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Resenha

Um olhar sobre
o olho da
serpente

Olga Rodrigues de Moraes von Simson 1

O autor não é um historiador de ofício e carrei- alojarem em fazendas ou em cidades menores não
ra, mas um apaixonado por sua cidade e pelo passado infectadas, buscando abrigo na casa de parentes ou
da mesma. Aposentado, se propõe como missão co- amigos. Sobravam aqueles cujos meios financeiros
nhecer e divulgar o passado campineiro, tendo como não permitiam grandes deslocamentos e que fica-
enfoque as epidemias de febre amarela que assolaram vam mais suscetíveis aos ataques da doença, pois
a cidade no final do século XIX (1889/1890). os víveres se tornavam cada vez mais escassos com
Tomou como fontes para pesquisa as Atas o crescente fechamento das casas comerciais. Esse
da Câmara Municipal de Campinas e trechos da im- movimento de abandono da cidade era incentiva-
prensa diária campineira, pesquisados nos arquivos do pelo oferecimento gratuito de passagens pelas
do Centro de Ciências Letras e Artes (CCLA) e na companhias ferroviárias que serviam ao município.
Hemeroteca do Centro de Memória - Unicamp, fo- O autor pinta um cenário desesperador, com
calizando principalmente as crônicas e as notícias a maioria das casas fechadas e com cadáveres aban-
veiculadas nos anos de 1889 e 1890. donados pelas ruas e becos da cidade, pois famílias
Descobre Jorge que a primeira vítima da do- inteiras eram dizimadas pela febre e não havia pa-
ença foi uma estrangeira recém-chegada à cidade, rentes que as enterrassem. A vala comum foi a úni-
uma professora que foi contaminada pela febre tro- ca solução possível encontrada pelas autoridades.
pical ao descer do navio, em Santos, vinda de Paris Lima salienta o papel do então presidente da
para lecionar em Campinas. Câmara Municipal, José Paulino, que vai solicitar
Registra o autor o esvaziamento da cidade auxílio dos governos estadual e federal e a dedi-
que gradativamente via seus habitantes, dos mais cação dos médicos que, ao exercer corajosamente
ricos aos mais pobres, procurando deixá-la para se sua missão de curar, muitas vezes foram dizima-

1 Professora colaboradora plena do Departamento de Ciências Sociais na Educação, da Faculdade de Educação (Decise/FE/Unicamp), e
pesquisadora do Centro de Memória – Unicamp (CMU).

RESGATE - VOL. XXIII, N.29 - JAN./JUN. 2015 - VON SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes, p. 109-110. 109
Resenha

dos pela terrível doença. Compreendemos então No segundo volume, O Retorno da Serpente.
porque muitos deles são lembrados diuturnamente Campinas/1890, o autor relata como o governo
nos nomes de ruas importantes do centro da nossa estadual e os órgãos federais, sob orientação dos
cidade, como o da enfermeira Irmã Serafina, que engenheiros Emílio Ribas e Saturnino de Brito e
morreu aos 44 anos no exercício de sua missão, graças às verbas concedidas pelos presidentes De-
assim como os dos médicos Costa Aguiar, Ângelo odoro da Fonseca e Prudente de Morais, transfor-
Simões, Germano Melchert, Eduardo Guimarães e maram nossa cidade eliminando pântanos, com
muitos outros que faleceram em combate à febre. suas águas paradas e perigosos miasmas pela canali-
Estas duas obras demonstram como um zação dos córregos, o que permitiu a construção de
olhar treinado, voltado para um objetivo definido, grandes avenidas como a Orosimbo Maia no fundo
é capaz de localizar e ressaltar aspectos inéditos de um vale ameaçador, permitindo assim a abertura
do passado e, ao concatená-los ao contexto mais de um novo ciclo de desenvolvimento da cidade,
amplo, atribui sentido aos mesmos e nos permite que se espraiou rumo ao norte, formando bairros
entender as tramas do tempo e a complexidade das residenciais, ao longo das novas avenidas.
relações sociais. Mostra também como a população do Rio
O cuidadoso trabalho de reconstrução só- de Janeiro, por meio da atuação de sua imprensa,
cio-histórica nos mostra também a importância da deu grande apoio ao povo de Campinas, organizan-
existência em nossa cidade de bons arquivos, cui- do coletas e subvenções cuja importância é hoje re-
dadosamente organizados e bem mantidos, que lembrada através de uma das nossas principais pra-
permitem aos estudiosos revelarem aspectos do ças, sede de importantes atividades culturais e que
passado que servem de rica lição para as necessi- recebeu o nome de Praça Imprensa Fluminense,
dades da cidade do presente, que vê sua população estando situada no Cambuí, um dos novos bairros
novamente ameaçada por nuvens de mosquitos dis- abertos pelo saneamento da cidade.
seminadores de doenças perigosas como a dengue. Escrito numa linguagem clara e agradável,
É também este livro uma valiosa ferramenta estes livros permitem ao leitor leigo adentrar com
para futuros pesquisadores porque nos apresenta facilidade o passado campineiro, por isso ele é re-
muitos e variados aspectos do passado campineiro, comendado como leitura para nossos jovens estu-
organizados temática e cronologicamente, facilitan- dantes, que muito poderão aprender sobre o co-
do assim bons mergulhos no pretérito, os quais po- tidiano campineiro nos séculos passados e sobre
dem sugerir novos temas e abordagens do passado como, a partir de perigos, fracassos e derrotas, um
de nossa cidade que, como uma Fênix, foi capaz de belo porvir pôde ser elaborado na nossa querida
ressurgir das desgraças causadas pelas epidemias. Fênix Renascida.

Referências das obras resenhadas:

LIMA, Jorge Alves de. O Ovo da Serpente; Campinas/1889. Campinas, SP: Arte e Escrita, 2013, 360p., il., v.1.
(Coleção Campinas Mártir, Porém Heroica).
______. O Retorno da Serpente; Campinas/1890. Campinas, SP; Arte e Escrita, 2014, 472p., il., v.2. (Coleção
Campinas Mártir, Porém Heroica).

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