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IV· PLURALIDADE DO DIREITO NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA 1 113

uma estrutura socioprodutiva feudal para um capitalismo mercantil incipien-


te.58 Entretanto, se a Espanha, representada por Castela, teve êxito ao lançar-se
no Atlântico e na conquista militar das terras conquistadas, acabou fracas-
sando na edificação e no desenvolvimento de um capitalismo moderniz ante
para o continent e americano. 59 Esse caráter histórico da "antimod ernidade"
não é obra apenas de Castela, pois a monarqui a absolutista portuguesa, ainda
que tivesse sucesso com a expansão náutica, fechou-se aos ventos de uma
cultura mais ousada e criativa. A cultura lusitana do século XVI, marcada
pelo espírito escolástico, jesuítico e universalista, que foi transplan tada para
a colônia brasileira, pautava-se, como recorda Cruz Costa, na tradição de
um certo "humanis mo anacrônico" que expressava a força da "retórica, do
gramaticismo e da erudição livresca:' 60 De qualquer forma, a aproximação
do Estado com a Igreja era muito estreita e a mentalidade da época "[ ... ]
foi preservad a de influências renovadoras por meio do uso da censura e da
Inquisição". 6 1
A cultura colonial reinante no Brasil irá reproduz ir o modelo luso-
-ibérico da "centraliz ação política e dos valores tradicionais", concepçõ es
que foram contestad as pelo ideário iluminista das "transformações culturais
e políticas do 'despotism o esclarecido', pombalino", 62 quase dois séculos de-
pois. Nesse contexto, como assinala Gizlene Neder, o pensamen to jurídico
português do século XVIII descobre e recupera o humanism o renascent ista
do século XVI. 63
Entretant o, os três séculos de colonização espanhola e portugues a na
América - do século XVI ao início do século XIX - foram marcados por inva-
são, massacre e diversas práticas desumanizadoras de opressão, favorecendo
e consagrando o desenvolvimento de uma cultura anti-humanista. Ante essa
tradição, fatores externos (invasão napoleônica à Península Ibérica e a ruptura
do "Pacto Colonial") e internos (o crescimento de movimentos nacionalistas)
contribuíram para as lutas de independência que, além de seu caráter político
e social, não deixaram de expressar posturas plenamente humanistas. Só que,

58
KAPLAN, Marcos. Op. cit., p. 55.
59
SOTELLO, Ignacio. Sociologia da América Latina. Rio de Janeiro: Pallas, 1975. p. 46.
60
CRUZ COSTA, João. Contribuição à História das Ideias no Brasil. Rio de Janeiro:
Jose Olympio, 1956. p. 36.
61
NEDER, Gizlene. Iluminismo Jurídico-Penal Luso-Brasileiro. Obediência e submissão.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 59.
62 WEHLING , Arno; WEHLING , Maria José C. M. Forma ção do Brasil Colonial. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 286-287.
63
Cf. NEDER,. Gizlene. Op. cit., p. 75.
114 1 HISTÓRIA DO DIREITO -Antonio Carlos Wolkmer

_ . h • abstrato, racional e universalista presente na


agora nao mais o umamsmo " . ,,
' A d O olonizador mas um humanismo concreto , nascido

cultura hegemomca c ' h


, . h' t , .· a de exaltação do nativo, enquanto ser umano capaz "de
da pratica is 01 ic _ "64
gerir livremente o seu destino como naçao e co~o pov~. .
·ndependência das naçoes latmo-amencanas, nos
Certament e que a i
. , d.10s d o se'culo XIX , não representou uma ruptura
pnmor . total e definitiva
.
com Espanha e Portugal, mas muit? mai~, c?mo assmala Howard J. ';iard~, a
reformulação da tradição ibero-latma classica, sem uma mudança ~xpress1va
na ordem social e política. 65 Gradativamente, adaptaram-se e assmalaram-
-se princípios do ideário econômico capitalista, da doutrina do liberalismo
individualista e da filosofia positivista. Na verdade, buscava-se compatibili-
zar tais doutrinas emergentes e novas forças sociais com a manutenção das
antigas estruturas de caráter corporativo e patrimonialista. Isso explica o
porquê de as formas constitucionais introduzidas serem " [... ] representativas
e democráticas, mas em substância a herança não democrática, elitista [... ],
hierárquica e autoritárià' 66 ser conservadora.
Não é por demais relevante lembrar que, na América Latina, tanto a
cultura jurídica imposta pelas metrópoles ao longo do período colonial,
. quanto as instituições legais formadas após o processo de independência
(tribunais, codificações e operadores do Direito) derivam da tradição legal
europeia ocidental, representada pelas fontes clássicas do Direito Romano,
Germânico e Canônico. Portanto, da Cultura Jurídica latino-americana há de
se ter em conta a herança colonial luso-hispânica (e suas respectivas raízes
romano-germânicas) e os processos normativo-disciplinares provenientes da
modernidade capitalista, liberal-individualista e burguesa. Nesse sentido, a
incorporação do modo de produção capitalista e a inserção do liberalismo
individualista tiveram uma função importante no processo de positivação
do Direito estatal e no desenvolvimento específico do Direito privado (com
ênfase no Direito de propriedade e no Direito mercantil). Reconhece o juris-
ta mexicano Jesus Antonio de la Torre Rangel que o individualismo liberal
penetrou na América hispânica, no século XIX, dentro de uma sociedade
fundamentalmente agrária, onde o desenvolvimento urbano e industrial
era praticamente nulo. Portanto, a juridicidade moderna de corte liberal vai
repercutir diretamente sobre a propriedade da terra.

64
LUCKESI, Cipriano C. ln: NOGARE, Pedro Dalle. Humanismo e Anti-Humanismos.
p. 272-274.
65
Cf. WIARDA, Howard J. Op. cit., p. 22.
66
WIARDA, Howard J. Op. cit., p. 22 e 25 _
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Assim também, «a igualdade, a generalidade e a abstração do Direito


67
Moderno ficam definitivament e consagrados na juridicidade [... ]" liberal-
-individualista latino-america na.
Tem sido próprio, na tradição da América Latina, seja na evolução teó-
rica, seja na institucionaliza ção formal do Direito, que os códigos positivos e
as constituições políticas proclamem «neutralidade científica': independência
de poderes, garantia liberal de direitos e a condição imperante do «Estado
de Direito': Contudo, na prática, as instituições jurídicas são marcadas pelo
controle centralizado, burocrático e pouco democrático do poder oficializa-
do. O padrão corporativo e patrimonialista ibero-american o se expressa nos
privilégios «imperiais" do executivo, com as consequentes «[... ] debilidade e
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falta de independência dos tribunais e das legislaturas [... ]:'
Torna-se correto reconhecer a cotidianidade de uma tradição jurídica que
convive com uma cultura política, marcada por democracia excludente, por sis-
tema representativo clientelista, por formas de participação elitista e por experi-
ências de pluralismo limitado. 69 Como lembra Howarda J. Wiarda, os documen-
tos e os textos legais elaborados na América Latina, em grande parte, têm sido a
expressão da vontade e do interesse de setores das elites dominantes, formadas
e influenciadas pela cultura europeia ou anglo-norte-americana. Poucas vezes,
na história da região, as constituições e os códigos positivos reproduzem, rigoro-
samente, as necessidades de todos os segmentos da sociedade civil. Em geral, os
textos legais «[... ] foram formulados e promulgados de cima para baixo. Foram
concebidos pelas elites, e não pelos trabalhadores. Dificilmente os documentos
jurídicos podem ser considerados neutros, equilibrados e apolíticos [... J:' º
7

Tais aspectos da cultura jurídica latino-american a explicitam as razões


do porquê de certo perfil de algumas áreas clássicas do Direito. Se a justiça
do trabalho tem tradição assistencialista e paternalista, a justiça criminal é
repressiva e discriminadora, impondo-se, principalmente, contra a população
menos favorecida econômica e socialmente. Já seus operadores do Direito têm
se constituído em castas privilegiadas desvinculadas dos anseios por justiça
buscados, historicamente, por seus diversos e múltiplos segmentos sociais.
Enfim, em perspectiva sobre os fundamentos norteadores das grandes
correntes jusfilosóficas que dominaram os horizontes do Direito na América

67
DE LA TORRE RANGEL, Jesus Antonio. Sociología Jurídica y Uso Alternativo del
Derecho. México: Instituto Cultural de Aguascalientes, 1997. p. 69-70 e 72-73.
68
WIARDA, Howard J. Op. cit., p. 82.
69
Cf. WIARDA, Howard J. Op. cit., p. 85-86.
70
WIARDA, Howard J. Op. cit., p. 113.
116 ' HISTÓRIA DO DIREITO -Anton io Carlos Wolkmer

Latina após a colonização - jusna turali smo, positi vismo e culturalism o _


constatar-se-á, de fato, a presença do supos to "ideá rio humanista,: mas do
humanismo jurídico erudito, abstrato e racio nalist a, nem semp re expressã 0
de um pensamento jurídico huma nista concreto, autên tico e emancipad or,
almejada, contemporaneamente, por grand es parcelas da socie dade injusti -
çada, reprimida e excluída.

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