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Sociologia e Antropologia: introdução.

Por que estudar Sociologia em


um curso de Direito?

Texto síntese do conteúdo ministrado nas aulas nºs 01, 02 e 03,


conforme a ordenação proposta no cronograma de aulas

Aula nº 01: Título: por que estudar Sociologia e Antropologia em um


curso de Direito?
A se considerar a estimativa de que os alunos chegam ao início
do curso de Direito com dúvidas sobre a necessidade de se estudar as
disciplinas Sociologia Geral e Antropologia para sua formação acadêmica,
procurou-se demonstrar situações em que a Sociologia e Antropologia
explicam fatos e processos sociais, bem assim características culturais do
homem, a partir de perspectivas e metodologias próprias dessas ciências,
que auxiliam na compreensão das relações sociais que o direito tem o
objetivo de regular ou normatizar.
Com razoáveis noções de Sociologia e de Antropologia, o
profissional do direito estará melhor qualificado para contribuir para a
formação de leis mais razoáveis e eficazes, como tal compreendidas
aquelas que funcionam, ou seja, que são em regra observadas pelos
indivíduos e, noutra ponta, também mais qualificado para atuar como juiz,
advogado, membro do Ministério Público, por exemplo, na medida em que
referidas ciências lhe proporcionam uma visão mais completa e melhor
informada do caso sob estudo, além de uma habilidade para análises
críticas e reflexivas necessárias para orientar a uma melhor compreensão
do significado e dos objetivos da norma jurídica.
Uma indagação que calha bem a propósito do exposto: como
justificar política e juridicamente que, numa sociedade economicamente tão
desigual, haja um sistema de saúde como o nosso SUS, que provê
prestações de cuidados com a saúde gratuitas em caráter universal? Por que
é assim, se ao primeiro exame, iria parecer como obviamente mais justo
que a gratuidade favorecesse apenas aos necessitados? Curiosamente, a
Inglaterra, berço do liberalismo econômico, também mantêm serviço de
saúde com idênticas características (cobertura universal e gratuidade das
prestações) A resposta a essa pergunta desafia uma cuidadosa incursão em
noções e conceitos da Sociologia, tais como coesão social e
interdependênciai.
Aula nº 02: Título: Apresentação da Sociologia. (1) contexto histórico
em que surgiu. (2) Conceito e objeto de estudo. (3) Semelhanças e
diferenças em relação às demais ciências sociais aplicadas. (4)
Formação da consciência sociológica.
1. Contexto histórico em que surgiu a Sociologia. A Sociologia
surgiu a partir da inquietação da sociedade e da comunidade científica,
provocada pelas vultuosas transformações sociais percebidas na passagem
da sociedade tradicional (feudal) para a sociedade capitalista.
No século XVIII, a Revolução Industrial veio a introduzir
novas formas de relações sociais no processo produtivo e, por
consequência, provocou acentuada migração de grandes contingentes de
população de áreas rurais para centros urbanos. Como efeito disso,
eclodiram variados problemas sociais, como más condições de habitação,
falta de saneamento, retribuições desiguais nas relações de emprego
mantidas com homens, mulheres e crianças, aumento criminalidade e da
exploração da prostituição e, destacadamente, o crescente acirramento das
tensões entre os interesses da burguesia e do proletariado.
Nesse mesmo contexto se verificou a progressiva ruptura dos
padrões culturais vigentes na sociedade tradicional, com a quebra daquela
estrutura da família patriarcal, decorrente do ingresso de mulheres e
crianças nos empregos na indústria, a importar na modificação das funções
ocupadas por homens, mulheres e crianças nas estruturas familiares e, a
partir disso, na progressiva ressignificação social dos elementos identitários
homem, mulher, crianças.
De outro lado, o poder econômico que passou a ser
concentrado nas mãos da burguesia capitalista encontrava no Estado
absolutista, forma da organização sócio-política de então, uma série de
instrumentos de interferência estatal a obstaculizar o pleno
desenvolvimento das forças de produção, a exemplo da limitação existente
por lei, na Inglaterra, de um determinado número de empregados por
organização empresarial.
Era necessário, para assegurar a continuidade do avanço e da
consolidação do domínio econômico pela burguesia, que se forjasse um
novo modelo de organização sócio-política, pautado pela abstenção do
Estado nos domínios da economia e pela eliminação ou maior redução
possível da interferência da Igreja nas questões de governo e de Estado.
Assim é que, impulsionada por um discurso legitimador e
revolucionário, que veio sendo progressivamente difundido, a partir do
século XVII, pelos teóricos do Racionalismo e, já no século XVIII, pelos
filósofos do Iluminismo, a burguesia viu triunfar o seu projeto de
dominação com a Revolução Francesa.
Em curta síntese, a Revolução Francesa instituiu uma nova
forma de organização e ordenação do poder político na sociedade, ancorada
nos seguintes pilares: (1) separação das esferas pública e privada; (2)
relegação do papel da Igreja aos domínios da esfera privada, com a
pretensão de fazer cessar a influência de referida instituição sobre questões
de Estado e de governo; (3) instituição de núcleo composto de normas
constituidoras de liberdades e garantias, a demarcar um vasto campo de
liberdade de atuação dos indivíduos e de empresas, nomeadamente a
liberdade de empreendimento econômico, infensas a incursões reguladoras
ou proibitivas pelo Estado. Com isso, removeu-se aquela forma antiga de
organização política, nociva aos interesses da burguesia, e se implantou o
Estado liberal, regido por uma constituição que preconizava um amplo
espectro de liberdade econômica e relegava o papel do Estado a mero
“guarda noturno” protetor dessas liberdades.
A classe burguesa nutriu a expectativa de que a reordenação
das relações políticas que se pretendeu operar pela Revolução Francesa e
consolidada no Estado Liberal seria ordenação suficiente para manter o
estado de dominação econômica (e agora também política), de modo a
subjugar outros interesses. Mas a realidade desigual e a cada vez mais
difundida reação revolucionária impulsionada pelos ideais marxistas
fizeram mobilizar o proletariado para uma reação de antagonismo cada vez
mais acirrado em face dos interesses da burguesia. Das primeiras
mobilizações rudimentares e violentas, a operar quebras de maquinários e
incêndios de unidades industriais, a luta de classes passou a se pautar por
formas organizadas de representação de interesses corporativos dos
empregados, que vieram a ser o embrião das organizações sindicais de
hoje.
Então, aquela sociedade capitalista passou a se apresentar, aos
olhos de leigos e dos acadêmicos, como tão mais complexa e tão mais
problemática, especialmente pelo ambiente de constantes e cada vez mais
intensas tensões entre grupos de interesses sociais. As relações capitalistas
faziam erodir, progressivamente, os valores, crenças e tradições, conjunto
de elementos formadores da consciência coletiva, que nas sociedades
tradicionais eram a garantia de unidade, de coesão social.
Nesse contexto, sobreveio a dúvida que, para além de pairar na
mente de pessoas comuns, impulsionou as atividades da comunidade de
pensadores – filósofos e cientistas – para busca de resposta à pergunta:
estaria a sociedade caminhando para sua própria desintegração (estaria se
avizinhando o fim do mundo) ou haveria, nessa nova sociedade capitalista,
algum elemento que possa assegurar a sua unidade ou coesão social?
As primeiras reflexões teóricas que ofereceram respostas a
essa pergunta invocaram a necessidade de que se haveria de buscar uma
forma de retroceder, em alguma medida, para resgatar como elementos
integradores da sociedade aqueles valores, crenças e tradições. Teria sido
como dizer que a sociedade evoluiu muito, revolucionou os meios de
produção e potencializou exponencialmente as condições de acumulação de
riquezas, mas deixou para trás algo cuja falta poderia lhe destruir. Era
preciso resgatar uma ordem hierárquica de valores e de papéis sociais. Uma
reação conservadora, portanto, foi o que preconizaram as primeiras
reflexões encontradas, por exemplo, nos escritos de Auguste Comte,
fundador do Positivismo e precursor da Sociologia.
Algumas décadas à frente, na obra Da divisão do trabalho
social, Èmile Durkheim veio a apresentar relevante estudo em que
demonstra, como processo natural, a progressiva erosão que as relações
sociais na sociedade capitalista impõem aos valores, crenças e tradições.
Na sociedade capitalista, como se demonstrará em estudo específico do
tema na Aula de nº 04, haveria, segundo o autor, um outro elemento a
assegurar a coesão social.
Expostas essas linhas, é de boa referência a anotação de que a
comunidade científica atribui a Auguste Comte o papel simbólico de
fundador da Sociologia, por reconhecer a ele o mérito de ter desbravado um
campo de reflexões racionais até então pouco ou nada explorado sobre os
fenômenos sociais. Demais, foi esse autor quem empregou pela primeira
vez, num de seus escritos no ano de 1838, a expressão Sociologia com a
pretensão de designar o nome da nova ciência. Entretanto, à falta de uma
orientação metodológica e de uma precisa delimitação do objeto de estudo,
o que se observa nesse legado de Auguste Comte é que deixou reflexões
meramente filosóficas sobre temas da vida em sociedade.
Por outra perspectiva, a identificação da Sociologia como
ciência autônoma de fato é reconhecida como mérito tributável a Èmile
Durkheim, pela razão de que, na obra As regras do método sociológico,
esse autor cuidou de delimitar o espectro do objeto de estudo da Sociologia,
vindo a denominar os fenômenos típicos dessa ciência como fatos sociais e,
ainda, à estabelecer uma metodologia científica própria para a análise
sociológica.

2. Conceito e objeto de estudo.


Pode-se conceituar Sociologia como conjunto de conceitos,
técnicas e métodos de investigação que têm por objetivo o estudo da vida
em sociedade. O estudo da vida em sociedade é, portanto, o objeto de
estudo da Sociologia.
Problemático nesse conceito é que o termo sociedade pode
assumir para outras ciências e mesmo em sentido vulgar significados
variados: “sociedade protetora de animais”, com o termo “sociedade” a
designar entidade organizada segundo as normas do direito para uma
finalidade social específica. “As mulheres da sociedade frequentam com
assiduidade centros de cuidados estéticos e salões de beleza”, oração em
que o termo “sociedade” designa classe de pessoas de alto poder aquisitivo,
pertencentes a famílias tradicionais. Certamente, não são noções como
essas que cabem para a compreensão do termo sociedade inserido no
conceito dado acima.
Para os fins e com rigor científico que se impõe, enquanto
elemento integrador do conceito de Sociologia, o termo “sociedade”
significa complexo de relações entre indivíduos que, quanto às maneiras de
pensar, de sentir e de agir, se orientam por recíprocas influências. Essas
recíprocas influências estabelecidas entre indivíduos nos contextos sociais
cabem ser conceituadas em rigor científico como interação. Enfim,
complexo de relações entre indivíduos que interagem em ambientes
coletivos, dando formação a padrões culturais ou maneiras homogêneas de
pensar, de sentir e de agir é que dão forjam a existência do que se chama
sociedade na perspectiva sociológica.
Para melhor fixação do conceito, na turma da sala, a
circunstância de se ter reunidos num mesmo espaço físico (a sala de aula)
quarenta e poucos alunos formaria uma sociedade? Resposta negativa.
Porém, esses alunos falam a mesma língua, vestem-se de acordo com
padrões de moda contemporâneos, se interessam pelos mesmos assuntos e
formam ideias e opiniões convergentes sobre preferências de hobbies,
esportes, política, música etc. A existência dessa homogeneidade quanto ao
que fazem, ao que sentem e ao que pensam é que são elementos que
exteriorizam a existência de uma sociedade.

3. Semelhanças e diferenças entre a Sociologia e outras ciências sociais


aplicadas.
A exposição do conceito já trouxe consigo a informação do
que é o objeto de estudo da Sociologia: vida em sociedade. Porém, é
perceptível que esse objeto é comum a todas ou quase todas as ciências
sociais aplicadas. Sob esse aspecto, a Sociologia se insere no conjunto das
ciências sociais aplicadas a que pertencem também a História, a
Antropologia, a Economia, a Ciência Política e o Direito, porque
compartilha com essas o mesmo objeto de estudo.
Porém, as diferenças verificáveis entre a Sociologia e cada
uma dessas ciências, que conferem à primeira o status de uma ciência
autônoma, se estabelecem ora em razão de uma perspectiva de análise
distinta, ora em razão de atributos de generalidade e de especialidade, ora
em razão de uma orientação cronológica específica, como a seguir será
demonstrado.
Comparativamente à História, essa ciência projeta sua análise
por uma perspectiva temporal própria. A História se dedica ao exame da
vida em sociedade a partir de uma visão retrospectiva, ao passo que a
Sociologia não se orienta por essa perspectiva temporal.
Em relação à Economia, essa ciência se dedica à análise de um
segmento específico da vida em sociedade, a saber, as relações econômicas,
consistentes em vínculos em que sujeitos se movem por interesses
específicos e interagem para o fins de extrair bens escassos da natureza,
transformá-los em produtos em maior ou menor grau de elaboração, efetuar
trocas diretas ou intermediadas por moeda, enfim, relações que envolvem
extração, produção, consumo, investimento num ambiente abstrato
denominado mercado e sob influências de fatores externos como a maior
ou menor intervenção estatal. De outro lado, a par de ter esse segmento das
relações econômicas como importante, a Sociologia dedica-se a um
universo muito mais inclusivo de relações sociais que dão forma também à
religião, à cultura, à política, ao direito, enfim, a diferença que há entre
Economia e Sociologia é de especificidade própria da primeira e de
generalidade própria da segunda.
Ao se comparar a Sociologia com a Ciência Política, a relação
especificidade/generalidade se repete. A Ciência Política é ciência
reconhecidamente autônoma, que se desmembrou da Sociologia para se
dedicar estrita e especificamente a um conjunto de relações sociais a
envolver propósitos de disputa, de manutenção e de conservação do poder
de ordenação política de uma sociedade. Esse objeto é igualmente
interessante para a Sociologia, mas a Ciência Política se dedica a ele de
forma mais intensa e concentrada. E a Sociologia se dedica a um objeto que
inclui muito além das chamadas relações políticas.
Em relação à Antropologia, aqui se apresenta uma linha mais
tênue a demarcar os campos de estudo de cada uma dessas matérias. Para o
propósito da exposição, entre os eixos temáticos da Antropologia será
tomado aqui em consideração aquele que mais interessa para
enriquecimento da formação jurídica, a antropologia cultural, deixando-se
de lado o eixo da antropologia biológica.
A Sociologia se dedica ao estudo das instituições e processos
sociais – família, religião, cultura, direito, crimes, economia, Estado – com
a preocupação de descrever os papéis dessas instituições no corpo social,
bem assim as relações de causalidade entre fenômenos da vida em
sociedade, atribuindo maior ou menor importância à adesão do indivíduo
aos padrões sociais. A tônica, na análise sociológica, está nas entidades
coletivas, muito embora a partir de Max Weber tenha ganhado especial
relevo uma espécie de simbiose entre a força coercitiva dos padrões sociais
e a adesão consciente do indivíduo a esses padrões. De outro lado, a
Antropologia, que tem no seu foco de estudo o homem (antropos), no eixo
da antropologia cultural procura dar a conhecer os processos em que a
interação social, a modelar padrões culturais mais ou menos rígidos,
influencia na própria formação da identidade do ser humano. Segundo se
perceberá mais adiante, é correto afirmar que a perspectiva sociológica que
se desenvolve a partir de Max Weber proporciona uma maior aproximação
entre a Sociologia e a Antropologia.
Na sua comparação com o Direito, a Sociologia se distingue
em função de uma perspectiva bem distinta que anima uma e outra ciência.
O Direito se ocupa de prever e descrever em abstrato determinados fatos ou
atos para, em seguida, imbuído de uma forte influência de valores morais,
enquadrá-los numa das categorias próprias do seu quadro binário de
referências: lícito ou ilícito, a designar, permitido ou proibido pelas normas
jurídicas. Para além disso, o Direito prescreve ou institui uma consequência
chamada de sanção jurídica para a hipótese de vir o ato ou fato ocorrer
concretamente. Essa consequência jurídica poderá ser a obrigação de pagar
uma quantia, o encargo de cumprir uma pena privativa de liberdade, entre
outros tantos exemplos que se poderia citar. O cientista do direito se ocupa
de desvendar o melhor sentido das normas jurídicas, pela razão de que a
literalidade do texto não esgota as possíveis compreensões do sentido da
norma.
A sua vez, a Sociologia não compartilha dessa técnica
prescritiva própria do direito. Sua análise se detém na mera descrição dos
fenômenos sociais que se propõe a estudar e nas possíveis relações de
causa e efeito entre tais e quais fenômenos. Demais, aquele enquadramento
que faz o direito das categorias que estuda – lícito ou ilícito conforme
orientação pautadas por valores morais - não é apropriado para a
Sociologia.
Para mais clara compreensão, por exemplo, o Direito apresenta
o crime de roubo como ato que importa grave violação das normas
jurídicas e, portanto, comportamento que deve ser desestimulado a partir da
existência de prévia lei que institua penalidade grave: a privação da
liberdade do autor desse fato criminoso. A seu modo e pela sua própria
perspectiva, a Sociologia apresenta o roubo, como os crimes em geral,
como fatos sociais normais que, em maior ou menor intensidade, são
perceptíveis em todas ou quase todas as sociedades. A existência de graves
desigualdades na distribuição de renda, o traço cultural de determinada
sociedade, nas suas diversas manifestações tendencialmente violenta, entre
outros, são apontados pela Sociologia como causas prováveis de uma maior
incidência de crimes de roubo. Não se ocupa aqui a Sociologia de justificar
a conduta do assim chamado criminoso, tampouco de reprová-la, porque
tais juízos de valor não são escopos relevantes para ela.

4. Formação da consciência sociológica.


Para além das características reportadas no item anterior, a
demonstrar traços próprios pelos quais a Sociologia se distingue de outras
ciências sociais aplicadas, há ainda alguns instrumentos particulares que
orientam os sociólogos e que são reputados essenciais para que a
Sociologia proveja análises sob uma perspectiva distinta e que, a partir
dela, possa alcançar resultados científicos relevantes.
Segundo Peter L. Berger, esses instrumentos próprios para a
formação de uma consciência peculiar da Sociologia sobre a vida em
sociedade são a desmistificação, a não respeitabilidade, a relativização e a
motivação cosmopolita.
a) Desmistificação é ato que tem por objetivo o efeito de
desfazer a mística, o engano, a mentira. Não raras vezes os homens
procuram esconder as reais intenções de suas ações recíprocas. E mesmo
nos casos em que não o fazem, os processos sociais que se desencadeiam
dessas ações tendencialmente se desprendem das intenções daquelas
pessoas ou grupos de pessoas e costumam trilhar seus próprios caminhos.
Por exemplo, na primeira metade do século XX, nos EUA,
sobreveio a Lei Seca, produzida com a declarada intenção de recrudescer a
guerra ao comércio e ao consumo de bebidas alcóolicas. O desenrolar dos
processos sociais pós-Lei Seca apresentou uma curva estatística com
tendências de aumento das vendas, de elevado consumo, de constituição de
organizações criminosas com vultuoso poder a sobrepor mesmo o poder do
Estado, enfim, um estado de coisas que veio a revelar, quanto ao resultado
que se pretendia, que a lei foi ineficaz.
Pior que isso, ela própria e os processos sociais que
desencadeou, ao relegar para a clandestinidade criminosa a atividade de
comércio de bebidas alcóolicas, o que tornou essa atividade muito
arriscada, mas, por essa mesma razão, tendencialmente muito lucrativa
para organizações criminosas que lograssem nível de organização e poderio
bélico e econômico para enfrentamento das forças repressoras do Estado.
Esse exemplo é daqueles que confirmam o acerto das linhas teóricas de
Èmile Durkheim, que preconizam a autonomia dos processos sociais, e, sob
diferente perspectiva, do entendimento de Max Weber, a sustentar as
consequências autônomas que produzem as ações sociais.
A realidade social do tráfico varejista de entorpecentes e da
correlacionada criminalidade violenta instalada em comunidades carentes,
presente no mundo contemporâneo em grandes e médias cidades de muitos
países do continente americano, é comparável à situação descrita naqueles
tempos nos EUA. É produto de processos sociais que se autonomizaram
em relação às legislações editadas nos países para o efeito de prever como
crime o uso e o comércio de entorpecentes.
Dados estatísticos analisados com rigor de metodologia
científica estão a demonstrar que em sociedades em que há acentuado nível
de desigualdade, o tráfico encontra nas favelas um vazio de poder, pois lá o
Estado não se faz presente no propósito de executar políticas sociais
inclusivas e emancipatórias1. Demais, a grande oferta de mão de obra
ociosa nas comunidades carentes favorece o recrutamento de jovens para o
“exército do tráfico”. Esses seriam alguns entre vários fatores que coagem
o jovem que vive naquele contexto a ingressar na atividade de tráfico de
drogas.
Melhor compreensão sobre essa questão é captável pela
assistência ao documentário Notícias de uma guerra particular, exibido no
canal Youtube.
Outra hipótese de desmistificação operada pela Sociologia se
vê presente quando essa ciência se propõe a revelar, diversamente do que
nos é apresentado no texto formal de uma Constituição, ao reportar o
quadro orgânico-institucional de uma sociedade politicamente organizada,
quais são as forças sociais mais influentes para a tomada das principais
decisões políticas, que afetam a vida de todas as pessoas.
O Direito nos revela, no texto de uma Constituição, que o
poder é exercido, nos mais elevados níveis, pelos representantes de três
poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Esses poderes se
condicionam a uma série de controles formais e atuam expostos à crítica de
especialistas, de jornalistas, exposta na mídia, enfim, por mecanismos
formais e não formais se submetem a rígido controle social.
Pelas lentes da Sociologia, por exemplo, se pode revelar que
há um grupo de forças sociais que operam à margem daqueles controles
formais e informais, que se movimentam nos bastidores e nos porões do
ambiente em que se disputa o poder, onde ninguém as vê operando, que se
utilizam das técnicas que lhes venham a parecer eficazes para seus
objetivos de poder, sem se importar se lícitas ou não, que envolvem não
raras vezes chantagem, sedução, pressões, ameaças, intimidação de
testemunhas, queimas de arquivo, enfim, qualquer coisa.
Setores empresariais organizados, a grande mídia, entidades
defensoras de interesses corporativos de empresas e de trabalhadores,
especialmente do serviço público, entidades eclesiásticas estão entre essas
forças sociais fortemente influentes para a tomada das principais decisões
políticas que afetam a vida das pessoas. Têm elas alguns rostos, formas de
entidades constituídas como pessoas jurídicas, mas a real influência que

1
Tendencialmente, nas sociedades marcadas por altos níveis de desigualdade comuns nas democracias
do chamado mundo em desenvolvimento as políticas públicas direcionadas a populações de
comunidades carentes não servem a outro propósito senão tirar proveito da alta vulnerabilidade, para
cooptar das pessoas o apoio eleitoral.
exercem nas decisões políticas se exerce de maneira amorfa e não é
percebida, a não ser a partir de pesquisas e análises orientadas por
metodologia científica e a partir de uma perspectiva que se desprenda
daquele quadro formal de poder e se proponha a perscrutar a realidade que
se desenvolve “nos bastidores”, ao ponto de se demonstrar que a interação
dessas forças sociais ocultas que ocorre nos bastidores é que forja ou
produz (e controla, fundamentalmente!) o quadro de poder formal que a
ciência do Direito nos revela.
Ao revelar essa realidade das relações de poder, distinta
daquelas outras relações formais que são expostas na fachada do edifício, é
como se a Sociologia mostrasse o que está por trás, encoberto por essa
fachada.
b) Não respeitabilidade: para formar uma consciência
peculiar sobre aspectos da vida em sociedade, necessário que a Sociologia
se desprenda do compromisso, que têm outras ciências e o próprio senso
comum, de se orientar exclusivamente pelo conjunto de significados
próprios da sociedade tradicional.
É necessário que a Sociologia se disponha a perspectivar as
questões sociais a partir da referência de outros conjuntos de significados,
próprios de setores marginais da sociedade. Por exemplo, não se faz análise
sociológica da questão do tráfico de entorpecentes e da criminalidade
violenta decorrente se a perspectiva pela qual se filtra a análise do
problema é aquela do senso comum ou mesmo do Direito, para o qual o
comércio e o consumo dessas substâncias são condutas fortemente
reprováveis, próprias de pessoas de mau caráter, incapazes de viver em
sociedade.
É preciso que a análise do problema se proponha a encará-lo a
partir de outras perspectivas e, para tanto, o sociólogo haverá de se
entrevistar também com os próprios traficantes, com usuários, com
moradores das comunidades afetadas, com policiais civis e militares
envolvidos na “guerra ao tráfico”, enfim, como se costuma dizer com
propriedade, olhar o crime não só na perspectiva da sociedade tradicional,
mas também em outras perspectivas, especialmente a do criminoso. Se para
a sociedade tradicional a ação dos traficantes e o consumo são o problema,
para quem está nas favelas, envolvido de alguma maneira com o
“movimento”, como chamam os grupos do tráfico, o problema é a presença
da polícia, que acirra a violência local, que cria ou aumenta o risco de
lesão ou morte de traficantes e outros moradores, que impede ou dificulta o
exercício da mercancia dos entorpecentes, uma atividade econômica que,
queiramos ou não admitir, é relevante para aquela comunidade carente.
Também nesse ponto é muito elucidativa a assistência do
documentário Notícias de uma guerra particular, em que se observa com
clareza que os produtores fizeram uso intenso desse instrumento da não
respeitabilidade.

c) Relativização: a Sociologia surgiu num contexto de elevado


prestígio das ciências naturais, à época já muito desenvolvidas e influentes
na sociedade europeia. Os primeiros esforços científicos da Sociologia
prenderam-se, pois, à vertente metodológica do Positivismo que, por um
lado, preconiza repelir a influência dos dogmas da religião e, por outro,
pauta-se pela análise dos fenômenos da vida em sociedade com o emprego
de métodos racionais. Esses os métodos racionais foram vistos como o
penhor do sucesso das ciências naturais: observação, experimentação
formulação de leis genéricas que explicariam os fenômenos sociais e as
relações de causalidade entre eles, formuladas em termos de determinismo.
Assim foram tendencialmente as linhas teóricas de Èmile Durkheim, maior
expoente dessa vertente positivista na Sociologia.
Com a formação científica influenciada por outras correntes
filosóficas e científicas, que deram densidade ao idealismo alemão, Max
Weber percebeu não ser apropriada, para a análise científica da vida em
sociedade, aquela metodologia rigorosamente objetiva e determinista. Por
sua própria experiência de vida, experimentou na sua juventude a
transformação por que passou a Alemanha, de uma economia basicamente
agrícola a iniciar uma trajetória de industrialização. Percebeu a olhos vistos
que o objeto de estudo da Sociologia está em constante transformação e,
por isso, aquela metodologia positivista, se bem que pudesse ter alguma
utilidade, não seria suficiente para uma adequada análise dos processos
sociais.
Além disso, pareceu a ele ser falha a assertiva que defendiam
os positivistas, de que a história seria processo universal e, por isso, todas
as sociedades trilhariam uma linha evolutiva uniforme que, no ponto de
chegada, importaria na sua consolidação como sociedade plenamente
desenvolvida economicamente, a exemplo do que eram França e Inglaterra
perspectivadas pelos positivistas como sociedades mais evoluídas da época.
Consentaneamente com essa nova escola sociológica liderada
por Weber, o conhecimento acerca de fenômenos da vida em sociedade
haverá de ser sempre histórica e culturalmente contextualizado, o que quer
dizer que o que a Sociologia estabeleceu como verdade científica
relativamente à sociedade francesa do século XX, por exemplo, pode não
vir a sê-lo para o contexto da sociedade alemã, ou da portuguesa, expostas
a influências de fatores distintos e a aspectos culturais peculiares. Demais,
a mesma assertiva sobre aspectos da vida na sociedade francesa poderia vir
a perder validade científica décadas depois, à medida em que fatores de
variadas ordens possam ter alterado os processos sociais e as relações de
causalidade entre eles.
Além disso, pode-se falar em relativização em contraposição
ao etnocentrismo, que pauta análises científicas a partir de uma premissa de
que determinadas sociedades, aquelas de padrão eurocêntrico,
designadamente, sejam mais evoluídas. As outras seriam sociedades
atrasadas, algumas primitivas, de rudimentar desenvolvimento. Daí que o
cânone da ciência de padrão ocidental se imporia de modo a subjugar
outras formas de produzir conhecimento, notadamente de sociedades que
não professam os mesmos valores morais da sociedade ocidental.
Nessa perspectiva, relativismo importa na abertura da ciência à
compreensão dos objetos que venha a estudar a perspectivas orientadas por
valores de outras culturas, daquelas não dominantes, como por exemplo, da
minoria muçulmana em países europeus, de comunidades tradicionais
como os aborígenes na Austrália, de etnias indígenas no Brasil. Cumpre
assinalar que o relativismo como instrumento de análise científica é
também especialmente importante para a Antropologia Cultural.

d) motivação cosmopolita: a Sociologia se erigiu como


ciência num ambiente social de grandes tensões sociais, de abruptas
transformações das relações econômicas e rupturas de padrões culturais
tradicionais. Por isso, é estimável que o seu ambiente seja esse mesmo, de
sociedades que vivenciam essas tensões, essa dialética, interesses
contrapostos, esse clima de instabilidade que não se fazia presente na
sociedade feudal, em que os indivíduos nutriam valores, crenças e tradições
e, a partir desses, se percebiam como iguais; nesse ambiente a sociedade
granjeava nos valores, crenças e tradições a garantia de um corpo social
coeso, em que imperavam relações sociais estáveis. Sociedades
“governadas” ainda por traços culturais tradicionais, que forjam relações
sociais estáveis e que por isso, mantêm, em estado latente, qualquer ideal
de mudança, qualquer projeto revolucionário, não são objeto propício para
a Sociologia.
i
FONSECA, Eduardo Morato. Direito fundamental à saúde: gratuidade no acesso às prestações públicas de cuidados
com a saúde no Brasil. Dissertação de mestrado defendida perante a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
novembro de 2012, pp. 102/107.

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