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Parecer técnico sobre o sítio “Serrote

do letreiro”
Leonardo P. Troiano

"O Estado da Paraíba detém um importante conjunto de bens arqueológicos pré-históricos (...) a exemplo, pode
ser citado as Itacoatiaras do Ingá, que constituem referência internacional da arte rupestre no Brasil; o Serrote
do Letreiro, que apresenta pegadas de dinossauros ao lado de inscrições, representando documentos
únicos do homem pré-histórico (...) "(Grifo do autor)
Patrimônio Arqueológico: Paraíba. Publicação IPHAN.

INTRODUÇÃO
Esse parecer técnico nasce a partir
da intenção de notificar oficialmente a
identificação do sítio arqueológico e
paleontológico "Serrote do Letreiro".
Busca também comunicar informações
acerca deste sítio e sua importância.
Durante viagem ao Estado da Paraíba,
no período de setembro de 2023, na
Figura 1. Gravura e pegada centrais localizadas em
companhia das senhoras Aline Marcele um dos três afloramentos rochosos que compôem o
Ghilardi (Paleontóloga/UFRN) e Heloísa Serrote do Letreiro. Fotografia: Leonardo Troiano.
Bitú dos Santos (Arqueóloga/URCA),
foi observada a presença de um sítio Para fins de contextualização, àquela
arqueológico adjacente a um sítio altura, não se havia conhecimento do
paleontológico. sítio, que me foi mostrado pela sra.
O sítio em questão apresenta Ghilardi, tampouco se havia
Gravuras Rupestres de aparência conhecimento de existir cadastro,
geométrica, ou de reconhecimento identificação ou reconhecimento do
diferido, juntamente a pegadas de mesmo.
diversas espécies de Dinossauros Posteriormente, verificou-se que o
(Figura 1). O referido sítio está situado sítio arqueológico já estava registrado
dentro dos limites de uma propriedade no Sistema de Informações do
rural denominada Sítio Lagoa, Patrimônio Cultural (SICG) sob três
acessível pela Rodovia PB-391, no denominações distintas e três códigos
município de Sousa, estado da Paraíba. diferentes, configurando redundância.
As designações em questão são Ao longo da pesquisa, foi revelado o
"Lagoa das Estrelas" (PB-2516201-BA- histórico de conhecimento acerca do
ST-00001), "SERROTE DO LETREIRO" Sítio, sendo possível observar que este
(PB-2516201-BA-ST-00003) e, por fascinante registro não havia passado
último, como "Sitio Arqueológico e despercebido, muito pelo contrário.
Paleontológico Serrote do Letreiro" Sabemos agora que havia ciência do
(PB-2516201-BA-ST-00002). do sítio pela Superintendência do
Todas essas referências se reportam, Iphan na Paraíba, assim como de
na realidade, ao mesmo sítio já algumas menções a ele feitas por
conhecido regionalmente como outros:
"Serrote do Letreiro". Estes cadastros "Nesse geossítio foram registradas pegadas de
contam com baixo número de material dinossauros terópodes (...) Em duas das
exposições rochosas as pegadas ocorrem
fotográfico e documental.
associadas a inscrições rupestres gravadas em
Como os registros arqueológico e baixo relevo. Os desenhos geralmente
paleontológico estão profundamente representam círculos preenchidos por linhas
radiais, mas seu significado e origem ainda são
interligados, faz-se necessário, a nível incertos. (...) No entanto, o sítio encontra-se
de princípio de discussão, diferenciar sujeito à enxurradas durante a época de chuvas
e ao crescimento sazonal da vegetação,
o nível de conhecimento acerca de
ocasionando maior intemperismo e aumentando
ambos. a fragilidade do sítio. Apesar desses fatores, o
O sítio paleontológico Serrote do geossítio apresenta acentuadas qualidades para
exploração turística, científica e pedagógica.
Letreiro já é conhecido formalmente Durante a avaliação do potencial do afloramento
desde a década de 1970, quando das foi verificado que o Geossítio Serrote do Letreiro
é de relevância internacional."
primeiras expedições ao Brasil do
padre e paleontólogo italiano Serviço Geológico Brasileiro (SGB).
Giuseppe Leonardi, que buscava
identificar na região fósseis de Como também:
dinossauros. Já em suas primeiras
"Imagens gravadas em rochas pelos povos
publicações, Leonardi faz, en passant, indígenas do Brasil ao lado das pegadas de
menção ao registro arqueológico ali dinossauros terópodes, expostas na Paraíba, no
nordeste do Brasil, indicam que as pegadas de
presente, mencionando a existência de três dedos foram interpretadas como sendo de
“Gravuras indígenas Kariri”. Todavia, aves gigantes correndo. Esse exemplo, assim
como muitos outros, sugere que culturas não
desde então, nunca houve descrição
escritas dedicavam tempo considerável e
formal do material arqueológico especulação ao significado das impressões de
existente no local. pés em pedra." (Tradução do autor)

Deste modo, a partir da tomada de Mayor & Sarjeant 2001.


conhecimento ocorrida em Setembro,
As observações mencionadas são
iniciaram-se os esforços deste e das
apenas algumas e já suficientes para
companheiras supramencionadas em
indicar que este sítio exibe um alto
publicar uma descrição preliminar do
potencial arqueológico e que deve ser
rico painel de gravuras.
considerado como um de interesse
tanto da Arqueologia, quanto da Área
Internacional. Sua importância, como
explicitado em menção (acima) da
Superintendência da Paraíba de 2010,
reside no fato de representar um
vestígio antiquíssimo da interação
humana com o registro fóssil, datada
de tempos pré-coloniais. Isto, além de
apresentar uma notável diversidade e
riqueza de material paleontológico,
bem como um conjunto exuberante de
registros rupestres.
De tal maneira, seguem-se neste
parecer algumas recomendações e
apontamentos, assim como descrição Figura 2. Área identificada tradicionalmente como o
técnica do sítio Serrote do Letreiro, em Sítio Serrote do Letreiro. Google Earth.
face à singularidade do registro ali
presente. quadrúpedes com longos pescoços) e
ornitópodes (Dinossauros com bicos
DESCRIÇÃO SUMÁRIA DO semelhantes aos de patos).
SÍTIO No tocante ao registro arqueológico,
ali se localizam petróglifos de baixo
O Serrote do Letreiro compreende
relevo (Figura 3), majoritariamente
três grandes afloramentos rochosos,
circunferências tetra ou pentapartidas
com Poligonal de perímetro de
ou circunferências preenchidas por
1.020,39 m, correspondendo a uma
linhas radiais, assemelhando-se a
área de 52.400,9 m² (Figura 2). Seu
estrelas, de reconhecimento diferido.
contexto geológico é a Formação
Em relação a este conceito, Magalhães
Antenor Navarro (Bacia de Sousa),
(2011) o define como:
datando da era Berriasiano-
Hauteriviana, no período do Cretáceo
"Na categoria dos grafismos de
Inferior, 145.0 ± 4.0 Ma e 139.8 ± 3.0 reconhecimento diferido entram os que, por
Ma (milhões de anos atrás). O suporte não apresentarem a mesma facilidade no
reconhecimento, tendem a ser considerados
rochoso é constituído por arenitos
geométricos, devido à forma, geralmente
conglomerados. Sobre a área de próxima desse conceito moderno e, que, por
interesse paleontológico, o sítio tais motivos, necessitam de outros
procedimentos para se tornarem, pelo menos
apresenta pegadas de dinossauros
em parte, e sob outras perspectivas,
terópodes (Dinossauros com duas reconhecidos”.
pernas), saurópodes (enormes animais Magalhães, 2011.
Figura 3. Alguns petróglifos encontrados no Serrote do Letreiro. A maioria são círculos internamente
repartidos. (C) configura um tridígito/tridáctilo, possivelmente uma reprodução das pegadas de três dedos
encontradas no mesmo sítio? Fotografia: Aline Ghilardi.

Os três lajeiros (Figura 4) que O terceiro afloramento, localizado


comportam tanto pegadas, quanto quase inteiramente no terreno
gravuras, encontram-se intercalados vizinho, passando a cerca de pedras
entre pequenos bolsões de densa que divide as duas propriedades,
vegetação local da Caatinga, que se abriga uma enorme coleção de
impôem como uma dificuldade de gravuras e ainda mais pegadas, estas
nível médio durante a transposição de variadas, tanto de terópodes quanto
um afloramento para o seguinte. de saurópodes, e muitos petróglifos.
Notadamente, o afloramento norte
(Figuras 7 e 19) comporta um
importante painel gráfico, no qual se
misturam proundamente os
petróglifos e as pegadas de terópodes.
O afloramento central detém uma
colossal trilha de pegadas de
saurópodes, asssim como de
ornitópodes. O registro rupestre aqui é
discreto, havendo apenas apagadas
marcas de picoteamento, indicativos Figura 4. Em vermelho, afloramento (lajeiro) norte.
Em amarelo, afloramento central, e em azul,
da existência de algumas gravuras já afloramento sul. Google Earth.
não mais legíveis.
Figura 5. Pegadas gigantes de saurópode. (A) representa a pata dianteira (Manus), e (B) representa a pata traseira
(Pes). Fotografia: Leonardo Troiano.

Os saurópodes foram dinossauros No Serrote do letreiro, as pegadas de


herbívoros com pescoços muito saurópode formam longas trilhas,
longos, conhecidos também por seu cobrindo uma vasta extensão do
enorme tamanho. Possuiam pernas afloramento. Por todo o afloramento
grandes em forma de pilar que se encontram gravuras, além de
terminavam em pés largos e inúmeras marcas de raspagem ou
arredondados. picoteamento, ou gravuras erodidas e
Com as patas dianteiras, eles desgastadas até o ponto do
andavam sobre os nós dos dedos da irreconhecimento. Em geral, as
frente, semelhante ao modo como gravuras estão associadas às pegadas
andam os gorilas. Isso explica a de terópodes (com três dedos), em
diferença no formato entre pegadas clara conexão simbólica (Figuras 7 e 19,
dos pés dianteiros e traseiros (Figura adiante).
5).

Figura 6. Um saurópode genérico, com marçãoes (A) e (B) representando os pés responsáveis pelas pegadas na figura 5.
Figura 7. Mapa do lajeiro ou afloramento norte. Aqui se encontra o painel gráfico em maior conexão com as pegadas.
É inquestionável a função que as pegadas tiveram na decisão de escolha do local de execução dos petróglifos. Escala =
2 metros. Mapa: Leonardo Troiano.

As gravuras, sobretudo aquelas do


afloramento norte (Figuras 7 e 19), em
muito se assemelham às encontradas
no Rio Grande do Norte e alguns sítios
do Ceará (Figura 8), assim como no
restante da Paraíba.
Há, evidentemente, variação tanto na
preferência por técnica de execução
quanto em aspectos como
profundidade do sulco na superfície
rochosa, tamanho, estilo do traço e
extensão da cobertura do suporte
rochoso com gravuras, havendo uma Figura 8. Gravuras (Petróglifos) do Vale do Jaguaribe,
CE. Fotografia: Agnelo Fernandes de Queirós.
tendência geral ao horror vacui.
UMA PAISAGEM
"Paisagem é até onde a vista alcança."
Rodrigo de Mello Franco.

Com frequência, há uma confusão entre conceitos como "sítio" e "paisagem",


especialmente quando se trata de Sítios Arqueológicos inseridos no contexto de
uma Paisagem. Enquanto o termo "sítio" se refere a um local específico,
geograficamente delimitado, o conceito de "paisagem" abarca um arranjo
intrincado, em constante movimento e multifacetado.
O Serrote do letreiro, e por associação os demais sítios arqueológicos e
paleontológicos da macrorregião de Sousa, constitui uma espécie de paisagem
fóssil, revelando o local no qual processos evolutivos do passado ocorreram, por
meio de um registro material muito característico (pegadas de dinossauros). Por
outro lado, se insere no contexto ecológico da Caatinga, um bioma exclusivo do
Brasil, cuja conformação atual é reflexo de milhares de anos de ocupação
humana. Parte da história dessa ocupação humana se releva também no registro
material encontrado no Serrote do letreiro, por meio de petróglifos que
transformam o significado das pegadas fósseis, antes, meros rastros de atividade
animal antiga, depois, elementos incorporados e processados por uma cultura
humana antiga.
O Serrote do Letreiro, portanto, ainda que um sítio arqueológico, é também um
micro-cosmos, altamente representativo do contexto da Bacia do Rio do Peixe,
em Sousa. Seria uma espécie de micro-paisagem dentro do vasto, dinâmico e
diversificado sistema de paisagens das Gravuras rupestres paraibanas, ou
Itacoatiaras, assim como dos fósseis identificados na Bacia geológica.

Figura 9. Gravuras do Serrote do Letreiro, afloramento três. Consistem majoritariamente de circunferências


partidas radialmente em seu interior. O desplacamento da superfície rochosa é visível na imagem, e já resultou
em prejuízo ao registro arqueológico. Fotografia: Leonardo Troiano.
Figura 10. Na imagem, localização do Serrote do Letreiro indicada por seta vermelha. Vale dos Dinossauros em
sinal Azul.Ainda é visível a distância entre ambos os locais e o centro urbano de Sousa. Imagem: Google Maps.

De tal modo, caduca a noção de que existam outros sítios onde se


há ali dois sítios, um paleontológico e encontrem pegadas de dinossauros
um arqueológico, sobrepostos ou adj, associadas à gravuras rupestres, uma
dentro da pequena propriedade rural vez que a região é abundante nas tais
das Estrelas, terra da mesma família há trilhas fossilizadas. Há uma quantidade
tantas gerações. significativa de vestígios e percursos
Com a execução deste ostensivo deixados por dinossauros na região,
painel gráfico pré-histórico sobre as distribuídos entre propriedades rurais
várias trilhas de pegadas de e terrenos.
dinossauros, o registro paleontológico
A maioria absoluta destes sítios
passou instantâneamente a ser
paleontológicos em Sousa, assim como
também arqueológico, tendo sido
o Serrote do Letreiro e suas pegadas e
apropriado por aquela cultura
gravuras, não estão inseridos na
pretérita que, baseado na identidade
extensão territorial designada ao Vale
gráfica das gravuras, ocupava o
dos Dinossauros, uma área de
terrirtório de Paraíba e Rio Grande do
preservação ambiental que engloba as
Norte há milhares de anos. É notório
duas trilhas de pegadas mais
que a mesma cultura executou nas
rochas e matacões de toda a região renomadas da região (Figura 10).
muitos outros paineis de gravuras, Este local também atrai a atenção de
todos de mesma identidade visual, e milhares de visitantes para o município
não são pequenas as chances de que anualmente.
Deste modo, é de claro
PATRIMÔNIO entendimento, pelo evidenciado
PALEONTOLÓGICO acima, que, assim como as pegadas e
“Como os nativos que supuseram algum as gravuras no Serrote do Letreiro não
parentesco com os seres há muito enterrados na devem ser tratadas como duas coisas
terra, paleontólogos modernos dizem que fósseis
distintas, mas como um bem cultural,
nos lembram de quem somos e como nós viemos
a ser.” os sítios todos da região, que
Adrienne Mayor. compôem um quadro coeso e
Ao realizar caminhamento pelo representativo, devem ser entendidos
município é particularmente notável o como peças e elementos componentes
nível de apropriação do registro de uma paisagem.
paleontológico por parte da
população, indicado pelo número
enorme de estabelecimentos (Figuras
11 e 12) que fazem referência ao
patrimônio paleontológico, assim
como pelas várias estátuas de
dinossauros instaladas em praças e
rotatórias.

Figura 12. Supermercado & Panificadora Dinossauro,


um flagrante caso, entre muitos, de incoporação do
patrimônio paleontológico à cultura e sociedade locais.
Fotografia: Leonardo Troiano

Figura 13. Lava jato Dino, serviços em geral. Sousa,


Paraíba. Fotografia: Leonardo Troiano

O patrimônio paleontológico, por


várias razões, tem sido um conceito
temido por muitos, principalmente na
arqueologia. Não são poucas as
Figura 11. Estátua de dinossauro localizada em instâncias nas quais nós, os
cruzamento central do município, na rua Sinfrônio
arqueólogos, nos deparamos com
Nazaré. Fotografia: Leonardo Troiano
afirmações que confundem os campos
de pesquisa. A confusão entre as
disciplinas que lidam com o passado é
frequente no imaginário popular, que
atribui a todo e qualquer paleontólogo
e arqueólogo, o papel de explorador,
aventureiro e descobridor de relíquias
antigas. Na ânsia compreensível de
distinguirmos enquanto profissionais
de uma específica disciplina, a
arqueologia, muitos de nós rejeitam
por completo a discussão acerca do
patrimônio paleontológico e de fósseis
enquanto bens culturais. Entretanto, a
realidade objetiva, em suas
configurações complexas e tantas
contradições, nos confronta com
situações como aquela apresentada
Figura 14. Obra "Mixaria no Sertão e Ouro no Exterior",
pelo Serrote do Letreiro. do artista nova-olindense Filipe Alves. A obra denuncia o
Não são poucas as instâncias em que tráfico de fósseis na região do Cariri, Ceará. Fonte:
Ubuntu Notícias.
se identifica na arqueologia uma
apropriação do registro fóssil por
Os fósseis são considerados pela
grupos humanos antigos. Exemplos ão
Constituição Brasileira bens da União,
as tocas pleistocênicas de preguiças
não podendo ser comercializados ou
gigantes que foram posteriormente
coletados amadoramente. Todos os
ocupadas por seres humanas e
fósseis são essenciais para a
evidências de confecção de artefatos
compreensão da evolução da vida na
líticos a partir de fósseis variados.
Terra, e portanto, patrimônio da região
Em verdade, se observa que onde
na qual se encontram.
quer que hajam fósseis, há
A responsabilidade pela autorização
apropriação destes pela população
de pesquisa e coleta atualmente vem
local. São muitos municípios no Brasil
da Agência Nacional de Mineração
onde fósseis são encontrados e há, de
(ANM). Todavia, é pela compreensão
uma forma ou outra, apropriação deles
de que existe uma dimensão cultural
pela população, a citar: Santa Maria
vinculada a estes tipo de patrimônio,
(RS), Uberaba (MG), Bauru, Marília,
que existe menção aos fósseis em
Araraquara e Monte-Alto (SP), Sousa
Portaria do Iphan, nº 375, que instui a
(PB), Santa Inês (BA), Itapipoca, Nova
Políca de Patrimônio Cultural Material
Olinda (Figura 14) e Santana do Cariri
do Iphan e dá outras providências:
(CE), dentre muitos outros.
PORTARIA Nº 375, DE 19 DE SETEMBRO DE 2018
CAPÍTULO V - DO PATRIMÔNIO PALEONTOLÓGICO
ART. 79.
ART. 79. NOS
NOS TERMOS
TERMOS DO
DO ART.
ART. 20
20 DA
DA CONS5TUIÇÃO
CONSTITUIÇÃOFEDERAL,
FEDERAL, OS
OS RECURSOS
RECURSOS MINERAIS,
MINERAIS, INCLUSIVE
INCLUSIVE OS
OS
DO SUBSOLO,
DO SUBSOLO, SÃO
SÃO BENS
BENS DA
DA UNIÃO.
UNIÃO.

ART. 80.
ART. 80. NOS
NOS TERMOS
TERMOS DO
DO ART.
ART. 1º
1º DO
DO DECRETO-LEI
DECRETO-LEI N
N 4.146,
4.146, DE
DE 4
4 DE
DE MARÇO
MARÇO DE
DE 1942,
1942, OS
OS DEPÓSITOS
DEPÓSITOS
FOSSILÍFEROS SÃO
FOSSILÍFEROS SÃO PROPRIEDADE
PROPRIEDADE DA DA NAÇÃO
NAÇÃO EEA
A EXTRAÇÃO
EXTRAÇÃO DE DE ESPÉCIMES
ESPÉCIMES FÓSSEIS
FÓSSEIS DEPENDE
DEPENDEDA
DA
AUTORIZAÇÃOPRÉVIA
AUTORIZAÇÃO PRÉVIA EE FISCALIZAÇÃO
FISCALIZAÇÃO DA
DA AGÊNCIA
AGÊNCIA NACIONAL
NACIONALDE
DEMINERAÇÃO.
MINERAÇÃO.

ART.81.
ART. 81.AO
AOIPHAN,
IPHAN, QUANDO
QUANDO PROVOCADO
PROVOCADO POR
POR ÓRGÃO
ÓRGÃO COMPETENTE,
COMPETENTE, CABERÁ
CABERÁ MANIFESTAÇÃO
MANIFESTAÇÃOSOBRE
SOBREAA
RELEVÂNCIA CULTURAL, PORTANTO APROPRIAÇÃO HUMANA, DE DEPÓSITOS FOSSILÍFEROS, SÍ5OS OU
RELEVÂNCIA CULTURAL, PORTANTO APROPRIAÇÃO HUMANA, DE DEPÓSITOS FOSSILÍFEROS, SÍTIOS OU
FÓSSEIS PALEONTOLÓGICOS
FÓSSEIS PALEONTOLÓGICOS EXISTENTES
EXISTENTES NO
NO TERRITÓRIO
TERRITÓRIO NACIONAL.
NACIONAL.

ART.82.
ART. 82.APENAS
APENAS QUANDO
QUANDO CONSTATA
CONSTATA AA EXISTÊNCIA
EXISTÊNCIA DE
DE VALORES
VALORES REFERENTES
REFERENTESÀÀIDENTIDADE,
IDEN5DADE, À
À AÇÃO,
AÇÃO, ÀÀ
MEMÓRIADOS
MEMÓRIA DOSDIFERENTES
DIFERENTES GRUPOS
GRUPOS FORMADORES
FORMADORES DADA SOCIEDADE
SOCIEDADE BRASILEIRA,
BRASILEIRA, CABERÁ
CABERÁAO
AOIPHAN,
IPHAN,
UTILIZANDOOS
U5LIZANDO OSINSTRUMENTOS
INSTRUMENTOSDEDERECONHECIMENTO
RECONHECIMENTO E E PROTEÇÃO
PROTEÇÃO DISPONÍVEIS,
DISPONÍVEIS, PRESERVAR
PRESERVAR BENS
BENS
PALEONTOLÓGICOS.
PALEONTOLÓGICOS.

É em reconhecimento dos valores Ghilardi, uma das autoras,


desse patrimônio da região de Sousa complementa ainda que “além do
que surgiu em 2018 o “Manifesto destaque científico, não se pode
Sousatitan - Vale a pena lutar pelo deixar de mencionar a relevância
Vale" (abaixo), que estabelece social que os fósseis têm para região,
medidas imediatas, de curto, médio e pois a preservação diferenciada das
longo prazo na preservação e defesa pegadas e o seu grande número têm o
do patrimônio paleontológico de toda potencial de sustentar uma forte
a região do Vale do Rio do Peixe, que indústria turística, que, se bem
cruza Sousa. planejada e manejada, geraria uma
fonte de renda sustentável para a
região”.
As pegadas de dinossauros
encontradas no município de Sousa
não estiveram expostas desde a era
dos dinossauros, mas foram
soterradas por sedimentos ao longo
do tempo e, somente agora, em uma
breve janela do tempo geológico,
foram reveladas novamente pela ação
da erosão. No entanto, estão em risco
de destruição devido a fatores
humanos, como tráfego de veículos,
pisoteio e remoção das rochas. A
perda das pegadas implica a
destruição da oportunidade de
apropriar esses recursos para fins
patrimonais, educacionais e turísticos.
O JARDIM SERTANEJO
"Uma natureza que o homem modelou a seu serviço, Seus frutos, suas raízes, as cascas de
que ele compôs com suas grandes obras e preencheu
com suas tarefas (...) O esforço humano é sempre seus troncos, compôem o arsenal
intermitente e acidental. O Homem dispersa e detalha fitoterápico há muito conhecido pelos
sua obra por sobre o espaço e o tempo".
locais deste território, cujo solo acolhe
- Gaston Roupel.
memórias profundas, e que tem sido
ocupado initerruptamente há, pelo
menos, dez mil anos. É impossível
dissociar o registro arqueológico deste
contexto, havendo entre homem,
espaço e natureza uma relação
fulminante.
"A preferência dos autores na elaboração de gravuras
foram suportes rochosos localizados em afloramentos
graníticos (principalmente lajedos sub-horizontais)
rentes ao solo, em elevações (denominados serrotes) e
formações rochosas verticais as margens de riachos
sazonais. (...)"
- Valdeci do Santos Júnior.
Figura 15. O tatu-peba. Mamífero da Caatinga, que se
alimenta de carniça e desempenha um papel essencial na Em todos os sítios da região, observa-
manutenção do ecossistema. Foto: Blake Matheson. se que a escolha do local levou em
Os elementos paleontológicos e conta características geoambientais
arqueológicos estão ainda associados a (relevo, vegetação e acesso), e
um terceiro, onipresente e de igual sobretudo, proximidade a corpos
singularidade: a Caatinga. d'água, tão fundamentais para a
Esse bioma, exclusivo do Brasil, se sobrevivência no Sertão, no passado
caracteriza por uma típica vegetação como no presente. A Caatinga, ontem
xerófita, isto é, adaptada às brutais e hoje, representa o universo natural
condições de aridez e escassez de água que cerca o humano do passado e o de
ali presentes. São árvores e arbustos hoje, sendo a mesma que envelopa o
extremamente resistentes à seca, como sertanejo e os primeiros gravuristas do
também cactos, plantas suculentas e nordeste pré-colonial.
outras espécies. Desta vegetação única emergem as
Todas contam com as adaptações mais variadas técnicas de cultivo
necessárias para sobrevivência nas tradicionais da terra, conhecimento
condições desafiadoras do clima antigo e especializado no
semiárido. Muitas são plantas ricas em enfrentamento de condições tão
água e com flores exuberantes. adversas.
Da Caatinga, apresenta-se também o A segunda é uma insidiosa planta
conhecimento do uso destas plantas e urticante, já muito conhecida dos
suas propriedades medicinais, muitas arqueológos, e também de variados
delas até hoje desconhecidas da usos medicinais. Ao ser tocada, seus
ciência feita nos grandes centros "pelos" penetram na pele, liberando o
urbanos e mundo afora. conteúdo das células da planta,
A rigor, é preciso reconhecer o resultando em intensa irritação
sistema paisagístico da Bacia de Sousa cutânea.
com todos seus elementos, muitos dos A ingestão da planta pode levar a
quais ainda não conhecidos com desmaios e seu látex corrosivo
clareza, apenas sabidos por moradores provoca queimaduras severas. Apesar
da zona rural, muitos já em idade de amedrontadora, as propriedades
avançada. Diante disso, revela-se clara medicinais dessa planta são várias
a necessidade de realização de um muito bem conhecidas na medicina
levantamento e mapeamento florístico tradicional dos povos indígenas. Os
e faunístico, que estude e identifique Pancararus a empregam em rituais
as espécies de vegetação nativa, assim apotropaicos, assim como no combate
como a fauna, doméstica ou selvagem. à gripe.
Assegurar a integridade deste bioma, Não obstante e inovadoramente, seu
fruto único de processos evolutivos látex corrosivo é utilizado pelos
que remontam à época da separação indígenas Kariris no tratamento de
dos continentes, e que tanto fornecem cáries dentárias. Qualquer arqueologia
e contribuem para a vida social que não priorize as comunidades
regional/local, deve ser prioridade em locais e o ambiente (e seus elementos
qualquer projeto que contemple naturais) na qual estão inseridas estas
socializar o patrimônio cultural ali comunidades, ambiente este essencial
identificado. para sua subsistência, está destinada à
Destacam-se duas espécies vegetais estagnação, assim como a uma
notáveis: a Jurema (Acacia jurema) constante falta de concretização da
(Figura 16) e o Cansanção (Jatropha plena extroversão do patrimônio
urens) (página anterior). arqueológico. O sítio arqueológico e
A primeira é de conhecido uso paleontológico do Serrote do Letreiro,
psicotrópico, de muitas aplicações por exemplo, é um notável repositório
medicinais, como cicatrizante e anti- natural de plantas ervas medicinais
infeccioso. É também de sabido uso que, se devidamente aproveitado,
por comunidades tanto indígenas poderia comportar ou sustentar um
quanto quilombolas em rituais jardim de ervas medicinais,
diversos, sendo um vegetal já de proporcionando ao público acesso a
relevância e referente à identidade e produtos como sementes, raízes, látex
memória destes povos. e folhas, além de informações sobre as
plantas locais. Isso tudo também seria viável aproveitando-se das tecnologias
disponíveis nas universidades próximas da região. Essa Caatinga é também um
enorme jardim botânico, um biolaboratório, fruto da interação entre homem e
ambiente por milênios.

Figura 16. Galhos descascados de Jurema. As cascas são utilizadas na produção de chás e tinturas. Foto: Leonardo
Troiano.
APONTAMENTOS Ainda, considerando o potencial
turístico do sítio e a expensão urbana
Fica evidente que, se tratando de para dentro das zonas rurais, é de se
um conjunto tão complexo de sítios e pressupor que nenhuma área será
elementos, não cabe qualquer demasiada no futuro, ainda que hoje
entendimento que ignore a dimensão possa parecer.
de paisagem do patrimônio natural, Desta forma, a área protegida do
arqueológico e paleontológico do qual sítio deve ser tão abastosa quanto
faz parte o Serrote do Letreiro. Quais possível, assegurando sua proteção
os apontamentos técnicos que podem hoje e no futuro.
ser feitos buscando sanar Indubitavelmente, os antigos nativos
questionamentos e oferecer soluções consideraram uma variedade de
em relação à extroversão, socialização, aspectos ao escolher este local. As
interpretação e apropriação do pegadas ali presentes eram o principal
patrimônio identificado? ponto de interesse, mas a seleção
dessas formações rochosas está
A DELIMITAÇÃO DO BEM enraizada numa tradição contínua.
O Serrote do Letreiro encontra-se, Tradição esta que apresentava grande
atualmente, entre duas propriedades predileção pelos matacões sertão
rurais, fazendo-se necessário transpor adentro. Esses grupos humanos sem
uma cerca de arame farpado para dúvida mostraram uma clara
obtenção de acesso aos lajeiros preferência por áreas de difícil acesso.
localizados mais ao sul, onde se Marcar com petróglifos uma superfície
encontram uma vasta trilha de rochosa entre vegetação espinhosa e
pegadas e um estonteante conjunto de sob um sol escaldante foi, sem dúvida,
petróglifos, majoritariamente formas uma realização humana notável,
geométricas de reconhecimento exigindo grande destreza física e
diferido. resistência. É seguro dizer que as
Delimitar a área de um sítio de extraordinárias características de
tamanha importância cultural é tão beleza e harmonia na paisagem do
desafiador quanto crucial. De acordo Serrote foram cruciais para a
com Carlos Fernando de Moura instalação do painel de gravuras, tanto
Delphim, durante o processo de quanto as pegadas de dinossauros.
delimitação de um sítio ou paisagem: Esses elementos agora formam os
componentes visuais cênicos
“aspectos variados, muito além de condições
cartográficas precisam ser levados em consideração, essenciais que se busca preservar,
como localização, clima, relevo, declividade, encapsulando a área em uma narrativa
pedregosidade, rochosidade, erodibilidade, drenagem,
suprimento de água do terreno, vegetação, aptidão visual e espacial que mantenha a
turística, critérios de capacidade de uso e condições integridade de sua interpretação.
socieconômicas.”.
Coisas como o pôr-do-sol e o céu
noturno são parte disso. Há uma boa
chance de as gravuras terem sido
feitas após o cair da tarde, sob o
frescor da noite sertaneja e do céu
estrelado, elementos astronômicos
que sem dúvida influenciaram a vida
humana em tempos pré-coloniais,
tanto quanto hoje.
A visibilidade desse céu à noite deve
ser também protegida, e idealmente, o
plano para compartilhar e interpretar
o local incluiria a possibilidade de
apreciação noturna do espaço. Não há
distinção entre os patrimônios
arqueológico, natural, paleontológico
e imaterial, uma vez que tudo ali está
em harmonia.
A ausência de construções disruptivas
deve ser aproveitada; caso existissem,
seria necessário reverter sua presença.
Ao sudoeste, onde as cores vibrantes
do pôr-do-sol se desdobram
diretamente dos afloramentos do
Serrote, está planejado um conjunto
habitacional.
A depender do que se pretenda
construir, pode haver sério impacto na
visibilidade do horizonte, na sensação
de vazio e na liberdade, ou seja, nos
valores cruciais desta paisagem.
Portanto, o presente se configura
como momento de prevenir e negociar
com aqueles que planejam erigir ali
casas e prédios, evitando todos os
efeitos prejudiciais à paisagem, Figura 17. O majestoso pôr-do-sol do Sertão, visto do
afloramento sul, Serrote do Letreiro. Fotografia:
dialogicamente. Leonardo Troiano.
"A tarde cai, em cores se desfaz, escureceu"
- Fotografia, Tom Jobim.
Por estes motivos, quaisquer ações Todos estes conteriam também, em
que se pretenda implementar no teoria, pegadas e dinossauros e/ou
entorno do sítio devem ser planejadas gravuras rupestres, logo carecendo
levando em conta a cenografia deste investigação urgentemente. Propõe-se
espaço, sempre objetivando narrar a assim uma nova poligonal (Figura 17)
singularidade do registro arqueológico que deveria, ao menos, ser
e palentológico, já um só, ali presente. considerada como a área de
Além disso, há que se considerar as amortecimento, ou buffer zone, da
informações dadas por habitantes região nuclear do sítio, por esta
locais, que alegam existir outros sítios apresentar evidente e alto potencial
no entorno, numa área extensa para arqueológico, uma vez que contém
além da estrada de terra, a oeste, e até vários e densos bolsões de vegetação
a laguna, ao leste. acobertando afloramentos rochosos
De acordo com a população local, que possivelmente contém gravuras
haveriam ainda outros sítios de e/ou fósseis.
gravuras, denominados popularmente O casamento observado entre os
de Serrote do Letreiro 2, 4 e 5, sendo universos disciplinares da arqueologia
para eles, os afloramentos norte e sul e da paleontologia ali observados
acima identificados como Serrote do configura, de fato, valor excepcional,
Letreiro 1 e 3. já que é sabido não haver semelhante

Figura 18. Nova poligonal sugerida, com perímetro de 5.022,36 m, correspondendo a uma área muito mais extensa
de 1.311.492,07 m². Google Earth.
confluência entre estes registros como O patrimônio imaterial da região
ocorre no Serrote do Letreiro em ainda é pouco mapeado, mas alguns
qualquer lugar do mundo, e que se fatores sugerem haver ali também
tenha notícia até o presente momento uma enorme riqueza intangível. Em
(Ainda que hajam sítios onde estejam conversas informais com sertanejos,
presentes fósseis e "arte rupestre" em uma enorme quantidade de
outros países, nenhum se compara ao informações pôde ser obtida.
Serrote do Letreiro em termos de Disse-me um Senhor, Elias, que
acredita serem as pegadas rastros de
abundância de material e adjacência
carros-de-boi e carroças de antes da
entre os registros).
época da Arca de Noé.
A constelação de sítios arqueológicos
Outro senhor compreendia as
e paleontológicos na Bacia Geográfica
pegadas de dinossauros como
de Sousa deve ser vista como o
evidência de que houveram galinhas
somatório entre a Caatinga, as
gigantes no pasado. Houve também o
pegadas de dinossauros e gravuras
questionamento se as gravuras
que recobrem extensos lajeiros, em rupestres foram feitas antes ou
continuidade e de forma inteira, depois do dilúvio bíblico.
enquanto território. Um outro senhor, Luiz Carlos, ávido
A expansão da delimitação do sítio se descobridor de trilhas de pegadas e
justifica, portanto, pela preservação sítios arqueológicos, relatou que
não só deste imediato registro muitos locais acreditam serem as
arqueológico e paleontológico, mas pegadas rastros de santos que
também pela preservação do andaram pela terra e que, por sua
ecossistema que se mistura de santidade, diferiam de humanos
maneira tão profunda ao patrimônio normais, tendo pés diferentes. Daí o
cultural. A linha do horizonte carece popular nome das pegadas: Pézinhos
de atenção, e é preciso assegurar, de Nossa Senhora.
adicionalmente, um alto nível de Estes exemplos constituem
qualidade de observação e flagrantes casos de apropriação
contemplação daquele pôr-do-sol patrimonial, instância na qual o
sertanejo esplendoroso, multicolorido. registro paleontológico e o
arqueológico passaram a constituir
Essa redelimitação não impediria a
parte de referência da memória
expansão almejada por alguns em
coletiva e identidade sertanejas.
áreas relativamente próximas, desde
que haja obediência a critérios básicos
que asseguram a não-destruição da
cenografia do sítio, como altura das
edificações, luminosidade artifical,
níveis de barulho, etc.
DOS VALORES DO SÍTIO de pegadas de dinossauros, estando
por vezes em proximidade de dez
O que torna o sítio particularmente centímetros, ou até menos. No
especial não é um elemento ou outro, Serrote, paleontologia e arqueologia
mas todos observados e caminham, literalmente, lado a lado.
contemplados em sua unicidade e
harmonia. As pegadas, existentes em
outros locais do país e do mundo,
apesar de fascinantes, são
relativamente comuns na Bacia de
Sousa, havendo muitas outras trilhas
delas pela região. As gravuras
rupestres desse horizonte cultural
existem em, pelo menos, outros três
estados brasileiros, em numerosos
sítios arqueológicos. A qualidade A pegada e pinturas rupestres em Kontrewers, Polônia.
Fotografia: Gierlinski e Kowalski
valorosa do Serrote do Letreiro é a
sobreposição entre registros, sem
paralelos no país e fora dele. Para fins
de comparação, observa-se a
coexistência de registro arqueológico
e paleontológico em alguns outros
locais. Nomeadamente Poison Spider
Dinosaur Tracksite, Utah, Estados
Unidos e Kontrewers, Polônia. No sítio
(1), pegadas fossilizadas aparecem
espalhadas pelo terreno, enquanto As gravuras no topo da colina em Poison Spider, EUA.
petróglifos são observados numa Fotografia: Great American Hikes

encosta, em um mesmo contexto, mas


distantes físicamente. No Sítio (2),
pinturas rupestres são observadas em
uma placa rochosa, e uma pegada de
dinossauro é vista em outra, sem
qualquer relação aparente entre os
registros. Concomitantemente, no
Serrote do Letreiro, uma verdadeira
constelação de gravuras se encontra
As discretas pegadas de dinossauro, abaixo da encosta
profundamente mesclada à profusão em Poison Spider Tracksite, EUA. Fotografia: Gjhikes
Destaque da foto da página anterior. Gravura ao centro e pegadas de dinossauros terópodes ao redor, também em
destaque. Fotografia: Leonardo Troiano.

A singularidade do registro se torna indo métodos científicos próprios,


ainda mais notável ao considerarmos a persiste a crença de que os nativos
história das interações entre os americanos não praticaram ciência
colonizadores europeus e os povos alguma, ainda menos a paleontológica.
nativos americanos, bem como o Descobertas esporádicas do uso de
desenvolvimento da paleontologia fósseis na criação de artefatos líticos
enquanto disciplina científica e o alimentam o debate em busca de
colonialismo científico formativo corrigir essa injustiça histórica contra
desse processo. Um exemplo as populações nativas.
revelador é a postura de George Contudo, evidências contundentes,
Gaylord Simpson, possivelmente o como as encontradas no Serrote do
paleontólogo mais influente do século Letreiro, possuem o potencial de
XX, que ao longo de sua carreira debelar por completo a ideia
sustentou a visão de que os nativos equivocada de que o estudo do
não contribuíram de forma alguma passado da vida na Terra começou
para a paleontologia, sugerindo que somente com os colonizadores e o
sua interação com fósseis era apenas desenvolvimento da paleontologia se
fruto de “curiosidade ociosa”. deu somente recentemente, na
Embora hoje seja reconhecida uma América do Norte e na Europa.
tradição de pensamento nativo, inclu-
O ESTADO DE CONSERVAÇÃO Se evidencia no suporte rochoso um
intenso nível de fragmentação da
Identificamos o estado de camada superficial da rocha,
conservação do sítio como precário, craquelada, indicando avançado
desgaste decorrente do processo comprometimento estrutural deste
erosivo natural. Se fazem, portanto, suporte rochoso. O deslocamento
necessárias medidas objetivando dessas placas já resultou em uma
mitigar maiores danos. severa interrupção do programa
Os afloramentos rochosos, por iconográfico rupestre, revelada pela
natureza, se apresentam em placas ou grande quantidade de gravuras
lajes que, com a ação do tempo e desmembradas ou com partes
intempéries, se descolam, desagrupam faltantes (Figuras 9 e 19). Estes danos
e, pela ação das correntezas das ao patrimônio se resumem aos
chuvas, descem serrote abaixo. causados apenas pela ação dos
Também em decorrência da lenta, ventos, chuvas, raios solares,
porém incessante atividade geológica enchentes, desagregação rochosa e
da Terra, a rocha é estressada e ação animal ou vegetal. Não foi
distendida, partindo a área exposta da identificado dano por ação humana,
superfície em longas e retangulares sendo o sítio bem cuidado pela família
tiras, subdivididas em placas menores do Sr. Chico de Luca, proprietários da
(Imagem próxima página cheia). propriedade rural.

Figura 19. Área Central do Lajeiro Norte (Afloramento Norte) onde se encontra a mais notável justaposição do Sítio entre
gravuras rupestres e pegadas de dinossauro (em destaque). Escala = 20 centímetros. Fotografia: Leonardo Troiano
Contudo, outros sítios da região A sugestão será, portanto, que o
oferecem um vislumbre tenebroso de tratamento do sítio, sua socialização e
danos de origem antrópica que apropriação devem ser realizadas com
podem, em qualquer momento, atingir olhar técnico criterioso.
o Serrrote do Letreiro. Estes são: Todavia, para além do olhar técnico,
se fazem imperativas atenção e
O extrativismo, atividade comum sensibilidade às espeficidades destas
na região, que busca explorar os ricas e diversificadas manifestações
afloramentos rochosos para suprir do patrimônio, assim como aos
a produção de paralelepípedos e contextos geográfico, geológico, social
britas; e cultural nos quais se encontram.
O vandalismo, ação lamentável e
relativamente comum, onde há
intencional atentado às gravuras
rupestres e pegadas ou colocação
de nomes, datas e desenhos;
A expansão urbana desenfreada,
que ameaça não só destruir
inteiramente sítios arqueológicos e
paleontológicos, como também
compromete o valor paisagístico
deste complexos sistemas.

UM PROJETO PARA O
SERROTE
"O essencial é juntar elementos que permitirão
interrogar o homem com uma pertinência
progressivamente maior e saber deixar, ao menos
provisoriamente, lacunas no tecido das hipóteses".
- André Leroi-Gourhan, Le fils du temps.

Compreende-se, portanto, que a


aproximação conceitual e o
entendimento acerca do Serrote do
Letreiro e do contexto arqueológico,
paisagístico e paleontológico de Sousa
deve ser transdiciplinar e reunir,
também mas não somente, geologia, Exemplos de elementos gráficos que podem ser utilizados
na comunicação visual do Serrote do Letreiro, a partir
flora, ecologia, cultura, economia, dos petróglifos e pegadas encontrados no sítio. Leonardo
turismo, biodiversidade. Troiano.
Sempre tendo em mente que a cenografia do local e apenas
quaisquer alterações na estrutura contribua para sua mise-en-valeur.
física do local e edificações que se Interpretação
possa vir a planejar devem ser Promover também a criação de um
pensadas como expressão Centro de Interpretação, ideal para
cenográfica, compondo um pano de essa localidade rural, contribuindo
fundo para exibição e contemplação para o desenvolvimento do turismo de
dos elementos patrimoniais ali forma eficaz e alternativa à uma
presentes. Estes devem atender à instituição museal. Anexo ao CI podem
preocupações básicas e norteadoras: haver outros espaços para turistas,
loja, cantina de alimentação, locais de
Acessibilidade descanso, etc. Esta estrutura não deve
Promover a acessibilidade plena ao jamais interferir na cenografia local, e
sítio. Isto é, propiciar espaços de deve ser pensada de forma que se
caminhamento seguros (próximas misture de modo orgânico à geologia e
páginas) e a partir dos quais seja ambiente locais (próximas páginas).
possível contemplar o rico registro
rupestre e paleontológico do sítio. A O visistante deve ser informado
questão da acessibilidade para acerca:
pessoas com deficiência será Do valor do registro arqueológico
desenvolvida mais adiante. ali presente, que constitui um
Proteção registro singular no mundo do
Assegurar a integridade do registro encontro entre populações antigas
arqueológico epaleontológico e e o registro fóssil, indicando que há
garantir que não haja maior e futuro muito os fósseis despertam a
deslocamento das placas rochosas, curiosidade de humanos, e que os
priorizando ações pela integridade das povos originários e nativos desta
trilhas de pegadas e do painel gráfico. terra já possuiam formas próprias
Respeito de conhecimento e apropriação
É imperativa a manutenção de uma deste registro paleontológico.
relação saudável com o ecossistema Sobre os valores biológicos e
local, preservando-se aspectos ecológicos do sítio. Deve ser feito
florísticos e faunísticos, assim como um levantamento que propicie a
atmosféricos, a citar, o pôr-do-sol, a reunião de informações acerca de
linha do rozionte, o som dos animais e espécies locais tanto de flora
a qualidade do ar e do espaço. O quanto de fauna, conhecidomento
entorno dos afloramentos deve ser este que deve ser extrovertido e
conservado de forma livre e repassado ao visitante.
desimpedida, de forma que beneficie
Exemplo de placas de sinalização que poderiam orientar turistas e visistantes
no caminho até o sítio. Baseadas de forma genérica na sinalização de sítios
arqueológicos do Brasil.
Do valor paleontológico elencados, empreendeu-se uma
incalculável das monumentais tentativa de criação de imagens com
trilhas de pegadas. Sugere-se auxílio de software de Inteligência
adicionalmente a instalação de Artificial (IA) (Midjourney). A IA não
pelo menos duas ou três estátuas deve ser entendida como um fim, mas
de dinossauros, em tamanho real, como uma ferramenta, parte de
não no sítio, mas na porção mais processo, servindo a um propósito.
meridional deste, cerca de Neste caso, seu emprego se deu
trezentos metros distante do objetivando a confecção de imagens
afloramento sul, de forma que as que ofereçam vislumbres das
esculturas não interfiram no possibilidades, a partir dos
aproveitamento tampouco na apontamentos elencados, como o
fruição patrimonial do sítio, nem Centro de Interpretação e passarelas
constituam elementos disruptivos de caminhamento para visitantes do
da paisagem. sítio. Estas imagens não constituem
projetos reais, mas impressões e
Recomenda-se, por exemplo, o
configuração visuais possíveis, para
trabalho de escultores como Anilson
fomento da imaginação.
Borges, cujo trabalho de reconstrução
de dinossauros já se encontra em
diversos museus pelo país. Seu
trabalho já possui reconhecimento
internacional, em virtude de seu
procedimento rigoroso de reconstruão
de animais extintos (Figuras abaixo e
ao lado, de Anilson Borges).
Considerando os apontamentos acima

Figura de cima: Reconstrução em tamanho real de um saurópode. Figura inferior: Reconstrução de um terópode, também
em tamanho real. Ambos grupos de dinossauros estão representados por pegadas no Serrote do Letreiro. Anilson Borges.
Vislumbre de estrutura que poderia funcionar como Centro de Interpretação Serrote do Letreiro. As formas devem ser elegantes e orgânicas. A imagem
gerada apresenta uma estrutura que se mistura às formações rochosas, não distoando da linguagem visual natural do local.

Possível pátio interno do Centro de Interpretação que contém "Jardim da Caatinga", espaço de socialização e contemplação. Ambas imagens geradas
por meio comandos específicos submetidos ao Software de Inteligência Artificial Midjourney.
As passarelas de caminhamento em Em relação ao acesso de pessoas com
Aço Cortén, material discreto e deficiência, é importante salientar que
altamente resistente à corrosão, as rampas e passarelas devem ser de
sustentável, 100% reciclável, não largura sucifiente para comportar o
apresentariam necessidade de reparos trânsito de cadeiras de rodas. É
frequentes devido a sua durabilidade. recomendável a instalação de pontos
É interessante também ponderar a de descanso estratégicos ao longo da
instalação em locais selecionados de trilha. O caminhamento, ainda que
placas protetoras de vidro reforçado facilitado, é desafiador, considerando
que objetivam a proteção e a as condições extremas do sertão e do
contenção de placas contendo semi-árido nordestino. Por isso,
gravuras ou pegadas (abaixo). bancos de descanço discretos
deveriam ser planejados e instalados
debaixo de sombra, oferecida pela
vegetação local. Há que se cogitar
também que, devido a impossibilidade
de manuseio do registro arqueológico
e paleontológico, visitantes com
limitações visuais ou cegos acabam
completamente impedidos de fruir
deste patrimônio.
Uma alternativa tão simples quanto
prática é a confecção de moldes e
réplicas, podendo ser feitos
diretamente a partir de contra-moldes

Réplica de uma pegada de dinossauro. Crédito: CGTrader.


das gravuras e pegadas, quanto a
partir de escaneamento e digitalização
com posterior impressão 3D. A
impressão pode, inclusive, ser
realizada utilizando não plásticos
novos, mas materiais reciclados, argila
ou até mesmo rejeitos de atividades
mineradoras da região. Os objetos
impressos ou moldes feitos podem,
ademais, alimentar uma linha de
produtos e de lembranças turísticas, a
serem vendidas na região e na loja do
sítio, fomentando a economia local. Réplica de um petróglifo para Impressão 3D disponível
online. Crédito: sketchfab

CONCLUSÃO REFERÊNCIAS
Magalhães, S. M. C. “A arte rupestre
O potencial do sítio arqueológico do do centro-norte do Piauí: indícios de
Serrote do Letreiro é imenso. O sítio narrativas icônicas”. (Tese Doutorado
poderia se tornar um valioso espaço em História). Universidade Federal
educacional, permitindo a exploração Fluminense, Niterói, RJ, (2011).
das diferenças entre arqueologia e Mayor, A. & Sarjeant, W. A. S. “The
paleontologia, disciplinas tão próximas folklore of footprints in stone: From
e presentes ali. Ele é também um classical antiquity to the present”.
exemplo paradigmático da interação Ichnos 8, 143–163 (2001).
humana com registros fósseis, Mayor, A. “Fossil Legends of the First
especialmente em um contexto global Americans”. (Princeton University
em que os fósseis estão sendo cada Press, 2013)
vez mais reconhecidos como Milder, S. E. S. "As várias faces do
fundamental parte do patrimônio patrimônio." Santa Maria: Pallotti
cultural das nações. (2006): 119-140.
Mais importantemente, o sítio abriga Patrimônio Arqueológico: Paraíba.
um pequeno jardim da Caatinga que Iphan, (2010).
representa a incomparável riqueza DELPHIM, Carlos Fernando de Moura.
natural do Sertão nordestino. Um Paisagens do Sul. Pareceres de Carlos
sertão por muitos desconsiderado em Fernando de Moura Delphim, (2009).
virtude de suas dificuldades e que
agora se pretende enxergar pelo
maravilhamento que é capaz de
inspirar.

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