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XI CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO URBANÍSTICO

GT 03 – DIREITO À MORADIA, POLÍTICA HABITACIONAL, REGULARIZAÇÃO


FUNDIÁRIA E DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

NÃO ERA PARA REDUZIR O DÉFICIT HABITACIONAL? O PROGRAMA MINHA CASA MINHA
VIDA SOB A ÓTICA DO DIREITO À MORADIA EM ARACAJU-SE
Viviane Luise de Jesus Almeida1
Emyly Ferreira Lima2
Sarah Lúcia Alves França3

A questão da moradia na cidade capitalista tem sido objeto de debates, face à centralidade
da temática na política urbana e no contexto das desigualdades socioespaciais nos séculos XX e
XXI. A partir da década de 1930, em decorrência dos impactos da industrialização na rápida
urbanização, a terra urbana enquanto mercadoria, tornou-se sujeita a disputas econômicas e
sociais, que configuram, no espaço urbano, diferentes formas de apropriação do solo, mediante
estratégias de grupos econômicos dominantes, protagonizadas, especialmente, pelo mercado
imobiliário, que escolhe as melhores áreas. Diante disso, os trabalhadores, com dificuldade de
acesso à terra urbanizada e na luta pelo direito de ocupar um espaço na cidade, buscaram áreas
residuais, privadas ou públicas, de risco e/ou de preservação ambiental para construir moradias,
para abrigar suas famílias em situação de ilegalidade fundiária, alheios à dignidade humana4.
Embora tenham se tornado responsabilidade do Estado, a questão do aprofundamento da
precariedade da habitação tem sido consequência das políticas urbanas e habitacionais adotadas
em décadas anteriores. Apesar do discurso ter sido enfrentar o déficit habitacional, a construção de
conjuntos habitacionais subsidiados por programas como Banco Nacional de Habitação (BNH)
(1964-1986) e Programa de Arrendamento Residencial (PAR) (1999-2008) acirrou nuances quanto
à exclusão social e periferização da qualidade de vida, distanciando a efetivação da moradia como
direito, conforme Declaração Universal dos Direitos Humanos e Constituição Federal de 1988.

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Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pelo Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal de Sergipe (DAU/UFS) e bolsista pelo CNPQ no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica (PIBIC); e-mail: vvarquiteturaurb@gmail.com.
2
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pelo Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal de Sergipe (DAU/UFS); e-mail: emylylima@gmail.com.
3
Arquiteta e Urbanista, Doutora em Arquitetura e Urbanismo, e Profa. Adjunta do Departamento de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade Federal de Sergipe (DAU/UFS); e-mail: sarahfranca@academico.ufs.br.
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MARICATO, Ermínia. O estatuto da cidade periférica. In: CARVALHO, Celso (org); ROSSBACH, Ana
Claudia (org). Estatuto da cidade: comentado. São Paulo: Ministério das Cidades; Aliança das Cidades,
2010.
1
De fato, essas experiências colocam o Brasil num cenário de panorama de ilegalidade e
irregularidade fundiária e urbanística, decorrente da autoconstrução da moradia em assentamentos
precários, desprovidos de equipamentos e serviços urbanos, que atingiu em 2019, 5.127.747
domicílios localizados em 13.151 aglomerados subnormais5.
Mais uma vez, na tentativa de trazer soluções para o enfrentamento dessa crise habitacional
e principalmente, econômica, o governo federal, lançou em 2009, o Programa Minha Casa Minha
Vida (PMCMV), com o objetivo de construir, em parceria com o mercado da construção civil,
moradias populares destinadas a famílias distribuídas em 4 faixas de renda: faixa 1, para famílias
com renda de até R$1.800,00; faixa 1.5, renda de até R$2.600,00; faixa 2, até R$4.000,00; e faixa
3, com renda de até R$7.000,00 (atribuídos a partir da última fase, iniciada em 2016).
Com a meta de construir 5 milhões de moradias, diversas pesquisas6 demonstram que o
PMCMV (entre 2009-2021) direcionou sua produção para os interesses lucrativos do capital privado,
com foco nas famílias de renda média, que correspondiam às faixas 2 e 3, que apresentavam maior
rentabilidade na comercialização da moradia enquanto produto. Contraditoriamente, vale lembrar
que as famílias de 0 a 3 salários mínimos (faixa 1), por compreenderem maior parte do déficit
habitacional das cidades brasileiras, foram proporcionalmente menos atendidas no programa. Ou
seja, pouco contribuiu para reduzir diferenças sociais, assegurando o direito à moradia, enquanto
direito social e urbanístico, entendido de forma ampla, somando-se ao acesso à educação, saúde,
alimentação, trabalho, transporte, lazer, segurança, previdência social, etc.
Assim como outras cidades do Brasil, em Aracaju, capital do Estado de Sergipe, França
(2019) assegura que a oferta de moradias para famílias carentes pelo PMCMV foi ínfima, com
resultados pouco significativos para efetivação do direito à moradia. Então a pergunta que se
delineia é: como se deu a produção de moradias na capital sergipana face ao objetivo do programa
de redução do déficit habitacional, sendo que 95% do total correspondia às famílias de 0 a 3 salários
mínimos, em 2010? Que padrão de cidade se constituiu diante da inserção desses
empreendimentos para faixa 01? De fato, houve a efetivação do direito à moradia?
Com isto, o objetivo desta pesquisa é analisar a efetivação do direito à moradia nas famílias
de renda baixa, na implementação do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) (faixa 01) em
Aracaju/SE. Para sua elaboração, utilizou-se de levantamentos bibliográficos, de informações dos
empreendimentos contratados na CAIXA de 2009 a 2021, dos equipamentos públicos nas
secretarias locais, que subsidiaram a construção de cartografias e tabelas.
Localizada no estado de Sergipe, inserida na Região Metropolitana de Aracaju, a capital
abriga 664.908 habitantes em 169.586 domicílios, distribuídos em 182,163 km². Seu espaço é

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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Aglomerados Subnormais 2019: Classificação Preliminar e
informações de saúde para o enfrentamento à COVID-19. Notas Técnicas. Rio de Janeiro: 2020.
6
AMORE, C. S.; SHIMBO, L.; RUFINO, M. B. (orgs.). Minha Casa... E a cidade? Avaliação do Programa
Minha Casa Minha Vida em seis estados brasileiros. 1. ed .Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015.
CARDOSO, A. L.; ARAGÃO, T. A,; JAENISCH, S. T. (orgs.). Vinte e dois anos de política habitacional no
Brasil: da euforia à crise. – 1.ed. – Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2017.
2
marcado por fragmentações sociais, que diferem porções norte, sul, leste e oeste também nos
aspectos urbanísticos, como infraestrutura, equipamentos públicos e condições habitacionais. Se
por um lado, os bairros da zona sul, em especial, na faixa litorânea, se caracterizam pela
apropriação mercadológica de condomínios fechados para classes de renda média e alta, nos
bairros da zona norte moram famílias com renda média menor que 3 salários mínimos, acrescidos
dos bairros Santa Maria, 17 de Março, Marivan e São Conrado, no sudoeste7. Essa condição reflete-
se também no grande percentual de assentamentos informais, inseridos principalmente nessas
áreas.
A implementação do programa tendeu a agravar essas nuances sociais, com a inserção de
73 empreendimentos de 2009 a 2021, que totalizaram 15.294 unidades habitacionais, em bairros
periféricos nas porções norte, oeste e sul com ausência e/ou insuficiência de infraestrutura, e
distantes das principais centralidades que concentram emprego e renda. Sem dúvida, desencadeou
a formação de áreas isoladas e desarticuladas, de baixo valor fundiário, em especial naqueles onde
vivem famílias de baixa renda. Isso refletiu a inserção dos empreendimentos nos bairros Porto
D’antas, Capucho, Jabotiana, Santa Maria, Aruana em espaços com extensos vazios e
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indisponibilidade de terra urbanizada , conforme o mapeamento do IBGE.
Dentre o total de empreendimentos, apenas 6, com 1.857 moradias (12,15% de Aracaju),
foram destinados à faixa 1, dentre esses, 3 encontram-se no bairro Santa Maria (sul), 1 no Porto
D'Antas, 1 no Japãozinho e 1 no Soledade (norte) (Figura 1).
Figura 1: Empreendimentos Habitacionais do PMCMV por Faixas de renda e centralidades, em Aracaju/SE.

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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro, 2011.
8
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Áreas Urbanizadas do Brasil. Rio de Janeiro, 2017.
3
Elaboração: Autoras, 2022.
Importante destacar a proximidade desses empreendimentos com aglomerados subnormais
conforme definição do IBGE para ocupações de habitação precária, especialmente nos bairros de
maior índice de desigualdade e pobreza: Santa Maria, Porto D'Antas e Japãozinho. O Observatório
Social de Aracaju (p.9)9 define que essas áreas “são pontos com extrema vulnerabilidade social,
com famílias vivendo em condições precárias, marcadas por altos índices de analfabetismo e baixa
escolaridade, que dificultam o acesso ao mercado de trabalho formal, comprometem as relações
sociais no território e relegam a sua população a formas de emprego precárias e até degradantes”.
Os três empreendimentos situados no bairro Santa Maria: Residencial Jardim de Santa
Maria (2010), com 281 unidades, Vida Nova Santa Maria (2013), com 468 unidades, e Getúlio Alves
Barbosa (2014) com 280, estão próximos uns aos outros, sendo considerados os mais segregados
e distantes por estarem às margens do limite oeste com município São Cristóvão. No seu entorno
imediato há apenas algumas habitações precárias e dispersas, e grandes vazios de terra, além de
áreas ambientais. Os equipamentos públicos estão concentrados na porção norte do bairro, a mais
de 1km de distância, dificultando o acesso dessas famílias às necessidades básicas e diárias, como
escolas, mercados, postos de saúde e trabalho, e principalmente a outras localidades da cidade,
pela insuficiente disponibilidade de transporte público.
Conforme a Secretaria Municipal de Trânsito e Transporte (SMTT), no perímetro, são
ofertadas as linhas de ônibus Caípe Novo/D.I.A/Via Prainha (número 404) a cada duas horas, Padre

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ARACAJU. Mapografia Social do Município de Aracaju. Observatório Social de Aracaju. 2019.
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Pedro (407), que circula de 20 em 20 minutos, e Santa Maria/Zona Sul (505) a cada uma hora ou
mais, que integram a região ao terminal do D.I.A localizado na zona oeste de Aracaju.
No bairro Porto D'Antas, na região norte, o empreendimento Jaime Noberto, contratado em
2010 com 369 unidades na tipologia vertical fechada, está concentrado juntamente com outros de
faixa superior, às margens da avenida Euclides Figueiredo, distantes das áreas consolidadas,
percebendo-se maior relação com bairro Japãozinho, configurando-se essa implementação uma
frente de “expansão”. Aqui, evidencia-se a distância do bairro Centro e das subcentralidades da
zona norte, além das das escolas e postos de saúde "mais próximos".
Entretanto, o preenchimento desse grande vazio do bairro com esses condomínios, pode
ser considerado como um fator interessante, que é a interligação com o município Nossa Senhora
do Socorro, a partir da ponte que conecta o conjunto Marcos Freire II, através da continuidade da
avenida Euclides Figueiredo, de forte movimentação de automóveis, fortalecendo a relação
metropolitana. Para garantir o deslocamento dessa população estão disponíveis as linhas Alto da
Boa Vista/Maracaju (104), a cada 40 minutos e somente de segunda à sábado, e Santos
Dumont/Mercado (607), variando entre 45 minutos a 1h30min, conectando-as com o terminal de
integração da zona norte Maracaju, e o terminal do Mercado localizado no Centro.
No bairro Japãozinho encontra-se o Residencial Zilda Arns contratado em 2013, com 144
unidades, que se diferencia dos anteriores, ao estar localizado em uma região com maior oferta de
infraestrutura que o entorno, próximo à escolas, postos de saúde e áreas de lazer. A implementação
deste empreendimento vertical, foi possível à sua pequena escala, com apenas três torres, que
demanda uma área de terreno menor, disponível em áreas com maior nível de urbanização. Quanto
às condições de deslocamento, as linhas de transporte ofertadas nas proximidades são:
Industrial/Mercado (613) que liga ao terminal do Mercado a cada 40 minutos ou 1 hora, e ainda o
Corujão (1001C), que circula somente durante a madrugada.
O último empreendimento, embora tenha sido registrado como no bairro Soledade, José
Raimundo dos Santos, com 315 unidades, não foi encontrado. Apesar de ter sua contratação em
2013, segundo CAIXA (2021), o processo de obras não foi bem sucedido, sendo o único
empreendimento em Aracaju contratado por uma entidade social sem fins lucrativos.
Assim, pode-se constatar que o PMCMV subsidiou em Aracaju, apenas 1.857 moradias
destinadas a faixa 1, o que não supre nem 10% do déficit habitacional da capital, que no início do
programa concentrava 24.481 domicílios10. O foco da produção da moradia atendeu interesses do
mercado e, consequentemente, rompe com a tentativa de solucionar a questão da precariedade
habitacional e da dificuldade de acesso à terra urbanizada para famílias de baixa renda.
Diante disso, entende-se que a atuação do capital no programa resulta na reprodução da
venda da moradia enquanto produto, segregando as famílias de menor renda, quando atendidas
pelo PMCMV, em áreas afastadas, precárias e fragmentadas da cidade, sob a justificativa de ter
que buscar terra com menor valor para viabilizar a construção. Entretanto, o que se observa, é a

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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE. Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro, 2011.
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dificuldade de implementar instrumentos de democratização do acesso à terra urbanizada, como a
ZEIS, ou aqueles de regulação do cumprimento da função social da propriedade urbana
estabelecida na Constituição Federal (1988) e no Estatuto da Cidade (2001)11, de modo que os
negócios que a envolvem não constituam obstáculo para a efetivação do direito à cidade ou à
moradia. Esse é o principal desafio da política urbana não só em Aracaju, como em todo país, que
ainda enfrenta dificuldades na real efetivação do direito à moradia, não como a simples "construção
de casas", mas sim, produzindo moradia no completo significado, aquele que contempla também o
direito à cidade.
Portanto, é possível concluir que sem oferta de saneamento básico e equipamentos
públicos, precário serviços de transporte público, e distantes das oportunidades urbanas, a
localização dos empreendimentos subsidiados pelo PMCMV em Aracaju reforça uma dinâmica de
cidade desigual, cuja segregação espacial, fragmentação e exclusão social com empreendimentos
situados em zonas de expansão urbana ou áreas limítrofes, como é o caso daqueles destinados à
faixa 1, inseridos nos Santa Maria, Porto D'Antas e Japãozinho, replicam o velho padrão periférico
de construção de habitação social, que funciona para viabilização da reprodução do capital no
espaço urbano das cidades brasileiras.

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SAULE, Nelson; ROLNIK, Raquel. Estatuto da cidade: novos horizontes para a reforma urbana. 2.ed.
São Paulo: Pólis, 2001
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