e n te im p o rta n te que
leva à co m u n h ã o co m Jesus, em q u e a co m p re e n sã o p len a se to rn a possível,
pois q u a n d o “ estava a sós c o m o s seus discípulos, explicava-lhes tu d o ” . “ Só
em associação c o m Jesu s é possível a p re n d e r a c o m p re e n d e r a linguagem
so b re D e u s.”82
A s paráb o las eram a persona p ú b lica d e Jesus, o m estre. Jesus, p o r inter-
m éd io d e im agens vividas da vida cotidiana, p ro v o ca, m aravilha e testa suas
audiências, c o n v id an d o -as a te r u m a ex periência de p e rte n c e r ao círculo
ín tim o d o re in o e d e te r c o m u n h ã o c o m ele.

82 Schweizer, The GoodNem According to Mark, p. 106.


capítulo cinco

"Quem é este?"
M A R C O S 4 .3 5 — 6 .6 a

O m aterial em 3.13— 4.34 co n siste de conversas, controvérsias e parábo-


Ias. E m 4.35, o s leitores são re p e n tin a m e n te tran sferid o s p ara a co n tin u ação
do m inistério p ú b lico d e Jesu s em to rn o d o m ar o u lago. A s q u atro histórias
nessa seção, m ais longa e m ais detalhadas que m uitas das perícopes de M arcos,
e todas elas salien tam Jesu s c o m o o p e ra d o r d e m ilagres. Seus atos p o d e ro so s
evocam u m ju lg am en to d aqueles q ue os te ste m u n h a m . O s discípulos n o
barco q u e e stá a fu n d a n d o tê m d e esc o lh e r en tre a fé e o te m o r (4.35-41); os
testem u n ho s d o h o m e m g erasen o e n d e m o n in h a d o que foi cu rad o tem de
escolher en tre a aceitação e a rejeição d e Jesu s (5.1-20); ta n to Jairo q u an to a
m ulher co m h em o rrag ia têm de esc o lh e r e n tre a fé e o d ese sp ero (5.21-43);
e até m e sm o a cid ade natal de Jesus, N a zaré , tem de esc o lh er en tre o crer ou
descrer. O p a sso inicial da fé p o d e n ão p arece r c o m o tal, pois a p resen ça de
Jesus, an tes d e m ais nada, é inquietante. Seus discípulos perg u n tam : “ Q u e m
é este?” (4.41), e a fam ília d e Jesu s e seus c o n h e cid o s em N a zaré perg u n tam :
“D e o n d e lhe vêm estas coisas?” (6.2). O d ireito d e ju lg am en to d e Jesus
não p o d e ser feito segu in d o a convenção, p o is Jesu s su p lan ta os p o d eres da
natureza, os d em ô n io s, a d o en ç a, a m o rte e a in flu ência da família. C o n fin ar
Jesus nessas categorias e estereó tip o s é co m p re en d ê-lo de fo rm a equivocada;
o reco n h ecim e n to de sua su p rem acia d ian te d e tais categorias é o prim eiro
ato d o discipulado.

JE S U S — O T R A N Q U IL IZ A D O R D A S T E M P E S T A D E S (4 .3 5 -4 1 )

A cen a em q ue Jesu s acalm a a tem p estad e é cheia de detalhes vividos,


muitos d os quais são enfraq u ecid o s o u o m itid o s nas versõ es d a h istória em
Mateus 8.23-27 e L ucas 8.22-25. A versão d e M arcos está rep leta de caracte­
M a rc o s 4.35-36 196

rísticas d e u m a te ste m u n h a visual: a h o ra d o dia (v. 35), a referência ao fato


de q u e os discípulos levaram Jesu s n o b arco em q u e ele estava sen tad o (v.
36) , a p re sen ça d e o u tro s b arco s (v.36), o b a rc o ir se en c h en d o d e água (v.
37) , Jesu s d o rm ir so b re u m travesseiro (v. 38), o sarcasm o d os discípulos (v.
38) e a re p ree n sã o d e Jesu s (v. 40).' A lém disso, a descrição d o te m o r dos
discípulos n o versícu lo 41 é re d u n d a n te n o g reg o (suavizada n a N V I, “ esta-
vam a p a v o rad o s”), refletin d o u m infinitivo ab so lu to sub jacente n o hebraico.
P eculiaridades c o m o essas são evidências de u m a n arrativ a em p rim eira mão,
e P ed ro , m ais u m a vez, é a fo n te provável. E sses detalhes h istó rico s não
estão relacio n ad o s d e fo rm a aleatória e d eso rg anizad a, c o m o é possível se
e n c o n tra r em u m diário, p o r exem plo. A história exibe p en sa m e n to teológico
sofisticado e reflete em p articu lar a influência d e Jo n a s 1 e Salm os 107.23-32.12
0 acalm ar da te m p e sta d e ilu stra o p ro p ó s ito m ais ab ran g en te d e M arcos de
in terp re ta r teo lo g icam en te ev en to s h istó rico s p ara m o strar Jesus c o m o D eus
en c arn a d o e su a relevância p ara o discipulado.

35,36 A m e n ç ã o d e “ o u tro s b arco s [que] ta m b é m o aco m p an h av am ”


p o d e ser u m a alusão ao círculo m aio r d e discípulos além do s D o z e q u e esta-
vam c o m Jesu s em 3.34 e 4.10. O d etalh e cu rio so de q ue “ levaram [Jesus] no
barco, assim c o m o estava” p ro v av elm en te reflete a m em ó ria d o s discípulos
de que Jesus foi levado d ire ta m e n te n o b arco d o qual ensinava a m ultidão
(4.1), sem q u e ele re to rn asse à praia.
E m 1986, o casco de u m barco d e pesca foi re c u p erad o da lam a em
u m a praia a n o ro e ste d o m a r d a G alileia, cerca d e o ito q u ilô m etro s a sul de
C afarnaum . O b a rc o — 8 m e tro s de c o m p rim en to , 2.2 m e tro s d e largura
e 1.3 m e tro d e altura — c o rre sp o n d e , em design, a u m m o saico d o século I
retrata n d o u m b a rc o galileu p re se rv a d o em M igdal, a apenas 1,6 q uilôm etro
d o local d a d e sc o b e rta , e a u m m o saico d o século V I d e b arco sim ilar de
M adeba. A tecn o lo g ia d e c a rb o n o 14 data o b a rc o en tre 120 a.C. e 40 d.C. As
seções d a p ro a e d a p o p a p arece m te r sido co b e rtas co m u m deque, proven-
d o espaço o n d e s e n ta r o u deitar. O b arco era m o v id o p o r q u atro rem adores
(dois d e cada lado), te n d o capacidade p ara q u in ze pessoas. O b arco galileu
c o rre sp o n d e aos detalhes d o b arco d escrito nessa histó ria e às descrições em

1 V. Taylor, The GospelAccording to St. M ark, p. 272-73; C. E. B. Cranfield, The Gospel


According to Saint M ark, p. 172.
2 R. Pesch, D as Markusevangelium, 1.267-75.
197 M a rc o s 4.37-38

várias figuras artísticas d a A ntiguidade. U m b arco sim ilar levou Jesus e seus
discípulos n a travessia d o m a r da G alileia.3

37 O s discíp u los e Jesus p artira m p ara a d ireção leste através d o m ar.


Marcos n ã o afirm a qual era o p ro p ó sito deles, m as o desejo d e Jesus d e pregar
em o u tro local (tam b ém 1.38) ta m b é m se aplica aqui. O m a r da G alileia (veja
em 1.16) fica ap ro x im ad am en te d u ze n to s m e tro s abaixo d o nível d o m ar, em
uma bacia cercad a p o r m o n te s e m o n ta n h a s m u itíssim o ín g rem es n o lado
leste. A cerca de 48 q u ilô m etro s a n o rd e ste d o m o n te H e rm o m , 2.804 m etro s
acima d o nível d o m ar. A tro c a en tre o ar frio d o alto co m o ar q u en te que
sobe d o m a r d a G alileia p ro d u z co n d içõ e s clim áticas tem p estu o sas, situação
pela qual esse la g o /m a r é fam oso. O “ fo rte vendaval” d o versículo 37, que
em greg o significa “ fu racão ” , se ajusta às histó rias d o s p escad o res galileus
até m esm o hoje, p ara q u em o cair d a n o ite n a região leste é co n h e cid a co m o
“Sharkia” (árabe p ara “ tu b a rã o ”).4 E m b o ra a palavra grega para “ fo rte venda-
vai” (lailaps) n ã o seja usada em Jo n as, m as, em o u tro s aspectos, a descrição da
tem pestade n o v ersículo 37 eco a a te m p estad e v io len ta que asso lo u o navio
em que Jo n a s estava fug in d o (Jn 1.4).

38 A ssim c o m o Jo n a s se re tiro u p a ra o in te rio r d o navio e caiu em p ro -


fundo so n o (Jn 1.5), ta m b ém Jesu s é d esc rito p o r M arcos d o rm in d o sobre
um travesseiro n a p o p a d o navio. Iro n ic am en te, o ú nico lugar em que vem os
Jesus d o rm in d o n o s evangelhos é d u ra n te u m a tem p estade. A cena descreve
sua co m p leta co n fian ça em D e u s em m eio da adversidade, c o m o o fazendei-
ro nas paráb o las p re ced e n te s (4.3-9,27) q ue confia na o b ra providencial de
Deus a resp eito d e to d o s os o b stácu lo s e adversidades.5 C o m o n a histó ria de
Jonas, os discípulos, alguns deles m arin h eiro s v eteran o s, ficam aterro rizad o s
com a ferocid ad e da tem p estad e. O capitão d o b arco de Jo n as re p ree n d e
Jonas p o r d o rm ir e n q u a n to a tripulação está p erecen d o (L X X , apollymi)·, da
mesma fo rm a , os discípulos re p re e n d e m Jesus: “M estre, n ão te im p o rtas que
m orram os (gr. apollymi)?” M ateus 8.25 suaviza a re p ree n sã o p ara se to rn a r
um clam or; e L ucas 8.24, para u m p ed id o de ajuda. A ru d e z a das palavras de

3 Veja S. W achsm ann, “T h e G alilee B oat” , B A Rep 1 4 /5 (1988), p. 18-33.


4 Sobre as condições do tem po n o m ar da Galileia, veja M. N un, The Sea o f Galilee and
Its Fishermen in the N ew Testament (K ibbutz E in G ev: K in nereth Sailing Com pany,
1989), p. 52-57.
5 Tam bém Levitico 26.6; Salm os 3.5; 4.8; J ó 11.18,19; P rovérbios 3.21-26.
M a rc o s 4.39 198

M arcos reflete a fo rm a c o m o p esso as d esesp erad as e fru strad as falam (cf. Lc


10.40) e é p ro v av elm en te u m a rem iniscência literal da re sp o sta d o s discípu-
los n a crise. N ã o é provável q u e u m ed ito r p o ste rio r te n h a to rn a d o Jesus o
o b je to de tal repreensão. A h u m ild ad e divina de Jesu s fica evidente p o r sua
tolerância d ian te das rep ree n sõ e s d e seus discípulos.6 E ssa m esm a hum ildade
será evidenciada m ais tard e q u a n d o a re p ree n sã o v erb al se tra n sfo rm a r em
ab a n d o n o cabal (14.50).

39 O s discípulos, n o en tan to , n ã o são ab a n d o n ad o s n o p erig o aquático.


Jesus “ se levantou, rep reen d eu o v en to e disse ao m ar: ‘A quiete-se! Acalme-se!’
O v en to se aq u ieto u , e fez-se co m p le ta b o n a n ç a ” . Q u a n d o Jo n as é jogado
fora d o navio, o m a r se acalm a (Jn 1.15); isso tam b ém acontece na tem pestade
d o m ar da G alileia, e a n a tu re z a é feita p ara se c o n fo rm a r à resp o sta d e seu
M estre. A m u d an ça agradável n ã o é efetu ad a pela o ra ção n em pelo encan-
tam en to , m as pela palavra au to ritativ a d e Jesus, assim c o m o D e u s p ro d u ziu
o rd e m d o caos n o p rin cíp io (G n 1.2).
A descrição d e M arcos d o acalm ar d a tem p estad e excede a inclinação he-
braica d e p erso n alizar a n atu re z a (e.g., SI 104.3-6). E m particular, a linguagem
d o versículo 39 é, a rigor, a p ro p riad a p ara a linguagem u sada p ara a expulsão
de d em ô n io . O v e n to é “ re p ree n d fid o ]” (ou “ ce n su rad o ”). E m M arcos, o
te rm o g re g o epitiman foi u sad o duas vezes antes na re p ree n sã o d o s espíritos
m alignos (1.25; 3.12). A palavra n ã o é usada em exo rcism os helenistas; é um
te rm o u m ta n to técn ic o n o s ex o rcism o s judaicos p ara “ a p alavra d e ordem ,
p ro fe rid a p o r D e u s o u p o r seu p o rta -v o z , p o r in te rm é d io d a qual o s pod eres
m alignos são su b ju g ad o s, e, co m isso, o ca m in h o é p re p ara d o p ara o estabe-
lecim en to d o g o v e rn o ju sto d e D e u s n o m u n d o ” .7Jesu s dá o rd e n s ao mar:
“A quiete-se! A calm e-se!” , e este “ se aq u ieto u ” (v. 41). A palavra greg a para
“A q uiete-se” , pephimõso, traz o sen tid o d e “ a m o rd a ç a r” . E ssa o rd e m o co rre
n a seg u n d a p e sso a d o singular, c o m o se Jesu s estivesse se dirigindo a um
ser pessoal. A fo rm a in c o m u m d o im p erativ o passivo p erfeito indica que a
co n d içã o deve persistir, o u seja, “ aquietar-se e p e rm a n e c e r aq u ietad o ” .
T al linguagem é m ais ap ro p riad a p a ra as forças dem o n íacas q u e p ara a
n atu re za in an im ad a (1.25; 3.12; 9.25; cf. 8.33!). N o A n tig o T estam en to , o
v en to e as águas c o m freq u ên cia sim b o lizam as forças ho stis so b re as quais

6 Tam bém Cranfield, The GospelAccording to St. Mark, p. 174.


7 H. C. Kee, “T he Terminology o f Mark’s Exorcism Stories” , NTS 14 (1968), p.
323-46.
199 M a rc o s 4.39

D eus prevalece.8 O ev e n to d o acalm ar d a te m p e sta d e é c o n sid erad o em geral


com o u m “ m ilagre d a n a tu re z a ” relatad o co m h ip érb o le e m etáfo ra, a fim
de en fatizar o p o d e r ex trao rd in ário d e Jesus. A linguagem d o versículo 39,
no en tan to , descrev e Jesu s c o m o o H o m e m F o rte (3.27; 1.7) q u e subjuga
Satanás e saqueia seus su b o rd in a d o s m alignos (3.27; cf. 1.7). O p o d e r d e je -
sus so b re as forças d a n a tu re z a — e a linguagem e m q u e esse fato é d escrito
— p ren u n cia seu p o d e r so b re as forças q u e p e rtu rb a m a n atu re za h u m an a
na h istó ria d o h o m e m g erasen o p o ssesso (5.1-20). Jesus, nas duas histórias,
subjuga as fo rças h o stis q u e te n ta m p rev en i-lo d e e ste n d e r seu m inistério
para as regiões d o s gentios.
A descrição d o acalm ar da te m p estad e n a linguagem u sada p ara expulsar
dem ônios te m a in ten çã o n ão só de d e m o n stra r q u e Jesu s p o ssu i p o d e r sobre
a n atu reza b e m c o m o s o b re as d o en ç as e p o ssessão d em oníaca. Seu p ro p ó -
sito últim o é m o s tra r q u e Jesu s faz o q ue só D e u s p o d e fazer.9 A narrativa
de M arcos co n v id a à c o m p araçã o co m S alm os 107.23-32 e ta m b é m com
Jonas 1. Salm os 107 fala d e D e u s p ro v o c a n d o u m vendaval n o m a r que faz
os m arinheiros m o rre re m d e m edo. E les clam am a D e u s em seu d esespero, e
o S enhor “ red u ziu a tem p esta d e a u m a b risa e se re n o u as o n d a s” (SI 107.29).
A linguagem e o p ad rão d esse salm o estão in c o n fu n d iv elm en te refletidos
na história d e M arcos. N o A n tig o T estam e n to , só D e u s tem o p o d e r para
acalmar as tem p estad es naturais c o m o essa (SI 65.7; 89.9; 104.7; tam b ém
T. Adão 3.1). M arco s, n essa h istó ria, in fo rm a -n o s q u e o m esm o p o d e r e
autoridade p e rte n c e m a Jesus. E m u m a alusão final à h istó ria de Jo n a s n o

8 Êxodo 14.21 ss.; Jó 12.15; 28.25; Salmos 33.7; 65.7; 77.16; 107.23-30; 147.18;
Provérbios 30.4; Amós 4.13; N aum 1.3ss.
5 Em uma investigação perceptiva da linguagem de 4.35-41, Gisela Kittel, “ ‫־‬Wer
1st der?’ Markus 4,35-41 und der mehrfache Sinn der Schrift”, em Jesus Christus
ais die Mitte der Schrift. Studien ψΓ Hermeneutik des Evangeliums, Herausgegeben von
Ch. Landmesser, H.-J. Eckstein e H. Lichtenberger, B Z N W (Berlin: Walter de
Gruyter, 1997), ρ. 517-42, chama a atenção para as proporções míticas da lingua-
gem de Marcos nessa história. N o Antigo Testamento, só Deus pode salvar as
pessoas das tempestades do caos (SI 33.7; 65.8; 89.11; 104.7; Jó 26.12; 38.8). Por
conseguinte, isso não é apenas uma história de milagre de salvação; antes, é uma
história de Jesus com o a Epifanía de Deus que faz só o que Deus pode fazer. Kittel
faz perguntas provocadoras feitas pela história: “Q uem é este que, no meio da
tempestade, se levanta na mesma hora com os seus e tam bém ao lado de Deus?
Quem é este, em quem o poder redentor e criativo de D eus invade o m undo do
caos e tira as pessoas da força destrutiva desse mundo? Essa pergunta, agora, tem
que acompanhar os discípulos”.
M a rc o s 4.40-41 200

versículo 41, M arcos diz q u e o s discípulos estavam aterro rizad o s n o episódio


d o acalm ar d a tem p estad e. O g ra n d e m e d o deles re p e te literalm ente o m edo
d os m arin h eiro s n a h istó ria d e Jo n a s (ephobêthèsanphoboti megan,]n 1.10,16).
O s m arin h eiro s p ag ão s n a h istó ria d e Jo n a s reco n h ec eram D e u s n a presença
d o m ilagre e o fe rec eram sacrifícios a ele. Jesus, n o acalm ar a tem p estad e no
la g o /m a r, faz m ais u m a vez o q u e só D e u s p o d e fazer (tam b ém 2.7-10), e
M arcos con v id a os discípulos, d aq u ela é p o c a e agora, a re c o n h e c e r em Jesus
a m esm a p re sen ça d e D e u s.10

4 0 ,4 1 T ip ic a m e n te em M arcos, sem p re q u e a p esso a e o b ra de Jesu s são


salientadas, o discipulado tam b ém o é. P ara M arcos, a revelação de Jesus com o
o F ilho d e D e u s n ã o é u m d a d o iso lad o q u e tran sp ira n o vácuo. A revelação
de si m e sm o d e Jesu s o c o rre n a p re sen ça d o s q ue p e rte n c e m ao círculo ín-
tim o p a ra qu e p o ssa m ouvir, c o m p re e n d e r e a u m e n ta r em fé. Q u e m Jesus
é estabelece q u e m seus discípulos p o d e m v ir a ser. E sses dois elem en to s da
cristologia e d o d iscip u lad o estão evidentes n a p re se n te história.
M arcos, ao lo n g o d e to d a a h istó ria so b re o acalm ar d a tem p estad e, for-
nece indícios d e q u e o p ro p ó s ito d o m ilagre é p ara os discípulos. A história
é co n ta d a d a p ersp ectiv a deles: são eles q u e levam Jesu s c o m eles (v. 36) e
o aco rd am (v. 38); eles têm m e d o (v. 41) e as p erg u n tas investigativas deles
con clu em a h istó ria (v. 41). E ssa p ersp ectiv a é in c o m u m p ara M arcos, que
em geral é u m n a rra d o r anô n im o . A lém disso, o fo c o da n arrativa está n a fé.
N o auge d a tem p estad e, o s discípulos en tra m em p ân ico e acusam Jesu s de
ab an d o n á-lo s (v. 38). T alvez M arcos, n a re sp o sta deles, te n h a a in ten çã o de

1(1O propósito cristológico do acalmar a tempestade — ou seja, que, na pessoa e


palavra de Jesus, o propósito de D eus é eficaz — diferencia esse milagre de todas
as outras histórias de acalmar as águas na Antiguidade. A lenda de um menino
judaico em j. Ber. 9.1 (século IV d.C.) que salvou um barco lotado com gentios
do perigo no m ar é essencialmente sobre a superioridade do judaísmo sobre o
paganismo. A história de Plutarco de D ióscuros (Moralia, “ Obsolescence o f Ora-
d es”, ρ. 30) reconhece apenas os filhos de Zeus com o protetores e patronos dos
m arinhdros. O mesmo tema está presente em “O navio” ou “O s desejos” 9, de
Luciano. Tanto Filóstrato {Vida deApol 4.13) quanto Porfirio (Vida de Pitágoras,
p. 29) relatam histórias sobre acalmar as ondas para que os viajantes em perigo
possam chegar em segurança, mas o propósito de ambos os escritores é a isenção
de Apolônio e Pitágoras com o operadores de milagres. Veja HCJVT, p. 66-68.
Além das diferentes ênfases deles, todas as histórias mencionadas acima (com a
exceção de Porfirio) pós-datam Marcos e não podem ser protótipos de Marcos
4.35-41.
201 M a rc o s 4.40-41

fazer um paralelo en tre a situação d o s discípulos n o b a rco e aqueles de sua


igreja em R o m a q ue vivia so b o d o m ín io d o s p o d eres ím pios e deuses pagãos,
sofrendo u m a cru el perseguição n o s últim os an o s d o rein ad o de N e ro (64-68
d.C.). O s p rim eiro s leitores d e M arcos, c o m o os discípulos, p o d iam achar
que D e u s estava in d ifere n te a suas trib u laçõ es e sofrim en to s. E ssa h istória
lhes g aran tiu, c o m o tam b é m n o s g aran te, q ue até m e sm o a revolta sísm ica
contra o F ilh o d e D e u s n ão p o d e in u n d ar o b a rc o n o qual está reu n id o com
seus discípulos. E m m eio à co n ste rn a ç ã o deles, a palavra autoritativa de Jesus
que a m o rd a ç o u o s p o d eres rebeldes p e rg u n ta aos discípulos: “ P o r que vocês
estão c o m ta n to m ed o ? A in d a n ão têm fé?” 11 E ssa n ão será a últim a vez em
que Jesus q u e stio n a a falta d e fé d o s discípulos.12 O s discípulos p o d e m de
fato p e rte n c e r ao círculo m ais ín tim o (4.10,11), m as eles ainda n ão en ten d em
totalm ente Jesu s — e só co n seg u irão e n te n d e r d ep o is da cru z e ressurreição.
Jesus, c o n tu d o , n ã o cen su ra os discípulos p o r sua falta de co n h ecim en to , m as,
sim, p elo te m o r, e a palavra g reg a p ara isso significa “p e rd e r a co rag em ” ou
“covardia” (veja 6.50,51). A am eaça real à fé vem da d úvida e d o m edo, e n ão
da falta d e co n h e cim en to .
M arcos conclui a história so b re o acalm ar a tem p estad e com um a pergun-
ta que é a p o rta p a ra a fé. O s discípulos, c o n fo rm e n o s é relatado, “ estavam
apavorados” . E ssa n ão será a últim a vez em q u e os ato s p o d e ro so s de D eus
produzirão m e d o neles. A s m u lh eres n o sep u lcro ta m b é m estão igualm ente
apavoradas (16.8). Iro n ic a m e n te , o te rro r d o s discípulos em relação ao que
Jesus fez excede o te m o r inicial deles cau sad o pela tem p estad e. A p resen ça
do so b re n atu ral é m ais a m e d ro n ta d o ra p ara h u m an id ad e q u e a m aioria dos
desastres naturais destru tiv o s. Jesu s é ainda u m e stra n h o para seus p ró p rio s
seguidores, p o is eles co n se g u em lidar m e lh o r c o m a possibilidade da p ró p ria
m orte que c o m a possibilidade da presen ça d e D e u s en tre eles. N essa ocasião,
a proxim idade de D e u s em Jesu s n ão é algo q u e os apazigua, m as algo p ro -
fundam ente in q u ietan te, até m esm o aterrador. A in da assim , tal co n stern ação
produz aquela p e rg u n ta única q u e to rn a a fé possível. E um a p e rg u n ta feita
prim eiro pela m u ltid ão em 1.27. A g o ra está p re se n te n o s lábios d os discípu-
los: “ Q u e m é este?” O s israelitas, ap ó s o êxodo, tam b ém tem eram a D eus:
“Israel viu o g ra n d e p o d e r d o S e n h o r co n tra os egípcios, tem eu o S e n h o r

11 Em m eio às variantes textuais do versículo 40, a versão mais breve da pergunta


deiioi este? oupõ (“ P o r que vocês estão com m edo? Vocês ainda têm fé?”) tem o
apoio textual mais forte e é preferível à versão da N V I: “ P or que vocês estão com
tanto m edo? A inda não têm fé?” (M etzger, TC G N T, p. 84).
127.18; 8.17,21,33; 9.19; [16.14].
M a rc o s 5.1 202

e p ô s nele a sua co n fian ça” (Ê x 14.31). A p erg u n ta dian te d o s discípulos e


d os leitores d e M arcos é esta: S erá q u e o te m o r deles ta m b ém os levará a p ô r
“ nele sua co n fian ça” ?

C R IA Ç Ã O A P A R T I R D O C A O S (5 .1-2 0 )

Jesu s acab o u d e acalm ar u m a v io len ta te m p e sta d e n o m ar (4.35-41);


ago ra ele e n c o n tra u m h o m e m co m u m a te m p estad e igualm ente violenta
em seu íntim o. N o s d o is casos, o p o d e r d e Jesu s prevalece so b re o caos e a
destruição. O p ro p ó s ito d a cura d o g erasen o p o ssu íd o p o r d em ô n io s, co m o
o acalm ar d a te m p estad e n o la g o /m a r, n ão é apenas p ara deixar os leitores
b o q u ia b e rto s c o m o p o d e r d e Jesus, m as p ara estim ulá-los a co n sid erar o
“ q u a n to o Senhor fez p o r v o cê e c o m o teve m isericórd ia de v o cê” (5.19; grifo
d o autor). Jesus, m ais u m a vez, é c o n o ta d o c o m D e u s, pois o Senhor que cu ro u
o h o m e m p o ssesso n ão é n in g u ém o u tro q u e Jesus (v. 20).
1 M arcos localiza a ex p u lsão d e d e m ô n io s e cu ra d o h o m e m p o ssesso
n a “ região d o s g erasen o s” . O n o m e d o local é enigm ático p o rq u e a cidade
d e G e ra sa (m o d e rn a Jerash) n ã o fica n a co sta leste d o m ar d a G alileia, m as
quase sessen ta q u ilô m e tro s p ara o in te rio r a sudeste. U m a cam in h ad a a pé
d e dois dias e n tre G e ra sa e o m ar o n d e o ep isó d io aco n tece está o b v iam en te
fo ra de questão. O s céticos im ag in am a atividade física d e p o rc o s c o rre n d o
a g ra n d e d istân cia e n tre G e ra sa (ou até m e sm o G a d ara, d e a c o rd o co m
M ateus 8.28, cerca de o ito q u ilô m e tro s a sudeste) através das ravinas e uádis
antes d e p u larem n o la g o /m a r.
Se “ a região d o s g erasen o s” é a leitura original n o versículo 1, en tão
M arcos talvez tivesse em m e n te a região associada co m G erasa, q u e p o d e se
esten d e r até o m ar d a G alileia, e n ã o a cidade em si. C o n tu d o , “g erasen o s”
n ão é u m a leitura co n firm a d a. O n o m e d a localização n o versículo 1 aparece
em o u tro s m an u scrito s c o m o “ G e rasa” , “ G ad ara” o u “ G erg esa” .13 N e n h u m a
das três localizações é claram ente su p erio r às o u tras duas em te rm o s d e apo io
textu al.14 C o n fo rm e o b serv am o s, ta n to G e rasa q u a n to G a d a ra ficam m u ito
p ara o in te rio r p ara serem lugares p ro p ício s p ara a história. N ã o p o d e m o s
d izer co m certeza, m as p arece q u e existia u m a cidade cham ada G erg esa na

13 Gerasênõn, Gadarênõn, Gergesênõn. Veja a breve discussão dos term o s em M etzger,


T C G N T , p. 84.
14“ G erg esa” , n o entanto, possui a atestação mais diversa, incluindo m anuscritos
m inúsculos e uncíais, versões antigas e citações patrísticas. “ G ergesa” tam bém é
a leitura corrigida no Sinaítico (‫) א‬.
203 M a rc o s 5.1

co sta n o rd e ste d o la g o /m a r. T a n to O ríg e n es (Com. sobre 0 evangelho deJo 6.41,


cap. 24) q u a n to E u sé b io (Onomasticon 64.1) id en tificaram o m ilagre suíno
co m u m a cid ad e ch am ad a G e rg esa n a co sta leste d o la g o /m a r. A lém disso, a
M idrash p ara C ân tico d o s C ânticos (Zuta 1.4) m en c io n a u m a fo rm a d o n o m e
n a segu inte referência: “ os sep u lcro s d e G o g u e e M ago gue serão ab e rto s do
sul d o vale d e C e d ro m até G e rg e sh ta n o lad o leste d o lago d e T ib eríad es” .
E m b o ra a M id rash Zuta seja tardia, essa fala em p artic u la r é atrib u íd a ao rabi
N eem ias, u m aclam ad o discípulo de A kiba, n o século II d.C. E ssa citação
p reserv a u m a trad iç ão in d e p e n d e n te de u m século an tes de O ríg en es e dois
séculos antes d e E u séb io de que um a cidade cham ada G ergesa (ou G ergeshta)
existiu n a c o sta n o rd e s te d o la g o /m a r. E m 1970, u m a escavadora ab rin d o
u m a estra d a ao lo n g o d a co sta leste d o la g o /m a r d e sc o b riu os resto s de um a
antiga cidade lo g o a sul d o uádi Sam ak n o vale de K u rsi (“G e rsa” o u “ G u rsa” ,
c o m o co n h e cid a n o dialeto local). A localização da cidade e a sim ilaridade n os
n o m es d o lu g ar su g erem u m a identificação de K u rsi co m G ergesa. N o início
d o século III, ta n to a arqueologia q u a n to a trad ição d a igreja localizaram o
m ilagre su ín o n esse local. A d ata é im p o rta n te , pois id entificações d e locais
p ré-b izan tin o s são em geral m ais confiáveis q ue aquelas d o p e río d o bizanti-
no. E m b o ra a evidência acim a n ã o seja conclusiva, é respeitável e razoável.
A “ G e ra sa ” d e M arco s 5.1 era p ro v av elm en te K u rs i/G e rg e sa , n o distrito
ad m inistrativo d e H ip p o s, u m a das m aio res cidades d a D ecápolis situada n o
p ro m o n tó rio im p o n e n te a sul c o m vista p ara o m a r d a G alileia.15

15 S obre a identificação d e K ursi com G ergesa, veja V. Tzaferis, “A Pilgrim age to the
Site o f th e Swine M iracle”, BARev 1 5 /2 (1989), p. 45-51; B. Pixner, WegedesMessias
und Stãtten der Urkirche, H erausgegeben von R. R iesner (G iessen/B asel: B ru n n en
Verlag, 1991), p. 142-48. E m um a longa discussão, M.-J. L agrange, Evangile selon
SaintMarc, p. 132-38, argum enta com veem ência que O rígenes estava equivocado
ao localizar G ergesa ao longo da costa oriental do lago. A citação da M idrash Zuta,
n o entanto, e a subsequente descoberta d o vilarejo de K ursi, parecem mitigar
a crítica de Lagrange e reabilitar a credibilidade de O rígenes e E usébio sobre a
questão. A referência Zuta vem de Z . Safrai, “ G ergesa, G erasa, o r G adara?” /«;»‫־‬
salemPersp 51 (1996), p. 16-19. A explicação de Safrai para as leituras variantes de
G erasa e G adara em 5.1 não é implausível. E le p ro p õ e que a m enção de G ergesa
p o r O rígenes com o “ um a cidade antiga” indica que, já em sua época, ela estava
em declínio. Q u an d o G ergesa se to rn o u desconhecida, o term o foi alterado para
“gerasenos” , m ais conhecido. A grande distância de G erasa do m ar, no entanto,
convida à alteração para “gadarenos” (m oderna U m m Q eis), mais próxim a do
lag o /m ar.
M a rc o s 5.2-5 204

2-5 A cura d o g erasen o e n d e m o n in h a d o é a terceira e a m ais vivida


d escrição de M arcos d a expulsão d e d em ô n io s até o m o m e n to (1.25; 3.11).
M ateus 8.28-34 e L ucas 8.26-39 ta m b é m relatam essa história, m as a reduzem
drasticam ente. M ateus, em p articular, re d u z a h istória de M arcos d e vinte
versículos p ara apenas seis deles, d eix an d o apenas o ce rn e d a expulsão do
dem ônio. A riqueza d o m aterial d e M arcos co m in teresse pessoal tran sfo rm a
o g erasen o p o ssesso em u m p e rso n a g e m considerável e sua salvação, em
u m a história co m p leta. A descrição d o h o m e m p o ssesso n o s versículos 2-5
é um a das histó rias m ais p esaro sas so b re a m iséria h u m an a n a Bíblia. E le é
um te rro r p a ra si m esm o e p ara os o u tro s, e sua violência é acen tu ad a p o r
três negativas re tu m b a n te s n o g rego: “nem mesmo c o m c o rren tes ninguém não
mais co nseg u ia re freá-lo ” (v. 3; g rifo d o autor). A té m e sm o n a vida, ele está
d estin ad o à te rra d o s m o rto s. Ali, g e m e n d o em m eio aos sepulcros, ele der-
ram a caos e c o n fu sã o so b re si m e sm o dia e noite. O v ocabulário de M arcos
é ásp ero e b ru tal; até m e sm o “ cadeias” (ARA) “ c o rre n te s” , “ fe rro s” n ão são
b em -su ced id o s p a ra “ d o m in [ar]” esse h o m e m possesso. A descrição de M ar-
cos é m ais a p ro p riad a p ara a fero cid ad e anim al q ue p ara u m ser h u m an o ; na
verdade, a palavra g reg a p ara “ d o m in ja rj” , dama^õ, é u sada p ara d o m a r um a
b esta selvagem em T iag o 3.7. A s forças m alignas q ue a to rm e n ta m o h o m em
em m eio aos sep u lcro s se igualam à v io len ta tem p estad e que asso lo u o barco
n o la g o /m a r e faz paralelo c o m essa descrição (4.37).
A história, d a p ersp ectiv a judaica, está repleta de elem en to s d e !m undicia
o u im p ureza. O cen ário é a praia leste d o lago, a D ecáp o lis gentia. D ecápolis
(lit. “D e z C idades”) era u m te rm o geográfico vago para u m n ú m ero de cidades
a leste d o rio J o rd ã o (com exceção d e B ete-Seã, a o este d o rio Jo rd ão ). E ssas
cidades fo ram separadas d o g o v e rn o d o s asm o n eu s p o r P o m p e u q u an d o este
invadiu a P alestina em 63 a.C. e fo ram reestabelecidas c o m o cidades vitrines
d o s ideais e cu ltu ra helenistas pag ão s (Josefo, Guerra 1.155; Ant. 14.74-75).
A existência d e u m a im p o rta n te co lô n ia e p o rto ro m a n o s em K u rs i/G e rg e s a
tam b é m estabeleceu essa últim a c o m o u m a cidade g entia, u m su b ú rb io da
fortaleza de H ip p o s, im ed iatam en te a sul. N e ssa região vivia um h o m e m que,
de ac o rd o co m M arcos, estava so b o c o m a n d o d e u m “ espírito im u n d o ” (v.
2). Seu b a n im e n to p ara os sep u lcro s o to rn av am im u n d o de ac o rd o c o m a
lei d o A n tig o T estam en to , em q u e o c o n ta to c o m os m o rto s co ntam inava
a p esso a p o r sete dias. D e a c o rd o c o m N ú m e ro s 19.11-14, q u alq u er p esso a
que n ão purificar a si m esm o da co n tam in aç ão d o s sep ulcros “ será elim inado
de Israel” . A in terp retação rabínica, ex p a n d in d o esse e n sin am e n to d a T orá,
205 M a rc o s 5.6-7

esten d e u o estar im u n d o p o r co n ta to co m os m o rto s para incluir o co n ta to


co m q u alq u er coisa associada c o m eles, in clu in d o o esquife, o colchão, o
travesseiro o u o s sep u lcro s.16 N a região, havia ta m b é m p asto res de suínos.
A M ishn á, seg u in d o a p ro ib ição co n tra os suínos (Lv 11.7; D t 14.8), afirm a
categoricam ente: “N in g u ém p o d e criar suínos em n e n h u m lugar” (m. B. Q am .
7.7). E m b o ra o alim ento de co n su m o d o exército ro m a n o fosse grãos e m ilho,
a carn e era u m su p le m e n to valorizado, q u a n d o disponível. Se os reb an h o s
suínos fossem p ara su p rir as legiões ro m an as co m p o rco, en tão a p ro d u ç ão de
alim ento im u n d o para a d etestad a o cupação ro m a n a era duplam en te ofensiva.
A ssim , Jesu s se e n c o n tra c o m u m h o m e m c o m esp írito im u n d o em m eio aos
sep u lcro s im u n d o s ro d e ad o p o r p esso as em p reg ad as em fu n çõ es im undas,
tu d o em territó rio g en tio im undo.

6,7 A e stru tu ra narrativa de M arcos indica que os p o d eres dem o n íaco s


têm a in te n ç ã o d e p ro ib ir Jesu s de e n tra r naquela região. P rim eiro, a n atu reza
d em o n íac a d a te m p estad e so b re o la g o /m a r quase faz o b a rc o virar; agora,
u m h o m e m p o ssesso , p o d e ro so o suficiente para ro m p e r ferros, p ro stra-se
d ian te d e Jesu s e d o s discípulos. E sse é u m lugar o n d e n inguém gostaria de
ir p o r q u alq u er razão. N o en tan to , Jesus, c o n tra ria n d o to d as as razões e ex-
pectativas, vai até esse local. E le d e sc o rtin a ta n to o m u ro ritual de im undícia
q u an to a rep u tação form idável d o dem oníaco. D e ssa vez, n o en tan to , o te rro r
explosivo d o d em o n íaco n ã o prevalece, m as ele, em vez de cair so b re Jesus,
“p ro stro u -se d ian te dele e g rito u em alta voz: ‘[ ...] R o g o -te p o r D e u s que
n ão m e a to rm e n te s!’ ” O v e rb o g re g o p ara “ p ro stra r-se ” , proskynein, d en o ta
p ro stra r-se d ian te de u m a p esso a a q u em se deve reverência o u adoração,
ch eg an d o até m e sm o a beijar os pés o u a orla da veste. Q u a n d o o dem o n íaco
se en c o n tra c o m o divino, esse é u m ev en to sem co n testação .17
A fo rm a c o m o o d em o n íac o se dirige a Jesus: “ R o go-te p o r D e u s que
não m e ato rm e n te s!” , é um a cu rio sa m istu ra em q ue im p lo ra e roga. P or

16 Para as regras da M ishná com relação aos sepulcros, veja m. Kel. 23.4 e m. Ohalot
17— 18. A cidade de T iberíades foi construída so b re sepulcros, e isso, declara
Josefo, “ era contrário à lei e à tradição dos judeus po rq u e ela foi construída em
local de sepulcros, [...] e n ossa lei declara que tais m oradores são im undos p o r
sete dias” (A nt. 18.38).
17 O Testamento de Salomão, um texto dem onológico judaico-cristão datando dos séculos
I a I II d.C., apresenta um arsenal de dem ônios na form a de histórias folclóricas.
A expulsão de dem ônios do geraseno possesso fascinou seu au to r e p roveu um a
sem ente para vários episódios contidos ali (veja T. Sol. 1.13; 11.1-7; 17.2-3).
M a rc o s 5.8-10 206

u m lado: “ R o g o -te p o r D e u s ” (gr. “A d ju ro a v o cê c o m o D e u s ”) soa co m o


u m a fó rm u la d e ex o rcism o (veja lR s 2.42; 2 C r 36.13).18 C o n tu d o , o apelo
p ara n ã o ser “ ato rm e n te [a d o ]” o u to rtu ra d o p o r Jesu s é u m a ad m issão de
subserv iên cia. (S obre a frase: [lit. “ O q u e [é] p ara m im e p ara vo cê?”], veja
em 1.24.) A in d a m ais im p o rta n te é a referên cia a Jesus c o m o “ F ilh o do
D e u s A ltíssim o” . N o judaísm o, “ D e u s A ltíssim o ” é u m ep íteto en fatizan d o
a tran sc en d ên c ia e exaltação d o D e u s d e Israel so b re o s deuses e deusas
pagãos e p o d e re s rivais.19 N o te rritó rio g en tio n o lado leste d o la g o /m a r,
a fo rça desse D e u s é d e m o n stra d a n a d e rro ta d e u m a legião d e d em ô n io s
p o d ero so s o suficiente p ara d e stru ir u m re b a n h o d e suínos. A referên cia a
Jesu s c o m o o “ F ilh o d o D e u s A ltíssim o ” , e n ã o c o m o “ F ilho d e D e u s ” é
típica d o p o lite ísm o g en tio , d esig n an d o Jesu s c o m o o F ilh o d o ú n ico D e u s
v erd ad eiro tra n sc e n d e n te s o b re to d o s os o u tro s. “ F ilho d o D e u s A ltíssim o”
estabelece a singularidade daposição deJesus em relação ao D e u s A ltíssim o e a
universalidade de seupoder.

8 -1 0 O esp írito im u n d o , ap en as pela palavra auto ritativa de Jesus, é ex-


pu lso d o h o m e m p o ssesso . A d e sc o b e rta d o p ap iro g re g o so b re m ágica n o
E g ito n o s in fo rm a so b re fó rm u las, en can to s, co n ju raçõ es e palavras m ágicas
lo n g o s e in tricad o s q u e os exorcistas da A n tig u id ad e em pregavam en q u a n to
travavam u m a b atalh a c o m os o p o n e n te s d em o n íac o s p ara g an h a r vantagem
c o n tra estes. F iló strato , d a m esm a fo rm a , descreve u m a lo n g a e com plexa
con versa d e A p o lô n io co m u m d em ô n io , in clu in do sinais em píricos de que
o ex orcism o fo ra d e fa to eficaz.20 T odavia, co m Jesus, n ã o h á u m elab o rad o
p ro to c o lo n e m , tam p o u co , a eficácia d a expulsão d o d e m ô n io d e p e n d e das
palavras p ro ferid as p o r ele. O p o d e r d e p revalecer so b re o d em o n íac o reside
n o p ró p rio Jesus. E le fala, e os d e m ô n io s são expulsos; sua palavra é ação.

18 Veja fórm ulas similares reunidas em B A G D , p. 581, e A. D eissm ann, Bible Studies,
trad. A. G rieve (E dinburgh: T. & T. Clark, 1901), p. 281-83: horkitçõ se, daimonion
pneuma, ton theon tou Abraam (“A djuro você, espírito dem oníaco, pelo D eu s de
A braão”).
19 G ênesis 14.18; N úm eros 24.16; Isaías 14.14; D aniel 3.26; Lucas 1.32, 3 5 ,75; 6.35;
A tos 7.48; 16.17; H ebreus 7.1 ·,Atos de Tomé45. O hebraico ,el‘elyon (“D eu s Altíssi-
m o”) é encontrado quinze vezes nos M M M e raras vezes n a literatura rabínica. H á
31 ocorrências n o A ntigo T estam ento, e a frequência aum enta após M acabeus a
fim de m ostrar a suprem acia do D eus de Israel sobre os deuses e deusas pagãos. G.
B ertram , “hypsos”, 7ΡΑΓΓ8.602-20; E. Lohm eyer, Das Evangelium des Markus, p. 95.
20 Veja HCNT, p. 69-72,331-32.
207 M a rc o s 5.8-10

Q u a n d o foi p e rg u n ta d o ao d em o n íac o q u em ele é, identifica-se desta


form a: “ Legião, p o rq u e so m o s m u ito s” .21 O d o m ín io d o s d em ô n io s asse-
m elhava-se c o m o d o m ín io d a legião ro m a n a n a Palestina, subjugada p o r
P o m p e u m e n o s d e u m século an tes desse evento. A palavra greg a “ L egião” é
u m te rm o m ilitar e m p re sta d o d o latim . U m a lego designava a m aio r u n id ad e
de tro p a s n o ex ército ro m a n o , cerca de 5.600 soldados.22 O d em o n íaco n ã o é
u m a d isso ciação da perso n alid ad e, m as u m a p erso n alid a d e m últipla o u frag-
m en ta d a igual ao n ú m ero e força de u m a legião ro m a n a o c u p a n d o o ser desse
h o m em . O te rm o “ legião” acrescen ta o u tra faceta m ilitar à v iolenta h istória
d o d em o n íac o e é u m le m b re te arre p ia n te d o n ú m e ro , p o d e r e in ten ção dos
d em ôn ios. O p e d id o d o s d e m ô n io s p ara n ã o serem expulsos daquela área
está talvez en raizad o n a ilusão d e q u e estão a salvo d a au to rid ad e de Jesus.
D e q u alq u er m o d o , é u m o u tro indício d e q u e a D e cáp o lis está d om inada
p o r fo rças d em o n íacas das trevas h o stis à ch eg ad a de Jesus. N ã o o b stan te, os
d em ô n io s n ã o o fe recem n e n h u m a o b jeção o u lu ta a Jesus, m as ro g am pela
m isericó rdia dele c o m o a ú n ica alternativa p ara ex p e rim en tarem sua ira.23

21 A cura do geraseno possesso gerou uma abundância de interpretações psicológi-


cas. E. D rew erm ann tenta explicar a “legião” da perspectiva das profundezas da
psicologia com o perda de uma personalidade individual em um a personalidade
de grupo. “Esse tipo de dem oníaco estremece muitíssimo quando uma pessoa
começa a dizer: ‘E u’, e se torna um indivíduo. O reino de tal controle demoníaco
é sem pre a multidão, os muitos, o coletivo, em que o indivíduo perde a si mesmo,
escapa da sua individualidade e abandona as próprias decisões. Esse demoníaco
é o espírito das massas, a pressão para negar-se a si mesmo — que está presente
desde a infância até o túm ulo” (Das Markusevangelium, 1.318). N o entanto, a luta
demoníaca, conform e relatada nos evangelhos, não é devida à pressão social
nem às massas, com o D rew erm ann supõe, mas deve-se a forças sobre-humanas
capazes de grandes destruições para si mesma e para os outros. P. Horsfield, “The
Gerasene D em oniac and the Sexually Violated” , St. Mark’s Review 152 (1993), ρ.
2-7, considera a “possessão” demoníaca com o uma metáfora daqueles que foram
sexualmente abusados em criança ou vítimas de violência sexual. Mais uma vez,
E. Frick, “D er Besessene von Gerasa. Ein Bibliodrama zu Mk 5,1-20” , GeistLeb
64 (1991), p. 385-93, vê a história com o psicodramas indivíduos psicóticos bem
com o forças malignas mais globais. N em todas essas interpretações fazem justiça
ao texto, mas indicam, como também o fazem um número crescente de intérpretes
interessados em manifestações de espíritos e demônios em meio a grupos primais,
que um texto problemático para os intérpretes da alta crítica (crítica histórica) pode
ser um solo fértil para outras abordagens teológicas e campos de investigação.
22 F. Annen, ‫״‬legiõn”, ED NT2M 5.
23 R. Bultmann, The History of the Synoptic Tradition, ed. rev., trad. J. Marsh (Oxford:
Basil Blackwell, 1972), p. 210, considera a autoidentificação demoníaca no ver-
M a rc o s 5.11-13 208

1 1 1 3 ‫ ־‬P o r iniciativa p ró p ria, “ os espíritos im un do s saíram e en tra ram nos


p o rc o s. A m an ad a d e cerca d e dois m il p o rc o s atirou-se precipício abaixo,
em direção ao m ar, e nele se a fo g o u ” . A d estru içã o d o s p o rc o s a to rm e n ta e
em baraça m uitos in térp retes m o d ern o s. A lguns, arg u m en tam que o elem ento
d o s p o rc o s n ão fazia p a rte d a trad ição m ais antiga e co n sid eram esse ev en to
co m o um a adição p o sterio r à narrativa.2425N ã o há, n o en tanto, n en h u m objetivo
evid en te p ara tal d esen v o lv im en to n a história. N a realidade, à p arte d o n o m e
d o lugar em 5.1, os v in te versículos d a h istó ria são m ais tex tu alm en te exatos
que talvez q u alq u er o u tra seção sim ilar em M arcos. A lém disso, a d estruição
do s suínos re p resen ta u m p ro b lem a m o ral (veja abaixo), algo que sua om issão
evitaria. Se o afo g a m e n to d o s p o rc o s fo ssem u m a adição tardia, p o d eriam o s
esp e rar u m a m aio r h arm o n ização : p o r exem plo, o n ú m e ro de p o rc o s p o d ería
ser correlacio n ad o co m o n ú m ero de h o m en s em u m a legião rom ana. P o r fim,
se a d eb a n d a d a d o s p o rc o s e a d estru içã o deles fo r o m itida d a história, não
h á razão p a ra as p esso as n ão su p licarem p ara Jesu s sair da região (v. 17).2‫ י‬A

sículo 9 com o um a atitude de jactância, esperando sobrepujar Jesus p o r m eio de


sua força e n ú m ero (“legião” e “ som os m uitos”). N o entanto, n em o diálogo nem
o contex to parece apoiar a conclusão de B ultm ann, pois o dem ô n io aquiesce de
todas as m aneiras a Jesus. A autoidentificaçâo no versículo 9 n ão é u m desafio,
m as um a rendição. A ssim , tam bém , a reprodução da m esm a história em Epistula
Apostolorum 5 (citada em NTApoc\.25?>).
24 P o r exem plo, J. C raghan, “T h e G erasene D em oniac” , CBQ 30 (1968), p. 5 2 2 3 6 ‫־‬.
C raghan m apeia um desenvolvim ento evolucionário de um a história original de
Jesus expulsando u m dem ônio em que ela foi aum entada pela “ contribuição da
com unidade” com os detalhes dos sepulcros e porcos (w . 3-5, 9, 12-13) com o
um a “haggadah m idrash” sobre Isaías 65 e, p o r fim, para a redação d e M arcos
nos versículos 18-20. C raghan elabora sobre a posição de E. Schweizer, The Good
NewsAccording to Mark, p. 111 -13, que sugere que o afogam ento d o s po rco s é um a
adição p o sterio r para o deleito dos leitores judeus. Schw eizer argum enta em favor
de “ um a história antiga sobre Jesus expulsando um dem ô n io e [a qual] foi aum en-
tada pela adição de vários aspectos lendários, m as principalm ente pela adição da
descrição p o pular dos porcos se arrem essando na água” . E ssas reconstruções, é
claro, são hipotéticas. N ão h á evidência dos estágios de desenvolvim ento conform e
sugerido acima. T am pouco, supõe-se “ dessem elhança” co n v incente da história
canônica. N a verdade, B ultm ann, contrário ao desm em bram en to de textos, de-
clara que “dificilm ente é possível estabelecer o que é trabalho editorial. Fica claro
que a história está em essência intata em sua form a presen te” ( The History of the
Synoptic Tradition, p. 210). Tais polaridades de opinião leva-nos a ter cautela co n tra
reconstruções fantasiosas desse texto.
25 Veja J. L. P. W olm arans, “W h o A sked Jesus to Leave the T erritory o f G erasa (Mark
5:17)?” A W 28 (1994), p. 87-92, que argum enta que as pessoas que pediram para
209 M a rc o s 5.14-17

h istória escrita é c o e ren te e ta m b é m d eve ser lida e in terp re tad a c o m o u m a


un id ad e co m p leta.
H á u m a cadeia m o n ta n h o s a cerca de três q u ilô m e tro s a sul de K u r s i/
G erg esa q ue se esten d e das en co stas orientais d e D e cáp o lis até praticam ente
o la g o /m a r. E ssa cadeia d e m o n ta n h a s acaba em um a m arg em íngrem e e se
ajusta à d escrição de 5.13: “A m an ad a d e cerca de do is m il p o rc o s atirou-se
precipício abaixo, em d ireção ao m ar, e nele se a fo g o u ” . O m aior dilem a
ap resen tad o pela d eb a n d ad a d o s p o rc o s, em m in h a opinião, é um a questão
m oral. D o is m il p o rc o s re p re se n ta m u m e n o rm e re b an h o , e a p erd a cons-
titui u m a catástro fe eco n ô m ica. O b e m feito ao h o m e m p o ssesso resulta
em g ra n d e desg raça p ara o s p asto re s d e p o rco s. Iro n ic am en te, ta n to Jesus
q u an to M arcos p assam p o r alto desse d ra m a ó b v io d o s p asto re s de p o rco s
sem q u alq u er co m en tário .26 A história, c o n fo rm e se ap resen ta, direciona a
atenção dividida p ara o resgate d o d estin o trágico e to rtu o s o d e u m ho m em .
Aqui talvez esteja a m oral essencial d o m ilagre, su p la n tan d o até m esm o o
dilem a da p e rd a d o s po rco s. A o s o lh o s d e Jesu s, o resgate e restau ração de
um a p esso a é m ais im p o rta n te q ue os v asto s b en s d e capital. C o m p arad a
co m a re d en çã o d e u m ser h u m an o , a p e rd a d e re b an h o s d e p o rco s, p o r mais
vo lu m o sa q u e seja esta, n ão m ere ce ser m en cio n ada.

14-17 O lem b rete da história centra-se n a reação d o local da expulsão dos


dem ôn ios. O s p asto res d e su ín o s “ fugiram e co n ta ram esses fatos n a cidade
e n os ca m p o s, e o p o v o foi v er o q u e havia ac o n te c id o ” (5.14). A cidade m ais
próxim a era K u rs i/G e rg e sa , m as H ip p o s, u m a cidadela d a D ecáp o lis situada
em u m cu m e im p o n e n te n o lado leste d o la g o /m a r, ta m b ém ficava n a região.
O relato reú n e as pessoas d e áreas circunvizinhas p ara verem o que aconteceu.
E elas veem algo m u itíssim o su rp re en d en te : o in fam e h o m em p o ssesso está
em u m e stad o to ta lm e n te alterado, “ assen tad o , v estido e em p erfeito juízo” .
E ssa é u m a im ag em d o discipulado e d a salvação: u m indivíduo re sta u rad o
sen tad o aos p és de Jesus.
O s corolários d a cura d o h o m e m p o ssesso co m o acalm ar d a tem p estad e
em 4.35-41 estão ag o ra to ta lm e n te aparentes. A s duas h istórias term in am

Jesus sair eram provavelm ente pastores de suínos que queriam se defen d er da
culpa pela p erd a dos suínos.
26 Soren K ierkegaard, com o aconteceu com a história da o rdem de D eus para A braão
sacrificar Isaque no m o n te M oriá (G n 22), pode ter co ntado esse incidente com o
um exem plo da “ suspensão teológica do ético” , ou seja, um a instância em que o
bem su prem o ou ordem de D eu s sobrepuja todos os ou tro s bens.
M a rc o s 5.18-20 210

em medo. N a travessia d o lago, o s discípulos ficaram m ais aterro rizad o s co m


o p o d e r de Jesu s p ara acalm ar a te m p estad e q ue c o m a p ró p ria tem p estad e
(4.41); aqui os h ab itan tes estão m ais ap av o rad o s co m o p o d e r d e Jesu s para
expulsar d em o n io s que co m o a te rro riz a d o r h o m e m possesso. A dem ais, o
pov o da cidade, c o m o os discípulos, te ste m u n h o u u m m ilagre estu p en d o ,
m as isso n ã o levou à fé — p elo m en o s, n ã o ainda. N e ssa últim a história, os
residentes d a D e cáp o lis re sse n tem -se d a in tru sã o de Jesu s em sua região e
p ed em q ue ele deixe a região. E ssa é a re sp o sta d o coração h u m an o p ara Jesus.
A m aioria das pessoas, se lhes fosse p erg u n tad o , diría que g o staria de v e r a
m an ifestação d e D eu s. C o n tu d o , essa h istó ria é u m a d u ch a d e água fria para
tais quim eras religiosas: q u a n d o D e u s se m an ifesta em Jesus, a m aioria das
pessoas p e d e m q u e ele saia (veja J o 1.11). P o r fim , há u m claro paralelo nos
resultad o s d as d u as histórias. A c o m p o stu ra d o h o m e m que fo ra p o ssesso e
ag o ra estava c u rad o (“ v estid o e em p erfeito juízo”) é u m a c o n tra p a rte p ara a
g ran d e calm a d o lago ap ó s a tem p estad e. A s duas tem p estad es, a ex terio r e a
in tern a , fo ram aplacadas p ela au to rid a d e d e Jesus. Jesus, c o m o o E sp írito que
p ô s o rd e m nas p ro fu n d ez a s e trevas (G n 1.2,3), traz criação a p a rtir d o caos.

1 8 -2 0 A h istó ria conclui c o m o h o m e m agora c u rad o p e d in d o p ara ir com


ele. O p ed id o é feito c o m o v o cab u lário d o discipulado de 3.14d, in d ican d o
seu desejo d e se ju n tar a Jesus. E ste, n o en tan to , n ão p e rm ite isso, prova-
v elm en te p o rq u e u m g en tio seria u m a p ed ra d e tro p e ç o em sua m issão p ara
Israel (M t 10.5,6). A m issão e o ch a m a d o d e Jesus são devidos apenas a sua
von tade. C u rio sam en te, Jesus, n o en tan to , n ão p e d e ao h o m e m que silencie,
c o m o fizera até aqui. E possível s u p o r q u e a o rd e m p ara silenciar é desne-
cessária em te rritó rio g e n tio o n d e n ão existe o te m o r das falsas expectativas
m essiânicas. E sse n ão é o caso, n o en tan to , pois, em 7.31-37, Jesu s o rd e n a o
h o m e m a silenciar ap ó s u m a cu ra n a D ecápolis. A razão pela qual Jesu s envia
o h o m e m p ara anunciar o q ue lhe aco n tecera p o d e estar relacionada ao fato de
que Jesu s foi b an id o d a região. C o n tu d o , M arcos n ã o n o s deixa co m u m falso
estereótip o d e q u e os gentios são receptivos ao evangelho, en q u an to os judeus
n ão o são. A re sp o sta a Jesu s n a D ecáp o lis n ão é essencialm ente d iferen te da
resp o sta d o s judeus n a Galileia. T o d av ia, só a re sp o sta h u m an a, até m esm o
a d u re za d o co ração , n ão é a palavra final. “V á p a ra casa, p ara a sua família
e anuncie-lhes q u a n to o S e n h o r fez p o r v o cê e c o m o teve m isericórdia de
v o cê” , o rd e n a Jesu s. O b a n im e n to d e Jesu s n ão o s livra dele, pois Jesu s está
p re se n te n a m en sag em d o evangelho p ro c la m ad a p o r seus seguidores. N o s
211 M a rc o s 5.21

versículos d e co n c lu são d a história, M arcos deixa-nos co m o u tro indício da


posição divina d e Jesu s. “A n u n cie-lh es q u a n to o Senhor fez p o r v o cê” (grifo
do au to r), o rd e n a Jesus. O h o m e m saiu e c o n to u “ o q u an to Jesus tin h a feito
p o r ele” (grifo d o autor). O S e n h o r e Jesus, p ara esse h o m em , são a m esm a
pessoa. N o ev an g elh o d e M arcos, o h o m e m p o sse sso cu rad o to rn a-se o
prim eiro m issio n á rio -p re g ad o r en v iad o p o r Jesus. N o tav elm en te, ele é u m
g entio enviad o p a ra o s gentios.

A F É Q U E D E S A F I A A D E R R O T A (5 .2 1-4 3 )

E ssa d ra m á tic a h istó ria é o u tro ex e m p lo d e u m san d u ích e m arcan o


em q u e a cu ra d a filha d e Jairo (5.21-24,35-43) é in te rro m p id a p o r um a
m u lh er c o m h em o rrag ia (w . 25-34). A h istó ria d o m eio so b re a m u lh er com
hem o rrag ia p ro v ê a chave p ara a co m p re e n sã o das h istórias com binadas.
M arcos d elim ita a inserção d o m eio ao u sar o te m p o v erbal ao risto (passado)
em grego, ao p asso q u e as m etad es flan q u ean d o a p assag em ten d em a estar
nos te m p o s verbais im p erfe ito e p resen te. M arcos, além de u sar a estru tu ra
sanduíche A ’-B -A 2, d á sen tid o ao re la cio n am en to e n tre as duas histórias
p o r m eio d e vários elem en to s com uns. A s d u as h istórias são de m ulheres
curadas p elo to q u e de Jesus; as duas m u lh eres são ch am adas d e “ filha” p o r
Jesus; e a d o e n ç a d a m u lh er e a id ad e d a m en in a são forn ecid as — d o ze anos.
N as du as histórias, Jesu s se d e p a ra c o m cen su ras e re p ree n sõ e s (w . 17,40),
e Jesus, nas d u as histórias, e n tra em c o n ta to c o m a im u ndícia (a h em o rrag ia
m enstruai d a m u lh e r e o cadáver da m enina). O asp ecto d a im undícia conecta
a p re se n te n arrativ a san d u ích e c o m a h istó ria an te rio r (5.1-20). T o d o s os três
perso n ag en s e m M arco s 5 tran sfere m a im u n d ícia p ara Jesus, e este co n ced e
a cada u m deles a purificação p erfeita de D eus. M arcos 5 p o d e ser cham ado
de “ capítu lo são Ju d a s ” (o san to das causas p erd idas), pois o g erasen o ende-
m o n in h ad o , a m u lh e r co m fluxo d e sangue e Jairo, cada u m deles espera em
Jesus q u a n d o to d as as esperanças h u m an as são exauridas.

21 Jesus, a p ó s ser expulso de K u rs i/G e rg e s a , atravessa d e v olta p ara


o territó rio ju d eu n a co sta o cid en tal d o lago.27 A travessia para o oeste, se
com parada c o m a viagem para o leste, n ão teve ocorrências especiais. M arcos
não localiza o p o n to d e d esem b arq u e, apenas afirm a “ à beira d o m a r” . A
m argem d o la g o /m a r já é ag o ra u m tem a fam iliar em M arcos, pois há, nos

27Para um a discussão das variantes secundárias do versículo 21, veja Metzger,


TCGNT, p. 84-85.
M a rc o s 5.22-24 212

prim eiro s seis capítulos, cerca de q u in ze referências ao m a r/la g o . A “gran-


de m u ltid ão [que] se reu n iu ao seu re d o r” é m ais receptiva que as pessoas
reu nidas em D ecápolis.

22-24 Im ed iatam en te, u m dirigente d a sinagoga co rta cam in h o através da


m ultidão. U m dirigente da sinagoga era o p re sid en te o u “ líder” da com u-
nidade judaica d e ad oração d o local, rosh ha-kenesetem heb raico (m. Yoma 7.1;
m. Sot. 7.7-8). O títu lo e n c o n tra -se em to d o o m u n d o m ed iterrân eo d o século
I, e m b o ra n ã o o c o rra em Jo se fo n em em F ílon. N a sinagoga, a direção da
adoração p ú b lica, a leitura das E scritu ras, a p reg ação e a o ração púb lica eram
realizadas p o r m e m b ro s leigos d a sinagoga, e n ão p o r um a classe profissional
d e autoridades. O dirigente da sinagoga, da m esm a form a, n ão era u m líder da
ado ração n em u m m estre d a lei o u rabi trein a d o p ro fissio n alm en te, m as um
m e m b ro leigo de u m a sinagoga esco lh id o pelos anciãos d a co m u n id ad e e que
sup erv isio n av a a sin ag o g a e a o rto d o x ia d o en sinam ento. Suas responsabili-
dades incluíam a m an u te n ç ã o e segurança d o p ré d io , a p ro c u ra d o ro lo p ara
a leitura d a E sc ritu ra e a org an ização da ad o ração d o sábado ao designar os
leitores da E scritu ra, os responsáveis p o r fazer as orações e os pregadores. E m
geral, u m a sin ag o ga tin h a apenas u m dirigente, m as n e m sem pre. A to s 13.15
m en cio n a p elo m e n o s dois dirigentes n a m esm a sinagoga. N o versículo 22,
n o en ta n to , “u m d o s dirigentes da sin ag o g a” p ro vavelm ente deve ser en ten -
d id o c o m o “ alguém da classe d e p resid en tes d a sin agoga” . A evidência em
inscrições d o século I d.C. atribui o títu lo a u m g ru p o su rp re en d en te m e n te
diverso de indivíduos, in clu in d o aqueles co m n o m es greg o s e q u e escreviam
em grego. A lém disso, quase duas dúzias de inscrições em latim e g re g o da
Palestina e D iá sp o ra , d ata n d o d o século I a.C. em diante, co n fere o títu lo às
m ulheres e, o ca sio nalm en te, até m e sm o às crianças.28

28 Veja E. Schürer, History of theJewish People, 2.433-37; e J. T. Burtchaell, FromSynagogue


to Church: Public Services and Offices in the Earliest Christian Communities (Cambridge:
Cambridge University Press, 1992), p. 240-46. Sobre inscrições gregas do século
I, veja HCNT, p. 316. A relevancia do título “dirigente da sinagoga” aplicado a
mulheres (e crianças) é difícil de avaliar. B. Brooten, Women Leaders in the Ancient
Synagogue: InscriptionalEvidence andBackgroundIssues, BJS 36 (Chico: Scholars Press,
1982), reuniu quase doze inscrições que se referem a mulheres com o “dirigente
da sinagoga” , “líder”, “anciã”, “mãe da sinagoga”, “ sacerdotisa” e “autoridade
dirigente” . Exatamente com o esses títulos devem ser entendidos ainda não é cía-
ro. Brooten foi seguida p o r muitos em seu argumento de que tal nomenclatura é
funcional, e não apenas honorífica, ou seja, as mulheres eram dirigentes bonafide
213 M a rc o s 5.22-24

M arcos p re serv a o n o m e d o g o v ern an te d a sinagoga, “Jairo ” .*29 E m geral,


ele n ão so b re carreg a seu evangelho co m n o m e s p ró p rio s. N ã o fica total-
m ente claro p o r q u e esco lh eu incluir o n o m e de Jairo, m as n ão é im possível
que P ed ro te n h a c o n h e cid o Jairo en q u a n to esteve em C afarnaum , e q u e seu
nom e se d eva a u m a rem iniscência de P ed ro .30 N e ssa ocasião, a p o stu ra e fala
do g o v e rn a n te n ão são oficiosas, m as d esesp erad as e im p lo ran tes (7.25; Jo
11.32). Jairo “ p ro stro u -se aos seus pés e lhe im p lo ro u insistentem ente: ‘M inha
filhinha está m o rre n d o ! V em , p o r favor’ ” . A co n d içã o de sua filha era crítica:
em grego , eschatos echei (N V I, “ está m o rre n d o ”) é u m coloquialism o para “ à
beira d a m o rte ” o u “ su cu m b in d o ra p id a m en te” .31 Jesu s, apesar d a m ultidão
aduladora, d e m o n stra ser passível d e in te rru p ç ã o e sen te o d esesp ero desse
pai solitário (veja lR s 17.17-24; 2R s 4.17-37). “Jesu s foi co m ele.” M arcos,
nessa afirm a ção sim ples, a qual re m e m o ra a d escrição igualm ente sim ples do
p ro pósito d e Jesus 1.38 (“ Foi para isso que eu v im ”), testifica d o com prom isso
de Jesu s p ara m in istrar à n ecessidade h u m a n a e d o v alor inestim ável d o ser
h um an o individual p ara Jesus.

das sinagogas. Burtchaell, no entanto, argumenta que os títulos eram honoríficos,


indicando apenas que as mulheres com esses títulos eram casadas com homens
dirigentes das sinagogas; e, da mesma forma, as crianças com esses títulos eram
filhos de dirigentes das sinagogas, mas tais crianças dificilmente eram elas mesmas
dirigentes. Burtchaell apresenta a ideia de que Fílon não ficaria surpreso com o fato
de os terapeutas (Therapeutae) admitirem mulheres nas assembléias de sábado se
houvesse dirigentes mulheres das sinagogas. Ainda “que não havia absolutamente
nenhuma participação de mulheres no sacerdócio judaico, apesar dos epitáfios de
sacerdotes judeus no feminino”. Por fim, “com o é provável que as mulheres — em
uma cultura em que as mulheres eram legalmente proibidas de ser contadas como
membros da comunhão de adoração, estudar a Torá, juntar-se à recitação comunitária
da graça (e proibidas por muitos rabis de ler a Torá em público) — pudessem ser
dirigentes dos assuntos públicos da comunidade?” Além da evidência em inscrições,
não existe nenhum indício de que as mulheres agiam como dirigentes nas sinagogas.
Considerando esses fatos e observações, há motivos para sermos cautelosos, e talvez
até mesmo céticos, de que as mulheres (e crianças) atuavam de fato como dirigentes
nas sinagogas no judaísmo da Antiguidade.
29 Dois manuscritos uncíais (W do século V e Θ do século IX) e dois manuscritos em
minúsculas omitem o nome de Jairo do versículo 22. Metzger discute a omissão em
detalhe e argumenta corretamente para a inclusão do nome ( TCGNT, p. 85-86).
30 Para as raízes de 5.21-42 e sua confiabilidade histórica, veja S. Sabugal, “La resur-
reccion de la Hija dejairo (Mc 5,21-24a. 35-43 par). Análisis historico-tradicional” ,
Estudio Agustiniano 26 (1991), p. 79-101.
31 N o relato paralelo em Mateus 9.18, a menina acabara de morrer.
M a rc o s 5.25-29 214

25,26 Jesus, sem n e n h u m m o m e n to a p erd er, é fo rçad o a perdê-lo, pois


h á o u tra req u eren te n a m ultidão. U m a m u lh er co m h em o rrag ia m en stru ai,
cu jo d esesp ero é m ais silencioso, m as dificilm ente m e n o s u rg en te, m ove-se
reserv ad am en te n a d ireção d e Jesu s n a m u ltid ão q u e se acotovelava ao re d o r
dele s (3.9; 4.1). N o versículo 29, M arco s descreve sua co n d ição c o m o u m a
mastix, u m a ex p ressão vivida c o m o sen tid o d e “ chicotear, bater, esp an car o u
a to rm e n ta r” (veja A t 22.24; H b 11.36). O te rm o co m b in a so frim en to físico
e verg onh a, daí algo sim ilar a punição. O versículo 26, em u m a d ram ática
saraivada d e p articip ios g reg o s, registra a b ru p ta m e n te a co n d ição da m ulher:
sofrendo d e u m fluxo d e sangue, tendopadecido m u ito so b o cu id ad o de vários
m édicos, tendo gasto tu d o o q u e tin h a, não tendo melhorado, m as tenho piorado.
E sse m e sm o versículo é ig u alm en te en fático e categórico: ela p ad eceu muito
sob o cu id ad o d e vários m éd ico s, g a sto u tudo o q u e tin h a e n ão g a n h o u nada
(porque p io ro u ). A p ersp ectiv a d a m ulher, claram ente, n ão é m e lh o r que a
da m en in a à beira d a m o rte .32
D e a c o rd o c o m a T o rá, u m a m u lh e r fica im u n d a p o r sete dias ap ó s sua
m en stru aç ã o m ensal, m as se ela tivesse u m p ro b le m a ginecológico p ro io n -
gado, c o m o n o caso d essa m ulher, ela p e rm a n ece ría im u n d a d u ra n te to d a a
duração dessa h em o rrag ia. Q u a lq u e r p esso a q u e en trasse em c o n ta to c o m ela
d u ra n te a m e n stru a ç ã o seria b an id a até o a n o itecer (Lv 15.19-27). O teste-
m u n h o d e Jo s e fo d e q u e “ o tem p lo ficava fech ado p ara as m ulheres d u ra n te
sua m e n stru a ç ã o ” ( Guerra 5.227) indica q u e essa regra p articu lar d a T o rá era
cu id ad o sa m en te o b serv ad a n a é p o c a d e Jesus. D a m esm a fo rm a , a m u lh er
d u ra n te a m e n stru a ç ã o — e q u alq u er p esso a q u e a to casse — era b an id a da
co m u n id ad e até sua purificação.33

27-29 M arcos n ão explica o q u e se passava n a m en te d a m u lh er en q u an to


tentava to c a r Jesus. N o m u n d o d a A ntiguidade, em particular, acreditava-se
q ue os g o v e rn a n te s tin h a m p o d e r p ara a b e n ç o a r aqueles q u e os tocassem .
A lex a n d re, o G ra n d e , era c o m freq u ên c ia c e rca d o pelas m u ltid õ es que,
“p ro v en ie n tes d e to d o s os lados, co rria m até ele p ara to car suas m ãos; alguns

32J. Frazer, em The Golden Bough, argum enta pela evolução da mágica para a religião,
e da religião para a ciência. N esse caso, no entanto, M arcos apresenta u m fluxo-
gram a alternativo d a ciência para a religião!
33 lQ S a 2:2-4; Bib. A n t. 7; Spec. Leg. 3.32-33. O sangue m enstrual, co m o tam bém
o u tro s “ fluxos” (sêm en, escarro, urina e pus), fazem co m que a pessoa fique
im unda, um %ab, de acordo com a tradição rabínica (m. Zavim 1— 5).
215 M a rc o s 5.25-29

tocavam seus joelhos; o u tro s, sua v este” n a esp eran ça d e serem batizados
com a aura e p o d e r d esse g o v ern an te.34 A ab o rd ag em era feita algum as vezes
com u m a in te n ç ã o m ais específica, p ara a cu ra o u o c u m p rim e n to de um a
solicitação.35 A m u lh e r p o d e te r se ap ro x im a d o d e Jesu s co m u m a intenção
similar, talvez m istu rad a c o m superstição. E possível, n o en tan to , q u e ten h a
visto em Jesu s algo m ais q u e a aura de u m g o v ern an te. Q u e m sabe ten h a
visto e m Jesu s u m re p re se n ta n te de D e u s que, c o m o o altar n o tabernáculo,
to rn aria sa n to to d o s os q u e o to cassem (E x 29.37). O fato de ela p ro c u rar
tocar a v este d e Jesu s p o d e indicar q u e o associava co m o D e u s de Israel,
pois a referên cia à veste p ro v av elm en te refere-se à franja d e seu m a n to n o
canto de sua v este exterior, u sad a p o r to d o s os ju deu s q u e guardavam a lei
(N m 15.38,39; D t 22.12).36 M arcos, n o en tan to , n ã o tece n e n h u m julgam en-
to so b re a o rto d o x ia, o u ausência dela. A n tes, ele relata q u e ela faz a única
coisa im p o rta n te p ara u m discípulo fazer: ela “ o u v iu ” , “ ch e g o u ” p e rto dele
e o “ to c o u ” (v. 27).37 E m M arcos, agir c o n fo rm e o q u e ouv iu so b re Jesus
é sem p re u m sinal de u m discípulo, e é isso q u e a m u lh er faz. M arcos, em
m arcan te c o n tra s te co m seu esta d o d ep lo ráv el n o versículo 26, n arra de
form a co n c re ta e vivida o re su ltad o d a ação d essa m u lh e r n o versículo 29, o
que p o d e ser literalm ente trad u z id o d esta fo rm a: “ Im ed ia ta m e n te cessou sua
hem o rrag ia e ela sen tiu em seu c o rp o q u e estava livre d o seu so frim en to ” .
C om o n a h istó ria d o h o m e m co m a m ão atro fiada (3.1-6), ela, ao trazer sua

34Arriano, Anabaús of Alexander 6.13.3. Assim, também, Plutarco, Life of Sulla 35


(474 C). As duas passagens são citadas de HCNT, p. 78.
35Tácito, Hist. 4.81.1, tam bém citado de HCNT, p. 78.
34A passagem paralela em Mateus 9.20 m enciona expressamente “borda” (gr. ta
kraspeda\ heb. sisit). As bordas ou orlas em geral consistiam de quatro fios de lã,
três brancos e um azul, usados na veste exterior pelos judeus que guardavam a
lei — sacerdotes, levitas, mulheres e até mesm o escravos, com o um lembrete dos
m andam entos do Senhor e da eleição de Israel. Veja Str-B 4 / 1.277-92.
37A maioria dos manuscritos gregos dizem que a mulher “ouviu sobre Jesus”, ao
passo que um núm ero pequeno, mas de peso, de manuscritos (‫ א‬, B, C, Δ) dizem
que a m ulher “ouviu o que Jesus fizera” . M etzger ÇTCGNT, p. 86) opta pela
primeira leitura, sugerindo que a última é um “refinamento alexandrino” . O con-
texto, todavia, pode argumentar pela última leitura, pois a mulher parece atraída
pela habilidade de Jesus de fazer milagres, após o qual podería escapar sem ser
observada.
M a rc o s 5.30-34 216

e n fe rm id a d e p a ra Je su s, é c u ra d a .38 D o z e a n o s d e v e r g o n h a e fru s tra ç ã o sã o


re s o lv id o s c o m u m to q u e m o m e n tâ n e o d e Jesu s.

3 0 Je su s, n o m e s m o in s ta n te , ta m b é m sa b e “ e m se u in te rio r” , p a ra tra d u -
z ir o g re g o lite ra lm e n te , q u e a c u ra sa íra d e si.39 U m a to d e fé o c o r r e u a n te s
d e a m u lh e r c o m p r e e n d e r to ta lm e n te se u se n tid o . C o n s id e ra n d o o e stig m a
so cial d a m u lh e r, a r e s p o s ta d e J e s u s a ela é n o tá v e l. O fa to d e ela e s ta r e m
lo cal p ú b lic o e te r to c a d o e m Je su s, a m b a s as a titu d e s e ra m v io la ç õ e s d a T o rá ,
n ã o sã o o m o tiv o d a re p r im e n d a d e Je su s.40 A n te s, ela é a p e r s o n a g e m c e n tra l
d a h is tó ria e c o n ta “ to d a a v e r d a d e ” (v. 33), to r n a n d o - s e , p o r c o n s e g u in te , o
m o d e lo d e fé p a ra Ja iro !41

3 1 -3 4 M a rc o s e s c o lh e a m u lh e r n a m u ltid ã o , talv ez p a ra in d ic a r q u e u m
e n c o n tr o v e rd a d e iro c o m J e s u s d istin g u e o in d iv íd u o c o m o u m in d iv íd u o

38 H. Kinukawa, “T he Story o f the Hemorrhaging Woman (Mark 5:25-34) Read


from a Japanese Feminist C ontext”, Bibint 2 (1994), p. 283-93, argumenta que a
mulher desafiou o poder de Jesus e que o verdadeiro milagre seria Jesus aceitar
a mulher com o ela estava, até mesmo se sangrando. Essa interpretação parece
incongruente com a narrativa. A mulher não busca reconhecimento, mas ajuda;
ela está desesperada e amedrontada, e não buscando empoderam ento; e, por fim,
os versículos 33,-34 não deixam implícito que a aceitação da mulher por Jesus
depende de ela ser primeiro curada. Antes, ele deseja encontrar uma pessoa, e não
apenas ministrar urna cura.
39 A Epistula Apostolorum 5, do século II, parafraseia a historia da cura da mulher
com hemorragia da perspectiva dos discípulos. O versículo 30 é traduzido desta
forma: “E [Jesus] respondeu e nos disse: ‘N otei que um poder saiu de mim’ A
apresentação da citação na primeira pessoa e a referencia a “poder” são reminis-
cencías das tendências gnósticas nas tradições cristãs (NTApoc 1.253).
40 Para as violações p o r parte da m ulher das prescrições de pureza apresentadas na
Torá, veja M. J. Selvidge, “Mark 5:25-34 and Leviticus 15:19-20: A Reaction to
Restrictive Purity Regulations” , JB L 103 (1984), ρ. 619-23.
41 D e acordo com a tradição posterior, o nom e da m ulher era Bernice ou Veronica
{Acts of Pilate 7; Eusébio, Hist. Eccl. 7.18). Eusébio afirma que viu um a estátua de
bronze dessa m ulher em Cesareia de Filipe, onde se acredita que ela viveu. N o
entanto, as duas fontes acima são tardias (século IV d.C.) e exibem características
lendárias. Se, p o r acaso, elas representam uma tradição confiável, o papel da mu-
lher nessa narrativa sanduíche de Marcos seria ainda mais acentuado, pois uma
estátua de bronze de um evento com o esse só seria concebível em um meio gentil.
Isso significaria que a m ulher era gentia e, nesse caso, a fé de uma mulher gentia
seria usada por Marcos com o um paradigma de fé para o dirigente judeu de uma
sinagoga!
217 M a rc o s 5.35-36

único n a m ultidão. Jesus in siste em sab e r q u em to c o u nele. O v erb o grego


do versículo 32 indica q u e ele “continuou o lh a n d o ao seu re d o r p ara ver q u em
tinha feito aquilo” (grifo d o autor). A possibilidade d e e n c o n tra r o suplicante
em u m a m u ltid ão tã o g ran d e q u a n to aquela deixa os discípulos exasperados,
mas, iro n ica m e n te , eles estão m ais42 em d e sc o m p a sso c o m Jesu s que essa
m ulher. A p ersistên cia d e Jesu s p a ra d esc o b rir q u e m o to c o u rivaliza com a
persistência d a m u lh e r p ara alcançar Jesus. E la q u e r a cura, algo, ao p asso que
Jesus deseja u m e n c o n tro p esso al co m alguém. E le n ã o fica feliz em executar
rap id am en te u m m ilagre; q u e r e n c o n tra r u m a pessoa. N o R eino de D eus, o
m ilagre leva ao en c o n tro . O discipulado n ão é ap enas co n seg u ir que nossas
necessidades sejam supridas; é estar na p re sen ça de Jesus, ser co n h ecid o p o r
ele e segui-lo. A m u lher, in cap az de fugir d o o lh ar p e rsc ru ta d o r d e Jesus,
“p ro stro u -se aos seus pés [...], tre m e n d o de m e d o ” . O c o m p o rta m e n to
o b sequ ioso dela reflete sua h u m ilh ação ap ó s o lo n g o p e río d o de enferm ida-
de. Talvez o e n c o n tro p ú b lico co m Jesu s fo sse tão n ecessário p ara su p erar
seu o strac ism o social q u a n to o p o d e r dele p a ra cu ra r a d o en ç a física dela.
O m e d o e o te m o r dessa m u lh e r n ão são re p ro v a d o s n e m cen su rad o s, m as
Jesus, c o m co m p aix ã o ca rin h o sa (tam b ém 1.41), diz-lhe: “ Filha, a sua fé a
curou!” (cf. 2.5). A palavra g re g a p ara “ c u ro u ” , sç^ein, p o d e significar “ cu rar”
ou “ salvar” , d e p e n d e n d o d o co n tex to . N a fala, o te rm o heb raico e aram aico
p o r trás d essa palavra, yashaw, é d e fato u m a v arian te d o n o m e heb raico de
Jesus, Yeshua. A m u lh er, d e c e rta fo rm a , ainda n ã o p o d ia sab er q u e o desejo
pela cura e in teg rid ad e era d e fato o desejo p o r Jesus. A palavra final d e Jesus
para a m u lh er é u m a b ên ç ão verdadeira: “ Vá em p a z ” .43 N a afirm ação, “ fique
livre d o seu so frim e n to ” , a m u lh er o u v e d a b o c a de Jesu s o que já tin h a ex-
p erim e n ta d o c o m a p esso a dele. A palavra de Jesu s in te rp re ta a experiência
dela; m ais u m a vez, a ação e a palavra d e Jesu s são um a.

3 5 ,3 6 O d ra m a se intensifica agora. E n q u a n to Jesu s fala co m a m u-


lher, p esso as d a casa d e Jairo ch eg am p ara avisar q u e sua filha m o rrera. A
in terru p ç ão , tão p ro v e ito sa p ara a m ulher, cu sto u a vida da filha de Jairo. A
esperança fo ra p erd id a, e a co n clu são inevitável se segue: “ N ã o precisa m ais
in co m o d a r o m estre!” O re sta n te d a história oscila c o m o o p ên d u lo de um

42 As intenções distintas da m ulher e de Jesus são boas ilustrações e da distinção de


B uber en tre os en contros “ E u -Isso ” e os relacionam entos “ E u -T u ” .
43 “Vá em paz” era um a bênção hebraica (leki leshalom, ISm 1.17; 20.42; 2Sm 15.9;
2Rs 5.19; Lc 7.50; A t 16.36; T g 2.16; E p. A p . 51).
M a rc o s 5.37*40 218

relógio, oscilan d o en tre os ex tre m o s d o d ese sp ero h u m a n o e a p ossibilidade


divina. Jesu s ouve a n o tícia tran sm itid a p o r essas pessoas, m as cu rio sam en te
ele n ã o fala so b re as circunstâncias d a m o rte d a m en ina. A escolha d a palavra
p o r M arcos p ara relatar Jesu s o u v in d o o relato n o versículo 36 é m agistral.
O te rm o grego, parakouein (trad u zid o n a N V I p o r “ n ão fazen d o caso ”) tem
três sen tid o s distintos: (1) e n tre o u v ir algo q u e n ã o foi d ito específicam ente
p ara você ouvir; (2) n ão p re sta r aten ç ão o u ig n orar; e (3) recusar-se a ou v ir
o u n ão fazer caso d a v erd ad e d e algo. T o d o s os três sen tid o s se aplicam a
Jesus n o versículo 36.44 E le n ã o re p e te o q u e acab ara d e acontecer, p o r que
aco n teceu n e m o q u e p o d e ría significar. A o co n trário, ele fala d iretam en te
co m Jairo. A in d a h á algo q u e Jairo p o d e fazer, m as ele p recisa tran sferir o
foco das circu n stân cias d a m o rte d e sua filha p ara o p ró p rio Jesus. “ N ã o
ten h a m ed o , tã o so m e n te creia.” E sse é o desafio dian te de Jairo, e d ian te de
q u alq u er p e sso a q u e se e n c o n tre co m Jesus: acred itar só n o q u e as circuns-
tâncias lhe a p resen tam o u c rer em D e u s q u e to rn a tod as as coisas possíveis?
Só u m a coisa é n ecessária — crer. O te m p o verbal p re sen te d o im p erativ o
greg o p ara continuara crer, apegar-se à fé, em vez de se e n treg ar ao d esespero.
O fu tu ro d e Jairo, c o m resp eito às circunstâncias de sua filha, está fechado;
m as, c o m re sp eito a Jesus, ain d a está ab erto . A fé n ã o é algo que Jairo tem ,
m as algo q u e tem Jairo, c a rre g a n d o -o d o d ese sp ero à esperança. A palavra
au toritativ a d e Jesu s p ara Jairo n ã o é p ara tem er, m as p ara crer.45

3 7-40 M arco s re to rn a ag o ra p ara o tem a d o s qu e p e rte n c e m ao círculo


ín tim o e d o s d e fora. Só P ed ro , T iag o e Jo ão , o círculo ín tim o d o s discípu-
los confiáveis d e Jesus, e o pai e a m ãe d a criança, tiveram p erm issão p ara
a c o m p a n h a r Jesu s p ara ficar d o lado d a m en in a m o rta .46 N in g u ém m ais tem
p erm issão d e a c o m p a n h a r Jesus. N a casa d e Jairo, as p esso as que lam en tam
ali a m o rte d a m en in a, co m ca n to s e d anças fú neb res, co m eçam a tecer c o ­

44 A am biguidade de parakousas levou a sua substituição pelo te rm o m ais óbvio


akousas em um a série de m anuscritos. Veja M etzger, T C G N T , p. 87.
45A to s de Tomé, texto d o século II (ou III), um rom ance helenista gnóstico, relata
um a história apócrifa da visita d o apóstolo T om é à índ ia, o n d e ele é aprisionado
p o r co n stru ir um palácio de boas obras, e não de pedras, para o rei G undafor.
T om é, assim que é libertado da prisão, cita o versículo 36: “N ã o ten h a m edo; tão
som ente creia” .
46 O círculo íntim o de Pedro, T iago e Jo ão em m eio aos D o z e traz um a similarida-
de bastante curiosa (em bora provavelm ente seja apenas um a coincidência) com
a liderança de C unrã, em que “n o concilio da com unidade (deverá haver) doze
hom ens e três sacerdotes” (1QS 8:2).
219 M a rc o s 5.37-40

mentários sombrios sobre a morte. As carpideiras, parte de uma associação


profissional no judaísmo do século I, eram exigidas nos funerais; “Até mesmo
a pessoa mais pobre em Israel deve contratar pelo menos dois tocadores de
flauta e uma carpideira”, disse o rabi Judá um século depois. Os lamentado-
res profissionais, em geral mulheres, acompanhavam o esquife da casa até a
sepultura, batendo palmas e cantando lamúrias pungentes.47 Quando Jesus
diz que a menina apenas dorme, os lamentos se transformam em escárnio.
“Todos começaram a rir de Jesus.” As carpideiras representavam os realistas
empedernidos de todas as épocas que decidem quando as realidades empíricas
excluem as possibilidades divinas.
Vários comentaristas argumentam que a informação sobre a menina
estar dormindo deve ser considerada literalmente, ou seja, que essa história
é realmente sobre ressuscitação, e não ressurreição dentre os mortos. Esse
milagre, em especial no século XIX, foi racionalizado como uma “libertação
do enterro prematuro”, e não ressurreição dentre os mortos.48 No entanto,
a afirmação, com certeza, tem de ser entendida de forma figurativa, pois as
carpideiras não tinham o hábito de ser enganadas por pacientes comatosos.
A referência ao dormir pode indicar para Jairo a forma como Jesus quer que
ele veja a filha, e daí a forma como Deus enxerga aqueles que morrem na fé.

47 Str-B 1.521-23.
48 H. E. G. Paulus, D asLeben Jesus ais Grunálage einer reinen Geschichte des Urchistentums
(Heidelberg: C. F. Winter, 1828). Paulus, racionalista detalhista, acreditava na im-
possibilidade de milagres e considerava as leis da natureza com o coexistentes com
Deus. Veja a discussão de seu trabalho em A. Schweitzer, The Q uest o f the Historical
Jesus, trad. W. M ontgomery (London: Adam and Charles Black, 1911), p. 48-57. Para
Paulus, a realização de Jesus nessa presente história foi o pressentim ento de saber
que a menina estava em estado comatoso, e não morta. Nisso, Paulus segue em
essência uma hermenêutica antiga que se estende desde Celso {De medicina, 2.6) até
Apuleio de Madaura {Flórida, 19.2-6) e, por fim, de volta até Plínio {História natural,
7.37), que aplaudiu o médico grego Asclepíades p o r reconhecer, por intermédio
da observação cuidadosa, que um hom em carregado em uma procissão funeral
estava de fato vivo. N o entanto, a tradição de Asclepíades é apenas um paralelo
distante para a presente história. Seu propósito é elogiar um médico sábio, em vez
de apelar para a fé nele; na realidade, não há nenhum papel nem necessidade para
a fé na tradição de Asclepíades. O levantar da filha de Jairo, ao contrário, é sobre
uma criança m orta trazida de volta à vida. A tradição de Apolônio de levantar a
menina de sua “m orte aparente” provavelmente pertence a uma categoria similar
de ressurreições heroicas (Filóstrato, Vida deA p o l 4.45; citado em H C N T , p. 203-
4). As tradições de Apolônio, produzidas por Filóstrato no século III d.C., foram
influenciadas pelo menos em alguma medida pelos evangelhos.
M a rc o s 5.41-42 220

41,42 C o m o ac o n teceu c o m a m u lh e r co m hem o rragia, o c o n ta to físico,


p eg a n d o -a pela m ão, e a palavra p ro fe rid a levantam a criança. “Talita cum i!”
é aram aico; talita é fo rm a fem in in a d a palavra p ara “ ovelha” o u “ jo v em ” , e
“ cu m i” é u m im p erativ o q u e significa “ levante-se” !49 A trad u ção greg a indica
que os prim eiro s leitores em R o m a n ão eram falantes nativos d o aram aico
nem d o h eb raico e n ecessitariam de u m a tradução. A trad u ç ão grega “m e-
nin a” re c o rre a u m te rm o afetuoso. A palavra korasion, dim inutivo d e korê
(um a jov em m u lh e r o u m u lh e r solteira m ajestosa), indica a prim eira infância
“p eq u e n a d am a” . E ssa n o m e n c la tu ra revela a e n o rm e d iferença en tre a pers-
pectiva d e Jesu s em relação à m en in a e a das pessoas q u e lam entavam a p erd a
dessa m enin a. A s referências ao c a m in h a r e à alim entação da m e n in a atestam
de sua to tal recuperação. O efeito d a cura so b re aqueles q u e te ste m u n h a m é,
co m o em suas prim eiras o corrências (1.28; 2.12) extática. A trad u ção d o grego
exestêsan ekstasei, “ a tô n ito s” , trad u z p ro v av elm en te u m infinitivo ab so lu to em
hebraico, refletin d o , p o rta n to , u m a fo n te aram aica o u hebraica subjacente.
(Para a ordem p a r a silenciar, veja em 1.34.)
O que M arco s alcan ço u ao p ô r a h istó ria da m u lh er en tre as p arte s ex-
tern a s d o san d u ích e n a h istó ria d e Jairo? A m u lh er e Jairo só têm u m a coisa
em com um : os d o is são vítim as d e circunstâncias d esesp erad o ras e, à p a rte de
Jesus, n ão têm n en h u m a esperança. C aso contrário, as histórias deles divergem
d e fo rm a c o n tu n d e n te . Jairo tem u m n o m e e p o sição respeitados. E le, co m o
g o v e rn a n te d a sinagoga, tin h a resp ald o suficiente p ara ch am ar Jesu s para
sua casa. A m u lh e r n ão tin h a n a d a disso. O n o m e dela n ão é fo rn ecid o (nem
lem brado), e ela n ã o tem n e n h u m a p o sição social. A única identificação dessa
m u lh e r é su a v erg o n h a, a h em o rrag ia m en stru ai. E la tem d e se ap ro x im ar
d e Jesu s p o r trás, ao p asso q u e Ja iro se ap ro x im a dele face a face. Jairo , em
ou tras palavras, é u m a p esso a d e p o sição e privilégio. C o n tu d o , ele, em um a
típica iro n ia m arcan a, n ão tem n e n h u m a v an tag em c o m relação ao assu n to
q u e in teressa aqui. E a m u lh e r q ue exem plifica a fé, e, n esse aspecto, os
papéis deles são revertidos. E la, ap e sar d e suas circunstâncias em baraçosas,
ab re ca m in h o em m eio à m u ltid ão e ao s discípulos p ara chegar a Jesus. N ad a
— n e m o g ênero, o an o n im a to e a v erg o n h a dessa m u lh er — a im p ed e de

49 F. H o rto n , “N ochm als ephphathainM k 7:34”,Z M P 7 7 (1986), p. 101-8, argum enta


equivocadam ente que ephphatha em 7.37 e talitha koum n o versículo 41 são ordens
mágicas. N e n h u m a dessas expressões é típica de ordens em exorcism os. As duas
são aram aicas, relevantes para os dois contextos, e não para feitiços m ágicos
secretos. A lém disso, os milagres de Jesus não são determ in ad o s pelas palavras
que ele profere, m as pela autoridade de seu relacionam ento filial com D eus.
221 M a rc o s 6.1

ch eg ar a Jesus. A cura e a palavra lib ertad o ra vêm p ara essa m ulher: “ Filha,
a sua fé a cu ro u !” Q u a n d o Jesu s diz: “ N ã o te n h a m ed o ; tão so m en te creia” ,
co m o vo cê acha q ue Jairo deveria e n te n d e r o c o m a n d o p ara crer? Q u e tipo
de fé deveria ter? A re sp o sta é q ue ele deve te r o m e sm o tipo de fé d a m u lh er
co m h em o rrag ia (v. 34)! A m u lh er exem plifica e define a fé para Jairo, o que
significa co n fiar em Jesu s ap esar d e to d as as circunstâncias em contrário.
A quela fé q ue n ão c o n h ece lim ites — n em m esm o o levantar da m o rte u m a
m en in a m o rta!50

O P R O F E T A S E M H O N R A ( 6 . i 6 ‫־‬a)

Jesu s deixa ag o ra o m ar d a G alileia p ara visitar sua cidade, N a z a ré (1.9),


cerca d e q u a re n ta q u ilô m etro s a su d o este de C afarnaum . Jesus, em G enesaré,
cerca d e seis q u ilô m e tro s a su d o este d e C afarn au m , p eg a a m aio r ro ta d e co-
m ércio q u e co n tin u av a p o r cerca d e o n ze q u ilô m e tro s m ais a sul d e M agadã
e, depois, seguia a o este através da ab e rtu ra n o s p en h asco s ín g rem es de A rbel
e até os C hifres de H a ttin o n d e d o b ra p ara o sul até N a zaré.51 A via M aris
(C am inho d o M ar), c o m o a estrad a é co n h ecid a, era a principal ro ta en tre o
m ar M ed ite rrâ n e o e D a m a sco , a n o rte. A m u d an ça de lugar é ac o m p a n h ad a
pela m u d an ça d e te o r d a narrativa. Jesus, nas histórias precedentes, d em o n stra
seu se n h o rio so b re a natu reza, os d em ô n io s e a m o rte. N o en tan to , Jesus, em
m eio a seu p o v o em N azaré, d ep ara-se c o m a c o m p re e n são equivocada e a
rejeição. A té agora, são as m u ltid õ es q u e se su rp re e n d e m com a au to rid ad e
de Jesu s (1.22; 5.20; 6.2), m as, em N azaré, é Jesu s q u e se su rp re en d e co m
a d escren ça d o povo. A d escren ça e o p o sição em N a z a ré p re p ara m p ara o
d estin o de Jo ã o B atista d ian te de H e ro d e s A n tip as (6.14-29) e p ara o d estin o
p o sterio r d e Jesu s d ian te d o S inédrio e d e P ô n cio P ilatos (14.43ss.).

1 O relato de M arcos d e q u e Jesus “ foi p ara a sua cidade, aco m p a n h ad o


dos seus discíp u lo s” é u m a descrição clássica de u m rabi judeu itin eran te co m
seu séq u ito d e discípulos-aprendizes. H á m e n o s a dizer so b re sua cidade. O
ap ó sto lo P au lo p o d ia g ab ar-se q u e sua cidade natal, T arso, era u m a “ cidade
im p o rta n te d a Cilicia” (A t 21.39), m as n ã o era possível dizer o m esm o so b re
Nazaré. E s ta n ã o é m en cio n a d a n o A n tig o T estam en to , n e m em Jo sefo

50 Veja J. R. E dw ards, “M arkan Sandwiches: T h e Significance o f In terp o latio n s in


M arkan N arratives” , N o v T A (1989), p. 203-5.
51 D. A. D orsey, The Roads and Highways o f A ncient Israel (Baltimore: Jo h n s H o p k in s
University Press, 1991), p. 104.
M a rc o s 6.2-3 222

n em n a literatu ra rabínica d o M ish n á e d o T alm ude. A cidade, além das d o ze


referên cias a ela n o N o v o T estam e n to , é m en cio n ad a pela prim eira vez p o r
u m escrito r o b scu ro , Jú lio A fricano, cerca d e dois séculos dep o is d o nasci-
m e n to d e Jesus. Só n a ép o c a d e C o n sta n tin o é q u e se c o n stru iu u m a igreja
em N a zaré (325 d .C ). A s escavações arqueológicas abaixo das im p o n en tes
igrejas d a A n u n ciação e d e São Jo sé d e N a zaré d esc o b riram u m a série de
g ru tas d a ta n d o d a é p o ca d e Jesus. O re tra to resu ltan te é d e u m p e q u e n o vi-
larejo co m casas d e b a rro espalhadas em cerca de p o u c o m ais d e 242 m etro s
q u ad rad o s d e u m a en co sta p e d re g o sa co m u m a p o p u lação de, n o m áxim o,
q u in h en tas p esso as.5253
D u ra n te a ju v en tu d e de Jesus, H e ro d e s A ntipas, tetrarca d a Galileia, re-
c ru to u artesão s d os vilarejos circu n v izin h o s p ara a c o n stru ç ã o de sua capital
em Séforis, cerca d e p o u c o m ais d e seis q u ilô m etro s a n o rte d e N azaré. N ã o
p o d em o s dizer se H ero d es A ntipas utilizou os serviços de Jo sé e Jesus, em bora
isso seja d u v id o so .33 N o en tan to , p arece m uitíssim o provável q u e Jesu s teve
p elo m e n o s algum c o n ta to co m o s g en tio s em N a zaré e em lugares pró x im o
dessa cidade. A G alileia, p o r séculos ap ó s a co n q u ista assíria d o R eino do
N o rte em 721 a.C., p a sso u a te r u m a p o p u laçã o p re d o m in a n te m e n te gentia,
co m u m a p eq u e n a p o rç ã o d e co lo n o s judeus que e n tra ram nessa área só
d ep o is da rev o lta d o s m acab eu s n o século II a.C. O evangelho de M ateus
refere-se à região c o m o “ G alileia d o s g en tio s” (4.15).

2 ,3 Jesu s, d e a c o rd o co m seu co stu m e, en sin a “ na sinagoga” , o u seja, no


cerne d a co m u n id ad e judaica. A sab ed o ria e ob ras p o d ero sas de Jesus cativam
m ais u m a vez as p esso as da cidade. O s relatos de seu ex traordinário carism a e
influência c o m o m estre são m ais relevantes d o q ue p o d e m p arece r d e início.

52 Sobre N azaré, vejaj. Strange, “N azareth ” ,M A D 4.1050-51; J. M u rp h y -O ’C onnor,


The Holy Εαηά An Archaeological Guidefrom Earliest Times to 17007 (O x fo rd /N e w
York: O x fo rd U niversity Press, 1992), p. 374-77.
53 A recente escavação em Séforis estim ulou alguns estudiosos a enfatizar sua in-
fluência sobre os vilarejos circunvizinhos com o N azaré, m as a influência real era
provavelm ente m ínim a, pelo m enos de Jesus e sua família. O N o v o T estam ento
nunca registra Jesus indo a Séforis ou T iberíades, o u tro cen tro h ero d ian o im por-
tante da Galileia. A vida no vilarejo era dom inada pelo trabalho árduo seis dias p o r
sem ana, e Séforis ficava além do limite de mil jardas de jornada, distância perm itida
a ser feita n o sábado. E . P. Sanders, The Historical Figure of Jesus (L ondon: A llen
L an e/P en g u in Press, 1993), ρ. 104, possivelm ente está correta em dizer que “ não
é provável que m uitos residentes de N azaré passassem m uito tem p o em Séforis” .
223 M a rc o s 6.2-3

N e n h u m p o v o p o d e ría se vangloriar d e ter m ais p ro fetas, escribas e rabis


instruíd os, c o m o ta m b ém h o m e n s sábios, q ue os judeus. O cam p o em que
Jesus se d istinguiu c o m o m estre era, em o u tras palavras, b astan te co n co rrí-
do e com petitivo. N o en tan to , seu p restígio cau so u u m dilem a p ara aqueles
fam iliarizados c o m ele, p ois n ão fo ra ap ren d iz d e n e n h u m rabi fam o so nem ,
tam p o uco , sua sab ed o ria p o d ería ser co n sid erad a c o m o p ro v en ien te d e sua
casa (Jo 7.15).54 L em os m ais ce d o so b re o m arav ilh am en to d a sinagoga em
C arfarn au m c o m o en sin o d e Jesu s (1.22). O p o v o de N a z a ré tam b ém fica
adm irado, m as negativam ente. Já o b se rv a m o s u m a o b stru ç ã o ao m inistério
de Jesus em 3.21 q u e p o d e ter v in d o d e N azaré. O tex to p re sen te segue em
um a veia similar. O p o v o d a cidade, em vez d e ce le b rar o sucesso de Jesus,
d em o n stra seu ceticism o e te n ta desacred itar o m in istério de Jesus. E les não
se referem a Jesu s p elo n o m e, m as u sam um tra ta m e n to d istan te que de-
m o n stra a d esc o n fian ça deles, “ ele” .55 A lém disso, ficaram “ escandalizados” ,
falhando e m h o n rá -lo c o m o um p ro fe ta (v. 4) e exibiram u m a su rp re en d en te
“in credulidade” (v. 6).
A incredu lid ad e de N a za ré fica m ais ev id en te n o versículo 3: “ N ã o é este
o carpinteiro, filho de M aria [...]? ” A s versões m ais re m o tas desse versículo
alteram a o rd e m das palavras, em q u e Jesu s n ã o é carp in teiro n em filho de
Maria, com o, p o r exem plo: “ N ã o é este o filho d o ca rpinteiro?” (M t 13.55).56
A palavra g re g a p ara “ ca rp in teiro ” , tektõn, significa literalm ente aquele que

54 N ão estudar com rabi naquela época equivalia a não ter um diplom a universitá-
rio. “ M esm o que um h o m em tenha lido a E scritura e aprendido a M ishná, m as
não serviu com o talmidai hakamim (‘aprendiz de um m estre’), ele é u m am-ha’aret^
(‘co m u m ’)” {b. Ber. 4 7 b). Veja tam bém K . H . R engstorf, “mathêtês”, T D N T 4.434.
55 R. G undry, M ark, p. 290, explora o to m desd en h o so dos p ro n o m es n o s versícu-
los 2,3: “ ‘D e o n d e lhe vêm estas coisas?’, perguntavam eles. ‘Q u e sabedoria é esta
que lhe foi dada? E estes milagres que ele faz? N ã o é este o carpinteiro, filho de
M a ria [...]” ’.
56 Lucas 4.22 traz: “N ão é este o filho de José?” (veja tam bém Jo 6.42). Existem
tentativas esporádicas de assimilar o texto de M arcos 6.3 com as palavras de Ma-
teus 13.55, m as o peso da evidência textual, incluindo “todas as uncíais, m uitas
minúsculas e im portantes versões antigas” , apoia a leitura de 6.3 co n fo rm e impres-
sa (veja M etzger, T C G N T , p. 88-89). A tendência de refinar as palavras de M arcos
argum enta em favor da prioridade de M arcos, pois p odem o s explicar p o r que, se
M ateus e Lucas seguem M arcos, eles se esforçariam para aliviar possíveis ofensas
aos leitores alterando as palavras de M arcos, ao passo que n ão p o d em o s explicar
p o r que M arcos, se este segue M ateus e Lucas, alteraria um a leitura aceitável para
torná-la ofensiva.
M a rc o s 6.2-3 224

faz o u p ro d u z coisas — em geral d e m adeira, m as algum as vezes de pedra,


daí u m canteiro, o artífice q u e lavra p e d ra de cantaria (2Sm 5.11, LXX).
C o n sid e ran d o -se a escassez d e m ad eira e prevalência de p ed ras n a Palestina,
n ão seria d e su rp re e n d e r se o ofício d e Jesu s ta m b ém incluísse trabalhos com
p ed ra e co m m ad eira.57 N a sociedade judaica, n ão havia ab so lu tam en te nada
aviltante em relação ao trab a lh o m anual. D aí, n ão era u m in su lto cham ar
Jesu s d e carp in teiro. D e a c o rd o co m o T alm ude, d e n tre as tarefas q u e u m pai
devia a seu filho, estavam a circuncisão, a in stru ç ã o n a T orá, o en sin o d e um
ofício m anual e a b u sca p o r u m a e sp o sa .58 C o n tu d o , n o m u n d o g en tio — e
isso incluía o m u n d o d o s leito res d e M arcos — d esignar Jesu s d e “ carpintei-
ro ” n ã o era p a rtic u la rm e n te u m elogio e p o d e ría se r c o n sid erad o c o m o um a
tentativ a d e desacreditá-lo.59
A in d a m ais q u estio n áv el é a ex p ressão “ filho de M aria” . O judaísm o era
u m a cu ltu ra p atro n ím ica. O n o m e d e u m pai ligado ao n o m e d e u m filho
era c o m u m e n ecessário c o m o o so b re n o m e o é h o je (e.g., Lc 4.22; J o 6.42),
o n o m e d o pai era retid o , c o m o o n o m e da fam ília o é hoje, m esm o q u an d o
o pai já n ã o estivesse vivo. A ausência d o n o m e d e Jo sé n o versículo 3 p o d e
in d icar q ue Jo sé já m o rre ra , e m b o ra isso n ão seja u m a certeza c o m o su p õ em
m uito s co m en taristas, p o is J o ã o 6.42 p re ssu p õ e q ue ele ainda estava vivo. N a
ép o ca de Jesus, os h o m en s às vezes recebiam o n o m e das m ães, em particular
q u an d o a m ulher era a paren ta mais conhecida e evid en tem ente sem o o p ro b io
d a ilegitim idade ligada a esse n o m e.60 N o A n tig o T estam en to , p o r exem plo,

57Justin o M ártir, Dial. Trypho 88.8, n o entanto, afirm a que Jesus fazia “ arados e
jugos” , com preen dendo, p o rtan to , tektõn n o sentido de carpinteiro.
58 Str-B 2.10-11.
59 O d etrato r sincero do cristianism o n o século II, Celso, z o m b o u dizendo que o
fu ndador da nova religião não era nada, só um “carpinteiro p o r ofício” (O rígenes,
Contra Celsum 6.34,36). R. M acM ullen, Roman SocialRelations: 50 B. C. toA.D. 584
(N ew H a v e n /L o n d o n : Yale U niversity Press, 1974), p. 107-8,138-41, m o stra que
as ocupações com o as de tecelões e carpinteiros traíam as origens plebeias e eram
com o grãos para serem m oídos pelo “preconceito sentido pelas classes superiores
e letradas em relação às classes baixas” . E sse julgam ento, n o entanto, n ão deve ser
forçado indevidam ente. O esnobism o da elite minoritária dos aristocratas não pode
ser pressuposta na m aioria do p ovo com o um todo, a m aioria dos quais, com o
presum ivelm ente os leitores de M arcos, tam bém eram da classe trabalhadora.
60 Veja Tal lian, “ ‘M an B o rn o f W om an...’ (Job 14:1): T h e P h en o m en o n o f M en
Bearing M etronym es at the T im e o f Jesus”, NovT34 (1992), p. 23-45. T am bém , P.
H ead, Christology andthe SynopticProblem:An Argumentfor Markan Priority, SNTSM S
94 (Cam bridge: C am bridge U niversity Press, 1997), p. 66-83.
225 M a rc o s 6.2-3

Joabe, A bisai e A sael fo ram re p etid as vezes (26 vezes) referidos c o m o “ os


três filhos de Z e ru ia ” (2Sm 2.18), irm ã d e D avi ( lC r 2.16). P ressu p õ e-se, n o
en tan to , q u e o n o m e d e Z e ru ia deve su a p re sen ça nesse caso a seu irm ão
fam oso. A té m e sm o o vínculo n arrativ o óbv io co m D avi n ão é suficiente para
rem o v e r as suspeitas so b re a referên cia na m e n te da m aioria d os estudiosos
m oderno s.61 N a prática real, cham ar um a pessoa de filho de u m a m ulher, com o
os n az are n o s fazem aqui, n ão era n o rm a l n o judaísm o e era quase certam en te
um insulto. A afirm ação d e alguns estu d io so s de q ue ch a m ar Jesu s de “ filho
de M aria” equivalia a ch am á-lo d e b a stard o é p ro v av elm en te u m exagero,62
m as “ filho de M aria” , ju n to co m o m au a c o lh im en to q u e Jesu s receb e em
N azaré (veja w . 5,6), é claram ente questionável, pro v av elm ente desrespeitoso
e p o d e até insinuar ilegitim idade. A polêm ica judaica su b seq u en te o acusará de
fato d e ilegítim o q u an d o , em re sp o sta ao e n sin am e n to cristão d o n ascim en to
virginal, se acusa q u e Jesu s n asceu de fato fora d o leito m atrim o n ial, p o is sua
m ãe fo ra sed u zid a p o r u m g en tio ch am ad o P an d era.63
S u p õ e-se algum as vezes q ue a referên cia de M arcos a Jesu s c o m o o
“ filho d e M aria” é u m a referên cia o b líq u a ao n asc im e n to virginal. Isso, n o
en tan to , p arece d uvidoso. E m M arcos, de q u alq u er fo rm a , n ão h á referência
ao n a sc im e n to virginal, n em , tam p o u co , esse p re se n te tex to ten ta explicar
o pap el d e Jo s é n a família, co m o , p o r exem plo, em L ucas 3.23.64 A dem ais, o
c o n te x to d e sd e n h o so em que o c o rre “ filho de M aria” dificilm ente co m p o rta
a h o n ra d o n asc im e n to virginal.
H á, ju n to co m M aria, m en ção ao s irm ã o s e às irm ã s d e Je su s. O n o m e
das irm ãs n ã o é m e n cio n a d o o que, d e ac o rd o co m o co stu m e judeu, em
geral significava q ue eram casadas. D o s irm ão s T iago, Jo sé, Ju d as e Sim ão,
só T iago, q u e m ais tard e se to rn o u o líder da igreja em Jeru salém , e Ju d as são

61 “Pode haver m ais aqui que apenas um vínculo narrativo com D avi.” T am bém , P.
L. M cC arter, SecondSamuel, AB (G arden City, N.Y.: D oubleday, 1984), p. 96.
62 E. K lo sterm an n , DasMatthdusevangeliurrP■, H N T 4 (Tübingen: J. C. B. M o h r, 1927),
p. 126; E . Stauffer, “Jeschu ben Mirjam: K ontroversgeschichtliche A n m erkungen
zu M k 6,3” , em Neotestamentica et Semítica: Studies in Honour of Matthew Black, eds.
E. Ellis e M. W ilcox (E dinburgh: T. & T. Clark, 1969), p. 19-28; F. W. Beare, The
GospelAccording to Matthew: Λ Commentary (O xford: Basil Blackwell, 1981), p. 319.
63Encjud (1971), 10.14-17. Veja tam bém R. T. H erfo rd , Christianity in Talmud and
Midrash (L ondon: W illiams and N orgate, 1903), p. 112-15.
64 “ [Jesus] era considerado (nomi^ein) filho d e jo s é ” (Le 3.23). Ju stin o M ártir, da mes-
m a form a, Dial. Trypho 88.8: “ Q u an d o Jesus veio ao Jordão , sendo considerado
(nomi^eiri) ser o filho d e jo s é , o carpinteiro [...]” .
M a rc o s 6.2-3 226

m en cio n a d o s d e no v o .65 P o r v o lta d o século II d .C , a reverência pela família


santa e em especial pela san tid ad e d e M aria, re su lto u em irm ão s e irm ãs de
Jesus sen d o c o n sid erad o s c o m o filhos de Jo sé de u m casam en to anterior.66
T an to a trad ição cató lica-ro m an a q u a n to a o rto d o x a , fu n d am en tad as nos
credos d o século IV e p o sterio re s, ch am am M aria d e “V irgem M aria” , se-
g u in do a visão d e q u e os irm ão s d e Jesu s eram m eio s-irm ão s e m eias-irm ãs.
N o en tan to , os arg u m e n to s d e q u e Jesu s era filho ú n ico fu n d a m e n tam -se em
dogm as po sterio res. O sen tid o claro d o versículo 3, e d o N o v o T estam e n to
em geral, é d e q u e Jesu s era o filho m ais v elh o do s cinco irm ão s e de pelo
m en o s duas irm ãs, to d o s eles filhos naturais d e Jo sé e M aria.67

65 Tiago: M ateus 13.55; Lucas 5.16; A tos 12.17; 15.13; 21.18; IC oríntios 15.7;G álatas
1.19; 2.9,12; T iago 1.1 ;Ju d a s l;J o s e f o ,A n t. 20.200.Ju d as:Ju d as 1(?).
66 Prot. Tg. 9:2; e o Evangelho de Pedro, co n fo rm e citados em O rígenes, Comentário sobre
M ateus 10.17. R. B auckham , “T h e B rothers and Sisters o f Jesus: A n E piphanian
R esponse to J o h n P. M eier” , C B Q 56 (1994), p. 686-700, sugere q ue “ filho de
M aria” p o d e te r a intenção de distinguir Jesus dos filhos de Jo sé de um casam ento
anterior. E ssa sugestão interessante, no entanto, é co n trapo sta pelo co n tex to dos
versículos 2,3 que desonram Jesus. O sentido sugerido p o r B auckham sugere que
dificilm ente essa era um a razão para “se ofen d er” .
67 A lém das referências acim a a T iago, o N o v o T estam ento m enciona os irm ãos
de Jesus em 3.32; M ateus 13.55,56; João 2.12; 7.5. O argum ento que adelphos, no
versículo 3, significa “p rim o ” não é sustentável. O grego tem um a palavra distinta
para “ prim o ” (anepsios; e.g., em Cl 4.10). E m b o ra nem o hebraico nem o aram aico
tenham um a palavra para “prim o” , essas duas línguas costum eiram ente se referiam
ao prim o com o “um filho de u m tio” (heb. ben doá, aram . bardad). A lém disso, a
L X X nunca traduz essas duas expressões com o “irm ão ” o u “irm ã” . É verdade
que adelphos algumas vezes significa mais que irm ão de sangue, com o, p o r exemplo,
em G ênesis 29.12; R om anos 9.3 (“ p arente” , “m eus irm ãos, os de m inha raça”);
M ateus 5.22,23 (próxim o); M arcos 6.17,18 (m eio-irm ão o u filho do p ad rasto ou
m adrasta). N esses casos, o co n tex to tem de d eterm inar o sentido, m as, em 6.3,
não há indício de que adelphos deveria ser traduzido de o utra fo rm a que seu sentido
natural, “irm ão de sangue” . Vários argum entos foram p ro p o sto s para sugerir que
T iago e jo s é , m encionados em 15.40 não são os m esm os irm ãos m encionados
em 6.3, nem a M aria ali m encionada é a m ãe de Jesus. Veja M. B arnouin, ‘“M arie,
m ere d e Jacques et d e jó s e ’ [Marc 15.40]” , N T S 42 [1996], p. 472-74; R. B row n,
Responses to 101 Questions on the Bible (N ew York: Paulist Press, 1990), 92-97; e J.
Fitzm yer, BRev 7 /5 (1991), p. 43. E ssa últim a pergunta não p o d e ser respondida
com certeza, mas, em m eu julgam ento, o contexto favorece a visão de que a Maria,
o T iago e o Jo sé d e 15.40,47; 16.1 são os m esm os indivíduos m encionados em
6.3. Veja mais sobre a discussão desse assunto em 15.40.
227 M a rc o s 6.4-6a

“ E ficavam escandalizados p o r causa dele” , afirm a M arcos. A palavra


para “ escan d alizad o s” origina-se d o te rm o g re g o skandalon, cujo sen tid o é
“p e d ra d e tro p e ç o ” . O v erb o (gr. skandali^eiti) significa “ causa de tro p eç ar” e,
n o co n te x to atual, q u e r d izer ser “ d issu ad id o ” o u até m e sm o “ rep elid o ” p o r
Jesus. H á o ito o co rrên cia s d e skandali^ein n o evangelho de M arcos; em cada
caso, ele designa o b stru çõ e s que im p ed em a p esso a de v ir para a fé em Jesus.68
U m a p e d ra de tro p e ç o p ara a fé, u m a assin atu ra d o tem a em M arcos, é u m
grave p ro b lem a . O “ esc[ándalo]” d o v ersículo 3 d e m o n stra que a perplexi-
d ad e d o p o v o em N a z a ré n ão se deve à fé, m as à in cred u lid ad e e à oposição.

4 Jesus, em face da d escren ça e rejeição, cita u m p ro v é rb io de q u e o


p ro fe ta é h o n ra d o em to d o s os lugares, exceto em sua p ró p ria cidade. A ideia
e as palavras u sadas nesse p ro v é rb io n ã o eram in c o m u n s n a A ntiguidade,
incluindo os co n tex to s judaicos e g reco -ro m an o s.69Jesus, p o rta n to , utiliza um
d ito de sab e d o ria c o rre n te em sua é p o c a e o aplica aos três círculos sociais
co n c ên trico s em N azaré: sua cidade, seus p aren tes e sua p ró p ria casa. C ada
u m d o s círculos se to rn a m ais restrito e m ais pessoal, esten d en d o -se à p ró p ria
casa. O s p ró p rio s irm ã o de Jesus, d e a c o rd o c o m Jo ã o 7.5, n ão acreditavam
nele d u ra n te seu m inistério, e o u v im o s q ue só T iag o (e talvez Judas) veio para
a fé ap ó s a m o rte e ressurreição d e Jesus. V em os em 3.19 q u e a o p o sição a
Jesus se infiltraria até m esm o n o círculo d o s a p ó sto lo s; aqui, tam b ém , ela
se infiltra em sua p ró p ria casa. A fam ília d e Jesus, m ais u m a vez (3.31-35),
são o s d e fora, e ele é u m e stra n h o em su a p ró p ria casa. P o r conseguinte, a
exposição a Jesu s e ao evangelho n ã o era g aran tia d e fé; n a verdade, à p arte
da fé, a expo sição ao evangelho im uniza co m tan ta frequ ência q u an to vivifica.

5,6a M arco s diz ab e rta m e n te q u e Jesu s “ n ão p ô d e fazer ali n e n h u m


m ilagre” .70 M arcos está m ais d isp o sto a a trib u ir u m a h u m an id ad e co n tu m az
a Jesus q u e q u alq u er o u tro esc rito r d o evangelho. O Jesus de M arcos, de
fo rm a d istin ta d o s evangelhos g n ó stico s p o sterio re s q u e d escrev eram Jesus

68 4.17; 6.3; 9.42,43,45,47; 14.27,29.


69N o N ovo Testamento: Mateus 13.57; Lucas 4.24; 13.33; João 4.44. Em outros
textos: Evg. Tomé, 31; P. Ox., 31.1; Filóstrato, Vida deApol., 1.354.12 (Carta 44);
Plutarco, Moralia, “Exílio”, 7.13; Dião Crisóstomo, Discursos, 47.6.
70Mateus 13.58 transfere a falha da inabilidade de Jesus para a “ falta de fé” do povo
da cidade. Isso, mais uma vez, argumenta pela prioridade de Marcos, pois podemos
explicar com facilidade por que Mateus alteraria Marcos, mas não conseguiriamos
explicar o reverso.
M a rc o s 6.4-6a 228

c o m o im acu lad o pela h u m an id ad e ,71 ca m in h a pelas m esm as estradas o n d e


c a m in h a m os ca m p o n e se s e os c o b ra d o re s d e im p o sto s, o u p u b lícan o s,
dep ara-se c o m o cansaço (4.38), a d ecep ção (w . 5,6), a ignorância (13.32), o
m ed o (14.34) — e até m esm o a incapacidade d e influenciar sua p ró p ria família.
A ênfase da co n clu são recai so b re a n ão disp osição d o p o v o dessa cidade
em crer. Som os c o n fro n tad o s m ais u m a vez co m o m istério d o R eino de D eus:
alguns daqueles q u e tiveram to d as as o p o rtu n id a d e s de crer n ão o fizeram , e
o u tro s que, c o m o o g erasen o e n d e m o n in h a d o , n ã o se esperava q u e acredi-
tariam p assam a crer. N in g u é m p o d e p re v er q u em são os q u e p e rte n c e m ao
círculo ín tim o e os d e fora, talvez n em m esm o Jesu s p u d esse p re v er já que
“ ficou ad m ira d o co m a in cred u lid ad e deles” .
“ F ic o u ad m ira d o co m a falta d e fé deles.” D e u s se su rp re en d e c o m a
d u re za de co ração d a h u m an id ad e e sua relutância d e crer nele, e n ão c o m a
pecam in o sid a d e e p ro p e n sã o p ara o m al. E ssa d u re za d e co ração é o m aio r
p ro b lem a n o m u n d o , e n isso re p o u sa o ju lg am en to divino so b re a hum anida-
de.72A h u m an id ad e q u e r u m sinal esp etacu lar d e D e u s, ou, c o m o o d em ônio,
u m a g ran d e d e m o n stra ç ã o d o p o d e r d ivino (M t 4.1 -11; Lc 4.1 -13). C o n tu d o ,
ela n ão q u er q u e D e u s se to rn e u m ser h u m a n o c o m o u m de n ó s (jo 1.11). O
p o v o d e N a z a ré vê só u m carpinteiro, só u m filho d e M aria, só o u tro d os filhos
d o vilarejo q u e cresceu e v o lto u p ara u m a visita. Se ao m en o s D e u s fosse
m en o s co m u m e m ais único, e n tão eles creriam . A im agem de serv o d o F ilho
é m u ito p ro saica p ara am ealhar a credulidade. D e u s se identificou m uitíssim o
co m o m u n d o p ara q ue o m u n d o o visse, m u itíssim o co m a cidade de N azaré
p ara que esta re co n h ecesse em Jesu s o F ilh o de D eus. A h u m an id ad e q u er
algo d istin to d aquilo q u e D e u s dá. O m aio r o b stácu lo à fé n ão é a falha de
D e u s em agir, m as a relutância d o co ração h u m a n o p ara aceitar o D e u s que
se digna a se ap re se n tar a n ó s em apenas u m carpin teiro, o filho de M aria.

71 C om pare os relatos extravagantes e fantasiosos do século III emAios deJoão (93),


em que Jesus, “ cuja substância era im aterial e incorpórea, co m o se não existisse
de form a algum a” , não deixou pegadas na areia.
72 E m janeiro de 1982, perguntei a H elm u t Thielicke se ele conseguiría identificar
o pio r m al que experim entou n o T erceiro Reich na A lem anha. Sua resposta: “ O
coração hum ano não redim ido!”
capítulo seis

Testemunho para os Judeus


M A R C O S 6 . 6 b - 7.23

Jesu s, ap ó s s e t reje itad o em N a z a ré (tam b é m L c 4.29), c o m eç a sua


terceira viagem de p reg ação n a G alileia, d e ac o rd o co m M arcos (1.14,39).
N essa viagem , ele co m eça a tran sferir resp o n sab ilid ad e p ara seus discípulos.
Jesus n ã o tin h a in ten çã o de ser u m artista solo n a o b ra p ara a qual D e u s o
ch a m o u a realizar. A n tes, d esd e o início, ele c h a m o u (1.16-20), d esignou
(3.13-19) e en sin o u (4.10-12) u m g ru p o seleto de seguidores. E m 6.7-13, ele
co n tin u a seu tre in a m e n to e m u m a m issão teste em q u e os discípulos p a rte m
c o m o re p re se n ta n te s o u agentes d e Jesus, co m issio n ad o s, em p o d erad o s e
in stru íd o s p o r ele.
T o d as as histó rias n essa seção se p assam nas cercanias da co sta n o ro e ste
d o m ar d a G alileia. A lém d a m issão d o s D o z e , essas narrativas incluem o ali-
m en ta r d e cin co m il pessoas (6.31 -44), a aparição d e Jesu s aos D o z e em m eio
à tem p e sta d e n o m ar da G alileia (6.45-52), a cura d e p esso as nas m ultidões
que o seguiam (6.53-56) e o conflito, q u e co n clu i essa seção, en tre Jesu s e os
fariseus q u a n to “ à trad ição dos líderes religiosos” o u a tradição oral (7.1-23).
E ssas histórias fo rm a m o te ste m u n h o final d e Jesu s n a G alileia judaica, pois
ele, ap ó s a co n tro v érsia co m os fariseus so b re a trad ição d o s líderes religiosos
em 7.1-23, a b a n d o n a a região, re to rn a n d o apenas d e fo rm a in te rm ite n te e
secreta antes d a jo rn ad a final p ara Jerusalém .

O C U S T O D O D IS C IP U L A D O ( 6 . 6 b 3 0 ‫)־‬
A m issão d o s D o z e é o tem a d efin id o r de 6.6b-30. Isso é com u n icad o
p o r o u tro san d u ích e m arcan o , em q ue o m artírio de J o ã o B atista (6.14-29) é
p o sto en tre o envio d o s D o z e (6.6b-13) e o re to rn o deles (6.30). Jo ã o B atista
foi m e n c io n a d o pela ú ltim a vez em 1.14, q u a n d o M arcos an u n cio u o início
M a rc o s 6.6b-7 230

d o m in istério p ú b lico d e Jesu s em c o n ju n çã o com a prisão d e João. M arcos


tem ain da d e relatar o d estin o d e Jo ã o B atista nas m ão s d e H e ro d e s A ntipas.
0 fato d e M arcos in serir n o c o n te x to d a execução d e J o ã o B atista o envio e
re to rn o d o s D o z e em su a p rim eira m issão fo rça o leito r a co n sid erar o que
a m o rte de Jo ã o significa p a ra o d iscipulado e a m issão co m Jesus.

6b,7 Jesus em b arca m ais u m a vez em u m circuito de m issão e passa “ a


p erc o rre r os p o v o ad o s, e n sin a n d o ” (1.14,39; ta m b é m M t 9.35). D e sd e o iní-
cio, o elem e n to d efin id o r d e seu m in istério é o ensino. Jesu s é p o p u larm e n te
co n c eb id o c o m o e m p re e n d e n d o u m m in istério d e “p re sen ça” o u d e com -
paixão e cura. E stes eram de fato elem en to s im p o rta n tes d e seu m inistério,
m as n ão identificam o p ro p ó s ito d o m in a n te de seu m inistério que, d e aco rd o
co m M arcos, era ensinar. P ratica r u m a ação, até m e sm o realizar u m m ilagre,
n ão exige n ecessariam en te q u alq u er c o m p ro m isso d aqueles q u e a observam .
E stes p o d e m , se assim esco lh erem , p e rm a n e c e r apenas im p ressio n ad o s, sem
co n sid erar a possível relevância d o ev e n to p a ra a vida deles. M esm o se co n -
sideram o ev e n to em m ais detalhes, p o d e m se eq uiv ocar em sua relevância
(e.g., 3.22). C o n tu d o , o e n sin o envolve a “ palavra” (2.2), e isso ab re um a
janela m ais precisa e m ais clara p ara a p e sso a e m issão de Jesu s e, c o m isso,
a possibilid ad e d e u m a co m p re en são e c o m p ro m isso m aiores.
Jesus, co m a au to rid a d e filial, re ú n e os discípulos e os envia. T a n to o
re u n ir (gr. proskalein; N V I, “ ch a m a n d o ”) q u a n to o enviar (gr. apostelleiri) defi-
niram a com issão apostólica em 3.13,14 (veja a discussão d os term o s ali) e são
atualizados n a p re se n te m issão. A lém d o q u e foi d ito so b re o “ envia[r]” em
3.13,14, p o d e m o s ac resc en tar q u e há p o u c a evidência de que os rabis judeus
enviavam seus discípulos co m o Jesu s o faz aqui, em n o m e d e seu m estre, m as
sem a p re sen ça deste. H avia p elo m en o s alguns esfo rço s de p ro selitism o em
m eio aos judeus (M t 23.15), m as estes parecem te r sido iniciativas particulares,
e n ão au to rizad as p o r u m c o rp o d e co m issio n am en to .1 P o rtan to , Jesu s n ão
só é ú n ico ao ch a m a r os discípulos p ara si m esm o , e n ão p ara a T orá, m as
tam b é m é ú n ico ao enviá-los em seu n o m e e co m sua autoridade. 1

1 Veja K . H . R engstorf, “apóstolos”, T D N T 1.418: “D eve ser enfatizado co m firm eza


que os m issionários judeus, dos quais havia um b o m nú m ero na época de Jesus,
jamais são cham ados de shelühim [“ apóstolos’J e que, em relação a eles, as pala-
vras shelak [“ enviar”] e apostellein [“enviar”] não desem pen h am n en h u m papel. O
trabalho deles, n o sentido mais estrito, acontecia sem autorização da com unidade
e, p o rtan to , tinha u m caráter privado. [...] P o r conseguinte, n ão é possível falar
de ‘apó stolos’ na época de Jesus” .
231 M a rc o s 6.6b-7

O e n v io d o s D o z e p a re c e s e r u m a a titu d e p r e m a tu r a e p o d e n o s p e g a r
d e s u rp re s a , p o is o q u e o b s e rv a m o s d o s d isc íp u lo s a té o m o m e n to n ã o foi
tra n q u iliz a d o r. A té aq u i, eles p r o c u r a r a m im p e d ir a m is s ã o d e Je s u s (1.36-
39), e x a s p e ra ra m -s e c o m ele (4.38; 5.31) e a té se o p u s e r a m a ele (3.21). A
p e rc e p ç ã o d eles d e J e s u s é — e c o n tin u a rá a s e r — m a rc a d a p e la c o m p re e n -
são e q u iv o c a d a (8 .14 -2 1). A d is p o s iç ã o d e J e s u s p a ra to le r a r a n a tu re z a e
c o m p o r ta m e n to in tra tá v e is d e se u s s e g u id o re s é o u tr o te s te m u n h o d e su a
h u m ild a d e d iv in a. O e n v io d e s s e s in d iv íd u o s e m p a rtic u la r — e, n e s s e es-
tágio, d a c o m p r e e n s ã o d e le s d e J e s u s — te stific a d o s c re n te s c a u s a d o re s d e
p ro b le m a s n a ig re ja d e M a rc o s, n a v e rd a d e d o s c re n te s d e to d o s o s te m p o s ,
d e q u e o c u m p r im e n to d a P a la v ra d e D e u s n ã o d e p e n d e d a p e rfe iç ã o n e m
d o m é r ito d o s m issio n á rio s, m a s d o c h a m a d o a u to rita tiv o p o r J e s u s e d o fa to
d e ele o s e q u ip a r p a r a o m in isté rio .2
E n v ia r o s d isc íp u lo s e m d u p la s se a ju sta v a a o c o s tu m e ju d a ic o (e.g., E c
4 .9 ,1 0), c o s tu m e e sse q u e c o n tin u o u n a ig re ja p rim itiv a .3 V ia ja r e m p a re s e ra
v a n ta jo s o e m v á rio s a sp e c to s : fo rn e c ia c o m p a n h ia e a c o n s e lh a m e n to e n tre
o s p a re s, f o r ta le c e n d o c a d a u m d o s d o is c o m o s d o n s c o m p le m e n ta re s u m
d o o u tro . T a m b é m b e n e fic ia v a o s o u v in te s, p o is n o m u n d o ju d a ic o “ q u a lq u e r

2 O apóstolo Paulo reflete mais tarde sobre esse mesmo paradoxo: “Irmãos, pensem
no que vocês eram quando foram chamados. Poucos eram sábios segundo os
padrões hum anos; poucos eram poderosos; poucos eram de nobre nascimento.
Mas Deus escolheu o que para o m undo é loucura para envergonhar os sábios
e escolheu o que para o m undo é fraqueza para envergonhar o que é forte. Ele
escolheu o que para o m undo é insignificante, desprezado e o que nada é, para
reduzir a nada o que é [...]. E, porém, por iniciativa dele que vocês estão em Cristo
Jesus” (IC o 1.26-30).
3 Atos 3.1ss.; 8.14ss.; 11.30; 12.25; 13.2; 15.39,40; ICoríntios 9.6. J. Crossan, The
HistoricalJesus: The Ufe of a MediterraneanJewish Peasant (Edinburgh: T. & T. Clark,
1991), ρ. 335, sugere que “de dois em dois” significa um hom em solteiro e uma
mulher viajando juntos em uma missão cristã. Crossan praticamente nega essa
sugestão ao confessar: ‘T en h o plena consciência de quanto essa sugestão tem de
continuar experimental” . N ão só experimental, mas de fato dificilmente concebí-
vel. N ão há nenhum a evidência para essa sugestão (IC o 9.5 significa esposas, e não
acompanhantes femininas); mulheres solteiras viajando com parceiros homens
não só mancharia o caráter da mulher, em particular, mas tam bém comprometería
de form a irremediável o evangelho. Para uma refutação sólida e de leitura fácil do
perfil de Jesus proposto por Crossan e Jesus Seminar, veja G. A. Boyd, Cynic Sage
orSon of Cod? (Chicago: Victor Books, 1995).
M a rc o s 6.8-9 232

acusação precisa ser co n firm a d a p elo d e p o im e n to d e duas o u três testem u -


n h a s” (D t 19.15).4
E m b o ra os D o z e sejam en v iad o s p ara p ro clam ar o evangelho (v. 12), a
ênfase nas in stru çõ es d e Jesu s, d e a c o rd o c o m M arcos, recai n o subju g ar es-
píritos m alignos. O co n ferir aos D o z e a “ au to rid ad e para expulsar d em ô n io s”
(3.15) assinala claram en te a irru p ç ã o d o rein o m essiânico. A au to rid ad e com
que Jesus agiu (1.27) e a qual p ro m e te u aos D o z e (3.13) está agora disponível
a eles d e a c o rd o c o m a p ro fecia d o Testamento de Levi 18.12, em q u e o sum o
sacerd ote m essiânico “ g a ran tirla ] a seus filhos a au to rid ad e p ara p isar so-
b re os espírito s p e rv e rso s” . A au to rid a d e d ad a aos D o z e é u m a au to rid ad e
p ara agir. A qui, c o m o em o u tro s lugares d o cristian ism o prim itivo, n ão há
a p ro clam ação d o ev an g elh o sem as ações p o d ero sas, e n e n h u m a das ações
p o d ero sas aco n tecia sem a p ro c la m açã o d o evangelho.5 O s D o z e n ão são
enviados a fazer u m n o v o trab alh o , m as a co n tin u a r e e sten d e r o trabalho
iniciado p o r Jesu s (1.34; 3.11,12; 5.8). Isso inclui até m esm o os lugares em que
eles m in istram , p o is n ã o são enviados a ce n tro s urb an o s, c o m o T iberíades
o u Séforis, m as a “p o v o a d o s” (gr. home) o n d e Jesu s já estivera. A ên fase não
recai n a inovação, m as, sim , n a to tal re p resen ta ção daquele q u e os com issio-
n ou . Jesu s c o n c e d e u au to rid a d e aos cristão s p ara q ue p o ssam p articip ar de
seu m inistério e fazê-lo avançar.

8,9 A s in stru ç õ e s d a m issão se dividem em duas partes, co m u m relato


d o resultad o ap resen tad o em 6 .1 2 ,1 3 .0 p rim eiro c o n ju n to de in stru çõ es no s
versículos 8,9 diz re sp eito ao q ue levar. O s D o z e têm p e rm issão p ara ter um
b o rd ã o p ara serv ir c o m o ben g ala e p ro te ç ã o c o n tra anim ais selvagens, um a
túnica e u m cin to e sandálias p ara ca m in h a rem na estrad a p ed reg o sa, e nada
mais. O pão, a m o ch ila, o d in h eiro e até m e sm o u m a segu nda tú n ica tin h am
de ser deixadas p ara trás. A p ro ib içã o c o n tra levar “ tú n ica extra” , n o grego,
está em d iscu rso d ireto (segunda p e sso a d o plural) em u m a n arrativa que
de o u tro m o d o está n a terceira p esso a, p ro v av elm en te refletin d o a o rd em
original d e Jesus.
E elegante em alguns círculos d e h o je re tra ta r os prim eiro s m o v im e n to s
de Jesu s d e a c o rd o c o m o m o d e lo d o s filósofos cínicos radicais e pregadores

4 E sse m esm o princípio é presum ivelm ente a razão p o r q ue duas testem unhas,
M oisés e Elias, aparecem para Jesus n o m o n te da transfiguração (9.4).
‫ ר‬E . L ohm eyer, D as Evangelium des M arkus, p. 113.
233 M a rc o s 6.8-9

que vagavam p elo m u n d o da A n tig u id ad e.6 A s in stru ç õ es so b re a m issão


transm itidas aos D o z e são co m frequência vistas c o m o evidência de que Jesus
emulava o ideal a p reg o ad o p o r u m c o n te m p o râ n e o m ais jovem , M usô n io
Rufo (3 0 1 0 0 ‫ ־‬d.C.) q ue advogava u m a v id a ascética e de privação: “V estir
um a tú n ica é preferível a p recisar de duas, e n ão u sa r n e n h u m a, m as apenas
um m an to , é preferível a u sar um a. T am b é m é m e lh o r sair descalço que usar
sandálias, se fo r possível fazer isso, p o is u sar sandálias é b em p ró x im o a estar
am arrado, m as a n d a r d escalço d á aos p és g ra n d e lib erd ade e graça q u an d o
estes estão ac o stu m ad o s a isso ” .7 O re tra to de Jesu s re su ltan te é de u m pe-
ripatético co n tra cu ltu ral q u e ex p õ e as n o rm a s sociais e encoraja os o u tro s a
fazer isso tam b ém .
N o en tan to , essa sim ilaridade de Jesu s e seus segu idores co m filósofos
radicais itin e ran tes é u m a fantasia m o d ern a . N ã o há, p o r exem plo, n en h u m a
evidência para a p resen ça d o s cínicos na Galileia na época de Jesus. Só esse fato
já serve p ara re fu ta r a h ip ó tese d e u m filósofo cínico. C o n tu d o , h á ainda o u tra
evidência conclusiva c o n tra essa hipótese. Mais de u m estudioso desm ascarou
a agenda daqueles q u e trilh am o arg u m e n to judaico-cínico.8 U m exam e m ais
pró xim o d o vestuário, práticas e ideais cínicos revela qu e a co rresp o n d ên c ia
entre os cínicos e Jesus, n a m e lh o r das h ip ó teses, é superficial. O vestuário
padrão d o s filósofos cínicos era u m m an to , m ochila o u bolsa de viagem (N V I,
“saco de viagem ”) e u m b o rd ã o , m as sem sandálias o u sapatos. A s in stru çõ es
para os D o z e , p o r sua vez, exigem o b o rd ã o , o cinto, as sandálias e u m a túnica,
mas n ã o u m saco d e viagem . A s diferenças em itens são im p o rtan tes, e não
apenas p o rq u e o saco de viagem , u m item re c o n h e c id a m en te u sad o pelos
cínicos, é o m itid o . O s q u atro itens exigidos d o s D o z e são de fato idênticos
aos p erte n ces q u e D e u s in stru i os israelitas a levar em su a fuga d o Egito:
túnica, cin to, sandálias e cajado (E x 12.11). O paralelo n o vestuário, em outras

6 Veja J. Crossan, The HistoricalJesus, em especial o capítulo 4, e a Parte III, que vê


Jesus e seus seguidores como “hippies em um m undo de yuppies clássicos” (p.
421).
7 HCNT, p. 81.
8 C onform e H. D. Betz, “Jesus and the Cynics: Survey and Analysis o f a Hypothe-
sis”,/ r 7 4 (1994), p. 460: “Será que o objetivo de todo este em preendim ento não
é afirmar com certeza que não havia ‘nada único’ sobre [jesús], que ele não era
‘um principio’ de nada e que sua identidade era simplesmente ‘interna à cultura?
Removido do judaismo e do cristianismo, despojado das tradições e ajustado ao
‘papel social’ de um cínico, o Jesus histórico com o um fenómeno a ser interpretado
simplesmente desapareceu” .
M a rc o s 6.8-9 234

palavras, é id ên tico co m o vestu ário d e Ê x o d o , m as apenas levem ente sim ilar


à fo rm a d e v estir d o s cínicos. E sses q u a tro itens d e v estu ário re m e m o ram a
pressa e expectativa de Ê x o d o . S ugerem q ue a m issão do s D o z e anuncia algo
tão fu n d am en tal e rev elad o r q u a n to o êx o d o d o E gito, e que os discípulos
têm de estar tão livres d e o b stácu lo s q u a n to os israelitas a fim de servirem
seu D e u s em u m a n o v a iniciativa.
O s p ro p ó sito s d o s p re g ad o re s cínicos itin eran tes eram estran h o s para
Jesus, n ã o só q u a n to ao vestuário, co m o tam b ém em relação ao en sin o e ins-
truções. O cin ism o era essencialm ente u m ataque à civilização. O p re g ad o r
cínico to rn o u -se solitário, ru d e e desleixado p ara p ro te sta r c o n tra os privi-
légios e re fin am en to s d a classe aristocrática, em particular. A cim a d e tudo,
o cinism o buscava a em an cip ação d e to d as as fo rm a s de auto rid ad e, sem se
s u b m e te r a n ad a, ex ceto à “ realeza” d a p ró p ria consciência. P ara os cínicos,
ser itin e ran te e n ã o criar vín cu lo s co m n in g u ém n e m c o m n ad a eram fins
em si m esm o s. Is s o é b em d iferen te d o p ro g ra m a d e Jesu s e seus discípulos.
A m issão d o s D o z e n ã o é u m a cru zad a c o n tra a civilização, n em , tam p o u -
co, é destitu íd a d e autoridade. A m issão d o s D o z e n ã o visa a n ão conexão
d esp reo cu p a d a, m as está re p le ta d e p erig o s, c o n fo rm e v erem o s n a história
su b seq u e n te (w . 14-29). É a p articip ação em u m a n ova au to rid ad e conferi-
d a p o r Jesus. A bagagem m ín im a n ão é em si m esm a u m a v irtu d e, m as um
m eio p ara u m serviço m aio r e d ep e n d ên cia em D e u s, e seu p ro p ó sito n ão é
o p ro te sto , m as an tes a pro clam ação d o g o v e rn o d e D e u s p o r vir.9
O p a rtic u la r m ais s u rp re e n d e n te n a m issão d os D o z e é a in stru ç ã o so-
b re o q u e não levar. A jo rn a d a n a qual Jesu s os envia é d iferen te d e qualquer
o u tra, p ois ela precisa ser feita sem n e n h u m ap arato elab o rad o de ap o io e
só c o m p ro v isõ es m ínim as. O s D o z e n ã o são anjos, p o r isso precisam da
túnica, das sandálias, d o cin to e d o b o rd ão . O red u zid íssim o n ú m ero de
itens essenciais g aran te q u e d ep o site m sua co n fiança naquele que os enviou,
e n ão n o s su p rim en to s n e m n o trein am en to . Isso c o rresp o n d ería a p ô r em
sua cam a tu d o q ue v ocê p lan ejo u p ara levar em sua viagem e d ep o is deixar

9 Veja J. A. Draper, “Wandering Radicalism or Purposeful Activity? Jesus and the


Sending o f the Messengers in Mark 6:6-56”, Neo¿ 29 (1995), p. 183-202, em que
D raper argumenta com habilidade que a orientação para um propósito da mis-
são dos D oze a distingue do radicalismo itinerante. Ademais, ele protesta contra
o estereotipo e idealização do term o “camponês” em Crossan e outros: “Se os
estudiosos do N ovo Testam ento tiverem de usar esta designação de ‘camponês’,
então terão de prestar muito mais atenção a que os antropólogos sociais dizem
sobre as sociedades camponesas e o com portam ento camponês” .
235 M a rc o s 6.10-11

tu d o p ara trás, ex ceto o casaco e a escova de dentes. O v erdadeiro serviço de


Jesus é caracterizad o pela d ep e n d ên cia em Jesus, e a d ep en d ên cia d e Jesus é
re p re se n ta d a p elo ir p ara o n d e Jesu s envia seus discípulos, ap esar d a escassez
m aterial e p erg u n ta s n ã o resp o n d id as. O s D o z e , c o m o os israelitas fugindo
do E g ito (Ê x 12.11), tê m d e viajar c o m p o u c o s itens p ara q u e os cuidados do
m u n d o n ã o en fraq u eçam a u rg ên cia d a m en sag em . E les, c o m o as tro p as de
G id e ã o co m seus n ú m ero s re d u zid o s antes da b atalh a co m M idiã (J z 6— 7),
têm d e seguir n a d e p e n d ên c ia d e D eu s. E les, c o m o os p ássaros d o ar e os
lírios d o ca m p o (M t 6.25-34), tê m d e co n fia r só naquele que os enviou. As
in stru çõ es severas d e Jesu s g a ra n te m q ue os D o z e n ã o b u sq u em seu p ró p rio
p ro g resso , m as o d o evangelho. Se seguirem c o m u m elab o rad o sistem a de
apoio e p ro v isõ es p ara to d as as eventualidades, e n tão n ão p recisam seguir
pela fé, e á p ro c la m ação deles, sem a fé, n ão é crível.

1 0 ,1 1 U m se g u n d o c o n ju n to d e diretrizes diz resp eito a c o m o agir. O s


D o z e têm d e ser h ó sp ed es grato s ao ficar o n d e são recebidos. C onfiar em Jesus
qu e os envia em u m a m issão inclui co n fiar n aqueles q u e ele designou para
sup rir suas necessidades. M u d ar d e u m a casa p ara o u tra d eso n ra os anfitriões
e cria an im o sid ad e en tre eles. Se os discípulos fo rem rejeitados, a in stru ção
recebid a foi p a ra “ sacudfir] a p o eira d o s seus p és q u a n d o saírem d e lá, co m o
te ste m u n h o c o n tra eles” . E ssa é u m a acusação d o lo ro sa, u m a vez q u e os ju-
deus q u e viajavam p ara fo ra d a P alestina tin h am de sacudir a p o eira q u an d o
voltassem p ara casa a fim d e n ã o p o lu ir a te rra san ta.10 E sse m an d am e n to
equivale a d eclarar pagão u m p o v o a d o judeu. A referência d e Jesu s a Israel p o r
m eio de u m a figura d e linguagem g en tia te m o efeito d e dessacralizar E re tz
Israel (T erra de Israel), elim inando, desse m o d o , a p re su n ção d e salvação com
base n a etnia, nação o u raça. A té m esm o n a T erra P ro m e tid a haveria aqueles
que rejeitariam o P ro m etid o . “ Pois n em to d o s os d esc en d en tes d e Israel são
Israel” (Rm 9.6). N ã o o b stan te, c o m o indica o versículo 12, o p ro p ó sito desse
alerta n ã o é co n d e n ar, m as in d u zir ao arrep en d im en to .
Sugere-se algum as vezes q ue as in stru çõ es p ara a m issão em M arcos não
se originam de Jesu s, m as refletem as práticas d a m issão cristã de u m p erío d o
posterior. C o n tu d o , u m a co m p araçã o d a m issão do s D o z e co m o Didaquê,
um m anual de in stru ç ão p ara a igreja d o final d o século I, n ão su sten ta essa

10Veja N eem ias 5.13; A tos 18.6. Para outras referências da M ishná e do Talm ude,
veja Str-B 1.571.
M a rc o s 6.12-13 236

sugestão.11 O Didaquê o cu p a-se co m a q u estão da pro fecia v erdadeira versus


a falsa, u m p ro b le m a m u ito d issem in ad o n o cristianism o prim itivo, em par-
ticular à m ed id a q u e o g n o sticism o conseguiu ab rir ca m in h o n a igreja (con-
fo rm e l j o 4.1-3). Isso su g ere q u e o Didaquê é co rre ta m en te rep resen tativ o
das p re o c u p a ç õ e s d as p rim eiras m issões cristãs. A descrição d e M arcos,
p o r co n tra ste , en fatiza a m issão d o s D o z e atu an d o c o m o rep resen ta n te s de
Jesu s. O s D o z e d ep e n d e m d a au to rid ad e d e Jesu s, a qual c o rre sp o n d e ao
m in istério d e Jesu s n a Galileia. T . W . M an so n , sem d úvida, estava co rreto
q u a n d o d eclaro u q u e “a m issão d o s discípulos é u m d o s fatos m ais bem
atesta d o s da vida de Je su s” .12

1 2 ,1 3 O re su m o d a m issão n o versículo 12 é u m catálo g o d o s term o s


favoritos d e M arcos: p roclam ação, a rre p e n d im en to , expulsão d e d em ô n io s
e cura. P reg ação e a rre p e n d im e n to (veja a discussão desses dois te rm o s em
1.4 e 1.14,15), n ã o incluídos nas in stru çõ es d e a b e rtu ra n os versículos 7-9,
lem bra-nos q u e a m issão apostólica era d e palavra e ação. E ssas duas realidades
tam b é m caracterizam a h istó ria de Jesus. A no v idad e, n o en tan to , é a unção
co m óleo, e n c o n tra d a n o N o v o T e sta m e n to apenas aqui e em T iag o 5.14. O
azeite d e oliva (gr. elaioti), n a A ntiguidade, era u m artig o básico e im p o rtan tís-
sim o p ara a vida, serv in d o co m o alim ento, u n g ü en to , sacrifício, com bustível
p ara lam parin as e rem édio. A s fo n tes rabínicas citam co m frequência o valor
m edicinal d o azeite d e oliva p ara cu rar d o en ças e ta m b ém p ara expulsar

11 O Didaquêpreserva as seguintes instruções com relação aos m issionários visitantes:


(1) A queles que ensinam a falsa doutrina não devem ser recebidos (11.2).
(2) U m m issionário que passe três dias o u mais é u m falso p ro feta (11.4).
(3) U m apó stolo que peça dinheiro ou mais que pão para com er é um falso profeta
( 11.6).
(4) Falar “em um espírito” não é sinal de um verdadeiro apóstolo, a m enos que o
co m p o rtam en to d o apóstolo seja genuíno e piedoso; e n en h u m ap ó sto lo que
peça alim ento o u .dinheiro em um espírito é um verdadeiro ap ó sto lo (11.7-12).
(5) U m m issionário viajante que não tenha um ofício para g an h ar seu su sten to deve
ser evitado (12.3,4).
(6) U m verdadeiro p ro feta é digno das prim icias do cam po e do reb an h o (13.1-3).
A s diferenças em particulares entre o Didaquêe M arcos 6 .6 a 1 3 ‫ ־‬ficam aparentes de
im ediato, bem com o as estruturas de referências. N o Didaquê, as instruções são para
a com unidade, ao passo que, em M arcos, são para os discípulos.
12 T. W. M anson, The Sayings of Jesus (L ondon: SCM Press, 1950), p. 73. S obre a
historicidade da m issão, veja C. E . B. Cranfield, The GospelAccording to SaintMark,
ρ. 201-3; e Ε. Schillebeeckx,yi?x«x‫ ׳‬An Experiment in Christology, trad. H . H oskins
(L ondon: Collins, 1979), p. 219-23.
237 M a rc o s 6.12-13

d em ô n io s.13 E m n o ssa passag em , a u n çã o c o m óleo é m ais q u e um m eio de


cura, m as é ig u alm en te u m sinal da irru p ç ã o das bo as-novas, u m a unção com
“ó leo de alegria” (SI 45.7).
O envio d e discípulos m e d ro so s e relu tan tes em um a m issão, a julgar
pelas aparências, é u m a b so lu to equívoco. T odavia, os discípulos m al prep a-
rado s tipificam os cristão s de to d as as eras e lugares enviados p elo S en h o r
da colheita. P o r m ais exegese, teologia e ac o n se lh a m e n to que alguém ten h a
estu d ad o , n u n c a se está “ p re p a ra d o p ara o m in istério ” . U m ch am ad o ge-
n u ín o para o m in istério sem p re n o s ch am a p a ra aquilo que n ão estam os
ad eq u ad am en te p rep arad o s. Só c o m a co n sciên cia dessa realidade é que os
cristãos ex p e rim en tam a p resen ça e a p ro m essa de Jesu s C risto e ap ren d em
a n ão d e p e n d e r das habilidades h u m an as, m as só daquele q u e os ch am a e n o
p o d e r da p ro c la m açã o p ara au ten tica r a si m esm a. “ E ssa breve descrição ” ,
escreve E d u a rd Schw eizer, “ m o stra o q u a n to é im p o rta n te a gen u in id ad e da
proclam ação. T u d o , até a p o b re z a e a sim plicidade d o m ensageiro, até m esm o
a co rag em p a ra ser rejeitado, te m d e se c o n fo rm a r à Palavra q u e afirm a que
D e u s é in fin ita m en te m ais im p o rta n te q ue tu d o o m ais” .14
P assam o s ag o ra p ara a p a rte cen tral d o san d u íche — o m artírio de Jo ão
Batista. H á apenas duas passagens n o evangelho de M arcos que n ão são
so b re Jesus. A s d u as são so b re J o ã o B atista e am bas prefiguran! Jesu s (veja
9.11-13). N a p rim eira (1.2-8), Jo ã o B atista é o p re c u rso r d a m en sag em e
m in istério d e Jesus. N a segunda, (6.14-29), a passagem d ian te d e nós, p o d e
ser co n sid e ra d a c o m o a p rim eira narrativa d a paixão em M arcos, pois aqui
Jo ão B atista é o p re c u rso r da m o rte d e Jesus. O s paralelos e n tre a m o rte de
Jo ão B atista e a d e Jesus são especialm ente claros.15T a n to Jo ã o B atista q u an to
Jesus são ex ecu tad o s p o r tiranos políticos q u e os tem em , m as vacilam e p o r
fim su c u m b e m à p ressão social. N o caso d e J o ã o B atista, H e ro d es A ntipas
aquiesceu ao p ed id o de H erodias, e, n o caso de Jesus, P ô ncio Pilatos aquiesceu
ao clam o r da m ultidão. O s dois, Jo ã o B atista e Jesus, m o rre m silenciosam ente
c o m o vítim as d a in trig a e c o rru p ç ã o políticas, c o m o “ ovelha q u e d ian te de
seus to sq u iad o res fica calada” (Is 53.7). E , m ais o b viam en te, os dois m o rre m
c o m o vítim as in o cen tes e ju stas.16

13 O azeite de oliva era prescrito para dor no quadril, doenças de pele, dores de
cabeça e feridas. Veja Str-B 2.11-12; e H. Schlier, “aleiphÕ\ TD N T 1.229-32.
14 E. Schweizer, Das Evangelium nach Markus, p. 73.
15Compare 6.17 e 14.46,15.1; 6.19 e 14.1; 6.29 e 15.45ss.
16A m orte de João Batista é narrada no tempo verbal aoristo simples em vez de
no tem po preferido de Marcos, o presente histórico, e há várias hapax legomena
M a rc o s 6.14-17 238

O m artírio d e jo ã o , n o en tan to , prefigura m ais q u e a crucificação de Jesus.


E le tam b ém exem plifica as co n seq u ên cias d e seguir Jesu s em u m m u n d o de
cobiça, decadência, p o d e r e riqueza. M arco faz u m san duíche co m o relato
b ru ta l e co m o v en te d o m artírio d e jo ã o B atista en tre o envio d o s D o z e (6.7-
13) e o re to rn o deles (6.30) a fim de g rav ar n a m e n te d o s leitores o cu sto do
discipulado.

14-17 O relato co m e ç a co m a p aran o ia d o “ rei” H e ro d es d e q u e Jo ã o


B atista, a q u e m ele ap risio n ara (1.14) e m atara (v. 16), re to rn a ra em Jesu s para
assom brá-lo. A h istó ria d a m o rte d e jo ã o c o n té m n o m e s d e vários m em b ro s
da fam ília h e ro d ia n a e será útil p ara identificá-los. A á rv o re genealógica he-
ro d ian a é tão to rta q u a n to o tro n c o d a oliveira. H á q u a tro g o v ern an tes co m
o n o m e d e “ H e ro d e s ” n o N o v o T estam en to . O H e ro d e s d e n o ssa história,
H ero d es A ntipas, era o seg un d o dos quatro, g o v ern an d o d esd e a m o rte d e seu
pai H e ro d es (o G ra n d e) em 4 a.C. até 39 d.C. Seu títu lo oficial era tetrarca da
G alileia e P ereia (M t 14.1; L c 9.7; Jo se fo ,A nt. 18.09), e m b o ra p o p u la rm e n te
d esfru tasse d o títu lo “ rei” (Justino M ártir, Dial. Trif. 49.4-5; Evangelho de Pedro
1; Atos de Pilatos, P ró lo g o ). “T etrarca” (lit. “g o v e rn a n te de u m a q u arta p a rte ”
[da Palestina]) era o títu lo d a d o aos filhos d e H e ro d e s q u e g o v ern ara m so-
b re as q u a tro divisões d o rein o ap ó s a m o rte d e seu pai. H ero d es, o G ra n d e
(M t 2) tin h a d e z esp o sas, A n tip as sen d o o filho d a q u a rta esposa, M altace.
H ero d ias era filha d e A ristó b u lo , m eio irm ão de A n tip as q u e foi assassinado
p elo pai H ero d es. H ero d ias, p o rta n to , era n e ta de H e ro d es, o G ra n d e, p o r
in term é d io d e su a seg u n d a esp o sa, M a ñ a n e I, e, p o r con seg u in te, so b rin h a
d e H e ro d e s A ntipas.
H e ro d e s A n tip as é m e n o s in fam e q u e H e ro d e s, o G ra n d e, em g ra n d e
p a rte p o rq u e era m e n o s capaz, em vez d e m e n o s cruel. N ã o era sem m otivo
q ue a igreja prim itiv a m en cio n a v a o n o m e d e A n tip as antes d o d e Pilatos
q u an d o re m e m o rav am a crucificação d e Jesu s (A t 4.27). A n tipas, c o m o seu
pai, era sagaz, cru el e am an te d o luxo, em p artic u la r d a arq u itetu ra m agnífica.
E le c o n stru iu duas cidades n a G alileia, T ib eríad es e Séforis. A referên cia de
Jesus a A ntip as c o m o “ [a]quela ra p o sa ” (Lc 13.32) re p resen ta u m testem u -
n h o elo q u en te d a m alicia e sagacidade desse g o v ern an te. A ntip as revelou sua
m esq u in h ez q u a n d o p ersu ad iu H e ro d ias, esp o sa de seu m eio irm ã o H e ro d es

(palavras o co rren d o apenas um a vez em M arcos) na narrativa, m ais refinadas do


que é característico de M arcos. E ssas observações p o d em indicar um a narrativa
pré-form ada incorporada n o evangelho de M arcos. Veja Lohm eyer, DasEvangelium
des M arkus, p. 117-21.
239 M a rc o s 6.14-17

Filipe, filho d e M ariane II, a terceira esp o sa d e H e ro d es, o G ra n d e (não o


tetrarca Filipe d e L c 3.1), a se divorciar d o m arid o p a ra se casar co m ele.17 N o
en tan to, H e ro d e s A n tip as, a fim d e se casar c o m H ero d ias, tin h a de ro m p e r
com a p ró p ria esp o sa, a filha de A retas, rei d a N ab ateia, a leste d o m a r M orto.
A retas, em represália, infligiu u m a d e rro ta esm ag a d o ra em H e ro d es A ntipas
em 36 d.C. T rês a n o s m ais tard e, H e ro d e s A n tip as e H e ro d ias fo ram banidos
para a G ália p elo im p e ra d o r Caligula.18
O crescim en to d a rep u tação de Jesus, d e ac o rd o co m M arcos, era u m lem -
b rete c o n stra n g e d o r p ara H e ro d e s A n tip as d e que, ao d ecap itar Jo ã o B atista,
não silenciara a m en sag em deste. “ O rei H e ro d e s o u v iu falar dessas coisas,
pois o n o m e d e Jesu s havia se to rn a d o b e m co n h ecid o.” H e ro d es o u v ir so b re
Jesus ap arece lo g o d ep o is d o envio d o s D o z e em m issão e p o d e ter sido um
resultado desta. H e ro d e s acha q ue Jesu s é J o ã o B atista q u e re to rn o u à vida;
ou c o m o Elias, o p re c u rs o r d o D ia d o S en h o r, q ue n o judaísm o p o p u lar era
alguém q u e ajudava o s necessitad o s (veja m ais s o b re E lias em 1.6); o u co m o
um d o s g ra n d es p ro fetas silenciado havia u m lo n g o tem po. N a q u ela época,
essas eram as três o p in iõ es prevalentes so b re Jesu s (tam b ém 8.28).
Jesus, e m b o ra n ão seja reco n h ec id o c o m o o M essias n a m e n te popular,
figurava claram en te en tre os g ran d es p erso n ag en s d a h istó ria d e Israel. E le
está acim a d e to d o s os p ro fe ta s — e so freria o d estin o de u m p ro fe ta (12.10-
12). A avaliação ap aix o n ad a de Jesu s n o versículo 15 n o s lem b ra que te r u m a
alta o p in ião de Jesu s n ã o é o m e sm o q u e ter fé.19 A ch ar q u e Jesu s é E lias ou
um d o s p ro fetas, o u ainda, c o m o o u v im o s hoje, a m ais sublim e p esso a q u e já
viveu o u o m ais elevado exem plo m o ral da hum anidade, n ão necessariam ente
aproxim a a p esso a n em u m p asso seq u er da fé. N a realidade, p o d e ser u m
perigo m ais grave p ara a fé, p o is é m ais fácil se c o n te n ta r co m u m a opin ião
n ob re errad a q u e co m a op in ião in ferio r errada. M arcos já d e m o n stro u que

17 O s relacionam entos da família herodiana são explicados e m jo se fo ,./!» /. 18.136-


37.
18 Para um a elaboração mais detalhada sobre esses eventos, vejaJosefo,M »/. 18.109-
19.
19 É difícil dizer se essa era um a opinião pessoal de H ero d es A ntipas o u a opinião
geral. Variantes na tradição do m anuscrito grego apresentam as duas leituras. Pode
ser que M arcos tenha a intenção de refletir a opinião geral (daí o uso do pl. elegotr,
“ O u tro s diziam ”), pois tam bém pode explicar p o r que essa leitura seria alterada
para a terceira pessoa d o singular elegen (“ ele dizia”), ou seja, para co n co rd ar com
a terceira pessoa d o singular precedente êkousen (“ H ero d es ouviu”). Veja F. N ei-
rynck, “ Κ Α Ι Ε Δ Ε Γ Ο Ν en M c 6,14” , E T L 65 (1989), p. 110-18.
M a rc o s 6.18-20 240

a fam iliaridade c o m Jesus, até m e sm o o relacio n am en to fam iliar c o m ele,


n ão re p re se n ta u m a v an tag em — e p o d e, d e fato, re p re se n ta r u m obstácu lo
p ara a fé (6.1-6a). N ã o o b stan te , é irô n ico q u e H e ro d es, m estre d a Realpolitik
(a política o u d ip lo m acia b asead a p rin cip alm en te em co nsiderações práticas,
em d e trim en to d e n o çõ e s ideológicas), a p a ren tem e n te tem u m a o p in ião m ais
elevada de Jesu s q u e os p aren tes d este em N azaré.

18-20 M arco s su p re ag o ra a co n clu são d a histó ria da p risão de Jo ão


B atista, m e n c io n a d a em 1.14, e co m a qual id en tifico u o início d o m inistério
de Jesus. A associação d e Jesu s c o m J o ã o B atista feita p o r H e ro d e s m o stra
q ue até m e sm o n a m e n te co m u m havia u m a correlação en tre J o ã o B atista e o
p re g a d o r galileu. Jesu s, c o m o o “ alguém m ais p o d e ro s o ” q u e viría d ep o is de
Jo ã o B atista (1.7), desencadeia u m a v o lta ao p assad o p o r M arcos na execução
de Jo ã o Batista. O casam en to desleal de H e ro d es A ntip as e H ero d ias fo rm a o
p an o de fu n d o p ara a m o rte de Jo ã o Batista. H e ro d es A ntipas, de ac o rd o co m
M arcos, p re n d e u J o ã o B atista p o r este criticar o ca sam en to d o g o v ern an te,
p ro ib id o p ela lei judaica (Lv 18.16; 20.21). J o se fo ta m b é m p ro v ê u m relato
so b re a m o rte d e J o ã o B atista nas m ão s de H e ro d e s A n tipas, ap esar de sua
versão ser u m ta n to m ais política, relatan d o q u e esse g o v ern an te, te m e n d o a
influência d e J o ã o B atista so b re o povo, “ decidiu atacar p rim eiro e livrar-se
dele an tes q u e o trab alh o d e Jo ã o resultasse em u m a revolta p o p u la r” (A n t.
18.116-19). O s d o is relatos de M arcos e de Jo se fo p arecem dois lados da
m esm a m o ed a, p o is os d o is atestam d a justiça e p iedad e de Jo ã o B atista e da
paran o ia e c ru eld ad e d e H e ro d e s A ntipas.20 M arcos escolhe en fatizar as acu-
sações m orais q u e J o ã o B atista a p re se n to u c o n tra H e ro d es A n tipas, ao passo
que Jo se fo enfatiza os tem o re s p o lítico s q u e J o ã o B atista d esp ertav a nele.
O p ró p rio J o ã o B atista n ão p assa d e u m m e ro jo gu ete n o s ev en to s que
levam a sua m o rte. A h istó ria é to ta lm e n te d o m in a d a pelas p ersonalidades

20 C om pare M arcos 6.17,20 com Josefo: “Pois H erodes co nd en o u [João Batista] à


m o rte, em bora este fosse u m b o m h o m em e tenha ex ortado os judeus a levar um a
vida reta, a praticar a justiça em relação a seu próxim o e a piedade em relação a
D e u s” {Ant. 18.117). A proclam ação de Jo ão Batista do dia do julgam ento p o r vir
(Mt 3.7-10; Lc 3.7-9) era sem dúvida outro p o n to nevrálgico para H erodes Antipas.
“ Se co m b inarm os o te m o r de A ntipas da insurreição (Josefo) e predição de Jo ão
Batista de um o evento futuro dram ático que transform aria a o rd em presen te (os
evangelhos), descobrim os um a razão perfeitam ente b o a para a execução [de João
Batista]” (E. P. Sanders, This HistoricalFigure o f Jesus'^London: Allen L an e/P en g u in
Press, 1993], p. 93).
241 M a rc o s 6.18-20

de H e ro d e s A n tip as, H ero d ias e a filha desta, Salom é,21 e d o s convidados.


H ero d es A n tip as, H e ro d ias e Salom é ta m b é m são o b je to de estu d o s fasci-
nantes na área da psicologia q ue estu d a c o m p o rta m e n to s desviantes. H erodes
A ntipas é u m a casa dividida c o n tra si m esm o. N ã o p o d e arriscar deixar Jo ão
B atista livre, m as ta m b é m n ã o co n seg u e d ecid ir elim iná-lo. H e ro d es A ntipas
até m e sm o sen te c e rto fascínio c o m essa prisão, o u v in d o co m perplexidade
e com in teresse u m indiv íd u o e a m en sag em d este q u e ele d etesta.22 H ero d es
A ntipas esp e ra alcançar u m fim p ro p íc io ao p ra tic a r u m a injustiça lim itada.
C o n tu d o , c o m o q u alq u er p esso a q ue abraça essa filosofia d e vida, ele p o d e
escolher p ra tic a r u m ato lim itado d e injustiça, m as n ão p o d e d eterm in a r a
m aior injustiça à qual essa atitu d e o leva.
A fraq u eza d e caráter e ações vacilantes d e H e ro d e s A n tip as nesse epi-
sódio (c o m o em o u tro s ev en to s de su a vida) são rep ro v ad as e exploradas p o r
H erodias. E la é o principal p ro p u lso r nessa história. H ero dias — em contraste
com H e ro d e s A n tip as q u e é taca n h o e im p etu o so , acalenta sua an tipatia p o r
João B atista c o m paciência calculada e astuta, to ta lm e n te d isp o sta a sacrificar
até a h o n ra d e su a filha p ara atingir seu objetivo. T. W. M an so n ap resen ta
isso m u ito bem : “ H ero d ias sentiu q u e o ú n ico local o n d e sua certid ão de
casam en to p o d e ria ser escrita co m segurança seria n o v erso da sen ten ça de
m o rte d e J o ã o B atista” .23 Salom é re p resen ta apenas u m a ex ten são d o desejo
de H erod ias, u m jo gu ete co m p lac en te em u m jogo d e intriga e p oder. Saio-
m é, jovem e talen to sa, está d isp o sta a v en d e r seus serviços àquele q u e fizer
a o fe rta m ais alta, sem q u alq u er co n sid eração pelas con sequências.24

21 O n o m e da filha não é m encionado em M arcos, m as Jo sefo a identifica com o


Salomé, filha de H erodias e H erodes Filipe, de quem H erodias se divorciou para
se casar com H erodes A ntipas (A nt. 18.136).
22 O s m anuscritos gregos divergem q u anto às palavras finais do versículo 20, em que
alguns deles afirm am que H erodes A ntipas ficou “perplexo” com Jo ão Batista,
e o u tro s trazem que ele ouviu e “ fazia m uitas coisas” (ARC). A diversidade da
evidência externa favorece a últim a leitura, m as ten h o algum as dúvidas se essas
foram as palavras originais de M arcos (veja tam bém , B. M etzger, T C G N T , p. 89).
O co n traste incom um entre perplexidade (époret) e satisfação (hêdeõs), o que teria
estim ulado um escriba a alterar o prim eiro term o para epoiei, co rresp o n d e surpre-
enden tem ente bem com a dissonância cognitiva de H erodes no relato com o um
todo.
23 The Servant-Messiah (G rand Rapids: Baker B ook H ouse, 1977), p. 40.
24 A am bição e a crueldade de H erodias são corroboradas po r Josefo. Este, em relação
à ligação de H erodias com H erodes A ntipas e ao divórcio de H erodes Filipe, afirma
que ela “ decidiu desconsiderar o cam inho de nossos pais” (A n t. 18.136). H ero d es
M a rc o s 6.21-23 242

2 1 2 3 ‫ ־‬O s ev en tos cheg am ao ápice em u m a festa o fe recid a p o r H e ro d es


A ntipas. A trad u ção exata d o te rm o g re g o genesia (N V I, “ aniversário”) é m oti-
v o d e controvérsias, p o is o sen tid o p o d e ser o u a celebração de u m aniversário
o u a ascensão ao tro n o . A s d u as trad u çõ es são possíveis, m as o co stu m e de
celebrar aniversários d e prín cip es é m u ito m ais b em atestado, em especial n o
m u n d o ro m a n o em q ue o aniversário d o im p e ra d o r e a co m em o raçã o d o dia
de sua ascen são ao tro n o eram feriados.25 N ã o d ev em os n o s su rp re e n d e r de
ver H e ro d es A n tip as im itan d o o c o stu m e im perial, e “ aniversário” é o sentido
provável d o term o . A lista d e co n v id ad o s inclui o alto escalão d o g o v ern o
e a classe alta d a G alileia, os “ líderes m ais im p o rta n te s” , os “ co m an d an tes
m ilitares” e as “ principais p erso n alid a d es” . E ste s — os ricos, os p o d e ro so s e
os indivíduo s d e p re stíg io — n ão p ro fe re m n e n h u m a palavra n a história, na
verdad e n ã o p recisam fazer isso, pois a influência deles é ainda m aio r q u an d o
fica im plícita. N o en tan to , eles são im p o rta n te s n a conclusão d a história. Para
Salom é, eles são a audiência bajuladora; p ara H erodias, a influência p ara forçar
a m ão trêm u la e o scilan te d e H e ro d e s A ntipas; p ara o p ró p rio H ero d es, a
coligação d e p o d e r d ian te d a qual to d a aliança tem de ser sacrificada.
E ssa festa, c o n tu d o , n ã o acab a em to m d e alegria, m as em tragédia, em
g ran d e “ afli[ção]” (v. 26) e m o rte .26 Só p o d e m o s im aginar o tip o d e dan ça que
lev ou H e ro d e s A n tip as a p ro m e te r “ até a m e tad e d o m eu re in o ” a Salom é.27

Antipas, após sua derrota para Aretas de Nabateia, foi incitado por Herodias a ir
por via marítima para Roma e receber do imperador, Caio Caligula, fortunas iguais
àquelas recebidas pelo irm ão dela, Agripa I. “Ela nunca esmoreceu até triunfar e
tornou [Herodes Antipas] seu apoiador relutante, pois não havia nenhum a forma
de escapar depois de ela ter tom ado a decisão sobre esse assunto” , afirma Josefo.
Contudo, o tiro saiu pela culatra, e Caligula baniu Herodes Antipas para Lião, na
Gália. N o entanto, Herodias, para sermos justos com ela, escolheu o exílio com
Herodes Antipas, em vez da clemência de Caligula (Ant. 18.240-54).
25 E. Schürer, History of theJewish People, 1.346-48 tem uma longa nota de rodapé,
com três páginas de extensão (η. 26) discutindo o sentido de genesia.
26 Salomé, com o o símbolo da atração sexual e da m orte, inflama a imaginação (dos
homens?) tanto na arte quanto na literatura. Veja A. Bach, “ Calling the Shots:
Directing Salome’s D ance o f D eath” , Semeia 74 (1996), p. 103-26.
27 Marcos refere-se a Salomé apenas com o “jovem” (to korasion). A m esma palavra
usada por Jesus para se referira à m enina em 5.41, cujo sentido é jovem mulher
de beleza majestosa. O s relacionamentos desconcertantes na familia herodiana
vem à tona nas palavras utilizadas no versículo 22 no texto grego. Em bora não
fique aparente na N V I, vários manuscritos uncíais gregos e de peso ( S B D L
Δ) identificam a jovem com o thygatros autou Hêrçdiados (“sua [de Herodes] filha
Herodias”). E m bora essa seja um a leitura mais difícil, e, portanto, teoricamente
243 M a rc o s 6.24-29

Se H e ro d e s A n tip as q ueria q u e a p ro m e ssa fosse e n ten d id a literalm ente, foi


u m a im p o stu ra, p o is R o m a n ã o p erm itiría q u e ele abrisse m ão n em m esm o
d e u m acre d e terra.28 A p ro m essa , au se n te n a v ersão d a histó ria em M ateus
e Lucas, re m e m o ra u m a p ro m e ssa sim ilar d o rei X erxes a E s te r que resu lto u
n o d esm asc ara m e n to da tram a p erv ersa d e H a m ã (E t 5.3,6; 7.2). A qui a p ro -
m essa d esm ascara u m a tram a igualm ente perv ersa, planejada p o r H erodias, e
n ão H a m ã . N o en tan to , “ até a m etad e de m e u re in o ” p arece ser u m a figura
de linguagem (veja lR s 13.8) e n ão p o d e ser en te n d id a literalm ente.

24-29 T oda a cena exala traição. O poder de H erodias sobre H erodes Antipas
na tram a da m o rte d e Jo ão Batista é similar ao p o d er de Jezabel sobre o rei A cabe
na perseguição d e Elias e tram ando a m o rte de N a b o te (lR s 19; 21). O s assuntos
de família na linhagem herodiana podiam fornecer a m atéria-prim a p ara um a
lo n g a novela. C o n sid e ran d o -se a decad ên cia d issem in ada d o estilo d e vida
h ero d ia n o , fica-se u m tan to su rp re so p elo fato d e Jo ã o B atista se im p o rta r
em desafiar esse g o v ern an te. Será q ue ele n ã o deveria ter u sad o suas cartas
em u m jo g o m ais im p o rta n te ? Jo ã o B atista, n o en tan to , era u m p ro fe ta sem
p re ç o cujo ch a m a d o estro n d o so ex p u n h a a injustiça em to d as as situações.
Jo ão B atista, c o m o os co rajo so s p ro fetas antes dele, co m p re en d ia q u e a p ro -
clam ação d a Palavra d e D e u s incluía a resp o n sab ilid ad e m oral. N ã o existem
vacas sagradas em seu re b a n h o ; ele n ã o co n su lto u o ib o p e an tes de falar e
agir; ele n ã o p ro teg ia in teresses especiais; n e m floreava o q u e dizia o u fazia
so bre as o p o rtu n id a d e s d e sucesso. J o ã o B atista tin h a u m a co rag em custosa.

preferível, é confusa a p o n to de se to rn a r sem sentido. N o versículo 24, a jovem


é cham ada de filha de H erodias, e não de H erodes A ntipas; e se ela fosse a filha
de H erodias, é difícil até m esm o em um a família herod ian a im aginar a m ãe e a
filha co m o m esm o nom e. A confusão na leitura é provavelm ente explicada pela
dificuldade gram atical to rn an d o o n om e H erodias u m possessivo, o qual já está
no caso genitivo devido ao genitivo absoluto n o início d o versículo 22. C ontra
M etzger, T C G N T , p. 89-90, parece aconselhável o p ta r pela leitura thygatros autès
Hêrçdiados (“ a filha de H erodias”), leitura essa apoiada p o r vários im p o rtan tes m a-
nunscritos uncíais (A C K W) e m uitos m anuscritos m inúsculos, além da Vulgata
e das versões siríacas.
28 A evidência textual para a inclusão no versículo 23 d o term o polia (“m uitas coi-
sas”) está tão igualm ente dividida que é quase im possível im aginar se é original
ou não (veja M etzger, T C G N T , p. 90. Talve^ devesse ser aceita, um a vez que não
há razão para o escriba acrescentar essa palavra, e sua om issão p o d e ser explicada
pelo desejo d o escriba de estreitar o sentido do versículo 23.
M a rc o s 6.24-29 244

A o agir desse m o d o , arrisco u u m fim rápido, o qual veio p o r fim p o r m eio


de u m a espad a fria utilizada p o r fu n cio n ário s d e baixo escalão.
M arco s n ã o afirm a o n d e J o ã o B atista fo i ex ecu tad o .29 J o s e fo id en ti-
fica o local c o m o M aq u ero , n o s m o n te s a u ste ro s a leste d o m a r M o rto .
M aqu ero, situ ad a n a fro n te ira e n tre a A rá b ia e a N a b ateia, era u m a das
fo rtalezas-p alácio d e H e ro d e s, o G ra n d e , q u e co m b in av a d efesa m ilitar
co m o p u lê n c ia d e “ a p a rta m e n to s b e lo s e m a je sto sa m e n te esp a ç o so s” , nas
palavras d e J o s e fo (Guerra 7 .170-77; Al»/. 18.119).30 Se Jo ã o foi decap itad o
em M aq uero — n ã o p arece h av e r razão p ara d u v id ar d isso — , o n o m e do
lugar p arece a p ro p ria d o para essa ação repulsiva, po is “ M aq u e ro ” deriva da
palavra greg a machaira, “ esp a d a” .
M arcos fo ca apenas e d ra m a tic am en te n a d ecap itação de Jo ã o B atista. O
versículo 25, u m c o n s tru c to cheio de su sp en se (não re p ro d u z id o n a NVT),
apresen ta Salom é fazen d o seu p ed id o m o rta l a H e ro d e s A ntipas g u ard an d o o
o b jeto d e seu desejo até o fim d a sentença: “D e se jo q ue m e dês ag o ra m esm o
a cabeça d e J o ã o B atista n u m p ra to ” . N ã o o b sta n te , o rei, igualm ente estu p e-
fato pela m ald ad e d o p e d id o e pela cilada q u e criara p ara si m esm o, m an d a
d ecapitá-lo e tra z e r a “ cab eça [de J o ã o B atista] n u m p ra to ” e “ a e n tre g o u à
jovem ” .31 É u m c o m e n tá rio am arg o so b re a inabilidade d o s tiranos de to lerar
os ind ivídu o s justos — u m fato tão v erd ad eiro h o je q u a n to na ép o ca de Jo ão
B atista. A qu ele q ue Jesu s ch am a de o m aio r h o m e m nascido de m u lh er (M t
11.11) é sacrificado p o r u m a ap o sta em um a reu n ião social! O ú nico ato de
d ecência n o relato d o m artírio de Jo ã o B atista é a chegada d e seus discípulos
p ara sep u ltar d ig n am en te seu co rp o . O s discípulos de Jo ã o B atista — co m o
“ os m ais c o rajo so s” de Jab es-G ilead e q ue en te rra ram Saul e Jô n a ta s (IS m
31.11-13) e, em especial, c o m o Jo sé de A rim ateia que enterraria o c o rp o de
Jesus (15.42-47) — arriscam a ira e recrim in ação d e H e ro d es A ntip as p o r
h o n ra re m seu líder assassinado.

29 N em , tam pouco, o faz Ju stin o M ártir, Diálogo com Trifão, 49.4-5, que tam b ém
resum e o m artírio de Jo ão Batista.
10 H erodes, o G rande, con struiu e /o u expandiu um a série de fortalezas em to rn o da
costa n o rte d o m ar M o rto para refúgio, caso a população se revoltasse c o n tra ele.
Elas incluíam (de n o rte a sul) A lexândrio, C hipre, H ircânia, H eródio, M aquero e
M assada. M aquero era a única fortaleza a leste d o vale d o Jordão.
31 E m um jogo de palavras co m “cabeça” , o texto gnóstico Apócrifo de Tiago 6.30 (c.
século III d.C.) afirm a: “a cabeça da profecia foi cortad a co m Jo ã o ” .
245 M a rc o s 6.30-32

30 M arcos ap re se n ta a p ó s o m artírio d e J o ã o B atista o re su m o em u m a


sen ten ç a d a m issão d o s D o ze: “ O s ap ó sto lo s reu niram -se a Jesus e lhe relata-
ram tu d o o q u e tin h am feito e e n sin ad o ” . M arco s n o rm a lm e n te se refere aos
seguidores d e Jesus c o m o “ discíp u lo s” , em vez de “ a p ó sto lo s” , algo que ele
só faz aqui e em 3.14. O te rm o “ a p ó sto lo s” , n o p re se n te co n tex to , p o d e ser
explicado c o m o u m a ligação específica ao s D o z e (apóstolos, tam b ém 3.14)
q u e haviam re to rn a d o d a m issão d e 6.6a-13. O relato d o re to rn o deles, que
seria esp erad o d e p o is d o versículo 13, foi p o s to ap ós a m o rte d e Jo ã o B atista,
p ro d u z in d o a e stru tu ra d e san d u ích e A '-B -A 2. O q u e M arcos p re te n d e ao
in te rp o r o m artírio d e Jo ã o B atista en tre a m issão d o s D o z e? A e stru tu ra de
sand uíche ap ro x im a a m issão e o m artírio , o d iscip ulado e a m o rte , em um
relacio n am en to inseparável. Isso é p recisam en te o que Jesu s ensinará em
8.34: “ Se alguém qu iser ac o m p an h ar-m e, negue-se a si m esm o , to m e a sua
cru z e siga-m e” . Ali, co m o aqui, as duas palavras são dirigidas aos discípulos.
Q u e m q u iser seguir Jesu s tem p rim eiro d e co n sid erar o d estin o d e João. O
m artírio d e J o ã o n ã o só p refig u ra a m o rte de Jesus, m as tam b ém prefigura a
m o rte d e q u alq u er p esso a q ue o seguir.

A L IM E N T A N D O O S C IN C O M I L ( 6 .3 1 4 4 ‫)־‬
M arcos, ap ó s o relato d o b an q u e te de H e ro d es, ap resen ta u m b an q u ete
de u m tip o m u ito diferente. N e sse b a n q u e te , Jesus preside. N ã o aco n tece em
um a fo rtaleza n e m em u m palácio, m as ao ar livre e n o s m o n te s da Galileia,
e os con vites n ã o se restrin g em às p esso as im p o rtan tes. D e fo rm a distin ta
do b a n q u e te de H ero d es, o b a n q u e te de Jesus, cujo p rincipal p ro p ó sito não
era re fo rç a r sua p o sição co m as m ultidões, m as, sim , m in istrar à necessidade
destas, ta n ta as ap a ren tes q u a n to as outras. A co m p aix ão de Jesu s em relação
às m ultidõ es e a fo rm a c o m o ele su p re as necessidades delas co n trastam
de fo rm a d ra m á tica co m a festa m o rta l e em causa p ró p ria d e H erodes. O
b an q u e te d e Jesu s é ainda m ais re n o m a d o e fa m o so n a m em ó ria d a igreja
prim itiva q ue o b an q u ete d e H erodes. É o ú nico m ilagre registrado n os q uatro
evangelhos, e sua relevância é assinalada p o r u m a sequela em 8.1-10, duas
reflexões su b seq u en tes em 6.52 e 8.17-21, e u m b an q u e te final n a ú ltim a ceia,
da qual a alim en tação d o s cin co m il é u m p re n ú n cio (cf. 6.41 c o m 14.22).

3 1 ,3 2 O p rim eiro p ré-req u isito d o discipulado é estar c o m Jesus (3.14).


A vida d o s discípulos n ão só é u m a m issão p ara Jesus, m as tam b ém u m a m is-
são co m Jesus. O s serviços d o s discípulos n ão p o d e m u su rp a r nem eclipsar
M a rc o s 6.33 246

a c o m u n h ã o deles c o m Jesus. E ssa últim a v erd ad e é re p resen ta d a p o r este


ch am a d o de Jesus: “V en h am c o m ig o ” . A p rio rid ad e d o relacio n am en to de
Jesu s com os D o z e é rep resen ta d a pela rep etição n o s versículos 31,32 de duas
frases gregas, kat1 idian (A RA , “ à p a r te ” ; A RC , “ aqui à p a rte ”), e eis erêmon
topon (N V I, “ u m lu g ar d e s e rto ”). A ú ltim a frase significa u m lugar d e se rto ou
solitário distan te das cidades e p o v o ad o s. A reunião d os discípulos co m Jesus
significa que, em m eio à agitação e às o cu p a çõ es d a vida, eles devem p re sta r
con tas só a ele. E q u a n to m aio r a exigência so b re eles, m aio r a necessidade
d e estarem a sós c o m Jesus.
A razão pela qual p re cisam se reestab elecer c o m Jesus é p o rq u e “ havia
m u ita g e n te in d o e v in d o , a p o n to d e eles n ão tere m te m p o p ara c o m e r” .
E ssa é u m a o b serv ação curiosa, p ara a qual n ão h o u v e n e n h u m a p rep aração
n a n arrativa. M arco s o b se rv a c o m freq u ên cia as m u ltid õ es em to rn o de
Jesus (e.g., 2.2), m as as palavras usadas aqui são in co m u n s e lev em en te m ais
específica. M arco s n ã o u sa sua palavra co stu m eira p ara u m a g ra n d e m ultidão
(gr. ochlos), m as o te rm o u sad o significa “ m uitas p esso a s” (gt.polloi), talvez até
m esm o m u ito s homens?2 R evisitarem os essa frase q u a n d o co n sid erarm o s o
versículo 44. Jesu s e o s D o z e , p o r causa d a co m o çã o , retiram -se d e u m local
n ão especificad o n a c o sta o este d o m a r d a G alileia e v ão d e b arco p ara um
local d ese rto .3233 N ã o sab e m o s o n d e o c o rre u a alim en tação d o s cin co m il, m as
u m a su gestão razo áv el p arece ser a região m o n ta n h o sa a n o rte d e C afarn au m
e a o este d e B etsaid a (veja L e 9.10).34

33 Jesu s e os discípulos n ã o c o n se g u em te r a solidão q u e desejam . M ais


cedo, os discípulos in te rro m p e ra m a n ecessid ad e d e Jesu s p o r privacidade
(1.35-39); ag o ra a m u ltid ão in te rro m p e essa n ecessidad e deles. A m ultidão,
v en d o q u e Jesus e os discípulos saíram d e barco, apressa-se p ara interceptá-los.
As palavras exatas d o versículo 33 são incertas em grego, e alguns m anuscritos
dizem q u e a m u ltid ão se reu n iu ao s discípulos assim qu e eles d esem b arcaram

32 A term inação d o m asculino plural p o d e sugerir pessoas em geral o u especifica-


m en te hom ens.
33 O s barcos eram usados não só para atravessar o m ar da Galileia, m as tam bém ,
e co m m aior frequência, para viajar ao longo da costa. Veja Jo ão 6.24,25 em que
a viagem de T iberíades para C afarnaum é m encionada com o “d o o u tro lado do
m ar” .
34 M. N u n , “T h e ‘D e se rt’ o f B túisasá-i”,JerusalemPersp 53 (1997), ρ. 16-17, 37, não
oferece evidências suficientes para p ro p o r que “d eserto ” significa os cam pos
verdes de Betsaida, em vez de “ d eserto ” .
247 M a rc o s 6.34-36

em te rra firm e; e o u tro s m an u scrito s afirm am q u e a m u ltid ão ch eg o u lá antes


deles; e o u tro s ainda, ap resen tam u m a c o m b in aç ão dessas duas possibilida-
des.35A evidência m anuscrita favorece levem ente a segunda leitura, “antes” . Se
essa é a leitura c o rreta, e n tão tem o s d e re c o n h e c e r a n o tável intencionalidade
p o r p a rte d a m ultidão, a n tec ip an d o os m o v im e n to s d e Jesu s e esp eran d o sua
chegada. O u eles suspeitam o n d e Jesu s desem b arcará o u Jesus m u d a a direção
d o b a rc o q u a n d o vê as m u ltid õ es ao lo n g o da praia.36

34 Jesu s, ap e sar d o fato d e e a m u ltid ão in te rro m p e r o d escan so m uitís-


sim o necessário co m o s D o z e , o lh a p ara essas p essoas co m “ co m p aix ão ” , a
palavra g re g a p ara “ co m p aix ão ” , splangningsthar, é u sad a n o N o v o T estam en to
só em relação a Jesus, e, aqui, sua co m p aix ão é exp ressa n o “ ensinar-lhes
m uitas co isas” . E las eram para Jesus, c o n fo rm e relata M arcos, “ c o m o ove-
lhas sem p a s to r” . E m b o ra essa im agem ev o q u e descrições d e Jesu s ajudan-
d o as ovelhas fracas e indefesas (M t 9.36), u m a c o n o taç ão p asto ral n ão é
a p rin cip al c o n o ta ç ão na trad ição judaica. O p a s to r de ovelhas, c o m o um a
m etáfo ra, era u m a figura d e linguagem c o m u m em Israel para u m líder de
Israel c o m o M oisés (Is 63.11); ou, co m m ais frequência, p ara u m h erói m ilitar
sem elh a n te a Jo su é q u e reu n iu as forças d e Israel p ara a g u erra (N m 27.17;
lR s 2 2 .1 7 //2 C r 18.16; J r 10.21; E z 34.5; 37.24; N a 3.18; Z c 13.7; J d t 11.19).
E , em o u tras palavras, u m a m e tá fo ra d a h eg e m o n ia , in clu in d o a liderança
e a vitó ria m ilitares. Jesus, em sua com paixão, v ê p esso as sem direção, sem
p ro p ó sito , sem u m líder. Jesu s utiliza a o p o rtu n id a d e p ara en sin ar as pessoas,
m as, c o m o é c o m u m em M arcos, n ã o é o c o n te ú d o d o en sin o que é o foco
do in teresse, m as, sim , q u e m ensina.

3 5 ,3 6 O s discípulos, à m ed id a q u e a d istân cia a u m en ta c o m a escuridão,


ficam intranquilos. M arcos, pela terceira vez n o relato d a alim entação do s

35A diferença em sentido depende de uma única letra em grego, ou seja,prosélthon


(“eles vieram para”) e proêlthon (“eles procederam ”). N ão é possível afirmar com
certeza qual leitura é a original, mas a probabilidade favorece a leitura da NYI,
“chegaram lá antes deles” (veja Metzger, TCGNT, p. 90-91).
36 A descrição das pessoas se reunindo “de todas as cidades” (v. 33) sugere mais
uma vez um lugar ao longo da costa noroeste do m ar da Galileia onde havia várias
cidades. A travessia para a costa oeste é improvável. N ão só a distância é muito
grande para ir a pé (24-32 quilômetros), mas o rio Jordão fica muito cheio e rápido
na primavera para tornar a travessia possível, em especial por um a multidão tão
grande com o essa.
M a rc o s 6.37*40 248

cinco mil, o b serv a a distância e o iso lam en to das circunvizinhanças (gr. eremos,
w . 31,32,35). A teologia de Jesu s e os in stin to s p rático s d o s discípulos p ara as
co n te n d a s (Lc 10.38-41). O s discípulos fazem o que p arece ser u m a sugestão
im in en te m en te razoável: m a n d a r e m b o ra o p o v o p ara que se d ispersassem
em m eio aos p o v o a d o s v izin h o s p ara c o m p ra r alim en tos e provisões. A té
m esm o essa sugestão, co n sid e ra n d o -se a h o ra tardia e o n ú m ero d e pessoas,
tinha seus lim ites, m as, p ara os discípulos, essa solução parece preferível a n ão
fazer n ad a e p e rm itir q u e u m a n ecessid ad e au m en ta sse e se tran sfo rm asse
em u m a crise.

37 Jesus, em vez d e aliviar a crise, a intensifica: “D eem -lh e vocês algo para
co m e r” , o rd e n a ele. E ssa o rd e m , p ara a m en te deles é d esarrazo ad a, senão
im possível. N o en tan to, eles, c o m o n o caso d e to d as as o rd en s d o Senhor, aca-
b am p o r fazer ex a tam en te o q u e ele diz, e m b o ra n ão p o ssam im aginar agora
co m o fazê-lo. O s discípu lo s co n sid eram c o m p ra r alim entos p ara a m ultidão,
m as se tin h am o u n ã o d in h eiro p ara p ag a r d u z e n to s d en ário s em co m p ra s é
u m a q u e stã o d ig n a d e ser co n sid erad a.37 O s discípulos são arreb a ta d o s pela
m agnitude d o p ro b lem a, assim c o m o M oisés o fora q u an d o co n fro n ta d o com
a necessidade d e alim en tar os israelitas n o d e se rto (N m 11.13,22).

3 8 -4 0 A g o ra tu d o d e p e n d e d e Jesus. “ Q u a n to s pães vocês têm ?” , per-


g u n to u ele. O s discípulos reclam am so b re tu d o o que n ão têm ; e Jesu s foca
aquilo que eles têm . O p ro b le m a n ão será reso lv id o p o r algo além deles, m as
p o r algo em m eio a eles. Jesu s vê as possibilidades naquilo em q u e seus dis-
cípulos v eem só as im possibilidades, pois D e u s p o d e m ultiplicar até m esm o
as m en o re s dádivas se fo re m disponibilizadas p ara ele.38 Jesus, ap esar dos
recu rso s patético s, o rd e n a q u e a m u ltid ão se sen te em g ru p o s “ de cem e de
cin q u en ta” . G ru p o s desses ta m a n h o s to rn a m a m u ltid ão m ais adm inistrável
p ara servir, m as p o d e m te r m ais q u e um a fu n ção utilitária. M oisés o rg an izo u
os israelitas em g ru p o s de m il, q u in h en to s, cem e dez so b seus respectivos
líderes (E x 18.25; N m 31.14), e fo rm a çõ es sim ilares fo ram p raticadas n a co-
m u n id ad e d e C u n rã (1Q S 2.21-22; C D 13.1). E ssa organização certam en te
rem e m o ra a p ro v isão m ilagrosa d e D e u s para Israel n o d eserto e p o d e indicar

37 D e acordo com M ateus 20.2, um denário correspo n dia a u m dia de trabalho;


d uzentos denários, p o rtan to , co rresp o n d em ao salário de quase um ano.
38 U m p o n to enfatizado n o apócrifo A to s de João, 93: “ cada u m dos h o m en s foi
satisfeito p o r essa peq uena (peça)” .
249 M a rc o s 6.41-44

um a reu n ião escatológica d o p o v o de D e u s n o últim o dia. Jesu s preside sobre


a m ultidão c o m o u m pai ju d eu so b re a refeição feita em família.

41 N ã o ficam os sab e n d o qual é o c o n te ú d o d e sua oração, m as p o d em o s


im aginar Jesu s co m eç an d o co m as palavras ditas n a oração feita à m esa, co-
m um n o judaísm o: “ L o u v ad a seja, ó S e n h o r n o s s o D e u s, rei d o m u n d o , que
faz o p ã o v ir d a te rra e q u e p ro v ê p ara to d o s q u e o S en h o r crio u ” .39 N ã o é
de su rp re e n d e r q u e a igreja prim itiva visse u m p aralelo en tre o alim entar das
cinco m il p esso as e a últim a ceia, am b o s os relato s c o n tê m a sequência de
“to m a n d o o s [.. .]pães [...] d e u graças e p a rtiu o s pães. [...] en treg o u -o s aos
discípulos” (cf. 14.22). A inabilidade d o s discípulos p ara e n te n d e r (6.52) não
im pede q ue eles ajam c o n fo rm e a o rd em d e Jesus, rep resen tad a aqui n a m edia-
ção deles en tre Jesu s e a m ultidão. O m ilagre realizado p o r Jesu s exige ta n to
recursos h u m an o s, p o r m ais in ad eq u ad o s q u e sejam , q u a n to os discípulos.

4 2 -4 4 F icam o s saben d o , co m a b rev id ad e e aten u a ção típicas de M arcos,


o seguinte: “T o d o s co m eram e ficaram satisfeito s” . A palavra “ to d o s ” é rele-
vante. A T o rá e a trad ição oral regulavam m ais a v id a d o s judeus à m esa que
em q u alq u er o u tra situação. O efeito d o p re c e ito kosher era g aran tir que só
os alim en to s ap ro p riad o s p re p ara d o s d a fo rm a a p ro p riad a eram con su m id o s
pelos a p ro p ria d a m e n te lim pos; os alim en to s im u n d o s e as p essoas im undas
eram n ec essaria m e n te excluídas. N o b a n q u e te n o d e se rto , n o en tan to , o
ritual d a h ierarq u ia kosher é a b a n d o n a d o em fa v o r d e u m con v ite ab e rto e da
inclusão d e to d a s as pessoas. “Todos c o m eram e ficaram satisfeitos” (grifo d o
autor). A refeição p ro v id a p o r Jesu s só os su ste n ta rá até q u e p o ssam ter algo
mais substancial.40 O p ão d e Jesu s satisfaz p o rq u e é u m a expressão de sua
com paixão e é d ad o em tal m ed id a q ue h á u m a ce sta d e so b ras p ara cada um
dos discípulos.41 E m sum a, M arcos o b serv a q u e aqueles q u e co m eram foram
“cinco m il h o m e n s ” . “ H o m e n s ” , nessa instância, é específico d e gênero. O
term o grego, andres, d e fo rm a d istin ta d a palavra m ais co m u m anthrõpoi, n ão
inclui m ulh eres e crianças; significa cin co m il p esso as d o sexo m asculino. A s

39Str-B 1.685.
4.1EpistulaApostolorum, p. 5, do século II, em um a tentativa de responder às afirmações
do gnosticism o, espiritualiza o pão, to rn an d o -o um a m etáfora para as doutrinas
do credo — o Pai, Jesus Cristo, o E spírito Santo, a igreja e o perdão.
41 BAG, p. 448, descreve a cesta (kophinos) com o “um a cesta g ran d e e pesada para
carregar coisas” . Josefo (Guerra 3.95) usa a palavra para o tipo de cesta em que os
soldados rom anos carregavam as rações diárias.
M a rc o s 6 . 4 1 2 5 0

palavras d e M ateus aten u am esse fato co m a leitura d e “ cinco m il h o m en s,


sem c o n ta r m u lh eres e crianças” (M t 14.21).
A alim entação d o s cinco m il é explicada algum as vezes n ão c o m o um
m ilagre v erd ad eiro d e Jesus, m as c o m o u m triu n fo d o c o m p a rtilh a r p o r
p arte d a m ultidão: o esp írito ab n e g ad o d e Jesu s inspira u m d erram am en to
de g en ero sid ad e p o r p a rte d a m u ltid ão q ue satifaz a necessidade d e todos.
E ssa in te rp re ta ç ã o tra n s fo rm a a alim entação d e cinco m il h o m en s em u m a
h istó ria c o m m oral: q u an d o cad a u m c o m p artilh a o q u e tem , h á o suficiente
p ara to d o s. A m o ral é b o a, en sin ad a em o u tro s trec h o s d a E sc ritu ra (e.g., A t
2.44,45; 4.34,35), m as n ão é o p ro p ó s ito d essa h istó ria n em é suficiente para
explicar o alim entar d o s cinco mil. O s fatos da história são claros. H á m ilhares
de pessoas fam intas, e n ão existem m eios suficientes p ara alim entá-las. Se
ho u v esse p ro v isõ es suficientes en tre as pessoas d a m ultidão, os discípulos,
em sua an sied ad e so b re a situação, ce rta m e n te teriam c o n h e c im e n to desse
detalhe; o u as p ro v isõ e s já teriam te rm in a d o n esse m o m en to . A ajuda é
inex istente o u d istan te, e já estava ficando tarde. U m p ro b lem a d e e n o rm e
p ro p o rç ã o e stá se d esen v o lv e n d o ra p id a m e n te em u m a crise. E Jesus, e
n ão os discípulos n em a m ultidão, q u e su p re as necessidades existentes. A
alim entação d o s cin co m il, c o m o a co lh eita s u p e ra b u n d a n te n a paráb o la do
sem ea d o r (4.9,20), su p era to d a e q u alq u er co lh eita hu m ana.
A alim entação d o s cin co m il é u m a das histó rias m ais co n h ecid as da
Bíblia, im o rtalizad a em Bíblias p ara crianças e livros d e histó ria c o m o u m mi-
lagre p asto ra l d e Jesus, em q u e ele está ro d e a d o p o r crianças e famílias felizes.
E ssa im ag em , n o en tan to , é u m este re ó tip o eq u iv o cad o d o q u e ac o n te ceu na
en c o sta daqu ele m o n te n a G alileia. V ários indícios n o relato su g erem algo
m uito m en o s bucólico e idílico, a saber, a tram a d e u m a revolta revolucionária.
A G alileia ru ral era u m re d u to d o m o v im e n to d o s zelotes (A t 5.37).
E sse m o v im e n to foi fu n d a d o e m 6 d.C . p o r Ju d as, 0 Galileu, aclam ado de
G am ala nas m o n ta n h a s até o leste d e B etsaida (Josefo, Guerra 2.118). D o is
de seus n eto s, M en a h em e E leazar, p erece ram n a b atalh a p o r M assada n o
início da d éc ad a d e 70 d o século I (Guerra 2.433; 7.253). O sen tim en to de
in d ep en d ê n cia d o s galileus, m e sm o an tes d e Judas, re su lto u em d u ra resis-
tência c o n tra H e ro d e s, o G ra n d e , an tes de sua ascensão ao tro n o em 37 a.C.
e tam b é m q u a n d o este m o rre u em 4 a.C. Séforis, n a G alileia, revoltou-se
co n tra a tran sferên cia d e seu tro n o p ara seus filhos. Jo sefo , q u e c o m an d o u
as forças n a G alileia em 66-67 d.C. c o n tra V espasiano, fala so b re a valiosa
resistência d a G alileia c o n tra a invasão ro m an a. A G alileia — e em p articu lar
251 M a rc o s 6.41-44

essa p a rte d a G alileia q u e ficava a p e q u e n a d istância de G am ala — era, em


outras palavras, a p o n ta d e lança d o s m o v im e n to s d e lib erdade co n tra R om a
e, em p articular, d o m o v im e n to d o s zelotes.42
In dício s adicionais n o relato sugerem sen tim ento s populistas e revolucio-
nários na m ultidão. A referên cia às “ ovelhas sem p a s to r” (6.34) é, co n fo rm e
verem os, u m a im ag em p re d o m in a n te m e n te m ilitar. A m en çã o a “ g en te in d o
e v in d o ” (v. 31) é in c o m u m , até m esm o su sp eito , e sugere u m m o v im en to
clandestino em ação, em especial se “ m u itas p e sso a s” (gr. polloi) é p ara ser
en ten d id o c o m o p re d o m in a n te o u ex clu siv am en te m asculino, c o m o são
os cinco m il “ h o m e n s ” d o versículo 44. T a m b é m , se a leitura d o v erb o do
versículo 33 fo r “ ch eg aram lá antes deles” , c o n fo rm e su p o m o s, o co n tex to
sugere u m a an tecip ação p o p u lista de Jesus. U m n ú m e ro in co m u m d e sinais,
p o rtan to , sugere que a co m o çã o n o d ese rto foi incendiada co m ferv o r m essiâ-
nico, e q u e a m u ltid ão esperava co n q u istar Jesu s c o m o u m líder d e guerrilha.
E sse s in d ício s são co n firm a d o s n o s relato s d e J o ã o s o b re a alim en ta-
ção d o s c in co m il em q u e ficam os sa b e n d o q u e as p e sso a s “ p re te n d ia m
p ro cla m á-lo rei à fo rça” (Jo 6.15).43
N ã o o b sta n te , fica claro a p a rtir d o relato d e q u e Jesu s n ão m archaria
segundo u m a b atid a p o p u lista e m ilitarista.44 E le n ão seria u m p a sto r m essiâ-
nico-m ilitante das ovelhas (tam b ém Is 40.11; M q 5.4; Salmos de Salomão 17).
Seu m o d elo c o m o anfitrião d o b a n q u e te n o d e se rto é o de M oisés, e n ão o de

42 Sobre as origens e ideais dos zelotes, veja M. H engel, The Zealots: Investigations
into theJewish FreedomMovement in the Period of HerodI until 70 A .D , trad. D. Sm ith
(E dinburgh: T. & T. Clark, 1989), p. 56-59; e S. G. F. B randon, Jesus and the Zea-
lots: Λ Study of the Political Factor in Primitive Christianity (M anchester: M anchester
U niversity Press, 1967), p. 26-64.
43 V ejaM anson, The Servant-Messiah, p. 70-71; em a is recen tem en te,J. B. Fuliga, “T h e
M an W h o R efused to be K ing (M atthew 14:13-21)”, AsiajournTheol 11 (1997), p.
140-53.
44 A alim entação dos cinco m il é um texto crucial para aqueles que creem que Jesus
tinha a intenção de ser um Messias p o lítico-m ^tarista. P o r exem plo, B randon,
Jesus and the Zealots, em especial os capítulos 5-7, argum enta em g ran d e parte fun-
dam entado em evidência circunstancial que Jesus era um sim patizante dos zelotes
e foi crucificado com o tal p o r Roma. A evidência da tese de B ran d o n , no entanto,
está conspicuam ente ausente. Se Jesus tivesse aspirações militares e políticas, a
alim entação dos cinco mil era um a o p ortunidade de o u ro para expressá-las, pois
a m ultidão parece preparada e p ro n ta para a ação para recrutá-lo co m o líder mi-
litar messiânico. O fato de Jesus recusar a sondagem deles é um a forte evidência
da negação d o m odelo zelote de libertação. N ão é de surp reen d er que B randon
jamais se refere a essa passagem da Bíblia!
M a rc o s 6.41-44 252

B arrabás, u m chefe zelote. A s referências reiteradas ao d ese rto (6.31,32,35)


re m e m o ra m a jo rn ad a de Israel n o d e se rto ap ó s o êx o d o d o E gito; a m ultipli-
cação d o s pães (v. 41) re m e m o ra a dádiva d o m an á (Ê x 16.14,15); a liderança
das pessoas p o r Jesus co m o u m p a s to r (v. 34) rem em o ra a liderança de M oisés
q u an d o liderou a nação nascente. Jesus, co m o M oisés (Êx 18.21,25), divide a
m u ltidão em g ru p o s (w . 39,40). O p a s to r q u e esse re b a n h o rebelde precisa
é de u m M oisés p ara ensiná-los e d e u m D av i p ara liderá-los (E z 34.1-31), e
n ão d e u m M essias gu errilh eiro (N m 27.17). Foi o trab a lh o desses p ro fetas
que Jesu s veio cum prir.
N a literatura, u m a “ co m éd ia” é u m a história q ue com eça c o m u m tom
negativo e acaba c o m u m to m positivo. A alim entação do s cinco m il é um a
verdadeira co m édia, p o is to d o s o s p ro b lem as n o início da h istória são resolví-
dos n o final.45 E m b o ra haja cinco m il h o m en s à p a rte das m ulheres e crianças,
“ to d o s co m eram e ficaram satisfeitos” — e havia u m a g ran d e q u antidade de
sobras. A lém disso, Jesus m inistra aos necessitados por intermédio d os discípulos:
é deles que ele re ceb e a o fe rta inicial d e pães e peixes; eles são in stru íd o s a
ac o m o d a r a m u ltid ão em g ru p o s 46 e a d istribuir os pães e peixes m ultiplicados
à m ultidão. O s discípulos são as m ão s de Jesu s n o episó dio em que cinco mil
são alim entados. O m ilagre traz a v o n tad e divina à expressão perfeita, pois
D e u s deseja p re en ch e r suas criaturas co n sig o m esm o , suprir as necessidades
deles com seus excedentes, ex p an d ir a p eq u e n ez deles co m sua g ran d eza e
tran sfo rm a r a vida m u n d an a em vida ab u n d a n te (Jo 10.10). O p o n to d e virada
na h istó ria ac o n te ce n o m o m e n to e m q u e Jesu s olh a p ara a m u ltidão com
compaixão, d ese ja n d o p re en ch ê -la c o m a ab u n d ân cia d a graça ex istente em si
m esm o. “T o d o s re ceb em o s d a su a p len itu d e, graça so b re g raça” (Jo 1.16).

45 A rejeição ab ran g en te da historicidade da alim entação d o s cinco mil p o r R.


Pesch, D as Markusevangdium, 1.355 (“D e r E rzáhler greift nirgendw o erkennbar
aufkonkrete Ü berlieferung aus dem L eb en Jesu zurück” [O n arrad o r em n en h u m
local faz um a referência reconhecível à tradição concreta d a vida de Jesus]), é to-
talm ente injustificável. Referências específicas à gram a verde, núm eros específicos
na história, o tipo de cesta usada, mais a velada influência populista zelote, tudo
testifica de um a providência histórica dessa história. E difícil co n ceb er que os
quatro evangelhos registrem um a história que não passa de u m p ro lo n g am en to
de m otivos do A ntigo T estam ento, com o Pesch imagina.
46 U m a variante textual no versículo 39 apresenta Jesus fazendo a m ultidão se sentar
em grupos. Anaklithénai, na voz passiva, significa “ele o rd en o u que to d o s eles
deviam se reclinar em g ru p o s” . U m a esfera mais vigorosa de m anuscritos, n o en-
tanto, atesta da voz ativa, anaklinai, o que im plica que Jesus instruiu os discípulos
a fazer a m ultidão se sentar. Veja M etzger, T C G N T , p. 91.
253 M a rc o s 6.45-46

O “E U S O U ” E M M E IO A U M T E M P E S T A D E ( 6 . 4 5 5 2 ‫)־‬

M arco s 6.45-52 foi o b je to de in teresse in te n so n o s relatos pós-Ilu m in is-


m o da vida d e Jesus. C o m eça n d o c o m a p rem issa q u e as “leis d a n atu re za”
são invioláveis e to d as as coisas n o u n iv erso têm de ser capazes de explica-
ção racional, as teorias m ais im prováveis e ilógicas foram p ro p o sta s para
explicar Jesu s a n d a n d o n o m ar da Galileia. A busca doJesus histórico (1906), de
A lb ert S chw eitzer, d o c u m e n ta as o p in iõ es d e vários estu d io so s que julgam
essa h istó ria u m a ilusão de ó tica causada p o r Jesu s c a m in h an d o ao lo n g o da
praia o u o en g a n o cau sad o p elo fato de ele c a m in h a r em u m b an c o de areia.
Para o s in té rp re te s racionalistas, a história era u m có d ig o a ser decodificado,
um enigm a a ser resolvido. Se Jesus a n d o u so b re as águas, e n tão deveria ser
sem elh an te à travessia d o H e le sp o n to , o an tig o n o m e d o estreito de D ard a-
nelos, p o r X erxes o u o cerco de A lexandre d a ilha fo rtaleza de T iro: u m piso
sólido tin h a d e ser e n c o n tra d o em algum lugar. O efeito dessa p reo cu p ação
era lim itar as possibilidades da história e eclipsar p ra tic am en te seu sentido.

45,46 O tex to d e 6.45,46 tem de ser lido de fo rm a acoplada co m a con-


clusão d a alim en tação d o s cinco mil. “ L o g o em seguida, Jesu s insistiu com os
discípulos p a ra q u e en trassem n o b arco e fo ssem adian te dele para B etsaida,
en q u a n to ele d esp ed ia a m ultidão.” H á u m a u rg ên cia in co n fu n d ív el nesse
texto. O te rm o g re g o euthys ênankasen é in c o m u m e n te fo rte, co m o sentido
de qu e o s discípulos fo ram “ co m p elid o s c o m m u ita ra p id e z” a ab a n d o n ar
aquele cenário. E les ch eg aram ao local o n d e cinco m il foram alim entados
com Je su s, m as agora, q u an d o a escuridão está p ró x im a e já cai so b re eles,
ele os apressa p ara seguirem sozinhos. Jesu s q u e r se livrar d o s discípulos para
que p o ssa d e sp e d ir a m u ltid ão so zin h o . P o r quê?
A re sp o sta aparece n os indícios d o ep isó d io em q u e os cinco m il são
alim entados. O s discípulos são suscetíveis ao co n tág io m essiânico da m ulti-
dão. O v erb o g re g o ênankasen sugere q ue o s discípulos estão relutantes em
sair dali. O sen tid o ap aren te é que Jesus precisa rem ov ê-los rap id am en te da
cena a fim d e p ersu ad ir a m u ltid ão a se d isp ersa r pacificam ente e, p o rtan to ,
evitar um a vaga rev o lu cio n ária (jo 6.14,15).47
Jesus, a p ó s d esp e d ir a m ultidão, retira-se p a ra os m o n te s para orar. A
m enção à o ra ção nesse c o n te x to é m ais u m in d ício de u m a m aré m essiânica,
pois M arcos o b se rv a Jesu s o ra n d o em apenas três p o n to s de seu m inistério
(1.35; 6.45; 14.35-39). E , em cada um a dessas ocasiões, a oração foi feita à noite 4

4‫ '׳‬Veja C. H . D o d d , The Founder o f Christianity (L ondon: Collins, 1971), p. 131-35.


M a rc o s 6.47-50 254

e em local solitário c o m os discípulos d istan tes dele, e os discípulos falham


em c o m p re e n d e r o m in istério dele, e Jesu s e n fre n ta u m a decisão form ativa
o u u m a crise. Jesus, ap ó s a alim en tação dos cinco m il, reafirm a pela oração
seu cham ad o p ara ex p ressar sua filiação divina c o m o servo, e n ão c o m o um
co m b a te n te pela lib erd ad e c o n tra R om a.
A alim entação d o s cin co m il deve te r ac o n te cid o na região m o n ta n h o sa
a n o ro e ste d o m ar d a G alileia, e, se Lucas 9.10, é u m indício, algum local a
oeste de Betsaida. Jesus, d o local d o b an q u e te a céu aberto, envia os discípulos
p o r b arco p ara a p a rte n o rte d o la g o /m a r de B etsaida (um a travessia sim ilar
é o b serv ad a em J o 6.25).48 B etsaida, cujo sen tid o é “ casa d o p e sc a d o r” , re-
ceb eu esse n o m e p o r causa d e sua prin cip al in d ú stria e fica a leste d a foz do
rio Jo rd ã o n o n o rte d o la g o /m a r n a região d o tetra rca Filipe.

47-50 O foco da história m uda agora d e Jesus p ara os discípulos. O “barco


estava n o m eio d o m ar, e Jesu s se achava so zin h o em te rra ” . N o evangelho de
M arcos, os discípulos, sem p re q u e estão d istan tes d e Jesus, ficam angustiados
p o r algum p erig o im inente. O m a r da G alileia, até m esm o c o m condições
ru ins, p o d e n o rm a lm e n te ser atravessado p o r v o lta d e seis h o ra s a o ito horas,
m as os discípulos ficam in d efeso s d ian te d o fo rte v e n to so p ra n d o co n tra eles
d o n o rd e ste . A descrição dessa v en tan ia se ajusta co m o v e n to o rien tal m u ito
co n h e cid o , n o m e a d o d e “ S harkia” (árabe, “ tu b a rã o ”), que co m eça em geral
n o início d a n o ite, sen d o u m b o m m o tiv o p ara a ap reen são de p escad o res.49
O s discípulos, d e a c o rd o co m a N V I, estavam “ re m a n d o c o m dificuldade” .
A p alavra g re g a p a ra “ c o m d ificu ld ad e” , basani^ein, significa “ afligir” . A
palavra significa c o m freq u ên cia o to rm e n to da p o ssessão d em o n íac a (M t
8.6; M c 5.7), m as ta m b é m p o d e se referir a u m ap u ro ho rrív el em ou tras
fo rm a s (as co n tra ç õ es d o p arto , A p 12.2, so frim e n to n o in fern o , A p 14.10;
o u a to rm e n ta d e u m a alm a justa fo rçad a a viver em m eio aos injustos, 2Pe
2.8). N o c o n te x to atual, n o en tan to , basani^ein n ão p arece te r co n o taç õ es de

48 O s relatos paralelos em M ateus 14.22 e João 6.17 o m item “ Betsaida” , talvez p o r


causa da viagem u m tan to trivial d o local da alim entação dos cinco mil para Bet-
saida. A om issão d e leituras difíceis com o essa argum enta em favor da prioridade
de M arcos. A viagem , n o entanto, p o d e ser defendida em dois fundam entos: os
discípulos não p o d em deixar o barco para trás; e, provavelm ente, é mais fácil
atravessar a foz do rio Jo rd ão de barco na prim avera do que fazer essa travessia a
pé, período em que o rio está m ais cheio, e as águas mais altas.
49 M . N u n , The Sea o f Galilee and Its Fishermen in the N ew Testament (K ibbutz E in G ev:
K in nereth Sailing C om pany, 1989), p. 52-54.
255 M a rc o s 6.47-50

p o ssessão d em o n íaca, m as d escreve v iv id am en te a fo rça d o v e n to e ondas


co n tra os discípulos (4.37).
Jesus, n a angústia d o s discípulos, veio a eles n a “ alta m ad ru g a d a” o u
“qu arta vigília d a n o ite” (ARA), o u seja, en tre três d a m ad ru g a d a e seis da
m anhã. M arcos, ao dividir a n o ite em q u atro vigílias, segue o co stu m e rom ano,
em vez d a divisão tripla d o s judeus, o sten siv am en te p elo benefício de seus
leitores ro m an o s.50Jesu s ag o ra olha os discíp u lo s co m a m esm a com paixão
com a qual o lh o u a n te rio rm e n te p ara as m u ltid õ es fam intas (6.34). Jesus,
com o lav é n o A n tig o T estam en to , veio p ara lib ertar seu p o v o necessitado,
e a lib ertação se to rn a u m a autorrevelação. A p eç a central d a histó ria é a
descrição em q u e Jesus, “ a n d a n d o so b re o m ar; e já estava a p o n to de passar
por eles” . N ã o existe a possibilidade de trad u z ir “ a n d a n d o so b re o m a r” de
qualquer o u tra m aneira. A p re p o siç ão g rega epi (lês thalassês) significa “ so b re ” ,
“em cim a” o u “ p o r cim a” d a água (ex atam en te c o m o o g re g o epi tèsgês, no
v. 47 significa “ so b re a te rra ”). A frase n ão p o d e ser trad u zid a d e n o v o para
evitar esse p ro b le m a d o m ar ab e rto su ste n ta r u m c o rp o h u m an o . Se essa
tentativa fo r feita, o p ro p ó s ito da h istó ria fica p erd id o , pois n o A n tig o Tes-
tam en to só D e u s p o d e a n d a r so b re a água.51 Jesus, ao a n d a r so b re as águas
na direção d o s discípulos, an d a o n d e só D e u s p o d e andar. E ssa atitude de
andar so b re as águas n o m ar d a Galileia, c o m o a c o n te c e u co m o p erd ão dos
pecados (2.10) e c o m seu p o d e r so b re a n a tu re z a (4.39), identifica Jesu s de
form a inequívoca co m D eus. A identificação é re fo rça d a q u an d o Jesus diz:
“Coragem ! S ou eu ” . E m g reg o , “ S ou eu ” (egõ eimi) é u m a afirm ação idêntica
à fo rm a c o m o D e u s se revela p ara M oisés.52 A ssim , Jesu s n ão só an d a n o
local de D e u s, m as ta m b é m assu m e seu n o m e.
A últim a p a rte d o versículo 48, n o en tan to , n ã o fica im ed iatam en te clara.
Jesus “ estava já a p o n to d e p assar p o r eles” é d e sc o n c e rta n te , su g erindo que
Jesus tin h a a in ten çã o de p assar pelos discípulos. N o A n tig o T estam en to , n o
entanto, essa frase sem definição está carregada c o m força especial, assinalan-
do um a rara autorrevelação de D eus. N o m o n te Sinai, o S en h o r tran scen d en te
“p ass[ou]” p o r M oisés (Ê x 33.22; tam b ém 33.19;e 34.6) a fim d e revelar seu
nom e e com paixão. O S en h o r, m ais um a vez, n o m o n te H o re b e, revelou

30Str-B 1.688-89. Marcos nomeia as quatro vigílias: tarde, meia-noite, cantar do galo
e amanhecer (13.35).
51Jó 9.8; 38.16; Salmos 77.19; Isaías 43.16; Eclesiástico (Siríaco) 24.5,6; Odes de
Salomão 39.10.
52Em especial, Êxodo 3.14, mas tam bém Êxodo 6.6; Isaías 41.4; 43.10,11; 48.12.
M a rc o s 6.47-50 256

sua p re se n ç a p ara Elias ao “p assa r” p o r ele (lR s 19.11). O an tec ed en te mais


im p o rta n te d a ideia, n o en tan to , ap arece em J ó 9.8,11:

Só [...] [Deus] estende os céus


e anda sobre as ondas d o mar. [...]
Q uando passa p o r m im ,
não posso vê-lo;
se passa junto de m im , não o percebo.

E ssa citação ap resen ta sim ilaridades linguísticas e tem áticas c o m o versí-


culo 48, pois a frase “ an d a so b re as o n d as d o m ar” c o n tém as m esm as palavras
usadas p o r M arco s (gr .peripatõn epi [té¡r] thalassês), e a m e sm a palavra crucial
p ara “ p assar p o r ” (gr. parercbesthai n o aoristo; ta m b é m em Ê x 33.19; 34.6).
A citação d e j ó resu m e u m a p assag em q ue co m eç a em 9.1ss. ao re co n tar
a separação a te rra d o ra e n tre D e u s e a hu m an id ad e. D e u s p o d e fazer o que a
h u m an id ad e n ão p o d e e n ã o p o d e jam ais c o n c e b e r fazer. Sua sab ed o ria está
além d e qu alquer com paração, ele m ove m o n tan h as, sacode a terra, escurece o
sol, o rd e n a o céu co m e sp le n d o r e “ an d a so b re as o n d as d o m a r” . E sse D eus
n ão p o d e ser c o n c eb id o em categorias h u m an as, e qu alq u er explicação “ na-
tural” d e seus ato s é to la e sem sentido. O D e u s d esc rito p o r J ó é to talm en te
D eus, to ta lm e n te O u tro e jam ais p o d e ser c o n fu n d id o c o m seres hum anos.
Q u a n d o lem o s d essa p ersp ectiv a, fica ap a ren te a futilidade de te n ta r
explicar Jesus an d a n d o so b re as águas p o r m eio d e u m fe n ô m e n o “ n atu ral” .
A glória d o D e u s tran sc en d e n te q u e se revela em Jesus literalm ente “pass [ou]
p o r” teó log o s racionalistas ex trem am en te confiantes de um a geração an terio r
à p re se n te — e aqueles d e n o ssa é p o c a q u e seguem as idéias desses teólogos.
D e u s “ realiza m aravilhas que n ão se p o d e p erscru tar, m ilagres inco n táv eis”
(Jó 9.10). C o n tu d o , Jesus, q u an d o “pass[a] p o r ” eles, os discípulos, n o m ar,
faz algo d e fo rm a d istin ta d a revelação d e D e u s n o A n tig o T estam en to : ele
q u er fazer c o m q u e o D e u s enigm ático e m isterio so d e j ó seja visível e pal-
pável c o m o n ã o fora, n e m p o d e ria ser, p ara as g erações anteriores. O D eu s
d e Israel, m ajesto so e asso m b ro so , m as n ão passível d e ser co n h e cid o face
a face está ag o ra “ p assafn d o ]” p elo s q u e creem em Jesus de N azaré. Jesus
an d ar so b re as águas até p a ra seus discípulos é u m a revelação d a glória que
ele co m p artilh a c o m o Pai e d a co m p aix ão q u e este n d e a seus seguidores. E
u m a epifanía divina em re sp o sta à perp lex id ad e an te rio r q u a n d o ele acalm ou
a tem p estad e: “ Q u e m é este [...]? ” (4.41). N e sse aspecto, a cristologia de
M arcos n ão é m en o s sublim e q u e a d e Jo ão , e m b o ra J o ã o ap resen te Jesus
257 M a rc o s 6.47-50

declarando q u e ele é o F ilh o de D e u s 0 o 10.36), M arcos o ap resen ta mostrando


que é o F ilh o d e D eu s. E m M arcos, é preciso, c o m o os discípulos, estar n o
barco c o m Jesu s e e n tra r n o d ra m a a fim d e o b se rv a r q u em é Jesus. A quele
que acalm o u a te m p estad e é aquele q ue ag o ra ap arece em m eio à tem pestade,
o “ E u S o u ” d e D e u s.53
A reação d o s discípulos n o b arco faz p aralelo c o m a co n stern açã o ante-
rior q u a n d o Jesu s acalm o u a te m p estad e n o m a r d a G alileia (4.41). Eles, m ais
um a vez, p e rc e b e m d e fo rm a equivocada e n ã o c o m p re e n d e m co rretam en te
a situação, ficam aterro riza d o s e acham q u e Jesu s é u m fantasm a. A palavra
“ fantasm a” (gr .phantasma) o co rre apenas aqui n o N o v o T estam en to e n o texto
paralelo em M ateus 14.26. E m g reg o clássico, significa a aparência o u aparição
de u m espírito, daí u m “ fa n ta sm a” .54 Sua rarid ad e n o N o v o T estam en to é
um le m b re te co n fia n te d e q ue o m u n d o so b re n atu ral n ão era n e m u m lugar
co m um n e m u m c o n fo rto p ara os p rim eiro s discípulos.55 Isso co n trad iz o
p re ssu p o sto d e q u e a visão resulta d a su p erstição p o r p a rte d o s discípulos.
E p reciso le m b ra r q u e o m a r era o n d e os discípulos g anhavam seu su sten to ;
não era, em o u tras palavras, u m local d esc o n h ecid o o u in co m u m p ara eles,
m as tã o fam iliar e c o m u m c o m o n o sso local d e trab alho o é p ara nós. A o u tra
única oco rrên c ia d a palavra co m o um v erb o está em H e b reu s 12.21, em que se
refere aos p o rte n to s a sso m b ro so s — fogo, fum aça, escuridão, tro v ão — que
aco m p a n h ara m a revelação de D e u s p ara M oisés n o m o n te Sinai. A s apari-
ções, nas raras ocasiões em q u e são atestadas n a literatura judaica, o c o rrem
com frequ ên cia em relação ao m ar, q u e os ju d eu s co nsideravam co m o um

53 P.J. M adden, Walking on the Sea: A n Investigation o f the Origin o f the Narrative Account,
BZNW , p. 81 (B erlin /N ew York: de G ruyter, 1997), argum enta que a historia de
Jesus an dando sobre as águas é um relato pós-ressurreição que foi retro p ro jetad o
no m inistério de Jesus. A tese da retroprojeção pós-ressurreição na vida de Jesus
é mais fácil de afirm ar (ou pressupor) que provar, e não sigo M adden nesse par-
acular de sua tese. Ele, n o entanto, está correto ao observar que o que acontece
no m ar da Galileia é im possível de ser explicado em categorias naturalistas, e que
várias narrativas de andar sobre as águas de fontes pagãs, helenistas e judaicas
em palidecem em com paração com esse relato.
54 R. B u ltm an n /D . L ü hrm ann, uphantasm d\ T D N T 9 .6 .
55 C on tra J. J. Pilch, “W alking o n the Sea”, BibTodaj 36 (1998), p. 117-23, que afirm a
que a experiência de um a realidade alternadva era com um nas culturas m editer-
râneas. E ssa generalização não é apoiada pelo m aterial bíblico com o um todo, em
que os fantasm as e as aparições são raros e incom uns, e até m esm o a aparição de
anjos não é particularm ente com um .
M a rc o s 6.51-52 258

vestígio d o caos, in d o m ad o e dev astad o r.16 Phantasma, p o rtan to , é a chave para


a ap arição asso m b ro sa de Jesu s a n d a n d o so b re as águas. E sse te rm o testifica
q u e se q u eb raram as fro n teiras em píricas d o s discípulos.

51,52 Só q u a n d o Jesu s se ju n ta aos discípulos n o b a rc o é q u e a tem p es-


tad e se acalm a. E s ta r comJesu s (3.14) n ã o é apenas u m a v erd ad e teórica; tem
consequências práticas e existenciais, u m a das quais é a segurança e paz d os
discípulos. Se a separação d e Jesus causa angústia n o s discípulos, a presença de
Jesus com eles subjuga as tem p estad es n a vida deles. A re sp o sta d o s discípulos
ao resgate deles p o r Jesus, n o en tan to , é de perplexidade e confusão. E les estão
n ão só “ a tô n ito s” ,5657 m as são d esp o jad o s d a c o m p re en são e o “ co ração deles
estava en d u recid o ” . O co ração e n d u recid o apareceu tam b ém n a sinagoga em
C afarnaum q u a n d o Jesu s cu ro u o h o m e m co m a m ão atro fiada (3.5). Ali, isso
o co rre u co m referência aos “ d e fo ra” o stensivos — os m em b ro s d a sinagoga,
fariseus e h e ro d ia n o s; aqui, isso o c o rre co m “ os q u e p e rte n c e m ao círculo
ín tim o ” , os p ró p rio s discíp u lo s d e Jesus. M arcos, m ais u m a vez (3.20,21) no s
lem b ra q u e a fé n ã o é o resu ltad o inevitável de c o n h e c e r so b re Jesus, o u até
m esm o d e estar co m Jesus. A fé n ão é algo q u e aco n tece au to m aticam e n te
n em se desen v o lv e inevitavelm ente; é um a decisão o u escolha pessoal. N o
evangelho de M arcos, é c o m m ais frequência que o co n trá rio que u m a decisão
tem d e ser to m a d a d ian te d a luta e trepidação. O discipulado é am eaçado pela
falta d e fé e d u re z a d o co raçã o q u e p elo s p erig o s e x tern o s (3.5; 4.41; 5.17).
A lguns co m en ta rista s su g erem q u e M arcos e stru tu ro u o relato d e Jesus
an d an d o so b re as águas d o m ar ao c o m b in a r duas histórias in d ep en d en tes,
um a história de resg ate e o u tra h istó ria de epifanía. E ssa conclusão, n o en-
tan to , é co n trária ao p ro p ó s ito essencial d a h istó ria q ue atesta que é em m eio
às tem pestades, trib u laçõ es e adversidades q u e Jesu s se revela aos discípulos.
E ssas d uas facetas d a tribulação e d a revelação se c o m b in am p ara fo rm a r
u m p ro p ó s ito unificado, assim c o m o ac o n te ceu em Ê x o d o , q u an d o D e u s se
revelou c o m o “ E u S o u ” (gr. egò eimi, L X X ) em m eio à o p ressão de Israel no
Egito. Jesus, d a m e sm a fo rm a , declara-se “ S ou eu ” (gr. egò eimi) n a tem p esta-

56 Veja os exem plos reunidos em Str-B 1.691.


57 O texto grego p o r trás d o term o “atônitos” é incerto. E m b o ra existanto (“ atô n ito ”)
é a leitura mais breve e, p o rtan to , teoricam ente preferível, e apesar de a leitura
mais longa existanto k a i ethauma^on (“assom brados e m aravilhados” [ARC]) pro-
vavelm ente ter sido copiada de A tos 2.7 (conform e M etzger, T C G N T , p. 92-93),
a leitura mais longa afirm a um a ordem mais vigorosa e mais diversa de apoio ao
m anuscrito e é possivelm ente original.
259 M a rc o s 6.53

de n o m ar. M arcos reafirm ará esse p o n to d e fo rm a su p re m a n o capítulo 15,


em que, na c a tá stro fe d a cru z, o c e n tu rião re co n h ec e Jesu s c o m o o F ilho de
D eus (15.39). Ñ a s tem p estad es, adversidades e d erro tas, a autossuficiência
h u m an a é revelada p elo q u e é — a ¿«suficiência h u m an a. Q u a n d o as defesas
do orgu lh o h u m a n o são ro m p id as, as pessoas algum as vezes veem a presença
de D e u s e n tre elas — m e sm o q ue se, d e início, apareça d e fo rm a s p reo cu -
pantes e talvez aterradoras.

O H O M E M P A R A O S O U T R O S ( 6 - 5 3 5 6 ‫)־‬

M arco s conclui o ev e n to em to rn o d a alim en tação do s cinco m il co m


Jesus c u ra n d o p esso as n o s p o v o ad o s d o lado o e ste d o lago. E sse é u m relato
resum ido, c o n fo rm e evid en ciad o pelo fato d e que, à p a rte de G e n esaré no
versículo 53, n ão há n o m es p ró p rio s n o relato. O “ p o v o ” n ão é identificado
em m aiores detalhes, e o m esm o aco n tece co m “ to d a aquela região” , os “ po-
vo ad os” , as “ cid ad es” e os “ c a m p o s” . M arcos relata que h á g ra n d e co m o çã o
em to rn o de Jesus, m as ele ta m b é m n ão especifica qu em são essas pessoas
ou o q u e ca u so u essa com oção. H á apenas dois g ru p o s: Jesu s e as m ultidões
necessitadas. E sse é o terc eiro relato resu m id o de M arcos (1.35-39; 3.7-12)
que, m ais u m a vez, le m b ra os leitores q u e o m in istério d e Jesu s so b rep u ja as
histórias particu lares incluídas n esse evangelho e n o s ou tro s. Jesus, ao lon g o
de to d o seu m in istério n a G alileia, m o s tro u en g a ja m en to c o m as m ultidões
e solidariedade para co m a h u m an id ad e so fre d o ra.58

53 “ D e p o is d e atravessarem o m ar, ch eg aram a G e n esaré e ali am arra-


ram o b arco.” E ssa sen ten ça é b em p ro b lem ática, e ainda m ais em g re g o que
na trad u ç ão acim a. A trad u ç ão m ais n atu ral d o versículo seria: “ E q u an d o

58 C. P. T hiede, The Earliest Gospel Manuscript? The Q um ran Fragment 7 0 5 and Its Sig-
nificance fo r N ew Testament Studies (G uernsey: P aterno ster Press, 1992), p. 25-41,
argum enta que o fragm ento de C unrã m encionado acima preserva um a leitura de
M arcos 6.52,53 no grego. Se isso for verdade, exigiría a datação de M arcos antes
da guerra de Jerusalém (66-70 d .C ), quando a com unidade de C unrã foi aniquilada
pela D écim a Legião rom ana. Infelizm ente, o fragm ento tem apenas vinte letras
gregas em quatro o u cinco linhas, e apenas dez dessas letras p o d e m ser lidas com
segurança. A reconstrução de T hiede, considerando-se a ilegibilidade de várias
letras, é excessivam ente otim ista. H á ainda dúvida significativa se o texto p ro p o sto
é de fato M arcos 6.52,53. Veja as refutações de G. S tanton , “A G o sp el A m ong
the Scrolls?” BRev 1 1 /6 (1995), p. 36-42; e M .-E. B oism ard, “A p ro p o s de 7Q 5 et
Me 6,52-53” , RevBih 102 (1995), p. 585-88.
M a rc o s 6.53 260

a tra v e s s a ra m n a te rra , c h e g a ra m a G e n e s a ré e a n c o ra ra m ali” .59 O p ro b le m a ,


c laro , é q u e M a rc o s a p re s e n ta J e s u s e o s d isc íp u lo s “ a tra v e s s a n d o n a te rra
p a ra G e n e s a ré ” , e m v ez d e c r u z a r o m a r p a ra a te rra . I s s o é o u tr o e x e m p lo
d o o c a sio n a l u s o e s tr a n h o d e p a la v ra s p o r M a rc o s (veja o c o m e n tá r io e m
4.1) q u e d ev e te r e ste se n tid o : “ Q u a n d o c ru z a ra m , a tra c a ra m o s b a rc o s n a
p ra ia e fo ra m p o r te rra p a ra G e n e s a r é ” .
U m se g u n d o p r o b le m a c o m 6.53 fica a p a re n te p a ra q u a lq u e r p e s s o a q u e
c o n h e ç a a g e o g ra fia d o m a r d a G alileia. N o v e rsíc u lo 4 5 , J e s u s e n v io u o s dis-
cíp u lo s atrav és d o la g o n a d ire ç ã o d e B etsaid a. N ã o c o n h e c e m o s a lo c a liz a çã o
e x a ta d a a lim e n ta ç ã o d o s c in c o m il, m a s a v iz in h a n ç a g e ra l p a re c e te r sid o n a
re g iã o m o n ta n h o s a a n o r te d e C a fa rn a u m e a o e s te d e B e tsa id a . U m b a rc o
a tra v e s s a n d o dali p a ra B e tsa id a d e v e se g u ir a le ste (o u ta lv e z le v e m e n te a
n o rd e s te ) a o lo n g o d a c o s ta n o r te d o m ar. G e n e s a ré , n o e n ta n to , fica a ce rc a
d e q u a se tre z e q u ilô m e tro s a s u d o e s te d e B e tsa id a e c e rc a d e p o u c o m a is d e
seis q u ilô m e tro s a sul d e C a fa rn a u m n a c o s ta o e s te d o m ar. M a rc o s n ã o relata
essa v ia g e m tria n g u la r. U m a f o r m a d e d a r s e n tid o p a ra isso é p r e s u m ir q u e
o v e n to b a te n d o d o n o r d e s te (v. 48) le v o u o b a rc o p a ra o s u d e s te n a d ire ç ã o
d e G e n e s a ré , o n d e J e s u s e o s d isc íp u lo s d e s e m b a rc a m .60

59 Mateus 14.34 atenua o problem a das palavras de Marcos ao traduzir a sentença


da seguinte maneira: “E quando atravessaram, chegaram a Genesaré” (tradução
do autor). Essa melhoria nas palavras argumenta mais para o fato de que Mateus
conhece Marcos e às vezes m elhora suas palavras.
60 S. H. Smith, “Bethsaida via Gennesaret: T he Enigma o f the Sea-Crossing in Mark
6,45-53”, Bib 77 (1996), p. 349-74, seguindo E. S. Malbon, Narrative SpaceandMythic
MeaninginMark (Sheffield: Sheffield University Press, 1986), p. 27-29, argumenta
que o problem a de locais é uma técnica literária de Marcos. Smith, seguindo a
obra Poética de Aristóteles, sugere que a falha em chegar a Betsaida é urna “sus-
pensão da trama” , com o sentido de que os discípulos, só depois de conseguirem
aceitar a missão de Jesus aos gentios atravessaram para o “outro lado” . O fato de
os discípulos já terem estado do “outro lado” em 5.1-20 deve lançar pelo menos
alguma dúvida sobre essa interpretação proposta, além do fato de que teorias
puram ente estruturalistas com o essa reduzem os nomes de locais geográficos a
mera metáforas e alegorias de realidades mais profundas. Smith rejeita a solução
razoável de que o barco tenha sido impelido pelo vento para outro local e afirma
confiantemente que, assim que o vento acalmou, “chegar a Betsaida não seria mais
um problem a” . Duvido que a situação parecesse tão simples para os discípulos
que estavam no barco. Os discípulos, depois de remarem com dificuldade por
boa parte da noite, assim suspeito, ficaram felizes de chegar em Genesaré, em vez
de remarem mais outros quase treze quilômetros até Betsaida.
261 M a rc o s 6.54-56

54-56 G e n esaré (heb. Gennesar) era u m a planície fértil d e 4,8 quilôm etros
p o r 1,6 d e largura na co sta o este d o m a r en tre C afa rn au m e T ibério. E sse
era o n o m e d e u m a cidade e ta m b é m d e u m a região d en sa m e n te p o pulosa.
Sem pre q ue Jesu s p õ e seu p é em “p o v o ad o s, cidades o u c a m p o s” , os d o en tes
e necessitad o s clam am p o r sua atenção. A palavra g reg a krabbatos (N V I, “ em
m acas”) refere-se aos colchões o u catres q u e as p esso as p o b re s tin h am e
indica q u e a influência d e Jesu s se esten d e até am-ha’aretes às pessoas com u n s
e pobres.
E ssa h istó ria, d e fo rm a d istin ta d e o u tra s h istó rias em M arcos, não
co n tém n e n h u m e n sin am e n to d e Jesus, n e n h u m d iálogo co m os d oentes,
na v erd ad e n e n h u m a palavra dele. A ên fase recai nas m u ltid õ es de pessoas
se dirigindo a Jesu s (veja ta m b é m 3.7-12; 3.20; 4.1; 5.21-31; 6.34). O único
p o n to d e c o n ta d o deles co m ele é q u e suplicavam p a ra q u e “p u d essem pelo
m enos to c a r na b o rd a d e seu m a n to ” . M ais u m a vez, a “ b o rd a d e seu m an-
to” ind ica q u e Jesu s era u m ju d eu p ra tic an te (tam b ém 1.44; 5.28), pois se
refere às franjas d e q u e os judeus, c o n fo rm e eram o rd en ad o s, costuravam
nos q u a tro c a n to s d o m a n to e x tern o e q ue serv iam c o m o u m lem b rete dos
m an d am e n to s de D e u s (veja em 5.28).
“ E to d o s os q u e nele tocavam eram cu rad o s.” E ssa é u m a conclusão
apropriada p ara o m in istério d e Jesu s em m eio às m u ltidões d e 6.31-56, pois
a últim a palavra, “ c u ra d o s” (gr. sç^p), p o d e significar “ cu rad o s” o u “ salvos” .
A co m p aix ã o d e Jesu s alim en to u , a te n d e u e c u ro u as m u ltid õ es, m as as
bênçãos d e sua co m p aix ão levantam a q u estão d errad eira se aqueles que
experim entaram essas b ên ç ão s avançarão p ara e n tra r n o p ro p ó sito salvífico
de Jesus. A s b ên ç ão s físicas de Jesu s n ão são u m fim em si m esm as, m as um a
encruzilhada n a estrad a em q ue u m lad o leva ao p ro p ó s ito salvífico de Jesus,
e o o u tro p ara u m a falsa co m p re en são de Jesu s c o m o apenas u m o p e ra d o r
de m aravilhas. S ch latter o b serv a co rre ta m e n te o seguinte: “R eco n h ecem o s,
no zelo c o m q ue as p esso as trazem os d o en tes para Jesus, n ão só co m o a
bondade incansável d e Jesu s tocava tão p ro fu n d a m e n te Israel, m as tam b ém
o q uanto Israel c o n tin u o u d istan te de Jesus, p o is buscava nele apenas a cura
de seus d o e n te s ” .61

R E C U P E R A N D O A V E R D A D E I R A IN T E N Ç Ã O D A L E I (7 .1-2 3 )

A c o n fro n ta ç ã o de Jesu s co m os fariseus em 7.1-23 so b re a q u estão da


tradição oral n ã o tem n en h u m a co n ex ão óbvia co m os episódios precedentes.

61 A. Schlatter, D ie Evangelien nach M arkus und L ukas, p. 71.


M a rc o s 7.1-5 262

U n ir as historias c o m o tijolos e m u m a fileira co m p o u c o o u n e n h u m cim ento


editorial não é in co m u m em M arcos. E ssa unidade em particular m o stra sinais
d a m ão editorial d e M arco s ao lo n g o d e to d a a passagem . A n ecessidade de
definir “ m ãos im p u ras” n o versículo 2 ju n to c o m a explicação p aren tética
d o c o stu m e judaico d e lavar as m ão s n o s versículos 3,4 seriam desnecessá-
rias se M arcos estivesse esc rev e n d o p ara os judeus. P assagens co m o essas
re p resen ta m u m a evidência in co n fu n d ív el d e q u e M arcos está escrevendo
para não ju d eu s e, p ro v av elm en te, p ara os g en tio s rom anos. A fo rm ação
editorial de M arcos é ainda m ais evidenciada pela referência ao a b a n d o n o da
m u ltid ão e à e n tra d a n a casa n o versículo 1 7 ,0 q ue característicam ente ab re a
o p o rtu n id a d e p a ra M arco s esclarecer o en sin o d e Jesus p ara o benefício do s
discípulos e leitores (2.1; 3.20; 4.10; 9.28; 10.10). A m ão editorial tam b ém fica
ev idente nas ad m o esta çõ es diretas d o s versículos 14 e 18 (“ O u ç am -m e to d o s
e en te n d a m isto ” ; “ Será q u e vocês ta m b é m n ão co n se g u em en ten d e r?”) que,
m ais u m vez, en fatiza o em b o ta m e n to das m u ltid ões e discípulos (tam bém
6.52; 7.17-21). P o r fim , o ad e n d o editorial p ara o versículo 19 d e q u e “Jesus
declarou p u ro to d o s os alim en to s” deixa claro p ara os leitores ro m a n o s de
M arcos q u e as q u estõ es cerim oniais d e purificação e os alim entos kosher, tão
im p o rta n te s p ara os judeus, n ão são o b rig ató rio s p ara o s seguidores d e Jesus.
A d estre za editorial d e 7.1-23 te m p elo m en o s dois p ro p ó sito s. U m é
m o stra r a o p o sição im p erio sa e n tre Jesu s e os fariseus so b re as q u estõ es da
trad ição oral. E sta , o elem e n to d efin id o r d o farisaísm o e jud aísm o rabínico,
é to ta lm e n te invalidada n a p re se n te perícope. O se g u n d o efeito é salientar
p ara os leitores de M arco s a d iferen ça radical en tre cristãos e judeus s o b re as
questõ es d e alim entos, p u rificação e o sen tid o essencial d a m o ralid ad e e d o
que agrada a D eus. A d iferen ça en tre m o tiv o s in te rn o s (v. 21) e as o b serv ân -
cias cerim oniais (v. 18) é ap rim o ra d a n a p re se n te passagem . E ssa distinção
m an ifestará u m a in flu ên cia d efin id o ra n a igreja prim itiva, c o n fo rm e eviden-
ciado n a h istó ria d e P e d ro e C o rn élio em A to s 10, o u n o s en sin am en to s de
Paulo de q u e “ n e n h u m alim en to é p o r si m esm o im pu ro, a n ão ser p ara qu em
assim o c o n sid e re ” (R m 14.14). N a e s tru tu ra d o evangelho d e M arcos, a dura
o p o sição en tre Jesu s e os fariseus so b re a trad ição oral a p o n ta tam b ém para
a o p o sição e n tre Jesu s e os judeus d a G alileia, pois, daqui em dian te, Jesus
ab an d o n a o q u ad ran te n o ro e ste d o m ar d a Galileia e, à p a rte d e duas aparições
su b seq u e n te s (8.11; 9.33), d irecio n a seu fo co p ara as regiões p re d o m in a n te -
m e n te gentias e, m ais tarde, p ara a Ju d eia e Jerusalém .
263 M a rc o s 7.1-5

1 O relato co m eç a co m a o p o sição d o s fariseus (visto pela últim a vez


em 3.6) e m estres d a lei (vistos pela ú ltim a vez em 3.22). (S obre os fariseus,
veja ainda os co m en tário s em 2.18; so b re os m estres d a lei, em 1.22). E les
vêm m ais u m a vez d e Jeru sa lém (3.22), q u e até ag o ra era a fo n te principal de
o p o sição a Jesus, localizada cerca de 144 q u ilô m e tro s a sul d e C afarnaum .
N ã o p o d e m o s d iz er c o m certeza, m as se Jesu s saiu d a G alileia por cama desse
episódio, e n tão a d isp u ta co m os fariseus n ã o é p ro v av elm en te u m a d isputa
isolada, m as u m a m ed id a de u m a o p o sição m ais am p la c o n tra ele.

2-5 O co n flito e n tre Jesu s e os fariseus p o d e ser m ais bem e n ten d id o se


ex am in a rm o s dois p o n to s so b re os quais d iferem . U m é a ideia de “impu-
reza” (w . 2,5,15,18,20,23). O s rituais c o n c e rn e n te s ao estar lim p o e im p u ro
refletem os d ese n vo lvim en to s rabínicos m ais q u e as prescriçõ es da Torá.
D e ac o rd o c o m o A n tig o T estam en to , só os sacerd o tes tin h am de se lavar
antes d e e n tra r n o tab ern ácu lo (Ê x 30.19; 40.13; L v 22.1-6); caso contrário,
o lavar as m ão s — o p o n to da c o n te n d a n o versículo 2 — era p rescrita só se
alguém to casse algum fluxo c o rp o ral (Lv 5.11). N o en tan to , c o m o o judaís-
m o p a sso u a te r m ais co n ta to co m a cu ltu ra g en tia n o p erío d o pós-exílio,
a q u estã o d a p u re z a ritual g a n h o u u m n o v o sen tid o c o m o u m a fo rm a de
m a n te r a p u re z a judia em co n tra p o siç ão à cu ltu ra gentia. Isso alcançou sua
exten são ex tre m a na co m u n id ad e d e C u n rã d escrita n o s M M M . A separação
física e lavagens diárias d a co m u n id ad e d e C u n rã purificavam seus m em b ro s
n ão só d a p ro fa n a ç ã o dos g entios, d o s sam aritan os e das p esso as com uns
(am-ha’aret\ ), m as ta m b ém de o u tras seitas judaicas q ue, p o r várias razões e
n os m ais variados graus, eram co n sid erad as im p u ras, in cluindo os saduceus
e até m e sm o os fariseus e o tem p lo d e Jeru salém . O s fariseus, dep o is da
co m u n id ad e d e C u n rã, eram a facção m ais e sc ru p u lo sa d o judaísm o com
relação às q u estõ es de pureza. Q u a lq u e r fo rm a de fluxo h u m a n o (saliva,
sêm en, m en stru aç ão , etc.), as m ulheres ap ó s d a r à luz, cadáveres, podridão,
coisas rastejantes, íd o los e certas classes de pessoas, c o m o os leprosos, os
sam aritan os e os g en tio s, tu d o isso era im u n d o p ara os rabis farisaicos. E ssa
lista envolve Jesu s e os discípulos em várias v iolações anteriores d o ritual de
purificação, u m a vez q ue estiveram c o m lep ro so s (1.40), publícanos (2.13),
g en tio s (5.1), m u lh eres m en stru ad a s (5.25) e cadáveres (5.35). O s rituais de
lavagem eram u m m eio de purificar e p ro te g e r os judeus o b serv an tes d a lei
de q u alq u er contam inação. (Mais so b re os fariseus, veja em 2.18.)
M a rc o s 7.1-5 264

É im p o rta n te c o m p re e n d e r q u e a “p u re z a ” n ã o se lim itava às questões


d e higiene, n em estava p rin cip alm en te p re o cu p ad a co m elas, n em , tam p o u co ,
as distin çõ es en tre lim p o e im u n d o são to ta lm e n te co m p reen sív eis c o m base
ap enas na explicação racional.62 A M ishná, p o r exem plo, declaro u q u e con-
siderava im u n d a as m ão s d e q u em to casse as seções aram aicas d e D an iel e
E sd ras, c o m o ta m b é m aco n tecia c o m a Sagrada E sc ritu ra se fosse traduzida
p ara o assírio. P o r sua vez, trad u z ir as seções aram aicas d a E scritu ra p ara o
h ebraico torn av a-as lim pas (m. Yad. 4.5). E sse tex to é u m d e n tre m u ito s que
indica q u e a “p u re z a ” tin h a u m a característica d e ritual o u culto, em o posição
a u m a d istin ção d a lim p eza p rática o u higiene.63 C o m certeza, m uitas pres-
crições d a T o rá c o m relação à p u re z a e c o n tam in aç ão p ro m o v iam a higiene,
m as os efeitos p rático s d e evitar g erm e s o u co n tágio n ão era a única, nem
m esm o a principal, p reo cu p ação . P ara os seres h u m a n o s m o d e rn o s criados
em u m m u n d o d e realidades em píricas, talvez seja difícil c o m p re e n d e r essa
ideia. U m a fo rm a d e tran sm itir o p o d e r d a distinção judaica e n tre lim p o e
im u n d o , talvez, seja tra ç an d o u m paralelo co m sociedades e o rganizações
autoritárias e m q u e as p esso as ev itam to d o s os co n ta to s c o m u m a p esso a
co n sid erad a su sp eita o u q ue, p o r exem plo, foi d esp ed id a d o em p reg o , e isso
p ara n ã o p ô r em p e rig o a p ró p ria posição.
Idéias c o m o essa d e te rm in a m 7.2-5. M arcos, p elo b em d e seus leitores
g entios, m e n cio n a vários tip o s d e purificação.64 O s fariseus se h o rro riz a m
c o m os discípulos d e Jesus, p o is estes c o m e m sem lavar as m ãos. O lavar das
m ão s antes d e c o m e r era esp e rad o d o s judeus, e, d u ra n te longas refeições,
p o d ería m se r n ecessárias várias lavagens das m ãos. A trad u ç ão d a N V I do
versículo 3 evita a dificuldade especial d e pygmê, “ p u n h o ” , n o original gre-

62 O b serv e o julgam ento de M aim ônides de que as leis talm údicas de p u reza “ estão
incluídas nos decretos arbitrários” . Veja Mishnah Torah: The Book o f Cleanness, V IH .
Immersion Pools 11:12, trad. H . D anby, The Code o f Maimonides, Book Ten: The Book
o f Cleanness (N ew H aven: Yale U niversity Press, 1954), p. 535.
63J. N eusner, The Idea o f Purity in A n à e n tfudaism , SJLA1 (Leiden: Brill, 1973), p. 1,
co m en tando sobre a distinção entre pureza e ¿mundicia, escreve: “ Se você toca em
um réptil, você p o d e não ficar sujo, m as fica im puro. Se você se su b m eter a um
ritual de im ersão, você p o d e não se livrar da sujeira, m as fica puro. U m cadáver
p o d e torná-lo im puro, em b o ra possa não deixá-lo sujo. U m ritual de purificação
envolvendo o b o rrifo de água m isturada com cinzas d e um a novilha verm elha
provavelm ente não rem overá um a grande quantidade de sujeira, m as rem overá a
im pureza” .
64 Sobre lim po e im undo n o século I d .C , veja N eusner, The Idea o f Purity in A n à en t
fudaism , p. 32-71.
265 M a rc o s 7.1-5

go. E ssa é a única in stân cia n a literatu ra g reg a e cristã existente de lavar os
pulsos, e seu sen tid o é p a rtic u la rm e n te indefinível.65 V árias sugestões foram
p ro p o sta s p ara explicar isso, in clu in d o o lavar c o m u m p u n h a d o d e água, o
lavar as m ão s co m p u n h o cerrad o o u o esfreg ar d o p u n h o d e u m a m ão co m
a palm a d a o u tra m ão . E só p o d e m o s co n je c tu ra r quais dessas possibilidades
(se é que algum a delas) é a co rreta. A p rim eira h ip ó te se p o d e ser levem ente
preferível fu n d a m e n ta d o n o fato de q u e m ão s im p u ras são consideradas
“im p u rez a d e p rim eiro g rau ” (e.g., m. Yad. 3.1), o u seja, aquela q u e p o d e ser
p urificada c o m a q u an tid ad e m ín im a de água — talvez a q u an tid ad e co n tid a
nas “ m ão s em c o n c h a” (m. Yad. 2.1).
“ Im p u re z a s de se g u n d o g ra u ” , m ais graves, só p o d iam ser purificadas
p o r m eio d e im ersão c o m p leta na água. O re to rn a r d o “ m e rc a d o ” in co rrería
o sten siv am en te na im p u reza d e se g u n d o g rau , o n d e o c o n ta to co m várias
p esso a s e coisas im u n d as to rn a ria m o in d iv íd u o im u n d o . E sse p o d e ser
o sen tid o in c o m u m da palavra “ lavarem ” n o versículo 4 (gr. bapti^esthai/
baptismos), significa literalm ente “ b atiz a n d o ” .66 A im p u reza de seg u n d o g rau
exige u m a purificação m ais co m p leta, daí a im ersão, talvez co m o esfregar.
O co n c e ito d e tran sferên cia da im p u rez a de um o b je to p ara u m a p esso a em
co n tato c o m o o b jeto g o v ern a o p en sa m e n to d o versículo 4, “ o lavar de copos,
jarros e vasilhas d e m etal” . V ários fato res c o n trib u íam p ara d ecidir se u m
o b jeto era lim p o o u im u n d o . U m a superfície cu rv a o u cô n cav a que p o d eria
c o n te r algo d e n tro — c o m o os o b jeto s acim a — p o d e se to rn a r contam inada

65 A esquisitice do “punho” é refletida na tradição manuscrita. Dois manuscritos


uncíais (‫ א‬W) e várias versões antigas trazem pykna (“com frequência”), e não pygmi
(“punho”). Isso faz mais sentido, mas o vasto apoio textual de peso para “punho”,
igualmente em manuscritos diversos e antigos, argumenta por sua originalidade.
T. C. Skeat, “A N ote o n pygmê em Mark 7:3” , JTS 41 (1990), p. 525-27, argumen-
ta que o term o é um erro dos escribas resultando de uma corruptela do ean mê
precedente. Esse seria um erro crasso dos escribas. Str-B 2.13-14 rejeita a leitura
“punho” fundam entado no fato de que a lavagem das mãos na forma de punho
é desconhecida na literatura judaica. E m bora isso seja verdade, é um argumento
do silêncio, pois a literatura judaica não prescreve se a mão deveria estar aberta
ou fechada durante a lavagem. Veja a discussão com pleta em R. Guelich, Mark
1-8:26, p. 364-65, que favorece o sentido “com as mãos em concha”. O ritual de
lavar as mãos no judaísmo e islamismo m odernos, incidentalmente, tendem a ser
feito com a mão fechada, e não aberta.
M>Dois manuscritos uncíais im portantes (‫ א‬B) trazem rhantisõntai (“borrifo”), em vez
de baptisõntai (“m ergulho/im ersão”), mas o núm ero e diversidade de manuscritos
favorecendo a última leitura garantem praticamente sua originalidade.
M a rc o s 7 .1 5 ‫־‬ 266

e n ecessitar de lavagem , ao p a sso q u e u m a superfície plana n ão precisaria.67


T am b é m , as superfícies e su bstâncias p o ro sa s (e.g., cerâm ica) eram susce-
tíveis d e ficarem im undas, ao p asso q ue as superfícies duras (m etais, p ed ra
n ão cortada, vidro) eram em geral lim pos. U m a série d e m an u scrito s gregos
acrescentam “ cam as” n a lista d e o b jeto s d o versículo 4, os quais precisam
ser lavados.68 A cam a, e m b o ra p o ssa p arece r algo su rp re e n d e n te n a lista de
objetos, tem u m a superfície suave q u e aceita im p urezas (fluxos d o s h o m en s,
fluxo m e n stru a l das m ulheres, L v 15.4,20). A cam a, a m e n o s q u e fosse lavada
e purificada, co n tam in av a q u alq u er p esso a q ue se sentasse nela o u que tivesse
algum c o n ta to co m ela.
P ara os leitores m o d e rn o s, a purificação d os o b jeto s e n u m erad o s em
7.2-5 p o d e p arece r u m exagero. A lgum as pessoas p o d e m até su sp eitar que
M arcos se envolveu em u m a polêm ica antijudaica. N o en tan to , n ad a disso
p arece ser o caso. U m a variedade de evidências d o século I c o rro b o ra basi-
cam e n te a o b sessão farisaica c o m a pureza, c o n fo rm e d escrito p o r M arcos.
Jac o b N e u sn e r o b serv a q u e a característica d o m in a n te d o farisaísm o antes
de 70 d. C , c o n fo rm e d escrita n as tradiçõ es rabínicas e n o s evangelhos, diz
resp eito às co n d içõ e s c o n c e rn e n te s à p u re za ritual.6970Vale a p e n a lem b ra r que
as questões d a p u re za o cu p a m 25% da M ish n á.'0 A s escavações arqueológicas
co n tin u a m a d e sc o b rir mikwa'ot judaicas o u piscinas d e lim peza, u m asp ecto
p ad rão das casas e asse n ta m e n to s judaicos n o século I (veja M ishná, trata d o
Mikwa’ot). F oi d e sc o b e rto u m mikwa’ot no cu m e d o M assada, u m d o s lugares
m ais áridos d a terra.
A c o n te n d a en tre Jesu s e os fariseus so b re lim p o e im u n d o , n o en tan to ,
era só sin to m á tic o de u m a divisão, o p o n to crucial dela dizia re sp eito à “ tra -
d iç ã o d o s lid e re s re lig io so s” (w . 3,5,8,9,13). O s fariseus, d e fo rm a d istin ta
d o s saduceus p ara q u em só a lei escrita d a T o rá era autoritativa, aceitavam a
evolução d a lei oral c o m o tã o au toritativa q u a n to a T o rá (Josefo ,Ant. 13.297).
A tradição oral, ju n to co m os rim ais de lim peza m en cio n ad o s acim a, tam b ém
se to rn o u m ais p ro n u n cia d a d ep o is d o en c e rra m e n to d o A n tig o T estam ento.

67 Schürer, H istory o f theJewish People, p. 475-78.


68 O m itido n a N V I po rq ue vários m anuscritos im portantíssim os (]545‫ א‬B L Δ) não
trazem a palavra. A evidência dos m anuscritos que om item a leitura é considerável.
O caráter extraordinário da palavra n a lista de objetos, p o r sua vez, argum enta em
favor de sua inclusão, com o o faz um cam po respeitável de m anuscritos uncíais,
m inúsculos e, em especial, os pais da igreja.
69 N eu sner, The Idea o f Purity in A ncientJudaism, p. 65.
70 Ibid., p. 8.
267 M a rc o s 7.6-9

N a verd ad e, a acusação d o s fariseus e m estres d a lei n o versículo 5 d e que os


discípulos de Jesu s co m iam c o m as m ão s im p u ras n ã o p o d ería ter sido feita,
n em sustentad a, co m base n a T orá, m as apenas co m b ase na tradição oral. N a
época d e Jesus, a adesão à trad ição oral n ã o escrita era tã o im p o rta n te para os
fariseus q u a n to a ad erên cia à p ró p ria T orá. E m b o ra essa alegação n ão possa
ser su ste n ta d a co m base só n o A n tig o T estam e n to , os rabis p ro m o v eram
a ideia de q ue M oisés re ceb e ra duas leis n o m o n te Sinai, a T o rá escrita e a
M ishná oral. A creditava-se q ue a M ish n á preserv av a u m a c o rre n te co n tín u a
da trad ição au to riz ad a q u e se esten d ia d e M oisés até a “ G ra n d e Sinagoga”
da ép o c a de Jesu s (m. Avot 1.1-13). A M ish n á cham ava a in terp re taçã o oral
de “ u m a cerca em to rn o d a T o rá ” {m.Avot 3.14) — “ ce rca” sen d o en ten d id a
com o p re serv aç ão d a in teg rid ad e da lei escrita ao e lab o rar to d as as im pli-
cações concebíveis dela. E m geral, a T o rá era c o m p re en d id a c o m o diretiva.
Seus m a n d a m e n to s declaravam 0 que D e u s d ec retara, m as n e m sem p re como
deviam ser cu m p rid o s. A creditava-se que a T o rá p o r si só, d e ac o rd o co m os
defensores da trad ição oral, era m u ito am b íg u a p ara estabelecer e g o v ern ar
a co m u n id ad e judaica. A trad ição oral, c o n fo rm e p re serv ad a n a M ishná, p o r
sua vez, prescrev ia n o s m ín im o s detalhes c o m o a in ten çã o d a T o rá deveria
ser cu m p rid a nas circu n stân cias reais.71
O rig o r d a trad ição oral era u m indício d a seriedade co m que os fariseus
pretendiam co n firm a r a Torá. A tradição oral, pelo m en os em teoria, pretendia
expressar a in ten çã o d a lei e estendê-la às q u estõ es da vida diária. N a prática,
no en tan to , “ a trad ição d o s líderes religiosos” ten dia a m u d ar o c e n tro de
gravidade d a in ten çã o d a T o rá p ara u m c o n ju n to cada vez m aio r de assu n to s
periféricos q u e o u o b scu reciam o u p e rv ertiam essa intenção. E sse últim o
efeito é o fo co d a crítica c o n tu n d e n te d e Jesu s n o s versículos 6ss.

6-9 O sarcasm o d o versículo 6 (e d o v. 9) n a N V I ta m b é m está p resen te


no original grego: “V ocês estão sem p re en c o n tra n d o u m a b o a m aneira de p ô r
de lado os m a n d a m e n to s de D e u s, a fim d e o b e d e c ere m às suas tradições!”
Jesus, q u a n d o se refere aos fariseus c o m o “ h ip ó critas” , utiliza u m term o
do teatro cujo sen tid o é d e se m p e n h a r u m papel n o palco. E m especial n o
teatro g reg o , os ato res usavam várias m áscaras d e a c o rd o co m o papel in-
terpretado. A palavra “ h ip ó crita” , co n se q u e n te m en te , significa alguém que
desem penha u m p ap el sem sinceridade, sendo, n esse caso, u m fingidor. A

71 Sobre o papel e a relevância da Mishná em relação à Torá, veja o material reunido


em HCNT, p. 100-104.
M a rc o s 7.6-9 268

citação d e Isaías 29.13 (LX X) define c o rre ta m e n te “ h ip ó crita” c o m o aquele


q u e d á v oz a se n tim en to s im p o n e n te s e até m esm o n o b re s divorciados das
in ten çõ es d o coração. A s p esso as q u e fazem isso “ em v ão m e ad o ra m ” , de
ac o rd o co m a citação. O resu ltad o d essa p re te n sã o é qu e “ seus en sin am en to s
n ão p assam d e regras ensinadas p o r h o m e n s ” , idolatria, p o rta n to , o u seja, a
substituição d o d ivino p elo m e ra m e n te h u m an o . O s fariseus, co m relação à
tradição oral, su b stitu em as in terp re taçõ e s d a lei pela lei em si, in terp retaçõ es
essas re alm en te d iscrep an tes d a in ten çã o d a lei.
Seria u m e rro p re su m ir q u e Jesus, ao ch am ar os fariseus de “ h ip ó critas” ,
acusa-os d e falta d e dedicação. N o julg am en to d e Jesus e de M arcos, eles
estavam m u itíssim o eq u iv o cad o s n o cu rso q u e seguiam , m as n ão eram , que
saib am o s, superficiais o u d esc o m p ro m issad o s. A o co n trário , era o com -
p ro m isso deles c o m a trad iç ão oral — e o co m p ro m isso igual de Jesu s para
re cu p erar a in te n ç ã o d a lei escrita — que to rn a v a as diferenças en tres eles
tão sérias. E les, p ara v o ltar à m e táfo ra de “ h ip ó critas” , p o d iam c o n fu n d ir
a p eça teatral c o m a realidade, m as faziam isso c o m rig o r e v ig o r — e, p o r
conseg uinte, são m ais p erig o so s p o r causa disso.
E m 7.8,9, Jesu s c o n tra sta co m v eem ên cia a in terp re taçã o oral co m a
v o n tad e d e D e u s. Jesu s declara que a “ trad ição d o s líderes religiosos” (w .
3,5,8) é “ trad iç ão dos homens (w . 8,13; g rifo d o au tor) em c o n tra ste c o m os
“ m a n d a m e n to s d e D e u s ” revelados (w . 8,9) o u a “ palavra de D e u s ” (v. 13).
O s v e rb o s n o versículo 9 são m ais c o n c re to s e v ig o ro so s que os da trad u ção
da N V I. O s fariseus além d e “ p ô r d e lad o ” os m a n d am e n to s de D e u s, o u
seja, favorecer algo p a ra p ô r n o lugar deles; eles “ rejeitam ” (gr. athetein) os
m an d a m e n to s ao fazer u m a esco lh a co n sc ie n te contra eles. A N V I, m ais u m a
vez, afirm a q u e os fariseus fazem isso a fim d e “ o b e d e cer às suas trad içõ es” .
Se o g re g o stésête fo r a leitu ra a p ro p riad a n o versículo 9, e n tão é m ais fo rte e
específico: os fariseus fazem isso p ara erigir (stêsêtè) algo n o lugar d a T o rá o u
fazer c o m q u e algo to m e seu lugar.72 A lém disso, o te m p o verbal n o p re sen te
d o s v erb o s g reg o s n o s versículos 8,9 indica q u e os fariseus continuam a con-
firm ar as trad içõ es h u m an as e continuam a rejeitar os m a n d am e n to s d e D eus.
A trad ição oral, p o rta n to , é ex p o sta e cen su rad a pela substitu ição deliberada
d a inven ção h u m a n a pela palavra e v o n ta d e d e D eus.

72 O “ obedecerem ” da N V I segue a leitura têrêsète, existente em um grande núm ero de


m anuscritos (‫ א‬A B \têrètè\ K L X Δ Π ), ao passo que a leitura stésête é atestada p o r
poucos uncíais (D W Θ ), nen h u m dos m inúsculos e vários pais e versões. E m geral,
pode parecer que tèrêsête é a leitura preferível (contra M etzger, T C G N T , p. 94).
269 M a rc o s 7.10-13

10-13 N ã o só é u m a in v en ção h u m an a, m as ta m b ém re p resen ta um a


d isto rção d a lei. O exem plo d e “ C o rb ã ” traz a crítica q u e Jesu s faz à tradição
oral p ara u m a expressão concreta. O m an d am e n to p ara h o n ra r os pais ilustra a
divergência radical de Jesus co m os rabis. O q u in to m an d am e n to n o D ecálogo
é: “ H o n ra te u pai e tu a m ã e ” (v. 10; Ê x 20.12; 21.17; L v 20.9; D t 5.16). M as
vocês, afirm a Jesu s, evitam esse m a n d a m e n to p elo artifício d e C orbã. Jesus
apela p ara a reg ra original d e M oisés a fim d e co rrigir a tradição oral que se
desvio u d a in te n ç ã o original, o u seja, ele está fazen d o co m q u e o D ecálo g o
se to rn e u m a “ cerca c o n tra a tradição rab ín ica” , p o r assim dizer. O vocês d o
versículo 11, d a m esm a fo rm a que a referên cia a “suas trad içõ es” (grifo d o
autor), é en fático n o grego, in d ican d o q u e a in te rp re ta çã o d os fariseus n ão
é um d ese n v o lv im en to fiel d a lei de M oisés, m as u m a p erv ersão dela, algo
distin to d o m a n d a m e n to em si. C o rb ã, d a palavra hebraica p ara “ o fe rta ” , era
um co stu m e ra b ín ico derivado d a prática d e d e v o ta r alguns b en s ao S enhor,
c o n fo rm e especificado em L ev íü co 27.28 e N ú m e ro s 18.14. O trata d o da
M ishná Nedarim (“V o to s”) desenvolve a diretiva geral d e d ev o tar b en s es-
pecíficos ao S e n h o r em u m a coletânea elab o rad a d e regras e regulam entos.
C o rb ã era sim ilar ao co n ceito d o d o a r deferido. H o je u m a p esso a p o d e deixar
um a p ro p rie d a d e p ara um a instituição b e n e ficen te o u o u tra agência social
q u an d o m o rre r, e m b o ra re te n h a a p o sse so b re a p ro p rie d ad e, c o m o tam b ém
lucros o u ju ro s resultantes dessa pro p ried ad e. N o caso de C o rb ã, um a pessoa
podia d ed ica r os b en s a D e u s e separá-los d o u so c o m u m , e m b o ra retivesse o
co ntrole deles. N o exem plo d o versículo 11, um filho declara sua p ro p ried ad e
C orbã, o q u e significa que, ap ó s sua m o rte , ela p assa a ser p o sse d o tem plo.
N esse ín terim , n o en tan to , o filho retém o c o n tro le so b re a p ro p rie d ad e — e
seu co n tro le desp o ja seus pais, em sua velhice, d o su sten to que d e o u tra form a
seria p ro v e n ie n te d a p ro p ried ad e. A descrição de T. W. M an so n dessa prática
é p artic u la rm e n te sincera e vigorosa: “ U m h o m e m p assa pela form alidade
de fazer u m v o to p ara D e u s, n ão p ara q u e d ê essa p o sse a D e u s, m as a fim
de im p ed ir q u e o u tra p esso a ten h a esse b e m ” .73 C o n tu d o , esse n ão era o fim
do assunto. U m a vez q u e a p ro p rie d ad e era o fe rec id a a D e u s, os sacerdotes
desencorajavam as pessoas a rem ovê-la d o C o rb ã a fim de re to rn á-la ao uso
hum ano. O s sacerdotes, d e a c o rd o co m Jo sefo , exigiam cin q u en ta siclos de
um h o m e m e trin ta siclos d e u m a m u lh er p ara q u e o C o rb ã fosse cancelado
{Ant. 4.73). A p rática d e C o rb ã re su lto u em casu ísm o ch o c an te pela anulação

73 TheTeachingofJesus: Studies o f Its Form and Content (Cambridge: C am bridge University


Press, 1951), p. 317.
M a rc o s 7.14-16 270

d e u m m a n d a m e n to m o ral d a T o rá (h o n rar os pais) em favor d a aceitação da


trad iç ão oral (C orbã). A ssim , u m b e m m o ral sem am biguidades e concreto:
“ H o n ra teu pai e tu a m ãe” , n ã o só é anulado, m as ta m b ém é rev ertid o de
fato ao proibir u m filho de fazer “ algo p o r seu pai o u m ãe” .74
A g ra n d e q u a n tid ad e d e p ro n o m e s n a seg u n d a p esso a d o plural em
7.12,13 revela q u e os rabis, ao p ro m o v e r o C o rb ã, estão in ten cio n alm en te
p e rp e tra n d o u m casu ísm o m oral. “ Vocês o d eso b rig am de q u alq u er dever
p ara co m seu pai o u sua m ãe. A ssim vocês anulam a palavra d e D e u s, p o r
m eio d a trad ição q u e vocês m e sm o s tra n sm itiram ” (grifos d o autor). C o rb ã
n ão é apenas u m a m açã p o d re n o cesto, cuja re m o ç ã o salvaria to d o o lote.
A n tes, caracteriza u m a p erv ersão m ais ab ran g en te p ro m o v id a pelas atitudes
e m é to d o s d o s fariseus e m estres d a lei. “ E [vocês] fazem m uitas coisas c o m o
essa” , diz Jesu s (v. 13). O v e rb o “ faze[r]” (gr.poieite) está n o te m p o p resen te,
co m sen tid o d e q u e o C o rb ã n ão é um a an o m alia en tre os fariseus, m as, sim ,
u m p ro c e d im e n to pad rão.

14-16 A p e rv e rsã o p o r atacad o d a T o rá p o r p a rte d a trad ição oral é


e n q u a d ra d a p e lo ap elo u rg e n te e incisivo d e Jesus. “ O u ç a m -m e to d o s e
e n ten d a m is to ” . O v erb o “ oufvir]” (gr. proskaleomai) o c o rre n o v e vezes em
M arcos n o c o n te x to de p ro n u n c ia m e n to s solenes.75 M arcos enfatiza m ais
u m a vez q u e a fé e a c o m p re e n sã o resu ltam d o ouvir. O s judeus co n co rd av am
p len am ente q ue a ingestão de alim entos po lu íd o s o u p ro ib id o s contam inavam
o in div íd u o e n ecessitavam d e u m b a n h o d e purificação (Lv 17.15). Jesus,
n o en tan to , re v e rte a d ireção d o fluxo: n a realidade são as im p u rezas internas
q ue c o n ta m in a m as coisas externas. Jesus, ao tra ta r da acusação original

74 A M ishná registra um a regra similar à dos versículos 10-12 (em bora revertendo
os papéis d o pai e do filho): “ Se um h o m e m disse a seu filho, ‘Konam seja de seu
benefício para você com o o foi para m im !’, quando m orrer, o filho p o d e h erd ar a
pro priedade dele; [mas se, além disso, ele disse] ‘tanto duran te m in h a vida quanto
em m in h a m orte!’, q u ando ele m orrer, o filho não p o d e h erd ar o bem em ques-
tão e tem de restituir [o que recebeu de seu pai em qualquer m o m en to durante
a vida deste] aos filhos o u irm ãos do pai; e se ele não tem nada [com que pagar]
ele tem de pedir em prestado, e os credores vêm e exigem o pag am en to ” (m. B.
Qam. 9.10). S obre a questão do C orbã, veja Str-B 1.711-17. O tratado Nedarim da
M ishná está repleto de exem plos similares aos dos versículos 10-12, em que as
pessoas e propriedade estão isentas de suas funções usuais apenas pelo proferir
“Κ οηαηί’ (um substituto respeitado para “ C orbã”).
75 3.13,23; 6.7; 7.14; 8.1,34; 10.42; 12.43; 15.44. Todos, m en os o últim o, são p ro n u n -
ciam entos de Jesus.
271 M a rc o s 7 .1 7 1 9 ‫־‬

de q u e os discípulos estavam c o m e n d o sem lavar as m ão s (v. 2), faz esse


p ro n u n c ia m e n to : “ N ã o h á n ad a fo ra d o h o m e m que, nele en tra n d o , p o ssa
to rn á-lo im puro. A o co n trá rio , o q u e sai d o h o m e m é q u e o to rn a im p u ro ”
(veja M t 2 3 .2 5 ).6 E sse p ro n u n c ia m e n to sim ples resu m e n a v erd ad e a teoria
rabínica de q u e os espaços in terio res eram os m ais suscetíveis à co n tam in a-
ção e, p o rta n to , m ais n ec essitad o s de purificação.7677Jesus, em u m a b rilhante
reaplicação e ex ten são d o p rin cíp io o rie n ta d o r d e seus o p o n en tes, aplica a
teoria d o s recipientes co ntam in ad o s às pessoas, c o m o se dissesse: “ Se o interio r
do vasilham e co n ta m in a as pessoas, q u a n to m ais essa co n tam in ação n ão se
daria p elo in te rio r das pesso as?” Im p u re z a e c o n tam in aç ão são assu n to s da
in ten çã o e d o coração, e n ão a violação d o s rituais e fo rm alid ad es cultuais.78

1 7 1 9 ‫ ־‬A im p o rtâ n c ia d esse p re c e ito é en fa tiza d a p o r u m a audiência


p articu lar c o m os discípulos n o versículo 17. M arco s em geral p õ e os m o-
m en to s d e revelação divina em u m a casa, lo n g e d a in terferên cia e d os m ais
variados m o tiv o s d a m ultidão. E ssa co n v e n ção é enfatizada p o r u m co n traste
p o r aliteração e m grego: Jesu s “ d eixar a m u ltid ão (gr. ochlos) e e n tra r em casa
(gr. oikos)” (v. 17). C o n tu d o , os discípulos são m ais u m a vez im perm eáveis
à verdade. Jesu s, em exasperação, in terp ela-o s: “ ‘Será q u e vocês tam b ém
n ão co n seg u em e n ten d e r?’ [...]. ‘N ã o p e rc e b e m [...]? ’ ” A falha deles em
co m p re e n d e r n ã o é o resu ltad o da estu p id ez, n em , tam p o u co , precisam de
ilum inação p o r m eio de in stru ção eso térica c o m o n o gnosticism o. A falta de
p ercep ção deles está relacionada a um a c o m p re e n sã o equivocada “ d a pará-
bola” (v. 17), sem elh an te à d o s de fora em 4.12.79 U m a p aráb o la n ão p o d e ser

76 E sse pro n u n ciam en to é preservado no Evangelho de Tomé 14: “ Pois o que entra em
sua boca não contam ina você, m as o que sai de sua boca, é isso que o contam ina” .
77 C om relação aos vasilham es, m. Kel. 2.1-7 expõe a teoria geral de que um a super-
fície é n o rm alm en te lim pa, ao passo que as superfícies côncavas o u receptáculos
são suscetíveis de se tornarem im undas. Veja Schürer, H istory o f the Jewish People,
2.476-77.
78 A m aioria dos m anuscritos gregos incluem o versículo 16 depois d o versículo 15:
“Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça” , em b o ra o versículo seja om itido pe-
los m anuscritos da tradição alexandrina (‫ א‬B L Δ). A evidência dos m anuscritos,
p o rtan to , argum enta em favor de incluir o versículo. N ã o ob stan te, a decisão de
om itir o versículo 16 é provavelm ente justificada com base no p ressu p o sto de que
o versículo era um a interpretação dos escribas dos versículos 9 e 23. Veja M etzger,
T C G N T , p. 94-95.
7'J Sobre as sim ilaridades entre 7.14-23 e M arcos 4, veja E. S. M albon, “ E choes and
Foreshadow ings in M ark 4 -8 : R eading and Rereading”, JB L 112 (1993), p. 218.
M a rc o s 7 .1 7 1 9 ‫־‬ 272

e n te n d id a d o lado ex tern o , m as apenas ao e n tra r nela e v er a realidade que


descreve a p artir d e seu interior. O s discípulos são c o m o cães o lh a n d o para
o in d icad o r a p o n ta d o d e seu m estre, e n ão p ara o o b je to p ara o qual o d ed o
ap o n ta. São c o m o p esso as o lh a n d o p ara os vitrais de u m a catedral p elo lado
de fora. A visão e co m p re e n sã o deles são igualm ente em b o tad as e sem vida.
A c o m p re en são d a lei q u e Jesu s deseja n ã o se relaciona à visão física
o u à consciência m en tal, m as ao “ c o raçã o ” (v. 19). O co ração é o ce n tro da
p erso nalid ad e h u m an a, a vontade, cuja separação de D e u s foi lam en tad a na
citação d e Isaías d o versículo 6: “ m as o seu co ração está lo n g e d e m im ” . Para
o benefício daqueles que n ão p o d em ver, m as precisam conhecer, Jesus explica
a im agem . O alim ento p o d e en tra r pela boca, m as tu d o acaba n o m esm o lugar.
M arcos c o m p re e n d e que, co m isso, Jesu s declara to d o s os alim entos puros.
E ssa é u m a in serção editorial reveladora, p o is M arcos, em sua peça teatral,
raras vezes so b e ao p alco c o m o u m ator. E m raras ocasiões (e.g., 3.30), ele faz
isso p ara co n fe rir u m sen tid o especial a suas in terp retações. Q u a n d o M arcos
escreveu seu evangelho, as q u estõ es relacionadas aos alim en to s kosher e às
regras dietárias eram p ro e m in e n te s n a m e n te d o s c o n v ertid o s ao cristianis-
m o, em p artic u la r d o s p ro v e n ie n tes d o p ag an ism o (e.g., IC o 8). M en o s de
u m a d écad a antes, Paulo, m u ito p o ssiv elm en te, ta m b é m tra to u d a q u estão
de alim en tos lim p o s e im u n d o s em R o m a (R m 14— 15), o local provável do
evangelho de M arcos. A declaração p aren tética d e M arcos d e que “ to d o s
os alim en to s” são “ p u ro s ” (v. 19), revela dessa fo rm a sua co m p re en são da
p osição d e Jesu s em relação ao a ssu n to d e alim ento s lim pos versus im undos.
E ssa declaração te m p re ced ê n cia so b re as reg ulam entações dietárias ta n to da
tradição oral q u a n to das leis escritas (e.g., L v 11; D t 14).80 M ais u m a vez em
M arcos, o e n sin a m e n to d e Jesu s é su p re m a m e n te auto ritad v o , su p lan tan d o
até a p ró p ria T orá. Jesu s — d e fo rm a sem elh an te ao p ro n u n c ia m en to anterio r
so b re o sáb ad o (2.27,28), o u sa n d o atrib u ir u m ju lg am en to definitivo so b re
u m a q u estão c o n c e rn e n te à revelação divina — assum e o p ap el d e D eus.

80 B. Pixner, W ith Jesus Through Galilee, p. 77, sugere que a in terp retação editorial
do versículo 19 foi acrescentada depois “porque Jesus estava planejando sair da
Galileia, a fim de passar um p eríodo de tem p o mais lo n g o co m os discípulos em
m eio aos gentios” . E ssa com preensão é recom endável p o r sua tentativa de loca-
lizar essa fala no m inistério histórico de Jesus, m as parece relegar a interpretação
a um a simples estratégia p o r p arte de Jesus e, talvez, reduzi-la a ter um a validade
apenas tem porária. A o contrário, as palavras e a localização d o versículo 19 dão
ao p ro n unciam ento de Jesus autoridade final e definitiva so b re as leis dietárias.
273 M a rc o s 7 .1 7 1 9 ‫־‬

O s rabis catalogavam c o m frequência as in fraçõ es às observancias legais,


mas Jesus cataloga as m aldades m ais p ro fu n d as d o coração. A lista em 7.21,22
m ostra u m p a d rã o definitivo em grego. O s p rim eiro s seis te rm o s o co rrem
no plural, in d ican d o atos m aus. O p rim eiro deles é “ im oralidades sexuais”
(gr. porneid), e n c o n tra d o n a literatu ra g reg a c o m referên cia a u m a variedade
de práticas sexuais ilícitas, in clu in d o adultério, fo rn icação, p ro stitu iç ão e h o -
m ossexualidade. N o A n tig o T estam en to , isso o c o rre p ara q u alq u er prática
sexual fora d o ca sam en to e n tre u m h o m e m e u m a m ulher, prática essa proi-
bida pela T orá. E sse sen tid o é retid o e in ten sificad o n o N o v o T estam ento,
“caracterizado p o r u m re p ú d io in co n d icio n al de to d a relação sexual não
natural e ex tram arital” .81 O s te rm o s su b seq u e n te s na lista são g eralm ente
autoexplicativos: “ os ro u b o s, os h o m icíd io s, os ad ultérios, as cobiças, as
m aldades” . O ú ltim o te rm o (gr. Ponería) é m e n o s específico que os te rm o s
precedentes, significando apenas “ m au ” o u “ p e rv e rs o ” .
O s últim os seis te rm o s o c o rre m n o singular, in d ican d o atitudes perversas:
“o engano, a devassidão, a inveja, a calúnia, a arro g ân cia e a in sen satez” .82
Todos os d o z e te rm o s se abrigam n o s p e n sa m e n to s m alignos d o coração,
ilustrando, p o rta n to , o p o n to d a p aráb o la n o versículo 15, de q u e a conta-
m inação real p ro v é m d aq u ilo em itid o p elo co raçã o (veja M t 6.23). “T o d o s
esses m ales” , M arcos conclui, “vêm d e d e n tro e to rn a m o h o m e m im p u ro ” .
Isso re afirm a a co n clu são da p aráb o la d o v ersículo 15 que, p o r sua vez, iden-
tífica “ os m a n d a m e n to s de D e u s ” (v. 8) e “ a palavra de D e u s ” (v. 13) com
os assu n to s essenciais d o coração. E a trad ição d o s líderes religiosos falha
precisam ente em tra ta r d o co ração e, p o r essa razão, falha em re p resen ta r os
m and am ento s o u a v o n tad e d e D eus.
A passag em d e 7.1-23 é a fala m ais lo n g a d o co n flito n o evangelho de
Marcos. A extensão da seção é u m indício d e su a im portância. M arcos trabalha
para esclarecer qual o p ro p ó s ito essencial d a T orá, e, p o rta n to , o fu n d a m e n to
da m oralidade, é u m a q u estão d e pureza, m o tiv o e in ten ção in tern o s, e n ão de
obediência ex tern a aos rituais e costum es. A co n tro v é rsia, p o r conseguinte,
não p o d e ser in te rp re tad a c o m o u m caso p ara o a n tin o m ism o cristão, mas,

81 H auck/S chulz, “p o rn T , T D N T 6 .579-95.


82 Cranfield, The Gospel According to Saint M ark, ρ. 241, o b serv a que a palavra para
“cobiças” (pleonexià), que vem depois de “adultérios” , em geral, n o N o v o Testa-
mento, denota pecados sexuais com o paixões e desejos m aus (E f 4.19; 5.3; Cl
3.5; 2Pe 2.3). A “ inveja” traduz “ olho m au” , um a expressão rabínica com um para
inveja e avareza. A virtude contrastante de boa vontade era conhecida com o “olho
benevolente” .
M a rc o s 7 .1 7 1 9 ‫־‬ 274

antes, para a recu p eração da v erd ad eira in ten çã o da T orá. A “im p u rez a” não
p o d e m ais ser co n sid erad a u m a p ro p rie d a d e d o s o bjetos, m as, antes, um a
descrição das atitu d es in tern as, u m a co n d ição d o coração. A b o n d a d e da
ação d e p e n d e n ão apenas d e sua p rática, m as p rin cip alm en te d e sua intenção.
O ju lg am en to d e Jesu s co n trastav a n itid a m e n te co m aquele d o s essênios,
para q u em a p u re za era d ete rm in a d a pela aliança à co m u n id ad e; e tam bém
con trastav a co m os fariseus, p a ra q u e m a p u re za consistia de u m d iretó rio de
observâncias e pro ib içõ es. A s ab o rd ag en s d o s essênios e fariseus lim pavam
a lei d o p ro p ó s ito in te n c io n a d o e resultavam em tentativas d e estabelecer
su b stitu to s h u m a n o s p ara o ju lg am en to e graça divinos (R m 10.3). Jesus,
ao co n trário , é capaz de d eclarar o q ue ag rad a a D e u s, e n ão as “ tradições
dos h o m e n s ” . M arco s re trata Jesu s c o m o aquele que, em co n tra ste co m a
tradição oral, é o v erd ad eiro re v elad o r d e D e u s, p ois Jesu s p o d e p ro d u z ir a
tran sfo rm aç ã o in te rn a q u e a lei exige, m as n ão p o d e efetuar.
capítulo sete

Testemunho para os Gentios


M A R C O S 7 .2 4 — 8 .9

Jesus, ap ó s a c o n tro v é rsia co m os fariseus c o m relação aos assu n to s de


pureza e d a tradição oral em 7.1-23, em barca em u m a longa jo rn ad a em círculo
através d e T iro (7-24), S idom (7.31) e D e cáp o ü s (7.31). N ã o fica im ediatam en-
te claro n em em M arcos n em em M ateus, am b o s os evangelistas registram
essa iniciativa, p o r q u e Jesu s em b arca nesse itinerário em m eio aos g en tio s na
região o n d e ficam hoje o L íb an o e a Síria. P o d em o s, n o en tan to , co n sid erar
vários indícios e ch eg am o s p elo m e n o s a u m a co n clu são experim ental deles.
Um indício v em d o d esejo de Jesu s p o r seg red o em to d as as três histórias
nessa u n id ad e (7.24,33,36; 8.9,10). U m se g u n d o indício é a colocação d o iti-
nerário g en tio im ed iatam en te ap ó s a co n tro v érsia co m os fariseus em 7.1-23.
U m terceiro indício, talvez, seja a referên cia de 6.16 de q ue H e ro d e s A ntipas
achava q u e Jesu s era J o ã o B atista q u e re to rn a ra à vida. T o d o s esses indícios
tom ado s em c o n ju n to su g erem q u e Jesu s e os discípulos saíram da Galileia
para escap ar d a im p o rtu n açã o dos fariseus e, talvez, ta m b é m de H e ro d es que
governava a G alileia e a P ereia e m atara J o ã o B atista.1
E ssa é a única hipótese, m as parece justificada a p a rtir da evidência acima.
A hip ó tese é ainda ap o iad a pelo fato d e Jesu s n ã o en sin ar em seu itinerário
gentio. C o n sid e ran d o -se as q u in ze referências até o m o m e n to em M arcos
ao ensin o d e Jesu s n a G alileia, a om issão d e seu en sin o em m eio aos g entios
pede u m a explicação. Fica claro q u e o itinerário em círculos em T iro, S idom e
D ecápoüs é g u iad o p o r u m p ro p ó s ito m ais re strito q ue Jesus exercitou en tre
as cidades e p o v o ad o s judaicos. E le, em m eio aos gentios, faz obras p o d ero sas

1 Veja tam bém B. Pixner, Wege des Messias undStàtten der Urkirche. Jesus und dasJuden-
christentum im Licht neuer archàologischerErkenntnisse, Herausgegeben von R. Riesner
(Giessen/Basel: Brunnen Verlag, 1991), p. 68-71.
M a rc o s 7.24 276

d e expulsão d e d em ô n io s (5.1-20; 7.24-30), cura (7.31-37) e alim entação dos


fam in tos (8.1-10), m as n ão en sin a n em evangeliza. O te stem u n h o aos judeus,
d e ac o rd o co m 7.27, te m d e te r p rio rid ad e so b re o te ste m u n h o aos gentios.
O itinerário e m in istério de Jesu s em m eio aos g en tio s significa que o Reino
de D e u s ta m b é m é d irec io n ad o aos últim os, m as, c o n fo rm e o u tro s testem u-
n h o s d o N o v o T e sta m e n to atestam ,2 a m issão aos g en tio s n ão aco n tece antes
n em à p a rte d o te ste m u n h o p ré v io a Israel. A p ro clam ação d o evangelho
aos gentio s, c o m o a citação d o A n tig o T esta m e n to n o início d o evangelho
em 1.2,3 indica, é o c u m p rim e n to d a h istó ria d a salvação iniciada em Israel.
O itin erário g en tio d e 7.24— 8,9 re fo rça e avança a v erd ad e de 7.1-23: não
existem alim en to s im u n d o s (7.19) e n ão existem p o vo s im u n d o s o u im puros.
N ã o o b stan te, há u m paradoxo, pois a re sp o sta aos g en tio s é m ais favorá-
vel q u e a re sp o sta aos judeus na Galileia. Se a h istó ria an terio r da controvérsia
co m os fariseus em 7.1-23 tipifica a resistência d o jud aísm o oficial a je s u s , as
três histórias n a p re se n te seção revelam u m a receptiv idade su rp re e n d e n te a
Jesu s em m eio ao s gentios. A re sp o sta d o s g en tio s an tecip a a co nfissão na
cruz em qu e o p rim eiro ser h u m an o a re co n h ec er Jesus c o m o o F ilho de D eus
é u m g en tio (15.39). E ta m b é m assegura os leito res ro m an o s d e M arcos que
a inclusão deles n a salvação n ão era u m acidente, m as p a rte da providência
de D e u s, d eriv a n d o d o m in istério d e Jesus (R m 11.29-32).

U M A G E N T I A Q U E E R A U M A “V E R D A D E I R A I S R A E L I T A ”
(7.24‫־‬30 )
O e n c o n tro en tre Jesu s e a m u lh e r siro-fenícia re p resen ta u m co n tra ste
m arcante co m a controvérsia co m os fariseus na história precedente. A história
anterio r girava em to rn o de h o m en s judeus p reo cu p ad o s co m a lei. A presente
h istória diz resp eito a m u lh e r n ã o judia q ue n ão tin h a a lei. A tradição dos
líderes religiosos p re ssu p õ e q ue n ã o p o d e ría h aver salvação à p a rte da lei. N a
p resen te história, M arco s m o stra q u e u m a g en tia pagã p o d e e n c o n tra r em
Jesus o que a trad ição d o s líderes religiosos co nsiderava equivocadam ente
q ue só p o d ería ser en c o n tra d a na Torá.

2 M ateus 10.5,6; 15.24; João 12.20-26; A tos 3.26; R om anos 1.16,17.


277 M a rc o s 7.24

24 “Jesu s saiu daquele lugar e foi p ara os a rred o res de T iro.” 3 M arcos
deixa vago qual foi o p o n to de p artid a de Jesus. O ú ltim o local m en cio n ad o
pelo n o m e foi G e n esaré (6.53), o q u e p re ssu p õ e u m a viagem iniciando na
Galileia. O v e rb o p ara “ fo i” (gr. apêltheti) é d e algum a fo rm a m ais v ig o ro so
que o v e rb o g re g o n o rm a l erchesthai e, em M arcos, esse v e rb o ten d e a sina-
lizar u m a p artid a decisiva. Seu u so p o d e ser o u tro in dício de que Jesus está
p artin d o da G alileia em razão d a o p o sição d o s fariseus e de H e ro d es A ntipas.
T iro (L íbano m o d e rn o ), localizada d ireta m e n te a o este e a n o rte d a G a-
lileia, era um a região g en tia co m u m a lo n g a h istó ria de a n tag o n ism o a Israel.
A região de T iro (antigam ente, a Fenicia) era o local d e n ascim en to de Jezabel
que, na ép o ca de Elias, quase su b v erteu o R eino d o N o r te co m seus p ro fetas
e práticas p ag ão s (lR s 16.31,32). T iro, d u ra n te a revo lta d o s m acabeus n o
século I I a.C., ju n to co m P to lem aid a e S idom , lu to u ao lado do s selêucidas
contra os judeus (IM a c 5.15ss.). O s p ro fe ta s c o n d e n ara m a riq u eza e te rro r
de T iro (E z 26.17; Z c 9.3). Jo sefo concluiu de m aneira em b araço sa q u e os
habitantes de T iro eram “ n o to ria m e n te n o sso s m ais fe rren h o s in im ig o s”
(A g.A p.lA 3).
O p ag a n ism o de T iro , n o en tan to , n ão era to ta lm e n te d esco n h ecid o em
Israel. A té m esm o o p ag an ism o d o século I floresceu em p arte s de Israel, em
especial em B ete-S eã (C itópolis), n o m o n te C arm elo e em Jafa, o n d e havia
o cu lto a A n d ró m e d a. O s judeus n a Palestina viviam em m eio aos pagãos,
algum as vezes ao lad o deles, e Jesu s p o d ia p re s su p o r algum a fam iliaridade
com as o ra çõ es pagãs em m eio a sua audiência judaica (M t 6.7).4 T iro, n ão
obstante, rep resen ta v a a ex p ressão m ais ex tre m ad a d o paganism o, real e
sim bolicam ente, co m a qual u m judeu esperaria se deparar. O M essias, de
acordo co m Salmos de Salomão 1 7 .2 3 3 0 ‫־‬, seria o rd e n a d o a expulsar os g en tio s e
subjugá-los, e n ã o os visitar e os abraçar. Jesus, ao viajar p ara “ os arred o res de
T iro” e, em particular, ao re ceb e r a m u lh er siro-fenícia, ex p an d e o esc o p o de
seu m inistério além de q u alq u er coisa concebível para o M essias. A visita de
Jesus a T iro, d a perspectiva sociorreligiosa, universaliza o co n ceito d o M essias

3 U m cam po de peso dos m anuscritos traz “T iro e Sidom‫ ״‬. E m b o ra o apoio m anus-
arito para essa leitura suplante a leitura mais breve, B. M etzger, T C C N T , p. 95,
provavelm ente está correto em julgar Sidom um a assimilação tardia a M ateus 15.21
e M arcos 7.31.
4 Sobre a exposição judaica ao paganism o, veja D. Flusser, “Paganism in Palestine”,
em The Jewish People in the First Century: Historical Geography, Political History, Social,
Cultural and Religious L ife and Institution, ed. S. Safrai e M. Stern, C R IN T (Amster-
dam: Van F orcum , A ssen, 1976), p. 1.065-1.100.
M a rc o s 7.25-26 278

em te rm o s de g eografia, etnia, g ê n e ro e religião de u m m o d o to talm e n te sem


p re ced e n te s n o judaísm o.
O relato inicial d a atividade d e Jesu s n o s arred o re s de T iro é enigm ático.
N ã o fica claro p o r q u e Jesu s “ e n tro u n u m a casa e n ão queria que nin g u ém o
so u b esse” . H á , algum as vezes, su p o siçõ es d e q u e a re sp o sta d esap o n tad o ra
d os galileus a Jesu s o levou a c o n te m p la r u m a m issão su b stitu ta aos gentios.
E ssa sugestão, n o en tan to , n ã o é to ta lm e n te co nv in cente, pois Jesus, n o diá-
lo go c o m a m u lh e r siro-fenícia, afirm a a p rio rid ad e de sua m issão p ara Israel
(v. 27). P arece m ais p rovável q u e Jesus esperasse te r u m d escan so da esfera
de ação m ald o sa d a o p o siç ã o exercida pelo s fariseus e H e ro d es A n tip as (veja
a in tro d u ç ã o ao capítulo). Jesu s, m ais u m a vez em M arcos, “ n ão queria que
nin g u ém so u b esse o n d e eles estavam ” (9.30) p ara q ue p u d esse en sin ar os
discípulos (9.31,32). C o n sid e ran d o -se a falha geral d o s discípulos em com -
p re e n d e r a m issão d e Jesu s (6.52; 7.18; 8.17-21), p o d e m o s c o m p re e n d e r o
desejo d este p o r so lid ão forçada, lo n g e d a p e rtu rb a ç ã o a fim de in stru ir os
discípulos.

25,26 O m a g n etism o d e Jesus, até m e sm o e m T iro, n o estrangeiro, faz


c o m q ue seu re tiro seja breve, p o is “ n ã o co n seg u iu m a n ter em seg red o a sua
p re sen ça” (7.24). U m a m u lh er im p o rtu n a , assim q u e ouviu so b re Jesus, acaba
c o m a privacidade dele, co m o os discípulos fizeram a n te rio rm e n te (1.35). A
m u lh e r “lan ço u -se aos [...] p és” d e Jesus, im p lo ra n d o p ara que ele curasse
sua filha p o ssu íd a p o r d em ô n io s. A últim a p esso a em M arcos a se p ro stra r
aos pés d e Jesu s em súplica foi Jairo (5.22; e antes dele 3.11; 5.6). O co n traste
en tre a m u lh er siro-fenícia e Jairo, o dirigente da sinagoga judaica, n ão podería
ser m ais ex trem ad o . N o en tan to , Jairo, ap esar de suas qualidades invejáveis,
n ão tem n e n h u m a v an tag em c o m Jesus, e o d éficit d a m u lh er em relação a
suas qualificações será c o m p e n sa d o pela p ro fu n d id a d e de sua fé. A p e sa r de
to d as as diferenças en tre eles, ambos os suplicantes — jud eu e g en tia — en-
c o n tra m c u m p rim e n to em Jesus, pois este vê a necessidade h u m an a, e n ão
a p o sição social d a p esso a .5
N a “ trad ição d o s líderes religiosos” seria difícil im aginar u m e n c o n tro
en tre essa m u lh e r e u m m e stre d a lei o u fariseu.6 E ssa m ulher, d e n tre todas

‫ י‬Veja R. Guelich, Mark 1— 8:26, p. 385.


6 A versão desse evento em M ateus 15.21 -28, em comparação com Marcos, mostra
maior deferência com as sensibilidades dos judeus: a m ulher fica fora da casa, e
não sob o mesmo teto; ela chama Jesus de “Filho de Davi” ; os discípulos mediam
279 M a rc o s 7.27-28

as pessoas q u e se ap ro x im am de Jesu s n o ev an g elh o de M arcos, é quem , da


perspectiva judaica, tem m ais co n tra ela. O versículo 26 se assem elha a um
crescend o d e d em érito : é m ulher, g en tia g rega, p ro v e n ie n te da Síria Fenicia,
terra de pag ao s infam es. A té m esm o o p u b lican o Le vi deve ter franzido o
cenh o dian te dessa m u lh er q ue tem a co rag em e o u sadia d e p ed ir a “Jesus
que expulsasse d e sua filha o d e m ô n io ” . E la, ap esar d e suas credenciais fam i-
geradas, n ã o p e d e descu lp as n e m se cu rv a co m subserviência. E ssa m u lh er
não p o d e ap re se n ta r n e n h u m d o s créd ito s q u e u m b o m judeu p o d ería trazer
para o P ro fe ta d e N azaré. Sua única carta d e ap resen tação é sua necessidade
p rem en te e d ese sp erad o ra.7 Suas p erspectivas são tã o d esan im ad o ras co m o
aquelas de o u tra m u lh er siro-fenícia séculos an tes cuja vida chegaria ao fim
após aquela q u e seria sua ú ltim a refeição — até q ue esta se en c o n tra co m um
h o m em de D e u s.8 O “ c o raçã o ” (para se re ferir a 7.19) dessa m ulher, apesar
dos m uitos obstáculos, é verdadeiro, m esm o que as credenciais fossem erradas.
Ela ilustra da fo rm a m ais in co n fu n d ív el a v erd ad e d o e n c o n tro an terio r com
os fariseus de q u e se os alim en to s n ão são im u n d os, e n tão n em as pessoas
o são! E razoável su sp eitar de P ed ro c o m o a fo n te dessa história, cuja expe-
rie n d a m ais ta rd e co m C o rn élio re fo rç a a v erd ad e desse en co n tro . “A gora
p erceb o v erd ad eira m e n te q ue D e u s n ã o tra ta as p essoas co m parcialidade,
mas de to d as as n ações aceita to d o aquele q u e o te m e e faz o q u e é ju sto ”
(At 10.34,35).

2 7 ,2 8 O c e rn e d a h istó ria é o “ d u elo d e p erspicácia” 9 em 7.27,28. Jesus


resp o n d e c o m u m a breve p aráb o la ao p ed id o d a m u lh er p ara cu rar a filha:
“D eixe q u e p rim eiro os filhos co m am até se fartar; p o is n ão é c o rre to tirar
o p ão d o s filhos e lançá-lo aos c a c h o rrin h o s” . A referência à m u lh er co m o
c a c h o rrin h o s e n c o n tra-se en tre os d ito s m ais ofensivos de Jesus. C o m o essa
fala deve se r co m p re en d id a? Seria u m exagero a firm a r q u e “ cach o rrin h o s”

o encontro, pedindo para Jesus m andá-la em bora; e Jesus defende sua restrição
ao declarar que foi enviado apenas “ às ovelhas perdidas de Israel” .
7 J. G undry-V olf, “ Spirit, Mercy, and th e O th e r” , TTodaj 51 (1995), p. 508-23, ob-
serva que a m isericordia de D eus responde à necessidade hum ana de tal fo rm a
que acaba p o r quebrar os padrões sociais de exclusão.
8 A história d o en co n tro de Elias com a viúva de Sarepta (lR s 17.7-24) apresenta
muitas sim ilaridades com nossa história: tanto Jesus q u an to Elias se enco n tram
com m ulheres (viúvas?) passando p o r grande necessidade, os dois curam respec-
tivam ente a filha e o filho delas; e am bas as histórias acontecem na Síria Fenicia.
9 R. G undry, M ark, p. 374.
M a rc o s 7.27-28 280

era u m a expressão ab so lu ta m e n te pejorativa n o m u n d o antigo. H á ocasiões


em q ue os ca ch o rro s são associados c o m v irtu d es positivas de hum ildade,
serviço o u cu id ad o .101N ã o o b sta n te , “ quase to d as as passagens d o A ntigo
T esta m e n to [...] ilu stram a rep u g n ân cia q ue os israelitas d ev o to s sentiam
pelos ca c h o rro s” .11 O s ca c h o rro s eram associados c o m im p u reza p o rq u e co-
m iam lixo, carn e p u trefata e cadáveres (Êx 22.31; 1Rs 21.23; 22.38; 2Rs 9.36).
A expressão era igualm ente u m te rm o d e o p ro b io p ara as pessoas julgadas in-
dignas e dispensáveis (IS m 24.15; 2Sm 16.9; Is 56.10). N o N o v o T estam ento,
sua força in so len te d ificilm ente é m itigada. Jesu s alerta c o n tra co n fiar o que é
sag rad o aos c a c h o rro s (M t 7.6) e, em o u tra passagem , descreve a desventura
h u m a n a em te rm o s d e cão d e ru a la m b en d o as feridas de u m m en d ig o (Lc
16.21), e P aulo re fere-se a seus o p o n e n te s c o m o “ cães” (Fp 3.2). N a tradição
rabínica, “ cão ” c o n tin u o u a ser u m te rm o d e reprovação, referin d o -se à “ mais
desprezível, in so len te e m iserável das criaturas” .12 O te rm o “cão” era aplicado
aos g entio s c o m esse sen tid o d e o p ro b io . A m e táfo ra era co m u m e variada
na fala rabín ica, u m a d escrição ap ro p riad a p ara os g en tio s que, n a m en te dos
judeus, eram co n sid erad o s c o m o ig n o ran tes, ím pio s e idólatras pagãos. “ O s
p o v o s d o m u n d o são c o m o cães” , declararam os rabis.13
N o local e te m p o d e Jesus, “ ca ch o rro ” , p o rta n to , dificilm ente era u m elo-
gio. A q u estão é se Jesu s pensava nessa m u lh er com as associações acim a ou,
se esse n ã o era o caso, p o r q u e ele se referiu a ela c o m o te rm o que acarretava
essas associações? E possível ap resen tar três p o n to s. Prim eiro, se o p ro p ó sito
de M arcos em ju sta p o r essa h istó ria à co n tro v érsia an terio r co m os fariseus
é m o stra r q ue n ão existem n e m o b jeto s n em pessoas co n tam in ad o s, então, se
Jesus co nsid erasse essa m u lh e r u m c a c h o rro im u n d o , isso rep resen taria um

10 N as cartas de Laquis e A m arna, “ cachorro” é um estereótipo de hum ildade; na


M esopotam ia, era um sím bolo de serviço; no Egito, os cachorros eram valorizados
com o anim ais de estim ação e pela habilidade de caçar; e na A ssíria e Babilônia,
eram valorizados pela vigilância à p o rta ou considerados co m o sím bolos de cura.
Veja J. Bottervveck, “keleb”, TDOT 7.147-52. Ali tam bém há instâncias isoladas em
m eio aos judeus em que os cachorros são vistos favoravelm ente (Tob 6.1; 11.4;
talvez Sir 9.4). E D u fto n , “T h e Syrophoenician W om an an d H e r D o g s” , ExpTim
100 (1989), p. 417, exagera o caso ao afirm ar que “ n en h u m judeu perm itiria que
cachorros entrassem [dentro de sua casa]” .
11 Ibid., p. 154.
12 Str-B 1.722.
13Ibid., 1.725. A im agem particular de cães com endo migalhas debaixo da mesa
encontra-se em Jos. Asen. 10.13; 13.8 e Filóstrato, Vida de Apolônio, p. 19, e em
am bo s os textos o term o é pejorativo.
281 M a rc o s 7.27-28

golpe fatal p ara o p ro p ó s ito d o evangelista. Seria difícil im aginar Jesu s se


o p o n d o de fo rm a tão v ig o ro sa à visão rabínica das coisas co n tam in ad as em
7.1-23 e, ao m e sm o tem p o , m a n te r u m a p ercep ç ão de pessoas co ntam inadas
aqui. Segundo, a palavra g rega p a ra “ cã o ” n ão é a palavra m ais co m u m para
um cão vadio larg ad o n a ru a (gr. kyõn), m as u m dim inu tivo (gr. kynariori),
cujo sen tid o é c a c h o rrin h o q ue p o d e ría ser criado n a casa co m o anim al de
estim ação.14 M arcos, ao p ô r a palavra n o dim inutivo, esvazia em essência o
term o d o o p ro b io , p o is o o u v in te se sen te to ta lm e n te d iferen te em relação a
um cã o zin h o de estim ação criado em casa q ue a u m cão vadio de rua. O fato
de a m u lh er se referir a sua filha e a si m esm a c o m o m esm o te rm o em sua
resp o sta a Jesu s m o stra q ue ela n ão co n sid era kynarion em u m sen tid o hostil
nem depreciativo. T erceiro, “ cão ” significa u m a d istinção tradicional en tre os
judeus e os g en tio s, d etalh e im p o rta n te p ara a história. O s judeus, n a visão
de m u n d o d a ép o ca, co n siderav am -se “ filhos” de D e u s (E x 4.22; D t 14.1; Is
1.2). E les d iferiam das o u tras n ações p o r causa d e sua inclusão n a aliança de
A braão (G n 17) e p o rq u e tin h am a T o rá (E x 19). A q u estão em jo g o en tre
Jesus e a m u lh e r é se Jesu s foi enviado p ara “ os filhos” o u para “ os cães” . A
m ulher, em sua re sp o sta a Jesus, m a n té m a m e sm a d istinção en tre “ filhos”
e “ cães” , e m b o ra c o m u m a leve m u d an ça. E n q u a n to Jesu s se refere a Israel
com o teknõn (“ filhos b io ló g ico s”), a m u lh e r se refere a Israel c o m o paidiõn,
um te rm o m ais inclusivo, a b ra n g e n d o ta n to o s filhos q u a n to os servos da
casa. A m u d an ça na term in o lo g ia sugere q ue a m u lh e r c o m p re e n d e q u e as
m isericórdias d e D e u s se este n d e m além d o Israel étnico.
A q u estão básica n a co n v ersa in telig en te e n tre Jesu s e a m u lh er n ão é se
os g en tio s têm o u n ã o d ireito às m isericórdias d e D e u s, m as a relação dessa
preten são co m a alegação judaica. Jesu s n ão n ega o p ed id o d a m ulher. “ D eixe
que primeiro os filhos co m am até se fartar” (grifo d o au tor) apenas estabelece
a prio rid ad e d a m issão; n ão exclui as o u tras bo cas fam intas. N o co n tex to
presente, in d ica a p rio rid ad e m essiânica d o m in istério de Jesu s p ara Israel ao
m inistério aos g en tio s, em particular, c o n fo rm e su g erim os an terio rm en te,
com relação ao en sin o so b re o R eino d e D eus. C o n tu d o , a prio rid ad e d e Israel
na m issão d e Jesu s n ã o indica a exclusão d o s gentios. O S ervo d o S en h o r tem
prim eiro d e “ re sta u rar as trib o s d e Jac ó ” e d ep o is ser “ luz p ara o s g en tio s”
(Is 49.6; ta m b é m 42.1; 61.1-11). A escolha d e kynarion indica os cães que são
animais de estim ação caseiros-, o u seja, p e rte n c e m à casa e serão alim entados
junto co m os filhos. N a v erdade, a analogia d o s filhos e d o s cães sugere um

14 O. M ichel, “fgõrT, 7 D A T 3 .1 , p. 104.


M a rc o s 7.29-30 282

relacio n am en to co m o p ró p rio Jesus, p ois q u em p o d ería ser o “ pai” que


alim enta os filhos — e seus cães — se n ão Jesus?
A re sp o sta d a m u lh er a Jesu s n o versículo 28 m o stra sua co m p reen são , e
aceitação, d o privilégio d e Israel.15 N a realidade, ela p arece e n te n d e r m elh o r
o p ro p ó sito d o M essias d e Israel qu e Israel m esm o. A co rag em e p ersistên-
cia dela são te ste m u n h o s d e sua co nfiança n a suficiência e su p erab u n d an cia
de Jesus: sua p ro v isão p a ra os discípulos e Israel serão b astan te ab u n d an tes
p ara p ro v e r p ara alguém c o m o ela. M arcos p ro v ê u m indício para essa com -
p reen são c o m o o u so d o te rm o g re g o choria^õ (N V I, “ co m am até se fartar”).
E ssa palavra o c o rre apenas duas vezes em ou tras passagens d o evangelho de
M arcos, n a alim en tação d o s cin co m il (6.42) e d o s q u a tro m il (8.4,8). N essa
p re se n te o co rrên c ia , a palavra u n e duas ações de Jesu s — a alim entação dos
judeus (6.31-44) e a su b se q u e n te alim entação d o s g en tio s (8.1-10). Q u a n d o
os cães co m e m as m igalhas da m esa, n ã o ro u b a m o alim ento d o s filhos;
apenas co m em o q ue é deles, alim entand o-se c o m o ex ced en te d o alim ento
d os filhos.16

29,30 E ssa m u lh e r crédula su b m ete sua causa to ta lm e n te a Jesu s e n ão é


desap o n ta d a. “ P o r causa d esta re sp o sta , v o cê p o d e ir” , afirm a Jesus, “ o de-
m ô n io já saiu d a sua filha” . Q u e ironia! Jesus busca d esesp erad am en te ensinar
seus discípulos escolhidos — estes, ainda assim , são tolos e n ão co m p reen d em
a situação; Jesu s está relu tan te até m esm o em falar co m u m a m u lh er paga que
o c u p a u m p ap el secu nd ário — e, d ep o is d e u m a sen ten ça, ela c o m p re e n d e a
m issão dele e re ceb e o elogio ineq uív oco feito p o r Jesus (ainda m aio r em M t
15.28: “M ulher, g ra n d e é a sua fé!”). C o m o isso é possível? A re sp o sta é que
a m u lh er é a p rim eira p esso a em M arcos a o u v ir e c o m p re e n d e r a paráb o la

15 D e acordo com a N V I, a m ulher afirm a a parábola de Jesus ao afirm ar: “ Sim,


S en hor” , acrescentando a seguir sua interpretação dela. N o s m anuscritos gregos,
esse “ Sim ” é m otivo de debates. E m b o ra seja incluído p o r u m n ú m ero superior
e diversidade de m anuscritos, p o d e não ter sido original, um a vez que nai (“ sim ”)
n ão o co rre em nen h u m a o u tra passagem d o evangelho de M arcos. M etzger,
T C G N T , p. 95, provavelm ente está co rreto em suspeitar que nai foi acrescentado
p o r um escriba po sterio r que desejava que M arcos se adequasse a M ateus 15.27
em relação a esse ponto.
16 A ideia (e palavras usadas) d e migalhas caindo da m esa para alim entar os pobres
e os necessitados encontra um paralelo íntim o na história do p o b re Lázaro, que
“ ansiava com er o que caía da m esa do rico” (Lc 16.21). N o entanto, o que L ázaro
não p o d e esperar d o h o m em rico, a m ulher p o d e esperar de Jesus.
283 M a rc o s 7.29-30

de Jesus. A b reve p aráb o la d o s filhos e d o s cães à m esa desvela p ara ela o


m istério d o R eino d e D eu s. E la n ão é in d ifere n te n e m d istante, ten tan d o
m an ter su a p o sição e co n tro le . E la faz aquilo q u e Jesu s exige daqueles que
receb em o rein o e ex p erim en tam a Palavra d e D eu s: ela en tra n a p aráb o la e
se p e rm ite ser afirm ad a p o r ela. O fato d e ela re sp o n d e r a Jesu s “ d e d e n tro ”
da p aráb ola, o u seja, n o s te rm o s co m os quais Jesu s se dirigiu a ela, indica
que ela é a p rim eira p e sso a n o E v an g e lh o a ouvira, palavra de Jesu s p ara ela.17
E la, d e n tro d a p aráb ola, e n c o n tro u -se co m o D e u s vivo c o m q u em ela
lutou e co n ten d e u . E la lu to u com Jesus co m o Jacó lu to u co m D e u s em Peniel:
“Seu n o m e n ão será m ais Jacó, m as sim Israel, p o rq u e v o cê lu to u co m D eu s
e co m h o m e n s e v en c eu ” (G n 32.28). E la é u m Ja c ó fem inino. E la tam b ém
lutou. Jesu s a m a n d a de volta p ara casa, g a ran tin d o -lh e q u e a cu ra d e sua
filha já havia o c o rrid o .18 A luta dessa m u lh er c o m Jesu s é u m cu m p rim en to
da v ocação d e Israel; ela, u m a gentia, é u m a v erd ad eira israelita. M artin h o
Lutero, que ta m b é m co n te n d e u m uito com D eus, e n c o n tro u g ran d e co n fo rto
e m istério n a h istó ria da m u lh er siro-fenícia. E la, disse L u tero , n ão p ediu
nada m ais d o q u e lhe era ap ro p riad o . “ E la acred ito u em Jesus. Ele, a seguir,
tratou -a c o m o u m a filha d e Israel, e n ã o c o m o u m cão” .1920
A h istó ria d e Jesu s e d a m u lh er siro-fenícia te m g ra n d e relevância teo-
lógica p ara M arcos. N ã o é o fe rec id o a essa m u lh e r g en tia u m a revelação
separada de D e u s n em u m a justiça à p a rte d e Israel. E la aceita p len am en te
a autenticidad e e singularidade d a revelação d e D e u s p ara Israel. E la aprecia
tão p le n a m e n te aquela revelação q u e co n fia q u e sua su p erab u n d an c ia se
derram ará s o b re seu p o v o e o u tras p esso as c o m o ela e incluira to d o s estes.2‘1

17Veja M. Hengel, Studies in the Gospelof Mark, trad. J. Bowden (London: SCM Press,
1985), p.97,98.
1SO grego exelélythen (“o dem onio [já] saiu”) no versículo 29 indica que o demônio
deixou a filha dessa mulher antes mesmo do m om ento da fala. A história intrépida
da mulher siro-fenícia parece ter dado form a à história posterior de “T he Life
o f St. Pelagia the H arlot” [“A vida de santa Pelágia, a prostituta”]. Veja The Desert
Fathers, trad, e ed. H. Waddell (New York: Vintage Books, 1998), p. 181-96.
19R. Bainton, Here I Stand, A Life of Martin Luther (Nashville: Abingdon, 1950), ρ.
362.
20 Algumas interpretações feministas de Marcos 7.24-30 veem jesus como um vilão,
e a mulher siro-fenícia como uma heroína, indicando com frequência que a palavra
da salvação vem de fora de Cristo ou em contraste com ele (e.g., J. Perkinson, “A
Canaanitic Word in the Logos o f Christ; or T he Difference the Syro-Phoenician
W'oman Makes to Jesus” , Semeia 75 [1996], p. 61-85). Em bora seja verdade que a
mulher luta pela bênção de Jesus que ele, de outra forma, podería não ter dado a
M a rc o s 7.31 284

Isso traz à lem b ran ça dos leitores de M arcos, c o m o tam b ém faz hoje, que a
salvação é o ferecid a ao m u n d o , ta n to p ara os judeus q u a n to p ara os gentios
afastados, co m o essa m ulher, p o r in term éd io d e Jesus q u e cu m p re a revelação
de D e u s p ara Israel.

‫[ ״‬E L E S ] V E R Ã O A G L Ó R I A D O S E N H O R ” ( 7 . 3 1 3 7 ‫)־‬

O se g u n d o e p isó d io n o itin erário g en tio de Jesu s é a cura de u m h o m em


co m deficiência n a audição e na fala, em D ecápolis. E ssa é apenas u m a dentre
três histórias em M arco s q ue n ã o tem c o n tra p arte n o s o u tro s três evangelhos,
e m b o ra M ateu s 15.29-31 p roveja o que parece ser u m breve re su m o de M ar-
cos 7.31-37. M ateu s fala d e Jesu s c u ra n d o “ u m a g ra n d e m u ltid ão ” de cegos,
aleijados, m u d o s e “m u ito s o u tro s ” , o que indicaria q u e a h istó ria de M arcos
é u m a in stân cia d e u m m in istério de cura m u ito m ais am p lo em D ecápolis.
O clam o r das m u ltidõ es n a seg un da visita d e Jesu s a D ecáp o lis co n tra sta de
fo rm a notável c o m a ingratidão sofrida em sua prim eira visita ali (5.17). Isso só
p o d e se d ev e r a suas o b ra s d e m isericórdia, m as n ã o é im possível q u e a fam a
d e Jesu s em D ecáp o lis seja o resultado d o relato d o g erasen o en d em o n iad o
(5.20). Se esse fo r o caso, o p rim eiro m ission ário g en tio foi bem -sucedido.

31 Jesus, p artin d o d a região d e T iro , viaja m ais de 32 q u ilô m etro s a n o rte


p ara Sidom , dep o is para sudeste através d o rio L eontes e dali m ais a sul através
da C esareia d e Filipe p ara D ecápo lis, a leste d o m a r da Galileia. O itinerário
em fo rm a d e fe rrad u ra n ã o fica n em u m p asso a m e n o s de 192 q u ilôm etros
de extensão. E u m itinerário inesperado, m ais o u m e n o s c o m o ir d e São Paulo
p a ra Itap e tin in g a, a sul, p a ssa n d o antes p o r T aub até, a norte! N ã o é d e sur-
p re e n d e r q ue to d o s os o u tro s evangelhos o m itam isso.21 A jo rn ad a circular

ela, não é verdade que a bênção deriva de uma fonte distinta da de Jesus. A bên-
ção vem de dentro da parábola de Jesus, e a expulsão do demônio resulta de sua
palavra autoritativa. Q ue a mulher responde a Jesus “de dentro” da parábola que
ele profere indica que ela afirma plenamente as condições indicadas na parábola,
ou seja, que Jesus trouxe a salvação para Israel, e de cuja abundância os gentios
podem partilhar.
21 A tradição textual reflete um a incerteza similar sobre essa jornada com rodeios do
versículo 3 1 .Três manuscritos mais antigos (P45A W )e vários minúsculos trazem
que Jesus “ saiu das regiões de Tiro e Sidom e veio para o mar da Galileia” (em vez
de indo atravessando Sidom; com o na NIVI). N o entanto, uma jornada através de
Sidom é preferível porque afirma o apoio mais forte de manuscritos (‫ א‬B D L Δ Θ)
e porque é a leitura mais difícil, ou seja, menos provável de ter sido acrescentada
po r um escriba. Veja B. Metzger, TCGNT, p. 95-96.
285 M a rc o s 7.32

p ro du ziu várias tentativas de explicá-la. A lguns co m en ta ristas sugerem que


a resp o sta d e sa p o n ta d o ra da G alileia lev o u Jesu s a e x p e rim en tar co m outra,
e talvez su b stitu ta, m issão aos gentios.22 E ssa sugestão, co n sid eran d o -se o
p ro p ó sito ex p resso de sua m issão a Israel em 7.27, p arece im provável. O u -
tros co m en ta rista s su g erem q u e o u M arcos ig n o rav a a geografia d a Palesti-
na23 o u a jo rn a d a é u m a ficção para salientar q ue o ev an gelho tam b ém está
disponível p ara os g en tio s.24 E ssas duas su g estõ es são m u ito im prováveis. É
difícil im aginar P ed ro , co m p ro v a d a m e n te a fo n te prin cip al d o evangelho de
M arcos (veja a “ In tro d u ç ã o ” , p. 3-6) e que, em o u tra s passagens, é a fo n te
provável d e in fo rm a ç õ e s p ro b lem áticas (e.g , 9.1) o u in q u ietan tes (14.66-
71), p e rm itin d o tal c o n stru ç ão . A dem ais, seria m u itíssim o in co m u m para
M arcos in v en tar u m a jo rn a d a q ue o faria p arece r ig n o ra n te d a geografia e
talvez até m e sm o tolo. A ch o , de fo rm a co n trária aos ju lg am en to s de alguns
estudiosos, as desig n açõ es geográficas de M arcos ta n to defensáveis q u an to
precisas em to d as as ocasiões em que p o d e m ser verificadas. Isso inclui a des-
crição p resen te. A jo rn ad a d o versículo 31 p o d e ser estran h a, m as n ão é sem
precedentes n a E scritu ra. E m 2Reis 2, há dois registros igualm ente notáveis
de jo rn ad as em círculos, e n e n h u m a das duas é to ta lm e n te explicável.25 O
m inistério d e Jesu s na G alileia foi caracterizad o p elo m o v im e n to co n stan te
em to rn o d o m ar d a G alileia e através dele, e a p re se n te jo rn ad a contin u a
com a m esm a estratégia n as regiões gentias. E ssa jo rn ad a , de fato, p o d e ser
explicada d e m o d o plausível p o r u m desejo da p a rte d e Jesu s d e escapar da
crescente o p o sição d o s fariseus e H e ro d e s A ntipas. Jesus, n o en tan to , n ão
está apenas ev itan d o a o p o sição n em g a n h a n d o tem p o . A jo rn ad a a d e n tro
do territó rio g en tio — n a v erdade, territó rio g en tio n o tó rio — indica sua
inclusão delib erad a d o m u n d o n ão judaico em seu m inistério.

32 E m D ecápolis, a leste d o m ar da G alileia, “ algum as pessoas lh e [Jesus]


trouxeram u m h o m e m q ue era su rd o e m al p o d ia falar” (de m o d o similar,
8.22). N o original grego, essa descrição é a p resen tad a n o te m p o presente,
sugerindo u m a rem in iscên cia de u m a te ste m u n h a visual. A descrição do

22 Pixner, W ith Jesus Through Galilee, p. 79.


23 D. L ü hrm ann, D as Markusevangelium, p. 132.
24E. Schweizer, The Good News According to M ark, p. 154.
25 Em 2Reis 2.1-6, Elias e Eliseu cam inham de Gilgal a oeste até Betei e depois a leste
para voltar a Jerico e o Jordão; mais um a vez, em 2Reis 2.23-25, E liseu cam inha
de Betel a no ro este para o m o n te C arm elo e depois retrocede para Samaria.
M a rc o s 7.33-34 286

h o m e m co m p ro b lem as d e fala (N V I, “ m al p o d ia falar”) u sa u m a palavra


greg a, mogilalos, q u e o c o rre apenas u m a vez em o u tra passagem da Bíblia. N a
descrição da revelação d a glória d o S e n h o r às n ações em Isaías 35, lem os:
“ E n tã o os o lh o s d o s ceg o s se ab rirão e os o u v id os d o s su rd o s se destaparão.
[...] e a língua d o m u d o [mogilalos[ can tará d e alegria. Á guas irro m p e rã o no
e rm o e riachos n o d e se rto ” (Is 35.5,6). A p resen ça d e mogilalosn o versículo 32
liga n o ssa h istó ria d e m o d o in co n fu n d ív el à citação d e Isaías. M arcos, um a
vez q u e escreve p ara os g en tio s ro m an o s, só apela raras vezes a texto s-p ro v a
d o A n tig o T estam en to . T odavia, nas p o u cas ocasiões em q u e ele fortifica sua
arq uitetu ra literária co m re fo rço s d o A n tig o T estam e n to , elas são vigas que
su sten tam peso. A referên cia a Isaías 35 n ão é u m a exceção. Isaías 35, em
essência, é o ú ltim o cap ítu lo d a p rim eira p a rte d e Isaías. E le vem ap ó s um a
série d e capítulos d eclaran d o o ju lg am en to d e D e u s so b re E d o m , E gito, Tiro,
Israel e Jeru salém . N o cap ítu lo 35, n o en tan to , o tem a m u d a d o julgam ento
p ara a escatologia e p ara a alegria n ã o só d o redim ido, m as d e to d a a criação
n a revelação d o S enhor. A alusão a Isaías 35 é d e su p re m a relevância p ara a
ap resen taç ão d e Jesu s p o r M arcos, n ã o só p o rq u e a restau ração d a fala d e um
mogilalos assinala p a ra a ch eg ad a escatológica d o D ia d o S enhor, m as tam b ém
p o rq u e os d ese rto s d eso lad o s d o Líbano (Is 35.2) re ceb erão a alegria de D eus.
A s regiões de T iro e S idom , é claro, são p re cisam en te o L íb an o de Isaías 35.
A cura desse mogilalos em p articu lar p o r Jesu s em D ecáp o lis tran sfo rm a-se no
p rim eiro fru to d o c u m p rim e n to d e Isaías 35.10, qu e o L íb an o g en tio reú n e
“ os qu e o S e n h o r re sg ato u [...] [e] e n tra rão em Sião co m ca n to s de alegria”
(Is 35.10)! A salvação, p o r co n seg u in te, vem p ara o m u n d o g en tio em Jesus,
o re d e n to r escato lóg ico de Sião en viado p o r D eus. A s únicas categorias ade-
quadas p ara M arco s d esc rev e r a p esso a e o b ra de Jesus são derrad eiram en te
as categorias d e D eu s. M ais u m a vez, c o m o na h istória da m u lh er siro-fenícia
(7.24-30), “ a salvação vem dos ju d eu s” (Jo 4.22).

33,34 M arcos, ao n a rra r a cura d o su rd o -m u d o, acen tua a em patia de Jesus


p ara o h o m e m co m deficiências de audição e de fala. O h o m e m necessitado,
p o r si m esm o , é apenas u m a o u tra face em u m a m u ltid ão d o s gentios. Jesus,
ao rem ov ê-lo d a m ultidão, a p o n ta q u e ele n ão é apenas u m p ro b lem a, m as
u m indivíd u o único. E n tã o Jesu s “ c o lo co u os d ed o s no s o u v id o s dele. E m
seguida, cu sp iu e to c o u n a língua d o h o m e m ” . Jesus, ao to c a r o h o m em ,
re p e te sua identificação radical c o m as p esso as necessitadas e algum as vezes
ritu alm en te im u n d as (1.31; 1.41; 3.5; 5.33,41; 6.56). S ch latter está c o rre to em
287 M a rc o s 7.33-34

sugerir q u e o c o n ta to físico é um a ex p ressão d a co m p aix ão de Jesus. O am o r


busca in tim id ad e, e o to q u e de Jesu s é u m p re lú d io tangível da co m u n h ão
que os cristão s têm c o m ele p o r in te rm é d io da fé.26
C o n tu d o , p o r q u e o to q u e p articu lar d e to car a língua d o h o m em co m
saliva? A saliva, c o m o u m fluxo co rp o ral, em geral ficava so b a categoria dos
fluxos c o n tam in ad o res, ju n to co m o sangue m en stru ai, sêm en, urin a e pus
(m. Zavim 1-5). A saliva d e certas pessoas, n o en tan to , era co n sid erad a pelos
judeus c o m o te n d o p o d e r curativo, em especial q u a n d o ac o m p a n h ad a pela
conversa, aplicada n a área d a d o e n ç a o u fe rim e n to e ac o m p a n h ad a p o r um a
fórm ula o u oração .27 E sses sinais o c o rre m n essa cura, in d ican d o , p o rta n to ,
seu efeito curad o r. Jesu s n ão m in istra de u m a distância segura, m as o lha para
o céu, solta “ u m p ro fu n d o su sp iro ” de en v o lv im en to (veja 5.30) e ordena:
“Efatá!”, e M arcos a p resen ta u m a trad u ç ão p ara o g re g o — “ abra-se!” .28 A
expressão sem ítica ephphatha, que n ão deriva d e u m a região gentia, aparente-
m ente te m su a o rig em d o te ste m u n h o de P ed ro dessa cura.29*O cu ran d eiro s
helenistas eram notáveis p o r te n ta r curas com a aplicação de vários bálsam os,
alguns d o s quais eram u m ta n to desagradáveis.■’1’ N ã o é im possível q u e Jesu s
adote tal p ro to c o lo na D ecáp o lis g en tia a fim de tran sm itir ao h o m e m o que
ele p o d ia esp e rar dele. Jesus, e m b o ra p o ssa te r u sad o m eios co m u n s, usa-os,
no en tan to , p ara u m efeito in c o m u m .31 A u n çã o de Jesu s co m saliva p o d e
ser con sid era u m a an tecip ação p ro v isó ria e elem e n ta r de seu p ró p rio sangue
que tam b é m será p o s to n a língua de h o m e n s e m u lh eres p ecad o res (14.24).
A saliva, p o rta n to , p arece carreg ar u m a relev ân cia q u ase sacram ental. A
cura, todavia, n ão é efetu ad a p elo sinal m aterial n e m p o r p o d eres m ágicos

21 A. Schlatter, D ie Evangelien nach M arkus u n d L u ka s, p. 78.


2,Str-B 2.16-17.
28 A necessidade de traduzir um dito aram aico para o grego indica mais um a vez
que M arcos escreve para não judeus.
29J. Jerem ias, em N ew Testament Theology, Part One: The Proclamation o f Jesus, trad. J.
B ow den (C hatham , Eng.: W & J Mackay, 1971), p. 7, discute se a palavra é he-
braica ou aramaica. Q ualqu er que seja a lingua original da palavra, ela é mais bem
explicada co m o a expressão real de Jesus.
’‫ ״‬Uma inscrição d o século II em Rom a ordena a aplicação p o r três dias de um
bálsamo feito de sangue de um galo branco m isturado com m el e pom ada para
os olhos para a recuperação da visão. Veja H C N T , p. 284.
31 S. C unningham , “T h e H ealing o f the D e a f and D u m b M an (M ark 7:31-37), with
A pplication to the A frican C ontext” , AfricaJournal o f Evangelical Theology 9 (1990),
p. 13-26.
M a rc o s 7.35-37 288

ligados a ela, m as p ela co m p aix ão p ro fu n d a p o r esse h o m e m necessitado e


p ela au to rid ad e d e su a palavra.32

35-37 C o m a palavra d e Jesus, co m o D e u s q u e b ran d o as c o rren tes das


trevas e d a so m b ra m o rta l (SI 107.14), “ os o u v id o s d o h o m e m se abriram ,
sua língua ficou livre e ele c o m e ç o u a falar c o rre ta m e n te ” . O original greg o é
m ais vivido e co n c re to , d iz e n d o q u e “ a c o rre n te d e sua Língua foi q u eb rad a” .
N o N o v o T estam e n to , a palavra p ara “ c o rre n te ” (gr. demos; N V I, “ ficou li-
v re”) significa m ais fre q u e n te m e n te um a cadeia o u c o rre n te que p re n d e um
prisio n eiro (Lc 8.29; A t 16.26; 20.23; 26.29; F p 1.7; Cl 4.18). O ro m p im en to
da c o rre n te o u cadeia p o r Jesu s é u m a im ag em de lib ertação (Lc 13.16).33 O
h o m em , d a m esm a fo rm a , c o m e ç o u a falar “ p erfectam ente” (gr. orthos‫״‬, N V I,
“ c o rre ta m e n te ”), c o m o sen tid o d e q u e as dificuldades e os im p ed im en to s
d o versículo 32 são rem o v id o s.
Jesus o rd e n a a m ultid ão a silenciar. “ C o n tu d o , q u an to m ais ele os proibia,
m ais eles falavam .” (Veja A o rd e m p a ra s ile n c ia r em 1.34.) E ssa é a única
ocasião e m M arco s em q u e Jesu s o rd e n a os g en tio s a silenciar. A recep ção de
Jesu s em su a m issão g en tia foi favorável, e n o caso d a m u lh er siro-fenícia até
m e sm o c o m fé. N ã o o b stan te, a rep etição d a o rd e m p ara silenciar em m eio
aos g en tio s in d ica que os p ro b lem a s in ere n tes à co m p re en são e à fé são em
essência os m esm o s p ara os g en tio s e p ara os judeus. N e n h u m d o s g ru p o s
tem u m aval au to m ático , “v ocê p e rte n c e ” ; n e m , tam p o u co , os dois g ru p o s
têm recusa au to m ática, “v ocê está fo ra” . A o rd e m p a ra silenciar ta n to para
os judeu s q u a n to p a ra o s g en tio s é u m lem b re te d e que o c o n h e c im e n to de
Jesus só p o r seus m ilagres é u m co n h e c im e n to inadequado. O co n h ecim en to
ad e q u ad o d e Jesu s — e daí a p ro clam ação so b re ele — tem d e esp erar a reve-
lação d o m istério d e rrad e iro q u e só p o d e vir p o r in term éd io d o so frim en to
e da c ru z (15.39). A o rd e m p a ra silenciar n o versículo 36 é clara e direta; não
é u m a sug estão e n ão é am bígua. N ã o o b stan te, os gentios, c o m o os judeus,
tam b é m n ã o o b e d e c em a essa o rd e m . A p e sa r de to d as as diferenças entre
esses dois g ru p o s, a re sp o sta d o s judeus e d o s g en tios a Jesus, nesse aspecto, é
notavelm ente similar. A s g ran d es diferenças en tre os judeus e os gentios sobre

32V ejaStr-B 2.17.


33 A. D eissm ann {Lightfrom the A ncient E ast, trad. L. Strachan [G rand Rapids: Baker
B ook H ouse, 1978], p. 305-7) cham a atenção para “língua am arrada” co m o um a
expressão técnica. “ O escritor não dirá apenas que o m u d o v o lto u a falar —
acrescentará que as algemas dem oníacas foram rom pidas, um a o b ra d e Satanás
desfeita” .
289 M a rc o s 8.1-3

p o n to s d a lei, p u re za e etnia desap arecem d ian te d a q u estão v erdadeiram ente


humana e o a ssu n to m ais relevante d e to d o s, q u e é a q u estão de fé em Jesus.
M arcos conclui c o m a adm iração da m u ltid ão (tam b ém 1.22) e esta con-
fissão dessas pessoas: “ E le faz tu d o m u ito b e m ” . E ssa co nfissão resum ida
rem e m o ra D e u s ex a m in an d o suas ob ras n a criação e d eclaran d o q u e elas
eram b o as (G n 1.31). E u m a o u tra in stân cia de Jesu s c u m p rin d o o p ap el de
D eus. A o b ra d o F ilh o n a re d en çã o é c o m o a o b ra d o Pai n a criação: é bem
feita e n ão deixa n a d a a desejar.
E m 7.14, Jesu s im p lo ro u : “ O u ç am -m e to d o s e e n ten d a m isto ” . M arcos
agora relata a h istó ria d e um g en tio que, p o r causa d o to q u e de Jesus, p o d e
ouvirJesus. O u tro g en tio d o g ru p o dos de fo ra, c o m o a m u lh er siro-fenícia
(7.24-30), foi in clu íd o n o g ru p o d e Jesus. M arcos re su m e aqui seu tem a d os
que p e rte n c e m ao círculo ín tim o e dos d e fora. O u v ir o q u e é o rd e n a d o p o r
Jesus e o b e d e c e r a essa o rd e m só se to rn a possível p o r in term éd io d e Jesus. A
fé em Jesus é u m assu n to difícil; na verdade, é o assu n to m ais difícil d o m undo.
Alguns, co m o os discípulos, têm c o n tato co n sta n te e p ró x im o com Jesus, m as
ainda assim n ã o co n seg u em ver. O u tro s, c o m o a m u lh er siro-fenícia e esse
h o m em co m audição e fala deficientes estão em terras distan tes e obscuras.
A inda o u tro s, c o m o os leitores d e M arcos em R om a, p o d e m lu tar co m o d ar
testem u n h o d e sua fé co m sua vida. O q u e isso significa p ara to d o s aqueles
que o u v em e c o m p re en d e m (7.14)? Isso significa q u e se ju d eu o u gentio,
próxim o o u d istan te, v ersad o o u n eó fito , só o to q u e d e Jesu s p o d e capacitar
o ouvir, o ver, o c o m p re e n d e r e o te ste m u n h a r verdadeiros.

A A L IM E N T A Ç Ã O D O S Q U A TR O M IL ( 8 . 1 9 ‫)־‬

A alim en tação d o s q u a tro m il e a alim en tação d o s cin co m il têm mais


em co m u m q ue q u aisq u er o u tras duas histó rias n o evangelho d e M arcos.
As duas histó rias o c o rre m em locais d eserto s. A s d uas h istórias enfatizam a
com paixão d e Jesu s pelas m ultidões. A s duas histó rias re p e te m a pergunta:
“Q u a n to s pães v o cês têm ?” A o rd e m p ara se asse n ta rem é sim ilar em am bas
as histórias c o m o o é a oração e a p articip ação d o s discípulos. E m am bas as
histórias as palavras e a distribuição d o s pães seguem a m esm a sequência, e
em am bas o “ p o v o co m e u até se fa rtar” . O s re sto s fo ram recolhidos após as
duas refeições, e am b as as histórias acab am co m Jesu s d esp e d in d o a m ulti-
dão e fazen d o u m a viagem d e barco. E ssas sim ilaridades, com binadas co m
a im prob ab ilid ad e d e q u e os discípulos te n h a m esq uecid o o m ilagre an terio r
da alim entação, levam a m aioria d o s estu d io so s m o d e rn o s a p re ssu p o r que a
M a rc o s 8.1-3 290

alim en tação d o s q u a tro m il é u m a o u tra n arrativ a d a alim entação d o s cinco


m il, e n ão o u tro ev e n to h istó rico d istin to .34
E m b o ra essa seja u m a co n c lu sã o plausível, n ã o se deve p re ssu p o r essa
possibilidade, p o is h á ig u alm en te u m n ú m ero rev elad o r d e diferenças. A pri-
m eira alim entação co m eç o u co m cin co pães e dois peixes, e a seg u n d a com
sete pães e “ alguns peixes p e q u e n o s ” (v. 7). A palavra p ara peixe é diferente
em cada relato; na alim en tação d o s q u atro m il está n o dim inutivo em grego,
ichthydia, talvez seja m ais b em trad u z id a p o r “ sard in h as” que, ju n to co m o
pão, servia c o m o u m a rtig o prin cip al d a alim entação d a p o p u lação local.35 O
n ú m ero de p esso as tam b é m difere. N o p rim eiro relato, “ cinco m il homeni’
(6.44; g rifo d o au to r) estavam p resen tes, o q u e rep resen taria u m to tal m uito
m aio r q u a n d o as m u lh eres e crianças fossem incluídas; na seg u n d a história,
“ q u a tro m il” (v. 9) é u m to tal estim ado. N a p rim eira alim entação, a m ultidão
estava com Jesu s p o r um dia (6.35); n a seg u n d a história, p o r três dias (v. 2).
A p rim eira alim en tação ac o n te ceu n a prim avera (a palavra p ara “ g ram a ver-
d e” [gr. chlõros, 6.39] significa o v erde claro da prim avera), ao p asso que não
há m en çã o à estação d o an o na segunda história. N a seg u n d a alim entação,
o p o v o n ã o é d ividido em g ru p o s co m o ac o n te ce n a prim eira, m as apenas
se sen tam “ n o c h ã o ” (v. 6). O n ú m e ro d e cestas d e resto s tam b ém difere,
c o m o ta m b é m a palavra g rega para “ ce sto s” .36 P o r fim , o p an o d e fu n d o de
u m lev an te revolucionário, ap a ren te n a alim entação d o s cinco m il, n ão se
e n c o n tra n a seg u n d a história.
O u tra d iferen ça im p o rta n te é o p ap el d e Jesus no s dois relatos. N a ali-
m en ta ç ã o d o s q u a tro m il, a p esso a de Jesus é m ais p ro em in en te. E le dirige
os eventos, em vez d e re sp o n d e r a eles, te n d o m en o s ajuda d o s discípulos.
T am b é m n a seg u n da alim entação, o diálogo d e Jesu s é registrado n a prim eira

34 P or exem plo, S. Legasse, LE vangile de Marc, p. 463, abre sua discussão de 8.1-10
com pronunciam entos, e n ão com evidência: “ O segundo relato da m ultiplicação
dos pães é o u tra narrativa da prim eira, e as duas versões desse um relato estavam
disponíveis antes de M arcos” .
35 M. N u n , The Sea o f Galilee and Its Fishermen in the N ew Testament (K ibbutz E in Gev:
K in nereth Sailing Com pany, 1989), p. 51. T am bém , A. Schlatter, D er Evangelist
Matthaus, p. 494-95.
36 U m a distinção precisa en tre as duas palavras para “cestos” não é clara. O term o
kophinos da prim eira alim entação em 6.43 podia se referir a cestos m enores, talvez
feitos com vim e m ais forte, ao passo que spyris em 8.8 é de u m m aterial mais fle-
xível e maior. E sse últim o cesto era grande o suficiente para descer Paulo através
da abertura n o m uro da cidade de D am asco (At 9.25). Veja G undry, M ark, p. 398.
291 M a rc o s 8.1-3

pessoa, o que c o rre sp o n d e a sua fala na ú ltim a ceia (14.22-26).37 N a alim enta-
ção d o s cinco m il, os discípulos d e se m p e n h a m u m papel m ais p ro em in en te,
e as palavras d e Jesu s são n arrad as n a terceira p esso a, sen d o , p o rta n to , um a
narrativa sobre ele, e n ão p a rtin d o dele. O d iálo g o n a prim eira p esso a n a se-
gunda narrativ a te m o efeito de declarar a co m p aix ã o d e Jesu s d iretam en te
para a m u ltid ão g en tia — e, p o r extensão, aos leitores ro m an o s de M arcos.
Será q ue a alim entação d o s q u a tro m il é o u tra versão de u m m esm o
evento h istó rico o u u m o u tro ev en to d istin to ? A s co n co rd ân cias en tre as
duas alim entações são d e fato consideráveis, e u m a razão legítim a p o d e ser
suprida p ara a criação d e o u tra v ersão de u m só ev en to, a saber, m o stra r que
Jesus “ c o n v e n c e ” os g en tio s e tam b ém os judeus. Isso pode in d icar o u tra
versão d e u m m e sm o ev en to histórico, m as é m e n o s g aran tid o d o que se
supõe c o m frequência. A co n c o rd ân c ia en tre os dois relatos — até m esm o
concordância substancial — não é p ro v a d e dependência. C o m relação às duas
alim entações, as diferenças específicas em n ú m ero s e detalhes arg u m en tam a
favor de ev en to s separados, c o m o tam b ém o faz a reflexão sub seq u en te sobre
os dois ev e n to s em 8.18-20. T a m p o u c o , o esq u ecim en to dos discípulos na
segunda alim en tação é u m a rg u m e n to n ecessariam en te atrativ o p ara a teo ria
de o u tra versão d e u m m esm o ev e n to h istó rico .38 N o fluxo d a n arrativ a de
M arcos, a alim en tação d o s q u a tro m il n ão é intrusiva, n em é exigida pelo
contexto. A evidência, to m a d a em sua totalidade, p arece p e n d e r n a direção
de um seg u n d o m ilagre d a m ultiplicação d o s pães.

37A sequência de “dar graças, parti [r] e [...] entregfarj aos seus discípulos” (8.6)
tam bém co rresp o n d e mais intim am ente ao “d[ar] graças, parti [r|, e [_] d[ar] aos
discípulos” da últim a ceia (14.22,23).
38 O argum ento de que a perplexidade dos discípulos em 8.4 seria impossível depois
de testem unharem a alimentação dos cinco mil é digno de nota, m as não conclusi-
vo. C. E . B. Cranfield, The GospelAccording to Saint M ark, p. 205, observa com razão
que até m esm o cristãos m aduros (o que os discípulos ainda não são) duvidam com
frequência d o p o d er de D eus após tê-lo experim entado; e, além disso, que tem po
suficiente pode ter se passado a ponto de em botar a m em ória deles. M.-J. Lagrange,
Evangile selon Saint Marc, p. 202, quanto à razão p o r que os discípulos sim plesmente
não pedem a Jesus para repetir aqui o milagre que fizera para alim entar os cinco
mil, faz um com entário perceptivo de que a questão do versículo 4 repousa m enos
na impossibilidade de Jesus fazer tal milagre que n o em baraço dos discípulos de
pedir para que ele faça um milagre. O argum ento mais rigoroso para os dois eventos
históricos separados é apresentado p o r G undry, M ark, p. 398-401, em que afirma
que evidência e argum entos têm de ser contrapostos antes que a teoria de um a outra
versão de um m esm o evento histórico possa ser assumida.
M a rc o s 8.1-3 292

1-3 “N aq u eles dias” liga a alim en tação d o s q u a tro m il co m a viagem de


Jesu s em D ecáp o lis (7.31). M arcos n ão localiza de m o d o explícito a segunda
alim entação m ilag ro sa em te rritó rio g entil (nem , ta m p o u co , relaciona de
fo rm a explícita o s cin co m il aos judeus), m as o c o n te x to localiza o ev en to em
territó rio g en tio a leste d o m ar da Galileia. A “g ra n d e m u ltid ão ” se reu n iu em
to rn o d e Jesus (7.33; M t 15.29-31) o a c o m p a n h o u p o r três dias e co m eç o u a
ficar sem alim entos. M arcos, n a descrição d a m ultidão, usa u m a fo rm a intensa
e rara da palavra p ara “ p e rm a n e c e m ” (ARA; o u “ já [...] estão co m ig o ” , NVT),
prosm enein , d a n d o u m a co n o ta ç ã o de adesão a Jesus e co m p ro m isso especial
com ele. A m u ltid ão n ão estivera presen te p o r m era coincidência, m as estivera
in ten cio n alm en te com ele.39 E ssa é u m a descrição m uitíssim o in c o m u m de
u m a m u ltid ão em M arcos. Jesu s tem m ais u m a vez u m a recep ção e n tre os
g en tios q u e n ão e n c o n tro u en tre os judeus.
N a alim en tação d o s cinco m il, os discípulos ch a m aram a aten ção de
Jesus p ara a crise im in en te em m eio à m u ltid ão (6.35,36), m as aqui é Jesus
q u e p e rc e b e o p ro b le m a . E le “ c h a m o u ” (gr. proskaleom ai) os discípulos,
um ind ício fav o rito d e M arcos d a relevância d a in terv en ção im in en te de
Jesus. E le n ã o só re co n h ec e a o b jetividade da necessidade, m as se identifica
p esso a lm en te c o m ela. E le declara n a prim eira p esso a d o singular: “T enho
com p aix ão d esta m u ltid ão ” . A palavra grega p ara com paixão, splangni^om ai,
é p ro v e n ie n te d e splangnon, co m o sen tid o d e en tra n h as o u ó rg ão s vitais. N o
sacrifício anim al n a A ntiguidade, o splangnon — coração, pu lm õ es, fígado e
rins — eram c o n su m id o s p elo s sacerd o tes e sacrificadores an tes de o ani-
m al sacrificial ser o fe recid o so b re o altar.40 E m co n se q u ên cia dessa prática,
splangnispm ai assu m e u m sen tid o m etafó rico d e ser p ro fu n d a m e n te m ovido
n o ín tim o , n o lo cal em q ue re p o u sa m as em o çõ e s (M t 9.36). A frase “ tenho
co m p aix ão d e sta m u ltid ão ” expressa a em o çã o visceral d e Jesus em favor da
m ultidão. Ig u a lm e n te im p o rta n te , essa palavra em M arcos n ão é u sad a para
as p essoas p o r q u e m alguém n a tu ra lm e n te sen te com p aixão (co m o am igos e
com patriotas), m as p o r aqueles b e m distantes e até m esm o ofensivos: leprosos
(1.41 ),re v o lu c io n á rio s (6.34), g en tio s (8.2) e p o ssu íd o s p o r d em ô n io s (9.22).
O detalh e q ue “ alguns deles vieram d e lo n g e ” se ajusta to talm e n te co m a
geografia au stera e acid en tad a d a D ecáp o lis c o m m e n o s cidades e povoados
que o lado o este d o m a r d a Galileia. N ã o é u m local p ara ficar sem supri-
m ento s. N a co n d içã o deles, “ vão d esfalecer n o ca m in h o ” .

39 F. Hauck, “meno‫״‬, TDNT4.5Ί9.


40 LSJ, p. 1628.
293 M a rc o s 8.4-7

4 A perp lex idade d o s discípulos (“ O n d e , n este lugar d eserto , p o d ería


alguém c o n se g u ir p ã o suficiente p ara alim en tá-lo s?”) é a razão principal
pela qual m u ito s estu d io so s su p õ e m q u e essa h istó ria é um a o u tra versão
do m e sm o ev e n to h istó rico em vez de u m ev en to separado. C ertam en te,
afirm a-se, os discípulos, p o r terem teste m u n h a d o antes a alim entação de um a
m ultidão sim ilar, n ã o p o d ería m ser tão esq u ecid os o u o b tu so s para fazer essa
pergunta. M ais u m a vez, se tivessem tid o a experiência de tal m ilagre, não
deveríam esp e rar o u tro nessa ocasião? N o e n ta n to , q u a n to m ais o indivíduo
reflete so b re essa crítica m en o s c o n v in ce n te ela se to rn a , em especial à luz da
apresentação d o e n d u recim en to dos discípulos p o r M arcos. E m b o ra M arcos
registre p ro p o rc io n a lm e n te m ais m ilagres q u e o u tro s evangelistas, ele com
certeza n ão re trata Jesu s co m o u m v e n d e d o r de m ilagres. A atividade de rea-
lização de m ilagres d e Jesus, co m algum as p o u ca s exceções em M arcos, vem
às pessoas — em especial aos discípulos — c o m o um a atividade to talm en te
m aravilhosa e im prevista. O desejo p o r m ilagres é um sinal d o s o p o n e n te s de
Jesus, e n ã o d e seus seguidores, c o m o fica evid enciado n o p ed id o de um sinal
pelos fariseus na h istó ria q ue vem im ed iatam en te a p ó s a p re se n te (8.11-13).
O s discípulos, ap esar de falharem d e fo rm as essenciais em sua co m p re en são
de Jesus, c o n h e cem suficientem ente b em a p o stu ra de servo d e Jesus p ara n ão
o in citar a fazer u m a in terv e n ção m ilagrosa. O p re ssu p o sto de q u e os disci-
pulos in terc ed era m p ara q ue h o u v esse u m m ilagre em D ecáp o lis re p resen ta
um a c o m p re e n sã o equivocada deles c o m o o é a co m p reen são equivocada
deles a re sp eito d e Jesus.

5-7 Jesus, de fo rm a d istin ta d a alim en tação d o s cinco mil em que ele


pede q u e os discípulos façam a m u ltid ão se se n ta r (6.39), faz pesso alm en te a
m ultidão se sen tar em D ecápolis. N a alim entação d o s cinco m il a descrição da
oração d e Jesus, d a m esm a fo rm a , segue o co stu m e judaico (“ o lh an d o para o
céu, d eu graças [gr. eulogein\\ 6.41), ao p asso q ue a descrição na alim entação
dos q u a tro m il em p reg a a fo rm a g entia-cristã d e ab ençoar, eucharistein (“ dar
graças” , 8.6), palavra d a qual deriva o n o m e cristão E u caristia para a ceia do
Senhor. Q u a n d o p erg u n ta q u an to s pães existem en tre a m ultidão, os disci-
pulos relatam : “ S ete” . E difícil afirm ar se esse n ú m e ro p o d e ser visto co m o
sim b o lizan d o a to talid ad e das n açõ es gentias o u n ã o (e.g., D t 7.1).41 M arcos,

41 O núm ero inclui os hititas, girgaseus, amorreus, cananeus, ferezeus, heveus e


jebuseus que habitavam na terra de Canaã. Tam bém, Pixner, WithJesus Through
M a rc o s 8 .8 9 ‫־‬ 294

de fo rm a d istin ta d o evangelho d e Jo ã o o u d e A pocalipse, p o r exem plo, não


se caracteriza pelos sen tid o s sim bólicos (co m o o faz, e.g., c o m a ironia) e, em
geral, n ão co n sid era p ru d e n te carreg ar os detalhes, em particular os núm eros,
ap resen tad o s em sua n arrativ a co m v alo r sim bólico.42 A lém d o pão, “ alguns
peixes p e q u e n o s” são incluídos n a refeição.43 A m en çã o separada aos peixes
e bên ção destes d iferem d o relato d a alim entação d os cinco m il, em que tanto
o peixe q u a n to o p ã o são m e n c io n a d o s ju n to s (6.41). M ais u m a vez (6.41),
n o entan to, o s discípulos são ch a m a d o s a auxiliar e e ste n d e r o m in istério de
Jesus com a d istrib uição d e p ro v isõ es p ara a m ultidão.

8,9 A N V I afirm a: “ C erca d e q u a tro m il h o m e n s ” estavam ali p ara a


alim entação. “ H o m e n s ” aqui n ã o é específico d e gênero , pois, d e fo rm a dis-
tin ta d os cin co m il “ h o m e n s ” de 6.44, o plural m asculino na term in aç ão de
“ q u atro m il” (gr. tetrakischilioi) indica “p e sso a s” , inclu ind o h o m en s, m ulheres
e crianças. O ta m a n h o d essa m ultidão, p o rta n to , era co n sideravelm ente m e-
n o r q ue a sugerida pela d iferen ça m atem ática en tre q u atro m il e cinco mil.
M arcos conclui o relato c o m u m a declaração breve, m as reveladora: “ O
p o v o co m eu até se fa rtar” . O u so d e “ se fa rtar” (gr. chorta^eiri) re p ete a m es-
m a palavra u sad a n o versículo 4 n a p erg u n ta d o s discípulos: “ O n d e , n este
lugar d eserto , p o d e ria alguém co n seg u ir p ã o suficiente p ara alim entá-los (gr.
chortaíçeiti)}” O g re g o d o versículo 4 p o d e ser m ais b em trad u zid o da seguinte
m aneira: “ Pois quem é capaz nessa região re m o ta de satisfazer essas [pessoas]

Galilee, p. 83. N o entanto, ao passo que os israelitas eram comandados a destruir


nações, Jesus os alimentava!
42 D a mesma forma, o versículo 3 (“alguns deles vieram de longe”) é algumas vezes
considerado com o um m odo de simbolizar a distância espiritual do paganismo
para o cristianismo. A numerologia de A. Seethaler, “Die Brotverm ehrung — ein
Kirchenspiegel?” BibZeit 34 (1990), p. 108-12 (sete = totalidade; quatro [mil] =
pessoas dos quatro cantos da terra; três dias = jornada perfeita), é excessivamente
especulativa.
43 A natureza parentética do versículo 7 é aparente em várias variantes textuais, ou
seja, tauta eulogêsas (“ [Jesus] abençoou esses [peixes pequenos]; conform e A K
Π) ou eulogêsas (“abençoou” , conform e X) ou ainda eucharistèsas (“deu graças”;
conform e D). A leitura mais forte, seguida pela N V I, é eulogêsas auta (“deu graças
igualmente [pelos peixes pequenos]”), que afirma forte apoio dos manuscritos
(‫ א‬B D L Δ Θ). O fato extraordinário de Jesus abençoando o peixe e não o nome
de Deus recom enda mais essa leitura, uma vez que não é uma leitura que alguém
inventaria. Veja Metzger, TCGNT, p. 96-97.
295 M a rc o s 8.8-9

co m p ão ?” N o m ilagre d a m ultiplicação d o s pães, a re sp o sta à p erg u n ta é


apresentada: só Jesu s p o d e satisfazer as pessoas!
A igreja, d o s pais da igreja em diante, p e rc e b e u c o rretam en te que Jesus,
na alim en tação d o s q u atro m il, traz o p ã o salvífico aos gentios, co m o tro u -
xera an tes aos judeus na alim entação d o s cinco mil. A jo rn ad a aos g entios
em 7.24— 8.9 evidencia q ue eles n ão estão além d o alcance da salvação n em
estão ac o stu m a d o s co m ela. A s três v in h etas em M arcos 7.24— 8.9, co m o
n o livro d e Jo n as, revelam que os g entios, s u p o sta m e n te d o g ru p o d os de
fora, são de fo rm a su rp re e n d e n te receptivos à Palavra de D e u s em Jesus. A
jo rn ad a de Jesu s a T iro , S idom e D ecáp o lis co m p ro v a que os gentios, apesar
de d estin ad o s ao o stracism o pelos judeus, n ão são excluídos p o r D eus. A
invectiva judaica c o n tra os g en tio s n ão reflete u m a invectiva divina. H á um a
lição aqui p ara o p o v o de D e u s de to d as as eras — q ue os inim igos d o povo
de D e u s n ã o são a b a n d o n a d o s p o r D e u s n em estão além da co m p aix ão de
Jesus. A o contrário, os gentios, co m o o u tro s “ de longe” são os objetos da
com paixão de Jesus. A diferença en tre a resposta d o s judeus aos gentios e a
resposta d e Jesus p o d e ser vista na frase que conclui o relato de M arcos: “E ,
[Jesus] ten d o -o s d e sp ed id o ” , apolyein, p o d e significar “ descartar” o u “livrar-se
de” ; o u “ lib ertar” o u “ lib erar” . A p rim eira é a re sp o sta judaica; a segunda
é a re sp o sta d e Jesu s q u e sacia a fo m e d o s p ro sc rito s fam in to s e os libera.
capítulo oito

A remoção ão véu
M A R C O S 8 .10 — 9.29

A h istó ria d e Jesu s p o r M arcos alcança seu ápice n o capítulo 8, n o cen tro
do qual está a declaração de P ed ro de q ue Jesu s era o M essias (8.29). A de-
claração d e P e d ro em C esareia de Filipe fica ap ro x im a d am en te a m eio p o n to
do evangelho e, c o m o u m a divisão co n tin en tal, sep ara o evangelho em dois
principais divisores de água. N a prim eira m etad e d o evangelho, Jesus atravessa
de cá para lá e d e lá p ara cá o m ar da G alileia sem p ro p ó sito ap aren te, m as
ele, d ep o is d a co n fissão de P edro, passa, co m firm eza, a seguir o “ c a m in h o ”
para Jerusalém . Jesus, antes de C esareia d e F ilipe, dirige seu en sin am en to às
m assas d a G alileia, m as, d ep o is d a co n fissão d e P edro, ele deixa a G alileia
e in stru i d elib erad am en te seus discípulos n a jo rn a d a p ara Jerusalém . Sua
resolução didática é re p resen ta d a p elo fato d e q u e só u m a vez na prim eira
m etade d o ev an g elh o é q u e Jesu s prefacia u m e n sin o co m a solene fórm ula:
“E u digo a v e rd ad e” (gr. Amen legõ hymin, 3.28), ao p asso que, n a segunda
m etade d o evangelho, a fó rm u la o c o rre d o z e vezes. N a p rim eira m etad e d o
evangelho, Jesu s p ro íb e as pessoas de an u n ciar sua id en tid ad e e trava co m
frequência c o m b a te co m a p o ssessão d em o n íaca, m as, d ep o is d e 9.29, não
há o u tras o rd e n s p ara silenciar e n e n h u m a o u tra m en ção aos d em ô n io s ou
à expulsão d e d em ô n ios. N a prim eira m e tad e d o evangelho, os discípulos
falham co m p letam en te em sua co m p reen são d e je su s, ao passo que, depois de
Cesareia de Filipe, a c o m p re en são in cip ien te deles é expressa nessa confissão
do m essiado d e je s u s , e m b o ra lutem co m o fato de u m M essias sofredor, em
vez d e u m M essias real. A p rim eira m etad e d o evangelho leva Jesus para fora
de Israel, ch e g an d o a T iro , S idom , C esareia d e Filipe e D ecápolis; a segunda
m etade o traz p ara Jerusalém , o âm ago de Israel. A prim eira m etade de M arcos
é um a jo rn a d a p ara fora na qual Jesus se lança am p lam ente; a segunda m etad e
M a rc o s 8.10 298

é u m a jo rn ad a p ara o in terio r, p ara a fo n te, para Jeru sa lém e o tem plo. As


duas m etades d o evangelho co n clu em co m confissões cristológicas, e as duas
con fissõ es são associadas co m os g en tio s ro m an o s: a prim eira é a confissão
h esitan te de P ed ro n a fo rtaleza ro m a n a de C esareia d e Filipe q u e Jesu s é o
C risto (8.29); a seg u n d a é a co n fissão c o m p leta d o c e n tu rião ro m an o na cruz
que Jesus é o F ilh o d e D e u s (15.39). A s duas confissões ensinam q u e a ver-
dadeira id en tid ad e d e Jesu s só é revelada p o r in te rm é d io d o so frim en to — e
q u e aqueles q u e são ch am a d o s a seguir Jesus tem d e estar p re p ara d o s para
participar em seu so frim ento.

U M S I N A L D E D E S C R E N Ç A (8 .10 -13 )

E m u m c o n flito final co m o s fariseus n a G alileia, M arcos usa o p edido


deles p ara q u e Jesu s faça u m sinal celestial c o m o u m a lição d e p ro p ó sito
negativo da fé.

10 Jesu s e os discípulos, ap ó s alim en tar q u a tro m il pessoas, atravessa-


ram o m a r d a G alileia e fo ram “ p ara a região de D a lm a n u ta ” . E ssa é a única
m en ção d e D a lm a n u ta n o N o v o T e stam e n to e a única o co rrên c ia existente
d o n o m e na literatu ra d a A n tig u id ad e.1A localização desse vilarejo n u n ca foi
identificada co m certeza, m as era p ro v av elm en te p ró x im o d e “ M agadã” (ou
u m a variante, “ M agdala” [ARC]), q ue o c o rre n o paralelo em M ateus 15.39.
M agadã era u m c e n tro d e p escaria, daí o n o m e grego, T arichea, co m o sen-
tid o de “ peixe salgado o u e m c o n se rv a ” . U m a c o m b in ação de n o m es no
T alm u de (b. Pes. 4 6 b ), M igdal T arichea, significa “ to rre d o peixe [salgado]” .
S ch ü rer arg u m e n ta q u e a localização d e T arich ea é a sul de T iberíades,*2 m as
isso parece du v id o so , u m a vez que, e m n e n h u m dos E van g elh o s, Jesu s visi-
ta o q u a d ra n te su d o este d a m arg e m d o lago o n d e fica T iberíades. M agadã,
co n tu d o , está localizada cin co q u ilô m e tro s a n o rte d a C idade d e T ibério,

' Para as leituras variantes no versículo 10, veja B. M etzger, T C G N T , p. 97.


2 E. Schürer, H istory o f theJewish People, 1.494-95, argum enta fu n dam entado em Jo-
sefo, Guerra 3.462 e 4.11, que A m athus e T arichea são o m esm o lugar. E m Guerra
4.11, no entanto, Josefo não diz que A m athus fica a sul de T iberíades, m as “ em
frente de T iberíades” . N a descrição mais com pleta em Guerra 3.462-67, Tarichea
aparece a n o rte de Tiberíades, pois Jo sefo a identifica com G en n esar e a localiza
“ao pé do m o n te ” (hypõreios), que deve se referir à im ponente fortificação de Arbel,
diretam ente acim a de M agadã/T arichea. Josefo, ao localizar A m ath u s “ em frente
de T iberíades” , deve se referir à perspectiva a norte de Tiberíades, em n ão a sul,
co m o supõe Schürer.
299 M a rc o s 8.11

ao lado d e G e n esaré o n d e Jesu s e os discípulos d ese m b arcaram d ep o is da


alim entação d o s cinco m il (6.53). U m a n c o ra d o u ro d e sc o b e rto um p o u c o
a n o rte d e M agadã em 1971 p o d e ser p o ssiv elm en te o local d e D a lm an u ta.3
O s radicais h eb raico s d e D alm an u ta, dylm’, são e n c o n trad o s n o T alm ude (/'.
K il 3 2 d) co m o sen tid o de “ m u ralh a” . E sse p o d e ser m ais u m indício para
identificar D a lm an u ta co m M agadã, u m a vez que esse últim o vilarejo fica logo
abaixo d a m aciça m u ralh a o u p en h a sc o d e A rb el, co m v ista p an o râm ica da
costa o este d o lago. E ssa últim a su g estão é c o rro b o ra d a p o r Jo se fo que loca-
liza a cidade de T arich ea pró x im a d e G e n n e s a r aos pés de u m m o n te (Guerra
3.463-67). D a lm an u ta, p o rta n to , é razo av elm en te identificada c o m M agadã,
localizada n a p a rte m ais a o este d o m a r d a G alileia, n a ju n ção estratégica da
Via M aris abaixo d o m o n te A rbel.

11 E m D alm an u ta, Jesus é in terp elad o pelos fariseus, que lhe p ed e m “ um


sinal d o cé u ” . Várias palavras gregas n o versículo 11 são m ais an tagonistas
do q u e a N V I indica, n ã o d eix an d o a m e n o r d ú v id a d a o p o sição d o s fariseus.
E m vez d e “v ieram ” , M arcos traz “ saíram ” (gr. exêlthori), c o m o se fosse u m a
fileira m ilitar. E les n ão só co m eçaram a “ in te rro g a r” Jesus, m as puseram -se
a “ d iscutir” (ARA) o u “d isp u tar” (ARC) c o m ele, de ac o rd o co m o te rm o
grego system, u m c o m p o n e n te essencial n a n arrativ a m arcana (1.27; 8.11;
9.10,14,16; 12.28). A palavra p ara “ped iram -lh e” (gr. syteiri), o u tro item regular
no v ocabu lário d e M arcos, co m o sen tid o de te n ta r g a n h a r co n tro le de (veja
a discussão so b re o te rm o em 1.37). A palavra p ara “p ro v a” (gr. peira^ein)
não significa um teste objetivo p ara d e sc o b rir o m é rito de algo, m as um
o bstáculo o u p e d ra de tro p e ç o p ara d esa cre d itar alguém . H á apenas q u atro
o corrências dela em M arcos, u m a q u a n d o S atanás te n ta Jesu s n o d eserto
(1.13) e três relacionadas co m a o p o sição d o s fariseus (8.11; 10.2; 12.15).
Fica, p o r co n seg u in te, ap a ren te n o versículo 11 q u e os fariseus rep resen tam
um desafio a Jesu s e u m a c o n fro n ta ç ã o co m ele.
A expectativa farisaica d e “u m sinal d o céu ” é eco ad a pela afirm ação de
Paulo d e que “ os judeus p ed e m sinais m ilag ro so s” (IC o 1.22). N o entanto,
até m esm o n o A n tig o T estam en to , os sinais n ã o eram consid erad o s co m o
prova positiva da v o n ta d e de D eus. U m p ro feta, p o r exem plo, que o rdenasse
algo c o n tra a T orá, m as o p erasse u m sinal m ilagroso, continuava u m falso
pro feta (D t 13.1 -5). A v erdadeira profecia, p o r su a vez, era c o rro b o ra d a pelo
cum p rim ento d o que u m p ro fe ta predizia (D t 18.22). U m co m en tário judaico

3 J. Strange, “Dalm anutha” , A /i/9 2.4.


M a rc o s 8.12 300

s o b re D e u te ro n ô m io 18 afirm a: “ Se u m p ro fe ta co m eça a p ro fetizar, ouça-o


se ap resen tar u m sinal o u fizer u m m ilagre; m as se ele n ão os fizer, n ão ouça
esse p ro fe ta ” .4 O sinal exigido pelos fariseus, todavia, n ão é apenas p o r um
m ilagre, p o is n o s evangelhos sin ó tico s u m “ sinal” n ão é u m m ilagre, nem ,
tam p o u co , u m m ilagre é ch a m a d o d e sinal. A lém disso, Jesus fez m ilagres
o tem p o to d o , e os fariseus n ão p o d iam n ã o estar fam iliarizados c o m eles.
A palavra q u e M arcos n o rm a lm e n te usa p ara “ m ilagre” (gr. djnam is) está de
fato au se n te aqui. A ntes, os fariseus p e d e m “ u m sinal (gr. sêmeion) d o céu” ,
o u seja, u m a c o n firm ação d o m in istério d e Jesu s p o r D e u s m esm o , “ um a
p ro v a ex tern a c o n v in cen te d a au to rid ad e divina” .5 O raciocínio deles é que
se Jesu s está trab a lh a n d o em n o m e de D eu s, en tão D e u s deve au to rizar di-
vin am en te seu trabalh o .6

12 “ [Jesus] su sp iro u p ro fu n d a m e n te e disse: ‘P o r que esta geração pede


u m sinal m ilag ro so ? E u afirm o q u e n e n h u m sinal será d ad o a vocês.’ ” E m -
b o ra n ã o fique to ta lm e n te ap a ren te n a N V I, esse versículo registra o p o n to
m ais baixo d o d esalento n o evangelho d e M arcos. O original g re g o afirm a
q ue Jesu s “ g em eu em seu esp írito ” (veja a A R A : “ a rra n c o u d o ín tim o d o seu
espírito u m g e m id o ”). A palavra g reg a p ara “ su sp iro u p ro fu n d a m e n te ” (gr.
anastena^ein) é rara, o c o rre n d o apenas aqui n o N o v o T estam en to , e m en o s
de trin ta vezes em to d a a literatu ra grega. A p esq uisa de seu u so revela que
n ão é u m a ex p ressão d e raiva n e m d e indignação, m as u m a m anifestação
de seu d esalen to o u desesp ero . A nastena^ein é u sad o p ara d escrev er pessoas
que se e n c o n tra m em situações em q u e são levadas ao lim ite da fidelidade.7
O a n tag o n ism o d os fariseus faz paralelo co m o an ta g o n ism o d o s israelitas
co m M oisés n o d e se rto — e o g em id o de Jesu s em d esalen to p arece refletir
o d esg o sto d e D e u s c o m os israelitas recalcitrantes e o b stin ad o s (Ex 33.5!). A
referência a “ esta g eraçã o ” assinala a alienação d os fariseus de Jesu s e rem e-
m o ra a g eração d esc ren te d a é p o c a d e N o é (G n 7.1) e a teim osia da geração
d o êx o d o n o d e se rto (SI 95.10,11). E ssa últim a foi a geração que d eu as costas
p ara D e u s, “ g eração p erv ersa, filhos infiéis” (D t 32.20). Iro n ic am en te, os
g en tio s n a h istó ria an te rio r q ue eram “ de lo n g e ” (8.3; E f 2.13,14) estão mais

4 Sifre D eu tero n ô m io 18.19 § 177 (108a); veja Str-B 1.727.


5 C. E . B. C ranfield, The GospelAccording to St. Mark, ρ. 257.
6 K. H . R engstorf, “sêmeion” , 7 Z W 7 7.234-36.
7 J. B. G ibson, “A n o th er L ook at W hyjesus ‘Sighs D eeply’: anastenasp in M ark 8:12a”,
) 7 3 1996) 47‫)־‬, p. 131-140.
301 M a rc o s 8.13

pró xim o s d e Jesu s q ue aqueles de sua p ró p ria fé e povo, co m o os fariseus.


A declaração solene: “ E u afirm o ” ; ou: “ E m v e rd ad e” (ARA, A RC), já foi
usada apenas u m a vez em M arcos co m referên cia aos m estres da lei acusando
Jesus de cu m p licid ad e co m o dem ônio. A re p etição daquela afirm ação aqui
sugere que o a n tag o n ism o d o s fariseus está asso ciado co m a o p osição de
3.22. A últim a p a rte d o versículo 12 é u m a c o n stru ç ã o gram atical in co m u m
em grego. E u m a c o n stru ç ã o sem ítica — o q u e a fixa em Jesu s o u n a igreja
prim itiva — in d ican d o negação categórica. E la significa: “ Se u m sinal for
d ad o a esta geração, q ue eu m orra!” 8 A d eso b e d iê n cia d e Israel na ép o ca de
M oisés (D t 32.5-20) foi deixada co m o leg ad o p ara os dias d e Jesus.

13 “ E n tã o se afasto u deles, v o lto u p ara o b a rco e foi p ara o o u tro lado.” 9


E ssa é u n ía d escrição física de Jesu s p a rtin d o d e u m lugar p ara o u tro , m as
tam b é m p arece sim b o lizar o fato d e Jesus se se p a ra r do s fariseus. P o r que
Jesus se recu sa a c o n c ed e r u m sinal? Será q u e é p o r causa d o seg red o m essiâ-
nico (veja em 1.34)? P rovavelm ente, não, p o is a q u estão em D a lm an u ta n ão
é a n ecessid ad e de segredo p o r p arte de Je su s, m as a d escren ça do s fariseus.
N o s evangelhos sinóticos, a exigência p o r “ sinais” é em si m esm a u m sinal
de ten tativ a d e g a n h a r p o r m eios em píricos o q u e só p o d e ser co n q u istad o
pela fé e co n fian ça. E o falso p ro fe ta q u e b u sc a en g an ar p o r m eio de sinais e
m aravilhas (13.22). Jesu s ab a n d o n a os sinais, p o is “ fo rçar a evidência so b re
alguém to rn aria , p o r sua p ró p ria natureza, im p o ssív el a re sp o sta de fé” .10 A
fé qu e d e p e n d e d a p ro v a n ão é fé, m as apenas u m a d úvida velada. Se u m ho-
m em c o n tra ta u m detetive particular p ara esp io n ar a esp o sa e n q u a n to ele está
fora a fim de “ p ro v a r” a fidelidade dela, as “ p ro v a s” d o detetive dificilm ente

8 P ara a expressão, veja G ênesis 14.23; N ú m e ro s 32.11; D e u te ro n ô m io 1.35;


IReis 3.14; 6.31; Salm os 94.11. A expressão eidothêsetai (“n en h u m sinal será dado”)
é um sem itism o para ‘myinaten. M ateus 16.4 substitui o ei co m o mais típico ou.
E ssa m udança de explicação, bem com o a substituição de M agadã (Mt 15.39) pelo
te rm o difícil de M arcos, D alm anuta, argum enta em favor do u so de M arcos p o r
M ateus, e não o reverso.
9 A evidência dos m anuscritos é dividida um tan to equilibradam ente, quer para
incluir quer para om itir “ para o barco” . T am pouco o são os argum entos da pro-
babilidade conclusiva, pois um escriba pode ter om itido a frase com o redundante
depois de “voltou” o u “em barcar” (embas; ARA); ou de m o d o inverso, “em bar-
car” p o d e ter sugerido a adição “para o barco” para algum escriba. Veja M etzger,
T C G N T , p .9 7 .
10 R. A. G uelich, M ark 1— 8:26, p. 415.
M a rc o s 8.14-15 302

g aran tirão a fé d o m arido. A fé, c o m o o am or, n ã o p o d e ser provada; só p o d e


ser d e m o n stra d a p ela co n fian ça e c o m p ro m isso ativo. O s fariseus se viram e
vão em b o ra; os discípulos ac o m p a n h a m Jesu s n o barco. E d u a rd Schw eizer
chega a u m a co n clu são m u ito p ercep tiv a dessa descrição q u e en c erra essa
história: “ a fé v em q u a n d o alguém en tra n o b arco c o m Jesus e escolhe não
p e rm a n e c e r n a seg u rança d a p raia” .11

O IN IM IG O D E N T R O (8.14-21)

A o p o sição o b stin a d a d o s fariseus e o to tal d esalento de Jesu s n a história


an te rio r (8.11,12) m arc am o p o n to m ais baixo n o m in istério galileu. M arcos
seguiu esse e n c o n tro b rev e e tristem en te n ão re d e n to r co m u m a conversação
en tre Jesu s e os discíp u lo s n o barco. A c o m p re e n sã o equivocada e indiscri-
m in ad a d o s discíp u lo s q u a n to à referên cia d e Jesus ao “ fe rm e n to ” indica que
Jesus n ão d eix o u a o p o sição p ara trás co m os fariseus q u e ficaram n a beira do
m a r d a G alileia. E s tá ali co m ele n o b arco, se n ão em o p o sição d ireta, pelo
m en o s n a p erp le x id ad e da c o m p re en são equivocada d o s p ró p rio s discípulos.
Jesu s é lev ad o à exasperação. E le, c o m o o p ro fe ta E zequiel, é u m exilado
em m eio a seu p ró p rio povo. “ F ilh o d o h o m e m , v o cê vive n o m eio d e um a
n ação rebelde. E les têm o lh o s p ara ver, m as n ão veem , e ouv id o s p ara ouvir,
m as n ã o o u v em , p o is são u m a n aç ão re b eld e” (E z 12.2).

14,15 N o b arco, os discípulos d e sc o b re m qu e n ão têm p ão co m eles,


exceto u m filão.1112 O tó p ic o d o p ã o d o m in a essa p erícope, e m b o ra Jesu s e os
discípulos falem de dois tip o s d istin to s d e pão. O s discípulos lam en tam a
escassez d e p ã o (w . 14,16), ao passo q u e Jesu s os alerta para to m arem cuidado
“ co m o fe rm e n to d o s fariseus e c o m o fe rm e n to d e H e ro d e s” . M ateus iden-
tífica a m e tá fo ra d o fe rm e n to d o s fariseus e d e H e ro d es c o m o o ensinamento
do s fariseus e sad u ceu s (M t 16.12), e L ucas identifica o fe rm e n to c o m o a
hipocrisia d o s fariseus (Lc 12.2). M arcos deixa a m e táfo ra sem explicação, e
seu sen tid o exato é u m a q u estão de d eb a te u m a vez q u e os fariseus e H ero d es
A ntip as ap a re n te m e n te tin h a m p o u c o em c o m u m . A severidade d o p erigo

11 The Good. Mews According to Mark, p. 160.


12Algumas vezes é sugerido que um pão se refere a Jesus, aquele que é capaz de se
oferecer como alimento para todos. Mais recentemente, veja E. LaVerdiere, “ W h o
D o You Say T hat I Am?’ ” Emmanuel 96 (1990), p. 454-63. Tal interpretação é
incom um ente simbólica para o evangelho de Marcos. Além disso, é disjuntivo
com o subsequente “ ferm ento” dos fariseus e Herodes, que é o tema principal
da historia.
303 M a rc o s 8.14-15

fica clara. A palavra para “ adverti[r]” (gr. diastelleiri) significa “ o rd e n a r” o u


“ c o m a n d a r” , e Jesu s diz duas vezes: “ E ste ja m a te n to s ” e “ ten h am cu id ad o ”
co m o “ fe rm e n to ” .
O fe rm e n to é o q ue leveda a m assa, fa zen d o -a crescer. A im agem d o
fe rm e n to surge da festa d o p ã o asm o o u sem fe rm e n to de Ê x o d o (Ê x 12.18).
E sp era-se q u e u m a m e táfo ra derivando da ex periência fu n d am en tal d a salva-
ção de Israel te n h a co n o ta ç õ e s positivas, m as n ã o é esse o caso. N a literatura
rabínica, o “ fe rm e n to ” c o m o m etáfo ra se re fere co m frequência à ten d ên cia
ou in ten çã o d o co raçã o h u m an o , algum as vezes e m u m sen tid o positivo, m as
com m aio r freq u ência em u m sen tid o ru im .13 D e fo rm a sim ilar, em apenas
um a o casião n o N o v o T e stam e n to o te rm o “ fe rm e n to ” tem u m sen ü d o
m etafó rico p o sitiv o (M t 1 3 .3 3 //L c 13.21). N a s o u tras d o z e o co rrên cias
restantes, o u so de “ fe rm e n to ” tem a c o n o ta ç ã o d e c o rru p çã o , p ro fan ação
e p erig o.1415O u so p resen te d e “ o fe rm e n to d o s fariseus e [...] o fe rm e n to de
H e ro d e s” é claram en te u m alerta negativo.
C o n tu d o , qual é seu sentido? A final os fariseus e H ero d es A ntipas tinham
p o u co em c o m u m .11 A lguns co n sid eram a m e tá fo ra c o m o u m alerta co n tra
o m essian ism o davídico po lítico q u e ten taria d e rru b a r R o m a a fim de unir o
povo ju d eu .16T odavia, isso é im provável p o r causa d e dois aspectos. Prim eiro,
H erod es A n tip as devia sua p o sição a R om a, e n ã o tin h a nad a a g an h ar e tu d o
a p e rd e r caso se rebelasse c o n tra R om a. E seg u n do , os fariseus — q u an d o
com p arad o s co m o s zelotes, saduceus e h ero d ia n o s — não estavam desco n -
tentes c o m o g o v e rn o ro m an o , d esd e q u e este n ã o interferisse com o estu d o
e aplicação da T orá. T a n to os fariseus q u a n to H e ro d es A ntipas, em o u tras
palavras, tin h am razões p ara ap o iar o g o v e rn o ro m an o , em vez de dem ovê-lo.
O u tro s estu d io so s co n sid eram a m e táfo ra c o m o u m alerta co n tra a exigência
de sinais.17 E ssa in terp retaçã o se ajusta c o m a exigência d o s fariseus p o r um
sinal n a h istó ria an terio r, em b o ra fique m e n o s claro em M arco s que H e ro d es

13Veja Str-B 4/1.466-83.


14 M ateus 16.6,11,12; Lucas 12.1; IC oríntios 5.6 (2x),7,8; G álatas 5.9 (2x).
15 Alguns m anuscritos (P45W Δ Θ) substituem “ herodianos” p o r “ H erodes” , fazendo
dessa fo rm a com que o dito fique em conform idad e com os fariseus e herodia-
nos em 3.6 e 12.13. A dificuldade de “ H erodes” , n o entanto, com binada com a
evidência m anuscrita consideravelm ente superior para essa escolha, argum enta
de fo rm a veem ente pela leitura da N V I.
16P or exem plo, E. Lohm eyer, D as Evangelium des M arkus, p. 157; R. Pesch, Das
Markusevangelium, 1.413.
1' Por exem plo, W. G ru n d m a n n , D as Evangelium nach M arkus, 163.
M a rc o s 8.16-21 304

A ntip as busca u m sinal d e Jesu s.18 A m etáfo ra p ro vav elm ente a p o n ta de um a


fo rm a lev em en te d istin ta em u m a direção diferente. O ú n ico p o n to que une
os fariseus e H e ro d es A n tip as é a o p o sição deles a Jesus. O b se rv a m o s que
a jo rn ad a circular p ara T iro, S id o m e D ecáp o lis em 7.24— 8.9 p o d e te r sido
m otivado p elo m en o s em p a rte pela im p o rtu n açã o d e H ero d es A ntipas (6.14-
29) e d o s fariseus (7.1-23). A o p o sição deles é o resu ltad o d a d escren ça em
Jesus, e a d escren ça ta m b é m fe rm e n ta em m eio aos discípulos n o b a rc o .19 A
afirm ação “ o fe rm e n to d o s fariseus e [...] o fe rm e n to de H e ro d e s” parece
ser u m a c o m p re e n são eq u iv o cad a o u até m esm o d escren ça p o r p a rte dos
discípulos q u e seria d e fato tã o adversa q u an to a de H e ro d es A n tip as e dos
fariseus.

16 O s discípulos n ã o tê m consciência de sua co n d ição atual. E les tergi-


versavam so b re o sen tid o d o “ p ã o ” sem p e rc e b e r q u e estão sen d o in fectados
p o r u m cân cer m o rtal. A falha deles em c o m p re e n d e r p o d e p ro d u z ir um a
d u re za d e c o raçã o q u e é equivalente à o p o sição d eclarada do s fariseus e
H ero d es. O p erig o é m ais e n g a n ad o r n o caso deles, u m a vez que estão em
co n ta to diário c o m Jesus; e, c o m o n o caso da m ãe e irm ão s d e Jesu s (3.31-
35), o fato d e a p ro x im id ad e física deles “ c o m ” Jesu s (3.14) p o d e r levá-los a
p re su m ir q u e ta m b é m estão c o m ele n o p ro p ó s ito e m issão. A p roxim idade
deles c o m Jesu s tem de crescer e se to rn a r c o m p re en são ; e a co m p reen são ,
em fé; o u caso co n trário , c o m o Judas, essa p ro x im idade, n o fim , o deixará
in o cu lad o q u a n to ao sen tid o d a o b ra e p esso a d e Jesus.

1 7 - 2 1 Jesus, “ p e rc eb e n d o a d iscu ssão ” deles, faz u m a contrao fen siv a. A


palavra trad u z id a p o r “ d iscu ssão ” (gr. dialoguesthai), q u e tam b ém p o d e sig-
nificar “racio cín io ” o u “ c o n sid eraçã o ” , o c o rre n d o sete vezes em M arcos,20
m as n u n c a p o sitiv a m en te. E m cad a o co rrên c ia , o te rm o d escrev e vários
g ru p o s — m estres d a lei, discípulos, S inédrio — te n ta n d o resolver o sen ti­

18 D e acordo com Lucas 23.8, H erodes A ntipas “esperava vê-lo [Jesus] realizar algum
m ilagre” , m as esse pedido não se en contra em M arcos. É verdade que H erodes
A ntipas considerava os m ilagres de Jesus com o um sinal de que Jo ã o Batista re-
to rn ara à vida (6.14), m as essa era um a superstição, e não teste para Jesus.
19 E . H aenchen, D er Wegjesu, p. 288, está co rreto ao n o ta r o elo co m u m en tre os
fariseus e H erodes A ntipas em sua “ hostilidade” a Jesus, m as G uelich, M ark
1— 8:26, p. 422-24, está ainda m ais co rreto ao considerar a “ descrença” co m o o
perigo que pairava sobre os discípulos.
20 2.6,8 (2x); 8.16,17; 9.33; 11.31.
305 M a rc o s 8.16-21

d o d e Jesu s p o r si m esm os. N o en tan to , as ru m in aç õ es hum anas, à p a rte da


palavra esclareced o ra d e Jesu s, são futeis e n ão levam à com preensão. Jesus
p ressio n a os discípulos c o m u m a rajada d e sete p erg u n tas q u e co m b in am
argum ento s e censura: V ocês ainda n ão co m p re e n d e m n em percebem ? A inda
n ão c o m p re en d em ? O co ração de vocês está en d u recid o ? (8.17) N ã o veem ?
N ã o o u vem ? N ã o se lem b ram ? (v. 18) N ã o e n ten d e m ? (v. 21). E se isso não
bastasse, M arco s conclui co m u m d o lo ro so lem b re te d o s resultados da aü-
m en tação d o s cin co m il e d o s q u atro m il (w . 19,20). A q u estão das sobras
nas duas alim entações de m assa m u d a o a ssu n to de v o lta p ara o p ão real, o
qual se afasta u m ta n to d o p o n to inicial de Jesu s s o b re o sen tid o m etafó rico
d o “ fe rm e n to ” d o s fariseus e de H erodes. C o n tu d o , o p o n to da q u estão fica
p erd id o n a insensibilidade e o b stin ação dos discípulos, pois eles que testem u-
n h aram das cestas cheias de p ã o d uvidam da suficiência de Jesu s n o barco. O
lam en to p ro fétic o c o n tra a descrença de Israel é e c o a d o n o la m e n to d e Jesus
co n tra a falha d o s discípulos em co m p reen d er: “ O u ç a m isto, vocês, p o v o tolo
e insensato , q ue têm olhos, m as n ão veem , têm o uv ido s, m as n ão o u v e m ” (Jr
5.21; E z 12.2; tam b é m citado em Atos de Tomé, 82). A essência dessa citação
foi aplicada aos defora em 4.12, m as ag o ra é aplicada aos discípulos!
A falha em co m p re e n d e r leva à d u re za d e co ração (8.18). O p ed id o para
c o m p re e n d e r é u m lem b re te d e que a fé n ã o está separada d a com preensão,
m as só é possível p o r in te rm é d io da co m p reen são . E ssa passagem é um a b o a
apologia p ara a co m p re e n sã o a p ro p riad a d a ed u cação cristã. Se a cegueira
espiritual e in telectu al levar à d u re za d o coração, a fé cega sem c o n te ú d o tam -
b ém leva in ev itav elm en te à d u re za d e coração. A fé p ara a qual Jesu s apela
é um a fé nascid a d a c o m p re e n sã o e d iscern im e n to . O s discípulos n ão são
castigados p o r n ão crer, m as p o r n ão vere, n ão compreender.
O co raçã o en d u recid o é u m p ro b le m a p artic u lar p ara pessoas m orais
e religiosas (e.g., R m 2.5). U m co ração ig n o ran te n ã o p o d e en d u rece r a si
m esm o. Só u m co ração c o n h e c e d o r p o d e se en d u recer, e essa é a razão p o r
que os m ais p ró x im o s de Jesu s — os fariseus (3.5,6) e os discípulos (6.52;
8.17) — c o rre m o m aio r perigo. O s discípulos esp elham a h u m an id ad e em
geral, q u e está tão p re sa em seu p ró p rio m u n d o e cuidados q u e fica cega e
surda p ara D eus. O s discípulos estão an sio so s p o r causa da falta d e pão, m as
Jesus está an sio so so b re a falta d e fé d o s discípulos.
M arcos, ap esar d a lam entável d em o n stra ç ã o d o s discípulos n o barco,
não term in a a história aqui, n e m a conclui co m um a n o ta de desespero. Jesus
cham ou os discípulos (1.16-20; 2.13,14; 3.13-19), e a autorrevelação dele só
M a rc o s 8.16-21 306

a c o n te c e à m e d id a q u e eles o seg u em . N o itin e rá rio deles c o m Jesu s, rev elo u -se


a g ra v id a d e d a c o m p r e e n s ã o e q u iv o c a d a deles, p r o d u z in d o a p a re n te m e n te
até m e s m o u m a re g re s s ã o n a fé d o s d isc íp u lo s, q u e te m p e lo m e n o s u m
b e n e fíc io n e g a tiv o d e liv rá -lo s d a s c o n c e p ç õ e s e q u iv o c a d a s e e x p e c ta tiv as
falsas e m re la ç ã o a je s u s .21 N a v e rd a d e , a falh a d e le s n e c e ssita e to r n a p o ssív el
u m a c o m p r e e n s ã o to ta lm e n te n o v a d e Je su s. E s te a p a r e n te m e n te o s re d u z iu
a n a d a a fim d e to rn á -lo s a lg o v e rd a d e ira m e n te d ig n o s (R m 11.32!). E le s n ã o
re so lv e ra m o m is té rio d a fé so z in h o s. A n te s, aq u e le q u e o s c h a m o u , p o r m e io
d e s e u to q u e re p e tid o , o s c a p a c ita a ver.

O TO Q U E Q U E D Á A V IS Ã O (8.22-26)

J e s u s e o s d isc íp u lo s, a p ó s c h e g a re m a B e tsa id a p o r b a rc o , sã o re c e b id o s
p o r p e s s o a s p e d in d o a c u ra d e u m h o m e m ceg o . E s s e m ila g re e o m ila g re d a
c u ra d o s u r d o - m u d o e m 7 .3 1 -3 7 sã o sim ilares e sã o o s d o is ú n ic o s m ila g re s
o m itid o s e m M a te u s e L u cas.22 F ic a m o s im p re s s io n a d o s d e im e d ia to p e la

21J. B. Tyson, “T he Blindness o f the Disciples in Mark”,y ñ L 80 (1961), p. 261-68


(reimp. Em The Messianic Secret, Issues in Religion and Theology 1, ed. C. Tuckett
[Philadelphia: Fortress Press, 1983], p. 35-43), propõe que Marcos enfatize a estu-
pidez e recalcitrância dos discípulos a fim de desafiar e desmascarar uma poderosa
hierarquia apostólica em Jerusalém, consistindo em grande parte da familia de
Jesus na época em que Marcos escreveu seu evangelho. Marcos, de acordo com
Tyson, opõe-se à elite de Jerusalém porque está fechada para a liderança de fora
(e.g., Paulo e o próprio Marcos) e para a missão gentia. A tese de Tyson seria mais
convincente se apresentada de uma form a modificada, por exemplo, de que os
líderes da igreja em jerusalém não merecem sua posição por causa do desempenho
deles com o discípulos. Contudo, a tese de Tyson, conform e proposta, está aberta
à crítica. Primeiro, não leva em consideração a reabilitação de Pedro em 14.28 e
16.7. Segundo, a liderança de Jerusalém inclui um núm ero de líderes influentes
além da família imediata de Jesus, incluindo Pedro, Tiago, João e Estêvão. Por fim,
a tese de Tyson falha em lidar com a probabilidade histórica de que Pedro é uma
das principais fontes para o evangelho de Marcos. Se esse for o caso, o retrato dos
discípulos apresentado por Marcos está ancorado em uma fonte historicamente
confiável, e não em um a apologética literária.
22 As similaridades entre os dois relatos incluem os seguintes aspectos: nos dois
relatos, Jesus cura o indivíduo longe da multidão; os dois fazem uso da saliva e da
imposição de mãos; e nos dois, Jesus tem interesse no segredo. R. Bultmann, The
History of the Synoptic Tradition, ed. rev., trad. J. Marsh (Oxford: Blackwell, 1972),
p. 213, considera a passagem de 8.22-26 com o uma variante de 7.31-37. O fato
de Bultmann descartar 8.22-26 (“Precisamos considerar a jornada de Jesus para o
norte como um a fantasia e eliminá-la da história”, p. 65) é indevidamente arrogante.
307 M a rc o s 8.22

ênfase de M arcos n a visão n o p re sen te m ilagre em o p o sição à ênfase na ce-


gueira e falta d e c o m p re en são na história a n te rio r (8.14-21). A justaposição
das duas histórias é u m indício d e que a cegueira p ro lo n g ad a d o s discípulos
tam b é m p o d e ser aliviada, c o m o a c o n te ceu c o m a cegueira d o h o m em em
B etsaida, pelo to q u e co n tín u o d e Jesus.

22 A jo rn a d a d e b arc o m en cio n a d a em 8.13,14 traz Jesus e os discípulos


para B etsaida. E ssa cidade, localizada n a co sta n o rte d o m a r da Galileia, fica
im ed iatam en te a leste d o esc o ad o u ro d o rio J o rd ã o n o m ar. B etsaida, que
significa “ casa d o p escad o r” , co m o várias cidades em to rn o d o m ar da Galileia,
deriva seu n o m e de sua principal indústria. E la se localiza em G aulanitis na
tetrarq uia de Filipe, a leste da b o rd a d a Galileia. B etsaida-Julias, ju n to co m
C esareia de F ilipe, foi co n stru íd a p o r Filipe e re ceb eu o n o m e da filha de
C ésar A u gusto, Julia.23

A pesar das similaridades externas dos relatos, há diferenças relevantes, incluindo a


influência de Isaías 35 (presente em 7.31-37, mas ausente em 8.22-26), as diferen-
ças das doenças e locais em cada relato, e o segundo to qu e de Jesus nesse últim o
relato, algo único nas curas de Jesus. U m argum ento para a repeução da história
exige mais com provação que um a observação geral so bre as sim ilaridades entre as
duas narrativas. E m um espírito levem ente diferente, J.-F. B audoz, “ M c 7,31-37 et
M c 8,22-26. G eographie et T heologie” , R E 102 (1995), p. 560-69, argum enta que
M arcos recebeu da tradição dois relatos de cura associados co m B etsaida e os pôs
em 7.31-37 e 8.22-26, respectivam ente, para enfatizar um a teologia universalista
e um a preparação para a confissão de Pedro. O s argum entos da “ tradição” são
necessariam ente especulativos no caso de M arcos (caso se sustente a prioridade
m arcana) um a vez que não tem os um a tradição pré-m arcana (ou o m eio de recons-
tru ir definitivam ente um a tradição) com a qual com p arar o evangelho de M arcos
canônico. As observações redacionais feitas p o r B audoz não são implausíveis,
mas tam bém não evidenciam sua tese. Para discussões so b re as diferenças entre
os dois relatos, veja V. Taylor, The Gospel According to St. M ark, ρ. 369-70; D. Ε.
N ineh am , The Gospel o f S t M ark, p. 217; e C. E . B. C ranfield, The GospelAccording
to Saint M ark, p. 263-64.
2', Josefo, A n t. 18.28. Jo sefo diz que Filipe “ elevou o vilarejo de Betsaida [...] à
estatura de um a cidade (gr. polis) ao acrescentar residentes e fortalecer suas for-
tificações” ; M arcos, n o entanto, refere-se a ela sim plesm ente com o um povoado
(kõmè). Betsaida era a cidade de pelo m enos três apóstolos de Jesus: Filipe, A ndré e
P edro (Jo 1.44; 12.21). Isso cobre um quarto do g ru p o de apóstolos, mas não há o
m en o r indício de que o m inistério de Jesus foi extraordinariam ente bem -sucedido
ali (“Ai de você, Corazim! Ai de você, Betsaida!” [Mt 1 1 .2 1 //L c 10.13]). Veja M.
A vi-Yonah, “B ethsaida” , ID E 1.397.
M a rc o s 8.23-25 308

2 3 -2 5 Jesu s p eg a p esso a lm en te o cego pela m ão e o c o n d u z p ara fora do


p o v o ad o .24 N ã o n o s é in fo rm a d o d e fo rm a explícita q u e Jesu s deseja estar
so zin h o c o m o cego (co m o em 7.33), e m b o ra ele deseje sep arar esse h o m em
d o p o v o a d o , talvez p o r causa d a d escren ça (veja 6.45). E m várias ocasiões
em M arcos, o trab alh o essencial q ue Jesu s faz co m os indivíduos necessita
que ele os separe da m ultidão. Je su s, co m o em 7.33, cura o h o m e m aplicando
saliva n o s o lh o s deste. E sses g esto s, c o n fo rm e o b serv ad o em 7.33, n ão eram
d esc o n h e c id o s d o s c u ra d o re s h elen istas. T á c ito re g istra u m a h istó ria de
V espasiano (im p era d o r ro m a n o , 69-79 a.C.), q ue foi im p o rtu n a d o p o r um a
p esso a cuja v ista estava falh an d o e q u e lhe p ed iu “ para m o lh ar a bo ch ech a
e os olh o s c o m a saliva” d o im p e ra d o r.25 N o en tan to , de fo rm a d istin ta do
relato de V espasiano, co m Jesus n ão h á ponderações, n em hesitação e nenhum
u so d o e n fe rm o p ara o bjetivos ulteriores.
A característica especial d essa h istó ria são as referências a to c a r e im -
p o r as m ã o s. Q u al é a relevância d o c o n ta to tátil d e Jesu s c o m as pessoas?
N o A n tig o T estam e n to , a im p o sição d e m ão s o c o rre co m três p ro pósitos:
os sacrifícios d e dedicação a D e u s (o u so m ais frequente; E x 29.10,15; Lv
1.4; 3.2ss.); p o n d o os levitas na fu n ção d e sac erd o te (N m 8.10); e u m m eio
de b ê n ç ã o (G n 48.17ss.; N m 27.18,23; D t 34.9). H á apenas u m a ocasião em
q u e a im p o siç ão de m ão s n o A n tig o T e sta m e n to está ligada co m a cura, e
essa foi a esp eran ça vã d e N aam ã, o general sírio, p o r u m a cura nas m ãos
de E liseu (2Rs 5.11). N ã o fica claro se Jesu s p ega a im posição de m ão s do
A n tig o T estam e n to , p o is ele im p õ e as m ão s p ara p ro p ó sito s d istin to s que
aqueles p re sc rito s n o A n tig o T estam en to . Se ele deve essa p rática ao A ntigo

24 A tradição dos m anuscritos está dividida em sobre com o Jesus levou o h om em


para fora do povoado. Três uncíais im portantes (A D W ) trazem exêgagen (“levou-o
para fora”), m as um a legião de m anuscritos mais fortes (‫ א‬B C L) traz exenenken
(“ trazer para fora”). E ssa últim a leitura é preferível, pois acentua o papel de Jesus
na condução do ho m em para fora d o povoado.
25 Tácito, H ist. 4.81. A história é repetida em um a form a mais breve p o r Suetônio,
“T h e D eified Vespasian” (7), The Lives o f the Caesars. T anto Tácito qu an to Suetônio
concordam que V espasiano ridicularizou de início o ped id o p o r m era descrença
nessas curas. Vespasiano, só depois que seus conselheiros argum entaram que um a
tentativa fracassada faria com que o ho m em cego parecesse tolo, ao passo que
um a cura bem -sucedida o coroaria de glória, consentiu com a cura. A restaura-
ção da visão d o ho m em (que estava deficiente, mas n ão to talm en te perdida) foi
considerada p o r T ácito e Suetônio com o algo m enos que u m verdadeiro milagre,
talvez um fenôm en o devido à autos sugestão.
309 M a rc o s 8.23-25

T estam ento (o q ue n ão seria de su rp reen d er), ela receb e u m a ênfase total-


m ente n o v a em seu m inistério. P articu larm en te em M arcos, em que h á mais
referências à im p o sição d e m ãos q u e em q u alq u er o u tro evangelho, essa
prática, em to d as as o co rrên cias, exceto um a delas, está associada às curas.
A term inologia, n o en tan to , varia. E m algum as circunstâncias, o e n ferm o e
o p ertu rb a d o b u sca m o to q u e d e Jesus (3.10; 5.27-31; 6.56), e, em outras,
Jesus esten d e o to q u e d e cura a eles (1.41; 7.33; 8.22). A lgum as vezes, a cura
é aco m p an h ad a pela im p o sição de m ãos p o r Jesu s (5.23; 7.32; 8.23,25) o u
pelas m ão s d o s discípulos (6.5; 16.18). A única vez em que a im posição de
mãos se a p resen ta c o m o b ên ção é q u an d o as crianças são abençoadas em
10.13.26 O s dois p ro p ó sito s básicos da im p o sição d e m ão s n a antiga aliança
era para tran sferir, q u er pessoas q u er anim ais, d o p ro fa n o p ara o sagrado ao
consagrá-los a D e u s. N o en tan to , q u an d o Jesu s im p õ e as m ão s nas pessoas
o efeito é ex a ta m en te o p o sto , pois o p ro fa n o n ã o é m ais elevado ao sagrado,
com o ac o n te ce n o A ntig o T estam en to , m as, antes, Jesus traz o sagrado ao
profano ao co n c ed er a presença cu radora e santa de D e u s às pessoas com uns,
m edíocres e até m e sm o pecadoras.
N o relato da cu ra d o cego em B etsaida n o evangelho de M arcos, n ão só
o ápice da história, m as tam b ém to d a a narrativa é co n stru íd a so b re o tem a da
“visão” , d o “v er” . N a s v ersões em p o rtu g u ês, várias das palavras usadas p ara
visão são as m esm as, m as n o original g re g o h á o ito palavras d istintas usadas
nas n o v e o co rrên cias de v er em 8.23-25127 A re d u n d ân cia das referências à vi-
são e ver fo rn ece u m co n tra p eso para a red u n d ân cia d e acusações d e cegueira
e com p reen são equivocada na história anterior. H á ainda, na fala de Jesus para
0 cego, o u tra ligação en tre esse m ilagre e a h istó ria anterior. E m u m m ilagre,
Jesus em geral p ro fere um a palavra autoritativa o u faz algum pronunciam ento.
Aqui, n o en tan to , ele faz u m a pergunta: “V ocê está v e n d o algum a coisa?” (v.
23). E ssa p erg u n ta singular se assem elha a u m eco das perg u n tas suplicantes
que Jesu s fez aos discípulos na história an terio r, em q u e a p rim eira delas foi:
“A inda n ã o co m p re en d e m n em p erceb em ?” (8.17). A re sp o sta d o h o m em
cego d e q u e co n segu e v er as pessoas q u e “ p arece m árv o res a n d a n d o ” (v. 24)

26 Veja C. M aurer, “tithêm r, 777Α Γ 8.159-61; R. G ro b , “h a p t3 \ M E W 7 T 3 .8 5 9 -6 1 .


27 E n tre as palavras para “visão” , é preciso salientar que anablepsas (“ levantou os
olhos” , v. 24) significa “ recuperar a visão” , e não apenas “ levantar os olh o s”. Veja
a evidência n o N o v o T estam ento, na LX X , na literatura clássica grega e nos pais
da igreja reunida em E . S. Jo h n so n Jr., “M ark V H I.22-26: T h e Blind M an from
Bethsaida” , N T S 25 (1979), p. 376-77.
M a rc o s 8.26 310

é u m in d íc io d e q u e o s p r ó p r io s d isc íp u lo s se rã o c a p a c ita d o s p o r J e s u s para


c o m e ç a r o p r o c e s s o d e p a s s a r d a c e g u e ira p a ra a v isão .28
A c u ra d o h o m e m c e g o d e B e tsa id a é o ú n ic o m ila g re n o s e v an g elh o s
q u e a c o n te c e e m e stá g io s, e m v e z d e s e r re a liz a d o in s ta n ta n e a m e n te . M ateu s
e L u c a s o m ite m esse m ila g re , p ro v a v e lm e n te p o r q u e su g e re q u e J e s u s n ão
fo i b e m -s u c e d id o n a p rim e ira te n ta tiv a .29 C o n tu d o , a d e sc riç ã o d e M a rc o s da
n e c e ssid a d e d e to q u e s r e p e tid o s n ã o p o d e in d ic a r in su fic iê n c ia d a p a r te de
Je su s, u m a v ez q u e e ste re a liz a m ilag res m ais difíceis (d a p e rs p e c tiv a h u m a n a )
se m falhas, c o m o a c u ra d o h o m e m p o s s u íd o d e d e m ô n io s e m G e n e s a ré (5.1-
20) o u d e v o lv e r a v id a à m e n in a m o r te (5.35-43). A c u ra e m d o is e stá g io s n o
p re s e n te m ila g re , p o r ta n to , su g e re u m processo d e re v e la ç ã o — ta n to p a ra os
d isc íp u lo s, c o n f o r m e s u s p e ita m o s , q u a n to p a ra o h o m e m c e g o e m B etsaid a.

26 O re la to c o n c lu i c o m Je s u s e n v ia n d o o h o m e m c u ra d o p a r a casa, e
n ã o d e v o lta p a r a o vilarejo. A tra d iç ã o te x tu a l se d iv id e q u a n to a se Je su s
o r d e n o u o h o m e m a sile n c ia r s o b re a c u ra ,30 m a s fica c la ro q u e J e s u s n ão

28 R. S. Sugirtharajah, “Men, Trees and Walking: A Conjectural Solution to Mk 8:24”,


ExpTim 103 (1992), p. 172-74, vê a referência às pessoas que parecem árvores
andando no versículo 24 com o uma crítica de um Messias político davídico fun-
dam entado na fábula de Jotão sobre as árvores em Juizes 9.7-15. O conceito de
um Messias político davídico, conform e sugere Sugirtharajah, é semelhante ao
indigno espinheiro na parábola de Jotão que tem de ser arrancado se for para os
discípulos com preenderem corretam ente Jesus. A conjectura de Sugirtharajah é
consoante com a ênfase de Marcos no Messias sofredor (e.g., 8.29-31; cap. 15,
em que o título “rei dos judeus/Israel” ocorre seis vezes para se referir ao Jesus
sofredor), mas é passível de debate se a referência opaca do versículo 24 tem essa
pretensão, uma vez que a fábula de Jotão fala de árvores, e não de caminhar.
29Johnson, “Mark V III.22-26: T he Blind Man from Bethsaida”, N TS25 (1979), p.
370-83, argumenta que M ateus e Lucas omitem a história porque não desejam
enfatizar a cegueira dos discípulos. Isso é possível, mas não é um argumento tão
convincente quanto o da omissão por causa dos toques sucessivos de Jesus. O
fato de Marcos incluir uma história sobre a cura de um hom em cego logo após
uma história sobre a cegueira dos discípulos (8.14-21) sugere uma relação entre
as duas histórias. N o entanto, a história da cura do cego em Betsaida em si mes-
ma não precisa estar envolvida, conform e sugere Johnson, com a cegueira dos
discípulos. Mateus e Lucas, por conseguinte, poderíam ter usado a história para
outros propósitos. Considerando-se que não precisavam rejeitá-la por causa da
conotação da cegueira dos discípulos, é mais provável que a tenham om itido por
sua denotação da insuficiência de Jesus para curar.
30 Parece que a form a mais antiga dessa fala, bem atestada (‫ א‬B L), foi a leitura
adotada pela NVI: “N ão entre no povoado”. N o entanto, um antigo manuscrito
311 M a rc o s 8.26

quer q u e o h o m e m anuncie esse m ilagre aos q u a tro v en to s (veja A ordem


para silenciar em 1.34).
E ssa h istó ria n o s traz à divisão c o n tin en tal d a narrativa d e M arcos. Jesus,
p o r m eio d a cu ra g rad u al d o cego, m o stra c o m o o s discípulos em particular
vêm p ara a fé. O s discípulos, c o m o o cego, “ tê m olhos, m as n ão v eem ” e
tam bém “ têm o u v id o s, m as n ão o u v em ” (8.18), ta m b ém p o d e m vir a ver e
ouvir. C o n tu d o , isso n ão aco n tecerá p o r c o n ta deles m esm os. A habilidade
para ver, ta n to a visão física q u an to a espiritual, é u m d o m de D eus, e n ão um a
habilidade h u m an a. N ã o ou v im o s n ada a re sp e ito d a fé o u c o m p o rta m e n to
desse h o m e m n a p re sen te história. N ã o h á o m e n o r indício de q u e sua cura
progrediu à m ed id a q u e sua fé au m en to u . A cu ra d a ausência d e visão para
um a visão parcial aco n tece apenas p o r in te rm é d io d o to q u e rep etid o de Jesus.
A cura d esse h o m e m exem plifica a situação d o s discípulos q u e passam p o r
esses m esm o s três estágios em M arcos, d a n ã o c o m p re e n sã o (8.17-21) para
a co m p re en são equivocada (8.29-33) e daí p a ra a c o m p re en são co m p leta
(15.39).31 P ara eles, o p rim eiro “ to q u e c u ra d o r” a c o n tecerá na estrada para
Cesareia d e Filipe (8.27ss.) q u an d o P ed ro declara que Jesu s é o M essias. O s
discípulos n ão m ais ficarão cegos, m as a visão deles p erm a n ece rá im p erfeita
e indistinta, pois n ão c o m p re e n d e m o sen tid o d o m essiado. Só na cru z e res-
surreição é q ue eles, c o m o o h o m e m em B etsaida, v erão “ tu d o claram ente”
(v. 25).

A DECLARAÇÃO D E PEDRO DO M ESSIAD O D E JESU S (8.27-30)

A histó ria d e Jesu s c o n fo rm e relatada p o r M arco s, c o m a declaração de


Pedro em C esareia d e F ilipe, alcança u m desenlace. A té aqui, o s discípulos,
com o as m u ltid õ es e em especial os líderes religiosos d o s fariseus e d os
m estres da lei, o p u n h a m -se a Jesus em u m a escala q ue variava d a co m p reen -
são equivocada à oposição. E les d em o ra ram p a ra e n te n d e r e eram d u ro s de
coração. A s re sp o stas de fidelidade a Jesu s fo ram p o u cas e esporádicas e,
quando se viu fé, esta veio su rp re e n d e n te m e n te d o s “ de fo ra” — d e um a
m ulher im p u ra (5.24-34), u m a m ulher siro-fenícia (7.24-30) e u m surdo-m udo
gentio (7.31-37). A s declarações so b re a v erd ad eira iden tid ad e d e Jesus com o

latino traz: “N ão fale com ninguém no povoado” , e essa leitura parece se fundir
com a versão anterior para produzir uma leitura mais longa que era seguida com
frequência na tradição manuscrita. “N ão entre no povoado e não fale com ninguém
no povoado” . Veja Metzger, TCGNT, p. 98-99.
51 Veja A. Kuby, “ Z ur Konzeption des Markus-Evangeliums”, Z N W 49 (1958), p.
52-64.
M a rc o s 8.27 312

Filho de D e u s fo ram ap resen tad as p o r M arcos c o m o o n a rra d o r (1.1), por


D eu s (1.9-11) e pelo s d em ô n io s (1.25; 3.11; 5.7), m as ainda n ão p o r seres
hum anos. C esareia d e Filipe re p re se n ta o p rim eiro g ra n d e avanço n a tram a
h u m an a d o evangelho. A declaração d e P ed ro é a p rim eira tentativa p o r parte
dos discípulos d e id en tificar e d efin ir a exousia, a au to rid ad e divina, co m a
qual Jesu s en sin a e age.

27 A re m o ç ão d o o b stá c u lo d a c o m p re en são equivocada d o s discípulos


co m eç a c o m Jesu s e c o m os discípulos a ca m in h o de Cesareia de Filipe.
E ssa cidade fica a q u aren ta q u ilô m etro s a n o rte d e B etsaida, u m dia inteiro de
cam inhada. C esareia d e Filipe n ã o deve ser co n fu n d id a c o m a C esareia mais
co n h e cid a n a co sta d o m a r M ed iterrân eo , p o is a C esareia em q u estão fica no
n o rte d a tetra rq u ia d e Filipe n a base d o m o n te H e rm o m , n a fro n teira com
a Síria. A cidade fo ra ren o v ad a p o r Filipe, e o n o m e foi u m a h o m en ag e m a
C ésar A u g u sto q u e g o v e rn o u o Im p é rio R o m an o p o r 57 an o s (Josefo, Ant.
18.28; Guerra 2.168). C esareia de Filipe era u m local im provável para a prim eira
declaração d e Jesu s c o m o o M essias, p o is sua p o p u lação era fo rm a d a princi-
p álm e n te p o r n ão judeus. E ra ta m b é m o local d e du as m em órias dolorosas
p ara os judeus. Foi em C esareia d e Filipe q ue A n tío co IV g a n h o u a batalha
decisiva c o n tra o E g ito em 200 a.C., resultando n a queda d os palestinos diante
d o s selêucidas e fazen d o co m q ue a região en fren tasse v in te anos de guerra
ap ó s a R evolta M acabeia em 168 a.C. A cidade ta m b ém era fam o sa p o r seu
san tu ário a P an (de q u em a cidade re ceb e u o n o m e de C esareia Pânias). Pan,
m etad e h o m e m e m etad e b o d e, era rev eren ciad o c o m o o gu ard ião d o s reba-
n h o s e d a n atu re za e a d o ra d o em u m a caverna aos pés d o m o n te H e rm o m ,
ao lado d a caverna d a qual jo rra u m d o s principais trib u tário s d o rio Jordão.
E aqui, nas regiões afastadas d o p ag a n ism o e até m esm o d e h o stilidade ao
judaísm o, q u e Jesu s é p ro c la m ad o M essias pela p rim eira vez!
O v e rb o inicial de M arcos, “ dirigiram -se” (gr. exêltherí), indica u m início
deliberado. A co n fissão d e P e d ro é identificada co m “ os p o v o ad o s nas p ro -
xim idades d e C esareia d e F ilipe” (M t 16.13, “ região d e C esareia de F ilipe”),
e não c o m a cidade em si. “ N o c a m in h o ” , Jesu s p e d e u m julgam ento dos
discípulos. C o m eça n d o c o m esse versículo, a expressão “ n o cam in h o ” o co rre
no ve vezes n o s capítulos 8— 12, c o m o u m a designação d e que o “ cam in h o
p ara o S e n h o r” , p ro clam ad o p o r J o ã o B atista, n o início d o evangelho (1.2,3),
é cu m p rid o n a ida d e Jesu s p a ra Jeru salém . D e a c o rd o co m M arcos, Jesus,
de m o d o relevante, levanta a p erg u n ta de fé “ n o c a m in h o ” da hum ilhação,
313 M a rc o s 8.28

rejeição, so frim e n to e m o rte. A fé e o d iscipulado n ã o p o d e m ser realizados


com o trabalhos secundários, distantes d o risco. Jesus pediu p o r u m julgam ento
sobre ele d u ra n te a jo rn ad a , e n ão n o fim d ela q u a n d o to d as as perg u n tas são
respo ndidas e a p rova, p o r fim , está à m ão. A fé é u m ju lg am en to so b re Jesus,
e a d isp o sição p ara agir c o n fo rm e o ju lg am en to d ian te de o u tro s julgam entos
possíveis. N a v erd ad e, a fé, p ara os discípulos n esse p o n to d o evangelho,
necessitará d e u m a esco lha contrária ao c o n se n so pre v alen te das m ultidões e
líderes religiosos. A fé significa seguir ativ am en te Jesu s no caminho, e n ão exigir
sinais (8.11-13) n e m se d esv iar p ara seguir os p ró p rio s cam in h o s (10.22).
O usual n o judaísm o era os discípulos fazerem p erg u n tas a seus rabis,
e n ão o inverso. C o n tu d o , Jesus n ão é u m rabi c o m u m , e, q u e saibam os, a
pergunta que faz p ara os discípulos n ão fo ra feita p o r n e n h u m o u tro rabi.
“Q u e m o p o v o diz q u e eu sou?” E m geral, as p esso as p erg u n ta m o q u e os
outros fatiem, e n ã o q u em são eles. E ssa p e rg u n ta feita p o r Jesu s é m ais inco-
m um e m ais p ro fu n d a e, n essa instância, reflete a q u e stão q u e os discípulos
guardavam n o co ração d esd e q u e a te m p estad e fo i acalm ada: “ Q u e m é este
que até o v e n to e o m ar lhe ob ed ecem ?” (4.41).
“ Q u e m o p o v o diz q ue eu sou?” Jesu s faz essa p erg u n ta aos discípulos
em duas fases: o q u e os o u tro s d izem e o q u e os p ró p rio s discípulos dizem
(v. 29). H á u m a astúcia psicológica n a in ten sificação da p erg u n ta, pois é em
geral m e n o s in tim id an te se aventurar a a p resen tar a o pin ião do s o u tro s que se
arriscar a d eclarar a p ró p ria opinião. T odavia, h á m ais q ue apenas psicologia
na p erg u n ta de Jesus. O s julgam entos d o s o u tro s so b re Jesus se esten d em da
simpatia à hostilidade e, p o rta n to , são am bíguos. O s dois estágios da p erg u n ta
exigem q u e os discípulos fo rm e m e ex p ressem o p ró p rio julgam ento, e n ão
apenas tran sm itam a visão d o s o utros. E les têm d e se sep arar d a opin ião m a-
joritária e arriscar u m a confissão pessoal. A fé se expressa em u m a confissão
pública de Jesus, e n em a fé n em a co n fissão é u m v o to p o r procuração. H á
uma d iferen ça e n tre o ju lgam en to e a confissão: p o d e m o s ser in stru íd o s pelo
julgam ento d o s o u tro s, m as a declaração d e q u e Jesu s é o C risto d ep e n d e da
confissão pesso al d o cristão.

28 A re sp o sta inicial d o s discípulos eco a a op in ião p o p u la r so b re Jesus,


ou seja, de q ue ele é o Jo ã o B atista que re to rn o u à vida, o u E lias ou ainda um
dos profetas. E sse é o m esm o ju lgam ento ap re se n ta d o an terio rm en te p o r
H eredes A n tip as (6.14,15). N e n h u m p e rso n a g e m d o A n tig o T estam en to
exercia ta m a n h o fascínio p ara o judaísm o d o século I q u an to E lia s . A razão
M a rc o s 8.29-30 314

p ara isso n ão re p o u sa em suas obras, p o is a realização de o u tro s personagens


d o A n tig o T e sta m e n to — A braão, M oisés, D avi e até m esm o Jo su é — ex-
cedia aos feitos d e Elias. A razão p ara esse fascínio se deve ao fato d e Elias
ter sido levado co rp o ra lm e n te p a ra o céu (2Rs 2.11), d e o n d e, c o n fo rm e se
acreditava, su p erv isio n aria as ob ras d o s m ortais, co n fo rtaria os fiéis e ajudaria
os necessitad o s e, acim a d e tu d o , re to rn a ria co m o o p re c u rso r d o g ran d e e
terrível D ia d o S e n h o r (Ml 3.1; 4 .5 ,6).32
Q u a n to a J o ã o B atista, H e ro d e s A n tip as traço u u m a correlação direta
en tre Jesu s e Jo ã o B atista, su sp e ita n d o q u e este, a q u em ele d ecapitara, reen-
carnara em Jesu s (6.14,15). E q u a n to aos p ro fetas, o co stu m e co m u m n ão era
apenas qu e Jesu s era u m p ro fe ta em geral, m as “ u m dos p ro fe ta s” (grifo do
autor) c o n sa g rad o s n a A n tig a Aliança. Israel, d esd e que M oisés p rofetizou
q u e D e u s “levantar[ia] d o m eio d e seus p ró p rio s irm ão s u m p ro fe ta com o
eu ” (D t 18.15,18), esperava o d errad eiro p ro fe ta qu e p erte n cería à categoria
d os p ro fe ta s d o A n tig o T e stam e n to e declararia a palavra d e D e u s de form a
decisiva às pessoas.
C o m p a ra r Jesu s co m Jo ã o B atista, E lias o u u m p ro fe ta era classificá-lo
em m eio às figuras p ro em in e n te s n a lo n g a e ilustre h istó ria de Israel. E sse é
u m indício d a p o sição im p o rta n te d e Jesu s na m e n te popular. A in d a assim,
até m e sm o essas co m p araçõ es são inadequadas. M esm o se Jesus fo sse um
n o v o M oisés o u Elias, isso apenas o designaria c o m o a n o v a em ergência e
c u m p rim e n to d e um tip o anterior. D iz e r q u e Jesu s é c o m o Elias, Jo ã o B atista
o u u m g ra n d e p ro fe ta — o u , c o n fo rm e o u v im os co m frequência hoje, que
ele é o m aio r m estre o u ex em p lo m o ral q ue já viveu — p o d e p arece r um a
h o n ra e elogio, m as significa n eg a r d errad e iram en te sua singularidade e pô-lo
n o serviço de categorias antigas. Isso co rre sp o n d e ría a p ô r “v in h o n o v o em
vasilha d e co u ro velha” (2.22). A au to rid a d e q u e Jesu s d e m o n stro u ao longo
da narrativa d e M arco s n ã o p e rm ite q u e seja d efin id o p o r algo d istin to de si
m esm o e de seu rela cio n am en to co m o Pai.
29,30 Jesu s n ão fica satisfeito em sab er o q u e os o u tro s p en sa m dele e
dizem so b re ele. Sua m issão n ão é decidida p o r sua p o sição nas pesquisas
d e opinião, m as q u er c o n h e c e r o ju lg am en to de cada segu id o r a q u em ele
cham ou. “ E vocês? [ ...] ” , p e rg u n to u ele. “ Q u e m vocês dizem q u e eu sou?”
A intensificação d a p e rg u n ta d o q u e os o u tro s p e n sa m p ara o que discípulos
p en sa m re p ete o tem a “ os q u e p e rte n c e m ao círculo ín tim o e os de fo ra” de
M arcos. Se fo r p ara os discípulos d ese m p e n h are m o papel d o s que pertencem

32 Veja Str-B 4/2.764-98.


315 M a rc o s 8.29-30

ao círculo ín tim o e co m p re en d erem que “a vocês foi d ad o o m istério d o Reino


de D e u s ” (4.11), só p o d e m fazer isso se p e n e tra re m n a v erdadeira identidade
de Jesu s e c o m p re e n d e re m o p ro p ó sito p a ra o qual ele veio. A s categorias de
João B atista o u E lias o u u m dos p ro fetas n ã o estão m ais p e rto d o Jesus real
do q ue as várias figuras d o “Je su s” da crítica h istó rica, d o U um inism o racio-
nal, d o fem inism o, das teo rias arianas o u racistas, d o Jesus S em inar o u dos
vários m o d elo s sociológicos de n o ssa ép o c a.33 Jesu s p ed e a seus cam aradas
para fazer u m ju lg am en to so b re sua n o táv el exousia, sua au to rid ad e divina,
que ex p e rim en tara m e testem u n h aram . E sse ju lg am ento n ão p o d e ser feito
por m eio da co leta de m ais evidência e d ad o s n em , tam p o u co , d e m ais de-
liberações, o b serv açõ es, discussões e explicações. O s discípulos têm de se
m over da p o sição de recipientes passivos p ara p articip antes ativos. O s colegas
de Jesu s —- e to d o s q u e o u v iram seu n o m e — têm , em algum m o m en to , de
olhar c o m p ro fu n d id a d e o ín tim o d e Jesu s e c o m p ro fu n d id a d e a si m esm o s
e arriscar u m a decisão q u e acarretará o u u m c o m p ro m isso co m a identidade
e m issão d esse Jesu s o u um a separação da id en tid ad e e m issão dele.
Jesu s n ã o ap resso u a chegada desse m o m e n to . N ã o p o d e m o s afirm ar
quanto te m p o o s discípulos já estavam c o m ele, m as isso aco n teceu depois
de vários m eses, talvez u m an o o u mais. Jesu s deseja q u e a escolha deles não
se fu n d a m e n te n o que o u v em falar n em n o s se n tim e n to s deles, m as que se
fundam ente n a experiência deles. E les o viram ensinar, cu rar e interagir co m
as autoridades. Se co n tin u a re m “ n o c a m in h o ” c o m ele, eles n ão p o d e m co n -
dnuar co m o espectadores e o b serv ad o res, m as têm de se to rn a r participantes.
O cam in h o p ara Jeru sa lém envolve o ca m in h o d o so frim en to , e, p ara os dis-
cípulos p articip arem nesse cam inho, é p reciso q ue te n h am c o m u n h ã o com
ele fu n d a m e n tad a n a fé. “ Q u e m vocês d izem q ue eu sou?” E ssa p erg u n ta é
central n o evangelho de M arcos — e de to d a a ap resen tação d o evangelho.
O sentido essencial da fé está na re sp o sta d ada a essa p erg u n ta.

33 A pergunta “ Q u em vocês dizem que eu sou?” é de relevância central em relação


ao surto de interesse no “Jesus histórico” . D e acordo co m o N o v o T estam ento,
quem Jesus é não p o d e ser descoberto ou recuperado p o r novos dados ou novas
teorias históricos nem p o r m odelos sociológicos m elhores, m as apenas p o r meio
do testem unho apostólico, do qual a declaração de Pedro é o início. “N ão é possível
aprender quem é je su s de N azaré pela ‘busca do Jesus h istó rico ’, m as apenas pelo
recorrer ao testem unho apostólico de Cristo no N o v o T estam en to ” . O. Hofius,
“1st Jesus der Messias? T hesen,” /5 7 '¿ 8 {DerMessias, 1993), p. 104.
E x c u rs o : C ris to 316

P ed ro re sp o n d e q u e Jesu s é o C risto, o M essias d e D eu s.34 E m M arcos,


até esse p o n to , só D e u s e o s d em ô n io s reco n h ec era m Jesus co m o o Messias.
N e n h u m ser h u m a n o declarou q u e je s u s é o M essias.35 M arcos está co rreto em
d a r o créd ito a P ed ro p elo d iscern im en to , m as a co n fissão d e P ed ro tam bém
representa a confissão dos D o z e , c o n fo rm e fica d em o n strad o pela repreensão
pública d e P ed ro p o r p a rte d e Jesu s n o versículo 33, cuja co m p re en são falsa
d o M essias é c o m p artilh ad a p elo s D o z e e am eaça co rro m p ê-lo s.

Excurso: Cristo
A palavra g re g a “ C risto ” trad u z o h eb raico “M essias” , cujo sen tid o é
“ u n g ir” . N o A n d g o T estam e n to , três classes d e pessoas recebiam a unção:
o s p ro fetas, o s sac erd o tes e os reis. A terceira classe, os reis, influenciava o
d ese n v o lv im en to d o co n c eito d o M essias n o judaísm o (e.g., 2Sm 7; SI 2). E m
especial, q u a n d o a m o n arq u ia falh o u e, p o r fim , caiu d iante de N ab u co d o -
n o s o r em 586 a.C., surgiu u m a expectativa em Israel de que D e u s levantaria
u m nov o , e m aio r, rei, co m o D avi. “ ‘D ias v irã o ’, declara o S e n h o r , ‘um
R en o v o ju sto , u m rei que reinará co m sab ed o ria e fará o que é ju sto e certo
n a te rra ’ ” (Jr 23.5).36 O A n tig o T esta m e n to n ão u sa “ o M essias” em sentido
ab so lu to , n e m ta m p o u co desenvolve o u ap resen ta u m a d o u trin a fo rm al do
M essias. Isso ta m b é m co n tin u a em geral v erd ad eiro p ara o p erío d o intertes-
tam e n tá rio su b seq u e n te, q u a n d o o c o n c eito d e M essias é m en o s freq u en te e
desen v o lv id o d o que m uitas vezes se supõe. A in stância m ais antiga d o uso

34 A historicidade da declaração de Pedro é apoiada pela reserva de Jesus com relação


ao título (v. 30) e p o r sua repreensão co n tu n d en te da falsificação d o título por
P edro (v. 33). Veja E . Schweizer, Theologische Einleitung in das N eue Testament, G N T
2 (G ottingen: V andenhoeck & R u p re c h t, 1989), p. 19.
35 D e aco rdo com o Evangelho de Tomé 13, Jesus não só é um “m ensageiro” (tam bém
Pedro) ou um “ filósofo sábio” (tam bém M ateus), m as tam bém alguém inefável
que n ão p o d e ser capturado n o pensam ento e palavras h um an o s (tam bém Tomé).
O gnosticism o do Evangelho de Tomé fica especialm ente aparente n a leitura 13 que
sustenta q u e je s u s escapa e desafia a concepção hum ana. Isso está em contraste
direto co m o evangelho de M arcos e com o retrato de Jesus n o N o v o T estam ento
com o um todo. Jesus, ao se to rn a r verdadeiram ente hum ano, entra nas categorias
hum anas, em vez de evitá-las, e exige o julgam ento hum an o sobre ele.
36 O s textos m essiânicos do A ntigo T estam ento incluem Isaías 9.1-6; 11.1-10; Je-
rem ias 30.8-11; 33.14-18; E zequiel 17.22-24; 34.23-31; 37.15-28; M iqueias 5.1-5;
Zacarias 9.9-13.
317 E x c u rs o : C ris to

ab so lu to d o te rm o “ o M essias” vem d e C u n rã ( lQ S a 2.12).37 A co n cep ção


m ais c o m u m d o M essias n o s textos p ré -cristão é a de u m reí escatológico.
E m o u tro s co n tex to s, a esperança m essiânica p e rm a n ece u razoavelm ente
geral. D e u s, p o r in te rm é d io d o M essias, estab elecería e p ro teg eria u m reino
d u ra d o u ro so b re to d a a terra. O M essias seria o rei p erfeito escolhido p o r
D e u s da etern id ad e, p o r in term éd io de q u em D e u s libertaria p rim eiro Israel
de seus inim igos e d ep o is faria co m q u e Israel vivesse em p az e tranquilidade
desse m o m e n to em dian te {Sib. Or. 3.286-94). É po ssível tam b ém observ ar
que n em o co n c eito d o S ervo d e lavé n em o d o F ilh o d o h o m e m n o A ntigo
T esta m e n to está asso ciad o co m c o n o taç õ es m essiânicas.
O d e sa p o n ta m e n to co m os p ríncipes asm o n e u s o u m acabeus que go-
v ernaram Israel n o século II a.C. d ep o is d a R evolta M acabeia e a desilusão
após a c o n q u ista d e Jeru salém p o r P o m p e u , em 63 a.C., causaram expectati-
vas m essiânicas p ara au m e n ta r a especificidade e a abrangência. O M essias,
em b o ra to ta lm e n te h u m an o ,38 seria, n ão o b sta n te, m u ito m aio r que os m en-
sageiros an terio res d e D e u s p ara Israel, alguém “ p o d e ro so em palavras e em
obras d ian te d e D e u s e de to d o o p o v o ” (Lc 24.19). E le seria d o ta d o com
pod eres m ilagrosos, e seria p o d e ro so e sáb io n o E sp írito Santo. O M essias
seria sa n to e livre d o p ecad o , o d errad eiro U n g id o e o v erd ad eiro rei de Israel
que d estru iría os inim igos d e D eu s pela palavra d e sua boca. E le libertaria
Jerusalém d o s g en tio s, reuniría os fiéis d a d isp ersã o e g o v ern aria c o m justiça
e em glória. E ssa esp e ran ç a chega a seu ápice re tó ric o em Salmos de Salomão·.

Veja, Senhor, e levanta-lhes o rei deles, filho de Davi,


para reinar sobre Israel, seu servo [...].
G uarneceste-o com o p o d er para d estru ir os governantes injustos,
para purificar Jerusalém dos genüos
que a pisaram para destruir.
Para expulsar com sabedoria e justiça os pecadores da herança;
para abater a arrogância dos pecadores com o a jarra do oleiro.
Para quebrar com vara de ferro toda a substancia deles;
para destruir as nações ímpias com a palavra de sua boca.
para fazer as nações fugirem da sua face am eaçadora,
e expor os pecadores pela palavra de seus corações:

37 Veja F. G. M artínez, “M essianische E rw artungen in d en Q u m ranschriften” ,/5 7 Ã


8 (1993, D er Messias), p. 171-208.
38 O judeu Trifao declara que o Messias será anthrõpos ex anthrõpõn genomenos (“um ser
hum ano nascido de seres hum anos”) (Justino Mártir, D ial. Trip. 67.2 [cf. 48.1; 49.1]).
E x c u rso : C ris to 318

E ele ajuntará um povo santo, a quem dirigirá


em justiça.
E ele julgará as tribos do povo
santificado pelo S enhor D eus deles.
Ele não perm itirá que perm aneça injustiça no m eio deles,
e todo o h o m em que conhece a perversidade
não viverá com eles. P or que ele os conhecerá todos com o
filhos do D eus deles.

(S i Sol 1 7 .2 1 -3 0 J9

E s s e e ra o c o n c e ito p o p u la r d o M essias n a é p o c a d e Je su s. P o d e n ã o se r
u m a m e ra c o in c id ê n c ia o fa to d e q u e P e d ro c h e g u e a e ssa c o n c lu s ã o n e sse
m o m e n to e lu g a r, e q u e “J e s u s o s a d v e rtiu p a ra q u e n ã o fa la sse m a n in g u é m
a se u re s p e ito ” (S o b re A ordem de silenciar, v eja e m 1.34.). N o c a m in h o
p a ra C e sa re ia d e F ilip e , o s d isc íp u lo s p a s s a ra m p a ra o o e s te d o p in á c u lo d e
G a m a la , a c id a d e d e ju d a s , o G alileu , c u jo s filhos, te n ta n d o c u m p rir a p ro fe c ia
d e Salm os de Salomão 17, p e g a ra m e m a rm a s c o n tr a R o m a e m 66 d .C ., lev an -
d o a n a ç ã o a u m a d e r r o ta c a ta stró fic a p e lo s e x é rc ito s d e V e sp a sia n o e T ito .
J o s e f o re fe re -s e a J u d a s c o m o o fu n d a d o r d a “ q u a rta filo so fia ” d o s ju d e u s
(além d a d o s fariseu s, sa d u c e u s e e ssê n io s), o s sicarii (sicário s), “ cu ja p a ix ã o
p o r lib e rd a d e é q u a s e in c o n q u istá v e l, u m a v e z q u e a c h a m q u e só D e u s é o
líd e r e m e s tr e d e le s ” (A n t. 18.23). J u d a s f u n d o u o m o v im e n to e m o p o s iç ã o
a o c e n s o d e Q u ir in o e m 6 d .C ., e o s sicarii (= h o m e n s d o p u n h a l, a ssa ssin o s),
n o s a n o s s e g u in te s, re u n ira m fo rç a s c o m o s z e lo te s a fim d e lib e rta r a C id a d e *

w Para discussões da expectativa messiânica, veja Str-B 4/2.799-1,015; G. F. M.


Moore,Judaism in the F irst Centuries o f the Christian E ra (New York: Schocken Books,
1971), 2.323-76; Schürer, History o f theJewish People, 2.488-54; Hofius, “1st Jesus der
Messias? T hesen”,yS778 ‫( ׳‬DerMessias, 1993), p. 103-29. A comunidade de Cunrã
esperava duas figuras messiânicas: um filho de Davi, como um libertador militar,
e um filho de Arão, com o sum o sacerdote (1QS 9.11). N o entanto, a expectativa
de um sum o sacerdote messiânico parece ter se limitado a Cunrã e exercido pouca
influência no judaísmo subsequente. O s textos e alusões ao Messias em Marcos,
todos eles, parecem refletir um conquistador militar. Estes incluem as aparentes
aspirações da multidão na alimentação dos cinco mil (6.31-44), a referência ajesus
com o o “Filho de Davi” , o entusiasmo da multidão na entrada triunfal (11.8-10;
na passagem paralela em Lc 19.38, Jesus é chamado de “rei”), e a execução de
Jesus por Roma com o “O R E I D O S J U D E U S ” (! 5.26).
319 E x c u rso : C ris to

S anta d a o cu p a ção rom an a. O objetivo deles era p ro te g e r o tem p lo para a


pureza d a ad o raçã o e afirm ar D e u s co m o o ú n ico g o v ern an te de Israel.40
G a m a la p o d e te r sido u m d o s “p o v o ad o s n as p ro xim idades de Cesareia
de F ilipe” (v. 27) q ue Jesu s visitou. O u talvez sua pro x im id ad e e associações
estim ulem os discíp u lo s p ara v er Jesu s em u m a n o v a luz. N ã o p o d em o s
saber o q u e ex atam en te estim ulou P ed ro a d eclarar q u e Jesu s é o M essias,
m as Jesu s a p resen ta u m perfil d iferen te d o este re ó tip o popular. Jesus, é claro,
se identificaria c o m algum as das idéias associadas c o m o M essias, c o m o a
libertação e a p az, m as ele evita outras, em especial aquelas associadas com
o p o d e r m ilitar e o gov ern o . P edro, ao declarar Jesu s c o m o o C risto, su p riu o
título a p ro p riad o , m as tem a c o m p re en são equivocada.41 A “vista” dele, para
usar a im ag em em 8.22-26, fica m elhor, m as ain d a indistinta. Jesus vestirá
a toalh a d o servo, em vez d a espada d o g u erreiro ; ele p raticará o sacrifício
mais d o q u e a vingança. E le n ã o infligirá so frim en to , m as ele m esm o so frerá
para “ d a r a sua vida em resgate p o r m u ito s” (10.45). Jesus, c o m o o serv o de
D eus, te m de p e rm a n e c e r esco n d id o se fo r p ara co m p letar a agenda de D eus
(Is 49.1-6). P ed ro n ão sabe disso, e Jesus, p o r co nseg uinte, ad vertiu-o para
silenciar a seu re sp eito (v. 30), p ara q ue u m a re sp o sta falsa n ão fom entasse
um fe rv o r revolucionário. Jesus, agora, precisa en sin ar o verdadeiro sen tid o da
confissão d e P edro. C o n tu d o , p ara isso, P e d ro e os discípulos estão b astan te
despreparados.

M E S S IA D O E D IS C IP U L A D O (8 .31-9.1)

N o início d o evangelho, M arcos an u n c io u q ue Jesus era o C risto (1.1),


mas até esse p o n to ele m an tev e o tem a e n c o b e rto . Pela prim eira vez, ficam os
saben do q u e Jesu s “ falou claram en te” so b re seu p ro p ó sito e m issão (v. 32).
A palavra p ara “ claram en te” (gr .parrêsif) que, n o ev an gelho d e Jo ã o em geral
se refere à revelação ou sad a d o p ro p ó s ito d e Jesu s (7.26; 11.14; 16.25,29;
18.20), ap arece apenas aqui nos evangelhos sin ó ticos e, iro n icam en te, só em
conexão co m o so frim en to im inente. P e d ro declara qu e Jesus é o “ C risto ” ou
M essias (8.29), e Jesu s agora co m eç a a explicar o q u e isso significa. A expli­

40 Simão e Jacó, os filhos de Judas, foram crucificados mais tarde p o r R om a com o


insurgente, e o sobrinho de Judas, M enaém — e o so b rin h o de M enaém , Eleazar
ben Jair — am bos m o rreram na últim a resistência em M assada. Veja Schürer,
History o f theJewish People, p. 598-606.
41 R. P. M artin, Marks Evangelist and Theologian (Exeter: P aternoster Press, 1972), p. 129.
M a rc o s 8.31 320

cação resulta em p erp lex id ad e e co n stern açã o , n ã o só p o r suas im plicações


p ara o m essiado, m as ta m b é m p o r causa das im plicações p ara o discipulado.

31 “ E n tã o ele c o m e ç o u a ensinar-lhes que era necessário que o F ilho do


h o m em so fresse m uitas coisas e fosse rejeitado pelo s líderes religiosos, pelos
chefes dos sacerd o tes e p elo s m estres da lei, fosse m o rto e três dias depois
ressuscitasse.” (S obre o F ilh o d o h o m e m , veja em 2.10) A frase “ co m eço u
a ensinar-lhes” ap re se n ta u m a trad u ç ão p ara o g re g o de u m sem itism o sub-
jacente. E la ta m b é m su g ere a tare fa árdua d ian te de Jesu s p ara en sin ar aos
discípulos o v erd ad eiro sen tid o d o m essiado. E m 8.31, h á a p rim eira das três
pred içõ es d a paixão em M arco s (8.31; 9.31; 10.33,34; so b re as predições da
paixão, veja em 10.34). E sse é u m p ro n u n c ia m en to espantoso. Q u a n d o Jesus
p o r fim fala d e sua p o siç ã o de m essiado, n ão é p ara afirm a r a co m p reen são
co m u m , m as p ara redefini-la praticam en te além de qu alquer reconhecim ento.
Jesu s n ã o é o M essias m e stre esp erad o q u e ex p oria e reinstituiria a T o rá na
vida d o s judeus; antes, ele ensina p o r m eio d e parábolas enigm áticas e pro-
fund as so b re a s u rp re e n d e n te irru p ç ã o d o R eino de D e u s e d a proxim idade
d e seu a m o r e p e rd ã o d o s pecadores. T am p o u c o , Jesus exibe a autoridade
m essiânica estereo tip ad a, c o m o a d e d o m ín io régio, co m o reestabelecim ento
e a p urificação d o cu lto n o tem p lo e, acim a d e tud o, a expulsão d os gentios
d a v id a judaica; antes, sua exousia está enraizada em quem ele é. Jesus, co m o
o F ilh o d e D e u s, re co n stitu i Israel n o ch am ad o d o s D o z e (3.13-19), reinter-
p re ta os m a n d a m e n to s de D e u s (2.27,28), o u sa p e rd o a r p ecad o s (2.10), tem
p o d e r so b re a n a tu re z a (4.39; 6.48) e fala em n o m e d e D e u s e c o m o D eus.42
Jesu s n ã o só n ã o se ajusta ao estereó tip o m essiânico, m as tam b ém define
sua m issão em c o n tra ste escan d alo so c o m a visão estereotipada. O sentido
de sua vida e m issão n ã o é so b re a v itó ria e sucesso, m as so b re a rejeição,
so frim e n to e m o rte . Q u a n d o Jesu s p o r fim fala so b re o a ssu n to d e sua iden-
tidade e m issão, esse tó p ic o é re su m id o em: “ [É] necessário q u e o F ilh o do
h o m e m sofr[a] m uitas coisas” (grifo d o autor). N u n c a se ouv iu em Israel que
o M essias d ev ia sofrer. H á , é claro, a im agem d o serv o so fre d o r em Isaías,
m as, c o n fo rm e o b se rv a d o n o excurso so b re C risto, n ão h á evidência d e que
os texto s so b re o S ervo d o S e n h o r fossem algum a vez associados co m o

42 Sobre a autoridade de Jesus, v ejaj. R. Edwards, ‘T h e Authority o f Jesus in the


Gospel o f Mark”,JETS 37 (1994), p. 223-25; e Hofius, “1st Jesus der Messias?
Thesen”,/A 7 7 8 (DerMessias, 1993), p. 119-21.
321 M a rc o s 8.31

M essias.43 N e m h á n e n h u m a alusão ao so frim en to expiatório d o M essias.


O so frim e n to p re v isto p o r Jesu s n ão é c o n sid e rad o c o m o o so frim en to em
Salm os, p o r exem plo, co m o o lam entável in fo rtú n io co n trá rio à v o n tad e de
D eus. A ntes, o ca m in h o p ara Jeru sa lém e o fim am arg o que espera Jesus ali
são afirm a d o s c o m o o ca m in h o o rd e n a d o p o r D e u s que ele deveria seguir:
ele tem de sofrer. E d u a rd Schw eizer p erceb e a relevância reveladora d o so-
frim en to de Jesus:

D e u s é n esse se n tid o p recisam en te D e u s, po is p o d e fazer o que a hu m a-


n id ad e n ã o p o d e: D e u s p o d e se p e rm itir se r rejeitado, to rn a r-se in fe rio r e
p e q u e n o , sem co m isso se r a sso lad o p o r u m c o m p le x o d e inferio rid ad e.
[...] Q u e m e n te n d e o so frim en to d o F ilho d o h o m e m co m p re e n d e D eus.
E ali, e n ã o n o e sp le n d o r celestial, que é possível v e r o co ração d e D e u s.44

A predição da paixão de Jesus oculta u m a g ra n d e ironia, pois o sofrim ento


e m o rte d o F ilh o d o h o m e m n ão virá, c o m o d everiam os esperar, nas m ãos
de p esso as p erv ersas e ím pias. O so frim en to d o F ilho d o h o m e m vem nas
m ãos d o s “ líderes religiosos, [d]os chefes d o s sacerd o tes e [d]os m estres da
lei” . N ã o é a h u m an id ad e em seu p io r q u e crucificará o F ilh o d e D eus, m as a
h u m an id ad e em seu m elh o r absoluto. A m o rte d e Jesu s n ão será o resultado
de u m lap so m o m e n tâ n e o n em d a aberração d a n atu reza h u m an a, m as, antes,
será o re su ltad o d e d ehberações cuidadosas d e líderes religiosos resp eitad o s
que justificarão suas ações p elo s m ais altos p ad rõ e s d a lei e m oralidade,
acred itan d o até m e sm o q ue fazem o serviço de D e u s (Jo 16.2). Jesu s n ão
será linch ad o p o r u m a m u ltid ão irada n em su rra d o até a m o rte em u m a ação
crim inosa. E le será p re so co m a autorização das au to rid ad es e será julgado

43 Isaías 42.1-4; 49.1-6; 50.4-1 la ; 52.13— 53.12.0 Targum o f Jonathan associa de fato
o Servo de lavé com o M essias em Isaías 53, m as in terp reta os versículos que se
referem ao sofrim ento com o não se referindo ao Messias! (Veja Schürer, History
o f the Jewish People, 2.547-49.) E ssa tradição de interpretação continua em geral
nas in terpretações judaicas até hoje. C om o, p o r exem plo, a excelente discussão de
A. H eschel sobre a profecia ignora as passagens ao respeito do Servo Sofredor,
silenciando sobre elas e nunca levanta a questão do M essias (The Prophets, 2 vols.
[New York: H a rp e r T orchbooks, 1962], 1.145-58).
44 D as Evangelium nach M arkus, p. 98 (tradução do autor). C om pare com um pensa-
m ento similar da hum ildade divina em D ante:
O h o m em não podia, de indigente,
A s dívidas solver: nunca pudera
Curvar-se tanto, hum ilde e reverente,
Q u an to rebelde, se elevar quisera. (Paraíso, C anto 7, linhas 97-100)
M a rc o s 8.32 322

e executado pela inveja d a ju risp ru d ên cia d o m u n d o — o Sinédrio judaico e


a principia iuris Romanorum.
O Sinédrio judaico era fo rm a d o p o r anciões, chefes d o s sacerd o tes e
m estres da lei. O s anciãos consistiam em seten ta m em b ro s leigos d o conselho
governante, tan to saduceus q u an to fariseus. O s chefes dos sacerdotes incluíam
os sum os sacerd o tes co rre n te s d o S inédrio e seus p red ecesso res, b em com o
os fam iliares deles. T o d o s os chefes d o s sacerd o tes p e rte n ciam à facção dos
saduceus, e, n a ép o ca d e Jesus, eles incluíam Caifas, q u e g o v e rn o u de 18 a
36 d.C.; seu so g ro , A nás, q u e g o v e rn o u de 6 a 15 d.C.; e Jô n atas, o sucessor
de Caifas, e seu irm ão T eó filo (veja A t 4.6; Jo sefo , Ant. 18.26,95,124). O s
m estres d a lei eram especialistas legais e co n selh eiro s d o Sinédrio (veja ainda,
mestres da lei em 1.22). E sse s três g ru p o s — anciãos, chefes d os sacerdotes
e m estres da lei — co n stitu ía m o S inédrio que rep resen tav a o assen to oficial
d o p o d e r religioso em m eio aos judeus.

32 O so frim en to , a rejeição, a m o rte e a ressurreição d o F ilho d o h o m em ,


e m b o ra c h o c an tes e ultrajantes, são o c o n te ú d o essencial da id en tid ad e m es-
siânica de Jesus. A frase, “ E le falou claram ente a esse resp eito” , tem um a carga
m ais teológica n o original g reg o que n a trad u ção da N V I. A palavra “ clara-
m e n te ” , parrèsiq, o c o rre n d o apenas aqui n o s evang elho s sinóticos, significa
“ c o m o u sad ia” o u “ c o m co n fian ça” . A perspicácia co m que o cego p o r fim
viu em 8.22-26 é a perspicácia co m q u e Jesu s identifica ag o ra sua m issão (Jo
10.24!). Jesus, ao fazer isso, declara c o m ou sad ia “ a palavra” (gr. ton logon).4‫י־‬
E ssa é u m a das p o u ca s instâncias em M arcos em que “ palavra” é usada em
u m sen tid o ab so lu to (1.45; 2.2; 4.33; 8.32; 9.10). A té o m o m en to , ela tem o
sen tid o m ais o u m en o s d e “m isté rio [ou segredo] d o R eino d e D e u s ” (4.11),
m as ag o ra pela p rim eira vez a palavra é identificada específicam ente c o m a45

45 G. Aichele, “Jesus’ F rankness” , Semeia 69-70 (1995), p. 261-80, co m p reen d e o


versículo 32 com o um a referência ao título Filho d o h om em , o que ela acha um
absurdo, um a vez que em sua opinião não é possível falar claram ente so b re um
conceito tão ambíguo. M arcos, n o entanto, não diz q u ejesu s foi franco com relação
ao Filho do hom em , m as sobre “ a palavra” , e esta aqui se refere a seu sofrimento.
E . Cuvillier, ‘“ II proclam ait ou v ertem en t la Parole.’ N o tu le sur la trad u ctio n de
M arc 8 /3 2 a ” , E T R 63 (1988), p. 427-28, está mais p e rto da verdade ao observar
que “ palavra” refere-se ao co n teú d o da proclam ação, e não especificam ente ao
Filho do hom em . E le, todavia, estaria absolutam ente co rreto em reconhecer a
associação da “palavra” aqui com a paixão de Jesus!
323 M a rc o s 8.33

necessidade da paixão e sofrimento d e Jesus. A “p alav ra” , p o r conseguinte, n ão


é u m a ab stração religiosa, m as a p ro clam ação d a cru z (IC o 1.18— 2.5).
P edro , v erd ad eiro c o m sua herança, h o rro riz a -se dian te d o p en sa m e n to
de u m M essias so fred o r. C o n sid e ran d o -se o este re ó tip o p o p u la r d o M essias
triunfan te, é n atu ra l e co m p reen sív el q u e P e d ro se sinta o b rig ad o a corrigir
Jesus. P edro, d essa vez, leva sua o b rig ação tão a sério q u a n to Jesu s leva a sua
de trein a r o s discíp u lo s n o sen tid o de m essiado. O fato d e P ed ro “ com eçjar]
a re p re e n d ê-lo ” faz u m claro paralelo c o m a palavras de Jesus, “ co m eç o u a
ensinar-lhes” , n o versículo 31. A palavra trad u zid a p o r “ re p ree n d ferj” (gr.
epitiman·, veja ain d a em 4.39) é c o stu m eira m e n te u sada p ara re p re e n d e r de-
m ônios, o u seja, a p io r e m ais derrad eira fo rm a de mal. O u so dessa palavra
com referên cia à rep ree n sã o de P ed ro d irec io n ad a a Jesu s indica, n a m en te
de P edro, o g ra u d o e rro de Jesu s so b re o m essiado sofredor.

33 Se P ed ro foi a fo n te principal d o ev an gelho de M arcos, e se a história


da re p ree n sã o d e P ed ro p o r p a rte de Jesus origina-se de fato de P edro, en tão
certam en te tem o s d ian te de nós, n o versículo 3 3 , o relato de u m a testem u-
nha ocular. P edro, ao te n ta r desviar Jesus d o so frim en to , de u m a fo rm a que
ele n ã o co n seg u e en ten d e r, o p õ e-se ao p ro fu n d o m istério d e D eu s, pois o
sofrim en to é a única m an eira d e d e stru ir a fo rtaleza de Satanás, e este é o
p ro p ó sito d eclarad o d e Jesu s n o início d o evangelho de M arcos (1.24; 3.27).
Jesus co n sid era a rep ree n sã o de P ed ro u m a o p o sição ao p lan o essencial da
encarnação. P en sar em term o s h u m an o s, q u an d o os te rm o s h u m a n o s confli-
tam c o m as coisas de D e u s, n ão m ais re p resen ta ser d iscípulo d e Jesus, m as,
sim, discípulo de Satanás. O te rm o Satanás deriva-se da palavra hebraica com
essa m esm a p ro n ú n cia, cujo sen tid o literal é “u m ad v ersário ” (lR s 11.14;
sobre Satanás, veja m ais em 1.13).46 Jesus se ap o ssa d a re p ree n sã o de P ed ro
e a to rn a co n tra este; Jesu s “ re p ree n d eu (gr. epitiman) P ed ro dizendo: ‘P ara
trás de m im , S atanás!’ ” . O co n ceito de m essiado d e Jesu s n ão é satânico,
co n fo rm e P ed ro suspeita; m as a tentativa de P e d ro d e desviá-lo d o m essiado
o é. Jesus, de ac o rd o co m M ateus 4 .10, re p re e n d e u Satanás n o d ese rto co m as
m esm as palavras co m q ue re p ree n d eu P ed ro aqui. A re p ree n sã o incisiva de
Pedro p o r Jesu s re m e m o ra e intensifica a re p rim e n d a an terio r do s discípulos
em 8.1 4 -2 1 . A severidade m aio r da segunda re p rim e n d a sugere que a quase
verdade é m ais p erig o sa que u m e rro óbvio, u m a vez que a verdade parcial é
mais crível. Q u a n d o os discípulos d e se m p e n h a m o p apel d e D eus, em vez de

46 IReis 11.14 afirm a que H adade, o edom ita, era um adversário {safari) de Salomão.
M a rc o s 8.34 324

seguir Jesus, eles in evitavelm ente se to rn a m satânicos. Jesus e P edro, D e u s e


a hu m anid ad e, c o n fo rm e afirm a R alph M artin, “ têm p ro p ó sito s ‘cru zad o s’,
um a vez que a cru z está n o ce rn e d a discussão. P ara P edro, a indicação de
que o F ilh o d o h o m e m m o rre rá é im pensável. P ara Jesus, é algo inevitável” .47

34 A visão equivocada d o m essiad o leva a um a visão equivocada do


discipulado. E sse é o p o n to d o versículo 34, em q ue o assu n to p assa de Jesus
p ara seus seguidores. M arcos re in tro d u z de fo rm a a b ru p ta “ a m u ltid ão ” e,
co m isso, indica q u e o q u e Jesu s diz agora o diz p ara to d o s os discípulos, e
n ão apenas p ara os D o z e .48 A g ravidade d o en sin o é assinalada p elo relato de
que Jesu s convocou (gr. proskaleomar, N V I, “ c h a m o u ”) a m ultidão. “ Se alguém
quiser ac o m p a n h ar-m e, negue-se a si m esm o , to m e a sua cru z e siga-m e.”
U m evangelho a p ó c rifo p re serv a essa fala c o m o “ q u em n ão p eg ar sua cruz
c o m o o faço, n ão será dig n o de m im ” (Evangelho de Tomé 55). A ideia de dig-
nidade está au se n te em M arcos: seguir a C risto em au to n eg ação e até m esm o
n o so frim en to é um m eio necessário d e salvação, e n ão de ser digno o u de
se to rn a r d ig n o ao fazer isso.49 Só é possível seguir Jesu s “ n o c a m in h o ” da
au to n eg ação e d a cruz.
A cu ltu ra m o d e rn a é ex p o sta ao sím b o lo d a cru z basicam en te em joias
o u figuras d e linguagem (e.g., “ carreg ar a c ru z ” , c o m o u m a fo rm a de lidar
co m a inco n v en iên cia o u so frim en to ). C o m o o sím bolo d a c ru z era m uito
d iferen te n o sécu lo I!50 A c ru z , u m a im agem d e ex trem a rep u g n ân cia, era
u m in stru m e n to d e cru eld ad e, d o r, d esu m an ização e v erg o n h a. A cru z sim-
bolizava a o d iad a o p ressã o ro m a n a e estava reserv ada p ara as classes mais
baixas. E ra o asp ecto m ais visível e o n ip rese n te d o ap arato d e te rro r d e R om a,
planejado especialm ente p ara p u n ir crim inosos e debelar rebeliões d e escravos.
E m 71 a.C., C rasso, g en eral ro m a n o , d e rro to u E sp a rta co , o escravo rebelde,
e cru cifico u esse reb eld e e seis m il d e seus seguidores n a V ia A pia, en tre
R om a e C ápua. U m século m ais tard e, n a é p o c a d e M arcos, N e ro crucificou
e q u e im o u cristão s q u e fo ra m falsam en te acu sado s de p ô r fo g o em R om a.

47 Where theAction Is (Glendale: Regal Books, 1977), p. 72.


48 Veja G rundm ann, Das Evangelium nach Markus, p. 225.
49Apócrifo de Tiago 5.30— 6.10 tam bém preserva um dito do efeito salvífico da cruz.
A Epístola de Pedropara Filipe 138, ao contrário, afirma que Jesus não sofre (embora
o texto esteja corrom pido nesse ponto), ao passo que os discípulos têm de sofrer
por causa de sua “pequeneza” .
50 Veja M. Hengel, Crucifixion in the Ancient World and the Folly of the Message of the
Cross, trad. J. Bowden (Philadelphia: Fortress Press, 1977).
325 M a rc o s 8.35

A im agem d a cru z significa u m a afirm ação to tal da aliança do s discípulos


e a to tal re n ú n cia d e seus recursos p ara Jesu s (10.17-31). N a ép o ca de M ar-
eos, essa n ã o era apenas u m a v erd ad e teórica, p ois o evangelho de M arcos
foi p ro v av elm en te escrito em R o m a p ró x im o d o m o m e n to em q u e Ñ e ro
crucificou cristãos. O ch am ad o de Jesu s à a u to n eg a ção e so frim en to pelo
uso d essa im ag em lem b raria a co m u n id ad e d e M arco s d e q u e a adversidade
deles so b o g o v e rn o d e N e ro n ão era um sinal d o a b a n d o n o de D e u s, m as,
antes, a identificação c o m o cam in h o de Jesu s e a fidelidade a ele.51

35 M arcos inclui q u a tro afirm ações s o b re o sen tid o d o discipulado no s


versículos 35-38. C ada u m deles é p refaciad o em g re g o c o m u m a co njun-
ção d e p ro p ó sito , “ p o is” , in d ican d o q ue cada afirm ação ap resen ta provas
em a p o io ao versículo 34. H á q u a tro razões, em o u tras palavras, para pegar
a cru z e seguir Jesus. A p rim eira afirm ação n o versículo 35 é u m quiasm o
perfeito (Α -Β -Β ’-Λ ):

A “ Pois q u e m q u iser salvar a sua vida”


B “ a perderá”
B’ “ m as q u em perder a sua vida p o r m in h a causa e pelo ev an g elh o ”
A “a salvará.”52

A palavra traduzida p o r “vida” (gr.psyche) p o d e apenas significar existência


física (e.g., A t 27.37), m as o sen tid o m ais c o m u m e m ais im p o rta n te é o da
“p essoalid ad e” , “ ser” o u “ alm a” , o u seja, o ce rn e da existência de alguém
que n ã o se lim ita a suas fro n teiras de te m p o e espaço. O te rm o psychê carrega
esse últim o sen tid o n o s versículos 35-37, pois o ch a m ad o p ara p eg ar a cruz
no versículo 34 indica o b v iam en te a possível p e rd a da vida física, m as não
pod e sugerir a p erd a da “ alm a” d o indivíduo. N a realidade, co m o p ressu p õ em
os versículos 36,37, a ten tativ a d e p re se rv a r a vida física p o rá em risco o ser
mais essencial o u alm a d o discípulo; ao p asso q ue a d isposição de p erd er
até m esm o a vida física pelo b em d o evangelho g aran tirá o ser etern o desse
discípulo. P e rd e r a vida é p e rd e r a existência física, m as p e rd e r a alm a tem

51 Para um a discussão dos possíveis efeitos do cham ado para a autonegação em um a


cultura m editerrânea coletivista do século I versus os efeitos do m esm o cham ado
na cultura individualista m o d ern a ocidental, veja B. J. M alina, “ ‘L et H im D eny
H im se lf’ (Mark 8:34 & Par): A Social Psychological M odel o f Self-D enial” , B T B
24 (1994), p. 106-19.
2 0 ‫ ־‬Evangelho de Tomé 110 preserva esse dito dessa form a: “Jesus disse: E le que
encontra o m u n d o e fica rico, que ele negue o m u n d o ” .
M a rc o s 8.36-37 326

c o n s e q u ê n c ia s e te rn a s. A iro n ia d o v e rsíc u lo 35 é q u e e ssa fa c e ta n ã o p o d e


s e r salva p o r m e io d e p re s e rv á -la , m a s a p e n a s p e lo a b rir m ã o d e la e m fav o r
d e se g u ir Je s u s n o c a m in h o d a c r u z .53 A q u e le p a ra q u e m o c a m in h o d e Je s u s é
m ais im p o rta n te q u e a p ró p ria e x istê n c ia a sseg u rará se u se r e te rn o ; m a s aquele
cu ja e x istê n c ia é m ais im p o r ta n te q u e Je s u s p e r d e r á Je s u s e su a e x istê n c ia .54
Ig u a lm e n te im p o r ta n te é a a firm a ç ã o s o b re p e r d e r a v id a p e lo b e m d o
e v a n g e lh o (so b re e v a n g e lh o , v eja e m 1.1).5‫ י־‬O d isc ip u la d o n ã o é u m a u n iã o
m ístic a n ã o m e d ia d a c o m J e s u s , u m a e sp iritu a lid a d e s e p a ra d a d o c o n h e c i-
m e n to h is tó ric o d a v id a, m o r te e re s s u rre iç ã o d e Je su s. P a ra o s te m e n te s a
D e u s , Je su s C risto , a p ó s a e n c a rn a ç ã o , é c o n h e c id o p o r in te r m é d io d a p alav ra
p ro c la m a d a d o e v a n g e lh o . Q u a n d o c o n f r o n ta d o s p e lo c h a m a d o a o disci-
p u la d o , o s d isc íp u lo s n ã o tê m a e s c o lh a “ t a n t o . .. q u a n to ” — ta n to C risto
q u a n to a p r ó p r ia v id a. E le s ficam d ia n te d a e s c o lh a “ o u . .. o u ” . A a firm a ç ã o
d e J e s u s é d o tip o to ta l e exclusiva. N ã o p e r m ite u m a c o m p a rtim e n ta liz a ç ã o
d a v id a n a tu ra l e d a v id a relig io sa, d o se c u la r e d o sa g ra d o . A p e s s o a e m su a
to ta lid a d e fica s o b a a firm a ç ã o d e C risto .

3 6 ,3 7 A s e g u n d a e te rc e ira d e c la ra ç õ e s n o s v e rsíc u lo s 3 6 ,3 7 f o r m a m u m
c o n ju n to . Pilas p õ e m a q u e s tã o d o d isc ip u la d o n o c o n te x to d a s re a lid a d e s
d e rra d e ira s d a vid a: a alm a e o m u n d o . Im a g in e q u e a lg u é m fo sse “ g a n h a r *lo

53 W Rebell, “ ‘Sein Leben vertieren’ (Mark 8.35 parr.) ais Strukturm om ent vorund
nachõsterlichen Glaubens” , NTS35 (1989), p. 202-18, aplica corretam ente o cri-
tério da dissimilaridade e atestação múltipla para fazer o versículo 35 retroceder
a Jesus. N o entanto, Rebell parece estar errado em afirmar que perder a alma no
contexto presente se refere ao Reino de Deus e só depois da Páscoa, a Jesus. O
texto de 8.27— 9.1 não é sobre o Reino de Deus perse , mas sobre Jesus como o
Messias sofredor e o Filho do hom em , correlacionando de forma bem íntima o
discipulado com o destino iminente de Jesus. Veja C. Breytenbach, “Christologie,
N achfolge/A postolat”, BTZ8 (1991), p. 183-98, para uma discussão da relação
entre discipulado/apostolado e cristologia.
,4 Uma verdade eterna transmitida em um lema de Jim £ 0‫ ^ ש‬que m orreu como
mártir nas mãos dos índios aucas na América do Sul: “Aquele que abre mão do
que não pode m anter a fim de ganhar o que não pode perder não é tolo” .

’5 Dois manuscritos im portantes (P45 D) om item a referência a Jesus no versícu-
lo 35, trazendo “quem perde a vida pelo evangelho a salvará” . Um campo muito
superior de testemunhos, no entanto, inclui essa referência a Jesus no versículo,
conform e seguido pela tradução da NVI. A leitura da N V I deve ser privilegiada
(veja Metzger, TCGNT, p. 99), em especial uma vez que os copistas tendem a
omitir a referência a fim de produzir o paralelismo no versículo.
327 M a rc o s 8.38

o m u n d o in te iro ” — tu d o q u e alguém p o ssiv elm en te p o d eria esp erar — a


custo d e sua alm a (tam b ém 2Clem. 6.2; Ju stin o M ártir, Apol. 1.15.12)? Seria,
de ac o rd o co m Jesus, u m a b arg an h a m u ito p o b re . E possível viver sem “ o
m u n d o ” , m as q u a n d o alguém p e rd e sua p esso alid ad e o u ser, o que ele p o d e
d ar em tro c a d isso (veja SI 49.6-8; Sir 26.14)? H á aind a u m o u tro paradoxo
nesse versículo, pois aqueles que lu tam d ese sp erad a m en te p ara p re serv ar sua
alm a n ã o co n h e cem d e fato o valor d a alm a. A alm a, se n ão levarm os em
consid eração D eu s, é algo incom parável. E p re ciso a palavra d e Jesus para
ensin ar o v alor in fin ito d a alm a h u m an a, e só ele p o d e p reservá-la.56

38 A q u arta e últim a declaração diz resp eito àqueles q u e se envergonham


do F ilh o d o h o m e m (M t 10.33; 12.39).57 Jesus, ao ch a m a r seus co n tem p o -
râneos de “g eração ad ú ltera e p ec ad o ra” , re p e te a linguagem usada pelos
p ro fetas q u e acusavam Israel d e infidelidade, d u re za de co ração e adultério
espiritual (Is 57.3-13; E z 16.32-41; O s 2.2-6). A s palavras de Jesus tam b ém
ecoam sua acusação an terio r de: “ E ste p o v o m e h o n ra c o m os lábios, m as
o seu co ração está lo n g e d e m im ” (7.6). P o r m ais q u e seus c o n tem p o rân eo s
valorizem seu b em -esta r espiritual, Jesus os co n sid era deficientes. A posição
deles co n tin u av a a ser d e infidelidade p a ra c o m a aliança e a alienação de
D eus. E sse tip o d e p esso a n ão p o d e c o n h e c e r a glória de D eus. Se fo r para
eles c o n h e ce re m a D e u s, este teria d e re d u zir a si m esm o ao nível deles, ainda

56 Uma ilustração esclarecedora dos versículos 34-37 aparece nos arquivos Stasi
— os volumosos arquivos da polícia secreta da antiga Alemanha Oriental. “Um
contato [que foi contato para se tornar um informante] escreve: A pós um exame
intenso e detalhado de minhas convicções religiosas com o cristão, tenho de lhe
dizer que não posso fazer concessões aos fundamentos em que acredito para fazer
o que me pede. N ão posso justificar tal com portam ento com aquilo que o N ovo
Testam ento exige de mim: Mateus 16.26, ‘Pois, que adiantará ao hom em ganhar
o m undo inteiro e perder a sua alma?’ ” 0. Gauck, Die Stasi-Akten. Das unheimliche
ErbederDDR [Hamburg: Rowolt, 1991], p. 59).
57 Dois manuscritos im portantes (P45 W) omitem “palavras” do versículo 38, dei-
xando a leitura desta forma: “Se alguém se envergonhar de mim e [dos meus
seguidores]” . Isso não só resulta em uma leitura incom um, mas a grande maioria
dos manuscritos incluem “palavras” , unindo, dessa form a (como no versículo 35
acima), Jesus e o evangelho. Os mesmos dois manuscritos (P4SW) alteram o fim do
versículo 38 para: “ Q uando [o Filho do homem] vier na glória de seu Pai e [glória
dos] [...] anjos”. O pensamento de Jesus vindo na glória dos anjos, em vez de
comeles, pode refletir Lucas 9.26. D e qualquer forma, a tradição textual favorece
a leitura da N VI, “com os santos anjos” . Veja Metzger, TCGNT, p. 99-100.
M a rc o s 9.1 328

assim q u an d o ele faz isso, eles z o m b a m d a glória que aparece na única form a
em que ela p o d e ria ser c o n h e cid a — in có g n ita em Jesus C risto. A situação
deles é d ese sp erad o ra d e u m a o u tra fo rm a , pois a m en o s que Jesus seja re-
cebido “ n esta g eração ” , o F ilh o d o h o m e m n ão os receberá em sua glória
futura. O fu tu ro co m eça agora.

9.1 M arco s e n c erra o te sta m e n to d o m essiado e d iscipulado c o m um a


afirm ação en ig m ática d e q u e “ alguns d o s q ue aqui estão de m o d o n en h u m
ex p erim en tarão a m o rte , an tes d e v erem o R eino d e D e u s vin d o co m p o d e r” .
A dificuldade d essa fala arg u m e n ta c o m veem ência p o r sua autenticidade,
pois a igreja prim itiva d ificilm en te atribuía o q ue p arecia ser u m a profecia
n ão c u m p rid a a Jesus. A fala afirm a q u e a chegada d o R eino d e D e u s em
p o d e r o c o rre ría d u ra n te o te m p o de vida das p essoas a q u em ela se dirige.
E ssa fala é c o m freq u ên cia associada co m o u tras falas co m efeito sim ilar no
N o v o T estam e n to ,8‫ כ‬e to d a s elas são c o m u m e n te c o m p reen d id as c o m o evi-
dên cia d a expectativa d a p arú sia o u d o re to rn o d e C risto d u ra n te o p erío d o
de v id a d o s c o n te m p o râ n e o s d e Jesus.5859 O b v ia m e n te isso n ão aco n teceu , e
m u ito s estu d io so s c o n se q u e n te m e n te acreditam qu e Jesus estava equivocado
co m relação à expectativa d a im inência d a parúsia. N ã o p o d e m o s exam inar
aqui tu d o em q u e Jesu s acreditava e ensinava so b re a escatologia, co n fo r-
m e refletid o em suas várias declarações so b re o assu n to , m as, n aquilo que
se segue, d ev em o s a rg u m e n tar q u e é d u v id o so q ue a afirm ação de 9.1 seja
n ecessariam en te u m a referên cia à parúsia.
U m d o s principais sinais h e rm e n ê u tic o s d e M arcos é a localização e
estru tu ra ç ã o das p assagen s em sua narrativa. A localização d a fala de 9.1 é
crucial p ara sua co m p reen são . A frase in tro d u tó ria: “ E lhes disse” (gr. kai
elegen autois) p arece a p rese n ta r u m a fala p ro v e n ie n te de o u tro te x to n a trad i­

58 13.26; 14.61; IT essalonicenses 4.15— 5.3; IC oríntio s 15.51; 16.22; Filipenses 4.5.
59 Veja a discussão em T. W. M anson, The Teaching o fJesus: Studies in Its Form and Content
(Cam bridge: C am bridge U niversity Press, 1963), p. 277-84. M an so n revê várias
interpretações de 9.1, p o r exem plo, de que se refere à transfiguração, o u à queda
de Jerusalém , o u ainda à vinda do E spírito Santo em Pentecoste. Ele, n o entanto,
rejeita essas possibilidades, concluindo que “Jesus esperava que a consum ação do
reino acontecesse em algum m o m en to no futuro im ediato, e que essa expectativa
n ão foi realizada” (p. 282). M an so n acredita que Jesus estava errado em relação
a esse assunto, com o tam bém acreditava que Jesus estava equivocado em relação
à crença em dem ônios, à autoria davídica d o saltério, à historicidade do livro de
Jonas.
329 M a rc o s 9.1

ção q ue M arco s recebeu. A lém disso, o versículo 1 está apenas vagam ente
relacio nad o aos versículos anteriores. E ssas d u as o b serv açõ es sugerem que
M arcos p e g o u liv rem en te um logion [dito o u ex p ressão atrib u íd o a C risto, n ão
registrado n o s E v an g elh o s, m as co n se rv ad o p ela tradição oral] d a tradição
e o c o m b in o u n o p re sen te local. A in serção p arece ser g o v ern ad a p o r duas
razões: (1) é com patível co m o tem a d a g ló ria e anjos n o versículo 38; e,
ainda m ais im p o rta n te , (2) a fala in tro d u z a n arrativ a su b seq u e n te da trans-
figuração. T o d o s o s três evangelhos sinóticos, d e fato, prefaciam o relato da
transfiguração co m essa fala (M t 16.28; M c 9.1; L c 9.27).
A relevância d o versículo 1 é assinalada p o r u m p refácio solen e carac-
terístico d e Jesus: “ G a ra n to ” (ARA, “E m v e rd ad e”). O s p ro fetas d o A ntigo
T e sta m e n to p refaciav am c o stu m e ira m e n te suas falas com : “A ssim diz o
S e n h o r ” , c o m o u m a g aran tia d a au to rid ad e d e lav é, m as Jesu s assum e ele
m esm o essa autoridade, pro n u n cian d o co m gravidade: “ G a ran to ” (ARA, “ E m
v erd ad e”). O u so p o r Jesu s d o Amen c o m o u m a fó rm u la in tro d u tó ria, e não
co m o u m a re sp o sta de u m a oração d e co n clu são (c o n fo rm e era o co stu m e
no judaísm o) é, nas palavras de Jo ach im Jerem ias, “ sem qualquer paralelo em
tod a a literatu ra judaica e o restan te d o N o v o T e s ta m e n to ” .60
O c o n te x to d e 9.1, c o n fo rm e estab elecid o em 8.31, n ão é a parú sia
co m o e m g eral se su p õ e, m as a m o rte e re ssu rreiçã o d e Jesus, que o co rreu
no p e río d o d e v ida d o s ouvintes. A in te rp re ta ç ã o d e 9.1 co m referência à
ressurreição afirm a u m a longa história de apoio q ue retrocede a m uitos pais da
igreja prim itiva. A ssim , “ o R eino de D e u s v in d o c o m p o d e r” p arece a p o n tar
para a re ssu rreiçã o de Jesu s d en tre os m o rto s , e a h istó ria su b seq u e n te da
transfiguração é u m a p ro lep se.61

60J. Jerem ias, N ew Testament Theology, trad. J. B ow den (N ew York: Scribner’s, 1971),
p. 35-36; veja tam bém , H.-W. K uhn, “arnêii', E D N T X . 69-70; H . Schlier, “amén”,
T D N T X .335-38.A m en, do hebraico 1ãmèn (“é verdade o u fiel”), oco rre treze vezes
em M arcos (3.28; 8.12; 9.1,41; 10.15,29; 11.23; 12.43; 13.30; 14.9,18,25,30), todas
essas ocorrências, com exceção de duas delas que aparecem na últim a m etade do
evangelho, e todas, exceto um a delas (8.12), apresen tam a fórm ula A m én legõ bymin
(“ E m verdade” ; ARA).
61 Assim , tam bém , o tratado de N ag H am m adi, Tratado sobre a ressurreição 48.9,10, que
correlaciona a transfiguração com a ressurreição. A interpretação de que o “ Reino
de D eus vindo com po d er” se refere à transfiguração foi discutida co m habilidade
p o r G. H . B oobyer, S t M ark and the Transfiguration Story (E dinburgh: T & T Clark,
1942), e, desde então, é seguida, entre outros, p o r Taylor, The GospelAccording to St.
M ark, ρ. 385-86; Cranfield, The GospelAccording to Saint M ark, p. 287-88; Pesch, D as
Markusevangelium, 2.67; J. G nilka, D as Evangelium nach M arkus, 2.2; e D. W enham e
M a rc o s 9.1 330

M arcos 8.27— 9.1 re p resen ta u m a divisão c o n tin en tal en tre a prim eira
m etad e e a seg u n d a d o evangelho. E sse tex to u n e cristologia e discipulado
em um re la cio n am en to ú n ico e sim biótico. E le en sin a que u m a confissão
apropriad a d e Jesu s envolve u m a nova co m p re en são d o discipulado. Q u an d o
os cristãos co n fessam q u em Jesu s é, eles ta m b é m co n fessam inevitavelm ente
o que têm d e se to rn ar. Jesu s n ão é u m objetivo d ad o que, c o m o u m a rocha
so b o m icroscópio, p o d e ser o b serv ad o e exam inado em su p o sta neutralidade.
E sta afirm ação: “T u és o C risto ” (v. 29) indica um a reivindicação so b re aquele
q ue diz isso. O F ilho d o h o m e m ch am a aqueles q ue o c o n h e cem p ara segui-lo.

R E M O Ç Ã O D O V É U : A T R A N S F I G U R A Ç Ã O D E J E S U S (9 .2 -8 )

A ap resen tação d e Je su s p o r M arcos alcança u m p o n to decisivo em


C esareia d e Filipe. M arcos, até C esareia d e Filipe, re trata Jesus ensinando,
c u ra n d o e in tera g in d o n a G alileia e n a D ecápolis. O s discípulos, até esse
p o n to n o m in istério d e Jesus, ainda n ão tin h am sido desafiados a se co m p ro -
m eterem c o m a p esso a dele. A p e rg u n ta de Jesu s n o cam in h o p ara C esareia
d e Filipe: “ Q u e m v o cês dizem q u e eu so u ?” (8.29), d e fato, indica a direção
p ara a seg u n d a m etad e d o evangelho. A co n fissão d e P ed ro d e que Jesu s é o
C risto, c o n fo rm e já Átimos, é c o rre ta n o n o m e, m as n ã o n o co n teú d o . Jesus
re in te rp re ta d e fo rm a radical o triu n falism o m essiânico p o r m eio da hum i-
lhação d o F ilh o d o h o m e m , n a v erdade, p o r in term éd io d e seu so frim en to e
m o rte. E ssa revelação cu lm in an te é seguida de im ed iato p elo relato da trans-
figuração e está ligada d e fo rm a inseparável co m esse evento. A co nfissão de
P ed ro em 8.29 p o d e ser vista c o m o a fo rm a d e M arcos re tratar a resp o sta
inicial d o s cristãos ao “ escân d alo ” d a cru z (lC o 1.23). A transfiguração, da
m esm a fo rm a , é sua m aneira d e in d icar q u e a c o m p re en são deles tem de se
tra n sfo rm a r se fo r p a ra eles v erem Jesu s d a p ersp ectiva de D eus. M arcos,
n a confissão de P ed ro , en sin a co m o os discípulos dev em pensar so b re Jesus

A. D. A. M oses, “ ‘T h e re A re Som e Standing H e re .. . ’: D id T h ey B ecom e th e ‘Re-


p uted Pillars’ o f the Jerusalem C hurch? Som e R eflections on M ark 9:1, Galatians
2:9 and th e Transfiguration” , A W 7'36 (1994), p.148-51. C o m relação à tese mais
am pla de W enham e M oses de q u e tines hõde tõn hestèkotõn (“ alguns dos que aqui
estão”) refere-se aos três discípulos que eram styloi (“pilares”) em G álatas 2.9, sou
mais cético, pois a frase que eles debatem se refere a Pedro, Jo ã o e T iago em 9.1 e
o co rre em essência na m esm a form a em 11.5 com referência aos n ão discípulos,
em 13.14 com referência à grande tribulação n o fim dos tem pos e talvez tam bém
em 15.35 (com o A B) com referência aos observadores na crucificação.
331 M a rc o s 9.2-3

(8.33) e, n a narrativa su b seq u e n te d a transfiguração, p e rm ite q u e eles vejam


a v erdadeira n a tu re z a dele.62
A tran sfig u ração de Jesus ac o n te ce p ró x im o d a m etad e d o evangelho
d e M arcos. O s discípulos, ap ó s d e m o n stra ç õ e s repetidas d e ignorância e
co m p re en são equivocada, receb em u m a m an ifestação visível d a verdadeira
n atu reza de Jesu s q ue até esse m o m e n to os leva a conclusões enganosas. A
visão n ã o é u m feito deles, m as é u m a revelação divina para eles, m odelada
segund o a m aio r revelação de D e u s n o m o n te Sinai, n o A n tig o T estam ento.
O v erd ad eiro d isce rn im e n to so b re o F ilh o d o h o m e m resulta d a revelação
divina, e n ã o d a sab ed o ria hum ana. A p rim eira p red ição d a paixão (8.31) lança
os discíp u lo s em u m estad o d e co n fu são e perp lex idade. O q u e o c o rre n o
m o n te d a transfiguração é tan to a garantia divina e m m eio à co n stern açã o de-
les q u a n to u m a ratificação divina d o ca m in h o da cru z a ser seguido p o r Jesus.

2 ,3 “ Seis dias d ep ois, Jesu s to m o u co n sig o P edro, T iag o e Jo ã o e os


levou a u m alto m o n te , o n d e ficaram a sós.” P ed ro , T iag o e Jo ã o aparecem
em o u tro s c o n te x to s n o evangelho (5.37; 13.3; 14.33) c o m o aqueles que per-
ten cem ao círculo m ais ín tim o de Jesus. C o n fo rm e verem os, a narrativa da
transfigu ração d e M arcos, d e fo rm a d istin ta da d e M ateus e Lucas, acentua
a p articip a ção deles co m Jesus n o sen tid o d o evento. A referência específica
a u m in terv alo de seis dias en tre C esareia de Filipe e a transfiguração é um
tan to curiosa, pois M arcos n ão delim ita o te m p o d e fo rm a tão específica em
n e n h u m o u tro trec h o fora da narrativa da paixão (14.1,12). O s “ seis dias”
ligam d e fo rm a expressa a transfiguração à co n fissão de Pedro. A tradição
que M arco s re ceb e u estava fam iliarizada co m o lap so de te m p o de cerca de
um a sem an a en tre os dois eventos, c o m o L ucas indica em seu texto: “ aproxi-
m ad am en te o ito dias” (Lc 9.28). O s “ seis dias” de M arcos re p resen ta m m ais
um paralelo cro n o ló g ico co m a jornada de seis dias de M oisés n o m o n te Sinai
(Ex 24.16), estabelecendo, p o rta n to , o p rim eiro de m u ito s p o n to s de co n tato
com aquele ev en to sem inal n a história de Israel.63*65

62 E m A to s deJoão 90, a transfiguração é apresentada com o um a teofania; Jesus já não


é mais hom em , m as D eus, de quem João p o d e apenas ver as “ costas” (com o em
E x 33.23). D a m esm a form a, em A to s de Pedro 20, Pedro fica cego, com o aconteceu
com Paulo na estrada para D am asco, e não p ô d e ver a glória de Jesus.
65J. Schreiber, “D ie C hristologie des M arkusevangelium s” , Z T K 58 (1961), p. 161-
63, considera a referência aos seis dias com o um a ligação sim bólica com a paixão,
um a vez que Jesus foi crucificado no sétim o dia da sem ana. E sse intervalo de seis
dias, n o entanto, é mais provavelm ente um a referência à jornada de seis dias de
M a rc o s 9.2-3 332

A segunda alusão ao m o n te Sinai é a m en ção d o “ alto m o n te ” . N o s evan-


gelhos, os m o n te s figuram d e m o d o p ro e m in e n te n o m inistério d e Jesus: nos
m o n tes, ele o ra (6.46; L c 6.12; J o 6.15), p reg a (3.13; M t 5.1), realiza m ilagres
(M t 15.29; J o 6.3), é te n ta d o (M t 4.8), ch am a os discípulos (3.13; Lc 6.12),
envia-os em m issão (M t 28.16) e c o n su m a sua paixão (11.1; 14.32; 15.22).
O m o n te d a transfiguração, c o m o o u tro s m o n te s n a E scritu ra, é um lugar
o n d e D e u s e a h u m an id ad e se e n c o n tra m u n s co m os o u tro s; n a verdade,
o n d e D e u s revela a si m e sm o p ara a h u m an id ade.64 C o n tu d o , o m o n te da
transfiguração, em d istinção d o s m o n te s m en cio n a d o s acim a, é u m m o n te
áe. glória (e.g., A p 14.1), cuja p ro e m in ê n cia n a experiência de Jesu s é signifi-
cada pela d escrição “ alto m o n te ” . M arcos n ã o especifica o local d o m o n te
d a T ransfiguração, m as a su p o sição m ais n atu ral é o m o n te H e rm o m que
d o m in a a região d e C esareia d e Filipe o n d e o c o rre u a co nfissão de P edro.65
E m b o ra o m o n te T a b o r, u m m o n te co m a fo rm a d e u m d o m o q u e se levanta
n a planície d e E sd re lã o (vale de Jezreel) q u e separava a G alileia da Sam aria,
seja o local trad icio n al d a transfiguração, é d e fato u m local m en o s provável
p ara a tran sfig u ração q u e o m o n te H e rm o m . P o r exem plo, o m o n te T ab o r
fica a g ra n d e distância, a sul, d a região d a co n fissão d e P ed ro em C esareia de
Filipe. A lém disso, o m o n te T a b o r n ã o é p artic u la rm en te u m “ alto m o n te ” ,
nem p ro m e te solidão (“ ficaram a só s” , v. 2), u m a vez que, na ép o ca d e Jesus,
o cu m e d o m o n te T a b o r era h ab itad o (Josefo, A n t. 13.396) e cercad o p o r
u m a m uralha. Jo s e fo erigiu u m a fo rtaleza n o local p ara resistir ao cerco de
V espasiano n a g u e rra d e 66-70 d.C. T odavia, co m o em to d as as cidades na
região, o T a b o r caiu d ian te d o ataq u e ro m a n o (Josefo, W ar 4.54-61).
A peça cen tral d a n arrativ a d a tran sfig u ração é ap resen tad a co m a típica
b rev id ade e c o n te n ç ão m arcanas: “Ali ele foi tran sfig u rad o dian te deles” . O *645

M oisés n o m o n te Sinai (Êx 24.16), um a vez que os personagens do Sinai são tão
pro em inentes na narrativa da transfiguração.
64 G ênesis 22.2; Ê xodo 24.15; D eu teronôm io 34.1; 1Reis 18.20; 19.11; E zequiel 40.2;
M ateus 5.1; 14.23; 28.16; M arcos 6.46; João 4.20; 6.3,15; A tos 1.12; A pocalipse 14.1;
21.10. Veja H . Riesenfeld, Jesus Transfigured, A SN U 19 (C openhagen, 1947), p.
243-45.
65 O s radicais hebraicos do Hermom, hrm , significando “ sagrado” ou “san to ” , po d em
encontrar um eco na referência ao m o n te da transfiguração com o o “m o n te santo”
em 2Pedro 1.18. Para argum entos favorecendo o m o n te H e rm o m co m o o local
da transfiguração, veja A. M. Ramsay, The Glory o f the God and the Transfiguration o f
Christ (L ondon, N ew York, T oronto: L ongm ans, G reen and Com pany, 1949), p.
113.
333 M a rc o s 9.4

“deles” tem d e se referir aos discípulos, u m a vez que E lias e M oisés ainda
não haviam sido in tro d u zid o s na narrativa. L ucas 9.29 m en cio n a apenas
que a ap arên cia de Jesu s foi tra n sfo rm a d a , m as M arcos, seguido p o r M a-
teus 17.2, registra q ue Jesu s n ão só foi tran sfig u rado dian te d o s discípulos,
m as tam b ém p o r causa deles. O v erb o “ tran sfig u rar” , d o g reg o metamorphoun,
carrega a raiz co m o sen tid o de “ m u d a r” . O v e rb o o c o rre apenas q u atro
vezes n a B íblia g reg a (9.2; M t 17.2; R m 12.2; 2 C o 3.18) e, em cada instância,
ele sugere u m a tran sfo rm a ç ã o radical. Paulo, referin d o -se à transfiguração
em 2 C o rín tio s 3.18, diz que nós, c o m o u m a c o n se q u ên cia d e v er a glória
do S en hor, so m o s tra n sfo rm a d o s (gr. metamorphoun) de glória em glória. D e
m o d o sim ilar, em Ascensão de Isaías 7.25, lem os q u e a glória d e Isaías fez com
que seu “ sem b lan te estfivesse] sen d o tra n s fo rm a d o ” e n q u a n to ascendia de
céu a céu.66 N a n arrativ a de M arcos so b re a transfiguração, metamorphoun n ão
significa u m a m u d an ça na n atu re za de Jesu s, m as, sim , u m a tran sfo rm açã o
exterior e visível de sua aparência para ficar de a c o rd o co m sua natureza.
As ro u p a s de Je su s, c o m o resultado dessa tran sfo rm ação , ficaram “ brancas,
de u m b ra n co resp lan d ecen te, c o m o n e n h u m lavandeiro n o m u n d o seria
capaz d e b ra n q u eá-la s” . O versículo 3, ap esar da descrição instável, é b em -
sucedido em tran sm itir q u e a transfiguração é tão co m p leta que as ro u p a s de
Jesus, b em c o m o sua p esso a, são tran sfo rm ad as. M ateus 17.2 e L ucas 9.29
acrescentam q u e a face de Jesus tam b ém b rilhou (veja 2C o 4.6), o que aum enta
a co m p araçã o co m M oisés, cuja face b rilh o u p o rq u e refletia a p re sen ça de
D eu s (Ê x 34.35). A s ro u p as diáfanas e a face b rilh an te d e Jesu s significam a
total tra n sfo rm a çã o e co b e rtu ra co m a p resen ça divina.6''

4 “ E lias e M o isés” são m e n cio n a d o s pela p rim eira v ez em 9.4, m as


a p resen ça deles é in d icad a ao lo n g o d e to d a a narrativa.68 O s dois estão

66 Essa referência ocorre de forma muito próxima de Ascensão de Isaías 8.25, em que,
com o na transfiguração, há uma referência ajesus com o o Filho amado. Para uma
descrição similar de glorificação, veja 2Apocalipse de Baruque 51.3-12
67 N a Escritura, roupas brilhantes são com frequência sinais de seres celestiais: Da-
niel 10.5; Mateus 28.3; Marcos 16.5; João 20.12; Atos 1.10; Apocalipse 3.4; 4.4;
6.11; 7.9,13; 14.14; 19.14.
68Veja M. Thrall, “ Elijah and Moses in Mark’s A ccount o f the Transfiguration” ,
NTS (1969/1970), p. 305, que equipara o alto m onte (v. 2) com o monte Sinai; as
roupas brancas do versículo 3 com a aparência de Moisés após estar na presença
de Deus; as três tendas no versículo 7 com tabernáculos no deserto; e a nuvcm,
a voz e o “ouçam-no” , no versículo 7, tam bém com Moisés.
M a rc o s 9.4 334

firm em e n te enraizados n a n arrativ a,69 m as a razão p ara a p re sen ça deles na


narrativa da tran sfig u ração n ão é tã o óbvia. U m a revisão d o s pap éis deles
n o judaísm o p ré -cristão n ã o é p a rtic u la rm e n te esclarecedora; n u n ca antes
en c o n tra m o s dois p re c u rso re s d o M essias, n em M oisés e E lias jam ais apa-
recem ju n to s c o m o p re cu rso re s d o fim dos tem p o s.70 Só u m a o u tra vez nos
textos d o N o v o T e s ta m e n to (A p 11.3-11) os dois aparecem ju ntos, m as em
u m c o n te x to b a sta n te d iferen te (em A p 11, eles são m o rto s p o r inim igos,
voltam à vida ap ó s três dias e são levados ao céu em um a nuvem ). A passagem
de A po calip se, n o en tan to , a c o n te ce dep o is d a n arrativa da transfiguração
e n ão p o d e tê-la influenciado. O u tro s p erso n ag en s em ergem da literatura
apocalíptica co m o p re c u rso re s d a era m essiânica: E sd ras (4E d 14.9); B aruque
(2Apoc. Bar 7 6 .2 );Jerem ias (2M ac 2.1); E n o q u e ; N o é ; Sem ; A braão; Isaque e
Jacó ( T. Benj. 10.5,6) e E n o q u e (2 E d 6.25). Elias, c o n fo rm e o b serv am o s em
1.2,3, n ão ap arece n o A n tig o T e stam e n to co m o p re c u rso r d o M essias, m as
d o final, d o D ia d o S enhor. M oisés, da m esm a fo rm a , d ese m p e n h a apenas
u m papel escato ló g ico periférico n o judaísm o tardio.71 Isso p resum ivelm ente
b ro ta d o fa to d e q u e M oisés — de fo rm a d istin ta da d e Elias e E n o q u e que,
c o n fo rm e se acredita, n ão m o rre ra m — m o rre u e foi en terrad o .72
A tradição judaica pré-cristã, p o rtan to , n ão provê u m a chave óbvia quanto
à razão p o r q u e M oisés e E lias aparecem n o m o n te d a T ransfiguração com
Jesus. P o r u m lado, ta n to M oisés q u a n to E lias fo ram g ran d es lib ertad o res
de Israel. A p aix ão d e Jesus, n a n arrativ a da tran sfiguração de L ucas (9.31),
é descrita c o m o u m “ ê x o d o ” , u m a ó b v ia alusão ao êx o d o d o E g ito so b o
c o m a n d o d e M oisés. P ara Lucas, a lib ertação d o s israelitas d o E g ito so b o
co m a n d o de M oisés e a fo rm a ç ã o deles em u m a nação são tip o s d a paixão de

69 A pesar da objeção de B ultm ann de que o relato da transfiguração n ão se relaciona


com Ê x o d o 24, em The History o f the Synoptic Tradition, trad. J. M arsh (N ew Y ork e
E vanston: H a rp e r and Row, 1963), p. 260.
70 Veja Str-B. 1.756; J. Jerem ias, ‫ ״‬È l(e)iaT , 777A T2.938-39.
71 J. Jerem ias, “M õyseT, 7Ρ Λ /Τ 4.856-57.
2 E m b o ra um Sifre sobre D eu tero n ô m io 34.5 traga o seguinte texto: “M oisés não
m orreu, antes, ele habita e serve no alto” , a m aioria da tradição no judaísm o acre-
ditava que M oisés m o rreu com o qualquer o u tro m ortal. E le era estim ado co m o o
doador da lei e libertador de Israel, mas raram ente com o um precursor escatológico.
Josefo, Antiguidades 4.323-26, tam bém acreditava que M oisés m orreu, mas ele inclui
um a lenda intrigante co m algum as sim ilaridades com a história da transfiguração:
“À m edida que M oisés despachava E leazar e Josué, e ainda en q u an to conversava
co m eles, repentinam ente um a nuvem veio ficar sobre ele, e ele desapareceu em
um certo vale” .
335 M a rc o s 9.4

Jesus, p o r m eio da qual ele lib erto u seu p o v o d o p o d e r d o p ecad o e fo rm o u


um n o v o p o v o n a igreja. Elias tam b ém foi u m lib e rta d o r de Israel, em b o ra
ten h a lib ertad o d a ad o ração aos falsos d eu ses d e Baal, em vez d e lib ertar de
o p re sso res estran g eiro s (lR s 17— 18). A p e sa r d a linha c o m u m de liberta-
ção, é d u v id o so , n o en tan to , se isso justifica a p re sen ça d e M oisés e Elias na
transfiguração, p o is o A n tig o T esta m e n to tin h a o u tro s libertadores, e mais
im p o rtan tes, em Jo su é, D av i e jo sia s.
E m ais p ro v áv el q u e M oisés e E lias te n h a m ap arecido n a narrativa da
transfig u ração c o m o rep resen ta n te s da trad iç ão p ro fé tic a que, de aco rd o
co m a cren ça d a igreja prim itiva, an tecip ariam Jesu s. “T o d o s os p ro fetas
dão te ste m u n h o [de Jesu s]” (A t 10.43). E p ro v a v elm en te m u ito específico
su ste n ta r q u e M oisés re p re se n ta a lei; e E lias, os p ro fe ta s, p o rq u e cada
personagem era associado tan to co m a lei q u a n to c o m os profetas. D e acordo
co m D e u te ro n ô m io 18.15,18, um a passagem re m e m o rad a n o versículo 7,
M oisés é c o n sid e rad o o tip o d o p ro fe ta escatológico e, co m frequência, é
visto c o m o o p e rso n ag em re p re se n ta n d o a trad ição p ro fética n o ju d aísm o .73
Elias, d a m esm a fo rm a, estava associado ao m o n te Sinai (lR s 1 9 .1 9 ‫)־‬, em que
ele re ceb e u a palavra d e D eu s, em b o ra de u m a fo rm a distin ta d a de M oisés.
A pesar d e a N V I ap re se n ta r “ Elias e M oisés” ig u alm ente n o versículo 4, o
texto g re g o traz E lias ap a rec en d o com M oisés, o q ue p arece indicar u m a certa
su b o rd in ação d e E lias a M oisés.74 E m apenas u m a p assag em E lias e M oisés
aparecem ju n to s antes d o D ia de lavé. E m M alaquias 4.4-6, Israel é o rd en ad o
a se lem b ra r da “ L ei” (heb. torah) de M oisés, o serv o de D eu s. Im ed iatam en te
a seguir, E lias é ap resen ta d o co m o o p ro fe ta q u e faz c o m que o coração do
povo se v o lte p ara o a rrep e n d im e n to n o D ia de lavé. A aparição de M oisés e
Elias na narrativa da transfiguração re m e m o ra provavelm ente essa passagem e
seus p apéis p ro fétic o s c o m o p rep arad o res c o n ju n to s d o P ro fe ta final p o r vir
(veja D t 18.15,18 [veja tam b ém , 4 Q 175, linhas 5-8]; M l 4.5,6). A p rep aração
con ju n ta deles p ara Jesu s é ainda tran sm itid a p ela descrição d e M arcos em
que eles “ co n v ersav am c o m J e su s” ; o u seja, eles têm u m a audiência com
Jesus, c o m o o su p erio r.
A p re sen ça d e M oisés e Elias, p o rta n to , significa q u e Jesu s n ão tem um
“papel sec u n d ário ” n o p la n o divino, n em q u e su a revelação c o m o o F ilho de *4

'3J. A. Ziesler, “T he Transfiguration Story and the Markan Soteriology”, ExpTim


81 (1969-70), p.266.
4‫ י‬Sobre a centralidade de Moisés na transfiguração, veja, J. Marcus, The Way of the
Lord (Edinburgh: T. & T. Clark, 192), p. 80-93.
M a rc o s 9.5-6 336

D e u s (v. 7) é u m a anom alia o u ex p ressão arbitrária da v o n tad e divina. A n-


tes, a p re sen ça d e M oisés e E lias co m o p recu rso res atesta da culm inação da
revelação in ten cio n al d o F ilh o d e D e u s co m a h istó ria de Israel. A lém disso,
M oisés e Elias, e m b o ra falem co m Jesus, n ão p e rm a n ece m co m ele, pois,
q u an d o a n u v em é re m o v id a n o versículo 8, os dois d esaparecem . P o rtan to ,
o te stem u n h o d e M oisés e E lias a p o n ta m para Jesu s e culm ina nele, m as o
teste m u n h o deles n ão se co m p ara c o m o d e Jesus. A palavra e o b ra deles são
co m p leta m e n te cu m p rid a s em Jesu s (Rm 10.4; 2C o 1.20). E les são servos e
p ro fetas d e D e u s; n a verd ad e, n ad a m en o s que te stem u n h as divinas de Jesus
co m o o F ilh o d e D eu s. Se fo r q u e stio n ad o c o m o os três discípulos, em es-
pecial em seu e sta d o letárgico, re co n h ec era m os p erso n ag en s desse evento
co m o E lias e M oisés, é possível sugerir que, n o R eino d e D e u s que irro m p e
m o m e n ta n e a m e n te n a vida dos discípulos n o cu m e d o m o n te, to d as as coisas
são c o n h e cid as p elo que são (1 C o 13.12). O D ia d e lavé, n o F ilho d e D eus,
está p ró x im o , e tu d o que aco n teceu antes d á te ste m u n h o dele.

5 ,6 P edro, co m o u m m e ro e reles m o rta l n a luz ab rasad o ra e intensa


d o e te rn o , sugere a c o n stru ç ã o d e tendas. A p ro p o s ta de P edro, em especial
à luz d o co m en tá rio editorial d e M arcos d e q u e “ não sabia o que d izer” , é
em geral co n sid erad a tola.75 N o en tan to , a sugestão, em ce rto sentido, não
é tola, p o is o ju d aísm o se apegava à esp eran ça de q u e D e u s habitaria (ou
“ tabern acu laria”) m ais u m a vez co m seu povo, ex atam en te c o m o aconteceu
n o êxodo. “ C eleb ra ao S e n h o r co m boas o b ra s e b en d ize o Rei d o s séculos,
p ara que a su a T en d a [gr. skéné\ seja d e n o v o edificada em ti c o m alegria”
(Tob 13.10; C N B B ). J o se fo tam b ém registra a esp eran ça de u m novo, e literal,
tab ern ácu lo n o d e se rto (Ant. 20.167; Guerra 2.259). E m Z acarias 14.16-19,
a F esta d o s T ab ern ácu lo s o u das C abanas assum e p ro p o rç õ e s escatológicas.
N esse respeito, a p ro p o s ta d e P e d ro d e co n stru ç ão de ten d as o u tabernáculos
n o m o n te d a T ran sfig u ração era ap ro p riad a p ara u m ju d eu p io e instru íd o . O
que P ed ro precisa v ir a en te n d e r, n o en tan to , é q u e D e u s p ro v ê seu p ró p rio
tab ern ácu lo n o qual habitar. O ríg en es o b se rv o u q ue a n uvem su b stituiu as
tendas p ro p o sta s p o r P ed ro .76 Isso chega b em próxim o, m as n ão está correto.
A hab itação d e D e u s co m a h u m an id ad e está p re sen te b em d ian te do s olhos

5 D e acordo com Apocalipse de Pedro 16, Jesus repreende Pedro p o r desejar construir
tendas: “ E [Jesus] m e disse com ira: ‘Satanás faz guerra co n tra você, e velou seu
entendim ento, e as coisas boas desse m undo conquistam você’ ” .
76 C itado em M.-J. Lagrange, Evangile selon Saint Marc, p. 230, e seguido p o r ele.
337 M a rc o s 9.7

de P ed ro , p o is Jesu s é o n o v o tab ern ácu lo da h ab itaç ão de D e u s co m a hu-


m an idade.77 P e d ro n ão p o d e estabelecer Jesus; antes, é Jesu s que estabelece
P ed ro p o r seu ch a m a d o ao discipulado (1.17) e c o m u n h ã o p ara estar com ele
(3.14). A revelação d a n atu re za divina de Jesu s d ian te d o s discípulos atesta
que “ o ta b ern ácu lo de D e u s está co m os h o m e n s, c o m os quais ele viverá”
(Ap 21.3). A transfiguração faz co m que a cristologia de M arcos se aproxim e
m uitíssim o da co m p re en são de Jo ão so b re a encarnação: “A quele que é a Pala-
vra to rn o u -se carn e e viveu [gr. skênoun, lit. “ tab e rn a c u lo u ”] en tre n ó s” (1.14).

7 M ais u m a chave p ara a c o m p re en são da transfig uração é a n uvem que,


ao lo n g o da E scritu ra , é o sím b o lo da p re se n ç a e glória de D eus. A tipologia
M o isés-m o n te Sinai p ro vê m ais u m a vez u m p aralelo esclarecedor: “ Q u a n d o
M oisés subiu, a n u v em c o b riu o m o n te , e a glória d o S e n h o r p erm a n e-
ceu so b re o m o n te Sinai. D u ra n te seis dias a n u v em c o b riu o m o n te ” (Êx
24.15,16).78 D e aco rd o co m M arcos, a n u vem os “ envolveu” o u os eclipsou (gr.
eptskia^eiri) . E sse v erb o o c o rre só ra ram en te n a B íblia grega, m as é u sad a em
Ê x o d o 40.35 p ara descrev er a n u v em q ue e n c h e u o tab ern ácu lo co m a glória
de D e u s e em IR eis 8.10,11 p ara d escrever a n u v em e n c h en d o o tem p lo de
Salom ão. U m a p assag em q ue lança luz especial em seu u so n a transfiguração
é o eclipsar (gr. episkia^ein) d e M aria p elo p o d e r d o A ltíssim o n a anunciação
(Le 1.35).79 A n u v em sim boliza a p re sen ça divina q u e fala co m Jesu s e os

77 Veja Ziesler, “T h e T ransfiguration Story and the M arkan Soteriology” , E xpT im


81 (1969-70), p. 266; G. B. Caird, “T h e T ransfiguration” , E xp T im 67 (1955-56),
p. 293.
78 Para as referências à nuvem com o um sím bolo da presença d e D eus, veja Ê xo-
do 13.21; 16.10; 19.9,16; 40.35; Levítico 16.2; N ú m ero s 11.25; E zequiel 1.4.
79 A nuvem algumas vezes não se refere à presença divina em Jesus, mas à parúsia,
com o em 13.26; 14.62; Lucas 21.27; Atos 1.9; ITessalonicenses 4.17; Apocalipse 1.7;
4.11; 5.12; 7.12; 11.12; 15.18; 19.1. Veja G. H . Boobyer, Saint M ark and the Transfi-
guration Story (Edinburgh: T. & T. Clark, 1942), p. 79ss.; L. Legrand, “L’arriere-plan
neotestam entaire de Lc 1,35” , A S 70 (1963), p. 172; e R ie se n fe ld ,/m r Transfigured,
p. 248-49. A parúsia, n o entanto, não é a interpretação mais plausível da nuvem
na transfiguração. O uso com um de nuvens na parúsia é vin d o sobre elas, e não
eclipsados g r e l a s e envolvidos nelas, com o aqui. A té m esm o 2M acabeus 2.8, um
texto-prova clássico para a interpretação da parúsia, refere-se à nuvem eclipsando
M oisés n o Sinai e enchendo o tem plo de Salom ão, dignificando desse m o d o a
presença divina, e não a parúsia. Ê xodo 40.35 con tinu a a ser o pan o de fundo
mais natural da nuvem n o versículo 7, em especial à luz de o u tro s tem as do êxodo
presentes na transfiguração.
M a rc o s 9.7 338

discípulos. A n u v em é a p re sen ça im pregnável de D e u s, sim b o lizan d o que


D eus, em Jesu s — ainda m ais q u e n o tab ern ácu lo d os tem p o s antigos —-,
habita c o rp o ra lm e n te co m a h u m an id ad e.80
A transfiguração alcança seu ápice na v o z celestial: “ E ste é o m eu Filho
am ado. O u ç a m -n o !” E sse p ro n u n c ia m e n to re m e m o ra a declaração d e Jesus
co m o o F ilh o d e D e u s n o b atism o e tran sm ite o c o n te ú d o p len o d o sentido
q ue o b serv am o s ali (veja em 1.11). N o batism o, co n tu d o , a declaração foi
direcio nad a a je s u s (“T u és o m eu F ilho am ad o ”), c o m o u m a co n firm ação de
sua filiação divina; aqui, ela revela sua filiação para os discípulos. “Este é o m eu
F ilho a m a d o ” (grifo d o au to r), bem co m o um a o rdem : “ O u çam -n o !” , sendo,
p o r con seg u in te, u m a revelação divina p a ra os discípulos. A declaração dos
céus sep a ra Jesu s d e M oisés e Elias e desig n a-o u n icam en te c o m o F ilh o de
D e u s.81 S ó o P ai p o d e tran sm itir aos cristãos o m isté rio d a filiação divina de
Jesus. O s discípulos n ã o chegaram ao re c o n h e c im e n to de Jesu s c o m o o Filho
d e D e u s p o r si sós (veja M t 16.17; 2Pe 1.17,18). A c o m p re en são da n atureza
d e D e u s e d a o b ra d e D e u s n o m u n d o n ã o é u m a realização h u m an a. A fé
é se m p re e apenas n o sso co n se n tim e n to à v erd ad e revelada p ara nós, e sem
essa revelação a verd ade n ão p o d e ser conhecida.
Ig u a lm e n te im p o rta n te é a co n clu são d e 9.7: “ O u ç am -n o !” Isso tam bém
re m e m o ra u m a palavra de M oisés: “ O S e n h o r , o seu D eu s, levantará do
m eio de seus p ró p rio s irm ão s u m p ro fe ta c o m o eu; o u ç a m -n o ” (gr. autou
akouesthè) (D t 18.15). “ O u ç am -n o !” (gr. akoueteautou) n o versículo 7 é idêntico
a D e u te ro n ô m io n o u so das palavras (em b o ra difira nas fo rm a s e sintaxe).
O qu e ex atam en te os discípulos têm de ouvir? M arcos, ao lo n g o d o evange-
lho, re tra ta Jesu s su p lican d o às pessoas p ara o u virem e c o m p re en d erem .82
A v o z d o céu ag o ra faz o m e sm o p e d id o aos discípulos. A in ju n ção divina
é necessária p a ra os discípulos ap re e n d e re m o p o n to q u e n ão conseguem

80 E sse p o n to é apresentado de fo rm a sublim e n o evangelho de João. “A quele que


é a Palavra to rn o u -se carne e viveu entre n ó s” (1.14). A palavra “viveu” , eskênõsen,
é a form a verbal de “ tabernáculo ou tenda” , skênê. E m Jesus, D eu s “ergueu sua
tenda en tre n ó s” .
81 T hrall, “E lijah and M oses in M ark’s A cco u n t o f the T ransfiguration” , NTS 16
(1969-1970), p. 308-9, observa que um p ro p ó sito da voz é distinguir de form a
singular e única Jesus de M oisés e Elias, porque a pro p o sta de Pedro para construir
tendas o u tabernáculos para todos os três indica igualdade entre eles.
82 4.9; 6.52; 7.16(?),18; 8.17-21,32.
339 M a rc o s 9.8

aceitar — de q u e o F ilh o tem d e sofrer!83 E ssa in ju n ção liga a transfiguração


in separavelm ente à co n fissão de P edro: o M essias tem d e so frer (8.31) e,
p o rtan to , os discípulos ta m b é m (8.34-38). O s discípulos p recisam en ten d e r
isso se fo r p ara e n te n d e rem a p esso a e m issão d e Jesus. A cristologia leva ao
discipulado; o discipulado flui da cristologia. “ O u ç am -n o !” d esig n aje su s não
só co m o o p ro fe ta q ue viria dep o is d e M oisés, m as ta m b é m co m o o F ilho que
tem de so fre r e q u e ch am a os discípulos a c o m p a rtilh a r seu so frim en to .84 E
a ratificação d e D e u s d o cam in h o da cru z — p ara Jesu s e para os discípulos.
O cam in h o p ara a glória atravessa o vale d o so frim en to .

8 A história, n o en tan to , n ão acaba co m essa n o ta om in o sa. A singu-


laridade d o relato d a transfiguração p o r M arcos é v ista em sua conclusão:
“R ep en tin am en te, q u a n d o [os discípulos] o lh aram ao re d o r, n ão viram m ais
ninguém , a n ão ser J e su s” . E lias e M oisés, os m aiores p e rso n ag en s d o A ntigo
T estam en to , h av iam desaparecido; em relação a Jesus, eles n ã o tê m p o sição
perm an en te. Só Jesu s perm anece. E m vez de escapar co m seus visitantes para
a glória, Jesu s p e rm a n ec e para co m p letar sua jo rn ad a a Jeru salém .85
A passag em d e 9.8, refo rça o ú n ico p ap el que os discípulos desem p e-
nham na n arrativ a da tran sfig u ração p o r M arcos. E m Lucas, a transfiguração
acontece b asicam en te p o r causa d e Jesu s, pois só Jesu s ascende à m o n ta n h a
(9.28), só ele o ra (9.29) e, seg u in d o a v oz, só so b ra Jesu s (9.36). O relato de
M ateus inclui os discípulos em m aio r g rau, m as, n o final d o relato d e M ateus,
Jesus p erm a n ece so zin h o — “n ã o viram m ais n in g u ém a n ão ser Jesu s” (17.8).
M arcos, p o r co n tra ste , p õ e os discípulos to ta lm e n te n o evento. Isso é ainda
mais notável co n sid eran d o -se que a descrição dos discípulos p o r M arcos é mais
terrível q u e a d e M ateus o u Lucas. Jesus leva os três “a u m alto m o n te, onde
ficaram a só s” (v. 2); ele é transfigurado “ diante deles” (v. 2); Elias e M oisés
aparecem “d ian te deles” (v. 4); a voz divina fala co m eles (v. 7); e, n o fim, apesar
da o m in o sa associação co m o so frim en to e m o rte, Jesus fica só co m eles! Jesus,
na p ro fu n d eza da confusão e perp lex id ad e deles, está co m os discípulos. N ã o
se esp era q u e os discípulos — naquela é p o c a c o m o ag o ra — seguissem a

83 Por contraste, o tratado N ag Hammadi Carta de Pedro a Filipe 134.15-19 aplica a


injunção: “ Ouçam-no!” à existência eterna de Jesus, e não à necessidade da cruz.
84 A necessidade do sofrimento dos discípulos é ignorada no Evangelho de Filipe 58,
em que os discípulos são elevados junto com Jesus.
8‫' י‬Em Apocalipse de Pedro 15— 17, a transfiguração é descrita com o um retorno ao
Éden, e no fim desse evento — em contraste marcante com os relatos canônicos
— Jesus ascende com Moisés e Elias ao segundo céu!
E x c u rso : T ra n sfig u ra ç ã o c o m p re e n d id a 340

sós nessa árdua e exultante tarefa d o discipulado. P recisam ente, Jesus está ali
co m eles q u an d o o u v em o evangelho, q u an d o veem a glória d o evangelho e a
inadequação d e si m esm os. A q u ele q u e cham a os discípulos a segui-lo não os
aban do na pela glória, m as se volta da glória para acom panhá-los “ n o cam in h o ”
para Jeru sa lém e p ara a cru z.

Excurso: Como a transfiguração deveria ser


compreendida? (9.8)
A tran sfig u ração d e Jesu s é u m ev en to singular n a literatura antiga. N ão
h á n e n h u m a analogia n a Bíblia, o u n a literatu ra extrabíblica d os apócrifos,
pseu d o ep íg rafo s, literatu ra rabínica, C unrã, N a g H a m m ad i o u literatura hele-
nista c o m o u m to d o . A luz dessa singularidade, c o m o ela deve ser entendida?
A lite ratu ra s o b re as origens e a n a tu re z a d a transfiguração, o q u e n ão é
d e su rp re e n d e r, é lo n g a e abrangente. O m áx im o q u e p o d e m o s fazer nesse
b reve ex c u rso é o fe re c e r diretrizes gerais q u e ap o iam n o ssas conclusões
p reced e n te s e e x p o r o s erro s de in te rp re ta ç õ e s e stra n h o s a elas.
U m a p o sição indefensável é a suposição d e que a narrativa da transfigu-
ração foi m o d elad a de acordo co m o m otivo d o “ h o m em divino” n o m u n d o
g reco -ro m a n o (veja o excurso so b re O h o m e m divino em 3.12). E ssa inter-
pretação é ocasionalm ente adotada co m o fu n d am en to de que a transfiguração,
em co n tra ste c o m a cristologia m ais funcional d a igreja judaica-cristã prim itiva,
retrata u m a a p o teo se m etafísica d e Jesus sim ilar à ap oteose d o h o m em divino
n o h elenism o .86 A d istin ção artificial en tre a cristologia helenista m etafísica
e a judaica fu n cio n al, n o en tan to , to rn a essa h ip ó tese questionável d esd e o
princípio. O Jesu s d a tran sfig u ração ce rta m e n te n ão está rem o v id o m etafisi-
cam ente, pois em vez d e ser tran slad a d o p ara o céu (co m o em Apocalipse de
Pedro 17!), ele p erm an ece co m os discípulos para co n tin u ar “ n o cam in h o ” para
Jeru salém e a cru z. N ã o h á p re ced e n te s p ara o h o m e m divino n em p ara os
filhos helenistas d e D e u s ab raçarem d e b o m g ra d o o d estin o d o so frim en to
co m o Jesu s o faz em 9.12,13. A lém disso, a exigência para silenciarem (9.9)
não é típico d e n e n h u m h o m e m divino, e a p resença de M oisés, de Elias e da
tipologia d o m o n te Sinai rep resen ta m otivos judaicos, e n ão helenistas. O Filho
de D e u s n a transfiguração n ão traz à m en te n e n h u m h o m e m greco -ro m an o
divino co n h ecid o p o r nós.

86 Veja F. H ahn, Cbristologiscbe Hoheitstitel, Ihre Geschichte imfrühen Christentum (Gõttin-


gen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1963), p. 309-11.
341 E x c u rs o : T ra n sfig u ra ç ã o c o m p re e n d id a

A seg u n d a p o sição é a d e in te rp re ta r a tran sfig u ração c o m o u m a visão


sim ilar à visão d e P e d ro em A to s 1087 o u c o m o u m a ep ifanía o u angelofania
sim ilar à aparição d e lav é em G ên esis 18.88 O s su p o sto s paralelos en tre a
transfiguração e esses textos, todavia, n ão estão m ais pró x im o s q u e aqueles
co n cern e n te s ao h o m e m divino. A s várias visões e epifanías registradas n a
E scritu ra são tip icam en te individuais, e n ão p artilhadas, co m o aco n teceu aqui
na transfiguração. A dem ais, u m a visão o u ep ifan ía é u m a irru p ç ão m o m en -
tânea “ d o alto ” , d o divino n o h u m an o , ao p asso q u e a transfiguração é um a
revelação m o m e n tâ n e a “ de b aixo” , d o d ivino n o h o m e m Jesus. O s paralelos
entre a tran sfig u ração e visões o u epifanías em o u tro s trec h o s da E scritu ra
não se ap ro x im am o suficiente para c o n stitu ir u m a analogia relevante.
A explicação m ais freq u en tem en te ap resen tad a d a transfiguração é que é
um a h istó ria d a ressu rreição re tro ced id a na v id a de Jesus.89 A principal força
dessa su gestão re p o u s a n o c o rp o glorificado c o m u m a Jesu s n o s m o d o s
tanto d a tran sfig u ração q u an to da Páscoa. U m exam e cu id ad o so do s dois
m odos de aparição, co n tu d o , dim inui su b stan cialm ente a atração inicial dessa
hipótese. Se a tran sfig u ração fosse u m a aparição da ressurreição retro ced id a,
esperaríam os e n c o n tra r evidência desse d eslo ca m en to e ru p tu ra d o c o rp o d o
evangelho d e M arcos. N o en tan to , a transfiguração n ão p arece extrínseca à
narrativa d e M arco s; está org an icam en te ligada ao episódio p re c e d e n te em
C esareia de Filipe e co n ecta o início d o evangelho n o b atism o c o m o fim
do evangelho n a paixão.90 A aparição d e Jesu s n a tran sfig u ração tam b ém
difere das aparições da ressu rreição registradas n o s evangelhos. N a narrativa
da P áscoa, Jesu s aparece so zin h o , ao p asso que ele, na transfiguração, está
ac o m p a n h ad o p o r co m p an h e iro s celestiais; nas narrativas d a Páscoa, Jesus
fala, m as aqui ele está em silêncio; em n e n h u m a aparição d a ressurreição há
um a v oz divina, c o m o ac o n te ce na transfiguração; em n e n h u m a aparição da
ressurreição h á a descrição d a glória visual d e Jesu s c o m o aqui; nas aparições

87Por exemplo, A. Harnack, citado em G rundm ann, Das Evangelium nach Markus, p.
180.
88J. A. T. Robinson, “T he M ost Primitive Christology o f All,” JT S l (1956), p. 180.
89Veja J. Wellhausen, citado em G rundm ann, Das Evangelium nach Markus, p. 178;
Bultmann, The History of the Synoptic Tradition, p. 39, 260.
90 Por exemplo, Caird, “T he Transfiguration”, ExpTim 67 (1955-56), p. 292: “Uma
explicação satisfatória da transfiguração tem de fazer justiça a sua conexão com o
batismo, Cesareia de Filipe, Getsêmani, a crucificação, a ressurreição, a ascensão
e a parúsia; e com a perseguição dos discípulos e sua porção, presente e futura,
na glória do Cristo ressuscitado e ascendido” .
E x c u rs o : T ra n sfig u ra ç ã o c o m p re e n d id a 342

d a ressurreição, h á sinais d e Jesu s p ara seus discípulos, m as aqui n ão há ne-


n h u m sinal; em ap en as u m a n arrativ a da P áscoa Jesu s aparece em u m m onte
(M t 28.16), co m o aco n tece n a transfiguração; e a n u v em que receb e Jesus na
glória (A t 1.9) deixa-o co m os discípulos n a transfiguração.91 À luz d e dife-
renças tão n u m ero sa s e substanciais, é difícil su ste n ta r q u e a transfiguração é
u m a h istó ria d a P ásco a re tro ced id a para as prim eiras narrativas d o evangelho.
A singularidade d a tran sfig u ração d e Jesu s priva-a de q u alq u er padrão
o u e stru tu ra e x te rn o ad e q u ad o p o r m eio d o qual seja possível julgá-la. Con-
sid eran d o -se esse fato, o ju lg am en to q u e os leitores fazem so b re a natureza
da tran sfig u ração deriva d errad e iram en te d a avaliação q u e fazem d e Jesus.
M arcos se e sfo rço u ao lo n g o de to d o o evangelho p ara re tra ta r a autoridade
divina, a exousia, c o m a qual Jesu s en sin a e age. Q u a lq u e r p esso a que tenha
co n sid erad o crível a ap resen tação de Jesu s p o r M arcos n ão achará a narra-
tiva d a tran sfig u ração im possível de ser crida, p ois a transfiguração é um a
revelação em p írica e m o m en tân ea da au to rid a d e divina q u e Jesus m anifestou
ao lo n g o d e seu m inistério. C o n sid e ran d o a crise n a m e n te d os discípulos,
é difícil im ag in ar q u alq u er coisa q u e os m a n te n h a em c o m u n h ã o co m Jesus
afo ra o te ste m u n h o visual d o Pai a seu F ilh o e a ratificação d e sua missão.
E ssa é a essência d a transfiguração. “ Se a visão d a p esso a [de Jesus] susten-
tad a p elo s evangelistas e Igreja ap o stó lica em geral é verdadeira, e n tão um a
o co rrê n c ia fran cam e n te so b re n atu ral n o cu rso d e seu m inistério te rre n o é
crível” .92 O local d a tran sfig u ração n o esq u em a d a n arrativa de M arcos e o
sen tid o in e re n te nela to rn a sua in te rp re ta ç ã o m ais plausível c o m o um a ante-
cipação d a ressu rreição n o m in istério d e Jesu s co m o p ro p ó sito de encorajar
os discípulos a crer e seguir Jesu s n o ca m in h o p ara a cru z.93

P E R F I S N O S O F R I M E N T O (9 .1-13 )

O s g reg o s h o n ra ra m o p an te ã o d o s heróis que, p o r causa de suas gran-


des conquistas, fo ram p ro m o v id o s ao céu sem m o rrer. O te rm o u sad o para
descrev er isso era apotheosis, to rn a n d o os m o rtais em deuses. O apócrifo
Apocalipse de Pedro 15— 17, c o m o já vim os, c o n c eb e u Jesu s c o m o algum üpo
d e h o m e m d ivino q u e foi m o v id o ra p id a m e n te p ara a glória celestial do

91 Veja Schweizer, The Good Nem According to Mark, p. 180; J. M urphy-O’Connor,


“W hat Really Happened at the Transfiguration?” BRev 3 (1987), p. 9.
92 Ramsay, The Glory of God and the Transfiguration of Christ, p. 106.
93 Veja Thrall, “Elijah and Moses in Mark’s A ccount o f the Transfiguration” , NTS
16 (1969-70), p. 310-11.
343 M a rc o s 9.9-10

cum e d o m o n te d a T ransfiguração. O Jesu s d e M arcos, ao contrário, recusa


a m ob ilid ad e p ara cim a d o h o m e m divino. E v erdade, a transfiguração da
existência glo rio sa d o F ilh o d o h o m e m en tra rá ap ó s ele ressuscitar d en tre os
m orto s (9.9). E , sim , a transfiguração é u m a p ro le p se da ressurreição, um a
representação m o m e n tâ n e a p re sen te d e u m ev e n to g lo rioso futuro. M as a
ressurreição e a restau ração gloriosa d e tu d o an u n c ia d o p o r Elias n ão têm de
ser os p rim eiro s n em os ún ico s itens n o p e n sa m e n to do s discípulos. M arcos
usa o diálogo em 9.9-13 en tre Jesus e os discípulos p ara afastar os leitores
do co n c eito d e triu n falism o m essiânico in d icad o n a declaração d e P ed ro de
8.29. N o s versículos 11-13, três p erso n ag en s d istin tas são apresen tad as o u
aludidas — Elias, o F ilho d o h o m e m e o S erv o s o fre d o r de Isaías, cada um
dos quais atesta d a m esm a verdade: que o so frim en to tem d e p reced er a glória.
M arco s e s tru tu ra a atual passag em paralela em g eral c o m o d iálogo
entre Jesu s e os discípulos após a confissão d e P e d ro em 8.29. Jesus, após a
confissão de P e d ro e a transfiguração, p ed e q u e os discípulos silenciem (8.30;
9.9). O s discípulos, d a m esm a fo rm a , são re sisten tes ao s dois eventos. A p ó s
a pred ição da p aix ão em 8.31, P ed ro te n ta d issu ad ir Jesus (8.32); e, d ep o is da
predição da re ssu rreição em 9.9, os discípulos “g u ardaram o assu n to apenas
entre si, d iscu tin d o o q u e significaria ‘ressu scitar d o s m o rto s ’ ” (v. 10). P o r
fim, os discípulos ficam co n ste rn a d o s ap ó s esses dois ev entos (8.31; 9.9), e
Jesus usa a c o n ste rn a çã o deles p ara ensiná-los o ca m in h o q u e ele, c o m o o
Filho d o h o m e m , te m de seguir — e q ue eles ta m b é m têm de seguir.

9 ,1 0 N a descid a d o m o n te, “Jesus lhes o rd e n o u q u e n ão co n tasse m a


ninguém o q u e tin h am visto, até q ue o F ilho d o h o m e m tivesse ressuscitado
dos m o rto s ” (veja A ordem para silenciar em 1.34). E s s a é a últim a o rd em
para silenciar n o evangelho d e M arcos (em b o ra veja 9.30), e a única das nove
ordens q u e é tem p o rária. A té esse m o m en to , as o rd e n s para silenciar foram
absolutas, m as ag o ra pela prim eira vez os discípulos são in fo rm a d o s que o
véu d o silêncio tem de p erm a n e c e r em efeito só até a ressurreição, e após
esse ev en to eles p o d e rã o falar. Iro n ic am en te, as m u lheres n o tú m u lo vazio
receberão, p o r fim , a o rd e m p ara an u n ciar a re ssu rreiçã o — m as elas fugiram
em te m o r e perp lex id ad e e n ão d irão n ad a a n in g u ém (16.7,8).
A o b tu sid ad e d o s discípulos ressurge em 9.10. A falha deles em captar
o sentido da ressu rreição d o s m o rto s n ão é n e m u m p o u c o surpreendente.
Verdade, o A n tig o T esta m e n to tem apenas u m vag o e subdesenvolvido con-
ceito de ressu rreição d o s m o rto s — na m e lh o r das hipóteses. N ã o obstan te,
M a rc o s 9.9-10 344

a d o u trin a da ressurreição , p o r p elo m e n o s dois séculos antes d e Jesus, fora


u m artigo d e fé n a teologia judaica, em particu lar em m eio aos fariseus. A
ressurreição, em o u tro s dois tre c h o s em M arcos, é m en cio n ad a sem qual-
q u er q u e stio n a m e n to (6.14; 12.18-27). A perp lex id ade d os discípulos co m a
ressurreição, p o r co n segu in te, tem de ser co n sid erad a c o m o m ais u m sinal
d e sua cegueira. Isso é assinalado de m aneira m ais clara em g reg o que em
p o rtu g u ês, em q ue M arcos afirm a que eles “g u ard aram ” (gr. krateití) a palavra
de Jesu s e “ discuti [am] [entre si]” (gr. sy^êtein) o sen tido da ressurreição. Essas
d u as palavras são tip ic am en te usadas p o r M arcos c o m co n o taç õ es pejora-
tivas. O v o cab u lário d e M arco s sugere que os discípulos n ão só m an têm o
seg red o p ara si m esm o s, c o n fo rm e o rd e n a d o p o r Jesus, m as o reprim iram .
E les p arecem e n te n d e r d e fo rm a equivocada e talvez até m esm o resistam à
o rd e m d e Jesus. E p o d e m o s im aginar o p o rq u ê dessa atitude. Se fo r p ara o
F ilh o d o h o m e m ser levantado, ele tem d e morrerprim eiro. O s discípulos não
estão p re p a ra d o s p a ra qu alq u er p e n sa m e n to de q u e o M essias tem de sofrer
e m o rre r an tes d e sua en tra d a n a glória.94
O efeito d a o rd e m p ara silenciar n o s versículos 9,10 é duplo. Prim eiro,
refo rça q u e a cru z e a ressu rreição são as únicas perspectivas da qual a vida e
m in istério d e Jesu s p o d e m ser c o m p re en d id o s de a c o rd o co m seu p ro p ó sito
divino, e q u e to d o co n h e c im e n to so b re Jesus, até a cru z e ressurreição, é
in ad e q u a d o e periférico. A o rd e m p ara silenciar é especialm ente p ertin e n te
n a p ó s-lu m in escê n cia d a transfiguração, a fim de que os discípulos n ão su-
cu m b am d ian te d a glória e adrenalina em o cio n al da m o n ta n h a , em vez de
en carar a n ecessid ad e d o ca m in h o p ara Jeru salém e p ara a cruz. A transfigu-
ração é d e fato u m a an tev isão d a ressu rreição , m as os discípulos h erd am a
gloria resurrectionis só p o r in te rm é d io d a via dolorosa cruris.
O se g u n d o efeito d a o rd e m p ara silenciar é salientar a c o n tín u a cegueira
e inércia d o s discípulos. M arcos, m ais u m a vez, le m b ra seus leitores q u e os

94 M urphy-O ’C onnor, “W hat Really H appened at the Transfiguration?” BRev 3


(1987), p. 9, descarta a historicidade da transfiguração ao questionar como Pedro
poderia negar Jesus no pátio do sumo sacerdote se tivesse testem unhado antes a
glória de Jesus no m onte da Transfiguração. Para M urphy-O’Connor, a negação
de Pedro de que conhecia Jesus no julgamento por Caifás refuta de forma eficaz
a historicidade da transfiguração. N o entanto, uma refutação muito plausível da
suposição de M urphy-O’Connor emerge na conversa nos versículos 9-11, em que a
euforia da transfiguração é efetivamente subordinada à necessidade do sofrimento.
Assim, o que vem primeiro à m ente dos discípulos na jornada para Jerusalém é o
sofrim ento iminente de Jesus, e não sua ressurreição.
345 M a rc o s 9.11-13

discípulos n ão estão em c o m u n h ã o co m Jesu s p o r causa d o co n h ecim en to ,


virtude o u habilidades deles. E les estão em c o m u n h ã o co m Jesus apenas p o r
causa d o ch a m a d o s o b e ra n o d e Jesus, e p e rm a n e c e m em co m u n h ão só p o r
causa da fidelidade d e Jesus p ara co m eles. E les estão d e fato co m p re en d en d o
de fo rm a equivocada e são até m esm o teim osos. N o en tan to , o discipulado
deles n ã o d e p e n d e d o c o n h e cim en to e c o m p re e n sã o deles, m as apenas de
co n tin u ar a seguir o cam in h o p ara o qual Jesu s os leva.

11-13 A p e rg u n ta d o s discípulos em 9.11 so b re o re to rn o de E lias (veja


em 8.28) parece ser o ferec id o a fim de co n tra b alan ç ar o u até m esm o refu tar
as im plicações d o so frim en to n o versículo 10. A ideia cen tral da p erg u n ta
no versículo 11 é m ais sutil q u e a tentativa flagrante d e P ed ro d e co n tra d izer
Jesus ap ó s sua p rim eira p red ição da paixão (8.31,32). N ã o o b stan te, a per-
gunta: “ P o r q u e os m estres d a lei dizem q u e é n ecessário q u e E lias v en h a
prim eiro?” , é a p rin cip al questão, e a in ten çã o dela é sugerir q u e o re to rn o de
Elias p ara re sta u rar to d as as coisas deveria re m o v e r a n ecessidade d e o F ilho
do h o m e m ir p ara a cruz. A referência é aos versículos finais de M alaquias,
em que E lias é enviado diante de D e u s antes d o “ g ra n d e e tem ível dia d o
S e n h o r ” p ara re stau rar a justiça e a h a rm o n ia n o s re la cio n am en to s h u m an o s
(Ml 4.5,6; tam b é m Sir 48.10).
Jesu s afirm a d e fato o p ap el de restau ração d e Elias. “ D e fato, E lias vem
prim eiro e resta u ra to d as as coisas.”95 A esp eran ça d o s discípulos, em outras
palavras, é, n o final das contas, co rreta. C o n tu d o , algo ig ualm ente essencial
tem de ac o n te ce r antes d a restauração final n o D ia d e lavé. H á o u tro teste-
m u n h o n a E sc ritu ra , m e n o s acolhido, m as n ã o m e n o s im p o rtan te. E le é
levantado n o co n tra -a rg u m e n to de Jesus em q u e ele faz a seguinte p erg u n ta
em 9.12b. Se a restau ração d a justiça e d a p az pela qual to d o s anseiam é im e-
diata e im inen te, e n tão p o r q u e as E scritu ras testificam q u e o so frim en to de

95J. Marcus (seguindo J. Wellhausen) sugere que o versículo 12a deve ser lido como
uma pergunta, ou seja, “Q uando Elias vier, restaurará todas as coisas?” (The Way
of the Lord, p. 99). E isso indicaria o seguinte: não, Elias não restaurará todas as
coisas, mas sofrerá. Com o os manuscritos gregos antigos não contêm pontuação,
é possível ler a sentença como uma pergunta. E m meu julgamento, no entanto,
o contexto da passagem argumenta contra a pontuação do versículo 12a com
um ponto de interrogação. N ão é a restauração final de todas as coisas que Jesus
desafia, mas a ideia de que a restauração pode ser alcançada à parte do sofrimento
do Filho do hom em. Daí a pergunta do versículo 12.
M a rc o s 9 .1 1 1 3 ‫־‬ 346

u m p erso n ag em ju sto tem n ecessariam en te que p re c ed e r a restau ração final


d o D ia d o S enhor?
Jesus se refere ao ju sto s o fre d o r em três im agens. A prim eira é com o
o F ilho d o h o m e m , so b re q u e m “ está escrito ” . A fó rm u la “ está escrito ”
atesta d a v o n tad e divina o rd e n a d a e p rescrita p ara o F ilh o d o h o m e m (veja
a discussão d o te rm o em 1.2). O so frim en to d o F ilh o d o h o m e m n ão é um a
co m p re en são equivocada da p a rte de Jesu s n em um a ab erração da vontade
divina, m as u m a p a rte in e re n te d e sua identidade. A afirm ação d e que “ é ne-
cessário q u e o F ilh o d o h o m e m so fra m u ito e seja rejeitado co m d esp rezo ”
parece re c o rd a r o S erv o so fre d o r d o S en h o r de Isaías. N ã o p o d e m o s ter
certeza a b so lu ta d isso p o rq u e o d estin o d o S ervo d o S en h o r n ã o é descrito
ex ata m en te nessas palavras. N ã o o b sta n te , parece q u e a descrição d o versí-
culo 12 re m e m o ra o S erv o d o S enhor, d esp reza d o e rejeitado, “ u m ho m em
de d o re s e ex p e rim e n ta d o n o so frim e n to ” (Is 53.3). Se esse fo r o caso, Jesus
afirm a a v o cação d o S ervo so fre d o r d e Isaías c o m o seu papel c o m o Filho
d o h o m em . (S obre o S ervo d o S enhor, veja a In tro d u ç ã o 6.2.)
P o r fim , E lias tam b ém tem d e sofrer. “ E lias já veio, e fizeram c o m ele
tu d o o q u e q u iseram [...].” E ssa afirm ação c o m certeza en viou u m a onda
d e c h o q u e p ara os ouv in tes de Jesus, p o is n ão estavam tão d esp rep arad o s
para o so frim en to d e E lias q u a n to p a ra o so frim en to d o F ilh o d o h o m em . À
p a rte de apenas vagas referências (lR s 19.2,10), n ão existe o m e n o r indício
d e q u e E lias so freria an tes d o D ia d o S enhor. A referência ao so frim e n to de
Elias, claro, é u m a referên cia à m o rte d e J o ã o B atista, c o m o M ateus 17.13
deixa explícito (seguido p o r J u stin o M ártir, Dial. Trif. 49.17). Se H e ro d e s li-
dara co m severidade c o m o p re c u rso r d o M essias (6.14-29), será q u e deveria
haver algum a su rp re sa so b re o d estin o d o M essias?96
“ E fizeram c o m [...] [Elias] tu d o o q u e q u iseram [...].” E ssa frase deve
ter tido m u ita re p erc u ssã o n a prim eira audiência de M arcos, p o is esta estava

96 A intrincada teia de argumentação nos versículos 11 -13 é com frequência atribuída


à síntese redacional de Marcos, e não a Jesus. Nessa visão, “está escrito” (v. 12) é
o resultado das conclusões exegéticas de Marcos, em vez da autoridade de Jesus.
Veja, p o r exemplo, Marcus, The Way of the Lord, p. 97-107; J. Taylor, “T he Coming
o f Elijah, M t 17,10-13 and Mk 9,11-13: T he D evelopment o f the Texts” , RB 98
(1991), p. 117. Contudo, eu não gostaria de señ ar a essência desse argumento da
conclusão de Jesus, apesar de as palavras dos versículos 11-13 poderem derivar de
Marcos. Em meu julgamento, a reinterpretação do papel de Elias apresentada no
versículo 13 (como a reinterpretação do sábado em 2.27-28) é mais naturalmente
explicada pela exousia (“autoridade”) de Jesus que pela inovação por parte da igreja
primitiva.
347 M a rc o s 9.14-15

sujeita às selvagerias d a perseguição de N e ro . A frase tem rep ercu ssão hoje


na igreja p erseg u id a em várias p arte s d o m u n d o . O s cristãos, sem p re que se-
guem Jesu s n o ca m in h o p ara a cruz, ficam ex p o sto s ao m u n d o e vulneráveis
às m aq u in açõ es deste. O so frim en to inevitável q u e resulta d o discipulado
p ara Jesu s, todavia, n ão é u m sinal d o a b a n d o n o p o r p a rte d e D eu s, m as da
comunhão (F p 3.10) co m o F ilh o d o h o m e m q u e tem d e “ sofr[er] m u ito e s[er]
rejeitado co m d e sp re z o ” .
N ã o é in stru tiv o q ue a única referên cia à o b ra te rre n a de Jesus n o C red o
dos A p ó sto lo s seja “ p ad e c e u ” ? E ssa v erd ad e ú n ica e m uitíssim o im p o rta n te
é enraizad a n a co n sciên cia d o s discípulos em 9.12,13 pelas alusões ao F ilho
do h o m e m , o S ervo S o fre d o r de Isaías e Elias. E s te era lem b rad o p o r várias
v irtudes e papéis, m as Jesu s aqui designa seu p ap el p rim ário c o m o o de so-
frim ento, c o n fo rm e rep resen ta d o p o r Jo ã o Batista. O E lias q u e vem antes d o
F ilho d o h o m e m , c o m o ta m b é m os discípulos q u e vêm depois, têm de fazer
isso n o c a m in h o p ara a cruz. “ N ã o devia o C risto so frer estas coisas, para
en trar na sua glória?” , p erg u n ta o Jesu s re ssu rre to em L ucas 24.26. A ssim ,
tam b ém , em M arcos, a red en ção havia m u ito esp erada d o D ia d o S en h o r
p o d e ser alcançada p o r in term éd io d o so frim e n to d o F ilho d o ho m em .

FÉ FRÁGIL EM UM SALVADOR FORTE ( 9 .14 -29 )


A in teração en tre a jo rn ad a in te rn a p ara D e u s e a jo rn ad a ex tern a para o
m u n d o é co m u m à E scritu ra (veja o co m en tário so bre 1.35-39). M oisés desce
da jo rn a d a santificada n o m o n te Sinai p ara c o n fro n ta r a rebeldia e a idolatria
(Êx 32); Elias deixa a tranquila força d o H o re b e para e n fren tar o paganism o de
Jezabel e A cab e (lR s 19); o p ró p rio Jesus é d irec io n ad o d a u n çã o d o b atism o
para a ten tação n o d e se rto (1.9-13). D e fo rm a sim ilar, Jesus, n a descida do
m o nte da T ransfiguração co m Pedro, T iago e Jo ão , é c o n fro n ta d o d e im ediato
com a discu ssão e n tre os m estres da lei e seus discípu los e tam b ém co m um
pai lu tan d o d esesp erad am en te pela vida d e seu filho e a existência de sua fé.
O tex to d e M arco s 9.14-29 é duas vezes m ais lo n g o q u e os relatos paralelos
em M ateus 17.14-20 e L ucas 9.37-43. O alv o ro ço d e atividades e riqueza de
detalhes de interesse h u m a n o n o relato d e M arco s deixam a im pressão de
um relato em p rim eira m ão, m ais u m a vez talvez d e P edro.

14,15 N a ausência d e Jesus, P edro, T iag o e Jo ão , o restan te dos discípulos


não ficou à toa. A s circunstâncias da jo rn a d a deles até a b ase d o m o n te são
obscuras até o m o m e n to em q u e Jesus e os três discípulos voltam a se unir
M a rc o s 9.14-15 348

a eles — um a circu n stân cia q u e é explicável se P edro, au sen te da cena, for


a fo n te de M arcos p ara a história. Jesu s e os três discípulos d esc o b rem que
seus colegas são im p o rtu n a d o s pela m ultidão, pelos m estres d a lei e o m enino
p o ssu íd o pelo d em ô n io — os m esm o s três g ru p o s q u e estiveram presentes
d u ra n te o m in istério d e Jesus. A ssim , o restan te d o s discípulos está dando
co n tin u id ad e ao m in istério d e Jesu s — m as sem a p re sen ça deste (um a con-
dição qu e m ais d e u m m in istro d o evangelho já experim entou!). C o n fo rm e
o b serv am o s em 1.45-52, os discípulos, sem p re q ue são separados de Jesus,
en tra m em crise.
A ausência d e Jesu s é m uitíssim o sentida, pois q u an d o “ to d o o povo
viu Jesus, ficou m u ito su rp re so e c o rre u p ara saudá-lo” . E m M arcos, a per-
plexidade das m u ltid õ es em geral vem na co n clu são da atividade de cura ou
ensin o d e Jesus, ao p asso q u e aqui vem n o início. A razão pela qual o povo
“ ficou m u ito su rp re so ” n ã o fica ap aren te d e im ediato. E ssa expressão tra-
d u z u m a única p alav ra g re g a iekthambeomai) q ue o c o rre apenas em M arcos
(9.15; 14.33; 16.5,6), c o m o sen tid o d e tre m e r de p erplexidade que beira o
alarm e. E algum as vezes sugerido que essa perp lexid ad e se deve à glória no
sem b lan te d e Jesu s, c o m o o b rilho d a face d e M oisés d ep o is q u e este voltou
d o m o n te Sinai (E x 34.29). A sintaxe d e M arcos p o d e ser co n sid erad a com o
ap o io d essa in te rp re ta çã o , o u seja, o p o v o estava p erp lex o p o r causa do
q ue vira em Jesus. P o r o u tro lado, se o sem b lan te de Jesu s ainda irradiasse
a glória d a transfiguração, a o rd e m p ara q ue “ n ão co n tasse m a n in g u ém ”
(v. 9) p arece u m ta n to sem sentido. A lém disso, se o sem b lan te de Jesus
foi su b stan cialm en te afetado, p o d eria m o s esp e rar q ue a m ultidão recuasse
p o r m e d o (E x 34.30), em vez d e avançar em b u sca ávida. M ais u m a vez, a
su gestão de q u e ekthambeomai é a fo rm a de M arcos re tratar “ a v inda de Jesus
co m o u m a epifanía d o S e n h o r p ara os q ue o te m e m ”97 p arece ser u m exage-
ro, pois n ã o p arece h aver explicação: p o r q ue Jesu s deveria aparecer d e um a
epifanía aqui e n ã o em o u tro s trech o s? N o c o m p u to geral, a perplexidade
da m u ltidão p arece se d ev e r à aparição in esp erad a de Jesu s e à esperança que
v o lta a aum en tar. A m u d an ça to tal d a aten ção da m u ltidão d os m estres d a lei
p ara Jesu s ac en tu a m ais u m a vez a au to rid ad e d este so b re os m estres da lei
q ue in te rro g a m rig o ro sa m e n te os discípulos. A insatisfação da m u ltidão com
os discípulos é c o m p e n sa d a p o r suas esperanças e satisfação ao ver Jesus.98

97 G. Bertram, “thamboT, TDNT2>.6.


98 As referências à inabilidade dos discípulos para curar o menino possesso (v. 18,28)
são um forte argumento para a historicidade do relato, pois é improvável que a
349 M a rc o s 9.16-18

E ssa in tro d u ç ã o in co m u m à p eríco p e p o d e tra z e r à lem b ran ça dos leitores


de M arcos q u e Jesu s é c o m p e te n te p ara satisfazer to d o s os anseios da igreja
que co n tin u am n ão satisfeitos.

16-18 O tex to d e 9.14,15 descreve a cen a sem foco: m ultidão, m estres da


lei e discípulos m istu rad o s d eso rganizadam ente e sem propósito. C ontudo, Je-
sus, lo g o q ue chega ali, exige d e im ediato aten ção ao p e rg u n ta r aos m estres da
lei: “ O q u e vocês estão d iscu tin d o ?” A palavra p ara “ d iscu tin d o ” (gr. syyêtein)
transm ite c o n o ta ç õ es com bativas e é u sad a c o m frequ ência p o r M arcos para
altercações co m as au to rid ad es religiosas (8.11; 9.14,16; 12.28). E le o rd en a os
m estres da lei a d irecio n ar suas p erg u n tas a ele, e n ã o aos discípulos.
A c o n fro n ta ç ã o en tre Jesu s e os m estres d a lei, todavia, cede lugar a um
pai d esesp erad o q u e traz a Jesu s seu filho “ q u e e stá c o m u m esp írito que o
im pede d e falar” (de m o d o similar, 7.37). A d escrição d a d o en ç a p elo pai
carrega to d a a em o ção d o te m o r e co n ste rn a ç ã o de u m pai co m relação à
segurança de seu filho. Seu filho n ão está apenas d o en te, m as é atacado. O s
ataques n o m e n in o in d efeso são relatados q u a tro vezes na narrativa seguinte
(w . 18,20,22 e 26). A s convulsões, o e sp u m a r pela boca, o ran g er d o s d en tes
e a rigidez seguidos pela p e rd a de consciência são os sintom as de convulsões
tônico-clônicas (grande m al), co rre ta m e n te identificada c o m o epilepsia em
M ateus 17.15." A term inologia de M arcos n ão é tão objetiva d o p o n to de vista
da m edicina q u a n to a d e M ateus, m as sua descrição d o d ra m a d o m en in o e da
agonia d o pai é m ais vivida e m ais solidária.99100 A té m e sm o o s discípulos são

igreja posterior tenha inventado uma história que retrata os apóstolos em uma luz
negativa. Para dois estudos que defendem a historicidade essencial de 9.14-29, veja
P.J. Achtemeier, “Miracles and the Historical Jesus” , CBQÒl (1975), p. 471-91; e,
em especial, a análise abrangente de G. Sterling, “Jesus as Exorcist: A n Analysis
o f M atthew 17:14-20; Mark 9:14-29; Luke 9:37-43a” , CBQS5 (1993), p. 467-93.
99 Mateus 17.15 identifica a aflição do menino com o epilepsia, mas 17.18,19 também
a chama de daimonion (“dem onio”). Mais uma vez, o relato de Mateus pode ser
explicado assumindo seu uso de Marcos, pois a referência à epilepsia representa
uma melhoria da narrativa em Marcos, ao passo que a retenção do demônio
preserva a leitura original de Marcos. Para outras evidências do uso de Mateus da
versão da narrativa de Marcos, veja Sterling, “Jesus as Exorcist” , CBQ 55 (1993),
p. 477.
11)0 Um longo relato de um m enino possuído p o r dem ônio em Filóstrato, Vida de
Apolônio 3.38, provê um contraste instrutivo com Marcos 9.14-29. N o relato de
Filóstrato, o demônio é a principal preocupação; e a criança possuída, incidental.
Assim, Filóstrato provê uma história completa do dem ônio e das circunstâncias
M a rc o s 9.19-20 350

im p o te n te s d ian te d a co n d içã o d a criança. M ais u m a vez em M arcos, q u an d o


tod as as esperanças h u m an as são exauridas, é possível ter esperança em Jesus.

1 9 ,2 0 Jesus, n o re la to d o pai, exclam a exasperado: “ Ó geração incré-


dula, até q u a n d o estarei c o m vocês?” A co n fu são e d escrença da m ultidão
faz paralelo c o m a c o n fu sã o e descrença d o s discípulos (8.14-21). Todavia,
apesar da re p re e n sã o an te rio r d e Jesus, o p re se n te ju lg am en to de Jesu s não
p arece incluí-los. A ex p ressão “geração in créd u la” é u m a referência osten-
siva à m u ltid ão , à p a rte d o s discípulos, pois o te rm o “geração ” (gr. gened)
o c o rre cin co vezes em M arco s (8.12 [2x],38; 9.19; 13.30), m as n u n ca com
referên cia aos discípulos. E m b o ra os discípulos sejam insuficientes para a
tarefa de cu rar o m en in o p o ssu íd o p o r d em ô n io s (w . 18,28), Jesu s n ão os
critica. A inabilidade é apenas um a lim itação, n ã o u m a falha, c o m o a dureza
de co ração (3.5; 6.52) e a c o m p re en são equivocada (8.14-21). A m ultidão, no
en tan to , é incluída n essa últim a repreensão. E esse lam en to de Jesu s é um a
rem iniscência d o s lam en to s p ro fético s co n tra a nação d escren te de Israel (D t
32.5,20; N m 14.11; Is 65.2).
A s dúvidas e descren ças da m ultidão, todavia, n ão d eterm in a m a dis-
p o sição n e m a h abilidade d e Jesu s p ara agir. A o co n trário , a au to rid ad e da
m issão e p esso a d e Jesu s exercem influência so b eran a no s assuntos hum anos:
“ Seja D e u s v erd ad eiro , e to d o h o m e m m e n tiro s o ” (Rm 3.4). Jesu s ch am a o
m enino. Q u a n d o a criança se ap resen ta d ian te dele, a co n d ição d escrita pelo
pai se to rn a realidade d ian te d o s o lh o s d e Jesus: o m e n in o é to m a d o p o r
con vu lsõ es e lan ça d o n o chão, c o n to rc e n d o -se e esp u m an d o pela boca. O
ataq ue n ã o é m era coincidência, p o is M arcos revela que q u an d o “ o espírito
viu Jesus, im ed iatam en te c a u so u u m a co n v u lsão n o m e n in o ” . O m en in o
p o d ia d e fato ser epilético, m as a epilepsia é re tratad a c o m o a fachada o u o
veículo de u m a fo rça m alévola. A linguagem se ap ro x im a de ep isódios ante-
riores n o ev an g elh o em q u e o d em o n íac o irro m p e em ataques n a p resen ça
de Jesu s (1.26; 5.6-10) o u q u a n d o os fe n ô m e n o s naturais são co n ceb id o s
c o m o h o sp ed e iro s d a o p o sição d em o n íac a (4.39; 6.48). O p re se n te ep isó d io

contribuindo para sua habitação na criança. Contudo, a criança só tem interesse


por ser a hospedeira do demônio. N a verdade, a criança não está nem mesmo
presente, mas é exorcizada por uma carta de Apolônio! A história de Marcos,
por contraste, não está essencialmente preocupada com o demônio, mas com a
necessidade humana, ou seja, a condição infeliz do menino e a ansiedade do pai.
Filóstrato só publicou seu trabalho no início do século III d.C., assim os relatos
do evangelho não podem ter sido influenciados p o r essa história.
351 M a rc o s 9.21-24

testifica m ais u m a vez d a m issão de Jesu s p ara c o n fro n ta r e d e rro ta r os po-


deres d o m al, q u er m an ifestad o s nas p en ú ltim as co n d içõ es q u er nas causas
derradeiras. Jesus, d esd e a ten tação d e Satanás n o d e se rto (1.12,13), aparece
co m o o “ m ais p o d e ro so ” (1.7) cuja principal m issão é am arrar o h o m em fo rte
e lib ertar os cativos (3.27; l j o 3.8). O re su ltad o inicial da p resen ça efetiva
de Jesus, n o en tan to , n ão é a paz, m as o co n flito ; n ão a ressurreição, m as o
sofrim ento. A p e rc e p ç ão de E d u a rd S chw eizer é co rreta: “ Isso indica co m o
a p resen ça d e D e u s p o d e p ro d u z ir tem p e sta d e e estresse antes q u e qualquer
coisa c o n stru tiv a p o ssa ser alcançada” .101

21-24 A im p o rta n te conversa en tre Jesu s e o pai em 9.21-24 é om itida


nas v ersões de M ateu s e Lucas da narrativa. Pois, p ara esses dois últim os
evangelhos, a relevância da narrativa é o m ilagroso, ao p asso que, p ara M ar-
eos, o m ilag ro so v em an tes da fé; e a fé an tes d o discipulado. P ara M arcos,
a relevância de Jesu s n ão p o d e ser to ta lm e n te tran sm itid a p elo 0 que ele faz,
mas só p o r quem ele é. É possível ficar m arav ilh ad o co m u m m ilagre, m as só
é possível co n fiar e crer em um a pessoa.
A p ereg rin ação trêm u la d o pai p ara a fé co m eç a co m u m sim ples diálogo
desen cadead o pela p erg u n ta de Jesus: “ H á q u a n to te m p o ele está assim ?” A
questão p e rm ite q u e o pai c o n te sua história de q u e o m en in o é afligido desde
a infância, c o m efeito quase fatal. C o n tu d o , essa p e rg u n ta p erm ite que o pai
abra seu coração. A p erg u n ta de Jesu s co n v id a o pai a vir a ele co m o um a
pessoa to tal, c o m os fatos d u ro s e co m as esp eran ças hum anas. O pai arrisca
sua existência em Jesus: “ M as, se p o d es fazer algum a coisa, tem com paixão
de n ó s e aju d a-n o s” . O original g reg o traz: “A ju d e-n o s e ten h a com paixão
de n ó s ” . A ajuda é o o b je to d o p ed id o d o pai, m as a fo n te dessa esperança
está enraizada n a co m p aix ão de Jesus. A palavra grega p ara “ co m p aix ão ”
(.plangnivgsthai) a p o n ta p ara as reservas m ais p ro fu n d a s d e Jesu s (veja m ais
sobre o te rm o em 1.41).
Jesu s p o d e expulsar forças dem oníacas co m um a palavra, m as a evocação
da fé é u m assu n to m u ito m ais duro. A d esc ren ç a em Jesus, in d ep en d e n te-
m ente d e q u e m a m an ifeste — se m estres d a lei, m u ltidões, discípulos ou
pais d ese sp erad o s — , re p resen ta u m a m aio r o p o sição e u m obstácu lo m ais
sério q u e to d o s os exércitos da m o rad a d o s d em ô n io s. O pai tem apenas a
fé in cip ien te d o ta m an h o d e u m g rão d e m o stard a. “ Se po d es?” , re sp o n d e

1111 The Good News According to Mark, p. 188.


M a rc o s 9.25-27 352

Jesus, su rp reso !102 O p ro b le m a n ão é relutância o u m á v o n tad e divinas (1.40)


n em a inabilidade divina, m as a d escren ça hum ana! O que é im possível para
os seres h u m a n o s é possível p ara D e u s (10.27). “T u d o é possível àquele que
crê.” O q u e Jesu s o rd e n a d o pai é o q u e ele o rd e n o u an tes d a m u lh er com
h em o rrag ia (5.34) e d o dirigente da sinagoga (5.36). A f é é z única p o n te entre
a fragilidade h u m a n a e a toda-suficiência d e D e u s. O m eio p o r in term éd io do
qual a exousia d e Jesus, sua au to rid a d e divina e legitim idade, to rn a-se eficaz
n a v id a h u m a n a é a fé. A afirm ação que “ tu d o é possível àquele que crê”,
n o en ta n to , deve p arece r ao pai u m a esp eran ça ilusória, pois a fé que precisa
para cu rar seu filho é a fé q u e ele n ã o tem — o u é isso que acha.
A v erd ad eira fé está sem p re co n sc ie n te d e q u ão p eq u e n a e inadequada
ela é. O pai to rn a-se u m te m e n te a D e u s n ão q u a n d o reú n e u m a quantidade
suficiente d e fé, m as q u a n d o arrisca tu d o c o m aquela p o u c a fé q u e tem ,
q u an d o su b m e te su a insuficiência à v erd ad eira suficiência d e Jesus: “ Creio,
ajuda-m e a v en c er a m in h a incredulidade!” O risco da fé é m ais cu sto so ao
pai q ue tra z er o filho a Jesus, p o is ele p o d e falar so b re seu filho, m as tem de
“ clam ar” (gr. kra^eiri) p o r fé.103 A v erd ad eira fé n ã o co n fia em si m esm a nem
julga Jesu s pela fragilidade d e seus seguidores. O lh a p ara o “m ais p o d e ro so ”
(1.7) qu e fica n o lugar d e D e u s, cuja palavra autoritativa restaura a vida a partir
d o caos. A v erd ad eira fé é a ab e rtu ra in co n d icio nal a D eu s, u m a decisão em
face de tu d o em co n trá rio d e q u e Jesus é capa

2 5 2 7 ‫ ־‬Jesu s, v e n d o a m u ltid ão se re u n ir e n ã o d ese ja n d o fazer um a


d em o n stra ç ão d e seu p o d e r, “ re p re e n d e u ” (gr. epitimari) e “ o rd e n o u ” (gr.
epitasseiri) o e sp írito m alig n o a d eix ar o m e n in o e jam ais re to rn ar. E sses

102 A tradição do manuscrito grego é muitíssimo diversa no versículo 23. A resposta


concisa de Jesus perturbou os copistas que acrescentaram “crer”, ou seja, “Se
podes crer, tudo é possível ao que crê” (ARC). Essa adição altera totalmente o
sentido da resposta. Ao passo que Jesus, na m elhor tradição (seguida pela NVI),
repete as palavras do pai a fim de lembrá-lo que com Deus todas as coisas são
possíveis, e as várias alterações apresentam um moralismo fatigante, exigindo do
pai o que já confessou que não tem — maior fé. Veja Metzger, TCGNT, p. 100.
103 O “exclamou” da N V I não é suficientemente enfático. Kratçein aparece onze
vezes em Marcos, e em nenhum a dessas ocorrências pode ser traduzida com
menos ênfase que “gritar” ou “clamar” . O pai, de acordo com vários manuscritos
tardios, “clamou comlágrimai\ intensificando, portanto, sua explosão emocional.
Todavia, essa adição não é provavelmente original, pois não há motivo adequado
para explicar por que um copista a eliminaria. Veja Metzger, TCGNT, p. 100.
353 M a rc o s 9.28-29

dois v erb o s ex p ressam a au to rid ad e de Jesus, em p articu lar so b re as forças


dem o níacas.104 E m c o n tra ste co m as expulsões d e d em ô n io s anteriores em
1.25,26 e 5.6-10, o d em o n íac o se expressa v io len tam en te, e m b o ra de fo rm a
n ão m ais b em -su ced id a, c o n tra Jesus. O esp írito m aligno ab a n d o n a o m eni-
n o em u m a co n d içã o sim ilar à m o rte, e os o b se rv a d o res acham q u e ele está
m o rto . A in te rv e n ç ão de Jesus, em o u tras palavras, to rn o u as coisas piores, e
n ão m elho res. A m o rte d o m en in o se d eve à fé in cip ien te d o pai? A salvação
é u m p ro c e sso em q u e a situação tem algum as vezes que ficar p io r antes que
fique m e lh o r (e.g., Ê x 5.21— 6.1). O p rim eiro te ste d a fé d o pai é co n fiar na
palavra e p ro m e ssa só d e Jesus, e n ão n as co n seq u ên cias em píricas im ediatas
da situação. Jesus, a seguir, (lit. em grego) “ to m o u -o pela m ão e o levantou, e
ele ficou em p é ” (veja em 5.41). O s discípulos tin h am acabado de p e rg u n ta r o
que significava ser lev an tad o d o s m o rto s (v. 10). Jesus, ao levantar e restau rar
o m e n in o catatô n ico , p ro v ê a p rim eira lição ob jetiva so b re o sen tid o de sua
p ró p ria m o rte e ressurreição.

28,29 A h istó ria se e n c erra co m Jesu s se re u n in d o em particu lar co m os


discípulos em u m a casa. N o evangelho d e M arcos, as reu n iõ es em particular
nas casas são tip ic am en te cenários p ara m ais in stru ç ã o e revelação p ara o be-
nefício d o s discípulos.105 N a p re sen te in stân cia, o s discípulos p erg u n ta m p o r
que n ão co n seg u iram expulsar o d em ônio. “ E ssa espécie só sai pela o ração ” ,
diz Jesus.106 E ssa é a prim eira injunção para a oração n o evangelho de M arcos.
H á três referências a Jesu s o ra n d o em M arco s (1.35; 6.46; 14.32-39); em cada
um a delas, ele está só e en fren ta as co n ju n tu ras críticas em seu m inistério (veja
mais em 6.46). C aso co n trá rio em M arcos, h á apenas referências passageiras à

164 Sobre epitiman (“repreendeu”), veja 4.39; sobre epitassein (“ordeno”) veja 1.27;
9.25.
105 H á quatro ocorrências em Marcos em que o ensino público se torna instrução
privada para os discípulos: 4.1,2,10; 7.14,17; 9.14,28; 10.1,10. Para mais discussão
do tema da instrução privada em Marcos, veja D. B. Peabody, Mark as Composer,
N ew Gospel Studies 1 (Macon: M ercer University Press, 1987).
106 Um grande núm ero de manuscritos acrescenta “oração ejejuni' (P45 ‫ א‬A C D K
L W X Δ Θ Π Ψ). O bservando uma tendência textual similar em 1Corintios 7.5,
Metzger ( TCGNl’ p. 101) atribui o acréscimo para enfatizar o jejum na igreja
primitiva. Considerando-se o ensino negativo anterior de Jesus sobre o jejum
(2.19), seria surpreendente se o jejum fosse incluído nesse ensinamento dele
aqui. Apesar da volumosa tradição dos manuscritos em favor do uso do termo,
os fatores internos argumentam contra a originalidade de ejejum.
M a rc o s 9.28-29 354

o ração co m o u m ele m e n to c o n stitu in te d e fé. A o ração é re co m en d ad a para


os discípulos p ara o fo rtalecim en to espiritual c o n tra a tentação (13.33; 14.38).
O u tra s referências in clu em o ra ção c o n tra circunstâncias adversas (13.18),
alertas c o n tra a o ste n ta ç ão e o rg u lh o n a o ra ção (12.40) e o p ro n u n c ia m en to
de Jesus d e q u e o p ro p ó s ito d o tem p lo é a oração (11.17). A passagem mais
im p o rta n te d ev o tad a à o ração em M arcos é o frag m en to em 11.24,25 em que
Jesu s ensin a q u e a o ração tem d e ser a c o m p a n h ad a pela fé (v. 24) e p elo per-
dão (v. 25). A p re se n te p assag em tam b ém ap resen ta a o ração n o co n te x to da
fé, co n e c ta n d o -a c o m o p o d e r espiritual. G ru n d m a n n o b serv a co rretam en te
qu e “ a oração é a fé v o ltad a p ara D e u s ” .107 A oração é o foco e direção d a fé
em p ed id o s específicos a D eu s. T an to a fé q u a n to a o ração testificam q u e o
p o d e r espiritual n ã o está n o indivíduo, m as só em D e u s, e am bas esperam
em co n fian ça n a p ro m e ssa dele d e salvação.
U m tem a re c o rre n te n essa passagem é a in ad eq u ação d os discípulos em
m inistrar co m Jesus. O serviço n a c o m u n h ão co m C risto é caracterizado pela
co n sta n te consciência d e in ad eq u ação d o servo. Jesus, c o n fo rm e essa história
ilustra, ch am a os discíp u lo s p ara d ese m p e n h a r tarefas além das habilidades
deles, e o fa to d e as tarefas su p lan tare m as habilidades deles é evidência de
que o m inistério é d e C risto, e n ã o deles. A in ad eq uação do s discípulos não
é falha deles, n e m d eve te r o efeito d e p reju d icar a fé deles n em a co m u n h ão
co m C risto. A n tes, a in ad eq u a ção leva os discípulos à oração, o d o m de D e u s
p ara eles e o u tra fo rm a d e c o m u n h ã o co m Jesu s c o m o o S en h o r deles.

1,17 G rundm ann, Das Evangelium nach Markus, p. 256.


capítulo nove

Mero discipulado
M A R C O S 9 .3 0 5 0 ‫־‬

À p rim eira vista, o m aterial nessa u n id ad e p arece ser urna colcha de


retalhos d iversos d e dito s n ão relacionados q u e n ã o têm u m tem a unificador.
C ontud o , u m exam e mais m inucioso revela u m tem a subjacente d e hum ildade
e so frim en to d e m o n stra d o s p o r Jesu s, em o b ra s e ações, en q u a n to ele está
com os discípulos a cam in h o para Jeru salém . Jesu s estabelece o tem a p o r
m eio d e u m se g u n d o lem b re te de sua rejeição e m o rte im in en tes (9.30-32).
Ele busca isso p o r in term éd io de lições cuja in ten ção é inculcar um a atitude de
hum ildade n o s D o ze: alertas c o n tra o o rg u lh o e um a ex o rtação para receb er
os p e q u e n o s e o s d estitu id o s de p o d e r ( w . 33-37); apelos p o r clem ência e
m isericordia p ara c o m os estrangeiros e e stra n h o s ( w . 38-41); alertas co n tra
levar a “ tro p eç ar u m destes peq u en in o s” (v. 42); e a necessidade de sofrim en to
no cu m p rim e n to d o R eino de D e u s ( w . 43-50). E ssa colagem d e in struções
e lições objetivas fo rm a u m co m en tá rio e ste n d id o s o b re o ch a m a d o de Jesu s
para a au to n eg a ção e o to m a r sua cruz (8.34), as quais fo ram ratificadas pelo
ultim ato d ivino para q u e os discípulos: “ O u ç am -n o !” (9.7).

A S E G U N D A P R E D IÇ Ã O D A P A IX Ã O ( 9 . 3 0 3 2 ‫)־‬

A seg u n d a p re d iç ão d a paixão ap resen ta u m a u n id ad e d o m aterial se es-


ten d en d o de 9.30 a 9.50. A u n id ad e é c o m p o sta d e várias vinhetas nas quais
Jesus foca seu en sin o d ecid id am en te n o s discípulos. A p red ição da paixão
anuncia n ã o só o d estin o im in en te de Jesus; é ta m b é m u m exem plar da vida
de serviço p ara a qual ele cham a seus discípulos.

30 “ E les saíram daquele lugar e atravessaram a G alileia. Jesus não queria


que n in g u ém so u b esse o n d e eles estavam ” (c f L c 17.11; J o 7.1). N ó s, co m o
M a rc o s 9.30-31 356

leitores, tam b ém n ão sab em o s ex atam en te o n d e eles estavam .1 O tex to de


9.30 parece p re s su p o r u m a jo rn a d a co m eç an d o fora d a G alileia q u e seguiu
através da Galileia. Isso se ajusta c o m a localização de 8.27— 9.30 n a região
de C esareia d e Filipe (8.27) e fo rtalece a d ed u ção d e que o m o n te H e rm o m
era o m o n te d a T ransfiguração.2
E o versículo 9.30 é a ú ltim a referên cia à G alileia em M arcos até depois
d a paixão e re ssu rreiçã o (14.28; 16.7). A G alileia é o c e n tro d e o p eraçõ es de
Jesus, o local o n d e ele c h a m o u os discípulos e e n sin o u gran d es m ultidões. H á
um a certa m elancolia n a o b serv açã o de q ue Jesu s está agora apenas p assando
através d o local o n d e já vivera, p o is a G alileia já n ão está m ais em sua visão.
A s razõ es p ara a jo rn ad a g u ard ad a e an ô n im a n ã o são m en cio n ad as, m as não
são difíceis d e im aginar. A o p o sição d e H e ro d e s A ntip as e das autoridades
judaicas n ão arrefeceu . O anseio d e Jesu s p o r privacidade tam b ém p arece ser
ditado p o r seu desejo d e ensinar a única verdade essencial de seu m inistério, ou
seja, q ue o “ F ilh o d o h o m e m está p ara ser en tre g u e nas m ão s d o s h o m e n s” .
P o r fim , Jesu s está “n o cam in h o ” p ara Jeru salém (veja m ais so b re a expressão
em 8.27). C ada u m a das três p red içõ es d a paixão o c o rre n o c o n te x to dessa
ex p ressão (8.27; 9.33,34; 10.32), assin alan d o q u e Jesu s tiro u seu fo co da
G alileia e v o lto u sua face (tam b ém L ucas 9.51) p ara a direção de Jerusalém .

31 A s três pred içõ es d a paixão p o r M arcos (8.31; 9.31; 10.33,34) com -


p artilh am u m a e stru tu ra d e três partes: (1) o F ilh o d o h o m e m tem de sofrer;
(2) ser m o rto ; e (3) d ep o is ser ressuscitado ap ó s três dias. A seg u n d a predição
é a m ais sim ples e a m e n o s específica das três. E la co m eça co m u m jo g o de
palavras, q u e seriam m ais claras em aram aico falado que em grego: o “ Filho
d o h o m e m está p ara ser en treg u e nas m ão s dos h o m e n s” . O te rm o “ h o m e m ”
é u sad o em d o is sen tid o s evidentes: aquele q ue h ab ita co m o h o m e m entre

1 E. Lohmeyer, Das Evangelium desMarkus, p. 191 -92, sugere que o segredo do local
no versículo 30 corresponde com a instrução privada de Jesus aos discípulos. A
sugestão seria mais persuasiva se não fosse pelo fato de que Marcos com frequência
fornece apenas vagas descrições geográficas.
2 A principal alternativa para o m onte H erm om com o o lugar da transfiguração é
o m onte Tabor. N o entanto, o versículo 30 parece argumentar contra o monte
Tabor, um a vez que este fica na Galileia. O m onte Tabor, além disso, fica no sul
do Galileia, o que exigiria que Jesus e os discípulos voltassem cerca de pouco mais
de trinta quilômetros na direção norte para Cafarnaum no versículo 33. Veja A.
Schlatter, Der Evangelist Matthaus, p. 537; M.-J. Lagrange, Evangile selon Saint Man,
p. 243.
357 M a rc o s 9.32

eles, u m ser h u m a n o em m eio a o u tro s seres h u m an o s, será rejeitado p o r


eles; d e fato, aquele q u e se en tre g a pelo s o u tro s m o rre rá na m ão deles. N a
p rim eira predição, a resp o n sab ilid ad e p elo so frim e n to de Jesu s é atribuída
aos líderes judeus — “pelo s líderes religiosos, pelos chefes d os sacerdotes
e pelos m estres d a lei” (8.31). T odavia, n a seg u n d a p red ição os inim igos do
F ilho d o h o m e m n ão são os líderes judeus, m as to d a a hum anidade. O s seres
h um anos farão “ tu d o o que quiserjem ]” co m o F ilho d o h o m em co m o fizeram
co m E lias (= J o ã o B atista, 9.13). “A d esu m an id a d e d o h o m e m p ara co m o
h o m e m ” fica ap a re n te sem su b terfú g io s n o sécu lo X X , m as certam en te não
era m en o s d e su m a n a n a ép o c a d e Jesus. E possível re co rd a r o m e d o d e D avi
de cair sem m itigação nas m ão s d a h u m anidade: “ É g ra n d e a m in h a angústia!
P refiro cair nas m ão s d o S e n h o r , pois g ra n d e é a sua m isericórdia, a cair nas
m ãos d o s h o m e n s ” (2Sm 24.14).
N a seg u n d a predição, D e u s é envolvido d e u m a fo rm a n ão ap aren te na
prim eira predição. A palavra g rega p ara “ trair” ta m b ém p o d e significar “ ser
entreg u e” . A v oz passiva d o v erb o n ão revela seu sujeito. P arece u m “ passivo
divino” , o u seja, u m a referên cia a D e u s sem u sar o n o m e d e D e u s (p o r m ed o
de m aculá-lo). Se esse fo r u m passivo d ivino tran sm ite que D e u s está entre-
gan d o seu F ilh o à hu m an id ad e. O versículo reflete a linguagem d o S ervo de
lavé em Isaías 53.6,12 (LX X) e indica q ue Jesu s m o rre rá pelo s p ec ad o s dos
outros. “ É só esse sen tid o que a p ro clam ação cristã e n c o n tra n a m o rte de
Cristo: seu d estin o incom preensível é para o benefício daqueles em cujas m ãos
ele m o rre u , e esse benefício está de a c o rd o co m a v o n ta d e salvífica de D e u s
para a h u m a n id a d e” .3 C o n tu d o , aqui, c o m o em o u tro s trech o s da E scritura,
a v o n tad e d e D e u s n ã o absolve a h u m an id ad e d e suas responsabilidades. “ O
Filho d o h o m e m vai, c o m o está escrito a seu respeito. M as ai daquele q u e trai
o F ilho d o h o m em ! M elh o r lhe seria n ão h av er n a sc id o ” (14.21).

32 E m b o ra M arcos se refira co m freq u ên cia a Jesu s c o m o m estre, ele ra-


ram ente relata o que Jesus ensinou. E ssa p eríco p e, n o entanto, é u m a exceção.
Nas prev isõ es d a paixão, Jesu s direciona seu en sin a m e n to p ara u m curso e
plano inabaláveis: é a v ontade de D eu s para o F ilh o d o h o m em sofrer, m o rrer e
ser levantado. Jesus precisa ensinar isso aos discípulos. C ontudo, um a vez mais,
eles n ã o c o n se g u em ap re e n d e r esse ensino: “ M as eles n ão en tendiam o que
ele queria d izer e tin h am receio de p erg u n ta r-lh e” . O te rm o g reg o agnoein po-
deria se r trad u z id o p o r: “ E les eram ig n o ran te s” o u “ o sen tid o lhes escap o u ” .

3 P. J. Achtemeier, “Mark 9:30-37” , 7/1/30 (1976), p. 180.


M a rc o s 9.33-34 358

E sse é o ú nico u so d e agnoein em M arcos, e é u sad o p ara aqueles c o m mais


acesso e o p o rtu n id a d e p ara c o n h e c e r— os discípulos! E les tam b ém tinham
“ receio ” , u m a palavra q u e ta m b é m o c o rre rá n a terceira p red ição da paixão
(10.32). A iro n ia d e M arco s é rica e pesada: q u a n d o a palavra de D e u s é por
fim p ro ferid a, a re sp o sta h u m a n a — até m esm o d e seguidores selecionados
a d ed o — é de ig n o rân cia e tem o r. C o m o os discípulos têm dificuldade em
co m p re en d er, c re r e seguir. Se tem o s dificuldade em im aginar a teim osia dos
D o z e , e n tã o te m o s d e fazer esta p erg u n ta: q u an to s d e n ó s v erdadeiram ente
co m p re e n d e m , creem e seguem Jesus? O g rau d e c o m p re en são equivocada
d o s discípulos fica ainda m ais ap a ren te n a h istó ria seguinte.

... E A S E G U N D A C O M P R E E N S Ã O E Q U I V O C A D A ( 9 - 3 3 3 7 ‫)־‬

A localização dessa p eríc o p e é u m indício d e seu sentido. N a segunda


p re d iç ã o d a p a ix ã o acim a (9 .30-32), J e s u s fa lo u s o b re a h u m ilh a ç ã o e
sofrim ento d o F ilho d o h om em . A qui, M arcos registra um debate em m eio aos
discípulos so b re q u em é o maior! A justaposição das duas perícopes revela um
co n tra ste g rita n te en tre a h u m ilh ação de Jesu s e o desejo do s discípulos p o r
distin ção e reco n h ecim en to . U m c o n tra ste sim ilar, n a verdade, está p resen te
em to d as as três pred içõ es d a paixão. P ed ro re p re e n d e Jesu s ap ó s a prim eira
p red iç ão d a p aixão (8.31), re p re e n sã o essa estim ulada p elo p re ssu p o sto de
qu e o m essiad o ac arreta privilégio, e n ão so frim en to. A terceira p red ição da
paixão (10.33,34), d a m esm a fo rm a , é seguida p elo p e d id o de T iag o e João
p ara se assen tarem co m C risto n a glória (10.35-45). E m to d as as três predi-
ções da paixão, Jesu s fala so b re a n ecessidade d e sua rejeição, so frim en to e
m o rte ; e ap ó s to d as as três p red içõ es da paixão, os discípulos ventilam suas
am bições p o r p o sição e prestígio. Jesus fala d o en treg ar sua vida; os discípulos
falam d e satisfazer a deles. E le relata o p re ç o d o discipulado; eles co n tam
os benefícios desse discipulado. O s discípulos ain da têm de a p re n d e r que as
reco m p en sas d o d iscip u lad o só v êm c o m o co n seq u ên cia d o seguir a C risto
n o cu sto so ca m in h o p ara Jeru salém .

33 ,3 4Jesus, pela últim a vez n o evangelho d e M arcos, reto rn a a C afarnaum


(1.21; 2.1). A casa n a qual ele e n tra é ap resen tad a em g re g o co m o artig o defi-
nido, o q ue indica u m a casa em particular, talvez a de P ed ro (1.29) .4 A s casas,

4 Esse ponto, no entanto, não deve ser indevidamente imposto, pois em Marcos
oikos (casa) aparece em geral sem artigo (2.1; 3.20; 7.17; 9.38), ao passo que oikia
(casa) tende a ter artigo (1.29; 2.15; 9.33; 10.10; em bora 7.24 não tenha artigo).
359 M a rc o s 9 .3 3 3 4 ‫־‬

em M arcos, são co m frequência cenários d e in stru ç ã o e revelação privadas.5


O cen ário da casa, p o r conseguinte, d e se m p e n h a u m p ap el m ais am plo do
tem a de M arcos, “ o s q ue p erte n c e m ao círculo m ais ín tim o e os de fo ra” , em
que Jesu s escolhe os cenários privados p ara en sin ar o círculo m ais ín tim o o
que as m ultid õ es n ão co n seg u em c o n h e c e r e co m p re en d er.
Jesus, assim q ue en tra n a casa, p erg u n ta aos discípulos: “ O que vocês
estavam d iscu tin d o n o cam in h o ?” O d iscu rso d ireto n a seg u n d a p esso a d o
plural parece p reserv ar as palavras originais d a p erg u n ta que Jesus fez para eles.
O tex to d e 9.34 é a explicação editorial de M arco s p a ra a p e rg u n ta de Jesus
e p o d ería co rre ta m e n te ser co lo cad o e n tre p arên teses. “M as eles guardaram
silêncio.” A descrição d e M arcos d o silêncio d o s discípulos é ex atam en te a
m esm a que seu relato d o silêncio dos fariseus n a cu ra d o h o m e m co m a m ão
d efo rm a d a e m 3.4 (gr. hot de esiõpõti). T a n to os fariseus q u a n to os discípulos
são silenciados d ian te d e Jesu s p o r causa d a cu lp a e v erg o n h a, assim co m o
am bos os g ru p o s são culpados d e du reza d e co raçã o (3.5; 6.52). C o m o é
p eq u en a a d iferen ça en tre os discípulos e os o p o n e n te s d e Jesus, até m esm o
nesse p o n to d o m in istério te rre n o dele.
O silêncio d o s discípulos é u m a co n fissão sem palavras, “ p o rq u e n o ca-
m inh o haviam discutido so b re q u em era o m aio r” .6 A p reo cu p ação deles com
a p o sição e categ o ria está de ac o rd o co m o q u e co n h e c e m o s d o judaísm o em
geral. O s escrito s rabínicos co m en tav am co m freq u ência so b re a o rd e m dos
assentos n o Paraíso, p o r exem plo, e arg u m en tav am que o justo se sentaria
mais p ró x im o d o tro n o de D e u s até q ue os anjos.7 A o rd e m d a p o sição para
se se n tar n a ad o raçã o e refeições, o u au to rid a d e n a co m u n id ad e, o u ainda
na fo rm a c o m o lidar c o m os inferiores e su p erio res era vista co m o p re p a ­

E possível argumentar que 1.29, 2.15 e 9.33, sem exceção, referem-se à casa de
Pedro, mas 10.10 também tem artigo, e não pode se referir à mesma casa.
5 2.1,2; 2.15,16; 3.20; 4.10 (?); 7.17,24; 9.28,33; 10.10; 11.17 (?), 14.3. Para mais
discussões sobre casas, veja em 2.2.
6 Vários manuscritos gregos (A D Δ) om item “no cam inho” no versículo 34, evi-
dentem ente porque parecia supérfluo à luz de sua ocorrência no versículo 33. A
abrangente tradição textual, no entanto, argumenta por sua inclusão.
7 Str-B 4/2.1,130-1,165. E m resposta à pergunta: Quem é o maior no Reino de
Deus?, alguns mestres da lei concordaram em honrar o justo e o reto (também
SI 11.7). O utros consideravam o conhecim ento da Torá ou prádca de boas ações
como ocupando o primeiro lugar, e outros ainda concordavam que o primeiro
lugar é para os mestres que levam os fiéis à retidão e justiça por intermédio do
ensino. Havia concordância geral, no entanto, que os márdres eram os maiores
no Reino de Deus (Str-B 1.773).
M a rc o s 9.35 360

ração para a o rd e m e te rn a p o r v ir (tam b ém SI 68.24,25). O tex to Governo da


comunidade e m C u n rã, d a m esm a fo rm a , p rescrevia a o rd e m ap ro p riad a da
p rocissão p a ra e n tra r n o g o v ern o . P rim eiro os sacerdotes, d ep o is os levitas
e, “ em terceiro lugar, to d as as p esso as devem e n tra r n o g o v ern o , u m a após a
o utra, em m ilhares, centenas, cin q u en tas e dezenas, p ara q u e todas as crianças
de Israel p o ssa m c o n h e c e r sua p o sição n a c o m u n id ad e de D e u s em confor-
m idade co m o p lan o etern o . E n in g u ém d eve ser m o v id o p ara baixo nessa
hierarquia n e m ser m o v id o p ara cim a d e seu lu g ar” (1Q S 2.19-23).
“ P ara q u e to d o s o s filhos d e Israel p o ssam c o n h e cer sua posição.” Paulo,
em R o m an o s 10.3, acusa os judeus descren tes d e te n tarem o c u p a r sua “ po-
sição” p o r sua p ró p ria justiça. Isso ta m b é m é m ais im p o rta n te na m e n te dos
discípulos. E les a b so rv e ra m o v in h o d a hierarquia, p o sição e im p o rtân cia
p esso al e o im p o rta ra m p ara a co m u n h ã o co m Jesus. V erdade, a reticência
deles q u an d o p erg u n ta d o s so b re o assunto revela pelo m en o s u m a consciência
incipiente d a in co m p atib ilid ad e d e suas p ró p ria s am bições co m o cam inho
de Jesus. N ã o o b sta n te , e n ad a su rp re en d en te , a jo rn ad a para Jeru salém es-
tava in ten sifican d o as cham as das esperanças escatológicas e m essiânicas na
m e n te deles. C o m certeza, o rein o irro m p e ría em Jeru salém , co m Jesu s — e
eles c o m ele — c o m o o líder!

35 A s am b içõ es d o s D o z e p õ e m em p e rig o o re lacio n am en to deles com


Jesu s e o segui-lo. M arcos, em u m a ex p ressão in c o m u m , afirm a q u e Jesus se
se n to u e c h a m o u os D o z e p ara p e rto dele. S entar-se e in stru ir é p re ssu p o r a
p o stu ra d o m e stre au to ritativ o (12.41; M t 5.1; 23.2; J o 8.2). Jesu s re sp o n d e à
fantasia d o s D o z e co m u m p ro n u n c ia m e n to n o versículo 35, q u e ele reforça
p elo exem p lo n o s versículos 36,37. “ Se alguém q u iser ser o p rim eiro, será o
últim o, e serv o d e to d o s.” A ideia d e su b serv iên cia aos o u tro s é tão central
ao p e n sa m e n to d e Jesu s q u e foi le m b ra d o e re m e m o rad o em quase todas as
cam adas d o cristian ism o prim itivo.8 O m o d elo d e serviço e h u m ilh ação que

8 Marcos 10.43,44; Mateus 20.26,27; 23.11; Lucas 22.26; Filipenses 2.1,11; Epístola de
Policarpo aosFilipenses 5.2; PastordeHermas, Mandato 2.1; PastordeHermas, Semelhanças
9.29.3; Evangelho de Tomé22; Atos de Pedro 38. Sobre todo o conceito da humildade,
veja E. Schweizer, Erniedrigung undErhohung beiJesus undseinen Nachfolgem, ATANT
28 (Zürich: Zwingli Verlag, 1962). D izer que a ideia de humildade é central para
Jesus não é dizer que essa fosse uma atitude única dele. Vinte anos antes do minis-
tério de Jesus, o rabi Hillel disse: “Ao me rebaixar, me exalto, e ao me exaltar, me
rebaixo” (Str-B 1.774). Variantes da mesma ideia tam bém estavam presentes no
361 M a rc o s 9.36-37

Jesus ensina aos discípulos só p o d e ser o u v id o n o ca m in h o p ara a hum ilhação


em Jeru sa lém — se é q ue p o d e ser ouvido. E m n e n h u m p o n to o cam inho
de Jesu s diverge m ais acen tu ad am en te d o ca m in h o d o m u n d o q u e so b re a
questão d a g ra n d e za e pro em in ên cia, m as ele as redefine. O desafio é ser
grand e em coisas im p o rta n te s p ara D eus. N a d a é m aio r aos o lh o s de D eus
que o do ar, e n e n h u m a v o cação p ro v ê a o p o rtu n id a d e p ara se d o a r m ais que
a d o serv o (10.43).
A palavra p ara servo é diakonos, a palavra g re g a co m u m p ara serv ir a
m esa (Lc 17.8; J o 12.2; A t 6.2). Isso se re fere a u m a devoção pessoal n o
servir em o p o sição ao serv ir c o m o escravo, c o n tra ta d o o u sacerdote, p o r
exem plo. O m u n d o g rego, em geral, co n sid erav a o serv ir c o m o algo in digno
que dim inuía a p esso a; “ C o m o u m h o m e m p o d e s e r feliz se tiver d e servir
alguém ?” (Platão, Górgias, p. 49 le ) ex p ressa a atitu d e básica em relação ao
serviço e servos. N o en sin o d e Jesus, ao co n trário , o co n ceito de serviço surge
de seu c o n c eito de am ar seu próxim o. O serv iç o ab n e g ad o d e Jesus injeta n o
co nceito d e serv o u m c o n te ú d o to ta lm e n te n o v o ; a p o stu ra d o serv o é um a
m anifestação visível d a realidade d o a m o r d e D eu s. A g ra n d eza n a eco n o m ia
de D e u s n ã o está reserv ad a p ara os talen to so s e privilegiados; antes, ela se
apresen ta a to d o s os tem en tes ao S en h o r nas tarefas m ais sim ples e hum ildes
no serv iç o aos o u tro s. N a realidade, q u a n to m ais c o m u m e m ais hu m ild e a
tarefa, m aio r a ação, p o is a hu m ild ad e é a essência daquele que disse: “ M as
eu e sto u en tre vo cês c o m o q u em serv e” (Lc 22.27). O serviço aos o u tro s é 0
principal ca m in h o p o r m eio d o qual os cristãos im itam e cu m p re m a m issão
de Jesu s (10.43-45).9

36,37 A p ro fu n d id a d e sim ples dessa v erd ad e é m elh o r q u an d o executada


que q u a n d o falada. Jesu s “ to m a n d o u m a criança, c o lo co u -a n o m eio deles.
Pegando-a n o s braços, disse-lhes: ‘Q u e m receb e u m a destas crianças em m eu
nom e, está m e re c e b e n d o ’ ” . E sta m o s eq u iv o cado s se im aginam os q u e as
sociedades gregas e judaicas enalteciam as v irtu d es d a infância c o m o o fazem
as sociedades m o d e rn a s em geral. A s sociedades co m altas taxas d e m orta-
lidade infantil e g ra n d e d em an d a de trab a lh o h u m a n o n ão p o d e m se d ar ao
luxo d e serem sen tim en tais em relação às crianças e jovens. N o judaísm o, as
crianças e as m u lh eres são em g ra n d e p a rte m e m b ro s auxiliares d a sociedade

helenismo. “N a vida pública, é preciso escapar [...] [do] desejo de ser o primeiro
e o m aior” (Plutarco, Moralia, p. 8).
9 Sobre o conceito de servo e serviço, veja H. Beyer, “diakonecT, TDNT2.81-87.
M a rc o s 9.36-37 362

cuja co n ex ão co m as co rre n te s sociais p re d o m in a n te s d ep e n d e d o s hom ens


(pai o u m aridos). A creditava-se q u e as crianças, em particular, “ ainda não
haviam c h e g ad o ” .10 E las eram b o as ilustrações de “ o ú ltim o ” (v. 35).
A co n clu são à qual Jesu s ch eg a co m a criança em seus b raço s é sutil e
su rp re en d en te . A criança n ã o é usada, c o m o se su p õ e co m frequência, com o
u m exem plo d e h u m ild ad e, m as c o m o u m exem plo das “ crianças” e pessoas
insignificantes a q u e m os seguidores de Jesus deveríam receber. “ Q u e m recebe
u m a destas crianças em m e u n o m e, está m e re ceb e n d o ; e q u em m e recebe,
n ão está apenas m e receb en d o , m as tam b ém àquele que m e en viou” (grifo do
autor). O s discípulos, p o r conseguinte, n ão devem ser co m o crianças, m as ser
c o m o Jesu s q u e as abraça. É Jesus, n ão a criança, q ue aqui d e m o n stra o que
significa ser “ serv o d e to d o s ” . D e u s aparece p ara o m u n d o n o s p eq u e n o s e
im p o ten te s, c o m o Jesu s descreve d e fo rm a tão d ireta na p aráb o la das nações
(M t 25.31-46). N o s s a re sp o sta ao fam into, sed en to , solitário, nu, d o e n te e
ap risio n ad o é n o ssa re sp o sta a D e u s, pois “ o q ue vocês fizeram a algum dos
m eu s m en o re s irm ão s, a m im o fizeram ” (M t 25.40). O ato m ais hum ilde
d e gen tileza desencadeia u m a reação em cadeia que m o v e o céu, pois o que
q u e r q u e seja feito a u m p e q u e n in o e d e sp ro v id o é feito p ara Jesus, e o que
q u er q ue seja feito p ara Jesu s é feito p ara D eus!

O R E IN O D E D E U S É M A I O R Q U E N O S S A E X P E R I Ê N C IA
D E L E (9 .3 8 -4 1)

O evangelho de M arcos, ap e sar de ser m e n o r que o de M ateus e Lucas,


ap resen ta em geral a v ersão m ais c o m p leta das histórias q u e tam b ém apare-
cem no s três sinóticos. Isso é v erdade n a p re sen te perícope. M ateus rep ro d u z
só o versículo final d o relato d e M arcos so b re a gentileza d o s discípulos de
Jesus (M t 10.42). Lucas ap resen ta um breve p e d id o de dois versículos p o r
tolerância (Lc 9.49,50). O re la to d e M arcos, n o en tan to , c o n té m u m a lição
co m p leta s o b re o discipulado. A q u estão é c o m u m p ara as com unidades
religiosas, em especial em seus estágios fundam entais: o que co n stitu i a ver-
dadeira m em b resia n a co m u n id ad e? O s p rim eiro s heb reu s q u estio n aram se
o E sp írito d e D e u s rep o u sav a so b re os dois h o m en s que n ão p erte n ciam aos
seten ta d esignados p elo s anciões d e M oisés (N m 11.24-30). A s co m u n id a­

10 O valor insignificante das crianças é sugerido pelo comentário de R. D osa ben


Harkinas na Mishná: “O sono da manhã, e o vinho do meio-dia, e a conversa
de crianças, e o sentar-se nas reuniões em casas de pessoas ignorantes tiram um
hom em do m undo” (m. Avofò.W). Ademais, as meninas com menos de doze anos
podiam ser vendidas com o escravas pelos pais [m. Ket. 3.8).
363 M a rc o s 9.38

des cristãs prim itivas d eb atiam os critérios q u e distinguiram os verdadeiros


p ro fetas d o s falsos p ro fe ta s ( l j o 4.2; Did. 11.8-12; Herm. Man. 11.7-16). O
desafio se ap resen ta até m esm o n a c o m u n h ã o ap o stó lica de Jesus. Será que
to d o s os discípulos p e rte n c e m aos D o z e , o u u m g en u ín o seg u id o r de C risto
existe fora desse n ú m ero ? O fu n d a d o r— c o m o aco n tece em m uitas tradições
religiosas, e ta m b é m n essa instância — m o stra -se m ais m en te ab e rta que as
inclinações sectárias d e seus discípulos.

38 A h istó ria c o m e ç a co m J o ã o , filho d e Z e b e d e u , relatan d o : “ M estre


[...] v im o s u m h o m e m e x p u lsan d o d e m ô n io s e m te u n o m e e p ro c u ra m o s
im pedi-lo, p o rq u e ele n ã o era um dos nossos” . E incom um para M arcos atribuir
ditos desse tip o p ara n o m e a r indivíduos. A m e n ç ã o de Jo ã o n essa instância
se deve ap a re n te m e n te a seu m em orável co m en tário . E m o u tro trecho, Jo ão
é m e n c io n a d o c o m o irm ã o d e T iag o (1.19,29; 3.17; 10.35,41) o u co m o um
daqueles d o triu n v irato confiável de Jesu s (5.37; 9.2; 13.3; 14.33). P erten c er
ao círculo ín tim o de Jesus teve, pelo m en o s, alguns efeitos deletérios em Jo ã o
— c o m o em geral ac o n te ce co m os d o círculo ín tim o — pois a atitude elitista
de Jo ã o em relação ao exorcista n ã o m e n c io n a d o pelo n o m e n o versículo 38
repete u m a atitu d e sim ilar de sua p a rte q u a n d o ele e T iag o desejaram ch am ar
fogo d o céu so b re os sam aritanos in ó sp ito s (Lc 9.54), e m ais u m a vez quan d o
ele e T iag o p ed ira m para, n a glória, sentar-se à direita e à esq u erd a de Jesus
(10.35). O “ n o sso s” n o versículo 38, p o rta n to , p ro v a v elm en te incluem Tia-
go. E m to ta l d esresp eito d a lição da h istó ria p re c e d e n te , J o ã o n ão considera
seu c h a m a d o c o m o discípulo c o m o u m ch a m a d o p a ra servir, m as c o m o um
direito d e privilégio e exclusão.
O relato d e J o ã o d o exorcista in d e p e n d e n te c o m o “ n ão era u m d os nos-
so/ ’ (grifo d o au to r) é u m a ironia b astan te d e p rim e n te ." E sp eraríam o s que
ele dissesse “ p o rq u e ele n ão está seguindo o S en h o r N ã o é n e m u m p o u co
p resu n ço so n esse estágio d o discipulado para J o ã o p e n sa r em si m esm o e 1

11 O final do versículo 38 é sujeito a muitas variações na tradição manuscrita grega.


Das variações, três leituras principais emergem: (1) “c o perdoamos, porque não
era um dos nossos”; (2) “que não nos segue, e o proibim os” ; e (3) “que não nos
segue, e o proibimos, porque não é um dos nossos” . A última leitura é uma confia-
gração das primeiras duas e, portanto, da posterior. A primeira leitura é preferida
por causa de um m elhor apoio manuscrito (‫ א‬B Δ Θ Ψ) e porque a segunda frase
parece ter sido mais bem harmonizada gramaticalmente com a primeira parte da
sentença. Veja B. Metzger, TCGNT, p. 101. Todas as variantes trazem “nossos”
(= discípulos), e não “Senhor” (= Jesus).
M a rc o s 9.39 364

n o s o u tro s discípulos c o m o d ig n o s d e serem seguidos. E sse é ainda o u tro


eco d o ego in flad o deles, d o q u a n to se consideravam im p o rta n te s (tam bém
9.34). G u n d ry , c o rre tam e n te , o b se rv a o ab su rd o d o s D o z e afirm arem que o
exorcista in d e p e n d e n te deveria p a ra r d e fazer o que n ão co n seg u iram fazer
em 9.14-29.12 G ru n d m a n n sugere q ue o te m p o verbal g reg o “ n ão era u m dos
n o sso s” indica q u e o ex o rcista in d e p e n d e n te fo ra co n v id ad o p ara p articip ar
d o g ru p o d o s D o z e , m as re c u so u .13 C o n tu d o , n e m a gram ática n em a sintaxe
necessita dessa conclusão, e im aginam os se Jesus teria m o strad o tal aprovação
d o exorcista n ã o m e n cio n a d o p elo n o m e se este tivesse rejeitado o cham ado
ao discipulado (e.g., 10.22,23). Lucas 9.49 dim inui a o fe n sa d e “n ão ser um
d o s n o sso s” c o m a leitu ra “ n ã o te segue c o n o sc o ” (ARC). A atitu d e de Jo ão
n ão deixa d ú v id a q u e o s D o z e n u triam u m a atitu de de suspeita em relação
aos o u tro s seg u id o res d e Jesus. A m en çã o d e C afa rn au m n o versículo 33
acim a leva à p e rg u n ta se o exorcista in d e p e n d e n te p erte n cia a u m núcleo
rival d e discípulos ali.14

39 Jesus, ao c o n trá rio d o q ue J o ã o e o s discípulos esperavam , o rd en a-o s


a não p ro ib ir a ação d o s exorcistas in d ep en d e n tes. O te m p o v erbal p re sen te
d o im p erativ o g re g o koljete (“N ã o o im p eça m ”) in d ica q u e o co n se lh o de
Jesus n ã o se lim ita apenas a esse caso em p articular, m as é válido p ara todas
as instâncias, o u seja: “ N ã o p a re m essas p e sso a s” . A razão d ad a é a seguinte:
“ N in g u é m q u e faça u m m ilagre em m eu n o m e, p o d e falar m al d e m im logo
em seguida” . U m p ro v é rb io judaico (e m b o ra p o s te rio r à ép o c a de Jesus)
dizia: “ U m a p o rta q u e é fech ad a n ão é facilm ente ab e rta” .15 A ideia p o r trás
d o p ro v é rb io é sim ilar ao d ito n o versículo 39: q ualq uer p esso a q u e aja em
n o m e d e Jesu s receb e o p o d e r d e D e u s, e to d o s q ue re ceb em o p o d e r divino
não p o d e m d e sc a rta r n e m negligenciar lev ian am ente sua vocação. “ P o r isso,

12 R. Gundry, Mark, p. 510-11.


13 W G rundm ann, Das Evangelium nach Markus, p. 197.
14 Essa história não responde à pergunta, feita com frequência, de se as pessoas
moralm ente boas que não ouviram falar de Cristo são aceitáveis para Deus. O
exorcista de quem não conhecem os o nom e não era estranho ao evangelho, mas
age “em [...] nom e” de Jesus, ou seja, na autoridade e poder deste. A questão
levantada nessa história é esta: será que pode haver seguidores de Cristo que não
compartilham a experiência dos Doze? Ou, em um contexto um tanto mais amplo,
com o os cristãos consideram aqueles que assumiram o nom e e missão de Jesus,
mas pertencem a outras tradições?
15 Str-B 2.19.
365 M a rc o s 9.40

eu afirm o q u e n in g u ém q u e fala p elo E sp írito d e D e u s diz: ‘Jesu s seja am aldi-


ç o a d o ’; e n in g u ém p o d e dizer: Je su s é S e n h o r’, a n ão ser p elo E sp írito S an to ”
(IC o 12.3). A ssim , o b ras e m aravilhas em n o m e d e C risto são evidências d o
ch am a d o e co m issão d e C risto, e o u tro s discípulos d evem ser acautelados
co n tra p e n sa r m al daqueles que d ão esse tip o de “ fru to ” (M t 7.16).

40 E sse p en sa m e n to é seguido p o r um p ro n u n ciam en to : “ Pois quem não


é c o n tra n ó s está a n o sso favor” . E ssa afirm ação m o s tra que o M estre é m ais
inclusivo q u e o s discípulos. O to rn a r c o n h e c id o seu n o m e é m ais im p o rtan te
que as d istin çõ es deles (veja F p 1 .1 2 1 8 ‫)־‬. N ã o fica im ed iatam en te ap aren te
c o m o o d ito d o versículo 40 deve ser conciliado c o m M ateus 1 2 .3 0 //L u -
cas 11.23 (e P Ox. 1224) (“A quele q ue n ão está co m ig o está c o n tra m im ; e
aquele q u e co m ig o n ã o ajunta esp alh a”). U m a possível reso lu ção re p o u sa na
d iferen ça en tre o p ro n o m e plural em M arcos (i.e., Jesus e os discípulos) e o
p ro n o m e singular em M ateus e L ucas (i.e., só Jesus). A ssim , ao p asso que n ão
p o d e hav er n eu tralid ad e co m relação à p esso a d e Jesu s, os discípulos têm de
ser to lera n te s c o m aqueles que d iferem deles. E m te rm o s teológicos, a igreja
não d eve ser am bígua em sua p ro clam ação d e C risto, m as to leran te com
aqueles q u e d iferem dela. C ranfield afirm a o seguinte princípio: “ E n q u a n to o
princípio d e M arcos 9.40 d eve g o v ern ar a atitu d e d a igreja em relação àqueles
de fo ra, o p rin cíp io de M ateus 12.30 tem d e fazer p a rte d a p regação d a igreja
tan to p ara aqueles d e fora q u a n to p ara os q u e p e rte n c e m a ela” .16
E m b o ra a in te rp re taç ã o acim a seja bíblica e teo lo g icam en te defensável,
é in stru tiv o p erg u n tar: c o m o o versículo fu n c io n a esp ecíficam ente em M ar-
cos 9.40? A re sp o sta resulta em o u tra linha d e in terp retação , a saber, que
Jesus, n esse p o n to , n ã o fo rça n in g u ém a to m a r um a decisão; e, felizm ente,
pois até m e sm o os discípulos são ig n o ran te s e am bivalentes. A in d a n ão é
chegada a h o ra p ara a decisão final, e esta seria p re m a tu ra nesse m o m e n to
(Rm 14.4). Só n a c ru z é q u e a evidência estará p re se n te p ara u m veredito
pleno e, naq u ele m o m e n to , aqueles q u e n ã o são p o r Jesus serão co n tra ele.
P o r o ra, o p e río d o d a graça p re ced e a h o ra d o julgam ento.

16C. E. B. Cranfield, The GospelAccording toSaintMark, p. 311. Duas outras discussões


que consideram esses ditos com o complementares são F. Contd, “U n’analisti di
tipo logicomatematico su M t 12,30 e Mc 9,40” , RevistB 41 (1993), p. 73-74; A.
de la Fuente Adánez, “A favor o en contra de Jesús. El logion de Mc 9,40 y sus
paralelos”, EstBib 53 (1995), p. 449-59.
M a rc o s 9.41 366

41 E sse dito p re serv a u m a rara o co rrên cia de Jesus ch am an d o a si m esm o


d e o C risto.17 Isso só é con ceb ív el n o d e sp e rta r em C esareia de Filipe, em que
P ed ro an u n cia q u e Jesu s é o C risto (8.29). Jesus, ap ós essa declaração mo-
m en to sa, in stru i agora o s discípulos em p artic u la r so b re o sen tid o da missão.
N ã o há elab o raçõ es adicionais ao co n ceito d e C risto, exceto p ara enfatizar
que os discípulos pertencem a ele (R m 14.7-9). C o n sid eran d o -se a com preensão
e c o m p o rta m e n to eq u ivo cad o s d o s discípulos, a g aran tia de Jesu s de que
“vocês perten cefm ] a C risto ” n ã o é irrelevante nem sem consequências.18
O tex to d e 9.41 co n clu i c o m u m lem b re te (veja o co m en tá rio em 9.37)
de q u e o m ais h u m ild e ato d e gen tileza — até m esm o d ar u m c o p o d e água
— n ã o fica sem re c o m p e n sa p o r p a rte d e D eus. O q u e é feito p ara u m segui-
d o r de Jesu s é re c eb id o p o r C risto c o m o algo feito para ele m esm o. “ D igo
a verdade: O q u e v o cês fizeram a algum d o s m eus m en o res irm ão s, a mim
0 fizeram ” (M t 25.40).

D I S C I P U L A D O : C O N T A B I L I Z A N D O O C U S T O ( 9 .4 2 -5 0 )

O s d ito s n essa u n id ad e são ag ru p a d o s em to rn o d e u m a sequência de


palavras-chave: causas “ d o tro p eç fo ]” (w . 42-47); “ fo g o ” (w . 48,49); e “ sal”
(w . 49,50). A s palavras-chave fu n cio n am c o m o artifícios m n em ô n ico s, o que
sugere q u e essa u n id ad e d e m aterial p o d e te r ch eg ad o até M arcos c o m o um a
un id ad e d a trad ição oral, e to d as elas são v ag am en te organizadas em to rn o
d o tem a d o discipulado. A ap resen tação dessa p e ríc o p e em versos, e n ão em
p ro sa faz co m q ue seus paralelism os e palavras de união fiquem em evidência.
Vários d o s d ito s ap a recem em d iferen tes c o n te x to s n o s o u tro s evangelhos.
O s d ito s so b re c o rta r a m ão (v. 43) e arran c ar os o lh o s (v. 47) ap arecem não
só n o relato paralelo d e M ateu s 18.8,9, m as ta m b é m nas fo rm a s variantes
n o S erm ão d o M o n te (5.29,30) ap ó s o en sin o de Jesu s so b re o adultério. O s
dito s so b re o sal (v. 50) ta m b é m aparecem n o S erm ão d o M o n te (M t 5.13)
c o m o u m a ilustração d a singularidade d o discipulado, ao p asso que L ucas os
junta em u m a seção so b re o cu sto d o d iscipulado (14.34,35). A s várias for-
m as e locais d o s d ito s su g erem q ue Jesu s os p ro fe riu em d iferen tes ocasiões

1 Em bora a NVT traga “em meu nom e” (v. 40; grifo do autor), a tradição manuscrita
mais forte omite o pronom e. A omissão do pronom e resulta em um grego aceita-
vel, mas um tanto não convencional (i.e., 1‘porque vocês são discípulos de Cristo”),
o que explica p o r que os copistas estavam inclinados a acrescentar “m eu” . Se o
pronom e era original, é difícil entender por que o copista o omitiria.
18 Sobre a função de “Cristo” no evangelho de Marcos, veja J. Kingsbury, The Chris-
tology of Mark’s Gospel (Philadelphia: Fortress Press, 1983), p. 93-94.
367 M a rc o s 9.42

e / o u q u e fo ram tran sm itid o s pela igreja prim itiva sem os co n tex to s que os
aco m p an h av am e fo ram u sados d e ac o rd o co m os p lan o s editoriais de cada
evangelista. O g ra n d e n ú m e ro de variantes textuais gregas em m eio aos di-
tos ta m b é m sugere q ue eles circularam sem c o n te x to s narrativos, pois um
cop ista estava m ais inclinado a alterar u m d ito a fim d e adaptá-lo a u m novo
c o n te x to q u e alterar u m d ito que estava a n c o ra d o em sua p resen te form a,
m as a b rev id ad e, concisão e falta de c o n te x to d o s dito s n o s versículos 49,50
to rn a m ais difícil a p resen tar u m a in te rp re ta ç ã o conclusiva.

42 O d ito so b re fazer “ tro p eç ar u m d estes p e q u e n in o s” rep ete o pen-


sarnento d o versículo 41, de que o q u e fo r feito p a ra u m segu id o r de Jesus,
quer o b em (v. 41) q u er o m al (v. 42), é feito p a ra o p ró p rio Jesus. O s “ pe-
q u e n in o s” aqui n ão se referem às crianças, m as an tes (co m o n o v. 41) àqueles
“p eq u e n in o s que creem em minP (grifo d o au to r), o u seja, os discípulos.19 O dito
reforça claram ente o valor su p rem o que Jesus d á aos discípulos co m u n s e sem
pro e m in ên cia — “ os p o b re s em esp írito ” , p ara citar as bem -av en tu ran ças
(M t 5.3). A localização desse d ito aqui aplica sua verdade para o exorcista
in d ep e n d e n te n o versículo 38 q u e foi d esp re z a d o p o r João. A ad m o estação
aqui se aplica ao m e n o sp re z a r a fé d e o u tro p o rq u e este n ão está afiliado a
um a c o rre n te oficial d o círculo cristão. E sse cristão p o d e até ser m ais eficaz,
pois o exorcista d o versículo 38 possuía p o d e re s além daqueles do s discípulos
(9.18!). C lem en te de R om a, escrev en d o p a ra a igreja de R o m a na d écada de
90 d o sécu lo I, cito u o versículo 42 c o m o u m a ad m o estação c o n tra o cism a
na igreja ( / Ciem 46.8).
O tex to de 9.42 é u m sério alerta c o n tra inibir, causar d an o s o u d estru ir
a fé d o s discípulos sim ples e sem p ro e m in ê n cia. A palavra greg a traduzida
p o r “ fizer tro p e ç a r” {skandaliqeiri) significa “ o fe n d e r” o u “ fazer tro p e ç a r”
e, n essa instância, refere-se a d e stru ir a fé d e u m c o m p an h e iro cristão ou
causar u m cristão a se desviar d o ca m in h o d o S enhor. A p u n ição para tal
ofensa é h o rre n d a. “ M elh o r lhe fora q u e se lhe p e n d u rasse ao p esco ço um a
grande p e d ra d e m o in h o ” (ARA), a firm a je su s. N o m u n d o antigo, o grão era

19E difícil, a partir da tradição manuscrita do grego dizer com certeza se a frase
“que creem em min.F (grifo do autor) é original. A presença de “em mim” é bem
atestada ( A B L W 0 Ψ), mas a ausência da frase em outros manuscritos de peso
(S D Δ) e a possibilidade de ter sido acrescentada de Mateus 18.6 lança dúvida
sobre sua originalidade. Veja Metzger, TCGNT, p. 101-2. A proeminência de Jesus
com o um objeto de crença nos versículos 37,40,41, no entanto, argumenta por
sua originalidade.
M a rc o s 9.43-48 368

m o ld o p o r m ó s, p ed ras circulares d e m o in h o , tão g ra n d es q u e só p o d iam ser


giradas pelo p o d e r d e anim ais d e carga. A im agem inigualável de ser lançado
n o m ar c o m u m a p e d ra de m o in h o am arrad a n o p esc o ço é típica de Jesus e
arg um en ta a fav o r d a au ten ticid ad e d o dito. A im ag em da p ed ra de m o in h o
era d u p lam en te am ea çad o ra p a ra os judeus que, via d e regra, tem iam o m ar
e consideravam o a fo g a m e n to c o m o u m a fo rm a horrível de m o rte .20 O dito
tam b é m atesta d a irrev o cab ilid ad e d e ce rto s ato s (Ap 18.21). L an çar um
p ec a d o r em u m sep u lcro nas águas era u m a fo rm a vivida d e Jesu s transm itir
a finalidade d a ira d e D e u s c o n tra o o rg u lh o espiritual.

43-48 E sses versículos m u d am o fo co d o p ô r em risco os o u tro s para


p ô r em p erig o a si m esm o . A co n fu são textual n o s versículos 44 e 46 se deve
ap aren tem e n te à inserção, p o r u m escriba tardio, n o versículo 48, u m a citação
d e Isaías 66.24, d ep o is d o s versículos 43 e 45 a fim d e a p resen tar três estrofes
paralelas. O s m an u scrito s de M arcos m ais confiáveis, n o en tan to , retêm a
citação d e Isaías só n o versículo 48 (co m o a N V I).21
A in stru ç ã o p ara arran c ar p a rte s d o c o rp o q u e levam a p esso a a tro p eçar
é u m exem p lo d a h ip érb o le m etafó rica característica de Jesu s e n ão deve ser
levada ao p é d a letra. T a n to o m a so q u ism o q u a n to a m utilação d o co rp o
(com a exceção d a circuncisão) eram tab u s n o ju d aísm o (D t 14.1; 23.1; lR s
18.28; Z c 13.6). T a n to Jesu s q u a n to o cristian ism o prim itivo evitavam um a
d ico to m ía característica d o p la to n ism o g re g o q u e co n ceb iam o c o rp o e o
m u n d o m aterial c o m o in ferio res à m e n te e ao espírito. O s evangelhos e as
epístolas, ao co n trá rio , afirm am re p etid as vezes q u e o c o rp o (e.g., m oralidade
sexual, in teg rid ad e financeira, o tra ta m e n to d o s o u tro s) é c o m frequência a
m anifestação d a realidade espiritual. N a v erdade, d a r u m c o p o de água fria
n o versículo 41 im ed iatam en te p re ced e n te atesta das co n seq u ên cias eternas
e espirituais d e ato s corporais.
N o en tan to , o fato d e q u e u m d ito n ão deve se r levado ao pé da letra
n ão é d im in u ir n em m in im izar sua im p o rtân cia. N a verdade, a h ip érb o le
intensifica o en sin o d e q u e D e u s é m ais im p o rta n te q ue até m e sm o aquelas
coisas m ais indispensáveis p ara nós. E la atesta d a ofen sa n ão co n d escen d en -
te ao evangelho e à au to rid a d e d e Jesus, que n ad a — n em m esm o as coisas

20 Por exemplo, Josefo reconta a história de um grupo de rebeldes galileus que hor-
rorizaram e aterrorizaram a nobreza afogando partidários de Herodes no mar da
Galileia (Ant. 14.450).
21 Veja Metzger, TCGNT, p. 102.
369 M a rc o s 9.43-48

q ue v alo rizam o s m uitíssim o, c o m o os o lh o s, as m ão s e os pés — deve ficar


n o ca m in h o d a vida etern a. Ju stin o M ártir (Apol. 1.15.2) cita a referência a
arran c ar u m o lh o n o versículo 47 co m referên cia à castidade. N o T alm ude (b.
Nid. 13¿‫ )׳‬, c o rta r a m ão de u m in divíduo ta m b é m se refere às transgressões
sexuais. A m e táfo ra n o versículo 43, ap e sar d e incluir co m certeza a cobiça
sexual e o u tras o fen sas sexuais, n ão se deve lim itar a esse tip o de ofensa.
A s m etáfo ras so b re os olhos, as m ãos e o s p és incluem tu d o que vem os e
fazem os e to d o s os lugares p ara o n d e vam os. X e n o fo n te (Memorabilia 1.2.54)
escreve q u e “ o m e lh o r am igo d e u m h o m e m é ele m esm o ; ainda assim , ele,
até m e sm o d u ra n te seu p e río d o de vida, re m o v e [...] de seu c o rp o [unhas,
cabelo, etc.] to d as as p arte s inúteis e n ão p ro v e ito sas” . A visão da vida de
X e n o fo n te está n o p o lo o p o s to da de Jesus. E s te n ã o aco n selh a a rem o ção
de p arte s d o c o rp o p o rq u e são “inúteis e n ã o p ro v e ito sas” ; antes, ele assinala
o valo r inestim ável d o R eino de D eu s, v alo r esse q ue su p lan ta tu d o que tem
valor incalculável. P ara Jesus, o m elh o r am igo de u m h o m e m não é ele m esm o ,
m as o ú n ico D e u s v erd ad eiro que abre p ara ele a possibilidade d o R eino de
D eu s — e p o r a m o r a ele, n ad a — n em m e sm o a p ró p ria v ida (8.36,37) — é
com parável. O s o lh o s, as m ão s, os p és — o u o q ue q u e r q u e seja que exija
lealdade su p re m a — n ão são a vida; o R ein o de D e u s é vida, e n ad a nessa
vida d ev e te r p erm issão p ara im p ed ir u m in d iv íd u o de e n tra r n o reino. A
escolha é literalm en te en tre o R eino d e D e u s e “ o fo g o q u e n u n ca se apaga” .
A p alav ra g rega p ara “in fe rn o ” n o s versículos 43,45 e 47 é Gehenna,
cujo n o m e é p ro v e n ie n te d o vale d e H in o m , a ravina ín g rem e n o sudo este
de Jeru sa lém (Js 15.8) em q ue o sacrifício h u m a n o fo ra p raticad o so b A caz
e M anassés (2Rs 16.3; 21.6). A p rática d etestáv el d o sacrifício h u m a n o foi
co n d e n a d a m ais tard e p o r Jerem ias (]r 7.31; 32.35) e abolida p elo rei Josias
(2Rs 23.10) q u e d eg rad o u o vale H in o m ao tra n sfo rm á -lo em u m d ep ó sito de
lixo. O “ in fern o , o n d e o fo g o n u n ca se ap ag a” to rn o u -se u m sím b o lo da ira e
p u n ição divinas n o judaísm o su b seq u e n te e n o cristian ism o o u sím b o lo das
trevas, d a d o r e da to rm e n ta resultantes d esse lugar.22 À im agem de putrefação
em c o m b u stã o n o vale d o H in o m , M arco s ad icio na u m d ito proveniente do
versículo final d e Isaías (66.24): “ o v erm e destes n ã o m o rrerá, e o seu fogo não

22 1EnoqueTl.\,2·, 54.1 ss.; 90.26ss.; 4Esdras 7.36; Carta de Inácio aos efésios 16.2; 2Cie-
menteXlJ. Sobre Geena, veja Str-B 4/2.1,016-1,165. A conclusão do versículo 43
está sujeita a uma série de leituras variantes na tradição dos manuscritos gregos.
A leitura mais bem atestada ( Κ Α Β Ο Κ Χ Θ Π ) ε aquela que melhor explica a
existência de outras é a adotada pela NVI. Veja Metzger, TCGNT, p. 102.
M a rc o s 9.49-50 370

se apagará” . A im ag em d o v e rm e d e v o ra d o r e d o fo g o c o n su m id o r, n o jen to
e g rotesco, dificilm ente parece necessária c o n sid eran d o -se a im agem lúrida
e pav oro sa d o vale d o H in o m . Seu u so aqui se c o n fo rm a a u m im p o rtan te
asp ecto de seu u so em Isaías, em q u e essa im agem conclui dois capítulos
so bre a p ro m e ssa e a salvação p o r m eio de u m alerta p o d e ro so e final das
consequências d a rebelião c o n tra D eus. A citação desse verso n o versículo 48
serve co m o o alerta m ais v ee m e n te possível c o n tra julgar equivocadam ente
o u trivializar o ch a m ad o e co m issão d o discipulado. Q u e m im aginaria que
tarefas sim ples e m u n d a n a s ta n to d e capacitar os cristãos n a fé q u a n to de
o b stru ir o ca m in h o deles tê m con seq u ên cias n o d estin o e te rn o das pessoas
(Lc 9.23)? C o n tu d o , elas têm esse peso. A im ag em ho rrível desses versículos
tem a in ten çã o d e s e r u m a séria a d m o esta ção p ara o s discípulos agora, e não
apenas u m a p re d iç ã o d o futuro. O s p lan o s arquiteturais da etern id ad e são
pelo c o m p o rta m e n to d o s discípulos hoje. N o tex to de 9.48, h á u m alerta
co n tra a reb elião c o n tra D e u s e co n v o ca à fé n o p re sen te, e em especial de
se livrar q u aisq u er q u e sejam os o b stácu lo s e im p ed im e n to s q u e im pediríam
a p esso a d e e n tra r n a vida v erd ad eira n o reino.

49,50 O te x to d e 9.49,50 co m b in a d ito s d iferentes e u m ta n to opacos


so b re o sal e o fogo. P arece q ue a palavra “ fo g o ” n o final d o versículo 48
estim ula M arco s a in clu ir o d ito d o versícu lo 49, e aquele “ salg ad o ” no
versículo 49 levou à inclusão d o d ito d o versículo 50. A lém disso, n ão só o
versículo 49 existe em várias fo rm a s d istin tas n a trad ição d os m anuscritos,
m as as leituras variantes su g erem tentativas de in te rp re ta r a afirm ação sur-
p re en d e n te d e q ue “ cada u m será salgado co m fo g o ” .23 A s in terp retaçõ es dos
versículos 40,50 são em geral oferecidas c o m base nas p ro p rie d ad es d o sal e
d o fogo. A ssim , o fo g o e o sal testam e p ro v a m as substâncias, e p o r causa
disso são m etáfo ras úteis p ara o discipulado. N o v a m e n te , u m a vez que o fogo
n o versículo 49 n ão é m ais u m fo g o d e p erd iç ão co m o n o versículo 48, m as

23 O dito existe em três formas principais: (1) “Pois todos serão salgados com fogo”;
(2) “Pois todo sacrifício será salgado com sal” ; e (3) “Pois todos serão salgados com
fogo, e todo sacrifício será salgado com sal” . A primeira leitura deve ser a preferi-
da por causa de seu apoio em manuscritos e porque é difícil explicar a existência
das outras duas. A leitura 2 pode ser explicada com o se segue: em busca de um
indício para o sentido da leitura 1, um escriba escreveu Levítico 2.13 na margem,
o que em manuscritos posteriores foi incorporado no próprio texto. A leitura 3
pode ser explicada com o uma união das leituras 1 e 2. Veja Metzger, TCGNT, p.
102-3; e Cranfield, The GospelAccording to Saint Mark, p. 314-15.
371 M a rc o s 9.49-50

de p urificação (assim em N m 31.23; M l 3.2), os discípulos têm d e p e rm itir


os sacrifícios in eren tes n o seguir Jesus p ara pu rificar a vida deles. O sal, da
m esm a fo rm a , é u m co n serv an te. E m u m m u n d o sem refrigeração, o sal
p reserv a o s alim entos, e em especial as carnes, im p e d in d o -o s de putrefazer.
O s cristãos, d e m o d o sim ilar, são co n se rv a n te s n a sociedade, à p arte dos
quais a so cied ad e ficará p o d re.
A s interp retaçõ es acim a são em geral válidas, m as não conseguem explicar
nem a p re sen ça n em o sen tid o de sal e fo g o na co n clu são d e M arcos 9. O
versículo 49, p o r o c o rre r apenas aqui e em n e n h u m o u tro evangelho, deve
ter u m significado especial para M arcos. A in terp re taçã o m ais p ro m isso ra dos
versículos 49,50 é co m p reen d ê-lo s c o n tra o p a n o d e fu n d o d o sacrifício do
tem plo, em q u e o fo g o e o sal d ese m p e n h am pap éis indispensáveis. Exigia-
-se que as o fe rtas queim adas (boi, carn eiro o u ave sem m áculas) israelitas
fossem to talm e n te co n su m id as pelo fo g o a fim d e serem aceitáveis. A fum aça
que se elevava d o fo g o co n su m id o r era u m in cen so agradável a lav é (Lv 1).
O sal ta m b é m n ã o era só u m sinal da aliança (N m 18.19), m as exigia-se que
aco m p a n h asse to d o s os sacrifícios israelitas (Lv 2.13).24
N o co n tex to presente, o fogo e o sal p arecem ser sím bolos das tribulações
e custo s d o discipulado. P ara ser discípulo de Jesu s é p reciso u m a en tre g a de
to d a a vida d o indivíduo; n a linguagem d o sacrifício, tem de ser to talm e n te
co n su m id o r e in ten so , o u n ão vale a pena. N o en tan to , n ão c o n so m e os cris-
tãos p o r causa d a fru stração e fracasso, pois as tribulações to rn a m o cam inhar
destes sa n to e aceitável a D eus. O discípulo que p eg a a cru z de Jesu s e segue
pelo ca m in h o q u e leva a Jeru salém (8.34), q u e n u tre a fé de o u tro cristão (v.
42), que ren u n cia d e b o a v o n tad e às coisas preciosas, m as se en treg a de co rp o
e alm a à v id a d e fé é ele m esm o u m sacrifício santo, u m “ sacrifício vivo” , de
aco rd o c o m P au lo (12.1).25

24 O sal, um a necessidade da vida no período bíblico (Sir 39.26), tam bém era um
elemento essencial nas ofertas e sacrifícios. E ra prescrito para acompanhar as
ofertas queimadas (Ez 43.24), as ofertas de cereal e, de fato, em “todas as suas
ofertas” (Lv 2.13), e aparece em uma lista de provisões para o templo (Ed 6.9).
Veja J. R. Ross, “Salt”, IDB 4.167; Str-B 2.21-23.
2‫ י‬Veja a discussão útil de C. Link, “Exegetical Study o f Mark 9:49”, NotesTrans 6 /4
(1992), p. 21-35, que parafraseia os versículos 49,50 da seguinte forma: “Pois — de
acordo com a Escritura — todos nós (você e eu) seremos feitos oferta queimada
a Deus. Sua aliança comigo é o aspecto mais im portante em sua vida. Fique em
guarda, não perca isso. Guarde esse com prom isso acima de tudo o mais, e então
M a rc o s 9.49-50 372

Isso ajuda a explicar a in trig an te e enigm ática frase “ salgado c o m fo g o ”


(v. 49). Ser testad o p elo fo g o n ão é apenas u m a necessidade d o lo ro sa d o disci-
pulado, m as u m a oferta em si m e sm o agradável a D e u s, u m a o fe rta tem perada
o u salgada c o m fogo. Se o fo g o das tribulações e adversidades im p o rtu n a
o fiel (lP e 1.7; 4.12), eles fazem isso co m o u m a co n seq u ên cia d e seguir o
F ilho d o h o m e m q ue tem de sofrer. O s cristãos, nesse c u sto so discipulado
para se to rn a r seguidores d o F ilh o d o h o m em , to rn am -se sal e luz p ara o
m u n d o (M t 5.13-16). A d isp o sição dos discípulos p a ra su p o rta r a v erg o n h a
e a dificuldade p o r C risto é u m reflexo d o s so frim en to s re d en to res de C risto
e u m a esp e ran ç a p ara o m u n d o .

ficarão em paz uns com os outros”. Link acrescenta outra sugestão de que esse
dito foi transmitido a Marcos p o r Pedro que, em vista de lPedro 1.7; 4.12,13, é
aquele discípulo que deveria se lem brar desse dito após a repreensão chocante
feita por Jesus depois da primeira predição da paixão (8.29-33). Veja também, O.
Cullmann, The Christology of the New Testament, trad. S. Guthrie e C. Hall (London:
SCM Press, 1986), p. 319.
capítulo dez

"Subindo para Jerusalém"através


da Judeia
M A R C O S 1 0 .1 5 2 ‫־‬

O m aterial n o cap ítu lo 10 tem c o m o cen ário a jo rn ad a d e Jesu s através


da Judeia. E s s a jo rn ad a, além d e trazer Jesu s e os discípulos p ara Jeru salém ,
tam b é m sim b o liza o tem a d o discipulado. O e n sin o d e Jesu s so b re sua m is-
são e as declarações so b re o discipulado, à m ed id a q u e ele se ap ro x im a de
Jerusalém , to rn a m -se cada vez m ais específicos. O capítulo 10 co m eça co m
o ch a m a d o ao d iscipulado n o s asp ecto s m ais fu nd am en tais da v ida — o
casam en to (w . 1-12), os filhos (w . 13-16) e as p o sses (w . 17-31). Jesus, pela
terceira vez, p re d iz sua m o rte e ressurreição; e a predição, c o m o seu ensin o
so b re o discipulado, é ainda m ais explícita (w . 32-34). Jesus, pela prim eira
vez, declara o p ap el de serv o d o F ilho d o h o m e m q u e n ão veio “ p ara ser
servido, m as p ara serv ir e d ar a sua vida em resgate p o r m u ito s” (v. 45).
M arcos conclui o cap ítu lo co m a cura de B artim eu, cuja confiança em Jesus
para a re cu p eraçã o de sua vista e o seguir Jesu s “ n o c a m in h o ” para Jeru salém
re p resen ta a q u in tessên cia d o discipulado (v. 52).

D IS C I P U L A D O E C A S A M E N T O (10 .1-12 )

O casam en to e o divórcio, na ép o ca de Jesus, eram , c o m o o são na nossa,


assuntos d e g ra n d e interesse e controvérsia. N o judaísm o antigo, o casam ento
não era c o n sid erad o c o m o u m a u n ião d e iguais p a ra o b enefício m ú tu o tanto
do m arid o q u a n to d a esposa, m as, sim , u m a in stitu ição cujo p rincipal p ro p ó -
sito era o estab elecim en to e co n tin u ação d a fam ília e cujo p rincipal inim igo
era a ausência de filhos. A localização d o e n sin o de Jesu s n o evangelho de
M arcos so b re o ca sam en to n o início d essa seção assinala a im p o rtân cia da
união m atrim o n ial n o R eino de D eus. N o judaísm o, a responsabilidade m ais
im p o rta n te d e u m h o m em que guarda a lei era o co n h e cim en to e excelência
M a rc o s 10.1 374

da T orá, so b a qual ele era esp e rad o a o rd e n a r as necessidades d a vida, en-


tre elas o casam en to . Jesus, n o en tan to , en sin a q ue o casam en to n ão é urna
instituição d o m in a d a p o r h o m e n s, m as urna n o v a criação de D eu s, pela qual
tan to o m arid o q u a n to a esp o sa são igualm ente responsáveis p o r praticar o
discipulado em ob ed ien cia p o r to d a a vida.

1 “ E n tã o Jesu s saiu dali e foi p ara a região d a Ju d eia e p ara o o u tro lado
d o Jo rd ã o .” O “ dali” d e o n d e Jesu s saiu se refere à G alileia, e provavelm ente
C afarnaum , o ú ltim o local desig n ad o p o r M arcos (9.33). A d em arcação en-
tre os m inistérios de Jesu s n a G alileia e na Ju d eia é ainda m ais explícita no
paralelo de M ateus 19.1: “ Q u a n d o acab o u de d izer essas coisas, Jesu s saiu
da G alileia e foi p a ra a região d a Judeia, n o o u tro lado d o Jo rd ã o ” . M arcos
relata q u e Jesu s foi p ara “ a região d a Ju d eia e p ara o o u tro lado d o Jo rd ã o ” .
E sse d estin o c a u so u p rob lem as p ara os copistas, re su ltan d o em u m a tradição
textual in certa. O prin cip al p ro b le m a está co m a referên cia “ d o o u tro lado
d o J o rd ã o ” o u T ran sjo rd ân ia (— Pereia), p o is a T ra n sjo rd ân ia n ão fica na
direção de Jeru sa lém .1 E m b o ra seja im possível d ecidir co m certeza qual a
m e lh o r leitura, u m caso razo av elm en te fo rte p o d e ser feito para a leitura da
N V I q ue traz Jesu s p ara a Ju d eia e T ran sjo rd ân ia (i.e., Pereia).2

1 Dentre as três principais variantes, dia touperan lordanou (“através da Transjordânia”),


em bora bem atestada (A K X Π), parece um a mudança feita por um escriba para
explicar que Jesus veio para a Judeia “através da Transjordânia” . Uma segunda
leitura, apenas peran (“do outro lado”), é também razoavelmente bem atestada (C
D W Δ Π), é possivelmente uma assimilação para Mateus 19.1, que identifica a
Judeia “no outro lado do Jordão” . Essa leitura também se assemelha com uma
tentativa de pôr Jesus na Judeia, e não na Pereia. Enquanto a Transjordânia pode se
referir tecnicamente aos dois lados do rio Jordão, a maioria das referências indica
a leste do rio Jordão, e não a oeste, argumentando, portanto, contra essa leitura.
A leitura preferida é kaiperan (“e no outro lado”), um pouco mais bem atestada
que as outras duas leituras (‫ א‬B C L Y) e também a mais difícil, sendo, portanto,
a mais preferida. Veja Metzger, TCGNT, p. 103.
2 Para argumentos defendendo que a frase em questão se refere a uma região na
Pereia, chamada “Judeia”, veja W G rundm ann, Das Evangelium nachMarkus, p. 270,
que cita uma referência a “do outro lado do Jordão” em josefo (An¿. 12.228.31),
sugerindo que a frase se refere a um povoado judaico estabelecido por João Hircano
na Transjordânia. B. Pixner, WithJesus Through Galilee, p. 108-13, também acredita
que Batanea na Transjordânia era considerada uma cidade da Judeia (também
War 5.56). Esses dois argumentos, contudo, são forçados, pois a Judeia era quase
universalmente compreendida como uma referência à região a oeste do rio Jordão.
375 M a rc o s 10.2

O fato de q u e a T ran s jo rd ân ia n ão fica n a d ireção de Jeru salém é apenas


um p ro b le m a ap aren te, p o is a evidência in te rn a c o rro b o ra a leitura ad o tad a
pela N V I e arg u m e n ta q ue a jo rn ad a d e Je su s n a Ju d eia e Pereia se ajusta
com o p ro p ó s ito da narrativa de M arcos. A s palavras em M arcos 10.1, em
g reg o {kai ekeithen anastas erchetai eis ta horia tês Ioudaias kaiperan tou lordanou),
é p raticam en te u m paralelo das palavras em 7.24 de q ue Jesus “ saiu daquele
lugar e foi p a ra os a rre d o re s de T iro ” {eikeithen de anastas apêlthen eis ta horia
Tyroü). E sse paralelism o sugere que Jesus, antes d e ir p ara Jerusalém , com pleta
seus m in istério s em regiões gentias n o n o rte (7.24[,31]) e regiões judaicas n o
sul (10.1), to d o s co m e ç an d o na Galileia. E ssas referências paralelas parecem
ser a c o n tra p a rte da referên cia a n terio r em 3.8 que o m in istério de Jesus
atraía p esso as d a Ju d eia, Jeru salém , Id u m eia, as regiões d o o u tro lad o d o rio
Jo rd ã o e T iro e Sidom . T o d o s os lugares m e n c io n a d o s em 3.8, co m exceção
da Idum eia, são re p etid o s em 7.24(31) e 10.1. O efeito dessas referências é
m o stra r a relevância universal d o m in istério d e Jesus, e ste n d e n d o -se p o r to d a a
Palestina. Jesu s n ão só re ceb e u g en tio s e ju d eu s (co m o em 3.8), m as tam b ém
saiu d a p re sen ça ta n to d e g en tio s (7.24,31) q u a n to de judeus (10.1). M arcos,
além d e a p re sen tar a relevância universal d o m in istério d e Jesus, m o stra tam -
bém a culpa universal d a h u m an id ad e pela m o rte de Jesus, rejeitado p o r judeus
(8.31) e g en tio s (9.31) e co n d e n a d o à m o rte p elo S inédrio judaico (14.53) e
pelo g en tio P ilatos (15.1).

2 N a Ju d eia e na Pereia, Jesus ensinou as m ultidões, co m o era seu costum e.


E m b o ra Jesu s ensinasse co m u m en te nas sinagogas, h á evidência, aqui co m o
em o u tro s tre c h o s (2.13; 4.1; 6.6,34), que ele ta m b é m ensinava as m ultidões
ao ar-livre. E n q u a n to ensinava, “A lguns fariseus ap ro x im aram -se dele para
p ô -lo à p ro v a, p e rg u n ta n d o : Έ p erm itid o ao h o m e m divorciar-se de sua
m ulher?’ ” 3 M arcos, c o n fo rm e o b serv am o s, raras vezes registra o que Jesus
ensino u , e o versículo 2 n ão é exceção, p o is n ã o é o e n sin o em si q u e M arcos
registra, m as relata m ais o p erío d o de p erg u n tas e re sp o sta s dep o is d o ensino.
O registro d e M arco s da p erg u n ta d o s fariseus é s u rp re e n d e n te u m a vez
que, c o n fo rm e sab em o s, a lei judaica p erm itia o divórcio. A única perg u n ta

3 O texto ocidental (D) omite a menção aos fariseus no versículo 2, trazendo ape-
nas: “ E as pessoas perguntavam”. Contra Metzger, TCGNT, p. 103-4, essa pro-
vavelmente não é a leitura original, pois o apoio textual para incluir “os fariseus”
é abrangente e impressionante. Ademais, a presença de peira^ontes (“à prova”)
que, em outros trechos caracteriza os fariseus, mas não as multidões (8.11; 12.5),
também argumenta pela inclusão dos fariseus.
M a rc o s 10.2 376

co n c e rn e n te aos fu n d a m e n to s d o divórcio, c o n fo rm e registrada n o paralelo


em M ateus 19.3, é esta: “ É p e rm itid o ao h o m e m divorciar-se d e sua m ulher
por qualquer motivo!1" (grifo d o au to r).4 E ssa frase final, em itálico, é o cerne
da co n tro v é rsia so b re o d ivórcio n a é p o c a d e Jesus, c o n fo rm e refletida em
u m a p assag em celeb rad a n a M ishná:

A escola de Shamai diz: U m hom em não p o d e se divorciar de sua esposa


a m enos que encontre falta de castidade o u pureza nela, pois está escrito:
“p o r ele ter achado coisa indecente nela [em algo]” (ARA). E a escola de
Hillel afirma: [Ele p o d e se divorciar dela] m esm o se ela desperdiçar um a
refeição para ele, pois está escrito: “p o r ele ter achado coisa indecente
nela \em algó\” (ARA). R. A kiba diz: M esm o se ele en co n tro u outra mais
honrada e leal que ela, pois está escrito: “E assim será se ela não achar
favor em seus o lh o s” [m. Git. 9.10).

O s ju d eu s e a lei judaica, c o n fo rm e in d ica essa passagem , concordavam


q u e o d ivó rcio era perm issível. A escola m ais c o n se rv ad o ra d e Sham ai argu-
m en tav a q u e o ú n ico fu n d a m e n to p ara o d ivórcio era “ indecência” , o u seja,
adultério, ao p a sso q u e a escola liberal d e H illel arg u m en tav a que o divórcio
p o d e ría ser co n c e d id o “ p o r q u alq u er m o tiv o ” (N V I, “ p o r qu alq u er m o tiv o ” ,
M t 19.3), o u seja, p o r m uitas causas além d o adultério. N e m m esm o os es-
sênios em C u n rã, a fação m ais co n se rv a d o ra d o ju daísm o n a ép o ca de Jesus,
co nsiderav am o d ivórcio ex p ressam en te p ro ibido. O s dois tex to s q u e lidam
co m o ca sam en to em C u n rã (C D 4.20— 5.6; 1 1 Q T 17.15-19) estão princi-
p álm en te p re o c u p ad o s c o m a p ro ib içã o da poligam ia, m as a falha nas duas
passagens d e p ro ib ir o divórcio e n o v o casam en to sugere q u e estes eram pelo
m en o s p e rm itid o s.5 C o n sid e ra n d o a aceitação universal d o divórcio em m eio
aos judeus d o sécu lo I, p arece razoável co n clu ir q u e “ p o r q u alq u er m o tiv o ”
está im plícito n a p e rg u n ta d o s fariseus p ara Jesu s n o versículo 2.6 O u seja,
os judeus d o século I su p riram a frase “p o r q u alq u er m o tiv o ” n a p erg u n ta, o
q u e p o d ería ser o m itid o p o r conveniência, m as sem esse detalh e a p erg u n ta
n ão faz sentido. A p e rg u n ta p ara Jesus, p o rta n to , se assem elha a u m a p er­

4 A diferença das palavras em Mateus argumenta mais uma vez pela prioridade
marcana, pois podem os explicar por que Mateus alteraria Marcos, não por que
Marcos alteraria Mateus.
5 Para uma discussão do casamento e divórcio em Cunrã, veja D. Instone-Brewer,
“Nomological Exegesis in Q um ran ‘Divorce’ Texts’ ”, RevQ 18 (1998), p. 561-79.
6 Veja Instone-Brewer, “Jesus’ Old Testam ent Basis for Monogamy”, em The Old
Testament in the New Testament: Essays in Honour ofJ. L. North, ed. S. Moyise, JSNT
189 (Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000), p. 89-91.
377 M a rc o s 10.2

g u n ta abreviada cuja co n o ta ç ã o to tal excedia suas palavras n o s ouvidos de


seus ou vin tes, c o m o hoje, p o r exem plo, q u a n d o falam os d a “ segunda v in d a
deJesus”, d o s “ direitos civis dasminoriai’ o u d e “ d ireito iguais das mulheres‫ ״‬. O
sen tid o d a p erg u n ta feita a Jesu s parece te r sido: “ É c o rre to p ara u m h o m em
se divorciar d e su a esp o sa por qualquer outro motivo que não 0 adultério?”
M arco s n o s in fo rm a q u e o m o tiv o d a p e rg u n ta d o s fariseus n ão era u m a
sim ples qu estão ; era u m “ teste” , n a verd ad e, u m a ten tativ a p ara p eg ar Jesus
em u m a arm a d ilh a (8.11; 10.2; 12.15). Se Jesu s está n a Pereia, so b a jurisdição
de H e ro d e s A n tip as, a q u estão p o d e te r sid o p re p a ra r u m a arm ad ilh a so b re
a q u e stã o d o ca sam en to de H e ro d es A n tip as c o m H ero d ias, q u estão essa
q u e re su lto u n o ep isó d io da d ecap itação de J o ã o B atista (6.18). Se esse fo r
o c o n te x to d a p erg u n ta , en tão a p erg u n ta p a ra Jesu s é se H e ro d e s A ntipas
tin h a justificativa o u n ã o p ara se divorciar da filha d o rei A retas para se casar
com H erodias. C o n tu d o , m esm o se a p erg u n ta n ão teve m o tiv o s políticos, os
fariseus c e rtam en te suspeitam que Jesus tin h a p o n to s d e vista so b re o assunto
d o ca sam en to q u e diferiam d o s deles. E les tin h a m a in ten çã o de d em o lir sua
p o sição ao levá-lo a fazer concessões à au to rid ad e d a Torá. O objetivo deles é
m an ter u m a política perm issiva so b re o divórcio — e q u a n to m ais perm issivo
m elhor. S ch ü rer resu m e a posição judaica so b re divórcio da seguinte m aneira:
“ o divórcio era relativam ente fácil naquela ép o ca, e os fariseus e rabis tin h am
a in ten çã o d e q u e a situação co n tin u asse assim ” .7
O s fariseus re fletem a visão d e q u e o ca sam en to é u m aco rd o co n tra tu al
descartável. E les p e rg u n ta m duas vezes so b re os possíveis fu n d a m e n to s d e
sua d issolu ção (10.2,4). A atitu d e deles n o s traz à lem b ran ça u m a p esso a q u e
acaba d e re ceb e r u m em p ré stim o b an cário e p erg u n ta em q u e co n d içõ e s ele
p o d e ser ab so lv id o de p ag ar essa dívida. O p o n to d e p a rtid a nas discussões
judaicas so b re o d ivó rcio era D e u te ro n ô m io 24.1-4, a p assag em so b re a qual
Gittin, Mishná 9.10 (citado acim a) se fu n d a m e n ta, b em c o m o a p erg u n ta d o
versículo 4.8 A in ten çã o d e D e u te ro n ô m io 24.1-4 era m últipla. E la, d e m o d o
m ais óbvio, d esen corajava os divórcios ráp id o s ao exigir q u e o h o m e m esti-
pulasse p o r escrito u m a razão para o divórcio e ta m b é m ao proib i-lo d e se
casar n o v am en te co m sua esp o sa divorciada. A ce rtid ão d e divórcio garantia à
divorciada p elo m e n o s a dignidade e o d ireito d e se casar co m o u tro h om em
se assim desejasse. Salvaguardar, desse m o d o , os direitos d a m u lh er tan to

7 E. Schürer, History of theJewish People, 2.486.


8 Veja D. Instone-Brewer, “Deuteronom y 24:1-4 and the Origin o f the Jewish
Divorce Certificate”, JJS 49 (1998), p. 230-43.
M a rc o s 10.3-9 378

q u a n to possível n a cu ltu ra patriarcal, em b o ra o divórcio acarrete u m estigm a


u m a vez q ue o sac erd o te era p ro ib id o de se casar c o m u m a divorciada (Lv
21.7), e u m se g u n d o ca sam en to “ co n tam in a [va]” (D t 24.4) a p rim eira esposa
d o h o m em , to rn a n d o im possível p ara ele se casar d e n o v o c o m ela. A ssim ,
c o n fo rm e a in ten ç ã o original d e D e u te ro n ô m io 24.1-4 d e n ão en co rajar o
divórcio, m as te n ta r p re se rv a r u m g o v e rn o u n ifo rm e n o ev en to infeliz do
divórcio. N a q u e stão d o s fariseus n o versículo 4, n o en tan to , a referência a
D e u te ro n ô m io 24.1-4 n ã o serve m ais a lim itar os efeitos m aléficos d o di-
vórcio, m as antes c o m o u m pretexto p ara o divórcio, “ Se u m h o m e m casar-se
co m u m a m u lh er e d e p o is n ã o a quiser m ais p o r e n c o n tra r nela algo q u e ele
rep ro v a” . C o n fo rm e já vim o s, os p re te x to s se esten d em d o ad u ltério às m ais
frágeis desculpas, in clu in d o a falha d a esp o sa em p eq u en as tarefas caseiras
o u falha em ag rad ar o m arid o c o m o o fez o u tra m ulher.

3-5 “ O q u e M oisés o rd e n o u a vocês?” , p e rg u n to u Jesus. E le dificilm ente


ficou su rp re so p elo apelo a D e u te ro n ô m io 24.1-4, d e q u e “ M oisés p erm itiu
q u e o h o m e m lh e d esse u m a certid ão de d ivórcio e a m an d asse e m b o ra ” .
Jesus, ap esar d a au to rid a d e m osaica d e D e u te ro n ô m io 24.1-4, n ão recebe
essa afirm a ção c o m o conclusiva p ara a p e rg u n ta so b re o casam en to e o
divórcio. D e u te ro n ô m io 24 foi d ad o “ p o r causa da d u reza de co ração de
v o cê s” , afirm a Jesus. E , em o u tras palavras, u m tex to de concessão, e não
u m te x to d e in tenção. V ocê n ão ap ren d e a v o ar de avião seg uindo as ins-
tru çõ es s o b re c o m o agir em situação de p o u so fo rçad o o u acidente; v o cê
n ão será b em -su ced id o n a g u e rra se trein a r c o n fo rm e as regras d e b a te r em
retirada. O m esm o é v erd ad e em relação ao ca sam en to e ao divórcio. A s
m edidas excepcionais n ecessárias q u a n d o o ca sam en to falha n ão são úteis
para d e sc o b rir o sen tid o e a in ten çã o d o casam en to. Jesu s ten ta recu p erar
a v o n ta d e d e D e u s p ara o ca sam en to , e n ã o a rg u m e n tar so b re as possíveis
exceções dele. Seus o p o n e n te s p e rg u n ta m o q ue é perm issível; ele indica o
que é o rd e n a d o .9 D e u te ro n ô m io 24.1-3, arg u m enta ele, n ão é u m p re te x to
p ara o divórcio, m as u m a ten tativ a d e lim itar suas p io res co n seq u ên cias para
as m ulheres. A in ten çã o divina p a ra o ca sam en to n ã o p o d e ser d eterm in a d a
a p artir de u m te x to so b re o divórcio.

6-9 A fim d e d iscern ir a v o n ta d e divina p ara o casam en to , Jesu s aplica


a andona Scriptura, o p rin cíp io d e q ue a E sc ritu ra in te rp re ta c o rre ta m e n te a

9 M. Hooker, The GospelAccording to Saint Mark, p. 235.


379 M a rc o s 10.3-9

E scritura. E le vai m ais lo n g e que a T o rá e apela p ara u m a au to rid ad e ante-


rior e m ais fu n d a m e n tal n a o rd e m d a criação: “ n o p rin cíp io d a criação D eu s
‘os fez h o m e m e m u lh e r’ ” .10Jesus, nesse p ro n u n c ia m en to , p re ssu p õ e m ais
u m a vez u m a au to rid a d e divina resid en te em si m esm o, pois ele n ão dedu%
um a co n c lu sã o d a E sc ritu ra (co m o fazem os escribas), ele declara a v o n tad e
de D e u s c o n fo rm e ap resen tad a em u m te x to d a criação, e n ã o co m o o texto
legal de M oisés.11 A citação de G ên esis 1.27 em M arcos 10.6 evidencia que
Jesus c o m p re e n d e o casam en to c o m o u m a u n iã o o rd e n ad a p o r D e u s en tre
u m h o m e m e u m a m u lh er.12 O fato de q u e o ca sam en to é u m a u nião de
h o m em e m u lh e r é in d icad o pela referên cia a “ pai e m ãe” e pela m en ção
de q u e o h o m e m d eve se “uni[r] à sua m u lh e r” n o versículo 7 .13 O m esm o
versículo é citad o p ara o m esm o efeito n o s M an u sc rito s d o m a r M o rto (C D
4.21). O s fariseus p e rg u n ta m duas vezes so b re exceções ao casam ento, e
Jesus declara d u as vezes a v o n tad e original de D e u s p ara o casam en to e que
“os dois se to rn a rã o u m a só c a rn e” (v. 8) e q u e “ o q ue D e u s uniu, n inguém
o sep a re” (v. 9).
O ensino de Jesus so b re casam ento é g o v ern ad o p o r um a nova com preen-
são do s pap éis e resp o n sab ilid ad es d o m arid o e esp o sa n o casam ento. N a
lei judaica, o p o d e r so b re o casam en to e o d ivórcio fica p re d o m in a n te m e n te
nas m ão s d o s h o m en s. O lugar d e u m a m u lh e r n o judaísm o d ep en d ia em
grande p a rte de seu relacio n am en to co m u m h o m e m — pai, m arid o o u filho.
O s texto s judaicos relacionados às m ulheres, d a m esm a fo rm a, canalizam
tipicam ente a discussão p o r in term éd io d o en c arg o m asculino. A discussão
sob re os v o to s d a m u lh e r em N ú m e ro s 30, p o r exem plo, m o stra a ex ten são
à qual se exigia o co n se n tim e n to m asculino a fim de ratificar o u anular os

10Muitos manuscritos gregos im portantes (‫ א‬B C L D) omitem “D eus” . A citação


de Gênesis 1.27, no entanto, tem a intenção clara de apresentar Deus com o o
Criador do hom em c da mulher.
11Veja T. W. M anson, The Teaching ofJesus (Cambridge: Cambridge University Press,
1951), pi 291-93.
12 Não existe nenhum indício aqui nem em nenhum outro trecho de que o casamento
ordenado por Deus poderia incluir “uniões” do mesm o sexo.
13 Em bora dois manuscritos im portantes (‫ א‬B) om itam a última parte do versículo 7
(“e se unirá à sua mulher”), a leitura provavelmente deve ser retida porque (1) a
evidência dos manuscritos para incluir esse comentário é abrangente e diversa c
(2) sem essa leitura o texto “e os dois se tornarão uma só carne” do versículo 8
seria com preendido de form a equivocada com o se referindo ao pai e mãe, e não
ao marido e esposa. Veja Metzger, TCGNT, p. 104-5.
M a rc o s 10.10-12 380

v o to s fem ininos. D o m e sm o m o d o , quase u m sexto d a M ishná é devotado


ao assu n to das m ulheres, m as os tex to s so b re as m ulh eres têm p o u c o a dizer
so b re as m u lh eres e m seu p ró p rio direito. E les se p re o c u p a m principalm ente
co m as tran siçõ es fem ininas n a vida da aliança d o pai co m o m arid o o u do
m arid o c o m o filho.
O en sin am en to de Jesu s so b re o casam ento, ao contrário, fundam enta-se
em u m a avaliação diferente da m ulher. Ele, citando G ênesis 1.27 (10.6), reco-
nhece qu e D e u s crio u a h u m an id ad e u n icam e n te c o m o h o m e m e m ulher.
Jesus, ao m e n cio n a r ex p ressam en te os dois sexos, declara que a m aldade e a
fem inilidade estão enraizadas n a v o n tad e criativa d e D e u s e são fundam entais
p ara o casam en to . A m u lh er, c o m o a criação so b eran a, n ão está sujeita ao
h o m em , m as é sua igual. Jesus, ap elan d o ainda p ara u m te x to co m p lem en tar
da criação d e G ên esis 2.24 em M arcos 10.7,8, declara que a o b rig ação do
m arid o p ara co m a esp o sa su p lan ta sua o b rig ação p ara co m o s p ró p rio s pais.
N a T orá, o m a n d a m e n to p ara h o n ra r os pais é u m d o s D e z M an d a m e n to s de
D e u s e fica abaixo apenas d o m a n d a m e n to p ara h o n ra r a D e u s (E x 20.12).
C o n tu d o , o efeito d o versículo 7 é d eclarar q ue u m a aliança d o m arid o com
a esp o sa na u n ião d o ca sam en to suplanta sua aliança c o m o p ai e a m ãe, co-
locan do, em san tid ad e, o ca sam en to abaixo apenas da obed iên cia a D eus. A
u nião d o h o m e m e d a m u lh e r n o ca sam en to resulta em “ u m a só ca rn e” , um a
no va criação, “ n ão são dois, m as sim u m a c a rn e” .
A m aio r d iferen ça en tre Jesu s e os rabis, n o en tan to , é esta: a política
judaica de divórcio, ao d ar ao m arid o o principal co n tro le so b re sua m ulher,
to rn a o h o m e m o se n h o r d o relacionam ento m atrim onial. C ontudo, de acordo
co m Jesu s, n ão é n e m o h o m e m n em a m u lh er q u e c o n tro la o casam ento,
m as D eu s, o s e n h o r d o ca sam en to : “ P o rta n to , o q u e Deus uniu, n in g u ém o
sep are” (grifo d o a u to r).14

10-12 E m 10.10, o d iscu rso m u d a p ara u m a “ casa” , o q u e em M arcos


significa tip icam en te u m a explicação adicional d o e n sin o de Jesu s aos disci-
pulos. “T o d o aquele q ue se divorciar de sua m ulher, exceto p o r im oralidade
sexual, e se casar c o m o u tra m ulher, estará c o m e te n d o ad u ltério ” declara
Jesus. E ssa é a p rim eira m en çã o ao n o v o casam en to n a narrativa, dev o tad a
ao ca sam en to e ao divórcio. A palavra p ara ad u ltério (gr. moichan) o c o rre 27
vezes n o N o v o T estam e n to , sem p re n o sen tid o re strito d a atividade sexual

14 Sobre “o senhor do casam ento”, veja G rundm ann, Das Evangelium nach Markus,
p. 272.
381 M a rc o s 10.10-12

im oral d e u m a p esso a casada co m o u tra q u e n ã o o cônjuge. A m en ção ao


novo casam en to n o s versículos 11,12 indica q ue o p ecad o d o adultério o co rre
co m o resultado d o n o v o casam en to m ais q u e c o m o resultado d o divórcio. N o
en tan to , essa im plicação é u m tan to en g a n ad o ra , p ois na lei judaica o novo
casam en to era válido só se o s fu n d a m e n to s d o d ivórcio fo ssem válidos. Se
o divórcio era inválido, en tão o in d iv íd u o co n tin u av a casado, e o segundo
casam en to era adultério. A ssim , a tô n ica d o en sin o d e Jesu s n ão é apenas
p ro ib ir u m n o v o ca sam en to ap ó s o divórcio, m as n eg ar o p re ssu p o sto dos
fariseus p ara o d ivórcio em geral.
O tex to d e 10.11 é u m a declaração su rp re e n d e n te , pois, n a co m p reen são
rabínica, o ad u ltério d o m arid o era c o m p u ta d o c o m o u m ato c o n tra o pai o u
o m arid o d a m ulher, e n ão co n tra a m ulher. A declaração de Jesus, co n tu d o ,
atribui às m u lh eres a p o sição d e agentes m orais soberanas. N o versículo 12,
Jesus estabelece ainda a responsabilidade e ação m orais da m u lh er ao declarar
que se ela é resp o n sáv el p o r iniciar o d iv ó rcio e d ep o is se casar, en tão ela
deve ser to ta lm e n te culpada p o r sua ação.
S up õe-se c o m freq u ên cia que as palavras em 10.12 p o d e m n ão ter sido
proferid as p o r Jesus, u m a vez que a lei judaica n ã o c o n ced e o direito d e di-
vórcio às m u lh eres (Josefo ,Ant. 15.259). O versículo 12 é co m u m e n te aceito,
até m esm o p o r estu d io so s co n serv ad o res, c o m o u m a in terp re taçã o m arcana
para o b en efício p articu la r das m ulheres gentias, p o is estas tin h am o direito
de se divo rciar n a sociedade g reco -ro m an a. E ssa conclusão, todavia, n ão é
necessária e q u ase co m certeza é u m equívoco. P rim eiro, a su p o sta heleni-
zação d o d ito n ão é em si m esm a to ta lm e n te satisfatória, p o rq u e os gentios
não co n sid eram ad últera u m a m u lh er q u e se divorcia d o m arid o p ara se casar
co m o u tro h o m e m , ao p asso que Jesu s co n sid era essa atitu d e adultério.15
Segundo, h á evidência d issem inada su g erin d o que, n o judaísm o, as m ulhe-
res tin h am d e fato o direito de se divorciar d o m arido. U m exem plo é o de
H ero dias em 6.17 q u e se divorciou d e seu p rim e iro m arido, Filipe, a fim de
se casar co m H e ro d es A n tip as (Ant. 18.110). A M ish n á tam b ém concedia
à m u lh er judia o d ireito d e divórcio (a) se o m arido, p o r causa de doença,
função, im p o tê n cia o u m á v ontade, n ão cu m p risse seus direitos conjugais; (b)
se o m a rid o tivesse coagido a m u lh er a se casar co m ele; o u (c) se a m ulher
fosse m e n o r d e id ade o u dem asiad am en te jo v em .16 O s pap iro s de Elafantina,
mais u m a vez, m o stra m que algum as m u lh eres egípcias judias conseguiam se

15 R. Gundry, Mark, p. 534.


16Veja Str-B 2.23-24.
M a rc o s 10.10-12 382

divorciar d o m arid o já n o século V a.C .17 P o r fim , e m ais im p o rta n te ainda,


u m certificado d e d iv ó rcio d o século II re c e n te m e n te p u b licad o (Se’elim 13)
co n firm a su b stan cialm en te q u e as m ulheres tin h am o direito de se divorciar
n o judaísm o. E sse d o c u m e n to legal, escrito p o r u m ad v o g ad o em favor de
um a certa S helm azion, filha d e J o s e p h Q e b sh a n d e E n -G e d i, afirm a “ que
isso é d e m im p ara você, u m an ú n cio d e divórcio e lib eração ” .18 A evidência
p re ced e n te indica q u e o d ireito das m ulheres d e se divorciarem do s hom ens,
em b o ra talvez n ã o tão d issem in ad o en tre as m ulheres judias c o m o en tre os
h o m en s judeus n e m tã o acessível a elas q u a n to a eles, n ão era im possível nem
d escon hecid o . O v ersícu lo 12, p o r co n seg u in te, n ã o precisa ser designado
p ara u m m eio exclusivam ente g re co -ro m a n o . A n tes, ele reflete as práticas de
divórcio p rev alen tes em p elo m e n o s alguns seg m en to s da sociedade judaica.
M arcos 10.1-12 é u m esb o ç o d e u m a n o rm a to ta lm e n te n o v a p ara o ca-
sarnento, tão n ecessária em n o ssa ép o ca q u a n to o era n a d e Jesus. D e aco rd o
co m o sen tid o claro d e 10.1-12, Jesu s n ã o p e rm ite espaço p ara o divórcio.
E claro q u e é possível arg u m e n ta r q u e a n eg ação categ ó rica d o divórcio
deveria ser qualificada pela exceção d o adultério, c o n fo rm e c o m p re en d id o
p o r M ateus 5.32; em 19.9, o ad u ltério era o fu n d a m e n to co n ced id o a to d o s
os judeus p ara ser u m a causa aceitável para o divórcio. Se esse fo r o caso,
en tão a im plicação d o s versículos 11,12 seria q u e n ã o há fu n d a m e n to p ara o
divórcio, excetopelo adultério. E m b o ra seja possível qu e a exceção d o adultério
esteja im plícita n o s versículos 11,12, n ã o creio q ue p o d e m o s afirm a r com
certeza q u e isso seja d e fato o q ue é d ito ali. A m esm a lógica n ão se aplica
a su p rir “ p o r ele te r ach ad o coisa in d ece n te n ela” (= adultério; A R A ) nos
versículos 11,12 c o m o ta m b é m n ão se aplica a inclusão d e “ p o r qualquer
m o tiv o ” n o versículo 2, pois o versícu lo 2 reflete a o pin ião judaica, ao passo
q u e o versículo 12 reflete o ju lg am en to d e Jesu s q u e diferia d a prática judaica
em m u ito s p o n to s.

1' B. Porten e A. Yardeni, Textbook of Aramaic Documentsfrom Ancient Egypt (Jeru-


salem: Hebrew University Press, 1986-96). Além disso, uma passagem de Filón
(Spec. I^eg. 3.30) narra D euteronôm io 24.1-4 com a mulher, e não o marido, como
sujeito, e isso seria uma sugestão de que Filón aceitava o direito das mulheres de
se divorciarem do marido.
18Veja D. Instone-Brewer, “Jewish W omen Divorcing Their Husbands in Early
Judaism: T he Background o f Papyrus Se’elim 13” , HTR 92 (1999), p. 349-57, que
argumenta fundam entado no papiro em questão e em evidência suplementar que
essas certidões de divórcio eram “partes da prática norm al em algumas seções do
judaísmo em seus prim ordios”.
383 M a rc o s 10.10-12

Se Jesu s p e rm itia o divórcio o u n ã o c o m b ase n o adultério, p o rta n to , é


in certo ; n e m m esm o n o caso d o ad u ltério n ã o h á indício de q u e ele exigia o
divórcio, c o m o os rabis. Se o cô njuge cu lp ad o se arre p e n d esse e parasse de
pecar, e o o u tro cô n jug e a o u o p erd o asse, o ca sam en to p o d ería ser redim ido.
A cláusula d o divórcio, d e q u alq u er fo rm a , n ã o é a chave para a narrativa de
M arcos. A tô n ica essencial de 10.1,2 é a inviolabilidade d o laço d o casam en to
c o n fo rm e a in ten çã o d e D e u s e a in stitu ição d o m a trim ô n io pelo Senhor.
Jesus n ã o c o n c e b e o casam en to co m b ase em sua dissolução, m as co m base
n o p lan o arq u ite ta d o p o r D e u s e n o p ro p ó s ito dele p a ra essa u n ião .19 A falha
h u m an a n ã o altera o p ro p ó s ito (Rm 3.4). A in te n ç ã o d o ensin o d e Jesu s não
é a c o rre n ta r aqueles q u e falham n o ca sam en to à culpa debilitante. A q uestão
não é se D e u s p e rd o a aqueles que falham n o casam ento. A re sp o sta a isso é
g aran tida e m 3.28: “ E u asseguro q u e to d o s os p e c a d o s e blasfêm ias dos ho-
m ens lhes serão p e rd o a d o s” . N ã o há, afinal, n e n h u m a in stân cia n a E scritu ra
de u m in div íd u o b u sca n d o p erd ão e este ser n eg a d o p o r D eu s. A q uestão
em n o ssa é p o c a d o s co m p ro m isso s im p e rm a n e n te s e o divórcio trivial é se
nós, c o m o cristãos, o u v irem o s o ch a m a d o ú n ico de C risto ao discipulado
no casam en to . N o casam en to , c o m o em o u tras áreas às quais o ch a m a d o de
C risto se aplica, será q u e b u scam o s alívio n o q ue é p e rm itid o o u n o s com -
p ro m e te m o s co m a in ten ção de D eu s e co m a o rd e m d e C risto? Será que
nos en fraq u e cem o s n o s pro b lem as e dificuldades (4.17) o u seguim os Jesus
na cu sto sa jo rn a d a d o discipulado, até m esm o n o casam en to ? Será q u e ro m -
pernos a u n ião divina de “ dois se to rn arjem ] u m a só c a rn e” , o u h o n ra m o s e
nutrim os o ca sam en to co m um a dádiva e criação d e D eu s?

O D I S C I P U L A D O E A S C R IA N Ç A S ( 1 0 . 1 3 1 6 ‫) ־‬

Jesus, ap ó s tra ta r d o discipulado n o casam en to , trata a q u estão d o disci-


pulado re fere n te às crianças.20 O O c id e n te m o d e rn o con sid era um a virtude a
delicadeza p ara co m as crianças. As organizações d e assistência social apelam
po r ap o io ao m o s tra r beb ês e crianças desfiguradas pela fo m e e pela guerra.

19Veja G. CoUier, “Rethinking Jesus on Divorce” , ResQ 37 (1995), p. 80-96, que


argumenta corretam ente que os fundamentos de Jesus para esse ensino não é
o casuísmo moral, mas a vontade divina. “Jesus” , em seu ensinamento sobre o
casamento, “está clamando: ‘Busque o coração de D eus’ ” .
20 Gundry, Mark, p. 545, defende corretam ente a cronologia da história aqui funda-
mentado no fato de que se Marcos (ou o redator pré-marcano) estivesse reorga-
nizando os materiais sem levar em consideração a cronologia, essa história seria
mais provavelmente agrupada ou juntada com 9.33-37.
M a rc o s 10.13-14 384

O s políticos asseguram v o to s p eg a n d o crianças n o colo e as beijando. A


sociedade judaica d a A n tig u id ad e, n o en tan to , n ã o considerava as crianças
co m a m esm a afeição. A s crianças, c o m o as m u lheres, derivavam sua posição
n a sociedade b asicam en te d o re la cio n am en to que tin h am c o m os hom en s
adultos. O s filhos, co m certeza, eram co n sid erad o s u m a b ên ç ão d e D eus,
m as em g ra n d e p a rte p o rq u e g aran tiam a c o n tin u aç ão da fam ília p o r outra
geração — e au m en tav a su a força d e trabalho. A infância era tipicam ente
co n sid erad a c o m o u m ín terim inevitável en tre o n ascim en to e a vida adulta,
alcançada aos treze an o s p elo s m eninos. A b u sca n a literatu ra judaica e cristã
prim itiva p o r atitu d es d e solidariedade em relação às crianças c o n fo rm e essa
d em o n stra d a p o r Jesu s será em vão.

13 “A lguns traziam crianças a Jesu s p ara q u e ele tocasse nelas, m as os


discípulos o s re p reen d ia m .” A in definição d e q u em tro u x e as crianças, onde
isso a c o n te c e u e p ara qual ocasião é típica d e M arcos, p o is esse evangelista
ob scu rece d etalh es co n tex tu á is a fim d e ac e n tu a r a palavra e trab a lh o de
Jesus. A re sp o sta d o s discípulos às crianças re p e te a exclusividade e elitism o
em relação ao exorcista in d e p e n d e n te em 9.38, q u e m ais u m a vez indica que
a atitud e deles c o n tin u a a ser fo rm a d a p elo s p a d rõ es da sociedade, e não
pelos de Jesus. D e ac o rd o c o m M arcos, “ os discípulos [...] re p ree n d ia m [as
crianças]” . A palavra “ rep ree n d fer]” é u m a descrição m u ito severa, usada em
o u tro s tte c h o s d e M arcos n o s quais se relatam a expulsão de d em ô n io s no
exorcism o (1.25; 3.12; 9.25), os o p o n e n te s da v o n tad e de D e u s (4.39; 8.30-33)
o u a ce n su ra franca (10.13,48). O s discípulos, c o m o P ed ro “ n ão pensa[m ]
nas coisas d e D e u s, m as nas d o s h o m e n s” (8.33).

14 Jesu s se o p õ e c o m sev erid ad e ao c o m p o rta m e n to deles. M arcos


m e n c io n o u a n te rio rm e n te a ira d e Jesu s co m a co n d ição d o le p ro so (1.41),
m as o versículo 14 é a única passag em n o s evangelhos em que se diz que
Jesus ficou “ in d ig n ad o ” . A palavra p ara “in d ig n ad o ” (gr. aganakteiri) significa
“ ficar co m raiva” , o u seja, d e m o n s tra r co m v eem ência o d esp razer d e fo rm a
expressa, em vez d e apenas reclam ar so b re a situação. O o b jeto d a indignação
de u m a p esso a revela m u ito so b re ela. O d esp raze r de Jesu s aqui revela sua
com p aix ão e d efesa d o s in d efeso s, vulneráveis e im p o ten tes. “ D eix em vir a
m im as crianças, [...] p o is o R eino de D e u s p e rte n c e aos que são sem elhantes
a elas.” E m vez d e excluir as crianças, Jesu s as elogia co m o as verdadeiras
herdeiras d o re in o q ue ele in au g u ro u . E ssa afirm ação revela m ais u m a vez
385 M a rc o s 10.15

a au to rid a d e única d e Jesus, p o is ele assu m e a b e rta m e n te co rrelacio n ar o


R eino de D e u s co n sig o m esm o. A s crianças, ao v irem até Jesus, vêm àquele
em q u e m se m an ifesta o reino p re se n te d e D eu s.

15 Jesu s re p ete essa lição co m u m p ro n u n c ia m e n to divino: “D ig o a ver-


dade: Q u e m n ã o receb er o R eino de D e u s c o m o u m a criança, n u n ca entrará
nele” . A s crianças — em particular, as crian cin h as — são co m frequência
elogiadas p o r sua inocência, esp o n tan e id ad e e hum ildade. A ssum e-se co m
frequência q ue é p o r causa dessas qualidades q u e Jesu s as elogia. N o entanto,
n ão p arece q u e essa é razão — o u pelo m e n o s a razão p rim ária — p o r que
Jesus a b e n ço a as crianças. A ênfase n essa b rev e h istó ria cai so b re as crianças
m esm as, e n ã o nas virtudes, reais o u im aginárias, delas. A s crianças continuam
sem se r identificadas. A palavra g rega p ara “ cria n cin h as” é u m dim inutivo
(paidia), cujo sen tid o é “m u ito jovem ” o u “ b e b ê s” , o u co m o Lucas 18.15
afirm a, “ crian cin h as” . A term in o lo g ia sugere q u e as crianças estão abaixo da
“idade d e p re sta ção d e co n ta s” e, p o r co n seg u in te, n ão se enfatiza a v irtu d e
delas, m as, sim , o d esa m p a ro delas.21 Se p re su m irm o s q u e Jesu s elogia as
crianças p o r causa de sua inocência, p u re z a o u até m esm o esp o n tan eid ad e,
en tão p recisam o s co n clu ir q ue a aceitação d o s discípulos n o R eino d e D eu s
dep end e d e virtudes similares. C ontudo, a descrição dos discípulos p o r M arcos
deixa reiteradas vezes claro q ue isso é ex a ta m en te o q u e n ão são, n em nós
tam p o u co o som os. N ã o so m o s in o cen tes e desejosos, m as lentos, descrentes
e covardes. N e ssa história, as crianças n ão são ab en ço ad as p o r suas virtudes,
m as p o r aquilo q u e não têm. vêm co m o são — pequenas, sem p o d er, sem sofis-
ticação, c o m o o s ig n o rad o s pela sociedade e os d esp o ssu íd o s d a sociedade.22
R eceber o R eino d e D e u s c o m o u m a criança é receb ê-lo c o m o aqueles que
não tê m créd ito s, n e m respaldo, n em reivindicações.23 U m a criança p eq u en a

21 Acentua-se o aspecto do desamparo na versão dessa fala preservada no Evangelho


de Tomé 22 que identifica as crianças com o bebês que ainda são amamentados:
“Esses pequenos ainda amamentados são com o aqueles que entram no reino”.
22 A singularidade do com portam ento e do ensino de Jesus é mais apreciada por
meio da comparação com aqueles de Thomas the Contender (139.11-12), um tratado
gnóstico de Nag Hammadi, que cita essa mesma história para afirmar que os bebês
são simplesmente com o animais selvagens até se tornarem perfeitos!
23Um ponto apresentado por J. L. Bailey, “Experiencing the Kingdom as a Litde
Child: A Rereading o f Mark 10:13-16” , WordWorldlS (1995), p. 58-67, que vê as
crianças com o o epítome da vulnerabilidade, e os discípulos, em solidariedade
com elas, tam bém experimentam o Reino de Deus.
M a rc o s 10.16 386

n ão tem a b so lu tam en te n ad a p ara trazer, e o q u e q u e r que seja q u e a criança


receba, recebe pela graça c o m b ase n a p u ra necessidade, e n ão p o r qualquer
m érito in ere n te a ela. A s criancinhas são paradigm as d os discípulos, pois só
as m ãos vazias p o d e m ser enchidas.
O tex to de 10.15, em especial, d ese m p e n h a u m papel relevante na discus-
são d o b atism o infantil. A p eríc o p e so b re Jesus e as crianças, é claro, é sobre
ab en ço ar as crianças, n ão so b re batizá-las, m as ta n to a b ên ção d e Jesus quanto
as palavras d a n arrativ a estab elecem u m c o n te x to positivo p ara co n sid erar a
q u estão d o b a tism o infantil. C alvino arg u m e n to u q u e se as crianças foram
trazidas até Jesu s p ara re c e b e r o reino, q u e é a so m a d a b ên ç ão selada pelo
batism o, p o r q ue o b atism o deve ser n eg a d o a elas?24 C ullm ann argum enta
q u e a linguagem d a p eríc o p e foi escolhida p o r M arcos a fim d e re sp o n d er
à p erg u n ta d a validade d o b atism o infantil.25 E m b o ra o p o n to d e C ullm ann
seja possível, parece m ais provável q u e a linguagem d o b atism o cristão nos
p rim o rd io s foi re tira d a d essa passag em , p o is o b atism o infantil dificilm ente
era u m a q u estão n a é p o c a em q ue M arcos escreveu seu evangelho. N ã o obs-
tan te, as co rrelaçõ es n a linguagem en tre essa p eríc o p e e as liturgias batism ais
da igreja em ép o cas p o ste rio re s in d icam q u e a igreja prim itiva p erceb ia a
relevância d essa h istó ria p a ra o b atism o infantil.

16 As p esso as qu eriam q u e Jesu s to casse suas crianças (v. 13). N o en-


tan to , Jesu s fez m ais d o q u e apenas tocá-las. E le “ to m o u as crianças nos
b raços, im p ô s-lh es as m ão s e as a b e n ç o o u ” . O q ue ex atam en te as pessoas
esp erav am re c e b e r c o m o to q u e e b ên ção d e Jesus? O ritual d e abençoar era
m u ito c o n h e c id o em Israel. N o é a b e n ç o o u Sem e Jafé (G n 9.26,27); Isaque
ab e n ç o o u Jac ó e E s a ú (G n 27; 28.1-4); e Jac ó a b e n ç o o u seus filhos e neto s
(G n 48— 49). E ssas b ên ção s ten d em a ser oficiosas em n atureza, relacionadas
em partic u la r c o m o p assa r ad ian te o n o m e o u p ro p rie d ad e de alguém . “A
b ên ção d o pai estabelece a casa d o s filhos” , declara Sir 3.9.26 A im p o sição de

24J. Calvino, Commentary on a Harmony of the Evangelists, vol. 2 (Edinburgh: T. & T.


Clark, 1945), p. 390-91.
25 Em especial, Cullman argumenta que mêhõlyete auta (“não as impeçam” , v. 14) são
as mesmas palavras que aprovavam os batismos na igreja primitiva (Baptism in the
New Testament, trad. J. Reid, SBT [London: SCM Press, 1950], p. 72-78). Para uma
visão contrária, veja G. R. Beasley-Murray, Baptism in the New Testament (London:
Macmillan, 1962), p. 320-29.
26 O judaísmo tardio formalizava as bênçãos do sábado ou dos dias santos e, em
geral, na sinagoga. Uma bênção tipicamente paternal de um filho é aquela de Gé-
387 M a rc o s 10.16

m ãos tam b ém era u m ritual de investidura em Israel da perspectiva sacerdotal,


p o r m eio d o qual a sab ed o ria (D t 34.9) e o esp írito da função (N m 27.18-20)
eram co n ferid o s n a ordenação. E sse ritual tam b ém co n tin u o u no s prim ordios
do cristian ism o (A t 6.1-6; 13.1-3).
Jesus, nas curas d o d o e n te e n o auxílio ao s necessitados, im p u n h a as
m ão s nas p esso as m ais c o m u n s e fazia isso c o m m a io r frequência que a
sociedade judaica em geral. Seu to q u e trazia b ên ção s, m as tam b ém era um a
b ênção , u m a ex p ressão tangível d o a m o r in co n d icio n al d e D e u s pelos im pu-
ros, estrang eiro s, m u lh eres e crianças. O to q u e d e Jesu s nas pessoas com u n s
to rn o u -se u m a m arca característica d e sua atitu d e e m inistério. T am b ém se
to rn o u u m a característica essencial d o m o v im e n to q u e ele fu n d o u , p o u p an d o
esse m o v im e n to d a hierarquia e elitism o incipientes, q u e r p ro fessio n al q u er
ascético, tã o co m u n s n a religião. “ Se as crianças fo ssem m an tid as lon g e de
Jesus e se o cristian ism o fosse algo só p ara os h o m e n s, e n tão o resu ltad o
seria o u tro evangelho, e n ão aquele de Jesus; e o u tra igreja, e n ã o a dele.” 27

D I S C I P U L A D O E P O S S E S ( 1 0 . 1 7 3 1 ‫)־‬

O ch a m a d o ao discipulado envolve u m cu sto de discipulado. O s pes-


cadores tê m d e a b a n d o n a r os barco s e red es (1.16-20); o p u blicano, a m esa
na co leto ria (2.14); e P edro, sua falsa co n c e p ç ã o d o M essias (8.33). O u tro
discípulo terá d e deixar sua segurança d e e sp e c ta d o r e to m a r literalm ente
a cru z d e Jesu s (15.21). O ch am ad o p ara seguir Jesu s n ão se co n stitu i u m a
o brigação adicional n a vida, m as, antes, julga, su b stitu i e su b o rd in a to d as as
ob rigações e alianças àquele q ue diz: “ Siga-m e” . T u d o q u e im p eça seguir esse
cham ado, in clu in d o a o b rig ação p ara co m os pais (M t 8.21), é u m perigo.28
O h o m e m rico n a p re sen te história, co m suas p o sses e p o sição social,
re p rese n ta u m co n tra ste m arcan te co m as crianças sim ples d a h istória ante-
rior. E le receb e u m a im agem m ais clara d o re in o q u e q u alq u er o u tra pessoa
até ag o ra n o evangelho d e M arcos e d e m o n s tra g ra n d e desejo de aceitá-lo.
N o e n ta n to , seus b en s invejáveis p ro v a m ser u m a d esv an tag em m aio r na

nesis 48.20: “Q ue Deus faça a você com o fez a Efraim e a Manassés!”; e de uma
filha: “Faça o S enh or com essa mulher que está entrando em sua família como
fez com Raquel e Lia” (veja Rt 4.11), seguida pela bênção aarônica (Nm 6.24-26).
Veja Encjud. 4.1.087.
2' A. Schlatter, Die Evangelien nach Markus und Lukas, p. 103-4.
28 Billy Graham disse o seguinte sobre essa história: “O jovem veio com a pergunta
correta para o hom em certo e recebeu a resposta correta, mas tom ou a decisão
errada” .
M a rc ó s 10.1 7 1 9 ‫־‬ 388

h eran ça da vida etern a q u e os déficits e escassez das criancinhas n a história


anterior, pois in c o rp o ra m a essência d o R eino de D eus, e n q u a n to ele d á as
costas p ara esse rein o divino.

17 Jesus ainda está n a ju d e ia , co n tin u an d o “n o cam in h o ” p ara Jerusalém .


M ateus identifica o h o m e m q u e se ap ro x im o u de Jesu s c o m o jovem (19.20),
e Lucas o ch am a d e g o v ern an te, “ h o m e m im p o rta n te ” (18.18); daí, o n o m e
co m u m dessa h istó ria ser “ o jovem g o v e rn a n te rico ” . M arcos, n o entanto,
o ch am a em u m g re g o sim ples d e “u m h o m e m ” o u “u m a certa p esso a” . As
designações n ão especificadas c o m o esta são típicas d e M arcos, e, n a presente
instância, “ u m h o m e m ” ac en tu a a aplicabilidade d a histó ria p ara to d o s os
leitores. O h o m e m “ c o rre u em sua direção [na d e Jesus] e se p ô s d e joelhos
dian te d ele” . Sua p re ssa e su b m issão su g erem seu desejo d e se to rn a r um
discípulo. “ B om m e stre” , p e rg u n to u ele, “q u e farei p ara h erd ar a vida eterna?”
N in g u ém q u e te n h a o u v id o Jesus en sin ar na G alileia fez u m a p e rg u n ta de tal
m agnitude, n e m m e sm o os p ró p rio s discípulos de Jesus. F inalm ente, é feita
a Jesu s a p e rg u n ta essencial, capaz d e divulgar o sen tid o de seu m inistério.

1 8 ,1 9 Iro n ic a m en te, Jesu s re té m a re sp o sta esp erad a p elo jovem rico.


Talvez ele sinta q u e a p e rg u n ta p ro ferid a pelos lábios desse h o m e m n ão é a
p erg u n ta d e seu coração. “ P o r q u e v o cê m e cham a b o m ?” , re tru c o u Jesus.
“ N ã o h á n in g u ém q u e seja b o m , a n ão ser so m en te D e u s ” .29 E ssa resposta
é u m a fo n te freq u en te de perplexidade, m as co n sid eran d o -se a p o stu ra de
serv o d e Jesu s e o fato d e q u e ele buscava velar sua id en tid ad e m essiânica,
talvez n ão seja tã o su rp re e n d e n te q u a n to se su p õ e co m frequência. N ã o é
essen cialm en te d iferen te d o te ste m u n h o d e Jo ã o 5.19 de q u e “ o F ilh o não
p o d e fazer n a d a d e si m esm o ; só p o d e fazer o q u e vê o Pai fazer” .30 O s rabis

29 Mateus 19.17 percebeu a desonra inerente no texto de Marcos e mudou: “Por que
você m e chama bom ?”, para: “Por que você me pergunta sobre o que é bom?”.
Isso transform a a afirmação seguinte em Mateus (“Há som ente um que é bom ”)
em um non sequitur (i.e., argumento ou conclusão sem conexão lógica com o que
se disse antes). A leitura resultante em Mateus é um argumento convincente a
favor da prioridade de Marcos.
30O texto de 10.18 foi lembrado e citado por Jusüno Mártir, Apologia 1.16.7; e
Hipólito, Refutação de todas as heresias, 5.7.25-26. Observe a reflexão de George
MacDonald sobre esse versículo: “O Pai era tudo para o Filho, e o Filho não
pensou mais sobre sua própria bondade que um hom em honesto pensa sobre sua
honestidade. Q uando o hom em bom vê a bondade, ele pensa sobre seu próprio
389 M a rc o s 1 0 .1 7 1 9 ‫־‬

acolhiam b e m u m a série d e títulos (e.g., 12.38), m as apenas raram en te u m


rabi era tra ta d o p o r “ b o m m estre” , p o r m e d o d e blasfêm ia co n tra D eus, o
ú nico q u e é b o m . D e fo rm a similar, a re sp o sta d e Jesus n o versículo 18 dire-
cio n a o h o m e m d e fo rm a inequívoca a D eu s. O “ m e ” n a p e rg u n ta retórica é
p o sta enfaticam en te n o início da sen ten ça, cujo sen tid o é: “ P o r q u e você me
ch am a b o m ? ” (grifo d o autor). D a m esm a fo rm a , o p ro n u n c ia m e n to d e que
“n in g u ém é b o m , a n ã o ser um , que é D e u s ” ta m b é m p o d e ser lida “ exceto
o único D e u s ” , d irec io n an d o de fo rm a ex p ressa o h o m e m para o ú nico D eu s
v erdadeiro d e Israel (D t 6.4). A lém disso, n o versículo 19, Jesu s ap resen ta a
esse h o m e m u m re su m o dos m an d am e n to s ético s n o D e cálo g o (E x 20.12-
16; D t 5.16-20). À s p ro ib içõ es c o n tra o assassinato, adultério, ro u b o , falso
te ste m u n h o e d e so n ra r os pais, Jesus acresc en ta a o rd e m para que ele n ão
o p rim a o p o b re .31 E sse m a n d am e n to n ão se en c o n tra n os D e z M andam entos,
m as p o d e te r sido acrescen tad o p o r causa d e su a relevância p ara o h o m em
rico, u m a vez q ue a riqueza é co m frequência ad q uirid a às custas d o p o b re .32
A ênfase ex p ressa ta n to na b o n d a d e d e D e u s q u a n to em seus m an d am e n to s
n a re sp o sta d e Jesu s p ara o h o m e m sugere que, ap e sar de seu zelo m oral (ou
talvez p o r causa dele) algo esteja faltan d o em seu rela cio n am en to co m D eus.

mal: Jesus não tinha nada de mal para pensar, mas tam bém não pensa sobre sua
bondade; ele se deleita em seu Pai” (C. S. Lewis, George MacDonalá An Anthology
[New York: Macmillan, 1978], p. 25).
31 O m andam ento “N ão oprimam” é excluído do versículo 19 por vários manuscritos
de peso (B K W Δ Π Ψ). N o entanto, deveria provavelmente ser retido, por causa
de seu considerável apoio em manuscritos (‫ א‬A B C D X Θ) e porque um copista
seria mais inclinado a deletar uma afirmação perigosa do que incluí-la na lista dos
Dez M andamentos. Em bora a adição não esteja entre os D ez M andamentos, ela
reflete a vontade de Deus expressa em Êxodo 20.17; D euteronôm io 24.14; Sir
4.1. As listas dos Dez M andamentos na literatura dos primordios do cristianis-
m o revelam com frequência seletividade, acréscimos ou ambos. Uma lista em
Romanos 13.9 inclui apenas adultério, assassinato, roubo e cobiça. Uma lista em
Didaquê2.X~y, 6.1-2 inclui os mesmos quatro itens mais uma dúzia de mandamen-
tos, incluindo proibições contra a sodomía, aborto, infanticidio e mágica. Uma
lista em Epístola de Bamahé 19.4-8 inclui adultério e cobiça, além de outras dezoito
proibições, incluindo também aborto, infanticidio e sodomía.
32 Contra W. D. McHardy, “Mark 10:19: A Reference to the Old Testament?” ExpTim
107 (1995-96), p. 143, que argumenta que a adição “não oprima” não é passível de
explicação e, p or conseguinte, deve ser uma palavra-chave escrita por um escriba
na margem de um manuscrito que, mais tarde, foi inadvertidamente acrescentada
ao texto. A razão sugerida na nota de rodapé anterior explica melhor a inclusão do
mandamento, ao passo que não há evidência para a hipótese marginal de McHardy.
M a rc o s 10.20-21 390

Se “ ninguém é b o m , a n ã o ser u m , q u e é D e u s ” , e n tão o h o m em , dian te de


D eu s, ainda n ão tem algo, m e sm o se guardasse to d o s o s m an d am en to s. A
p erg u n ta in esp erad a d e Jesu s em sua re sp o sta tem a in ten çã o de fazer com
que o h o m e m p asse d a co n fian ça em sua retid ão m o ral p a ra o p ro p ó sito
d errad eiro d e su a vida — c o n h e c e r a D eus.

20 O h o m e m p e rg u n ta o q ue ele deveria father a fim d e h e rd a r a vida


etern a (v. 17), o q u e su g ere q u e ele c o m p re en d e o c o m p o rta m e n to c o m o a
exigência d errad e ira d a religião. Jesus, d o m esm o m o d o , d irecio n a-o p ara a
lei m o ral c o n fo rm e afirm a d o n a seg u n d a m etad e d o D e cálo g o (v. 19). O s
m an d am e n to s d e D e u s estão n a raiz d o c o m p o rta m e n to c o rre to e direcionam
a p esso a p ara D e u s. “ M estre” , disse ele, “ a tu d o isso te n h o o b ed e cid o desde
a m in h a ad o lescên cia” . O h o m e m , pela seg u n d a vez, dirige-se a Jesu s co m o
“M estre” e, n a seg u n d a vez q ue se dirige a Jesus, c o m o n a p rim eira vez no
versículo 17, o leito r o u v e a m esm a g aran tia d o re g istro m o ral notável do
hom em .
O s leitores cristãos p o d e m estar inclinados a du vid ar da sinceridade desse
p ro n u n c ia m en to . Será q u e Jesu s m o s tro u q u e a m á intenção é o m e sm o que a
ação (M t 5.21-48)? O s D e z M an d a m e n to s, c o m a única exceção d o m anda-
m e n to final c o n tra a cobiça, falam só d e atos, e estes p o d eríam ser g u ardados
d e fato — m esm o se a in ten çã o d a p esso a fosse ou tra. Paulo, em seus dias
antes de se to rn a r cristão, tam b ém p ô d e an u n ciar q ue era, “ q u a n to ao zelo,
p erseg u id o r d a igreja; q u a n to à justiça q u e h á n a Lei, irrepreensível” (F p 3.6).
Strack e Billerbeck, em seu magnum opus so b re o judaísm o, afirm am : “ O fato de
q u e u m a p esso a tin h a a habilidade sem exceção d e cu m p rir os m an d am e n to s
de D e u s estava tão firm e m e n te enraizada n o en sin o rabínico que, c o m to d a
seriedade, falavam d e p esso as q u e g u ardavam to d a a T o rá de A a Z ” .33

21 O s leitores cristão s p re ssu p õ e m co m freq uên cia que esse h o m e m era


h ip ó crita p o rq u e a p re se n to u seu relato m o ral a Jesus. N o en tan to , esse não
parece ser o caso, p o is M arco s diz q ue “Jesu s o lh o u p ara ele e o a m o u ” . Jesus
n ão olhava p ara a h ip o crisia co m am or. C aso se co n sid ere q u e o versículo 20
revela arro g ân cia, e n ã o hipocrisia, isso ta m b é m p o d e ser u m julgam ento
equivocado. C o n sid e ran d o -se a afeição d e Jesu s p o r esse h o m em , parece
m ais razoável p re s su p o r q u e sua ap resen tação d e sua b o n d a d e foi u m tan to
sim ilar a d e u m a criança, talvez sem q u alq u er reflexão, m as n ã o arro g an te. A

33 Str-B 1.814.
391 M a rc o s 10.2021‫־‬

palavra g re g a trad u zid a p o r “ o lh o u ” (gr. emblepein) é u m te rm o c o m p o sto da


palavra p ara “ o lh a r” co m ênfase, cujo sen tid o é “ o lh a r c o m in te n ç ã o ” , “ exa-
m inar” o u “ esc ru tin ar” . Jesu s n ã o se deixa e n g a n ar p elo jovem rico. E le viu o
ín tim o d esse jovem e “ o am o u ” . A palavra g re g a trad u zid a p o r “ am farj” (gr.
agapati) é a fo rm a m ais sublim e d e am o r n o N o v o T estam en to , cujo sentido
é o a m o r q u e caracteriza D e u s e d o qual D e u s é digno. D e v ia haver algo raro
e adm irável n esse h o m e m , pois, n o evangelho d e M arcos, n ão se afirm a que
Jesus “ o a m o u ” em relação a n in g u ém mais.
P ressu p u n h a-se ainda q u e se alguém seguisse a lei p erfeitam en te, recebe-
ria a vida etern a. N e ssa passagem , Jesu s en sin a algo b e m d iferente. P o d em o s
assu m ir seg u ram en te q ue o h o m e m guardava a lei, p o is Jesu s n ão desafia a
afirm ação dele em relação a esse asp ecto n o v ersículo 20. C o n tu d o , m esm o
se a lei fosse guard ad a, o asp ecto m ais essencial ainda n ão estava presente!
“ ‘Falta u m a coisa p ara v o cê’, disse [...] [Jesus]. 4Vá, v en d a tu d o o q u e você
possui e dê o d in h eiro aos p o b res, e v ocê terá u m te so u ro n o céu. D ep o is,
v en h a e siga-m e’ ” (tam b ém L c 12.33,34). C o m o o R eino de D e u s é p ro fu n -
d am e n te irônico. A firm a-se n a h istó ria an te rio r que n ão faltava n ad a p ara as
crianças q u e n ão tin h am nada, m as q ue o R eino de D e u s era delas; co n tu d o ,
falta algo p ara esse h o m em q u e p o ssu i tudo! Só q u a n d o ele v en d e r tu d o que
tem — só q u a n d o ele se to rn a r vulnerável co m o u m a criança — é q u e terá
tudo. Jesus, p a ra a p erg u n ta so b re o q u e ele precisa p ara h e rd a r a v ida n o
fu tu ro (v. 17), d irecio n a-o p ara o presente. E le precisa fazer algo agora. Sua
plen a aderên cia à lei m oral, p o r m e lh o r e n ecessário q u e isso seja, n ã o é u m
su b stitu to p ara seguir Jesus.34 A p erg u n ta so b re a lei, em o u tras palavras,
é re sp o n d id a co m referência ao re la cio n am en to c o m Jesus! A verdadeira
ob ediência à lei só p o d ia ser alcançada ao se to rn a r discípulo d e Jesus, e a
obed iên cia à lei, a m en o s q u e leve ao d iscipulado c o m Jesus, é in co m p leta e
fútil. O h o m e m , ao seguir Jesus, “ terá u m te s o u ro n o céu” (v. 21). Jesus se
oferece c o m o u m su b stitu to p ara as p o sses d o h o m em .

34 “Em bora [Jesus] não se oponha à lei, ele indica que o mais im portante era aceitá-lo
e segui-lo. Isso por fim podería resultar na percepção de que a lei não é necessá-
ria, mas parece que o próprio Jesus não chega a essa conclusão, nem, tampouco,
parece que essa era a acusação contra o jovem rico. [...] [Ele] considerava sua
própria missão com o aquilo que realmente contava para alcançar a vida eterna. Se
a coisa mais im portante que as pessoas podiam fazer era aceitá-lo, a importância
de outras demandas ficava reduzida, apesar de Jesus não dizer que essas demandas
eram inválidas” (E. P. Sanders, The HistoricalFigure ofJesus [London: Penguin Press,
1993], p. 236-37).
M a rc o s 10.22-25 392

22 “D ian te d isso ele ficou ab atid o e afastou-se triste, p o rq u e tin h a m uitas


riquezas.” Q u e c o n tra ste co m sua co n fian ça an te rio r (w . 17,20). O ho m em ,
e n q u a n to se su sten tav a em seus p ró p rio s m éritos, sentia-se seguro de si;
m as a palavra d e Jesu s o ch am a para sair d e seu p o rto seguro, c o m o fizera
a n te rio rm e n te q u a n d o c h a m o u os discípulos p ara içar a ân co ra e se lançar
em m a r a b e rto o n d e n ã o h á segurança, exceto Jesus. M arcos descreve sua
reação c o m u m a palavra p artic u la rm en te descritiva em g rego, stygnatgin, com
o sen tid o d e “ c h o c a d o ” , “ alarm ad o ” o u “ n u b lad o co m o o céu ” . O “ engano
das riquezas [...] su fo c am a palavra” (4.19). U m a p esso a q u e leva um a vida
ex e m p la r— q u e até m esm o se to rn a b en q u isto para o F ilho de D eu s — ainda
assim p o d e se r id ó latra.
A p a rtir d esse relato, o que devem os d e d u z ir so b re a riqueza e a po-
breza? D u a s coisas p o d e m ser ditas so b re a atitu de d a E scritu ra em relação
às posses. P o r u m lado, a riqueza era c o m u m e n te co n sid erad a u m sinal da
b ên ção d e D e u s (fó 1.10; 42.10; SI 128.1,2; Is 3.10). A tradição rabínica tardia,
c o n sid e ra n d o a p o b re z a co m o a aflição m ais severa n o m u n d o , concordava
q u e essa c o n d içã o su p erav a to d as as o u tras adversidades juntas.35 P o r o u tro
lado, n o e n ta n to , o A n tig o T e stam e n to b atalh a pela causa d o s viajantes, das
viúvas, d o s ó rfão s e d o s p o b res. Jesus, em especial, apoia essa tradição. Ele
d e m o n s tro u solidariedade in co m u m co m o p o b re , o n ecessitado e o destituí-
do, p o rq u e D e u s, p o r com paixão, exalta o p o b re acim a d o rico e p o d ero so
(IS m 2.1-10; L c 1.46-55). Jesu s n ã o en sin a n em c o n sid era a p o b re z a com o
u m ideal, m as, c o m o aqui, co n sid era realm en te a consciência d a necessidade
q u e resulta d a p o b re z a c o m o u m a bênção. O s m aio res inim igos d a fé e da
o bed iên cia são a satisfação co n sig o m esm o e o orgu lho, e nad a rem o v e esses
o bstácu lo s c o m m aio r eficácia q u e a p o b re za.

23-25 A últim a n o tícia q u e te m o s d o jovem rico é q u e “ afasto u -se triste”


(v. 22). M arcos, sem d izer n ad a m ais, disse tudo, po is deixar Jesu s é ab an d o n ar
o R eino de D e u s e a p o ssib ilid ad e d e vida. M arcos agora p assa d o jovem rico
p ara os discípulos, o q ue in d ica q u e a riqueza e as p o sses que im p ed iam um
h o m e m d e seguir Jesu s ta m b é m são a ssu n to s d e p re o cu p aç ão p ara aqueles
q ue seguem Jesus. A relevância d a lição so b re as p o sses para os discípulos
está im plícita p ela in tro d u ç ã o d o versículo, em q u e lem os: “Jesus o lh o u ao
re d o r” . O te rm o g re g o periblepesthai é u m a palavra-chave para M arcos, com
seis ocorrências em seu ev an g elh o e apenas u m a em o u tro tex to (Lc 6.10)

35Str-B 1.818-26.
393 M a rc o s 10.22-25

n o N o v o T estam e n to . Isso significa u m escru tin io c o n tro la d o r da situação,


co m o se Jesu s estivesse o lh an d o para v er se os discípulos seguiríam o exem plo
d o h o m e m rico.36
Jesu s alerta d u as vezes: “ C o m o é difícil aos rico s e n tra r n o R eino de
D eu s!” (10.23,24). N o versículo 22, a palavra g re g a p ara a “ riq u eza” do
h o m e m é ktémata, c o m o sen tid o d e “ p o sse s” o u “ b e n s im óveis” , o u seja,
p ro p rie d a d e rural. N o versículo 23, Jesu s u sa u m te rm o m ais geral para
“ rico ” (gr. chrêmatà), q u e rim a co m o p rim eiro te rm o , m as em geral significa
“ riqu eza m o n etária ” . A m u d an ça nas palavras deixa im plícito que a riqueza
em suas m últiplas e m ais líquidas fo rm a s é tã o p erig o sa p ara a fé q u an to a
riqueza ó b v ia d o s g ran d es p ro p rie tá rio s d e terra. M ais u m a vez: “ É m ais fácil
passar u m cam elo p elo fu n d o de u m a agulha d o q u e u m rico e n tra r n o R eino
de D e u s ” .37 G o sta ría m o s de ver o b rilh o n o s o lh o s de Jesu s q u a n d o fez esse
com en tário. O sen so de h u m o r dessa fala, é claro, m as n ão dim inui sua p u n -
gência. O s co m en ta rista s ten taram eviscerar a fo rça dessa fala inim itável ao
sugerir q u e o original g reg o significava “ c o rd a ” , em vez de “ cam elo” . N ã o
só n ão há n e n h u m a evidência p ara essa leitura, m as é igualm ente im possível
p ara u m a co rd a p assar p elo fu n d o de u m a agulha. T am p o u c o , o “ fu n d o de
u m a agulha” é u m a p eq u e n a p o rta d a cidade através d a qual os cam elos co n -
seguiam e n tra r em Jeru salém q u an d o se ajoelhavam — c o m o se o h o m em
rico só p u d esse e n tra r n o R eino d e D e u s se h u m ilh a sse a si m esm o. N ã o há
evidência p ara essa lendária p o rta até o século IX d.C.
C o m certeza, a riqueza é u m p erig o p o ten cia l p ara a fé. A riqueza, n o
en tanto, n ão é categ o ricam en te co n d e n ad a p o r Jesus. N e m a m u lh er de quem
n ão sab e m o s o n o m e de 14.3-9 n em Jo sé d e A rim ateia (15.43; M t 27.57) são

36 3.5,34; 5.32; 10.23; 11.11. O uso da palavra em Marcos está em 9.8 sem Jesus
com o sujeito.
37 O texto ocidental (D) arranja a sequência da leitura com os versículos 23,25,24,26,
presumivelmente para alcançar uma sequência narrativa mais consistente. Não
obstante, a sequência norm al do versículo é sem dúvida correta, fundamentada
em (1) apoio textual superior e (2) sequência levemente estranha, o que argumenta
por sua originalidade. O versículo 24 tam bém exibe variações textuais. Um nú-
mero superior de manuscritos apresenta a seguinte leitura: “quão difícil é, para
os que confiam nas riquezas, entrar no Reino de Deus!” A qualificação conquistada
pelas palavras adicionais, conform e observa M etzger ( TCGNl,\ p. 106), tornam
a afirmação de Jesus menos rigorosa e m enos categórica. Em bora o apoio dos
manuscritos para a leitura com mais qualificativos seja claramente superior, a
leitura mais longa é suspeita porque faz concessões a um a fala difícil de Jesus. A
leitura mais breve é preferível.
M a rc o s 10.26-27 394

questio n ad o s o u co n d e n ad o s em M arcos, em b o ra am b o s sejam ricos. P ara esse


h o m e m a riqueza re p re se n ta u m p erig o real, c o m o o é de fato p ara a m aioria
dos discípulos, p ois ela o im p ed iu de fazer a única coisa necessária para a
salvação. A riqueza p o d e existir e co m frequência existe em ou tras fo rm as que
n ão a m aterial.38 Q u a lq u e r coisa q u e leve os discípulos a esq u ecer a p o b re z a e
a atitude sem elh an te à das crianças d ian te d e D e u s e q u e os im p eça d e seguir
Jesus C risto — isso, ta m b é m , é u m cam elo d iante d o fu n d o d e agulha.

26,27 A reação d o s discípulos, o q u e é b astan te in teressan te, faz para-


leio co m a d o jovem rico. E les tam b ém ficaram “ ad m ira d o s” (gr. thambein,
v. 24) e “p erp le x o s” (gr. perissõs ekplèssesthai, v. 26). “ N e ste caso, q u em p o d e
ser salvo?” , re s p o n d e ra m eles.39 A palavra d e Jesu s veio a eles, c o m o ao
jovem rico, n ã o c o m o u m c o n fo rto , m as c o m o u m a ofensa. E la su p lan ta a
possibilidade h u m an a. L eva-os p ara o ín tim o , o n d e d esc o b rem só fraquezas
e inadequações. A o rd e m de Jesu s faz co m q u e to m e m consciência d o que
não têm, c o m o a c o n te c e u c o m a palavra d e Jesu s p ara o jovem rico n o versí-
culo 21. E a m e sm a escassez o u déficit c o m q ue Jesus en viou os discípulos
em m issão sem p ro v isõ es, p ara q ue a p ren d essem a co n fiar em D e u s (6.7-13).
O sen so d e in ad eq u ação d o s discípulos d ian te da o rd e m d e Jesu s é d e fato
“ [um ]a b o n d a d e e [um ]a severidade” (R m 11.22), u m a deficiência benéfica
q u e tem a in te n ç ã o d e afastar a co n fian ça nas p ró p rias habilidades p ara que
co n fie m n aq u ele q u e é o S e n h o r salvador deles.
Jesu s o lh a p ara eles de fo rm a in ten cio n al e co m co n h ecim en to , da m es-
m a fo rm a c o m o fez c o m o h o m e m rico. A palavra greg a emblepõ em 10.21
e 27 significa p e rc e b e r a in te n ç ã o d e algo o u alguém . E le vê o q u e eles não
veem . A resp o sta: “ N e ste caso, q u em p o d e ser salvo?” , o q u e p ara os disci-
pu lo s p arece significar futilidade é, sem q u e se d eem co n ta, u m a p o rta para
a esperança. E ssa, p o r fim , é a p erg u n ta certa, e isso esclarece o fato d e Jesus
re sp o n d e r a essa p e rg u n ta deles so b re o discipulado, ao p asso q u e evitou a

38 Diógenes, filósofo cínico, criticou Alexandre, o Grande, por concupiscência em


um aspecto similar. “Se você deseja se tornar bom e reto” , disse Diógenes, “jogue
fora o trapo que traz sobre sua cabeça e se junte a mim. Mas você certamente não
pode fazer isso, pois está aprisionado pelas coxas de Heféstios” (HCNT, p. 118).
39 A leitura da NVI: “O s discípulos [...] perguntavam uns aos outros·. ‘N este caso, quem
pode ser salvo?’ ” (grifo do autor) é a leitura m enos atestada e dificilmente a ori-
ginal. A leitura mais forte tanto textual quanto contextualmente é: os discípulos
“dizendo entre si”, que foi mudada na tradição textual alexandrina, evidentemente,
para: “ [Os discípulos] disseram para elê’. Veja Metzger, TCGNT, p. 106.
395 M a rc o s 10.28-30

p erg u n ta d o jovem rico so b re a salvação n o s versículos 17,18. A p erg u n ta


revela a to tal futilidade dos esforços h u m an o s d ian te de D eus. A possibilidade
de eles v erd ad eira m e n te seguirem Jesu s é tão im possível q u a n to d o pai curar
seu filho epilético em 9.22,23. Jesus, de fato, re sp o n d e aos discípulos com o
re sp o n d e u ao pai: “ P ara o h o m e m é im possível, m as para D e u s não; todas
as coisas são possíveis p ara D e u s ” .40 N e m o pai d o m en in o epilético n em os
discípulos tê m em si m esm o s o p o d e r p ara fazer o que Jesus pede. Jesus m es-
m o será lan çad o n a toda-suficiência de D e u s n o G e tsêm an i, q u an d o , diante
da im in ên cia e te rr o r d a cru z, ele confessará: “Aba, Pai, tu d o te é possível”
(14.36). A palavra d e Jesu s deixa ev id en te n o ín tim o d o s discípulos o que
deveria te r ficado ev id en te n o ín tim o d o h o m e m rico — a deficiência deles.
C o n tu d o , a deficiência q u e aparece c o m o inabilidade, até m esm o futilidade,
aparece p a ra Jesu s c o m o ab e rtu ra p ara o p o ten cia l d e D e u s.41 N ã o são eles
que farão algo p o r D e u s o u realizarão a palavra dele, m as D e u s q u e realizará
sua palavra n o ín tim o deles. O q ue D e u s o rd en a, ele tam b ém provê. H á nessa
tro c a e n tre Je su s e os discípulos o in co n fu n d ív el cerne d a d o u trin a d a graça,
co n fo rm e ex p o sta m ais tard e pelo a p ó sto lo Paulo.

2 8-3 0 “ E n tã o P ed ro c o m e ç o u a dizer-lhe: ‘N ó s deix am o s tu d o p ara


seguir-te’.” Se “ p ara o h o m e m [e seu discipulado] é im possível” , qual o valor
dos sacrifícios h u m a n o s que, e m b o ra in q u estio n av elm ente estejam longe do
ideal d e D e u s, ainda são g en u ín o s e cu sto so s d a persp ectiv a h u m an a? Será
que o s sacrifícios d e P ed ro d e te r deixado tu d o p ara seguir Jesu s n ão valem
nada, o u eles d e rrad e iram en te n ã o te n h a m valor? A afirm ação lastim osa de
P ed ro n o versículo 28 é essencialm ente u m pedido. O u so d o p ro n o m e “ n ó s”
é enfático, im p lo ra n d o p o r afirm ação em face de u m p ad rão que am eaça
redu zir à insignificância n ão só P edro, m as ta m b é m to d o s os discípulos.
Jesu s re s p o n d e em 10.29,30 q ue os sacrifícios de P ed ro e de to d o s os
discípulos em n o m e d e C risto serão re c o m p e n sa d o s cem vezes ta n to neste

40 Com pare com a versão de Fílon da fala de Moisés para os israelitas sem saída
diante do m ar Vermelho: “ ‘N ão desanimem’, disse Moisés, ‘a form a de defesa de
Deus não é a mesma que a dos homens. Por que vocês são rápidos em confiar no
razoável e plausível, e só nisso? Q uando D eus fornece ajuda, ele não precisa de
armamentos. É sua propriedade especial achar um caminho onde não há caminho.
O que é impossível para todos os seres criados é possível só para ele, pronto para
a mão dele’ ” (Moses 1.174 [LCL, no. 289]).
41 Veja a discussão sobre o vazio e plenitude cm Apocalipse de Tiago 1.4.5-22. Contudo,
enquanto o Apócrifo de Tiago aconselha escassez de razão e plenitude do Espírito,
Jesus prom ete toda-a-suficiência de D eus em face da insuficiência humana.
M a rc o s 10.28-30 396

m u n d o q u an to n a vida e te rn a n o m u n d o p o r vir. O fato notável so b re a lista


d o versículo 29 é q u e n o ssa red e n atu ral m ais essencial d e relacionam entos
e d e alianças — casas, fam ílias e cam p o s — te m d e ser ab a n d o n ad a, pois o
cham ado escan d alo so d e C risto assu m e p rio rid ad e so b re to d o s eles e exige o
ro m p im en to d e antigas alianças. N ã o é possível seguir Jesu s co m a bagagem
antiga: u m precisa a b rir m ã o d e suas redes; o u tro , d a riqueza. Iro n icam en te,
n o en tan to , a p esso a receb e rá cem vezes m ais q u e aquilo q u e a b a n d o n o u em
favor de C risto (v. 30). A m en çã o d e “p erseg u içõ es” n o versículo 30 é digna
de n o ta, p o is esse é o ú n ic o te rm o negativo em u m a lista de bênçãos. Sua pre-
sença na lista lem b ra os discípulos de que a existência cristã n ão é u m a utopia,
e a fé cristã n ã o é u m a apólice d e seguro c o n tra a adversidade e a tribulação.
N ã o só isso, em geral, é v erd ad eiro em relação ao discipulado, m as tam b ém a
p re sen ça d e “ p erseg u ição ” tin h a p ro v av elm en te u m significado especial para
a co n g reg ação d e M arco s em R o m a q u e so fre u tão p ro fu n d a m e n te so b as
persegu içõ es d e Ñ e ro . O so frim e n to deles — e to d o so frim en to q u e resulta
d a fidelidade ao ev an g elh o — n ão são u m sinal d o a b a n d o n o o u desfavor
divino, m as u m c o n c o m ita n te inevitável da fé. E p reciso ficar claro p ara os
seguidores d e Jesu s q u e o d iscipulado n ão é u m a q u estão de “ a m b o s ... e” ,
m as d e “ o u . .. o u ” . Jesu s n ão aceita alianças divididas; ele n os q u er p o r inteiro
o u n ão n o s aceitará d e fo rm a algum a — p o is seu am o r é m u ito zeloso.
Todavia, co n ceb er o discipulado apenas em term o s de seus custos e sa-
crifícios é concebê-lo d e fo rm a equivocada — co m o se o noivo, ao se casar
co m u m a bela noiva, só pensasse em tu d o d e que teria de abrir m ão. Jesus, em
resp o sta à afirm ação lastim osa de P edro de ter deixado “ tu d o p ara segui-[lo]” ,
p ro m e te “ cem vezes m ais” . O s sacrifícios q ue eles fizeram ao deixar “ casa,
irm ão s, irm ãs, m ãe, pai, filhos, o u ca m p o s” 42 p ara seguir Jesu s (v. 29) n ão são
nad a co m p a ra d o s c o m o re to rn o q ue receb erão n a co m u n id ad e de fé agora e
n o céu n a vida p o r v ir (R m 8.18). A to s au tên tico s d e ob ed iên cia e discipulado
são c o m o os cin co p ães e dois peixes (6.38) que Jesu s recebe e m ultiplica
p ara alim en tar o s cin co m il. A to s d e d iscipulado cu sto so s, e m b o ra sim ples e
hum ildes, são c o m o as sem en tes d esesp erad o ras que c o n tra to d as as chances
p ro d u z e m u m a colheita cem vezes m aior (4.8,20). O indivíduo, da perspectiva
de u m a co lh eita a b u n d a n te , o lh a em retro sp ectiv a p ara o trab alh o e risco de
p lan ta r em u m a luz m u itíssim o diferente. O m ilagre e a ab u n d ân cia da co­

42 “Pai” é omitido da lista (como em 3.35), mas talvez porque os discípulos não de-
vem ter nenhum pai, exceto Deus. Apocalipse de Tiago 4.25 inclui “povoados” nessa
lista, acrescentando, dessa forma, “sociedade” aos laços de parentesco e ocupação.
397 M a rc o s 10.31-32

lheita ratificam a justiça in ere n te d o ato c u sto so de p lantar; da m esm a fo rm a,


as re co m p en sas da vida ete rn a fazem c o m q u e os sacrifícios d o discipulado
pareçam insignificantes em co m p araçã o c o m a b ê n ç ã o ab u n d a n te de D eus.

31 “ C o n tu d o , m u ito s p rim eiros serão últim os, e os últim o s serão pri-


m eiros.” E sse q u iasm o é p re serv ad o em várias cam adas da tradição da igreja
prim itiva.43 Sua sim plicidade cap ta u m a p ro fu n d a ironia d o discipulado. O
R eino de D e u s d e rru b a no ssas am adas p rio rid ad e s e exige q u e os discípulos
ten h a m novas prioridades. T ira daqueles q u e seguem Jesus coisas que guar-
dariam e lhes dá coisas q u e n ão p o d eríam im aginar. A queles que confiam
em suas riquezas — q u aisq u er q ue sejam elas — não terão m ais nad a com
que co ntar. A queles q ue ab rem m ão de tu d o — n ã o só das posses, m as até
m esm o das p esso as e lugares, na verdade, d a p ró p ria vida (8.35) — para
seguir Jesu s n ão só serão co m p en sa d o s p o r seus sacrifícios, m as tam b ém se
fartarão cem vezes m ais co m ele e h erd arã o o m u n d o p o r v ir e a vida eterna.

A T E R C E I R A P R E D IÇ Ã O D A P A IX Ã O ( 10 . 32 - 34 )

Jesus, p ela terceira e ú ltim a vez (8.31; 9.31), p rediz sua m o rte e ressur-
reição. A p ó s as três lições so b re discipulado em 10.1-31, a terceira pred ição
da paixão, a m ais explícita das três, lem b ra os seguidores d e Jesu s que o
d iscipulado se re su m e sem p re e d errad e iram en te a seguir Jesu s, que vai para
Jerusalém para so fre r (10.33,34) e para “ d ar a sua vida em resgate p o r m u ito s”
(v. 45). O discipulado, p o r conseguinte, n ão só é caracterizad o p o r c o m p o r-
tam en to s identificáveis n o casam en to (w . 1-12), c o m as crianças (w . 13-16)
e co m as p o sses (vv. 17-31), m as, c o n fo rm e d e m o n s tra d o p o r B artim eu, p o r
ex p ressam en te “ seguifr] Jesu s pelo ca m in h o ” (v. 52). A centralidade de Jesus
é ainda en fatizad a p o r M arcos que, em c o n tra ste c o m a terceira p redição da
paixão registrada em M ateu s 20.17-19 e L ucas 18.31-34, m o stra que Jesus
“ia à fre n te ” (v. 32) p ara Jerusalém .

32 M arcos, m ais u m a vez, afirm a ex p ressam en te que Jesu s está “n o ca-


m in h o ” , le m b ra n d o seus leitores q ue c o n h e c e r Jesu s é segui-lo, até m esm o
n o ca m in h o p ara o so frim ento. M arcos, p ela p rim eira vez, tam b ém identifica
o d estin o : “ su b in d o p ara Jeru sa lém ” . Subindo é a palavra co rreta para essa
jornada, p o is Jerusalém , a apenas q u aren ta q uilôm etros de Jerico (v. 46), está a
p o u c o m ais d e m il m etro s acim a d o nível d o m ar. Subindo é tam bém sim bólico

43 Mateus 19.30; 20.16; Lucas 13.30; Epístola de Barnabé 6.13; Evangelho de Tomé A.
M a rc o s 10.33-34 398

d o so frim en to q u e esp era Jesu s em Jeru salém e o a rd o r d o discipulado. Jesus,


apesar da su b id a ín g rem e, n ã o fica p ara trás c o m o u m p risio n eiro seguindo
p ara a forca, m as “ ia à fre n te ” , c o m o o serv o d o S e n h o r d e Isaías q u e se opôs
“ firm e c o m o u m a d u ra ro c h a ” (Is 50.7). C o m o é rev eladora a co m p reen são
de si m e sm o q u e Jesu s te m e c o m o é in stru tiv o p ara o d iscipulado o fato de
ele d e m o n stra r su a p ro em in ê n cia n a hu m ild ad e e d isposição p ara sofrer. E m
n e n h u m o u tro tre c h o n o evangelho d e M arcos, o b serv a E d u a rd Schw eizer,
o evangelista fala d e Je su s lid era n d o o cam in h o , ex ceto nas p ro fecias de
14.28 e 16.7. “A q u i ele é o M estre q u e segue adian te d os discípulos, cuja
resp o n sab ilid ad e é segui-lo.” ‘14 Q u a n d o se trata d a h u m ild ad e e sofrim ento,
Jesu s n ã o en sin a apenas: ele lidera o cam inho.
O s discípulos, p o r su a vez, ficam para trás “ ad m ira d o s” e “ co m m e d o ” .
E ssas n ão são reaçõ es novas. O s discípulos ta m b é m tiveram “ receio ” (gr.
phobeisthai) n a seg u n d a p red ição da paixão (9.32) e ficaram “ ad m ira d o s” (gr.
thambeiú) lo g o an tes n esse capítulo, n o versículo 24. P ed ro apenas declarou:
“N ó s d eixam o s tu d o p ara seguir-te” (v. 28), m as aqui ele e os o u tro s seguem
p o r razões o u tras q u e n ã o a ob ed iên cia livre e genuína. N o s s o discipulado
n ão é n u n ca tão n o b re q u a n to o im aginam os, m as Jesus o aceita assim m esm o.
N isso , ta m b ém , fica ev id en te a h u m ild ad e d e Jesus.
O g re g o d e 10.32 n ã o deixa claro se Jesu s é seguido apenas pelo s D o z e
o u p o r u m n ú m e ro m aio r d e seguidores. P arece hav er u m a d istinção (em-
b o ra seja m ais p ro n u n c ia d a n a N V I q ue n o original grego) e n tre “ os que o
seguiam ” e “ os D o z e ” . O versículo 32 p o d e ainda ser u m a evidência d e que
os seguidores d e Jesu s eram m ais q u e apenas os D o z e (15.41). N ã o o b stan te,
M arcos indica q u e Jesu s d ire c io n o u seu e n sin am e n to b asicam ente p ara estes.

33,34 O m ed o d o s discípulos fo rn e c e u m a ocasião p ara Jesu s ensinar


“ o q u e haveria d e lhe a c o n te c e r” . U m a m ed id a d e an sied ad e talvez seja
necessária a fim d e a p re n d e r o ca m in h o d e C risto. “ E sta m o s su b in d o para
Jeru sa lém ” , declara Jesu s de m o d o o m in o so . O u so d a p rim eira p esso a do
plural lo g o d ep o is d a revelação d o q u e aco n teceria a “ ele” tem im plicações
sérias. O s discípulos en fre n ta m o m o m e n to d a v erd ad e q u a n d o perceb em
que o d estin o deles está e n re d a d o co m o d estin o d e Jesus. O s sinos d o b ra m
não só p o r Jesus, m as p o r eles tam b ém .
As três predições da paixão p o dem ser postas em colunas para com paração. 4

44 E. Schweizer, Emiedrigung und Erhohung beiJesus und seinen Nachfolgern, ATAN T 28


(Zurich: Zwingli Verlag, 1962), p. 12.
399 M a rc o s 10.33-34

8 .3 1 9.31 10 .33,34

E ra necessário que o O Filho d o h o m em está O Filho do ho m em será


Filho do h o m em para ser entregue nas entregue (14.41)
m ãos dos hom ens.

sofresse m uitas coisas


e fosse rejeitado pelos
líderes religiosos, pelos
chefes dos sacerdotes aos chefes dos sacerdo-
tes (14.53)
e pelos m estres da lei
e aos m estres da lei
(14.53).
E les o condenarão à
m orte (14.64)
e o entregarão aos gen-
tios, (15.1)
que zom barão dele,
(15.29,30)
cuspirão nele, (14.65;
15.19)
o açoitarão (15.15)

fosse m o rto e três dias ^ le s o m atarão, e três e o m atarão (15.37).


depois ressuscitasse. dias depois ele ressus- T rês dias d e p o is1
citará. ele ressuscitará.
(16.1,2)

A tradição manuscrita revela que as palavras características de Marcos, meta treis


hêmeras (“três dias depois”; também ‫ א‬B C D L Δ Ψ) foram equivocadamente
alteradas para té tritè hêmera (“no terceiro dia; tam bém A K W X Θ Π) a fim de
corresponder à fórmula mais comum em Mateus 20.19; Lucas 18.33, etc. Veja
Metzger, TCGNTjp. 107.
M a rc o s 10.33-34 400

A terceira p re d ição é claram en te m ais detalhad a q u e as duas prim eiras.


O s versículos em parên teses n a terceira predição referem -se ao cu m p rim en to
na narrativa d a paixão. E sse paralelism o ap roxim ado en tre a terceira predição
e os even to s su b seq u en te s em Jeru sa lém se deve p rovavelm ente ao fato de
a igreja, q u e e n tre g o u essa in fo rm aç ão p ara M arcos, lem brar-se das palavras
d e Jesu s à luz d o s ev e n to s em to rn o d e sua paixão.
Isso , n o en tan to , n ão su g ere q u e as p rev isõ es d a paixão sejam cham a-
das d e vaticinia ex evento, o u seja, u m a p ro jeção em retrospectiva d ep o is do
fato n a vida e m in istério d e Jesus. E cu rio so que os estu d io so s q u e preveem
co m considerável p recisão o que aco n tecerá se p u b licarem certas visões,
p o r exem plo, sejam p ro p e n so s a n eg ar q ue Jesu s p o d eria p re v er seu destino
im inen te e a a trib u ir as três pred içõ es d a paixão a m ão s editoriais posteriores.
E ce rta m e n te fan tástico im aginar q ue a igreja prim itiva, cu id ad o sa p ara dis-
tin gu ir seus p ró p rio s en sin am e n to s d o s d e Jesu s em assu n to s m en o res (e.g.,
A t 15.28; I C o 7.25), co nsid eraria atrib u ir tal afirm ação audaciosa a Jesu s sem
qu alq u er p re c e d e n te histórico. N a v erdade, co n sid e ran d o a o p o sição a Jesus,
deveríam os n o s s u rp re e n d e r se ele n ão tivesse n e n h u m a indicação de sua
m o rte im inente. O a p ó sto lo P au lo teve indicações definitivas d e sua p ró p ria
m o rte (A t 20.22,23), e h á c o n h e c im e n to de ex em p los sim ilares na história
m ais recen te.45 O q u e aco n tecia em u m a p risão ro m a n a n ão era seg red o para
n in g u ém q u e vivesse n o Im p é rio R om ano. Jesu s con hecia b em o d estin o de
seus p re d ece sso res (Lc 13.34,35; SI 22; 69; Is 50; 53), e ele n ão tin h a n e n h u m
m o tiv o p a ra ach ar q u e seria p o u p a d o desses tra ta m e n to s cruéis.
T a m p o u c o parece q u e as pred içõ es d a paixão foram h arm o n izad as, quer
pela igreja prim itiva q u e r p o r M arcos. U m vislu m bre n a sin o p se das três
p revisões da p aixão revela q u e a segunda previsão (9.31) é a m ais sim ples e
m en o s detalh ad a das três. Isso arg u m e n ta c o n tra u m p ro c esso evolucionário
d e d ese n v o lv im en to nas três predições. A g en tes d istin to s são responsáveis
pela m o rte d e Jesu s nas três predições: to d o o S inédrio é resp o n sáv el pela
m o rte n a prim eira p red ição (8.31); os g entios, n a seg unda (9.31); e o s chefes
d o s sacerdotes, o s m estres da lei e os g entios, na terceira (10.33). T a m p o u c o a
sequência d e detalhes n a terceira previsão co rre sp o n d e p len am en te à sequên­

45 Há dois exemplos da literatura do Holocausto que as pessoas, em algumas ocasiões,


preveem o futuro com correspondência notável aos eventos subsequentes. Veja a
visão de Corrie ten Boom de sua prisão e deportação muito antes que aconteces-
sem em The Hiding Place (Washington D epot: Chosen Books, 1971), em especial
p. 127; e a visão de Auschwitz da Madame Schãchter, em Elie Wiesel, Night (New
York: Avon Books, 1969).
401 M a rc o s 10.35-37

cia de ev e n to s na n arrativ a da paixão.46 T u d o isso sugere que as predições da


paixão n ão fo ram h arm o n iz ad as artificialm ente de a c o rd o co m a narrativa da
paixão. Isso é ainda m ais relevante co n sid eran d o -se o fato de que a predição
ru d im en tar d a rejeição, m o rte e ressurreição de Jesus se p restam p ro n tam e n te
para tal h arm o n ização . A s diferenças en tre as três p red içõ es arg u m en tam
p o r sua originalidade c o m Jesus e sua p re serv aç ão fiel n a m em ó ria da igreja.
Jesus será en tre g u e pelo S inédrio e m o rto p elo s gentios. E sse fato rep etid o
três vezes to rn a a co n fissão de 15.39 ainda m ais n otáv el, p o is o p rim eiro ser
h u m a n o a co n fessar Jesu s c o m o F ilho de D e u s virá d e u m daqueles resp o n -
sáveis p o r sua m orte!

O S F IL H O S D E Z E B E D E U Q U E S E R V E M A S I M E S M O S E O
F IL H O D O H O M E M Q U E S A C R IF I C A A S I M E S M O ( 1 0 .3 5 4 5 ‫)־‬

O s discíp u lo s — apó s cada um a das p red içõ es d a paixão d e Jesu s em


8.31,9.31 e 10.33,34 — fazem m an o b ra s p ara co n seg u ir p o sição e prestígio.
O p e d id o d e T iag o e Jo ã o n o versículo 37 é o terceiro e o exem p lo m ais
grosseiro d a atitu d e a u to ce n trad a d o ser h u m an o , u m co n tra ste m arcan te
co m a h u m ild ad e e autossacrifício d e Jesus. E,ste, em resp o sta ao p ed id o p o r
exclusividade, in stru i os D o z e d e q ue a e c o n o m ia d o R eino de D e u s não se
fu n d a m e n ta n o p o d e r e co n tro le , m as n o serv iç o e do ação, pois estas n ão só
re p rese n ta m a ética d o reino, m as ta m b é m o m eio d e redenção.

35-37 Pois é a única vez n o evangelho d e M arcos q u e T iag o e João, os


filhos d e Z eb ed eu , são m en cio n ad o s separados d o s D o z e (1.19,20; 3.19) o u de
P ed ro (5.37; 9.2; 13.3; 14.33). (Veja m ais so b re os irm ão s Z e b e d e u em 9.38.)
O n o m e deles está an c o ra d o a essa h istó ria p o r causa d a audácia d o p ed id o
deles. A fo n te d e M arcos p ara essa n arrativ a é m u ito pro v av elm en te P edro,
que tin h a m otiv o s p ara se lem b ra r dessa história e retransm iti-la. P edro, T iago
e Jo ã o faziam p a rte d o círculo ín tim o de Jesu s em seu m inistério terreno,
e o p e d id o d o s irm ão s p ara excluir P e d ro d o círculo celestial na glória não
foi esqu ecid o tão facilm ente p elo chefe d o s ap ó sto los. “ M estre” , disseram
eles, “ q u erem o s que n o s faças o que v am o s te p e d ir” . “ M estre” é u m título
h o n o rífico q ue req u eren tes, q u er am igos q u er e stra n h o s, usam em geral nos
sinótico s q u a n d o fazem p ed id o s a Jesus. O te m p o verbal aoristo dos verbos
gregos p ara “ fa[zer]” e “ p e d ir” indica q ue eles tin h am u m p ed id o específico
em m en te. O p ed id o p o r u m a g aran tia de a n tem ã o p o r p a rte de Jesu s trai a

46 Veja C. E. B. Cranfield, The GospelAccording to Saint Mark, p. 335.


M a rc o s 10.35-37 402

p reo cu p aç ão d o s irm ão s q u a n to ao pedido. O p ed ido , p o r assim dizer, para


que Jesus assinasse u m ch eq u e em b ran co é ainda m ais elitista q u e a afirm ação
de Jo ã o em 9.38. E u m p e d id o p ara beneficiar a eles m esm o s, insensível em
relação a Jesu s e u m a o fe n sa p ara seus cam aradas.
Jesu s p erg u n ta ao s irm ãos: “ O que vocês q u erem que eu faça?” A res-
p o sta a essa p e rg u n ta , n ã o só n o caso d o s irm ão s Z e b e d eu , m as n o nosso
tam b ém , d e sn u d a n o sso s verd ad eiro s m otivos, revelando se b u scam o s nossa
p ró p ria glória o u a glória d e D eus. E ssa é a m esm a p erg u n ta q u e Jesu s faz ao
cego B artim eu n a h istó ria a seguir (10.51). M as a re sp o sta de B artim eu difere
m uitíssim o daquela d o s irm ãos. B artim eu p ed e fé, T iag o e Jo ã o p ed e m fama;
B artim eu q u e r seguir Jesu s “ n o ca m in h o ” ,47 T iago e J o ã o q u erem se sentar
c o m ele n a glória. N o g reg o , as palavras d o s irm ão s p ara se sen tarem co m
Jesu s na glória eco a a p e rg u n ta original em hebraico, as quais re m o n ta m ao
p ed id o original deles.48 E m b o ra Jesu s ten h a sido claro e co n sisten te so b re o
so frim e n to q u e o aguardava, o s discípulos só o o u v iram de fo rm a seletiva.
Eles, c o m o os p ereg rin o s n o s salm os de p ereg rin ação (SI 120-134), conside-
ram o ca m in h o p ara Jeru sa lém c o m o u m a p ro cissão para o esplendor. N ã o
o b sta n te , ap esar d a am b ição clara d o s irm ão s d e se sen tarem ao lad o de Jesus
n a glória, e ap e sar d o c o n tín u o ju lg am en to equivocado da m issão de Jesus, o
versículo 37 revela de fato q ue eles reco n h ecem Jesus c o m o o M essias, e creem
que, em Jerusalém , ele herdará o rein o m essiânico. N o co stu m e judaico, o lu-
gar de m aio r h o n ra era n o ce n tro d o g ru p o , seguido pelos lugares à direita e à
esquerda, respectivam ente. “ C o m três cam inhando, o m estre deveria cam inhar
n o m eio, o m aio r d o s discípulos a sua direita, o m e n o r a sua esquerda, e, assim ,
en co n tram o s os três anjos que vieram visitar A braão, M iguel cam inhava no
m eio; G abriel, a sua direita; e Rafael, a sua esquerda” , in stru i o T alm ude (b.
Yoma 37a).49O s irm ão s esp eram h o n ra r Jesu s en q u a n to h o n ra m a si m esm os.
C o m o é fácil m istu rar ad o raçã o e discipulado co m o in teresse pessoal; ou
pior, o in teresse p esso al ser m ascarad o c o m o ad oração e discipulado.

47 Veja S. Schlumberger, “Le récit de la foi de Bartimée (Marc 10/46-52)” , ETR 68


(1993), p. 73-81, que argumenta corretam ente que a história de Bartimeu não é
sobre uma simples cura, mas, o mais im portante, é sobre se tornar um discípulo
e seguir Jesus no caminho para a cruz.
48 A expressão grega bastante incom um dos hêmin bina [...] kathisõmen (lit. “Dá-nos
que possam os sentar”) reflete as próprias palavras hebraicas, tenah lanu-lasebet.
Mateus 20.21 m elhora as palavras para um grego aceitável, o que mais uma vez
argumenta em favor do uso de Marcos por Mateus, e não o reverso.
49 Para mais informações, veja Str-B 1.835.
403 M a rc o s 10.38

38 Jesus, em re sp o sta ao p e d id o d e T iag o e Jo ão , diz que eles n ão sabem


o q u e p ed e m . D e u s, até m e sm o em sua recu sa d e n o sso s p edidos, revela sua
h u m ild ad e e graça, p o is c o m o seríam os infelizes se D e u s n o s concedesse
to d o s o s p ed id o s p elo s quais o ra m o s to lam en te. O m e sm o é verdade em
relação aos p rim eiro s discípulos d e Jesus. E les são ráp id o s em afirm ar os
b enefícios d o R eino de D e u s, m as len to s em o u v ir o s cu sto s d e particip ar
d esse reino. Jesu s fala d o cu sto em te rm o s d e u m “ cálice” e u m “ b atism o ” .50
N o A n tig o T estam en to , u m “ cálice” sim b o liza em g eral algo desig n ad o p o r
D eu s. P o d e significar alegria e p ro sp e rid a d e (SI 16.5; 23.5; 116.13), m as sig-
nifica c o m m a io r frequência o ju lg am en to e a ira d e D e u s.51 A re sp o sta de
Jesu s p a ra T iag o e J o ã o tran sm ite o sen tid o d e q u e o so frim en to e a m o rte
im in en tes d e Jesu s (10.33,34) são o rd en ad as e desejadas p o r D eus. Jesus, ao se
dirigir p a rà Jeru sa lém , n ã o só elege u m cu rso d e ação, m as c u m p re u m p ap el
d esig n ad o a ele. N ã o p o d e m o s d izer co m certeza, m as a ideia d e “ b e b e r” o
cálice o rd e n a d o p ara ele p o d e in d icar u m acréscim o d a ira d e D e u s em re-
lação ao p e c a d o h u m a n o d o qual Jesu s precisa “ b e b e r” . O c o n te x to atribui
u m sen tid o sim ilar ao “ b a tism o ” c o m o “ cálice” , e m b o ra essa seja a p rim eira
in stân cia d o te rm o “ b atism o ” u sad o de fo rm a m etafó rica d e so frim en to em
n o ssa literatu ra.52 O te rm o “ b a tism o ” expressa a solidariedade de Jesus para
c o m os p ec ad o re s e sua disposição d e su p o rta r o ju lg am en to deles dian te de
D eus. O p o n to principal d o versículo 38 é q u e a p e rg u n ta d e Jesu s (“ P o d em
v ocês b e b e r o cá lice[...]?”) exige u m a re sp o sta negativa: apesar d o p ed id o
deles, os discíp u los não podem b e b e r o cálice e s u p o rta r o d estin o que só
Jesu s p o d e su p o rtar. A razão p o r q u e é assim fica ap a ren te n o versículo 45

50 Para um a análise crítica das alusões ao “cálice” e ao “batismo” na tradição judaica,


vejaj. D. M. D errett, “Christ’s Second Baptism (Lk 12:50; Mk 10:38-40)”, Exp Tim
100 (1988-89), p. 294-95.
31 Salmos 11.6; 16.5; 75.8; Isaías 51.17,22; Jeremias 25.15-28; 49.12; Habacuque 2.16;
Martírio de Isaías 5.13; Martírio de Policarpo 14.2; 4Q pN ah 4.6.
52 O paralelo em Mateus 20.23 omite o termo. H. Koester argumenta que o batismo
com o um a m etáfora para o martírio e m orte reflete o uso cristão posterior (e.g.,
Rm 6.3-11) e, portanto, foi uma interpolação posterior no texto de Marcos (/indent
Christian Gospels: Their History and Development [Philadelphia: Trinity Press Inter-
national, 1992], p. 278). O uso similar do term o “batism o” por Lucas em outro
contexto (12.50), no entanto, pode argumentar p or sua originalidade com Jesus.
O Antigo Testam ento também fala simbolicamente das águas da calamidade que
alcançam um pecador (SI 42.7; 69.2; Is 43.2). Com certeza, esse term o não põe
tensão desnecessária em nossa credulidade para imaginar que Jesus podia aplicar
e aplicou esse mesm o sentido para o “batism o” .
M a rc o s 10.39-40 404

q u an d o Jesus, pela prim eira vez em M arcos, revela os efeitos vicários d e seu
autossacrifício p elo s ou tro s.

39 T iag o e Jo ão , n o en tan to , p en sa m que podem im itar Jesu s em assuntos


relacionados ao “ cálice” e ao “ b a tism o ” . (Eles n ão re ceb eram o apelido de
“ filhos d o tro v ã o ” p o r n ad a [3.17; Lc 9.52,53].) E les, d e fato, b eb e rão um
cálice e se batizarão , c o n c e d e Jesus, m as ele reveste as m etáfo ras co m um
sentid o lev em en te d ife re n te q u a n d o usa esses te rm o s em relação aos dis-
cípulos. O s te rm o s “ cálice” e “ b a tism o ” , co m referência ao p ró p rio Jesus,
significam u m ca m in h o ú n ico p re p a ra d o p ara ele p o r D e u s e os m eios pelo
qual seu su rp re e n d e n te “ resgate” (10.45) será alcançado. A m esm a im agem ,
co m relação aos discípulos, refere-se às perseg u ições (v. 30) q u e en fren tarão
em co n se q u ê n c ia d e segui-lo.53 O p ro n u n c ia m e n to d e q u e os irm ão s bebe-
rão d o cálice q u e Jesu s b eb e e q u e serão b atizad o s c o m seu b atism o parece
u m a p rev isão d o m artírio deles. E m b o ra o “ cálice” carregue a c o n o taç ão de
m artírio na trad ição cristã p o ste rio r,545n ã o h á evidência n o versículo 39 de
que a in ten çã o era esse sen tid o . Se esse fosse o caso, p o d eria m o s esperar
u m a referência c o n c o m ita n te à glória deles. O versículo 39 p arece ser m ais
b em lido c o m o u m lem b re te e u m c h a m a d o re n o v a d o ao d iscipulado que
acarreta, in ev itav elm en te, sacrifício e so frim en to . O s discípulos d e Jesu s não
decidem aceitar o u rejeitar as tribulações co m b ase nas re co m p en sas futuras
resu ltantes delas. E les aceitam o so frim en to co m b ase apenas n o fato de que
esse é o ca m in h o de Jesu s. “ O F ilho d e D e u s so freu até a m o rte , n ão p ara que
os h o m e n s n ã o p o ssa m so frer, m as p ara que os so frim en to s deles p o ssam
ser sem elh an tes ao dele.” “

40 Jesus, q u a n to à glória q u e os irm ão s b u scam , co n fere o a ssu n to total-


m e n te a D e u s: “ n ã o cab e a m im c o n c e d e r” . O “ m im ” é enfático em grego,
in d ican d o qu e o c u m p rim e n to d o p ed id o deles n ão está n a au to rid ad e de
Jesus. A ntes, esses “ lugares p e rte n c e m àqueles p ara q u em fo ram prepara-
d o s ” . E ssa trad u ç ão perifrástica indevida d a N V I tra d u z u m a frase grega

53 Hipólito (Refut. Om. Haer. 5.8.11-12), o pai da igreja do início do século III, cita
uma passagem que ele atribui ao Evangelho dos nazarenos, em que o “cálice” se refere
a Jesus indo para o Pai, com o em João 13.33.
54 “O cálice de Cristo”, em Martino de Policarpo 14.2, e “o cálice que o Senhor mistu-
rou”, em Martírio de Isaías 5.13, referem-se aos martírios iminentes de Policarpo
e Isaías respectivamente.
55 G. M acDonald, Unspoken Sermons, First Series, 1867.
405 M a rc o s 10.41-42

sim ples, “ p ara q u em fo ram p re p a ra d o s” ,54*56 q ue su b o rd in a to d a a q u estão de


reco m p en sas e glória ao p ro p ó sito esc o n d id o de D eus. O n o m e de D eus,
sem dúvida, n ã o é m en cio n a d o p o r causa d o c o stu m e judaico de evitar o
u so d o n o m e d ivino q u an d o possível p o r m e d o de p ro fa n a r esse nom e.
N ã o o b sta n te , u m a p ro p e n sã o o cu lta p ro v id en cial está in questionavelm ente
p re se n te aqui.57 O p ro p ó s ito de D e u s n ã o p o d e ser fru strad o , m as tam b ém
n ão p o d e ser d ec ifrad o de antem ão. O s discípulos n ã o devem seguir Jesus
p o rq u e sab em d e an tem ão o q ue aco n tecerá n e m p o r causa d o que esperam
alcançar. A justiça d o cam in h o deles é d ete rm in a d a apenas pelo fato de que
é p ara o n d e Je su s os co nduz.

4 1 ,4 2 N ã o é d e su rp re e n d e r a reação d o s o u tro s a p ó sto lo s que “ ficaram


ind ign ad os co m T iag o e Jo ã o ” . A indignação deles p o d e se dever ao fato de
q ue tin h am am b içõ es sim ilares, m as tam b ém , e m ais obviam en te, deve-se
ao fato d e o p e d id o d o s irm ão s Z eb e d eu os excluir n a glória da co m u n h ão
p ró x im a co m Jesu s q u e d esfru tam n o m o m en to .
Jesus aproveita a ocasião para en sin ar u m a lição de suprem a im portância.
A N V I afirm a q ue ele “ os ch a m o u ” , m as “ os re u n iu ” seria m ais apropriado,
pois o te rm o g re g o proskaleomai o c o rre em no v e ocasiões em M arcos q u an d o
Jesus re ú n e o s discípulos e / o u m ultidões p a ra u m a lição decisiva. O m undo,
diz Jesus, p ratica a liderança fu n d a m e n tad o em u m m o d elo d e dom inação,
au to rid ad e e u so s eficazes d o p o d e r e posição. A s palavras da N V I, “ aqueles
qu e são c o n sid erad o s g o v ern an tes d a n a ç ã o ” (gr. hoi dokountes), são curiosas.
A frase exata o c o rre apenas em o u tro tex to d o N o v o T estam en to , G ála-
tas 2.2,6,9, e m q u e se refere aos ap ó sto lo s em Jeru sa lém . O s com entaristas

54 Um a interessante variante textual desenvolvida no versículo 40 devido ao fato de


que os manuscritos gregos antigos imprimiam palavras juntas sem espaços entre
elas. A sequência das letras gregas αλλοις era lida p o r várias das primeiras versões
(italiana, cóptica, etíope, siríaca) como αλλοις, ou seja, “para outros” . O sentido
resultante seria que o Reino de Deus não foi preparado para os discípulos, mas
“para outros” . Tal leitura contradiz claramente o ensinamento de Jesus. A leitura
mais sensível da mesma sequência de letras, gramatical e contextualmente, é αλλ'
01ς ou seja, “mas para quem ”, o sentido apresentado em vários manuscritos gregos
im portantes (A B K Θ Π Y) pela localização da marca de pausa Q no meio da
sequência das letras.
57 A letra de mão original do sinaítico (‫ ) א‬traz: “para quem foi preparado por meu
ΡαΓ. O acréscimo de “por meu Pai”, sem dúvida, foi sugerido pelo contexto e pelo
paralelo em Mateus 20.23. O peso avassalador da tradição manuscrita favorece
corretam ente a leitura mais breve adotada pela NVI.
M a rc o s 10.43-44 406

invariavelm ente ach am a ex p ressão u m ta n to pejorativa, relativizando dessa


m an eira o p o d e r daq u eles em p o siç ã o d e a u to rid a d e c o m o aqueles que
aparentam o u presumem g o v ern ar. C o n tu d o , n e m G álatas 2 n em 10.42 indica
essa nuança. V ários u so s n a literatu ra clássica revelam que hoi dokountes é um
term o técn ico p ara d esig n ar líderes q u e têm visibilidade e p ro em in ên cia.58
E le p o d e te r esse sen tid o em G álatas 2, sem o sen tid o adicional de pretensão
p o r p a rte d o s a p ó sto lo s em Jerusalém . T. W. M an so n , da m esm a fo rm a, em
referência ao versículo 42, o b serv a c o rretam en te q u e “ os reis o u im peradores
d o século I d.C . n ã o pareciam governar. E les g o v ern av am defato e, em geral,
c o m m ão p esa d a” .59 A lém disso, hoi dokountes faz paralelo c o m “ as pessoas
im p o rta n te s ” (gr. hoi megalot) n o versículo 42, e essa designação c o m certeza
n ão é pejorativa. A ssim , Jesus, n o u so d e am b o s os term o s, parece aludir
ao p o d e r real q u e estabelece o exercício d o s g o v ern antes. E fazem isso ao
“ exercfer] p o d e r so b re elas [as n açõ es]” . “ E x ercer p o d e r” é a trad u ção de
u m v erb o g reg o , katakyrieuein, cujo sen tid o é “g an h a r d o m ín io o u p o d e r so-
b re o s o u tro s ” , “ su b ju g ar” , “ fu n c io n a r c o m o d é s p o ta ” (tam b ém A t 19.16).
U m se g u n d o v e rb o g rego , katexousia^ein, significa essencialm ente o m esm o,
“ exercitar au to rid a d e s o b re ” .60

43,44 Jesu s rejeita esse m odelo. “N ã o será assim e n tre v o cê s” , objeta


Jesu s (veja ta m b é m lP e 5.2). O v erb o g re g o em 10.43a (om itid o pela N V I)
é notáv el n essa afirm ação. A m e lh o r evidência textual sugere q u e é o tem p o
p re se n te d o v e rb o “ ser” (gr. estin), e n ã o o fu tu ro (gr. estai), o u seja: “ N ã o
é dessa fo rm a e n tre v o cê s” , em o p o sição a “N ã o será d essa fo rm a entre
v o cês” .61 O versículo 43a, p o r co n seg u in te, n ão é ta n to u m a adm o estação
p ara se c o m p o rta r d e certa fo rm a q u a n to u m a descrição d a m aneira com o
as coisas são d e fato n o R eino d e D e u s, e até m e sm o en tre os discípulos do
reino. A ssim , falhar em ser u m serv o n ã o é apenas ficar aq u ém d a condição
ideal, m as p e rm a n e c e r fo ra d e u m a co n d içã o ex istente q u e c o rre sp o n d e ao
R eino d e D eus.

58 G. Schunack, “dokeõ”, E D N T \ M \ . .
59T. W M anson, The Teaching of Jesus: Studies in Its Form and Content (Cambridge:
Cambridge University Press, 1963), p. 313-15.
60 E possível recordar o Satanás dom inador de Milton: “ [...] cuja alta gloria / muitos
dos socios seus acima o eleva / entendedor do verdadeiro heroísmo, com orgulho
monárquico se expressa” [Paradise Lost, 2.427-29).
61 Sobre as variações textuais, veja Metzger, TCGNT, p.108.
407 M a rc o s 10.45

N ã o h á o u tra situação em q u e a ética d o R eino d e D e u s se c o n fro n ta


co m m ais v eem ên cia co m a ética d o m u n d o q u e em assu n to s d e p o d e r e
serviço. A s idéias q u e Jesu s ap resen ta c o m relação ao g o v ern o e serviço são
co m b in ad a s d e u m a fo rm a em q ue n ã o h á p re c e d e n te ó b v io n em n o A ntigo
T esta m e n to n e m n a tradição judaica.62 Jesus, em um a reversão decisiva de
valores, fala d a g ra n d e za n o serviço, e n ã o d a g ra n d e z a de p o d er, prestígio e
au toridade: “ q u em q u iser to rn ar-se im p o rta n te e n tre vocês deverá ser servo;
e q u e m q u iser ser o p rim eiro d everá ser escravo d e to d o s ” (veja 9.35; Lc
22.24-27). A v irtu d e su p re m a d o R eino d e D e u s n ã o é o p o d er, n e m m esm o
a liberdade, m as o serviço. Iro n ic am en te, a g ra n d e z a p e rte n c e àquele q u e não
é g ran d e, o diakonos, a palavra g reg a c o m u m p ara aquele q u e serve à m esa
(sobre diakonos, veja m ais em 9.35). A p re em in ên cia d o serviço n o R eino de
D e u s su rg e d o en sin o de Jesu s so b re o a m o r p o r seu p ró x im o , pois o serviço
significa to rn a r tangível o am or.
Jesus, b u sc a n d o ap resen tar esse p o n to ainda m ais, declara q u e “ q u em
quiser ser o p rim eiro deverá ser escravo de to d o s” . E ssa afirm ação, claro, é um
o xim o ro , pois o escravo (gr. doulos) era in ferio r ao servo (gr. diakonos), a últim a
e m ais baixa p o sição na sociedade d a A ntiguidade. A ideia de u m escravo ser o
p rim eiro era tã o a b su rd am en te p arad o x al q u a n to o cam elo p assar pelo fu n d o
d a agu lha (v. 25) — e isso p ro v av elm en te in d u ziu risos e cabeças balançando
em d e sa c o rd o n a audiência d e Jesus. O desejo p o r p o d e r e d o m in açã o foca a
aten ç ão n o eg o e m ata o am o r, p o is o a m o r p o r n a tu re za foca o s ou tro s. A s
im plicações d e diakonos e doulos p ara o s D o z e , b e m c o m o p ara os m inistros
e líderes d a igreja d e to d as as g erações, são inexauríveis. A c o m u n h ã o cristã
n ão existe p ara o b e m deles, m as eles existem p ara o b e m dessa com u n h ão .
T am p o u c o , o ap ó sto lo o u líder cristão está acim a da congregação, m as é p arte
dela. A co n g reg aç ão n ão p e rte n c e a ele, m as ele p e rte n c e a ela.

45 O q u e Jesu s en sin a so b re o serv iço e o autossacrifício n ão é apenas


u m p rin cíp io d o R eino d e D e u s, m as u m p a d rã o d e sua p ró p ria vida que é
au to ritativ a e transferível p ara os discípulos (tam b ém R m 15.2,3). O “ p o is”

62D. Seeley, “Rulership and Service in Mark 10:41-45”, NovT 35 (1993), p. 234-
50. Seeley, no entanto, prossegue para argumentar que há um precedente para
tais idéias de governança e serviço em alguns filósofos greco-romanos, os quais
argumentam que a governança sábia consiste em servir seus súditos, e não em
tiranizá-los. E m bora isso seja verdade, não há evidência nos textos que Seeley cita
para a ideia de resgate vicário em favor de outros conform e Jesus apresenta no
versículo 45.
M a rc o s 10.45 408

(gr. gar) n o início d o versículo 45 é fo rte m e n te intencional: os discípulos


devem a d o tar a p o s tu ra d e serv o s e escravos n ão c o m b ase n o p en sam en to
ético, m as porque essa é a p o s tu ra d o F ilho d o h o m em . “ Pois n em m esm o o
Filho d o h o m e m veio p ara se r servido, m as p ara serv ir e d ar a sua vida em
resgate p o r m uitos.” A vida à qual o evangelho ch am a os cristãos n ão é um
sistem a ético, m as “ o cam in h o p ara o S e n h o r” (1.3), d o qual Jesus é o pa-
d rão e a en c arn a ção (veja Pol. Fp. 5.2). E sse m o d e lo d e m inistério n ão p o d e
surgir da o rd e m secular, m as apenas d o ca m in h o ú n ico de Jesu s que desafia
a lógica d este m u n d o e seu fascínio p elo d o m ínio, co n tro le, lucro, resultados
e consequências. A chave para o m o d elo e n c arn a d o e co m an d a d o p o r Jesus
está no s v erb o s “ serv ir” e “ d a r” . A razão p o r q u e u m servo tem u m a posição
m ais p re e m in e n te n o R eino de D e u s é q u e a ú n ica fu n ção de u m servo é
d oar, e d o a r é a essência d e D eus.
O tex to d e 10.45 é crucial n ão só p ara o re tra to d e Jesus ap resen tad o p o r
M arcos, m as ta m b é m c o m o u m a a b e rtu ra p ara a au to co n sciên cia d e Jesus.63
E sse tex to eco a o espírito, se n ã o as palavras exatas, d o S ervo d o S en h o r de
Isaías cuja “vida [...] [é] u m a o fe rta pela cu lp a” (Is 53.10) e que “ justificará a
m uitos e levará a iniquidade deles” (53.11). E m b o ra a referência ao resgate de
“ m u ito s” p o ssa sugerir tra ta m e n to preferencial o u parcial, esse dificilm ente é
o sentido. N a gram ática sem ítica, “ os m u ito s” em geral re p resen ta a totalidade,
to d o s.64 A ex p ressão “ os m u ito s” n ão re p resen ta u n s p o u co s selecionados
e dignos; antes, e m seus cin co uso s em Isaías 53, essa expressão refere-se
aos p ró p rio s tran sg resso res (“ nossas tran sg ressõ es”) e p ecad o res (“ nossas
iniq uidad es”) p o r q u em o S ervo d e rra m a sua vida. E m Isaías 52.15, h á um a
referência explícita a “m u itas n aç õ es” , o u seja, os g en tio s, o s n ãó eleitos de
fora. E ssa é u m a im p o rta n te afirm ação, p o is os ún icos o u tro s indícios de
u m a expiação vicária n a trad ição judaica lim itam -n a só a Israel, ao passo

63 Veja M. Wilcox, “ O n the Ransom-Saying in Mark 10:45c, M att 20:28c”, em Ges-


chichte — Tradition — Reflexion: Festschriftfur Martin Hengel %um 70. Geburtstag, ed.
H. Canick, H. Lichtenberger, e R Schafer, vol. 3: Ftiihes Christentum (Tübingen:
M ohr/Siebeck, 1996), p. 173-86, que apresenta um argumento veemente para a
originalidade da fala com o Jesus histórico.
64 O texto de 1Tim óteo 2.6 ecoa com muita proximidade o de Marcos 10.45, ao
afirmar que Cristo era um resgate “p o r todos”. O bserve o intercambiamento de
“muitos” por “todos” em Romanos 5.12-21. Em Cunrã, “os muitos” refere-se
a “ toda a assembléia” (1QS 6.7,8). Veja J. Jeremias, “polloF, ZDA‫׳‬T 6.536-45; G.
Nebe, “polysT, ED N T3 .131 -33.
409 M a rc o s 10.45

q u e o te rm o “ m u ito s /m u ita s ” d o S ervo de Isaías e de Jesus inclui os gentios


e ta m b é m o s judeus.65
O p ap el m ais característico d o F ilh o d o h o m e m , n o en tan to , é o fato de
ele d a r “ sua vida em resgate p o r m u ito s” (grifo d o autor). N a linguagem da
ép o ca, resgate referia-se à fiança p aga pelo s p risio n eiro s d e g u erra e escravos
o u à libertação da prisão. T a n to o te rm o h eb raico kipper q u a n to o g reg o lytron
p o r trás d e “ resg ate” significam “ c o b rir” , “ expiar p o r” o u “ p ag ar” .66 O pen-
sarn en to d o versículo 45 excede de fato o en sin a m e n to d o S ervo d o S enhor
d e Isaías, pois Jesu s n ão é u m in stru m e n to passivo (e talvez sem p ro p ó sito
deliberado) de lavé. A iniciativa de sua o b ra d e expiação em si m esm o co m o
o F ilho d o h o m e m que, em c o n tra ste m arc an te c o m os neg o cian tes de po-
d er d o versículo 42, o ferece liv rem en te sua vida c o m o p re ç o d o resgate p o r
to d o s (Jo 10.11; R m 8.2-4). Jesus, c o m o o em b aix a d o r de D e u s, e p o r m eio
de seu so frim en to , m o rte e ressurreição, o ferece livre e o b ed ien te m e n te sua

65 Apesar da longa história de debates acadêmicos, a ideia de um Messias cujo so-


frim ento e m orte têm relevância expiatória perm anece pobrem ente atestada no
judaísmo fora do N ovo Testamento. Os textos de 2Macabeus 7.37,38 e 4Macabeus
6.27-29; 17.21,22 parecem ter um conceito rudimentar de expiação vicária, embora
nenhum desses textos seja totalmente claro ou bem desenvolvido. D e qualquer
m odo, a expiação tanto de 2Macabeus quanto em 4Macabeus é feita só para Is-
rael (para com pensar pela infidelidade à lei) e não para toda a humanidade. Não
há praticam ente nenhum a evidência de que o texto de Isaías 53 foi alguma vez
aplicado ao Messias; na realidade, o TargumJonathan interpreta os sofrimentos do
Servo de lavé não como uma referência a Jesus. A conclusão de Schürer enfatiza
a diferença entre o judaísmo e Marcos 10.45: “N ão há, em nenhum a das muitas
obras discutidas aqui, a m enor alusão a um sofrim ento expiatório do Messias”
(History of theJewish People, 2.547-49).
66 Sobre o sentido de “resgate”, veja F. Büchsel, “lytron‫״‬, TDNT■4.341 -49; K. Kertelge,
“ lytron”, EDNT2364-66; B. Lang, “kippeE, TDO Tl.288-303. E m urna pesquisa
sobre a evidência epigráfica relacionada a “ lytron”, A. Y. Collins, “The Signification
o f Mark 10:45 am ong Gentile Christians”, PITR 90 (1997), p. 371-82, conclui
que o uso do term o no versículo 45 corresponde ao uso do term o nos períodos
rom anos e helenistas, os quais usam a palavra com referência às “transações entre
os seres humanos e os deuses em que os pecados eram perdoados e as ofensas,
expiadas, e, portanto, não só nos contextos de alforria de escravos e resgate dos
cativos. A evidência sugere que a noção do Filho do hom em dando sua vida em
resgate de muitos (Mc 10.45) pertence ao mesm o complexo de idéias que o dito
sobre o cálice (Mc 14.24), de acordo com o qual o sangue de Jesus foi derram ado
por muitos. [...] Esses dois ditos interpretam a m orte de Jesus ao descrevê-la de
maneira metafórica como um ritual de expiação das ofensas de muitos” .
M a rc o s 10.46 410

vida c o m o u m s u b stitu to emfavor d a hu m an id ad e. Jesus está su p rem am en te


consciente da o fe rta d e u m p ag am en to a D e u s que n ão p o d e ser oferecido p o r
n in g u ém mais. O resg ate q ue Jesu s oferece, a p ró p ria vida, n ão é co n tin g en te
a algo fora d e si m esm o . O ríg en es (século II I d.C.) desenvolvería m ais tard e a
teo ria d e q u e o resg ate d e Jesu s era n ecessário p ara S atanás e u m p ag am en to
a ele. Satanás, n o e n ta n to , n ão é m en cio n a d o n o versículo 45 n em n o relato
d a paixão d e M arcos. S atanás foi m e n c io n a d o pela últim a vez em 8.33, e ali,
ele te n ta desviarJe su s d o so frim en to e m orte! A m o rte d o F ilh o d o h o m em
em fav or de “m u ito s ” é u m sacrifício de o b ed iên c ia à v o n tad e de D e u s, um a
ex pressão p le n a d e seu am o r e a p len a satisfação d a justiça d e D eus.

U M D I S C Í P U L O M O D E L O (10 .4 6 -5 2 )

A h istó ria d a cu ra d o cego B arü m eu é única em m eio às curas d os sinó-


ticos p o r causa da te rn u ra e interesse pela p esso a curada. B artim eu, de fato, é
a ún ica p e sso a cu rad a n o s sinóticos de q u em ficam os sab e n d o o nom e. U m a
série d e d etalh es n o s leva a u m c o n te x to palestino: Jerico, o n o m e aram aico
de B artim eu , F ilh o d e D av i e a expressão reverente: “ RabbounT.67 A história
desse ce g o m e n d ic a n te que, p o r ironia, vê Jesu s m ais claram ente d o que
aqueles enx erg am c o m dois o lh o s b o n s re p re se n ta o ápice d o en sin am en to
de M arcos so b re a fé e o discipulado. O cap ítu lo 10 e stá cheio d e referências
ao d iscipulado,68 m as n e n h u m d o s discípulos d e m o n s tra a fé, a percepção
e o d iscipulado de B artim eu. E sse m ilagre, o ú ltim o de cura n o evangelho,
reafirm a a p o sição m essiânica d e Jesu s (w . 47,48) e ap resen ta u m a série de
ep isó dio s n o s capítulos 11 e 12 em q u e ta n to a p osição q u a n to a autoridade
divina de Jesu s en tra m em co n flito co m aquelas d o s líderes religiosos de
Jerusalém .

46 E ssa história, c o m a exceção d e u m n o m e d istin to d o lugar, ap resenta


as m esm as palavras de 8.22, su g erin d o q u e as duas histórias p erte n ciam à
tradição oral d o s locais m en cio n ad o s. N a últim a etap a d a jo rn ad a p ara Jerusa-
lém , Jesu s passa p o r Jericó. E ssa cidade (junto co m D am asco) afirm a ser um a
das m ais antigas cidades d a te rra co n tin u a m e n te habitada. Fica 246 m etros
abaixo d o nível d o m ar, cerca d e 33 q u ilô m e tro s p o r u m cam in h o to rtu o so a
su do este d e Jeru salém . Jesu s é a c o m p a n h ad o pelos discípulos e “ u m a grande

67J. Jeremias, New Testament Theology, vol. 1, trad. J. Bowden (London: SCM Press,
1971), p. 89-90.
68 Versículos 10,13,23,24,27,28,32,35,36,46,52.
411 M a rc o s 10.47

m u ltid ão ” que, m ais u m a vez (v. 32; 15.41) in d ica q u e seus seguidores exce-
d em os D o z e . N a saída d e Jerico, u m cego p e d in te ch am a Jesus. B artim eu,
seu n o m e aram aico, significa “ filho de T im e u ” , u m a trad u ção que M arcos
p o d e te r ac rescen tad o p ara o b en efício de seus leito res gentios.69 B artim eu,
um m en d ica n te cego, e stá “ sen tad o à b eira d o c a m in h o ” .70 E le, em outras
palavras, está m arginalizado o u excluído. A d iferen ça em sua p osição “ à beira
d o c a m in h o ” (gc.para tên hodoti) n o início d a h istó ria e “ p elo c a m in h o ” (gr. em
tf bodç) n o final d a histó ria significa a d iferen ça e n tre ser d e fo ra e p e rte n c e r
ao círculo ín tim o , u m o b se rv a d o r e u m discípulo.

47 O q u e falta a B artim eu em sua visão ele c o m p e n sa c o m seu discerni-


m en to . H á u m a r d e expectativa à m ed id a q u e Jesu s d e N a zaré passa p o r ele.
E ssa é a seg u n d a vez q u e M arcos identifica Jesu s c o m o o nazareno. A N V I
traz “Jesu s d e N a z a ré ” , m as o g re g o n ã o é “ N a z a ré ” (Nadarei) c o m o em
1.9 que, sem d ú vida, desig n a o n o m e d e u m lugar (veja ainda em 6.1), m as,
sim , “ n a z a re n o ” (Nazarenos; ta m b é m 1.24; 10.47; 14.67; 16.6; veja m ais em
1.24). N o ev an g elh o d e M arcos, o p rim eiro m ilagre d e cura (1.24) e o últim o
(10.47) desig n am Jesu s c o m o “ o n a z a re n o ” . N a s duas instâncias, o te rm o
p ro v av elm en te c o n o ta m ais q ue o lugar de o rig em de Jesus. U m a expressão
sim ilar é u sad a a resp eito d e Sansão em Ju izes 16.17 (LX X , tex to A ), que é
ch am a d o de na^jraios theou, o ung id o p o d e ro s o d o Senhor. O u so d o te rm o
“ n a z a re n o ” nas histó rias d e cura em 1.24 e 10.47 n o evangelho de M arcos
tam b é m p o d e m carreg ar c o n o taç õ es d a u n çã o p o d e ro sa d e Jesu s p o r D eus.
B artim eu, o u v in do so b re Jesus, grita: “Jesu s Filho de D avi, tem m isericór-
dia de m im !” O s israelitas, d esd e a p ro m essa d e 2Sam uel 7.11-14 d e que D eu s
levantaria u m d e sc en d en te de D avi e “ firm ar[ia] o tro n o dele para sem p re” ,

69 B. M. F. van Iersel ej. Nuchelmans, “D e zoon vanTim eüs en den zoon von David.
Marcus 10,4652‫ ־‬gelezen door een grieks-romeinse bril”, Tijd. Theol. 35 (1995),
p. 107-24, propõe a intrigante, embora especulativa, tese de que “ filho de Timed'‘
remem ora o nome do principal personagem no mais bem conhecido diálogo
de Platão — Timeu-, e que o uso por Marcos do term o simboliza a conversão e
discipulado do m undo greco-rom ano para Jesus.
7(1A N V I segue a maioria dos manuscritos gregos na leitura, “ [Bartimeu] estava sen-
tado à beira do caminho pedindo esmolas” . A leitura de um grupo menor, mas de
mais peso, de manuscritos (‫ א‬B L Δ ^),prosaitès ekathêtopara tên hodon (“ [Bartimeu]
era um pedinte sentado à beira do caminho”), no entanto, é preferível não só por
causa do apoio de manuscritos, mas tam bém porque explica melhor a existência
de outras leituras. Veja Metzger, TCGNT, 108.
M a rc o s 10.48-52 412

esperavam u m d esc en d en te de D avi c o m o o M essias.71 O título real de “ Filho


d e D av i” ap arece pela prim eira vez em m ead o s d o século I a.C. em Salmos
de Salomão 17.21. Ali, n o en tan to , ele se refere a u m rei g u erreiro que punirá
os pecadores, ao p a sso q u e aqui ele se refere àquele q ue terá m isericórdia
deles. A saudação d e te rm in a d a de B artim eu q u a n d o cham a Jesus de “ Filho
d e D a v i” carreg a to n s m essiânicos explícitos e m o s tra q u e esse cego olha
p ara Jesu s c o m o o M essias q ue p o d e trazer cu ra e in teg rid ad e.72

48-50 A m u ltid ão (e n ã o Jesus), pela prim eira vez em M arcos, ten ta silen-
ciar alguém . C o n tu d o , o m o tiv o da m ultidão é b em d iferen te das injunções de
Jesu s p a ra o silenciar: Jesu s q u e r im p ed ir q u e as pessoas te n h a m confissões
p rem a tu ras e falsas, ao p asso q u e a m u ltid ão q u e r im p ed ir as pessoas de vi-
rem a Jesus (cf. 10.13). T odavia, n ada p o d e silenciar B artim eu; n a verdade, a
o p o sição só alim en ta a cham a de sua persistência. O R eino d o céu, foi dito,
n ão é p ara o s b em -in ten c io n a d o s, m as p ara os d esesperados. B artim eu está
d esesp erad o , e seu d ese sp e ro é a p o rta p ara a fé. E le grita ainda m ais alto:
“ F ilh o de D av i, te m m isericórdia de m im !” “Jesu s p a ro u [...].” O destino
d e B artim eu está ligado a essas palavras. O tex to original g reg o traz: “ E
Jesus p o sto u -se (p arad o )” . C o m o é notável q u e o F ilh o d o h o m e m p erm ita
q u e os g rito s de u m a p esso a p o b re e sem p o d e r o pare em sua jornada. Ele
fica ao lad o d e B artim eu d a m esm a fo rm a co m o ficou ao lado de E stêvão
(A t 7.56). B artim eu atira sua capa p ara o lado, fica d e p é e v em até Jesus. A
palavra “ cap a” é u m a trad u ç ão d o te rm o g re g o himation, o m a n to exterior
q u e os antigos usavam so b re u m a veste in te rn a sem elh ante a u m cam isão de
d o rm ir, ch a m a d o chiton. A m u ltid ão p o d e silenciar B artim eu, o pessoal da
cidade, co m relutância, p o d e lhe ce d er u m lugar p ara m endigar, m as u m a fé
co m o essa n ão fica sem reco m p en sa.

51,52 “ O q ue v o cê q u e r q u e eu faça?” , p e rg u n ta Jesus. E ssa é a m esm a


p erg u n ta qu e fez aos filhos de Z eb e d e u (v. 36), m as B artim eu re sp o n d e de
fo rm a distinta; e n q u a n to os filhos d o tro v ão p e d e m p o r glória extraordinária,
B artim eu p e d e apenas p o r saúde. C ertam e n te , a n ecessidade de B artim eu
deveria ser ó bvia p ara Jesus. A re sp o sta m ais p rática de Jesu s seria curá-lo e

71 Para mais textos messiânicos, veja Isaías 11.1,10; Jeremias 23.5; 33.15; Sal-
mos 89.4,5; Salmos de Salomão 17.21-40; 4Esdras 12.32; lQ F lo r 1.11-13.
72 Sobre o título “Filho de Davi”, veja E. Lohse, “huios Dauid\ 7DÍVT8.482-92; O.
Hofius, “1st Jesus der Messias? Thesen” ,/A 7 7 8 (1993, Der Messias), p. 107.
413 M a rc o s 10.48-52

seguir co m sua jornada. N o en tan to , p ara Jesus, B artim eu n ão é u m p ro b lem a


c o m o qual te m de lidar. Jesu s n ão fará algo p ara ele, m as algo com ele. Ele,
p ara u sar a linguagem de B u b er, re sp o n d e ao cego n ã o co m u m “ isso ” , m as
co m u m “ tu ” , ao lhe fazer u m a p erg u n ta , p e rm itin d o desse m o d o que ele
se expresse c o m o p esso a, em vez de se d esc u lp a r p o r si m esm o c o m o um
p ro b le m a social o u vítim a.
B artim eu , d e a c o rd o c o m a N V I, diz: “M estre, eu q u ero ver!” O texto
g rego , n o e n ta n to , u sa u m ep íte to m ais re v ere n te , “RabbounF (veja tam -
b ém J o 20.16). N a literatu ra judaica ex isten te, rabbouni é u sad o raras vezes
co m referên cia à h u m an id ad e e p ra tic am en te n u n c a c o m o u m a fo rm a de
trata m e n to . C o n tu d o , é u sad a co m freq u ên cia p ara se dirigir a D e u s em
oração . Seu u so aqui sugere a avaliação de Jesu s p o r B a rtim eu — e M arcos.73
B artim eu , e m h u m ild e co n fian ça, n ã o p ed e riqueza, p o d e r n em sucesso, m as
ap enas p ara ver; ele n ã o p e d e p ara ser so b re -h u m an o , m as apenas hum ano.
P ara q u e m está bem , a n o rm alid ad e p o d e p arece r o m ín im o possível, m as
p ara o d o e n te e p e rtu rb a d o a n o rm alid ad e é o m aio r d o m de D eus. Jesu s de-
clara: “Vá, [...] a sua fé o cu ro u ” .74 A palavra p ara “ c u rad o ” (gr. sç%0) tam b ém
significa “ salvo” , c o m b in a n d o as d im en sõ es física e espiritual. N o caso de
B artim eu , a palavra é d u p lam en te ap ro p riad a, po is “ ele recu p ero u a visão ”
e “ seguiu Jesu s p elo c a m in h o ” . E ssa ú ltim a d escrição designa o m o d elo de
d iscíp ulo p ara M arcos.75Jesu s tra n s fo rm o u B artim eu d e u m m en d ig o à beira
da estra d a (v. 46) a u m discípulo n o ca m in h o (v. 52). A fé que n ão leva ao
d iscipu lad o n ã o é a fé salvífica. Q u e m q u e r q ue seja q u e clam e a Jesus tem
d e estar d isp o sto a segui-lo... até m e sm o estrad a acim a até a cruz.

73VejaStr-B 2.25.
74 N o apócrifo, Atos de Pilatos, 6.4. Bartimeu, junto com outros que Jesus curou,
aparece com o uma testem unha pessoal para Jesus no julgamento diante de Pila-
tos! “E outro judeu se apressou para chegar na frente e disse: ‘Nasci cego; ouvi a
voz de um hom em , mas não vi sua face. E, quando Jesus passou, gritei bem alto:
Tenha misericórdia de mim, Filho de Davi. E ele se compadeceu de mim, pôs as mãos
sobre meus olhos e vi de imediato’ ” .
75 Veja H.-J. Eckstein, “Markus 10,4652‫ ־‬ais Schlüsseltext des Markusevangeliums” ,
Z/VIF87 (1996), p. 33-50, que vê 10.46-52 com o o centro teológico do evangelho
de Marcos. Apesar de acreditar que o centro teológico do evangelho não é essa
perícope, mas, sim, 15.33-39, a cura de Bartimeu é certamente a soma e o centro
de todos os desejos de Marcos para transmitir sobre a fé e o discipulado.
capítulo onze

O templo estéril
M A R C O S 11.1-2 6

M arco s p õ e a n arrativa d a paixão d o s cap ítu los 11— 16 n o c o n tex to da


sem an a d a P áscoa. Isso significa que u m terç o d o evangelho d e M arcos (e
quase m e tad e d o de Jo ão , capítulos 12— 21) descrev em o s últim os sete dias
da vida d e Jesus. A ên fase d esp ro p o rc io n a d a nesse breve p erío d o de tem p o
sinaliza a im p o rtâ n c ia da sem an a final em Jeru sa lém p ara u m a co m p reen são
da m issão e p ro p ó s ito d e Jesus. A n arrativ a da paixão n o s capítulos 11— 16
re to m a o ritm o rá p id o do s p rim eiro s três capítulos d o evangelho. A ssim
que Jesu s chega a Jeru sa lém , p ara a qual estava “ n o ca m in h o ” d esd e 8.27, os
eventos p ara co m p letar sua m issão e revelação c o m o o F ilho d e D e u s ficam
conhecid os.
É po ssív el q u e M arco s te n h a co m p rim id o os ev e n to s q u e o co rreram
ao lo n g o de vários m eses n o s capítulos 11— 16. E m b o ra isso n ã o p o ssa ser
co m p ro v ad o , várias observações e dados espalhados ao longo desses capítulos
a p o n ta m nessa direção. A descrição da M ishná da celebração da festa da co-
lheita d o o u to n o , co n h ecid a c o m o F esta das C abanas o u T ab ern ácu lo s, p o r
exem plo, q u e incluía acenar co m ram o s de palm a, salgueiro, m u rta o u árvores
cítricas e g ritar “ H o sa n a ” (m. Suk. 3.3-9), está m ais p ró x im a da descrição da
en tra d a de Jesu s em Jeru salém (11.8-10) q ue q u alq u er o u tro ev en to associa-
d o c o m o a celeb ração da P áscoa n a prim avera. R eferências esporádicas na
narrativa d a paixão tam b ém sugerem u m m inistério m ais lo n g o em Jerusalém
(e.g., “A o cair d a tarde, eles saíram da cid ad e” , 11.19; “T o d o s os dias eu estive
co m vocês, e n sin an d o n o tem p lo , e vocês n ão m e p re n d e ra m ” , 14.49). A
co m p o siçã o d o capítulo 13 (c o n fo rm e arg u m en tarem o s) tam b ém sugere u m
p erío d o m ais lo n g o de tem po. A in d a m ais im p o rta n te , parece haver m uitos
ev entos registrad o s em M arco s 11— 16 p ara q ue ten h am o co rrid o em u m a
única sem ana. M arcos segue u m a cro n o lo g ia diária que para no dia três em
M a rc o s 11.1 416

11.20.1 Isso significa q u e to d o s os ev en to s d e 11.27— 14.11 aco n teceram em


u m dia e m eio (q u arta-feira e m an h ã da quinta-feira) da sem ana da Páscoa,
o qu e parece q u ase im possível.
O evangelho d e Jo ã o p o d e apresentar u m p erío d o d e tem p o m ais razoável
da paixão de Jesu s em Jeru salém . Jesus, d e a c o rd o co m o q u a rto evangelho,
estava em Jerusalém p ara a F esta da D edicação (10.22), que ocorria em m eados
de dezem b ro , e d ep ois dessa festa ele se retirou p ara a Pereia, d o o u tro lado do
J o rd ã o (10.40; 11.54). O q u a rto evangelho, em o u tras palavras, p õ e Jesus na
Judeia e Jerusalém p elo m en o s q u atro m eses o u m ais antes d e sua crucificação.
O s p ro b lem a s q u e p erce b e m o s na narrativa d a paixão de M arcos p o d e m ser
resolvidos se fo r a d o ta d o o p erío d o de te m p o m ais lo n g o sug erid o p o r João,
em especial se ele in clu ir a F esta das C abanas o u T ab e rn ácu lo s n o outono.
P o d e ser q u e M arcos, a q uem Papias afirm a q u e o rg an izo u o m aterial de
ac o rd o c o m seu p ró p rio plano, encaixe u m p ro c e sso histó rico m ais longo
n a sem an a d a P áscoa. H á pelo m en o s duas razõ es p ara ele fazer isso. A pri-
m eira, a n arrativ a d a paixão em u m a sem ana servia aos p ro p ó sito s litúrgicos
e catequético s ao re d u zir o evangelho em m ais de u m terço e os ev en to s de
su m a im p o rtâ n c ia d a paixão de Jesus a u m b lo c o de m aterial q u e poderia
ser lido e celeb rad o d u ra n te a sem an a da P áscoa. M as a seg u n d a e a mais
im p o rta n te , o m aterial d a narrativa da paixão é o rien ta d o em to rn o d o p o n to
focal d o tem p lo , sen d o re u n id o e ap re se n ta d o em o rd e m p ara m o stra r que
Jesu s substitu i o tem p lo c o m o locus Dei. T o d o o m aterial d os capítulos 11— 13
aco n tece o u n o tem p lo o u se relaciona co m ele. Jesus, c o m o os p ro fetas antes
dele (e.g., 2R s 22.15-20; 23.26,27; Is 51.17-23), p ro fe re o ju lgam ento de D eus
so b re Sião. Jesu s n ão é o re fo rm a d o r d o tem p lo , p o is n em seu ensin o nem
seu m inistério in stitu em u m p ro g ra m a d e m u d a n ça e m elh o ram en to . A ntes,
ele é o c u m p rim e n to e su b stitu to d o tem p lo , p ois sua m o rte n a c ru z — e
n ão o p o d e ro s o cu lto n o te m p lo — é a expiação p erfeita p ara o pecado. N o
G ó lg o ta, a c o rtin a d o te m p lo foi rasgada (15.38) e Jesus é c o n fessad o com o
0 F ilho d e D e u s, o o b je to da fé salvífica (15.39).2

JE SU S E N T R A E M JE R U SA L É M ( 1 1 .1 1 1 ‫)־‬

M arcos 11 co m eça u m a u n id ad e d e p e n sa m e n to q ue se esten d e ao longo


d o cap ítulo 13. O tem a d essa u n id ad e é o co n flito d e Jesus co m o tem plo

1 10:4.6— 11.11 = Dom ingo; 11.12— 11.19 = segunda-feira; 11.20-? = terça-feira.


2 Veja W. R. Telford, Mark, N T G (Sheffield: Academic Press, 1997), p.l37-38;J. P.
Heil, “T he Narrative Strategy and Pragmatics o f the Temple Them e in Mark”,
CBQ 59 (1997), p. 76-100.
417 M a rc o s 11.1

em Jeru sa lém e sua rejeição deste, in clu in d o o sistem a religioso e a liderança


ce n tra d a ali. A ru p tu ra en tre Jesus e o te m p lo fica ev idente d esde sua visita
inicial ao te m p lo em 11.1-11. E le en tra d e fo rm a triun fal em Jerusalém , m as
n ão é re ceb id o d a m esm a fo rm a n o tem p lo (com o, e.g., em M t 21.10,11). A
indiferença c o m que ele de início é recebido (v. 11) lo g o se tran sfo rm a em opo-
sição em 11.28 e, p o r fim , culm ina c o m su a c o n d e n a ç ã o à m o rte (14.63,64).

1 A h istó ria co m eç a n a chegada a Jeru sa lém p elo leste. M arcos relata que
Jesu s e os discíp u lo s “ se aproxim aram de Jeru sa lém e chegaram a B etfagé
e B etânia” . A seq u ên cia d e no m es d e lugares deixa in trig ad o s os q u e estão
fam iliarizados c o m a estrada m o d e rn a de B etânia atravessando B etfagé para
Jeru sa lém , p o is h o je a o rd e m das cidades é o p o s ta àquela m en cio n a d a p o r
M arcos. A sequência d e M arcos d e Jeru sa lém — B etfagé — B etânia, n o en-
tan to , n ã o é p ro b lem á tica c o m o algum as vezes se su p õ e, p o is a antiga estrada
ro m a n a q u e Jesu s seguiu n ão segue o cu rso d a estrada m o d e rn a q u e fica a
n o rte d a an tig a estrada. A estrada ro m an a , a p a rtir de Jerico, segue a sudeste
ao lo n g o d o q u e hoje é o uádi U m m esh Shid e, d epo is, segue diretam en te até
o p ico d o m o n te das O liveiras, p ró x im o a B etfag é (“ casa do s figos verd es”).
N e ssa ro ta, o viajante passa en tre B aurim , im ed iatam en te a n o rte (2Sm 3.16;
16.5; 17.18; Josefa, Ant. 7.225) e B etân ia m ais a sul.3 U m a estrad a íngrem e
ia de B etfagé a B etânia, u m q u ilô m etro a sul n a região leste d o m o n te das
O liveiras. O o b jetiv o d e 11.1 é trazer Jesu s e os discípulos p ara o to p o d o
m o n te das O liveiras, d e o n d e os discípulos são d esp a ch ad o s p ara trazer um
ju m e n tin h o p a ra Jesu s e n tra r so b re ele em Jeru sa lém . M arcos m en cio n a
B etânia n o versículo 1 n ão p o rq u e estava n a estra d a d e Jerico p ara Jeru sa-
lém , m as a fim d e identificar o local o n d e Jesu s passaria as n oites en q u a n to
estivesse em Jeru sa lém (11.11). O sen tid o d o versículo 1, p o rta n to , é: “ E ,
n o ca m in h o p a ra Jeru salém , eles ch eg aram a B etfagé (próxim o d e Betânia)
n o m o n te das O liveiras” .

3 R. Beuvery, “La Route Romaine de Jérusalem aJéricho” , RB 66 (1957), p. 72-101;


B. Pixner, Wege desMessias undStàtten der Urkirche, Studien zur Biblischen Archáolo-
gie und Zeitgeschichte, Band 2, Herausgegeben R. Riesner e C. Thiede (Giessen:
B runnen Verlag, 1991), p. 372-75. C. E. B. Cranfield, The GospelAccording to Saint
Mark, ρ. 348, parece pensar em termos da estrada m oderna, e não da antiga estrada
romana, quando afirma que “Betânia era alcançada antes de Betfagé”. D a mesma
forma, E. Schweizer, The GoodNewsAccordingtoMark, p. 227, é desnecessariamente
desdenhoso ao afirmar: “Fica claro que Marcos, escrevendo em data mais tardia,
não estava familiarizado com esses lugares” .
M a rc o s 11.2-6 418

O monte das Oliveiras fica 792 m etro s acim a d o nível d o m ar (cerca de


91 m etro s m ais alto q u e Jeru salém ) e se esten d e de n o rte a sul na co sta leste
da C idade Santa. O m o n te das O liveiras, já antes d a é p o ca d e D avi, era um
local de ad o ração (2Sm 15.32). E zequiel, n a q u ed a d e Jeru salém em 586 a.C.,
teve u m a v isão d a glória d o S e n h o r p a rtin d o d e Jeru sa lém e re p o u sa n d o no
m o n te das O liveiras (E z 11.23). E sse m o n te, d e a c o rd o com Z acarias 14.4,
seria o local d o ju lg am en to final, e os rabis e jo s e f o (Ant. 20.169) o associavam
co m a v in d a d o M essias. M arcos, q u e raras vezes m e n c io n a n o m e d e lugares,
p o d e m e n c io n a r o m o n te das O liveiras aqui a fim d e associar sua relevância
m essiânica c o m a e n tra d a de Jesu s em Jerusalém .

2 -6 Jesus, d o to p o d o m o n te das O liveiras, envia dois discípulos não


identificados p a ra tra z e r u m ju m en tin h o p ara ele m o n tar. Jesus, de acordo
co m a N V I, d irecio n a o s discípulos “ ao p o v o a d o q ue está adiante d e vo cês”
(grifo d o au to r), m as o te rm o g reg o katenantisignifica “ o p o s to ” , o que indica
B etfagé o u talvez B au rim o u B etânia. M arco s é tão vago so b re a identidade
d o p o v o a d o q u a n to o é so b re os dois discípulos. O “ju m e n tin h o ” (gt.põlos)
p o d e significar o u cavalo jovem o u ju m en to (em b o ra esse ú ltim o fosse mais
co m u m n a Palestina). N ã o n o s é in fo rm a d o co m o Jesu s ficou sab e n d o do
ju m en tin h o . Jesus, co n tu d o , conhecia m u ito b em aquela região, pois ele atra-
vessava o m o n te das O liveiras to d as as m an h ãs n a estrad a d e B etânia para
Jeru sa lém , e to d as as n o ites q u a n d o voltava p ara B etânia ( l l . l l ; L c 10.38), e
ele acam pava aos p és d o m o n te das O liveiras p ró x im o d o ribeiro de C edrom
(14.32; L c 21.37; 22.39; J o 18.2). Seu co n h e c im e n to d o ju m en tin h o e seus
d o n o s indica sua fam iliaridade co m am b o s antes dessa história, o que mais
u m a vez arg u m e n ta p o r u m a jo rn a d a em Jeru sa lém m aio r que u m a sem ana
(veja a in tro d u ç ã o a este capítulo). Se os discípulos fo ssem q u estio n ad o s a
resp eito d o ju m en tin h o , d ev eríam apenas d izer qu e o “ S en h o r precisa dele
e lo g o o d evolverá” .4 A q u e m “ S e n h o r” se refere é u m assu n to de debate.

4 A última metade da mensagem no versículo 3 (“e [ele] logo o devolverá”) é


consideravelmente menos clara no original grego que na tradução da NVI. A
tradição dos manuscritos se divide em relação à ordem das palavras da frase, e os
melhores manuscritos ( K B A C D K X Q A ) põem o verbo no tem po presente,
e não no futuro (W Π Ψ ; NVI), ou seja, “e [ele] o envia imediatamente aqui de
novo” . Assim, não fica claro se a frase é parte da mensagem para enviar o jumen-
tinho com rapidez ou uma prom essa de que Jesus o retornará prontamente. A
presença de palin (“de volta” ou “de novo”), bem como a garantia dos observa-
dores no versículo 6, no entanto, argumenta que a frase deve ser entendida como
419 M a rc o s 11.7-10

O g re g o kyrios, c o m o o alem ão “ H e r r ” o u o p o rtu g u ê s “ s e n h o r” , p o d e


significar “ S e n h o r” o u apenas u m p ro n o m e de tra ta m e n to , d e p e n d en d o do
con tex to. M arco s ch am a D e u s d e “ S e n h o r” c o m b astan te frequência (1.3;
11.19; 12.11,29,30,36), m as a palavra d ificilm ente se refere a D eu s nessas
o corrências. M arcos tam b ém usa kyrios u m a vez c o m o “ m e stre ” o u “ pro-
p rietá rio ” (12.9). Se o p ro p rie tá rio d o anim al era segu id o r de Jesus, en tão a
referência d e Jesu s a ele e a p ro m essa de d evolver o ju m en tin h o garantiría aos
o b se rv a d o re s q ue o anim al n ão fo ra ro u b ad o . N o en tan to , n ão há n en h u m
indício de q u e o p ro p rietá rio esteja co m Jesus; além disso, é Jesus, e n ão o
p ro p rie tá rio , q u e necessita d o anim al. O re fere n te m ais óbv io de kyrios, p o r
co nsegu in te, é Jesus. E m algum as ocasiões em M arcos, Jesu s se refere a si
m esm o c o m o “ S e n h o r” o u usa o te rm o em relação a si m esm o (2.28; 5.19;
12.36,37) e p arece q ue ele faz isso m ais u m a vez aqui. Seus o uvintes, é claro,
p o d e m te r e n te n d id o o te rm o n o sen tid o d e “ m e stre ” , m as o uso d e kyrios,
em vez d e “ e u ” o u até m esm o “ F ilh o d o h o m e m ” parece ser o u tra in stância
da exousia d e Jesus, o u seja, sua declaração de te r au to rid ad e divina.
O s p rim eiro s seis versículos da n o ssa narrativa são d ev o tad o s à p rep a-
ração p ara a e n tra d a em Jeru sa lém e são n a rra d o s de fo rm a a d em o n strar
a presciên cia precisa e so b eran ia de Jesu s so b re os ev entos subsequentes.
D eta lh e s sutis na h istó ria carreg am c o n o ta ç õ e s m essiânicas. O ju m en tin h o
é id en tificad o n o A n tig o T e sta m e n to c o m o a m o n taria d o M essias (Z c 9.9;
G n 49.11). N a A n tiguidade, o co n fisco d e anim ais de carga era prerro g ativ a
de u m rei e isso tam b ém sugere o p ap el régio d e Jesu s.5 U m anim al d e carga
in ta to era co n sid erad o sag rad o (tam b ém N m 19.2; D t 21.3), o q u e o to rn a-
va a p ro p ria d o p ara u m rei, u m a vez que, d e a c o rd o c o m a M ishná (m. Sanh.
2.5), n in g u ém m ais p o d e cavalgar u m cavalo d o rei. A en tra d a — e seu fim
inconclusivo (v. 11) — está de ac o rd o co m a presciência e au to rid ad e de Jesus.
E ste, p o rta n to , n ã o e n tra em Jeru sa lém c o m o u m a v ítim a d esconhecida, m as
com a m e sm a p resciên cia e so b eran ia c o m q u e ele viajou “ n o cam in h o ” .

7-10 M arcos, de fo rm a distinta de M ateus 21.5 e Jo ão 12.15, não identifica


ab e rta m e n te a e n tra d a d e Jesu s em Jeru sa lém co m a citação m essiânica de
Z acarias 9.9, co m a qual associam os p ro n ta m e n te a en trad a triunfal:

uma prom essa de que Jesus retornará logo com o animal (também M t 21.3). Veja
Metzger, TCGNT, p. 108-9.
5 Veja M. Hooker, The GospelAccording to St Mark, p. 258.
M arcôs 11.7-10 420

Alegre-se m uito, cidade de Sião!


Exulte, Jerusalém!
Eis que o seu rei vem a você,
justo e vitorioso,
hum ilde e m o n tad o n um jum ento,
um jum entinho, cria de jum enta.

M arcos, ao m a n te r seu tem a d o servo e d o seg red o p re fere im agens


m essiânicas sutis p ara a b rir a proclam ação. O e sten d e r de m an to s e ram os
diante de Jesu s, claro, é sugestivo d a recep ção ce rim o n io sa de u m rei, com o
n a co nsag ração d e Jeú: ‘!m e d ia ta m e n te eles p eg aram os seus m an to s e os
esten d e ram s o b re os degraus d ian te dele. E m seguida to caram a tro m b e ta e
gritaram : ‘J e ú é rei!’ ” (2Rs 9 ! 3 ) .6 O g rito de “ H o san a!” é u m a transliteração
d a palavra h eb raica q u e significa literalm ente: “ Salve, eu o ro ” . A frase “ ben-
d ito é o q u e v em em n o m e d o S e n h o r ” (SI 118.25,26) refere-se aos pere-
g rin o s e n tra n d o n o tem p lo , e n ão ao M essias, e o sen tid o é que o peregrino
é a b e n ç o a d o em n o m e de D eus.7 A s aclam ações d os versículos 9,10, por
co nsegu in te, eram p ro v av elm en te m en o s específicas q ue os leitores cristãos
p o sterio re s ten d iam a com p reen d ê-las; a in ten çã o das palavras p o d ia ser de
saudação de u m p ereg rin o tan to q u a n to d e aclam ação m essiânica. A aclama-
ção n o versícu lo 10: “ B en d ito é o R eino v in d o u ro de n o sso pai D avi!” não
faz p a rte d e S alm os 118 n em de n e n h u m o u tro salm o. A referência ao reino
v in d o u ro é c e rtam en te escatológica, m as a referência a “ n o sso pai D av i” , não
é e n c o n tra d a em n e n h u m o u tro lugar n o judaísm o,8 n ão é necessariam ente
m essiânica, c o m o “ filho d e D a v i” o seria. Jesu s, d e q u alq u er m o d o , pregava
so b re o R ein o d e D e u s, e n ã o so b re “ o R eino v in d o u ro de n o sso pai D av i”,
e a atribu ição d esse ú ltim o a ele revela u m a co n fu são p o r p arte da m ultidão
so bre sua verdadeira m issão.9 O efeito da citação resum ida no s versículos 9,10,
p o rta n to , n ã o é a b e rta m e n te m essiânico. N a v erd ad e, se a in te n ç ã o das
aclam ações d a m u ltid ão n o s versículos 9,10 referiam -se a u m cu m p rim en to
m essiânico específico em Jesus, n ã o d everíam os n o s s u rp re e n d e r co m o fato

6 Plutarco registra que os soldados, quando Cato aposentou-se do serviço militar, o


honraram ao “lançarfem] suas túnicas para que ele caminhasse sobre elas” {Uves,
“Life o f Cato the Younger” , p. 12 [Plutarch’s Uves, LCL, vol. 8]).
7 A citação do Salmos 118.25 em Didaquê 10.12 refere-se também aos missionários
itinerantes, e não ao Senhor. Sobre o sentido da citação de Salmos 118.25,26, veja
Μ. H. Pope, “Hosanna: W hat It Really Means”, BRev 4 /2 (1988), p. 16-25.
8 Schweizer, The GoodNews According to Mark, p. 229.
9 D. Liihrmann, Das Markusevangelium, p. 189.
421 M a rc o s 11.11

d e Jesu s n ã o te r sido p ro n ta m e n te p re so pelas au to rid ades rom anas (veja A t


5.37; 21.38) o u q u e acusações re fere n tes a isso n ão te n h am sido feitas em seu
ju lg am en to (14.55-58). H á , é claro, sutis nu an ças m essiânicas n o fato d e je s u s
m o n ta r u m ju m e n tin h o p ara e n tra r em Jeru sa lém , c o m o o M essias pacífico e
gentil d e Z acarias 9, m as é d u v id o so que a m u ltid ão e as au toridades ten h am
co m p re e n d id o sua to tal relevância.10 A e n tra d a d e je s u s em Jerusalém , co m o
a de in ú m ero s o u tro s p eregrinos, foi ap a ren tem en te considerada pelas m assas
c o m o u m a pereg rinação , e n ão c o m o u m triu n fo m essiânico.

11 O o b jeto da p ro cissão triunfal d e je s u s n ã o é Jeru sa lém em geral, m as


esp ecíficam en te o tem plo. Jesus faz u m a investigação (gr. peiblepesthai·, veja
m ais so b re o te rm o em 10.23) im p ressio n an te das o p eraçõ es d o tem plo. A
lo n g a viagem “ n o c a m in h o ” da G alileia (8.29) e a cavalgada d o m o n te das
O liveiras tro u x e Jesu s a esse p o n to de destinação; n a v erd ad e, d e destino.
P arece ser o m o m e n to para ele receb er o reino m essiânico. C o n tu d o , irônica-
m en te, n ad a acontece. A m ultidão q ue o aclam a desaparece m isteriosam ente.
M arcos, em to tal anticlím ax, relata q ue era tard e e q ue Jesu s p artiu co m os
D o z e p a ra B etânia.
E sse tex to é trad icio n alm en te ch a m a d o de e n tra d a triunfal. E ssa é um a
designação ap ro p riad a p ara M ateus 21.1-11 e jo ã o 12.12-19, m as dificilm ente
p ara M arcos. M ateus afirm a: “ to d a a cidade ficou agitada e perguntava: ‘Q u em
é este?’ ” (21.10). L ucas relata q u e a cidade ta m b é m ficou tão entusiasm ada
q u e as p ed ras estavam p ro n ta s p ara clam ar (19.40). O relato de M arcos é
dig n o d e n o ta p elo q ue não acontece. A cen a to d a acaba em nada. C o m o a
sem e n te n a p aráb o la d o sem ea d o r q u e receb e a palavra co m alegria, m as n ão
tem raiz e d u ra apenas u m b reve p e río d o (4.6,16,17), a m ultidão se d ispersa

10 As tentativas de com parar a entrada dejesus em Jerusalém com a entrada dos reis
conquistadores (e.g., P. B. Duff, “T he March o f the Divine Warrior and the Ad-
vent o f the G reco-Rom an King: Mark’s A ccount o f Jesus’ E ntry into Jerusalem”,
JBL 111 [1992], p. 55-71) e com a tipologia de Zacarias 14 não são evidentes nem
convincentes com o supõem seus defensores. As similaridades da entrada dejesus
em jerusalém com as procissões de um guerreiro/governante param em um nível
superficial em que os cidadãos se reúnem para encontrar o guerreiro/governante
à porta e o escoltam até o interior da cidade com hinos de aclamação. N o caso
de Jesus, não há menção de sua vestimenta régia, nem séquito de escravos, nem
discurso feito p o r ele, nem festa na cidade nem sacrifício no templo aos deuses;
tudo isso tipifica as procissões oficiais do guerreiro/governante. Em contraste
com a entrada humilde de Jesus em Jerusalém, observe a pompa e panoplia da
procissão de Júlio César entrando em Roma quando se tornou ditador. Veja C.
Maier, Caesar, trad. D. M cLintock (London: Fontana Books, 1996), p. 442-47.
M a rc o s 11.11 422

de m o d o tão m iste rio so q u a n to se reuniu. M arcos alerta c o n tra co n fu n d ir


en tu siasm o co m fé; e p o p u larid a d e co m discipulado. Jesu s n ão é co n fessad o
em p o m p a e circunstância, m as apenas na cruz (15.39). O sím bolo m essiânico
m ais expresso n a e n tra d a d e Jesu s — o cavalgar u m ju m en tin h o em alusão ao
M essias h u m ild e de Z acarias 9.9 — tem vida c u rta na m en te da m u ltid ão ou
n em m esm o foi p erceb id o . Jesu s en tra n o tem p lo so zin h o e, ao fo rm a r um a
opinião, vai p ara a B etân ia co m os discípulos. E sse é o p rim eiro d o s indícios
de M arcos q u e o te m p lo n ã o é o local d e hab itação d o F ilho d e D eus. Jesus
é de fato o M essias, m as ele está velado e n ão é re co n h ec id o c o m o tal. Ele,
m esm o q u a n d o se p o sicio n a n o c e n tro d a fé d e Israel, está só.

O T E M P L O E S T É R I L (11.12 -2 5 )

O am ald iço ar d a figueira é o ú nico m ilagre d e d estru ição n o s evangelhos


canônicos. A h istó ria da in terp re taçã o d esse ep isód io c o n tro v e rso co m eça na
p ró p ria trad ição sinótica, pois M ateus 21.12-22 altera a c o n stru ç ão sanduíche
d e M arco s (A 1— o am aldiçoar a figueira, w . 12-14; B — lim peza d o tem plo,
v. 1 5 -1 9 ;A 2 — o secar d a figueira, w . 2 0 ,21)" p ara u m a sequência sim ples da
lim peza d o tem p lo (M t 21.12-17) e d o am aldiçoar a árv o re (21.18-20). Lu-
cas 13.6-9 substitui o ep isó d io co m u m a parábola, e Jo ã o o m ite a m aldição da
árvore e coloca a lim peza d o tem p lo n o início d o evangelho.1112A s dificuldades
m o rais ap resen tad as pela m aldição de um a árv o re in o cen te ato rm e n ta ra m
os estu dio so s da era p ó s-Ilu m in ism o e d eram o rigem a várias in terp retaçõ es
inventivas.13 B e rtra n d R ussell ac u so u Jesu s de “ fúria v in g ad o ra” p o r cu lp ar a

11 A inter-relação entre amaldiçoar uma figueira e limpar o templo é estabelecida em


vários pontos. Mais obviamente, todo o material de 11.1— 13.37 se orienta em
torno do templo, o que nos convida a fazer a conexão entre a figueira e o templo.
Há tam bém um paralelo entre “seus discípulos ouviram-no” (v. 14) e os “chefes
dos sacerdotes e os mestres da lei ouviram essas palavras” (v. 18). Por fim, no
Antigo Testamento, a figueira é com frequência usada com o um símbolo para
Israel, e essa nação, mais de uma vez, é julgada sob esse símbolo.
12 Os sinóticos, sem dúvida, estão corretos historicamente ao colocar a limpeza do
templo no final do ministério de Jesus, pois a acusação do Sinédrio na história
seguinte (Mc 11.28) pressupõe a limpeza do templo. João, que em geral usa dados
históricos para propósitos teológicos, aparentem ente localiza o evento no início
de seu evangelho a fim de m ostrar o rom pim ento irrevogável de Jesus com o
judaísmo oficial logo no início do seu ministério.
13 Veja W R. Telford, TheBarren Templeandthe Withered Tree:A Redaction-CriticalAnalysis
of the Cursing of the Fig-Tree Pericope in Mark’s Gospel and Its Relation to the Cleansing
of the Temple Tradition, JSNTSup 1 (Sheffield: JS O T Press, 1980), p. 1 3 8 ‫־‬.
423 M a rc o s 11.12-14

figueira p o r n ão p ro d u z ir figos fora de época. N a o pinião d e B ertrand Russell,


to d o o ep iso d io m a n c h o u o caráter d e Jesus, e esse filósofo escreveu: “ N ã o
p o sso se n tir q u e C risto, em q u estão de sab e d o ria o u de v irtu d e, esteja em
u m a p o sição tão alta q u an to qualquer o u tra p e sso a c o n h ecid a da histó ria” .14
A té m e sm o os estu d io so s m ais am igáveis d a fé cristã que B ertra n d Russell
ach am esse ep isó d io ofensivo. P ara T. W. M an so n , a histó ria n ão se ajusta ao
caráter d e Jesus. “ É u m a lenda d e p o d e r m ilag ro so d esp erd içad o n o serviço
d a irritação e m a u -h u m o r (pois a energia so b re n atu ral em p reg ad a para acabar
co m a p o b re árv o re p o d ería ser gasta de m o d o m ais útil, fo rçan d o u m a co-
lheita d e figos fo ra d a estação); d a fo rm a c o m o se ap resen ta é sim plesm ente
inacreditável” .15
O c o m e n tá rio m ais an tig o so b re o ev an g elho d e M arcos d e V icto r de
A n tio q u ia n o século V já co m p re en d ia o ev e n to c o m o u m a parábola encenada,
n a qual a m aldição d a figueira sim bolizava o ju lgam ento que cairia so b re Jeru -
salém . A técnica de sanduíche de M arcos d e m o n stra q ue V icto r de A ntioquia
fez u m a su p o sição co rreta. A colocação d a m aldição da figueira e da ação
de Jesu s n o tem p lo em u m p ad rão san d u ích e Α '-Β -Α 2 significa que ele tem a
in ten çã o d e q u e os leitores vejam n o d estin o d a figueira estéril o julgam ento
d e D e u s so b re o tem p lo estéril.

1 2 - 1 4 T o d a a narrativa sanduíche co m eç a n a estrada para B etânia, que


Jo ão 11.18 identifica co m o “ três q uilôm etros” d ejeru salém . Jesus está fam into
e, v e n d o à d istân cia u m a figueira co m folhas, apro x im a-se dela co m a espe-
rança d e e n c o n tra r algo p ara com er. D e sa p o n ta d o p o r n ão e n c o n tra r figos,
sab en d o q u e o s discípulos estavam ao alcance d e su a v o z, ele a am aldiçoa.
O s ra m o s d a figueira, depois d a co lh eita d e figos d e m ead o s d e ag o sto a
m eados d e o u tu b ro , p ro d u z e m b ro to s q u e p e rm a n e c e m n ão desenvolvidos
d u ra n te to d o o inverno. E sses b ro to s crescem e se tran sfo rm am em pequenos
b o tõ es verdes, conhecidos em hebraico c o m o paggime.m m arço-abril, seguidos
em b rev e p elo d esen v o lv im en to d e b ro to s d e folhas n o m esm o galho, em
geral em abril. A figueira, p o rta n to , p ro d u z b ro to s de figo an tes de p ro d u zir
folhas. A ssim q u e u m a figueira está co m folhas, esp era-se que os galhos este-
jam cheios d e paggim em vários estágios d e m aturação. Isso fica im plícito em
11.13, q u a n d o Jesus, ao v er a figueira cheia d e folhas, esp era en co n trar algo

14 B ertrand Russell, Why l Am Not a Christian, and OtherEssays on Religion and Related
Subjects (New York: Clarion Books, Simon and Schuster, 1957), p. 17-19.
15 “T he Cleansing o f the Temple”, BJRL 33 (1951), p. 279.
M a rc o s 11.12-14 424

com estível. N a prim avera, os paggim, é claro ainda n ã o são figos m aduros,
m as p o d e m ser co n su m id o s, e o são co m freq u ência pelos nativos (O s 9.10;
C t 2.13). A á rv o re n o versículo 13, n o en tan to , é e n g a n ad o ra p o r causa de
sua folhagem verde, m as Jesus, q u a n d o a in sp ecion a, n ão e n c o n tra n en h u m
paggitr, é u m a árv o re co m sinais d o fru to , m as sem fru to .1617
A p a rte m ais in trig an te dessa breve n arrativa d o am aldiçoar a figueira
é o final d o versículo 11.13, “ p o rq u e n ão era te m p o d e figos” . E ssa frase é
c o m p re en d id a em g eral c o m o u m ad e n d o p ara ex o n erar a árv o re p o r não
p ro d u z ir fru to s, u m a vez q u e ainda n ã o era a estação d o fruto. E ssa frase,
se en ten d id a dessa fo rm a , to rn a a m aldição d e Jesu s u m a atitu d e vingativa e
irracional, c o n fo rm e d ed u z iu B ertra n d Russell. C o n tu d o , essa n ão é a m elh o r
fo rm a n em a ú n ica d e e n te n d e r a frase. E m e lh o r sim p lesm en te distinguir
en tre figos m a d u ro s (gr. syke; heb. te’enim) e os p rim eiro s figos o u figos verdes
(heb .paggim). O fim d o versículo 13 p o d e ser p arafraseado desta form a: “N ã o
era, claro, a é p o c a d e figos, m as d o s paggirrí'}‫*־‬
M arcos, ao n a rra r o episódio d e Jesus e da figueira, explora seu sen tid o sim-
bólico, v en d o n a m aldição d a figueira o d estin o d e Jeru salém e d o tem plo. O s
p ro fetas usavam c o m frequência a figueira c o m o u m sím b o lo de julgam ento
(Is 3 4 .4 ;Jr 29.17; O s 2.12; 9.10;J11.7; M q 7.1). Jerem ias, na p u n g en te denúncia
d e Ju d á, diz: “ M as n ã o h á [...] figos n a figueira; as folhas estão secas” (8.13).
Jesus, d e ac o rd o c o m L ucas (1 3 .6 9 ‫)־‬, c o n to u d e fato u m a paráb o la c o m a
m esm a im ag em e ap resen tan d o o m esm o p o n to . Jesus, c o m o os p ro fetas que
às vezes dram atizav am u m a m en sag em p a rtic u la rm en te v ig o ro sa e sensível
c o m u m a ação (Is 2 0 .1 -6 ;Jr 1 3 . 1 1 3 ‫ ־‬11 ; 19.1 ‫ ; ־‬E z 4 .1 1 3 ‫) ־‬, dram atiza o fim do
tem plo p o r m eio d e u m a p aráb o la interpretada. A figueira cheia de folhas, com
to d a sua p ro m e ssa d e fru to s, é tão en g a n ad o ra q u a n to o tem p lo que, apesar
de seu co m ércio e atividade religiosos, é d e fato u m covil d e ladrões (v. 17).
A m aldição da figueira é u m sím b o lo d o ju lg am en to d o tem p lo p o r D e u s.18

16Veja Telford, TheBarren Temple andtheWithered Tree, p. 28; C.-H. Hunzinger, “syk<?\
7DAT7.751-57; Str-B 1.85657‫ ;־‬F. F. Bruce, TheNew TestamentDocuments:Are They
Reliable? (Downers Grove: InterVarsity Press, 1973), p. 73-74; J. C. Trevor, “ Fig
Tree” , IDB 2.267.
17Veja, também, G. Dalm an, Arbeit und Sitte in Palàstina, Band 1 /2 (Hildesheim:
G eorg Olms Verlagsbuchhandlung, 1964), p. 378-81.
18Veja o material reunido em Telford, Barren Temple and Withered Tree, p. 132-37, e
sua conclusão: “Já se com entou o bastante sobre o uso da figueira em imagem
e símbolo para justificar a conclusão de que os leitores de Marcos, impregnados
425 M a rc o s 11.15-16

15,16 M arcos ag o ra se v o lta p ara a p a rte cen tral d o sanduíche em 11.15-


18, a lim p eza d o tem plo. Jesu s en tra em Jeru sa lém , m as o fo co é m ais u m a
vez o templo, e n ã o a cidade em si (v. 11). O te m p lo d e H ero d es, o terceiro
te m p lo d e Israel (após os tem p lo s d e S alom ão e de Z o ro b a b el), ainda esta-
va em c o n stru ç ã o n a ép o c a de Jesu s (13.1), te n d o c o m eçad o em 20 a.C. O
tem p lo co nsistia d e q u atro divisões e tin h a p ro p o rç õ e s im ensas e m ajestosas.
A p rim eira divisão, e a m aior, era o P átio d o s G e n tio s, u m quadrilátero a
céu a b e rto m e d in d o cerca de 457 m etro s d e c o m p rim e n to p o r cerca d e 297
m etro s d e largura (= cerca de 141.000 m e tro s q u ad rad o s), fechado p o r um
p ó rtic o ap o iad o p o r fileiras de colunas. E ssas co lu nas, de ac o rd o c o m Jo sefo
(Ant. 15.391-425), tin h am cerca d e dez m e tro s d e altura e eram tão m aciças
q u e eram necessárias três pessoas co m os b ra ço s ab e rto s p ara ro d e ar u m a
delas n a base. A s co lu n as eram co ro ad as c o m capitéis corintios, e o teto do s
p ó rtic o s era o rn a m e n ta d o co m entalhes d e m adeira. N a área cercada p o r esse
p erím e tro d e p ó rtic o s m aciços, os m erc ad o re s v en d iam ovelhas e p o m b o s
p ara o sacrifício e tro cav am m o ed a estran g eira em siclos de T iro, a m o ed a
m ais p ró x im a disponível (de m etal p u ro e sem im agens) d o siclo h ebraico (ou,
N V I, seis gram as) em Ê x o d o 30.13-16. O s pátios d o tem p lo eram supervisio-
n ad o s pelo s saduceus, e o im en so v o lu m e de c o m ércio e trocas n o P átio dos
G e n tio s era crucial n ão só para a m a n u te n ç ã o d a ad o ração ap ro p riad a, m as
tam b é m p ara o g a n h o financeiro d o s saduceus e d o Sinédrio. O vo lu m e de
co m ércio q u e aco n tecia n o P átio d o s G e n tio s era co n d u z id o em um a escala
com ensuráv el c o m a g ran d eza d o p ró p rio tem p lo de H e ro d es.19 E m il S chürer
escreve q ue “ essa e n o rm e q u an tid ad e [de anim ais], tã o g ran d e a p o n to d e ser
quase inacreditável, d eu aos cultos d o te m p lo seu c u n h o peculiar. D ia após
dia, inú m eras vítim as eram m o rtas e queim adas ali, e, apesar do s m ilhares de
sacerdo tes, q u a n d o aco n tecia u m a g ra n d e festa a q u an tid ad e de sacrifícios
era tão g ra n d e q u e eles dificilm ente co n seg u iam d a r c o n ta deles” .20 A enor-
m id ad e d a in d ú stria d o tem p lo p o d e ainda ser ap reciad a p o r u m co m en tário
de Jo se fo (Guerra 6.422-27) de que em 66 d .C , o an o em q u e o tem p lo foi
co m p letad o , 255.600 ovelhas fo ram sacrificadas p a ra a Páscoa!

pela tradição do Antigo Testamento, teriam com preendido de imediato o fato de


Jesus amaldiçoar a figueira estéril com o pelo menos um julgamento sobre Israel”.
19 H. D. Betz, “Jesus and the Purity o f the Temple (Mark 11:15-18): A Comparad-
ve Religion A pproach”, JBL 116 (1997), p. 464, descreve o templo de Herodes
“com o uma dádiva votiva gigantesca para o reinado de H erodes” e sustenta que
as ofertas e os sacrifícios eram planejados em uma escala comensurável.
20 History of theJewish People, 2.308.
M a rc o s 11.15-16 426

A s o u tras três divisões d o tem p lo — o P átio das M ulheres, o P átio de


Israel (só p ara h o m en s judeus circuncidados) e o S anto dos S antos — ficavam
n o san tuário , u m edifício sublim e e au to ssu ficien te c o m cerca d e 137 m etros
d e c o m p rim e n to e cerca de 91 m e tro s d e largura q ue d o m in av a o ce n tro do
P átio d o G e n tio s e ficava de fren te p ara o leste. O santu ário ficava separado
d o P átio d o s G e n tio s p o r u m m u ro , ch a m a d o Soreq, n o qual o seguinte aviso,
em grego, latim e aram aico, foi p e n d u ra d o em intervalos: “N e n h u m estran-
geiro p o d e e n tra r n a área cercada p elo m u ro q u e ro d e ia o tem plo. Se alguém
fo r p eg o n essa área será o ú n ico resp o n sáv el p o r sua co n d e n açã o à m o rte ” .21
C o n sid e ran d o -se o ta m a n h o d o P átio d o s G e n tio s, é im provável que
Jesu s te n h a in te rro m p id o to d as as tran saçõ es ac o n te c e n d o ali. Se ele tivesse
co n se g u id o esse feito, co m certeza teria p ro v o c a d o u m a re sp o sta d a polícia
d o te m p lo o u d a g u arn ição m ilitar ro m a n a n a fo rtaleza A n to n ia, ao lad o do
tem plo , o u ain d a esse fato teria sido m e n c io n a d o em seu julgam ento. M ar-
cos, n ão o b sta n te , n ã o deixa a m e n o r d ú v id a d e q u e Jesu s p ro te s to u com
atos físicos c o n tra o b azar n o tem plo, e q u e o p ro te s to ch a m o u a atenção
d o Sinédrio (11.27,28).
O P átio d o s G e n tio s era d e fato u m m erc ad o d e negociantes d e anim ais
e cam bistas, e to d o s eram necessários p ara g aran tir os sacrifícios e ofertas
ap ro p ria d o s p ara o s p ereg rin o s q u e v in h am p ara o tem plo, em especial nas
festas. Jesus, co m indignação justa, expulsa os co m ercian tes de anim ais do
tem p lo e d e rru b a as m esas d o s cam bistas.22 A referên cia em 11.16 de que
Jesu s “n ã o p e rm itia q u e n in g u ém carregasse m ercado rias p elo te m p lo ” é
enigm ática. A in terp re taçã o co m u m de que Jesus estava p ro ib in d o o P átio dos
G en tio s de ser u sad o c o m o a passag em d o tráfeg o e com ércio é razoável, m as

21 O conhecim ento do tem plo de Herodes depende de três fontes antigas, Josefo
(Ant. 15.391-425), a Mishná (m. Middot) e o Pergaminho do Templo (11 QT) nos Ma-
nuscritos do Mar Morto. Para as reconstruções mais abrangentes do templo de
Herodes, vejaj. Patrich, “Reconstructing the Magnificent Temple Herod Built”,
BRev4 /5 (outubro de 1988), ρ. 16-29; e Kathleen e Leen Ritmeyer, “Reconstruc-
ting H erod’s Temple M ount in Jerusalem”, BARev 15/6 (novembro-dezembro
de 1989), p. 23-42.
22J. Marcus, The Way of theLord ChristologicalExegesis of the Old Testamentin the Gospelof
Mark (Edinburgh: T. & T. Clark, 1992), p. 11, vê uma conexão entre Marcos 11.1-
18 e Josefo, Guerra 4.574-78, em que Simão entrou em Jerusalém durante a revolta
judaica de 66-70 d.C. e atacou as forças de João de Giscala e dos zelotes no templo.
E m meu julgamento, a correspondência entre Josefo e Marcos nesse ponto é de
natureza bastante geral e certam ente coincidente, e não intencional.
427 M a rc o s 11.17-19

n ã o te m a p o io definitivo das E scritu ras.23 D o m e sm o m o d o , a sugestão de


q u e Jesu s estava c o n fisc an d o os itens sag rad o s d o te m p lo q u e ali estavam de
ac o rd o c o m Z acarias 14.21 n ão só re p re se n ta fo rçar a interp retação , m as está
to talm e n te fo ra d e co n te x to co m a lim peza d o tem plo.24 A m elh o r conjuntura
so b re o sen tid o d o versículo 16 relaciona-se c o m a palavra “ m ercad o rias”
(gr. skeuos). M ais de u m terç o dos usos d e skeuos n a L X X referem -se aos ob-
jetos d e culto relacio n ad o s co m o tab ern ácu lo , o altar o u o tem plo. Jo sefo
usa o te rm o d a m e sm a fo rm a [Ant. 18.85; Guerra 1.39). Se o te rm o é usado
d e m o d o sim ilar aqui, en tão o versículo 16 refere-se a Jesu s in te rro m p e n d o
o fluxo d e sacrifícios e, p o r co n seg u in te, a m ea çan d o o cu lto sacrificial d o
te m p lo d e u m a o u tra fo rm a , o q u e é to ta lm e n te c o n sisten te c o m o co n tex to
d o s versícu lo s 15-18.25

17-19 E sp erav a-se p o p u la rm e n te q u e o M essias p u rg asse Jeru sa lém e o


tem p lo d o s g en tio s, estran h o s e estrangeiros (veja Sl Sol 17.22-30). A ação
d e Jesus, n o en ta n to , é ex atam en te co n trária às expectativas. E le n ão lim pa o
tem p lo d o s g entios, m as para eles. U m d o s efeitos de in te rro m p e r o sistem a
sacrificial é o fo rta lecim en to d a p o sição d o s g en tio s n o tem plo, pois o P átio
d os G e n tio s era o ú n ico local d isponível p ara a ad oração d o s não judeus.
O ap e lo à E sc ritu ra (“ N ã o está escrito [ ...] ? ” ; veja m ais em 1.2) atribui a
au to rid a d e d a v o n ta d e de D e u s ao ataq u e de Jesu s ao sistem a sacrificial: “ A
m in h a casa será ch am ad a casa de o ração p ara to d o s os p o v o s’? M as vocês
fizeram dela u m ‘covil de lad rõ e s’ ” . A referên cia à “ casa d e o ração para
to d o s os p o v o s” vem d e Isaías 56.7. Isaías 56 fala da exten são d a salvação
p ara o p o v o q u e, an terio rm e n te , estava excluído dela: estrangeiros, eunucos,
exilados e gentios. E m o u tras palavras, a p assag em q ue Jesus cita n o tem p lo
inclui as p esso as q ue o M essias, d e a c o rd o c o m Salmos de Salomão 17, excluirià
Isso, em si m esm o , revela q ue Jesu s é u m tip o m u ito d iferen te de M essias
q ue aquele tipificado na expectativa judaica. O tem plo e a aliança n ão estão

23 As tentativas de apoiar essa interpretação com base em m. Ber. 9.5 e Josefo, Contra
Apião 2.106, são forçadas. A última passagem não é sobre fazer um desvio através
do Pátio dos G entios, mas de proibir que itens fossem adicionados àqueles
estipulados pela Torá — o altar, a mesa e candelabro. D a mesma forma, a proibição
em m. Ber. 9.5 de trazer cajado, sandálias, carteiras ou pó nos pés para o templo
diz respeito à profanação do lugar santo, não ao seu uso como via pública.
24 Contra C. Roth, “T he Cleansing o f the Temple and Zechariah xiv 21”, NovT 4
(1960), p. 177-78.
25 W R. Telford, Barren Temple and the Withered Tree, p. 93.
M a rc o s 11.17-19 428

reservados exclusivam ente para Israel, m as incluem “todos ospovo/ ’ (grifo do


autor) — eunucos, estrangeiros e gentíos (13.10). O tem plo n ão é proprieda-
de exclusiva d e Israel, m as testem u n h o para as nações, o lugar o n d e todas as
pessoas, o n d e to d o s q u e “ am ajm ] o n o m e d o S en h o r [...] [podem] prestar-lhe
culto” (Is 56.6), u m local o n d e D e u s “ reunirfá] ainda o u tro s” (Is 56.8).
E sse, p elo m en o s, era o propósito d o tem plo, se n ão tivesse sido tran sfer-
m a d o em u m “ covil de lad rõ e s” . A s palavras de Jerem ias 7.11 re p resen tam
u m a d en ú n c ia severa à o p e ra ç ã o d o tem plo,26 ainda m ais à luz de 7.12, que
descreve a d estru ição d o local d e culto israelita em Siló (veja IS m 3.11-14).2728
“ L ad rões” (gr. Içstês, 11.17; 14.48; 15.27) enfatiza a cobiça e extorsão inerentes
ao cu lto n o tem plo. Jesu s, ao atacar os cam bistas e v en d ed o res de anim ais e
ch am ar o S inédrio d e u m a associação d e ladrões, ataca n ão só a c o rru p çã o
m o ral d o tem p lo (atitu d e típica d o s p ro fetas d o A n tig o T estam en to , p o r
exem plo), m as ta m b ém seu com ercialism o e ap ro p riação financeira indé-
bita. A im ag em d e “covil d e lad rõ es” (grifo d o auto r) localiza o castigo para
o tem plo. M arco s n ã o afirm a que Jesus p ro n u n c io u u m ju lg am en to so b re
os judeus. O ju lg am en to é c o n tra o tem plo, e, c o n fo rm e indica a h istória
seguinte (11.27-33), c o n tra as autoridades religiosas q ue o supervisionavam .
C o n clu ir q u e o ju lg am ento era c o n tra o p o v o ju d eu c o m o u m to d o seria ne-
g ar o re la cio n am en to d e D e u s c o m seu p o v o d a aliança; e n eg ar a sob eran ia
d e D e u s so b re a Israel h istó rica é n eg ar inev itav elm ente sua so b eran ia so b re
o p ro c e sso d e redenção. Jesu s está apenas re p e tin d o u m refrão profético:
“ E fraim está ferido, sua raiz está seca, eles n ão p ro d u z e m fru to s ” (O s 9.16).
A ênfase, c o m o ac o n teceu n o cap ítu lo 7, incide so b re a d isto rção — nesse
caso, d o tem p lo — q u e eclipsa seu p ro p ó sito n a v o n tad e d e D eu s.2®A lim peza
d o tem plo , p o r co n seg u in te, n ã o p o d e ser to m a d a c o m o u m ataque global de
Jesus ao judaísm o, n em aos judeus, n em m e sm o aos fariseus; é u m a censura
u m ta n to específica ao S inédrio (“ o s chefes d o s sacerd o tes e os m estres da

26 Uma vez que o templo foi destruído em 70 d .C , o cristianismo primitivo aplicou


a mensagem do versículo 17 aos cristãos, ou seja: “ Se não fizermos a vontade
de Deus, seremos com o o ditado: ‘Minha casa se tornou um covil de ladrões’ ”
(2Clem. 14.1; de m odo similar, Justino Mártir, Diálogo com Trifio 17.3).
27 J. Frankovic, “Remember Shiloh” ,JerusalemPersp 46-47 (1994), p. 24-31.
28 Veja Betz, “Jesus and the Purity o f the Temple (Mark 11:15-18): A Comparative
Religion Approach”, JBL 116 (1997), p. 455-72, que argumenta que Jesus, em
princípio, não se opôs ao templo nem aos sacrifícios, mas, antes, ao mercantilis-
m o cada vez maior do templo, em particular com o surgimento das influências
helenizantes de Herodes, as quais subverteram o propósito original do templo.
429 M a rc o s 11.1 7 1 9 ‫־‬

lei” , v. 18) e ao te m p lo c o m o o ó rg ão d a ex p lo ração religiosa. O efeito co m -


b in ad o das citações d e Isaías 56.7 e Jerem ias 7.31 é afirm ar que os g entios
(tam b ém em 13.10) têm acesso à au to rrev elação de D e u s para Israel co m
base n a sinceridade d o coração, e n ã o na p u re z a cultuai e legal. A purificação
d o tem plo , p o rta n to , re p resen ta o p rin cíp io an u n ciad o antes em 2.23— 3.6.
M arco s g a ran te aos leitores q u e os ch efes d o s sacerd o tes e os m estres
da lei “ o u v iram ” (gr. akouein, v. 18) a m en sag e m d a purificação d o tem plo,
assim c o m o os discípulos “ o u v iram ” (gr. akouein, v. 14) so b re a m aldição da
figueira. O s dois g ru p o s, em o u tras palavras, c o m p re e n d eram e p erceb eram
a in ten çã o d e Jesus. O Sinédrio, em razão disso, “ com eçfou] a p ro c u ra r um a
fo rm a d e m atá-lo ” , o u seja, co m eç o u a tra m a r sua m o rte (3.6).29 A palavra
g reg a trad u z id a p o r “ p ro c u ra r” (%êtein), em M arcos, sem p re te m a co n o tação
d e te n ta r co n tro la r Jesu s (veja m ais so b re o te rm o em 1.37). A tram a d o Siné-
d rio está en raizad a n o m edo. O v erb o g re g o phobeisthai (“ tem er”) o co rre do ze
vezes em M arcos, e sem p re p ara se re ferir ao m e d o que separa as pessoas de
Jesus. N a p resen te instância, o tem o r d o Sinédrio, co n fo rm e ficará evidenciado
pela h istó ria q u e se segue (11.32), deve-se à hostilidade d iante da adm iração
d a m u ltid ão em relação ao e n sin a m e n to de Jesus. O m ara v ilh am en to da
m u ltid ão n o versículo 18 é ex p resso c o m palavras idênticas à ad m iração n a
sinago ga em 1.22. O efeito dessa rep etição é tran sm itir que a au to rid ad e de
Jesu s su p lan ta a d o s lideres religiosos ta n to n o tem p lo q u a n to n a sinagoga,
o u seja, ta n to n o c e rn e q u a n to na periferia de Israel. A sin ag o g a e o tem plo
eram o s do is lugares n o judaísm o em q u e o en sin o d e D e u s foi revelado e
praticad o. N e sse s m esm o s dois lugares, o en sin o d e Jesu s su p lan ta a T o rá e
o cu lto n o tem p lo , d eix and o a m ultidão m aravilhada.
O c o m p o n e n te B n o san d u ích e m arc an o conclui co m a n o ta d e que
Jesu s e o s discípulos “ saíram d a cidade” co m o cair d a tard e.30 A s palavras

29 O tem a da traição de Jesus ou de ser entregue às autoridades ocorre já em 1.14,


em que a prisão de João Batista prenuncia a prisão de Jesus. Esse tema continua
em 2.20 com a referência de passagem ao fato de que o noivo seria tirado; em
3.6, com a trama dos fariseus e herodianos; em 3.19, com o indício da traição
de Judas; em 3.20,21, com o afastamento dos amigos de Jesus; em 6.3,4, com o
afastamento de sua família e cidade onde fora criado; e acima de tudo, nas três
previsões ominosas da paixão (8.31; 9.31; 10.33,34).
30 A tradição textual está dividida se “ele” (= Jesus;‫ א‬C D X Θ) ou “eles” (= Jesus
e os discípulos; Α Β Κ Δ Π Ψ Ψ ) saiu/saíram da cidade. O pronom e singular
concorda com o sujeito da afirmação paralela no versículo I l e o sujeito singular,
Jesus, nos versículos 15b-18; ao passo que o pronom e plural concorda com o su­
M a rc o s 11.20-21 430

d o versículo (gr. botan = “ q u a n d o ” , exeporeuonto [im perfeito] = “ eles estavam


sain d o ”) p o d e su g erir u m a p rá tic a habitual, e n ã o apenas u m ú n ico episódio,
apoiando, p o rta n to , a teo ria d e u m a estadia m ais lo n g a em Jeru salém que
apenas u m a sem an a (veja a in tro d u ç ã o d este capítulo). D e q u alq u er m odo,
é p re ciso c o n c e d e r to d a a força sim bólica d e Jesu s “ sa[ir] da cidade” co m o
sen tid o d e ele sep a rar seu ca m in h o d o cu lto d o tem plo. S o b re sua segunda
n o ite em Jeru sa lém , d e a c o rd o co m a cro n o lo g ia d e M arcos, Jesu s se separa
m ais u m a vez (v. 11) d a C idade Santa.

20,21 M arcos co m p le ta o sanduíche d a figueira co m a n o ta d e q u e n o dia


seguinte “viram a figueira seca d esd e as raízes” . E ssa ex pressão rem em o ra
as sem entes n a p a rá b o la d o sem ea d o r q u e b ro ta ra m ra p id am en te, m as, p o r
n ão te re m p ro fu n d id a d e de solo, “ secaram , p o rq u e n ão tin h am raiz” (4.6).
A s palavras g reg as p ara “ seca” (xêrainem) e “ raízes” (rbi%a), d a m esm a for-
m a, re c o rre m à p ará b o la d o sem eador. A re p etição d essa im agem gráfica no
versículo 20 é m ais u m lem b re te aos leitores d e que n ão haverá colheita do
tem plo. A m e n ç ã o d e P ed ro n o versículo 21 sugere m ais u m a vez que a fonte
d e M arcos p a ra o ep isó d io d a figueira é a m em ó ria d o ap ó sto lo P ed ro sobre
esse fato (assim , tam b ém , 14.72).
E m b o ra o s versículos 15-19 sejam c o m u m e n te c o n h ecid o s c o m o “ pu-
rificação d o te m p lo ” , a ação d e Jesu s n ã o tem u m caráter de “ purificação” ,
o u seja, a re m o ç ã o das im p u rezas e a restau ração a um a função legítim a. U m
ato de pu rificação é claram en te o p e n sa m e n to de Isaías 55.1-8 e Salmos de
Salomão 17.32ss. C ita n d o esse últim o:
Ele [Messias] purgará Jerusalém , to rn an d o -a santa com o antigam ente:
Para que as nações venham dos confins da terra ver sua glória.

O que Jesu s faz n o tem p lo , n o en tan to , vai além de u m ato p ara pu rg ar


o u corrigir. Sua atitu d e ataca o p ró p rio co m ércio d o qual o culto d o tem plo
d ep end ia, atin g in d o co m u m m a c h a d o a raiz d o tem p lo c o m o instituição.31

jeito plural no versículo 15a e com o verbo no versículo seguinte. N enhum a das
leituras, no entanto, é mais difícil que a outra. Com base na evidência manuscrita
superior, a leitura no plural é preferível.
31 O fato de B. Mack, Λ Myth of Innocence: Mark and Christian Origins (Philadelphia:
Fortress Press, 1991), p. 292, e D. Seeley, “Jesus’ Temple A ct”, CBQ 55 (1993), p.
263-83 descartarem a purificação do templo com o uma mera ficção de Marcos
é desconcertante e sem fundamento. Mack sustenta que esse ato não poderia ser
histórico porque não há nenhum a evidencia de uma atitude contra o templo em
431 M a rc o s 11.22-25

M arcos, ju n to c o m os ev en to s su b seq u e n te s da S em ana Santa, re trata a pu-


rificação d o tem p lo n ã o c o m o sua restauração, m as c o m o sua dissolução. A
fu nção d o tem p lo , c o m o a figueira, está “ seca d esd e as raízes” (v. 20). E m
M arcos, Jesu s, em seu d iscu rso final so b re o tem p lo , afirm a: “A qui não ficará
p ed ra so b re p ed ra; serão to d as d e rru b a d a s” (13.2). E m seu p ró p rio co rp o
(14.22), o tem p lo é d estru íd o ; e, em si m esm o , “ em resgate p o r m u ito s”
(10.45), ele é erg u id o d e n o v o em três dias, u m tem p lo n ão c o n stru íd o p o r
m ão s h u m an as (14.58). Seu próprio sangue, o “ sangue d a aliança” (14.24)
— e n ã o o sangue d e anim ais sacrificados p elo su m o sacerd o te n o D ia da
E x p iação — to rn a rá Israel re to d ian te de D eu s. N a verdade, n o m o m e n to
d e sua m o rte , a g ra n d e co rtin a que divide o S an to d o s S antos d o P átio de
Israel é rasgada em duas (15.38), re p resen ta n d o a dissolução d o tem p lo co m o
m eio d e se a p ro x im ar de D eus. Só Jesus, em su a m o rte sacrificial n a cruz, é
o acesso p ara D eus. A figueira, p o r co n seg u in te, sim boliza o tem plo: co m o
u m m eio de se ap ro x im ar d e D eu s, o te m p lo é fu n d a m e n talm e n te — “ desde
as raízes” — su b stitu íd o p o r Jesu s c o m o o c e n tro d e Israel.32

23-25 M arco s conclui o ep isó d io da figueira-tem plo co m afirm ações


so b re a fé, o p o d e r d a oração e a n ecessid ad e d e p erdão. A figueira seca é
um a lição ob jetiv a p ara q ue os discípulos “ te n h a m fé em D e u s ” .33 A serie­

Jesus. Essa afirmação curiosa é contradita pela evidência repetida em Marcos de


que os mestres da lei (veja a discussão do term o em 1.22) e as autoridades reli-
glosas de Jerusalém (e.g., 3.6,22!) desafiam Jesus e se opõem a ele desde o início
de seu ministério. Veja o corretivo necessário de E. P. Sanders, Jesus andJudaism
(Philadelphia: Fortress Press, 1985), p. 75: “Jesus previu a destruição do templo
(ou am eaçou com essa destruição) e realizou um ato simbólico de sua destruição
ao se manifestar contra a realização de sacrifícios. Ele não queria purificar o templo
nem o comércio desonesto nem o comércio a fim de contrastar com a adoração
‘pura’. Tampouco, ele se opôs aos sacrifícios do tem plo que Deus ordenou para
Israel. Ele, antes, tinha a intenção de indicar que o fim estava à mão e que o templo
seria destruído, para que o novo e perfeito tem plo pudesse surgir” .
32 Veja Telford, The Barren Templeand Withered Tree, ρ. 238-39; J. R. Edwards, “Markan
Sandwiches: T he Significance o f Interpolations in M arkan Narratives”, NovT2>\
(1989), p. 206-8; E. Weir, “Fruidess Fig Tree — Futile W orship”, ExpTim 106
(1995), p. 330.
33 Um grupo pequeno de manuscritos, mas de peso, traz ei echete (“ se você tem fé” ;
‫ א‬D Θ), mas um grupo de manuscritos uncíais mais fortes ( A B C K L W X Ô I I
Ψ), além de uma variedade de manuscritos minúsculos e primeiras versões, traz
echete, o imperadvo, “tenham fé” . Essa úldma leitura (adotada pela NVI) é a leitura
M a rc o s 11.22-25 432

d ad e da o rd e m p ara crer em D e u s é re fo rça d a pela asserção: “ E u asseguro”


(ou: “ E m v erd ad e vos d ig o ” , A R C ). Jesu s ilustra o p o d e r da fé c o m um a
h ip érb o le h eb raica so b re o m o v er de u m m o n te. O sím b o lo de u m m o n te
p o d e te r sido su g erid o pelo h o riz o n te a sul d e Jeru salém d o m in ad o pelo
pico em fo rm a d e vulcão, o qual fica à vista assim q u e se alcança, vin d o de
B etânia, o cu m e d o m o n te das O liveiras. E sse p ico é de fato a fo rtaleza de
H ero d es, u m a das m uitas fortificações co n stru íd as p o r H ero d es, o G rande,
p ara refúgio em caso de g u erra o u rebelião. H e ro d es rem o v eu literalm ente
u m m o n te adjacente, cuja base é ainda visível hoje, a fim d e cercar a fortaleza
de H e ro d e s c o m u m a terro a rre d o n d a d o “ n a fo rm a de u m seio” , p ara citar
Jo sefo .34 A s am b içõ es arquitetônicas d e H e ro d e s m u d aram a face da Judeia,
ainda assim q u e m acredita em D e u s, afirm a Jesus, p o d e m o v er u m m o n te
m aio r q u e o d a fo rtaleza d e H ero d es — n a v erdade, p o d e lançá-lo n o m ar!35
O fato d e M arco s ap resen tar lo g o a seguir d o san duíche figueira-tem plo
u m c h a m a d o à fé significa que Jesus, e n ão o tem p lo, é o o b jeto da fé. E sta
é o o p o s to d e “ d u v id ar em seu co ração ” (v. 23). E la ta m b ém é o o p o s to de
m ed o (4.40; 5.36; 6.50). E u m a escolha p ara co n fiar em Jesu s ap esar de tudo
em c o n trá rio , e p ara esp e rar dele o q u e n ã o p o d e se r esp erad o de ninguém
m ais n o m u n d o . H á, p o rta n to , u m a co n ex ão inevitável en tre fé e oração, com
a qual M arco s te rm in a essa seção (w . 24,25). O versículo 24 se assem elha a
várias declarações n o evangelho d e Jo ã o (14.13,14; 15.7,16; 16.23) e atesta
q u e a v erd ad eira oração é fazer p ed id o s a D e u s pela fé. A fé crê o suficiente
p ara pedir, e o p e d ir está en raizad o n a convicção d e q u e D e u s tem a intenção
de q u e seja feita su a “v o n ta d e assim n a terra c o m o n o céu” (M t 6.10). A fé
tem m ais ce rteza n a estabilidade d e D e u s que nas inabilidades e vicissitudes
hum anas. P o rta n to , “ tu d o o q u e vocês p ed ire m em oração, creiam que já o

mais provável. Metzger, TCGNT, p. 109, corrobora esse julgamento ao observar


que Amén legõ hymin (“Digo-lhe a verdade”) é sempre uma introdução, e não é
precedido p o r uma prótase, tal como: “Se você tem fé em Deus [...]” .
MJosefo, War 1.419-20. Tam bém, A. Negev, Archaeological Encyclopedia of the Holy
!,and(Jerusalem: SBS Publishing Inc., 1980), p. 143-44; J. M urphy-O’Connor, The
Holy Land: An Archaeological Guidefrom Earliest Times to 170(? (New York: Oxford
University Press, 1998), p. 281-85.
35 O Evangelho de Tomé 48 aplica essa fala sobre mover m ontanhas em um contexto
diferente e um tanto ambíguo: “Jesus afirma: ‘Se duas pessoas fizerem as pazes
uma com a outra na mesma casa, (então) dirão ao monte: “Mova-se” , e ele se
moverá’ ”.
433 M a rc o s 11.22-25

receberam , e assim sucederá” .36 E ssa expressão reflete o p en sam en to sem ítico
em que a certeza d e u m ato futuro, fu n d a m e n tad o n a confiabilidade de D eus,
p o d e ser referid o n o te m p o verbal passado. T a n to a fé q u an to a oração têm
d e estar em co n tin u id ad e co m o caráter d e D e u s e em c o n fo rm id a d e co m sua
von tad e. A in stru çã o final n o versículo 25 é s o b re o p erd ão d os pecados, o
asp ecto d a fé q u e é u m exem plo p erfeito d a n a tu re za de D eus. A referência
ao ficar em p é n a oração reflete a p o stu ra d e o ra ção co stu m eira n o judaísm o.
O versículo 25 é u m eco in co n fu n d ív el d a p etiçã o d e p erd ão n o Pai N o sso
(O ração d o S en h o r), e su a in terp re taçã o ap re se n tad a lo g o a seguir (veja M t
6.12,14).37 O versículo 26 está au sen te d a trad ição m anuscrita m ais antiga e
m ais im p o rta n te e n ão fazia p a rte d o tex to original d e M arcos. Sua aparição
n a tradição m an u scrita tard ia é m ais b e m explicada co m o u m a inserção p o r
copistas em im itação de M ateus 6.15.38

36 O tem po verbal aoristo no grego elabete (“já o receberam”) ecoa um perfeito pro-
fético no uso semítico, ou seja, um evento futuro que é tão garantido que pode ser
mencionado como algo já completado. A ousadia da expressão, que reivindica forte
apoio manuscrito (‫ א‬B C K L W X Δ Π Ψ) foi subsequentemente alterado para
o presente lámbemete (“o estão recebendo” ; A K X Π) ou para o futuro lèmpsesthe
(“ o receberão” ; D Π). Veja Metzger, TCGNT, p. 109-10.
37 A tradição da qual Marcos se utiliza, nesse ponto pelo menos, era familiar à tradição
conhecida por Q.
38 Veja Metzger, TCGNT, 110.
capítulo doze

Jesus e o Sinéãrio
M A R C O S 1 1 .2 7 — 12 .4 4

A seção c o n tin u a e co n trib u i p ara o te m a m ais a b ran g en te de M arcos


11— 13, d efin id o pela o p o sição de Jesu s ao te m p lo e sua rejeição d o tem plo.
M arcos 11.1-26 esb o ç a o fim d o sistem a d o te m p lo que, n a p esso a e o b ra de
Jesus, estava “ sec[o] d esd e as raízes” (11.20). M arcos, co m eç an d o em 11.27,
ap re se n ta u m a série d e sete histórias de co n flito e n tre Jesus e os líderes reli-
giosos. E sses co n flito s se esten d em até o fim d o cap ítulo 12 e se assem elham
às h istórias de co n flito de 2.1— 3.6. N a s co n tro v érsias de Jeru salém , co m o
nas co n tro v é rsias an terio res na G alileia, Jesu s age co m incom parável autori-
dade, p ro v e n d o seus ouv in tes e leitores c o m v islu m b res de sua consciência
m essiânica e filial; m as as controvérsias em Jeru sa lém , d e fo rm a d istin ta das
co n trov érsias n a G alileia, ac o n te cem to d as elas n o tem p lo e em o p o sição
às p o d ero sas au to rid ad es religiosas q u e ali se abrigam . N a p re sen te seção,
M arcos p assa da o p o sição de Jesus ao te m p lo p a ra a o p o sição aos p ró p rio s
líderes religiosos. A au to rid ad e religiosa a q u e Jesu s se o p õ e está centrada
n o Sinédrio, o s 71 líderes influentes c o m p o d e r judicial q u e dom in av am , em
algum a m ed id a, a vida judaica religiosa e até m e sm o política. P ressu p õ e-se
o S inédrio n a co n tro v érsia d e 11.17-33 e na p aráb o la em 12.1-12. A s três
histórias su b seq u en tes são direcionadas aos fariseus (12.13-17), aos saduceus
(12.18-27) e aos m estres da lei (12.28-40), os três g ru p o s q u e co m p õ em o
Sinédrio. E les arm a m arm adilhas e laços p ara p eg a r o m estre galileu. A s
resp o sta s de Jesu s são ainda m ais notáveis q ue a e sp e rteza deles. Jesus não
tem u m a co n tra estratég ia d e evasão e fuga. A n tes, ele sai em cam p o em u m a
tentativa final p ara revelar a si m esm o, e n ã o p a ra se d e fen d er peran te aqueles
que o julgariam , em vez de entendê-lo. A seção conclui co m a história de um a
viúva p o b re e im p o te n te em 12.41-44 cuja fé a m o v eu a d o a r to d a sua vida,
M a rc o s 11.27-28 436

u m co n tra ste irô n ico , m as su p re m o co m as p o d ero sas au toridades religiosas


desprovidas d e fé.

A A U T O R ID A D E D O F IL H O (11.2 7 -3 3 )

O tem p lo em Jeru salém , co m to d a sua g ra n d io sid ad e e im ensidão he-


rodianas, c o m sua visão d e Jeru sa lém e d o m o n te das O liveiras e co m sua
relevância teo ló g ica e h istó rica, to rn a-se o palco inevitável p ara o desafio à
au to rid ad e d e Jesus. A característica de Jesus q ue deixou a im p ressão mais
d u ra d o u ra em seus seg u id o res e cau so u a m aio r o fe n sa a seus o p o n e n te s foi
sua exousia, sua lib erd ad e so b eran a e autoridade m agistral. Jesus, em sua
prim eira aparição pública em M arcos, im p ressio n a a co ngregação da sinagoga
p o r sua su p re m a cia so b re os especialistas d a T o rá e o m u n d o dem oníaco
(1.21-28). O s d o is efeito s — o en sin o e a expulsão d e d em ô n io s — derivam
d e su a a u to rid a d e divina. A au to rid ad e d e Jesu s em erge c o m o o fu n d a m e n to
e im p u lso d e seu m in istério su b seq u e n te e se exibe p o r sua afirm ação de
p rerro gativas q u e, d e o u tra fo rm a , p e rte n c e m apenas a D eus. Jesu s am arra
Satanás, o “ h o m e m fo rte ” (3.27); ele ousa p e rd o a r p ecad o s (2.10); afirm a
su p rem acia so b re a T o rá e o sábado (2.23— 3.6); e sub stitui o tem p lo em
Jeru sa lém c o m o o locus Dei, o local o n d e D e u s se e n c o n tra c o m a hum ani-
d ad e (15.38,39). A fo rm a c o m o fala co m D e u s e so b re este é única em m eio
aos rabis judeus: a fo rm a fre q u e n te c o m o ele p refacia suas afirm ações com
Amén (“E u asseguro a v o cê s”) significa q ue fala c o m a au to rid ad e d e D eu s; a
referên cia q u e faz a Aba (14.36) exibe u m a p ro x im id ad e filial c o m D e u s, algo
sem p aralelos n o judaísm o; o u so sugestivo d e egõ eimi (“ eu so u ” ; 6.50; 14.62)
re p ete a auto rrev elação d e D e u s p a ra M oisés (Ê x 3.14).1N o en tan to , M arcos
só divu lgo u a fo n te d a exousia d e Jesu s em 11.27-33. A gora, pela prim eira
vez, n o te m p lo e n o Sinédrio, o u seja, n o local m ais au toritativo e d ian te do
c o rp o m ais au to ritativ o em Israel, Jesu s ab re u m a janela d a co m p reen são
p ara sua p ró p ria autoridade.

27,28 “ C h eg aram n o v am en te a Jeru sa lém ” , d e ac o rd o c o m a cronologia


de M arcos, refere-se ao terceiro dia d e Jesus em Jeru salém , o u seja, terça-feira
da S em ana Santa. O d estin o d e Jesu s m ais u m a vez n ã o é Jeru sa lém per se,
m as o tem plo. “ Q u a n d o Jesu s estava p assa n d o p elo tem p lo, aproxim aram -se
dele os chefes d o s sacerd o tes, os m estres da lei e os líderes religiosos e lhe

1 Veja J. R. Edwards, ‘T h e Authority o f Jesus in the Gospel o f Mark”, JETS 37


(1994), p. 220-25.
437 M a rc o s 11.27-28

p erg u n taram : ‘C o m q u e au to rid ad e estás fa z e n d o estas coisas? Q u e m te deu


au to rid a d e p ara fazê-las?’ ” O s “ chefes d o s sacerd otes, o s m estres da lei e os
líderes religiosos” eram os três g ru p o s q u e fo rm a v am o Sinédrio, em b o ra,
n essa instância, eles rep resen ta sse m a delegação d o Sinédrio, e n ão to d o o
conselho. O Sinédrio, u m a organização in term ed iária e n tre R om a e a nação
judaica, era c o m p o sta d e 71 m em b ro s q u e tin h am quase to tal liberdade em
assu n to s religiosos e p o d e r restrito em a ssu n to s d e política. E ssa é a única
instância em q u e o S inédrio se aproxim a d e Jesu s (à p a rte d e seu julgam ento
em 14.55). A ab o rd ag em e a p erg u n ta d o S in éd rio atestam que a q u estão da
au to rid a d e de Jesu s era u m a q u estão d e p re o c u p a ç ã o n o pinácu lo d a elite
religiosa judaica.
N ã o fica in teiram en te ó b v io o q u e o S in édrio q u e r dizer co m “ estas
coisas” , e m b o ra ele a p o n te o sten siv am en te p ara a lim p eza d o tem p lo (11.15-
19).2 O d e rru b a r d a m esa d o s cam bistas e o esp alh ar d o s anim ais eram em si
m esm o s fu n d a m e n to s p ara a o p o sição d o Sinédrio. O ep isó d io d o tem plo,
n o en tan to , foi apenas o in cid en te m ais re cen te em u m a histó ria de tais p ro -
vocações q ue incluíam a ousadia de Jesu s de p e rd o a r pecados (2.5), aceitar
p ecad o re s (2.15), ch am ar publícanos p ara a co m u n h ã o co m ele (2.13), rede-
finir o sáb a d o (2.28) e cravar um m ach a d o n a raiz d a tradição oral (7.1-13),
d o tem p lo (11.12-20) e agora d o Sinédrio. A lim p eza d o tem plo, em ou tras
palavras, não foi u m a ab erração m o m e n tâ n e a d e Jesu s, m as u m a expressão
característica d e sua autoridade.
A perg u n ta: “ C o m q u e au to rid ad e [...]? ” ind ica que, para o Sinédrio,
a q u estão n ão é apenas o q u e Jesus fez, m as seu direito d e fazer isso. O que
estava em jo g o n a resp o sta d e Jesus n ã o era irrisório. A M ish n á prescrevería
m ais tarde q u e o apelo a u m a falsa au to rid a d e em assu n to s religiosos era
u m a atitu d e passível d e ser p u n id a co m a m o rte .3 E m b o ra a M ish n á só fosse
codificada u m século e m eio depois de Jesu s, m uitas de suas prescrições datam
da épo ca de Jesu s o u eram anteriores a esta. E ssa prescrição era válida n a época
de Jesu s, co n fo rm e a acusação d o ch efe d o s sacerd o tes em 14.63 atesta. A
q u estão d o S inédrio tam b é m revela q ue o s adversários de Jesu s reconhecem
seu e m p o d e ra m e n to único, e este em u m a ocasião an te rio r fora atribuído ao
d em o n íac o (3.22). U m a segunda p erg u n ta e relacionada a esta: “ Q uem te

2 João 2.13-22 preserva um testemunho independente ligando a questão das auto-


ridades religiosas à limpeza do templo por Jesus.
3 “O falso profeta e aquele que profetiza em nom e de um deus estranho” tinham
de ser estrangulados (m. Sanh. 11.1).
M a rc o s 11.29-30 438

d eu au to rid ad e p ara fazê-las?” re c o n h e c e q u e n in g u ém tem au to rid ad e em


si m esm o p a ra fazer o q u e Jesu s faz. T al au to rid ade, presum ivelm ente, só
poderia derivar d e D eu s, e, co n tu d o , para Jesus atrib u ir sua au to rid ad e a D eus
p o d ería levar à acusação d e blasfêm ia (14.63). P o r co n seguinte, a ousadia de
Jesus de falar e agir n o lugar d e D e u s, sim ilar à d e 2.7 (“ Q u e m p o d e p erd o ar
pecad o s, a n ã o ser so m e n te D e u s? ”), está m ais u m a vez n o ce n tro d o palco.

29 ,3 0 O s rabis ju d eu s re sp o n d ia m co m frequência u m a p erg u n ta fazen-


d o o u tra p erg u n ta , c o m o o fez Jesu s nessa ocasião. É n otável q u e tu d o que
precisa ser c o n h e c id o s o b re Jesu s p o d e ser re su m id o em “ um a palavra” ,4
o u m ais p re cisam en te, u m ev en to — o b atism o d e J o ã o B atista. E Jesu s faz
esta p ergun ta: O b a tism o d e Jo ã o era “d o céu o u d o s h o m en s?” O s judeus,
p o r reverência a D e u s, evitam u sar o n o m e divino, e Jesu s segue o co stu m e
aqui, su b stitu in d o o n o m e p o r “ céu ” . A s categorias escolhidas p o r Jesu s são
dignas d e n o ta. E le n ã o apela p ara as g ra n d es escolas rabínicas d e H illel ou
Sham m ai, n em , ta m p o u c o , à T orá o u ao tem plo. A s categorias necessárias
p ara c o m p re e n d e r Jesu s e su a m issão su p lan tam to d o s estes. N a d a além de
“ cé u ” e “ h o m e n s ” , D e u s e h u m an id ad e, será su ficien te para re sp o n d e r ao
Sinédrio. A p erg u n ta d e Jesus, c o m o n a p erg u n ta a n terio r so b re g u ard ar o
sábad o (2.23— 3.6), exige q ue o Sinédrio faça u m julgam ento que fica além do
co n tro le dele. A p erg u n ta de Jesu s n ão p o d e ser re sp o n d id a a p a rtir d a base
de p o d e r deles — a T orá, o tem p lo o u a au to rid a d e ro m an a. P o r conseguin-
te, a p e rg u n ta de Jesu s deixa im plícito q u e ele está acim a d o Sinédrio, e não
so b esse c o n se lh o .5 A c o n tra p e rg u n ta de Jesu s é um a evidência da p ró p ria
au to rid a d e so b re a qual é questio n ad o .
A p erg u n ta so b re J o ã o B atista, à p rim eira vista, p arece irrelevante ou
evasiva. O q ue o b atism o de Jo ã o tem q ue v er c o m a au to rid ad e d e Jesus? A
c o n tra p e rg u n ta d e Jesu s so b re J o ã o B atista su rp re e n d e co m frequência os
leitores c o m o u m a tática diversiva, c o m o u m guaxinim p u lan d o em rio para
evitar que os cães de caça sin tam seu cheiro. Iro n icam en te, a co n tra p erg u n ta

4 A “uma palavra” (hena logon, v. 29) parece corresponder ao “um Filho” {hena buion,
12.6) na história seguinte.
5 “Todas as ações e palavras [de Jesus] são conectadas com João Batista e retroce-
dem ao Espírito de D eus que desceu sobre ele após aceitar o batismo pelas mãos
de João Batista. Jesus tem o direito de agir da form a com o faz por causa do que
a voz do céu lhe disse. Ele, mais que as autoridades, sente-se em casa no templo,
pois Deus o chamou de seu Filho am ado” (B. M. F. van Iersel, Reading Mark
[Edinburgh: T. and Τ. Clark, 1989], ρ. 148).
439 M a rc o s 11.31-33

co n té m as sem en tes da v erd ad e q u e o S inédrio esp era aprender, pois foi n o


b atism o d e Jo ã o q u e os céus se abriram e o E sp írito de p o d e r desceu sobre
Jesu s (gr. eis auton, 1.10), e a v oz d o céu d eclaro u q ue Jesus era o F ilho de
D eus. O b atism o de Jesus, em o u tras palavras, foi o ev en to q u e in au g u ro u
sua exousia, sua u n id ad e co n scien te co m o Pai, c o m o tam b ém sua liberdade
so b eran a e em p o d e ram e n to para o m inistério. Se o Sinédrio q u er co n h e cer de
q u e m Jesu s receb e au to rid ad e p ara fazer “ estas coisas” , tem de reco n sid erar
o b atism o de João. U m a decisão so b re J o ã o é u m a decisão so b re Jesus. Se o
b atism o d e J o ã o fosse apenas “ dos h o m e n s” , o u seja, to talm e n te explicável
pela ciência em pírica, e n tão o S inédrio p o d e ser justificado em sua acusação
de Jesus. C o n tu d o , se o b atism o de Jo ã o fosse “ d o céu ” , o u seja, d ivinam ente
in sp irad o — c o m o as m u ltid õ es acreditavam e c o n fo rm e o S inédrio sem dú-
v ida tem ia — e n tã o a au to rid a d e de Jesu s excede a m era au to rid ad e h u m an a
e tem de ser explicada pela au to rid a d e d e D eus.

31-33 “ [O s m e m b ro s d o Sinédrio] discutiam en tre si” . M arcos, já nessa


descrição o sten siv am en te n eu tra, fo rn ece indícios d o equívoco e transigência
d o S inédrio.6 A palavra g reg a p ara “ d iscu tiam ” , dialogi^esthai, aparece sete
vezes em M arcos, sem p re em co n tex to s das p esso as te n ta n d o evitar a força
da palavra d e Jesu s o u a afirm ação so b re elas.7 O te rm o sugere que o Sinédrio
m u d a p ara m e ra estratégia e conveniência. O p o ten cia l d e revelação d a per-
g u n ta de Jesus, p o rta n to , é red u zid a a u m dilem a calculado: u m a decisão em
favor de Jo ã o B atista parece apoiar a causa d e Jesus, ao p asso q u e u m a decisão
co n tra J o ã o B atista in d isp o ria a m u ltid ão c o n tra eles, pois Jo ã o era p opular-
m en te c o n sid erad o co m o u m p ro feta. E , então, re sp o n d em : “ N ã o sab em o s” .
Isso, na realidade, n ão é to talm e n te verdade. E les c o m certeza tê m algum as
suspeitas so b re q u e m Jesu s é e p o d ería m a p re n d e r m ais se estabelecessem
um d iálo g o h o n e s to c o m ele. N a verd ad e, eles não estão dispostos a saber. O

6 O cálculo do Sinédrio seria mais enfatizado se a leitura variante oferecida por D


e Θ fossem originais, legontes, ti eipõmen (“dizendo: Ό que poderiamos dizer?’ ”).
A leitura mais breve (legontes, “disse” [omitindo a interrogativa seguinte]), no en-
tanto, afirma um apoio manuscrito mais forte e é a preferida, em especial à luz
do fato de que os tipos de texto ocidental (D) e cesariano (Θ) tendem a expandir
e parafrasear as leituras. Veja B. Metzger, TCGNT, p. 110.
7 Ele ocorre três vezes em 2.6,8 (duas vezes) a respeito do tumulto interno e re-
sistência dos mestres da lei a Jesus; duas vezes em perguntas e confusão entre os
discípulos em 8.16,17; mais uma vez sobre o argumento entre os discípulos sobre
quem era o maior em 9.33 e, por fim, sobre a consternação do Sinédrio em 11.31.
M a rc o s 11.31-33 440

ju lg am en to d o S inédrio é m ais u m a vez (11.18) o b scu recid o p elo te m o r da


op in ião p o p u lar, p o is “ to d o s realm en te co n sid erav am Jo ã o u m p ro fe ta ” (v.
32).8Jesus, p ara aqueles q u e n ão estão d isp o sto s a se c o m p ro m e te r co m ele,
recusa-se a se c o m p ro m e te r co m eles. “T a m p o u c o direi co m que autoridade
esto u fazen d o estas coisas.” A queles que n ã o p o d e m s e r h o n esto s consigo
m esm o s n ão p o d e m ser h o n e sto s so b re Jesus.
A n ã o disp o sição d e co n h e c e r u m ju lg am en to so b re os prim eiros atos de
D e u s elim ina a p o ssib ilid ad e d e c o n h e c e r o ú ltim o ato em Jesus. O Sinédrio
o p ta p o r “ju lg am en to su sp e n so ” o u “ m a n te r u m a m e n te ab e rta” , co n fo rm e
dizem o s isso hoje. N a realidade, m istu ra as o p çõ e s de ceticism o, descrença
e covardia. Se h á fé tão p eq u e n a q u a n to u m a sem en te de m o stard a, Jesus
resp o n d e: “ E u asse g u ro ” (gr. Amén legõ hymiri)\ m as, em face d a descrença
calculada, ele re sp o n d e : “T a m p o u c o direi” (gr. Oude egõ legõ hymin, v. 33).
A falha d a delegação d o Sinédrio p ara ch eg ar a u m en te n d im e n to apro-
p riad o d e Jesu s é c o m freq u ên cia atrib u íd a ao fato d e o S inédrio falhar em
re ceb e r a p re g açã o d e a rre p e n d im e n to d e Jo ã o B atista. Se as au toridades e
em issários d o te m p lo tivessem re ceb id o o b atism o d e arre p e n d im e n to de
J o ã o (1.4,5), c o n fo rm e se sugere, eles n ão teriam e n c o n tra d o n en h u m a ofensa
em Jesus. E m b o ra isso seja p artic u la rm en te v erdade, não explica de m o d o
a d e q u a d o a b re c h a en tre o S inédrio e Jesu s n o in te rro g a tó rio d o tem plo. O
e rro crucial d o S inédrio n ão é a q u estão d o a rre p e n d im en to , pois o arrepen-
d im en to , em M arcos, é u m asp ecto secu n d ário e p en ú ltim o da proclam ação
d e Jo ã o B atista. A fu n ção prin cip al e prim ária d e Jo ã o B atista foi anunciar
A qu ele q ue havia d e v ir e p re p a ra r o ca m in h o para ele (1.7,8).9 M arcos alude
a essa fu nção n o versículo 32 ao o b se rv a r q u e to d o s os p resen tes — e o
g reg o enfatiza todos — co n sid erav am J o ã o B atista u m “ p ro fe ta ” , e n ão um
p re g a d o r d o a rre p e n d im e n to n em , ta m p o u co , u m re fo rm a d o r m oral. E m
o utras palavras, d e a c o rd o co m M arcos, a fu n ç ão d e J o ã o foi a prim eira e
a últim a p ara ap re se n ta r Jesus. C o n c o m ita n te c o m esse anúncio, co n fo rm e
o tem a do s capítulos 11— 13 m o stra , é q u e a religião institucional, m esm o

8 Os três manuscritos gregos im portantes trazem que “ todos sabiam que João era
realmente um profeta” (fdeisan; D W Θ), mas a expressão mais idiomática eichon
(“consideravam”) afirma ter apoio manuscrito superior.
9 K. Huber, “Z ur Frage nach christologischen Im plikadonen in den Jerusalemer
Streitgesprâchen’ bei Markus”, SNT(SU) 21 (1996), p. 13: “E m meu julgamento,
com referência a João Batista, Jesus afirma seu conteúdo para si mesmo, e isso
significa indiretamente que, em sua pessoa, o anunciado “hom em forte” se torna
realidade, ou seja, que ele mesmo é essa figura messiânica”.
441 M a rc o s 11.31-33

em seu p in ácu lo n o Sinédrio, p o d e ro so e cheio d e prestígio, é u m vácuo, a


m en o s qu e seja ce n trad o n o “ h o m e m fo rte ” , d eclarado ser o F ilho de D eu s
n o b atism o realizado p o r João. A relevância d e Jo ã o B atista p ara Jesus — e,
nessa instância, p ara o Sinédrio — é c o m o u m a n u n c ia d o r da filiação divina
de Jesus, c o m a qual M arcos com eça (1.1,11) e te rm in a (15.39) seu evangelho.
“E stas coisas” a respeito das quais o S inédrio p e rg u n ta p o d e m ser entendidas
só se fo rem vistas co m o consequências d a au to rid a d e (exousia) d e Jesus co m o
F ilh o de D e u s, cujo início se d á n o b atism o d e João. O que Jesus faz co m o
serv o de D e u s tem sen tid o apenas p o r causa d e q u e m ele é c o m o F ilho de
D eus. A exousia de Jesu s é d e fato a exousia d e D eus.

O E N V IO D O F IL H O (12 .1-12 )

E ssa é a única grande parábola fora d o capítulo 4 n o evangelho de M arcos.


A localização singular dessa p aráb o la deve n o s alertar para sua relevância e
im p o rtân cia. E a h istó ria d o relacio n am en to d e Israel co m o F ilho d e D eus,
descrito em te rm o s de lavradores que a rre n d a m a terra e refo rm u lad a com
im agens d o A n tig o T estam e n to (M t 23.34).10 A paráb o la descreve “ o tipo de

10 Duvida-se com frequência da autenticidade da parábola da vinha com fundamentos


de uma presumida incompatibilidade na parábola entre a alusão a Isaías 5.1-7 e a
prática de arrendam ento de terras na Galileia. Para uma revisão recente do pro-
blema, veja J. Kloppenborg Verbin, “Isaiah 5:1-7, the Parable o f the Tenants and
Vineyard Leases on Papyrus” , em Text andArtifact in the Religions of Mediteranean
Antiquity: Essays in Honour of PeterRichardson, Studies in Christianity' and Judaism,
n° 9, ed. S. Wilson e M. Desjardins (Wilfrid Laurier University' Press, 2000), p. 111-
34, que conclui que “a versão de Marcos da parábola é totalmente incoerente” (p.
130). O julgamento negativo de K loppenborg Verbin repousa, primeiro, no pres-
suposto de que a alusão a Isaías 5 impede a parábola de ser “lida realísticamente”
e a transform e em uma alegoria. Essa crítica não se sustenta em pelo menos dois
fundamentos. Primeiro, a parábola não tem a intenção, conform e K loppenborg
Verbin parece supor, de ser um manual sobre vinicultura na Galileia do século I,
mas, antes, reconta a história de Israel p o r meio de um costume familiar a todos
os ouvintes. Seria necessário apenas aludir a esse costume, graças ao fato de sua
familiaridade; não sendo preciso explicá-lo em detalhes. Segundo, o pressuposto
de que a parábola não pode conter elementos alegóricos remonta ao julgamento
estreito e inadequado das parábolas conform e feito por Jülicher. As parábolas,
com o todas as imagens narrativas, raras vezes podem ser reduzidas a um único
ponto. As duas parábolas mais famosas no Antigo Testamento, aquela por meio
da qual N atã repreende Davi (2Sm 12.1-6) e a parábola da vinha em Isaías (Is
5.1-7), contêm elementos alegóricos. O fato de as parábolas de Jesus não conte-
rem elementos alegóricos em algumas ocasiões é um pressuposto não justificado
M a rc o s 12.1 442

atividade e arran jo s q u e aco n teciam n a G alileia cerca d e m eio século antes


d a revolta geral em 66 d.C .” .‫ ״‬O s registros seculares da ép o ca, b em co m o
a literatura rabínica, d escrev em u m sistem a d issem inado d e p ro p rietário s
de terra au sen tes d e sua p ro p rie d a d e q ue em p reg avam in term ed iário s para
sup erv isio n ar os arren d atá rio s.1112 E ssas práticas se to rn a ra m os d ad o s b ru to s
p ara histórias e m orais ilustrativas m u ito além d o círculo de Jesus. U m co-
m en tário rab ín ico d ata n d o d e quase u m século d ep o is de Jesu s desenvolve a

a priori (veja a discussão em 4.13-20). O segundo julgamento de Kloppenborg


Verbin contra a autenticidade de Marcos 12.1-12 repousa no pressuposto de que
“Marcos fala claramente sobre uma vinha recém-plantada” (p. 129), o que torna
sem sentido o pedido do proprietário para os lavradores que arrendam a terra,
uma vez que as vinhas produzem frutos apenas no quinto ano após o plantio. A
parábola, no entanto, não diz que o proprietário buscou o produto no primeiro ano,
mas tç kairç (12.2, “N a época da colheita”), ou seja, quando os frutos estivessem
presentes. N enhum dos julgamentos de K loppenborg Verbin, portanto, impug-
na a autenticidade da parábola conform e se apresenta. A história da resposta de
Israel a Deus, afinal, é o tem a predominante dos profetas do Antigo Testamento
(e.g.,Jr 7.25,26; O s 11.1-11). Dificilmente seria de surpreender se Jesus, em uma
parábola, recontasse aquela história em relação a si mesmo. Para uma defesa bem
fundamentada da autenticidade essencial da parábola da vinha, veja K. Snodgrass,
The Parable of the Wicked Tenants: An Inquiry into Parable Interpretation (Tübingen: J.
C. B. M ohr [Paul Siebeck], 1983).
11 C. H. D odd, The Parables of the Kingdom (Collins: Fontana Books, 1961), p. 94. Veja
também, J. Jeremias, Die Gleichnissefesu (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1965), p. 67ss.
12 U m relato datando de 257 a.C. descobriu docum entos no papiro Z eno de um
agente que viajou para a Galileia para inspecionar a propriedade de seu ministro das
finanças. Esse docum ento, de form a muito similar a nossa parábola, inclui relatos
sobre a produção da vinha, as cisternas e os espaços de moradia. Veja M. Hengel,
“Das Gleichnis von den W eingartnern Me 12:1-12 im Lichte der Zenonpapyri und
der rabbinischen Gleichnisse”, ZNW59 (1968), p. 12-15, que conclui: “As analogias
com nossa parábola são obvias. Encontram os um considerável domínio econômi-
co na Galileia, desenvolvido em conform idade com os m étodos capitalistas, que
produzia uma grande quantidade de vinho. O sistema consistia de proprietários
de terra ausentes que empregavam agentes para supervisionar sua propriedade”.
Para avaliações complementares, veja C. A. Evans, “Jesus’ Parable o f the Tenant
Farmers in Light o f Lease Agreements in Antiquity”, fSP 14 (1996), p. 65-83; e
R. MacMullan, Roman SocialRelations, 50 B. C. toA.D. 284 (New Haven e London:
Yale University Press, 1974), p. 1-27, que ainda docum enta “a vulnerabilidade da
propriedade quando seu proprietário está distante dela, [e] o convite à violência,
[...] surras, espancamentos e assassinatos”.
443 M a rc o s 12.1

seguinte p aráb o la so b re o tem a “ P o rq u e a p o rç ã o d o S e n h o r é o seu p o v o ”


(D t 32.9; ARA ):

Isso se assem elha a um rei que tinha um cam po que arrendou para os
lavradores. E stes se apropriaram da terra co m o se fosse sua e roubaram .
Por isso o rei tom ou a terra deles e a deu a seus filhos que se com portaram
de form a ainda pior. O rei, quando teve um filho, disse aos arrendatários:
“Vocês têm de deixar m inha propriedade, já não p odem mais ficar aqui;
devolvam -m e a parte que m e é devida” (Sifre D t 32.9).13

1 O tem a básico dessa parábola, c o m o em to d as as parábolas de Jesus,


é re tira d o d o so lo e experiências d a v id a co tid ian a n a Palestina. Jesus, de
ac o rd o co m o relato de M arcos, pega a crise na te rra p ro d u tiv a de sua é p o c a14
— en fatizad a p o r várias alusões p ro féticas — e c o n ta a h istó ria d e Israel na
fo rm a de u m a parábola. A im agem p ro fétic a n a p aráb o la inclui os tem as de
co n sp iração (G n 37.18-20), o envio d o s serv o s (A m 3.7; Z c 1.4-6) e Israel
c o m o a h eran ça de D e u s (SI 2.8). A alusão bíblica d o m in an te, n o en tan to , é
a fam o sa m e táfo ra d e Israel c o m o a v in h a d o S e n h o r ap resen tad a em Isaías.
M eu am igo tinha um a vinha
na encosta de um a fértil colina.
E le cavou a terra, tirou as pedras
e p lantou as m elhores videiras.
C on stru iu um a torre de sentinela
e tam bém fez um tanque de prensar uvas.15
E le esperava que desse uvas boas,
m as só deu uvas azedas (Is 5.1,2).16

13 Citado em Str-B 1.874.


14 “O arrendam ento de vinhas representava um tipo de arrendamento agrícola. O
arrendam ento da vinha, de form a distinta do arrendam ento de uma propriedade
rural onde o lavrador podia plantar várias das possíveis plantações anuais, envoi-
via o cuidado das plantações perenes, representando um investimento vultuoso
de capital. As vinhas levavam em geral cinco anos para se tornarem produtivas
e exigiam constante irrigação. Podiam sofrer danos por causa da negligência, a
administração apropriada de uma vinha envolvia com frequência os cuidados com
uma plantação contígua de juncos, da qual se obtinha os apoios para a vinha, a
aplicação periódica de adubos e a manutenção das instalações de água” (Kloppen-
borg Verbin [veja nota 10 acima], p. 125).
15 Há um a alusão incompleta ao tanque de prensar uvas em Isaías 5.1,2 em 4Q500
dos Manuscritos do Mar Morto.
16J. Jeremias, The Parables ofJesus, ed. rev. (London: SCM Press, 1963), p. 71, susten-
ta que periethêken phragmon (“colocou uma cerca ao redor dela”) é uma tradução
M a rc o s 12.2-5 444

O julg am en to d e Isaías era tem a re p etid o co m frequência n o A ntigo


T esta m e n to e, co m certeza, era fam iliar aos c o n te m p o râ n e o s de Jesus. H á
u m julg am en to sim ilar em Jerem ias:

D esde a época em que os seus antepassados saíram do Egito até o dia de


hoje, eu enviei os m eus servos a vocês, os profetas, dia após dia. Mas eles
não m e ouviram nem m e deram atenção. Antes, tornaram -se obstinados e
foram piores d o que os seus antepassados (7.25,26; veja tam bém 25.4,5).

2-5 A p rática d a p ro p rie d a d e d e te rra p o r p ro p rietário s ausentes, p o r


conseg uinte, to rn a -se u m ju lg am en to p ro fétic o c o n tra os “ lav rad o res” , ou
seja, os líderes ju d eu s e as autoridades d o tem plo. U m p ro p rie tá rio de terra
arren d a sua p ro p rie d a d e para lavradores para q u e estes trabalhem d u ran te sua
ausência. E le, n a ép o ca d a colheita, envia u m indivíduo co n tratad o para colher
seu p ro d u to . C o n tu d o , os lavradores, nas palavras d e C. H . D o d d , “ pagam o
aluguel c o m e sp a n c a m e n to s” .17 O u tro s ind iv íd u o s fo ram enviados e recebe-
ram tra ta m e n to igual o u pior. O p ro p rietário , c o m o ú ltim o recurso, enviou
seu filho; u m m e m b ro d a fam ília co m certeza im p o ria respeito. C ontudo,
os lavrado res viam a situação d e fo rm a distinta: se elim inassem o herdeiro,
ficariam c o m a p ro p ried ad e. A ssim , m atam o filho, lançam seu c o rp o aos
p ássaro s e se ap o ssam d a p ro p ried ad e. N e sse p o n to , o p ro p rie tá rio in terv ém
d e fo rm a decisiva, d e stru in d o os lavradores e, dep ois, a rren d a a terra para
o u tro s m ais m ere ced o res dela.
A té o m o m e n to , dois p o n to s são dignos de nota. P rim eiro, o proprietário
se vinga d o s lavradores, e n ã o d a vinha. O u seja, a p aráb o la n ão p o d e ser
in terp re ta d a c o m o u m ju lg am en to que se esten d e a to d o s os judeus, mas,
antes, aos líderes d o povo, em p artic u la r o Sinédrio. Segundo, o h eró i é o
p ro p rie tá rio q u e acerta ju stam en te as co n tas c o m os lavradores, e n ão estes.
A p aráb ola, p o r co n seg u in te, n ã o p o d e ser c o n stru íd a c o m o evidência de
u m a visão o u p ro g ra m a d e u m levante p o p u la r c o n tra a o p ressão p o r parte

equivocada do texto hebraico de Isaías 5.2,yesgeqehu (“cavou a terra”), e, por


conseguinte, um a evidência de que Marcos 12.1 é citado da LXX e “que, portanto,
isso se deve a uma atividade editorial secundária” . A palavra hebraica em questão,
no entanto, tam bém pode ser traduzida por “cercar com um muro, prover uma
cerca” (também HAL.OT 2.810). Marcos 12.1, portanto, é possivelmente uma
tradução válida da palavra hebraica. N ão é possível ter certeza se Marcos traduz
uma citação hebraica original para o grego ou se cita livremente a LXX, mas, em
nenhum desses dois casos, parece justificável a afirmação de haver “uma atividade
editorial secundária” .
17 Parables of the Kingdom, p. 93.
445 M a rc o s 12.6

d e je s u s . In d e p e n d e n te m e n te d o se n tim e n to p o p u la r so b re o p ro p rietário de
te rra au se n te n a é p o c a d e je s u s , são os lavradores q u e se rebelam desafiado-
ra m e n te c o n tra u m p ro p rie tá rio justo. Isso co m c erteza tem de ser en ten d id o
c o m o o ju lg am en to d o S inédrio e d a lid eran ça judaica p o r p a rte d e je s u s p o r
confiscarem as coisas d e D eus.

6 O ápice d a p aráb o la aco n tece em 12.6: “ Faltava-lhe ainda u m para


enviar: seu filho am ad o ” . Q u e fazen d eiro em sã co nsciência entregaria seu
filho a lav rad o res c o m o esses? E ssa é u m a p e rg u n ta digna d e ser feita, pois
sugere o a m o r infatigável de D eus. V erdade, de ac o rd o co m a lei judaica, um
filho tin h a direitos legais q ue um escravo n ão tinha; o filho, p o rta n to , é o
“ h e rd e iro ” .1819O p ro p rietário , ao enviar os serv o s, apelava à in teg rid ad e dos
lavradores; ao enviar o filho, ele apela p ara o d ireito da lei, p o is o filho era a
única p esso a , exceto o p ró p rio p ro p rie tá rio , q u e tin h a direito legal so b re a
vinha. E ssa é razão pela qual o p ro p rie tá rio diz: “A m eu filho resp eitarão ” .
O filho vai p a ra a p ro p rie d a d e d o pai, c o m o re p resen ta n te d o pai, com a
au to rid a d e d o pai, a fim de reivindicar o q u e é d ev ido ao pai.
O filho, n o en tan to , re p resen ta n ã o só a reivindicação legal d o pai, m as
tam b é m su a compaixão. T u d o em 12.6,7 salienta esse p o n to . A palavra para
“ en v io u ” (gr. apostelleiti) carrega o sen tid o de co m issão divina (3.14; 6.7; Lc
11.49-51; 13.34,35).1<; E o filho difere d o s escravos d e várias m aneiras im -
p o rtan te s: eles são m uitos, e ele é ú n ico ;20 são co n tra tad o s, sen d o talvez eles

18 N a lei judaica, o filho tem direitos legais negados ao escravo. Veja, J. D. M. Derretí,
“Fresh Light on the Parable o f the Wicked W inedressers”, RIDA 10 (1963), p. 31,
que escreve que em disputas adjudicadoras com lavradores, “ ‘protestos’ formais
tinham de ser feitos diante de testemunhas, alertando os lavradores de que uma
ação legal começaria contra eles. O s escravos, todavia, não podiam fazer esse
protesto nem, tampouco, podiam indmar testemunhas — uma séria desvantagem,
por conseguinte, estava envolvida nesse caso. N essa época, já se tornara possível
defender a causa de alguém por intermédio de um agente — o indivíduo precisava
de fato transferir seus direitos para o ‘representante’. O filho, portanto, tinha de
ser enviado” .
19 O utra alusão à vinha de Isaías fica evidente aqui. A LXX, após a vinha se tornar
infrutífera, faz uma pergunta retórica: “Q ue mais se poderia fazer por ela que eu
não tenha feito?” (Is 5.4). Jesus responde a essa parábola: Deus enviará seu Filho!
20 O relato dessa parábola em Pastor de Hermenêuticas altera muitíssimo os papéis
do filho do proprietário e do servo (apenas um). O servo que recebe a vinha do
proprietário não se rebela contra este, mas trabalha o campo com fidelidade e
afinco, de tal forma que o proprietário, quando retorna, torna o servo virtuoso seu
M a rc o s 12.7-8 446

m esm o s p ro p rie d ad e d o s e n h o r d a terra; ele é o h erd eiro; são os precursores,


ele é a palavra final, e a ú ltim a, d o pai. A cim a d e tu d o , o filho é “ am a d o ” . A
palavra re m e m o ra o a m o r d e A b ra ão p o r Isaq u e (G n 22.2); o a m o r de Jacó
p o r Jo sé (G n 37.3); o a m o r d e D e u s p o r Israel (Is 5.1) e, em especial, o am o r
d o Pai p elo “ F ilh o a m a d o ” n o b atism o (1.11). A referên cia ao “ filho am a d o ”
(gr. huion agapêtoii) n a p aráb o la re m e m o ra apenas o u tro relacio n am en to no
evangelho — o d e Jesu s c o m o Pai (1.11; 9.7). N a histó ria d o envio d o filho
Jesus fala d e seu p ap el sem p re ced e n te s n a h istó ria d e Israel.21

7,8 O s lavradores, p o rta n to , rejeitam a ab e rtu ra de am or. O Evangelho de


Tomé 65, q u e ta m b é m p re se rv a essa p aráb o la, é am b íg u o so b re a culpa real
do s lavradores, su g erin d o até m esm o q ue eles m altrataram os em issários
p o rq u e n ã o o co n h eciam . N o relato dessa p aráb o la em M arcos, p o rq u e eles
o co n h e ce m defato é q u e o m atam . O s lavradores, n ão m ais c o n ten te s ape-
nas co m o p ro d u to d o p ro p rie tá rio (v. 2), q u erem ta m b ém sua p ropriedade.
“V enham , v a m o s m a tá -lo ” , d izem eles. E ssas fo ra m as m esm as palavras
p ro ferid as p elo s filhos d e Jac ó q u an d o fizeram co n lu io p ara m a n d a r em b o ra
o am ad o Jo s é (G n 37.20). Se os lavradores m atarem o herd eiro , c o n fo rm e
raciocinam , e n tão se to rn a rã o os herdeiros.22 Se a h um anidade p o d e abrir m ão

co-herdeiro da vinha junto com o filho (Herm. Sim. 5.2.1-8). O Pastor de Hermas,
por conseguinte, esvazia a parábola de sua ênfase cristológica e cria uma moral
da justificação pelas obras.
21 Veja J. D. Kingsbury, The Christology of Mark’s Gospel (Philadelphia: Fortress Press,
1989),p. 114-18.W. Bousset, Kyrios Christos:A History of theBelief in Christfrom the
Beginnings of Christianity to Irenaeus, trad. J. Steely (New York e Nashville: Abing-
don Press, 1970), p. 80, nega que o versículo 6 seja uma autodesignação de Jesus,
m antendo que “Jesus, em nenhum a outra de suas parábolas, em purra sua própria
pessoa para o prim eiro plano da form a aqui” . Essa generalização abrangente de
Bousset é indefensável. Observam os ao longo deste com entário que Jesus põe
intencionalmente sua pessoa no primeiro plano (veja A autoridade de Jesus,
Introdução 6.1). N ão há nenhum a razão pela qual não faz isso em uma parábola
cuja intenção é descrever seu papel na história de Israel. “Se Jesus falou de Deus
com o seu Pai, conform e a evidência de suas orações estabelecem de form a de-
cisiva, é difícil ver por que ele não podería dar um passo a mais para se referir a
si mesm o com o Filho” (I. H. Marshall, “T he Divine Sonship o f Jesus,” Int 21
[196η, p. 93).
22 Alguns intérpretes argumentam que os lavradores, na ausência do proprietário,
podem , de acordo com a usucapião, esperar adquirir a propriedade por tem po
de arrendamento. D e acordo com m. B. Bat. 3.3, no entanto, “arrendatários e
guardiões não podem assegurar o título da terra p o r usucapião” .
447 M a rc o s 12.9-11

d e D e u s, o u até m esm o m atá-lo, e n tão a h u m a n id a d e p o d e se to m a r D eus.


“A ssim eles o agarraram , o m ataram e o lan çaram para fo ra d a vinha.” 23Jesus
ecoa os p ro fetas: o q ue é a h istó ria d e Israel sen ão rebelião c o n tra D eu s (M t
23.34)? Q u a l é a so m a to tal d a história h u m a n a se n ã o a tentativa de se livrar
d o u niv erso d e D eus?

9-11 A v inha, co n tu d o , n ão é u m a p o sse h u m an a, n em m esm o p osse


d e Israel, m as p o sse d e D eu s, sua o b ra e p ro p ó s ito n a história. N a p erg u n ta
retó ric a d e 12.9: “ O q u e fará en tão o d o n o d a v inh a?” , a palavra greg a para
“ d o n o ” é kyrios, d u p lam en te ap ro p riad a, p o is significa ta n to “ d o n o ” q u an to
“D e u s c o m o S e n h o r” . D e u s é d e fato o “ d o n o d a v inha” (tam bém Is 5.3).
O ju lg am en to q u e Jesus p ro fe re co n tra a v in h a eco a u m ju lg am en to sim ilar
n o s M an u scrito s d o M ar M o rto : “E u lh e direi o q u e farei co m m in h a vinha:
rem ov erei su a cerca de m o d o que p o ssa ser u sad a c o m o pasto, d estruirei seus
m u ro s p ara q u e p o ssam pisoteá-la. Pois eu a deixarei p isoteada e insípida, e ela
se to rn a rá hab itação d e arbustos esp in h o so s e cardos (4Q 162 [4QpIsa]). ‘^Virá
e m atará aqueles lavradores e dará a v in h a a o u tro s ” , afirm a Jesus.24 N a época
d e M arcos, “ o u tro s ” eram co m ce rteza c o m p re e n d id o s co m o os gentios.25

23 O versículo paralelo em Mateus 21.39 altera essa parte da parábola desta forma:
“Assim eles o agarraram, lançaram-no para fora da vinha e o mataram” . A sequên-
cia de eventos em Mateus corresponde mais claramente aos eventos da paixão,
ou seja, Jesus foi preso, levado para fora de Jerusalém e crucificado (também Jo
19.17; H b 13.12). A alteração de Mateus argumenta mais um a vez pela prioridade
marcana, pois é mais fácil explicar por que Mateus pode ter alterado a sequência
de Marcos a fim de corresponder à sequência histórica da paixão que explica por
que Marcos corrom pería uma alusão histórica em Mateus. E possível (embora
não muito provável, em meu entendimento) que a diferença na sequência reflita
a com preensão do evangelista daqueles responsáveis pela m orte de Jesus: para
M arcos,Jesus é m orto na vinha e depois jogado para fora, isto é, rejeitado e morto
pelos judeus; ao passo que, para Mateus e Lucas, Jesus é jogado para fora e morto,
ou seja, rejeitado pelos judeus, mas m orto pelos romanos. A sequência incomum
de Marcos, de qualquer forma, argumenta p o r sua fonte em Jesus, e não na igreja
primitiva, de quem se esperaria uma sequência similar à de Mateus e Lucas no
versículo 8.
24Mateus 21.41 põe essa afirmação na boca dos ouvintes. N a versão de Marcos
dessa parábola, no entanto, essa não é uma conclusão dos ouvintes, mas um
pronunciam ento de Jesus, o que a investe de maior autoridade.
25 A ideia de a “vinha” passar para os gentios, aparentemente, não era apenas um
conceito cristão. Uma carta interessante do século II, por Mara bar Serapião para
seu filho, usa a m orte de Jesus com o um exemplo da justiça prevalecendo sobre a
M a rc o s 12.9-11 448

C ontud o, isso n ã o é u m a sugestão de q u e o u o versículo o u a co m p reen são do


m esm o era u m p ro d u to d a m issão g en tia tardia. M arcos 7.24— 8.10 ancora a
inclusão d o s g en tio s à m issão essencial de Jesus, e a citação d e Isaías 56.7 na
lim peza d o tem p lo , “A m in h a casa será ch am ad a casa d e o ração p ara todos
os p o v o s” , revela q ue Jesu s co n d en av a o sistem a d o tem p lo p o r sua falha
em incluir os gentios.
A con clu são d a p aráb o la é u m a citação d e S alm os 118.22,23 (w . 10,l l ) . *26
A referência é à p e d ra rejeitada n o tem p lo d e S alom ão que se to rn o u a pedra
an gu lar d o p ó rtico . E ssa citação d e se m p e n h o u u m p ap e l im p o rta n te n o cris-
tianism o prim itiv o c o m o u m a explicação para a rejeição de Jesu s pelos judeus
(Lc 20.17; A t 4.11; R m 9.33; l P e 2.6-8 ;Atos de Pedro 24.10).27 Só M arcos (e o
paralelo em M t 21.42), n o e n ta n to , inclui o versículo su b sequente: “ isso vem
d o S e n h o r e é algo m arav ilh o so p ara n ó s ” (v. 11 = SI 118.23). E sse versículo
adicional so a c o m o u m a fo rte n o ta pro v id en cial, q ue a rejeição h u m an a da
“p e d ra ang u lar” d e D e u s n ã o só foi prevista, m as ta m b é m foi u sad a pelo

tirania: “O que representou a m orte de Sócrates para os atenienses? A recompensa


deles po r isso foi a fome e a praga. O u que ganho tiveram os habitantes de Samos
por queimarem Pitágoras? A t e m deles foi repentinam ente coberta por areia, e
isso no curso de uma hora apenas. O u ainda os judeus, por interm édio da morte
de seu rei sábio? Pois foi precisamente desse m om ento em diante que perderam
seu reino. Deus se vingou com justiça da rejeição da sabedoria desses três homens.
O s atenienses m orreram de fome, o povo de Samos foi coberto pelo mar, sem
nenhum a chance de ser salvo. E os judeus ficaram desolados e foram levados ao
exílio, estando agora dispersos por todos os cantos da terra. Contudo, Sócrates não
está m orto afinal — p o r causa de Platão; nem Pitágoras está m orto, por causa da
estátua de Juno; nem , tampouco, o rei sábio [dos judeus] está m orto, por causa das
novas leis que ele ordenou” . Em bora essa carta tenha sido possivelmente escrita
por um judeu (“bar Serapião” = aramaico, filho de Serapião?), não é provável
que seja de autoria de um cristão que, sem dúvida, teria identificado o “rei sábio”
com o Jesus e que dificilmente o teria posto em pé de igualdade com Sócrates e
Pitágoras. Para a citação e mais análise sobre ela, veja HCNT, p. 124-25.
26Veja a discussão desses versículos e seu lugar no esquema de Marcos em J. Marcus,
The Way of the Lord ChristologicalExegesis of the Old Testament in the Gospel of Mark
(Edinburgh: T. & T. Clark, 1992), p. 111 -29.
27 Tam bém no Evangelho de Tomé66, a menção sobre a pedra rejeitada é anexada à pa-
rábola da vinha. A pedra, no judaísmo rabínico, foi interpretada metaforicamente,
algumas vezes com referência a Abraão, algumas vezes a Davi e, até mesmo em
algumas ocasiões, ao Messias. N esse último caso, os construtores foram consi-
derados com o os mestres da lei; e a pedra rejeitada, com o o Messias. Veja Str-B
1.875-76.
449 M a rc o s 12.12

S en h o r p ara su a glória. E sse versículo adicional é im p o rta n te para a inter-


p re ta ç ã o d a p aráb o la p o r M arcos. N a p a rá b o la d o sem ead o r (4.3-9) será
re co rd a d o q u e os tristes p ro sp e c to s p ara a p lan tação n ã o fru stram a colheita
d errad eira. D a m esm a fo rm a nessa p aráb o la, a atual rejeição e hum ilhação de
Jesus são a p a re n te m e n te d o lo ro sas, m as D e u s usa essa rejeição d e seu F ilho
p ara u m p ro p ó s ito m aio r q u e será “ m arav ilh o so p ara n ó s” . O F ilh o de D eu s
n ã o está im u n e aos so frim en to s d este m u n d o . E ssa ta m b ém foi a m ensagem
em C esareia de Filipe: o F ilh o tem d e sofrer, e su a vindicação, q u e M arcos
atesta c o m sim plicidade esp a rtan a em 16.6 (“ E le re ssu scito u ” , o u seja, ele
foi ressu sc ita d o p elo Pai), re p o u sa apenas n as m ão s d o Pai.

12 O g re g o d o versículo 12a p o d e ser trad u z id o p o r: “ [O s líderes religio-


sos] estavam c o n sp ira n d o p ara pren d ê-lo , p o rq u e sabiam q u e [Jesus] co n tara
u m a p a rá b o la c o n tra eles” . O s te rm o s “ c o n sp ira n d o ” (gr. %êtein; veja mais
so b re o te rm o em 1.37) e “ p re n d e r” (gr. kratein, veja m ais s o b re o te rm o em
3.21) são im p o rta n te s em M arcos para te n ta r su fo c ar Jesus e se o p o r ao p ro -
p ó sito d e D e u s em seu m inistério. A dem ais, M arcos, pela terceira vez desde
su a e n tra d a em Jeru salém , o b serv a q u e a o p o sição das au to rid ad es religiosas
a Jesu s e stá en raizad a n o m e d o da re sp o sta da m u ltidão a Jesus (11.18,32;
12.12). A delegação d o Sinédrio com eça a agir co m o os lavradores da parábola!
A p aráb o la da v in h a e d o s lavradores é p e rm e a d a co m u m senso da p ro -
vid ên cia in d o m in áv el d e D eus. V erdade, p arece q ue os esquem as d o s lavra-
d o re s rebeldes d e stru irã o a v in h a d o p ro p rie tá rio , m as eles n ão prevalecem ,
n em p o d ería m prevalecer. M esm o se o filho cu m p rir sua m issão p erigosa na
segurança de q u e o p ro p ó s ito d o pai será realizado p o r in term éd io de sua
m o rte e ap a ren te d erro ta. A v in h a d o pai n ã o é d esa p ro p riad a n em destruída,
m as, antes, os lavradores p erv erso s são julgados, e o u tro s m ais dignos são
en co n trad o s p ara d ar contin u id ad e à vinha. A parábola, p o r conseguinte, ecoa
o m e sm o tem a da p ro v id ên cia vista n a p aráb o la d o se m ea d o r (4.3-9), n a qual
até m e sm o as co n d içõ es ru in s de p lan tio n ã o p o d ería m cancelar n em frustrar
a co lheita inevitável de D eus. A v o z de Jesu s é m ais u m a vez audível nessa
parábola, su p re m a m e n te consciente de seu p ap el n a econom ia d o Pai. H á ain-
da o u tro le m b re te d e sua m o rte inevitável (8.31; 9.31; 10.33,34), e ainda um a
co n fia n ça ig u alm en te su p re m a de que sua p en ú ltim a d e rro ta n ão só resultará
n o p ro p ó sito d errad eiro d o Pai, m as ta m b é m será o m eio p o r in term éd io do
qual é realizado. O te stem u n h o d a p aráb o la p ara o s p ro p ó sito s certeiro s de
D e u s tran sm ite u m p ro fu n d o sen so de esp eran ça para a assediada igreja de
M a rc o s 12.13-14 450

M arco s em R om a, tã o am eaçada pelas perseg u ições insanas d e Ñ e ro , algo


q u e ta m b é m p o d e ac o n te c e r h o je em dia, q u a n d o a igreja (pelo m en o s no
O ciden te) é c o m freq u ên cia am eaçad a p o r co n cessões e co n fu sõ es e deca-
dência. A existência d a v in h a n ã o é g aran tid a pela atitu d e d o s lavradores que
en g ran d ec em a si m esm o s, m as, sim , p elo autossacrifício d o Filho.

O T E S T E D O S F A R I S E U S ( 1 2 . 1 3 1 7 ‫)־‬

C ada u m a dessas histó rias e m 11.27— 12.44 tem c o m o p a n o d e fu n d o a


oposição d o Sinédrio. E s te consistia de três g ru p o s im p o rtan tes — os fariseus,
os saduceus e o s m estres d a lei. C o m eçan d o co m essa história, cada u m desses
g ru p o s testa Jesu s — o s fariseus co m a q u estão d o s im p o sto s (12.13-17); os
saduceus c o m a q u estão so b re a ressu rreição (12.18-27); e os m estres d a lei
co m a q u e stã o s o b re a in terp re taçã o d a E sc ritu ra (12.28-44). Jesus, em cada
u m a dessas h istórias, é trata d o c o m o “ M estre” (12.14,19,32) e, em cada um a
delas, d e m o n s tra sua au to rid ad e, sua exousia q u e deriva d e seu b atism o p o r
Jo ã o (11.29,30) e q u e caracteriza seu m in istério d esd e seu p rin cíp io (1.22,27).

13,14 A q u e stã o so b re o im p o sto co m eça c o m u m a im precisão típica


d e M arcos: “ M ais ta rd e enviaram a Jesu s alguns d o s fariseus e h e ro d ia n o s” .
O original g re g o o m ite “m ais ta rd e ” , ap re se n ta n d o essa p eríc o p e n o tem p o
p re se n te h istó rico sem q u alq u er su g estão d e lap so d e te m p o (“ E enviaram a
ele [ ...]”). A im p ressão deixada é aquela d e desafios p e rm an en tes à autoridade
d e Jesus. N ã o ficam os sab e n d o q u e m en v io u esses dois g ru p o s, m as é bem
provável q u e te n h a sid o o Sinédrio. O v e rb o g re g o apostellein, cujo sentido
é enviar c o m u m p ro p ó s ito específico, e a o b serv açã o acrescen tad a d e que
tin h am a in ten çã o d e “ o ap a n h are m em algum a coisa q u e ele dissesse” , com
a c o n o ta ç ã o d e q u e esp erav am e x p o r Jesu s c o m o u m falso m estre. A palavra
greg a p ara “ a p a n h a re m ” , agreuein, o c o rre apenas aqui n o N o v o T esta m e n to e
tem a c o n o ta ç ã o d e p erseg u ição violenta. O teste, p o rta n to , tem u m a sem e-
lhança clara co m o teste a n terio r d o s fariseus n a sinagoga em 3.1-6, em b o ra os
fariseus estejam ag o ra m en o s c o n tid o s e m ais agressivos. N as duas ocasiões,
fizeram u m a aliança im provável c o m os h ero d ia n o s (veja so b re o te rm o em
3.6). A coalizão d e h e ro d ia n o s e fariseus, cuja ten d ên cia eram em direção
à p u re z a legal, p arecería n a m e lh o r das h ip ó teses u m a aliança em baraçosa,
fo rjad a m ais p elo in im ig o co m u m em Jesu s q u e p o r u m a co n c o rd ân c ia en-
tre eles. O c e rn e d a h istó ria n ã o é d ev o ta d o à q u estão d o im p o sto , m as na
in ten çã o m ald o sa d o s fariseus e h ero d ia n o s, u m a seg u n d a sem elh an ça com
451 M a rc o s 12.13-14

3.1-6, além d e ta m b ém ser c o rro b o ra d a p elo s paralelos em M ateus 22.23-33


e L ucas 20.27-40.
A afirm ação em 12.14 de q ue Jesu s é “ín te g ro ” , q u e n ão se “ deix[a]
influ en ciar p o r n in g u ém ” , m as “ ensinfa] o ca m in h o d e D e u s c o n fo rm e a
v erd a d e ” está re p le ta d o caráter sem ítico e c o n s tru ç õ e s verbais que sem
d ú v id a refletem as palavras dos in terlo cu to re s d e Jesus. A declaração é n o -
tável e m dois aspectos. P rim eiro, a d esp e ito d a in sin ceridade d o s fariseus e
h ero d ia n o s, é u m a declaração verdadeira. Je su s é d e fa to essa p essoa. A lém
disso, u m a p e sso a q u e n ão se “ debt [a] in flu en ciar p o r n in g u ém , p o rq u e n ão
te p re n d e s à ap arên cia d os h o m e n s” é im p ro v áv el q ue seja influenciada p o r
tal bajulação. Jesu s reco n h ec e os m o tiv o s d o s in qu isidores e os co n h ecem
c o m o de fato são: “M as Jesus, p e rc e b e n d o a h ip o crisia deles, p erg u n to u : ‘P o r
q u e vocês estão m e p o n d o à prova?’ ” (v. 15; cf. J o 2.24,25).
E sp e ra n d o d eixar Jesu s sem saída em u m dilem a, dizem : “ É ce rto pagar
im p o sto a C ésar o u n ão?” A palavra g re g a p a ra “im p o sto ” , kênson, é u m a
tran slite ra ç ã o d e u m a p alav ra latin a, census, in d ic a n d o q u e o evangelista
escreve p a ra u m a co m u n id ad e cuja e stru tu ra d e referência é m o ld ad a pelo
latim .28 A q u e stã o so b re o p ag a m e n to de im p o sto s p ara C ésar era previsível
em Jeru sa lém e, em particular, n o tem p lo , p o is n a Ju d eia o d in h eiro e os bens
iam d ire ta m e n te p ara os cofres ro m an o s, ao p a sso q u e n a G alileia os m esm o s
eram d irec io n ad o s a R om a p o r in te rm é d io de H e ro d e s A n tipas.29 O im p o sto
referid o é u m im p o s to im perial, in stitu íd o pela p rim eira vez em 6 d.C .30 A
quan tia exigida p ara o p ag a m e n to desse im p o s to d e capitação era u m denário
(v. 15, o u tra palavra em p restad a d o latim ), a m éd ia d o salário na P alestina (M t
20.2,9). U m d en á rio era u m a m o ed a ro m a n a d e p ra ta tra z e n d o o b u sto do
sem idivino T ib ério C ésar (14-37 d.C.) co m u m a inscrição abreviada em latim ,
Tiberius Caesar Divi August! Filius Augustus (“T ib ério C ésar A ugusto, filho do
divino A u g u sto ”). O lado reverso trazia a im ag em da m ãe d e T ibério, Lívia,
e a inscrição, PontifexMaximus (“ su m o sa c e rd o te ”). A q u estão d o s fariseus e
h ero d ia n o s, é claro, tem a in ten çã o de e x p o r Jesus, fo rçan d o -o a fazer um a

28 Para uma discussão das palavras emprestadas do latim em Marcos, veja V. Taylor,
The GospelAccording to St. Mark, ρ. 45.
29 Ε. Ρ. Sanders, TheHistoricalFigure ofJesus (London: Allen Lane, The Penguin Press,
1993), p.252.
30Josefo, War 2.117; Ant. 18.1-10. Judas, o galileu, com o resultado dessa taxação,
fundou uma causa rebelde que cresceu no m ovimento dos zelotes. Em 66 d.C., os
zelotes lançaram a nação em uma revolta contra Roma, resultando na aniquilação
tão dos rebeldes quanto da nação.
M a rc o s 12.15-17 452

concessão: o a p o io ao im p o sto faria co m q u e fosse d esacred itad o aos olhos


d o povo, ao p asso q u e sua recusa em p ag ar im p o sto s faria co m que o Im pério
R o m an o passasse a persegui-lo.

15-17 Jesus, n o en tan to , n ão aceita ser m a n o b ra d o p ara to m a r qualquer


u m a das duas p o sições.31 E le co n h e ce a “ h ip o crisia” e as in ten çõ es m aldosas
deles. A palavra grega trad u zid a p o r “p o n d o à p ro v a ” (peiraspin) significa “tes-
tar o u te n ta r” (8.11). Jesu s, re te n d o sua p ró p ria au to rid ad e, exige u m denário
e perg unta: “D e q u e m é esta im ag em e esta inscrição” H á algum a ironia no
fato d e o s in q u irid o res tere m a m o e d a exigida p ara o im p o sto , ao p asso que
Jesus n ã o a tem . E les, ao q ue parece, têm m ais cum plicidade c o m o im posto
d o q ue a p e rg u n ta deles sugere. U m a vez q u e a im ag em e a inscrição são de
C ésar, diz Jesus, a m o e d a p e rte n c e a César.
Jesus, c o m essa re sp o sta , re co n h ec e a legitim idade d o g o v e rn o hum ano.
Isso o d istan cia d e to d as as fo rm as d e anarquia política, m ais b em exemplifi-
cada em sua é p o c a pelos zelotes que acreditavam que a d erru b ad a d o Im pério
R o m an o era a v o n ta d e d e D eus. A resp o sta d e Jesus, p o r sua vez, n ão p o d e ser
co n stru íd a p ara significar que D e u s e o g o v ern o são duas entidades exclusivas
e separadas, in d e p e n d e n te s u m a da o u tra. D e u s é so b eran o so b re to d o s os
assu n to s h u m an o s, in clu in d o a ssu n to s políticos. E ssa passagem afirm a que
h á tarefas p ara o s g o v e rn o s q u e n ão in frin g em as tarefas suprem as de D eus
(R m 13.1-7; lT m 2.1-6; lP e 2.13-17), e n q u a n to rejeita de fo rm a v ig o ro sa que
os g o v e rn o s p o ssa m assu m ir reivindicação to tal de seus cidadãos, “ c o m o se
o E sta d o , m ais d o q u e sua co m issão especial, devesse e p u d esse se to rn ar
a única, e totalitária, o rd e m d a vida h u m an a, e desse m o d o p reen ch en d o
tam b ém a v o cação d a igreja.32
O asp e cto m ais in tere ssa n te d a b rilh an te re sp o sta d e Jesu s é que ele não
para n a p e rg u n ta feita a ele. O co m p ro m isso p ara co m C ésar é sob rep u jad o
pelo co m p ro m isso p ara c o m D eu s. “D e e m a C ésar o q u e é de C ésar e a D eus
o que é de D e u s” (assim tam b ém ,Justino, Apol. 1.17.2). E ssa fala, rem iniscente
d a re sp o sta d e Jesu s a P e d ro em 8.33 (“V ocê n ão p en sa nas coisas d e D eus,
m as nas d o s h o m e n s ”) declara q ue a au to rid a d e su p re m a n a v ida p erten ce

31 Egerton Papyrus 2 preserva um a versão fragmentária dessa perícope até esse ponto.
N o entanto, esse papiro conclui a perícope com Jesus citando Isaías 29.13, em vez
de a concluir com o pedido e a fala sobre a moeda.
32 The Theological Declaration of Barmen, art. 5.
453 M a rc o s 12.15-17

a D e u s.33 N ã o é possível co n sid erar as ob rig açõ es civis e políticas à parte


d a fé, m as ap en as c o m o expressões d e afirm açõ es anteriores e derradeiras
d e D e u s. N a fala d o versículo 17, a in co n fu n d ív e l exousia o u au to rid ad e de
Jesu s em erge m ais u m a vez. C ésar e D e u s e ram au to ridades derradeiras e
in co n testes n a política e am b ien te religioso d a é p o c a d e Jesus, e este, ainda
assim , fala p ara am b as as esferas da vida. Fica claram en te im plícito n o u so da
palavra “im ag em ” (v. 16 em grego) p o r Jesu s q u e a au to rid ad e d errad eira está
co m D e u s; e a palavra im agem usada aqui é a m esm a usada em G ênesis 1.26
em relação à criação da hu m an id ad e à im ag em d e D e u s. Se a m o ed a traz a
im agem d e C ésar, e n tão ela p e rte n c e a C ésar. M as a h u m an id ad e, q u e traz a
im agem d e D e u s, p e rte n c e a D eus!

O T E S T E D O S S A D U C E U S (12 .18 -2 7 )

U m seg u n d o teste d o Sinédrio vem da facção do s saduceus. E ssa é a única


histó ria n o evangelho de M arcos em q u e Jesu s te m u m e n c o n tro exclusivo
co m os saduceus. D e n tre os vários g ru p o s e facções d o judaísm o n a Pales-
tin a d o sécu lo I, dois do m in av am a vida em geral e o S inédrio em particular
— os fariseus (veja em 2.18) e os saduceus. E sses d ois g ru p o s p arecem ter
surgid o d u ra n te a revolta m acabeia c o n tra a tirania selêucida (início d o século
II a.C.). A p e sa r d e sua origem em c o m u m , d iferiam g ra n d em en te em suas
perspectivas e v isão d e m un d o . O s fariseus acreditavam n a so b eran ia divina,
en q u a n to os sad u ceu s afirm avam só o livre-arbítrio d o h o m em ; os fariseus
acreditavam e m anjos e dem ô n io s, m as sad u ceu s não; os fariseus aceitavam
um a co m p re en são m ais abrangente das E scrituras e da revelação, o que incluía
as trad ições escritas (Torá, E scrito s e P ro fetas) e orais, ao p asso q u e o s sadu-
ceus aceitavam apenas a Torá; e, p o r fim , c o n fo rm e essa h istó ria exem plifica,
os fariseus afirm avam a ressurreição d o s m o rto s, o q u e os saduceus negavam
de fo rm a explícita (12.18; A t 23.8). A n eg ação d o s anjos, d em ô n io s e vida
após a m o rte p o r p a rte do s saduceus derivava-se d e sua to tal confiança na

33 O Evangelho de Tomé (100) preserva essa fala desta forma: “Eles mostraram a Je-
sus um a (moeda) de ouro e lhe disseram: “ Os agentes de César exigem que lhe
paguemos um im posto” . Ele lhes disse: “D eem a César o que pertence a César;
deem a Deus o que pertence a Deus; e deem a mim o que é meu”. Essa versão,
de m odo explícito, faz uma diferença entre D eus e Jesus, ao passo que a versão
de Marcos não faz essa diferenciação.
M a rc o s 12.18 454

T o rá q u e n ão ap resen ta essas d o u trin as.34 P o rta n to , da perspectiva teológica,


os saduceus, eram co n serv ad o re s; e os fariseus, progressistas.
C o n tu d o , as diferenças en tre os dois g ru p o s n ão se resum iam à doutrina.
O s saduceus d iferiam d o s fariseus ta m b é m em assu n to s p olíticos e sociais.
O s saduceus en g lo b av am u m a aristocracia leiga e clerical associada c o m o
sacerdócio. O sacerdócio, m e sm o antes d a R evolta M acabeia (167 a.C.), já
exercia u m a in flu ên cia d o m in a n te em m eio aos judeus, e assim os saduceus,
c o m o o sacerdócio, p e rte n c ia ao m ais elevado estra to social d a sociedade
judaica, m arc ad a p ela “ riq u ez a” e “h o m e n s d e p restíg io ” , p ara citar Josefo. A
associação d o s saduceus c o m o sacerdócio significava q u e a influência deles
estava fo c ad a acim a d e tu d o n o tem p lo e nas o p eraçõ es associadas c o m ele.
O sacerd ó cio re p resen tav a u m a im p o rta n te in flu ência p olítica e religiosa. A
ín tim a aliança d o s sad u ceu s co m o sacerd ó cio o s e m p u rro u p ara o co m b ate
político, c o n fo rm e fica evidenciado p ela recep tivid ad e deles ao h elen ism o e,
d u ra n te a é p o c a d e Jesus, pela colab o ração deles co m o g o v e rn o ro m an o .35

18 M arco s, c o m o em sua in tro d u ç ã o d o s fariseus em 12.13, ap resen ta


os sadu ceu s c o m a m e sm a rap id ez e sem in d icar n e n h u m lap so d e tem p o ;
lite ralm en te: “ D e p o is os sad u ceu s, q u e d izem q u e n ã o h á re ssu rreiçã o ,
ap ro x im aram -se dele [Jesus]” . A in tro d u ç ã o desse g ru p o co n tin u a n o ritm o
rá p id o d o s ev e n to s q u e so b re v ie ram a Jesu s em Jeru salém . N a p eríc o p e
atual, os sad u ceu s fo cam seu teste em Jesu s n o a ssu n to d a ressurreição. E les
acreditavam q u e a alm a m o rre ju n to co m o co rpo , e, p o rta n to , n ão havería
n em re co m p en sas n e m p u n içõ es n o futuro. A doutrina da ressurreição, na
realidade, é apenas v ag a m e n te p re n u n ciad a n o A n tig o T e sta m e n to (Is 26.19;
E z 37; D n 12.2; SI 73.23). A v isão q u e tipifica a c o m p re en são da vida ap ó s a
m o rte n o A n tig o T estam e n to n ã o é a ressurreição, m as o Sheol, u m m u n d o
d os m o rto s caracterizad o p o r u m a existência em palidecida e sem alegria. N o
entanto, na ép o ca d e Jesus, havia u m a crença prevalente n a ressurreição, n ão só

34 E. Main, “Les Sadducéens et la Résurrection des Morts: Com paraison entre Me


12,18-27 et Le 20,27-38”, R B 103 (1996), p. 411-32, argumenta que a objeção dos
saduceus à doutrina da ressurreição dos m ortos não se devia apenas ao fato de que
não era m encionada de form a explícita na Torá. A formulação de sua pergunta a
Jesus com base em um m andam ento positivo da Torá indica que, no pensamento
deles, a crença na doutrina da ressurreição contradiz logicamente o ensinamento
da Torá.
35Josefo M«/. 13.173,297-98; 18.16-17; War 2.164-66. Sobre os saduceus em geral,
veja E. Schürer, History of theJewish People, 2.404-14.
455 M a rc o s 12.19-23

en tre os fariseus, m as en tre a m aioria dos judeus.36 “ Q u e m nega a ressurreição


d o s m o rto s n ã o tem p a rte co m o m u n d o p o r v ir” , declara a M ishná {Sank.
10.1). E ssa cren ça g eral n a ressu rreição p arece te r sid o inferida, pelo m en o s
en tre o s rabis, a p a rtir das p o u c o s alusões a ela n o A n tig o T estam en to , d a
razão e d o s p re ced e n te s de E n o q u e e E lias q ue, c o n fo rm e se acreditava, não
haviam m o rrid o . N o en tan to , os saduceus, rejeitaram a m aioria d a tradição
so b re esse assu n to , c o n fo rm e indica o te ste d e Jesu s p o r esse grupo.

19-23 O s saduceus, a fim d e tra z e r d e sc réd ito à ideia d a ressurreição


d o s m o rto s e a Jesu s q u e falou d a p ró p ria re ssu rreiçã o (8.31; 9.31; 10.34),
desen vo lv eram u m estratag em a e n g e n h o so fu n d a m e n tad o n o co n c eito do
casamento de levirato (G n 38.8; D t 25.5,6).37 E sse tip o d e casam en to era
u m a p rá tic a p o r m eio d a qual u m h o m e m era o b rig ad o a se casar c o m a viúva
sem filhos d o irm ã o a fim d e p re serv ar o n o m e e a m em ó ria d o irm ão m o rto
e g aran tir a p erm a n ê n c ia d a p ro p rie d a d e h e rd ad a d o irm ão m o rto n a família.
E ssa p rá tic a é m en cio n ad a p ela p rim eira vez em relação a O n ã (G n 38.8-10)
que, a fim d e aniquilar a lin h ag em d o irm ã o se recusa a ter u m filho co m
T am ar, esp o sa d e E r, seu irm ã o m o rto . O A n tig o T esta m e n to elogia a atitude
de d uas m ulh eres, T am a r (G n 38) e R ute (R t 3— 4) que realm en te violaram
a m o ralid ad e sexual p rescrita p ara g aran tir a p re serv aç ão d e sua genealogia
p o r in te rm é d io d o casam en to de levirato. O livro a p ó c rifo de T obias co n ta
a h istó ria de u m a m u lh er que se caso u co m sete h o m e n s e continuava sem
filhos (3.7-15) — u m a h istó ria q ue p o d e te r in sp irad o a fantástica tram a p ro -
p o sta a Jesu s p elo s saduceus.38 O c o stu m e d o ca sa m e n to de levirato n ão foi
planejad o (c o m o o fo ram , p o r exem plo, a poligam ia e o co n cu b in ato ) co m o
p ro p ó sito ex p resso d e p erm itir q ue u m h o m e m tivesse m ais d e u m a esposa,
n em c o m a in ten çã o de fechar os o lh o s p ara a p ro m iscu id ad e o u im oralidade.
O ca sam en to de levirato, antes, era u m a co stu m e social c o m p en sa tó rio pia-
n ejad o p ara p re v en ir o casam en to en tre ju d eu s e g en tio s e p ara p reserv ar a

36 Veja Schwankl, D ie Sadduzàerfrage ( M k 12 , 18-27 parr): E in e exegetischthe-


ologische S tu d ie z u r A u fe rste h u n g se rw a rtu n g , bbb 66 (Frankfurt am Main:
Athenáum , 1987), cap. 3.
3712.19 parece ser uma paráfrase ou fusão de Gênesis 38.3 e D euteronôm io 25.5,6,
em vez de um a citação direta de qualquer um desses dois textos, no TM ou na
LXX.
38 O livro de Tobias pode ter sido inspirado pela história dos saduceus, embora,
em Tobias, os sete maridos não fossem irmãos, e cada um deles foi m orto por
Asmodeus, um dem ônio perverso, antes que o casamento fosse consumado.
M a rc o s 12.24-25 456
h o n ra d a fam ília e a p ro p rie d a d e n a lin h ag em fam iliar em casos em que 0
m arid o d a m u lh e r m o rria sem deixar d escen d en tes.39
A q u estão d o s saduceus é u m artifício b rilh an te p lanejado p ara derrubar
o q ue con sid erav am u m a su p erstição da vida a p ó s a m o rte. N a m en te dos
saduceus, a inteligência sim ples e o sen so c o m u m são suficientes p ara redu-
zir a u m ab su rd o a ideia d a ressurreição. A p erg u n ta deles estru tu ra-se no
p re ssu p o sto rab ín ico e farisaico d e q u e o m u n d o p o r v ir é em essência uma
ex ten são das c o n d içõ e s terren as, in clu in d o o estad o civil de casado, em bora
em co n d içõ e s m ais gloriosas.40 A p erg u n ta d o s saduceus se fu n d a m e n ta no
p re ssu p o sto d a m o n o g a m ia co m o o ca sam en to ideal, e n ão da poligamia.
A im po ssib ilid ad e d e u m a m u lh er se casar co m sete h o m en s n o céu tem
a in ten ção , n a m e n te d o s saduceus, d e to rn a r ridículo to d o o co n ceito da
ressurreição. Se Jesu s aceitasse o p re ssu p o sto d e q u e a vida p o r v ir está em
co n tin u id ad e in in te rru p ta co m o p resen te, ele teria de arg u m en tar em term os
técnicos, talvez, d e q u e o p rim eiro m arid o tin h a d ireitos so b re a m u lh er no
céu o u c e d e r ao s saduceus.

24,25 M as Jesu s n ão faz n ad a d isso n e m segue a lógica d o s saduceus.


E le, d e m o n stra n d o a au to rid ad e so b re a qual fo ra q u e stio n ad o anteriorm ente
(1 1 .2 7 3 3 ‫)־‬, segue u m cu rso d e ação so b e ra n o e in d ep en d e n te, trata n d o da
q u estão d a ressu rreição p rim eiro d e ac o rd o co m a maneira e, d epois, com o
Jato. Jesu s, q u a n to à maneira, declara q u e os saduceus estão “ eng an ad o s, pois
n ão co n h e c e m as E scritu ra s n em o p o d e r de D eus!” A palavra g reg a para
“ en g a n a d o ”,planan (da qual a palavra “p lan eta” se origina), significa “ sair dos
trilh o s” o u “ ser levado a d esv iar” . A audácia da acusação q u e Jesu s fez aos
saduceus seria sim ilar a afirm a r q u e a Wall S treet n ão c o n h e ce n ad a sobre

39 Str-B 1.885-97. Para mais sobre o assunto, veja S. B. Frost, “T he Memorial o f the
Childless Man”, 7»/26 (1972), p. 437-50.
40 A condição textual do início do versículo 23 é muitíssimo incerta. A leitura da
N V I (“N a ressurreição, de quem ela será esposa [...]?”) reflete os testemunhos
dos melhores manuscritos ( Κ Β Ο Β Δ Ψ ι ε Ο Ο Ψ com a adição de “visto que”).
O utros testemunhos, no entanto, trazem: “N a ressurreição, quando quer que sejam
ressuscitados, de quem ela será esposa [...]” ; A K Π Θ). A leitura mais longa, apesar
do apoio do manuscrito mais frágil, fundamenta-se no fato de que (1) ele está de
acordo com o estilo de Marcos (cf. 13.19); (2) a frase quando querque sejam ressusci-
tados não é necessária e, por conseguinte, não seria acrescentada por um escriba;
e (3) sua omissão por copistas pode ser explicada com o um esforço para eliminar
a redundância. Veja Metzger, TCGNT, p. 110-11.
457 M a rc o s 12.24-25

finanças! A E sc ritu ra (a T orá) e o p o d e r (o Sinedrio) eram p recisam ente as


especialidades d o s saduceus, os dois assu n to s q u e dom inavam . Jesus, co m
au to rid a d e m agistral, afirm a que o que o s sad u ceu s afirm am c o n h e cer m e-
lh o r é o q u e d e fato m en o s co n h ecem . E les são vulneráveis em seus p o n to s
fortes, e n ã o n o s fracos. E les se desviaram n o c e rn e e c e n tro de seu sistem a
de crença, e n ã o em fatos secundários o u periféricos.
A vid a re ssu rre ta n ã o é u m a vida te rre n a p ro lo n g ad a, m as a vid a em um a
d im en são in te ira m e n te n o v a (IC o 15.40-44). A s co n d içõ es e con v en çõ es
terre n a s tê m d e re cu ar d ian te das celestiais, p o is ali “ n ão se casam n em são
d ad o s em c a sa m e n to ” . Jesus, nesse p ro n u n c ia m e n to , vai co n tra a c o rre n te da
op in ião m ajoritária en tre os judeus d e sua é p o c a q u e afirm avam que a vida
de casado caracterizava o estad o re ssu rreto .41 P ara Jesus, a tax o n o m ía das
realidades te rre n a s é insuficiente para explicar a vida p o r vir; u m a categoria
to ta lm e n te nova, “ co m o os anjos n o s céu s” , é necessária p ara co m p re en d er
co m p ro fu n d id a d e a existência ressurreta. A ideia de q u e a existência ressurreta
seria angélica em n atu reza n ão era d esc o n h ecid a n o século I {lEnoque 15.4;
2Apoc. Bar. 51.10). É b astan te in teressan te, as categorias d o versículo 25 —
existência m arital e a existência angelical — re p e te m aquelas de G ênesis 6.1,2
em q u e o s “ filhos d e D e u s” c o n d e scen d e ram em to m a r esposas h u m an as.42
C o n tu d o , n o versículo 25, a o rd e m é revertida: e n q u a n to G ên esis 6.1,2 pa-
rece significar p ara o a u to r de G ên esis q u e o s efeitos d a q u ed a se esten d em
até m e sm o ao céu, o u so das m esm as categorias p o r Jesus n o versículo 25
significa a p len a re d en çã o d a o rd e m caída, ta n to em suas m anifestações ce-
lestiais q u a n to terren as, e a p len a realização d a existência celestial glorificada.
O p o d e r d e D e u s p ara criar e re sta u rar a v id a u ltrap assa os lim ites ta n to da
lógica q u a n to d a im aginação. N ã o é possível a c o m o d a r as realidades glorio-

41 Veja Str-B 1.887-89. Q ue saibamos, apenas um a passagem da era rabínica (Midrash


para o SI 146) argumenta que o relacionamento sexual é proibido no m undo por
vir. Caso contrário, com base em Ezequiel 37, os rabis argumentam pela conti-
nuação das circunstâncias e condições terrenas no estado ressurreto, incluindo o
casamento e o relacionamento sexual.
42 Essa semelhança fica ainda mais clara em Lucas 20.35,36, em que os anjos são
chamados huioi theou (“ filhos de D eus”), com o o são em Gênesis 6.2. A citação de
Justino Mártir dessa passagem em Diálogo com Trifao 81.4 segue o texto de Lucas.
Já lEnoque 15.7 (e talvez também ThePseudo-TitusEpistle [NTApoc 2.55-56,62-63])
parece ter Gênesis 6.1,2 em mente quando D eus repreende os observadores desta
forma: “N ão fiz esposas para vocês, pois a habitação dos seres espirituais é o céu”
( 0 7 7 ‫ ׳‬1.21).
M a rc o s 12.26-27 458

sas d a vida p o r v ir à e n fad o n h a ro tin a terrestre, assim c o m o n ão é possível


co m p a ra r as b o rb o leta s às lagartas. A experiência te rre n a atual é to talm en te
insuficiente p ara p re v e r as realidades divinas: n ã o con seg u im o s im aginar a
existência celestial, c o m o ta m b é m u m b eb ê no útero n ã o co n seg u e im aginar
u m co n c e rto d e p ian o d e B eeth o v e n o u u m p ô r d o sol n o G ra n d C anyon.

26,27 E m 12.26,27, Jesu s fala so b re o fato d a ressurreição. O m é to d o de


d eb a te registrad o n esses d o is versículos reflete a p rática rabínica típica. Isso
no s traz à le m b ra n ç a q u e o re p e rtó rio re tó ric o de Jesu s incluía as técnicas
rabínicas, c o m o ta m b é m suas p arábolas m ais co n h ecid as e aforism os. Jesus,
p ara p ro v a r q u e a ressu rreição d o s m o rto s é en sinada — o u p elo m enos
p resu m id a — n a T o rá, cita Ê x o d o 3.6, q u e está « ¿ T o rá aceita pelo s saduceus.
“E u so u o D e u s d e A b raão , o D e u s de Isaq u e e o D e u s d e Ja c ó ” . O p ro p ó sito
de ele citar a d eclaração d e D e u s para M oisés n a sarça a rd en te p o d e n ão ficar
ap a re n te d e início n e m ser co n v in cen te p ara leitores n ã o fam iliarizados com
os d eb ates rabínicos. Jesus, q ue aceitava co m o axiom ático q u e os patriarcas
e os p ro fe ta s ainda estavam vivos (M t 8.11; L c 16.22-25; J o 8.56), argum enta
que as p ro m essa s d e D e u s n ã o são feitas p a ra os m o rto s, m as p ara os vivos.
Se A braão, Isaq u e e Ja c ó estão m o rto s, c o n fo rm e os saduceus acreditam ,
e n tã o a p ro m essa d e D e u s p ara eles era lim itada à d u ra ção da vida terren a
deles, o q u e to rn a as p ro m essa s divinas finitas e n ã o cum pridas. A Palavra de
D eu s, n o e n ta n to , n ã o p o d e ser am arrada; n ão é u m ep itáfio das lim itações
hum an as, m as u m a p ro m e ssa d o p o ten cial divino. D e u s n ã o se co m p ró m e-
teria c o m os m o rto s, a m e n o s q u e fo ssem ressuscitados. O arg u m e n to de
Jesus p ara a realidade d a ressu rreiçã o se fu n d a m e n ta n o p re ssu p o sto d e que
o ch a m ad o d e D e u s estabelece u m relacio n am en to co m D e u s, e u m a vez que
o re lacio n am en to co m D e u s é estabelecido, ele p o rta a p ro m essa d e D e u s e
n ão p o d e se r term in ad o , n e m pela m o rte. O rela cio n am en to é o resu ltad o da
p ro m essa e p o d e r d e D e u s q u e co n q u ista o ú ltim o inim igo, a m o rte.
E m 12.27, Jesu s co n clu i n ã o só co m u m a afirm ação d a ressurreição, m as
tam b é m c o m a c o n d e n aç ã o d a p o sição d o s saduceus: “V ocês estão m uito
en g an ad o s” . A palavra g reg a p ara “ en g a n ad o s” é m ais u m a vez planan, ou
seja, “vocês estão e rra d o s ” . Se fo r p ara a firm a r a verdade, seu o p o s to tem de
ser negado. A cren ça d o s sad u ceu s é co n trá ria à v erd ad e d e D e u s e incom -
patível c o m esta, e a ú n ica esp eran ça de co rrig ir essa cren ça (se p u d e r ser
corrigida) é expô-la, e n ã o ignorá-la. A re sp o sta d errad eira p ara o s saduceus,
n o en tan to , n ã o é a exegese n e m a au to rid a d e d e Jesu s (e eles n ã o aceitam
459 M a rc o s 12.28

n e n h u m a das duas), m as, sim , a vida d e Jesus, p o is o tú m u lo vazio com provará


seus e n sin a m e n to s p ara os saduceus (16.6). Jesu s sim p lesm en te n ão anuncia
a ressu rreiçã o — ele é a ressurreição (Jo 11.25).

O T E S T E D O S M E S T R E S D A L E I (1 2 .2 8 -3 4 )

O terceiro g ru p o d o Sinédrio que veio te s ta r Jesu s é o do s m estres da


lei. A p e rg u n ta feita so b re o m aio r m a n d a m e n to n ão co n té m a injúria que
Jesu s ex p e rim en ta n o rm a lm e n te co m os m estres d a lei; n a realidade, essa é
u m a h istó ria em M arcos em q u e os m estres d a lei se ap ro x im am de Jesus em
te rm o s am igáveis — e n a qual u m m estre d a lei é elogiado p o r ele.43 A história
su b se q u e n te so b re o filho de D avi (12.35-37), n o en tan to , e em especial a
den ú n c ia d o s m estres d a lei em 12.38-40, re su m e o m o tiv o d a controvérsia,
in d ican d o a o p o sição geral d o g ru p o d e m estres d a lei a Jesus.

28 A a b o rd ag em d o s m estres d a lei ac o n te ce lo g o dep o is d a controvérsia


co m o s saduceus, d eix an d o im plícito m ais u m a vez que, n o tem plo, Jesus
está en volv id o em desafios e debates in in te rru p to s. Jesus, pela prim eira vez
d esd e q u e ch e g o u em Jerusalém , é a b o rd a d o p o r u m indivíduo, e não u m
g ru p o . O m e stre d a lei “ chegjou] [...] ouvi[u], v[iu]” (ARA). Sua interação
p esso al c o m Jesus, incluindo a ên fase n a p eríc o p e so b re “ o u v ir” (gr. akouein·,
w . 28,29,37), testifica d a sinceridade d o m e stre d a lei. E ssa sinceridade, p o r
sua vez, ajuda a explicar seu e n c o n tro p o sitiv o c o m Jesus.
D e a c o rd o co m a N V I, o m estre d a lei, im p re ssio n ad o co m a sabedoria
d e Jesus em sua re sp o sta aos saduceus, pergunta: “D e to d o s os m andam entos,
qual é o m ais im p o rtan te ? ” C o n tu d o , essa n ã o é u m a trad u ç ão to talm en te
precisa, p o is d e a c o rd o co m o tex to g re g o a palavra “ to d o s ” (gr .pantõn, ou
m asculin o o u n eu tro , genitivo plural) n ão m o d ifica a palavra “m an d am e n to s”

43 W. G rundm ann, DasEvangelium nachMarkus, p. 335-36, caracteriza isso como uma


“Schulgesprách” (lição), e não com o um a “Streitgesprãch” (controvérsia). E vê o
relato de M arcos com o pacifista, e Mateus 22.34-40 e Lucas 10.25-28 como polê-
micos, atribuindo este a um estágio posterior da tradição após a intensificação da
oposição entre a sinagoga e a igreja. G rundm ann, contudo, exagera as diferenças
entre Marcos e os outros dois evangelistas sinóticos, pois a injúria, à parte de
peira^ein (Mt 22.35; Lc 10.25), que significa “ teste” em um sentido neutro, e não
“tentar” , não está presente em Mateus e Lucas. Tam pouco o argumento sobre os
estágios posteriores da tradição é convincente, pois Marcos também demonstra
oposição relevante entre Jesus e os mestres da lei; na realidade, esse é o único
encontro amigável entre Jesus e esse grupo em seu evangelho.
M a rc o s 12.28 460

(gr. entolê, fem inino). O sen tid o d a p erg u n ta , p o r con seguinte, n ão é qual é o
m a n d am e n to m ais im p o rta n te , m as antes qual m a n d a m e n to su p era tudo e se
aplica a to d a a h u m an id ad e — in clu in d o os g entios.44
O s m estres d a lei se p re o cu p av a m c o m a expo sição ap ro p riad a d a lei e
g an h a ram a re p u tação c o m o especialistas n a in terp re tação d esta (veja ainda
so b re o s m estres d a lei em 1.22). A tradição rabínica c o n to u 613 m anda-
m en to s n a T orá, 365 p ro ib içõ e s e 248 m an d am e n to s positivos. Q u a n to aos
m an dam en to s, os rabis diferenciavam entre o que cham avam de m andam entos
“ pesad o s” e “leves” . E sses últim os faziam m en o s exigências q u an to à vontade
o u p o sses d o indivíduo, ao p asso q u e os m an d am e n to s pesad o s o u de peso
diziam re sp eito ao s asp e cto s essenciais e inflexíveis. O s m an d am e n to s de
p eso eram co n sid erad o s ex trem am en te sérios e, q u a n d o q u eb rad o s, exigiam
as p enas m ais severas. Jesus, q u an d o fala so b re “ u m desses m an d am en to s,
ainda q u e d o s m e n o re s ” (M t 5.19), o b serv a a d istin ção en tre m an d am e n to s
p esa d o s e leves. N ã o era in co m u m p ed ir aos m estres c o m rep u tação , co m o
o m estre d a lei o faz nessa ocasião, p ara declarar o q u e achavam so b re os
m a n d a m e n to s m aiores, o u seja, para resu m ir a T o rá em p o u ca s palavras. A
M ish n á e o T alm u d e p re serv am u m a série d e re sp o stas d e rabis fam osos
p ara essas perg u n tas. O rabi Hillel, v in te an o s an tes de Jesus, resu m iu a T orá
em u m a versão negativa d a regra d e ouro: “N ã o faça ao p ró x im o o que você
n ão g o staria q u e fosse feito a você. Isso é a to talid ade da T orá, tu d o o m ais é
in terp re ta ç ã o ” . E m 135 d.C., u m século d ep o is d e Jesus, o rabi A kiba reduziu
a T o rá a L evítico 19.18: “ am e cada u m o seu p ró x im o c o m o a si m e sm o ” . U m
rabi, u m século d ep o is d e A kiba, cito u P ro v érb io s 3.6 c o m o o ce rn e d a lei:
“ reco n h eç a o S e n h o r em to d o s os seus cam inhos, e ele endireitará as suas
veredas” . M ais tard e ainda, em 260 d.C., o rabi Simlai cito u H ab acu q u e 2.4:
“ o ju sto viverá p o r su a fidelidade” .45

44 Veja C. I. K. Story, “Marcan Love Commandment: T h e greatest o f these is love’


(1 Corinthians 13:13)” , Lexington TheologicalQuarterly 3 4 /3 (1999), p. 152, que ob-
serva essa distinção gramatical sutil e argumenta, com base em 11.15-17 e 12.9,
que a pergunta tam bém inclui os gentios.
45 Veja Str-B 1.900-908. O costum e de pedir a mestres renomados para que expres-
sassem sua opinião sobre m andam entos seminais não se limitava aos rabis judeus.
As perguntas sobre o que constituía o mais virtuoso, o mais belo e o mais difícil
ou o que produzia o maior bem ou felicidade tam bém sobejavam na filosofia
helenista (veja HCNT, p. 129).
461 M a rc o s 12.29-31

2 9 ,3 0 Jesu s está p re p ara d o co m sua p ró p ria resposta: “ O u ça, ó Israel,


o S en h o r, o n o sso D e u s, o S en h o r é o ú n ico S enhor. A m e o Senhor, o seu
D eu s, de to d o o seu coração, de to d a a sua alm a, de to d o o seu en ten d im en to
e d e to d as as suas fo rças” . E ssa passagem d e D e u te ro n ô m io 6.4,5, conhecida
c o m o o Shema (heb. “ o u v ir”), era recitada d e m a n h ã e à n o ite p o r to d o judeu
pio. C o m o u m re su m o d e credo, era e é im p o rta n te para o judaísm o co m o
tam b é m o são o Pai N o s so o u o C red o d o s A p ó sto lo s para o cristianism o.
O Shema era o p a d rã o p o r m eio d o qual Josias, o m aio r rei re fo rm a d o r na
histó ria d e Israel, foi julgado (2Rs 23.25). N o versículo 30, a palavra t o d o /
toda(s) é rep etid a q u atro vezes, en fatizan d o a n ecessidade de um a resp o sta
to tal d e a m o r ao se n h o rio de D eus. E ste é o ú n ic o S enh or, n ão só de Israel,
m as ta m b é m de to d o s os indivíduos. D e u s afirm a seu d ireito so b re to d as as
facetas d a p erso n alid ad e hum ana: co ração (= em oções); alm a (= espírito);
en te n d im e n to (= inteligência); forças (= v o n tad e). C ada u m desses q u atro
m an d am e n to s é p refaciad o pela p re p o siç ão g re g a ex, co m o sen tid o de “ da
fonte de” , e n ão “ p o r m eio d e” . P ortanto, so m o s orden ados a am ar a D eus não
apenas com to d o n o sso coração, m as de to d o n o sso coração.46 T a n to a versão
heb raica q u a n to a g rega d e D e u te ro n ô m io 6.4,5 d escrevem um a resp o sta
tripla a D e u s — coração, alm a e forças. M arco s cita Jesu s acrescen tan d o um a
q u arta resp o sta, o a m o r p o r D e u s co m to d a n o ssa m e n te o u co m p reen são .47

3 1 O m e stre d a lei p erg u n ta p o r apenas u m m an d am e n to , m as Jesus,


c o m o n a re sp o sta an terio r aos fariseus e h ero d ia n o s n o tem p lo (12.17), ca­

46 Story, “Marcan Love Commandment: T h e greatest o f these is love’ (1 Corin-


thians 13:13)” , Lexington TheologicalQuarterly 3 4 /3 (1999), p. 155, escreve: “Em
Marcos 12.30, a preposição é ek (ex), ou seja, ‘fora de’, com quatro ocorrências,
indicando afonte, e não oinstrumento. Jesus, em um m om ento anterior, citou o cerne
da fonte da qual brotam todos os males que definem uma pessoa (Mc 7.21). Agora,
o coração é visto com o a fonte da qual pode brotar o divinamente inspirado amor
por D eus”.
47 A versão da LXX de Deuteronôm io 6.4,5 (de acordo com o manuscrito B [Vatica-
nus]) traduz a palavra hebraica para coração (leb) por dianoia (“m ente”), em vez de
kardia (“coração”). A presença de dianoia, “m ente” , no versículo 30 pode derivar
dessa versão variante. Se esse for o caso, isso indica que Marcos cita a Shema a partir
de uma tradição textual representada pelo texto B da LXX. Contudo, também é
possível que Jesus acrescente um quarto artigo ao Shema, como ele acrescentou
anteriorm ente um m andam ento aos Dez M andamentos (10.19). Se esse for o
caso, a m udança de uma resposta tripla para uma quadrupla a Deus é mais outro
exemplo da exousia de Jesus, sua autoridade soberana, na interpretação daTorá.
M a rc o s 12.29-31 462

m in h a u m a seg u n d a m ilh a em sua re sp o sta ao acrescen tar o m an d a m e n to de


L evítico 19.18: “ am e cad a u m o seu p ró x im o c o m o a si m e sm o ” . N o A ntigo
T estam en to , “ p ró x im o ” significava apenas os co m p an h eiro s judeus; o term o
n ão incluía o s n ã o israelitas e gentios. O s cristãos prim itivos, n o entanto,
acreditavam sem a m e n o r so m b ra de d ú vida q u e Jesu s ex pandira a ideia de
próxim o. Isso fica ev iden te em L ucas 10.25-29, em q u e essa fala serve com o
p refácio d a p aráb o la d o B o m S am aritano. P ara Jesus, o p ró x im o inclui até
m esm o os d e sp re z a d o s sam aritanos.48
“ N ã o existe m a n d a m e n to m aio r d o q ue estes” , conclui Jesus, fazendo
co m q u e o s m a n d a m e n to s d e am ar a D e u s e ao p ró x im o fo ssem transfor-
m ad o s em u m a u n id ad e. O fato de Jesu s a c resc en tar o m a n d a m e n to de
L evítico 19.18 ao Shema indica q ue são necessários esses dois m an d am en to s
p ara to rn a r efetiva a v o n ta d e d e D eus. A co m b in aç ão d o s dois m an d am en to s
to rn o u -s e u m lu g ar-co m u m n o cristianism o su b seq u en te, m as é im p o rtan te
p e rc e b e r o feito rev o lu cio n ário d a re sp o sta d e Jesus. E m b o ra o a m o r a D eus
e o a m o r p ela h u m an id ad e fossem ocasio n alm en te afirm ados separadam ente
em Israel, n ã o h á n e n h u m a evidência q ue antes d e Jesu s eles já tin h am sido
co m b in ad o s.49 P arece q u e n e n h u m rabi antes de Jesu s c o n sid ero u o a m o r a
D e u s e ao p ró x im o c o m o o ce n tro e o re su m o da lei. P ara Jesus, as exigen-
cias d o Shema n ã o p o d e m ser cu m p rid as n o ritual n e m n o sacrifício, m as no
a m o r sincero a D e u s, co m in teg rid ad e e genuinidade. O Shema ta m b é m tem
d e ser c o m p le ta d o p e lo a m o r ao próxim o. A lém disso, o a m o r ao p ró x im o é
o prin cipal m eio d e a m o r a D e u s e é receb id o c o m o a m o r a D e u s; d a m esm a
fo rm a , o a m o r a D e u s se ex p ressa n o a m o r ao p ró x im o ( l j o 4.20). A resp o sta
de Jesu s evita o p erig o d o m isticism o q u e resulta em a m o r d esinteressado
e espiritual a D e u s; c o m o ta m b é m o p erig o d o h u m an ism o , cujos ato s em

48 Levítico 19.18 é citado com frequência com o um raciocínio para a autoestima ou


am or por si mesmo, isto é, “Ame o seu próximo como a si mesmo” (grifo do autor).
E questionável, contudo, se tal interpretação era a intenção quer por Levítico quer
por Jesus. E m toda a Bíblia, não há ordem para o am or por si mesmo. A Bíblia
admite com o natural que os seres hum anos realmente amam a si mesmos, ou seja,
agem habitualmente em seu m elhor interesse. A ordem para amar o próximo
parte da preocupação que os seres hum anos naturalmente exibem por si mesmos
e ordena que eles estendam essa atitude tam bém para os outros.
49 Por exemplo, o am or de D eus é ordenado em Testamento de Issacarl.6; Testamento de
DanielS.y, e am or ao próximo em Testamento deZebulom 5.1-2; Testamento deBenjamim
3.3; Fílon, Leis especiais 2.62-63; mas os dois não aparecem juntos em nenhuma
dessas passagens.
463 M a rc o s 12.32-33

relação à h u m an id ad e sem referên cia a D e u s e sem a c o m p re en são q u e os


seres h u m a n o s são criaturas invioláveis d e D eus.
O s do is m a n d a m e n to s, ao m esm o tem p o , n ã o são m istu rad o s em um
h íb rid o tran sig en te. A o rd e m em q u e Jesu s d eclara os m an d am e n to s deixa
claro q u e o a m o r a D e u s é u m p ré-req u isito d o a m o r ao próxim o. A palavra
greg a p ara “ a m o r” n o s versículos 30,31 é agapan que, n o N o v o T estam ento,
é a fo rm a d e a m o r característico de D e u s ( l j o 4.7; I C o 13). Q u e m n ão en-
c o n tra a fo n te d e a m o r em D e u s falhará em exibir o a m o r singular de D eu s
p elo próxim o . O a m o r a D e u s é a n terio r ao a m o r ao p ró x im o e estabelece a
possibilidad e deste. P ara Jesus, o a m o r cu m p re a lei: o a m o r ¿/!?Deus libera o
a m o r a D eu s. “A m ad o s, visto q u e D e u s assim n o s am o u , n ó s tam b ém deve-
m o s a m a r u n s aos ou tro s. [...] N ó s am am o s p o rq u e ele n o s am o u prim eiro.
Se alguém afirm ar: ‘E u am o a D e u s ’, m as o d ia r seu irm ão, é m en tiro so ” ( ljo
4.11,19,20).50

3 2 ,3 3 O m e stre d a lei fica tã o satisfeito c o m essa re sp o sta q u a n to ficou


c o m a re s p o sta an te rio r aos saduceus. N as d u as circunstâncias (w . 28,32),
ele, d e a c o rd o c o m o tex to grego, kalõs, afirm a: “ M uito b e m ” . P oderiam os
e sp e ra r d o m e stre d a lei, associado c o m o S inédrio e o tem plo, u m a con-
firm ação d a su p eriorid ad e d o s sacrifícios sacerdotais em relação a to d as as
o u tra s fo rm a s d e adoração. C o n tu d o , n ã o é isso que acontece. A re sp o sta d o
m estre d a lei a Jesu s reflete u m a colagem d o s tex to s d o A n tig o T estam e n to
(D t 4.35; 6.4; L v 19.18; IS m 15.22; Is 45.21; O s 6.6). Seu c o n h e c im e n to da
E scritu ra, b a sta n te considerável, n ã o é d e s u rp re e n d e r em u m m estre da
lei. E le c o n c o rd a c o m Jesu s que “ to d o s o s sacrifícios e o fe rtas” têm d e se
su b m e te r ao re la cio n am en to c o rre to c o m D e u s e um relacio n am en to m o ral
co m o s o u tro s. A s o fertas às quais h o u v e u m a referência eram d o tip o que
p o d iam ser co n su m id as p elo fogo, e n ã o aquelas que p o d iam ser ingeridas
pelo s ad o rad o re s, o q ue significava q ue eram to ta lm e n te dedicadas a D eus.
E m o u tra s palavras, até m esm o as tarefas m ais sag radas n ão p o d e m ter
p reced ê n cia so b re o a m o r agapê— e n ã o tê m n e n h u m sentido, a m en o s que
sejam exp ressõ es desse am or.
A co n v ersa en tre Jesu s e o m estre da lei n essa p e ríc o p e é u m im p o rtan te
lem b re te , talvez até m esm o u m a co rreção , p a ra a leitu ra cristã equivocada de
Jesus e d o judaísm o. E bastante co m u m q u e os leitores cristãos p ressuponham

50 E m uito bem atestado que a igreja primitiva aprendeu o resumo da lei feito por
Jesus (Mt 25.31-46; Rm 13.8-10; G15.14;T g 2.8; 2Clem. 3.4; Did. 1.2; 2.7; Evangelho
de Tomé 25). Sobre o resumo da lei apresentado por Jesus, veja Grundm ann, Das
Evangelium nach Markus, p. 338.
M a rc o s 12.34 464

equivocadam ente que Jesus e os “ fariseus” o u os “ ju d eu s” , sem exceção, esta-


v am p reso s e m u m a o p o sição intratável em to d o s os m o m en to s, e que Jesus
rejeitava categ o ricam en te tu d o q ue fosse judaico. H á tam b ém u m pequeno
g ru p o , m as m u ito ru id o so , de estu d io so s acadêm icos q ue p ro m o v em a visão
de que Jesu s era m ais sem elh an te a u m ico n o clasta cínico itin e ran te que a
um rabí judeu; de q u e sua m en sag em de p ro te s to era u m elem en to essencial
de seu m in istério e q u e seu judaísm o era em g ra n d e p a rte acidental. E ssa
história, n o en tan to , ju n to co m o u tras,5152n o s lem b ram q u e Jesus en c o n tro u
n os elem en to s co nfessio n ais tradicionais da T o rá os câ n o n es característicos
de sua p ró p ria cren ça e m inistério. E ssa h istó ria ainda n o s lem b ra que Jesus
e seu in te rlo c u to r ju d eu — e co m certeza n ão apenas esse m estre d a lei —
co n co rd av am su b stan cialm en te co m o re su m o e p ro p ó sito da lei.32

34 O e n c o n tro se e n c erra co m u m a n o ta de ironia: o m estre d a lei veio


o sten siv am en te para julgar Jesus, m as é Jesu s q u e julga o m estre d a lei. E ste
está eq u ip ad o e au to riz ad o a julgar a lei, m as Jesu s tem u m a au to rid ad e maior.
Jesus, em ainda o u tra d em o n stra ç ã o de au to rid ad e so b eran a, declara: “Você
n ão está lo n g e d o R eino d e D e u s” . E sse é u m co m en tário su rp re en d en te por-
q ue o a ssu n to d a co n v ersa era a T orá, e n ão o R eino d e D e u s o u a vida eterna.
É difícil im aginar u m m estre d a lei o u rabi c o m u m o u san d o p ro n u n c ia r um
ju lg am en to so b re esse assunto. O m estre d a lei p o d e julgar se alguém é fiel
o u n ã o à T orá; m as Jesu s q u e afirm a a essência da T orá, tam b ém a suplanta
— c o m o ta m b é m su plan ta to d a co n fissão e fo rm u laç ão d e credo. A p esso a
n ão se aproxim a d o R eino de D e u s pela teologia ap rop riada, m as p o r se apro-
xim ar d e Jesus. E s te exibe su a au to rid ad e m essiânica e filial q u a n d o declara
q u em está à p o rta d o R eino d e D e u s, p re sen te em si m esm o , e n ão na Torá.

A Q U E S T Ã O D O D I A ( 1 2 . 3 5 3 7 ‫)־‬

A h istó ria p re c e d e n te a c a b o u co m a seg uinte o b serv açã o : “ D a í p o r


d ian te n in g u ém m ais ousava lhe [a Jesus] fazer p erg u n ta s” (12.34). A s pala-
vras n o versículo 34 (p a rtic u larm en te em grego) são fo rtes e inequívocas,

51Jesus ordena que o leproso curado se apresente ao sacerdote e observe os rituais


judaicos de purificação, 1.44; Jesus frequenta e ensina nas sinagogas, 1.22; ele
reinterpreta a Torá, mas não a abole, 2.27,28; 7.1-23; 10.2-12; seleciona doze
discípulos em correspondência às doze tribos de Israel, 3.13-19; celebra a Páscoa
em Jerusalém, 14.1; e localiza seu ensinamento essencial sobre D eus (12.28-34) e
si mesmo (12.35-37) nas categorias da Escritura judaica.
52 M. Hooker, The GospelAccording to Saint Mark, p. 289.
465 M a rc o s 12.35

significando q u e Jesu s prevaleceu so b re os desafios d o S inédrio (11.27-33)


e seus vários c o n stitu in te s — os fariseus (1 2 .1 3 1 7 ‫)־‬, o s saduceus (12.18-27)
e o s m estres da lei (12.28-34). Jesu s levou a m e lh o r e o d eb ate se encerrou.
Jesus, n o en tan to , n ão a b a n d o n a o ca m p o de batalha, m as o leva co m ele. O
sen tid o de sua p esso a e d o rein o q ue p ro c la m a n ão p o d e ser e n ten d id o p o r
m eio de m eras re sp o sta s às indagações h u m an as — em especial q u an d o a
indagação é antagônica. A s p erg u n tas e categorias d o Sinédrio, a autoridade
su p re m a n o judaísm o, n ã o são suficientes p ara revelar e ab ran g er Jesus. Se
as p erg u n tas e categorias deles n ão são suficientes, n e n h u m a ag en d a h u m an a
é su ficien te p ara revelar o u o b scu recer, p ara p ro v a r o u refutar, o sen tid o de
Jesus. E le declarou an terio rm e n te que o v in h o n o v o n ão p o d e ser d erram ad o
em vasilha de c o u ro velha (2.22). A g o ra é a vez de Jesu s o rg an izar a agenda,
de d e te rm in a r ta n to o v in h o q u a n to a vasilha de couro. O s en c o n tro s acim a,
de a c o rd o co m a cro n o lo g ia de M arcos, o c o rrera m em u m ú n ico dia. “A p ó s
u m dia de q u e stio n am en to s vem a q u estão d o dia” , afirm a R alph M artin.5354

35 “ C o m o o s m estres da lei dizem q u e o C risto é filho de D avi?” D uas


coisas são relevantes so b re essa perg u n ta. A prim eira, ela é feita n o tem p lo (o
tex to g re g o afirm a apenas “ te m p lo ” , e n ã o “ p átio s d o te m p lo ”). O tem p lo é
o ce n tro religioso d e Israel e o assen to d a au to rid a d e d o Sinédrio. A qui, em
q u e a regra é d eterm in a d a e executada, Jesus escolhe testar as co m p reen sõ es
convencionais d o m essiado p o r categorias m ais am plas d e “ S enhor” e “ Filho” .
A seg u n d a, a q u estão é ap resen tad a para os escribas (N V I, “ m estres d a lei”),
a elite in telectu al e religiosa d o judaísm o. O cenário e o assunto, p o rta n to ,
re m em o ram a parábola d a v in h a (12.1-12), em qu e Jesus tam b ém fala d o Filho
d e D e u s em relação às au to rid ad es d e Israel.’4 E ssa q u estão so b re a identidade
q u e Jesu s levantou em p artic u la r c o m os discípulos n a estrada p ara C esareia
de F ilipe (8.27) é ag o ra levantada p u b licam en te n o tem p lo de Jerusalém .
Jesu s p e rg u n ta aos m estres da lei so b re a c o m p re en são deles d o M essias
(sobre M essias/C risto , veja em 1.1; 8.29). E le faz isso citan d o o salm o 110 e,
desse m o d o , convida a audiência d o tem p lo a reconsiderar se “Filho de Davi”
(veja em 10.47) é conceitualm ente ad equado para explicar o M essias (veja tam -
b é m so b re o te rm o em 10.47). E m p e río d o tão re m o to q u an to 2Sam uel 7.12,
a esp eran ça d e u m lib e rta d o r davídico surgiu em Israel (veja tam bém Is 9;

53 Where theAction Is (Glendale: Regal Books, 1977), p. 106.


54Tanto Mateus 22.41-46 e Lucas 20.41-44 omitem a referência ao templo e aos
mestres da lei. A menção de Marcos a ambos os grupos acentua a autoridade de
Jesus vis-à-vis ao judaísmo.
M a rc o s 12.36-37 466
11; J r 30.9; E z 34.23). A co rrelação m ais antiga de “ filho d e D a v i” co m o
“M essias” , n o en tan to , só o c o rre n a literatura judaica em Salmos de Salomão
17.21, p ro d u z id o cerca d e u m século antes d e Jesus: “ Ó S enhor, levan to u o
rei deles, o filho d e D av i, q u e ele p o ssa rein ar so b re Israel, seu serv o ” . A ideia
d o M essias davídico, era to ta lm e n te atual n a é p o c a d e Jesus, c o n fo rm e fica
evid en ciad o pelas “D e z o ito o ra çõ es d e ação d e g raças” que fo rm av am um a
p a rte p a d rã o d o linguajar religioso da sinagoga: “T e n h a m isericórdia, S en h o r
n o sso D eu s, s o b re o re in o d a casa d e D avi, o M essias d e sua justiça” (oração
14). O fato d e q u e o F ilh o d e D av i e o M essias sejam co rrelacio n ad o s no
século I é m u itíssim o a testa d o p elo fato d e q ue to d o e sc rito r cristão prim i-
tivo que m e n cio n a o salm o 110 o in te rp re ta m essianicam ente.55 A p erg u n ta
d e Jesu s n o versícu lo 36 re p o u sa d e fato nesse p re ssu p o sto . E m b o ra Jesus
e a igreja prim itiva n ã o aceitem as c o n o ta ç õ e s m ilitares-políticas em geral
associadas c o m o M essias, o cristianism o p rim itiv o ce rta m en te afirm o u que
o M essias viria d a “ lin h ag em ” (Lc 1.69) o u “ tro n o ” (Lc 1.32) o u ainda seria
“d esc en d e n te ” (R m 1.3; 2T m 2.8) de D avi.

36,37 A p e rg u n ta d e Jesu s p ara o m estre d a lei, c o m o nas perg u n tas


an terio res so b re a re ssu rreiçã o (12.26,27) e o g ra n d e m a n d a m e n to (12.28-
34), eco a m ais u m a vez as características exegéticas rabínicas. E le prefacia a
citação, dizen d o : “ O p ró p rio D av i, falando p elo E sp írito Santo, disse” (veja
2Sm 23.2). E ssa é u m a alusão d ireta à in sp iração divina d a citação seguinte.56
O efeito d o p refácio é p ara co n v en cer seus ouvintes de que o tex to -p ro v a — a
con clu são q u e tira d isso — te m o p e so da revelação divina.
A citação n o v ersículo 36 é d o salm o 110, o tex to d o A n tig o T estam e n to
m ais citad o n o N o v o T e sta m e n to .57 O p o n to ap resen tad o , q u e d e p e n d e de

55 N ão é de surpreender que a literatura rabínica, nos séculos após Jesus, evitou


correlacionar o “ filho de Davi” com o “Messias”. O fato de que o salmo 110 foi
interpretado messianicamente no século I d.C. e depois não messianicamente
por quase dois séculos (em geral com referência à Abraão, e não a Davi) e só
mais tarde mais uma vez messianicamente deve ser explicado pelo fato de que os
rabis judaicos, em sua luta com o cristianismo emergente, negavam as associações
messiânicas do “Filho de Davi” na esperança de enfraquecer os textos-prova de
Jesus com o o Cristo. Só depois de 250 d.C., quando a separação entre a sinagoga
e a igreja ficou irreconciliável, foi que os rabis judeus passaram a entreter mais
uma vez as interpretações messiânicas do salmo 110. Veja Str-B 4.452-58.
56 Str-B 1.909.
57 O salmo 110 é citado ou aludido 39 vezes no N ovo Testam ento e outras sete ve-
zes em autores do cristianismo primitivo. Veja D. M. Hay, Glory at the Right Hand:
467 M a rc o s 12.36-37

u m a gu inad a nas palavras, p o d e n ã o ficar claro p ara n ó s sem um a explicação


adicional. O p o n to crucial é a prim eira linha: “ O S en h o r disse ao m eu S enhor” .
O salm o 110 era o riginalm ente u m h in o d e co ro açã o cantado, en to ad o o u
recitad o n a p o sse d o s reis de Ju d á e Israel. A lin ha de a b e rtu ra em hebraico
traz: “ O S e n h o r ( Yahmh) declarou a m eu se n h o r (adonai!)” . O p rim eiro S enhor
refere-se a D e u s; e o segundo, ao rei; o u seja, na coroação, o rei d e Israel
era n o m e a d o c o m o o v ice-ad m in istrad o r d e D e u s, sen tad o sim bolicam ente
à m ã o direita d e D eus. A m ão direita significava h o n ra e pro x im id ad e de
D e u s, c o m o ta m b ém legitim idade p ara g o v e rn a r co m d o m ín io e justiça. O
salm o, p o r co n seg u in te, referia-se o rig in alm en te a D e u s e ao rei de Israel. O
salm o 110, c o m a d estru ição da m o n arq u ia em 586 a .C , receb eu u m a nova
in te rp re ta çã o , c o m o s d ireito s d o rei s e n d o tra n sferid o s p ara o M essias,
cujo re in o n ã o falharia c o m o ac o n te ceu c o m a m o n arq u ia davídica. F oi essa
in terp re taç ã o su b seq u en te , refletida n a citação d o salm o 110.1 p o r Jesu s e
a p e rg u n ta n o versículo 36, em q ue o p rim eiro S en h o r refere-se a D eu s, e o
segundo, ao M essias. U m a com paração das duas interpretações d o salm o p o d e
g erar suspeitas o u ceticism o em n ó s h o je de q u e a in terp retação assum ida p o r
Jesu s é m en o s válida q u e seu sentido original, o u até m esm o falsa. C ertam ente
n ã o p a re ce q u e foi isso q ue Jesu s achou. E m ais provável q u e em sua época
o sen tid o v erd ad eiro e d errad eiro d o salm o 110 fosse c o m p re en d id o co m o
u m a re ferên cia a D e u s e ao M essias, d e q u e m a m o n arq u ia israelita terren a
fo ra u m a so m b ra o u preparação. A ssim , p a ra re to rn a r ao sen tid o d o salm o
n a p e rg u n ta d e Jesus, se D avi — que, c o n fo rm e se acreditava, era o au to r
d o salm o — disse: “ O S e n h o r [= D eus] disse ao m eu S en h o r [= M essias]:
S en ta-te à m in h a direita até q u e eu p o n h a o s teus inim igos debaixo d o s teus
p é s” ,58 e n tão o M essias é o b v iam en te s u p e rio r a D av i, e n ão apenas u m des-
cen d en te, c o n fo rm e su sten tad o p o p u la rm e n te n o judaísm o.

Psalm 110 in Early Christianity (N ashville/N ew York: A bingdon Press, 1973), p.


15,45-47.
58 A citação de Salmos 110.1 por Marcos segue a LXX verbatim, literalmente (que,
por sua vez traduz com precisão o Texto Massorético), com exceção de hypokatò
(“debaixo” ; com o em B D W Ψ ) em oposição a bypopodion (“estrado”; como em
‫ א‬A K L X Δ Θ Π). Os argumentos a favor dessa última leitura têm (1) apoio
manuscrito mais forte; e (2) o fato de que a citação do contrário segue a LXX ver-
batim. Os argumentos em favor da primeira leitura são (1) que seria mais provável
um escriba substituir uma palavra estranha em um a citação (hypokato) pela palavra
original na citação ( bypopodion); e (2) na repetição da citação de memória parece
que o contexto exige o acréscimo de “debaixo” . O s argumentos favorecendo
“debaixo” são mais vigorosos que aqueles favorecendo “estrado” e podem sugerir
que Marcos (e M t 22.44) preservou uma versão oral da citação.
M a rc o s 12.36-37 468

Jesus, em seu a rg u m e n to an te rio r co m os saduceus (12.18-27), afirm ou


que a ressu rreição n ã o é apenas u m a ex ten são d a existência terren a; aqui, na
p erg u n ta so b re o filho d e D av i, ele arg u m en ta q u e o M essias n ão é apenas
um a extensão d e seu p re c u rso r davídico. O M essias seria de fato reconhe-
cido c o m o d esc en d en te d e D av i, m as superaria a lin hag em d e D avi. “ Filho
de D av i” p o d e afirm ar algum as verdades so b re o M essias, m as n ão abrange
aspecto s essenciais d e sua id en tid ad e.59 A citação d o salm o 110 é u sada aqui,
co m o ta m b é m fo i u sad a p o s te rio rm e n te em to d o s os escritos cristãos, der-
rad eiram en te n ão c o m o u m a descrição d o p ro p ó s ito e o b ra de Jesus, m as
co m o u m a descrição d e su a posição tran sc en d en te, se n tan d o à direita de D eus,
lugar h o n ra d o e au to ritativ o.60 Isso fica assinalado n a p e rg u n ta final de Jesus:
“ C o m o p o d e , en tão , ser ele [o M essias] seu [de D avi] filho?” E ssa é a m esm a
p erg u n ta q u e M arco s faz a seus leitores. A re sp o sta , claro, é que o M essias
n ão é apenas o filho d e D avi; ele é o F ilh o d e D e u s.61

59 As interpretações dessa passagem caem presas com frequência de uma falácia


de argumentos, ou seja, que refutar um ponto em um argumento falsifica todo
o argumento. T anto A. Schlatter (Die Evangelien nach Markus und Lukas, p. 128)
quanto T. W Manson (The TeachingofJesus [Cambridge: Cambridge University Press,
1963], ρ. 266-67) afirmam que Jesus, por ter questionado a adequação da linha-
gem davídica para explicar o conceito do Messias, negou totalmente a linhagem
davídica. Isso não só não foi comprovado, mas tam bém cria uma falsa oposição
entre Jesus e Israel. Jesus levanta a questão do “ filho de Davi” e do “Messias”
para argumentar que um ponto de origem (de Davi) não explica completamente o
conceito do Messias, e não para propor um contraste. Jesus, enquanto afirmando
que o Messias vem de Davi, sustenta ainda que o Messias suplanta Davi (também
Rm 1.3; 2Tm 2.8).
611Hay, Glory at the Right Hand: Psalm 110 in Early Christianity, p. 155.
61 Veja Kingsbury, The Christology of Mark’s Gospel, p. 108-14; e Marcus, The Way of
the Lorá ChristologicalExegesis of the Old Testament in the Gospel of Mark, p. 139-45.
Marcus vê nos versículos 35-37 uma “imagem bastante grandiosa da cristologia
marcana; Jesus, com o resultado de sua exaltação à direita de Deus, alcança apa-
rentem ente uma posição próxima de D eus” . A filiação divina de Jesus versus sua
filiação davídica é manifestada de form a suprema na Epístola de Barnabé 12.10:
“Mais uma vez, eis que Jesus, manifestado em prefiguração carnal, não filho de
hom em , mas Filho de Deus. Porque diriam que o Cristo é filho de Davi, o próprio
Davi, tem endo e prevendo o erro dos pecadores, profedza: ‘Disse o Senhor ao
meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como
estrado para teus pés’ ” .
469 M a rc o s 12.38-41

A S D U A S M O E D IN H A S D A V I Ú V A (12 .3 8 -4 4 )

M arcos, n o e p isó d io final d o m in istério de e n sin o pú b lico d e Jesus,


ap re se n ta em u m c o n tra ste p erspicaz a p re te n sã o religiosa dos m estres da lei
(w . 38-44) e a fé h u m ild e de u m a viúva (w . 41-44). A o fe rta da viúva, apesar
d e su a insignificância visível, é, p ara M arcos, a re sp o sta m ais ajustada para
o su b terfú g io d o Sinédrio, p o is ela en treg a to d a sua vida (v. 44), em vez de
b u sc a r a vida d e Jesu s (12.12).

38-41 Jesu s está m ais u m a vez en sin an d o n o tem plo. E le o b serv a dois
tip o s d e pessoas: u m g ru p o é o dos m estres d a lei, im p erio so s e p o m p o so s;
o o u tro é “ u m a p o b re viúva” , p ara trad u z ir literalm en te o g re g o de 12.44.
M arco s registra ap en as u m frag m en to d a o p o siç ã o d e Jesu s (e da igreja
prim itiva) aos m estres d a lei (veja trata m e n to s m ais co m p leto s em M t 23;
A t 7.51-53). A b re v e exp o sição d e M arcos, n o en tan to , revela a p ro p e n sã o
d os m estres d a lei p ara a p re te n sã o e até m esm o a cobiça. O s m estres da lei
(veja em 1.22) exigiam au to rid ad e sem rivalidade na Palestina d o século I.
A s “ ro u p a s especiais” o u “vestes co m p rid a s” (ARC) deles eram xales com -
p rid o s d e o ração co m franjas nas q u atro extrem idades, em co n tra ste co m
as vestes coloridas e co m u n s usadas p elo povo. E sses m an to s sim ilares a
u m c o b e rto r, feitos de lã o u linho, co n h e cid o s c o m o tallits, caracterizavam
o s rabis e estu d io so s c o m o h o m e n s de riqueza e em inência. “ O c u p a r os
lugares m ais im p o rta n te s nas sinagogas” refere-se aos b an co s ao lon g o das
paredes d a sinagoga e, em especial, o estra d o n a p a rte da fren te d a sinagoga
q u e ficava defronte d a co n g reg ação sen tad a n o p iso o u n o m eio d a sinagoga.
E sses “p rim eiro s a ssen to s” , c o n fo rm e d en o m in a d o s n a língua grega, eram
reserv ad o s p ara os m estres o u pessoas em in en tes, se n d o o m e lh o r lugar para
se dirigir à congregação. Q u a n d o u m m estre d a lei cam inhava pela ru a ou
passava p elo m ercad o , esperava-se q u e to d o s (com exceção d o s trabalhado-
res) se levantassem p ara ele. Tal p o sição e privilégio alim entavam o desejo
de im p ressio n ar, “ d e re ceb e r saudações n a praça e de o c u p a r [...] os lugares
d e h o n ra n o s b a n q u e te s” .
D e q u e m an eira, p o rta n to , os m estres d a lei “ d ev o ram as casas das
viúvas” ?62Jo se fo (Ant. 18.81 -84) c o n ta a história d e u m canalha judeu exilado

62 Os manuscritos D e W acrescentam “viúvas eó rfã o mas a adição de órfãos parece


ser uma expansão de um escriba na qual se reflete a preocupação pelas viúvas e
órfãos tanto em Israel (e.g., Êx 22.22; D t 14.29; Is 10.2) quanto no cristianismo
primitivo (Tg 1.27). Se as palavras constassem do original, não havería razão para
M a rc o s 12.38-41 470

em R om a q u e exibia a fo rm a d e agir d e u m m estre da lei (“ ele desem p en h av a


a fun ção d e in té rp re te d a lei m o saica e sua sab ed o ria”) e teve sucesso em per-
suadir u m a m u lh er d e alto nível, Fulvia, a d o a r p resen tes v u ltu o so s ao tem plo
de Jerusalém . N o en tan to , esse legado foi a p ro p riad o d e fo rm a indevida, e
R om a — d o im p e ra d o r T ib é rio às plebes nas ru as — ficou escandalizada.
E sses in ciden tes p o d e m esta r p o r trás d a acusação d e “ d ev o ram as casas das
viúvas” . O s p ro fe ta s lu tara m c o n tra “ fazefr] das viúvas sua p re sa e ro u b a [r]
do s ó rfã o s” (Is 10.2; ta m b é m A m 2; M q 3). A referên cia a “devorajr] as casas
das viúvas” ap resen ta aos leitores ro m an o s de M arcos, p ara q u em o escândalo
envo lv en d o Fulvia e ra u m a m em ó ria recen te, u m a e stru tu ra especial d e refe-
rência p ara a co b iça d o s m estres da lei. P o r exem plo, estes, d e fo rm a distin ta
d o s saduceus, n ã o eram via de regra ricos. D e p e n d ia m e m g ra n d e p a rte das
dádivas d o s a d o rad o re s e b en feito res p ara sua sobrevivência. N a q u ela época,
c o m o agora, algum as p esso as exploravam a estim a q u e alguns indivíduos
sen tiam p o r elas e abusavam d a g en ero sid ad e d e m o n stra d a p o r eles.
O ju lg am en to d e Jesu s so b re aqueles q u e p raticam a religião c o m o p ro -
p ó sito d e a u to p ro m o ç ã o é d u ro e severo: eles “ re ceb e rão co n d e n açã o m ais
severa” . Jesu s acab ara de d efin ir a fo n te d e v id a da religião g en u ín a co m o
amor a D e u s e ao p ró x im o (12.29-31). A to talid ad e da lei q u e Jesu s resum iu
em L evítico 19.18 é u m m an d am e n to p ara ajudar os outros. A lgum as pessoas,
n o en tan to , causam d an o s aos o u tro s em vez d e ajudá-los. O s pio res deles
u sam a religião ta n to c o m o u m m eio q u a n to u m a justificação p ara o d an o
q u e causam n o s o u tro s. O co m ércio n a pied ad e co m p ro p ó sito s pessoais e
p o r cobiça re ceb e u m a re p ree n sã o ainda m ais severa p o r p a rte de Jesu s que
a rep reen sã o feita à h ip ocrisia em 7.1-23.63 O o rg u lh o religioso e a injúria aos

serem omitidas. G. Schwarz, “D ie Hãuser der Witwen verzehren”? (Markus 12,40/


Lk 20,47)” , B N 88 (1997), p. 45-46, sugere que “devoram as casas das viúvas”
é uma tradução equivocada de um dito aramaico original afirmando que era um
eufemismo para “dorm ir com viúvas” — ou seja, os mestres da lei estão sendo
condenados pela imoralidade sexual, e não pela ganância. A evidência de Schwarz
é sugestiva, e não conclusiva, pois (1) perm anece a dúvida sobre o aramaico re-
construído; e (2) m ostrar que as palavras podem carregar um sentido eufemístico
não significa que esse é sem pre o caso; e ainda (3) é duvidoso que Marcos, nativo
de Jerusalém (At 12.12), interpretaria de form a equivocada esse dito.
63 E possível recordar a exposição de Bunyan dessa religiosidade em O peregrino.
O sr. Interesse Próprio, um cristão fiel só nos bons m om entos, pergunta se um
ministro não deveria usar sua posição para “alcançar regalias nesta vida” . O sr.
Amor-Ao-Dinheiro concorda prontam ente que não só é permissível, mas também
uma virtudepara usar a religião para amealhar todos os benefícios possíveis. Cristão
471 M a rc o s 12.42-44

o u tro s em n o m e d a religião serão avaliados, p ara citar literalm ente o grego,


co m “ ju lg am en to ab u n d a n te ” .

4 2 -4 4 A cen a ag o ra m u d a p a ra arca d o te so u ro d o tem plo, o n d e Jesus


o b se rv a a m ultidão.64 A m u ltid ão d e se m p e n h a u m p ap el lev em en te m ais p o -
sitivo em Jeru sa lém d o q ue o fez n a G alileia, o n d e im pedia co m frequência as
pesso as d e se ap ro x im arem d e Jesus. E m Jeru sa lém , a m u ltid ão deleitava-se
co m o e n sin am e n to d e Jesu s (11.18; 12.37), e a sim patia d o p o v o p o r Jesus
fo rç o u o Sinédrio a m o d e ra r sua ex p ressão d e an ta g o n ism o (11.32; 12.12).
N o te m p lo “ a m u ltid ão [estava] c o lo ca n d o o d in h eiro nas caixas de ofertas.
M uito s ricos lançavam ali g ran d es q u an tias” .
A lém d a ad o ração , u m a das m ais im p o rta n te s fu n çõ es d o t e m p lo em
Jeru salém era c o m o u m d e p o sitó rio e adm inistração d e u m g ra n d e v olum e de
riqueza. N e sse asp ecto , o tem p lo ju d eu n ã o era d iferen te d e o u tro s tem p lo s
n o m u n d o d a A ntiguidade. A trib o de Levi, de fo rm a distinta das o u tras tribos
d e Israel, n ã o p o ssu ía terras. O s levitas, em vez de terras, eram responsáveis
pela su p erv isão d o tem p lo q u e acum ulava g ra n d es q u antidades d e riqueza
n a fo rm a d e im p o sto s, taxas e d o aç õ es d e o b jeto s valiosos e din h eiro (2Rs
12.4). O s utensílios u sad o s p a ra a ad o ração sacrificial, c o n fo rm e exigência da
T orá, eram feitos d e o u ro o u prata. A lém disso, havia esto q u e d e co rtin as e
v estim en tas sacerdotais d e valores inestim áveis e d e p ó sito de farinha, azeite,
g rão s, v in h o , in cen so e o u tro s p ro d u to s valiosíssim os. O tem p lo p o d ia fun-
cionar, e d e fato fu ncionava, c o m o u m re p o sitó rio d a riqueza d e indivíduos
q u e d epo sitav am o d in h eiro ali co m a cren ça de que u m lu g ar sagrado era um
lug ar seguro. C o n sid e ran d o -se os recu rso s financeiros e riquezas d o tem plo,
n ã o é d e su rp re e n d e r q u e a au to rid a d e resp o n sável p o r sua adm inistração,
oga^ophylax, era, d e a c o rd o c o m Jo sefo , o seg u n d o em im p o rtân cia, abaixo
ap en as d o su m o sacerdo te.65

condena essa piedade fingida: “ [...] o hom em que abraça a religião pelo mundo
dispensa a religião pelo m undo” (John Bunyan, O peregrino [São Paulo: Editora
M undo Cristão, 2006], p. 137-154).
64 Há dois m anuscritos (W Θ), em m eio à abundância de pequenas variações tex-
tuais relacionadas a Jesus sentado em frente das caixas de ofertas do templo,
apresentam -no “depé em frente das caixas de ofertas do templo”, evidentemente
para enfatizar a reverência de sua posição, de acordo com o costume judeu de
ficar de pé para orar. A evidência textual para sentado é muito superior.
65 Sobre a arca do tesouro do templo, veja Schürer, History of theJewish People, 2.219-
87.
M a rc o s 12.42-44 472

A “ arca d o te s o u ro ” (ARC) (ou “gazofilácio” [ARA]) d e 12.41 ficava


localizada n o P átio das M ulheres, a prim eira área cercada d o santuário o n d e
as m ulheres e crianças judias tin h am p erm issão p ara a d o rar (Josefo, Ant.
19.294). A M ish n á (m. Sheq. 6.5) relata q u e havia treze arcas Shofarn o tem plo,
cada u m a delas dedicada a u m a o fe rta especial.66 E sses receptáculos parecidos
co m u m a tro m b e ta , c o n fo rm e sugerido p o r seu n o m e , c o m o fo rm a to de
u m shofar o u chifre d e carn eiro , p o sicio n ad o s co m a ex trem idade afunilada
p ara cim a a fim d e p re v en ir o ro u b o . E m u m desses recep tácu lo s (talvez
u m daqueles d esig n ado s p ara as do açõ es d e livre e e sp o n tân e a v o n tad e), a
“viúva p o b re ” d e p o sita “ duas p eq u en in as m o e d a s” (v. 42), a m e n o r m o ed a
em circulação.67 A N V I evita o fato d e q u e M arcos c o n v e rte a so m a no
equivalente d e u m a m o e d a ro m an a, u m quadram, p ara o b enefício de seus
leitores ro m an o s. Jesu s p o d e ria te r to m a d o co n h e c im e n to d a quan tia ofer-
tada pela viúva d e diversas m aneiras. N o s casos em que a co n trib u ição era
feita p a ra o serv iço sacerdo tal, o sacerd o te ali p re sen te exam inava a m o ed a
p ara se certificar d e su a genuinidade, p erg u n tav a pelo p ro p ó sito da d o ação
e certificava-se d e q u e a co n trib u içã o c o rre sp o n d ia ao sacrifício prescrito.
O sacerd o te, a seguir, direcionava o ad o ra d o r p ara d e p o sitar a quan tia no
recep tácu lo ap ro p riad o . T u d o isso era feito em v oz alta e seria audível para
os o bserv ad o res. Se, n o en tan to , a do ação fosse apenas u m a sim ples o ferta
de livre e e sp o n tâ n e a v o n ta d e , talvez a aparência da m u lh er traída p o r sua
p o b re z a o u , m ais p ro v av elm en te, o so m d a m o e d a n a arca d o teso u ro fazia
so ar o ta m a n h o d e sua dádiva.68

66 Taxas pagas com sido novo, taxas pagas com siclo antigo, ofertas de aves, aves
jovens para as ofertas queimadas, madeira, incenso, ouro para o propiciatorio e
as outras seis eram para ofertas de livre e espontânea vontade (m. Sheq. 6.5). Sobre
o propósito particular de cada oferta, veja Str-B 2.38-40.
67 Um denário correspondia ao salário padrão p o r um dia de trabalho (Mt 20.8-10);
um lépton correspondia a 1 /6 4 avos de um denário.
68 Para uma discussão sobre as ofertas do templo, veja Str-B 2.37-46. Alguns dos
comentaristas sugerem que a oferta da viúva era originalmente uma parábola
de Jesus, seguindo Lev. Rah. 3.5: “Uma mulher trouxe certa vez um punhado de
farinha para uma oferta. O sacerdote rejeitou a oferta e disse: O lh em o que essa
mulher traz! C om o tal oferta pode se qualificar com o um sacrifício ou prover ao
sacerdote o suficiente para viver?’ Então, o sacerdote foi alertado em um sonho:
‘N ão a despreze, pois ela é com o um a pessoa que sacrificou a vida toda’ ” (citado
em Str-B 2.46). N ão obstante a similaridade, não há outra evidência de que a oferta
da viúva foi originalmente uma parábola.
473 M a rc o s 12.42-44

A descrição de M arco s dessa cena ac en tu a a p o b re z a e insignificância da


viúva e sua o ferta. O s m estres d a lei são p o m p o s o s e atraentes, e as m ultidões
são ricas e extravagantes; m as, p o r c o n tra ste , essa “ viúva p o b re ” d o a duas
das m en o re s m o ed as em circulação.69 E m te rm o s p u ra m e n te financeiros, o
v alo r d a o fe rta d a viúva é desprezível — e n ã o é d ig n o d e ser co m p arad o às
so m as do ad as pelo s d o ad o res ricos. C o n tu d o , na taxa de câm b io divina, tu d o
p arece m u ito d iferente. A quilo q u e n ã o fez d iferença p ara a contabilidade d o
te m p lo foi im o rtalizad o n o L ivro d a V ida. Jesu s p refacia seu p ro n u n ciam en -
to so b re a d o aç ão da viúva co m au to rid ad e solene: E le “ cham fou] a si” (gr.
proskaleesthai) os seus discípulos, dizendo: “A firm o q u e [gr. Amén lego hymin, ν.
43] esta viúva p o b re co lo co u n a caixa d e o fe rtas m ais d o que to d o s os outros.
T o d o s d eram d o q ue lhes sobrava; m as ela, d a sua p o b re za, d eu tu d o o que
p o ssu ía p ara viver” .70 C o m o a palavra “ m ais” é p o d e ro sa m e n te irónica n a
descrição de M arcos. T u d o so b re essa m u lh er foi d escrito em term o s de menos,
p artic u la rm e n te em co m p aração co m os m estres da lei e da m u ltid ão rica. E ,
todavia, o c o n tra ste en tre a piedade e fé gen u ínas d a viúva e a p re te n são da
riq u eza está além de qu alquer com paração.
Para Jesus, o valor d e um a doação n ão é a quantia doada, m as o custo desta
ao doador. E sse p o n to será repetido na história da m ulher em 1 4 .3 9 ‫ ־‬que doa
u m presen te extravagante de perfum e: o valor de sua dádiva é anos-luz m aior
q u e as duas p eq u en in as m o ed as da viúva p o b re aqui; n o en tan to , de fo rm a
notável, cada u m a dessas m ulheres é ig u alm ente elogiada p o r Jesus p o r fa-
zerem o q ue p o diam . A g en ero sid ad e e sacrifício delas, se n ão as respectivas
quantias, são os m esm o s.71 N o tem plo, o u tro s d o am o que é excedente, m as
a viúva p o b re n ão d o o u n ad a q ue lhe fosse excedente. O u tro s d o am aquilo
q ue é excedente, m as ela d o o u de sua n ecessidade, “ d eu tu d o o que possuía
p ara viver” .
A h istó ria da viúva de q u em n ão co n h e c e m o s o n o m e conclui o rela-
to de M arcos so b re o m inistério p ú b lico de Jesus. O sacrifício de “ tu d o o
q u e p o ssu ía” é a p e d ra angular n o arco d a fé de M arcos. O cham ado inicial
d e Jesu s p ara os p escad o res ao lado d o m ar para deixarem tu d o e segui-lo

69 Sobre o contraste entre os mestres da lei e a viúva, veja G. Smith, “A Closer Look
at the W idow’s Offering: Mark 12:41 -44”, JETS 40 (1997), p. 30-31.
70 Com pare com a fala do rabi Jonathan: “Aquele que cumpre a lei na pobreza a
cumprirá por fim na riqueza; e aquele que negligencia a lei na riqueza a negligen-
ciará por fim na pobreza” (m. Avot 4.9).
71 Veja Hooker, The GospelAccording to Saint Mark, p. 296.
M a rc o s 12.42-44 474

(“ S igam -m e” ; 1.17) é p e rfeitam en te c u m p rid o n a d o ação d e duas pequeni-


nas m oedas, q u e sim boliza u m co ração n ã o dividido. O ato ab n eg ad o n ão é
ap resen tad o b asicam en te p o r seu v alor m o ral, e x p o n d o o ab ism o e n tre sua
h u m ilde pied ad e e a p re te n sã o d o s m estres d a lei, o u p ara d esm ascarar os
testes e arm adilhas d o Sinédrio, em b o ra faça isso tu d o .72 A ntes, c o n fo rm e o
versículo 43 revela (“ C h a m an d o a si os seus discípulo¿’\ g rifo d o au to r), o prin-
cipal p ro p ó sito d a viúva é d e serv ir co m o m o d elo d e discipulado. N e n h u m a
dádiva, in d e p en d e n tem en te d e qual seja ela — dinheiro, te m p o o u talento — é
insignificante p ara ser d o ad a, se ela é d ad a a D eus. E o q u e é v erdadeiram ente
d o ad o a D e u s, sem levar em c o n ta o q u ão p e q u e n o o u insignificante seja essa
doação, é tra n s fo rm a d o em u m a p éro la de g ra n d e preço. O q u e p o d e p arecer
c o m o u m a g ra n d e dádiva, d e m o d o o p o sto , p o d e n a realidade ser p o u c o em
co m p araçã o c o m o q u e a p esso a poderia doar. A d o aç ão d a viúva q u e “ deu
tu d o o q u e po ssu ía p ara viver” é u m v erd ad eiro c u m p rim e n to d o cham ado
ao discipulado p ara seguir Jesu s p o r m eio d o p e rd e r a p ró p ria vida (8.35). As
palavras finais gregas d o ca p ítu lo p o d e m ser parafraseadas, “ ela e n tre g o u a
p ró p ria vida” . Isso é o q u e Jesu s fará n o G ó lg o ta.

72 Exemplos podem ser encontrados tanto no judaísmo (veja a nota 71 acima) quanto
no helenismo louvando a piedade do pobre mais que a do rico. Eurípedes escreve:
“Vejo com frequência que as pessoas pobres são mais sábias que as ricas e, com
as próprias mãos, oferecem pequenas dádivas aos deuses e [é possível ver nelas]
mais piedade que naquelas que trazem o sacrifício de um boi” (Danae Fragment,
329; citado em HCNT, p. 178). Para outros exemplos, veja E. Klosterm ann, Das
Markusevangelium, p. 130).
capítulo treze

Vigñia na tributação e triunfo


M A R C O S 1 3 .1 — 3 7

O ca p ítu lo 13 é o m ais lo n g o c o n ju n to d e e n sin am en to n o evangelho


d e M arcos. É m o ld ad o n a fo rm a d e u m d iscu rso final de Jesus, sim ilar aos
discu rso s d e d esp ed id a d o s principais p erso n ag en s bíblicos, c o m o Jac ó (G n
49), M oisés (D t 32— 33),Jo su é (js 23), Sam uel (IS m 12) e Paulo (A t 20.17ss).
0 a ssu n to é a escato lo g ia, em q u e o s ev e n to s fu tu ro s, in clu in d o alguns
tão d istan tes q u a n to a v in d a d o F ilh o d o h o m e m n o julgam ento final, são
prefig u rad o s pela d estru içã o d o tem p lo e a queda d e Jerusalém . O capítulo
13, c o m o o cap ítu lo 4, é u m a co letân ea d o s en sin am e n to s e d ito s de Jesus
ap resen tad o s em várias ocasiões e reu n id o s p o r M arcos n o capítulo atual.
Isso fica ev id en te a p a rtir d o fato d e q ue alguns e n sin am e n to s p reserv ad o s
em M arcos 13 aparecem em co n tex to s to ta lm e n te d istin to s em o u tro s evan-
g elh os.1A ausência d o s co n tex to s originais d o s vários d ito s e sua indefinição
serv em p ara to rn a r esse u m d o s m ais su rp re en d en te s capítulos n a Bíblia para
co m p re en d e r, q u e r p ara os leitores em geral q u e r p a ra os in térp retes.2

1 Mateus apresenta o material existente em Marcos 13.9-13 sobre dar testemunho


diante dos governantes no início do ministério de Jesus, e não no final, como
instruções aos D oze sobre sua viagem missionária inaugural (Mt 10.17-22). Lucas
preserva um a porção do mesmo material em um terceiro contexto (Lc 12.11,12).
2 O s principais estudos de Marcos 13 incluem C. E. B. Cranfield, “St Mark 13”,
SJT6 (1953), p. 189-96,287-303; 7 (1954), p. 284-303; G. R. Beasley-M urray,>»r
and the Future (London: Macmillan, 1954); L. Hartman, Prophecy Interpreted: The
Formation of SomeJewish Apocalyptic Texts and of the Eschatological Discourse Mark 13
par., C onBN T 1 (Lund: C. W. K. Gleerup, 1966); R. Pesch, Naherwartungen. Tradi-
tion undRedaktion in Mk 13 (Düsseldorf: Patmos-Verlag, 1968); D. Wenham, The
Rediscovery ofJesus’ EschatologicalDiscourse, G ospel Perspectives 4 (Sheffield: JSO T
Press, 1984); eT .J. G eddert, Watchwords: Mark 13 in Markan Eschatology, J SNTSup
M a rc o s 13.1-2 476

A chave h e rm e n ê u tic a m ais im p o rta n te p ara o capítulo é a localização


d o discurso n a co n clu são d o m aterial d o tem p lo em M arcos 11— 13.*3 O ca-
p ítulo é in tro d u z id o p o r Jesu s sain d o d o tem p lo (v. 1) e in d o p ara o m o n te
das Oliveiras o n d e , “ assen ta d o [...] d e fren te p ara o te m p lo ” (v. 3), p ro fere
a d estru içã o deste. E m o u tra s palavras, M arcos esco lh eu p ô r to d o o discurso
n o c o n te x to d a d estru içã o d o tem plo. A quele fato que m ais se aproxim ava do
“ sinal” p ed id o pelo s discípulos (v. 4) é “ o sacrilégio terrível” n o versículo 14.
M arcos sinaliza esse ev e n to co m a adm oestação editorial m ais p ro n u n ciad a no
evangelho, “ q u em lê e n te n d a ” (v. 14), lem b ra n d o os leitores que os eventos
em to rn o d a d estru iç ã o d o tem p lo e qu ed a d e Jeru sa lém são u m tip o e prefi-
guração d e u m sacrilégio final antes d o final d o s tem po s. E ssa adm oestação,
b em c o m o as ad m o esta çõ e s n a co n clu são d o capítulo, “ F iq u em atentos!
V igiem !” (w . 33-37), in d ica que o p ro p ó s ito d o d iscu rso escatológico em
M arcos 13 n ã o é p ro v e r b asicam ente u m calen d ário o u p lan o p ara o fu tu ro
ta n to q u a n to e x o rta r leitores ao discipulado fiel n o p resente.
M arcos 13 é m uitas vezes in te rp re ta d o co m relativo d istan ciam en to do
re sta n te d o evangelho, co m frequência co m o u m apocalipse. Apocalíptico,
c o m o sen tid o d e “ desvelar” , é u m te rm o am p lo e m al definido p ara um
tipo, o u talvez tem a, da literatu ra judaica c o n c e rn e n te aos ev en to s finais
antes d o fim d o s te m p o s, incluindo visões (em geral co m im agens bizarras)
d a d e rro ta d o caos e d a restau ração d a criação, b e m c o m o da v in d a d o F ilho
d o h o m e m p a ra julgar o p e rv e rso e estabelecer u m re in o de justiça. N o en-
tanto, M arco s 13 se assem elha ao apocalíptico apenas em asp ecto s lim itados
(e.g., n a v in d a d o F ilh o d o h o m e m e em referências ao fim d o s tem pos).
D e q u alq u er m o d o , três asp ecto s principais d o apo calíptico cristão estão
ausentes: o em p a re lh a m en to d esta era c o m a era p o r vir; o em p arelh am en to
d o céu c o m a terra; e o e m p a relh am en to daqueles que p e rte n c e m à igreja
com os q u e n ão p e rte n c e m .4 O u tro s a sp e cto s característicos d o apocalíptico

26 (Sheffield: JS O T Press, 1989). Beasley-Murray e Pesch oferecem uma revisão


. detalhada da história da interpretação de Marcos 13.
3 Marcos 13 está ligado ao tema precedente sobre o tem plo por meio da admoesta-
ção com um — “Cuidado” (blepete112.38; 13.5,9,23,33) e das afirmações paralelas
de que Jesus estava sentado em frente da arca do tesouro (kathisas katenanti tou
gaspphylakiou, 12.41) e sentado de frente do templo (k.athêmenouautou [...] katenanti
tou hierou, 13.3).
4 W. A. Meeks, “Social Functions o f Apocalyptic Language in Pauline Christia-
nity”, em Apocalyptidsm in the Mediterranean World and the Near East: Proceedings of
the International Colloquium on Apocalypticism, August 12-17, 1979, ed. D. Hellholm
(Tübingen: M ohr [Siebeck], 1983), p. 689.
477 M a rc o s 13.1-2

judaico ta m b ém estão ausentes: n ão h á visões n e m im agens bizarras, n ão há


m en çã o à ressu rreição n em ao ju lgam ento final e p u n ição de Satanás e seus
seguidores e n ão há descrição da ép o ca m essiânica idílica após a parúsia. O
estilo de M arcos tam b ém n ão é característico d o apocalíptico. O s apocalipses
judaicos relatam em geral visões n a p rim eira p esso a d o singular, ao passo
q u e o cap ítu lo 13 é tecido na u rd id u ra d o s im p erativo s da segunda p esso a do
plural. E sses im perativos são mais exortativos q ue reveladores (com o acontece
c o m o p ro p ó s ito d a p rim eira p esso a na n arrativ a apocalíptica), ex o rta n d o os
leitores a esp erar e a ficar alertas, co m ex tre m a co nfiança n a realização do
p ro p ó sito d o D e u s so b era n o n a história.
E m b o ra M arcos 13 c o n te n h a alguns asp ecto s apocalípticos, n ão é um
livro ap o calíp tico em n e n h u m sentido c o m u m d o term o . P o r conseguinte,
o u so d e “ ap o calíp tico ” p ara caracterizar o cap ítulo é um a o b stru çã o , e não
u m auxílio p ara co m p reen d ê-lo .5 T a m p o u c o é u m excurso in d e p e n d e n te do
re sta n te d o s evangelhos. E visto d e m o d o m ais razoável e fru tífero c o m o a
culm inação d a polêm ica de M arcos co n tra o tem plo, polêm ica essa iniciada no
cap ítulo 11. O s ev en to s d o fu tu ro estão c o n e c ta d o s co m a q ueda d o tem plo
p o r m eio da p erg u n ta dos discípulos em 13.4: “ D ize-nos, q u an d o acontecerão
essas coisas (gr. tautà)? E qual será o sinal d e q ue tu d o isso (gr. tautapantà) está
p re ste s a cu m p rir-se?” . N o co n tex to d o cap ítu lo 13, M arcos em p reg a “ essas
coisas” (gr. tautà) o u “ tu d o isso” (gr. taútapantà) c o m referência à d estruição
d o tem p lo , e n ã o ao fim d o s tem p o s. (T raduções d o s te rm o s greg o s variam
n a N V I e nas trad u çõ es em p o rtu g u ês.) O esq u em a com eça em 13.2 com
Jesu s d ec la ran d o a d estru ição de “ e stas” (gr. tautas) g ran d es co n stru ç õ es
d o tem plo. A p erg u n ta d o s discípulos em 13.4 so b re q u an d o “ essas coisas”
(gr. tauta/tautapantà) aco n teceriam se refere a essa d estruição, b em co m o a
referên cia a “ essas coisas (gr. tautà) são o início das d o re s” n o versículo 8.
E sses o u tro s d o is u so s da term in o lo g ia o c o rre m n o versículo 29 (gr. tautà)
e n o versículo 30 (gr. tautapantà), in d ican d o q u e a g eração q u e não passará
“ até q u e to d as essas coisas ac o n te çam ” é a g eração da q ueda de Jerusalém .
E sse p a d rão linguístico é u m indício d e q ue M arcos tem a in ten ção que os
leitores e n te n d a m os versículos 1-13 e 28-31 co m referência à d estruição do
tem p lo em Jeru salém .

5 Veja M. Hooker, The Gospel According to Saint Mark, ρ. 298-99; W. G rundm ann,
Das Evangelium nach Markus, ρ. 349; C. E. B. Cranfield, The GospelAccording to St
Mark, p. 388; L. Morris, Apocalyptic (Grand Rapids: Eerdmans, 1972), p. 74-77;
L. G aston, No Stone onAnother: Studies in the Significance of the Fall of Jerusalem in the
Synoptic Gospels (Leiden: E. J. Brill, 1970), p. 50ss.
M a rc o s 13.1-2 478

D o is o u tro s b lo co s d o m aterial d o cap ítu lo estão in tim am en te ligados


co m a d estru içã o d o tem plo. E les são os versículos 14-27, a descrição da
tribulação e su b seq u e n te v in d a d o F ilh o d o h o m em ; n o s versículos 32-36,
o lem b re te d o dia e h o ra d esc o n h ecid o s d o re to rn o d o F ilh o d o h o m em
e o c o n se q u e n te le m b re te p a ra a aten ção p resen te. E ssas duas seções são
designadas p ela ex p ressão “ aqueles dias” e suas v ariantes (w . 17,19,20,24;
o u “ ao dia” , v. 32). “A q ueles dias” é u m estereó tip o p ara o fim d o s tem p o s
n o s p ro fe ta s (Jr 3.16,18; 31.29; 33.15; J 1 3.1) e aparece d a m esm a fo rm a em
M arcos 13. A ssim , o cap ítu lo 13 é c o n stru íd o d e ac o rd o co m u m esquem a
d u p lo d e te n sã o e p arad o x o , altern an d o e n tre o fu tu ro im ed iato (relacionado
a “ essas coisas”) e o fim d o s te m p o s (relacionado à expressão “ aqueles dias”),
em que a d estru içã o d o tem p lo e a q u ed a d e Jeru sa lém fu n cio n am c o m o u m a
p refiguração e p arad ig m a p ara a p arú sia.6

— A 1 1-13 F im do tem plo e queda de Jerusalém


— B 1 14-27 Tribulação e parúsia
— A 2 28-31 F im do tem plo e queda de Jerusalém
— B2 32-37 Parúsia e cuidado

M ais im p o rta n te ainda, M arcos 13 ad m o esta os leitores c o n tra as tentati-


vas d e c o n stru ir calendários e de decifrar os sinais d a parúsia. O s discípulos são
ad m o e sta d o s a ficar alertas e te r cu idado (w . 5,9,23,33,35,37), lem b ra d o s de
que n ão co n h e c e m o te m p o d o fim (w . 33,35) e alertados a n ão se enganarem
n em m e sm o c o m os sinais m ais ó b v io s (w . 5,6,21,22), pois ainda n ão é o fim
(w . 7,13). N in g u é m é en c o rajad o n e m elogiado p o r te n ta r ser d ec ifrad o r de
cód igos escatológicos. Isso é u m a tolice, p o is até m e sm o o F ilh o d o h o m e m
ign o ra q u a n d o será o fim (v. 32). O p rê m io d o d iscipulado n ão é p o sto na
p red iç ão d o fu tu ro , m as n a fidelidade nopresente, em especial nas tribulações,
adversidades e so frim en to .

A D E S T R U IÇ Ã O D O T E M P L O (13 .1,2 )

“ Q u a n d o ele [Jesus] estava sain d o d o tem plo.” E ssa é m ais que u m a m era
descrição física. A n tes, sim boliza a ru p tu ra final e definitiva d e Jesu s c o m o
tem plo. E le p rev iu três vezes súa m o rte nas m ão s d os líderes g en tio s e judeus
(8.31; 9.31; 10.33,34); ele c o n tra o rd e n o u a au to rid ad e d o S inédrio (11.27-

6 Para uma discussão sobre a dupla alternação entre o futuro imediato e o derradeiro
em Marcos 13, veja P. Müller, “Zeitvorstellungen in Markus 13”, NovT40 (1998),
p. 216-21. Müller, no entanto, não faz referência à distinção entre “essas coisas”
e “aqueles dias”.
479 M a rc o s 13.1-2

33), localizado n o tem p lo ; e d esafio u cad a u m d o s g ru p o s que co n stitu íam


o S inédrio — os fariseus (1 2 .1 3 1 7 ‫)־‬, os saduceus (12.18-27) e os m estres da
lei (12.35-40). O tem p lo foi julgado e c o n d e n a d o c o m o “ covil d e lad rõ es”
(11.17), sim b o lizad o p o r u m a figueira am ald iço ad a q u e seco u (11.12-22). O
julg am en to d o te m p lo p o r Jesu s era u m fa to m u ito b em co n h e cid o p o r seus
adversários c o m o u m fato r q u e d e se m p e n h o u u m p ap el relevante em sua
sen ten ç a d e m o rte (14.58; 15.29,30). N o v ersículo 1, seus passo s o b ed ecem
sua von tad e: Jesu s sai d o tem p lo p a ra n u n c a m ais re to rn a r a ele.
Q u a n d o Jesu s sai, “ u m de seus discípulos lh e disse: O lh a , M estre! Q u e
p ed ras en o rm es! Q u e c o n stru ç õ es m agníficas!’ ” É b astan te co m u m para
M arcos n ão m e n cio n a r o n o m e dos indivíduos em seu evangelho; n a verdade,
essa é a re g ra p a ra ele. N o en tan to , é cu rio so p o r q u e o d iscípulo q u e ap o n ta
p ara a estu p e n d a c o n stru ç ã o n ã o é m e n c io n a d o p elo n o m e , u m a vez que,
n o v ersículo seguinte, P edro, T iago, Jo ã o e A n d ré são identificados. Talvez
o d iscípu lo n ã o m en cio n a d o pelo n o m e seja Ju d as que, em o u tro s trech o s, é
id en tificad o p o r seu m aterialism o (14.10,11; J o 12.4-6; 13.29). A infâm ia de
sua traição p o d e te r levado à o m issão discreta d e seu n o m e, c o m o aco n tece
n o d iscu rso d a ú ltim a ceia (14.20,21).
N a é p o c a d e Jesus, o t e m p lo já estivera em c o n stru ç ão p o r cin q u en ta
an o s e ainda n ã o fo ra term in ad o . A o b sessão de H e ro d es, o G ra n d e, com a
g ran d io sid ad e e p e rm a n ên c ia jam ais ficou tão ap a ren te q u a n to n o tem p lo
d e Jeru sa lém (veja ainda em 11.15 e 12.41). H e ro d e s a u m e n to u o tem p lo de
S alom ão p ara u m a esplanada m ed in d o cerca de 325 m etro s de largura p o r 500
m etro s d e c o m p rim e n to c o m u m a circu n ferên cia de quase 1.6 quilôm etro.
E sse im en so esp aço cercad o c o m 35 acres p o d e ría ab rigar d o ze cam p o s de
futeb o l. N o c a n to su d este d o m u ro de re te n ç ã o ficava o equivalente a cerca
d e q u in ze an d ares acim a d o nível d o solo q u e co n tin u av a em u m declive até
o vale d o C ed ro m . O s blo co s de p ed ra u sad o s n a c o n stru ç ã o eram gigan-
téseos; Jo s e fo (Guerra 5.189) relata q u e algum as m ediam q u aren ta cúbitos
(ap ro x im ad am en te d ez o ito m etro s) d e c o m p rim en to . N e n h u m a p ed ra desse
ta m a n h o foi en c o n tra d a n a fu n d ação existente, m as ped ras a n o rte d o arco
d e W ilson m ed em d o z e m etro s d e c o m p rim e n to , 3.3 m etro s de altura, 4.2
m etro s d e p ro fu n d id a d e e p esam m ais q u e 450 m il quilos. A m agnitude d o
m o n te d o tem p lo e as p ed ras usadas p ara co n stru í-lo excedem em tam an h o
a q u aisq u er o u tro s tem p lo s da A ntiguidade.
E esse era apenas u m m u ro de co n ten ção . A cim a, n o ex trem o sul da
esplanada, havia o resp la n d ece n te P ó rtico Real, “ u m espetáculo im p ressio ­
M a rc o s 13.1-2 480

n a n te ” , p ara citar Jo sefo . O p ó rtic o tinha p o u c o m ais de treze m etro s de


largura e consistia em três co rre d o re s apoiados p o r q u a tro fileiras d e colunas.
As colunas eram co ro ad as c o m capitéis co rin tio s e erguia-se a u m a altura de
p o u co m ais d e d o ze m e tro s e su sten tav a u m fo rro re c o b e rto de cedro. “A
largura d e cada co lu n a era tal q ue seriam p reciso três h o m en s co m braços
estendidos p ara rodeá-la” , relata Jo sefo (Ant. 15.413). N o cen tro d a esplanada,
ficava o santuário que, c o n fo rm e ob serv aram escritores da A ntiguidade, tinha
a fo rm a d e u m leão, m ais am p lo n a frente (cin q u enta m etros) e m ais estreito
n a p a rte de trás (trin ta m etro s). E rguia-se a u m a altura de cin q u en ta m etro s
e era u m a co lag em visual d e o u ro e prata, carm esim e roxo, irrad ian d o o sol
nascente co m o u m a m o n ta n h a co b e rta de neve. A s m edidas apresentadas p o r
Jo sefo para os b lo co s d e p ed ra n o santuário excedem em tam an h o até m esm o
àquelas da fu n d ação (Guerra 5.222.24). E ra u m com p lexo de co n stru ç õ es
vasto e estu p en d o . N ã o é d e ad m irar q u e os discípulos ficassem estu p efato s.7
T ão no táv el q u a n to as p ro p o rç õ e s d o tem p lo é a atitude d e Jesu s em re-
lação a ele: “ ‘V ocê está v en d o to d as estas g ra n d es c o n stru ç õ es?’, p erg u n to u
Jesus. ‘A qui n ã o ficará p e d ra so b re pedra; serão to d as d e rru b a d a s’ ” .8Jesus,
u m p o u c o m ais cedo, p ro ferira palavras so b re a “ figueira q u e [...] secou!”
(11.20). A figueira, c o n fo rm e vim os, sim bolizava o tem plo. N o julgam ento
final d e Jesu s d o tem p lo , o sim b o lism o é deixado d e lado e a d estru ição dessa
c o n stru ç ã o é p ro fe rid a em te rm o s co n c reto s — “ p e d ra so b re p e d ra ” .9 O s

7 Três fontes antigas descrevem o templo de Jerusalém: Josefo, o tratado Middot da


Mishná e o Temple Scroll (manuscrito do templo, nos M anuscritos do Mar Morto).
Destes, Josefo provê a descrição mais completa e precisa, em especial em Guerra
5. Veja ainda, E. P. Sanders, Judaism: Practice and Belief, 63 BCE-66 CE (London:
SCM Press/Philadelphia: Trinity Press International, 1992), p. 51-102; J. Patrich,
“Reconstructing the M agnificent Temple Herod Built” , BRev 4 /5 (1988), p. 16ss.;
K. e L. Ritmeyer, “Reconstructing H erod’s Temple M ount in Jerusalem”, BARev
15/6 (1989), p. 23ss.; D. Bahat, “Jerusalem D ow n Under: Tunneling along H erod’s
Temple M ount Wall”, BARev 2 1 /6 (1995), p. 31ss.
8 Dois manuscritos uncíais (A K) leem lithos epi lithg, e não lithos epi lithon, atestado
pela maioria dos manuscritos. A primeira leitura (e Le 21.6) deve-se provavelmente
a um aperfeiçoamento feito por escribas, urna vez que é gramaticalmente superior
à maioria dos textos. A segunda leitura, no entanto, é muitíssimo preferível.
9 A predição de Jesus da destruição do templo está alinhada com um conjunto de
predições judaicas similares, não apenas no Antigo Testam ento (SI 74.4-7; Jr 7.14;
9.11; 26.6; M q 3.9-12) e apócrifos (2Mac 14.33), mas também na literatura judaica
extracanônica, incluindo T Jud. 23:1-5; T. Levi 10:3; 14; 15:3; lEnoque 90:28-29;
91:11-13; Sib. Or 3:665; 11QT 30:1-4; Vida dosprofetas 12:11. Q ue saibamos, todos
481 M a rc o s 13.1-2

discípulos ficam de queixo caído p o r causa d o s b lo co s de p ed ra u sad o s na


co n strução, m as Jesu s os desconsidera p o r serem pedras de tropeço. H ero d es,
os discípulos e J o se fo p o d e m se m aravilhar n o tem p lo (com o o fazem os
arq u eó lo g o s e turistas de n o ssa era), m as Jesu s declara que essa co n stru ç ão
n ão p assa de u m e m p re e n d im e n to abortivo. O julg am en to de Jesus, com
certeza, é d irec io n ad o à p erv ersão d o p ro p ó s ito o rd e n ad o p o r D e u s para o
tem p lo , m as vale co n sid erar as ram ificações m ais am plas de seu julgam ento.
Q u a n to d e n o sso nacionalism o, cu ltu ra e civilização p o d ería (ou deveria)
resistir ao ju lg am en to d e D e u s? 10 O tem p lo , c o m o u m c o n ju n to de células
que se to rn a ra m m alignas, esqueceu-se d o p ro p ó s ito p ara o qual fora erguido
e teve de ser erradicado. A lam en tação d e Jo s e fo so b re a d estru ição daquela
“ cidade esp lên d id a d e re n o m e m u n d ial” cerca d e q u a ren ta an o s m ais tarde
atesta o cu m p rim e n to d o ju lgam ento d e Jesus: “ C ésar o rd e n o u que to d a a
cidade e o te m p lo fo ssem d e rru b a d o s ao solo. [...] T o d o o re sta n te d o m u ro
q u e cercava a cidade foi tão c o m p letam en te d estru íd o e arrasad o a p o n to de
fazer c o m q u e fu tu ro s visitantes ao local n ã o conseguissem acreditar que o
local fo ra u m dia h a b ita d o ” (Guerra 7.3).

P E R M A N E C E N D O F IR M E A P E S A R D A S E N F E R M I D A D E S
( 1 3 .3 ‫ ־‬1 3 )

M arco s, n essa seção, d irecio n a o en sin am e n to d e Jesu s p ara os eventos


q u e levam à d estru içã o d o tem plo. O en sin o d e Jesu s é a p resen tad o em duas
p arte s, cad a u m a das quais prefaciada p o r u m a ad m o e sta ção em grego, blepete
(trad uzid o p o r “ cu id ad o ” n o versículo 5, e “ fiquem a te n to s” , n o versículo 9).

os textos precedentes mencionados aqui são de antes de 70 d.C. Acrescentamos


àqueles que previram a destruição do templo os seguintes nomes: o próprio Josefo
(Guerra 3.351-52; 6.311) e, pelo menos, dois rabis, Yohanan ben Zakkai e Zadok. A
corrupção do templo herodiano era disseminada e amplamente reconhecida. Há
todas as razões para crer que Jesus podería prever — e previu — a destruição do
templo. Sobre esse assunto, veja C. A. Evans, “Predictions o f the Destruction o f
the Herodian Temple in the Pseudepigrapha, Q um ran Scrolls, and Related Texts”,
JSP 10 (1992), p. 89-147. M. Hengel, Studies in the Gospel of Mark, trad. J. Bowden
(London: SCM Press, 1985), p. 14-16, tam bém reúne informações relevantes para
m ostrar que “Marcos ou os que transmitiram sua tradição (em especial a oral)
[poderíam ter] imaginado uma futura destruição do tem plo de uma forma simi-
lar” . Gostaria de sugerir que Jesus podería ter previsto a mesma destruição — e
a previu de fato.
10 Uma questão primorosamente levantada por Cranfield, “St. Mark 13”, SJTG (1953),
p. 192-93.
M a rc o s 13.3-5 482

A prim eira ad m o esta ção diz re sp eito aos falsos M essias e aos d esastres polí-
ticos e naturais (w . 5-8); a seg u n d a diz resp eito às perseguições d o s cristãos,
co m particu la r ên fase n o fa to d e q u e “ serão en tre g u es” (gr. paradidomi), um a
palavra q u e tem d u p la co n o taç ão , a d e “ traiç ão ” e o “ ser en treg u e p ara os
p ro p ó sito s d e D e u s ” . Jesus, nessas duas adm oestações, alerta q u e os “ sina[is]”
não p ressagiam o fim!

3 O m o n te das O liveiras levanta-se tre z e n to s m etro s acim a d e Jeru salém


e está sep arad o d a cid ad e p elo vale C ed ro m . Jesu s e o s discípulos, desse local
privilegiado, tê m u m a v isão d a en c o sta leste d o m o n te d o tem p lo e, dali do
cum e, d a fach ad a b rilh an te d o santuário. D e a c o rd o c o m a M ishná, alguém
“ n o cu m e d o m o n te das O liveiras deve co n seg u ir o lh a r d ireta m e n te p ara a
en tra d a d o san tu á rio ” (m. Mid. 2.4). O cu m e d o m o n te das O liveiras fo ra o
local d e o n d e Jesu s co m eç ara sua e n tra d a triu n fal em Jeru salém (11.1). A
descrição d o m o n te das O liveiras c o m o “ d e fren te p ara o te m p lo ” (v. 3),
nessa instância, é altam ente sim bólica: assim c o m o Jesus im ediatam ente antes
p ro n u n c ia ra u m ju lg am en to so b re os escribas e n q u a n to estava sen tad o “ em
fren te [do te so u ro d o tem p lo ]” (12.41), ag o ra ele expressa seu julgam ento
final “ d e fren te p a ra o te m p lo ” . A lém disso, ele estava sen tad o , “ te n d o Jesus
se asse n ta d o ” , a p o sição d e u m m estre autoritativo.11 Ig u alm en te relevante
é o fato d e q u e o m o n te das O liveiras, d e a c o rd o c o m Z acarias 14.1-8, é o
local o n d e D e u s declara a ca p tu ra, saque e devastação d e Jeru salém . Jesu s se
posicio n a m ais u m a vez p ara assu m ir o p ap el d e D eus.

4,5 P ed ro , T iag o , J o ã o e A n d ré p e rg u n ta m em p artic u la r p ara Jesus:


“ D ize -n o s, q u a n d o aco n te cerão essas coisas? E qual será o sinal d e q u e tu d o
isso está p re ste s a cu m p rir-se?” (v. 4). E sses q u a tro discípulos, os p rim eiro s a
serem ch am ad o s p o r Jesu s n o m a r d a G alileia (1.16-20), são ag o ra a audiência
p ara sua fala final. A p rim eira m e tad e d a p e rg u n ta refere-se à d estru ição do
tem p lo n o versículo 2, em q u e “ n ã o ficará p e d ra so b re p e d ra ” . A segunda
m etad e d a p e rg u n ta so b re o “ sinal d e q u e tu d o isso (gr. tautd) está p re ste s a
cum prir-se” tem u m to m escatológico (D n 12.6,7). A repetição de tauta (“ tu d o
isso”) m o stra q u e essa p e rg u n ta ta m b é m se refere à d estru ição d o tem plo,
m as o u so d o v e rb o g re g o syntelein (“ cu m p rir-se” ; ta m b ém D n 12.6, L X X ),
em geral u m te rm o técn ico p ara o fim d o s te m p o s,12 indica q u e a d estru ição

11 C. Schneider, “kathêmai\ ZD A T’3.443-44.


12 E. Lohmeyer, Das Evangelium des Markus, p. 269.
483 M a rc o s 13.6

d o tem p lo é u m parad igm a p ara algo m aior. A c o n e x ão en tre a q u ed a de


Jeru salém e a ch eg ad a d o R eino d e D e u s, p o rta n to , era aparente para os
discípulos d e Jesu s e, co m certeza, p ara a audiência d e M arcos que vivia em
m u ita p ro x im id ad e d o s ev en to s aqui p red ito s. Jesu s e o s discípulos n ão eram
os ún ico s a fazerem a co n ex ão en tre os d o is ev en tos, pois essa conexão era
am p lam en te aceita pelo s zelotes e, sem d ú v id a, p o r o u tro s até a d estruição
d e Jerusalém . Jo sefo , q u e escreveu ex ten siv am en te so b re a revolta judaica em
66 d.C ., n ã o deixa a m e n o r d ú vida d e q u e as estratégias judaicas de defesa
fo ram m otivadas p o r co nsiderações religiosas, n a esp erança de que o M essias
viesse n o ca lo r d a b atalh a so b re o tem plo.
A palavra p ara “ sinal” (gr. sêmeioti) é u m a d as palavras m ais im p o rtan tes
n o cap ítulo 13. E m 8.11,12, os fariseus p e d ira m três vezes a Jesu s que lhes
desse u m sinal. Jesu s re cu so u c o m firm eza esses p edid os, in d ican d o q u e esse
era em si m esm o u m indício d e d escren ça, e n ã o de fé. A m esm a palavra é
u sad a d e fo rm a igualm ente pejorativa aqui e n o versículo 22. A N V I traz:
“Jesu s lhes disse” , m as o tex to g reg o traz: “Jesu s começou a falar co m eles” ,
o q u e re p rese n ta n ão só u m sem itism o, m as ta m b é m é u m p refácio solene
in d ica n d o a im p o rtâ n cia da ad m o estação seguinte. Jesu s alerta que os sinais
en g an am e levam a p esso a a se desviar (gt.planan, a m esm a palavra u sad a para
o e rro d o s saduceus em 12.24,27). A lém disso, os “ sina[is]” m en cio n ad o s
n o s versículos 6-13 indicam o o p o s to d o q u e alguém p o d e ria esp erar — de
q u e ainda não é 0fim. O s discípulos — e to d o s o s que creem d esd e essa época
— q u erem c o n h e c e r o fu tu ro , m as Jesu s os d irecio n a co m firm eza p ara o
p re sen te. “ C uidado, q ue n in g u ém os en g a n e” .13 C o m e ç a n d o n o versículo 5 e
co n tin u a n d o ao lo n g o d o capítulo, h á u m a ad m o estação co n tra a especulação
fu tu ra à cu sta d a ob ed iência presente.

6 A s am eaças ao discipulado v êm de m u ito s lados. A s g ran d es am eaças,


ao co n trá rio d o q u e se p o d eria esperar, n ã o são perig o s ex tern o s, m as aque-
les n o seio d a família d e fé. O s en g an ad o res se levantarão, afirm ando: “Sou
eu!” . E ssas n ão serão aparições esporádicas e ocasionais; haverá m uitos que
ap arecerão c o m m o d o s e aparência m essiânicos, e eles levarão m uitos a se
desviarem . N o s an o s q ue an teced eram a R evolta Ju d aica em 66 d.C., ho u v e
o su rg im en to d e vários p re te n d e n te s m essiânicos. E m m eados da d écada de

13 Uma admoestação paralela quase literal encontra-se no Evangelho deMaria quando


o Abençoado saúda Maria na anunciação: “Cuidado para que ninguém a leve a se
desviar (planan)” . Veja NTApoc p. 392.
M a rc o s 13.7-8 484

40, T eudas (A t 5.36) v angloriou-se dos vários sinais (incluindo a habilidade de


dividir o rio Jo rd ão ) que, d e ac o rd o co m Josefo, “levou m uitos a se desviarem ”
(Ant. 20.97-98). Jo sefo acrescenta o u tro relato de u m egípcio que afirm ava ser
um “ p ro fe ta” (gt-goês, “m ágico”) que, da m esm a fo rm a , foi bem -su ced id o em
en g a n ar o p o p u lach o (Guerra 2.261 -63).14 O g reg o d o versículo 6 traz apenas:
“ E u sou!” , o n o m e d e D e u s n o A n tig o T e stam e n to (Ê x 3.14). “ E u s o u ” é a
m esm a afirm ação q ue Jesu s faz so b re si m esm o (6.50; 14.62). P o r conseguin-
te, n ã o existe n e n h u m a d iferen ça m aterial en tre a afirm ação de Jesu s e a do
im p o sto r. O s q u e creem têm d e estar alertas p ara co m o a afirm ação é usada:
será q ue ela re p re s e n ta D e u s, o u apenas usa D e u s e os artigos d a o rto d o x ia
p ara o u tro s p ro p ó sito s? O s im p o sto res v irão até m esm o “ em m eu n o m e ” ,
o u seja, c o m m ais q u e palavras. O s p o d eres e as credenciais deles darão a
im p ressão d e q u e são C risto, e o im p acto q u e causarão n ão será p eq u en o .15 O
jo rro d e lite ratu ra g n ó stica co n tid a tan to n o corpus d o N a g H am m ad i q u an to
n o N o v o T esta m e n to ap ó c rifo testifica da pro liferação de seitas judaicas e
em especial g n ó sticas n a últim a m etad e d o século I, literatura essa q u e levou
u m a m en sag e m estra n h a em n o m e de Jesu s d e N azaré. N a segunda revolta
d os judeus (132-35 d .C ), B ar K o k h b a afirm o u ser o M essias, e sua declaração
levou m u ito s judeus d ev o to s a ab raçar a revolta.

7,8 O u tra s am eaças v irão de tran saçõ es in ternacionais, gu erras e cala-


m idades naturais, as quais assolarão os d escren tes e crentes. A litania d os ais
nesses versículos p o d eria, q u e m sabe, re su m ir to d as as eras, m as se ajustam
à p rim eira g eração d e cristãos p artic u la rm en te bem . H avia tem o re s de guerra
em 40 d.C. q u a n d o C aligula (im p erad o r ro m an o , 37-41 d.C.) te n to u erigir
um a estátua d e si m e sm o n o tem p lo d e Jerusalém . Jo se fo usa u m a frase m uito
sim ilar a 13.7 p ara descrev er os ru m o re s d e g u erra circulando na ép o c a de
Caligula.16 O s ru m o re s d a é p o c a desse im p era d o r n ão passaram disso, m as 25

14 Para discussões desses e de outros pretendentes a messiânicos, veja A. Y. Collins,


“The Apocalyptic Rhetoric o f Mark 13 in Historical C ontext”, BR 41 (1996), p.
14-18.
15A sugestão de M. H ooker em The GospelAccording to Saint Mark, p. 306-7, de que
“Sou eu!” ; ou: “E u sou o Cristo” (ARC) refere-se às falsas afirmações de que a
parúsia está próxima (ou já ocorreu) é um exagero. Essa realmente é um a questão
em 2Tessalonicenses 2.1,2, mas as implicações no versículo 6 é de falsos Messias
que levarão os fiéis a se desviarem.
16 Compare akoas polemón (“rum ores de guerras”) no versículo 7 com tou polemou
phémais (“rum ores de guerra”) em Guerra 2.187.
485 M a rc o s 13.7-8

an o s m ais tard e a g u erra total irro m p e u em 66 d.C. q u an d o a revolta zelote


fez co m q ue a P alestina so fresse um a d e rro ta catastró fica p ara R om a. H o u v e
fo m es d u ra n te o rein o de C láudio (im p era d o r ro m a n o , 41-54 d.C.; veja A t
11.28). O s te rre m o to s assolaram a Frigia em 61 d.C. e arrasaram P om peia em
63 d.C. A linguagem usada n o s versículos 7,8 e n c o n tra paralelos surpreenden-
tes na descrição de T ácito, em particu lar d o s ú ltim o s anos d a m egalom ania
de N e ro e da g u erra civil q ue se seguiu a seu suicídio em 68 d.C .17 N ã o é de
su rp re e n d e r q u e, p e rto d o final d o século I, A p o calip se 6 c o n te n h a um a lista
sim ilar d e g u erras, fom es, te rre m o to s e perseg u ições.18

17Tácito começa sua obra Histórias em 68 d.C. com este prólogo: “A história na qual
adentro é aquela de um período rico em desastres, terrível em batalhas, dilacerado
pelas lutas civis, horrível até na paz. Quatro imperadores caíram pela espada; houve
três guerras civis, mais guerras estrangeiras e, com frequência, as duas ao mesmo
tempo. Houve sucesso no Leste [referindo-se à vitória de Vespassiano-Tito na
Judeia], e infortúnio no Oeste. A província de Ilírico foi perturbada, as provín-
cias gaulesas oscilaram, a Britânia foi conquistada e logo perdida. Os sármatas e
os suevos se levantaram contra nós, [...] até os partas quase pegaram em armas
po r causa da fraude de um pretenso Nero. Além disso, a Itália foi assolada por
desastres jamais vistos ou pelo retorno após o lapso das eras. As cidades costeiras
m uito férteis de Campania foram engolidas ou sobrepujadas; Roma foi desolada
po r conflagrações nas quais seus mais antigos santuários foram consumidos e o
próprio Capitólio incendiado pelas mãos dos cidadãos. Os ritos sagrados foram
profanados; houve adultérios nos altos. O m ar se encheu com exilados, e suas
escarpas ficaram imundas com os corpos dos mortos. Em Roma, houve mais
crueldade brutal. [...] Os inform antes não eram m enos odiosos que seus crimes;
pois alguns ganharam sacerdócios e consultorias com o espólios; outros obtiveram
posições com o agentes imperiais e exerceram influência secreta no tribunal, o
caos e os tumultos imperavam em todos os lugares, inspirando ódio e terror. Os
escravos foram corrom pidos contra seus senhores; os hom ens livres, contra seus
patrões; e os que não tinham inimigos foram esmagados pelos amigos” (Hist. 1.2
[LCL]). Para uma discussão das várias guerras e levantes nas décadas de 40 e 50
do século I, veja N. H. Taylor, “Palestinian Christianity and the Caligula Crisis,
Part II: T he M arkan Eschatological D iscourse”, JSN T 62 (1996), p. 27-29.
18 A N V I traz “fom es” no versículo 8, mas um núm ero impressionante de manus-
critos e uma grande diversidade deles trazem “ fomes e tribulaçõe(ACF) (limoi kai
tarachai;A K X Θ Δ Π Σ W). Em bora seja possível que o acréscimo de “etribulaçõe^
se deva à tendência dos escribas de acrescentar palavras, e não deletá-las (veja B.
Metzger, TCGNT, p. 112), parece igualmente, se não mais, provável que tarachai
tenha sido om itido porque suas letras finais se assemelham muitíssimo às de archè
(“princípio”), palavra que vem logo a seguir. Além disso, o term o “ fomes” é pre-
cedido por três conjuntos de duplas no versículo 8, o que sugere que o conjunto
M a rc o s 13.9-10 486

O p ro p ó s ito d a litan ia d e ais em 13.8 não é atra ir os c ristão s para


especulações so b re o fim , m as p ara an co rá-lo s n a aten ção e fidelidade ao
p resen te. “ E ssas (coisas)” (v. 8), q u e culm inam n a d estru ição d e Jerusalém
referida n o versícu lo 2, são apenas “ o início das d o re s” . O s cristãos não
d ev e m se a la rm a r, p o is “ a in d a n ã o é o fim ” (v. 7). N o ta v e lm e n te , as
calam idades desses versícu lo s n ão in te rro m p e m n e m im p ed em o reino. As
adversidades e d im in u ição d a igreja descrita n o s versículos 9-11 p ro v e rã o de
fato o p o rtu n id ad e s sem p re ced e n te s de te ste m u n h o p ara as nações. O livro
de A to s é u m co m e n tá rio desses versículos, p o is nas tribulações (m uitas das
quais fazem paralelo co m os w . 7-13), os n ú m e ro s e a fé d o s cristãos n a igreja
prim itiva cresceram de fato. A m e táfo ra das “ d o re s” tam b ém é instrutiva,
p o is, n o ju d aísm o , a m atern id ad e era a validação su p re m a d o v alo r d e um a
m u lh er, e as d o re s d o p a rto p u n h a m fim à desgraça d a ausência d e filhos. As
“ d o re s” d a igreja n a tribulação, d a m esm a fo rm a, validarão sua existência,
em v ez d e aniquilá-la.

9 ,10 A m eaças à fé tam b é m virão p o r in te rm é d io d a p erseguição de cris-


tãos. A N V I talvez exagere na trad u ção d a frase g reg a blepete de hymeis heatous
p o r “ fiq uem a te n to s ” . U m a trad u ç ão m ais ap ro p riad a seria: “V ocês têm de
ter clareza em su a m e n te ” — co m ênfase em “v o cê s” . O p o n to ap resen tad o
é livrar os cristãos d e fantasias u tópicas e lem b rá-lo s q u e a adversidade e per-
seguições n ão são ab erra çõ es d a vida cristã, m as, antes, a norma. M arcos, sem
dizer q u em os trairá, diz q u e os cristãos serão en tregu es “ aos trib u n ais” 19 e
às “ sin ago g as” e aos “g o v e rn a d o re s e reis” . O s cristãos, em ou tras palavras,
serão perseguidos pelos judeus e gentios, p o r autoridades religiosas e seculares.
Serão traídos, aço itad o s e p ro c essad o s p o r au to rid ades religiosas e seculares
p o r causa d e Jesu s e c o m o te ste m u n h o p ara essas au toridades (8.35; M t 8.4).
C o n tu d o , o so frim en to deles n ã o será em vão, p o is haverá u m p ro p ó sito para
isso. O so frim en to e a p erseg u ição re p resen ta rão o p o rtu n id a d e s sem prece-
d en tes p ara d eclarar a fé deles d ian te d e reis, au to ridad es e g o v ern an tes (At
12.1-3; 23.33; 25.6,19ss.). D e u s lhes dará p o d e r p ara te ste m u n h a r às nações
e n ão os a b a n d o n a rá n a h o ra d a crise.
S uspeita-se c o m frequ ên cia q u e a afirm ação d o versículo 10 d e q u e “ é
necessário q u e an tes o evangelho seja p re g a d o a to d as as n açõ es” é um a

final tam bém pudesse ser uma dupla mnemónica, “ fomes e tribulações” . Para um
paralelo muito próximo ao versículo 8, veja 4Esdras 13.31.
19 A palavra grega original é “sanhedrins” que, no plural, refere-se aos concilios ou
cortes judaicas locais, e não o G rande Sinedrio em Jerusalém (‫■ ״‬Sanh. 1:6).
487 M a rc o s 13.11-13

in serção m arcan a u m a vez q ue está au sen te das passagens paralelas de M a-


teus 10 e L ucas 21 e o c o rre em u m c o n te x to d istin to em M ateus 24.14. N ã o
é im possível q ue a afirm ação te n h a sido tirad a d e u m c o n te x to d istin to e
incluída aqui p o r M arcos, m as ela n ão in te rro m p e o fluxo d o p en sam en to ,
c o n fo rm e se su p õ e algum as vezes. N a realidade, essa afirm ação fo rm a u m
paralelo c o m 1.14,15 em q u e a p risão d e J o ã o B atista fo rn ece o c o n tex to
da p ro clam ação d o evangelho p o r Jesus. A q u i ta m b é m a perseguição dos
cristãos (v. 9) fo rn e ce o co n te x to da p ro c la m açã o d o evangelho para todas
as nações (v. 10). O s so frim en to s e perseg u içõ es d o s cristãos, m ais u m a vez,
n ão são sinais d o fim , m as sinais de q u e está p re se n te a p reg ação au têntica
d o evangelho!

11A inevitabilidade da perseguição n ão deve p ro d u z ir ansiedade e tem or,


m as, antes, a seg u ran ça da p resen ça de D e u s n o E sp írito Santo. O s discípu-
los são m ais u m a vez lem b rad o s de q u e a fidelidade n ã o consiste em prev er
o fu tu ro e d e te rm in a r as resp o stas preventivas, m as, antes, em co n fiar que
D e u s lhes d ará graça p ara q u e c o m p letem o serv iço em n o m e d o S en h o r e,
d e fato, q u e ele falará p o r in term éd io deles a fim d e to c a r nas m ais p ro fu n d as
necessid ades d o s envolvidos. N a p rim eira m issão d o s discípulos, eles falaram
em n o m e d e D e u s (6.7-12), m as, n o s so frim e n to s d o s discípulos, D e u s falará
p o r in te rm é d io deles p elo E sp írito Santo!

1 2 ,1 3 A p erseguição chegará m e sm o a d e stru ir famílias. Irm ã o s se volta-


rão u n s c o n tra os o u tro s; os pais, c o n tra o s filhos; e o s filhos, c o n tra os pais,
c o n fo rm e p ro fe tiz a d o p elo p ro fe ta M iqueias (7.6). N o m u n d o judaico, era a
família, m ais que o indivíduo, que determ inava a identidade e dava testem unho
d e D eu s: “M as eu e a m in h a família serv irem o s ao S e n h o r ” (Js 24.15). A
disso lu ção das famílias, p o rtan to , ataca os asp ecto s m ais íntim o s e form ativos
d a vida e d a fé, p o n d o -o s em risco. N ã o é im possível q u e a traição referida no
versículo 12 aluda tam b é m às famílias naturais, m as específicam ente às famí-
lias cristãs (tam b ém 3.33-35), o u seja, aos cristão s tra n sm itin d o inform ações
u ns s o b re o s o u tro s q u an d o so b in terro g a tó rio . O versículo 12 n ão designa
ex plícitam en te o s m em b ro s d a fam ília c o m o cristãos, m as isso podería estar
im plícito n o fato d e q u e o versículo se ap resen ta n o c o n te x to da perseguição
d o s cristão s n o s versículos 9-13. T ácito, ao d escrev er a perseguição de N e ro
em 64 d.C., escreve q u e aqueles q u e co n fessara m q u e eram cristãos fo ram
p reso s p rim eiro e, depois, conforme a revelação destes, h o u v e prisões de m uitos
M a rc o s 13.11-13 488

o u tro s cristão s (Ann. 15.44). U m a geração m ais tarde, talvez d ep o is de 110


d.C., Plínio, o Jo v em , testifica d o u so d o m e sm o m é to d o d e in te rro g a r os
cristãos “ d en u n c ia d o s” — p resu m iv elm en te p o r irm ão s em C risto (Carta
ao imperador Trajano 10.96). Se o versículo 12 inclui traições d e cristãos por
irm ão s e m C risto, e n tã o a afirm ação d o versículo seguinte, “ to d o s odiarão
vo cês” inclui aqueles na igreja: falsos e falíveis cristãos n a co m u n id ad e de fé
co n sp ira rão c o m o m u n d o p ara perseg u ir os v erd ad eiro s discípulos. Se os
cristãos ex p e rim en tare m a trágica traição (gr.paradidomi) d e irm ão s em Cristo,
e n tão c o m p a rtilh a rão de experiência d e Jesu s q u e foi traíd o (gr. paradidomi)
p o r Ju d as, u m d o s p e rte n c e n te s à fam ília d o s D o z e (3.19).20
A lealdade a C risto será o d io sa e repulsiva ao m u n d o , e os cristãos serão
o d iad o s (13.13). E possível re m e m o ra r m ais u m a vez o co m en tá rio d e Tácito
so b re a perseguição d e Ñ e ro , d e q ue os cristão s eram “ u m a classe o d iad a p o r
suas ab o m in a ç õ e s” (Ann. 15.44; cf. J o 15.19). N o en tan to , n em m esm o as
afirm ações de p a re n te sco p o d e m ter p reced ên cia so b re Jesu s C risto. “M as
aquele q u e p ersev era r até o fim será salvo” (de m o d o sim ilar 4 E d 6.25). E ssa
p ro m essa é u m c o n fo rto su p re m o em m eio às tribulações. N ã o se espera
q u e os cristãos façam algo q u e n ã o co n sig am (i.e., p revalecer so b re to d as as
diversidades), m as q u e façam algo q u e p o d e m fazer em to d as as crises —
p ersev erar e p e rm a n e c e r firm es. Se fizerem isso, serão salvos.21

20 A ideia de que o versículo 12 refere-se às traições na igreja-interna foi proposta


por T. Radcliffe, “ T h e Com ing o f the Son o f Man’: Mark’s Gospel and the Sub-
version o f the Apocalyptic Imagination” , em Language, Meaning and God Essays in
Honour of Herbert McCabe O.P., ed. B. Davies (London: Chapman, 1987), p. 167-
89; e B. M. F. van Iersel, “ Failed Followers in Mark: Mark 13:12 as a Key for the
Identification o f the Intended Readers” , CBQ 58 (1996), p. 244-63.
21 H á um paralelo para o versículo 13 em 4Esdras 6:25, “E será que quem permanecer
depois de tudo que profetizei para vocês será salvo e verá minha salvação e o fim
do m undo” . Com pare com o elogio de Abdiel que se opôs sozinho à rebelião de
Satanás, em Paraíso Perdido 6.29-37:
Servo de Deus, cobriste-te de glória
Tu que, às sós, contra inúmeros rebeldes,
A causa da verdade sustentaste:
Das palmas a m elhor na destra empunhas.
Tens em tua constância mais grandeza
D o que eles m ostram no poder das armas:
Da alta verdade o testem unho dando
Chamaste a ti o universal opróbrio,
Mais duro de sofrer que a dor mais dura:
Viste que mundos maus te reputavam
E só de Deus a aprovação quiseste.
489 M a rc o s 13.14-18

M arcos 13.6-13 descreve a experiência d a igreja após a ascensão de Jesus.


O livro d e A to s, c o n fo rm e o b serv am o s, fo rn e c e u m co m en tário so b re quase
to d o s os versículos d essa seção. E sse co m en tário , é claro, n ão se limita a A tos,
p o is os fe n ô m e n o s ali ap resen tad o s são descritivos em vários graus de to d as
as ép o c as d a h istó ria da igreja. O p e río d o de te m p o aqui descrito, p o r m ais
lo n g o q u e seja, é u m ín terim an te rio r à p arúsia. M arcos n ão ap resen ta para
os cristãos u m p lan o p ara o fu tu ro , m as, antes, a con fiança n o p ro p ó sito e
p re sen ça d e D e u s n o ín terim da igreja. O s alertas aqui p resen tes re p etem e
ex p a n d em o c h a m a d o d e Jesu s ao d iscipulado em 8.34: “ Se alguém quiser
aco m p a n h ar-m e , n eg u e-se a si m esm o , to m e a sua cru z e siga-m e” . A palavra
para “ trai[r]” (gr. paradidom), usada re p etid as vezes em relação a Jesu s em
M arcos (3.19; 9.31; 10.33; e dez vezes n o s cap ítu lo s 14— 15), é agora aplicada
aos cristão s (13.9,11,12). C h eg o u a h o ra d o s cristãos carreg arem a cru z da
q u alje su s falou. C arregam a cru z “persevera [ndo] a té o f im ” (v. 1 3 ;D n 12.12).
A v ida d e fé n ã o re p resen ta u m a isenção da adversidade, m as a confiança na
p ro m e ssa d e D e u s p ara d a r te ste m u n h o d o evangelho n a adversidade e ser
salvo p a ra a v id a etern a p o r in te rm é d io dessa atitude.

A T R I B U L A Ç Ã O (13 .1 4 -1 8 )

O te x to d e 13.14 ap resen ta u m d esastre específico, “ o sacrilégio terrí-


vel” , q u e p recip itará o so frim e n to de m ag n itu d e indescritível. O versículo
é d u p la m en te difícil de in te rp re ta r p o r causa d a ad m o esta ção explícita de
M arco s p ara en te n d e r (“ q u em lê, e n te n d a ”) algo tã o en igm ático — e que
até o m o m e n to desafia explicação. Q u al é o sen tid o desse tex to m uitíssim o
difícil e d eb atid o ?

14-18 O versículo 14 deve ser e m p arelh ad o c o m o versículo 7: o que os


discíp u lo s ouviram antes (“ Q u a n d o o u v ire m ” , v. 7), agora eles verão (“ quan-
d o vocês v irem ” , v. 14). O “ sacrilégio terrível” é u m a frase retirad a de três
referências enigm áticas em D an iel 9.27; 11.31; 12.11 p ara u m escândalo que
p o d eria m acu lar e p ro fa n a r o tem p lo d e Jeru salém . A m esm a frase é usada
em IM a cab e u s 1.54 p ara descrever A n tío c o IV (E pífanes), o general sírio que
h o rro riz o u o s judeus em 168 a.C. ao erigir u m altar a Z e u s n o altar de ofertas
queim adas d o tem p lo d e Jeru salém e o fe rec er u m a p o rc a ali.22 O sacrilégio de

22 A presença dessa única frase em Daniel é uma das várias razões por que muitos
estudiosos acreditam que Daniel foi com posto na época da Revolta Macabeia e
que sua narrativa da invasão de Jerusalém p o r N abucodonosor três séculos antes
M a rc o s 13.14-18 490

A n tío c o n o tem p lo d e Jeru sa lém to rn o u -se u m a p ro v o cação d ram ática que


resu lto u n a R evolta M acabeia que, c o n tra to d as as expectativas, conquistou
para os judeus o ú n ico século d e g o v e rn o p ró p rio e n tre a q u ed a d e Jerusalém
para N a b u c o d o n o s o r e m 586 a.C. e a fo rm a ção d o E s ta d o de Israel em 1948.
E m seu co n te x to original, “ o sacrilégio terrível” , p o rta n to , referia-se à
ab o m in aç ão p erp e tra d a p o r A n tío c o IV c o n tra o te m p lo e o judaísm o no
século II a.C. E sse ev e n to é re m e m o ra d o em 13.14 c o m o a prefiguração ou
sím b o lo d e algo ig u alm en te u ltrajan te e cataclísm ico a o c o rre r n o futuro.
O ap a rte d e M arco s — “ q u em lê, e n te n d a ” — é p ra tic am en te tão confuso
q u an to a ab o m in aç ão em si. E m b o ra esse ap a rte o c o rra n a b o ca d e Jesus,
dificilm ente foi p ro ferid o p o r ele um a vez q u e está falando, e n ão escrevendo.23
E sse é o c o m e n tá rio editorial m ais explícito q u e M arcos faz até esse p o n to
da narrativ a (3.21b,30; 7.3,4,19c; 16.8c).24
Q u e e v e n to M arco s q u e r q u e e n te n d a m o s ? H á trê s p o ssib ilid ad e s
principais. U m a foi a ten tativ a eg ó latra d e Caligula, im p e ra d o r ro m a n o de
37-41 d.C., q u e te n to u erigir estátuas d e si m e sm o n o tem p lo d e Jerusalém
e q ue q ueria q u e fo ssem ado rad as co m o d eu s (Josefo, Guerra 2.184-203). A
referên cia ao “ ‘sacrilégio terrível’ no lugar25 o n d e n ã o deve estar” (grifo do
autor) p o d e ria ser co n sid erad a c o m o u m a referência à louca am b ição de
Caligula.26 A estátu a d e Caligula, ap esar d a co n v en iência d esta re p re se n ta r o

é um disfarce para os eventos referentes ao ataque de Antíoco IV a Jerusalém e


ao tem plo (veja D n 11.31).
23A sugestão de que Jesus se referia à leitura do livro de Daniel é forçada.
24Já se sugeriu que o comentário “quem lê entenda” pode ter sido uma anotação de
um escriba feita na margem de um dos primeiros manuscritos que, subsequente-
mente, foi incorporado no texto do evangelho. O fato de Marcos não se interpor
de forma tão explícita no texto torna essa sugestão fascinante. N o entanto, uma
vez que não existe nenhum a evidência manuscrita de que a frase não estava pre-
sente no texto de Marcos, não nos resta outra alternativa a não ser considerá-la
marcana.
25 O participio grego hestékota é um acusativo singular masculino, referindo-se a um
hom em (ou algo do gênero masculino) em pé.
26Para uma recente proposta dessa tese, veja N. H. Taylor, “Palestinian Christianity
and the Caligula Crisis, Part I: Social and Historical Reconstruction”, JSN T 61
(1996), p. 101-24; o mesmo autor de “Palestinian Christianity and the Caligula
Crisis, Part II: T he M arkan Eschatological Discourse” ,JSN T 62 (1996), p. 13-41,
que segue a tese geral de G aston, No Stone onAnother. A tese de Taylor não é im-
plausível, mas suas especulações excedem substancialmente nosso conhecim ento
limitado dos eventos em torno da crise Caligula.
491 M a rc o s 13.14-18

sacrilégio terrível, difere e m dois asp ecto s relevantes d e 13.14-17. O prim ei-
ro, o s judeus, d u ra n te o d esastre causado p o r Caligula, n ão fugiram “p ara
os m o n te s ” (v. 14), m as, antes, “ap resen taram a si m esm o s, a suas esposas e
filhos p ara o m assacre” (Josefo, Guerra 2.197). O c o m p o rta m e n to deles, em
o u tra s palavras, foi o o p o s to d o p re scrito n o s versículos 14-16. O segundo,
e m ais im p o rta n te , as estátuas de Caligula jam ais fo ram erigidas — graças à
recusa d e P etrô n io , o g en eral n o c o m a n d o das o p eraçõ es, e ao assassinato
su b seq u e n te d e Caligula. E n tã o n ão havia n ecessidad e d e fugir d e Jeru salém
o que, c o n fo rm e o b serv am o s, eles se recu saram a fazer. A crise Caligula, p o r
con segu in te, falha em vários asp ecto s im p o rta n te s em fazer u m paralelo com
os versículos 14-17.
A seg u n d a possibilidade é co n sid erar 13.14 c u m p rid o n a d estru ição do
tem p lo p o r T ito. E ssa é a explicação m ais c o m u m desse texto. E ssa co rres-
p o n d ê n c ia , já n a trad ição sinótica, é feita p o r M ateus 24.15 q u e identifica
ex p ressam en te n ão só “o sacrilégio terrível” c o m o p ro v en ien te d o “ p ro feta
D a n ie l” , m as ta m b ém o fato de estar “ n o L u g ar S an to ” . Lucas 21.20 e 19.43,
d a m e sm a fo rm a , d escreve os exércitos e o cerco de Jerusalém . A referência
ao estar “ n o L u g ar S an to ” em M ateus 24.15 p o d ería ser u m a referên cia à
en tra d a d e T ito n o tem p lo em se te m b ro de 70 d.C. (Josefo, Guerra 6.260); e
as referências d e L ucas d escrev em co m clareza o àrcumvallatio, o p erím e tro
d e defesa erg u id o p ela D é cim a L egião R om ana, so b o c o m a n d o de T ito n o
ce rco d e Jeru sa lém , d esc rito d e fo rm a inesquecível p o r Jo se fo em Aguerra
dosjudeus? A lusões ao ce rco d e T ito e à d estru içã o de Jeru sa lém tam b ém
ap arecem em o u tras literaturas.2728
C o n tu d o , a co rrelação d e M arcos 13.14 co m a d estru içã o d o tem p lo é
m u ito m e n o s ap aren te, p elo m en o s da fo rm a c o m o aquele ev en to foi regis-
tra d o p o r Jo sefo . C o m certeza, os versículos 14-18 anunciam u m desastre
n a Palestina. A s p esso as n o s telh ad o s plan o s d e suas casas palestinas teriam
d e fugir pela escada ex tern a sem en tra r n a casa (v. 15; veja a discussão das
casas palestinas em 1.29 e 2.1), e o tra b a lh a d o r q u e estivesse n o cam p o não
teria te m p o p ara b u scar seu m a n to (v. 16). O d estin o p io r d e to d o s seria o
das m u lheres grávidas e das m ães que ain d a estivessem am am en tan d o os

27 U m similar àrcumvallatio ainda pode ser visto hoje em redor de Massada.


28 Dois séculos de textos gnósticos, 2Apocalipse de Tiago 5:4 e O testemunhoda verdade9:3,
aludem ao cerco de Jerusalém por Tito e à subsequente destruição dessa cidade.
D a mesma forma, 2Apocalipse de Baruque 7.1— 8.5; 48.34-47; 4Esdras 10.21-24,
produzidas no final do século I; e m. Sot. 9.15 aludem à queda de Jerusalém, (citado
em HCNT, p .l33-35).
M a rc o s 13.14-18 492

filhos (v. 17; veja L c 23.29-31) e q u alq u er p esso a fug ind o n o in v ern o quan-
d o os uádis — as ravinas e desfiladeiros — ficam cheios, sen d o im possível
atravessá-los (v. 18).
E m o u tro s asp ecto s, n o en tan to , M arcos 13.14 se distancia d e form a
substancial d o s ev en to s em to rn o d a d estru ição d o tem p lo p o r T ito .29 M arcos
n ão localiza “ o sacrilégio terrível” n o tem p lo (com o o faz M t 24.15), mas,
antes, “ n o lugar o n d e n ão deve estar” . E ssa descrição enigm ática é possível-
m en te u m a circu n lo cu ção judaica p ara o tem p lo , sim ilar talvez às frequentes
referências a Jeru salém em D e u te ro n ô m io c o m o “ o lugar que o S e n h o r , o

seu D e u s, escolhe[u] co m o hab itação d o seu N o m e ” (D t 12.11), m as não


p o d e m o s te r certeza disso. O versículo 14, d e q u alq u er fo rm a, afirm a que
quando “ o sacrilégio terrível” estiver n o lugar, então os h ab itan tes devem
fugir p ara os m o n tes. Jo sefo , todavia, descreve os refugiados fugindo para
Jeru sa lém an tes d a g u e rra co m R om a, e n ã o sain do d a cidade. A lém disso,
u m a vez q u e T ito estava n o tem plo, na realidade assim que o drcumvallatio
fo ra erigido, a fu g a n ã o rep resen ta v a segurança, m as a m o rte ce rta — quer
pelos ro m a n o s q u e r pelo s b an d id o s rebeldes q u e eram ig ualm ente assassinos
(1Guerra 6.366). A té m e sm o E u sé b io q ue eq u acion a defato a d estru ição de
T ito co m “ o sacrilégio terrível” {Hist. Ecl 3.5.4) n ão faz n e n h u m a tentativa
p ara recon ciliar o versículo 14 co m as circunstâncias históricas relacionadas
c o m a q u ed a d e Jeru salém , p o is ele registra a fuga d os cristãos d e Jerusalém
m u ito antes d a invasão d e T ito — e fuga n ã o p ara os m o n tes, m as p ara Pella,
n a T ra n sjo rd ân ia {Hist. Ecl. 3.5.3). M ais u m a vez, o versículo 18 fala da fuga
n o in v erno, ao p asso q u e o cerco de Jeru salém p o r T ito aco n teceu n o verão
(julho-setem bro, 70 d.C.). Jo se fo n ão d em o n stra interesse n o fato de T ito estar
n o tem p lo (veja Guerra 6.260), m as, antes, enfatiza re p etid as vezes o fo g o e
a conflagração q u e d e stru iu o tem p lo , d o qual n ã o h á m en çã o em M arcos.30
O b jetiv am en te, a co rrelação d o versículo 14 co m a d e stru ição d o tem p lo é,
na m e lh o r das h ip ó teses, ap en as u m a aproxim ação.31

29 Veja Hengel, Studies in the Gospelof Mark, p. 16-18: “A referência aos habitantes não
se ajusta a qualquer situação histórica autêntica que seja de nosso conhecim ento” .
30 A referência à destruição do templo pelo fogo no Evangelho de Pedro 26 é uma
tentativa óbvia de correlacionar o “sacrilégio terrível” com o cerco de Tito.
31 O incidente Phanni, recontado por Josefo, Guerra4.155, é ainda menos provável. Os
zelotes, após tomarem o templo em 66 d.C., recrutaram um palhaço chamado Phan-
ni para zombar do sumo sacerdote e seu sacrificio. Embora Josefo denomine esse
incidente de “impiedade monstruosa”, ele fica empalidecido em comparação com o
desastre descrito em Marcos 13.14-18 e dificilmente poderia ser o mesmo evento.
493 M a rc o s 13.14-18

A terceira possibilidade é que “ o sacrilégio terrível” refere-se ao “h o m e m


d o p e c a d o ” , co n fo rm e co n ceb id o em 2T essalonicenses 2.3,4, que exaltará a si
m esm o c o m o D e u s n o tem p lo (ou c o m o o “ F ilho d e D e u s ” , d e aco rd o c o m
Didaquê 16.4). A s co n co rd ân cias de 2 T essalonicenses 2 co m o versículo 14
são m u ito m ais próxim as. O “h o m em d o p e c a d o ” c o rre sp o n d e ao h o m em em
pé (participio m asculino) n o versículo 14; e a descrição dele p aro d ia n d o D eus
n o tem p lo se co rrelacio n a co m “ ‘o sacrilégio terrível’ n o lugar o n d e não deve
estar” (grifo d o autor). O s dois textos d escrev em u m an ticristo blasfem o que
fará um a ação escandalosa q u e desen cad eará o re to rn o d o S enhor.32 O s dois
tex tos tam b ém alertam os discípulos co n tra p re ssu p o sto s escatológicos equi-
vocado s, esp ecíficam en te c o n tra serem e n g a n ad o s p o r sinais e m aravilhas.33
P ara re su m ir a discussão d e 13.14. P rim eiro, as palavras utilizadas ar-
g u m e n ta m co m veem ência p o r u m a co m p o siçã o d o evangelho d e M arcos
a n terio r a 70 d.C ., pois esp eraríam o s m aio r co rre sp o n d ên c ia c o m o co lapso
cataclísm ico d e Jeru salém , c o m o é p artic u la rm en te o caso co m Lucas, se
M arco s estivesse escrev en d o ap ó s 70 d.C. Segundo, o versículo 14 parece
ser u m a pred ição g en u ín a de Jesus, e n ão d e u m a ■vaticinium ex eventu (um a
pred ição em retro sp ectiv a n o s lábios dele), pois se tivesse sido co m p o sto após
Caligula o u T ito , d everíam os m ais u m a vez esp e rar m aio r co rresp o n d ên c ia
co m as circunstâncias desses eventos.34 A am biguidade d o versículo 14, que se
esquiva d e u m a in te rp re taç ã o exata, é sua m aio r afirm ação de autenticidade.
P o r fim , e m ais im p o rta n te , o versículo 14, c o m o 2T essalonicenses 2, indica
q u e Jesu s p rev iu o su rg im en to de u m terrível an tag o n ista, o anticristo, que,
em algum te m p o fu tu ro , liberará u m a terrível tribu lação so b re o p o v o de
D e u s, ev en to esse q ue co n d u z irá à volta d o S enhor. M arcos relaciona esse
ev en to ab o m in áv el de fo rm a apenas enigm ática e sugestiva co m a d estruição
d o tem p lo .35 E le, ao fazer isso, atribui v alo r h istó rico e escatológico para o

32 Veja Wenham, The Rediscovery of Jesus’ Eschatological Discourse, p. 176-80.


33 Marcos 13.14 e 2Tessalonicenses 2.1,2 encontram um terceiro paralelo no Didaquê
16 que também fala de apostasia levando um enganador mundial a ser visto como
Filho de Deus, seguida pela grande tribulação e depois a vinda do Senhor.
34 Veja a conclusão de Wenham em The Rediscovery of Jesus’ EschatologicalDiscourse, p.
373: “É preciso admitir que se essa tradição pré-sinótica [i.e., aquela compartilhada
por 2Ts 2 e Mc 13.14] era bem conhecida no início da década de 50, e se Paulo e
todos os evangelistas reconheciam essa tradição com o o ensinamento autoritativo
de Jesus, o ônus da prova tem de ficar com aqueles que negam o ensino a Jesus,
e não com aqueles que o afirmam” .
33 A correlação entre o versículo 14 e a destruição do templo fica implícita (1) pela
referência à “Judeia”, que localiza a abominação ou “ sacrilégio terrível” na Pales-
M a rc o s 13.14-18 494

m esm o evento. O versícu lo 14, p o rta n to , é a articulação de M arcos 13 que


liga “ essas co isas” , relacionadas co m a d estru içã o de Jeru salém em 70 d.C.,
c o m “ n aqueles dias” d o fim . O “ sacrilégio terrível” faz alusão à destruição
d o tem p lo em 70 d.C ., m as esse ev en to n ão esg o ta o tem a desse versículo. O
“ sacrilégio” é u m a referên cia d u p la e m isteriosa (2Ts 2.7), u m in term ed iário
histó rico q u e an tec ip a u m c u m p rim en to d errad e iro n o ad v en to d o anticris-
to e d a tribu lação final antes d o re to rn o d o F ilho d o h o m em . A d estruição
de Jeru sa lém p o r T ito é co m o u m film e de re co n h ec im en to : fo rn ece um a
im agem au tên tica d e u m o p o n e n te fu tu ro ; m as, é claro, existe u m a g rande
diferença e n tre o c o n fro n to en tre os o p o n e n te s em u m estádio e o sentar-se
apenas p ara assistir o filme.
A ssim , n ã o tem o s u m “ sinal” à p ro v a d e e rro s n o “ sacrilégio terrível” .
A o lo n g o d o s séculos a igreja, c o m o os discípulos, b u sca p o r provas infalíveis
d o fim. Talvez isso seja inevitável, pois algum c o n h e c im en to n o s alivia das
respo n sabilid ad es d e e sp e rar e observar. N o en tan to , “ o sacrilégio terrível”
n ã o é esse sinal. E le exige escru tín io e vigilância. A salvação trazida p o r Jesus
n ão é u m a salvação d e co n h ecim en to . A salvação d e Jesu s é antes u m caminho
— d e seguim ento, d e fidelidade, de vigilância em n o sso s p o sto s, pois “ q u an to
ao dia e à h o ra n in g u ém sab e” (13.32). N ã o é u m a fo rm a de p rescin d ir d o
m istério, m as d e v iver no m istério.

A T R IB U L A Ç Ã O ( 13 . 19 2 3 ‫)־‬
A ca tá stro fe q u e se ab a te u so b re Jeru salém na G u e rra Ju d aica d e 66-70
d.C. era u m a p ro lep se , u m p arad ig m a n a h istó ria d o s ais q u e tran sp iraram n o
fim d a história, an tes d o re to r n o d o F ilh o d o h o m e m . O b se rv a m o s n a in tro -
d u çã o d este cap ítu lo q u e M arco s 13 é o rq u e strad o pelas estru tu ras d e te m p o
antifonárias, altern an d o e n tre u m fu tu ro im ed iato (“ essas coisas” , lev an d o à
q u ed a d e Jerusalém ) e u m fu tu ro d errad e iro (“ n aqueles dias” d a g ra n d e tri-
bulação e parúsia). A articu lação en tre os dois fu tu ro s o c o rre n o “ sacrilégio
terrível” n o versícu lo 14. O s ev en to s en tre o versículo 14 e o versículo 27
an tecip am o fu tu ro escato ló g ico d errad eiro , significado p o r “ naqueles dias”
(w . 17,19,20,24), u m te rm o sem itécn ico n a escatologia judaica p ara o cálculo
final d o fim d o s tem p o s (e.g., lEnoque 80.1; 4 E sd ra s 4.51).

tina; (2) pelo fato de que 2Tessalonicenses 2.4 alude a Daniel 11.36,37 e, portanto,
ecoa o “sacrilégio terrível” ou “abominação do assolamento” (ARC); e (3) pelo
fato de que a referência ao “ sacrilégio terrível” (Dn 11.31) (i.e., o sacrilégio e des-
truição do tem plo por N abucodonosor/A ntíoco IV) em geral faz paralelo com
a destruição do templo de Jerusalém por Tito.
495 M a rc o s 13.19-22

1 9 ,2 0 A referên cia à g ra n d e trib u lação é m o ld a d a seg u n d o D an iel 12.1,


em q u e o arcan jo M iguel alerta os eleitos so b re o q u e su ced erá a eles n o fim
d o s tem p o s. A “ trib u lação ” (w . 1 9 ,2 4 ; gr. thlipsis) q u e a c o m p a n h a “naqueles
dias” é ta m b é m u m te rm o sem itécnico n a literatu ra judaica p ara os ais d o
fim d o s tem p o s (D n 12.1; J 1 22.2; IM a c 9.27 ;As. Mos. 8.1). O original greg o
d o versículo 19 é p ro lix o e re d u n d an te, p resu m iv elm en te u m a tentativ a de
ex p ressar q u e n ad a c o m o “n aqueles dias” já a c o n te c e u an tes o u d esd e essa
ép o c a.36 A s circunstâncias serão tão h o rre n d a s que, a m en o s q u e D e u s in-
terv e n h a p ara abreviá-las, “n in g u ém so brevivería” (v. 20). A frase específica
“ tivesse ab rev iad o tais dias” o c o rre n a lite ratu ra apocalíptica co m referência
ao eschaton final (B arn. 4.3).37 M ais u m a vez, a re fe rê n cia ao “ eleito” (gr.
eklektos), q u e o c o rre em M arcos só n essa seção (w . 20,22,27), é u sad a ex-
elusivam en te n o s evangelhos sin ó tico s p ara as relações escatológicas.38 U m a
situ ação é descrita, e esta n ão tem paralelos n a h istória hum an a; à p a rte da
in terv e n ç ã o e assistência graciosas d e D e u s, será h u m a n am e n te im possível
d e so b rev iv er n aqueles dias. D e u s p o u p a rá o eleito, se n ão d o so frim en to ,
p elo m e n o s d a aniquilação. O cataclism o d esc rito aqui, é claro, excede em
h o rr o r a q u alq u er ev en to h u m a n o co n h ecid o , ap esar d e a qu ed a de Jerusalém
ser u m tip o d esse evento.

2 1 ,2 2 A linguagem e tem as d o s versículos 21,22 rem e m o ram os versí-


culos 5-8.39 C o n tu d o , o p ro p ó sito m u d o u agora, p ois os alertas anteriores
referiam -se aos im p o sto res m essiânicos na qu ed a de Jerusalém co m o u m sinal

36Josefo recorre a tal linguagem e categorias na descrição da destruição de Jeru-


salém: “nenhum a outra cidade suportou misérias tamanhas, nem desde que o
m undo com eçou houve uma geração mais prolífica no crime ( Guerra 5.422). Da
m esm a forma, ao descrever a enigmática guerra entre os filhos da luz e o grupo
das trevas, o WarScrollàe Cunrã afirma: “D e todos os sofrimentos deles, nenhum
será com o esse, apressar-se até que a redenção eterna seja cumprida” (1QM 1:12).
O bserve o paralelo similar com o versículo 17 em Sib. Or. 2.190: “Ai destes, por
tantas quantas estiverem gerando no ventre naquele dia, por tantos quantos bebês
ainda m am ando no peito, [...] ai destes, p o r tantos quantos verão aquele did\
37Apocalipse deAbraão 29.13; 2Baruque 20.1; 4Esdras 4.26; lEnoque 38.2; 39.6,7; 80.2.
Veja Str‫־‬B 1.953; para uma posição contrária, Hooker, The GospelAccording to Saint
Mark, ρ. 316.
38 G. Schrenk, “ eklektos”, TONTA. 186-189; J. Eckert, “eklektod’, E D N T \.417.
39 “Aparecerão” {egerthèsontai, w . 8,22) pretendentes messiânicos (“Sou eu!”, v. 6; falsos
Cristos e falsos profetas, w . 21,22); e os cristãos serão enganados (planèsousin, v.
6; apoplanan, v. 22) pelos sinais e maravilhas (w. 7,8, 22).
M a rc o s 13.23 496

d e qu e ainda n ã o era o fim , ao p a sso q u e aqui a aparição d e falsos C ristos e


p ro fetas é u m sinal d e q u e o fim está p ró x im o (veja 2Ts 2.2-4; Evangelho de
Tomé 113). O v erd ad eiro M essias está relu tan te em realizar sinais e m aravilhas
para n ão fo rçar a aliança das p esso as co m ele; os falsos p ro fetas, p o r sua vez,
explo ram to d o s o s m eio s p ara g a n h a r os eleitos (v. 22), c o m o fizeram d esd e a
fu nd ação de Israel (D t 13.1-5).40 Iro n icam en te, m uitos crerão n a m ensagem e
n o s sinais d o s falsos C risto s — e eles levarão m u ito s a se desviarem (v. 6), até
m esm o os “ eleito s” (v. 22); p o r o u tro lado, m u ito s n ã o creram n a m ensagem
d o v erd ad eiro C risto (8.14-21).

23 “ P o r isso, fiquem aten to s” , diz Jesus. O original greg o é u m im perativo


direto, o u seja: “ P restem atenção!” , “ F iq u em alertas” . A m arca d a fidelidade é
o ficar ate n to ; n ã o é o p re v er o fu tu ro , m as a ob ed iên cia n o presente. Q u a n d o
C risto re to rn ar, ele cu m p rirá m uitas das p ro fecias d o A n tig o T estam en to
so b re o fim d o s tem p o s. M as segundo, ap esar d o s sinais im inentes, os cris-
tãos n ã o p o d e m calcular q u an d o , o n d e n em c o m o o fim d o s tem p o s virá.
Q u a n d o vier, n in g u ém deixará de p e rc e b e r q u e ele cheg ou; até o fim chegar,
q u e n in g u ém seja en g an ad o . Jesus, p o r sua p ró p ria au to rid ad e (“ avisei-os
de tu d o an tec ip a d am en te”), alerta o s discípulos e a igreja p ara que n ão se
distraia n em se desv ie d a o b ed iên c ia ao F ilh o d o h o m e m so fred o r, n em p o r
especulações e n g e n h o sa s n e m p o r sinais e m aravilhas.

O R E T O R N O D O F IL H O D O H O M E M E M G L Ó R I A (13 .2 4 -2 7 )

E sse p reju ízo cau sad o p elo u so equivocado d a escatologia — so b re tu d o


n os E sta d o s U n id o s c o n te m p o râ n e o — re su lto u em u m eclipse real da esca-
tologia na vida d a igreja. E sse infeliz co n ju n to de circunstâncias — ta n to o
ab u so q u a n to a su b seq u en te negligência — en fraq u eceu a igreja, em vez de
fortalecê-la. Se d isp en sarm o s a escatologia, e n tão o p ro p ó sito e d estin o da
h istó ria caem só nas m ão s h u m an as. N in g u ém , assim creio, cristão o u não,
co nsola-se c o m esse p ro sp e cto . A m e n o s q u e a h istó ria h u m an a, c o m to d a
sua gran d eza e potencial, b em c o m o sua p ro p e n são ao m al e destruição, possa
ser redimida, a vida h u m an a é fútil e u m a só rd id a aventura. O anseio de que

40 H á uma discrepância na tradição manuscrita do versículo 22 se os falsos profetas


“darão” (dõsousin) sinais e maravilhas, ou se eles os “ farão” (poiêsousin; D K Θ; NIV,
“realizarão”). A primeira leitura é preferível p o r dois motivos: (1) tem um apoio
manuscrito muito mais forte; e (2) “darão” é um a expressão idiomática semítica
que, provavelmente, rem onta a Jesus, ao passo que “farão” pode ser explicado
como um a harmonização feita pelos escribas para um uso grego mais aceitável.
497 M a rc o s 13.24-27

as coisas não devam ser co m o são e não podem p e rm a n e c e r c o m o estão, é em


essência u m anseio escatológico. O g ra n d e final d o evangelho p reg ad o p o r
Jesu s é qu e h á u m a esperança garantida p ara o futuro. Isso n ão se fu n d am en ta
n a histó ria, n a lógica o u n a intuição, m as n a palavra d e Jesus, na asseveração
d e q ue “ n aqueles dias” a h u m an id ad e n ã o m ais u su rp a rá a história, m as a
ab a n d o n a rá ao seu S en h o r e C riad o r q u e re to rn a rá em glória e justiça para
co n d e n a r o m al, p ô r fim ao so frim en to e re u n ir seu p o v o p ara si m esm o.

24-27 A tribulação, o so frim en to , o m al e a m o rte n ão re p resen ta m u m


p o n to final p a ra a sen ten ç a da história. “ M as, n aqueles dias, após aquela
trib u laçã o ” , o F ilh o d o h o m e m re to rn ará . E ssa seção, m ais que qualquer
o u tra em M arco s 13, é u m a tram a d o ap o calíp tico judaico q u e descreve o
cataclism o có sm ico d o escu recim en to d o so l e da lua, a q u ed a das estrelas d o
céu e o abalo d o s c o rp o s celestes.41 O b v iam en te, essa n ão é u m a descrição
da q u ed a d e Jeru salém n em de q u alq u er o u tro cataclism o histórico, m as u m
ev en to m e tah istó rico q ue inclui a h istó ria, m as su b o rd in a e suplanta a his-
tória.42 São essas sublevações, e relatos falsos de p seudom essias (w . 21-23),
q u e assinalarão a v in d a d o F ilho d o h o m e m . S ch latter o b serv a o seguinte:

41 Isaías 13.10; 34.4; Ezequiel 32.7,8;Joel 2.10; 3.4,15; 4.15; Apocalipse 6.12-14; 8.12;
4Esdras 5.1,2; Assunção de Moisés 10.5; lEnoque 80.2; Oráculos sibilinos 3.796-97;
2Apocalipse de Baruque 25. Para uma discussão com pleta dos sinais concernentes à
vinda do Messias, veja Str-B 4/2.977-1,015.
42 Alguns estudiosos tentam argumentar que os portentos cósmicos dos versículos 24-
27 são apenas metáforas hebraicas descrevendo o julgamento divino contra os deuses
pagãos. Nessa visão, os versículos 24-27 não descrevem a parúsia, mas, antes, a
queda de Jerusalém. Veja R. T. France, Jesus and the Old Testament (London: Tyndale
Press, 1971), p. 231-33; T. R. Hatina, “T he Focus o f Mark 13:24-27: T he Parousia,
or the Destruction o f the Temple?” Bulletinfor BiblicalResearch 6 (1996), p. 43-66; B.
M. F. van Iersel, “T he Sun, Moon, and Stars o f Mark 13,24-25 in a Greco-Roman
Reading”, Bib 77 (1996), p. 84-92. Essa visão é extremamente duvidosa. Embora
o sol, a lua e as estrelas funcionem ocasionalmente como símbolos das divindades
pagãs, é muitíssimo improvável que esse seja o caso nos versículos 24-27.0 sentido
evidente dos versículos é escatológico (e.g., Bam. 4:3), e isso é confirmado pela re-
ferência a “naqueles dias” e ao abalo dos poderes “do céu” , e esses dois aspectos
são tipos escatológicos. R. T. France reconhece que hê hémera ekeinê (“ao dia”)
refere-se ao dia do julgamento final no versículo 32, mas ele falha em observar
que a mesma designação (embora no plural) aparece nos versículos 17,18,20 e 24.
Além disso, não fica claro por que Marcos deveria estar interessado na queda do
panteão greco-rom ano nesse presente contexto. A vinda do Filho do homem no
versículo 27 carrega o mesmo sentido que em 14.62, ou seja, a parúsia.
M a rc o s 13.24-27 498

“A descrição d a p arú sia co n siste quase to ta lm e n te de citações d a E scritura.


Jesu s n ão crio u suas p ró p ria s im agens p a ra o ev e n to n o qual ele, n a glória de
D eu s, revelaria a si m e sm o ao m u n d o ” . E le fu n d a m e n tav a a esperança dos
discípulos apenas nas palavras p ro féticas, d o m e sm o m o d o que se fortalecia
p ara a cru z c o m a certeza d e q u e o so frim en to e a v o n tad e divina estavam uni-
do s n a E scritu ra ” .43 E s s a é ain d a o u tra indicação de q ue Jesu s via a si m esm o
c o m o o cu m p rim e n to d a história d e Israel e q ue o te ste m u n h o definitivo para
sua m issão era u m a q u e stã o d e reg istro nas E scritu ra s de Israel (Lc 24.27)!
N a é p o c a d e M arco s (e, p ara alguns, n a n ossa), acreditava-se q u e as es-
trelas tin h am p o d e re s celestiais q u e influenciavam os assu n to s h u m an o s. N o
fim d o s te m p o s, to d o s esses p o d eres, reais e im aginários, serão obliterados. A
im agem é d e co lap so cósm ico total. A s trevas e o caos envolverão tudo, co m o
era an tes d a existência d o te m p o (G n 1.2). M arcos d escreverá m ais u m a vez
u m a co n d içã o d e “ trevas so b re to d a a te rra ” n a cen a da crucificação (15.33),
c o m o se as forças prim ais d o caos lançassem m ã o d e u m a tentativ a final e
d esesp erad a d e e n g o lfa r o F ilh o d e D eus. C o n tu d o , isso n ão p o d e acontecer.
A lgo a c o n te ce n a escala cósm ica, algo q u e a c o n te ce u en tre Jesu s e o lep ro so
em 1.42: o “ co n tág io d iv in o ” so b re p u ja tu d o q u e é im p u ro , e trevas e mal.
A m o rte d e C risto ap re sen ta a co n d e n açã o das trevas, n ão sua vitória. P o r
con seg u in te, o e sp e c tro d e aniquilação n o s versículos 2 4 2 7 ‫ ־‬instila confiança
e esperan ça, e n ã o p a v o r e h o rro r! A d estru içã o d o m u n d o n ão p o d e eclipsar
o re to rn o d e C risto, e ele, q u a n d o re to rn a r, reu n irá os seus p ara estarem co m
ele “p ara se m p re ” (lT s 4.15-18).
A im agem d o “ F ilh o d o h o m e m v in d o nas n u v e n s” (v. 26) é retirad a da
visão d e D a n ie l 7.13.44 Q u e iro n ia notável é essa, v in d a de u m h o m e m que
previra sua h u m ilh a ção e m o rte (8.31; 9.31; 10.33,34) e que até o m o m e n to
está se p re p a ra n d o p ara seu tra ta m e n to v e rg o n h o so nas m ão s de judeus e de
rom an o s. E le, q u e será cru cificad o c o m o u m crim in o so co m u m (F p 2.8), virá
“ c o m g ra n d e p o d e r e glória” . N o A n tig o T estam e n to , as nu v en s sim bolizam
em geral a p re sen ça e glória d e D e u s.45 Q u a n d o Jesu s re to rn a r “ nas n u v en s” ,

43 Der EvangelistMatthaus, p. 710. Tam bém citado em Cranfield, The GospelAccording


to St Mark, ρ. 406.
44 Os estudiosos m odernos interpretam com frequência o “filho do hom em ” de
Daniel 7.13 com o um coletivo de Israel. Veja, no entanto, o material reunido em
Str-B 1.956 em oposição a essa visão e tam bém a conclusão: “Daniel 7.13s. não é
jamais com preendido nos prim ordios do judaísmo com o uma expressão coletiva
para ‘o povo do Santo’ (= D n 7.27), mas sempre com o o Messias individual”.
45 Êxodo 16.10; 19.9; 24.15,16; 33.9; Levítico 16.2; N úm eros 11.25.
499 M a rc o s 13.28*29

isso só p o d e significar q u e D e u s n ão está m ais p re se n te n o tem plo, m as em


Jesus, o F ilh o d o h o m em .
A p re em in ên cia d o F ilho d o h o m e m ta m b é m se m an ifesta em 13.27. O
A n tig o T esta m e n to fala co m frequência d a reu n ião d e exilados e cativos em
Jeru sa lém n o D ia d o S enhor. C o n tu d o , aqui, eles são re u n id o s para Jesus “ dos
co n fin s d a te rra até os co n fin s d o céu” . E ssa frase estran h a, um a com binação
d e D e u te ro n ô m io 30.4; 13.8 e Z acarias 2.10,46 significa apenas “ d o s q u atro
v e n to s” e en fatiza co m veem ência a relevância universal de C risto. H á u m
co n tra ste m arc an te en tre o vasto a g ru p a m e n to có sm ico e a particularidade
d o F ilh o d o h o m em : os eleitos estão d isp erso s p o r vastas regiões e são di-
v ersos, c o m o to d a a criação, m as co n v erg em em u m ú n ico p o n to — o F ilho
d o h o m e m . Jesu s é o p o n to focal d a re d en çã o divina.
É ig u alm en te im p o rta n te o b serv ar o q u e essa gloriosa visão d o fu tu ro
não afirm a. N ã o h á m en çã o a um m ilênio, n e m à n o v a Jeru salém , n em à re-
c o n stru ç ã o d o tem p lo , n em à restau ração d e Israel o u d o E sta d o d e Israel,
n em à b atalh a d o A rm ag ed o m , n e m aos indicios de c o m o e q u an d o C risto
re to rn ará . O tex to silencia so b re to d as essas coisas. T o d o s esses incidentes
resu ltam n a v erd ad e p re em in en te d o p o d e r e glória da fu tu ra v inda de Jesus e
d a p ro m essa d e q u e seus eleitos se reu n irão a ele. E ssa previsão d o fu tu ro não
deve n o s iludir a calcular quando C risto reto rn ará, n em a tem er 0 que acontecerá,
m as d eve n o s levar ao c o n h e cim en to de que ele virá p ara resg atar seu povo.
Sua v in d a é su a p ro m essa , e a reu n ião d o s cristãos a ele é n o ssa esperança.

A L I Ç Ã O D A F IG U E I R A ( 13 . 2 8 3 1 ‫)־‬

E ss a seção re to m a o assu n to d a q u e d a d e Jeru sa lém d o s versículos 5-13,


indicada p o r “ estas coisas” d o s versículos 29,30, q u e se referem à m esm a
term inologia usada anteriorm ente. N o versículo 2, Jesus anunciou a destruição
d e “ to d a s estas g ra n d es c o n stru ç õ e s” . O s discípulos perg u n tam : “ quan d o
ac o n te ce rã o essas coisas?” (v. 4), e Jesu s diz q u e o s ais d a q u ed a d e Jerusalém
são “ o início das d o re s” (v. 8). “ E stas co isas” n a p re se n te seção re to m a a
m e sm a term in o lo g ia, alertan d o -n o s q u e M arcos se refere ag o ra à queda de
Jerusalém , e n ão ao fim d o m u n d o , c o m o na seção a n terio r (w . 14-27). “E stas
coisas” n o s versículos 29,30 d ificilm ente p o d e m se re ferir aos eventos esca-
toló gicos d o s versículos 24-27, q u e n ã o são sinais d o fim , m as, antes, 0 fim.
28,29 A am en d o e ira floresce ce d o n a Palestina, em geral antes d o fim d o
inverno. A s oliveiras, os carvalhos, o s te re b in to s e as árv o res sem pre-verde

46 Veja ainda Str-B 1.959-60.


M a rc o s 13.30-31 500

não p erd em as folhas n o inverno, e, p o rtan to , n ã o p o d e m anunciar a m udança


de estação. C o n tu d o , a figueira é diferente. E la p e rd e as folhas n o inverno, e
só b em tard e n a prim avera, q u a n d o o in v ern o já acab o u e o te m p o q u en te se
aproxim a, é q u e os g alh o s co m eç am a d a r b ro to s. Jesu s viu n a figueira um a
m etáfo ra ad eq u ad a p ara a aproxim ação d o fim . A ssim co m o o verão vem
to d o s os an o s sem q u alq u er esfo rço h u m an o , tam b é m D e u s cu m p re seu
rein o em seu p ró p rio tem p o . A figueira assinala q u e o verão “ está p ró x im o ”
(w . 28,29), m as n ã o su a im ediação, o u seja, que o verão está vindo, em b o ra
n ão assinale ex a ta m en te quando.
O original g re g o d o versículo 28 fala d e u m a “paráb o la” , m as a ilustração
da figueira n ão é u m a p aráb o la co m p leta, p elo m e n o s n ão n o sen tid o das
parábo las d e Jesus. E u m a analogia o u “lição” (com o n a N V I). N o capítu-
lo 11, Jesu s aplica a im ag em da figueira à d estru içã o d o tem plo. A m esm a
im agem fu n cio n a de fo rm a sim ilar aqui, significando u m cataclism o im inente
que os c o n te m p o râ n e o s d e Jesus testem u n h aria m .47 Iro n ic am en te, Jesu s usa
a figura d a figueira e d o cataclism o q u e se segue n ão c o m o u m alerta, m as
co m o exortação. Q u a n d o “ seus ram o s se re n o v am e suas folhas co m eçam a
b ro tar, vocês sab em q u e o v erão [...] está p ró x im o , às p o rta s ” .“V erão” (gr.
iberos) e “ às p o rta s ” (gr. thyrà) fo rm a m u m a aliteração n o g reg o e são im a-
gens positivas. “ Q u a n d o v irem estas coisas (gr. tauta) a c o n te c e n d o ” refere-se
ao “ início das d o re s” d o versícu lo 8, o u seja, o s ev ento s levando à qu ed a de
Jeru salém n o s versículos 5-13.

3 0 ,3 1 A q u ed a d e Jeru sa lém fu n cio n a m ais u m a vez c o m o u m paradigm a


m isterioso d o fim d o m u n d o . O s p ro n u n c ia m e n to s solenes o ac o m p a n h am
(“ sabem q u e o v erão ” , v. 28; “A ssim tam b ém , q u a n d o v irem ” , v. 29; “ E u
asseguro” v. 30) en fatizam ex a ta m en te o q u ão paradigm ática é a d estru ição
d o tem p lo p ara o es·chatón. A “g eraçã o ” q u e “ n ã o p assará [...] até q u e todas
estas coisas ac o n te ç am ” (v. 30) su scito u b astan te c o n tro v érsia n a teologia do
N o v o T estam en to . A g eração so b discussão, d e a c o rd o c o m n o ssa in terp re-
tação, n ão é a d a seg u n d a v in d a,48 m as a da g eração c o n te m p o râ n e a de Jesus
que viveu p ara te ste m u n h a r a d estru içã o d o te m p lo e a q ueda de Jerusalém .

47 D e form a similar, o Apocalipse de Pedro 2 vê na imagem da figueira a destruição da


casa de Israel, tam bém um símbolo do eschaton final.
48 Contra Bultmann (entre outros) que afirmou que “a expectativa de Jesus do fim
próximo do m undo resultou em uma ilusão” (Theology of the New Testament, trad.
K. G robel [New York: Scribner’s, 1951/1955], p. 1.22).
501 M a rc o s 13.30-31

A lém d o cataclism o, n o en tan to , está Jesus. “ O s céus e a terra passarão,


m as as m inhas palavras jam ais passarão.” Para Jesu s afirm ar que suas palavras
sobreviverão ao céu e à terra é um a declaração n o táv el de autoridade. O único
ser q ue, de m o d o aceitável, p o d eria fazer tal afirm ação é D e u s (tam bém Is
51.6). A q u i está u m a im p o rta n te chave p ara as p red içõ es escatológicas de
M arco s 13, p o is se fo r para as palavras d e Jesu s so breviverem ao cosm o,
en tão o m u n d o p o r vir já está p re sen te nelas. A palavra que se fez carne está,
p o rta n to , in extricavelm ente relacionada ao F ilh o d o h o m e m q u e vem nas
nu vens d o céu. Se em M arcos 13 os ev e n to s associados co m a encarnação
são m istu rad o s d e m o d o m isterioso co m aqueles da p arú sia — ev entos que,
p ara n o ssa fo rm a de pensar, são to talm en te sep arado s — p o d e ajudar lem brar
que, n o p la n o salvífico d e D eus, a encarn ação , a crucificação, a ressurreição,
a ascensão e a p arú sia são to d as elas facetas d e um ev en to — u m ta n to sim i-
lar à fo rm a q ue várias m o n tan h as separadas se u n e m c o m o u m a cordilheira
q u a n d o vistas p o r in term éd io d e u m telescó p io (2Pe 3.8). A prim eira e a
seg u n d a vin d as d o F ilho de D e u s co n sistem d e u m ev en to n o p lan o divino.
C ran field ca p ta a u nidade deles d a seguinte fo rm a: “ E ra, e ainda é, verdade
afirm a r q u e a p arú sia está próxim a. [...] O s h o m en s, d esd e a encarnação,
estão v iv en d o n o s últim os dias” .49

E X P E C T A T IV A E V IG IL Â N C IA (13.32-37)
O d iscu rso d o m o n te das O liveiras acab a c o m u m a n o ta de m istério.
Q u a n d o se revisa o cap ítu lo 13 c o m o u m to d o , isso p o d e parecer d esap o n ta-
d o r, p o is o d iscu rso se inicia co m u m p e d id o d e sinal (v. 4), o u seja, para u m
discern im e n to especial q u an to ao futuro. C o n tu d o , a p ren d em o s n a conclusão
que o co n h e c im e n to d o fim excede q u alq u er possibilidade d e cognoscibilida-
de: n ã o só cognoscibilidade h u m an a e angélica, m as até m esm o a cognosci-
bilidade d o F ilh o d e D eus. Sua co n su m aç ão re p e n tin a está esco n d id a apenas
n o m istério d e D eus. T o d o s os sinais fo ram so m ad o s p ara um a conclusão:
não épossível se p re p a ra r p ara o fim. Isso p o rq u e o fim é derrad eiram en te um
m iste rio so p re se n te agora, e n ão u m “ e n tã o ” . A ú nica p rep aração para o fim
é o ficar ate n to e a fidelidade n o p resen te.

49 Cranfield, The GospelAccordingtoStMark, p. 408. Sobre a unidade de todos os aspectos


do evento-Cristo na economia divina, veja do mesmo autor, “St. Mark 13”, SJT7
(1954), p. 288; e em especial K. Barth, ChurchDogmatics: TheDoctrine of Creation, 3/2 ,
ed. G. Bromiley e T. Torrance (Edinburgh: T. & T. Clark, 1960), p. 485-511.
M a rc o s 13.32 502

32 A seção final d o d iscu rso d o m o n te das O liveiras co m eça c o m um a


declaração d e Jesus: “ Q u a n to ao dia e à h o ra n in g u ém sabe” . O original
g reg o co m eç a c o m u m a adversativa explícita q u e n ã o é trad u zid a n a N V I:
“ M as a re sp eito daquele d ia” (ARA). Isso p õ e o versículo 32 em co n tra ste
co m o a ssu n to p re c e d e n te d e “ estas coisas” , o u seja, a q u ed a d e Jerusalém .
N a Bíblia, os te rm o s “ dia” e a “ h o ra ” em geral tran sm item u m sen tid o es-
catológico.50 “ D a q u ele dia” (ARA) está c o o rd e n a d o c o m “ aqueles dias” dos
versículos 17,19,20 e 2 4 e, p o r co n seg u in te, re in tro d u z em o tem a d a parúsia
d o s versículos 1 4 -2 7 .0 fim , n o en tan to , está c o b e rto em m istério, p o is “ n em
os anjos n o céu, n e m o F ilho, sen ão so m e n te o P ai” c o n h ece a p arú sia.51
O tex to d e 13.32 te m sid o u m a p e d ra d e tro p e ç o p ara a igreja, pelo
m en o s, d e sd e o sécu lo II.52 O s co n se rv ad o re s q u e stio n am o u rejeitam sua
auten ticid ad e p o rq u e atrib u i ig n o rân cia a Jesus; e o s liberais fazem o m esm o
p o rq u e atesta d a co n sciência q u e Jesu s tin h a d e sua filiação divina.53 N o en-
tan to, p e rm a n e c e o fato d e q u e é p o u q u íssim o provável q u e a igreja prim itiva
te n h a atrib u íd o u m d ito a Jesu s q u e lhe atrib u i ig n orância.54 O d ito ap resen ta
a m ais alta p o ssib ilid ad e d e reivindicar q u e te n h a v in d o d e Jesu s e q u e rep re-
sente sua m en te.55 O “ F ilh o ” é c o rre ta m e n te c o m p re e n d id o c o m o o F ilho
de D eus, e n ã o F ilh o d o h o m e m , u m a vez q ue esse ú ltim o títu lo n ão o co rre
n o s evangelhos co m o sen tid o ab so lu to (i.e., “ o F ilh o ”), ao p asso que “ F ilho

50 “D ia”, Isaías 2.12; Amós 5.18; Marcos 14.25; Lucas 21.34; 2Tessalonicenses 1.10;
2Tim óteo 1.12,18; 4.8; “hora” , João 5.25-28; Apocalipse 18.10. Veja Lohmeyer,
Das Evangelium des Markus, p. 283.
51 A ideia de que o tem po do eschaton é conhecido apenas por Deus é típico do
apocalíptico judaico: “Concernente aos sinais sobre os quais me pergunta, posso
lhe dizer em parte; mas não fui enviado para lhe dizer algo concernente a sua vida,
pois eu não sei” (4Esdras 4.52). Veja tam bém 4Esdras 6.11-28; Zacarias 14.7;
Salmos de Salomão 17.23; 2Baruque 21.8; Tg. Ket. Qoh. 7.24.
52 O texto de 13.32 foi discutido com frequência pelos pais da igreja dos séculos ΙΠ e IV
porque os arianos o citaram em apoio à discussão deles de que o Filho era subordinado
ao Pai. Veja a discussão em M.-J. Lagrange, Evangfle selonSaintMart, p. 349-51.
53Marcos 13.32 e M ateus 11.27 / / Lucas 10.22 são as únicas duas passagens no
N ovo Testam ento em que Jesus chama a si mesmo de form a explícita de “o Filho
[de Deus]” .
54 “Sua ofensa sela sua legitimidade” (V. Taylor, The GospelAccordingto St. Mark, p. 522).
55 Para uma discussão e defesa da autenticidade, veja B. M. F. van Iersel, “DerSohn”
in den synoptischenJesuswortenl (Leiden: E. J. Brill, 1964), p. 117-20.
503 M a rc o s 13.33*37

d e D e u s ” é u sad o de m o d o ab so lu to (e.g., M t 11.2 7 // L c 10.22).5657“ O F ilh o ” ,


q u e é co rre la to c o m o “ Pai” , significa “ o F ilh o d o Pai” , o u F ilh o de D eus.
E sse versículo co n tém u m p arad o x o im p ressio n an te. A qui, a asserção
o u sad a d a filiação divina está atrelada à im p ro v ável lim itação d a ignorância.
N e ssa ún ica p assag em n o evangelho de M arco s em q u e Jesus cham a d e for-
m a explícita a si m esm o de “ o F ilh o ” , ele ad m ite aquilo que não co n h ece e
nãopode fazer. E ssa ironia, co m certeza, está m u ito d e ac o rd o co m o re trato
de Jesu s em M arco s c o m o o Filho, pois Jesu s n ã o afirm a as p rerrogativas da
filiação divina à p a rte d a o b ediência c o m p leta à v o n ta d e d o Pai, m as antes
ab a n d o n a as afirm açõ es e cálculos em favor d a co n fian ça hum ilde n a vo n tad e
d o Pai. Ig u a lm e n te irô n ico é o fato de q ue o Filho, de fo rm a distin ta da dos
discípulos, a b a n d o n a to d as as afirm açõ es c o n c e rn e n te s ao fu tu ro n o p lano
d o Pai. O s discípulos q u erem u m sinal; e Jesu s q u er o Pai. N essas duas iro-
nias — a aceitação d e Jesu s de sua lim itação h u m a n a e seu to tal a b a n d o n o
d o fu tu ro nas m ão s d o Pai — , a filiação divina n ão é algo que separa Jesus
d a h u m an id ad e , m as o liga a ela c o m o u m exem plo a ser seguido.7’‫ ־‬O efeito
d o versículo 32, p o rta n to , direciona a aten ç ão exclusivam ente para o Pai, pois
“ N ã o c o m p e te a vocês sab er os te m p o s o u as datas q u e o Pai estabeleceu
pela sua p ró p ria au to rid ad e” (A t 1.7). O s cristão s — em m eio à calam idade
e d estru içã o , à tribulação e perseguição, q u a n d o até m esm o o sol, a lua e
as estrelas são abalados (w . 24,25) — p o d e m d esc an sar n a certeza de que
D e u s é ain d a Pai, e, co m o Pai, p e rm a n e c e firm e em sua v o n tad e, com paixão
e p ro p ó s ito justos.

3 3-37 A s ten taçõ es vêm em m uitas form as. P ro fe ta s falsos ap resen tam
esperan ças falsas; sinais equivocados levam ao m e d o e à ansiedade; o d e m o ­

56 Contra J. Jeremias, New Testament Theology, Part One: The Proclamation ofJesus, trad.
J. Bowden (London: SCM Press, 1971), p. 131, que afirma: “E m Marcos 13.32,
pelo menos, as palavras oudeho huios são secundárias p or causa do uso absoluto de
ho huios, que é estranho para a Palestina; por outro lado, o uso absoluto de hopater
é garantido com o uma tradução de ’A bbd\ A asserção de que o uso absoluto de
“o Filho” é estranho para a Palestina simplesmente não é sustentável. N o corpus
joanino, Jesus é chamado de “o Filho” vinte vezes, e em Hebreus, escrita para
uma audiência judaica, seis vezes. Jesus refere-se com frequência a Deus como
“Pai” , e não deveria nos surpreender nem um pouco que ele também se refira a
si m esm o em algumas ocasiões com o “o Filho”, em especial em uma passagem
em que o Pai e o Filho são correlatos.
57 Veja Schlatter, Der EvangelistMatthãus, ρ.713-14.
M a rc o s 13.33-37 504

ra r da p arú sia in d u z à co m p lacên cia e à negligência; a falta d e co n h ecim en to


in d u z à resignação e à d e rro ta . E sses e o u tro s fatores ten tam os discípulos a
ab a n d o n ar sua vocação. A vocação cristã se fu n d a m e n ta em u m fato repetido
duas vezes: “V ocês n ã o sab e m q u an d o virá esse te m p o ” (13.34,35). C ontudo,
a m esm a v o cação se fu n d a m e n ta em u m im p erativ o conseq u en te: “ F iquem
atentos! V igiem !” (v. 33). O dia e a h o ra v irão re p e n tin am en te (v. 36), quan-
d o aqueles q u e estão co nfian tes e m seus p ró p rio s cálculos estão dorm indo.
Jesus alerta cin co vezes — e co m três palavras d iferentes — os discípulos a
ficarem a te n to s e a vigiar.58 A brevíssim a p aráb o la n o versículos 34 so b re o
h o m e m q u e sai em viagem e que p o d e re to rn a r a q u alq u er m o m e n to salienta
esse p o n to .5960A p aráb o la foca o p o rte iro q u e tem apenas u m a “ tareffa]” . A
palavra grega p ara “ tareffa]” é exousia, a m esm a palavra u sad a p ara a autori-
dade divina d e Jesus. A qui, o te rm o indica a re spo nsabilidade q u e legitim a a
p o sição d o p o rte iro — vigiar. V iver fielm ente n o p re sen te, estar ate n to aos
sinais e estar p r o n to a q u alq u er h o ra p ara o re to rn o d o s e n h o r n ão é um a
tarefa en tre o u tras; essa é a única tarefa d o p o rteiro . O s discípulos são co m o
os po rteiro s; sua única vocação é, “p o rta n to , vigifar]” (v. 35), qualquer que seja
o m o m e n to — “ à tard e , à m eia-n o ite, ao ca n ta r d o galo o u ao am an h e cer” (v.
35). M arcos, para o beneficio de seus leitores, inclui as q u atro vigílias rom anas
d a n oite, e n ão as três vigílias judaicas. N a n arrativ a da paixão, três das q u atro
vigílias serão m en cio n ad as m ais u m a vez (14.17; 14.72; 15.1), m as os disci-
p u lo s falharão em vigiar d u ra n te as prim eiras duas vigílias e, n o G etsêm an i,
serão re p re e n d id o s cin co vezes p o r falharem em vigiar (14.34,37,38,40,41).®
“V igiem !” , essa é a palavra final e m ais im p o rta n te n o discu rso feito no
m o n te das O liveiras. M arcos 13 foca a adm o estação, e n ão as in fo rm açõ es;

58 Blepete (“Fiquem atentos!”, v. 33); agrypneite (“Vigiem!”, v. 33); grêgoreite (“vigifar]”,


w . 34, 35, 37). A primeira palavra implica discernimento; a segunda, estado de
alerta, e a terceira, vigilância. N o versículo 33, uma maioria dos escritos antigos traz:
“vigiai e orai’ (ARA; grifo do autor). Apesar do apoio manuscrito substancial para
essa leitura, há razão para duvidar de sua originalidade uma vez que (1) os copistas
acrescentariam naturalmente orar para essa admoestação (talvez em conformidade
com 14.38; Metzger, TCGNT, p. 112); (2) a admoestação nos versículos, 33-37 é
para vigiar, e não para orar; e (3) a oração é relativamente infrequente em Marcos
(dez ocorrências), e há apenas uma ocorrência no imperativo (14.38).
59 O Mestre de Justiça, em Cunrã, apresentou um ponto similar: “ a era final [...]
pode tardar, fmas] esperem por ela; ela definitivamente tem de vir e não tardará”
(lQ p H ab 7:7-10).
60 Veja Hooker, The GospelAccording to St Mark, p. 324.
505 M a rc o s 13.33-37

b u sc a in stig a r a o b ed iên cia, e n ã o p ro v e r c o n h e c im e n to s o b re a ssu n to s


m isterio so s e enigm áticos. “ O q u e digo a vocês, digo a todos: Vigiem !” (v.
37). Λ todos desig n a u m a audiência m ais am p la q u e apenas os D o ze. E ssa é
a palavra de Jesu s p ara os D o z e , a palavra d e M arco s para seus leitores, e a
palavra d o E sp írito p ara os cristãos d e to d as as eras. O fim virá de re p en te e
n ão se sabe q u an d o : viva em c o n sta n te p ro n tid ão .
capítulo quatorze

O abandono de Jesus
M A R C O S 14 .1— 72

O s ca p ítu lo s 14— 15 de M arcos d escrev em a traição, a prisão, o jul-


g a m e n to e a crucificação d e Jesus, tem as co n h e cid o s c o m o a “paixão” (da
palavra latina p ara “ so frer”). E sses capítulos c o rre sp o n d em de fo rm a m ais
clara, p a rtic u la rm e n te na sequência d o s ev en to s, às narrativas da paixão de
M ateu s e d e Lucas, in d ican d o q u e a narrativa da paixão fora m o ld ad a em
u m a u n id ad e e stru tu ra l antes d e M arco s recebê-la. N ã o o b sta n te , a p re sen ça
d e três co n v e n çõ es d e san d u ích e n o capítulo 14 e u m a n o cap ítu lo 15 são
evidências de q u e M arcos está n ão só tran sm itin d o a tradição, m as tam b ém
a in te rp re ta n d o p ara seus p ro p ó sito s.
O te m a geral d o cap ítu lo 14, o m ais lo n g o d o evangelho, é o ab a n d o n o
d e Jesus. O cap ítu lo se inicia c o m Jesus e os discípulos em Jeru salém , o n d e
en sin a e d eb a te c o m os líderes religiosos. C o n tu d o , ap ó s a ceia d o S enhor, há
u m a rá p id a e to tal d eserção, d eix an d o Jesu s só e a b a n d o n ad o . O capítulo 14
relata c o m d etalh es lastim áveis c o m o a o p o sição a n te rio r do s fariseus (3.6;
11.18; 12.12) se dissem ina em m eio à c o n se lh o g o v e rn a n te d o s judeus, dos
g o v e rn a n te s ro m a n o s e d o populacho. U m d iq u e ta m b ém se ro m p e nas filei-
ras d e seus discípulos, e to d o s eles — de Ju d a s a P e d ro — fogem . N a cruz,
Jesu s m o rre p ra tic am en te sozinho, c o n d e n a d o p o r R om a e a b a n d o n ad o pela
nação, p o r seu po v o , p o r seus seguidores e até m e sm o p o r seu Pai (15.34). O
d estin o d e Jesu s c u m p re de fo rm a d o lo ro sa o q ue Isaías disse sobre o servo
d e lavé, to d o s “ n o s d esviam o s” . Jesus, acusado, atacado, zom b ad o , sofre de
fo rm a tão silenciosa “ c o m o u m a ovelha q u e d ian te de seus tosquiadores fica
calada” (Is 53.4-9).
M a rc o s 14.1-2 508

O SA C R IF ÍC IO D E FÉ ( 1 4 . 1 1 1 ‫)־‬

A d e se rç ã o d o s seg u id o re s d e Jesu s se inicia c o m a tram a d e Ju d as


(14.1,2,10,11), n a qual M arco s insere a h isto ria d e u m a m u lh er que u n g e o
c o rp o de Jesu s p ara o sep u lta m e n to (w . 3-9). E sse é u m clássico sanduíche
m arcan o, em q u e M arco s é b em -su ced id o em ap re se n tar urna ideia sem pro-
ferir u m a só palavra. O m eio da história, co m o ac o n te ce n a técnica m arcana
de sanduíche, p ro v ê a chave p ara a c o m p re en são d o todo. O p arên tese da
d ev o ção d a m u lh er, q u e p e rm a n e c e c o m o um a p esso a de fora d e q u em não
sab em o s o n o m e, en tre m e a d o p o r u m a tram a de traição de u m m e m b ro do
círculo m ais ín tim o , cria u m co n tra ste cru el e m o rd a z en tre fé e traição. O
u n g ü e n to caríssim o d a m u lh e r é u m sacrifício exem plar de fé, ao p asso que a
tram a d e Ju d a s p ara trair seu m estre p o r u m a so m a de d in h eiro é u m sacrifício
d a fé n o p io r sen tid o o p o s to d o term o.

1,2 O tex to d e 14.1 inicia u m a “ n o v a p ágina” d a narrativa. O anúncio


“ para a Páscoa e para a festa dos pães sem fermento” n ão está co n ectad o
co m o cap ítu lo 13, n em co m o tem a d o tem p lo d o s três capítulos anteriores.
A ntes, ele d á início a u m a série d e ev en to s q u e levam de fo rm a inexorável à
crucificação. A celeb ração d a P áscoa, q ue re m o n ta ao relato d o êx o d o (Êx
12), era u m a das festas co m g ra n d e p ereg rin ação p ara a qual os judeus se
reu niam a n u a lm e n te em Jeru salém . U m co rd eiro o u b o d e d e u m an o e sem
m áculas (Ê x 12.5) era ritu alm en te sacrificado n o tem p lo na tard e d o dia 14
d e nisã (m a rç o /a b ril) e c o m id o ap ó s o p ô r d o sol (i.e., n o dia 15 d e nisã) em
reun iõ es fam iliares n a casa das p esso as (Ê x 12.6-20; N m 9.2-14; D t 16.1-8).
A P ásco a dava início à festa d o s pães sem fe rm en to , co m d u ração d e um a
sem an a (Ê x 12.15-20; 23.15; 34.18; D t 16.1-8), celeb ran d o a p artid a apres-
sada d os israelitas q u a n d o saíram d o E g ito , q u an d o n ã o tiveram te m p o para
deixar a m assa d o p ã o crescer. A festa d o s pães sem fe rm e n to exigia q u e os
israelitas se livrassem d o s alim en to s e ta m b é m d o fe rm en to . A Páscoa, p o r
sua c o n e x ão c o m a festa d o s p ães sem fe rm en to , p o d e se referir o u ao sacri-
fício d o co rd e iro e à refeição n o s dias 14-15 de n isã o u a to d a o b servância
de sete dias. M arcos d istingue en tre os dois ev e n to s em 14.1, o q u e indica
que a referên cia a dois dias diz resp eito à P ásco a.1
A referência à P áscoa c o m o faltando “apenas dois dias” deve provável-
m en te ser co m p reen d id a de ac o rd o co m o cálculo inclusivo d o tem p o pelos *
1 Str-B 4.41-76; H. Patsch, “pascha”, E D N T 3.50-51; J. C. Rylaarsdam, “Passover”, ID B
3.663-68.
509 M a rc o s 14.1-2

judeus, co m o sentido de “ o dia seguinte” (com o tam b ém em 8.31). M arcos


data a crucificação n o dia an terio r ao sáb ad o (i.e., sexta-feira, 15.42), e a últim a
ceia na noite anterior (i.e., quinta-feira). O dia antes da Páscoa seria quarta-feira,
o dia em que Judas co n sp iro u co m os líderes religiosos para trair Jesus.
A tram a da traição se origina c o m Ju d a s fazen d o conluio co m os líderes
religiosos p ara trair seu m estre. E m o u tras palavras, a traição se originou
n o círculo in te rn o d e Jesus. A o b serv ação d e q ue Ju d as era “ u m do s D o z e ”
(14.10,20; 3.19) alerta os leitores de M arco s p a ra o fato de que a proxim idade
com Jesus n ão é garantia de fidelidade. N a verdade, q u an to m aio r a intim idade
co m Jesu s m aio r deve ser a aten ção e vigilância (13.33-36). Judas, u m d os
p erte n c e n te s ao círculo ín tim o de Jesus, c o n h e ce o m estre m e lh o r que os
o u tro s, e seu co n h e cim en to e fam iliaridade p ro v êm a ele o m eio para justificar
u m a ação p a ra a qual n ão h á justificativa. Sua traição, em razão disso, é m ais
grave (14.19) e m ais abom inável (14.21).
M arcos identifica os cu lp ad o s pela tram a, “ os chefes d o s sacerdotes e os
m estres d a lei” , o u seja, os líderes d o Sinédrio. E le n ão m enciona “ os judeus” ,
n em o po vo , n em , ta m p o u co , os fariseus.2 A resolução de m atar Jesu s é u m a
decisão oficial em o p o sição a um a d ecisão p o p u la r, o que, de aco rd o com
M arcos, está ligado ao ataq u e de Jesu s ao te m p lo (11.18). A descrição da
tram a exala intrigas: “ O s chefes d o s sacerd o tes e os m estres d a lei estavam
p ro c u ra n d o u m m eio de flagrar Jesus em algum e rro e m atá-lo” . A palavra para
“ p ro c u ra n d o ” (gr. yêteiri) carreg a a c o n o ta ç ã o d e te n ta r g an h a r p o d e r sobre
o u co n tro la r (veja m ais so b re o te rm o em 1.37). A palavra para “ p ren d e[r]”
(“ os principais d o s sacerdo tes e os escribas b uscavam c o m o o p ren d eríam
co m d o lo e o m atariam ” [ARC]) (gr. kratein) tem co n o taçõ es de agarrar ou
sub ju g ar (veja m ais so b re o te rm o em 3.21). A palavra traduzida p o r “ um
m eio d e flagrar” (gr. dolos) tran sm ite o sen tid o de fraude e engano; e “ m at[ar]”
(gr. apokteineiti) identifica o objetivo frio e d errad eiro da tram a. Já é possível
d iscern ir n a descrição d a tram a co n tra Jesu s u m a conexão com a Páscoa, pois
a linguagem so b re a m o rte , q ue n ecessariam en te descreve o co rd eiro pascal,
aplica-se a Jesus. A red en ção q u e será en g en d rad a n a c ru z, n ão m en o s que
n o m ar V erm elho, será con q u istad a à cu sta da m o rte d o P rim ogênito.
Jeru sa lém era o ú n ico lugar o n d e a P áscoa p o d ería ser celebrada, e a festa
atraía u m a g ra n d e m ultidão, a u m en ta n d o m u itíssim o n ão só a população
d a cidade, m as ta m b é m a am eaça de u m levante judaico. O s ro m an o s, p o r

2 Apesar de os mestres da lei serem em geral fariseus, por exemplo, “os mestres da
lei que eram fariseus”(2:16).
M a rc o s 14.3 510

esse m otiv o , to m av am p recau çõ es m aciças d e segurança d u ra n te as festas.


Isso explica p o r q u e as au to rid ad es judaicas esperavam d esp ach ar Jesu s sem
p ro v o c a r u m c o n fro n to c o m seus sim patizantes galileus (v. 2).

3 M arcos, n a tra m a c o n tra Jesus, in sere a h istó ria d e u m a m u lh er que


u n g e Jesu s c o m u m alab astro caro. A suavidade e a co m p aix ão dela co n tras-
tam d e fo rm a m a rc an te c o m a traição de Ju d as e das au toridades judaicas.
B etânia, u m vilarejo cerca d e p o u c o m ais d e três q u ilô m etro s d e distância
d e Jeru sa lém , a leste d o m o n te d as O liveiras, foi a b ase d e Jesu s d esd e que
ch e g o u e m Jeru sa lém (11.1,11,12). Sim ão, o lep roso, era presu m iv elm en te
co n h e c id o d o s leito res d e M arcos, m as d e sc o n h e c id o p ara nós. O fa to de
ser o an fitrião d essa reu n iã o indica q u e estivera antes c o m lepra, u m a vez que
a lepra ativa excluiria q u alq u er p esso a d e ocasiões sociais. É provável q u e a
n arrativ a d e M arco s relate d e u m a fo rm a u m ta n to d istin ta o m e sm o evento
de Jo ã o 12.1-8.3 Se esse fo r o caso, a m u lh e r d e q u e m M arcos n ão diz o n o m e
é M aria, irm ã d e M arta e L ázaro, e Sim ão p o d e ria ser o pai d o s três.4

3 Mateus 26.6-13 segue Marcos 14.3-9 de form a incom um ente próxima, mas a
relação de Lucas 7.36-50 e jo ã o 12.1-8 com o relato de Marcos é ambíguo. É
provável que Lucas 7.36-50 seja uma história totalmente distinta, pois acontece
na Galileia, e não na Judeia; o Simão do relato de Lucas é um fariseu, e não um
leproso; a m ulher é uma “pecadora” e unge os pés de Jesus, e não sua cabeça; a
objeção é a sua imoralidade, e não a sua extravagância; e o resultado é o perdão,
e não a unção para o sepultamento. Taciano, além disso, omite o relato lucano
de seu Diatessaron; e é dificilmente concebível que a Maria de João 12 e a mulher
imoral de Lucas 7 sejam a mesma pessoa. João 12.1-8, no entanto, parece ser uma
variante de Marcos 14.3-9. João concorda com Marcos nos pontos principais, em-
bora localize a história com Maria, Marta e Lázaro seis dias antes da Páscoa, e não
dois dias antes com o em Marcos, e identifique o principal objetor com o Judas. A
descrição incom um do nardo com o myrou nardoupistikêspolytelou[s] (“nardo puro,
que era um perfum e caro”) aparece de form a literal no original em Marcos 14.3
e jo ã o 12.3, o que levanta a questão sobre se João não estava familiarizado com
a form a escrita do evangelho de Marcos. A confusão da mulher imoral de Lucas
com a mulher da qual não se m enciona o nom e em Marcos levou o pai da igreja
síria do século IV, Efrém (e muitos desde essa época) a identificar erroneamente
a m ulher com o Maria Madalena — uma conclusão para a qual não há apoio bí-
blico. Sobre essa afirmação final, veja J. Shaberg, “H ow Mary Magdalene Became
a W hore”, BRev 8 /5 (1992), p. 30ss.
4 Veja a discussão sobre a identidade de Simão em Η. B. Swete, The GospelAccording
to St Mark, p. 321. D e acordo com Swete, a sugestão de que Simão, o leproso, era
o pai de Maria, M arta e Lázaro rem onta a Teofilacto, um arcebispo bizantino do
século XI.
511 M a rc o s 14.3

V ia d e regra, era u m a q u eb ra da etiq u eta u m a reunião de h o m e n s ju-


deus se r in te rro m p id a p o r u m a m ulher, a m e n o s q u e estivesse se rv in d o os
alim entos. M arcos, n o en tan to , lem b ra -n o s c o m freq uência que os valores
judaicos e d a so cied ad e n ão são necessariam en te iguais aos valores d e Jesus.
N e ssa instância, a in tru são d a m u lh er é elogiada c o m o um a d em o n straç ão
d e fé (tam b ém 5.34). M arcos tro p e ç a em si m e sm o n o g re g o p ara transm i-
tir o v alo r d o n ard o , u m óleo aro m ático caríssim o ex traído d a raiz d e um a
erv a in d ian a c o m o m esm o n o m e (veja C t 1.12; 4.13,14). O s convidados,
co m p re e n siv e lm e n te , ficam c h o c ad o s c o m essa u n çã o , estim an d o q u e o
frasco de n a rd o vale “ m ais d e trez en to s d e n á rio s” (v. 5, A R A ).5 U m denário
c o rre sp o n d ia ao salário de u m dia n a P alestina (M t 20.2). T re zen to s dená-
rios, p o rta n to , equivaliam ao salário d e u m ano. A s m u lh eres eram em geral
excluídas d e carreiras q u e p o d eríam lhes d a r a possib ilidade d e g a n h a r esses
salários o u p ro c u ra r o b jeto s d e tal valor. O n a rd o era m u ito p rovavelm ente
u m a relíquia d e fam ília e, nesse caso, p o ssu ía u m v alo r sen tim en tal além do
v alo r m o n etário . M arco s relata que ela n ã o d e rra m o u o u n g ü en to , m as que
q u e b ro u o frasco, o q u e significa que e ste n ã o p o d e ría ser u sad o d e novo,
sim b o liza n d o d essa fo rm a a totalidade d o p resente.
A identificação d a cidade e da casa, in c o m u m p ara M arcos, rep ete e esta-
belece o te m a “ os q u e p e rte n cem ao círculo ín tim o e os de fo ra” de M arcos.
B etânia ficava fora de Jerusalém . A referên cia a Sim ão c o m o 0 leproso co n tin u a
o m o tiv o d o s defora, pois u m leproso, na sociedade judaica, era u m de fo ra por
excelência. Se, p o r o u tro lado, a m u lh er q u e u n g e Jesu s fo r M aria 0 o 12.3), sua
p osição c o m o alguém de fora é fortalecida se co n tin u ar sem qualquer m enção
a seu n om e. A ssim , B etânia e Simão, o leproso, serem m encionados pelo no m e
e n q u a n to n ã o h á m en ção ao n o m e d a m ulher, tu d o isso salienta o m otivo
d o s d e fora, o u seja, q u e esse lugar, essa casa e essa m u lh er são aqueles dos
quais não d ev eriam o s esp erar u m ato d e disciplina exem plar. C o n tu d o , desse
local m e n o s e sp e rad o vem um ato de g en e ro sid ad e sacrificial q u e suplanta
q u alq u er ato o u ev e n to relatado pelo s discípulos q ue p e rte n c e m ao círculo
m ais ín tim o d e Jesus. A n atu reza d o ato em si m esm a p arece ser o que M arcos
deseja q ue vejam os. O an o n im a to d a m u lh e r n o s fo rça a co n tem p lar o ato e
a n atu re z a d o d iscip u lad o (v. 9), e n ão a id en tid ad e específica d os discípulos
(veja ta m b é m 3.33-35; 9.38-41; 12.41-44).

5 E m bora as versões georgina, siríaca e de Orígenes omitam “mais de” (ARA)


(provavelmente para harmonizar com Jo 12.5), a maioria dos manuscritos incluem
corretam ente essa adição.
M a rc o s 14.4-7 512

4,5 N ã o é d e su rp reen d er q u e esse g ru p o ten h a ficado escandalizado com


o ato d e desperdício, em especial à luz das necessidades d o p o b re. O despra-
zer deles n ã o foi abafado. E les já tin h am ficado “in d ig n ad o s” (gr. aganaktein)
antes dian te d a p re su n çã o d e T iag o e Jo ã o q u e p ed ira m u m asse n to especial
n o R eino de D e u s (10.41); aqui a m esm a palavra descreve a raiva deles pela
extravagância d a m ulher.6 N ã o p o d e m o s sab er se a indignação deles se deve
à p re o c u p a ç ã o g en u ín a p elo s p o b re s, o u se, c o m o em geral é o caso, o p o b re
é apenas u sa d o c o m o u m p re te x to p o r o u tro s m otiv os. E les, q u aisq u er que
fossem seus m o tiv o s, co n sid eram a d ev o ção c u sto sa d a m u lh er u m “ desper-
dício” . A c o n d e n a ç ã o deles, é óbvio, dim inui a m u lh er e seu presen te. N o
en tan to , ao a firm a r q u e p o d eria h aver u m u so m e lh o r p ara esse dinheiro,
eles ta m b é m d im in u em Jesus, a q u em co n sid eram c o m o in d ig n o de tam anha
extravagância. O m u n d o n u n c a teve p ro b le m a c o m a religião na m oderação.
N ã o tem p ro b lem a s co m m u ita riqueza o u p o d e r, com o sexo o u influência,
m as tem p ro b lem a s co m m u ita religião. Isso fica ev id en te aqui. A m u lh er de
q u e m n ã o sab em o s o n o m e co n sid era Jesu s d ig n o d e seu sacrifício, ao passo
que os discípulos n ã o sen tem o m esm o. “ E eles a re p reen d iam severam ente.”
A palavra g re g a p o r trás d essa frase, embrimaesthai, é in c o m u m en te veem ente,
significando “ ab rir as n arinas [por estar se n tin d o raiva]” .

6,7 Jesu s n ão en tra n o d eb a te c o m os discípulos so b re as v irtu d es da


d o ação caridosa. A n tes, ele d e fe n d e u m a p esso a a q u em eles estão d isp o sto s
a dim inu ir em n o m e d e u m b e m teórico. “D e ix e m -n a em paz.” O s disci-
pulos julgam pelas aparências; Jesus, pelos m otivos. E la, seg u n d o o p adrão
deles, fizera u m d esp erd ício ; m as, p elo p a d rã o d e Jesus, ela “ p ra tic o u um a
b o a aç ão ” . O p a d rã o d e ju lg am en to d e Jesus é que ela fez o q u e foi capa%de
fazer: “ E la fez o q u e p ô d e ” (tam b é m 2C o 8.3). Jesus, c o m p raticam en te as

6 A tradição textual mostra uma propensão a expandir o prelúdio do versículo 4.


A leitura de D e Θ, boi de mathêtai autou dieponounto kai elegon (“Mas seus discípulos
estavam perturbados e estavam dizendo”) pode ser rejeitada (1) porque o termo
dieponounto não é marcano (também B. Metzger, TCGNT, p. 112); (2) por causa de
apoio manuscrito mais fraco; e (3) porque “discípulos” é provavelmente o resul-
tado da tendência dos escribas de tornar as palavras indefinidas (tines.; “alguns”)
mais definidas. Um a série de outras variantes acrescenta a palavra “começaram a
dizer” (A C K X W Δ Π; seguida pela NVI). Apesar da forte evidência manuscrita
da leitura mais longa, a leitura mais breve êsan de tines aganaktountes pros beautous
(“Indignaram-se alguns entre si” [ARA]) é preferida (1) por causa do forte apoio
manuscrito (‫ א‬B C L Ψ); e (2) porque explica m elhor a origem de outras leituras.
513 M a rc o s 14.8-9

m esm as palavras, a firm o u a m u lh er cuja d o a ç ã o consistia de duas das m en o -


res m o ed as em circulação (12.44). Q u e im en sa d iferença n a d o ação dessas
d uas m ulheres, m as, da p ersp ectiv a de Jesus, elas receb em o m esm o elogio!
A fé e o d iscip u lad o n ão são reinos ideais, o q ue p o d eriam o s g o star d e ser e
fazer; são realidades absolutas, q u em so m o s e o q ue so m o s capares de fazer.
N a visão d e Jesus, u m ato tem v alo r d e a c o rd o c o m seu m o tiv o e intenção,
e isso — e n ã o seu valo r m aterial — é o q ue to rn a esse ato útil n o Reino de
D eus. Q u a n d o alguém age dessa m aneira, n e n h u m a dádiva, n em m esm o
duas m o ed in h as (12.41-44), é sem sen tid o ; e n e n h u m a dádiva, m esm o que
equivalente ao salário d e u m ano, é u m desperdício.
A afirm a ção de Jesu s em 14.7, “ os p o b re s vo cês sem p re terã o co m
vocês [...]. M as a m im vocês n e m sem p re te rã o ” n ã o deve ser co nsiderada
c o m o in d ifere n ça em relação ao p o b re. O A n tig o T e stam e n to está repleto
de ad m o esta çõ es p ara m o stra r m isericó rd ia ao p o b re , pois Israel m esm o
fo ra u m p o v o escravo n o Egito. O fato d e q u e Jesu s en sin o u e p ra tic o u a
m isericó rd ia p ara c o m o p o b re é atesta d o em to d o s o s estrato s da tradição
cristã. A q u estão essencial n o versículo 7, n o en tan to , n ão é o p o b re , m as a
m u lh e r n o m eio deles, e n em m esm o o b e m social m ais sublim e p o d e ser
u sad o p a ra justificar a injúria feita a ela. Jesus, m ais u m a vez, p õ e a sua p ró -
p ria p e sso a em p ro em in ên cia escandalosa. “ P o d erã o ajudá-los [os pobres]
sem p re q u e o desejarem . M as a m im v o cês n em sem p re terão.” P odem os,
talvez, justificar tal afirm ação n a b o ca de D e u s, m as é difícil im aginar u m a
justificação p ara tal afirm ação na b o ca d e u m reles m ortal. Jesus, ao colocar-se
acim a d o p o b re , coloca-se acim a d o g ra n d e m a n d a m e n to p ara “ am [ar] o seu
p ró x im o c o m o a si m e sm o ” (12.31). C o n tu d o , Jesus, co m a desp reten sio sa
p reten são , afirm a sua p rio rid ad e em relação a to d o s os o u tro s bens. O valor
d e u m a dádiva assinala o valor d a p esso a a q u em ele é dado. A extravagância
da m u lh e r m o stra q u e só ela co m p re e n d e o v alor in com ensurável de Jesus.

8 ,9 O s discípulos fo ram alertad o s de a n tem ã o so b re a m o rte im inente


de Jesu s (8.31-33; 9.31,32; 10.32-34). C o n tu d o , n e n h u m p relú d io co m em o -
ra n d o sua m o rte foi ap resen tad o p o r eles. O q ue falharam em fazer, e talvez
até m e sm o en ten d e r, u m a m u lh er cujo n o m e d e sc o n h e c e m o s co m p reen d e e
faz. Jesus, a n tec ip an d o a m o rte v io len ta de u m “ c o n ta d o en tre os transgres-
so res” (Is 53.12), sabia q ue seu c o rp o seria jo g ad o aos cães o u lançado em
u m a vala co m u m . E le aceita a u n ção d a m u lh e r c o m o u m a p rep aração para
seu sep u ltam en to , p o u p a n d o -lh e a in d ig n id ad e d a m o rte de u m crim inoso.
M a rc o s 14.8-9 514

S up õ e-se co m freq u ên cia q ue a u n ç ã o d e Jesu s p o r essa m u lh er é um a


u n ção m essiânica secreta cu jo p ra z o expirara havia u m lo n g o tem p o .7 A evi-
dência p ara essa sugestão, n o en tan to , está claram en te ausente. N o A n tig o
T estam en to , a u n çã o régia exigia o u so de ó leo (IS m 10.1; 2R s 9.1-13); aqui,
n o en tan to , a m u lh er n ã o u n g e Jesus co m óleo, m as c o m n ardo, u m a su b stân -
cia to ta lm e n te d iferen te.8 Se M arco s tin h a em m e n te u m a u n çã o m essiânica,
d ev eriam os esp erar o u so d o v e rb o g reg o chriein (do qual Christos deriva),
m as essa palavra está au sen te; antes, M arcos usa u m a palavra rara, katacheein.
O co n c eito d e M essias é m u ito m e n o s im p o rta n te q ue o de F ilho d e D eu s
n o re tra to d e Jesu s feito p o r M arcos. E s te u sa a palavra Christos apenas o ito
vezes n o evangelho, e, em to d o o N o v o T estam e n to , apenas em T ito , T iago,
l-2 Jo ã o e Ju d a s o te rm o é e m p re g ad o c o m m en o s frequência. O títu lo de
prestígio u sad o p o r M arco s p ara d esig n ar Jesu s é “ F ilh o de D e u s ” , p ara o
qual foi u n g id o n a in au g u ração de seu m in istério n o b atism o n o rio Jo rd ã o
p o r J o ã o B atista (1.9-11). P arece n ã o h av er razão p ara u m a u n çã o m essiânica
clandestina nesse p o n to d o evangelho. A evidência co m binada sugere q u e essa
n ão é u m a u n çã o m essiânica, m as u m a u n çã o em p re p a ra ção p ara a m o rte de
Jesus: “ D e rra m o u o p e rfu m e em m eu c o rp o an tecip ad am en te, p re p a ra n d o -o
p ara o se p u lta m e n to ” (v. 8).
Jesu s conclui c o m u m p ro n u n c ia m e n to q ue se co rrelacio n a c o m a in-
tensid ad e d a raiva d o s discíp u lo s d e m o n stra d a a n terio rm en te. “ E u asseguro
q u e o n d e q u e r q u e o ev an g elh o fo r anunciado, em to d o o m u n d o , tam b ém
o q ue ela fez será c o n ta d o em sua m em ó ria.” O q ue ex atam en te ela fez que
é dig n o de tal p erp etu açã o ? E la, é claro, g a sto u u m p re sen te p ró d ig o co m
Jesus, m as tam b é m p arece ser a p rim eira p esso a a p e rc e b e r que o evangelho
só é realizado n o so frim en to .9 E m M arcos, o te rm o “ ev angelho” aparece
pela últim a vez n a b o ca d e Jesu s em 14.9 e esse te rm o , c o m o n o prim eiro
u so p o r Jesu s (1.14), ap arece n o c o n te x to d a p ro clam ação (gr. kjèrysseiti). O

7 Por exemplo, M. Dibelius, Jesus, trad. S. B. Hedrick e F. G rant (London: SCM


Press, 1963), p. 88-89; T. W. M anson, The Servant-Messiah (Cambridge: Cambridge
University Press, 1953), ρ. 84-85.
8 Tam pouco a unção da cabeça com óleo era exclusiva da unção real. Esse tipo de
unção era usada muitas vezes com o símbolo de honra ou com propósitos eos-
méticos, com o na historia rabínica da m ulher que retirou algumas gotas de óleo
do solo e as pôs sobre a própria cabeça com o sinal de recuperação de sua honra
após um a falsa acusação (m. B. Qam. 8.6).
9 O term o “evangelho”, sempre que é usado em Marcos, aparece em contextos de
sofrim ento (1.1,14,15; 8.35; 10.29; 13.10; 14.9).
515 E x c u rs o : A s m u lh e re s no e v a n g e lh o d e M a rc o s

evangelho... a paixão de Jesu s — esses d o is n ã o p o d e m ser separados e têm


de ser p ro c la m ad o s “ em to d o o m u n d o ” . A ação d a m u lh er — se n ão seu
n o m e — n ão p o d e ser esquecida, p o is ela p e rceb e que o m istério d o evan-
g elh o é rev elad o n a m o rte de Jesus.

Excurso: As mulheres no evangelho de Marcos


A s m u lh eres d ese m p e n h am papéis esp ecialm en te im p o rta n te s n o evan-
g elh o d e M arco s (1.1— 16.8). A s m u lh eres n ã o só são m en cio n ad as co m
frequ ên cia, m as o s m ais altos elogios d e Jesu s n o seg u n d o evangelho são
dedicad o s a elas. M arcos m en cio n a q u in ze m u lh eres d istintas em u m to tal
d e v in te e d u as o co rrên cias n o evangelho, n ã o c o n ta n d o a m en çã o das irm ãs
de Jesu s (6.3), as “ m uitas o u tras m u lh eres” q u e seguem Jesu s da G alileia
(15.41), e a m e n ç ã o d o d ireito das m u lh eres d e se divorciarem d o m arido
(10.12). D e n tre elas, cin co m ulheres são m en cio n a d as p elo n o m e (M aria, a
m ãe d e Jesu s [6.3]; H e ro d ias [6.17]; M aria M adalena [15.40,47; 16.1]; M aria,
m ãe d e T iag o [15.40,47; 16.1]; e Salom é [15.40; 16.1]). A lgum as m ulheres,
co m ce rteza , aparecem em papéis negativos, c o m o a m ãe de Jesus que p o r
duas vezes o b stru i Jesu s (3.31,32; 6.3); e as irm ãs d e Jesus fazem o m esm o
u m a vez (6.3). A serv a n o p átio q u e q u estio n a P e d ro d ese m p e n h a u m papel
am biv alente (14.69ss.), c o m o ac o n te ce c o m M aria M adalena, M aria, m ãe de
T iag o e Salom é, q ue visita b ra v am en te o tú m u lo de Jesus, m as falha em de-
clarar sua ressurreição (16.1,8). O s p io res papéis ficam para H ero d ias (6.17ss.)
e sua filha (6.22ss.) pela resp o n sab ilid ad e delas n a m o rte d e Jo ã o Batista.
Q u in z e d e n tre as v in te e duas m en çõ es a m ulheres, n o en tan to , aparecem
em co n tex to s in co m u m en te positivos. O valor e a dignidade das m u lh ere s— e
das m en inas — são significados p elo fato d e q u e Jesu s as cu ra (1.30,31; 5.25-
34; 5.23,41,42; 7.25). A s m ulheres, n o seguir e n o serv ir Jesu s e a co m u n h ão
cristã, são m o d elo s de d iscipulado (1.30,31; 15.40,47; 16.1). E m algum as
instâncias especiais, elas d ese m p e n h a m pap éis p ro e m in en tes, e até m esm o
p reem in en tes, re ceb em os m ais altos elogios q u e Jesu s faz n o evangelho.
E m duas ocasiões, as m ulheres ap arecem n o c e rn e d a técnica sanduíche
c o m o ideal d e fé (5.21-43) e dev o ção (14.1-11). A m u lh er c o m hem orragia é
u m m o d e lo d e fé p ara Jairo, o p re sid e n te d a sinagoga (5.25-34); e a m ulher
siro-fenícia é u m m o d elo d e fé p ara to d as as “ d e fo ra” (7.25ss.). A viúva n o
tem p lo é elogiada p o r d o a r m ais q u e q u alq u er o u tra p esso a ali, “ deu tu d o o
q u e p o ssu ía p ara viver” (12.44). E acim a d e tu d o , a unção de B etânia é tão
M a rc o s 14.10-11 516

exem plar q u e a p ro clam ação d o evangelho n o m u n d o é u m a celebração do


ato dessa m u lh e r (14.9).101

10,11 M arco s en c erra a tram a c o n tra Jesu s c o m a anuência de Judas


p ara trair seu m estre (w . 10,11)." L ucas 22.3 e J o ã o 13.2,27 afirm am que
Satanás levou Ju d as a trair Jesus, m as M arcos n ão lança n o s pés de Satanás
a falha m o ral d o s seguidores d e Jesus. N a verdade, a traição de Ju d as é um
tipo p ara a d eserção d o s o u tro s ap ó sto lo s (14.50). Sua traição, de ac o rd o com
M arcos, é m ais rep reen sív el só p o rq u e foi p re m e d ita d a e m ais final só p o rq u e
ele excluiu a p o ssib ilid ad e d o p e rd ã o ao co m e te r suicídio. É provável que
a qu an tia d e d in h eiro ten h a d ese m p e n h ad o u m a p a rte n a decisão de Judas,
pois, d e a c o rd o co m o evangelho d e Jo ão , ele era o teso u reiro d os D o z e e
u m lad rão (Jo 12.6; 13.29). A tran sação d o d in h eiro , d e ac o rd o c o m M arcos,
a c o m p a n h o u a tram a (v. 11). A m e lh o r m an eira p ara d etec tar a fo n te d o m al
em p ra tic am en te q u alq u er a ssu n to é p e rg u n ta n d o q u em se beneficia disso
financeiram ente, e Ju d as lu c ro u c o m a traição. M otivos m ais ideológicos e até
m esm o idealistas tam b é m p o d e m te r d e se m p e n h a d o u m p ap el n a decisão de
Judas. Foi sugerido, p o r exem plo, que Ju d as agia co m o espião d o Sinédrio; ou
q u e era u m zelo te secreto e d esilu d id o c o m a passividade política d e Jesus,
esp eran d o , p o r m eio d essa tram a, fo rçar Jesus a agir. N ã o p o d e m o s afirm ar
q u e v erd ad e p o d e haver em tais sugestões, pois n o sso s textos silenciam sobre
os m o tivo s d e Ju d as.12
O relato d e M arcos, ap e sar d e sua eco n o m ia, deixa im plícito q u e Judas
foi to ta lm e n te resp o n sáv el p o r sua traição de Jesus. Foi ele que se dirigiu aos
chefes d o s sacerd o tes, e n ã o o co n trário ; em u m a das linhas m ais am argas

10 Sobre a relevância da unção da m ulher para o propósito geral de Marcos, veja S.


C. Barton, “Mark as Narrative: T he Story o f the A noinung Woman (Mk 14:3-9)”,
ExpTim 102 (1991), p. 230-34.
11 Para uma discussão tanto da variante textual quanto do term o “Iscariotes”, veja
em 3.19.
12 Especulações sobre Judas proliferaram na literatura apócrifa do século II em diante.
Judas, em geral, é um exemplo negativo para o destino dos perversos. Serve como
um alerta horrendo contra a apostasia, Papias, o bispo de Hierápolis no inicio do
século II, escreve que o corpo de Judas inchou, ficando m aior que o tam anho de
um vagão e sujando a terra com o cheiro forte. O utras tradições tentam explicar
por que Judas traiu Jesus. Um fragmento de uma série de textos cópticos que
afirmam um relacionamento com Bartolomeu relata com o Judas foi induzido à
traição não pelo demônio, mas (já tem um palpite) por sua esposa! Veja NTApoc
1.24; 2.555.
517 M a rc o s 14.12

d o evangelho, afirm a-se q u e sua traição “ m u ito os aleg ro u ” (14.11). O relato


se e n c erra co m a reso lu ção fria d e Ju d as d e co m p le ta r seu p lan o insidioso:
“A ssim , ele p ro c u rav a (gr. vgteiii) u m a o p o rtu n id a d e p ara en treg á-lo ” , e não
c o m u m soliloquio p arecid o co m o H a m le t la m e n ta n d o u m a decisão trá-
gica. Jud as, p o r co n seg uin te, n ão é vítim a das circunstâncias n em u m peão
d o m in a d o p o r forças m aiores. E le é u m ag en te m o ral so b eran o q u e escolhe
liv rem ente o m al ao “ en treg á-lo [a Jesu s]” (gr. paradidomi). A quela palavra, a
p a rte final d o san d u ích e n o s versículos 1-11, c o m b in a as duas verdades es-
senciais d a paixão d e Jesus: o m al esco lh id o liv rem en te pela h u m an id ad e e a
p ro v id ên c ia ab ra n g e n te e d o m in an te d e D eus. A gra ça divina usa até m esm o
o m al h u m a n o p a ra seus p ro p ó sito s salvíficos.

P R E P A R A Ç Ã O P A R A A P Á S C O A ( 1 4 .1 2 1 6 ‫)־‬

A d escrição da p re p ara ção da P ásco a é u m rem in iscen te m u ito acen-


tu a d o das p re p ara çõ es para a en tra d a em Jeru salém (11.1-6). Jesus, nas duas
passagens, envia dois discípulos para fazer algum as tarefas que p recisam ser
co m p letad a s se fo r p ara os ev en to s pro sseg u irem . A s duas tarefas incluem
e n c o n tro s m isterio so s e as duas aco n te cem ex atam ente co m o Jesus previu.
O s do is relatos ta m b ém c o m p artilh am de u m a série de o n ze palavras con-
secutivas em co m u m (14.13; 11.1,2). O efeito das du as histórias é m o strar o
c o n h e c im e n to d e Jesu s e to tal g o v ern an ça d o s even tos p o r ele, e n q u a n to a
“ h o ra ” (14.35) de sua m o rte se aproxim a. Jesu s n ã o é u m h eró i trágico p eg o
em ev entos fo ra d e seu co n tro le. N ã o existe o m e n o r indício d e desespero,
m ed o , raiva o u futilidade p o r p a rte d e Jesus. E le n ão se aco v ard a n em recua
e n q u a n to a tram a co n tra ele é arquitetada. Jesu s d e m o n stra, c o m o o fez ao
lo n g o d e to d o o evangelho, liberdade e au to rid a d e so beranas p ara seguir
u m cu rso q ue escolheu livrem ente d e a c o rd o c o m o p lan o de D eu s. Ju d as e
o u tro s p o d e m agir c o n tra ele, m as n ã o agem sobre ele.12

12 O “p rim eiro dia d a festa dos pães sem fe rm e n to ” com eça técnica-
m en te n o p ô r d o sol (i.e., 15 d e nisã) q u a n d o a P áscoa, q u e com eçara n o p ô r
d o sol e d u ra ra até a m eia-noite, foi celebrada. N o versículo 12, n o entanto,
M arcos p arece p ô r o início da P ásco a n a tard e da quinta-feira, 14 de nisã,
q u an d o os co rd eiro s pascais eram m o rto s (“ q u an d o se costum ava sacrificar o
co rd eiro pascal”). A lguns co m en taristas su g erem q u e M arcos talvez estivesse
c o n ta n d o o te m p o d e ac o rd o co m a p rá tic a helenista d e com eçar o n o v o dia
n a m ad ru g a d a, o q u e colocaria ta n to o sacrifício dos cordeiros q u an to a re-
M a rc o s 14.12 518

feição da P ásco a n o m e sm o dia. E ssa sugestão, todavia, n ão é necessária para


re sp o n d e r pelas referên cias d e te m p o n o versículo 12. A p e sa r d e Ê x o d o 12.6
estipular o sacrifício d o co rd e iro pascal n a ta rd e d o dia 14 d e nisã, h á algum a
evidência rab ín ica d e q u e os co rd eiro s pascais eram em geral sacrificados
antes.1314N ã o é d e su rp re e n d e r tal latitude n o sacrifício, co n sid eran d o -se o
v asto n ú m e ro d e p ereg rin o s servidos pela P ásco a n o tem p lo . A s palavras
d o versícu lo 12, p o rta n to , refletem u m a p rática e v id en te m e n te aceita p o r
m u ito s pereg rin o s judeus.
A P ásco a, d e a c o rd o c o m D e u te ro n ô m io 16.5-8, só p o d ia ser celebrada
d e n tro d o s m u ro s d e Jerusalém . Isso p ro d u z ia u m g ran d e influxo d e pe-
regrino s em Jeru sa lém a cada prim avera, lev an d o a p o p u lação a au m en tar
m uitíssim o, ch e g an d o a m uitas vezes d e seu ta m a n h o usual. Jo se fo relata
q u e n a P ásco a de 66 d .C , o a n o em q u e o te m p lo foi co m p letad o , 255.600
co rd eiro s fo ram sacrificados n o tem plo. Jo sefo , e stim an d o u m a m éd ia d e dez
p essoas p o r co rd eiro , calculou q u e 2,5 m ilhões d e pessoas estavam p resen tes
em Jeru salém — sem c o m p u ta r os p ereg rin o s que, p o r várias razões, estavam
im p u ro s e n ã o p o d ia m p a rtic ip a r d a P ásco a (Guerra 6.420-27). E sse é um
n ú m e ro im p ressio n an te — e p ro v av elm en te u m exagero, p o is é inconcebível
que tantas pessoas p u d esse m ser acom odadas d e n tro d os lim ites de Jerusalém
d o século I. N o e n ta n to , a d escrição de Jo se fo c o m c e rteza tran sm ite a ideia
da m ultidão e c o n g e stio n a m e n to q ue assolavam Jeru salém na Páscoa. A dis-
p osição d e expectativa e u rg ên cia q u e caracterizava to d o s os p ereg rin o s da
P áscoa ta m b é m im preg nav a o g ru p o d e seguidores d e Jesus. N o tex to grego,
a palavra p ara preparação o c o rre três vezes n o s versículos 12-16 à m ed id a que
os discípulos p e rg u n ta m a Jesus: “A o n d e queres q u e v am o s e te p re p a re m o s a
refeição d a P ásco a” (grifo d o autor). O p ro n o m e n o singular n ão só estabe-
lece Jesu s c o m o aquele q u e p resid e a refeição pascal, m as tam b ém antecipa
as palavras d a in stitu ição n o versícu lo 22, “isto é m eu c o rp o ” . Jesu s n ão só
p reside a festa, ele é a festa (IC o 5.7).

13 “Se um a oferta da Páscoa fosse sacrificada de m anhã [em vez de à tarde] no dia
14 [de nisã] sob qualquer outro nome, R. Joshua a declara com o válida, com o se
tivesse sido sacrificada no dia 13” (m. Zev. 1:3). O rabi governante, Joshua [ben
Hananiah], um rabi anterior a 70 d.C. em Jerusalém, indica que o sacrifício durante
o “crepúsculo” (= à tarde; tam bém Êx 12.6) era mais im portante que a data do
sacrificio. Veja M. Casey, “T he D ate o f the Passover Sacrifices and Mark 14:12”,
TynBul 48 (1997), p. 245-47, que argumenta que o sacrificio no dia 13 de nisã era
uma “prática aceita”.
519 M a rc o s 14.13-14

13,14 Jesu s en v io u seus discípulos em du p las em m issões (6.7). E le en-


v io u d ois discípulos p ara b u sca r o ju m e n tin h o p ara a e n tra d a em Jerusalém
(11.1) e ag o ra envia dois discípulos p ara irem d e B etânia a Jeru salém para
fazerem as p re p ara çõ es d a P áscoa (Lc 22.8 id en tifica-os c o m o P ed ro e João).
E les re c e b e m in stru ç õ es secretas: “ u m h o m e m c a rre g an d o u m p o te de água
virá ao e n c o n tro d e v o cê s” e os levará ao d o n o d a casa q u e lhes m o strará o
salão d e h ó sp e d e s.14A referên cia ao p o te d e água p o d e localizar a reu n ião nas
cercanias d o tan q u e d e Siloé n o m o n te Sião, p ara o qual a água d a única fo n te
d e água em Jeru sa lém , o ribeiro G io m , foi desv iada p elo tú n el de E zequias.
U m h o m e m c a rre g an d o água seria algo q u e ch am aria a aten ção deles, pois
essa era u m a tarefa n o rm a lm e n te reserv ad a às m u lheres o u escravos. Jesus,
a fim de ev itar sua p ró p ria p risão (14.1; J o 11.57), p o d e te r o rg an izad o de
an tem ã o u fn a reu n iã o secreta.1415 M esm o assim , as in stru çõ es d o versículo 13
in d icam u m a p resciên cia divina, pois até m e sm o u m h o m e m ca rre g an d o um
p o te d e água seria difícil d e ser visto e seguido n a e n o rm e m ultidão da Páscoa.
A s in stru ç õ e s p ara a p re p ara ção da P áscoa, c o m o aquelas para a en tra d a em
Jeru sa lé m (11.1-6) são ap resen tad as c o m o instâncias da habilidade de Jesus
d e p re v e r e co n tro la r os ev en to s da sem an a d a paixão.

14 B. Pixner, Wege des Messias und Stàtten der Urkirche, Herausgegeben von R. Riesner
(Giesen/Basel: B runnen Verlag, 1991), p. 219-21, raciocina que, uma vez que
carregar água era um trabalho costumeiramente das mulheres, e a comunidade
essênia não permitia m em bros mulheres, o hom em carregando água era necessa-
riamente essênio. Pixner argumenta ainda que o local da última ceia era um reduto
essênio na extremidade sudoeste de Jerusalém (1) porque os discípulos (não sendo
essênios) não poderiam entrar na área delimitada dos essênios (daí, as instruções
para perguntarem sobre o “dono da casa”, no versículo 14); e (2) porque é pos-
sível esperar que os essênios, conhecidos por sua hospitalidade (Josefo, Guerra
2.124), tivessem um quarto de hóspedes. A cadeia de raciocínio de Pixner é um
tanto especulativa, mas sua tese não é nem impossível nem improvável, pois o
local tradicional da última ceia, que recebeu considerável atenção arqueológica,
fica vizinha do local conhecido com o Reduto Essênio.
15 B. Pixner, MitJesus inJerusalem, p. 88, sugere que o segredo das instruções tinha a
intenção de im pedir Judas, o traidor, de conhecer o local da Páscoa. De acordo
com Pixner, o tesoureiro Judas era quem deveria fazer os arranjos designados aos
dois discípulos. Essa sugestão é bastante improvável. O N ovo Testamento não
fornece nenhum indício em seus textos de que Jesus tentou enganar Judas. Este
estava muito bem inform ado sobre os passos de Jesus (Jo 18.2), e a introdução
da última ceia pressupõe que Judas tinha de estar presente (w. 18-21), e não ser
excluído.
M a rc o s 14.13-14 520

E sperava-se que os residentes judeus de Jeru salém fizessem qu arto s extras


em suas casas p ara os p ere g rin o s d a Páscoa. O “ salão de h ó sp e d e s” (v. 14; gr.
katalymà) q u e Jesu s p ed iu era ev id en tem en te esse cô m o d o . M arcos o descre-
ve c o m o “ u m a am p la sala n o an d a r superior, m obiliada e p ro n ta ” . O te rm o
“ m o biliad a” (gr. stronnym) n ã o deveria ser co m p re en d id o c o m o b asicam ente
“m o bília” . A palavra g re g a significa o estender d e tap etes e carp etes so b re os
quais p o d ería m se reclinar; assim , u m a sala d e b an q u e te “ b em a rru m a d a ” .
E sse local p erte n c ia a u m a p esso a d e m eios e talvez estivesse localizado n o
m o n te Sião, o n d e u m n ú m e ro d e h ab itaçõ es luxuosas fo ram escavadas.16 O
saguão d esc rito se assem elh a ao local d e reu n ião d a igreja prim itiva descrita
em A to s 1.13 e 12.12. Se essa fo r a m esm a habitação, e n tão p erten cia a M aria,
m ãe d e Jo ã o M arcos, o a u to r provável d o seg u n d o evangelho. A sugestão
d e q u e J o ã o M arcos era q u em carregava o p o te d e água é possível, m as sem
q u alq u er evidência p ara essa afirm ação.
O s prep arativ o s d elib erad o s e cu id ad o so s p ara a P áscoa são u m indício
de que Jesus, n esse ev e n to fu n d am en tal, v ê o c o n te x to a p ro p riad o p ara sua
p ró p ria autorrevelação. O sacrifício d o co rd eiro pascal in terp re tará sua m o rte
im in e n te q u e in au g u ra rá a n o v a aliança em seu sangue, “ d erram ad o em favor
d e m u ito s” (14.24), e essa aliança será c u m p rid a p o r sua m o rte.

O B L A Ç Ã O E O B S T I N A Ç Ã O (14 .17 -3 1)

A ú ltim a ceia é a p re se n ta d a em o u tra das c o n s tru ç õ e s san d u ích e de


M arcos, e as m etad es q u e a flanqueiam co n sistem d a traição e d eserção dos
discípulos. O co m p lex o d e to d a a e stru tu ra se divide em:

A 1 A traição dos discípulos (w . 17-21)


B A últim a ceia (w . 22-26)
A 2 A deserção dos discípulos (w . 27-31).

N a co n v en ção san d u ích e d e M arcos, a p a rte B p ro v ê a chave da co m -


p re en sã o d o to d o . N a p re se n te co n stru ç ão , o auto ssacrifício de Jesu s na

16 O cénaculo, para os turistas m odernos na cidade de Jerusalém, é identificado


com o o local da última ceia. A estrutura atual, um a mesquita remodelada a partir
de uma igreja do século XIV, data obviamente de um período muito mais tardio,
mas o local foi atestado no século IV por Cirilo de Jerusalém e os Peregrinos de
Bourdeaux, e no século VI pelo mapa de Madaba. O imperador Adriano, de acordo
com Epifânio, identificou o mesmo local como o local do salão no andar superior
em 135 d.C. Veja O. Sellers, “Upper Room”, IDB 4.735; e mais recentemente, B.
Pixner, “Church o f the Aposdes Found on Mt. Zion”, BARev 16/3 (1990), p. 16ss.
521 M a rc o s 14.17

últim a ceia c o n tra sta d e fo rm a dram ática c o m a infidelidade d os discípulos.


E m o u tra s palavras, Jesu s en tre g a su a v id a n ã o pelos dignos, m as precisa-
m e n te p elo s in d ig no s — até m e sm o seus seguidores infiéis e covardes. O
san du ích e ilustra a v erd ad e d e R o m an o s 5.8: “M as D e u s d em o n stra seu am o r
p o r nós: C risto m o rre u em n o sso favor q u a n d o ain da éram o s p ec ad o re s” . O
sanduíche tam b ém é p o sto em evidente aposição co m o sanduíche an terio r de
14.1-11. Ali, as m etad es n o s flancos dizem re sp eito à traição de Judas; aqui,
d izem re sp eito à traição de to d o s os discípulos. A p a rte cen tral B dos dois
san du ích es ta m b é m é u m paralelo, fo c an d o o c o rp o d e Jesus. E m B etânia, a
m u lh e r u n g e o c o rp o d e Jesu s (gr. to sõma mou, 14.8) p a ra o sep u ltam en to ; na
últim a ceia, Jesu s e n tre g a seu c o rp o (gr. to sõma mou, 14.22) p ara os pecadores.

17 Ê x o d o 12.3,4 in stru i u m h o m e m a re u n ir sua família e agregados


à m esa — e seu v izin h o tam b ém , se a fam ília fo r m u ito p eq u e n a — p ara
co n su m ir o co rd eiro pascal. Fica claro, a p artir das afirm ações em 14.1,2 e 12 e
da descrição d a p reparação para a P ásco a n o s versículos 13-16 im ediatam ente
an terio r, q u e a refeição q u e Je su s co m p artilh a c o m seus discípulos é a da
P ásco a .17A P áscoa era u m a celebração fam iliar, o q ue significa que m ulheres
e crianças eram u m a p a rte usu al e necessária da refeição. N o curso da refei-
ção, o m e n in o m ais n o v o ap resen tav a p erg u n ta s prescritas que o d o n o da
casa e an fitrião re sp o n d ia re c o n ta n d o a h istó ria d o êx o d o e explicando seu
sen tid o c o m o sim b olizado na refeição pascal. O relato de M arcos da últim a
ceia é seletivo, fo c a n d o apenas a traição de Jesu s e sua m o rte im inente co m o
c u m p rim e n to d o sacrifício da Páscoa. O fato d e M arcos n ão registrar to d a
a cerim ô n ia d a P ásco a n e m m e n c io n a r a p re sen ça de m ulheres (e talvez de
crianças) n ão q u er dizer que a refeição n ão era u m a refeição da P áscoa nem que
n ão havia m ulheres p resen tes ali. M arcos confia q ue seus leitores saibam com o
era u m a refeição d a Páscoa, m as ele relata apenas aquelas p o rç õ es relevantes
p ara a auto rrev elação de Jesus. H á , n o q u e diz re sp eito às m ulheres, vários
indícios n o s capítulos 14— 15, su g erin d o a p re sen ça delas n a ú ltim a ceia.18

17 Sobre a última ceia como celebração de Páscoa, veja M. Casey, “N o Cannibals at


Passover!” Theology 96 (1993), p. 199-205.
18Em 15.41, somos informados que “algumas mulheres” acompanharam Jesus da
Galileia até Jerusalém. É difícil imaginar que as mulheres que seguiam Jesus até aqui
seriam excluídas da cerimônia da qual eram parte constituinte. Mais uma vez, uma
“ampla sala” (14.15) não seria necessária se apenas treze pessoas estivessem presentes
para a Páscoa. Por fim, o esclarecimento de que o traidor era “um dos Doze” (14.20)
não seria necessário se apenas os Doze estivessem reunidos para a Páscoa.
M a rc o s 14.18-20 522

“A o anoitecer, Jesu s ch eg o u co m os D o z e.” A ssim com eça a descrição da


últim a reu n ião d e Jesu s co m os D o z e em seu m in istério terren o . O s judeus
co n sid eram q u e o n o v o dia co m eça n o p ô r d o sol, e o “ an o itecer” assinala
15 de nisã, o m o m e n to p a ra a refeição pascal. A Páscoa, a festa m ais santa
d o an o judaico, celebrava a libertação d o p o v o d o E g ito q u a n d o o anjo da
m o rte “ p a sso u s o b re ” os p rim o g ên ito s nas casas judaicas c o m o sangue do
co rd eiro n as vigas d a p o rta (E x 12). Q u a n d o o filho m ais velh o in terpretava
a festa, a ên fase recaia so b re a rememorarão d a lib ertação p assad a q u an d o
saíram d o E g ito e a antecipação d a red en ção fu tu ra d o M essias. A liturgia da
Páscoa, d e a c o rd o co m o trata d o Pesahim 10 d a M ishná, consistia d a reci-
tação d e S alm os d o H allel (SI 113— 118). A refeição em si era dividida em
q u atro p arte s, cada u m a co n clu in d o c o m o b e b e r d e u m cálice d e vinho.
U m a b ên ç ão p ara a reu n iã o era p ro n u n c ia d a p rim eiro pelo chefe da família.
D ep o is, em re sp o sta à p e rg u n ta da criança: “ P o r q u e esta n o ite é diferente
das ou tras n o ites?” , o pai reco n tav a a lib ertação d o p o v o d o E g ito de aco rd o
co m D e u te ro n ô m io 26.5-9. T erceiro, o pai p ro n u n c ia v a u m a b ên ç ão sobre
os vários alim en to s q u e sim bolizavam o cativeiro am arg o n o E g ito e tam b ém
as dificuldades e b ê n ç ão s d o êxodo: o p ã o sem fe rm e n to , as ervas am argas,
as v erduras, as fru tas co zid as e o co rd eiro assado. A fam ília e o s co nvidados
eram a seguir co n v id ad o s a p artic ip a r d a refeição. P ró x im o d a m eia-noite, a
festa se encerrav a c o m o câ n tic o d o s salm os 116— 118 e a in g estão d o q u arto
cálice d e vinho.

1 8 2 0 ‫ ־‬A re ferê n cia d e a b e rtu ra à últim a ceia em 14.18 aco n tece várias
h o ras apó s a refeição pascal. T o d o s d o g ru p o estão “ reclinados” , a posição
co stu m eira n o m u n d o an tig o p ara festas c o m com ensais e refeições form ais,
se é q u e n ã o em to d as as refeições. A referên cia a “ com efr]” (v. 18) assinala
a terceira fase d a refeição. N o m eio d a refeição, Jesu s anuncia so len em en -
te: “ D ig o q u e c e rta m e n te u m d e vocês m e trairá” . A celebração da santa
c o m u n h ã o é o m o m e n to m ais sa n to e p u ro d a v id a d a igreja, sim bolizado
p o r cálices p o lid o s e to alh as d e lin h o n o altar. Q u e am arga iro n ia relem b rar
q ue essa festa, re m in iscen te d a v itó ria e alegria, c o m eç o u c o m o an ú n cio de
traição! O relato d a últim a ceia co m eç a c o m u m a n o ta so b re traição, e to d o s
os o u tro s e lem e n to s d a refeição aquiescen! a ela. “A lguém que está co m en -
d o co m ig o ” n ã o lim ita o ca m p o de suspeitos, m as expande-o, pois to d o s ali
co m e m co m Jesus. E ssa fala está estru tu ra d a de a c o rd o c o m Salm os 41.9,
em q u e u m h o m e m ju sto é traíd o p o r u m am igo. Jesus n ão m en cio n a Judas.
523 M a rc o s 14.21

Suas palavras n ão trazem alívio id en tifican d o o acusado, m as a am biguidade


delas p ro v o c a o exam e d a alm a em cada u m d o s discípulos. O an ú n cio evoca
p esar e pro testo s. A palavra para “ tristes” (gr. lypeiti) é usada apenas duas vezes
em M arco s (10.22; 14.19), e am b as as vezes se re fere m a alguém que falhou
c o m Jesus. H á alegria em seguir Jesu s n o ca m in h o (10.52), m as tristeza ao
falhar c o m ele, c o n fo rm e P ed ro lo g o d esc o b rirá (14.72). E cada u m deles,
“ u m p o r u m ” — u m sem itism o em g re g o — p ro testa: “ C o m certeza n ão sou
eu!” O traid o r, co n tin u a Jesus, é “ u m d o s D o z e , alguém q u e co m e com igo
d o m e sm o p ra to ” . E sse esclarecim ento lim ita o c u lp ad o aos D o z e e exonera
os o u tro s m e m b ro s p articip an tes d a refeição pascal. O s su sp eito s prováveis,
em o u tras palavras, são descartados, e to d o s os c o m p an h e iro s q u e p erte n cem
ao círculo m ais ín tim o — aqueles cujas m ão s estiveram n o p ra to d e Jesu s —
são su sp eito s.19 P o d e haver, n o sen tid o fo rm al, apenas u m traid o r, m as, ao
am an h ecer, to d o s os discípulos trairão Jesus, se n ã o p o r co b iça (w . 10,11),
e n tã o p o r fraq u eza (w . 37-42), m e d o (w . 50-52) o u covardia (w . 66-72).
“ C o m c e rte z a n ã o so u eu!” C o m o esse p ro te s to ecoa ao lo n g o d o s séculos!

21 E sse versículo é u m d o s m ais sugestivos na E scritu ra so b re a relação


e n tre a causalidade divina e a responsabilidade h um ana. T am b ém n os fornece
u m d isc e rn im e n to ra ro d a m e n te d e Jesus. Q u e esse versículo rep resen ta a
m en te de Jesu s é ev id en ciad o pela p re sen ça d e “ F ilh o d o h o m e m ” (veja m ais
em 2.10; 8.31), u m títu lo u sad o apenas p o r Jesu s p ara se referir a si m esm o,
e n ã o pela igreja prim itiva de Jesus. D e especial in teresse é a afirm ação de
q u e o “ F ilh o d o h o m e m vai, c o m o e stá esc rito a seu re sp e ito ” . A frase
“ está esc rito ” (veja m ais em 1.2) carreg a o sen tid o d o p ro p ó sito divino ou
p red eterm in aç ão . C o n tu d o , n ão h á n e n h u m lu g ar n a tradição p ré-cristã em
q u e o F ilh o d o h o m e m está d estin ad o a sofrer. A figura q u e está destin ad a a
so fre r é a d o S ervo d o S en h o r (Is 53.6,10). A ideia d e q u e o F ilh o d o h o m em
te m de se r traíd o e so fre r é relevante só se Jesus, c o m o o F ilho d o h o m em ,
identificar-se c o m o so frim e n to d o S erv o d o S en h o r20 e v ir em sua paixão o
c u m p rim e n to d a expiação vicária d e o u tro s (Is 54.4,12).

19Três códices andgos e im portantes (B C Θ) acentuam a traição com a leitura


“come comigo do mesmo prato” (grifo do autor) {mef emou eis to hen tiybliori). Por
mais apropriado que seja ao sentido do significado, a palavra mesmo enfática não
está presente na maioria dos manuscritos, sendo omitida corretamente pela ARA
e TB.
20 V. Taylor, The GospelAccording to St. Mark, ρ. 541-42.
M a rc o s 14.22 524

O versículo 14.21 esb o ç a ain d a m ais o p arad o x o d a crucificação e expia-


ção c o n fo rm e re p rese n ta d a pelas palavras d e Jesu s n a últim a ceia. O traid o r
era u m d o s discíp u lo s esco lh id o s d e Jesus. Sua traição era u m a m aldade
m u ito grave, m as ta m b é m parecia necessária p ara o c u m p rim e n to d o p lan o
d e D e u s (A t 3.17,18; 4.27,28). A ssim , Jesu s segue em co n c o rd ân c ia co m a
v o n ta d e p re d e te rm in a d a d e D e u s, m as o traid o r, co m isso, não é exo n erad o
d a culpa. N e m Jesu s n e m Ju d as são in stru m e n to s d o d estin o cego o u peões
d a estratégia divina. “M as ai daquele q u e trai o F ilh o d o hom em ! M elh o r lhe
seria n ão haver nascid o ” (tam bém 1Ciem. 46.8; Herm. Vis. 4.2.6). A providência
divina n ã o cancela a lib erd ad e h u m a n a n e m alivia a resp o n sab ilid ad e pelas
escolhas m orais. A s duas c o rren tes — a d a p re d e te rm in aç ão d e D e u s e a d o
livre-arbítrio h u m an o — cru zam -se n o v e rb o g re g o paradidomi (w . 18,21),
co m o sen tid o d e “ e n tre g a r” o u “ trair” . Jesus, em u m ato, é e m p re g ad o no
p ro p ó sito necessário e sa n to d e D e u s e traíd o p o r Ju d as p ara seus inim igos.

22 M arcos, n o c o n te x to d a infidelidade e d eserção d o s discípulos, p õ e


a últim a ceia c o m o a p a rte cen tral d e sua c o n stru ç ã o sanduíche. A últim a
ceia, e m co m p araçã o c o m os elab o rad o s arran jo s p ara a P áscoa n o s versícu-
los 12-16, é n a rra d a c o m p arcim ô n ia e b rev id ad e n o s versículos 22-26. O s
elem en to s ricos e sim bólicos d a P áscoa fo ram incluídos nas palavras sim ples,
m as m o m e n to sa s, d e Jesu s p o r ocasião da instituição da P áscoa. A ceia do
S en h o r, já antes em M arco s, alcançara a fo rm a litúrgica n a igreja prim itiva,
e m b o ra leves v ariaçõ es n o N o v o T e sta m e n to ainda sejam evidentes. As
palavras de instituição são as m ais breves em M arcos 14.22 e M ateus 26.26:
“ isto é o m eu c o rp o ” . P aulo acrescenta: “q u e é d ad o em favor de vo cês” (1 C o
11.24), e Lucas, e v id en te m e n te em d ep e n d ên cia ta n to d e M arcos q u an to
Paulo, acrescenta: “ d a d o ” (22.19). Paulo e Lucas, em c o n tra ste c o m M arcos
e M ateus, ta m b é m c o n tê m u m a o rd e m p ara re p e tir a o bservância. A últim a
ceia, d esd e os p rim o rd io s, foi co n sid erad a pela igreja c o m o a rep resen tação
m ais v erdad eira d e su a c o m u n h ã o co m C risto.21
“ E n q u a n to co m iam , Jesu s to m o u o p ão , d e u graças, p artiu -o , e o d eu
aos discípulos.” A s palavras d a instituição o c o rre m d ep o is d e a refeição da
P áscoa já estar em p ro g resso , p ro v av elm en te en tre o b e b e r d o seg u n d o e do
terceiro cálices d e vin h o . Se Jesu s seguiu o ritual n o rm a l d a Páscoa, a b ên ção
o u ação de graças e n q u a n to p artia o p ã o (v. 22) e distribuía o v in h o (v. 23) seria:

21 Didaqué 9:1-5; Epifânio, Panarion (Contra heresias) 30.22.4-5; Justino Mártir, Apo-
logia 1.66.3; Diálogo com Trifio 111.3.
525 M a rc o s 14.23-24

“A b e n ç o a d o és tu , o S en h o r n o sso D e u s, rei d o m u n d o , que p ro d u z es o p ão


da te rra ” . O p ã o d a P resen ça p o s to so b re a m esa de o u ro n o tab ern ácu lo a
cada sáb ad o , de a c o rd o c o m a T orá, era ch a m a d o de “ p ão d a lem b ran ça” (Lc
24.7). H á sete v e rb o s g reg o s transitivos n o versículo 22 (com er, to m ar, dar
graças, partir, dar, dizer, tom ar) co m o sen tid o d e atividade graciosa de Jesus em
favor d o s discípulos. Q u a n d o Jesus disse: “isto é o m eu c o rp o ” , o aram aico (a
língua nativa de Jesus) p o r trás de “ c o rp o ” significava provavelm ente “ m in h a
p esso a ” , “ to d o m e u se r” , “ m eu eu ” . D a m e sm a fo rm a, a palavra grega p o r
trás de “ c o r p o ” n ã o é sarx (carne), m as sõma, “ c o rp o ” o u talvez “ ser” . T oda
a atividade indicada pelo s verbos, p o rta n to , resu lta n a dádiva d e Jesus mesmo,
to talm e n te e sem reservas, em sua o fe rta de si m esm o para os discípulos. E les
p o d e m se alim en tar nele pela fé sem p re que se re u n irem p ara a co m u n h ão
à m esa em seu n o m e. O v erb o “ é” foi sujeito de deb ates e causa d e m uita
divisão n a h istó ria da igreja. O aram aico seria d e fato “isto, o m eu c o rp o ” ,
co m o “ é ” im plícito. Q u a n d o suprido, o “ é” sugere u m a equação fo rm al, até
m esm o m atem ática, en tre Jesu s e o pão; p o r sua vez, um a paráfrase c o m o
“ re p re se n ta ” en fraq u ece a relação en tre Jesu s e o p ão para u m a sem elhança
sim b ó lica o u figurativa. O v erb o é id ealm en te co m p re en d id o co m o um a
m etáfo ra: “ O p ã o significa o u transmite o m eu c o rp o ” .

2 3 ,2 4 Jesus, to m a n d o o terceiro cálice, en tre g a-o aos discípulos. E n tre as


o fe rta s d o p ã o (14.22) e d o cálice (v. 23) h á o in terv alo de te m p o exigido para
c o m e r a refeição. A teo ria de q ue as palavras de Jesu s alteram a substância
d o p ã o e d o v in h o d e aco rd o co m a d o u trin a m edieval d a tran su b stan ciação
in terp re ta d e fo rm a excessiva o sentido dos textos d a Eucaristia. E im provável
q u e as palavras de Jesu s em M arcos te n h a m a c o n o ta ç ã o de u m a m u d an ça de
su bstân cia, p o is ele declara “isto é o m eu c o rp o ” depois de os discípulos terem
b eb id o d o cálice (v. 23) .22 A lém disso, o p ro n o m e d em o n strativ o próxim o
“isto é o m eu c o r p o /s a n g u e ” n o s versículos 22 e 24 é n e u tro (gr. touto). Se
tivesse a in ten çã o d e designar o p ão o u o v inho, precisaria ser m asculino (gr.
houtos) p a ra c o n c o rd a r co m am b o s os antecedentes. A fo rm a n eu tra de “isto ”
a p o n ta para o c o rp o d e Jesu s e p ara lo n g e ta n to d o p ão q u a n to d o vinho.23
P o r fim , a frase “ d erra m a d o em favor de m u ito s” , e m b o ra sim bolizado n o
d e rra m a r d o v inho, to rn a-se realidade n ã o n o v in h o d a sala n o an d ar supe-

22 E. Schweizer, The GoodNem According to Mark, p. 303-4.


23 A. Schlatter, Der Evangelist Matthaus, p. 742.
M a rc o s 14.23-24 526

rior, o u cenáculo, m as n a m o rte d e Jesu s n o G ó lg o ta .2425O b v iam en te, n em o


b atism o n em q u alq u er o u tro ritual é u m p ré-req u isito p ara a refeição; o único
p ré-req u isito n essa refeição é a necessidade. M arcos é o único evangelista que
acrescenta: “ e to d o s b e b e ra m ” .23 O “ to d o s ” eco a ao lo n g o d o re sta n te do
capítulo d o evangelho, re m e m o ra n d o ta n to a graça d e Jesu s q u a n to a falha
d o s discípulos: “ to d o s [eles] b e b e ra m ” (v. 23), “ to d o s [eles juraram aliança
a Jesu s]” (v. 31); m as “ to d o s [eles] [...] [o] a b a n d o n a r [am]” (v. 27) e “ to d o s
[eles] fugiram ” (v. 50). O s p resen tes n a últim a ceia original eram traid o res (v.
18) e cov ard es (v. 50); essa n ã o é u m a m esa d e m érito , m as d e graça!
O ápice d a refeição o c o rre co m a declaração: “ Is to é o m eu san g u e da
aliança, q u e é d e rra m a d o em fav o r d e m u ito s” .26 N o p e n sa m e n to h e b reu , a
vida d a criatu ra residia em seu sangue; a referên cia d e Jesu s ao cálice co m o
“m e u san g u e” , p o r co n seg u in te, deixa im p lícito sua p ró p ria vida. O s rabis
ju deus falam d o “ sangue d a aliança” só em referên cia à circuncisão,27 m as o
u so de Jesu s d essa ex p ressão é o b v iam en te m uitíssim o distinto. O “ sangue da
aliança” n ã o p o d e ser c o m p re e n d id o à p a rte d a p rim eira aliança q u e M oisés
in stitu iu ao asp erg ir sangue so b re as p esso as (Ê x 24.3-8). A q u ela aliança foi
selada p o r n ecessid ad e co m o sangue d e u m anim al sacrificial substitu to . A
n o v a aliança aqui in stitu íd a (Jr 31.31-34) tem d e ser selada pelo sangue de
Jesus; n ão é apenas asp erg id o sobre a co m u n id ad e, c o m o ac o n te ceu em Ê x o -
d o 24.8, m as e m b e b id o nos cristãos. O “ m eu sangue d a aliança” 28 im plica que
o sangue d e Jesu s é o ú n ic o sangue v erd ad eiro e eficaz da aliança, d o qual o
sangue d o s anim ais n ã o passava d e u m a m era p ro lep se. A lém disso, o sangue
d e Jesu s “ é d e rra m a d o em fav o r d e m u ito s” . E m 10.45, Jesu s falo u q u e o
p ro p ó sito d o F ilh o d o h o m e m era “ d a r a sua vida em resgate p o r m u ito s” .

24 Veja L. C. Boughton, '“Being Shed for You/M any’: Time-Sense and Consequences
in the Synoptic Cup Citations” , TynBul48 (1997), p. 249-70.
25 Em bora Mateus 26.27 ordene: “Bebam dele todos vocês” .
26 Para um estudo traçando essa afirmação até o Jesus histórico com base na ates-
tação múltipla, dissimilaridade e coerência, veja K. Backhaus, “H at Jesus vom
G ottesbund gesprochen?” TGl 86 (1996), p. 343-56. Contra J.-M. van Cangh,
“Le déroulem ent prim itif de la Cène (Mc 14,18-26 et par.)”, RB 102 (1995), p.
193-225, que considera o versículo 24 com o uma adição litúrgica da comunidade
helenista.
27Str-B 1.991.
28 Vários manuscritos gregos trazem: “Este é o sangue da nova aliança” (A K P Δ Π
X), mas “nova” é provavelmente uma harmonização posterior do texto de Marcos
com !Corintios 11.25 e Lucas 22.20.
527 M a rc o s 14.25-28

N a últim a ceia, esse p ro p ó s ito se to rn a realidade.29 “ M u ito s” n ão significa


u m g ru p o seleto e lim itado, c o m o era o caso em C u n rã, p o r exem plo, em
q u e “ o s m u ito s” designava rep etid as vezes só os m e m b ro s d a co m u n id ad e
(e.g., 1Q S 6). A n tes, “m u ito s” alude ao serv o s o fre d o r d e Isaías q u e “levou
o p e c a d o d e m u itos e pelos tran sg resso res in te rc e d e u ” (Is 53.12).30 Liga a
m o rte d e Jesu s à ideia d o sacrifício vicário p a ra os sem lei, os p ecad o res e
os tran sg resso res.31

2 5 ,2 6 O tex to d e 14.25 localiza-se n o b e b e r d o cálice final d a Páscoa.32


E ssa fala m u d a o fo co d a celebração d a o rig em d o sangue d a aliança em E x o -
d o 24 p ara seu c u m p rim en to n o “v in h o n o v o n o R eino d e D e u s” . A expressão
“ até aquele dia” re to m a o tem a escato ló g ico d o capítulo 13 (w . 17,19,20,24
e 32), q u a n d o o R eino d e D e u s será to ta lm e n te realizado. A ssim q u e os sons
d e suas palavras se extinguem , sua m issão co m eça. O g ru p o reu n id o canta
u m a canção, p ro v av elm en te o final d o s salm os d e H allel (115-118), a seguir
deixa d e fo rm a d iscreta a cidade, atravessa o vale d o C ed ro m a leste e segue
n a d ireção d o m o n te das Oliveiras.

2 7 ,2 8 M arco s en cerra ag o ra a c o n stru ç ã o san d u ích e co m a conversa


en tre Jesu s e P edro. E s te age c o m o p o rta -v o z d o s discípulos n o s versícu-
los 27-31, e su a b rav ata e su b seq u e n te d ese rçã o tipificam to d o s o s D o ze. A

29 Veja A. Y. Collins, “T he Signification o f Mark 10:45 am ong Gentile Christians”,


H TRW (1997), pi 382.
30J. H. M oulton, Grammarof New Testament Greek, 3 vols. (Edinburgh: T. & T. Clark,
1908-63), p. 26, observa que, no N ovo Testamento, “m uitos” designa com fre-
quência um grupo em sua totalidade. Para mais discussões sobre “muitos”, veja
em 10.45.
31 O conceito de sofrimento vicário por parte do Servo do Senhor em Isaías 53, aqui
aplicado à m orte de Jesus, é único no Antigo Testamento. O judaísmo não tinha
o conceito de um resgate para o povo com o um todo, nem de um Messias cuja
m orte teria relevância salvífica. Veja W. G rundm ann, Das Evangelium nachMarkus,
p. 391-92.
32 Dois conjuntos de variantes textuais estão em torno da frase “não beberei outra
vez” (v. 25). Um conjunto inclui a adição da palavra prostithémi (“intentar” ; D Θ
565). Em bora prostithémipossa refletir o hosip semítico, é pouquíssimo atestado para
ser considerado original. A outra variante é a omissão de ouketi (“não outra vez”)
em ‫ א‬C L W O term o provavelmente deveria ser retido (1) por causa de seu forte
apoio manuscrito, e (2) porque sua omissão pode ser o resultado de assimilação
pelos escribas do paralelo em Mateus 26.29. Veja Metzger, TCGNT, p. 113-14.
M a rc o s 14.25-28 528

conv ersa fo rm a u m a co n tin u aç ão d a co n v ersa d o s versículos 17-21 e um a


co n tra p a rte a ela. Jesus, antes d a refeição d a Páscoa, in fo rm o u seus discípulos
qu e “u m d e vo cês m e trairá” (v. 18); ag o ra ele os in fo rm a q u e “vocês to d o s
m e a b a n d o n a rã o ” . T a n to o autossacrifício de Jesu s n a P áscoa q u a n to suas
adm o estaçõ es an terio res e p o sterio re s a esse ev e n to co lo cam o s discípulos
face a face c o m a im in ência da p ró p ria infidelidade deles. L ucas relata que
Satanás p ed iu “p a ra p eneirá-los [Pedro] c o m o trig o ” (22.31,32), ac en tu an d o
de fo rm a ainda m ais incisiva o p erig o espiritual d a h ora. P edro, d e aco rd o
co m Papias (m. 135 d.C.), foi u m a im p o rta n te fo n te de in fo rm aç õ es para o
evangelho d e M arcos. O te ste m u n h o d e Papias a esse re sp eito parece dig-
n o d e co nfian ça, p o is aqui ta n to q u a n to m uitas vezes em o u tro s tex to s do
evangelho, P ed ro sugere a si m esm o c o m o u m a fo n te óbvia dessa histó ria e
de m u ito d o q u e se segue em M arcos 14.
Jesus, refletin d o so b re o efeito de sua m o rte n o re b an h o , tran sm ite um a
im agem tu rb u len ta: “V ocês to d o s m e a b a n d o n a rã o ” . A palavra greg a para
“ab a n d o n a rã o ” (skandali^ein) significa “ levar a tro p e ç a r” o u “ cair” . T em um
sen tid o passivo, o u seja, n ã o q u e r d izer q u e os discípulos d esertarão p o r
estarem d esejo so s d e to m a r essa atitude, m as q u e fatores ex tern o s agirão
so b re eles e os levarão a fazer isso. E , em o u tras palavras, u m deslize, e não
u m a rebelião od io sa. Skandali^ein é a falha em fazer o q u e Jesu s o rd e n o u que
os discípulos fizessem n o ca p ítu lo 13 — ficar aten to s e vigiar. Skandali^ein
é o m in a r d a co n fian ça e c o m p ro m isso q ue Jesu s se e sfo rço u p ara en sin ar a
seus discípulos “ n o c a m in h o ” .33Jesu s alerta os discípulos p ara se guardarem
c o n tra o tip o d e p ecam in o sid a d e d a qual a m aioria d e n ó s so m o s culpados:
os p ec ad o s d e fraq u eza e irreso lu ção , e n ão p ec ad o s de intenção. N ã o plane-
jam os pecar, m as tam b ém n ão seguram os o fo rte q u a n d o devem os fazer isso.
Jesus segue e fortifica su a ad m o estação c o m u m a citação: “ Pois está es-
crito: ‘Ferirei o p asto r, e as ovelhas serão d isp ersas’ ” (Mc 14.27; Z c 13.7).34

33 Veja G. Stáhlin, “skandalon”, 7 Z W jT7.349-52; G rundm ann, Das Evangelium nach


Markus, p. 394.
34 O TM e a LXX trazem: “Fira o pastor [LXX: pastores] [...]” , a segunda pessoa do
plural imperativo, e não a primeira pessoa singular futuro conform e registrado em
Marcos 14.27. N o entanto, os aparatos textuais do TM e da LXX revelam incerteza
sobre a pessoa do verbo. O TM oferece uma emenda conjectural de um infinito
absoluto, “Eu ferirei” (hakkah akkeh) para se ajustar à métrica poética. Além disso,
se a passagem for lembrada de memória, a mudança da primeira pessoa singular
podería ter sido facilitada pela segunda metade de Zacarias 13.7 “e voltarei minhas
mãos para os pequeninos”.
529 M a rc o s 14.29-31

A referên cia a “ escrito ” (veja so b re o te rm o em 1.2) e a citação da E scritu ra


em p re sta au to rid ad e divina à ad m o esta ção d e Jesus. Z acarias 13.7, em seu
c o n te x to original, refere-se ao m a rtírio d o b o m p a s to r escatológico.35 A
p rim eira p esso a d o singular, “ ferirei” significa q ue D e u s ferirá Jesu s c o m o o
p a sto r — o u p e rm itirá qu e ele seja ferid o — n o c u m p rim e n to de sua von-
tade.36 E ssa citação, p o r co n seg u in te, re p e te o p arad o x o d e 14.21, em que o
d e m ô n io é u sad o p o r D e u s p ara cu m p rir o p ro p ó s ito divino m aior. A citação
d e Z acarias 13.7 tam b ém p ro v ê m ais u m v islu m b re n a c o m p reen são de Jesus
d e sua paixão: q u e seu so frim en to é o rd e n a d o p o r D eu s; nas palavras do
serv o d o S en h o r: “ C o n tu d o , foi d a v o n ta d e d o S e n h o r esm agá-lo e fazê-lo
so frer” (Is 53.10). P o r fim , a citação co n tém u m alerta aos discípulos que serão
d isp ersos; e, além d o alerta, h á u m co n so lo , pois Jesu s m o stra com paixão
pelas ovelhas sem p a s to r (M t 9.36).
O c o n so lo co n tin u a em 14.28 co m a p red ição d a ressu rreição d e Jesus
d en tre os m o rto s (tam b ém 8.31; 9.31; 10.34). “M as, dep ois d e ressuscitar, irei
adiante de vocês p ara a Galileia.” E ssa p ro m essa se assem elha de m o d o curio-
so co m Z acarias 13.7b q u e fala so b re D e u s re u n in d o seu re b an h o renovado
c o m o o p o v o d e D eus. Jesus, para além d a paixão e em co n co rd ân cia com
a E scritu ra , vê u m a ren o v ação e c o m p le tu d e d o ch a m a d o ao discipulado. O
R ein o d e D e u s q u e Jesu s traz e in c o rp o ra n ã o p o d e ser d estru íd o p o r falhas
hu m an as. E le q u e p rim eiro c h a m o u o g ru p o a p o stó lico n o m a r da Galileia
(1.16) os ch am ará de n o v o e os reestab elecerá n o m a r da G alileia (16.7). E
ali — n ão em Jeru sa lém n em n o tem p lo — q u e Jesu s re co n stitu irá seus se-
guidores. O S en h o r ressurreto , c o m o os p ro fetas que previram lavé liderando
Israel de v o lta ao d ese rto e m ais u m a vez fazen d o u m c o n tra to de casam ento
co m ela (O s 2), re to rn a rá e recu p erará os discípulos caídos n a Galileia.

2 9 3 1 ‫ ־‬E m M arcos, sem p re que Jesu s p red iz sua paixão, os discípulos


re sp o n d e m c o m au to afirm açã o e co n v en cim en to , em vez de co m hum ildade
(8.31,32; 9.31-34; 10.33-37). U m p a d rã o sim ilar ressu rge n a petulância de
P ed ro de q u e ele n ão ab a n d o n ará Jesus. Seu co m e n tá rio n o versículo 29 é
apenas u m p o u q u in h o m en o s ru d e q u e su a re p re e n sã o de Jesu s após a pri-
m eira p re d ição d a paixão (8.32) e sua in sin u ação é aind a m ais insultante para

35 H. Gese, “Anfang und Ende der Apokalyptik, dargestellt am Sacharjabuch”, ZTK


70 (1973), p. 46-48.
36 Veja S. L. Cook, “T he M etamorphosis o f a Shepherd: T he Tradition History o f
Zechariah 11:17 + 13:7-9”, CBQ 55 (1993), p. 453-66.
M a rc o s 14.29-31 530

os o u tro s discípulos. “A in d a q u e to d o s te a b a n d o n e m ” sugere que P e d ro não


se su rp re e n d e c o m o p e n sa m e n to d e d eserção d o s o u tro s discípulos. Talvez
ele até m e sm o esp ere isso deles. D e q u alq u er m o d o , P ed ro n ão d efen d e a
causa d o s o u tro s discípulos. O que ele d e fen d e c o m firm eza é sua própria
causa: “ eu n ã o te ab an d o n arei!” P e d ro se co n sid era u m a exceção à regra;
o n d e o u tro s cairão, ele p erm a n e c e rá em pé! Jesu s in te rro m p e as sim ulações
heroicas d e P e d ro — o u tentativas d e ser h e ró i — c o m o a d u ra realidade:
“A ssegu ro q u e ain d a h o je, esta n o ite, antes q ue d u as vezes can te o galo, três
vezes v o cê m e n eg a rá” . A afirm ação é ta n to ex u b e ran te q u a n to enfática,
pois, em g reg o , a p alav ra “ negafr]” (<apameesthai) é co n sid erad a c o m o o fim
d e u m a lo n g a cadeia d e afirm ações q u e a p reced em . A tripla n eg ação n ão
é u m deslize m o m e n tâ n e o cau sad o pela fraqueza. “T rês vezes” golp eia a
P ed ro — e a n ó s leito res ta m b é m — q u e p e rc e b e o q u ão ra p id a m en te as
m ais n o b re s co n v icçõ es p o d e m m u rch a r d ian te d e u m sério ataque.37 N ã o
adianta p ro te s ta r q u e n ã o c o m e te m o s os p ec ad o s q u e n ó s, m etid o s a san to s,
c o n d e n a m o s n o s o u tro s. A q u estão n ão é ta n to quais p ecad o s co m ete m o s
q u an to quais p ec ad o s cometeriamos se en fren tássem o s u m a pressão m u ito séria,
ten taç õ es, o p o rtu n id a d e s e am eaças. M arcos, o ú n ico d e n tre os evangelistas,
registra o c a n to d o galo p o r duas vezes (v. 30).38 Será q ue é o p rim eiro a alertar
q u e ainda h á te m p o p a ra ser fo rte ?39

37 Aqui vem à mem ória a polêmica de Lutero em Sobre 0 servo arbítrio, de que a von-
tade e o conhecim ento hum anos, em bora as mais nobres das características, são
derradeiram ente instáveis e cegos e inclinados para o mal (Martin Luther’s Basic
Theological Writings) ed. D. Lull [Minneapolis: Fortress Press, 1989], p. 18586‫)־‬.
38 O canto duplo do galo em Marcos não é um a certeza do ponto de vista textual.
Vários manuscritos de peso (C ‫ א‬D W) om item “duas vezes” , mas a omissão se
deve provavelmente à assimilação com Mateus 26.34; Lucas 22.34 e João 13.38,
e todos eles om item o segundo canto do galo. O apoio textual para os dois can-
tos do galo é mais forte e mais diverso que o para sua omissão. Veja M. Ôhler,
“D er zweimalige H ahnschrei der Markuspassion. Z ur Textüberlieferung von Mk
14,30.68.72” , Z M F 8 5 (1994), p. 145-50.
39 H á algum debate sobre se o “cant[o] [d]o galo” deve ser com preendido literal-
mente. Certas passagens rabínicas (e.g., m. B. Qam. 7.7) proibiam ter galinhas em
Jerusalém porque o ciscar delas descobria coisas imundas. Isso leva à sugestão de
que o “cantfo] [d]o galo” era uma metáfora para gallicinium, o chamado de corneta
matutino dos rom anos ou o soar das trom betas no templo nessa m esma hora
{m. Suk. 5:4). Contudo, é difícil de imaginar animais tão utéis e ubíquos quanto
as galinhas sendo eliminadas totalm ente de Jerusalém. Nessa regra, com o em
outras regras rabínicas, há as exceções, em especial se havia um jardim ou monte
de esterco onde as galinhas podiam ciscar. O “cant[o] [d]o galo” deve ser com ­
531 M a rc o s 14.29-31

P e d ro so b e u m a oitava co m seu p ro te sto : “ M esm o que seja preciso que


eu m o rra co n tig o , n u n ca te n eg arei” (v. 31). T ais afirm ações são m ais fácil-
m en te feitas em tem p o s d e b o n an ça, calm os e seguros, que n a p ro v a severa da
ten taç ão e oposição. N o caso d e P ed ro , a afirm a ção cairá p o r te rra u m p o u c o
m ais ta rd e n a p re se n ça d e u m a serv a (14.66-72). N o en tan to , ele n ão está só
n essa vangloria, p o is os o u tro s “d isseram o m e sm o ” : “V am os tam b ém para
m o rre rm o s c o m ele” (Jo 11.16). Q u a n d o ch eg a o m o m e n to p ara a bravata,
cada u m d o s discípulos arru m a-se p ara falar p o r si m esm o. E sse é o indício
d e q ue, p ara M arcos, n ão existe “ cu lp a p o r asso ciação” n em “vitim ização
coletiva” . T o d o s eles b eb e m d o cálice (14.23), to d o s co n fessam sua aliança
(v. 3 1 )[...] e to d o s eles fo g em (14.50)!
M arcos, ao co lo ca r a últim a ceia en tre a traição e a d eserção d o s disci-
pu los, tran sm ite de fo rm a vivida que “m u ito s” p o r q u em Jesu s d e rra m a sua
v id a in clu em seus p ró p rio s co m p an h e iro s em to rn o d a m esa. O p e c a d o que
n ecessita o envio d o F ilh o d e D e u s n ã o é o pecad o de algum a o u tra p esso a
— o p e c a d o d e Caligula, N e ro o u d a legião d e tiran o s existentes d esd e essa
é p o c a — m as o p ecad o d o s a rre n d a d o re s d e sua vinha, de seus p ró p rio s
discípu lo s — o d e P e d ro e d e T iag o , o seu e o m eu. O m al essencial n o
m u n d o e a expiação essencial p ara o m al d o m u n d o estão p resen tes n a ceia
d o S e n h o r — se m p re q u e é celebrada.40 O autossacrifício de Jesu s só p o d e
ser c o m p re e n d id o c o m o a co n su m aç ão d o sangue da aliança esb o çad a em
p rim e iro lu g ar em Ê x o d o . N e sse aspecto, a ú ltim a ceia é, nas palavras de
Paulo, u m a “m e m ó ria ” (IC o 11.24; e m b o ra M arco s n ão u se essa palavra),
n a qual a o b laçã o d e Jesu s efetu a o c u m p rim e n to final daquilo c o m que os
sacrifícios d e san g u e an terio res lidavam d e fo rm a apenas p ro v isó ria e p ro -
lép tica (H b 7.27; 9.28). A últim a ceia, ao m e sm o tem p o , a p o n ta p ara além
d e si m esm a, p a ra o fu tu ro , “ até aquele dia em q u e b eb erei o v in h o n o v o no
R eino d e D e u s ” (14.25). C o m o a palavra “ até ” é crucial. A palavra final da
ú ltim a ceia — ap esar d a covardia e traição d o s discípulos; ap esar d a agonia
im in e n te d e Jesu s n a cru z — é a expectativa da v in d a d o R eino de D eus.
A queles q u e p artilh am d a ceia d o S e n h o r fazem isso apenas c o m o pecadores
g ra to s q u e ficam “ e n tre os te m p o s” — en tre a o fe rta d e u m a vez p o r todas

preendido literalmente. Veja J. Jeremias,Jerusalem in the Time ofJesus, trad. F. H. and


C. H. Cave (Philadelphia: Fortress Press, 1979), p. 47-48; Str-B 1.992.
40 Sobre o tema do perdão dos pecados na última ceia, veja, O. Hofius, ‘“Für Euch
gegeben zur Vergebung der Sünden.’ Vom Sinn des Heiligen Abendmals”, ZTK
95 (1998), p. 313-37.
M a rc o s 14.32-35 532

de Jesus, o fe rta p o r “ m u ito s” , e a realização universal n a vin d a d o R eino de


D e u s “ [n] aquele dia” .

G E T S Ê M A N I: O P R E L Ú D I O P A R A A C R U Z (1 4 .3 2 -4 2 )

N a ú ltim a ceia, Jesu s, co n tu d o , falou d o p ã o e d o v in h o c o m o rep resen -


tações d e seu c o rp o e sangue, “ d e rra m a d o em favor d e m u ito s” (14.22-24).
N o en tan to , o a b a n d o n o d o c o rp o d e Jesu s n o G ó lg o ta d ep e n d e da en treg a
an terio r d e sua v o n ta d e à d o Pai. E ssa e n tre g a n ão ac o n tece em u m m o n te
fo ra d e Jeru sa lém , m as em vale abaixo desse m o n te . A decisão d e se sub-
m e te r à v o n ta d e d o Pai, d e a c o rd o c o m M arcos, leva Jesus a u m so frim en to
in te rn o m a io r q u e a crucificação n o G ó lg o ta. A cru z (8.34) é u m a q u estão
d o co raçã o antes d e ser u m a q u estão d e m ão, u m a q u estão d a v o n tad e antes
de ser u m a realidade em pírica.

32-35 Jesu s e os discípulos en tra m n a p lan taç ão de oliveiras cham ada


G etsê m a n i.41 E sse n o m e deriva d o hebraico, cu jo sen tid o é “ lagar” . Fica a
leste d o rib eiro d e C e d ro m ao s p és d o m o n te das O liveiras, u m local bas-
tan te u tilizado p ara as reu n iõ es d e Jesu s c o m seus seguidores (Lc 22.39; Jo
18.1,2). Jesu s o rd e n a ao s discípulos: “ S en tem -se aqui en q u a n to v o u o ra r” .
M arcos só registra o u tras d u as vezes em q ue Jesu s o ra so zin h o (1.35; 6.46;
so b re a oração, veja m ais nessas passagens e em 9.29). A s o raçõ es de Jesus
em M arco s estão to d as localizadas e m m o m e n to s d e decisões e crises, e essa
p re se n te ocasião é a m ais trau m ática. Jesus, q u a n d o se sep ara d o s D o z e , leva
P edro, T iag o e J o ã o (v. 33) p a ra ficarem a sós c o m ele. E sses três discípulos
fo rm a m o círculo ín tim o d e Jesu s em m eio aos discípulos e figuram d e m o d o
p ro em in e n te em ocasiões an terio res n o evangelho de M arcos (5.37; 9.2; 13.3).
T o d o s os três antes d esse m o m e n to vociferaram sua d eterm in ação e coragem
(Pedro, 14.29-31; T iag o e Jo ão , 10.38,39; 14.31); eles d evem ser ex atam en te
os co m p a n h e iro s q u e Jesu s n ecessita n a crise d ian te dele.
N o G e tsê m a n i, Jesu s é afligido p o r in ten sa angústia espiritual. O esco p o
e n ú m e ro d e ex p ressõ es d esc rev e n d o seu p esa r rivalizam co m a lam entável
descrição d o h o m e m p o ssu íd o p o r d em ô n io s em 5.2-5. Jesu s estava “ aflito e

41J. M urphy-O ’C onnor, “W hat Really H appened at G ethsem ane” , BRev 1 4 /2


(1998), p. 28ss., tenta com base nas “duplas estruturais” argumentar que Marcos
com binou dois relatos separados em 14.32-42. As alegadas duplas, no enunto,
parecem-me um tanto forçadas, nem , tampouco, são capazes de explicar a tese
de M urphy-O ’Connor, tese essa mais assumida que demonstrada.
533 M a rc o s 14.32-35

an g u stiad o ” . “A flito” (gr. ekthambein) e “ an g u stiad o ” (gr. adêmoneiri) são pala-


vras raras n o N o v o T estam en to . A p rim eira o c o rre apenas em M arcos (9.15;
14.33; 16.5,6) e tran sm ite o sen tid o de “ alarm e” ; a segu nda o c o rre apenas em
M ateus 2 6 .3 6 //M a r c o s 14.33 e F ilipenses 2.26 e significa “ estar angustiado
o u aflito” . “A m in h a alm a está p ro fu n d a m e n te triste, n u m a tristeza m o rta l”
ecoa o la m e n to p u n g e n te da alm a d ep rim id a e ab atida de Salm os 42.6,12 e
43.5. A palavra g reg a p ara “p ro fu n d a m e n te triste” {peúlypos), m ais u m a vez
u m a palavra rara, significa “ so b re carreg ad o c o m tristeza” e, n o co n tex to
p resen te, “ tristeza m o rta l” . Jesus, ao se sep a rar d o s três discípulos,42 cai p o r
te rra em o ração p ara q u e a pro v ação d ian te dele p u d esse ser evitada (v. 35).
N a d a em to d a a B íblia se co m p ara à agonia e an g ú stia de Jesu s n o G etsêm an i
— n e m os lam en to s de Salm os, n e m o co ração p a rtid o de A b ra ão en q u a n to
se p re p ara v a p ara o sacrifício de seu filho Isaq u e (G n 22.5), n e m o p e sa r de
D av i c o m a m o rte d e seu filho A bsalão (2Sm 18.33). L ucas 22.44 m en cio n a
até m e sm o o fa to de o “ su o r [...] [de Jesu s ser] c o m o g o tas d e sangue que
caíam n o c h ã o ” (tam b ém , Ju stin o M ártir, Dial. Trif. 103.8). O so frim en to d o
G e tsê m a n i d eixou u m a m arca indelével na igreja prim itiva (H b 5.7).
O am arg o realism o d o G e tsê m a n i é u m a g aran tia de sua historicidade.
N ã o con seg u im o s im aginar os cristãos prim itivos, e em especial M arcos que
acen tu a a au to rid a d e divina d e Jesus, in v e n ta n d o u m a h istória de tam an h o
to rm e n to . E sse m e sm o to rm e n to p ro v ê u m triste indício à co m p reen são
d e Jesu s d e su a m o rte im inente. P o r q u e, p o d e m o s n o s p erg u n tar, Jesu s se
sen te tão a fro n ta d o p elo p ro sp e c to d e su a m o rte? C ertam en te, to d o s nós
co n h e cem o s in d iv íd u o s q u e encaram o p ro sp e c to de sua m o rte co m mais
c o m p o stu ra e co rag em qu e Jesus. N ã o foi S ócrates q u em sau d o u a m o rte
c o m o u m a am iga e lib ertad o ra p ara u m a vida m e lh o r (Platão, Apologia 29;
Fédon 67-68)? O s esto ico s n ã o p reg av am a resignação serena ao destino?43

42 U m grupo forte de manuscritos traz que Jesus “se aproximou” (proselthõn; A C


D L Θ Ψ) dos discípulos para orar, em vez de se afastar (“indo um pouco mais
adiante”, proelthõn·, ‫ א‬B K N W) deles. A última leitura, no entanto, é preferível
(1) porque concorda com o sentido da narrativa; e (2) uma vez que proserchestbe é
muito mais com um no N ovo Testament() que proerchesthe, e, portanto, um escriba
talvez estivesse inclinado a acrescentar o sigma nessa última palavra.
43 “Lembre-se que você é um ator em uma peça, cujo caráter é determinado pelo
dramaturgo: se Ele desejar que a peça seja breve, é breve; se longa, é longa; se
Ele desejar que você desempenhe o papel de um mendigo, lembre-se de agir com
talento até mesm o nesse papel; e o mesm o deve suceder se seu papel for de um
aleijado, uma autoridade ou leigo. Pois essa é sua função, desempenhar admira­
M a rc o s 14.36 534

P o r que Jesus, q u e p rev iu sua m o rte e m arc h o u c o m resolução p ara Jerusalém


p ara ir ao e n c o n tro dela, tre m e agora d ian te dela?
A re sp o sta d eve ser q u e Jesu s está co n sc ie n te d e algo m ais q u e apenas
sua m o rte . E m 10.45, ele fala d o p ro p ó s ito d o F ilh o d o h o m e m d e “ d ar a sua
v id a em resg ate p o r m u ito s” . E ssa era a d escrição objetiva d e seu p ro p ó sito ;
agora, ou v im o s so b re sua experiência subjetiva dian te desse p ro p ó sito . Je-
sus, n o G e tsê m a n i, tem d e fazer o p rim eiro p a g a m e n to desse resgate, desejar
se to rn a r aquele q ue ca rre g a o p ec ad o em favor d a h u m an id ad e. Jesu s está
dian te da c o n se q u ên cia final d e ser S ervo d e D e u s, aquele q u e “ foi traspas-
sado p o r causa das nossas tran sg ressõ es, foi esm ag ad o p o r causa d e nossas
iniq uidades” (Is 53.4,5; g rifo d o autor). U m a coisa, p o r m ais te m o ro sa que
seja, é re sp o n d e rm o s p o r n o sso s p ec ad o s d ian te d o D e u s p o d e ro s o e santo;
m as q u e m co n se g u e im aginar a q ue se assem elh a se a p resen tar d ian te de
D e u s p a ra re s p o n d e r p o r cada p ecad o , e crim e, e ato m alicioso, e ferim ento,
e covardia, e m ald ad e n o m u n d o ? Jesus, ao aq u iescer à v o n tad e d o Pai de
“levfar] o p e c a d o d e m u ito s e p elo s tran sg resso res intercede[r]” (Is 53.12),
experim enta n ecessariam en te u m ab a n d o n o e trevas de p ro p o rç õ e s cósm icas.
O p io r p ro s p e c to d e se to rn a r alguém q ue tira o p ec ad o d a h u m an id ad e é
que isso ac arreta a to ta l alienação de D e u s, u m a alienação que ecoaria em
brev e acim a d a d e so lad o ra paisagem d o C alvário: “ M eu D eus! M eu D eus!
P o r q u e m e ab a n d o n aste ? ” (15.34). N ã o sua m o rtalid ad e, m as o esp ectro
de se iden tificar c o m p ec ad o re s de fo rm a tão p len a a p o n to d e se to rn a r o
o b jeto d a ira d e D e u s c o n tra o p e c a d o — é isso q u e o p rim e a alm a d e Jesus
a p o n to d e ele sen tir u m a “ tristeza m o rta l” (v. 34).

36 O u tro in d ício d a c o m p re e n s ã o d a c ru z p o r Jesu s em erg e d e sua


referên cia a sua m o rte c o m o a “ h o ra ” e o “ cálice” (w . 35,36). A “ h o ra ” e o
“ cálice” , te rm o s tirad o s d o v o cab u lário d a literatura apocalíptica, falam d os
p ro p ó sito s d errad e iro s d e D e u s associados co m o fim d o s te m p o s (13.32;
D n 11.40,45). E les n ã o se re fere m aqui à p risão im in e n te d e Jesus, m as a seu
d estin o m essiânico c o m o “ resgate p o r m u ito s” (10.45) e ao fato d e estar “ sen-
d o en treg u e n as m ão s d o s p e c a d o re s” (v. 41) a fim d e red im ir os pecadores.
Só M arco s faz Jesu s ch a m a r D e u s d e “A b a ” , u m te rm o d e intim idade,
confiança e afeição. O s o u tro s três evangelhos registram apenas a fo rm a grega
de se dirigir ao P ai >patêr. “A b a ” re m e m o ra o aram aico original d e Jesu s (Rm

velmente o papel designado a você; mas a seleção desse papel pertence a O utro”
(Epíteto, Enchiridion, p. 17; veja tam bém Arrian, Epict. Disc. 3.22.95).
535 M a rc o s 14.36

8.15; G1 4.6), d e m o n s tra n d o intim idade, o u sad ia e sim plicidade n a fo rm a


d e se dirigir a D e u s, algo q u e n ão era característico das orações judaicas. O s
rabis p re su m e m raras vezes, se é q u e o fazem , tal in tim idade c o m D eu s.44
“A b a ” p ro v ê u m a clareza lím p id a d a co n sciên cia d e Jesu s d e q u e era o F ilho
d e D e u s e d e sua disp o sição d e b e b e r o cálice am arg o d o so frim en to co m o
u m a co n se q u ê n c ia inevitável d e sua c o n fia n ça c o m p leta n o Pai e d e sua
o b ed iên c ia à v o n ta d e deste. A exousia de Jesus, o p o d e r e au to rid ad e divinos
qu e caracterizavam su a vida, é ag o ra re to rn a d a p a ra o Pai, n a co n fian ça de
q u e o p ro p ó s ito d e sua vida será co n su m a d o n a a u to rren d ição d e sua m o rte.
Jesu s n ã o é u m p erso n a g e m d esap aix o n ad o p re sc rito p o r E p íteto , resig-
n a d o de fo rm a in d ifere n te ao d estin o d e c retad o p ara ele. A ntes, o G etsêm an i
n o s ap resen ta u m a interação h u m an a única en tre o coração d o F ilh o e a vontade
d o Pai. A o ra ção d e Jesu s n ã o é o resu ltad o d a a b so rção calm a n a p resen ça
divina q u e ab ran g e tu d o , m as n a in te n sa lu ta co m a assu stad o ra realidade
d a v o n ta d e d e D e u s e co m o q u e significa se su b m eter to ta lm e n te a ela.
A h u m a n id a d e fu n d a m en tal da o ra ção fica ev id ente n o fato de q u e Jesus
im p lo ra a D e u s q u a n d o se dirige d ireta m e n te ao Pai: “A fasta d e m im este
cálice” .45 E ssa é u m a o ração p ara q u e o Pai não fira o p a sto r (14.27). Será que
é possível p ara Jesu s cu m p rir a v o n ta d e d e D e u s d e to d as as m aneiras, exceto
n essa o u d e algum a o u tra fo rm a? T alvez, c o m o a c o n te ceu co m Isaque, o sa-
crifício p o ssa ser desv iado ap e sar de o b ra ç o de A b ra ão estar lev an tad o p ara
e n te rra r a faca.46 O p e d id o d e Jesu s su g ere q u e ele é g en u in am en te ten tad o

44 A evidência na Palestina judaica do uso de “Aba”, ou até m esm o “meu Pai” para
se dirigir a D eus é muitíssimo rara. O tratam ento principal do assunto continua
sendo J. Jeremias, The Prayers ofJesus, trad. J. Bowden (Philadelphia: Fortress, 1978),
ρ. 11-65; tam bém New Testament Theology, trad. J. Bowden (New York: Scribner’s,
1971),p. 62-68. Críticas recentes a Jeremias (G. Vermes ,Jesus andthe World0JJudaism
[London, 1983], p. 39-43; M. R. D ’Angelo, “Abba and ‘Father’: Imperial Theology
and the Jesus Traditions”,JB L 111/4 [1992], p. 611-30) modificam as conclusões
de Jeremias em pontos isolados, mas falham em refutar sua tese central de que
não há (até o m om ento) exemplos do uso de aba para D eus nos textos judaicos
tão antigos quanto os evangelhos.
45 O imperativo: “Afasta (parenenke) de mim este cálice” é atestado por diversas
testemunhas dos primordios do cristianismo ( B D L W ) e , portanto, é preferível
ao primeiro aoristo imperativo ativo parenenkai apresentado por ‫ א‬A C K Θ Ψ .
Essa última leitura parece ser uma tentativa de suavizar o implícito confronto de
vontades entre Jesus e o Pai no Getsêmani.
46 Veja J. D. M. D errett, “T he Prayer in G ethsem ane (Mark 14:35-36)”, Journal 0J
Higher Criticism 4 (1997), p. 78-88.
M a rc o s 14.37-39 536

a a b a n d o n a r seu p ap el d o serv o so fred o r.47 N ã o o b sta n te, sua v o n ta d e para


o b ed e c e r ao P ai é m ais fo rte q ue seu desejo d e servir a si m esm o. E le, ao
lon g o d e seu m in istério , re p u d io u to d as as ram pas de saída d o cam in h o do
serviço co m so frim en to , in clu in d o a ten taç ão de p e rm a n ece r c o m M oisés e
Elias n a glória (9.2-8). A v o n ta d e d e Jesu s se ad eq u a a seu c o n h e cim en to da
v o n ta d e de D e u s p ara o “ b a tism o ” (10.38), a aceitação d o “ cálice” (v. 36) e
a aceitação d a “ h o ra ” (v. 35). Jesu s, u sa n d o palavras rem in iscen tes d a oração
que en sin ara an tes a seus discípulos (M t 6.10), ora: “N ã o seja o que eu quero,
m as sim o q u e tu q u eres” .

37-39 O p erig o espiritual d a h o ra n ão se lim ita a Jesus. H á tam b ém perigo


p ara o s discíp u lo s, co m certeza u m p erig o m e n o r e diferente, m as, m esm o
assim , u m perigo. A últim a palavra d o d iscu rso n o m o n te das O liveiras foi:
“ q u e n ã o o s e n c o n tre d o rm in d o !” (13.36,37). N o G e tsêm an i, os discípulos
falham n esse teste e caem n o sono.48 Jesu s os alerta três vezes p ara vigiar
(w . 34,37,38) e “ or[ar] p ara q u e n ão caiam em te n ta ç ão ” (v. 38; M t 6.13).49

47 A vulnerabilidade visível de Jesus no Getsêmani é algo com que os leitores moder-


nos em geral podem “se relacionar” . N o entanto, o que nos atrai para a história do
Getsêmani era com frequência visto com o algo ofensivo para gerações anteriores
de cristãos. As fraquezas humanas de Jesus no Getsêmani, em particular nos pe-
ríodos medieval e patrístico, eram percebidas com o contrárias aos pressupostos
ortodoxos de sua asseidade e impassibilidade divinas. Veja K. Madigan, “Ancient
and High-Medieval Interpretations o f Jesus in Gethsemane: Some Reflections on
Tradition and Continuity in Christian Thought”, HTR 88 (1995), p. 157-73.
48 Alguns estudiosos assumem que a historia do Getsêmani é uma ficção um a vez
que a solidão de Jesus e o sono dos discípulos aparentem ente descartam teste-
munhas para esse evento (e.g., R. Bultmann, History of the Synoptic Tradition, trad.
J. Marsh [Oxford: Basil Blackwell, 1963], p. 267, que considera o relato de caráter
profundam ente lendário”). Tal negativismo é totalm ente sem razão. N ão estamos
falando dos discípulos perm anecendo acordados p or interm edio de um diálogo
platônico. A oração com vinte palavras registrada por Marcos podería ter sido
proferida em quinze segundos e ouvida pelos discípulos antes que caíssem no
sono. Tampouco, não se pode descartar outras testemunhas, incluindo o miste-
rioso hom em do versículo 51. Veja B. Saunderson, “Gethsemane: T he Missing
Witness”, Bib 70 (1989), p. 224-33.
49 Os dois manuscritos excelentes da tradição alexandrina,‫ א‬e B, trazem elthête (N VI,
“caiam em tentação” [grifo do autor]). E m bora um núm ero maior e mais diverso
dos manuscritos traga eiselthète (“entrar” ; 2‫ א‬A C D L W Θ Ψ), essa leitura, apesar
de m uito bem atestada, é provavelmente uma harmonização, feita por escribas,
com os relatos paralelos de Mateus 26.41 e Lucas 22.46.
537 M a rc o s 14.40-42

Todavia, a crise d ia n te d e Jesu s é cancelada e co n su m id a pela letargia. Jesus,


p o r três vezes, os e n c o n tra d o rm in d o , ce rta m e n te u m p relú d io às três ne-
gações p o r vir d e P ed ro (14.30). N ã o é d e ad m irar q u e Jesus ch am e o líder
d o s a p ó sto lo s d e “ S im ão” , e n ão de “ P e d ro ” (v. 37), p ois ele, n o G etsêm an i,
n ã o vive à altu ra d e seu n o m e; ele n ã o é u m a “R o ch a” . A ad m o estação para
“ vigifar] e ora[r]” , pois o “ esp írito está p ro n to , m as a carn e é fraca” (v. 38),
é u m le m b re te necessário d e q u e o b e d e c e r a D e u s e co n fiar nele n ão são as
respostas pad rão dos discípulos d e Jesus, m as lutas contínuas co n tra a tentação
e a fraqueza. A igreja id en tifico u m ais ta rd e o p ro b le m a c o m o “ preguiça”
o u “ to r p o r” , u m estad o d e to rp e z a o u in d iferen ça espiritual q u e só p o d e ser
retificado pela aten ç ão e oração.50

40-42 O s ev en to s levando à P áscoa e à h o ra avançada d re n ara m a energia


d o s discípulos. Isso, aco p lad o co m a g ra n d e refeição d a P ásco a e o v inho,
levou-os a lu ta r c o n tra o so n o .51 O s o lh o s deles, afirm a M arcos, estavam pe-
sados (gr. katabaryneirí) e “ n ão sabiam o q u e lhe [a Jesus] dizer” (v. 40), u m a
frase rem in iscen te da p erp lex id ad e deles n a transfiguração (9.6). N a terceira
vez q u e Jesu s e n c o n tra os discípulos d o rm in d o , ele retruca: “ Basta!” (v. 41).
E ssa trad u ç ão é apenas u m a c o n jec tu ra so b re o sen tid o d o original apechei,
q u e p arece ser u m a fala d e exasperação, talvez: “D e q ue adianta?” 52 À ordem :
“ L ev antem -se e vam os!” (v. 42), a reso lu ção de Jesu s d e ir ao e n c o n tro de
seu d estin o faz co m q u e os discípulos fiquem de pé, se n ão a caírem em si.
“ E is que o F ilho d o h o m e m está sen d o entregue nas m ãos do s pecadores”
(14.41). E assim , co m essa declaração, o p rim eiro ev e n to das pred içõ es da
paixão ac o n te ce (9.31). A ú ltim a palavra d o relato g re g o é êngiken, “ p e rto ” .
A o ra ção n o G e tsê m a n i é o m o m e n to final d a lib erd ade d e Jesus, pois, co m

50 Observe a luta de Paulo entre o espírito e a carne (G15.16-26; Rm 7.15-25). Policar-


po, no século II d.C., alerta os filipenses contra a apostasia citando o versículo 38,
apelando para “o efeito aplacador da oração” nos conflitos entre o espírito e a
carne (Pol. Fp. 7:2).
51 A Mishná alerta o sumo sacerdote contra fazer uma refeição farta na véspera do
Dia da Expiação “uma vez que a comida induz ao sono” (m. Yoma 1:4,6-7). Veja T.
Pola, “Die Gethsemane-Perikope Markus 14,32-42 im Lichte des Mischnatraktates
Jom a (m. Yom 14.60” , TBei 25 (1994), p. 37-44.
2‫ י‬Veja as discussões da expressão em C. E. B. Cranfield, The GospelAccording to Saint
Mark, p. 435-36; M. Hooker, The GospelAccording to SaintMark, p. 349-50. O acrés-
cimo de apechei to telos (“chegou a hora!”) em vários testemunhos ocidentais (D W
Θ) é um a tentativa tardia de remover a ambiguidade da expressão. Veja Metzger,
TCGNT, p. 114-15.
M a rc o s 14.43 538

a cheg ad a d e Ju d as e d o s so ld ad o s, Jesu s é arra sta d o p ara os ev entos que


p rev iu an te rio rm en te. A lgum as das prim eiras te stem u n h as te n ta m m in g ar
a ca tá stro fe q u e se ap ro x im a ao relatar q u e u m anjo o c o n fo rto u em oração
(Lc 22.43; Evangelho dos nazarenos 32). N o en tan to , M arcos — a m aioria da
tradição — silencia-se s o b re a ajuda d o anjo. Se fo r p ara Jesus cu m p rir seu
d estin o c o m o F ilh o d e D e u s, a única re sp o sta a sua o ração resso ará nas acu-
sações m alignas e n as b an d a s d o m arte lo n o C alvário, c o n tra as quais o v in h o
e n to rp e c e d o r seria u m c o n fo rto to lo e sem eficácia. Q u e p ro fu n d a ironia
o culta o G e tsê m a n i, p o is Jesus, q u a n d o se sen te o m ais excluído d a p resen ça
d e D eu s, está n a realidade o m ais p e rto d a v o n tad e d o Pai! O G e tsê m a n i é u m
p relú d io p ara o C alvário, pois, n o vale abaixo d a cidade, Jesus p e rm ite q u e sua
alm a seja crucificada; em u m m o n te acim a d a cidade ele en tre g a seu corpo.

A P R IS Ã O : J U D A S E J E S U S (14 .4 3 -5 2 )

A prisão n o G etsêm an i, co m p arad a c o m o páthos da oração d o G etsêm ani,


é n arrad a co m v ig o ro sa objetividade. A n arrativa, c o m o u m ru fa r o m in o so
d o s tam b o re s, é p o n tu a d a re p etid as vezes pela palavra prender (gr. kratein, w .
44,46,49,51). N a v erd ad e, a palavra caracteriza o G e tsê m a n i p ara M arcos: a
prisão psicológica e esp iritu al n a oração p re c e d e n te p ara a p risão física. A
pressa e a p ro n tid ã o d a m u ltid ão testificam d e sua “ anim o sid ad e decidida e
d ete rm in a d a ” .53Jesu s é p erseg u id o e to m a d o d e assalto p o r u m a b u ro cracia
cruel n a qual, naquela é p o c a c o m o hoje, as pessoas e o s p ro cesso s são p o sto s
em m o v im e n to sem q u e n in g u ém pareça resp o n sável p o r eles e os quais nin-
g u ém co n seg u e parar. A m u ltid ão e os h o m en s d e con fiança são an ô n im o s, e
até m e sm o a id en tid ad e d aqueles q u e m ais p ro v o c am n o ssa cu riosidade — o
sim patizan te q u e lança m ã o d a espada n o versículo 47 e o h o m e m q u e fugiu
nu n o versículo 52 — co n tin u a m an ô n im o s. A s únicas p esso as m en cio n ad as
p elo n o m e são Ju d as e Jesu s, e a p risão é n a rra d a c o m o u m e n c o n tro final e
fatal en tre eles.

4 3 M a rc o s d e sc re v e o d e s ta c a m e n to q u e v eio p re n d e r Je su s c o m o
“ enviadfo] p elo s ch efes d o s sacerd o tes, m estres da lei e líderes religiosos” .
E sses três g ru p o s são os c o n stitu in te s d o Sinédrio, e isso designa o g ru p o
“ arm adjo] d e espadas e v aras” c o m o au to riz ad o p elo Sinédrio. O p ap el do
S inédrio n a p risão é ainda c o rro b o ra d o p elo versículo 49: “T o d o s os dias eu
estive c o m vocês, en sin a n d o no templo, e v o cês n ão m e p re n d e ra m ” (grifo d o

53 Tam bém R. Gundry, Mark, p. 858.


539 M a rc o s 14.44-45

autor). A in stig ação p ara a p risão d e Jesu s p arece estar ligada às autoridades
judaicas, ao Sinédrio, e à polícia d o te m p lo (Lc 22.52).54 C o n tu d o , tam b ém
há evidência d e forças m ilitares ro m an a s n a prisão. O evangelho d e Jo ã o
descreve Ju d as se d irig in d o à “ c o o rte ” (18.3; A R C ; n a N V I, “ d estacam en to
d e so ld ad o s”) e a p re sen ça de u m “ trib u n o ” (18.12; A R C ; n a N V I, “ co m an -
d a n te ”) n a p risão d e Jesus. E ssa é u m a term in o lo g ia m ilitar rom ana. U m a
c o o rte (gr. speirâ) era u m décim o de u m a legião ro m an a , o u cerca d e seiscentos
sold ad o s (Josefo, Guerra 3.67-68; e m b o ra o n ú m e ro varie); e u m trib u n o era
u m c o m a n d a n te ro m a n o de m il soldados. M arco s n ã o m en cio n a n e n h u m
ro m a n o n a p risão , m as isso p o d e ser p o r causa d e seu desejo, c o n fo rm e
v erem o s n o ju lg am en to d ian te de P ilatos, d e ev itar re tra ta r os ro m a n o s em
u m a luz desfavorável. N ã o o b stan te, a facilidade c o m q u e o ju lg am en to de
Jesu s é ex p e d id o p o r P ilatos em M arcos (15.1ss.) su g ere u m c o n h e cim en to
a n terio r d a p risão d e Jesu s p o r p a rte d o g o v e rn a d o r ro m an o , in clu in d o talvez
u m d e sta c a m e n to secreto de soldados.55 P o r fim , o ta m a n h o d o p elo tão p ara
a p risã o era u m a p reo cu p aç ão im p o rtan te: precisava ser d esp reten sio so p ara
n ã o causar c o m o ç ã o n a festa (14.2), m as su ficien tem ente g ran d e para “lev[ar]
[Jesus] em segurança” (v. 44).

44,45 Ju d a s d e se m p e n h a u m p ap el fau stian o na prisão de Jesus. E le


é re a p re se n ta d o c o m o “ u m d o s D o z e ” (v. 43). É im provável, c o n fo rm e
su gerem alguns estu d io so s, q u e isso seja e rro crasso co m etid o p o r M arcos,
c o m o se estivesse a p resen ta n d o Ju d as pela p rim eira vez (veja 3.19; 14.10).
A s referências aos “D o z e ” o u “ u m d o s D o z e ” p o n tu a o capítulo 14 (w .
10,17,20), le m b ra n d o o s leitores d o fato d e sc o n fo rtá v e l de q u e a traição e
p risão d e Jesu s surge em m eio a seus seguidores d e confiança. A ssim , n o

34 A Mishná (m. Shab. 6.4) proibe pegar “uma espada, arco, escudo, dava ou lança”, no
sábado e dias de festa. Alguns estudiosos citam esse texto como evidência de que a
última ceia e prisão ocorreram em algum m om ento anterior na semana (conforme
o evangelho de João) e não na noite de Páscoa, conforme registrado por Marcos
(Grundmann, Das Evangelium nachMarkus, p. 405; Pixner, MitJesusinJerusalem, p. 83-
84). Pessoalmente, não fui persuadido por essa linha de pensamento, pois vemos mais
infrações às regras da Mishná no julgamento de Jesus. Considerando-se a determinação
dos líderes religiosos de prender Jesus, não é de surpreender que o Sinédrio evite
a tradição oral em favor da Realpolitik — específicamente se consideram Jesus um
blasfemo (14.64), e, nesse caso, ele perde a proteção legal.
55 Para mais discussões da questão e razões para supor o envolvimento rom ano na
prisão, veja E. Schweizer, The GoodNewsAccording to Mark, p. 321-25.
M a rc o s 14.46-47 540

versículo 4 3 ‫ י‬o an ta g o n ista é id en tificad o c o m o “Ju das, u m d o s D o z e ” , m as


n o versículo 44 c o m o “ o traid o r” .56 Judas, c o m o u m d o s q u e p erten ciam
ao círculo ín tim o d e Jesus, co n h ecia os m o v im e n to s diários de Jesu s e o n d e
este acam pava à n o ite 0 o 18.2). Seus serviços eram essenciais p ara a ação
secreta e o su cesso d o s co n sp irad o res. A fe rro ad a seria desencadeada p o r um
“ sinal” (gr. syssêmori) . E ssa palavra o c o rre apenas aqui n o N o v o T estam en to
e significa u m “ sinal ac o rd a d o de a n tem ã o ” .57589O sinal particu lar — u m beijo
d e traição — é u m ta n to su rp re en d en te u m a vez q ue Jesus, em n e n h u m a
o u tra ocasião, é sau d a d o p o r u m discípulo co m u m beijo, n e m é to talm en te
certo, c o n fo rm e su sten tam alguns co m en taristas, q ue u m b eijo fosse um a
sau d ação co stu m eira en tre os rabis e discípulos. N o en tan to , os beijos de
h o m e n a g e m e resp eito eram p raticad o s em Israel (IS m 10.1; 2Sm 19.40; Lc
7.38; A t 20.37). Judas, q u a n d o se ap ro x im a d e Jesus, beija-o sem m o déstia
e sem reservas; beija-o p ro d ig am e n te , e até m e sm o ap aix o n ad am en te, de
ac o rd o c o m o te rm o g re g o kataphilein. U m ato d e a m o r, c o m o aco n teceu
co m o beijo e o p u n h a l n o ardil de Jo a b e p ara m a ta r A m asa (2Sm 20.9,10), é
realizado p ara u m a m issão d e ódio.38 Q u a lq u e r q u e seja a relevância d o beijo
d a traição, aquele g esto , ju n to co m o títu lo h o n o rífico de “M estre” (“ R abi” ,
A R C , = “ m e u g ra n d e in d iv íd u o ”), faz u m a re p resen ta ção burlesca de Jesus.
A m aneira d a traição se to rn a o p rim eiro exem plo da %ombaria p ara com
Jesus, a qual d e se m p e n h a rá u m p ap e l essencial na narrativa d a crucificação
n o capítu lo 15. A tram a ridícula d e Ju d as ap o ia ainda m ais as teorias d e que
ele é vítim a de forças su p erio res o u d e u m d estin o trágico.

46,47 O beijo desen cad eia a ferroada: Jesu s é p reso , ap esar de n a briga
u m a esp a d a ágil c o rta r a o re lh a d e u m serv o d o su m o sacerd o te.39 M ais
tard e, a trad ição identifica P e d ro c o m o o atacan te q ue lança m ão d a espada,
m as isso n ão é u m a ce rteza co m o se assu m e c o m frequência, pois M arcos

36 “Um ato de perfídia, e não uma busca por justiça” (Gundry, Mark, p. 858).
57 BAG, p. 802; Str-B 2.50.
58 Sobre o beijo de Judas, veja G. Stàhlin, “phileõ”, TDNT9.140-41.
59 Uma comparação do relato da prisão nos evangelhos m ostra como alguns detalhes
foram enfatizados nesse recontar da história. Marcos, o primeiro evangelista, diz
apenas “um dos que estavam por perto” tirou sua espada e cortou a orelha do
servo do sumo sacerdote (14.47). Mateus 26.51, algum tem po depois, especifica a
designação para “um dos que estavam com Jesus” . Lucas 22.50, mais tarde ainda,
identifica o ferimento do servo na “orelha direita” ; e já perto do final do século I,
João 18.10 identifica Pedro com o a pessoa que usou a espada e fornece o nome
do servo, “Maleo” .
541 M a rc o s 14.48-49

atribu i a ação n ão a u m discípulo, m as a “ u m d o s qu e estavam p o r p e rto ” .60


E ssa m esm a frase ap arecerá n o s versículos 69,70, em que o b v iam en te não
se refere aos discípulos. E b e m m ais provável q ue o p e lo tão d estacado para
p re n d e r Jesus, e n ão os discípulos, estejam a rm a d o s c o m espadas. N a reali-
dade, se o atacan te q ue lança m ão da esp ad a fo sse u m discípulo, deveriam os
esp erar q u e sua p risão fosse efetu ad a ap ó s sua ação. C o n tu d o , n en h u m a
prisão é efetu ad a, o q u e p elo m en o s su g ere q ue a o re lh a co rta d a caiu p o r
causa de u m h e ro ísm o m al o rien ta d o de u m d o s h o m e n s d o p elotão, e não
p o r u m a ação de P ed ro o u de algum d o s discípulos.61 P edro, é claro, figura de
fo rm a p ro e m in e n te n o capítulo 14 e é p rovável q u e seja a fo n te de M arcos
p ara g ra n d e p a rte dessa descrição. Se P e d ro fosse aquele que lan ço u m ão da
espada, seria d e su rp re en d e r q ue ele n ão revelasse seu n o m e nesse episódio
e o incluísse n a cena m u ito m ais in crim in ad o ra em q u e n eg a Jesus. M arcos
n ã o faz m u ito caso da esp ad a e da o re lh a co rtad a,62 m as é possível q u e aque-
les fatos h o rre n d o s g aran tiram a inclusão desse ep isód io na paixão, pois há
freq u en tes referências a orelhas co rtad as n o s espetáculos co m gladiadores.
O an seio p o r co m b ate m o rta l na aren a é exaltado p o r C láudio (41-54 d.C.) e
N e ro (54-68 d.C.). M arcos p arece escrever n o fim desse p eríodo, talvez em
65 d.C., q u an d o N e ro estava e x p o n d o os cristãos a espetáculos terríveis e
selvagens n a arena. A queles q u e estavam so b a espada de N e ro po d iam ter
u m c o n fo rto m ó d ico ao sab er que Jesus ta m b é m so fre u so b o gladius rom ano.

48,49 O p o d e r exagerado das arm as e as precauções de segurança se esva-


ziam pela rendição n ão violenta de Jesus. “ C o m o tais defesas estão distantes da

60 A tradição do manuscrito grego preserva a frase: “um dos que estavam por per-
to” em várias versões com variações ínfimas, nenhum a das quais se refere a um
discípulo ou a Pedro.
61 Gundry, Mark, p. 860.
62 B. T. Viviano, “T he High Priest’s Servant’s Ear: Mark 14:47”, RB 96 (1989), p.
71-80, fundam entado em Levitico 21.18 ejosejo A «¿ 14.365ss.// Guerra 1.269ss.
argumenta que o versículo 47 não se refere a um ferimento em uma luta, mas, sim,
ao cortar fora o lóbulo da orelha do representante do sumo sacerdote, tornando-o,
desse m odo, indigno desse alto cargo. Para Viviano, o versículo 47 é urna crítica
teológica ao templo. A o contrário da afirmação do padre Viviano, essa não é a
“impressão deixada pela narrativa marcana” . A vítima é chamada de servo ou
escravo, e não representante do sumo sacerdote; e a operação à qual Viviano se
refere é um procedimento quase cirúrgico, dificilmente o tipo de ferimento causado
por um golpe de espada contra um oponente (s■pásamenos ten macbairan epaisen ton
doulon: “puxou a espada e feriu o servo”).
M a rc o s 14.50-52 542

v o n ta d e d e Jesus, c o m o são cegas tais intrigas h u m an as p ara os p en sa m e n to s


d e D e u s” , co m e n ta Schlatter.63A trad u ção d a N V I d o versículo 48: “E s to u eu
chefian do algum a reb elião [...]? ” , sugere u m c o n tra m o v im en to organizado,
talvez u m a rev o lta zelote. C o n tu d o , a palavra g re g a trad u zid a p o r “ rebelião”
(Igstês) n ã o te m n ecessariam en te a c o n o ta ç ã o de zelotism o. Significa co m fre-
quência u m “ b a n d ito ” o u “ lad rão ” co m u m (11.17; L c 10.30), c o m o p o d e ser
o caso n essa instância. Jesu s n ã o é u m b a n d id o e e stá in d ig n ad o co m o fato
de as auto rid ad es, q u e tiveram am pla o p o rtu n id a d e p ara julgar seu caráter (v.
49; L c 19.47), im p u g n a ra m -n o c o m o tal.64 “ M as as E scritu ras p recisam ser
cu m p rid a s” d e fato, p o is ele “ foi c o n ta d o en tre os tran sg resso res” (Is 53.12).

5 0 -5 2 O áp ice d a p risã o ac o n te c e n o v ersícu lo 50: “ E n tã o to d o s o


ab a n d o n a ra m e fugiram ” . E ssa afirm ação ap a re n te m e n te in ó cu a carreg a um
b o fe tã o in crim in ad o r. Todos b e b e ra m d o cálice (14.23), todos alegaram que
m o rre ría m c o m ele (14.31)... e todos desertaram ! O “ to d o s” d o versículo 50
é en fático n o g re g o p o r te r sido co lo cad o n o fim da sentença: a traição de
Jud as, p o rta n to , é m ultiplicada pela falha in d iscrim inada d o s discípulos; todos
eles a b a n d o n a m Jesu s e fogem . N o s versículos 51,52, tem o s a rem iniscência
curiosa d o p rim eiro registro de u m indivíduo que saiu c o rre n d o n u na história.
A referência o c o rre só em M arcos. O p ro n o m e in defin ido (gr. tis-, “ u m [certo]
jovem ”) p arece ser u m a am b ig u id ad e calculada; ta m p o u co , é‫־‬n o s in fo rm a d o
a q u a n to te m p o ele estava seg u in d o Jesus. A id en tid ad e desse jovem fugitivo
n u é rev estid a d e m u ita especulação.65 O s p o u c o s paralelos d a literatu ra da
A n tiguidade n ão auxiliam n o sso en te n d im e n to dessa referência.66 A sugestão

63 Schlatter, Die Evangelien nach Markus und Lukas, p. 141.


64 O relato do século II sobre o martírio de Policarpo foi moldado de form a cons-
ciente segundo a prisão e m orte de Jesus. Assim como Jesus foi traído por “um
dos D oze” (14.43), Policarpo foi traído p o r alguém de sua própria casa (Mart.
Pol. 6.2). Policarpo, com o Jesus, foi pego em um “quarto do segundo andar [...],
com o se estivessem avançando contra um ladrão” e m orre em uma sexta-feira
(Mart. Pol. 7.1). Por fim, Policarpo “pôde cumprir a missão designada a ele ao se
tornar participante de Cristo, enquanto aqueles que o traíram devem se subm eter
ao mesm o julgamento de Judas” (Mart. Pol. 6.2).
65 Veja Saunderson, “Gethsemane: T he Missing W itness” , Bib 70 (1989), p. 224-33.
66 A fuga de José da esposa de Potifar (G n 39.12) é similar no uso das palavras, mas
não em sentido, urna vez que a fuga do jovem aqui não é virtuosa, mas um ato de
covardia. A referência em Ahiqar (171/77; séculos VI e V II a.C.) parece moralizar
a historia de José (ou situações similares): “Se um hom em perverso segurar na orla
de sua veste, deixa-a nas mãos dele” . As adições bizarras ao evangelho de Marcos
543 M a rc o s 14.50-52

m ais c o m u m , ag o ra c o m m ais d e u m sécu lo d e idade, é q u e o jovem seja de


fato M arcos, to rn a n d o os versículos 51,52 u m a “ assinatura an ô n im a” d o
a u to r d o evangelho. E ssa é u m a h ip ó te se atraen te, e b astan te possível; m as
se o jo vem é M arcos, essa é u m a assin atu ra b asta n te o bscura. O u tra linha de
investigação im p o rtan te, em b o ra n ão m ais pro v eito sa, é ten tar d esco b rir um a
relação en tre esse “ jov em ” (gr. neaniskos) e aquele q ue estava se n tad o à direita
n o sep u lcro em 16.5.67 N in e h a m , à luz d a escassez d e in fo rm açõ es, está cor-
reto: a especu lação so b re a id en tid ad e desse jovem é inútil e sem proveito.68
P arece q u e M arco s agiu de fo rm a in ten cio n al e p ro p o sital ao deixá-lo sem
identificação. O jovem re p re se n ta to d o s q ue fugiram em d ese sp ero q u an d o
co m eç o u a c o n fu sã o n o m o m e n to d a p risão de Jesus.6970E ssa histó ria em par-
ticular fala p ara to d o s os presentes. A ausência de identid ade tam b ém convida
os leitores a ex am in ar a p ró p ria p re ste za p ara a b a n d o n a r Jesus. A p ro fecia de
A m ó s se cu m p riu em m eio a to d o s os seguidores d e Jesus: “ *Até m e sm o os
g u erreiro s m ais co rajo so s fugirão nus naquele dia’, declara o S e n h o r ” (2.16;
ta m b é m IM a c 10.64). 0 “N ã o há n e n h u m justo, n em u m seq u er [.. .].T odos
se d esv iaram ” (R m 3.9-11).

O T E S T E M U N H O V E R D A D E IR O VERSUS O FALSO (14.53-72)


M arcos, p ela terceira vez n o cap ítu lo 14, aplica a técnica sanduíche. O
tem a d o p re se n te san d u ích e dá te ste m u n h o so b perseguição. O tem a do

publicadas p o r M orton Smith (veja Epílogo: “O evangelho secreto de Marcos”)


menciona o jovem dos versículos 51,52 com referência a ato ostensivo de iniciação
homossexual: “e, à noite, o jovem veio a [Jesus], vestido apenas com um a veste
de linho sobre seu corpo nu. E esse jovem perm aneceu com ele aquela noite;
pois Jesus ensinava a ele sobre os mistérios do Reino de D eus” (NTApocl. 108).
Esses acréscimos espúrios no dito Evangelho secreto deMarcos são característicos da
influência gnóstica do século II.
67 As duas passagens usam a palavra neaniskos (“jovem”), a qual não é de qualquer
form a usada em Marcos. Ainda outros argumentam que o pano no qual Jesus é
em brulhado após a crucificação (15.46; sindõn [*‘lençol, túnica”], a m esma palavra
grega usada para o lençol ou pano dispensado pelo jovem), significa Cristo levando
nossos pecados e falhas sobre si. Essa é um a especulação intrigante, mas não é
característicamente alegórica para Marcos e sutil a ponto de ser obscura.
68 D. Nineham , The Gospel of St. Mark, ρ. 396.
69 Veja Η. Μ. Jackson, “Why the Youth Shed His Cloak and Fled Naked: The Mea-
ning and Purpose o f Mark 14:51-52”,J B L 116 (1997), p. 273-89.
70 Veja J. M. Ross, “T he Young Man W ho Fled N aked”, IBS 13 (1991), p. 170-74,
que m antém que Marcos registra o evento porque aconteceu de fato e porque
indica que a crucificação era o “Dia do Senhor” predito por Amós 2.16.
M a rc o s 14.53-55 544

teste m u n h o , até esse p o n to d o evangelho d e M arcos, n ão d ese m p e n h o u


p ratic am en te n e n h u m p ap e l (apenas em 1.44; 6.11; 10.19; 13.9), m as agora
em n o v e versícu lo s a p alav ra “ te s te m u n h o ” o c o rre sete vezes em várias
fo rm as.71 A té m e sm o q u a n d o a palavra está au sen te, o tem a está presente. A
in tro d u ç ã o co n sp icu a d o te ste m u n h o n a cena d o julg am en to revela que para
M arcos u m v erd ad eiro te ste m u n h o d e Jesus, c o n fo rm e este lem b ro u seus
discípulos nas p re d iç õ es da paixão (8.31; 9.31; 10.33,34), é visto n o co n tex to
d o so frim en to , d a p erseg u ição e d a cruz. A co rag em e fidelidade de Jesu s em
tal co n tex to são contrastadas co m o falso testem u n h o e negação. O s discípulos
são m ais u m a vez o realce, m as n ã o m ais Ju d as (14.1-11) n em os discípulos
em geral (14.17-31), m as o principal ap óstolo, P edro, cuja h istória n o p átio do
su m o sac erd o te (w . 53,54,66-72) flanqueia o ju lg am en to de Jesu s d ian te do
Sinédrio (w . 55-65). À m ed id a q u e os discípulos são “ levados à p re sen ça de
g o v ern ad o re s e reis, c o m o te ste m u n h o a eles” (13.9), a ju staposição literária
de Jesu s e P ed ro n o san d u ích e cria u m serm ã o sem palavras so b re o sen tid o
de d a r te ste m u n h o so b perseguição.

54 A ce n a d o ju lg am en to c o m eç a c o m P ed ro segu indo Jesu s “ de lo n g e”


até o p átio d o su m o sac erd o te (Jo 18.15). A lacuna n o d iscipulado d e P ed ro
não é m u ito co m p atív el c o m su a vangloria u m p o u c o an tes de que m o rrería
co m Jesu s se necessário (14.31). Sua distância já p re n u n cia sua negação, en tre
a qual M arco s a p resen ta a h istó ria d o in te rro g a tó rio de Jesu s p elo Sinédrio.
C o m o P e d ro parece e stra n h o n o p átio d o su m o sacerdote, te n ta n d o se m es-
ciar co m aqueles q u e p re n d e ra m Jesu s que, n o m o m en to , zo m b a m dele e
b atem nele (gr. hypêretês; w . 54,65; N V I, “ g u ard as”). P ed ro ab a n d o n a o seguir
cu sto so (8.34) em favor d a o b serv açã o segura.

53,55 M arcos, en tre a e n tra d a d e P ed ro n o p átio (v. 54) e a neg ação (w .


66-72) n a rra o ju lg am en to d e Jesu s d ian te d o Sinédrio. Jesus, ap ó s sua prisão,
é levado d e im ed iato p ara o su m o sacerdote, id en tificado em Jo ã o 18.13,14
c o m o Caifás, q u e p resid iu s o b re o S inédrio d e 18 a 36 d.C. e era g e n ro do
p o d e ro so su m o sacerd o te A nás. O lugar c o stu m eiro de e n c o n tro d o S inédrio
era o Saguão d e P ed ra L avrada, a n o rte d o san tu ário d o tem plo, ad jacente à
C o rte d e Israel (m. Sank 11.2). N o en tan to , a audiência registrada p o r M ar-

71 Martyria (“testemunha, testem unho” ; w . 55, 56, 59); pseudomartyrein (“ testificar


falsamente” ; w . 56, 57); katamartyrein (“ testificar contra” ; v. 60); martys (“uma
testem unha” ; v. 63).
545 M a rc o s 14.53-55

co s n ã o ac o n te ce ali, m as na vila d o su m o sacerdote. A casa de Caifás, de


ac o rd o c o m a tradição, ficava u m q u ilô m e tro a su d o este d o G e tsê m a n i nas
escarp as d o m o n te Sião. O local é celeb rad o h o je pela igreja d e São P edro
em G allican tu (canto d o galo). E scavações co n tín u as d esc o b riram em baixo
d a igreja u m a série de cisternas e g ru ta s q u e d atam d o p erío d o h ero d ian o
(37 a.C.— 70 d.C.). E sses fossos de p e d ra lavrada ofereciam o m áxim o de
segurança p a ra a d e ten ç ão tem p o rá ria dos p risioneiros. O p ereg rin o anôni-
m o de B o rd eau x , n o início d o século IV, id en tifico u o local c o m o “ a casa
d o su m o sac erd o te Caifás, o n d e os pilares aos quais Jesu s foi am arrad o e
aço itad o ain d a são ev id entes” .72 A d atação das g ru ta s e o te ste m u n h o acim a
su gerem q u e a igreja d e São P ed ro em G allican tu ce le b ra o local o n d e Jesus
foi in te rro g a d o p o r Caifás.
Jesus, d e a c o rd o co m M arcos, foi d en u n c ia d o d ian te de “ to d o s os chefes
d o s sacerd o tes, os líderes religiosos e os m estres da lei” (v. 53), “ to d o o Siné-
d rio ” (v. 55). O julgamento de Jesus diante do Sinédrio é p ro b lem ático ,
p o is os p ro c e d im e n to s descrito s p o r M arcos violam d e fo rm a repulsiva a
jurisprudência judaica co n fo rm e estipulada na M ishná. O Sinédrio, o principal
co rp o g o v ern an te d e judeus, consistia d e 72 m em b ro s. U m a vez que os judeus
observ an tes se recusavam a h o n ra r a h eg em o n ia ro m an a gentia na Palestina, e
u m a vez que os ad m in istrad o res ro m a n o s eram perspicazes o suficiente para
re co n h e c e re m isso, estabeleceu-se u m a org an ização escudo de líderes judeus
disp o sto s a c o o p e ra r co m R om a. E sse su p re m o tribunal n ativo m ediava entre
o p o v o judeu e a o cu p ação ro m an a, te n d o liberdade d e jurisdição em assuntos
religiosos e lib erd ad e parcial em assu n to s p o líticos, e m b o ra seja d u vidoso
q u e p o ssu ísse o p o d e r d e c o n d e n a r à m o rte (veja J o 18.31,32).
E ra m necessários v in te e três m e m b ro s d o Sinédrio, de aco rd o co m a
M ishná, p ara julgar casos d e p en a de m o rte , em q ue os m o tivos para a liberta-
ção precediam os m otivos para a condenação. E m casos de p en a de m o rte, um
v ered icto d e cu lp ad o exigia u m a segunda audiência n o dia seguinte. A s duas
audiências tin h a m de aco n te cer d u ra n te o dia, e n u n c a n a véspera d o sábado
n e m em dia d e festa (m. Sanh. 4.1). A s testem u n h as tin h am de ser alertadas
co n tra os ru m o re s o u b o a to s (m. Sanh. 4.5). U m a acusação de blasfêm ia não
p o d e ria ser m an tid a, a m e n o s q ue o acu sad o tivesse am aldiçoado o n o m e de
D e u s, em cujo caso a p u n ição p rescrita era a m o rte p o r aped rejam en to , e o
c o rp o deveria ficar p e n d u ra d o em u m a árv o re (m. Sanh. 7.5). A s câm aras do
Sinédrio, c o n fo rm e m en cio n a d o antes, eram o Saguão de P edras Lavradas

72 Citado em Pixner, MitJesus inJerusalem, p. 103.


M a rc o s 14.53-55 546

n o tem p lo {m. Sanh. 11.2); n ã o há n e n h u m a evidência d e que o S inédrio ten h a


se re u n id o fo rm a lm e n te n a casa d o su m o sacerdote.
P ra tica m e n te q u ase to d o s os detalhes d o ju lg am en to de Jesus violam as
regras p a ra a p u n içã o capital prescritas pela M ishná. H á u m a lo n g a discus-
são a re sp eito desse p ro b le m a q ue levou a co n clu sõ es m u itíssim o diferentes
en tre os co m en taristas. C ertam e n te , a co n clu são m ais radical é q u e M arcos
exagerou e n o rm e m e n te o u até m esm o falsificou o papel d o Sinédrio n a m o rte
de Jesu s a fim d e e x o n erar os ro m an o s, cujo favor o cristianism o n ascen te
tentava co rtejar.73 O u tra sugestão é q u e a M ishná, q u e só foi fo rm a lm e n te
co dificada e m 200 d.C ., n ão ap resen tav a u m a definição p recisa n em algum a
p rescriçã o o b rig ató ria so b re esses assu n to s n a é p o c a d e Jesus, cerca de 170
an o s an tes d a codificação d a M ishná.74
A su g estão m u ito m ais plausível q u e as m en cio n ad as acim a é q u e os
p ro c e d im e n to s im p rev isto s d o S inédrio e co n tra v en çõ es d a lei, flagrantes
em alguns p o n to s, tin h am c o m o objetivo a execução rápida d e Jesus. Josefo,
d e fato, reg istra u m ju lg am en to sim ilar em 62 d.C. q u a n d o o su m o sacerd o te
A nanias reu n iu u m a sessão d o Sinédrio a fim de assegurar a m o rte de T iago, o

73 Essa conclusão impugna de form a injustificável a veracidade histórica não só de


Marcos, mas tam bém de todos os quatro evangelistas que, apesar de certas dife-
renças no relato do julgamento de Jesus, concordam sobre a responsabilidade do
Sinédrio em entregar Jesus ao governador rom ano para a execução. A tentativa de
exonerar o Sinédrio de sua parcela de culpa pela m orte de Jesus é com frequência
motivada mais pelo desejo de purgar o N ovo Testam ento do suposto antissemitis-
mo do que por interesses genuinamente históricos. Com relação ao antissemitismo
no N ovo Testamento, é necessário lembrar que os primeiros cristãos eram em sua
maioria judeus e apelavam aos judeus (veja A t 3.17ss.). N ão é possível negar que,
historicamente, alguns cristãos apelaram ao N ovo Testamento com o um pretexto
para perpetrar crimes hediondos contra os judeus. Todavia, essa não é uma falha
em si dos docum entos do N ovo Testamento, mas uma falsa hermenêutica da culpa
coletiva que considera as gerações subsequentes com o responsáveis pelas ações
de seus ancestrais. O objetivo da tolerância e respeito entre as diferentes fés não
é fom entada nem pela alteração dos docum entos históricos nem pela negação da
evidência histórica.
74 Essa sugestão, por mais plausível que pareça, não é apoiada em alguns pontos em
que alguma evidência similar pode ser comparada. As observâncias do sábado,
por exemplo, parecem ter sido mais rigorosamente guardadas na época de Jesus
quando os sentim entos conservadores dos saduceus prevaleciam que um século
mais tarde quando a moderação farisaica governava o período. Veja Str-B 2.819.
547 M a rc o s 14.56-59

irm ão d o S enhor.75 A descrição d e M arcos d o ju lg am ento se assem elha a essa


sessão, po is n ã o se assem elha a u m a reu n ião fo rm a l d o Sinédrio, m as a um a
audiência prelim inar, c o m o u m júri p ro p e n s o à incrim inação. A referên cia a
“ to d o o S inédrio” (v. 55) significa ev id en tem en te unan im idade en tre os m em -
b ro s reu n id o s, in d e p e n d e n te m e n te d e q u a n to s deles estivessem ali. Jesus já
p arece c o n d e n a d o aos o lh o s deles; assim , u m a evidência é p re ssio n a d a contra
ele (gr. kata tou lesou, w . 55,56,57). A s autoridades judaicas haviam q u eb rad o a
lei a n te rio rm e n te ao co n sp ira r c o n tra Jesu s n o sáb a d o (3.6; J o 9.13ss.); agora
q u e Jesu s está so b o d o m ín io deles, n ã o é d e su rp re e n d e r q u e as form alidades
legais sejam evitadas. O Sinédrio, c o m o P ilatos q u e escreveu o q u e tin h a de
escrever (Jo 19.22), faz o q ue tin h a d e fazer p a ra g aran tir a execução d e Jesus
p elo g o v ern ad o r. O S inédrio sacrifica sua m e lh o r ju risp ru d ên cia em favor
d o co n c e ito p re d o m in a n te d o b e m m aio r p ara a n aç ão (Jo 11.50; o q u e hoje
ch am a m o s d e “ segurança nacional”), re su ltan d o em u m a dissim ulação da
justiça e n a c o n d e n açã o de u m h o m e m in o c e n te à m o rte.

56-59 A N V I afirm a q ue o Sinédrio estava “ p ro c u ran d o ” evidência co n tra


Jesus (v. 55); o g reg o %ètein sem p re im plica in ten ção negativa em M arcos, e aqui
a in te n ç ã o p ara c o n d e n a r Jesu s (veja so b re o te rm o em 1.37). O registro do
prisio neiro , c o n tu d o , n ão p ro v ê fu n d a m e n to s p ara a acusação (v. 55), e o Si-
n éd rio tem d e re c o rre r ao falso testem u n h o . O s “ m u ito s” falsos testem u n h o s
fo rn ecid o s te ste m u n h am da d eterm in a ção d o S inédrio d e d esp ach ar Jesus. A
lei judaica exigia p elo m en o s duas te stem u n h as q u e c o rro b o ra sse m o delito
em casos de p en a de m o rte (N m 3 5 .3 0 ; D t 17.6; 19.15).T o d av ia ,n a audiência
d ian te d e Caifas, n em m esm o o te ste m u n h o in v en tad o n ão é bem -sucedido,

75Josefo, Ant. 20.200-203. D a mesma forma, D. Flus ser,/«.«¿r (Jerusalem: Magnes


Press, 1997), p. 146-47, que sugere que o sumo sacerdote “reuniu um número
suficiente de juizes entre seus amigos saduceus” . A tentativa de Flusser de exo-
nerar o Sinédrio da culpa na m orte de Jesus, no entanto, não é convincente. Ele
argumenta que, uma vez que Jesus “não foi enterrado em nenhum dos sepulcros
reservados para aqueles executados por ordem do conselho supremo”, o Sinédrio
não era responsável por sua morte. N ão temos a m enor ideia se a passagem à qual
se faz referência {m. Sanh. 6.5) estava em efeito em 30 d.C.; além disso a passagem
se refere aos decapitados, estrangulados, apedrejados ou queimados, i.e., aqueles
executados pelas mãos e meios dos judeus. Jesus, no entanto, sofreu a crucificação
nas mãos dos romanos, e a crucificação era uma forma abjeta conspurcada de
morte. Se m. Sanh. 6.5 se aplica ou não às vítimas da execução rom ana é questio-
nável.
M a rc o s 14.56-59 548

“m as as d eclarações deles n ão eram c o e re n te s” (v. 56). M arcos re p e te essa


o b serv açã o n o versículo 59, o q u e sugere q u e esse p o d e ser u m te stem u n h o
d u v id o so p ara a a u to rid a d e d e Jesus: até m e sm o c o m o cativo — e c o m m a-
quin ações b e m o rq u estrad as c o n tra ele — , ele n ã o p o d e ser desacreditado.
A s tentativas d e desacreditá-lo, sem dúvida, caracterizam to d as as gerações
— até m e sm o aquelas c o m o a n o ssa q u e p ro fessam re sp eitar to d as as eren-
ças religiosas. U m falso te ste m u n h o n u n c a carreg a a convicção d a verdade.
A ún ica acusação c o n tra Jesu s q ue M arcos especifica — m ais u m a vez
ecoada n a crucificação (15.29) — é q u e ele d estru iría e reco n stru iría o tem p lo
(14.58). E ssa é u m a acusação séria. O tem p lo , c o m o o ce n tro da adoração
judaica e o a sse n to d o p o d e r d o Sinédrio, sim bolizava a essência e esperanças
d o judaísm o. O tem p lo e a cidade d e Jeru sa lém , n a era m essiânica p o r vir,
rivalizariam c o m o esp len d o r d o p ró p rio M essias, d e ac o rd o c o m lEnoque
90.28-36. M arcos n ão registra de fato Jesus afirm a n d o que destruiría o tem plo
(13.1,2?), e m b o ra isso seja atesta d o am p lam en te nas fo n tes cristãs prim itivas
e sem dú vida foi afirm ad o p o r Jesus.76 A p en as M arcos, en tre os evangelistas,
afirm a a qualificação so b re o tem p lo ser feito “ p o r m ão s h u m an as” (v. 58).
E ssa referên cia assinala n ã o o tem p lo físico, m as seu c o rp o re ssu rre to (e
foi am p lam en te e n te n d id o assim pela igreja prim itiva).77Jesus, p ara M arcos,
sub stitu iu o te m p lo c o m o o lu g ar o n d e D e u s e n c o n tra seu p o v o (11.12-21).
O filho de D avi, d e aco rd o c o m 2Sam uel 7.12-14, co nstruiría u m tem p lo para
o n o m e d e D eus. E sse filho receb e a p ro m e ssa d e D e u s: “ E u serei seu pai, e
ele será m e u filh o ” . O c o n s tru to r d a casa d e D e u s, em o u tras palavras, será
o F ilh o de D eu s. Jesus, d e u m a fo rm a m ais v erd adeira que seus acusadores
p o d ería m im aginar, c u m p re 2Sam uel 7, p o is ele p re se n te m e n te co n fessará
diante d o su m o sac erd o te q u e é o F ilh o d e D e u s, e seu c o rp o re ssu rreto
sub stitu irá o te m p lo terren o . Se o su m o sac erd o te e n te n d e u essa sutileza
o u não, n ã o p o d e m o s afirm ar, m as é algo q u e aparece em p rim eiro lu g ar n a
m e n te d e M arco s que, agora, m o stra q u e a afirm ação d o F ilho de D e u s p ro v ê
a peça conclusiva d a evidência c o n tra Jesus.

76 Mateus 26.61; 27.40; João 2.19,20; Atos 6.13,14; Hebreus 9.11. Cada um desses
versículos fala de Jesus destruindo e reconstruindo o templo, mas o Evangelho de
Tomé 71 preserva um dito sem a reconstrução: “Jesus diz: ‘Destruirei essa casa, e
ninguém será capaz de construí-la de novo’ ” .
"Jo ã o 2.21,22; Atos 4.10,11; ICoríntios 3.11, 16; lP edro 2.4-8. Uma leitura va-
riante no texto ocidental (D) tornam explícita a referência à ressurreição, anastésõ
acheiropoiêton (“Eu ressuscitarei um templo não feito por mãos hum anas”).
549 M a rc o s 14.60-62

6 0 -6 2 O su m o s a c erd o te , se g u in d o o c o ro d as falsas te ste m u n h a s,


d irig e-se p e sso a lm e n te a Jesu s: “V o cê n ã o vai re s p o n d e r à acu sação que
estes fazem s o b re v o cê?” .78Jesus, ao lo n g o de to d o s seus julgam entos diante
d o S inédrio e d e Pilatos, é re tratad o p o r M arco s c o m o p erm a n e c e n d o em
silêncio. E m face d a b atería d e acusações frau d u len tas c o n tra ele, o silêncio
tin h a u m valo r estratégico, p o is q u alq u er afirm ação q u e Jesu s fizesse seria
explorada pela acusação. O q u e q u e r q u e fo sse q ue ele dissesse em defesa
p ró p ria resultaria em autoincrim inação. Seu silêncio, n o en tan to , é d itado
p o r m ais q u e m ero s interesses estratégicos.79 M arcos, d e m o d o consciente,
m o d ela o silêncio d e Jesu s n o s dois ju lg am en to s se g u n d o o serv o so fre d o r
d e Isaías, cujo silêncio rep resen ta sua inocência·.

E le foi oprim ido e afligido;


e, contudo, não abriu a sua boca;
com o um cordeiro,
foi levado para o m atadouro;
e, com o um a ovelha que diante de seus
tosquiadores fica calada,
ele não abriu a sua boca (Is 53.7).

A ligação co m o serv o so fre d o r é ainda re fo rça d a p elo trata m e n to desde-


n h o s o d ad o a Jesu s d ep o is d a audiência. O cuspir, a zo m b aria com os olhos
v en d a d o s e os m u rro s (v. 65) re m e m o ra m os atos de cru eld ad e para co m o
S erv o de lav é em Isaías 50.6.80
Jesus qu eb ra o silêncio em apenas u m p o n to . O su m o sacerdote levanta-se
n o m eio d a assem bléia e p re ssio n a Jesu s c o m to d a au to rid ad e d e seu cargo:

78 O sentido exato da pergunta é obscurecido nos manuscritos gregos. D e acordo


com a N V I (e a maioria da evidência em manuscritos), o sumo sacerdote quer que
Jesus responda às acusações (ti: “o quê?”). O sumo sacerdote, de acordo com um
grupo m enor, mas muito impressivo, de manuscritos, quer que Jesus responda ao
fato de sua acusação (B W Ψ; hoti [“que”], i.e., “poisesses homens testificam contra
você”). É difícil decidir qual das duas leituras é mais provavelmente a original,
mas o apoio textual superior faz com que a balança penda em favor da primeira
leitura seguida pela NVI.
79 O Evangelho de Pedro 10, do século II, m antém que Jesus ficou quieto durante
a paixão “com o se não sentisse nenhum a dor”. Contradizendo essa afirmação
gnóstica, a descrição do sofrimento de Jesus no Getsêmani (14.33-36) indica que
ele com certeza sentiu realmente dor.
80 Veja C. Maurer, “K necht G ottes und Sohn G ottes im Passionsbericht des Marku-
sevangeliums”, ZTKS9 (1953), p. 1-38.
M a rc o s 14.60-62 550

“V ocê é o C risto, o F ilh o d o D e u s B en d ito ?” (14.61). A s palavras n o original


g reg o são ap resen tad as n a fo rm a de u m a afirm ação n a qual está im plícita
u m a p erg u n ta (“V ocê é o C risto, o F ilh o d o D e u s B en d ito ?”) O “v o cê” é
enfático, e “D e u s B en d ito ” , u m a circunlocução judaica p ara o n o m e d e D eus,
significa o “ F ilh o d e D e u s ” , e n in g u ém mais. O efeito é p ô r u m a co nfissão
cristológica p len a n a b o c a d o su m o sacerdote!81 M arcos, n o s versículos 56
e 59, o b se rv a q u e as falsas testem u n h as n ão co nsegu iam e n tra r em ac o rd o
co n tra Jesus; ag o ra, n a p e rg u n ta d o su m o sacerd o te, seu m aio r p erseg u id o r
co n fessa seu nom e! C o m o é irô n ico o b se rv a r que, n o evangelho d e M arcos,
as duas confissões cristológicas m ais com pletas proferidas p o r seres h u m an o s
o co rre m n a b o ca daqueles responsáveis pela m o rte d e Jesus: o sum o sacerdote
em 14.61; e o ce n tu rião n a cru z em 15.39!
O leitor, ao lo n g o d e to d o o evangelho d e M arcos, sabe que Jesus é o Filho
de D e u s.82 O Sinédrio, p elo m en o s desde a p aráb o la da v in h a e do s lavradores
(12.1-12), está fam iliarizado c o m essa afirm ação. Jesus, n aq u ela p arábola,
falou d o F ilh o am ad o d o S e n h o r c o m o h erd eiro d a vinha, e M arcos co n firm a
p ara seus leitores q u e “ o s chefes d o s sacerdotes, os m estres d a lei e os líderes
religiosos” (11.27), o m e sm o g ru p o d ian te d o qual Jesu s se e n c o n tra agora,
en te n d e ra m essa m en sag e m .83 N o en tan to , Jesus, até o m o m e n to d a p erg u n ta
d o su m o sacerd o te, silenciou co m firm eza d ian te d e to d as as p roclam ações
de sua filiação divina. Faltava algo a fim d e e n te n d e r o sen tid o d e sua pessoa.
O e lem e n to au se n te era a n ecessidade de seu sofrim ento. A p en as à luz d o
so frim en to é q u e Jesus p o d e divulgar ab e rtam en te sua iden tid ad e c o m o F ilho
d e D eus. N o julg am en to , o v éu é, p o r fim , rem ovido. A m alevolência q u e as
au to rid ad es judaicas abrigaram em seu coração d esd e o início d o m inistério
d e Jesu s (3.6) é, p o r fim , ex p o sta; daí, o seg red o q u e Jesu s p ro te g e u d esd e o
p rin cíp io d e seu m in istério p o d e ag o ra ser desvelado.
Jesus, d e a c o rd o c o m M arcos, afirm a a b e rta m e n te a p e rg u n ta d o su m o
sacerdote: “ Sou!” (F ilho d e D e u s).84 N o versículo 62, Jesu s in te rp re ta de

81 Tanto Mateus 26.63 quanto Lucas 22.67 transform am a pergunta de Marcos em


afirmação.
82 1.1, 11, 24; 3.11; 5.7; 9.7; 12.6; 13.32, e outros indícios cristológicos em 8.29,30;
10.47; 12.35-37.
83 Veja J. Kingsbury, The Christology of Mark’s Gospel (Philadelphia: Fortress Press,
1983), p.119-22.
84 As palavras em Mateus e Lucas são menos explícitas, mas ainda assim afirmad-
vas: “Você disse isso” (Mt 26.64, tradução literal; N V I, “Tu mesmo o disseste”)
repete literalmente em grego a resposta de Jesus para a pergunta de Judas: “Sim,
551 M a rc o s 14.60-62

im ed iato sua afirm ação c o m referên cia ao F ilh o d o h o m e m em D an iel 7.13


e Salm os 110.1. O F ilh o d o h o m e m aqui é u m a figura to talm e n te divina e
exaltada, “ a sse n ta d o à d ireita d o P o d e ro so ” (gr. “ m ão direita d o p o d e r [de
D e u s]” ; veja ta m b é m Did. 16.8). A ssim , Jesu s ta n to afirm a sua filiação divina
d ian te d o su m o sac erd o te q u a n to re trata a si m e sm o c o m o o c u m p rid o r da
m issão escatológica d o F ilh o d o h o m e m , u m a afirm ação q u e o p õ e d e fo rm a
clara n o lugar d e D eus. Jesus, e m b o ra seja d e so n ra d o pelo su m o sacerdote,
será h o n ra d o p o r D eu s; e D e u s, n o lugar d a p re se n te calúnia, vindicará seu
Filho.85
O s estu d io so s d u v id am c o m freq u ên cia q u e Jesu s afirm aria a resp o sta
d o su m o sac erd o te fu n d a m e n tad o n o fato d e q u e o “ F ilho d e D e u s ” não
era u m títu lo m essiânico d o judaísm o d o século I.86 E les susp eitam que a
co m b in aç ão d e “M essias” e “ F ilho d e D e u s ” d eriva d a co m u n id ad e cristã
prim itiva, o u d o p ró p rio M arcos, e n ã o d e Jesus. É v erd ad e q u e “M essias”
e “ F ilh o d e D e u s ” n ão são títulos sin ô n im o s: “M essias” é u m títu lo m en o s
exaltado e m ais fu n cio n al q u e “ F ilh o d e D e u s ” . E sse ú ltim o títu lo é o m ais
p len o p ara Jesu s n o N o v o T estam ento, tran sm itin d o a o rigem filial, a natureza
e o p ro p ó sito co m D eus. C ontudo, su p o r q u e os term o s eram h erm éticam ente
sep arad o s, o u q u e o M essias p o d eria n ã o ser co n sid erad o c o m o o F ilho de
D e u s, é u m erro. A lém das m uitas evidências n o p ró p rio N o v o T estam en to
q ue relacio n am os dois títulos, dois tex to s d o s M M M d e m o n stra m agora
q u e a equ ação n ão era d esc o n h ecid a n o judaísm o pré-cristão. O s dois textos
falam d o M essias c o m o o F ilho d e D e u s,87 c o n firm a n d o assim o julgam ento

é você” (26.25). Nas duas ocasiões, um “Sim” em alto e bom som está implícito.
A afirmação: “Tu mesmo o disseste” , dada em resposta a uma pergunta sob
juramento, deve ser entendida para afirmar a pergunta na jurisprudência judaica
(Str-B 1.1.006). A afirmação em Lucas: “Se eu vos disser, não crereis em mim”
(22.67) tam bém implica uma afirmação. Veja T. de Kruijf, DerSohn des lebendigen
Gottes. Ein Beitrag sçur Christologie às Matthãusevangeliums, AnBib (Rome: Pontifical
Biblical Institute, 1962), p. 95-97.
85 Veja J. A. T. Robinson, “T he Second Com ing— Mark XIV.62” , ExpTim 67
(1955/56), p.339.
86 Tam bém G. Dalman, The Words ofJesus, trad. D. M. Kay (Edinburgh: T. & T. Clark,
1909), p. 274, seguido por muitos outros estudiosos. W. Bousset, Kyrios Christus:
A History of the Belief in Christfrom the Beginnings of Christianity to Irenaeus, trad. J.
Steely (Nashville: Abingdon, 1970), p. 95, considera as palavras como “uma adição
totalm ente impossível de ser proferida p o r um sumo sacerdote” .
87 O reino do Messias será um reino eterno, de acordo com 4Q 246,2:1, e “Ele será
chamado Filho de Deus, e eles o chamarão de o Altíssimo” . Mais uma vez, 4Q 174,
M a rc o s 14.63-65 552

an te rio r d e R. H . F uller d e q u e “ filho d e D e u s só c o m eç o u a ser u sad o co m o


u m títu lo m essiânico n o ju d aísm o p ré -cristão ” .88

6 3-65 O su m o sacerd o te, ao o u v ir a re sp o sta d e Jesus, “rasgfou] as p ró -


prias vestes” . A palavra g re g a p a ra “v estes” (chitõri) refere-se à veste in te rn a
c o m o u m a lo n g a cam isola u sad a em cim a d a pele. R asgar as vestes era u m
sinal d e p ro fu n d a c o n ste rn a ç ã o (2Sm 1.11; 2Rs 18.37). A re sp o sta de Jesus
é en ten d id a p elo su m o sac erd o te c o m o u m a blasfêm ia m uitíssim o evidente,
cuja p u n iç ã o era a m o rte p o r ap ed rejam en to .89 O c o n se lh o co n c o rd a que
ele é “ d ig n o d e m o rte ” , e Jesus é execrado, z o m b a d o e su rrad o .90 É b astan te
in tere ssa n te o b se rv a r q u e u m a zo m b aria específica é a p ro v o cação feita a
Jesus: “ P ro fetize!” U m a vez que o clã d o s su m o s sacerdotes era c o m p o sto
d e saduceus q ue n eg am a existência d e anjos e espíritos (A t 23.6), fica fácil
im agin ar o desejo deles d e desacred itar q u alq u er p esso a c o m o Jesu s que,
c o n fo rm e se acreditava, tin h a o espírito de p ro fecia.91 O tra ta m e n to de Jesus
n o versículo 65 eco a a zo m b aria, as cusparadas e os golpes so frid o s p elo
S ervo d o S e n h o r em Isaías 50.6 e c u m p re em especial a terceira p red ição da
paixão em 10.33,34.92
S u põ e-se c o m freq u ên cia q u e a afirm ação d e Jesu s de ser o M essias
d ese n cad e o u a ex p lo são d o su m o sacerd o te e a c o n d e n açã o pelo Sinédrio.
E sse n ã o é o caso. N ã o era crim e ch am ar a si m esm o de M essias, o u ser assim
ch am a d o p o r o u tras p esso as; pois, c o n fo rm e re co n h ec eu m ais tard e Ju stin o
M ártir, o M essias seria apenas “ u m h o m e m en tre h o m e n s” (Dial. Trif. 49).

1:10-11, uma série de textos-prova ou Florilegium, equiparam expressamente o


“ramo de Davi” (= Messias) com a imagem pai-filho de 2Samuel 7.12-14.
88 The Foundations of New Testament Christolqgy (New York: Scribner’s, 1965), p. 32. A.
Y. Collins, “Mark e His Readers: T he Son o f G od among Jews” , HTR 92 (1999),
p. 404, concorda timidamente: “ O uso provável da expressão ‘Filho de D eus’ pela
comunidade Cunrã para o Messias de Israel sugere que tal uso não era evitado por
todos os judeus do período tardio do segundo tem plo” .
89 Sobre blasfêmia, veja Êxodo 22.28; Levítico 24.16; N úm eros 15.30,31. Veja Str-B
1.1,016-1,024.
90 As palavras estranhas no fim do versículo 65, rhapismasin auton elabon, são um
latinismo (verberibus eum acceperunt; tam bém BDF, p. 6), com o sentido geral, “eles
davam m urros nele” (melhor que “o levaram, dando-lhe tapas”, tam bém NVI).
Veja ainda, Taylor, The GospelAccording to St. Mark, p. 571.
91 Veja Flusser,/¿í».r, ρ. 190.
92 Para cusparada com o a form a máxima de desprezo, veja N úm eros 12.14; Deute-
ronóm io 25.9; Jó 30.10.
553 M a rc o s 14.66-68

O rabi A kiba, u m século ap ó s Jesus, d eclaro u a b e rta m en te que B ar K o k h b a,


líd er d a seg u n d a rev o lta co n tra R om a (132-135 d.C .), era o M essias, e a m assa
de p esso as acred ito u n isso — até m esm o d ep o is da m o rte de B ar K o k h b a. A
acusação de blasfêm ia, p o r conseguinte, n ã o se devia à afirm ação m essiânica,
talvez n e m m esm o à acusação de q ue Jesu s d estru iría o tem p lo (v. 58). A
blasfêm ia n ã o era q u eb rar u m m a n d a m e n to san to nem m esm o p ro fa n a r u m
lu gar san to , m as a audácia de atrib u ir a si m e sm o a h o n ra de D eu s o u d e se
eq u ip arar a D eu s. F oi a afirm ação d e q u e era o F ilh o d e D e u s (v. 62), e n ão
d e ser o M essias, q u e selou a so rte de Jesu s d ian te d o Sinédrio.93 A acusação
d e blasfêm ia é a p ro v a p o d ero sa, m esm o se in direta, da afirm ação de Jesus
de ser o F ilh o d e D e u s.94
A cen a d o ju lg am en to em M arcos é p ro fu n d a m e n te irônica. O Sinédrio
firm a-se ria lei, e Jesu s sen ta-se n o b a n c o d o s réus, m as, n a realidade, o Siné-
d rio q u e b ra a lei, e Jesu s a guarda. O te ste m u n h o qu e o S inédrio busca co n tra
Jesus, n o fim , n ã o é p ro v id o pelos falsos testem u n h o s, m as p elo p ró p rio Jesus
n a afirm ação d e ser o F ilh o d e D eus. Jesu s en fre n ta o julgam ento diante do
Sinédrio, m as este en fren tará o julgam ento diante d o Filho d o h o m em quando
ele re to rn a r em glória. O S inédrio faz c o m q u e a habilidade de Jesu s de p ro -
fetiz ar p a re ç a u m a farsa, m as to d as suas pro fecias se cu m p rem . S o b retu d o ,
é o su m o sacerd o te, e n ão Jesus, q ue blasfem a, p o rq u e Jesu s é o F ilho de
D eu s. A iro n ia se esten d e até m esm o a u m a e stru tu ra m aio r d o s capítulos 13
e 14. N o final d o capítulo 13, Jesus, em m eio as visões d e glória, an co ra seus
e n sin a m e n to s n a hum ilh ação e n o estar a ten to ; n o final d o capítulo 14, Jesus,
em to ta l hum ilhação, fala de sua exaltação “ assen tad o à direita d o P o d ero so ” !

66-68 M arco s en cerra o san d u ích e ao re to rn a r a P ed ro que estava se


aq u e cen d o p e rto d o fo g o d u ra n te a audiência de Jesu s (v. 54). O genitivo ab-
so lu to n o g re g o n o início d o versículo 66 (N V I, “ E s ta n d o P ed ro em baixo, no

93 Veja H. Chronis, “T he Torn Veil: Cultus and Christology in Mark 15:37-39”,JBL


101 (1982), p. 106, que argumenta o seguinte: “Marcos considera que a divindade
de Jesus é o âmago da disputa no julgamento”, e, portanto, a razão para a acusação
de blasfêmia. Contra D. Juel, Messiah and Temple, SBLDS 31 (Missoula: Scholars
Press, 1977), p. 51, que sustenta que a questão em jogo era o messiado de Jesus,
e não sua filiação divina, embora Juel observe corretam ente que “não parece que
era uma blasfêmia na época de Jesus afirmar ser o Messias”.
94 Veja O. Hofius, “1st Jesus der Messias? T heserí’,/5 7 7 ‫( ׳‬Der Messias) 8 (1993), p.
121, que afirma com correção que o versículo 62 representa a afirmação de Jesus
para “einer wesenhaften Einheit mit G o tt” .
M a rc o s 14.66*68 554

p átio ”) re to m a ag o ra a h istó ria d e P edro. O p átio d e C aifás (w . 54,66), típico


das vilas ro m an a s e d e casas m ed iterrân eas m aiores d a ép o ca, seria u m átrio
ab e rto d elim itad o p o r c ô m o d o s d a casa q u e o circundavam . A referência a
P ed ro “ em b aix o ” (v. 66) in d ica q u e o ju lg am en to de Jesu s ac o n te ceu em u m
c ô m o d o acim a d o pátio. “T o d a a cena está indelevelm ente fixada n a consciên-
cia d o m u n d o o cid en tal” , afirm a u m co m en tarista.95 A lgo b astan te n otável
u m a vez q u e os ú n ico s p erso n ag en s são u m a das criadas, alguns curiosos e um
discípulo c o m segundas in ten çõ es. Só P ed ro é id en tificado nessa cena, u m a
vez q u e é a sua h istó ria q u e M arcos deseja contar. E sse evangelista, c o m o n o
caso d e Ju d a s (w . 43-45), o m ite os m o tiv o s e sen tim en to s d e P edro, fo can d o
exclusivam ente em suas três negações (w . 68,70,71), as quais aco n te cem
ex ata m en te c o n fo rm e p re d ito p o r Jesu s (v. 30). O G e tsê m a n i, o n d e P ed ro
caiu n o so n o p o r três vezes e n q u a n to Jesu s orava (w . 32-42) era, p o rta n to ,
u m p re n ú n cio de suas três neg açõ es n o p átio d e Caifás.
T odavia, e n q u a n to Jesu s se su b m etia a u m ju lg am en to fo rm a l n o cô-
m o d o acim a d o p átio , u m ju lg am en to d e o u tro tip o aco n tecia ali em baixo
n o pátio. U m a criada, u m a p o rte ira talvez, v ê P e d ro e o acusa d e estar co m
“ o N a z a re n o ” (v. 66). A referên cia a Jesu s c o m o “ o N a z a re n o ” n ã o é espe-
cificam ente u m b o m p ren ú n cio .96 A in d a faz b a sta n te frio em m a rç o /a b ril
em Jeru sa lém , o q u e explica o fo g o à n o ite, e a luz d o fo g o (a p alavra grega
p ara “ fo g o ” n o v. 54 é phõs, “lu z ”) p e rm ite q u e P ed ro seja reco n h ec id o n o
escuro. P ed ro , ap e sar d e seu d esejo d e ser d iscreto, to rn a-se o c e n tro das
atenções: duas vezes n o v ersícu lo 67, M arco s afirm a q u e a criada “v[ê]” e
“ olhfaj” P ed ro (gr. blepõ [“v er”]; emblepõ [“v er d e p e rto ”]), e essa criada o acusa
d e fo rm a enfática: “ Você ta m b é m estava c o m Jesus, o N a z a re n o ” (grifo d o
auto r). P e d ro tro p e ç a em si m e sm o p ara n eg a r a associação e re sp o n d e co m
im pertin ên cia: “ N ã o o co n h e ço , n e m sei d o q u e v o cê está falan d o ” . O s dois
verbo s greg o s p ara “conhefcer]” e “ s[aber]” são só u m a aparente redundância.
O p rim eiro (pida) te n d e a d e n o ta r u m c o n h e c im e n to teórico; e o seg u n d o
(1pistamai), u m c o n h e c im e n to p rático ; a n eg ação d e P edro, p o r con seg u in te,
é u m a n eg ação to tal — n a teo ria e n a prática! P ed ro , a seguir, deixa o fo g o e

95 C. G. Montefiore, The Synoptic Gospels1■(New York: Ktav, 1968), 1.368.


96Josefo acha que os galileus são problemáticos e “belicosos desde a infancia” ( Vida,
p. 45). E m Atos 24.5, “nazarenos” é um term o usado pelos oponentes judeus para
se referir aos seguidores do “criador de casos” Jesus.
555 M a rc o s 14.69-72

vai p ara o “ alp en d re” (v. 68) o u en trad a.97 A m u d an ça de local coloca P ed ro
ain da m ais d istan te d e Jesus.

6 9 7 2 ‫ ־‬C o n tu d o , u m a m u d an ça d e lu g ar n ã o é u m su b stitu to para um a


m u d an ça d e coração. A criada, c o m o u m a co n sciên cia culpada, acusa P edro
u m a seg u n d a vez, e dessa vez ela arro la o s cu rio so s em sua acusação. “ E sse
aí é u m dele/’ (v. 69; g rifo d o autor) sugere q u e o m o v im e n to d e Jesu s é co-
n h ec id o em m eio ao s associados c o m o su m o sacerdo te. P e d ro ag o ra tem de
n eg a r su a associação c o m Jesu s d ian te d e m ais pessoas. O te m p o im p erfeito
d o v e rb o g re g o p a ra “neg[ar]” n o v ersículo 70 significa que P ed ro “ teim o u ” ,
c o n fo rm e dizem os, em sua negação. H á a p ro p a g açã o d e sua p resen ça, e os
cu rio so s re c o n h e c e m o d ialeto galileu.98 P ed ro , e m b o ra esperasse escapar
sem ser n o ta d o , acab a train d o Jesu s p elo q u e diz, p o r o n d e está e c o m o o diz!
A terceira acusação é a m ais o u sad a, e ta m b é m o é a n egação d e Pedro.
O g re g o é g ro sseiro e explícito: “ E le c o m e ç o u a se am aldiçoar e a jurar:
‘N ã o c o n h e ç o o h o m e m d e q u em vo cês estão falando!’ ” (v. 71). P o d e ser,
c o m o fica im p lícito n a trad u ção da N V I, q u e P ed ro n ão estivesse apenas
se n d o p ro fa n o , m as ju ran d o pelo n o m e d e D e u s, o q u e p o d e ficar im plícito

97 Aqui, alguns dos mais antigos manuscritos acrescentam, “e o galo cantou” (A C


D K X Δ Θ Π). U m grupo menor, mas de peso, de manuscritos omite essa frase
(‫ א‬A B L W Ψ). Por um lado, os copistas estariam inclinados a acrescentar a frase
para enfatizar o cumprimento da profecia de Jesus. Pedro, mais uma vez, não
poderia saber se o canto do galo era o segundo se não tivesse ouvido o primeiro.
Por outro lado, os copistas tenderíam a om itir a frase a fim de fazer com que
Marcos harmonizasse com os outros evangelhos que relatam apenas um canto
do galo. A evidência é bastante equilibrada para saber se a frase era original ou
secundária. A lógica sugere que foi acrescentada, pois seria mais provável que um
escriba acrescentasse a frase para preparar para o segundo canto do galo (v. 72)
que a deletar se fosse original. Veja Metzger, TCGNT, p. 115-16.
98 Um a variante textual apoiada por A Θ e a maioria dos textos trazem: “Pois você
é galileu, e sua fala é semelhante [a de um galileu]” . Essa leitura, em bora não seja
tão bem apoiada textualmente com o a leitura mais breve preservada na NVI, pode
de fato ser original, pois ela explica todas as variações tanto em Marcos quanto em
Mateus. Veja M. Holmes, “T he Text o f the M atthean Divorce Passages: A Com-
m ent on the Appeal to H arm onization in Textual Decisions”,JB L 109 (1990), p.
652-56. Isso tam bém torna explícito o fato de a fala dos galileus ser característica.
O bserve o comentário em t. Berakhot 32a de que “na escola de R. Eliezer [c. 270
d.C.] os alefs eram pronunciados com o ‘ayins, e os ‘ayins com o alefs. N ão sabemos
se o rabi Eliezer era galileu, mas isso é mais um a evidência dos padrões de fala
característicos entre alguns grupos de judeus.
M a rc o s 14.69-72 556

p elo u so d o v e rb o g re g o anathemati^ein. Se esse fo r o sentido, en tão é a pior


p rofanação . P ed ro , o q u e n ã o é de su rp reen d er, n ã o co nsegue p ro n u n c ia r o
n o m e de Jesus, m as n eg a dizendo: “ o h o m em d e q uem vocês estão falando!” .
A im p recação d e P e d ro contra]esus re p resen ta u m c o n tra ste m arcan te co m o
ju ram e n to d e Jesu s por su a filiação divina. N e n h u m a q u an tid ad e d e p ro te sto s
p o d e ev itar o c a n to d o g alo — o u q ue a v erdade p e rtu rb a d o ra dessa negação
se abata so b re P e d ro (v. 72). A n o ta conclusiva d e M arcos é ap ro p riad a e final:
“ [Pedro] se p ô s a c h o rar” (v. 7 2 )."
O san d u ích e d e co n clu são d o capítulo 14 p õ e a co nfissão reveladora e
o u sad a d e Jesu s d ian te d o su m o sacerd o te em co n tra ste g ritan te c o m a nega-
ção d e P ed ro d ian te d a criada. O s discípulos, ao lo n g o d e to d o o evangelho de
M arcos, en ten d eram Jesus de fo rm a equivocada, e u m deles chegou até m esm o
a traí-lo em segredo. C o n tu d o , a renúncia d e P e d ro é a prim eira n egação clara
d e Jesu s em M arcos. O fato d e que veio d o ch efe d o s ap ó sto lo s to rn a essa
negação ainda m ais violenta. P ed ro não en fren ta u m julgam ento form al, nem ,
tam p ou co , é q u estio n ad o so b re sua fé. E le n ega Jesu s sem seq u er u sar o n o m e
d o M estre. O ex e m p lo d e P e d ro é u m alerta p ara os discípulos — naquela
ép o ca e ag o ra — d e q u e o te ste m u n h o fiel a Jesu s é m ais im p o rta n te (e m ais
facilm ente traíd o ) em ações e palavras sim ples e cotidianas. É nas q u estõ es
d o dia a dia q u e o s discípulos são verdadeiros mártires (a raiz d o sen tid o d o
te rm o que, em grego, significa “ d ar testem u n h o ”). M arcos p o d e ter concluído
essa seção c o m a h istó ria d e P ed ro p ara lem b ra r sua con g reg ação perseguida
em R om a q u e até m e sm o o m e lh o r cristão o u ap ó sto lo líder n ão está im u n e
à apostasia. T a m p o u c o (co m o verem os), ele está além d a p ro m essa da graça!
A igreja p o d e se r h o n e s ta so b re o p ecad o — até m e sm o os p ecad o s d e u m
ap ó sto lo a p ó sta ta — p o rq u e ela está m u ito co n v encida d a graça. “ M as o n d e
a u m e n to u o p ec a d o tra n s b o rd o u a graça” (R m 5.20).

99 Dois manuscritos registram que Pedro “com eçou a chorar” (D Θ), mas a maioria
dos manuscritos oferece uma leitura mais difícil epibalõn eklaien. O sentido comum
de epiballein é “lançar sobre” . Em bora o sentido exato da frase seja passível de
discussão, o sentido mais razoável do versículo 72 é que Pedro “lançou-se sobre
(o solo) e estava chorando” .
capítulo quinze

A cruz e o túmulo vazio


M A R C O S 1 5 .1 -1 6 .8

N o ca p ítu lo 15, a responsabilidade pela p erseg uição d e Jesu s é transfe-


rid a d o S inédrio p a ra P ô n cio P ilatos, o p re fe ito ro m a n o d a Judeia. M arcos,
c o m o a c o n te c e u n o ju lg am en to d o Sinédrio, re tra ta Jesu s m ais u m a vez
su b m e te n d o -se em silêncio e aquiescência, dessa vez d ian te das engrena-
g en s cruéis d a p erseguição ro m a n a c o m eç an d o co m a sen ten ça de Pilatos
e c o n tin u a n d o c o m o ab u so d o s so ld ad o s e d a crucificação. A n arração da
cru cificação d e Jesu s p o r M arcos, c o m o o é ao lo n g o d e to d o o N o v o Tes-
tam en to , é feita d e m an eira objetiva e co n tid a. N ã o existe a m e n o r in ten ção
d e ex p lo ra r a selvageria da crucificação q u e r p a ra to rn a r a m o rte d e Jesus
u m ev e n to sensacionalista q u er p ara ev o car o sen tim en talism o d o leitor. A
ênfase d e M arco s n a narrativa da crucificação, em especial, n ão recai so b re
sua b ru talid ad e e cru eld ad e, m as so b re a vergonha e %pmbaria às quais Jesu s é
sujeitado. N a crucificação, c o m o ta m b é m aco n tece na oração n o G etsêm an i,
o so frim e n to in te rn o su p lanta o h o rr o r físico. A zo m b aria co m eça d e fato
co m os soldados n o s versículos 16-20. Jesus, m u ito fraco p ara su p o rtar o peso
d a p ró p ria cru z (v. 21), é aviltado pela p u n ição ap ro p riad a a u m escravo ou
crim in o so e m u m local ig n o m in io so (o G ó lg o ta o u lugar d a C aveira, v. 22),
na co m p an h ia de lad rõ es (v. 27), c o m u m a acusação m arcada pelo escárnio
(v. 26). O s cu rio so s e o b serv ad o res dessa ce n a p ro fe re m insultos co n tra
Jesu s ( w . 29,30; veja SI 22.8,9!), e o s chefes d o s sacerd o tes zo m b am dele (w .
31,32). A té m e sm o aqueles q u e so fre m a m esm a m o rte que ele o rep ro v am
(v. 32). O s m u ito s zo m b ad o res q u e p assam p o r ali “ balançafm ] a cabeça”
(v. 29), o que, n o judaísm o, assinala escárn io e rep u lsa (Is 37.22; J r 18.16; SI
22.8; 44.15; 109.25; J ó 16.4). N o e n ta n to , q u an d o Jesu s m o rre, rejeitado e
so zin h o , ac o n te ce o ev e n to m ais relevante d o evangelho d e M arcos: o v éu
E x c u rso : P ô n c io P ila to s 558

d o san tu ário d o tem p lo se rasga em dois, e o cen tu rião g en tio co n fessa Jesu s
c o m o o F ilh o d e D e u s. Só n a cruz é q u e Je su s é co n fessad o pela p rim eira
vez em fé c o m o o F ilh o d e D eu s.

P Ô N C IO P I L A T O S E J E S U S ( 1 5 . 1 1 5 ‫) ־‬

O s o u tro s trê s ev angelhos relatam o ju lg am en to d e Jesu s em m aiores


detalhes q u e M arcos. M ateu s registra o s o n h o da esp o sa de P ô n cio P ilatos
(27.19) e o lavar as m ão s d e P ilatos (27.24). L ucas acrescenta o in terro g a tó -
rio dian te d e A n tip as (23.6-12); e J o ã o inclui u m a discussão teológica en tre
Jesu s e P ô n c io P ilatos (18.33-38). M arcos n a rra o ju lg am en to c o m m aio r
eco n o m ia , fo can d o , prim eiro, o silêncio d e Jesu s d ian te d e P ô n cio P ilatos e,
segun do , a ten tativ a m alsucedida desse g o v e rn a n te d e aplacar a m u ltid ão ao
o fe re c e r anistia a Jesus.

Excurso: Pôncio Pilatos


U m a avaliação equilibrada d o papel e re sp o n sab ilidade d e P ô n cio Pilatos
n a m o rte d e Jesus é com plicada pelo fato d e que os retratos em geral favoráveis
desse g o v e rn a n te ro m a n o n a m o rte d e Jesu s d iferem u m ta n to d o s relatos
feitos p o r Jo s e fo e F ílo n . N ã o im ag in am o s u m g o v e rn an te se inclin an d o
aos cap rich o s d a m u ltid ão , c o n fo rm e re tra ta d o n o s evangelhos, se ele fosse
“inflexível, te im o so e cru el” , n as palavras d e F ílo n (Sobre a embaixada a Gaio,
p. 301-2). U m a explicação c o m u m p ara essa d escrição m u ito d iferen te de
P ô ncio P ilatos é q u e o s escrito res d o evangelho — e em p articu lar M arcos
— q u e escreve em R o m a so b N e ro — tran sfere m a resp o n sab ilid ad e pela
m o rte d e Jesu s d o g o v e rn a n te ro m a n o p ara as au torid ades judaicas a fim de
evitar o fe n d e r R om a.
P o d e hav er p elo m en o s algum a verd ad e n essa visão, pois o p ap el d e P ô n -
cio Pilatos n a p risão e sen ten ça d e Jesus n ã o p o d e ser tão insignificante q u an to
deixam im p lícito o s evangelistas. A final Jesu s foi crucificado, e a crucificação
era u m a execução ro m an a ; daí a au to rid ad e ro m a n a ser d errad e iram en te res-
pon sável p ela m o rte d e Jesus. J o ã o 18.3,12, d o m e sm o m o d o , relata q u e os
so ldado s ro m a n o s co m p arece ram à p risão d e Jesus. É praticam en te ce rto que
o pap el d e P ô n cio P ilatos excedeu o e n d o sso re lu ta n te d a sen ten ça d e m o rte
d o Sinédrio, p o is se n ã o tivesse h avido n e n h u m a co nspiração en tre o S inédrio
e o g o v ern ad o r, ficaria difícil explicar a rap id ez e eficiência n a crucificação
de Jesus. A lém disso, a acusação d e q u e Jesu s é o “ Rei d o s J u d e u s” — u m
título q u e carrega c o n o ta ç õ e s políticas óbvias — é m e n cio n a d a seis vezes n o
559 E x c u rs o : P ô n c io P ila to s

capítu lo 15 (w . 2,9,12,18,26,32). Isso sugere q u e as au to ridades ro m an a s não


estavam desavisadas so b re to d a a situação n e m fo ra m cúm plices relutantes
n a p risão e sen ten ç a d e m o rte d e Jesus.
O evangelho d e M arcos foi p ro v av elm en te escrito em m ead o s d o an o 60
d u ra n te o rein a d o d e Ñ e ro . O Im p ério R o m an o , e m c o n tra ste co m a antiga
repú blica, era u m E s ta d o to talitário e ain d a m ais so b Ñ e ro q u e so b to d o s os
o u tro s g o v ern an tes. A discrição, se n ã o a lealdade, ditava q u e R om a deveria
ser re tratad a n a m e lh o r luz possível n o ev an g elho d e M arcos. E sse evan-
gelista desejava en c o rajar o s cristãos em R om a, p ois estes eram vítim as da
perseguição, c o m o exem plo fiel de Jesus d ian te d e P ô n cio Pilatos. M arcos, ao
m esm o tem p o , q ueria evitar fazer afirm açõ es q u e p o d ería m ser consideradas
u m a traição, p ara q u e o evangelho n ã o fo sse causa de m ais p ro b lem as p ara
o s cristãos n o im pério. A delicada tarefa d e M arco s n o capítulo 15 é co m o
relatar a crucificação sem cau sar o fe n sa d esn ecessária aos ro m a n o s q u e o
crucificaram . M arco s precisava exercitar a sensibilidade n a n arrativa d a cru-
cificação p o rq u e a tirania d e P ô n cio P ilatos era am en a em co m p aração co m
a tirania d e N e ro , so b q u em os recipientes d o ev an gelh o viviam . N o en tan to ,
isso n ã o q u e r d iz e r q u e M arcos em b ele zo u o re tra to d e P ô n cio P ilatos, pois
dificilm ente d ev eriam o s esp erar q u e M arcos, q u e acabara d e m o stra r q u e d ar
u m te ste m u n h o fiel so b a p erseguição é a m arc a d o v erd ad eiro discipulado
(14.53-72), negasse sua p ró p ria lição ao ap re se n ta r u m a im agem inverídica
d e P ô n cio P ilatos p ara desviar as possíveis co n seq uências d o so frim en to
p o r causa d o evangelho. E m o u tras palavras, te m o s b o n s m o tiv o s p ara crer
n a con fiab ilid ad e d a descrição d e M arco s d o ju lg am en to d e Jesu s dian te de
P ô n cio Pilatos. P o rta n to , dev em o s revisitar b re v em en te o q u e sab em o s so b re
esse g o v e rn a n te ro m a n o p ara v er se p o d e m o s fa zer sen tid o d a evidência
so b re ele ap re se n ta d a p o r M arcos, Jo se fo e F ílon.
O q u in to g o v e rn a d o r ro m a n o d a Palestina, P ô n c io P ilatos, tin h a o títu-
lo de “p re fe ito ” , e sua residência era e m C esareia M arítim a.1 N o s festivais
judaicos, e em especial n a P ásco a q u a n d o o s p e re g rin o s iam p ara o tem p lo

1 Vários títulos eram usados para os governadores romanos.Josefo, escrevendo em


grego, utiliza hêgemón (“governante”), epitropos (“guardião/governador”) e eparchos
(“prefeito”). O Novo Testamento usa apenas o primeiro termo para se referir a
Pôncio Pilatos; e Fílon, o segundo termo. Tácito, escrevendo em latim, usaprocu-
rator. Uma inscrição latina descoberta em Cesareia Marítima, em, 1961, refere-se a
Pôncio Pilatos específicamente como praefectus, “prefeito”, e essájparece ter sido
o título apropriado para os governadores do período anterior á Cláudio. Veja D.
Schwartz, “Pontius Pilate”, ABD 5.397.
E x c u rs o : P ô n c io P ila to s 560

e o fe rv o r religioso ficava em alta, a p re sen ça d o g o v e rn a d o r era exigida em


Jerusalém . A li, P ô n cio P ilatos p resu m iv elm en te se h o sp ed av a n o Palácio de
H e ro d es n o m u ro o cid en tal d a cidade. E possível im aginar o aparecim ento de
Jesu s ali, urna vez q u e o P re to rio (15.16) estivesse p ro v av elm en te localizado
n o Palácio d e H e ro d e s.2
O m a n d a to d e P ô n cio Pilatos c o m o p re fe ito se esten d e u d e 26 a 37 d.C.,
tra n sfo rm a n d o -se n o m ais lo n g o m an d a to d e q u alq u er u m d o s q u ato rz e go-
v ernadores ro m a n o s d a Judeia. E le n ão era u m g o v ern ad o r inco m p eten te, m as
ten d ia à in tratab ilid ad e, razão pela qual foi p o r fim b an id o so b o im p era d o r
G aio (Caligula). P ô n cio P ilatos, em c e rta ocasião, d e m o n stro u d esd ém pelos
co stu m e s judaicos ao in tro d u zir em Jeru sa lém estan d a rtes traz en d o o b u sto
d o im p e ra d o r, v io lan d o dessa fo rm a o b a n im e n to d e im agens pelos judeus.
O s ju d eu s o fe n d id o s fo ram en masse p ara C esareia, quase 112 quilôm etros
d istan te, e org an izaram u m p ro te s to n ão v io len to n a residência d e P ôncio
P ilatos p o r cin co dias! E s s e g o v ern ad o r, d e início, foi in tran sig en te e deu
o rd e n s p a ra q u e seus so ld ad o s m atassem os q u e p ro testav am n o estádio,
m as P ôn cio Pilatos, q u a n d o “ eles m o strara m o pesco ço, p re ferin d o a m o rte
à transg ressão d a lei” , ced eu e retiro u as im agens d e Jeru salém (An¿. 18.55-59;
Guerra 2.169-71; F ílon, Sobre a embaixada a Gaio, p. 299-304). E m o u tra ocasião,
P ôncio P ilatos g a sto u d in h eiro d o te so u ro d o tem p lo p ara a co n stru ç ã o de
u m aq u e d u to c o m cerca d e 23 q u ilô m etro s p ara traz er água p ara Jerusalém .
E le, m ais u m a vez, foi im p o rtu n a d o p o r p ro te sto s d e judeus legalistas que se
o p u n h a m ao u so d o s fu n d o s d o tem p lo p ara o b ra s públicas. P ô n cio Pilatos,
dessa vez, tro c o u os p ro testo s p o r golpes violentos, e, n a disputa q u e se seguiu,
g ran de n ú m e ro d e p ro testan te s foram m o rto s pelos soldados cuja brutalidade
excedeu as o rd e n s d o g o v e rn a d o r ro m an o , e ain da o u tro s fo ram p iso tead o s
até a m o rte em u m a ten tativ a d e fuga (An¿. 18.60-62; Guerra 2.175-77). U m
terceiro ep isó d io d o m a n d a d o de P ô n cio P ilatos v em d o N o v o T estam en to
q ue registra u m escândalo e m q ue esse g o v e rn a d o r ro m an o , ap ó s m atar al-
g uns galileus q ue tro u x eram o fe rtas p ara Jeru salém , m istu ro u o sangue deles
co m os sacrifícios q u e o fe rec ia m (Lc 13.1). U m ep isó d io final diz re sp eito a
u m levante sam aritano, cujo p ro p ó s ito n ão foi definido, q u e P ô n cio P ilatos
su b ju g o u m ais u m a vez d e fo rm a violenta, reação essa q u e re su lto u em sua
rem o ção d o cargo (An¿. 18.85-88).
E m geral, o reg istro p o lítico d e P ô n cio P ilatos foi caracterizado p o r iní-
cios insensíveis seguidos d e re sp o sta s obstinadas. T a n to Jo se fo q u a n to F ílon

2 Sobre a localização do Pretorio, veja a discussão em 15.16.


561 E x c u rs o : P ô n c io P ila to s

d escrevem seus sujeitos judeus co m o igualm ente o b stin ad o s e hostis. P ôncio


Pilatos, em exasperação, destilava sua raiva, e m vez d e u sar a inteligência o u
sabedoria. E le, n o en tan to , n ã o era tem erariam en te b ru tal, pelo m en o s n ão
n a m ed id a de u m C aligula o u d e um N e ro . Q u a n d o reco rria à força, ele a
direcionava c o n tra o s g ru p o s responsáveis, e n ã o c o n tra os cidadãos em geral.
T am p o u c o , ele era ab e rtam e n te c o rru p to p elo s p a d rõ es d a época. E le era
capaz d e em p re e n d im e n to s co n stru tiv o s, c o n fo rm e testificado p elo p ro jeto
b em -in ten c io n a d o , m as financiado de fo rm a equivocada, d o aqueduto. A
re m o ç ã o d a insígnia d e Jeru sa lém indica q u e n ã o era sem p re o u to talm e n te
in transigente. U m d e seus d em érito s m ais n o tó rio s era o resu ltad o d a b ru -
talidade d a polícia, e n ão d e u m d ec reto oficial. P arece q u e P ô n cio Pilatos
era u m típico g o v e rn an te designado p elo im p e ra d o r T ib ério, e as qualidades
pertin a zes q u e o fizeram d e início p ro c u ra r a g o v e rn an ça p a ra si m esm o
fo ram as m esm as q u e p o r fim o levaram a p e rd e r seu cargo.
À luz d e seu perfil, n ão é difícil explicar o tra ta m e n to q u e P ô n cio Pilatos
d ed ico u a Jesu s, c o n fo rm e d escrito p o r M arcos. O s in stin to s políticos de
P ô n c io P ilatos lh e d izem que Jesu s é u m a figura q u e deve ser observada,
m as n ã o n ecessariam en te d espachada, p elo m e n o s n ão p o r ora. C o n tu d o ,
P ô n c io P ilatos está d e m ão s atadas, q u a n d o u m p ed id o inicial em favor de
Jesu s p ro d u z p ro te sto s n a m ultidão, e n ã o ap ro v ação . P ô n c io P ilatos está
fam iliarizado c o m os p ro te sto s d o s judeus, o s quais, p o r m ais que os deteste,
ap re n d e u a respeitar. E le, n o caso d e Jesu s, re sp o n d e co m u m a co m b in ação
d e in stin to e cálculo, atitude típica d e seu cargo. E sse g o v ern an te, julgando
Jesu s in d ig n o q u e r d a p ersp ectiv a d e p rin cíp io q u e r d e u m a d em o n straç ão de
força, o p ta p o r ceder, en treg an d o , p o rta n to , Je su s á p rática da crucificação.3

3 D. Flusser,/«·».r (Jerusalem: Magnes Press, 1997), p. 156, concorda “que o compor-


tam ento de Pôncio Pilatos nos evangelhos não é m uito diferente daquele relatado
em outras fontes” . Flusser considera a crueldade de Pôncio Pilatos como uma
compensação para sua fraqueza inerente que podería influenciá-lo a abandonar
seus desígnios em algumas ocasiões (p. 160). Flusser conclui: “Parecería, portanto,
que o fim trágico de Jesus não foi precedido p o r nenhum veredicto de algum judi-
ciário terreno. E ra o resultado de uma interação de meras esferas de interesses na
som bra de brutais antagonismos” (p. 166). Veja tam bém H. Bond, Pontius Pilate in
History andInterpretation, SNTSMS 100 (Cambridge: Cambridge University Press,
1998), p.203-7
M a rc o s 15.1 562

1 A assin atu ra ed ito rial d e M arcos é ev id en te n a transição p ara o proce-


d im e n to ro m a n o c o n tra Jesu s em 15.1.4 O s p ro c e d im en to s legais segundo
R om a co m eç am c o m o raiar d o dia,5 pois, p o r v o lta d a m etad e d a m an h ã, os
aristocratas e n o b re s ro m a n o s em b arcam nas b uscas d o lazer. O Sinédrio,
p o r co nseg u in te, a p re se n ta Jesu s a P ô n cio P ilatos “d e m an h ã b e m c e d o ” . As
palavras d o versículo 1, co m frequência, são consideradas c o m o u m indício de
qu e h o u v e u m a seg u n d a reunião d o Sinédrio, m as esse n ão p arece ser o sen-
tid o d o g re g o symboulionpoiêsantes.6A frase re m e m o ra a descrição sim ilar dos
fariseus e h e ro d ia n o s em 3.6 e indica a co n clu são d a tram a c o n tra Jesus; daí,
a justificação d a trad u ç ão d a N V I: “ to d o o S inédrio chegfou] a u m a decisão.
[...] lev aram -n o e o en treg aram a P ilato s” . Se o Sinédrio, c o m o Jo ã o 18.31
su sten ta, n ã o tivesse jurisdição so b re p en as capitais, e n tão P ô n cio P ilatos era
u m elo crucial p ara assegurar a execução d e Jesus.7 C o n tu d o , havia outras
razões p ara en tre g ar Jesu s a P ô n cio Pilatos. A au to rid ad e d o g o v ern ad o r seria

4 “Logo” (ARA), “todo o Sinédrio”, “chegaram a uma decisão” e a menção aos


três grupos do Sinédrio (“ sacerdotes”, “líderes religiosos” e “mestres da lei”) são
expressões típicas de Marcos.
5 Séneca, Sobre a ira 2.7.
6 Symboulion poiêsantes (“ entraram [em conselho” [ARA] ou “tiveram conselho”
[ARC]) é um latinismo {consiliumcapere; veja BDF, p. 5-6), e as palavras mais comuns
são symboulion lambanein (também M t 12.14; 22.15; 27.1,7; 28.12). As palavras do
latinismo em Marcos foram sujeitas a duas mudanças na tradição de manuscri-
tos gregos. A primeira para m elhorar o estilo da sentença com a substituição de
um verbo finito, epoiêsan, pelo participio com o acréscimo de kai (“ e”) antes de
dêsantes (“am arrando”); tam bém D Θ: “chegaram a uma decisão [“conselho” ,
ARA] [...]. A m arrando Jesus”). A segunda é para tentar aliviar a ambiguidade de
symboulionpoiêsantes ao substituir hetoimasantes (‫ א‬C L; hetoimasantes = “preparar”)
por poiêsantes. O sentido resultante seria “chegafr] a um a decisão” ou “entra[r] em
conselho” (ARA) para garantir que os leitores com preendessem que o conselho
já fora reunido. A primeira leitura acima, apesar dessas mudanças, afirma o apoio
textual mais forte (veja B. Metzger, TCGNT, p. 117).
7 N ão fica claro se o Sinédrio tinha o direito legal sobre ap ena de morte. João 18.31
sugere que não tinha, mas é um fato que os judeus executavam com frequência as
pessoas sem a autoridade rom ana (apesar da observação d e jo 18.31 em contrário).
Os judeus, de acordo com josefo (Guerra 6Λ24-26;Ant. 15.417; veja também Fílon,
Sobre a embaixada a Gaio, p. 307), podiam executar gentios que tentavam entrar no
santuário do templo; há um relato de uma execução da filha de um sacerdote em
m. Sanh. 7:2; Estêvão foi apedrejado até a m orte pelo Sinédrio (At 6.12-15; 7.57-
59); e Tiago, o irmão de Jesus, foi apedrejado até a m orte pelo Sinédrio em 62
d.C. (Josefo, Ant. 20.200-203).
563 M a rc o s 15.2-5

im p o rta n te p ara aplacar o clam o r p o p u la r q u e p o d e ría aco n tecer em favor de


Jesus. A lém disso, u m v ered icto d e R o m a c o n tra Jesu s — e específicam ente a
v e rg o n h a d a m o rte p o r crucificação — danificaria severam ente as tentativas
p o r p a rte d o s seguidores d e Jesus p ara reabilitá-lo.8 O v ocabulário d o versí-
culo 1 (to d o o Sinédrio ch e g o u a u m a decisão, am arro u , levou e en treg o u )
reflete u m modus operand,'i p o liticam en te co n scien te. A red u n d ân cia b u ro c rá-
tica d o Sinédrio rivaliza co m o excesso d e fo rça m ilitar n a prisão de Jesus
(14.43,48). O jogo d e palavras em “ o e n tre g ara m ” é m ais u m a vez relevante,
c o m o o foi n o cap ítu lo 14 (w . 10,11,18,21,41,42,44). A palavra c o m b in a dois
sen tid o s im p o rta n te s p ara o versículo: re trata Jesu s c o m o a vítim a (traído
pela p erv ersid ad e h u m ana) e c o m o o m eio d e re d en çã o (entregue d e aco rd o
co m o p ro p ó s ito de D eus).

2-5 P ô n cio Pilatos, o p re feito ro m an o , p erg u n ta a Jesus: “V ocê é o rei


d o s judeu s?” A s palavras da p erg u n ta em g reg o são ex atam en te as m esm as
usadas n a p erg u n ta d o su m o sac erd o te em 14.61, o u seja, é u m a afirm ação
co m u m a p e rg u n ta im plícita (lit. “V ocê é o rei d os judeus, n ão é?”). A s pa-
lavras d e M arcos, c o m o n o caso d o su m o sac erd o te, to rn a m P ô n cio Pilatos
alguém que, sem o saber, co n fessa Jesus.9 M ais u m a vez, até m esm o a boca
d o s in im ig o s de Jesu s co nfessa in v o lu n ta riam en te Jesus. E ste, d ian te das au-
toridades judaicas, fo ra acusado p o r am eaças ao tem p lo (14.57,58) e blasfêm ia
(14.64). E ssas eram p erg u n tas d e n a tu re z a religiosa que, em si m esm as, não
im p o rtav a m p ara P ô n cio Pilatos. T odavia, a p re te n sã o ao m essiado era u m
assu n to diferente. A afirm ação d e ser o M essias, c o n fo rm e vim os anterior-
m en te, n ã o era u m crim e n o judaísm o, m as que, q u a n d o trad u zid a para seu
equivalente político, “ rei dos judeus” , to rn av a-se u m a p re o cu p aç ão co n creta
p ara o g o v ern ad o r. A acusação política c o n tra Jesu s fica ainda m ais clara em
Lucas 23.2: “ E n co n tra m o s este h o m e m sub v erten d o a nossa nação. E le proíbe
o p a g a m e n to de im p o s to a C ésar e se declara ele p ró p rio o C risto, u m rei” .
N ã o h á n ad a n o N o v o T estam e n to n em n a literatura extracanônica q u e sugira
q u e Jesu s tivesse inclinações sim ilares à d o s zelotes, e h á m u ito p ara sugerir o
contrário. N o en tan to , tam b é m é falso assu m ir q u e a m ensagem e m inistério

8 Veja W. G rundm ann, Das Evangelium nach Markus, p. 422.


9 Isso, é claro, não implica que Pôncio Pilatos ou o sumo sacerdote criam nele. As
histórias em Atos de Pilatos {NTApoc 1.501-36) que tornam Pôncio Pilatos alguém
que crê — e que, com coragem, mas em vão, intercede em favor da libertação de
Jesus — pertencem a lendas fantasiosas que apareceram tem pos depois.
M a rc o s 15.2-5 564

d e je s u s eram d estitu íd o s d e consequências políticas, econôm icas e sociais. O


ensin o e m in istério d e je s u s se afastavam d e fo rm a relevante d o s costum es
ro m a n o s e judaicos, e su a m en sag em exigia o m e sm o de seus seguidores.
O m u n d o ro m a n o n ã o separava a religião d a política, c o m o aco n teceu n o
O c id e n te p ó s-Ilu m in ism o . E verdade, R o m a n ã o exigia q u e os judeus, co m o
fazia c o m o u tro s p o v o s subjugados, ad o tasse a religião ro m a n a e a adoração
ao im p era d o r, m as isso n ã o significava q u e R o m a era in d iferen te à religião
judaica, e m especial q u a n d o os d ev o to s d o ju d aísm o afirm avam ser o “ rei
d o s jud eu s” o u eram assim cham ados. G ru n d m a n n afirm a q u e o título não
é m essiânico n e m político, m as antes u m a ex p ressão d e zo m b aria e d esd ém
n a b o c a de P ô n cio P ilatos.101E sse é um ju lg am en to ingênuo, em p articu lar à
luz d a revolta zelo te trin ta anos m ais tarde. R o m a n ã o p re n d ia n em crucifi-
cava vítim as q u e n ão eram p elo m en o s percebidas c o m o am eaças políticas. O
M essias, ao lo n g o d e sua lo n g a evolução, a u m e n to u as co n o taçõ es políticas
e m ilitares, em p a rtic u la r ap ó s subjugação d a P alestina a P om peia, em 63
a.C., dep o is d a qual o M essias p asso u a ser p e rceb id o c o m o u m co m b ate n te
divino n a g u e rra d e g u errilh a c o n tra a o p re ssã o ro m a n a (sobre o M essias,
veja m ais em 1.1; 8.29).
Jesus, e m re sp o sta à p e rg u n ta d e P ô n cio Pilatos, re sp o n d e: “T u o dizes” ,
co m ênfase n o tu. E ssa n ão é u m a afirm ação d ireta o u, caso contrário, P ôncio
P ilatos teria fu n d a m e n to s im ed iato s p ara a execução. C o n tu d o , ta m b é m n ão
era u m a negação. A re sp o sta é sugestiva, co m o se dissesse: “V ocê faria b em
em co n sid erar essa p erg u n ta !”
O s chefes d o s sacerdo tes tam b ém acusam Jesus, m as M arcos n ão especí-
fica a acusação deles (15.3). Jesu s e P ô n cio Pilatos, de ac o rd o co m Jo ã o 18.33-
38, falam so b re a n atu re z a d a au to rid ad e política. Todavia, em M arcos, as
solicitações d e P ilatos são inúteis. Jesu s p e rm a n ece em silêncio, e — em face
d o ódio, agressões e cru eld ad e — , esse silêncio, desse m o m e n to em diante,
d o m in a o re tra to d e M arco s so b re a paixão.11 N ã o é u m silêncio de d erro ta,
m as u m silêncio d e en treg a à so b eran ia d e D e u s n a paixão (Justino, Dial. Trif.
102.5).12 C o m o o S ervo d o S en h o r:

10Das Evangelium nach Markus, p. 423.


11 Vários manuscritos uncíais um tanto tardios (N W Δ Θ Ψ ) acrescentam no final
do versículo 3 que “ [Jesus] nada respondia [a Pôncio Pilatos]” (ARC). Essa é quase
com certeza um a adição posterior a fim de acentuar o silêncio dejesus diante de
Pôncio Pilatos.
12 O bserve o discernimento de J. Guillet, The Consciousness of Jesus, trad. E. Bonin
(New York: Newman Press, 1972), p. 209, sobre o silêncio dejesus: “ Ele [Jesus]
565 M a rc o s 15.2-5

E le foi oprim ido e afligido;


e, contudo, não abriu a sua boca;
com o u m cordeiro,
foi levado para o m atadouro;
e, com o um a ovelha que diante de seus
tosquiadores fica calada,
ele não abriu a sua boca (Is 53.7).

A té m e sm o o silêncio de Jesus dá testem u n h o , po is M arcos o b serv a que


P ô n cio P ilatos fica “ im p ressio n ad o ” (gr. thauma^eirt). M arcos c o m en ta p o r
duas vezes o a sso m b ro d e P ô n cio P ilatos (gr. thauma%eiri)\ n o s dois casos,
iro n ica m e n te , essa sen sação é evocada p elo q u e Jesu s faz, e não p elo que diz
— p o r seu silêncio (v. 5) e m o rte (v. 44). M arco s o b se rv a co m frequência o
asso m b ro è perp lexid ad e, em particu lar das m ultidões, dian te das palavras
e ações d e Jesus. O a sso m b ro n ã o é a m esm a coisa q u e fé, em b o ra p o ssa se
to rn a r o p rim eiro passo para a fé. O asso m b ro de P ô ncio Pilatos nessa ocasião
p o d e significar u m a m u d an ça de p e n sa m e n to p ara b u scar lib ertar Jesu s da
m ultidão, pois Jo sefo registra a m esm a reação (gr. thauma^eiri) de Pôncio Pilatos
q u a n d o a m u ltid ão p ro te sta de fo rm a tão co rajo sa em C esareia, resu ltan d o
n a re m o ç ã o das im agens ofensivas de Jeru sa lém (Ant. 18.59).

com toda certeza não se isolou dos homens: durante toda a paixão, não encon-
trarem os nele nem uma palavra sequer de condenação, nenhum gesto de indife-
rença, nenhum m ovim ento sequer de distanciam ento; e essa atitude, ao mesmo
tem po tão natural e tão incompreensível, fala de m odo mais eloquente que “Pai,
perdoa-lhes” (Lc 23.34) sobre quão vasto é o perdão que enche seu coração.
Ele para de falar com os homens, pois não tem nada mais a dizer a eles. Agora
ele se volta para D eus — mas não mais necessitando dar testem unho para ele
nem pedir para ser prom ovido diante dos homens. Isso é m uito diferente dos
profetas e mártires: eles m orrem para dar testemunho, invocam aquele por cujo
nom e sofrem, proclamam a excelência e grandeza dele. Jesus não mais fala sobre
Deus, mas fala com ele. E esse é um diálogo doloroso; tudo que sabemos sobre
essa conversa, até seu último suspiro, trata-se das súplicas angustiadas no Getsê-
mani e o clamor que se levantou da cruz para o vazio. Contudo, esse também é
um diálogo em que o Filho revela verdadeiramente a si mesmo. Pois, para Jesus
se apegar a Deus em meio a esse horror e vazio, m anter os olhos fixos em Deus,
em bora este o prive de qualquer defesa, proteção e alegria, tem de existir entre
Deus e Jesus um elo invulnerável a qualquer ataque, uma confiança inabalável, uma
certeza mais firme e forte que a morte. Agora, no fim, Jesus, exausto e esmagado,
não precisa se voltar na direção de Deus, pois este jamais o abandonou: ele é o
Filho” .
M a rc o s 15.6-7 566

6,7 P ô n cio Pilatos, d e a c o rd o co m 15.6-15, d ecide a b a n d o n a r o caso


co n tra Jesu s e te n ta até m e sm o u sar Jesus, p o r in te rm éd io d a p ro p o s ta de
lib ertar u m p risio n eiro , p a ra o b te r g an h o s p o líticos co m a m ultidão. O p lano
d á errad o, e P ô n cio P ilatos se d ep a ra c o m a m u ltidão alvoroçada em p ro te sto
c o n tra ele, e tu d o isso é u m rem in iscen te d o s p ro te sto s c o n tra ele registrados
em Jo se fo e F ílon. Se alguém ler Jo se fo e F ílo n , ficará p erp lex o co m a viru-
lência da o p o siç ã o d a m u ltid ão a P ô n cio Pilatos. A d escrição d a veem ência
n o p ro te s to c o n tra a c o n stru ç ão d o a q u e d u to 13 é p artic u la rm en te sim ilar à
d escrição d a m u ltid ão n o s versículos 13,14.
O p re te x to q u e P ôncio Pilatos usa a fim de soltar Jesus é que, p o r “ ocasião
d a festa, era co stu m e so ltar u m p risio n eiro q u e o p o v o ped isse” (v. 6). M a-
teus 27.15, M arcos 15.6 e Jo ã o 18.39 m en cio n a esse c o stu m e específicam ente,
e L ucas 23.18 o deixa im plícito. N ã o há, n o en tan to , n e n h u m a evidência
explícita fo ra d o s evan g elh o s p ara a anistia n a Páscoa, c o n fo rm e descrito
aqui, e m b o ra haja u m a b o a q u an tid ad e d e evidência de q u e os g o v ern an tes
libertavam p risio n eiro s d e te m p o s em te m p o s (com frequência pela d u ração
d e u m a festa) ta n to n a so cied ad e judaica q u a n to nas pagãs.14 P ô n cio Pilatos,
c o m o p re fe ito , tin h a au to rid a d e p ara c o m u ta r o u p e rd o a r a sen ten ç a de
q u alq u er crim in o so q u e escolhesse. N o versícu lo 7, o crim in o so p e rd o a d o é
identificad o c o m o u m d o s “ reb eld es” , u m h o m e m q u e c o m ete ra assassinato
“d u ra n te u m a reb elião ” .15 N ã o sab em o s n ada so b re o in cid en te m en cio n ad o ,
m as a referên cia d e M arco s a isso co m o “ λ reb elião” (TEB , g rifo d o autor)
indica q u e essa era co n h e c id a d e seus leitores — e, p o rta n to , te ste m u n h o de
aind a o u tro p ro b le m a afligindo P ô n cio Pilatos. A m u ltidão clam a pelo cri­

13 “Dezenas de milhares de hom ens se reuniram e gritaram contra ele. [...] Alguns
tam bém lançaram até m esm o insultos e agressões do tipo com as quais uma
multidão se envolvería. [...] O s judeus estavam em total torrente de abuso” (An/.
18.60-61).
14 Veja E. Lohmeyer, Das Evangelium des Markus, p. 336-37; e R. M erritt, “Jesus Ba-
rabbas and the Paschal Pardon”, JB L 104 (1985), p. 57-68.
15 N ão podem os dizer com certeza se Barrabás fazia parte ou não do movimento
judaico de libertação (quer dos zelotes ou sicários quer de alguma outra facção).
M. Hengel, TheZealots, trad. D. Smith (Edinburgh: T. & T. Clark, 1989), ρ. 340-41,
acha que provavelmente ele era um rebelde, fundamentado no fato de que Pôncio
Pilatos não libertaria um assassino com um no lugar de Jesus. Acho que o oposto
é mais provável, ou seja, que Pôncio Pilatos prefereria libertar um assassino co-
m um , e não um inimigo do Estado. Marcos chama Barrabás de assassino (phonos,
“com etido assassinato”), um term o que, conform e suponho, não seria usado para
um insurrecionista político.
567 M a rc o s 15.8-11

m in o so co n h ecid o , em vez de Jesus. O n o m e d o crim inoso, B arrabás (v. 7),


significa em h eb raico “ filho d o abba [pai]” . Je ró n im o , ju n to co m o u tro s pais
d a igreja, acreditava q ue o n o m e significava “ filho d o m estre” , o que n ã o é
im possível u m a vez q ue os rabis eram ch am ad o s de “ abba” .16M ateus 27.16,17
acrescenta q u e o n o m e d ad o a esse rebelde é Jesus, o q ue au m en ta o dram a da
p erg u n ta d e P ô n cio Pilatos: “ Q u e m é q u e vo cês q u e re m q u e eu solte: Jesus
B arrabás o u este Jesu s, q ue é ch am ad o d e M essias?” (N T L H ).17 A s palavras
de M arcos p o d e m d e fato c o rro b o ra r d e algum a fo rm a as d e M ateus, pois a
curiosa in tro d u ç ã o d o p risio n eiro em M arco s c o m o “u m h o m e m ch am ad o
B arrab ás” (gr. ho legomenos) parece d iferen ciar esse B arrabás d o verdadeiro
“ F ilh o d o Pai” , Jesus. H á u m a trágica iro n ia n a anistia d e P ô n cio Pilatos, pois
u m crim in o so c o n d e n a d o é livre, e, em seu lugar, o in o cen te F ilh o d o Pai é
co n d e n a d o à m o rte. N ã o é difícil v e r n essa tro c a de p risio n eiro s u m reflexo
d a co m p re e n sã o vicária da expiação: “ C risto m o rre u em n o sso favor q u an d o
ainda éram os p ecad ores” (Rm 5.8); “ Pois tam b ém C risto sofreu pelos pecados
u m a v ez p o r todas, o justo pelos in ju sto s” (lP e 3.18).

8 1 1 ‫ ־‬M arco s m en cio n a de passag em q u e a “ m u ltid ão ch eg o u e p ed iu


a P ila to s” . C opistas p o sterio re s m u d ara m a leitu ra p ara aquela que parecia
m ais ap rop riad a: “ E a m ultidão, dando gritos, c o m e ç o u a p ed ir” (ARC; g rifo
d o a u to r).18 N ã o o b stan te, “ ch e g o u ” é p ro v a v elm en te a leitura original e um
ind ício p a ra a localização d o P re to rio (veja so b re o te rm o n o v. 16). Jesu s,
d e ac o rd o c o m J o ã o 19.12, foi julgado p o r P ô n c io P ilatos n o local ch am ad o
“ P av im e n to d e P e d ra” , e a palavra aram aica p a ra esse te rm o é G áb ata, cujo
sen tid o é “ p o n to alto ” . O palácio d e H e ro d e s estava situ ad o em u m m o n te
p ro em in e n te d e Jerusalém o n d e a m ultidão “ ch egou” diante d e P ô n cio Pilatos.
A m u ltid ão , se g u n d o a N V I, ch eg o u e p e d iu a “ P ô n c io P ilatos q u e lh e fizesse

16 “Barrabás [...] é interpretado no dito evangelho de acordo com os hebreus como


‘filho do mestre deles’ ” {Com. On Matt TI :16; citado em NTApocW d).
17 Veja Metzger, TCGNT, p. 67-68; M. Wilkins, “Barabbas” ,,4 B D 1.607.
18 Em bora anaboésas ho ochlos (“a multidão, dando gritos” ; A R Q seja atestado por uma
maioria de manuscritos (8bA C K W X Δ Θ Π Ψ , mais muitos outros minúsculos)
é m enos provável que seja a leitura original do que anabas ho ochlos (“A multidão
chegou”; ‫ א‬B), porque não há outra ocorrência de anabocin em Marcos, ao passo
que há nove ocorrências de anabainein. Veja Metzger, TCGNT, p. 117. Além disso,
a leitura “dando gritos” (ARC) é mais facilmente explicada: não entendendo o fato
de a multidão chegar2.0 Pretorio, os escribas substituíram pelo mais óbvio, “dando
gritos” (ARC).
M a rc o s 15.8-11 568

o qu e c o stu m av a fazer” . E ssa é u m a trad u ção u m ta n to in terp re tativ a d e um


original g reg o o b sc u ro , “ q u e lhe fizesse o q u e co stu m av a fazer” (v. 8). É
ev idente q u e a m u ltid ão apela a P o n d o P ilatos p ara lib ertar u m prisioneiro
n a Páscoa, d e a c o rd o c o m o c o stu m e dele.19
P ô n cio P ilatos, c o n se q u en tem en te, p erg u n ta se a m u ltid ão q u e r so ltar o
“ rei d o s ju d e u s” . M arco s acrescen ta ed ito rialm ente q ue P ô n cio P ilatos sabia
que a p risão d e Jesu s fo ra incitada pela inveja. E ssa é a única o co rrên c ia de
inveja (gr. phthonos) n o s evangelhos (com exceção d o tex to paralelo em M t
27.18). A inveja é p esa r o u raiva cau sad o p elo sucesso d o o u tro .20 E sse é
o u tro te ste m u n h o rev erso d a p o sição exaltada e d a in teg rid ad e de Jesus, o
q u e leva o su m o sacerd o te a invejar Jesus, re su ltan d o n a prisão de Jesu s e da
en tre g a dele p a ra P ô n cio Pilatos. N o ju lg am en to d ian te d e P ô n cio Pilatos, a
o p o sição a Jesu s é fo m e n ta d a e liderada pelos “ chefes do s sac erd o tes” .21 A

19Duas variantes textuais tentam deixar mais explícito o que Marcos aparentemente
sugere. Três uncíais (A C D) trazem: “o que ele sempre estava fazendo” , cujo
sentido é seguido pela N V I, “o que costumava fazer” (grifo do autor). Koridethi
(Θ), do século IX, explica com mais detalhes a implicação de Marcos “com o era
o costume, Pilatos soltasse um preso” (NTLH). As duas variantes, sem dúvida,
são mudanças posteriores com intenção de esclarecer as palavras obscuras.
20 Veja A. C. H agedorn e J. H. Neyrey, ‘“It was out o f envy that they handed Jesus
over’ (Mark 15:10): T he Anatom y o f Envv and the Gospel o f Mark” , ISNT 69
(1998), p. 39-40.
21 Há 21 referências ao chefe dos sacerdotes no evangelho de Marcos, todas, ex-
ceto cinco delas, nos capítulos 14— 15, e cada uma delas em oposição explícita
a Jesus. H á um núm ero comparável de referências (dezenove) aos mestres da lei
em Marcos, mas apenas seis delas ocorrem nos capítulos 14— 15. Essa estatística
m ostra que a responsabilidade pela prisão e julgamento de Jesus é da corte do
chefe dos sacerdotes. O s evangelhos se referem com regularidade ao chefes dos
sacerdotes no plural, em bora houvesse apenas um sumo sacerdote governante
à época, eleito anualmente. O plural se deve ao fato de que os sumos sacerdotes
anteriores retinham o título e a autoridade do cargo. Especialmente influente era
Anás (Lc 3.2; Jo 18.13,24), sumo sacerdote de 6 a 15 d.C., que tinha cinco filhos
que mais tarde se tornaram sumos sacerdotes (Josefo, Ant. 20.198). Houve três
outros sumos sacerdotes (Ismael, Eleazar e Simão) entre o sumo sacerdócio de
Anás e o sumo sacerdócio de Caifás, genro de Anás (Jo 8.13), o sumo sacerdote
na época da m orte de Jesus (18-36 d.C.). O term o “chefe dos sacerdotes” poderia
incluir uma meia dúzia de sum o sacerdotes, além dos m embros influentes de sua
família, compreendendo assim um considerável bloco de poder. Para uma discussão
do papel de Caifás na execução de Jesus, veja Flusser,/m j·, p. 195-206. Para uma
discussão sobre o chefe dos sacerdotes em geral, veja J. Jeremias, Jerusalém in the
Time of Jesus, trad. F. H. e C. H. Cave (London: SCM Press, 1969), p. 147-81.
569 M a rc o s 15.12-14

o p o sição a Jesu s na G aüleia, de aco rd o co m M arcos, veio em g ran d e p a rte d os


m estres da lei e d o s fariseus; e, assim q ue ch e g o u a Jerusalém , d o Sinédrio.
N o en tan to , n a verdade, a prisão e ju lgam ento d e Jesus, co n fo rm e esclarecem
os versículos 10,11, fo ram de fato resp o n sab ilid ad e d o su m o sacerdote.22 O s
su m o s sacerd o tes dificilm ente eram re p re se n ta n te s d o judaísm o farisaico,
isso para n ã o m e n c io n a r a esm ag ad o ra m aio ria d o s judeus co m u n s, o “p o v o
da te rra ” ; ao co n trá rio d o s ricos saduceus q u e sabiam c o m o co lab o rar co m
R om a. E b asta n te in teressa n te o b se rv a r q u e o h isto ria d o r judeu, Jo se fo ,
refere-se várias vezes aos p ro te to re s de P ô n c io P ilatos co m o “ os jud eu s” ,
m as M arco s é m ais específico e objetivo: os p rim eiro s im p u lsio n ad o res n o
ju lgam ento e p risão de Jesu s são os su m o s sacerd o tes, que “ in citaram ” (v.
11) ou in stig aram a m u ltidão a p ed ir a lib ertação de B arrabás.

12-14 P ô n cio Pilatos in terced e três vezes em favor de Jesu s (15.9,12,14).23


A sug estão d e q u e M arcos está “ re in v e n ta n d o ” P ô n cio P ilatos com o in tu ito
d e ex o n e rar o g o v e rn a n te ro m a n o e d ifam a r os judeus é to talm e n te sim plista
e d e m o n stra falta de p ersp ectiv a histórica.24 O co m a n d a n te da o cu p ação ro-

22 A referência aos “chefes dos sacerdotes” está ausente no Vaticanus (B), mas isso
se deve provavelmente à tentativa de melhorar o estilo por parte de um copista
posterior, uma vez que a expressão ocorre imediatamente após o início do versí-
culo 11 (veja M t 27.18). A referência aos “chefes dos sacerdotes” no versículo 10
é quase certeza, e no versículo 11 totalmente certeza.
23 A condição textual da pergunta de Pôncio Pilatos no versículo 12 é particularmente
incerta. Uma maioria dos manuscritos inclui: “O que vocêsquerem que eufaça [...] ?”
(NTLH, grifo do autor), na primeira parte do versículo. Sua omissão é apoiada por
um grupo m enor, mas de peso, de manuscritos (‫ א‬B C W Δ Ψ ). N a última metade
do versículo 12, “a quem vocês chamam” é mais uma vez questionável, sendo
om itido por A D W Θ. Para a discussão das variantes, veja Metzger, TCGNT, p.
117-18. As duas adições afastam a responsabilidade de Pôncio Pilatos e apontam
para os judeus, as quais poderíam argumentar em favor de sua natureza secundária,
uma vez que a tradição tardia incriminou os judeus como o grupo responsável
pela m orte de Jesus.
24 E muitíssimo improvável, conforme sugerem alguns, que Pôncio Pilatos tenha
apelado pela libertação de Jesus só para irritar os judeus a quem desprezava.
Se você se encontrar fechado em uma jaula com um leão, você não gostaria de
irritá-lo. Pôncio Pilatos conseguiu irritar os judeus, mas isso não foi intencional;
ele não tinha necessidade de fazer isso de forma intencional. Ainda mais longe
da verdade é a sugestão sem fundamento de que o julgamento de Jesus diante de
Pôncio Pilatos é uma ficção. A execução de Jesus nas mãos de Pilatos está em
todos os quatro evangelhos, em camadas múltiplas e variadas da tradição cristã
M a rc o s 15.12-14 570

m ana n a estre p ito sa Ju d e ia enfrentava realidades políticas que eram m ais sutis
e voláteis d o q u e se avalia c o m frequência. P ô n cio Pilatos, co m certeza, tinha
p o d e r p ara fav o recer Jesu s, m as, d o p o n to de vista político, se essa era urna
atitud e sábia é o u tra questão. P ô n cio Pilatos, em geral, desprezava os sujeitos
judeus, m as n e m m e sm o os ditadores p o d em d esco n sid erar co m p letam en te a
v o n ta d e d e seus sujeitos.23*25N ã o co n h e cem o s a m e n te de P ô n c io P ilatos, m as
M arcos — e este é seguido aqui pelos o u tro s três evangelistas — indica que
P ô n cio P ilatos fo m en ta dúvidas sobre a necessidade da execução de Jesu s (w .
10,14). N ã o o b sta n te , P ô n c io Pilatos parece te r co n c lu íd o que Jesu s pu d esse
ainda te r algum v a lo r político. O fato de q u e desejava “ agradar a m u ltid ão ” (v.
15) in dica o Realpolitik subjacente, o u seja, a disp osição de sacrificar u m pri-
sio neiro in o c e n te p o r causa d e conveniência e segurança políticas. Q u alq u er
q u e fo sse a estratégia d e P ô n cio Pilatos, o g o v e rn a d o r ro m a n o se to rn a o
g ru p o secu n d ário n a m o rte d e Jesus. O s chefes d o s sacerd o tes instigaram a
co n sp ira ção c o n tra Jesus, m as o p refeito ro m a n o tem resp o n sab ilid ad e p o r
te r levado a ca b o essa con sp iração .26
N a cena d o julgam ento, c o m o em o u tro s textos d o evangelho d e M arcos,
so m o s c o n fro n ta d o s c o m as ironias inevitáveis. P ô n cio Pilatos, q u e com eça
b u sc a n d o anistia p a ra Jesus, acaba b u sca n d o -a p ara si m esm o. O s sujeitos

primitiva e tam bém no Credo dos Apóstolos. Ela também é atestada por Tácito
{Ann. 15.44), historiador rom ano, e p or Josefo (An/. 18.63-64), historiador judeu
que coloca seu famoso testem unho de Jesus em meio a sua discussão sobre Pôncio
Pilatos.
25 Um novo desenvolvimento talvez tenha desempenhado um papel na decisão de
Pôncio Pilatos. Tibério seguira anteriorm ente a política antijudaica de Sejano, seu
ministro influente, que tam bém era protegido de Pôncio Pilatos. Q uando Sejano
m orreu em 31 d.C., Tibério abraçou uma política judaica muito mais favorável
(Fílon, Sobre a embaixada a Gaio, p. 159-60). Se Jesus foi crucificado após a m orte
de Sejano, Pôncio Pilatos, conform e seu próprio interesse político, teria de aplacar
os judeus se fosse para perm anecer no favor de Tibério. A “devoção estalinista
[de Pôncio Pilatos] a Tibério” (como em D. Flusser, Jesus, p. 160-62) garantiría
que Pôncio Pilatos adotasse e defendesse as políticas de Tibério ()o 19.12!).
26 Bond, Pilate in History and Interpretation, p. 94-119, faz objeção à afirmação de que
Pôncio Pilatos era um governador fraco que cedia à pressão pública. Ela o vê
com o um “político habilidoso, manipulando a multidão para evitar um a situação
potencialmente perigosa, e um firme representante dos interesses imperiais” (p.
117). Essa parece ser um a boa descrição da form a com o Pôncio Pilatos via a si
mesmo, mas não descreve seu efeito no julgamento de Jesus em que ele provocou
a multidão, em vez de acalmá-la, encontrando-se mais uma vez em um a situação
perturbadora em que tinha de reagir à multidão.
571 M a rc o s 15.15

judeus, p o r su a vez, cuja tarefa é o b ed ecer, afirm a m sua v o n tad e e g an h a m o


dia. O go v ern ad o r, p o r conseguinte, é estra n h am en te governado. O so b eran o
livre (ob serv e os p ro n o m e s n a prim eira p esso a d o singular nos w . 9,12) perde
sua liberd ad e p ara as forças que p re su m e co n tro la r, ao p asso que Jesus, o
p risio n eiro silencioso q u e n ão tem n e n h u m co n tro le , p erm a n ece verdadeiro
a seu p ro p ó sito d ivinam ente o rd en ad o , p e rm a n e c e n d o desse m o d o verdadei-
ra m e n te livre. A descrição d o ju lg am en to d e Jesu s d ian te de P ô n cio Pilatos
re m e m o ra a descrição d a d ecap itação de J o ã o B atista p o r H e ro d es A ntipas
(6.14-29): H e ro d e s A n tip as e P ô n cio P ilatos são dois p o te n ta d o s im p o ten tes;
ta n to H e ro d ias q u a n to os chefes d o s sacerd o tes são agentesprovocadores·, Jo ão
B atista e Jesu s ficam os dois em silêncio e indefesos.

15 A '“ m u ltid ão ” , q ue d e se m p e n h a u m p ap el p rincipal em M arcos (veja


m ais so b re o te rm o em 2.2), d e se m p e n h a mais u m p ap el na crucificação.
P ô n cio Pilatos, d e fo rm a distinta d e Jesu s q u e serve a m ultidão, m as n ão é de-
term in a d o p o r ela, sucum be, p o r fim , a ela. “D esejand o agradar a m u ltidão” ,27
P ô n c io P ilatos solta B arrabás. F az c o m q ue Jesu s seja açoitado e o entrega à
crucificação. O açoitamento era u m a p re p ara ção cruel e sem m isericórdia
p ara a crucificação. O N o v o T e sta m e n to n ão m o stra n e n h u m a inclinação
p ara fazer sensacionalism o n o relato d a paixão de Jesu s re c o n ta n d o seus
h o rro res. N o N o v o T estam ento, esse c o m ed im en to e discrição, p o d e m deixar
os leito res m o d e rn o s sem a m e n o r n o ç ã o d a selvageria q u e n ão só precedia
a crucificação, m as tam b é m o c o rria d u ra n te essa p u n ição d e m o rte. Jo se fa
(Guerra 2.306) afirm a q u e o prisioneiro, c o m o u m p re lú d io à crucificação,
era d e sp id o e am arrad o a u m p o ste p ara ser aço itad o c o m u m ch ico te tecido
co m p ed a ço s de o sso e ferro.28 N ã o se p rescrev ia n e n h u m n ú m e ro m áxim o
de açoites. O aç o ita m e n to lacerava a pele e arran cava p ed aço s, e x p o n d o co m
frequ ên cia os o sso s e as en tran h as. U m d o s p ro p ó sito s desse castigo era
d im in u ir o te m p o d a crucificação, m as os golpes eram tão brutais q u e alguns
p risio n eiro s m o rria m antes de ch eg ar à cruz. A s m u lheres eram isentadas
d e so fre r esse castigo o u d e p re sen ciar o flagellum, pois este, de ac o rd o co m
S u etô n io (.Domiciano 11), chegava até m e sm o a h o rro riz a r o im p e ra d o r D o -

27 O grego to hikanonpoiêsai (“satisfazer”) é outro latinismo (satisfacere). Veja BDF, p.


6.
28 Suetônio, Lives of the Caesars, “Gaio Caligula” , 4.26, descreve o açoitamento desta
maneira: “ [Caligula] açoitou o magistrado acusado de conspiração, drando as
roupas do hom em e estendendo-as sob os pés dos soldados para que tivessem
os pés bem firmados enquanto o açoitavam” .
M a rc o s 15.16 572

m itian o . F oi a esse ap av o ran te verberatio, flagelo, q u e Jesu s foi en treg u e n o


versículo 15.29 M arcos, m ais u m a vez, afirm a q u e Jesus foi “ entregufe]” , ou
seja, o q ue foi feito p o r p erv ersid ad e era ainda assim feito “ p o r p ro p ó sito
d ete rm in a d o e p ré -c o n h e c im e n to de D e u s ” (A t 2.23).

O E S P A N C A M E N T O E A Z O M B A R IA ( l5 .1 6 -2 0 a )

A ú ltim a p re d iç ã o d a p aix ão (10.33,34) é a m ais específica das três


co m re sp eito aos d etalh es d o so frim en to d e Jesus. A prim eira m etad e des-
sa p re d iç ão fala so b re o p ap el d o S inédrio n a “ en tregja]” de Jesus (10.33),
ev en to s esses relacio n ad o s e cu m p rid o s em 14.53-65. A segunda p a rte da
p red iç ão fala co m ainda m aio r detalhe d o papel do s “g en tio s” . C ada detalhe
— o “ en tre g jarj” (1 0 .3 3 /1 5 .1 5 ); a “ zom ba[ria]” (1 0.34/15.20); o “ cuspi[rj”
(10 .3 4 /1 5 .1 9 ) e o “ açoitafr]” (10.34/15.15) — é c u m p rid o n o julgam ento
d e Jesu s d ian te d e P ô n cio P ilatos e n o aç o ita m e n to p elos soldados rom anos.
T a n to os líderes ju d eu s q u a n to os soldados ro m an o s su rraram Jesu s (14.65;
15.19), m as em n e n h u m a das duas ocasiões a ênfase recai n o so frim en to físico.
A ntes, en fatiza-se o escárn io e a zo m b aria c o n tra Jesus, e m b o ra c o m esta
diferença: d ian te d o Sinédrio, foi a posição divina d e Jesus q u e foi satirizada
(“ Profetize!” , 14.65), ao p asso q u e diante d o s ro m a n o s foi sua p o sição real
e perfil p o lítico q u e foi ridicularizado (“ Salve, rei d o s judeus!” , v. 18).30 A
am arga iro n ia d e M arco s persiste: os soldados, ap esar d e sua in ten çã o jocosa,
reco n h ec em ta n to em palavras (v. 18) q u an to em ações (v. 19) a v erdadeira
iden tid ad e d e Jesus. A h u m an id ad e , até m esm o em rebelião c o n tra D eu s,
ainda assim testem u n h a d e D eus!

16 Jesu s, assim q u e foi en tre g u e aos soldados, é levado ao P reto rio e


m altratad o p o r “ to d a a tro p a ” . A palavra para “ to d a a tro p a ” (gr. speirà) é u m
te rm o g re g o m ilitar p ara o te rm o latin o cohors, u m d écim o da legião ro m an a,
o u cerca d e seiscen to s soldados. O Pretorio refere-se p rim eiro à elite de
so ldados q ue eram guardas p esso ais d o p re feito e d ep o is ao local o n d e esta-
vam ag rup ad o s. A localização desse p réd io é m u ito debatida. O s visitantes
em Jeru sa lém h o je v eem em geral o Lithostratos, o “ P av im en to ” , so b o C o n -
v e n to das Irm ã s d e Sião, n a tradicional Via D o lo ro s a (cam inho das dores).
A firm a-se co m freq u ên cia q u e o calçam en to g asto d e ped ra, n o qual antigos

29 Veja C. Schneider, “mastigoõ”, 7XW 7'4.515-19.


30 L. H urtado, Aforé,N1BC (Peabody, Mass.:HendricksonPublishers, 1983), p. 261-
62.
573 M a rc o s 15.16

en talh es ainda p o d e m ser vistos, é o p iso d o P re to rio na F ortaleza A n to n ia


o n d e Jesu s foi z o m b a d o e su rra d o pelo s so ld ad o s ro m anos. O local é de fato
m u ito antigo, m as p ro v av elm en te n ã o d ate de antes de A d riano (im perador
ro m an o , 117-38 d.C.) n e m d e H e ro d es A g rip a I (41-44 d.C.), a data m ais re-
m o ta , e, p o r co n seg u in te, n ão é o “ P av im en to ” (Jo 19.13) d o julgam ento de
Jesus. É até m esm o d u v id o so que o P re to rio estivesse localizado n a F ortaleza
A n to n ia. O g o v e rn a d o r ro m an o , em geral, residia em C esareia M arítim a,
m as sua p re sen ça era exigida em Jeru sa lém d u ra n te as festas (em particular
a Páscoa) q u a n d o os p ereg rin o s in u n d av am a cidade c o m o raçõ es — e algu-
m as vezes p lan o s — pela libertação de R om a. N ã o há n e n h u m a evidência de
q u e H e ro d e s, o G ra n d e, o u os p re feito s ro m a n o s q ue o sucederam , te n h a se
h o sp e d a d o na F o rtaleza A n to n ia q u a n d o estava em Jeru salém . E les ficavam
n o palácio h ero d ian o , co m eçad o p o r H e ro d e s em 23 a.C., sen d o m aio r e
m ais lu x u o so q u e a F o rtaleza A n to n ia. Jo se fo n ão tin h a palavras adequadas
p ara d esc rev e r o esp len d o r daquele palácio e n o rm e e p ró d ig o de H ero d es,
“ c o m d o rm itó rio s p ara cem h ó sp e d e s” (Guerra 5.177-83; Ant. 15.318). T an to
F ílo n q u a n to Jo se fo localizam os g o v e rn a d o re s ro m a n o s aü.31 O evangelho
de J o ã o (19.13) o b serv a q ue o ju lg am en to d ian te d e P ôncio P ilatos o c o rreu
em “ G á b a ta ” , cujo sen tid o em aram aico é “ p o n to alto ” . O palácio de H ero -
des ficava so b re o p ro e m in e n te m o n te o cid en tal de Jeru salém (onde h oje se
e n c o n tra a P o rta Jaffa), o q ue p o d e explicar a referên cia de M arcos ao fato de

31 Fílon localiza Pôncio Pilatos específicamente no palácio de Herodes (Sobre a


embaixada a Gaio, p. 299), Josefo descreve Floro, o último governador antes da
revolta judaica (64-66 d.C.), tanto residindo no palácio quanto tendo julgamentos
ali, similares ao julgamento de Jesus por Pôncio Pilatos ( Guerra 2.301; 2.328; tam-
bém Ant. 17.222). Veja Str-B 1.1,035; J. M urphy-O ’Connor, ‘T h e Geography o f
Faith: Tracing the Via D olorosa”, BRev 1 2/6 (1996), p. 34; E. Schürer, Historj of
theJewish People, 1.361-62. Bargil Pixner, contra o palácio de Herodes, argumenta
com base na antiga tradição cristã que o Pretorio era um antigo palácio asmoneu
que ficava a meio caminho entre o palácio de Herodes e Antonia na encosta do
vale do Tiropeon, do outro lado da extremidade sul do m onte do templo. Veja B.
Pixner, “Praetorium ”,ABD 5.447-48; R. Riesner, “Das Praetorium des Pilatus” ,
BibLeb 41 (1986), p. 34-37. O fato de a tradição cristã não identificar o palácio
de Herodes com o o Pretorio é a principal razão pela qual Pixner rejeita essa
possibilidade. Considerando-se que a legião rom ana ocupava o palácio depois da
derrota em Jerusalém em 70 d.C., não deveriamos ficar surpresos com o fato da
tradição cristã ter concordado sobre um local acessível (i.e., o palácio asmoneu)
no qual celebrar o flagelo. O testem unho com binado de Fílon e Josefo argumenta
em favor do palácio de Herodes, uma visão oposta à de Pixner.
M a rc o s 15.17-20 574

que a m u ltid ão “ su b iu ” (15.8; T E B ) até P o n d o Pilatos. A lém disso, o greg o


aull (v. 16), co m o sen tid o d e “ p átio ” (TB), (N V I, “palácio”), n ão é u sad o
p ara se referir à F o rtalez a A n to n ia, m as p ara m e n c io n a r c o m frequência o
átrio real d o p alácio d e H erodes. O p átio d o palácio de H e ro d es é o local
m ais provável d o flagelo de Jesus.

1 7 ,1 8 O s so ld ad o s, em u m a brincadeira m acab ra, co b rem Jesu s co m u m


m an to de p ú rp u ra , roxo, e o co ro am co m u m a c o ro a de espinhos. A p ú rp u ra,
a m ais cara e prestigiosa tin tu ra da A ntiguidade, sim boliza a realeza.32A coroa,
n o rm a lm e n te feita d e folha de ouro, significava realeza o u valor militar. A co-
ro a d e Jesu s é u m a p aró d ia d o lo ro sa tecida co m ram o s esp in h o so s d e acanto,
p lan ta c o m u m n a região m ed iterrân ea. A saudação: “ Salve, rei d o s judeus!” ,
é u m a p aró d ia d a saudação a C ésar: “Ave C ésar, im p e ra d o r v ito rio so ” . E ssa
p aró d ia é em p rim eiro lugar u m a zo m b aria de Jesus, m as, em u m sen tid o
m en o r, é ta m b é m u m a zo m b aria d o s judeus. M arcos, antes d o aço ita m e n to
d e Jesu s, o b se rv a a zo m b aria d o s soldados q u e ridicularizam Jesus.33

1 9 ,2 0 A p o sse d o p o d e r carrega co m ela a inevitável ten taç ão d e usá-lo


mal. O e m p o d e ra m e n to d o s soldados e a debilitação de Jesus in citam os
soldado s a p a rtir d a z o m b aria p ara a violência. Jesus é g o lp ead o na cabeça
co m u m a “vara” , o u kalamos em grego, u m a palavra g enérica p ara “ju n c o ” .
O s p â n ta n o s ao lo n g o d o rio J o rd ã o e a co sta o este d o m a r M o rto p ro d u z em
u m a b o a co lh eita d e p ap iro , u m tip o de junco, que se assem elha ao talo do
b am b u jovem . Se esse fo r o sen tid o d o term o , u m a vara o u ra m o está em
vista. N o g re g o clássico, kalamos p o d e significar a h aste de u m a flecha que,
co n sid eran d o -se o cenário, p o d e m u ito b em ser o sen tid o d o te rm o aqui. A
brutalidad e e a ban alid ad e d o s so ld ad o s re p ete o tra ta m e n to d ad o antes a
Jesu s n o S inédrio (14.65).34

32 A sugestão de que Jesus estava envolto em um manto vermelho de um soldado


rom ano não é apoiada pelas palavras do texto. Marcos especifica “um m anto de
púrpura” (porphyra), roxo, e não vermelho {chlamys kokkine).
33 Fílon, Flaccus 36— 39, relata a história de um lunático que foi zom bado por uma
multidão que o enrolou em tapete que representava um manto real, pondo uma
coroa de mentira sobre sua cabeça e um cajado de papiro nas mãos para ser seu
cetro. O utros se juntaram à farsa teatral ao saudá-lo e chamá-lo de “senhor” .
34 O Evangelho de Pedro 6— 9 segue de perto o espancamento e zombaria de Jesus
em Marcos, com a exceção de que Jesus é zom bado com o o Filho de Deus bem
com o Rei dos judeus. Observe tam bém a descrição de Platão sobre o destino
575 M a rc o s 15.17-20

O s golpes, as cu sp arad as e a falsa reverência (v. 19) são prelú d io s do


so frim e n to ain d a m ais h o rrív el — a crucificação p o r vir. O p elo tão d e exe-
cução ro m a n a co n sistia d e q u atro so ld ad o s e era su p erv isio n ad o p o r u m
centurião , u m co m a n d a n te de cem soldados. E sse p e lo tão leva Jesu s p ara o
local d a crucificação (v. 20). A figura d e Jesu s, suja de sangue e ridicularizada,
re m e m o ra m ais u m a vez o serv o s o fre d o r d e Isaías:

O fereci m inhas costas


àqueles que m e batiam ,
m eu ro sto àqueles
que arrancavam m inha barba;
não escondí a face da zom baria
e dos cuspes (Is 50.6).

A C R U C IF IC A Ç Ã O ( 15 . 20b 32 ‫)־‬

O s p rim eiro s cristãos, ao refletir so b re a crucificação de Jesus, en co n tra-


ram n o so frim e n to d o h o m e m justo, p artic u la rm en te d escrito n o s salm os 22
e 69, Isaías 53 e S abedoria 2, a su p re m a p refig u ração d o d estin o d e Jesus. O
v in h o m istu ra d o c o m m irra, u m a b eb id a so p o rífera, oferecid o à Jesus antes
d a crucificação (v. 23) ecoa Salm os 69.21: “ P u sera m fel n a m in h a co m id a e
p ara m atar-m e a sed e d eram -m e v in ag re” . A divisão das ro u p as d e Jesus (v.
24) cu m p riu Salm os 22.18: “ D iv id iram as m in h as ro u p a s en tre si, e lançaram
so rtes pelas m in h as v estes” . O b alan çar d a cab eça em escárnio (v. 27) cum -
p riu Salm os 22.7,8: “ C aço am d e m im to d o s os q u e m e veem ; b alan çan d o a
cabeça, lan çam in su lto s c o n tra m im , d izen d o : ‘R eco rra ao S e n h o r ! Q u e o
Se n h o r o liberte! Q u e ele o livre, já q u e lhe q u e r bem !’ ” (veja tam b ém SI
109.25; L m 2.15). S o b retu d o , a zo m b aria p ara “ desfcer] d a cru z, p ara que o
v ejam o s e creiam o s” (v. 32) faz paralelo c o m a z o m b aria so frid a p elo h o m em
ju sto e so fre d o r em S abedoria 2.17,18: “V ejam os, pois, se suas palavras são
verdadeiras e v erifiquem os c o m o ele vai term inar. Se o justo é filho de D eus,
este h á d e v ir em seu so c o rro e o arran c ará às m ãos d e seus adversários”
(ΙΈ Β ). E ssas passag en s e o u tras c o m o elas influenciaram a fo rm a c o m o a
igreja prim itiva co m p re en d ia a m o rte d e Jesus, b em co m o os d etalhes que
eram re le m b rad o s e a linguagem n a qual sua m o rte foi apresentada.

do indivíduo justo em A república 2.5 (século IV a.C.), “o hom em justo terá de


enfrentar o açoite, a tortura, as correntes, o ferrete nos olhos e, por fim, depois
do sofrim ento em todas as extremidades, será crucificado” .
M a rc o s 15.20b 576

20 b “ E n tã o o levaram p ara fora, a fim d e crucificá-lo.” M arcos, com


total ob jetividade e sem n e n h u m traç o d e jo g ar c o m as em o çõ es d o leitor,
anuncia a crucificação, a “ p u n ição m ais h o rre n d a e cru el” , nas palavras de
C ícero.35 T o d o reg im e to talitário precisa d e u m ap a rato d e terro r, e a cru -
cificação era o a p a rato d e te rro r ad horrenâum d e R om a, in fam e ta n to pela
d o r infligida q u a n to p ela ignom inia d a vítim a. “ S em p re q u e cru cificarm o s a
culpa, as estrad as m ais p o v o ad as são escolhidas, o n d e as p esso as p o d e m ver
esse m e d o e ser to cad as p o r ele” , ap ro v o u Q u in tilian o (Declamationes 274). A
cru cificação era u m a p u n ição reservada aos cidadãos n ão ro m a n o s em q u e a
cru eld ad e excessiva era liberada so b re as classes m ais baixas e m ais vulnerá-
veis d a so cied ad e — escravos, crim inosos v io len to s e p risio n eiro s d e guerra.
C rasso, n a d e rro ta da rebelião escrava so b E s p á rta c o em 71 a.C., o rd e n o u
q u e m ais de seis m il escravos fo ssem crucificados ao lo n g o d a V ia Á pia, en tre
C áp u a e R om a. A s vítim as, p ara au m en ta r a v erg o n h a (H b 12.2) e o efeito
in tim id an te d a crucificação, eram executadas c o m o u m esp etácu lo público, e
os h o m e n s em geral eram crucificados nus, c o n fo rm e atestam o so rteio pelas
vestes d e Jesu s (e m b o ra as sensibilidades judaicas p o ssam te r p ro v id o u m
p a n o p ara c o b rir o quadril).36 T am p o u c o , a crucificação era infligida apenas
em ho m en s; as m ulheres, em particular as escravas e m ulheres das classes mais
baixas, tam b ém p o d ería m so fre r os h o rro re s d a crucificação.37A cruz, n a arte
e joias d o O c id e n te , to rn o u -s e u m sím b o lo fixo, m as, d e ac o rd o co m Jo sefo
(1Guerra 5.449-51), d u ra n te o ce rco de Jeru salém , os ro m an o s crucificaram
cativos dian te d o s m u ro s d a cidade, crucificações em diferentes p o siçõ es e
m aneiras, d e a c o rd o co m a in v entividade sadista deles. E m 1968, u m a equipe
d e arq u eó lo g o s israelenses d esc o b riu u m sep u lcro em Jeru salém revelando
a prim eira evidência au ten tica d a d e u m a crucificação n a A ntiguidade. N e ssa
ocasião e m particular, parece q u e os b raço s d o c o n d e n a d o fo ram am arrados,
e n ão p re g ad o s, a o patibulum (viga da cruz), e q ue as p e rn as d a vítim a ficaram

35 Vèrrine Orations 2.5Λ65. Para essa e outras críticas contra a crucificação por autores
da Antiguidade, veja M. Hengel, Crucifixion in the Ancient World and the Folly of the
Message of the Cross, trad. J. Bowden (Philadelphia: Fortress, 1977), p. 7-10.
36 Sobre a vergonha da crucificação, observe as palavras de Cícero: “a própria palavra
‘cruz’ deveria ser removida não só da pessoa de um cidadão romano, mas também
de seus pensam entos” (In Defense of Rabirius 5.15-16 [citado em HCNT, p. 157]).
37 K. Corley, “W omen and the Crucifixion o f Jesus”, Forum (novas séries) 1 (1998),
p. 189.
577 M a rc o s 15.20b

em to rn o d o tronco (a to ra vertical), u m a p e rn a de cada lado, co m u m preg o


p e n e tra n d o lateralm en te o o sso d e am b o s os calcanhares.38
D e p e n d e n d o d a severidade d o aç o ita m e n to antes da crucificação, al-
gum as vítim as sobreviviam vários dias nas cruzes. A m o rte , um a vez que
n en h u m a artéria fosse seccionada, n ã o o c o rria pela p erd a de sangue, m as
d o ch o q u e hip o v o lêm ico , da asfixia p o r ex au stão o u p o r parada cardíaca,
o u ainda u m a c o m b in aç ão de to d o s eles.39 A crucificação era um a fo rm a
m e d o n h a e h o rrip ilan te d e m o rte: d o lo ro sa m e n te excruciante, longa e social-
m en te deg rad an te. O p en sa m e n to de q ue o M essias de D e u s p u d esse so frer
“ a v e rg o n h a ” d a c ru z (H b 12.2) era algo tão escan daloso cerca de 25 anos
m ais tard e q u e Paulo co n fesso u q ue a p re g açã o de u m M essias crucificado
era “ escân d alo p ara os judeus e lo u cu ra p ara os g e n tio s” (IC o 1.23). N o
século II d.C ., Basilides, u m g n óstico, ficou tão h o rro riz a d o com a ideia de
um M essias cru cificad o q ue in v en to u a n o çã o d e que Sim ão de C irene — e
n ão Jesu s — m o rre u n a cruz!40 E v an g elh o s ap ó crifo s p o sterio re s tendiam a
sep a rar Jesu s d a horrível experiência d a crucificação.41 M arcos, n o entanto,
ad m ite essa terrível realidade, m as sem sensacionalism o nem sentim entalism o.
O p ro p ó sito desse evangelista é enfatizar o q ue a crucificação de Jesus realizou
e como isso ac o n te ceu , fato s m u ito b em re su m id o s p o r M artin H egel: “D eus,
n a m o rte de Jesus d e N azaré, identifica-se co m o ex trem o da indignidade
h u m a n a , in d ig n id ad e essa q ue Jesu s s u p o rto u c o m o re p re se n ta n te de to d o s
nós, a fim d e n o s trazer à lib erd ad e d o s filhos d e D eus:

A q uele que não p o u p o u seu próprio Filho,


m as o entregou p o r todos nós,
com o não nos dará com ele, e de graça, todas as coisas?’ (Rm 8.32)” . 42

38J. Zias e E. Sekeles, “T he Crucified M an from G iv'at ha-Mivtar: A Reappraisal”,


IE] 35/1 (1985), p. 22-27; H. Shanks, “N ew Analysis o f the Crucified Man”,
BARev 1 1/6 (1985), p.20-21.
39 W. Edwards, W. Gabel e F. Hosm er, “ O n the Physical Death o f Jesus Christ” ,
JAMA 255/11 (21 de março de 1986), ρ. 1.455-63; F. Zugibe, “Two Questions
A bout Crucifixion: Does the Victim D ie o f Asphyxiation? Would Nails in the
Hand Hold the Weight o f the Body?” BRev 5 /2 (1989), p. 35-43. Para o assunto
da crucificação em geral, veja G. G. O ’Collins, “Crucifixion”, ABD 1.1.207-10.
40 Ireneu, Adv. Haer. 1.24.4. A mesma ideia aparece em Tratado deSete 55— 56 e Apo-
calipse de Pedro 81, em que Jesus gargalhava enquanto Simão m orre em seu lugar
na cruz!
41 O Evangelho de Pedro 10, por exemplo, afirma que Jesus ficou em silêncio na cruz
porque não sentiu nenhum a dor.
42 Crucifixion in theAncient World and the Folly of the Message of the Cross, p. 89.
M a rc o s 15.21-23 578

2 1 M arcos, im ed iatam en te após a m en çã o d a crucificação em 15.20b,


m en c io n a u m c e rto S im ão d e C irene q u e é fo rçad o a carreg ar a cru z de Jesus.
A palavra g re g a p ara “ forçafr]” , angareuõ, era c o m u m en te u sada p ara coagir
escravos e anim ais n o trabalho. A o rd e m p ara Sim ão era u m exem plo d o
o d iad o serviço c o m p u lsó rio que R om a im p u n h a so b re a Palestina subjugada.
U m h o m e m c o n d e n a d o em geral carregava seu p ró p rio patibulum, u m a viga
pesada, p ara o local d a crucificação; “ to d o anim al c o n d e n a d o à m o rte car-
rega sua c ru z n as co stas” , declarou P lu tarco (Moralia 554 A /B ). N o local da
execução, o patibulum era am arrad o o u p re g ad o ao tro n co , o p o ste q u e ficava
n a vertical. Jesu s, talvez p o r causa d a fraqueza e p e rd a d e sangue d u ra n te a
flagelação, n ão co n seg u iu carreg ar o patibulum·, daí a escolha d e Sim ão. A ci-
d ad e d e C irene, n a co sta n o rte d a Á frica, p o d e in d icar que Sim ão era negro.
O n o m e d e Sim ão é p re se rv a d o nas tradições paralelas d e M ateus 27.32 e
L ucas 23.26, m as M arcos inclui dois o u tro s n o m e s em co n ex ão c o m Simão.
A m en ção d e três n o m e s pessoais em u m versículo é extrem am en te in co m u m
p ara M arcos. O s n o m es são ap resen tad o s co m o se Sim ão fosse desco n h ecid o
p ara o s leitores d e M arco s, m as A lexandre e R ufo fo ssem co n h e cid o s deles.
N ã o sab em o s n a d a m ais s o b re A lexandre, m as u m R ufo, em m ead o s da
d écad a d e 50, era m e m b ro d a igreja em R om a (Rm 16.13), p ro v av elm en te o
m esm o R u fo m e n c io n a d o aqui. É m uitíssim o co ncebível q u e M arcos ten h a
acrescen tad o “ pai d e A lex an d re e d e R u fo ” na tradição que receb eu p o r causa
d a feliz co in cid ên cia d e q u e os dois filhos eram m e m b ro s da igreja em R om a.
E sse é ainda m ais u m in dício d e q u e M arcos escreve p ara os ro m an o s. N ã o
ficam os sab e n d o se S im ão é ju d eu o u gentio, m as apenas que ele “ carreg[ou]
a c ru z ” . A m en çã o a S im ão im ed iatam en te ap ó s a m e n çã o à crucificação n o
versículo 20b re fo rç a a m arca m ais característica e indispensável d o disci-
p u lad o p ara M arcos — to m a r a p ró p ria cru z e seguir Jesu s (8.34). Sim ão de
C irene to rn o u -se a prim eira p esso a em M arcos a c u m p rir de fo rm a literal essa
o rd e m .43 P ara M arcos, o d iscip u lad o n ão é u m g esto sim bólico, m as seguir
Jesus d e fo rm a co n creta. Vale a p en a considerar, c o n fo rm e o b serv a Schlatter,
se a fidelidade d e Sim ão ao carre g ar a cru z d e Jesu s re su lto u na p articipação
d os filhos n a fé e n a igreja.44

2 2 ,2 3 E ra co stu m e ta n to d o s judeus q u a n to d o s ro m an o s executar as


vítim as fo ra d o s lim ites d a cidade (Lv 24.14; N m 15.35,36; H b 13.12). Jesus

43 Tam bém E. Schweizer, The GoodNews According to Mark, p. 345.


44 A. Schlatter, Die Evangelien nach Markus und Eukas, p. 145.
579 M a rc o s 15.21-23

é traz id o p ara u m lugar ch a m a d o G ó lg o ta (aram aico, gulgoltaB) , cujo sen tid o é


“caveira” . (“ C alvário” v em d o latim calvus, cujo sen tido é “ escalpo” o u “ cabeça
careca” .)45 A referên cia a G ó lg o ta c o m o u m “lu g ar” e a trad u ç ão d o n o m e
indica q u e o s leitores de M arcos n ão estão fam iliarizados co m o local n em
co m o n o m e hebraico, o q u e faz sen tid o se ele estiver escrev en d o p ara os
rom anos. N o século X IX , O tto T h en iu s, d e D re sd en , p ro p ô s c o m o o G ó lg o ta
u m m o n te c o m u m a ap arên cia clara d e caveira, localizado fo ra d o s m u ro s da
p re se n te cidade. E sse local p o d e ser v isto h o je acim a d a estação d e ônibus
árab e em Jeru salém . A p ro p o s ta d e O tto T h e n iu s foi aceita e p o p u larizad a
p elo g en eral C harles G o rd o n em 1885, q u e ta m b é m d esco b riu o que hoje é
co n h e c id o c o m o o jardim d o sep u lcro p ró x im o d o aflo ram ento. O “ Calvá-
rio d e G o rd o n ” é u m a h ip ó tese atraen te p ara o G ó lg o ta, e n ão m en o s pela
tran qu ilidad e e beleza d o Jard im d o S ep u lcro nas proxim idades. C o n tu d o , da
perspectiva histórica, a Igreja d o S anto Sepulcro te m u m a reivindicação m uito
m aio r de ser o local real d a crucificação. D e sd e os prim o rd io s d o cristianism o,
o a flo ra m e n to n atu ral d e ro ch a q u e n a ép o c a d e Jesu s ficava fo ra d o s m u ro s
de Jeru sa lém , o n d e a Igreja d o S an to S epulcro já fo ra erigida em 335 d.C.,
tem sid o v en e ra d o co m o o local d a crucificação d e Jesus. A s escavações de
1961 a 1980 so b a Igreja d o S an to S ep u lcro a u m en ta ram o ap o io d o local
c o m o o G ó lg o ta d o s evangelhos.46
“V in h o m istu rad o co m m irra” , u m a alusão ao so frim en to d o h o m em
ju sto d e sc rito d e fo rm a vivida em Salm os 69.21, era u m n arcó tico prim itivo
o ferec id o p ara d im in u ir a d o r das vítim as n a crucificação. A adm inistração
d essa b eb id a p o d e te r sido u m serv iço d e caridade feito pelas m ulheres de
Jeru sa lém (Lc 23.28), c o n fo rm e su g erid o p o r P ro v érb io s 31.6, Salm os 69.21
e o T alm u d e.47 Jesu s re cu so u essa beb id a, talvez e m c u m p rim e n to de seu

45 U m a referência em Testamento deSalomão 12:3 (OTP 1.973) fala do “lugar da Cavei-


ra” onde “ele (Cristo) habitará publicamente na cruz” . Em bora seja difícil datar
o Testamento de Salomão (século I d.C.?), a referência corrobora o local identificado
por Marcos.
46J. M urphy-O’C onnor, The Holy Land An Archaeological Guidefrom Earliest Times to
17004(New York: O xford, 1986), p. 45-55; V. Corbo, “G olgotha”, ABD 2.1071-
73; R. Riesner, “Golgota und die Archaeologie”, BibKir 40 (1985), p. 21-26. Uma
perspectiva alternativa proposta por G rundm ann (Das Evangelium nach Markus, p.
431) e Schlatter {DerEvangelistMatthaus, p. 779) sustentam que o “lugar da Caveira”
refere-se a um lugar de ¿mundicia, e não à form a de um a montanha. Segundo essa
visão, Jesus m orre pelos pecadores imundos em um local imundo.
47 “O indivíduo, quando levado para a execução, recebe uma taça de vinho conten-
do um grão de olíbano, um tipo de incenso, a fim de entorpecer seus sentidos,
Marcos 15.24-27 580

v o to n a refeição pascal d e n ã o b e b e r m ais até ser receb ido n o R eino de D e u s


(14.25). E le n ã o re c o rre a u m n arcó tico c o m o seu ato final d e obediência,
m as aceita a v o n ta d e d e D e u s em p len o estad o d e consciência.

24-27 “ E o cru cificaram ” (15.24).48 O indicativo sim ples d o v e rb o e a


to tal au sterid ad e d a afirm ação fu n d a m e n tam o ato central d a red en ção em
u m ato h istó rico . U m a citação d o Salm os 22.18 (veja tam b ém Evangelho de
Pedro 12) s o b re dividir as vestes identifica o d estin o d e Jesus n a cru z co m
aquele d o h o m e m ju sto e so fre d o r d o salm o 22, in d ican d o dessa fo rm a que
a m o rte v e rg o n h o sa d e Jesu s cu m p re o tip o d o h o m e m ju sto so fred o r. O s
judeus re c o n h e c e m q u e o dia com eça co m o n asc er d o sol às 6 horas; daí,
“ h o ra terceira” (ARA) estabelece q u e a crucificação a c o n teceu às 9 h o ras da
m an h ã .49 T a n to o c o stu m e ro m a n o q u an to o ju d eu exigiam que o m o tiv o da
crucificação fosse afixado n a cru z, o que n o caso d e Jesu s reflete a acusação
de P ô n cio P ilatos (w . 2,9,12,18), “ O R E I D O S J U D E U S ” .
D ois ladrões são crucificados co m Jesus (v. 27). N ã o sabem os exatam ente
q u em eram esses d o is h o m e n s.50 A palavra p ara “ lad rõ es” (gr. lestes) é co m
freq uência u sad a p o r Jo s e fo p ara se referir aos zelotes; m as é u sada tam b ém
co m m u ita freq u ên cia p ara se re ferir aos ladrões com un s. N ã o p o d e m o s afir-
m ar c o m c e rteza qual é o relacio n am en to , se é q u e existe algum , deles co m
pois está escrito: Dê bebidafermentada aos que estãoprestes a morrer; vinho aos que estão
angustiados [Pv 31.6]. E tam bém foi ensinado: as mulheres nobres em Jerusalém
costumavam doá-lo e trazê-lo” (b. Sanh. 43a).
48 O Códice Vaticanus (B; tam bém [L] Y) traz apenas staurousin auton (“ eles o crucifi-
cam”), ao passo que um grupo de manuscritos mais fortes e diversos ( S A C D 0 ,
além da tradição bizântina) traz staurõsantes auton (“e quando eles o crucificaram”).
Enquanto o apoio textual para a segunda leitura é claramente superior, a primeira
pode ser original (1) porque o tem po presente simples é tipicamente marcano; e (2)
porque um escriba estaria inclinado a mudar a primeira leitura para uma segunda
leitura mais feliz do ponto de vista gramatical.
49 Um manuscrito uncial do século IX (K oridethi,‫ ) א‬traz “hora sexta” (= 1 2 horas,
meio-dia), mas essa é quase com certeza uma tentativa de reconciliar o tempo de
Marcos com o de João (19.14), pois este coloca a crucificação de Jesus no meio-dia
da quinta-feira, e não às 9 horas da manhã da sexta-feira. A data e o horário de
João refletem provavelmente interesses teológicos, ou seja, fazer com que a cru-
cificação de Jesus coincidisse com o sacrifício dos cordeiros pascais no templo.
50 A tradição posterior supre a eles vários nomes: Tito e Dímaco, de acordo com um
evangelho da infância de Jesus em árabe (H S 1.408); em outros lugares Dimas e
Gesmas ou Joatas e Maggatras (veja G rundm ann, Das Evangelium nach Markus, p.
433, n. 27).
581 M a rc o s 15.24-27

B arrab ás.51 T iag o e Jo ão , em u m m o m e n to an terio r, p ediram p ara se sen tar à


direita e à esq u erd a d e Jesu s n a glória (10.37). Tais posições, c o n fo rm e Jesus
lhes traz à lem brança, acarretam provações e experiências difíceis, u m “ cálice”
e u m “ b a tism o ” , nas palavras d o M estre. A p ro v a ção de Jesus, m u ito m aio r
q u e aquela q u e seus discípulos têm de en fren tar, o p õ e en tre dois crim inosos
(Evangelho de Pedro 10; EpistulaApostolorum 9). A s palavras so b re estar à direita
e à esq u e rd a d e Jesu s em 10.40 é m uitíssim o sim ilar àquela d o versículo 27: os
dois crim inosos, de fo rm a m isteriosa, o cu p a m os lugares pedid o s p o r T iago e
Jo ão. A p re sen ça d os ladrões na crucificação é vista c o m o u m cu m p rim en to
d e Isaías 53.12: “ fo i co n ta d o e n tre os tran sg resso res” .52
H á vários indícios n o cap ítu lo 15 de q u e M arcos tem a in ten çã o de fazer
c o m q u e o ju lg am en to e crucificação sejam e n ten d id o s c o m o a en tro n iza-
ção real d e Jesu s c o m o o M essias. E sses indícios inclu em referências a Jesus
c o m o “ o rei d o s ju d eu s” (15.2,9,12,26), as referências à realeza na cena da
flagelação (m an to d e p ú rp u ra , c o ro a d e esp in h o s, “ Salve, rei d o s judeus!”) e
a zo m b aria d o s cu rio so s de q u e Jesu s é “ o Rei d e Israel” (v. 32).53 O m esm o
tem a é sug erid o pelos dois crim in o so s ao lad o de Jesu s n a crucificação que,
c o n fo rm e v im o s acim a, fazem paralelo p ara os filhos de Z eb e d eu , os que
p ed ira m p ara se sen tar à direita e à esq u erd a d e Jesu s “ na tu a glória” (10.37).
N ã o o b sta n te , o tem a m essiân ico -real n ã o d ev e ser su p erv alo rizad o . O
co n c e ito d e M essias, c o n fo rm e o b serv am o s a n te rio rm e n te (veja em 8.29 e
14.61,62), é u m conceito subsidiário n o segundo evangelho, e n ão é a principal
d esig nação cristológica em M arcos. O títu lo p ara Jesu s m ais p ro e m in e n te em
M arcos é “ F ilh o d e D e u s” , e n ã o “ M essias” . O te rm o M essias, u m conceito
funcion al, é aludido n o capítulo 15; m as F ilh o d e D e u s, u m co n c eito o n to ló -
gico tra n sm itin d o a divindade de Jesus, é ex p ressam en te d eclarado n o ápice
d e to d o o evangelho, em 15.39.54

51 Sobre Barrabás, veja n. 15 acima. Sobre o uso de “ladrões” na literatura grega e


em josefo, veja Hengel, The Zealots, p. 24-46.
52 Uma referência a Isaías 53.12 está presente no versículo 28 em vários dos ma-
nuscritos posteriores (K L P Δ Θ Π). N o entanto, há apenas uma chance mínima
de ser original, pois foi omitida por um grupo forte e diverso de manuscritos (‫א‬
A B C D X Ψ). A adição foi sem dúvida tirada de Lucas 22.37 a fim de tornar
explícito que Jesus, na cruz, cum pre o papel do Servo do Senhor.
53 Veja D. Juel, Messiah and Temple, SBLDS 31 (Missoula: Scholars Press, 1977), p.
49-53; M. Hooker, The GospelAccording to St Mark, p. 371-72.
4‫ כ‬Visto corretam ente p o r H. Chronis, “T h e T orn Veil: Cultus and Christology
in Mark 15:37-39” , JBL 101 (1982), p. 97-114; contra Juel, Messiah and Temple,
p. 51, que vê “ Filho de D eus” apenas com o uma designação alternativa para
M a rc o s 15.29-32 582

2 9-32 E m apenas u m p o n to M arcos se afasta da re serv a e co m ed im en to


de sua n arrativ a so b re a crucificação e faz isso p ara enfatizar a %ombaria à qual
Jesu s está sujeito. N a ce n a d o julgam ento, os o p o n e n te s d e Jesu s estavam
lim itados aos ch efes d o s sacerdotes, P ô n cio P ilatos e os soldados, m as, na
crucificação, essas v o ze s se u n em em u m c o ro m u ito m aio r d e escárnio.
O s c u rio so s e o b serv ad o re s, n ão definidos c o m o p e rte n cen te s a q u alq u er
g ru p o , b alan çam a cab eça e ridicularizam Jesu s so b re suas pred içõ es co m
relação ao te m p lo (v. 29; veja 14.58). N isso ta m b é m Jesu s c u m p re o tip o
d o h o m e m ju sto s o fre d o r cuja justiça é m o tiv o d e ridicularização (SI 22.7;
109.25; L m 2.15). O “ lançavam -lhe in su lto s” d o versículo 29 (tam b ém a
N V I) são ch a m a d o s d e “ blasfêm ia” n o original grego. O te rm o blasphêmia
é u sad o qu ase exclusivam ente n a literatura grega e bíblica p ara se referir à
fala m ald o sa c o n tra D eu s; p o r im plicação, o escárnio lan çad o c o n tra Jesu s
é blasfêm ia c o n tra D e u s — to rn a n d o os ch efes d o s sacerd o tes e o s m estres
da lei cu lp ad o s daquilo p elo q u e Jesu s foi c o n d e n a d o p elo S inédrio (14.64)!
“ D a m esm a fo rm a , os ch efes d o s sacerd o tes e os m estres da lei zo m -
bavam dele e n tre si” (15.31). O s chefes d o s sacerdo tes e os m estres d a lei,
c o m o o s ex p ectad o res, v eem a inabilidade d e Jesu s p ara salvar a si m esm o
co m o u m a refu tação d e sua po sição c o m o F ilho d e D eus. “ Salvou os o u tro s” ,
ridicularizaram eles, “ m as n ã o é capaz d e salvar a si m esm o!” . T a n to n o tem a
q u an to nas palavras a p o sição d o s zo m b ad o res refletem Sabedoria 2.18: “ Se o
justo é filho de D eus, e ste h á d e v ir em seu so c o rro e o arran cará às m ão s de
seus adv ersário s” . O s líderes religiosos, co m o os céticos de S abedoria 2.17,
só acred itarão se eles virem, se tiverem a p ro v a em pírica. A p ró p ria exigência
p o r u m sinal é aqui, c o m o em 8.11-13, evidência d e descrença. A fé n ão é o
resultado de sinais e m ilagres, m as a condição p ara eles. A fé que M arcos deseja
p ara seus leito res n ão é o b tid a pela visão, m as ev o cada pela p esso a de Jesus,
em especial seu sacrifício n a cruz. O escárnio p re ssu p õ e que a salvação d o ego
é o b em m aior: a v ind icação m ais c e rta d e alguém q u e p ro fessa ser o M essias
seria a cap acid ad e d e salvar a si m esm o. Jesus, n o en tan to , n ão to m o u s o b re si

“Messias-Rei”. D e form a similar, a tentativa de T. Schmidt, “Mark 15.16-32: T he


Crucifixion Narrative and the Roman Triumphal Procession”, N TS 41 (1995), p.
1-18, de argumentar que os versículos 16-32 são modelados na procissão triunfal
romana, principalmente porque o m odvo real não é essencial para a apresentação
de Jesus por Marcos. Além disso, a ênfase na zombaria nos versículos 29-32 pa-
recem se opor à tese de Schmidt, com o o fazem vários particulares (e.g., a ligação
de Simão no v. 21 com o touro sacrificial?). Para uma descrição das procissões
reais romanas, veja 11.7-10, n. 10.
583 M a rc o s 15.29-32

a m issão de au to aju d a e au to cu m p rim en to . E le será u m “ resgate p o r muitoi’


(10.45; g rifo d o autor). A lu ta n o G e tsê m a n i era so b re afirm a r e cu m p rir o
ch am a d o (14.32-42). A zo m b aria n a cru z falha e m p e n e tra r o vasto e terrível
m istério de q ue Jesu s é o resgate d e m u ito s (10.45). O c o ro d e escárn io inclui
até m e sm o aqueles q u e so frem o m esm o d estin o d e Jesu s (v. 32).
A z o m b aria p ara Jesu s d escer d a cru z, em essência, é a m esm a ten tação
q u e e n fre n to u n o G etsê m a n i, o u seja, ev itar o “ cálice” d o so frim en to . N o
G e tsê m a n i, Jesu s to m o u a cu sto sa decisão, q u e ag o ra ele cu m p re, d e fazer
a v o n ta d e d o Pai, e n ã o a su a p ró p ria v o n tad e. N e sse re trato b u rlesco de
Jesu s, a m a rra d o à cru z e assolado pela zo m b aria, v em o s “ a p ro v a d e um a
su rp re e n d e n te d iferen ça en tre o ca m in h o d e D e u s e tu d o q u e os h o m en s
co n sid eram seu objetivo o u c o n c eb em ser o ca m in h o d e D e u s ” .55Jesus não
se d efen d e, n ã o esb o ça n e n h u m esfo rço p ara re tru c a r o u d a r a palavra final,
n ã o faz n e n h u m a ten tativ a de p re se rv a r pelo m e n o s u m m ín im o d e digni-
d ad e e orgulho. Jesu s entrega-se em to tal vuln erab ilidade à m alevolência e
v iolência d o m un d o .

O F IL H O D E D E U S ( 1 5 . 3 3 3 9 ‫)־‬

M arcos, d esd e a p risão de Jesus, n a rra a paixão c o m o u m a an tífo n a en tre


o te ste m u n h o d e Jesu s e as resp o stas h u m an as a esse testem u n h o . A prim eira
a n tífo n a foi a co n fissão d e Jesu s d ian te d o S inédrio (14.61,62), seguida pela
z o m b a ria e m au s trato s d o S inédrio (14.63-65) e a n egação de P ed ro (14.66-
72). A seg u n d a an tífo n a foi a aparição de Jesu s dian te d e P ô n cio Pilatos
(15.2-5), seguida pelo s g rito s da m u ltid ão q ue p ed ia sua m o rte (15.6-15) e a
zo m b aria e m au s trato s dos soldados (15.16-20). A terceira an tífo n a foi a cru-
cificação de Jesu s (15.21-26), seguida pela zo m b aria d o s cu rio so s (15.27-32).
A q u a rta an tífo n a na p resen te seção co n siste d a m o rte de Jesus (15.33-37),
seguida p ela co n fissão d o cen tu rião (15.38,39). N a s prim eiras três antífonas,
as re sp o sta s h u m an as a Jesu s são negativas e até m e sm o hostis. C ontudo,
n a an tífo n a final, a resp o sta h u m an a é positiva e d e m o n stra fidelidade. N a
m o rte de Jesu s n a cru z, u m g en tio d o g ru p o de fora — u m oficial ro m an o
resp o n sáv el pela execução dele — to rn a -se a p rim eira p esso a a confessar
pela fé que Jesu s é o F ilho d e D eu s, cu m p rin d o d esse m o d o o p ro p ó sito d o
evangelho d e M arcos. E n q u a n to Jesu s está vivo, a h u m an id ad e deseja sua
m o rte; apenas em sua m o rte é que a h u m an id ad e p o d e vê-lo co m o o cam in h o
p ara a vida. A m o rte d e Jesu s na cru z, p o r co n seg u in te, n ão é um a d e rro ta ,

55 Veja Schweizer, The GoodNews According to Mark, p. 350-51.


M a rc o s 15.33-34 584

m as a co n su m aç ão de sua m issão e ápice d a revelação de sua iden tid ad e


c o m o F ilh o d e D eus.

3 3 D u ra n te a crucificação, “h o u v e trevas so b re to d a a terra, d o m eio-dia


às três horas d a ta rd e” . T o d o s os três sinóticos ac o m p a n h am a m o rte de Jesus
n a cru z co m vários p o rte n to s, o p rim eiro deles é a escuridão d o m eio-dia às
três da tarde. O s antigos estavam fam iliarizados co m os relatos de ocorrências
extrao rd in árias a c o m p a n h a n d o a m o rte d e lu m in ares hu m an o s. A literatura
rabínica re g istra relato s fantásticos e e stra n h o s de ev entos na m o rte d e rabis
fam o so s — in clu in d o a aparição de estrelas ao m eio-dia, o ch o ro de estátuas,
raios, tro v õ es e até m esm o a divisão d o m ar d e T iberíades.56 D a m esm a for-
m a, do is escrito res ro m an o s registram q u e u m c o m eta b rilh o u p o r sete dias
consecutivos q u an d o Júlio C ésar m o rre u .57 E sses e o u tro s p o rte n to s sim ilares
eram em geral co n sid erad o s co m o elogios divinos em h o n ra ao n o b re m o rto .
P ara M arcos, n o en tan to , a escu rid ão ao m eio -d ia n ã o é u m elogio divino,
m as, antes, algo o m in o so e m al, c o m o a p rag a das trevas so b re o E g ito n o
en d u recim en to d o co ração d o faraó (E x 10.21-23) o u até m esm o das trevas
d o caos an tes d a criação (G n 1.2).58 N ã o é possível co n sid erar que as trevas
n a crucificação fo ssem u m fe n ô m e n o natural: eclipses solares n ão o c o rrem
q u an d o a lua está cheia n a P áscoa; ta m p o u co , u m a te m p estad e de p o eira é
provável d u ra n te a p rim avera, u m a estação de chuvas. A s trevas na crucifica-
ção, de ac o rd o co m M arcos, são retratadas c o m o u m julgam ento escatológico
d e D eu s, c o m o em A m ó s 8.9: “ ‘N aq u ele dia’, declara o S e n h o r , o S oberano:
‘Farei o sol se p ô r ao m eio -d ia e em p len a luz d o dia escurecerei a te rra ’ ” . A
ênfase nas trevas c o b rin d o “ to d a a te rra ” tem c o n o ta ç õ es universais: a m o rte
de Jesu s im plica to d a a te rra (gê, e m grego, significa “ o plan eta te rra ” , b em
c o m o “ te rra ”), e n ão apenas o s judeus.59

3 4 Jesus, d ian te d o S inédrio e d e P ô n cio Pilatos, p e rm a n ece u em silêncio,


exceto p o r u m a b rev e palavra em cada u m desses julgam entos. Jesus, pela

56 Str-B 1.1,040-42.
5' Suetônio, Lives of the Caesars, “T he Deified Julius” , p. 88-89; Plutarco, Lives of the
Noble Grecians and Romans, “Caesar” , 69.3-5.
58 Da mesma forma, Evangelho de Pedro 15— 21 equipara a escuridão da cruz com a
cegueira e temor; e o Evangelho de Filipe 68 a equipara à destruição.
9‫ י־‬Por contraste, o Evangelho dePedro 15 afirma que a escuridão cobriu apenas aJudeia,
tentando dessa forma responsabilizar específicamente os judeus pela m orte de
Jesus. Veja também, Evangelho de Pedro 17, “E eles (= os judeus) cumpriram todas
as coisas e completaram a medida de seus pecados em sua cabeça” .
585 M a rc o s 15.33-34

prim eira vez d esd e o versículo 2, b ra d a em alta voz: “M eu D eus! M eu D eus!


P o r q u e m e a b a n d o n aste?” (SI 22.1; J u stin o M ártir, Dial. Trif. 99.1). A citação
aram aica original: uEloí, Eloí, lamá sabactâni?”, sem d ú v id a reflete as palavras
reais d e Jesus, as quais M arcos segue c o m u m a trad u ç ão para o g reg o para
o benefício d o s leitores g entios.60 O s salm os 22 e 69 rev erb eram ao lon g o
d e to d o o relato d a crucificação, e a p re se n te citação d o salm o 22 identifica
Jesu s c o m o o ju sto q ue so fre sem causa.61 Jesu s — rejeitado e zo m b a d o p o r
Israel, sacrificado c o m o peão político p o r R om a, n eg a d o e d ese rtad o p o r seus
seguidores — é to ta lm e n te a b a n d o n a d o e ex p o sto ao h o rro r d o p ecad o da
hu m an id ad e. E sse h o rr o r é tã o to tal que, em su a respiração à beira d a m o rte,
ele sen te su a sep aração d e D eus.
O te ste m u n h o bíblico d o so frim e n to d o F ilh o d e D e u s e n c o n tro u g ran-
de resistência na h istó ria hu m an a. M ais tard e, os gn ó stico s, em particular,
p re su m in d o q u e o so frim en to h u m a n o c o m p ro m e te fatalm ente a verdadeira
divindade, ten tam p o u p a r Jesus d a ag o n ia n o G ó lg ota. N o apócrifo, Evangelho
de Pedro 19, p o r exem plo, Jesu s clam a: “M eu P o d er, ó P o d er” , e é levado p ara
o céu sem sofrer. O s g n ó stico s, q u e acreditavam q ue o v erdadeiro espírito
era insuscetível às d estru içõ es d o m u n d o m aterial transitório, sustentariam
m ais ta rd e q u e Jesu s só ap a re n to u s o fre r n a cru z.62 O so frim en to d o Filho
d e D e u s, d a m esm a fo rm a , foi v isto p elo s judeus c o m o u m a co n trad ição de
te rm o s;63*65pelo s gregos, c o m o lo u cu ra (IC o 1.23); e pelo s estoicos desapai-
x o n ad o s, c o m o u m em baraço.

60 E m bora a tradição textual esteja dividida sobre a ordem das palavras enkatelipes m
(“você m e abandonou”), a citação é um a tradução aramaica do hebraico, e não da
LXX, que lê de modo diferente: ho theos ho theos mou, prosches moi bina ti enkatelipes
me (“Meu Deus, meu Deus, preste atenção a mim, por que me abandonastes?”).
61 Salmos 22.1 = Marcos 15.34; Salmos 22.7 = Marcos 15.29; Salmos 22.18 = Mar-
cos 15.24; Salmos 69.21 = Marcos 15.23,36. Para uma discussão sobre os salmos
22 e 69 em Marcos 15, veja J. Pobee, ‘T h e Cry o f the Centurion— A Cry o f
D efeat”, The Trial ofJesus, ed. E. Bammel, SBT 13 (London: SCM Press, 1970), p.
91-102. Para uma discussão sobre a relação do grito de abandono com as palavras
do servo sofredor de Isaías 53, veja A. M. Schwemer, “Jesu letzte Worte am Kreuz
(Mk 15,34; Lk 23,46; Joh 19,28ff)”, TBei 29 (1998), p. 5-29.
62 O u, de m odo inverso, que Jesus sofreu porque ele estava “dividido” . O apócrifo
Evangelho deFilipe 68 compara o abandono de Jesus na cruz com Adão, para quem
a m orte só passou a existir quando Eva foi separada dele.
65 Compare, por exemplo, a tradição da m orte do rabi Akiba preservada em b. Ber.
61b em que Akiba é descrito com o Sócrates em sua m orte — composto, em ado-
ração, acompanhado de seus discípulos, recitando o Shema e confiante da presença
de Deus.
M a rc o s 15.35-39 586

3 5 ,3 6 A ten d ên c ia p ara p o u p a r o so frim en to d e Jesus é evidente até m es-


m o n o relato d e M arco s (w . 35,36). O judaísm o p o p u la r acreditava q u e Elias
fo ra levado c o rp o ra lm e n te ao céu sem m o rre r (2Rs 2.11) e que ele re to rn aria
em m o m e n to s d e crise p ara p ro te g e r e resg atar o justo.64 O s cu rio so s invo-
caram o n o m e d e E lias n a crucificação d e Jesus, talvez p o rq u e co n fu n d iram
o clam o r d e Jesu s p ara D e u s (aram. Eloi) co m u m apelo a Elias (aram . Eli).
C ertam e n te , se Jesu s é o justo, D e u s o p o u p aria d o so frim en to e d a m o rte,
“p o rq u e q u a lq u e r q u e fo r p e n d u ra d o n u m m ad eiro está debaixo da m aldição
d e D e u s” (D t 21.23). O s curiosos daquela é p o c a — e alguns h o je63 — falham
em v er o q u e o cen tu rião viu e co m p re en d eu p rim eiro — q u e Jesu s c u m p re o
plan o d e red en ção de D eu s precisam ente em seu sofrim ento, ao “d ar a sua vida
em resg ate p o r m u ito s” (10.45) e to m ar so b re si a m aldição d a hum anidade.
A lgum d o s p resen tes, esp e ran d o v er u m m ilagre d e lib ertação n o m o -
m e n to final, “ e m b eb e u u m a esp o n ja em vin ag re” e a d e u para Jesus. A “vara”
(gr. halamos) q u e esten d e a esp o n ja para Jesus é o m e sm o in stru m e n to c o m o
qual os so ld ad o s su rra ram Jesu s n o versículo 19. E la n ão tem m ais n e n h u m
u so p ara Jesu s c o m o u m ra m o d e oliveira de co n fo rto , sen d o u m in stru m e n to
de dor. O “v in ag re” o ferec id o a Jesus era p ro v avelm ente u m a m istu ra de
v in h o azed o o u v in ag re c o m água, c o n h e cid o co m o posea em latim , dispo-
nível p ara os so ld ad o s d e p lan tão c o m o estim ulante.64*66 Talvez a b eb id a seja
o ferecida a Jesu s c o m o u m g e sto de com paixão. Para M arcos, a bebida, n o
en tan to , re m e m o ra o “ P u se ra m fel n a m in h a co m id a e p ara m atar-m e a sede
d eram -m e v in ag re” d e S alm os 69.21 (veja tam b ém , Evangelho de Pedro 16). E
u m c o n fo rto cru el p ara o h o m e m ju sto em agonia, sim b o lizan d o a am argura
d a zo m b aria d e Jesu s p o r p a rte d a h u m an id ad e e a rejeição dele p o r D eus.

3 7 -3 9 A N V I p õ e a m o rte d e Jesu s em 15.37 em u m p arág rafo separado.


A teologia d e M arcos, n o en tan to , o colocaria n o início do s versículos 37-39,
pois a m o rte d e Jesu s n ão é u m térm in o , m as a causa d e dois eventos excep-

64 Veja o material reunido em Str-B 1.1,042; 4/2.769-79. Tam bém b. Ta‘anit2t&, que
reconta a lenda de um judeu justo salvo da execução por Elias.
63 Como pequenas mudanças podem ser vistas em dois exemplos de nossa própria
época. O s “cristãos alemães” , durante o período nazista, rejeitaram a teologia da
cruz com o uma fraqueza e derrota em favor de uma teologia de um Jesus ariano
heroico. D a m esma forma, muitos ramos da Nova Era hoje minimizam ou ne-
gam a necessidade da expiação e sofrimento de Jesus em favor de imagens mais
poderosas associadas com a “ressurreição” .
66 Veja Suetônio, Lives of the Caesars, “Vitellius”, 12, que m enciona a venda de posea
em Putéoli.
587 M a rc o s 15.35-39

d o n á is: o rasg ar d o v éu d o tem p lo (v. 38) e a co n fissão d o cen tu rião (v. 39).
E sses dois ev en to s significam q u e a m o rte d o F ilho s o fre d o r d e D e u s n ão é
u m fim trágico, m as u m ev en to de cu m p rim e n to e revelação divinos.
P rim eiro, a co rtin a, u m rico sim bolism o teológico. H avia n a v erd ad e dois
véus n o te m p lo d e Jeru sa lém (veja H b 9.1-5), u m d iante d o p átio d e Israel e
o u tro n o S an to d o s Santos. M arcos u sa a palavra g rega naos para descrev er o
tem plo , em vez d o te rm o m ais co stu m eiro hieron, m as os te rm o s são usados
d e fo rm a in tercam b iáv el n o N o v o T e sta m e n to e n ão n os capacita a deter-
m in ar qual p a rte d o tem p lo o evangelista te m em vista nesse texto.67 O pátio
de Israel, ta m b é m co n h e c id o c o m o L u g ar Santo, era o principal santuário
o n d e os h o m e n s judeus adoravam ; c o n tin h a o ca n d elab ro co m sete braços,
u m a m esa c o m d o z e pães so b re ela e u m altar d o incenso. O véu dian te do
P átio d e Israel era u m a tapeçaria bab ilô n ia b elam e n te b o rd a d a, d escrevendo
m ísticam en te a terra, o m a r e os céus q u e “ tipificavam o u n iv erso ” , d e aco rd o
co m Jo se fo (<Guerra 5.210-14). O se g u n d o véu (E x 26.31-37), tam b ém m en-
cionado, m as n ã o descrito, p o r Jo sefo ficava diante d o S anto d os S antos, lugar
“ inacessível, inviolável e invisível” , u m cubículo com cerca d e v inte cu bitos
(= cerca d e n o v e m etro s) q u ad rad o s n o qual o su m o sacerd o te entrava n o
D ia d a E x p iaç ão ( Guerra 5.219).
N ã o fica claro qual dos dois véus M arcos descreve em 15.38 (veja tam bém ,
Evangelho de Pedro 20; T. L evi 10.3). A palavra g rega p a ra véu n o versículo 38,
katapetasma, é u sad a p o r au to res an tig o s p ara se referir a am b o s o s véus ou
co rtin as, e m b o ra seja usada co m m ais freq u ên cia p ara se referir ao véu do
S an to d o s Santos. O u so bíblico d o te rm o c o n firm a essa distinção. H á três
o co rrên c ia s d o te rm o katapetasma em H e b reu s 6.19; 9.3; 10.20 (?), cada u m a
delas p a ra se re ferir ao v éu d ian te d o S an to d o s Santos. N a L X X , d a m esm a
fo rm a , a palavra katapetasma é usada p ara o v éu d ian te d o S an to dos S antos
(E x 26.31-37), ao p asso q u e u m a palavra d iferen te (gr. kallyma) é usada p ara
o véu d ian te d o P átio d e Israel (E x 27.16; L v 16.2,12). C o m fu n d a m e n to
linguístico, o rasg o d o katapetasma n o versículo 38 p arece se referir ao S anto
do s Santos. Se esse fo r o v éu em vista, e n tão su a d estru ição significa que, n o
m o m e n to d a m o rte d e Jesus, o v éu e n tre D e u s e a h u m an id ad e é rem ovido.
O S an to d o s S antos, q u e se acreditava c o n te r a p ró p ria p resen ça d e lavé,
to rn a -se acessível pela expiação d e Jesu s na cru z, e n ão p elo sacrifício d o
su m o sac erd o te n o D ia d a E xpiação.68

67 O. Michel, “naos”, 7ZW T4.882.


68 O Evangelho de Filipe 85, com preende o rasgo do véu do templo como o revelar
do Santo dos Santos: “A coisa perfeita, portanto, se abriu para nós, junto com as
M a rc o s 15.39 588

O u tro s m otiv o s, n o en ta n to , arg u m en tam em favor d o principal véu


sep aran d o o P átio d e Israel d o P átio das M ulheres. O véu exterio r (o único
d escrito p o r Jo sefo ) era apenas u m v éu visível p ara tod as as pessoas. P arece
que schi^ein (“ rasgfar]”) n o versículo 38 p re te n d e se referir a esse véu. O ú nico
o u tro uso d e M arco s d esse te rm o aco n teceu n o batism o, q u an d o o céu se
rasga e revela q u e Jesu s é o F ilh o d e D eus. O rasgar d o véu d o tem plo, da
m esm a fo rm a , capacita o cen tu rião a co n fessar Jesu s c o m o F ilho de D eus.
A s duas co n fissõ e s d e p e n d e m d o rasgar em dois de u m véu de fo rm a que
algo p o ssa ser testem u n h ad o . O único véu visível ao cen tu rião g en tio era o
véu ex tern o , e n ão aquele qu e ficava diante d o S an to do s Santos. A lém disso,
Jo sefo descreve o véu ex tern o co m o um a tapeçaria re tratan d o “u m p an o ram a
d o s céu s” (Guerra 5.213). E sse é u m paralelo su rp re e n d e n te c o m o rasgar d o
céu em 1.10. P o rtan to , M arcos, n o s dois usos d e schi^ein, q u er indicar o rasgar
do s céus — ab rir o céu p ara a h u m an id ad e n o b atism o de Jesu s e ab rir o
tem p lo c o m o o locus Dei p ara a h u m an id ad e n a m o rte de Jesus.69 N o b atism o
e m o rte de Jesus, as h ab itaç õ es te rre n a e celestial de D e u s são ab ertas para
a h u m an id ad e.70

39 O seg u n d o sinal p re se n te na crucificação segue-se im ed iatam en te


apó s o rasg ar d o v éu d o tem p lo . E a declaração d o centurião, a q u em M arcos
designa co m u m latin ism o (gr. kentyriõn), e n ão c o m a designação g reg a m ais
co m u m (ketatontarchêes), p ro v av elm en te p o rq u e o p rim eiro te rm o era m ais
fam iliar p ara seus leitores. O centurião, c o m o o u tro s d esd e a prisão d e Jesus,
é u m cu rio so (gr. parestêkõs; 14.47,69,70; 15.35), m as ele, em vez d e ficar de

coisas escondidas da verdade. O Santo dos Santos foi revelado, e a câmara nupcial
nos convida a entrar” .
69 Sobre o rasgo do véu do templo, veja H. Chronis, “T he Torn Veil: Cultus and
Christology in Mark 15:37-39” ,JBL 101 (1982), p. 110-14.
7110 Evangelho dos nazarenos 36 (NTApoc 1.164) tam bém parece se referir ao Pátio
de Israel na descrição do lintel no m om ento da m orte de Cristo: “no m om ento
da m orte de Cristo, o lintel do templo, de tam anho descomunal, partiu-se”. O
Evangelho dos ebionitas 6 ( NTApoc 1.170) também pode se referir ao Pátio de Israel.
Josefo também registra portentos de destruição de Jerusalém e do templo (Guerra
6.288-315). Sobre Jesus e a cruz com o substitutos do templo, veja K. Bailey, “The
Fall o f Jerusalem and Mark’s A ccount o f the Cross”, ExpTim 102 (1990-91), p.
102-5.
589 M a rc o s 15.39

u m lad o p ara o o u tro , ficou “emfrente d e Je su s” (grifo d o au to r).71 O centu-


rião, de fo rm a d istin ta d o s o u tro s cu rio so s q u e zo m b av am d e Jesus, “viu”
e creu (tam b ém 15.32) o que os o u tro s n ão viram . N a m o rte d e Jesus, ele
confessa: “ R ealm ente este h o m e m era o F ilh o d e D eu s!” O “ F ilho d e D e u s ”
é o títu lo carre g ad o d e sen tid o cristo ló g ico em M arcos, títu lo esse q u e n ão
fo ra co n fessad o até esse m o m e n to p o r n e n h u m ser hum ano. O cen tu rião é
a p rim eira p esso a n o evangelho a c o n fe ssa r Jesu s c o m o o F ilh o de D eu s, e
essa co nfissão é ev o cad a p o r sua paixão — o so frim en to e m o rte n a cruz.
A paixão de Jesu s n a cru z, de ac o rd o c o m M arcos, é indício crucial para a
co n fissão d o centurião. E m M ateus 27.54, a co n fissão d o cen tu rião é evocada
p o r sinais p re sen tes na m o rte d e Jesu s — a ressu rreição d o s santos, o terre-
m o to e a escu rid ão ao m eio-dia. E m M arcos, n ã o o b stan te, a co nfissão n ão
é evocada p o r sinais m ilagrosos, m as pela p ró p ria m o rte d e Jesus, q u an d o o
cen tu rião “ ou v iu seu clam o r e viu c o m o ele m o rre u ” .72 A co n fissão “ o F ilho
de D e u s ” e stá ligada d e m o d o causai à m o rte de Jesu s n a cru z (Jo 8.28). E sse
cen tu rião , sem dúvida, já vira o u tro s h o m e n s m o rre rem p o r crucificação.
C o n tu d o , algo n essa crucificação — n a p ró p ria fraqueza e so frim en to da
m o rte d e Jesu s — to rn a-se revelação.73 O so frim e n to de Jesus n a cru z, que
co n tra d iz to ta lm e n te os ideais m essiânicos judaicos e as co n cep çõ es helenis-
tas d o “ h o m e m d iv in o ” , to rn a-se, p o r u m ato de D e u s, a janela que se abre
p ara o c o raçã o e sen tid o de Jesus, cuja relevância só é captada n a confissão
“ o F ilh o d e D e u s ” .
SupÕ e-se algum as vezes q ue o ce n tu rião n ão co n fesso u Jesu s co m o 0
F ilh o d e D e u s, m as um filho de D eu s. N o original grego, “ F ilh o d e D e u s ”
(huios theou) n ão possui o artigo definido, sugerindo p ara alguns que o centurião

71 A leitura ex enantias autou (“em frente de”, “do lado oposto de”) é firmemente
atestada (‫ א‬A B C K L X Δ Π Ψ) e, sem dúvida, é a leitura correta, apesar de W
ler autõ (“próximo dele”) e D e Θ lerem ekei (“ali”).
72 A maioria dos manuscritos inclui “brado”, de uma form a ou de outra no ver-
sículo 39, mas uma minoria de manuscritos de peso (‫ א‬B L Ψ) omite o termo,
levantando alguma dúvida se a palavra fazia originalmente parte do texto de Marcos
ou não. Veja B. Metzger, TCGNT, p. 121.
73 Contra E. S. Johnson Jr., “Is Mark 15:39 the Key to Mark’s Christology?”,/C V 7 ’
31 (1989), p. 8-14, que mantém que não se podería esperar que um centurião
reconhecesse Jesus como o Filho de Deus. Isso, claro, é precisamente o mistério
e a ironia da fé, atestada ao longo de todo o segundo evangelho — que a fé é
dem onstrada p o r pessoas das quais jamais esperaríamos essa atitude. Veja a per-
cepdva discussão sobre a confissão do centurião em J. D. Kingsbury, The Christology
of Mark’s Gospel (Philadelphia: Fortress Press, 1983), p. 128-34.
M a rc o s 15.39 590

co m c e rteza quis d izer um filho d e D eu s, e n ão 0 F ilh o d e D eu s, o u seja, u m


d en tre os m u ito s h eró is ex trao rd in ário s c o n h e cid o s n o m u n d o d a A ntigui-
dade, e n ã o 0 F ilh o d e D e u s em u m sen tid o o ntológico. E ssa conclusão, n o
en tan to , n ão se su sten ta c o m fu n d a m e n to s gram aticais, pois n o g reg o coiné
u m p re d ic ad o n o m in ativ o d efin id o o m ite o artig o q u a n d o p re ced e o verbo,
c o m o ac o n te ce n o v ersículo 39.74 O u so d e “ F ilh o de D e u s ” p o r M arcos em
15.39, d a p ersp ectiv a gram atical, tem em vista o sen tid o cristão pleno.
S up õe-se algum as vezes q u e a confissão d o cen tu rião significa um filho
de D e u s, e n ã o 0 F ilh o de D e u s u m a vez q u e n ã o seria realista n em possível
p ara u m oficial d e u m exército g en tio u sar o títu lo em seu sen tid o cristão
pleno. E ssa visão, em últim a análise, n ão é co n v in cente. N ã o p o d e m o s sab er
co m c e rteza ex atam en te c o m o o cen tu rião co m p re e n d ia esse título. M as n ão
se deve assu m ir q u e o cen tu rião era incapaz d e u sar o títu lo “ F ilh o d e D e u s ”
com u m e n ten d im en to cristão. E le, sem dúvida, tin h a consciência de que Jesus
fo ra ac u sad o d e s e r “ o rei d o s ju d eu s” (15.2,11,18) e m u ito p ro v av elm en te
co n h ecia a acusação d e C aifas d e q u e Jesu s era o F ilho d e D e u s (14.61,62).
Ele, p o r ser ro m a n o , c o m ce rte z a estava fam iliarizado c o m o co n c eito de
deificação d o s g o v ern an te s n o cu lto ao im p erad o r, alguns d o s quais eram
co n sid erad o s filhos d e deus. S ugere-se algum as vezes que a co nfissão d o
cen tu rião n o v ersículo 39 d ev e ser en ten d id a c o n tra o p a n o d e fu n d o d o
co n c eito d e “ h o m e m d iv in o ” helenista, o u seja, q u e ele via Jesu s c o m o o
filho d e D e u s d e fo rm a sem elh a n te o u su p erio r aos im p erad o res ro m an o s.75

74 E. C. Colwell, “A D efinite Rule for the Use o f the Article in the G reek New
Testam ent”, JBL (1933), p. 12-21; R. Bratcher, “A N o te on Huios Theou in Mark
15:39”, ExpTim 80 (1968), p. 27-28. A tentativa de Johnson, “Is Mark 15:39 the
Key to Mark’s Christology?”/57V731 (1987), p. 4-7, de refutar a regra de Colwell
não é bem-sucedida, pois, em bora haja algumas exceções à regra (como acontece
com qualquer regra gramatical), uma alta porcentagem de casos apoia a regra de
Colwell — e todos os usos de “Filho de D eus” nos evangelhos a apoiam. Assim,
huios (“ filho”) ou huios theou (“Filho de D eus”), quando precede o verbo, ocorre
sempre sem artigo (Mt 4.3; 8.9; 14.33; 27.40,43; 27.54; Mc 5.7; 15.39; Lc 1.35;
4.3,9; 8.28), e quando o substantivo aparece depois do verbo, sempre leva o artigo
definido (Mt 3.17; 11.27; 16.16; 17.5; 21.37; 26.67; Lc 3.22; 4.41; 9.35; 10.22; 20.13;
22.71).
75 T. H. Kim, “T he A narthrous huios theou in Mark 15,39 and the Roman Imperial
Cult” , Bib 79 (1998), p. 221 -41, observa corretam ente a importância de 15.39 para
a cristologia de Marcos e argumenta que ela deve ser compreendida em oposição
ao culto imperial romano. Específicamente, conform e m antém Kim, a confissão
do centurião designa Jesus com o o verdadeiro Filho de Deus, e não Augusto, que
591 E x c u rs o : O F ilh o d e D eus

O o b stá c u lo in su p eráv el p ara essa teoria, n o en tan to , é que o so frim en to —


em especial o so frim e n to v e rg o n h o so e ab jeto d e um a crucificação — era
d esc o n h e c id o en tre os “ h o m e n s div in o s” e n o culto ao im p erad o r, co m o o
era n o c o n c eito judaico de M essias (veja o ex cu rso so b re O homem divino
em 3.12). P ara o s antigos, o so frim en to n ã o era u m sinal d a p resen ça de D e u s
n em u m canal d a red en ção , m as um a re fu taçã o categórica da eleição e ação
divinas. A co n clu são d e M artin H e n g el é verificada p o r to d as as evidências
disponíveis. “ U m m essias crucificado, filho de D e u s o u D eu s, deve te r pa-
recid o u m a c o n tra d ição em te rm o s d e q u alq u er in div íd u o — judeu, grego,
ro m a n o o u b á rb a ro — p ara q u em fosse p e d id o p ara c re r em tal afirm ação;
e, c o m certeza, seria c o n sid erad o algo o fen siv o e to lo ” .76 O fa to d e a paixão
e a m o rte d e Jesu s n a cru z ev o carem a co n fissão d o ce n tu rião indica que,
p o r revelação divina, foi-lhe c o n c ed id o o m istério d a fé em Jesu s c o m o o
F ilh o d e D eus.

Excurso: O Filho de Deus (15.39)


O s filhos de D e u s eram p ro e m in e n te s n o m u n d o g reco -ro m an o , basica-
m en te c o m o governantes, filósofos, poetas, heróis o u operadores de milagres.
N o m u n d o helenista, a p o sição de filho d e D e u s, ju n to c o m o u tro s inúm eros
títulos, foi co n ferid a c o m o resu ltad o d e p ro jeção e excelência sobre-hum anas

tam bém se considerava filho de Deus. A tese de K im cai por terra em dois pon-
tos. Ele não trata a im portante questão de com o o centurião, se este estivesse de
fato pensando em termos do culto ao imperador, designaria Jesus com o o Filho
de Deus uma vez que o sofrimento não desem penhou nenhum papel sequer nos
governantes deificados. Kim argumenta ainda que só Augusto e talvez Tibério se
considerassem filhos de Deus, e essa ideia é certam ente muito restritiva. A termi-
nologia usada pelos imperadores era variada e fluida (e.g., salvador [do mundo],
[novo] deus, senhor [de todo o mundo], benfeitor e filho de deus), mas cada
im perador do século I, com a possível exceção de Tibério, via-se com o um deus
revelado e empregava títulos correspondentes mais ou m enos equivalentes àqueles
usados po r Augusto (veja E. Lohmeyer, Cbristuskult undKaiserkult [Tübingen: J. C.
B. M ohr (Paul Siebeck), 1919], p. 18-19). Suetônio em LJvesof the Caesars, refere-
-se abertam ente a Júlio, Augusto, Cláudio, Vespasiano e Tito como deificados.
Nero, sob quem Marcos provavelmente escreve seu evangelho, não era exceção
ao afirmar ser um filho de deus. O próprio Kim cita um exemplo (p. 235). Veja
P. Bureth, Les Titulatures impénales dans lespapyrus, les ostraca et les inscriptions d’Egypte
(30 a.C-284p.C.) (Bruxelles: Fondation Égyptologique Reine Elisabeth, 1964),
p. 23-25, que fornece mais exemplos da obsessão com títulos divinos entre os
imperadores do século I.
76 Hengel, Crucifixion in theAncient Worldand the Folly of the Message of the Cross, p. 10.
E x c u rs o : O F ilh o d e D e u s 592

(veja excu rso so b re O homem divino em 3.12). N a tradição judaico-cristã,


p o r c o n tra ste , “ F ilh o d e D e u s ” designa u m relacio nam ento filial e ú n ico com
D eus, possível pela graça de D eu s, e n ão p o r realizações hum anas. O conceito
d e F ilho de D e u s aparece pela prim eira vez n a tradição judaico-cristã em Ê xo-
d o 4.22,23 q u a n d o D e u s identifica Israel co m o “ m eu p rim eiro filho” . Israel,
d esd e o p rin cíp io c o m o po v o , é declarada co m o te n d o u m relacio n am en to
filial e ú n ico c o m D eu s. E ssa nação, Israel, n a história su b seq u en te d o A n tig o
T estam e n to , falha em viver d e ac o rd o co m o ideal d e D eu s, e o co n c eito de
filiação co m eç a a p assa r p o r u m p ro c esso d e e stre ita m en to d o p o v o c o m o
u m to d o até o rei, e este se to rn a o re p re se n ta n te d o p o v o d ian te de D e u s e
o v ice-reg en te d e D e u s o u re p resen ta n te d e Israel. D e u s, em u m a p ro m essa
especial p ara o rei em 2Sam uel 7.13,14, jura q u e u m fu tu ro d esc en d en te de
D avi d esfru taria de u m re la cio n am en to P ai-F ilho ú nico co m ele e q u e D e u s
“ firm ar[ia] o tro n o dele p a ra sem p re” .
N o en tan to , a m o n arq u ia , e tam b ém o p o v o co m o u m to d o , falh o u em
in c o rp o ra r o ideal d e filiação, e o co n ceito de filiação divina ficou ainda m ais
re strito e foi tra n sfo rm a d o , em b o ra em direções distintas. D eu s, em um a
co rre n te , to rn a -se o pai d o re m a n esce n te ju sto e te m e n te a D e u s em Israel
(SI 103.13; M l 3.17). N a lite ratu ra in tertestam en tal, o co n ceito de F ilh o de
D e u s fica ainda m ais re strito , p assa n d o d o re m a n esce n te justo (Jub. 1.24ss.;
Sl Sol. 13.8; 17.30; 18.4) p a ra u m indivíduo ju sto (Sab 2.16ss.). E m particu lar
em S ab ed o ria d e S alom ão 2.12-20; 4.10-14; 5.1-5 e Siríaco 4.10; 23.1-4, o
indivídu o ju sto será v in d icad o c o m o Filho de D e u s em m eio ao so frim en to ,
e esse so frim en to terá u m efeito d e expiação em favor d o s o u tro s, cu m p rin d o
desse m o d o m u ito s m o tiv o s d o so frim en to d o in d iv ídu o justo n o s salm os 22
e 69 e nas passagens d o S ervo d o S en h o r em Isaías 42,49,50 e 52— 5 3 .0 co n -
ceito d e filiação divina, co m relação à m o n arq u ia, segue u m a direção distinta.
“ F ilho d e D e u s ” , c o m o declínio d a m o n arq u ia ap ós D avi e S alom ão e, em
particular, d ep o is d o fim d esse tip o de g o v e rn o n a é p o ca d o exílio, to rn a-se
cada vez m ais asso ciad o co m as expectativas m essiânicas em que o M essias
co m o o F ilh o d e D e u s — Israel, p o r assim dizer, re d u zid o a u m — to rn a-se
o re d e n to r escato ló g ico d e D e u s q ue cu m p riría e suplantaria os ideais d o rei
c o m o F ilh o d e D e u s (4 Q 1 7 4 1.10-13; 4 Q 2 4 6 ).77

77 Para mais referências fora do N ovo Testam ento correlacionando “Messias” e


“Filho de Deus” , veja 4Esdras 7.28,29; 13.32,37,52; 14.9; lEnoque 105.2 ·,Adão e
Eva 42.2-5. Apesar de a autenticidade de algumas dessas passagens ser questionada,
elas, junto com a evidência de Cunrã, testificam de uma tendência no judaísmo
pré-cristão de correlacionar os dois títulos. Veja N. Dahl, “Eschatology and His-
593 E x c u rs o : O F ilh o d e D eus

M arcos, n o início d o evangelho (1.1) an u ncia que Jesu s é o F ilh o de


D e u s, m as ain d a re sta ser v isto que tipo d e F ilh o d e D e u s é ele. À m ed id a que
o evan gelh o se d esen ro la, fica ev id en te q u e as duas principais co rren tes de
F ilh o de D e u s n o A n tig o T e sta m e n to — a au to rid ad e real e o so frim en to
ex p iato rio e ju sto — são cu m p rid as n a p e sso a e m in istério d e Jesus. O título
“ F ilh o de D e u s ” é a p e d ra angular d a ap resen tação d e Jesu s p o r M arco s e a
categ oria su p re m a n a qual sua p esso a é revelada. Jesu s é reco n h ec id o c o m o
o F ilh o d e D e u s p elo Pai (1.11; 9.7) e p elo s d e m o n io s (1.24; 3.11; 5.9), ou
seja, ta n to o lado d e luz q u a n to o d e trevas d o m u n d o espiritual. E le fo rn eceu
indícios velados d e sua filiação divina em u rn a p aráb o la (12.6) e n o discurso
escatoló gico (13.32), e até m e sm o a re ceb e u d a b o ca d o su m o sacerdote
(14.61,62). Jesus, ao lo n g o d e seu m inistério, en sin o u , m in istro u e agiu co m
u m a au to rid a d e so b eran a que, em o u tro s locais em Israel, caracteriza D eus,
e só ele. C o n tu d o , n e n h u m ser h u m a n o até a m anifestação d o ce n tu rião na
cru z — n e m m e sm o seus discípulos — havia e n ten d id o o sen tid o d e “ F ilho
d e D e u s ” . Isso n ã o foi u m acaso acidental. Jesus re p rim e a especulação so b re
su a iden tid ad e p o rq u e to d o s esses anúncios eram p rem aturos. Só n a m o rte na
c ru z é q u e foi possível e n te n d e r c o rre ta m e n te q u em é Jesus, e o que “ F ilho
d e D e u s ” significa.78 F ilh o d e D eu s, c o n fo rm e d efin id o na cruz, é aquele que
d á sua vida c o m o resgate d e m u ito s (10.45). O evangelho d e M arcos alcança
seu ápice n a confissão d o centurião: “ R ealm en te este h o m e m era o F ilho de
D eu s!” (15.39). E ssa confissão d e fé, iro n icam en te, n ã o vem de u m discípulo,
p a re n te n e m m e sm o d e u m cidadão judeu. E o g en tio d o g ru p o de fo ra —
o ca p itã o d o p elo tão d e execução e, p o r co n seg uin te, u m inim igo — que
d eclara pela p rim eira vez Jesu s c o m o o F ilh o de D eus. A cru z é a revelação
su p re m a d e Jesu s c o m o o F ilho d e D e u s, e, p o r essa razão, esse título, que
deriva d e D e u s (1.11; 9.7), su p lan ta to d o s os o u tro s títulos, qu alq u er q u e seja
ele — M essias, F ilho d o h o m e m , p ro feta, m e stre o u Senhor. A cru z tam b ém
é o local de n asc im en to d a fé, pois a co n fissão d o cen tu rião é u m a confissão
salvífica d e Jesu s c o m o o F ilho de D eu s.
A cru z é a in terseção em q u e D e u s e n c o n tra a hu m anidade. A confissão
salvífica n ão se baseia em algum c o n h e c im e n to an terior, na p ro x im id ad e de

tory in Light o f the Dead Sea Scrolls” , em The Future of Our Religious Past, ed. J.
Robinson (New York: H arper and Row, 1971), p. 9-28; Juel, Messiah and Temple:
The Trial of fesus in the Gospel of Mark, p. 108-14.
78 Essa é a razão por que Marcos não acrescenta “Filho de D eus” à confissão de
Pedro em 8.29, com o o faz Mateus 16.16; Pedro não pode conhecer corretamente
Jesus com o o Filho de D eus até que a filiação divina seja definida pela cruz.
E x c u rs o : O F ilh o d e D e u s 594

Jesu s n em em algum privilégio; é, antes, u m ato d e fé em u m ato d e expiação


revelado d iv in am en te. A co n fissão d o cen tu rião é u m a pro clam ação salvífica
d a igreja, pois é o p o n to de convergência d o s dois principais tem as de M arcos:
o sen tid o d e Jesu s e o sen tid o d a fé. O F ilho d e D e u s, s o b re q u em re p o u sa a
b ên ção e a m o r singulares d o Pai, n ão esco lh e exaltar a si m esm o , m as seguir
u m ca m in h o d e servidão, n a verd ad e d e so frim e n to e m o rte vicários, para
q u e o m u n d o , p o r in te rm é d io da cruz, p u d esse re co n h ecê-lo c o m o o F ilh o
e, c o m ele, p u d e sse c o m p artilh ar d o acesso livre e ju biloso ao Pai.

F ID E L I D A D E VERSUS T E R R O R ( 1 5 .4 0 -1 6 .8 )

O san d u ích e m arc an o conclui o se g u n d o ev ang elho em sua fo rm a ave-


riguável m ais an tig a (15.40— 16.8). M arcos, ap ó s a co n fissão ap o teó tica d o
cen tu rião n a cru z, ap resen ta u m a h istó ria de várias m u lheres q u e estavam na
cru z q u e d ep o is d e m a n h ã b e m ced o n a P áscoa visitam o sep u lcro d e Jesus.
M arcos, n o m eio d o relad o das m ulheres, acresc en ta a h istó ria d e Jo sé de
A rim ateia p e d in d o o c o rp o d e Jesu s p ara P ô n cio Pilatos, o p re feito ro m an o .
A h istó ria original, c o m o a c o n te ce em cada u m d o s sanduíches m árcanos,
é corrigida pela seg u n d a h istó ria acrescen tad a em seu m eio. O p ad rão d o
ú ltim o san d u ích e é o seguinte:

A 1 As m ulheres na cruz (15.40,41)


B José de A rim ateia diante de Pôncio Pilatos (15.42-46)
A 2 As m ulheres n o sepulcro (15.47— 16.8)

N o p re s e n te san d u ích e , a o u sad ia de J o s é de A rim ateia é p o s ta em


co n tra ste c o m o te m o r das m u lh eres. N a cru z, elas o b serv av am “ de lo n g e ”
(15.40) e, n a P áscoa, ansiosas p ara sab er q u em tiraria a p ed ra d o sep u lcro
(16.3), ficam a m ed ro n tad as (16.5) e assustadas (16.8) c o m a p resen ça d o anjo.
Elas, em vez d e an u n ciar a ressu rreição aos discípulos c o n fo rm e o rd e n a d o
pelo anjo, fo g em e n ão c o n ta m n ad a a n in g u ém (16.8). Jo sé d e A rim ateia,
co m atitu d e d istin ta daquela das m ulheres, n ão só o b serv a, m as tam b ém age
c o m reso lu ção e ousadia. E sp e ra c o m expectativa p elo R eino de D e u s e se
aprox im a co m co rag em d e P ô n cio Pilatos, to rn a n d o -se o p rim eiro indivíduo
n o evangelho a literalm en te “ tom [ar] o [...] c o rp o [de Jesu s]” , c o n fo rm e or-
d en a d o p o r Jesu s n a últim a ceia (14.22) — o m e sm o c o rp o que fora ungido
antes p ara o se p u ltam en to pela m u lh er d e 14.8.79

79 Sobre o sanduíche marcano, veja J. R. Edwards, “Markan Sandwiches: T he Signi-


ficance o f Interpolations in Markan Narratives”, NovT3\ (1989), ρ. 213.
595 M a rc o s 15.40-41

40,41 M arco s conclui a narrativa da crucificação ao incluir o n o m e de


várias m ulheres que “ estavam o b serv an d o d e lo n g e” (gr. apo makrotheri)!‘" Isso,
sem dúvida, é u m a alusão ao lam en to em S alm os 38.11, em que o indivíduo
justo so fre d o r lam en ta p o r seus am igos e v izin h o s q u e “ ficam lon g e” (LX X,
apo makrotheri). A palavra g rega p ara “ o b serv afr]” (theorem), usada mais um a
vez em relação às m u lh eres n o versículo 47 e 16.4, é b astan te instrutiva. N o
discu rso d o te m p lo (13.32-37) e n o G e tsê m a n i (14.34,38), Jesu s elogia o
“ vigifar]” o u “ o lh ja rj” (ARC) c o m o u m a v irtu d e d o discipulado (veja a des-
crição d o s te rm o s nessas passagens). A palavra usada p o r M arcos aqui para
“ o bserv afr]” , n o en tan to , é diferente. À p a rte d a descrição das m ulheres em
15.40,47; 16.4, o te rm o o c o rre q u atro vezes a n te rio rm en te em M arcos, e em
cada u m a das o co rrên cias descreve a o b serv açã o ap a rtad a o u d e u m especta-
d o r, em o p o sição ao v er que leva à p ercep ç ão e à convicção.*81 A o bservação
das m ulh eres n ão é o tip o de v er que, n o caso d o cen tu rião n o versículo 39,
leva à fé; n em , ta m p o u co , d o tip o de Jo sé de A rim ateia que leva à ação.
A s m u lh ere s são identificadas c o m o “M aria M adalena, Salom é e M aria,
m ãe d e T iago, o m ais jovem , e de J o s é ” . O n o m e d e M aria M adalena aparece
em to d o s o s evangelhos c o m o a p rim eira te ste m u n h a d a ressurreição.82 O
tex to g re g o p e rm ite que a m ãe d e Jo sé seja a m ãe apenas de Jo sé, m as a N V I
p ro v a v elm en te está c o rre ta em relação a M aria c o m o a m ãe d os dois filhos.83
É difícil d izer co m certeza se essa M aria é a m ãe d e Jesus, que em 6.3 tam bém
é id en tificad a co m o a m ãe d e T iag o e José. O fato d e 15.40, de fo rm a distinta
d e 6.3, desig n ar T iag o c o m o “ o m ais jo v em ” , e d e os o u tro s irm ão s d e Jesus

R‫ ״‬N o texto apócrifo da Epistula Apostolorum 9 os nomes das mulheres aparecem


com o “Sara, Marta e Maria Madalena” .
81 E m 3.11, o texto refere-se aos demônios que veem as obras poderosas de Jesus;
em 5.15, à mulddão (que prontam ente ura Jesus de seu território) que vê o ende-
m oninhado curado; em 5.35, ao fato de Jesus ver a comoção no quarto da filha
de Jairo; e em 12.41, à mulddão observando as pessoas pondo dinheiro nas caixas
de ofertas.
82 O nom e “Madalena” é ostensivamente derivado de Magdala, na costa oeste do
mar da Galileia. Maria Madalena é considerada popularmente, em bora de forma
equivocada, com o uma mulher que fora uma prostituta. Não há evidência disso
nos evangelhos. A única referência a sua antiga vida é que Jesus expulsou sete
dem ônios dela (Lc 8.2; Mc 16.9), mas essa possessão de dem ônios não é jamais
ligada à prostituição. Veja J. Shaberg, “H ow Mary Magdalene Became a W hore”,
BRev 8 /5 (1992), p.30ss.
83 A inclusão dos nomes dos dois meninos entre o artigo definido (hê) e “mãe” (meter)
deixa implícito que são filhos dela: Maria hê Iakõbou tou mikrou kai Iõsêtos mêtêr.
M a rc o s 15.40-41 596

0 u d as e Sim ão) n ão serem m en cio n ad o s, levanta p elo m en o s algum a suspeita


d e que essa é u m a M aria d iferen te. N o en tan to , é possível que o co m en tário
“T iago, o m ais jo v em ” te n h a sid o m e n cio n a d o p ara diferenciá-lo d e T iago,
o filho d e Z e b e d e u e irm ã o d e Jo ão , cuja m ãe Salom é ta m b ém é m en cio n ad a
n o versículo 40 (M t 27.5Ó).84 D a m esm a fo rm a , a om issão d o s o u tro s dois
irm ão s d e Jesu s, Ju d a s e Sim ão (6.3), p o d e ser explicada p elo fato d e q u e n ão
eram co n h e cid o s, c o m o o eram T iago e Jo sé, d a igreja de R om a. O bjeta-se
ainda algum as vezes q u e M arcos, se tivesse d e fato a in ten çã o d e m en cio n a r
a m ãe d e Jesus, teria escrito “ a m ãe d e Jesu s” o u “ sua m ãe” (e.g., Jo 19.25),
assim , essa M aria é o u tra m ulher. E ssa su g estão em si m esm a é b astan te ra-
zoável, m as, n o c o n te x to d o evangelho de M arcos, é de algum a fo rm a m en o s
persuasiva, pois as d u as referências a M aria em 3.31 e 6.3 p õ e u m a distância
calculada e n tre ela e Jesus. A referên cia a M aria n o versículo 40 é tam b ém ,
literalm ente, “ d e lo n g e” e n ã o está em d esa rm o n ia c o m o u tras descrições de
M arcos in fre q u e n te s e u m ta n to im pessoais d a m ãe de Jesus (veja o excurso
so b re As mulheres no evangelho de Marcos em 14.9).85 C o n sid eran d o -se
o fato d e q u e M aria, T iag o e J o s é fo ram m en cio n a d o s antes em M arcos (6.3)
e tam b é m q u e M arcos, em c o n c o rd ân c ia co m o versículo 41, m en cio n a-o s
em co n ex ão c o m o m in istério galileu d e Jesus (3.31), é possível su p o r, se n ão
fo r p ro vad o , q u e a M aria, T iag o e Jo sé, m en cio n a d o s n o versículo 41, são
m em b ro s d a fam ília d e Jesus.
O s n o m e s pessoais em 15.40 são in co m u n s em M arcos. A m en çã o a eles
n esse p o n to é relevante a fim d e estabelecer a evidência das testem u n h as

84 Sobre Salomé, na Bíblia e na tradição cristã primitiva, veja R. Bauckham, “Salome


the Sister o f Jesus, Salome the Disciple o f Jesus, and the Secret Gospel o f Mark” ,
NovTSS (1991), p. 245-75, que corrige várias afirmações sobre Salomé feitas por
M. Smith, Clement of Alexandria and a Secret Gospel of Mark (Cambridge, Mass.:
Harvard University Press, 1973), p. 189-92.
85 Os exegetas católicos rom anos e ortodoxos interpretam tradicionalmente que a
Maria do versículo 40 se refere a alguém que não a mãe de Jesus, uma vez que
eles, em dependencia dos credos antigos, sustentam que Maria permaneceu “para
sempre virgem” . Veja J. Fitzmyer, BRev 7 /5 (1991), ρ. 43. Alguns estudiosos pro-
testantes seguem essa interpretação, em bora por motivos distintos. Por exemplo,
V. Taylor, The GospelAccording to St. Mark, ρ. 598, afirma categoricamente: “Eles
com certeza não são irmãos de Jesus (vi. 3), pois Marcos não designaria Maria, a
Virgem, dessa form a indireta” . A referência de Taylor à “Virgem Maria” deduz
que a referência de Marcos a Maria faz paralelo à de João (19.25-27), mas esse
não é o caso. As duas referências anteriores a Maria em 3.35 e 6.3 são bastante
“indiretas”.
597 M a rc o s 15.42-43

oculares da m o rte e local d o se p u ltam en to de Jesus, fatos im p o rta n te s para


certificar a re ssu rreiçã o (16.1-8). C o n tu d o , eles ta m b é m são im p o rtan tes p o r
causa da descrição d o versículo 41. A s mulheres, e n ão os discípulos escolhidos
(de q u em n ão o u v im o s m u ito ), m as até aqui n ã o m en cionadas, p erm a n ece m
até o fim am argo. V erdade, elas “ estavam o b se rv a n d o de lo n g e” , m as até
m esm o essa distância é m elh o r que a ausência. O fato de que “ tinham seguido
e serv id o a Je su s” d esd e a G alileia até Jeru sa lém en globa a duração de seu
m inistério. O s te m p o s verbais n o im p erfe ito d o s d ois verb o s n o greg o não
indicam a c o m p a n h am en to e serviço esporádicos e ocasionais, m as a presença
e o serv iço c o n tín u o s p ara Jesu s p o r to d o seu m inistério. E stas e “ m uitas
o u tras m u lh e re s” fizeram o q u e M arcos d efin iu c o m o discipulado ao lon g o
d e seu evangelho: seguir e serv ir Jesus. E m M arcos, afirm a-se que só os anjos
(1.13) e as m u lh eres (15.41) m in istraram a je su s. A fé e os seguidores vêm de
lugares in esp erad o s. U m cen tu rião ro m a n o faz a prim eira co nfissão cristã, e
as m ulheres, e m b o ra n ão os seguidores m ais notáveis de Jesus, estavam entre
seus m ais fiéis seguidores.

42,43 M arcos, n o registro das m ulheres, insere a história de José de A rim a-


teia, que apela a P o n d o Pilatos para ter o c o rp o de Jesus (tam bém Evangelho de
Pedro 3).86 “A o cair da tarde” (ARA) (“vespéra d o sáb ado ” , N V I) p õ e o evento
n o final d a tarde d e sexta-feira, antes d o p ô r d o sol. O sep ultam ento de Jesus
exige pressa um a vez que o sábado seria n o dia seguinte e, p o rtan to , o u tro dia
san to n o qual o trab a lh o era proibido. M arcos descreve a sexta-feira co m
sua n o m e n c la tu ra n o rm al, “ D ia da P rep a raç ão ” , ap esar d e nessa instância a
sexta-feira ser P áscoa e, p o rta n to , dia santo. E le aind a descreve esse dia co m o

K6 J. D. Crossan, The HistoricalJesus: The Life of a Mediterranean Jewish Peasant (San


Francisco: HarperCollins, 1991), p. 391-94, argumenta que José de Arimateia é urna
ficção de Marcos. Crossan acredita que o Evangelho de Pedro, que omite a referência
a José de Arimateia, preserva um registro histórico mais respeitável. A necessidade
de Crossan de prescindir da figura de José de Arimateia é imprescindível para
sua crença de que o corpo de Jesus foi jogado aos cães, e não enterrado em um
sepulcro. O fato de confiar no Evangelho de Pedro é fantasticamente irônico, uma
vez que esse evangelho apócrifo difere dos evangelhos canônicos na apresentação
de um relato muito mais sobrenatural do sepultamento e da ressurreição, algo que
Crossan rejeita. Se Marcos esüvesse inventando o José de Arimateia, dificilmente
o tornaria um m em bro do Sinédrio, até aqui totalmente antagonista de Jesus! Veja
a tese fundamental de Crossan em G. G. O ’Collins e D. Kendall, “D id Joseph o f
Arimathea Exist?” BihlS (1994), p. 235-41.
M a rc o s 15.42-43 598

“v éspera d e sá b a d o ” . Tais descrições são ainda m ais indícios de que M arcos


escreve p ara os g en tio s u m a vez que seriam supérfluas para os leitores judeus.
A crucificação d esem p e n h av a u m p ap el cen tral ao ap arato de te rro r de
R om a. E ra co stu m e ro m a n o p e rm itir q u e o s crim ino sos crucificados ficas-
sem n a c ru z até a d ec o m p o siç ão d o co rp o , c o m o alerta p ara possíveis vilões
o u escravos rebeldes. N o en tan to , se o c o rp o fosse requerido, p o d ería ser
entreg u e p ara os p aren tes o u am igos p a ra u m sep u ltam en to ap ro p riad o .87
O s judeus, p o r o u tro lado, consideravam o se p u ltam en to d o s m o rto s — in-
clu ind o até m e sm o o m o rto d e seus inim igos — u m ritual de pied ad e (2Sm
21.12-14). D e a c o rd o co m D e u te ro n ô m io 21.23, u m crim in o so executado
p o r u m crim e capital (em geral p o r apedrejam ento) cujo co rp o foi p e n d u ra d o
em u m a á rv o re em desg raça m erecia ser re m o v id o e sep u ltad o antes d o p ô r
d o sol. O s ju d eu s levavam esse m a n d a m e n to a sério. Jo sefo , relatan d o um a
m atan ça em Jerusalém , testifica q u e “ jos idum eus] fo ram de fato tão lon g e em
su a im p ie d ad e a p o n to de lan çar fo ra os c o rp o s sem sep u ltam en to , em b o ra
o s judeus sejam m u ito cu id ad o so s co m os rituais de sep u ltam en to q u e até
m esm o seus m alfeitores sentenciados à crucificação são retirados e sepultados
antes d o p ô r d o so l” [Guerra 4.316-17). N o caso d e je s u s , o c o m p o rta m e n to
d e Jo sé d e A rim ateia se ajusta p erfeitam en te ao c o stu m e judaico 0 o 19.31).88
O s sep u ltam en to s feitos às pressas, é claro, co rriam o risco d e e n te rra r al-
g u ém qu e estivesse ap enas d esm aiad o o u apenas ap arentasse estar m o rto ; o
co stu m e judaico salvaguardava co n tra essa possibilidade ao p rescrev er visitas
periódicas ao sep u lcro ap ó s a m o rte .89
Jo sé de A rim ateia, co m o u m m em b ro respeitado d o conselho, garante que
Jesu s receb a u m sep u ltam e n to judaico ap ro p riad o . O fato d e ele te r p ed id o
o c o rp o a P ô n cio P ilatos im p ed iu q u e Jesus so fresse o u tras indignidades na
m ão d o s ro m an o s. A firm a-se q u e Jo sé, d e o u tra fo rm a u m estra n h o para

87 Veja o material reunido em R. Gundry, Mark, p. 982. Assim também Hengel,


Crucifixion in theAncient World and the Folly of the Message of the Cross, p. 47-48.
88 A descrição do sepultamento de 15.42-47 refuta de forma eficaz a conjectura de
J. D. Crossan {Jesus:A Revolutionary Biography [San Francisco: HarperSanFrancisco,
1994], p. 128-29) de que o corpo d ejesu s foi jogado aos cães (“devorado por
carniceiros ou enterrado em um sepulcro com um /de massa”, de acordo com M.
Borg [postado na internet em “Jesus 2000@info.harpercollins.com”, 25 de março
de 1996). N ão há nenhum a evidência no N ovo Testam ento nem em nenhum a
literatura cristã primitiva sobrevivente para as afirmações de Crossan e Borg em
relação a esse assunto.
89Str-B 1.1,047-48.
599 M a rc o s 15.42-43

n ó s, é d e A rim ateia, p rov av elm en te u m n o m e variante d e R am á (tam bém


co n h e cid a c o m o R am ath ain -zo p h im ), cerca d e 32 q u ilô m etro s a n o ro e ste
de Jeru sa lém .90J o s é d e A rim ateia era “ m e m b ro de d estaq u e d o S inédrio” . A
palavra grega p ara “ d e d estaq u e” (euschêmõrí) significa ho n o ráv el e respeitável,
c o m o ta m b é m p o d ero so . O co n selh o d o qual era m e m b ro (o te rm o greg o
bouleutês significa “ co n selh e iro ”) d eve se ro S inédrio judaico.
A p re sen ça d e Jo sé d e A rim ateia n a co n v e n ção sanduíche de M arcos,
n o e n ta n to , d ev e-se m ais a sua v irtu d e c o m o m e m b ro d o Sinédrio. Três
afirm açõ es so b re ele em 15.43 o d istin g u em c o m o u m m o d elo de disciplina.
P rim eiro, Jo sé d e A rim ateia “ tam b ém esperava o R eino de D e u s ” . Isso, com
certeza, significa m ais d o q u e ser u m ju d eu p ied o so à espera d o cu m p rim en to
da esp eran ça m essiânica. M ateus 27.57 e J o ã o 19.38 d escrevem Jo sé d e A ri-
m ateia c o m o u m discípulo secreto. A referên cia de M arco s sugere o m esm o.
M arcos, d e m o d o sim ilar à descrição d e L ucas d e Sim ão à esp era da redenção
d e Israel (Lc 2.38), enfatiza n o g re g o a expectativa d e J o sé d e A rim ateia pelo
R eino d e D e u s, q u e nessa últim a o co rrê n c ia n o evangelho é cu m p rid a em
Jesus. Jo sé d e A rim ateia tam b ém “ dirigiu-se co rajo sam en te a P ilatos e p ediu
o c o rp o d e Je su s” . Foi p reciso co rag em p ara p e d ir ao g o v e rn a d o r o c o rp o de
u m h o m e m ex ecu tad o co m o inim igo d e R om a. O a m p aro e defesa inespe-
rad o s d e Jo sé d e A rim ateia é ainda o u tra g u in ad a d a iro n ia de M arcos, pois
u m m e m b ro d o Sinédrio, até o m o m e n to u m an tag o n ista d e Jesus, aparece
c o m o u m p ro ta g o n ista d e Jesus. E sse é u m im p o rta n te lem b re te de que n em
tod as as autoridades religiosas judaicas se o p u n h a m a je su s. Jo sé de A rim ateia,
c o m o o m e stre da lei am igável de 12.34, n ã o co m p a rtilh a d o an tag o n ism o a
Jesus, atitu d e característica de seus colegas. A n tes, ele realiza u m a tarefa de
d ev o ç ão a je s u s que faz paralelo, em co rag em , se n ã o em custo , à u n ção d o
c o rp o d e Jesu s p o r u m a m u lh er em 14.8, p o is ela p re p a ro u o c o rp o dele para
o sep u ltam en to , e Jo sé de A rim ateia p ro c u ra seu c o rp o p ara o sep u ltam en to
(veja ta m b é m Evangelho de Pedro 23).91 A visita co rajo sa d e Jo sé d e A rim ateia
a P ô n cio Pilatos, p o rta n to , cu m p re o p ap el d e u m d iscípulo fiel. O p resen te
sand uíche se assem elha m uitíssim o àquele d e 1 4 .5 3 7 2 ‫־‬: ta n to Jesus q u an to

90 A identificação é sugerida por 1Samuel 15.34 em que o term o hebraico “Ramah”


é traduzido pela LXX como “Armathain” (veja tam bém Josefo Ant. 13.127). A
mesma identificação foi feita na igreja primitiva por Eusébio e Jerónimo. Veja
ainda J. Pattengale, “Arimathea” , M RD 1.378.
91 Observe a repetição de to sõma mou (“meu corpo”) na unção do corpo de Jesus
em 14.8, nas palavras da última ceia em 14.22 e no pedido de José de Arimateia
para retirar o corpo de Jesus (to sõma tou Iésou; “o corpo de Jesus”) em 15.43.
M a rc o s 15.44-45 600

J o s é d e A rim ate ia d ão u m co ra jo so te s te m u n h o d ian te das au to rid a d es,


e n q u a n to P e d ro e as m u lh eres se ap e q u en am n a in certeza e tem o r. P o r fim ,
n ão é p ossív el d esc o n sid e rar a p ro b ab ilid ad e d e qu e M arcos p õ e J o s é de
A rim ateia, u m líder d o s judeus, em co n ju n ção co m o centurião, u m co m an -
d an te d o exército ro m an o . O c o m p o rta m e n to d e u m e a co nfissão d o o u tro
indicam q u e Jesu s é o S alvador d e judeus e d e g entios.92

44,45 A d escrição d a liberação d o c o rp o d e Jesus p o d e refletir as o rd e n s


d e fato d e P o n d o Pilatos.93 O fato d e esse g o v e rn a d o r liberar o c o rp o p o d eria
p ossiv elm en te significar q u e ele n ão considerava Jesus u m crim in o so com um .
U m g e sto adicional de exoneração ta m b é m é sugerido p elo sep u ltam en to
d e Jesu s p o r J o s é d e A rim ateia em u m sep u lcro d e sua fam ilia (presum ivel-
m en te), po is a M ish n á p ro ib ia aqueles que m o rria m d e fo rm a ignóbil d e ser
sep u ltad o s c o m o seus pais em sepulcros ancestrais (m. Sanh. 6.5). O teste-
m u n h o d o c e n tu rião d ian te de P o n d o P ilatos e a descrição d o su b seq u e n te
sep u ltam en to g a ran tem ao s leito res q u e Jesu s havia realm ente m o rrid o . O s
exegetas su g erem o casio n a lm e n te q u e Jesu s n ã o m o rre u d e fato, m as apenas
desm aio u n a cru z e, m ais tard e , reviveu graças ao fresco r d o sepulcro. O
relato d e M arco s to rn a essa possib ilid ad e to talm e n te equivocada. T rês tes-
tem u n h as — J o s é d e A rim ateia (v. 43), P ô n cio P ilatos (v. 44) e o cen tu rião
(v. 45) — testificam da m o rte d e Jesus, dois d o s quais (José de A rim ateia e o
centurião) tiveram d e fato c o n ta to co m o co rpo. H á ta m b ém um a referência
de fo rm a b ru sc a ao c o rp o c o m o “ cadáver” (v. 45 [ΓΕΒ]; gr. toptòma\ N V I,
“ c o rp o ”). Vale ainda a p en a re c o rd a r q ue os ro m a n o s crucificaram cen ten as
de m ilhares d e ind iv íd u o s d u ra n te o s séculos em q ue estiveram n o p o d er, e
n ão há re g istro q u e algum deles te n h a so b rev iv id o à cruz. E sse fato terrível

92O parágrafo precedente argumenta contra Hooker, The GospelAccording to Saint


Mark, ρ. 381; e R. Brown, “T he Burial o f Jesus (Mark 15:42-47)”, CBQ 50 (1988),
p. 233-45, que afirma que José de Arimateia enterrou Jesus apenas por piedade
e lealdade à Torá, e não por devoção, sobretudo para evitar a maldição sobre a
terra conform e apresentada em D euteronóm io 21.23. O versículo 43 indica que
José de Arimateia é motivado pela fidelidade e submissão a Jesus e à mensagem
pregada por este. Veja a crítica à posição de Brown por G. W. Shea, “ O n the Burial
o f Jesus in Mark 15:42-47”, Faith & Reason 17 (1991), p. 87-108.
93 A fala estilizada das ordens rom anas é apresentada na palavra “ cham ando”
(proskalein) no versículo 44, a palavra latinizada para “centurião” ( kentyrion, e não
a palavra grega mais usual, hekatontarkês) e, em especial, “cedeu” (ARA) {dõreomai,
e não didomi) o corpo no versículo 45 (NVI, “entregou o corpo”).
601 M a rc o s 15.46

é p ro v a positiva de q ue o capítulo 16 n ã o tra ta d e re ssuscitam ento, m as de


ressu rreição d e n tre os m o rto s.

46 Jo sé de A rim ateia, te n d o re ceb id o p e rm issã o d o g o v ern ad o r, enrola o


c o rp o em lençóis de lin h o c o m os quais o baixara da cru z e “ o co lo co u n u m
sep u lcro cavado n a ro c h a ” (15.46; A t 13.29).9495O co rp o , em geral, teria sido
u n g id o c o m especiarias, m as o tardio d a h o ra to rn o u n ecessário o ad iam en to
d a u n çã o até d ep o is d o sáb ad o (16.1). N o original greg o, M arcos refere-se ao
c o rp o de Jesu s n o g ên e ro m asculino, ap e sar de os dois anteced en tes (“ cor-
p o ” , soma-, “ cadáver” , ptõmà) serem n eu tro s. E ssa in c o n g ru ê n cia gram atical
p o d e ser d ev id a à n ã o disposição d e M arcos, talvez p o r reverência, de se
referir de fo rm a im p essoal ao c o rp o d e Jesus. C o n tu d o , tam b ém p o d eria ser
u m te ste m u n h o tácito da ressurreição, o u seja, d e q u e aquele que v en ceu a
m o rte n ã o p o d e jam ais ser referid o c o m o algo, em vez d e co m o alguém. A
lei judaica p ro ib ia q ue os cadáveres fo ssem e n terrad o s d e n tro d e Jerusalém ;
antes, tin h am d e ser sep ultad o s p elo m e n o s cin qu en ta cú b ito s (c. 22 m etros)
fo ra d o s m u ro s (m. B. Bat. 2.9).9‫י‬
O s judeus, de fo rm a d istin ta d e n o sso costume de sepultamento de
selar o c o rp o em u m caixão e baixá-lo ao solo, co rtav am sepulcros (ou au-
m en tav a m cavernas naturais) nas en co stas de calcário d a Palestina. A M ishná
especifica u m a caverna d e sep u lta m e n to co m 1,8 m e tro p o r 2,7 m etro s, com
n ich o s sim ilares a prateleiras n o s quais os c o rp o s p o d ería m ser colocados
(m. B. Bat. 6.8). A p ro x im ad a m en te m il desses sepu lcros “ k o k h im ” (heb.;
“ n ic h o ”) fo ram d esc o b erto s em Jeru sa lém e n o s seus arred o res, alguns dos
quais tê m até u m a p eq u e n a cavidade n o fo rm a d o de u m c o rp o entalhadas
em suas superfícies su p erio res e planas. O s o sso s, apó s a carn e d o c o rp o se
d e c o m p o r, eram rem o v id o s e d ep o sitad o s em ossu ários talh ad o s em baixo
d o s n icho s, lib eran d o o n ich o acim a p ara u m u so p o sterio r. O A n tig o T es-
ta m e n to refere-se ao d ep o sita r os o sso s em ossuários c o m o “ reuní[dos] aos
seus a n te p a ssa d o s” (e.g., 2Rs 22.20). A s cavernas de se p u lta m e n to eram
seladas co m p ed ras g ran d es em fo rm a d e d isco q u e eram roladas em calhas

94 Alguns comentaristas questionam se José de Arimateia poderia ter de fato com-


prado materiais na Páscoa (v. 46). N o entanto, a tradição rabínica fazia provisões
para tais emergências em dias santos (e.g., m. Shab. 23.1). Veja Hooker, The Gospel
According to Saint Mark, p. 381.
95 O Evangelho de Pedro 24 refere-se ao corpo sendo sepultado no sepulcro chama-
do “jardim de José de Arimateia”, refletindo presumivelmente a influência de
João 19.41.
M a rc o s 15.47-16.1 602

n a fren te d a ab e rtu ra, selan d o as im purezas rituais n o sep u lcro e im p ed in d o


a en tra d a d e anim ais e d e lad rõ es de sep u ltu ra.96
A visita ao Jard im d o S ep u lcro em Jeru sa lém revela u m sep u lcro m u ito
parecid o co m aquele em q u e Jesu s teria d e ser colocado. Q u a se certam en te
não é o sep u lcro d e fato, m as isso n ão é m u ito im p o rta n te n o caso d e Jesus
um a vez que, c o n fo rm e M arcos garante, seu sep u lcro p o d ia ser tud o , m en o s
o local d e seu re p o u s o final.

1 5 .4 7 — 1 6 .1 M arcos co m p leta agora o san d u íche iniciado em 15.40 ao


re to rn a r à h istó ria das m ulheres. D u a s das m ulheres m en cio n ad as n a cru z
estão p re se n te s p ara o b serv a r Jo sé de A rim ateia e n te rra r Jesus. E las são M a-
ria M ad alen a e “ M aria, m ãe d e J o s é ” .97 M aria ap arece n o versículo seguinte
c o m o a m ãe d e T iago. E ssa sem dúvida é a m esm a M aria m en cio n ad a em
15.40; a m en çã o d e u m filho em 15.47 e d e o u tro em 16.1 é ev id en tem en te
u m a abreviação d e conveniência, g aran tin d o aos leitores que a m esm a m u lh er
estava p re sen te ta n to n o sep u lta m e n to q u a n to n o sep u lcro vazio. M arcos
o b serv a m ais u m a vez q u e as m ulheres “v iram ” o n d e Jesus fora sepultado.
A palavra p ara “v iram ” é a m esm a u sad a para “ o b se rv a n d o ” n o versículo 40
(gr. theorem), o u seja, o b serv açã o cuidadosa.

96 A. Kloner, “D id a Rolling Stone C losejesus’ Tomb?” BARev 25 /5 (1999), p. 22ss.,


argumenta que a pedra bloqueando o sepulcro de Jesus seria um bloco quadrado,
e não um disco redondo. Ele fundamenta seu argumento (1) no fato de que 98%
das cavernas de sepultamento na área de Jerusalém (= 900 túmulos) usavam blocos
quadrados, e (2) sobre a afirmação de que o term o grego kyliein (“rolar”) pode
significar “desalojar” , e não “rolar” . Considerando-se (1), em bora os sepulcros
normais podem ter usado blocos de pedra, os sepulcros dos ricos (como no caso
dos sepulcros da família herodiana e das famílias do Sinédrio) usavam discos que
rolavam. Espera-se que José de Arimateia, um m em bro notável e próspero do
conselho, pertencesse à úlüm a categoria. Com relação a (2), nem a BAGD 457
nem a LSJ 1,008 fornece qualquer definição para kyliein, exceto “rolar” . Todos os
evangelhos falam da pedra sendo rolada (Mt 27.60; 28.2; Mc 15.46; 16.3; Lc 24.2),
como tam bém o fazem o Evangelho dePedro 36 e EpistulaApostolorum 9. A evidência
e o argumento de K loner são insuficientes para anular o testem unho unânime da
tradição cristã primitiva de que o sepulcro oferecido p o r José de Arimateia foi
selado por um disco que rolava.
97 Dois manuscritos uncíais, D e Θ, substituem o nom e de Tiago por José no ver-
sículo 47. Essa é um a alteração posterior explicada pelo fato de que Tiago era o
mais velho dos dois irmãos e mais bem conhecido na igreja de algum tem po mais
tarde. A leitura com apenas José é apoiada pela maioria dos manuscritos e, por ser
a leitura mais difícil, deve ser a preferida.
603 M a rc o s 15.47-16.1

U m genitivo g re g o a b so lu to em 16.1 c o n ecta d e m o d o co n scien te a


narrativa c o m o versículo p re ced e n te em 15.47. “ Q u a n d o te rm in o u o sába-
d o ” indica q ue a n arrativ a d a ressu rreição n ã o é u m ev en to isolado, m as se
relacio n a d e m o d o específico à m o rte e ao se p u ltam en to de Jesus. A quele
que re ssu scito u é o m esm o q u e foi crucificado. O sábado, p ara os judeus, era
o últim o dia d a sem ana. O dia seguinte (d o m in g o) era designado o prim eiro
dia d a n o v a sem an a q u e se iniciava, o u , co m o afirm a M arcos em grego, “ o
p rim eiro dia d o sáb a d o ” (v. 2). Isso especifica o d o m in g o co m o o dia da res-
su rreição d e Jesus.98 O s judeus u ngiam o s c o rp o s c o m ó leo m istu rad o com
m irra e aloés (Jo 19.39). E ssas “ especiarias” fo ram ev id en tem en te com pradas
pelas m u lh eres a p ó s o p ô r d o sol n o sábado, em p re p aração p ara a u n ção do
c o rp o de Jesu s b em ced o n a m a n h ã seguinte.99 O p ro p ó sito da u n ção n ão
era em balsam ar, o u seja, im p ed ir q u e o c o rp o en trasse em deco m p o sição
(com o era co stu m e n o E gito), m as p erfu m ar o c o rp o em deco m p o sição com o
u m ato d e devoção. N o rm a lm e n te , os m o rto s eram ung id o s n o m o m e n to
d o se p u lta m e n to (de ac o rd o co m J o 19.39, isso foi feito). N o en tan to , de
ac o rd o co m M arcos, em razão d o tard io da h o ra daquele dia de p rep aração
(15.42), foi p reciso adiar a u n çã o d o c o rp o d e Jesu s até dep o is d o sábado. A
u n çã o das m ulheres co n ced e n o v a relevância à u n ç ã o an terio r em B etânia
(14.3-9). “A s m ulheres falham em fazer tard íam en te o que de fato fora feito
p re m a tu ra m e n te p o r o u tra m ulher. A ação d esta era u m sinal p ro fétic o da
m o rte d e [Jesus]; a daquelas se to rn a im possível p o r causa da ressurreição.” 100
M arcos, pela terceira vez, a p resen ta os n o m e s das m ulheres que estive-
ram n a cru z, n o sep u ltam en to e n o tú m u lo vazio de Jesu s (15.40,47; 16.1).
A m en çã o a n o m es p ró p rio s — tão in co m u m em M arcos — certifica, com
b ase nas testem u n h as oculares, d a veracidade d o s ev en to s descritos. Mais
notáv el é a rep etição da lista d e n o m es, e ainda m ais n otável é o fato de se-
rem n o m e s d e mulheres. A o p in ião judaica so b re as m ulheres, em especial em

98 A relevância do domingo para os cristãos foi observada por rabis tardios que
ocasionalmente se referiam a esse dia com o “o dia dos nazarenos” ou “o dia dos
cristãos” (Str-B 1.1,052-53).
99 Sobre o papel das mulheres em seu cuidado pelos m ortos tanto no helenismo
quanto no judaísmo, veja Corley, “W omen and the Crucifixion o f Jesus” , Forum
1 (1998), p. 181-217.
K>0 Hooker, The GospelAccording to Saint Mark, p. 384. O bserve o testem unho cor-
roborativo do Evangelho de Pedro 50: “ [Maria Madalena] não fez no sepulcro do
Senhor o que as mulheres estão acostumadas a fazer por aqueles entes queridos
que m orrem ” .
M a rc o s 16.2-4 604

assu n to s religiosos, n e m sem p re era positiva.101 R elatos p o sterio re s confir-


m am a ressu rreição p o r in te rm é d io d o te ste m u n h o d e h o m en s (Lc 24.24; Jo
20.3-10). A p resen ça d e n o m es de m ulheres atesta d a relativa datação preco ce
d o evangelho d e M arco s.102 T a m b é m atesta d a veracidade d a narrativa da
ressurreição, p o is se o s cristãos prim itivos tivessem fabricado essa história,
o te stem u n h o das m u lh eres (em to d o s os q u a tro evangelhos!) n ão seria u m a
fo rm a d e a p rese n ta r esse relato. O pagão Celso, cerca de dois séculos após
os evangelhos serem escritos, ainda conseguia alfinetar O ríg en es a resp eito
“ da fo fo ca das m u lh eres so b re o sep u lcro v azio” (O rígenes, Contra Celsum
2.55). O te ste m u n h o d e M aria, a m ãe de T iag o e Jo sé, Salom é e em especial
de M aria M ad alen a (v. 1), cujo n o m e en cab eça o s te stem u n h o s da ressurrei-
ção em to d o s os q u a tro evangelhos, co n fere às narrativas d a ressu rreição o
m ais alto g rau d e probabilidade. A igreja prim itiva, a m en o s q u e as m ulheres
estivessem d e fato p resen tes n o sepulcro, dificilm ente as colocaria ali u m a
vez q ue o ju d aísm o n ão aceitava o te ste m u n h o d e m ulheres. O te stem u n h o
de m ulheres, n o en tan to , está to talm e n te ap ro p ria d o co m a ec o n o m ia divi-
na: aqueles cujo te ste m u n h o é d esc o n sid e rad o n a so ciedade h u m an a são os
prim eiro s a ser incluídos n a sociedade divina (IC o 1.26-28)!

2 -4 “ B em cedo, ao n asc er d o sol, elas se dirigiram ao sepulcro.” “ B em


ce d o ” designa em geral o p e río d o en tre três h o ra s e seis h o ras da m an h ã,
m as aqui é especificado q u e foi lo g o ap ó s o “ n ascer d o sol” . O Evangelho de
Pedro 50— 54, apócrifo, atrib u i a escuridão n a visita das m u lh eres n o início
da m a n h ã ao tem o r, p ara q u e n ã o fossem vistas pelos judeus. M arcos n ão faz
n e n h u m a m en ç ã o d e te m o r d o s judeus, m as o b serv a o n asc er d o sol talvez
p ara g aran tir q u e as m u lh eres n ã o tivessem e rra d o d e sep u lcro n o escuro.

101 “Essa é a regra geral: qualquer evidência que uma mulher não é elegível para trazer,
[agiotas, lançadora de dados, domadoras de pom bos, traficantes no sábado do
produto do ano e escravas] também não são elegíveis para trazê-la” (m. RoshHaSh.
1.8). Também: “M elhor que as palavras da Lei sejam queimadas que entregues
às mulheres” (b. Sot. 19a); “ Feliz é aquele cujos filhos são homens, mas pobre
daquele cujos filhos são mulheres” (b. Qid.82b). Específicamente indicativo dessa
atitude em relação às mulheres é a oração matinal dos judeus que agradeciam a
Deus por não tê-los feito pagãos, escravos nem mulheres!
102 C. Osiek, “T he Women at the Tomb: W hat Are They D oing There?” Hervormde
TeologieseStudies 53 (1997), p. 103-18, em bora eu não compartilhe da ambiguidade
dela sobre a historicidade da ressurreição, argumenta corretamente que a presença
de mulheres no sepulcro vazio ancora a narrativa às camadas mais antigas da
tradição.
605 M a rc o s 16.5-6

M arcos é o ú n ico d o s evangelhos q u e registra a conversa n o cam in h o para


a sep u ltu ra so b re q u em rolaria a ped ra. A ansiedade das m ulheres so b re
esse d etalh e re le v an te d ev e-se em p a r te ao fa to de q u e to d o s o s h o m en s
estav am e sc o n d id o s (Jo 20.19). A s m u lh ere s, c o n fo rm e fica ev id en te, dei-
x am ao acaso a p o ssib ilid ad e d e e n c o n tra re m algum tra b a lh a d o r n a área
q u e p u d e sse ajudá-las a ro la r a p e d ra na a b e rtu ra d o sepulcro. O p ro b lem a
delas foi reso lv id o d e u m a fo rm a q u e elas jam ais esperariam , pois, q u an d o
chegaram , a p e d ra já fo ra ro lad a.103 M ateu s 28.2 atribui o sep u lcro ab e rto
ao te rre m o to e aos anjos, m as, em M arcos, a im plicação é q u e D e u s ro lo u a
p e d ra .104 A re m o ç ão d a p e d ra sugere q u e a ressurreição de Jesus, em to d o s
os asp ecto s, é to talm e n te u m a o b ra d e D eu s. O p ap el h u m a n o n o ev en to é
aquele d a teste m u n h a , n ão d o trabalhador. Pela p rim eira vez n a história, os
ú ltim os rituais estavam to d o s errados.

5 ,6 A s m ulheres, ao e n tra r n o sepulcro, viram “ um jovem v estido d e rou-


pas b ra n cas” . As “vestes b ran cas” (A p 7.9,13), o “ jovem ” que co m frequência
se refere a u m ser celestial (Lc 24.4; 2M ac 3.26,33; Evangelho de Pedro 36;Josefo,
Ant. 5.277)105 e a re sp o sta das m u lh eres indicam u m e n c o n tro angélico. A
palav ra g re g a p ara “ am e d ro n ta d a s” {ekthamheomai, v. 5), en co n trad a apenas
em M arcos, significa ta n to m e d o q u a n to m aravilh am ento, perplexidade e

103 N os evangelhos canônicos, a ressurreição é anunciada, mas não explicada. Apenas


nos relatos apócrifos faz-se uma tentativa de explicação. N o códice Bobiensis,
na Latina Antiga, aparece o seguinte relato: “Mas, de repente na terceira hora
do dia, havia trevas sobre todo o círculo da terra, e os anjos desciam dos céus
e eles, enquanto [o Senhor] era ressuscitado na glória do Deus vivo, ascendiam
ao mesm o tem po com ele” (citado em Metzger, TCGNT, p. 121-22). D e forma
similar, o Evangelho de Pedro 35— 40 relata com o os guardas no sepulcro ouviram
uma voz alta vinda do céu e viram dois homens descendo em um grande esplendor
para o sepulcro. A pedra foi rolada por si mesma, os dois hom ens entraram no
sepulcro e saíram “sustentando o outro” (seguidos pela cruz) que a seguir entrou
no mais alto céu. N o Evangelho de Pedro 45, os guardas do sepulcro se convertem
e declaram que Jesus é o Filho de Deus.
1(14 Tanto o Evangelho de Pedro 37 quanto a EpistulaApostolomm 9 indicam que a pedra
foi removida por obra divina.
105 O uso de neaniskos (“jovem”), com certeza, é a mesma palavra usada em 14.51,
mas não há nenhum a aparente relação entre esses dois termos (veja mais sobre
o term o em 14.51). A teoria de S. R. Johnson, “The Identity and Significance o f
the Neaniskos in Mark”, Forum 8 (1992), p. 123-39, de que o jovem é um discípu-
lo exemplar convertido na ressurreição, sendo ele mesmo o autor da história, é
bastante imaginativo, mas bastante sem fundamento do ponto de vista exegético.
M a rc o s 16.5-6 606

angústia; a m esm a palavra é u sad a em 14.33 p ara d escrev er a in ten sa angús-


tia d e Jesu s n o G e tsêm a n i. E difícil im aginar tal re sp o sta em u m e n c o n tro
p u ra m e n te h u m an o . Q u a n d o a Bíblia relata os e n c o n tro s d iv inos-hum anos,
os m o rtais invariavelm ente sen tem o h o rr o r e te rro r d e sua p ró p ria p o sição
dian te d o A ltíssim o. O alarm e e angústia das m u lheres tam b ém arg u m en tam
c o n tra u m a alucinação, po is n ã o só alucinações em grupo são p raticam en te
inexistentes, m as ta m b ém o an ú n cio d o an jo co n tra d iz to talm e n te o q u e as
m ulh eres esp erav am en con trar. A po sição d o anjo “ à direita” d o sepulcro,
u m d etalhe sem q u alq u er relevância aparente, n ão é o tip o d e fato q u e alguém
fab rican d o essa h istó ria incluiría e, p o r isso, te stem u n h aria em favor de u m a
re m e m o ra ç ã o histórica. É in c e rto se a p o sição d o anjo tem a in ten çã o o u
n ão d e re p re se n ta r C risto, q u e se sen ta à d ireita d o Pai (12.36; 14.62). A pa-
lavra g re g a p a ra “ an jo ” significa literalm ente “ m ensageiro (de D e u s)” . E sse
é ex atam en te o p ap el d o jovem n o sep u lcro vazio: é u m m ed iad o r e n tre a
inefabilidade d a ressu rreição e as m ulheres.
A p rim eira palavra d o m en sag eiro divino se dirige à p rincipal p reo cu -
pação das m u lh eres — o te m o r delas (“ N ã o te n h a m m e d o ”). E le ainda se
dirige à esp eran ça delas (“V ocês estão p ro c u ra n d o Jesus, o N a zare n o , que
foi c ru c ific a d o ”). E m M arcos, a palavra trad u zid a p o r “ p ro c u ra n d o ” (gr.
%êtein) o c o rre d ez vezes, to d as em co n tex to s pejorativos de im p o r restrições
a Jesus (veja so b re o te rm o em 1.37). P arece ter um sen tid o sim ilar aqui, e
a re sp o sta d o anjo p o d e ser co n sid erad a c o m o u m a suave repreensão. A s
m ulheres, aten tas em sua jo rn a d a p ara um funeral, estão p reo cu p ad as co m
a m o rte. E las, c o m as especiarias e suas ansiedades, esfo rçam -se p ara trazer
algum tip o d e fech am en to , p o r m ais in ad eq u ad o qu e fosse, p ara esse dram a
trágico. C o n tu d o , to d as as p re p ara çõ es delas as deixam d esp rep arad as para
a realidade co m a qual se d ep aram ; o que tin h am a in ten çã o de ser a últim a
visita n ão passa d e u m início. O Jesus que estão “ p ro c u ra n d o ” guardado co m o
relíquia em u m lugar seg uro n ã o p o d e ser en c o n trad o . A visita ao sepulcro
é um a ó tim a iro n ia d e M arcos: os vivos estão ab so rv id o s co m a m o rte , m as
o C ru cificad o está ab so rv id o c o m a vida.
O C rucificado, diz o anjo, foi ressuscitado! O anjo convida as m ulhe-
res a ver o local o n d e viram o c o rp o d e Jesu s pela últim a vez (15.47).1(16 A s
referências ao local d e seu sep u ltam en to e a Jesu s c o m o o crucificado são 106

106 Para os céticos que suspeitam que as mulheres confundiram um sepulcro vazio
com o sepulcro de fato de Jesus, o versículo 6 é evidência de que estavam em um
local que já lhes era familiar do versículo 15.47.
607 M a rc o s 16.7

de su m a im p o rtân cia. A s m ulheres n ã o são d irecionadas a u m a experiência


espiritual o u m ística n em a u m e n c o n tro num in oso. E las são direcionadas
esp ecíficam en te a Jesus, m o rto p o r u m a cru cificação q u e testem u n h aram
e se p u lta d o em local q u e teste m u n h a ra m , m as q u e ag o ra está ressuscitado.
O s v e rb o s n o v ersícu lo 6 refere m -se ao s d o is lad os d o ev e n to d e Páscoa. O
a n ú n c io d o em issário d ivino estabelece u m a co n tin u id ad e inseparável en tre
o Jesu s h istó ric o e o Jesu s re ssu rreto . A q u ele a q u e m o anjo as co n v id a a
c o n h e c e r é aquele q u e co n h ecem . O an ú n cio d o an jo é literalm ente o evan-
gelho, as boas-n o v as, e o local d o qual se p re g a o evangelho pela prim eira vez
é o sep u lcro vazio q ue receb eu e ab riu m ão d o C rucificado. A n o v a o rd em
d a existência está inaugurada. A N V I traz: “ E le ressuscitou!” . M as o texto
g re g o é m ais preciso: “ foi ressu sc ita d o ” . R essuscitou p o d eria sugerir que
Jesu s re ssu sc ito u p o r si só, m as “ foi ressu scitad o ” im plica c o rretam en te que
foi ressu sc ita d o p o r D eus. As m ulheres, nesse m o m e n to e nesse local, estão
te ste m u n h a n d o “ o R eino de D e u s v in d o co m p o d e r” (9.1).
O co n v ite para exam inar seu local de re p o u so é u m a evidência in co n fú n -
dível d e u m sepulcro vazio. A p en as o sep u lcro vazio, é claro, n ão p ro v a a
ressurreição d e je su s, e o N o v o T estam e n to jam ais alega esse fato co m o prova
d a ressurreição. O s o p o n e n te s da ressurreição, já na é p o ca da igreja prim itiva,
explicavam o sep u lcro vazio co m fu n d a m e n to d e qu e o c o rp o d e je s u s fora
ro u b a d o (M t 28.13). O tú m u lo vazio é apenas u m do s vários fatos presentes
n a ressurreição. N ã o é o sep u lcro vazio q ue co m p ro v a a ressurreição, m as a
ressu rreiçã o q u e to rn a o sep u lcro vazio relevante. O sepulcro vazio testifica
d e q u e Jesu s m o rre u c o m o u m ser co m c o rp o e foi ressuscitado c o m o u m ser
co m c o rp o , e é o local e o p o n to n o te m p o h istó ricos que m arcam a transi-
ção e n tre essas duas o rd e n s de existência. M arcos, ju n to co m o cristianism o
prim itiv o c o m o u m to d o , está in tere ssa d o na fé n o Jesu s ressurreto, e não
em p ro v as d e sua existência. E um e n c o n tro co m o S en h o r ressu rreto , e n ão
c o m o sep u lcro vazio, q u e p ro d u z fé.

7 A s palavras finais d o anjo p ara as m ulheres são: “V ão e digam aos disci-


p u lo s dele [d ejesu s] e a P edro: ‘E le está in d o ad ian te de vocês para a Galileia.
L á vocês o verão, co m o ele disse’ ” . E sse anúncio, u m cu m p rim en to d e 14.28,
é u m a palavra n o táv el d e graça e en co rajam en to . A fuga d os discípulos, bem
c o m o a n eg ação p atética d e P edro, n ã o são a ú ltim a palavra. N ã o é d ad o aos
seres h u m a n o s d ar a últim a palavra, p o is esta p e rte n c e ao S en h o r ressurreto:
“ [E u estou] in d o ad ian te de v o cês” . O p rim eiro ato d o m inistério d e je s u s
M a rc o s 16.8 608

foi o ch a m a d o d e q u a tro p esc ad o re s p ara q u e estivessem em co m u n id ad e


co m ele (1.16-20); e a p rim eira palavra d o Jesu s re ssu rreto é a reu n ião da
m esm a co m u n id ad e d e discípulos (14.27,28).107 O an ú n cio d o anjo n ão é
d a rep ree n sã o m erecid a, m as u m a p ro m essa d e reuni-los e ir adiante deles!
D e u s c o m p leta seus p la n o s p ara a igreja ap esar d a falha hu m an a. Se a palavra
da graça d o S e n h o r re ssu rre to inclui u m tra id o r c o m o P e d ro , o s leitores d o
evangelho p o d e m ser assegurados q u e ela inclui aqueles da co m u n id ad e deles
q u e ta m b é m falh aram co m C risto.
O s ev an g elh o s estão divididos so b re o n d e aco n teceram as aparições
ap ó s a ressurreição. M ateus e M arcos falam d a Galileia; L ucas e Jo ã o falam
d e Jeru sa lé m (em b o ra J o 21.1-25 tam b ém inclua u m a aparição n a Galileia).
A Galileia d e se m p e n h a u m p ap el privilegiado n o evangelho de M arcos. Ca-
farn au m n a G alileia é a residência escolhida d e Jesus, d e o n d e seu m inistério
exerce g ra n d e influência n a região n o ro e ste d o m ar da Galileia e na D ecápolis.
A s o b stru çõ e s a seu m inistério p ro v ê m em g ran d e p a rte de fora da Galileia, de
H e ro d e s A n tip as em T ib eríad es e d o s m estres d a lei e fariseus em Jerusalém .
E m particular, o tem p lo em Jeru sa lém e o S inédrio localizados ali eram o
assen to d a o p o sição e resistên cia a Jesus. N ã o é d e su rp re e n d e r que M arcos
localize o e n c o n tro p ro m e tid o d e Jesus co m os discípulos n a G alileia para
re to m a r e co n c lu ir o ch am a d o deles.

8 N o s s a últim a visão das m u lh eres foi a co n stern açã o delas dian te d o se-
pulcro a b e rto em 16.4. O s versículos 5-7 foram d evo tad os às palavras d o anjo
p re se n te n o sep u lcro vazio. O versículo final d o s m ais antigos m an u scrito s
d o evangelho d e M arco s relata a re sp o sta das m u lheres ao an ú n cio d o anjo.
N ã o h á exclam ações, p erg u n tas n em conversas d e n e n h u m tipo. M arcos, co m
a b ru p ta objetividade, relata q u e elas saíram e fugiram d o sepulcro, to m ad as
pelo m e d o e perp lex id ad e. E las n ã o disseram n ad a a ninguém , pois estavam
co m m edo. M arcos, em u m versículo, inclui u m a série de sete resp o stas ne-
gativas p o r p a rte das m ulheres. E sses te rm o s dificilm ente descrevem te m o r
reverente diante d e u m mysterium tremendum. O versículo 8 descreve claram ente
u m a re sp o sta d e te m o r q u e in ib e a fé. A fuga das m ulheres é n arrad a n o
m esm o te m p o verbal d o m e sm o v e rb o (gr. ephygotí) u sad o p ara a fuga dos
discípulos em 14.50. O s te rm o s “ tre m e n d o ” (gr. tromos) e “ assustadas” (gr.
ekstasis) o c o rre m apenas u m a vez e duas vezes, re spectivam ente, em M arcos

107 Sobre a prom essa de ir adiante dos discípulos para a Galileia, observe a mudança
do tem po verbal no futuro em 14.28 para o tem po verbal no presente em 16.7.
609 M a rc o s 16.8

e são exp ressõ es de con stern ação . A falha das m ulh eres em falar transgride a
o rd e m d o anjo, e a referên cia final a m e d o (“ am e d ro n tad as”) re p ete a palavra
q ue o c o rre d o ze vezes em M arcos, e essa palavra em d ez dessas o co rrên cias é
claram ente negativa.108 Fica claro que M arcos n ã o tem a intenção de transm itir
n o versículo 8 reverência o u fé p o r p a rte das m ulheres, m as, sim , m ed o e fuga.
A ressu rreição n ã o dissipa m ag icam en te o te m o r e a covardia, tran sfo r-
m an d o p erso n ag en s h u m a n o s falíveis em discípulos fiéis. O discipulado fiel
co n siste de seguir Jesus, e n ã o de co n sid erar fazer isso; agir co m coragem em
favor de Jesus, em vez d e ficar à m arg em o b se rv a n d o tudo. N o sanduíche de
con clu são d o evangelho, Jo sé de A rim ateia to m a a prim eira atitude; e as m u-
lheres, a segunda. M arcos, ao lo n g o d o evangelho, alerto u que sinais, m ilagres
e p o rte n to s n ão evocam a fé (8.11 -13). A m esm a n o ta persiste n a ressurreição,
o m a io r d e to d o s os sinais: até m e sm o a visitação de anjos n o sep u lcro vazio
falha em p ro d u z ir fé. A fé vem d o ou v ir o evangelho e d o e n c o n tro pessoal
co m aquele q u e foi crucificado, m as agora re ssu scitou d e n tre os m o rto s.
A té m e sm o n o en c e rra m e n to da história, os p erso n ag en s h u m an o s falham
em o b e d e c e r à v o n tad e divina: Jesu s, em seu m inistério terren o , o rd e n a as
p esso as a silenciarem , e elas falam ; e, em seu estad o ressurreto, as m ulheres
são o rd e n ad as a falar, e elas fo g em e silenciam !109

108 Phobeesthar. 4.41; 5.15,33,36; 6.20,50; 9.32; 10.32; 11.18,32; 12.12; 16.8. As únicas
possíveis exceções a seu uso negativo em Marcos são 5.33 e 6.20. Sobre a cono-
tação negativa do versículo 8 com o um todo, veja A. Lincoln, “T he Promise and
the Failure: Mark 16:7,8” ,JB L 108 (1989), p. 286-87.
109 A similaridade das palavras entre 1.44 e 16.8 convida a essa comparação. Jesus,
na primeira ordem para silenciar no evangelho, ordena o leproso curado, mêdeni
mêden eipês (“não diga nada a ninguém”), mas esse hom em sai e proclama a notícia;
na ordem final para as mulheres para proclamar a ressurreição, elas oudeni ouden
eipan (“não disseram nada a ninguém”) e fugiram.
capítulo dezesseis

A conclusão mais longa de Marcos


M A R C O S 1 6 .9 — 20

É p ra tic a m e n te c e rto q u e 16.9-20 é u m a ad iç ã o p o s te rio r e n ã o o


final original d o evangelho d e M arcos. A evidência p a ra esse ju lgam ento é
com p lexa, e é necessário d iscu tir os p ro b lem a s em alguns d etalhes antes de
co m eç ar a trata r d o final secu n d ário em si.
O te x to g re g o d o N o v o T estam en to , u m a vez q u e n e n h u m d os m anus-
crito s originais d o N o v o T e sta m e n to sobreviveu, é c o n stru íd o a p a rtir de
cópias p o sterio re s d o s m an u scrito s d a ta n d o d e 135 d.C. n a possibilidade
m ais re m o ta a cerca de 1200, na possib ilid ad e m ais tardia. E ssas cópias, das
quais m ais de cin co m il delas existem , variam em ta m an h o de fragm entos
p o u c o m aio res q u e u m selo de c a rta a m an u scrito s co m p leto s d a Bíblia.
E m geral, essas cópias d em o n stra m ac o rd o n o táv el en tre si. A exceção m ais
n o tó ria a essa reg ra q u e de o u tra fo rm a é b astan te a fo rtu n ad a, n o entanto,
é o final d e M arcos, q u e ap resen ta o p ro b le m a textual m ais grave n o N o v o
T estam en to . O s dois m an u scrito s m ais antigos e m ais im p o rta n te s da Bíblia,
o có d ice V aticano (B) e o códice Sinaítico (‫) א‬, o m ite m 16.9-20, c o m o tam -
b é m o fazem várias das prim eiras trad u ç õ es o u versões, in cluindo a L atina
A ntig a, o m an u scrito siríaco sinaítico, cerca d e u m a ce n ten a d e m an u scrito s
arm ê n io s e dois dos m ais antigos m an u scrito s georgianos. N e m C lem ente
de A lexandria n e m O rígen es m o stra m algum co n h e c im en to d a existência
d o final m ais lo n g o e E u séb io e J e ró n im o atestam q ue o s versículos 9-20
estavam au sen tes d a m aioria das cópias gregas d e M arco s que conheciam . O
sistem a e n g e n h o so d e fazer referências cru zad as de passagens paralelas no s
evangelhos d esen v o lv id o p o r A m o n io n o século II e a d o ta d o p o r E u séb io
n o século IV (daí o n o m e C ân o n es E u seb ian o s) n ã o inclui M arcos 16.9-20.
O Evangelho de Pedro, apócrifo, n ão c o n té m o final m ais lo ngo, e conclui,
M a rc o s 16.9-20 612

c o m o o faz M arcos 16.8, c o m o te m o r das m ulheres. A p esar de a m aioria


das testem u n h as d a A n tig u id ad e, incluindo os m an u scrito s gregos uncíais e
m inúsculos, os pais d a igreja e versões em o u tras línguas incluírem d e fato
os versículos 9-20, isso n ã o co m p en sa pela evidência textual c o n tra eles. A
inclusão d o s versículos 9-20 em m uitos m an u scrito s é atribuída d e p referén -
cia p elo fato d e q u e o final m ais longo, q u e d eve te r sido acrescen tad o em
p e río d o b e m re m o to , foi n atu ra lm e n te incluido em copias su b seq u en tes d o
evangelho. M u ito s d o s m an u scrito s antigos q u e co n tê m o final m ais longo,
n o e n ta n to , in d icam , p o r m eio d e n o tas d o s escribas o u várias m arcas, que
o final é co n sid e ra d o c o m o u m acréscim o esp ú rio ao evangelho. A evidên-
cia ex te rn a (testem u n h o s m anuscritos), p o r co n seg uin te, arg u m en tam co m
veem ên cia c o n tra a originalidade d o final m ais lo n g o .1
A n atureza secundária d o final m ais longo é ainda c o rro b o rad a pela apli-
cação de técnicas da crítica literária a 16.9-20. Isso fica aparente n o início do
prim eiro versículo d o final mais longo, que é u m conspicuo non sequitur [ou seja,
um a falácia lógica n a qual a conclusão não d ec o rre das prem issas]: ao passo
que o assu n to d o versículo 8 trata das m ulheres am ed rontadas que fugiram ,
o versículo 9 co m eça p re ssu p o n d o o Jesus ressu rreto que aparece p ara M aria
M adalena. E ssa últim a, além disso, é apresentada c o m o u m a recém -chegada
(“de q u e m [Jesus] havia ex p u lsad o sete d e m ô n io s” , v. 9), ap esar d e M arcos
tê-la m e n c io n a d o três vezes lo g o antes desse versículo (15.40,47; 16.1).12 N o s
versículos 9-20, há, pela p rim eira vez em M arcos, um a referência a Jesus co m o
“ S en h o r Je su s” (v. 19) o u apenas co m o “ o S en h o r” (v. 20), em vez d o co stu m e
d e M arcos d e ch a m a r Jesu s p elo n o m e que receb era d e seus pais. E ssa n o -
m en clatu ra re v ere n te d eriva p ro v av elm en te da ad oração cristã p o sterio r. E m
particular, é n o táv el o n ú m e ro d e palavras novas que n ã o aparece n o restan te
d o tex to de M arcos. N o tre c h o d en o m in a d o d e final m ais c u rto de M arcos,

1 A evidência contra um final mais longo dos versículos 9-20 também inclui o texto
denom inado de final mais curto de Marcos; um epílogo de 34 palavras para o
evangelho que é atestado po r quatro manuscritos uncíais tardios e várias versões
de autoridade dúbia (Latina Antiga, Siríaco Harclean, saídico, boáirico e etíope).
O final mais curto ocorre em geral nos testem unhos acima entre os versículos 8 e
9-20, e traz o seguinte texto: “Elas anunciaram brevem ente a todos em torno de
Pedro todas as coisas que lhes foram ordenadas. E após essas coisas, o próprio
Jesus enviou por interm édio deles, de Leste a Oeste, a proclamação santa e
imperecível da salvação eterna. Am ém ” . Veja B. Metzger, TCGNT, p. 122-26.
2 Η. B. Swete, The GospelAccording to St Mark, p. 399.
613 M a rc o s 16.9-20

n o v e d e n tre 34 palavras são novas,3 e, n o final m ais longo, h á ou tras dezo ito
palavras adicionais que, fo ra essas o co rrên cias, n ão ap arecem em M arcos,4
além d e várias fo rm a s d e palavras e c o n stru ç õ e s sintáticas singulares.56Várias
das assinaturas estilísticas d e M arcos ta m b é m estão ausentes d o final mais
lon g o /' O final m ais lo n g o tam b ém inclui tem as peculiares a ele m esm o, alguns
d o s quais co n tra d iz em os tem as m árcanos. A s repetidas p u n içõ es severas
d o s discípulos p o r su a “in cred u lid ad e” (gr. apistein; apistia-, w . 11,14,16) em
relação à p ro clam ação d o evangelho (gr. kêrygma, w . 11,13,14,15,16-18,20)
é singular ao final m ais lo ngo, e a p ro e m in ê n cia d ad a aos sinais carism áticos
n o s versículos 17,18 está em ab so lu to c o n tra ste co m a reserv a d e Jesu s em
M arcos c o m relação aos sinais e sen sação (cf. 8.11-13).
A s evidências internas e externas, p o r conseguinte, p ed em a conclusão de
qu e 16.9-20 n ã o é o final original d e M arcos, m as, antes, um a adição p o sterio r
ao evangelho. O final m ais lo n g o é trab a lh o feito c o m frag m en to s das apari-
ções a p ó s a ressu rreição (ou resum os) extraídos d o s o u tro s três evangelhos,7
cujo p rin cip a l tem a é a d escren ça d o s discípulos (w . 11,13,14 e 16). E m b o ra
o final m ais lo n g o seja claram en te secu n d ário , é, n ão o b stan te, m u ito antigo.
As te stem u n h as m ais rem o tas ao final m ais lo n g o são da Epistula Apostelo-
rum 9— 10 (c. 145), talvez J u stin o M ártir (A p o l 1.45; c. 155), Diatessaron, de
T aciano, e Ire n e u (Adv. Haer. 3.9-12; c. 180). Isso q u e r dizer q u e o final mais
lo n g o “ tem de se r d atad o das prim eiras d écadas d o século I I ” .8 A in d a de in-
teresse em relação a essa q u estão é o fato de q u e a h a rm o n ia d a ressurreição
d o final m ais lo n g o é c o m p o sta de te x to s ex traído s em g ra n d e m ed id a da

3 Syntomõs, exangellõ, anatolê, achri, dysis, exapostellõ, aphtartos, kêrygma, sõtèria.


4 Phainõ, pentheõ, kakeinos, theaomai, apisteõ, heteros, tnorphê, poreuomai, hysteros, hendeka,
parakoloutheõ, ophis, thanasimos, blaptõ, analambanõ, synergeõ, bebaioõ, ekoloutheõ.
5 Por exemplo, a form a parèngelmena, Hieron com o um adjetivo e as seguintes cons-
truções sintáticas: meta tauta, Kyrios Ièsous, meta to lalêsai', tois mef autougenomenois.
6 Mais notavelmente, a ausência do kai inicial na estrutura da sentença em Marcos,
a ausência dos verbos no tempo presente histórico e a ausência de euthys.
7 V. 9 = Lucas 8.2; w . 9-11 = Mateus 28.9,10; Lucas 24.9-11 ;João 20.11-18; w . 12,13
= Lucas 24.13-35; w . 14-18 = Mateus 28.16-20; Lucas 24.36-49; João 20.19-23;
Atos 1.6-8; w . 19,20 = Lucas 24.50-53; A tos 1.9-11.
8 M. Hengel, Studies in the Gospel of Mark, trad. J. Bowden (London: SCM Press,
1985), p. 167-69. Sobre a datação de um final mais longo, veja J. Kelhoffer, Miracle
and Mission: The Authentication of Missionaries and Their Message in the Longer Ending
of Mark (Tübingen: M ohr/Siebeck, 2000), p. 169-244.
M a rc o s 16.9-20 614

trad ição q u e m ais tard e se to rn o u can ô n ica,9 e n ão d e u m a ab u n d ân cia de


evangelhos ap ó crifo s q u e co m eçavam a circular n o século II. Isso testifica de
u m a co letân ea d e q u a tro evangelhos em d ata n ão m ais re m o ta que o início d o
século II, e, c o m a co letân ea, u m re c o n h e c im e n to d a au to rid ad e d o s q u atro
evangelhos vis-à-vis o u tra s literaturas cristãs prim itivas.101
M arco s 16.9-20, p o r co n seg u in te, é u m a adição tardia e, em m u ito s as-
p ecto s, in c o n g ru e n te ao evangelho. É difícil afirm ar se o final m ais lo n g o foi
u m ex certo d e u m d o c u m e n to an tig o ac rescen tad o ao final d e M arcos o u se
foi c o m p o s to esp ecíficam en te para o evangelho d e M arcos. P o r u m lado, a
união in e p ta n o versículo 9 e as in congruências teológicas d o final m ais lo n g o
p o d e m ser to m ad as c o m o evidências p ara sua existência em u m d o c u m e n to
anterio r.11 N ã o o b stan te, os arg u m en to s estilísticos n ã o são conclusivos nessa
instância, u m a v ez q u e o final m ais lo n g o n ão faz n e n h u m a ten tativ a d e se
ajustar ao vocabulário, estilo e teologia d e M arcos. A p re o cu p ação c o m o final
m ais lo n g o é c o m seu c o n te ú d o , e n ã o co m o estilo, o u seja, p ara retificar a
o m issão d e u m a ap arição re ssu rreta d e Jesu s em M arcos. Isso foi con seg u id o
ao acrescen tar a h arm o n ia d a ressurreição c o m p o sta d e textos d o s o u tro s três
evangelhos. C o n sid e ran d o -se q u e a ausência da aparição d o Jesu s re ssu rreto
em M arcos é ú n ica en tre os ev angelhos (e isso inclui o s evangelhos ap ó crifo s
e aqueles d e N a g H a m m ad i), e q u e n ão te m o s u m tex to ex istente p ara o final
m ais longo, p o d e ser q u e os versículos 9-20 fo ram c o m p o sto s especialm ente
co m o p ro b le m a d o final d e M arco s em m e n te .12
A p rin c ip a l p e rg u n ta re s ta n te d iz re s p e ito à c o n c lu sã o o rig in al d o
evangelho de M arcos. H á duas possibilidades. U m a é que M arcos conclui

9 N o fim mais longo de M arcos há certas referências a textos de Mateus, Lucas e


João e possíveis referências ou alusões a textos de Atos, Colossenses, ITim óteo,
Hebreus e Tiago.
10 Veja mais uma vez Hengel, Studies in the Gospel of Mark, p. 72; e Kelhoffer, Miracle
and Misrnn, p. 15. Esse último argumenta que “a decisão pelo autor de um final
mais longo que o final de Marcos era deficiente só [foi] possível em um período
em que os quatro evangelhos foram reunidos e comparados uns com os outro/ ’ (grifo
desse autor).
11 Por exemplo, Metzger, TCGNT, p. 125: “Em vista da falta de harmonia entre os
versículos 1-8 e 9-20, é improvável que o final mais longo tenha sido com posto
ad hoc para preencher um a lacuna; é mais provável que a seção tenha sido extra-
ida de outro docum ento” . Para mais discussões favorecendo a existência de um
docum ento pré-existente, veja Swete, The GospelAccording to St Mark, p. 399.
12 Para um a discussão de toda a questão e uma conclusão em favor dessa última
visão, veja J. Kelhoffer, Miracle andMission, p. 158-69.
615 M a rc o s 16.9-20

em 16.8. E ssa é a p o sição su sten tad a pela m aioria d o s in térp re tes recentes
de M arco s.13 N e ssa visão, M arcos deixa in ten cio n alm en te a conclusão “ em
a b e rto ” . P ara alguns estu d io so s, M arco s fo rn e c e u indícios suficientes n o
c o rp o d o evangelho p ara os leitores su p rire m o relato da ressurreição p o r si
m esm o s.14 P ara o u tro s, o final in co n clu siv o faz o s leitores p arare m em sua
p re ssu p o siç ão p ara se ap ro p riare m da co n clu são da história, fo rçan d o -o s a
ap resen tar resp o stas n ão convencionais.15 Para o u tro s, o final lúcido exige que
os leito res p o n d e re m so b re a cru z e o discipulado, em vez de se refugiarem
n o en tu siasm o e triunfalism o.16A in d a o u tro s su gerem que o Jesus ressurreto,
u m a vez q ue “ o s discípulos judeus originais de Jesu s n ã o co m p re en d eram a
m en sag e m ” , deve ser e n c o n tra d o n o evangelho g en tio para leitores gentios.17
N e ssa s in terp re taçõ e s e em o u tras sim ilares, a palavra final “ am ed ro n tad as”
d o versículo 8 deixa o leitor, co m o as m ulheres, em u m estad o q u e exige um a
re sp o sta d e fé. O an ú n cio d a ressu rreição em o p o sição à aparição d o Jesus
re ssu rre to é suficiente, nessa visão, p o rq u e , p ara M arcos, a fé é p ro d u zid a
p elo ouvir, e n ão p elo ver. A co n clu são p ara o evangelho d e M arcos tem de
s e r su prid a, em o u tras palavras, pela re sp o sta d e fé de cada leitor.
O p rin cip al arg u m e n to em favor dessa visão é que n o sso s m an u scrito s
m ais confiáveis e m ais antigos te rm in a m o ev an gelho em 16.8. E sse é u m
fo rte arg u m en to , su ste n ta d o p o r excelentes estudiosos. E m m eu julgam ento,
n o en tan to , o a rg u m e n to n ã o é persuasivo. A su gestão de que M arcos deixou
o ev an g elh o “ em a b e rto ” deve-se m ais à teo ria literária m o d e rn a e, em par-
ticular à teo ria d a re sp o sta d o leitor,18 q u e à n a tu re z a d o s tex to s antigos, os

13 Para uma pesquisa das posições favorecendo um final original em 16.8, veja J. F.
Williams, “Literary Approaches to the E nd o f Mark’s G ospel” , JE TS 42 (1999),
p. 21-35.
14J. L. Magness, Sense andAbsence: Structure and Suspension in the Ending of Mark’s Gos-
pel, SBLSS (Adanta: Scholars Press, 1986), p. 14: “Marcos afirma e comunica a
ressurreição e [uma] reunião pós-ressurreição sem narrá-las” .
15 Por exemplo, M. Trainor, “T he Women, the Em pty Tomb, and That Final Verse”,
BibToday 34 (1996), p. 177-82.
16 Tam bém R. W Swanson, “ ‘They Said N othing’ ” , Currents in Theology andMission
20 (1993), p. 471-78.
17Tam bém W R. Telford, Mark, N T G (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997),
p. 149.
18 O final inexplicável em 16.8 leva inevitavelmente a tentativas intricadas para
explicá-lo; p o r exemplo, A. Lincoln, “T he Promise and the Failure: Mark 16.7,8”,
JBL 108 [1989], p. 295-96: “E ntão o argumento é que os versículos 7,8 provêm
um encerram ento em que o leitor descobre que um conjunto de expectativas
M a rc o s 16.9-20 616
quais, co m p o u q u íssim as exceções, m o stram u m a p ro d u tiv id ad e ten az para
afirm ar con clu sõ es, e n ão sugeri-las.
V ários a rg u m e n to s im p o rta n te s p o d e m ser fo rn ecid o s em favor de u m a
visão de que 16.8 n ão era o final original, o u desejado, d e M arcos.19 P rim eiro,
e m ais im p o rta n te , é difícil im aginar u m evangelho que com eça c o m um
an ú n cio o u sa d o e re tu m b a n te d a filiação divina (1.1) te rm in a r co m u m a n o ta
de te m o r e p â n ic o (16.8). O p ro p ó sito d a co n fissão d o cen tu rião em 15.39 é
trazer o s leito res d e M arcos a u m a confissão de fé, ao p asso que a conclusão
em 16.8 deix a-o s perplexos. O b serv a-se co m frequ ência e co m co rreção
que o versícu lo 8 parece ser in te rro m p id o n o m eio d e u m a sentença, e isso
fica m ais ap a re n te em g reg o em que a últim a palavra é u m a co n ju n ção (gr.
ephobounto gar, “p o rq u e elas estavam a m e d ro n tad as” . E m b o ra as sentenças
em g re g o ra ram en te te rm in e m em ¿«7‫“( ־‬p o rq u e ”), h á apenas três exem plos
co n h e cid o s d e livros g reg o s q u e term in am d essa fo rm a .20 C o n sid eran d o -se
o vasto corpus literário g re g o q u e co n siste d e m ais d e sessen ta m ilhões de
palavras, citar três d o c u m e n to s te rm in a n d o c o m gar c o m o u m p re ced e n te
p ara M arcos é u m a evidência dificilm ente co n vincente. M arcos, d e qualquer
fo rm a , n ã o te rm in a sen tenças c o m gar, nem , ta m p o u c o , o fazem os q u atro
evangelistas ca n ô n ic o s, e isso n o s leva a p re s su p o r que a sen ten ç a o u foi
in te rro m p id a o u está in co m p leta.
C o n sid eran d o -se a centralidade d e Jesus n o evangelho de M arcos, e espe-
afle a m e n te a p ro m essa d e sua aparição aos discípulos n a Galileia (14.28; 16.7),
parece in c o n g ru e n te p ara M arco s co n clu ir co m u m an ú n cio d a ressurreição,
e n ão co m a ap arição d o Jesu s ressu rreto . A expectativa d e u m a aparição d o
Jesus re ssu rre to é ainda an tecip ad a p o r três p rev isões d a paixão, cad a u m a
das quais te rm in a e m u m an ú n c io d a ressu rreição (8.31; 9.31; 10.34), b em
co m o p elo ex em p lo de E lias em 9.9-13. O evangelho d e M arcos, m ais u m a
vez, ajusta-se em geral ao esqueleto d o kêrygma, u m esb o ç o inicial d a pregação
da vida, m o rte e re ssu rreiçã o d e Jesus. Vale a p e n a q u estio n ar p o r q u e um

produzidas pela trama anterior é revertida, mas que, na análise que isso estimula,
há uma coerência com outro padrão consistente de uma trama que apresenta uma
explicação para o choque inicial” .
19 Veja T. W. M anson, The Servant-Messiah:A Study of the PublicMinistry offesus (Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1953), p. 93-99.
20 Apenas em Enéadas (32.5) de Plotino, em Tractatus X II de Musônio Rufo e em
Protagorasde Platão 328c; veja Lincoln, ‘T h e Promise and the Failure: Mark 16:7,8”,
JB L 108 (1989), p. 284; P. W. van der H orst, “Can a Book E nd with gar? A N ote
on M ark 16:8” , JTS 23 (1972), p. 121-24.
617 M a rc o s 16.9-20

evangelho d e o u tra fo rm a fiel ao kérygma se d istanciaria dele n o p o n to crucial


da ressurreição q u a n d o o u tro s evangelhos e Paulo (IC o 15.3-8) incluem as
aparições d o Jesu s re ssu rre to c o m o p ed ras angulares d o kérygma.
A an o rm alid ad e d o final d e M arcos to rn a -se ainda m ais ap a ren te q u an d o
co m p aram o s o evangelho d e M arcos c o m a p lé to ra de literatura sim ilar ao
evangelho ta n to d o s ap ó crifo s d o N o v o T e sta m e n to q u an to d e N a g H am -
m adi. E m b o ra o g ê n e ro evangelho varie d e m o d o considerável nesses dois
c o rp o s de literatura, to d o s os d o c u m e n to s q u e p re te n d e m lidar co m a vida
d e Jesu s in clu em aparições o u palavras d e Jesus, o u am bas, para os discípulos
ap ós a ressurreição.21 A s únicas exceções a isso são Oprotoevangelho de Tiago e A
narrativa da infância de Tomé q u e co n tê m ap en as len d as apócrifas d a juventude
d e Jesus; o Evangelho da verdade e o Evangelho dos egípcios, que n ão focam n em
as palavras n e m as ações d o Jesu s h istó rico ; e o Evangelho de Tomé q u e co n tém
apen as su p o sto s ditos d e Jesus, m as n ão ações. A té m esm o o Evangelho de
Pedro, q u e te rm in a c o m o te m o r das m u lh eres c o m o o faz M arcos 16.8, con-
té m aparições d o Jesu s re ssu rre to an terio res a esse ev en to co m as m ulheres.
U m final d o evangelho d e M arcos em 16.8, p o r co n seg u in te, é n ã o só u m a
ab e rra ção em m eio aos evangelhos ca n ô n ico s, m as ta m b ém en tre o s gên ero s
diversos e fluidos d e evangelho d o s p rim eiro s séculos d o cristianism o.
É p reciso c o n sid erar ain d a qual efeito o te m o r e a perplexidade em 16.8
teria n o s leito res ro m an o s de M arco s e n q u a n to lu tavam co m a fé em m eio à
perseguição. Será que u m final “ em a b e rto ” em 16.8 o u a p ro m etid a aparição
d o Je su s re ssu rreto aos discípulos alcançaria m e lh o r o p ro p ó sito d e M arcos
de ap re se n ta r Jesu s c o m o o F ilh o de D e u s? A c h o q u e n ão , n em , tam p o u co ,
u m final em a b e rto seria m u ito e n c o ra ja d o r p a ra os leito res d e M arcos
en fre n ta n d o a selvageria d a perseguição de Ñ e ro . P o r fim , c o n fo rm e sugerido
acim a, a in terp re taçã o u m ta n to existencial de cada leito r su p rir sua conclusão
p o r u m a decisão de fé se ajusta m e lh o r às sensibilidades m o d ern a s que aos
cân o n es literários da A ntiguidade. Se esse fosse o p ro p ó sito d e M arcos, os
apêndices tenazes nos versículos 9-20 são co m certeza u m testem u n h o sincero
de q ue ele falhou em seu in ten to . N a A ntiguidade, era co stu m e concluir livros
co m u m a reso lu ção d o s principais co n flito s, e n ã o deixá-los sem solução.

21 Tam bém Evangelho dos nazarenos, Evangelho dos hebreas, Evangelho de Filipe, Evangelho
de Pedro, Atos de Pilatos, Epistula Apostolorum, Apócrifo de Tiago, 2Apocalipse de Tiago,
Epístola de Pedro a Filipe, Evangelho de Mani, Evangelho de Nicodemos e Questões de
Bartolomeu. E m Tomé adversário, Diálogo do Salvadora o Evangelho de Maria, o tratado
consiste de um diálogo do Salvador ressurreto com os discípulos.
M arcos 16.9-20 618

H á, p o rta n to , m o tiv o considerável p ara d u v id ar que 16.8 foi a conclusão


p re te n d id a p a ra o ev an g elh o d e M arcos. M in h a o pin ião é q u e p rovavelm ente
n ão foi. P ro v av elm en te jam ais sab erem o s o q u e p o d eria te r aco n tecid o ao
final original. A su g estão m ais plausível é q u e foi p erd id o d evido ao desgaste
da ú ltim a página d o có d ice.22 O u talvez M arcos te n h a sido in te rro m p id o o u
m o rre u antes d e com pletá-lo. E ssa últim a sugestão é u m a nítida possibilidade
se M arcos c o m p ô s seu evangelho, c o n fo rm e su speitam os, em m ead o s da
década de 60 d o sécu lo I. N ã o seria d e su rp re e n d e r se o n o m e d e M arcos
estivesse en tre o s m ártires d o rein ad o d e N e ro .23
C o m o M arco s p o d e te r te rm in a d o o evangelho, claro, é algo que des-
co n h e cem o s, m as u m a evidência ten ta d o ra p e rm ite -n o s fazer u m a b rev e e
m o d esta ten tativ a d e u m final sugerido. O b serv am o s ao lo n g o d o co m en tário
q ue M ateus, co m freq u ên cia, seguia b e m de p e rto M arcos. Isso é p articular-
m e n te v erd ad eiro em relação a M arcos 16.6-8, em que o relato das m u lh eres
n o sep u lcro e m M ateu s 28.5-8 faz paralelo c o m M arcos q uase q u e palavra
p o r palavra. P arece plausível, c o m b ase n o paralelism o, sugerir q u e M arcos
te rm in o u seu ev ang elh o m ais o u m en o s d e fo rm a sim ilar a M ateus 28, co m
exceção d o relato d o s g uard as n o sep u lcro em 28.11-15.24 D u a s evidências
refo rça m essa sugestão. A prim eira, M arcos leva os leitores a esp erar u m a
aparição d o Jesu s re ssu rre to p ara os discípulos n a G alileia (14.28; 16.7), assim
c o m o M ateu s relata em 28.9,10. A segunda, o b se rv a m o s q u e a au to rid ad e
(gr. exousia) d e Jesu s é u m d o s m o tiv o s típicos d e M arcos p ara a n atu re za e
atitu d e d e Jesus. T o d o o ep isó d io m arc an o d a au to rid ad e filial de Jesu s c o m o

22 Temos exemplos de outros códices nos quais faltam as primeiras ou últimas folhas.
N o Cânone Muratori, que começa com a última linha descrevendo o evangelho de
Marcos, falta (pelo menos) a primeira página. D e m odo similar, a última página de
Marcos no códice W ashington (W) contém um buraco de uma perfuração e um
canto superior rasgado; e a última página de Marcos no Códice Beza (D) é escrita
com um a letra diferente, acrescentada evidentemente mais tarde para com pensar
a perda dessa última folha.
23 A dolf Schlatter sugere ainda possíveis razões para um final incompleto: algum
obstáculo que tenha interrompido o trabalho de Marcos; perseguição; a necessidade
de fugir; um chamado urgente para algum outro trabalho, deixando incompleto
o evangelho nas mãos de companheiros cristãos; ou possivelmente que Marcos
tinha a intenção de dar sequência a seu relato, com o o fez Lucas em Atos (Die
Evangelien nach Markus undLukas, p. 151-52).
24 O relato do guarda no sepulcro (Mt 28.11-15) é um acréscimo mateano corres-
pondendo a Mateus 27.62-66. Uma variante da visão que proponho foi sugerida
por A. Farrer, St. Matthew and St. Mark (London: D acre Press, 1954), ρ. 144-59.
619 M a rc o s 16.9-11

F ilh o d e D e u s é re p ro d u z id o em M ateus.25 O ú nico trec h o em q u e M ateus


inclui u m a referên cia à exousia d e Jesu s q ue não se e n c o n tra em M arcos está
n a o rd e m d e d esp e d id a d o C risto re ssu rre to de que Die foi “ dad a to d a a
au to rid a d e (gr. exousia) n o s céus e n a te rra ” (M t 28.18). P arece plausível
sugerir q u e M ateu s ta m b ém co lh eu essa referên cia à au to rid ad e de Jesu s no
final original d e M arcos. A ssim , d u as coisas q u e M arcos n o s leva a esp erar
n a narrativa d a ressu rreição — u m a aparição d e Jesu s p ara os discípulos na
G aüleia e u m a tran sferên cia d e sua au to rid ad e aos discípulos — co n stitu em
a essência d o final de M ateus em 28.9,10 e 16-20. E sses sete versículos têm
u m a reivindicação tão b o a q u a n to q u aisq u er o u tro s de ser o co n te ú d o do
final original de M arcos.

U M M O S A IC O C R IS T Ã O P R IM I T IV O D A R E S S U R R E IÇ Ã O
( 1 6 .9 ‫ ־‬2 0 )

O final secu n d ário é c o n stru íd o em to rn o d o tem a d o ch a m a d o dos


discípulos da d escren ça (w . 11,13,14 [2x],16) à crença (w . 16,17). E m um a
visão geral, esse final faz paralelo c o m a h istó ria da cham ada de T o m é da
d esc ren ç a p ara a cren ça em J o ã o 20.24-29. O final secu n d ário p o d e ser divi-
d id o em q u a tro partes: um a aparição d o Jesu s re ssu rre to a M aria M adalena
(w . 9-11), u m a aparição a dois viajantes (w . 12,13), u m a aparição aos o n ze
(w . 14-18) e a ascensão (w . 19,20).

9-11 N o s q u a tro evangelhos, o n o m e d e M aria M adalena en co n tra-se


en tre as prim eiras testem u n h as d a ressurreição. E m b o ra 16.9-11 seja prove-
rúen te d e u m p e río d o p o sterio r, esses versículos in dicam q u e M aria M ada-
lena, n a m e m ó ria da igreja, foi c o n tad a n ã o só c o m o a p rim eira testem u n h a
d a re ssu rreiçã o d e Jesus, m as ta m b é m c o m o a prim eira p ro clam ad o ra da
ressu rreiçã o d e Jesu s à igreja. A p rim eira p esso a a p ro clam ar o testem u n h o
d a ressurreição d a qual deriva a fé salvífica (IC o 15.14) é u m a m ulher.26 A
referên cia ao fa to d e te r sid o lib ertad a d e sete d em ô n io s n o versículo 9 p ro -
vém d e L ucas 8.2; o relato dela aos discípulos tristes e d e lu to n o versículo 10

25Marcos 1 .2 2 //M ateu s 7.29; M arcos 1 .2 7 //n a d a em Mateus; Marcos 2 .1 0 //


Mateus 9.6; Marcos 11.28//M ateus 21.23; Marcos 11.29//M ateus 21.24; Mar-
cos 11.33 //M ateu s 21.27. Mateus, no entanto, não reproduz a segunda referência
de Marcos à exousia (“autoridade”) de Jesus em Mateus 1.27.
26 Sobre a relevância do testem unho da ressurreição pelas mulheres para a missão
e a vida na igreja, veja L. Schottroff, “D ie mutigen Frauen aus Gaüláa und der
Auferstehungsglaube” , Diakonia 20 (1989), p. 221-26.
M a rc o s 16.12-14 620

reflete Jo ã o 20.14,18 (veja, tam b ém , o Evangelho de Pedro 26); e a d escrença


do s discípulos reflete L ucas 24.11. O versículo 10 registra que o p esa r de
P ed ro (14.72) a c o m e te ag o ra to d o o g ru p o ap o stólico, em b o ra, c o n fo rm e
indica o versículo seguinte, n ão é o tip o d e p e sa r q u e leva à fé. O s discípu-
los, cujas p ro c la m açõ e s p o sterio re s d o evangelho fo ram co n fro n tad as co m
a descrença, n ã o p o d e m esq u ecer a p ró p ria d esc ren ç a em relação à m esm a
m en sag em d e M aria e fo ra m o p o rtu n a m e n te arau to s m ais co m p reen siv o s e
eficazes p o r causa disso.

1 2 ,1 3 A segunda aparição aos dois viajantes p re ssu p õ e e resu m e a história


d o Jesu s re ssu rre to ap a rec en d o a dois viajantes em seu cam in h o p ara E m aú s
(Lc 24.13-35). A o bserv ação so b re Jesus aparecer “ n o u tra fo rm a” explica p o r
que ele n ão foi re co n h e c id o n a h istó ria original (Lc 24.16) e é desse m o d o o
co m en tá rio ex istente m ais an tig o so b re essa últim a passagem . O s discípulos,
n o entanto , n ão fo ram m ais receptivos ao relato d o s m ensageiros que o foram
ao relato das m ulheres n o versículo 11.

14 E m 16.14, o p ró p rio Jesu s aparece aos discípulos. O final m ais lo n g o


ap resen ta três te ste m u n h o s d a d escren ça d o s discípulos em u m a o rd e m de
au to rid ad e crescen te: u m a te ste m u n h a m u lh er (w . 9-11); duas testem u n h as
h o m e n s (w . 12,13; os p ro n o m e s greg o s estão n o m asculino); e o p ró p rio
Jesus re ssu rre to (v. 14). Je su s cen su ra os discípulos p o r sua d escren ça nas
testem u nh as anteriores, cujo testem u n h o ele confirm a. O versículo 14 garante
aos leitores q u e o te ste m u n h o d a igreja a re sp eito d a ressureição de Jesu s é
d e fato o te ste m u n h o d o p ró p rio S e n h o r ressurreto.
A aparição d e Jesu s aos o n z e em 16.14-18 se assem elha a u m catecism o
cristão antig o so b re a ressureição. D e p o is d o versículo 14 (que reflete Lc
24.36-38 e J o 20.19), J e ró n im o (m. 420), pai latin o d a igreja, incluiu a seguinte
conv ersa en tre Jesu s e os onze:

E [os discípulos] deram desculpas, dizendo: “ E sta era de iniquidade e


descrença está sob Satanás que, p o r interm édio de espíritos im undos,
não perm ite que o verdadeiro p o d er de D eus seja apreendido. Portanto,
revelem sua justiça, agora” .

E Jesu s re sp o n d e u a isso d e ste m o d o :

“ O lim ite dos anos de autoridade de Satanás foi cum prido, m as outras
coisas terríveis se aproxim am . E , em favor daqueles que pecaram , fui
621 M a rc o s 16.15-18

entregue à m orte a fim de que possam se voltar para a verdade e não


pecar mais, para que possam herdar a glória incorruptível e espiritual
que no céu consiste na justiça” .27

A adição p o ste rio r ao final secu n d ário é in stru tiv a p o rq u e revela que a
igreja prim itiva, até m esm o d ep o is da ressureição v ito rio sa de Jesu s d en tre os
m o rto s, co n tin u av a a lu tar c o m os p ro b lem a s d o p ecad o e ten tação e culpava
sua deso bed iên cia, p elo m en o s em p a rte ao dem ônio.

15 O versículo 16.15 re m e m o ra a G ra n d e C om issão de M ateus 28.19.28


Se n o ssa re c o n stru çã o h ip o tética d o final original de M arcos estiver co rreta,
parte desse dito era provavelm ente p arte d o final original de M arcos. A palavra
greg a para “preg[ar]” está n o te m p o verbal aoristo, im p lican d o proclam ação
d o evangelho p o r u m p erío d o de tem p o , e n ão in definidam ente. N esse dito
é relevante o fato d e o evangelho te r im p o rtân cia universal: os discípulos
são env iad o s p ara o “ m u n d o to d o ” e o evangelho é p ro clam ad o “ a to d o s
os q u e estão debaixo d o cé u ” (Cl 1.23). O “ to d o s ” (gr. hapantd) é enfático.
O evangelho n ão é p ara os judeus à p a rte d o s g en tio s nem para os g entios à
p a rte d os judeus, m as para todos os q u e estão d ebaixo d o céu.

1 6 A s palavras q u e c o n sistem em u m a fó rm u la d e 16.16 refletem a


p regação e alcance m issionários d a igreja prim itiva de que a fé e o b atism o
g aran tem a salvação (A t 2.38; 8.36-38; 16.30-33). A sep aração do s salvos dos
co n d e n a d o s n o versículo 16 re m e m o ra J o ã o 3.18 e 20.23. O evangelho, p o r
conseguinte, n ão só tem relevância universal, m as ta m b ém tem consequência
etern a para a salvação o u condenação.

1 7 ,1 8 A co n se q u ên cia d a salvação, d e ac o rd o co m esses versículos, n ão é


apenas a g aran tia e paz, m as tam b ém os sinais d e p o d er, in cluindo a expulsão
d e d em ô n io s, o falar em línguas, a cu ra dos d o e n te s pela im posição d e m ãos
e a p reserv ação d e q u alq u er m al q u a n d o p eg a r serp en tes o u b e b e r veneno.
M uito s desses fe n ô m e n o s aparecem em o u tro s trec h o s n o N o v o T estam en -
to c o m o atividades m ilagrosas, m as n ã o são co n sid erad o s c o m o sinais de
fé. A ssim , a ex p u lsão d e d em ô n io s en c o n tra-se em 6.7 (tam bém M t 10.1,8;
Lc 10.17; A t 8.7; 16.18; 19.6); o falar em línguas, em IC o rín tio s 12.10,30;
14.2,18; o so b rev iver à m o rd id a d e serp en tes venenosas, em A to s 28.3-6 e

27 Contra Pelágio 2.15; citado em NTApoc 1.248-49.


28 Marcos 16.1518‫ ־‬é citado literalmente em Atos de Pilatos no século III (?).
M a rc o s 16.15-18 622

L ucas 10.19; e a cura, em p artic u la r pela im p o sição d e m ãos, em 16.3; M a-


teus 9.18; A to s 3.1-7; 14.8-10; T iag o 5.14.
O s sinais m ais questionáveis d en tre esses sinais carism áticos é p eg ar
serp en tes e b e b e r v en en o , cujo p ro p ó sito n ão é serv ir a com u n id ad e, m as
a d e m o n stra ç ã o em si m esm a. A palavra p ara “ se rp e n te ” é ophis, em grego,
um te rm o g en é rico p a ra co b ra o u serp en te, e m b o ra n ão necessariam ente
v enen osa, c o m o a c o n te ce co m o te rm o g re g o echidna (tam b ém A t 28.3-6).29
C o n sid e ran d o -se a referên cia lo g o a seguir a b e b e r v eneno, esse ú ltim o ter-
m o seria e sp e ra d o n o versículo 18. A palavra ophis, n o en tan to , é a m esm a
palavra u sad a em G ên esis 3 (LXX) n a descrição da ten taç ão d a serpente.
Isso levanta a q u estão se n ão é possível in te rp re ta r de fo rm a m etafó rica a
im agem d e “pegfar] em serp en tes” , o u seja, q ue n a era d a salvação a m aldição
d a se rp e n te foi superada.
C o m relação a b e b e r “ algum v en e n o m o rta l” , n ã o h á n e n h u m relato de
b e b e r v e n e n o c o m im u n id a d e n o N o v o T estam en to , e m b o ra E u sé b io {Hist.
Ecl. 3.39.9) m e n c io n e J o sé B arsabás (o discípulo n ã o esco lh id o em A t 1.23)
q u e b e b e u v e n e n o sem s o fre r n e n h u m m al. P arece, co n tu d o , que n o final d o
século I, u m cu lto relacio n ad o c o m d rogas v en en o sas exercia p elo m en o s
algum a influência n o s círculos judaicos-cristãos. Isso se to rn a ap a ren te p o r
u m a referên cia e m Antitguidades d e Jo sefo , c o m p letad a em 93-94 d.C ., de
q u e “ n in g u ém d eve ter p o ç õ e s m ágicas (gr. pharmakoi), n em v en en o s (gr.
thanasimos), n e m , tam p o u co , q u alq u er coisa nociva feita p o r israelitas co m
p ro p ó sito s n o civ o s” (Ant. 4.279). Jo se fo c o m e n ta de fo rm a o stensiva so b re
Ê x o d o 22.18 (que n ã o faz n e n h u m a m en çã o a “v e n e n o ” [gr. thanasimos]). A
adição d o te rm o , n o en ta n to , sugere q u e era u m a p re o cu p aç ão n a é p o c a de
Jo se fo n o fin zin h o d o sécu lo I. Inácio, escrev en d o p o r v o lta da m esm a ép o -
ca o u u m p o u c o dep o is, alerta os tralianos a se ab sterem d e alim entos que
os h erético s e m p u rra m aos in g ên u o s, m istu rad o s c o m o v en e n o m o rta l (gr.
thanasimos) co m v in h o ad o cicad o q u e os ig n o ran tes b e b e m c o m felicidade até
sua m o rte (In., Trai. 6). O tex to d a passag em está parcialm ente co rro m p id o ,
e n ão fica to ta lm e n te claro se In á cio quis d izer q ue b e b e r v en en o era consi-
derad o d e m o d o literal o u sim b ó lico fazer p a rte da heresia cujo n o m e n ão é

29 À parte da história em Atos 28.3-6, a única outra história de m ordida de um


animal peçonhento que conheço é do judeu Tosefta que embeleza um a história
anterior do rabi H anina ben Dosa, em que este, enquanto orava, foi m ordido por
um lagarto venenoso. O rabi piedoso não sofreu nenhum dano, em bora o lagarto
tenha sido encontrado m orto em seu buraco (/. Ber. 3.20).
623 M a rc o s 16.19-20

m en cio n ad o . T odavia, até m esm o o sen tid o sim bólico indica q u e a p rática de
b e b e r v en e n o era co n h ecid a d o s leitores d e M arcos. A palavra q u e ele usa para
b eb id a v en e n o sa n o versículo 18 é a m esm a palavra grega (<thanasimos) usada
p o r Jo se fo e In ácio. A referên cia a b e b e r v e n e n o m o rtal sem so fre r danos,
p o r con seg u in te, sinaliza aos leitores d e M arco s q ue aqueles q u e acreditam e
seguem o evangelho têm a g aran tia da im u n id ad e c o n tra a heresia, incluindo
p o çõ e s heréticas p ara b eber.
O s versículos 16.17,18 são vistos co m frequência pelo s cristãos ociden-
tais, e m particular, co m ceticism o o u d esc artad o s c o m o superstições indignas
d a fé cristã g enuína. O p ro p ó s ito ap ro p ria d o d o s sinais, todavia, é articulado
n o versículo 20, d e q u e D e u s “ c o n firm a [va]-lhes a palavra co m sinais q u e a
aco m p a n h av am ” . O te ste m u n h o d a igreja prim itiva foi a c o m p a n h a d o p o r
sinais e p o rte n to s q u e c o rro b o ra v a m o evangelho m issionário. O m esm o é
v erd ad e em m uitas p artes d o m u n d o hoje, em especial o n d e sinais co n co -
m ita n te s ajudam a co n v e n cer o s n ã o cristão s que o D e u s cristão é m ais real
e p o d e ro so q u e as crenças e cultos religiosos locais. A referência a sinais n o s
versículos 17,18 é u m le m b re te d e q u e a fé cristã n ão é u m a ideia n em um a
filosofia, m as u m m o d o de v id a e m p o d e ra d o p elo E sp írito de D eus. A pers-
pectiv a d e S ch latter so b re os sinais carism áticos é útil: “A v ocação daqueles
q u e p ro c la m am Jesu s excede em m u ito o q u e é visível aos olhos; eles trazem
p ara o m u n d o os d o n s celestiais. E sses d o n s ta m b é m são refo rçad o s p o r
sinais que revelam a to d o s q ue a p ro teção , a ajuda e os d o n s d e D e u s estão
p resen tes c o m seus m en sag eiro s” .30

19,20 A ascen são em 16.19 co m b in a A to s 1.9-11 co m Salm os 110.1 e


tam b é m p o d e re m e m o ra r IT im ó te o 3.16 e M ateus 26.64. A m issão subse-
q u en te d o s discípulos reflete A to s 14.3 e H e b re u s 2.3,4 e enfatiza m ais um a
vez o ap elo e p ro p ó s ito universal d o evangelho que foi p re g ad o “p o r to d a
p a r te ” . A ssim , o final m ais lo n g o d e M arco s n o s ap resen ta a h arm o n ia da
ressu reição d e histó rias am algam adas d o N o v o T e sta m e n to — algum as das
quais re fletem in teresses litúrgicos e m issionários — c o m o um a tentativ a d o
final d o século I o u início d o século II de co m p en sa r p elo que era considerado
u m final falho de M arcos 16.8.
O final d o evangelho de M arcos, invariavelm ente, d esa p o n ta os leitores
— o final m ais b reve em 16.8 p o rq u e é inconclusivo, e o final m ais lo n g o em
16.9-20 p o rq u e é in co n g ru e n te. T rês co m en tário s finais e gerais p o d e m talvez

30 Schlatter, Die Evangelien nach Markus und Lukas, p. 154.


M arcos 16.19-20 624

ser feitos à luz disso. O prim eiro, o final mais lon g o testifica que — em p eríodo
bastan te re m o to , e co m ce rteza n ão m ais tard e q u e as prim eiras décadas do
século II — a trad ição q u e m ais tard e ab ran g ería o N o v o T estam e n to já era
conh ecida, e os discípulos d e Jesu s reco rriam a ela c o m o fu n d a m e n to p ara a
pregação, m issão e cateq u ese (veja n. 9 acim a). A igreja, q u a n d o co n fro n ta d a
co m u m final d e M arco s q ue era co n sid erad o falho, apelou a sua tradição
evangélica, ta n to escrita q u a n to pregada, p ara retificar essa deficiência. O
final m ais lo n g o d e M arcos, p o r conseguinte, testifica q u e a igreja prim itiva,
c o n fo rm e P au lo ex o rtaria os ro m an o s, foi fo rm a d a p elo evangelho e pela
tradição q u e proclam ava (R m 6.17). O m esm o re la cio n am en to en tre a tradi-
ção evangélica e a co m u n id ad e d e fé d efine a vida d a igreja ho je que, q u an d o
requisitada a se m an ifestar em face d e p ro b lem as e deficiências, p o d e tam b ém
co m p le tar a h istó ria d e n o ssa jo rn a d a narrativa.
O seg u n d o , o final m ais lo n g o d e M arco s n o s lem b ra que o N o v o
T esta m e n to é u m p ro d u to d a igreja c o m o u m a co m u n id ad e de adoração,
confissão e crença. N ã o co n h e ceria m o s o evangelho d e Jesus C risto à p a rte
d o te ste m u n h o d a igreja n o s evangelhos e epístolas. O final m ais lon g o de
M arcos, ap esar d e suas in co n g ru ên cias, testifica q ue os evangelhos n ão são
registros h istó rico s in d ifere n tes e inexpressivos, m as, antes, são a histó ria d o
D eus en carn ad o q u e foi entregue pelas com unidades de fé na confiança de que
D e u s q u e tra n s fo rm o u a v id a deles faria, p o r in te rm é d io de seu testem u n h o ,
o m esm o co m seus leitores.
P o r fim , o final in co n clu siv o em 16.8 n ã o p õ e em risco o te stem u n h o
cristão p rim itiv o d a ressureição d e Jesu s d e n tre os m o rto s. E m b o ra M arcos
seja pro v av elm en te o p rim eiro evangelho a ser escrito, n ão é o relato m ais
antigo d a ressureição. P aulo, escrev en d o em 1 C o rin tio s 15 cerca de um a
década antes d e M arcos, ap re se n ta o relato m ais an tigo d o ev en to que fica
n o cen tro d a h istó ria e fo rn e c e sen tid o a ela. O an ú n cio d o an jo em M ar-
cos 16.6 p re ssu p õ e a ressureição.31 A igreja prim itiva, ap esar d e diferenças
so b re ev en to s p articu lares em to rn o d a ressureição, ap resen ta u m ú n ico e
ineq u ív o co te ste m u n h o de que D e u s re ssu scito u Jesus d en tre os m o rto s. A
igreja declaro u p ara sua ép o ca, co m o o faz p ara a n o ssa, que “vocês o verão,
co m o ele d isse” (16.7).

31 Veja Magness, SenseandAbsence: StructureandSuspension in theEnding of Mark’s Gospel, p.


14: “Marcos afirma e comunica uma ressurreição e [uma] reunião pós-ressurreição
sem narrá-las” .
apêndice

O evangelho secreto de Marcos

E m 1958, M o rto n S m ith an u n cio u q u e d esc o b rira em u m m o n astério


d e M ar Saba n o vale de C ed ro m , en tre Jeru salém e o m a r M o rto , u m trech o
de um a c a rta escrita p o r C lem en te de A lexandria. A carta em questão, de
ac o rd o co m S m ith, foi en c o n tra d a nas páginas finais em b ra n co das o b ras de
In ácio d e A n tio q u ia, e a últim a das quais foi co p iad a em 1646. A letra desse
trec h o foi escrita p o r u m a p en a d istin ta daquela usada nas o b ras de In ácio e
foi d atad a d e cerca d e 1750, p o r v o lta de u m século m ais tard e que as obras
d e In á cio das quais é u m a parte. N a c a rta p u b licada p o r Sm ith, C lem ente
re sp o n d e a u m ce rto T e o d o ro q u e estava sen d o im p o rtu n a d o pelos ensinos
d o s g n ó stico s carp o cracian o s, u m a seita q u e se en treg a a práticas sexuais
ilícitas fu n d a m e n tad as em u m a versão variante d o ev angelho d e M arcos.
C lem en te refu ta os carpocracianos citan d o duas passagens d a versão suspeita
d e M arcos, aquela q ue M o rto n S m ith ch am a d e Evangelho secreto de Marcos.
A p rim eira passagem , c o n fo rm e se alega, aparece d e p o is d e M arcos 10.34 e
traz o seguinte texto:

E eles foram para a Betânia. E havia um a m ulher ali, cujo irm ão estava
m orto. E ela veio e se p ro stro u diante de Jesus, dizendo a ele: Filho de
D avi, tenha m isericórdia de mim. C ontudo, os discípulos a repreende-
ram. E Jesus, com raiva, foi em bora com ela para o jardim onde ficava
o sepulcro; e im ediatam ente um a voz alta proveniente do sepulcro foi
ouvida; e Jesus seguiu em frente e rolou a pedra da po rta do sepulcro.
E ele, de im ediato, entrou o n d e estava o jovem, estendeu sua m ão e o
ressuscitou, pegando-o pela mão. C ontudo, o jovem olhou para ele e o
am ou, com eçando a im plorar a Jesus para que pudesse perm anecer com
este. E quando saíram do sepulcro, entraram na casa do jovem; pois este
Apêndice: 0 evangelho secreto de Marcos 626
era rico. Jesus, após seis dias, com issionou o jovem ; e à noite, esse jovem
veio a ele, vestido apenas com um lençol de linho sobre o corpo nu. E
ele perm aneceu com Jesus aquela noite; pois este estava ensinando a ele
os m istérios d o Reino de Deus. E , dali, ele foi em bora e reto rn o u ao
ou tro lado d o Jordão.

N e sse p o n to , C lem en te, de ac o rd o c o m M o rto n S m ith, afirm a q u e o


tex to d o Evangelho secreto de Marcos co n tin u a co m o tex to can ô n ico de M ar-
cos 10.35-45 e c o m o p ed id o d e T iag o e Jo ã o p ara se sen tarem u m de cada
lado d e Jesu s n a glória. C o n tu d o , depois de 10.46, C lem ente cita um a segunda
passag em d o Evangelho secreto de Marcos·.

E le foi a Jericó. E ali estavam as irm ãs do jovem a quem Jesus amava e


sua m ãe Salomé, e Jesus não as recebeu.

N e sse p o n to , o tex to é in te rro m p id o , e o tre c h o p ro d u z id o p o r M o rto n


S m ith term in a .1
O q u e p o d e ser d ito so b re esse tre c h o e stra n h o d e sc o b e rto em circuns-
ta n d a s igualm ente estranhas? D e sum a im p o rtan cia é q ue até o m o m e n to esse
trech o n ão foi v isto p o r n e n h u m estu d io so ocid en tal, exceto M o rto n S m ith.2
N ã o é possível tece r u m ju lg am en to conclusivo an tes que esse original esteja
disponível p ara u m exam e científico p o r o u tro s estu dio sos. N ã o o b sta n te , a
evidência m aterial d o trec h o su p rid o sugere co m firm eza que o Evangelho secreto
de Marcos é u m a p ó c rifo tard io e n ão era original n e m d o M arcos can ô n ico
n em d o s m an u scrito s m ais antigos de M arcos.
A s tentativas d e arg u m e n tar q ue o Evangelho secreto deMarcos é m ais antigo
que o M arcos c a n ô n ic o 3 são claram en te equivocadas e fo ram assim julgadas

1 Veja M. Smith, Clement of Alexandria anda Secret Gospel of Mark (Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1973); do mesmo autor, The Secret Gospel: The Discovery
and Interpretation of the Secret GospelAccording to Mark (New York: H arper & Row,
1973).
2 Em janeiro de 1999, visitei M ar Saba e pedi para ver o manuscrito em questão.
Foi-me dito que o manuscrito fora transferido de Mar Saba para o Patriarcado
Ortodoxo Grego em jerusalém . E m Jerusalém, meu pedido para ver o manuscrito
foi evitado pelos monges, e, desde esse episodio, ouvi dizer que o paradeiro dessa
obra é desconhecido.
3 Tam bém H. Koester, Ancient Christian Gospels: Their History and Development (Phi-
ladelphia: Trinity Press International; London: SCM Press, 1992), p. 293-303; J.
M. Robinson, “Jesus: From Easter to Valentinus (or to the Apostles’ Creed)” ,
fB L 101 (1982), p. 5-37; J. D. Crossan, Four Other Gospels: Shadows on the Contours
of Canon (Minneapolis: W inston, 1985).
627 A p ê n d ice : 0 e v a n g e lh o s e c re to d e M a rc o s

pela m aioria d o s estu d io so s.4 A razão m ais im p o rta n te p ara esse julgam ento é
que o m aterial alegado p o r M o rto n S m ith n ão aparece em n e n h u m o u tro pai
d a igreja e em n e n h u m d o s te ste m u n h o s de m ilhares de m an u scrito s antigos
d o evangelho de M arcos. A lém disso, q ue o Evangelho secreto deMarcos é um a
adição tardia ao M arcos can ô n ico está p raticam en te p ro v a d o pelo fato de que
“ fo ra m p ara B etân ia” é u m an a cro n ism o ev id en te n o tex to de M arcos, um a
vez q u e Je su s e os discípulos ainda n ão tin h am id o p ara Jericó (M c 10.46),
e B etânia fica d ep o is d e Jericó . P o r fim , os carp o cracian o s m en cio n ad o s a
C lem en te p o r T eo d o ro só surgiram em m ead o s d o século II, o u seja, um
século d ep o is da co m p o siçã o de M arcos. N ã o re sta a m e n o r dúvida q u e o
trec h o p ro d u z id o p o r M o rto n S m ith ap arece em d a ta consideravelm ente
p o ste rio r a M arcos.
O d ito Evangelho secreto de Marcos, de m o d o geral, p arece ser u m a falsi-
ficação, sen d o difícil afirm ar se m o d e rn a o u antiga.5 P elo m en o s duas ob-
serv ações su g erem u m a falsificação m o d e rn a , talvez pelo p ró p rio M o rto n
S m ith. U m a é q u e este acreditava q u e Jesu s era u m m ágico, e o Evangelho
secreto de Marcos p ro d u z id o p o r ele sugere, o q u e causa m uita suspeita, essa
visão.6 U m a seg u n d a o b serv ação é q u e o tex to d o Evangelho secreto de Marcos
n ã o ap resen ta n e n h u m d o s erro s típicos d a tran sm issão m anuscrita, levando
alguns estu d io so s à co n jec tu rar q u e o tre c h o d e M o rto n S m ith talvez fosse a
co m p o siçã o original.7 N ã o o b sta n te , é possível esp e rar q u e u m a falsificação
p o r M o rto n Sm ith p ro d u z a trec h o s m e n o s frag m en tad o s e u m trec h o que
leva ain d a m ais a sua visão d e Jesu s c o m o u m m ágico. P o rtan to , p o d e ser que
o Evangelho secreto de Marcos seja u m a falsificação antiga, típica de adições e
ad ulterações d o s evangelhos can ô n ico s q u e surgiram em especial d u ra n te o
apogeu d o gno sticism o n o século II. O tex to é u m a u nião óbvia da história do
ressu scitar de L ázaro em J o ã o 11 c o m a d o g o v e rn a n te rico de M arcos 10.17-
22. O a ssu n to d o tex to é re m in iscen te d e tem as e interesses esotéricos de
m u ito s evangelhos e d o cu m e n to s q ue n o s são fam iliares de N a g H am m ad i

4 Veja críticas em R. Gunclry, Mark, p. 603-23; J. P. Meier,Λ MarginalJew: Rethinking


the HistoricalJesus (New York: Doubleday, 1991), p. 120-23; J. Wenham, Redating
Matthew, Mark, <&Luke (Downers Grove: InterVarsity Press, 1992), p. 142-45; H.
Merkel, “Appendix: the ‘Secret Gospel’ o f Mark”, NTApoc 1.106-9.
5 Veja B. Metzger, Reminiscences of an Octogenarian (Peabody, MA: Hendrickson Pu-
blishers, 1997), p. 128-32.
6 M. Smith, Jesus the Magician (San Francisco: H arper & Row, 1978).
7 Veja C. E. Murgia, Protocol of the 18th Colloquy of the Centerfor Hermeneutical Studies,
ed. W. Wuellner (Berkeley: T he Center, 1976), p. 35-40.
A p ê n d ic e : 0 e v a n g e lh o s e c r e t o d e M a r c o s 628

b a s ta n te re la c io n a d o s c o m o g n o s tic is m o , b e m c o m o v á rio s te x to s a p ó c rifo s


d o N o v o T e s ta m e n to . O e s tilo d o tr e c h o e x ib e u m a te n ta tiv a c o n s c ie n te d e
im ita r o estilo lite rá rio d e M a rc o s .8 A ê n fa s e n a n u d e z d o jo v e m e e m se u
a m o r p o r J e s u s , o q u e p o d e r ia s u g e rir u m e n c o n tr o h o m o s s e x u a l,9 e s tá d e
a c o rd o c o m o lib e ra lis m o sex u a l a trib u íd o a o s c a rp o c ra c ia n o s . E m s u m a , o
Evangelho secreto de Marcos p a r e c e s e r u m p s e u d ô n im o p o s te r io r q u e n ã o te m
n a d a q u e v e r n e m c o m a p ro c e d ê n c ia d e M a rc o s n e m c o m o s p ro p ó s ito s
d e sse ev a n g e lista .

8 M erkel, NTApoc 1.107, “ In M ark itself th e M arcan peculiarities o f style are


now here so piled u p as in th e ‘secret G o sp el’ Veja tam b ém a análise de E . B est
de E . J. Pyrke Redactional Style in the Marcan Gospel, JS N T 4 (1979), p. 71-76.
9 G undry, Mark, p. 621-23, lem b ra-n o s co rretam en te que o texto não m enciona
explícitam ente relações hom ossexuais (nem práticas batism ais esotéricas refe-
rentes a elas). N a visão dele, tam b ém não é necessário sugeri-las. D e acordo com
G undry, o jovem sem roupa, exceto um lençol de linho, rep resen ta u m m odelo
de discípulo que, em co n tra ste com o h o m em rico de 10.17, vende tu d o o que
tem e segue Jesus para ap ren d er o m istério d o Reino de D eus. A interpretação
de G u n d ry é u m a tentativa corajosa de resgatar o texto da infâm ia, m as falha em
levar a sério as insinuações sexuais da história, c o n fo rm e a intenção da narrativa.
Se G u n d ry estivesse correto, esperaríam os que C lem ente elogiasse a história, em
vez de repudiá-la.

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