Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
APRESENTAÇÃO
Em junho de 2018, a convite dos meus amigos Ana Flávia Gerhardt e Marcel Álvaro de
Amorim, participei de uma mesa-redonda na Faculdade de Letras da Universidade Federal do
Rio de Janeiro intitulada “De quem é a escola? A quem ela pertence?”. A partir das duas
questões que compõem o seu título, a mesa propunha-se a suscitar o debate acerca da escola
visionada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). São as problematizações e
desestabilizações resultantes da minha participação nesse debate que alinhavam as reflexões
esboçadas neste capítulo. Tomando a BNCC como um enunciado concreto e pressupondo a
natureza dialógica dos enunciados (BAKHTIN, 2003), minhas interpretações acerca das
práticas de ensino-aprendizagem de línguas(gens) (des)legitimadas na BNCC partem de
(inter)ações com o documento desde a sua primeira versão.
A BNCC teve sua versão final para as etapas da Educação Infantil e do Ensino
Fundamental aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 15 de dezembro de
20171. Antes, porém, da aprovação de sua versão final pelo CNE, o documento contou com
duas versões anteriores, sendo a segunda versão, disponibilizada em maio de 2016, resultante
das alterações sugeridas após ampla consulta pública realizada durante o ano de 2015
(SZUNDY, 2017a). Após sua aprovação pelo CNE, o texto da BNCC ainda sofreu ajustes
pontuais, e uma outra versão foi disponibilizada pelo Ministério da Educação em 2018.
Diferentemente das primeiras e segundas versões, a versão aprovada pelo CNE em 2017, e
posteriormente ainda reformulada, não inclui a etapa do ensino médio2.
1
Informação disponível em http://portal.mec.gov.br/conselho-nacional-de-educacao/base-nacional-comum-
curricular-bncc. Acesso em 29.11.2018.
2
A versão da BNCC para a etapa do ensino médio disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/ foi
aprovada pelo CNE no dia 04 de dezembro de 2018. A versão da BNCC aprovada para essa etapa da educação
básica contempla a reforma do ensino médio instituída pela lei 13.415 de 2017.
Por compreender políticas públicas como a BNCC como arenas ideológicas em que
múltiplas vozes institucionais (universidades, escolas, ministérios, associações científicas,
secretárias estaduais e municipais, entidades religiosas, entre outras) disputam espaço e
legitimidade para prescrever o que conta como práticas de ensino e aprendizagem válidas,
considero relevante comparar as propostas de duas versões da BNCC para o desenho de
currículos de línguas(gens). Busco, portanto, criar inteligibilidades sobre as ideologias
linguísticas entextualizadas na área de linguagens na segunda e terceira versões da BNCC, de
forma a refletir sobre as concepções e práticas de letramento (des)legitimadas, sobre a que
interesses essas concepções/práticas servem, e sobre possíveis consequências para o processo
de ensino-aprendizagem de línguas(gens) e reexistências possíveis/desejáveis.
A reflexão que se segue situa-se nos estudos das ideologias (VOLÓCHINOV, 2017) e
ideologias linguísticas (KROSKRITY, 2004; WOOLARD, 1998) no campo da Linguística
Aplicada (MOITA LOPES, 2015; SZUNDY, 2017b; PINTO, 2018, entre outros), e toma as
concepções de entextualização (BLOOMAERT, 2005) e letramentos (STREET, 2014, 2009)
como ferramentas interpretativas centrais para a compreensão dos enunciados da BNCC. Dada
a trajetória epistemológica privilegiada, minhas interpretações acerca das ideologias
linguísticas (des)legitimadas na BNCC são forjadas nas articulações entre as mudanças
observadas em duas versões dessa política pública e as transformações no cenário político
brasileiro.
Essas articulações são costuradas em três seções. Na primeira, apresento uma breve
contextualização da BNCC, inter-relacionando-a com a ideologia neoliberal; na segunda,
analiso as ideologias linguísticas entextualizadas na área de linguagens; na terceira, recorro ao
componente curricular língua inglesa para problematizar possíveis consequências para o
ensino-aprendizagem de línguas(gens); por fim, concluo propondo reexistências desejáveis.
3
Tradução minha para “Language, Education and Neoliberalism”.
4
Fonte: https://www.cafehistoria.com.br/uma-analise-da-base-nacional-comum-curricular/. Acesso em
01.12.2018.
A avaliação de Malerba (2017) de que bases curriculares como a BNCC buscam “formar
contingentes de mão de obra para o mercado de trabalho, de preferência imunes a qualquer
aparato crítico” coincide com a assunção de Percio e Flubacher (2017) de que o neoliberalismo
constrói o indivíduo como empreendedor de si, ou seja, um ser racional responsável por suas
escolhas e fracassos. Cabe ao indivíduo e somente a ele internalizar as competências e
habilidades que lhe garantirão sucesso no mundo de trabalho e, portanto, acesso aos bens
materiais e simbólicos do capitalismo. Como o foco está no desenvolvimento de competências
e não no questionamento das razões que levam certas competências a serem mais ou menos
valorizadas do que outras, nas relações de poder que a hierarquização e/ou escolha de
competências ajuda a manter e nos interesses a que essas escolhas servem, a construção de
práticas de ensino-aprendizagem orientadas por letramentos mais críticos pode ficar, conforme
bem destaca Malerba, comprometida. Forma-se, nesse sentido, mão de obra resiliente para o
mercado de trabalho, alinhadas aos preceitos neoliberais.
Para Malerba (2017), o caráter utilitário, pragmático e (neo)liberal da BNCC se
materializa nas competências gerais que devem orientar o processo de construção do
conhecimento em todas as áreas na educação básica. Esse caráter pode ser observado nas
escolhas lexicais destacadas em itálico nas três competências citadas abaixo:
No entanto, se, por um lado, grupos verbais como utilizar os conhecimentos, entender
e explicar a realidade e fazer escolhas alinhadas e grupos nominais/substantivos como projeto
de vida, liberdade, autonomia, responsabilidade, flexibilidade, determinação inscrevem a
BNCC em ordens de indexicalidade 5 relacionadas à ideologia neoliberal, por outro, outras
escolhas linguísticas presentes nesses mesmos objetivos, tais como continuar aprendendo,
colaborar para a construção, consciência crítica, princípios éticos democráticos inclusivos
sustentáveis e solidários, apontam para ordens de indexicalidade relacionadas às vertentes
sócio-históricas da linguagem e dos processos de ensino-aprendizagem. As indexicalidades6
híbridas presentes nas competências da BNCC corroboram a percepção de Flubacher; Percio et
al (2017) em relação ao caráter complexo e processual do neoliberalismo.
Além de sinalizar as influências que teorias da linguagem e dos processos de ensino e
aprendizagem, representadas especialmente pela psicologia vygotskiana e pela filosofia da
linguagem bakhtiniana, têm exercido nas políticas públicas que orientam currículos no Brasil
desde a publicação dos PCNs em 1998 (SZUNDY, 2017a; SZUNDY & LEUNG, 2018), essas
indexicalidades híbridas sinalizam, conforme destacado por Gee (2000), que o novo
capitalismo7 se apropriou rapidamente do progressismo político para agregar novos valores aos
seus produtos, incluindo aí os produtos educacionais. Nesse sentido, questões caras às ciências
sociais, como diversidade cultural, igualdade social, questões de raça e gênero, entre outras, as
quais integram agendas de estudos que se identificam como pós-estruturalistas, pós-
modernistas, pós-colonialistas, frequentemente se mesclam a objetivos meramente
instrumentais traduzidos em competências e habilidades a serem replicadas nas diversas áreas
do conhecimento, sem que as ideologias que embasam os processos de construção de
conhecimento sejam problematizadas.
No campo dos estudos dos letramentos, a tradição intitulada Novos Estudos dos
Letramentos (New Literacy Studies – NLS) responde a essa virada linguística nas ciências
sociais na medida em que passa a pensar os letramentos em termos de práticas sociais e não
5
O conceito de ordens de indexicalidade remete às formas como significados indexicais, ou seja, que relacionam
à(s) línguas(gens) ao contexto, são estratificados de forma complexa, fazendo com que certos tipos de
indexicalidade sejam mais legitimadas que outras. Inspirando-se em Foucault (1982), Bloomaert (2005) sugere
que ordens de indexicalidade funcionam como regimes sistematizados perpassados por questões de
(não)pertencimento, inclusão/exclusão, acesso a recursos semióticos, entre outros.
6
Blommaert (2005, p. 252) define indexicalidade como o “significado que emerge das relações texto-contexto.
Além de (frequentemente) ter um significado denotacional, signos (linguísticos ou não) são indexicais na medida
em que apontam para características metapragmáticas, matalinguísticas e metadiscursivas do significado. Nesse
sentido, um enunciado invoca indexalmente normas, papéis e identidades sociais”. Tradução minha para “Meaning
that emerges out of text-context relations. Apart from (often) having a denotational meaning, linguistic and other
signs are indexical in that they suggest metapragmatic, metalinguistic, metadiscursive features of meaning. Thus,
an utterance may indexically invoke social norms, roles, identities”.
7
Para Gee (2000), o novo capitalismo se caracteriza por uma mudança na organização do trabalho, tanto em
relação aos espaços quanto no que diz respeito às interações entre trabalhadores. Desencadeada especialmente
pelas novas tecnologias, essa nova organização substitui a linha de montagem e a ideia de produção em série que
caracterizou originalmente o capitalismo e passa a se organizar a partir de princípios como redes de colaboração
(networking), designs inovadores e flexibilidade para se adaptar a mudanças.
como meras habilidades (STREET, 2003). Ao compreender os letramentos como práticas
sociais, os NLS passam a focar, conforme sublinha Street (2003), não apenas nas práticas de
letramento, mas nos efeitos dessas práticas para as comunidades que as constroem e/ou nelas
se engajam. Nessa perspectiva, a problematização do que (não) conta como letramentos e das
relações de poder que conferem a certas práticas o status de dominantes ou marginais tornam-
se aspectos centrais nos estudos dos letramentos.
Em seus estudos no campo dos NLS, Street (2003, 2009, 2014) propõe uma distinção
entre os modelos autônomos e ideológicos dos letramentos, destacando que o modelo
ideológico parte do pressuposto de que as práticas de letramento e seus efeitos são sempre
histórica, cultural e ideologicamente situados, e que, ao desconsiderar o caráter situado e
múltiplo dos letramentos, o modelo autônomo acaba por impor modelos ocidentais de
letramentos sobre outras culturas. Sob o viés ideológico, a ideia de que os letramentos podem
ser transmitidos de forma neutra e autônoma a partir de habilidades e competências replicáveis
em contextos diversos constitui uma falácia. Sendo sempre axiologicamente orientada e
perpassada por relações de poder, a escolha por privilegiar determinadas práticas em detrimento
de outras em políticas públicas de ensino-aprendizagem como a BNCC contribuirá para a
hierarquização de determinados (multi)letramentos em detrimento de outros. Contribuirá
também para uma compreensão mais ou menos efetiva sobre as razões pelas quais certos
gêneros discursivos gozam de maior ou menor prestígio, a depender das esferas sociais em que
(re)circulam. A consciência acerca dos processos de hierarquização dos letramentos e suas
consequências sociais para (re)pensar práticas (im)possíveis e/ou formas de transgressão
(in)desejáveis constitui o cerne de uma perspectiva ideológica dos letramentos.
Apesar de incorporar em seu texto escolhas lexicais que refratam uma visão mais
histórica e ideologicamente situada dos letramentos, se compararmos as formas de estruturar
os processos de ensino-aprendizagem na versão da BNCC aprovada com aquelas propostas na
versão do documento submetida ao CNE em 2016, percebemos um deslocamento claro do
modelo ideológico para uma visão mais tecnicista e autônoma dos letramentos na versão
vigente da BNCC. Conforme ilustrado na figura abaixo, a segunda versão da BNCC era
estruturada a partir de temas integradores.
Figura 1 – Temas integradores que estruturam o processo de construção do conhecimento na
segunda versão da BNCC
8
Fonte: https://wordsofleisure.files.wordpress.com/2014/03/medigaumacoisa.png. Acesso em 13.12.2018.
Agradeço a Laerte Coutinho, a William Roberto Cereja e à Editora Saraiva, por cederem os direitos autorais da
tirinha para publicação neste texto.
como certo e errado, adequado e inadequado, formal e informal, culto e popular nos usos que
fazemos de recursos semióticos diversos em nossas (inter)ações no mundo social. A percepção
da criança de que apenas a ênclise representa uma opção correta aponta para a maior
legitimidade atribuída tanto à norma padrão quanto aos gêneros escritos formais que requerem
a aplicação dessa norma. Para além da ironia retratada nos usos da próclise e da ênclise, a tirinha
refrata a crença no caráter arbitrário das línguas(gens), ou seja, de que haveria uma única forma
e/ou norma aceitável, de que a língua portuguesa ensinada nas gramáticas normativas (e na
escola) é a única que goza de prestígio social.
A partir da tirinha acima, podemos compreender ideologias linguísticas como as
atitudes responsivas que construímos sobre os usos das línguas(gens) (SZUNDY, 2017b), as
crenças e sentimentos sobre como as línguas são usadas (KROSKRITY, 2004) e as
representações (implícitas ou explícitas) que constroem intersecções entre o homem (sic) e a
língua (WOOLARD, 1998) no mundo social. Dado o caráter sempre ideológico dos signos
(VOLÓCHINOV, 2017), ideologias linguísticas diversas sobre o que entendemos por
português, inglês, espanhol, francês, mandarim etc. bem como as práticas de letramento
valorizadas (ou não) nessas línguas podem ser reiteradas ou abaladas em trajetórias textuais
diversas. As trajetórias através das quais significados são constantemente
(des/re)contextualizados é o que entendo por processos de entextualização. Na tirinha da Laerte,
a ideologia linguística sobre o uso correto da colocação pronominal, frequentemente enunciada
em gêneros como gramáticas, aulas/lições/provas de português, entre outros, foi
recontextualizada para a construção do humor.
Ao desafiarem a noção de contextos como cenários que preexistem aos textos,
Silverstein e Urban (1996, p. 2) propõem que as pessoas “se engajam em processos de
entextualizacão para criar uma cultura relativamente compartilhada e transmissível”9. Nesse
sentido, a noção de entextualização é tomada como “processos através dos quais discursos são
sucessivamente descontextualizados e recontextualizados em um ‘novo’ discurso” 10
(BLOMMAERT, 2005, p. 251, 252). Por entender que os ‘novos’ significados constituídos em
processos de entextualização mantém relações com aqueles já construídos em discursos
anteriores, indexicalizando, portanto, normas, papéis e identidades sociais (BLOMMAERT,
2005), a concepção de entextualização relaciona-se à premissa do Círculo de Bakhtin de que o
9
Tradução minha para “engage in processes of entextualization to create a seemingly shareable, transmittable
culture”. (SILVERSTEIN; URBAN, 1996, p. 2)
10
Tradução minha para “the process by means of which discourse is successively decontextualized and
recontextualized, and thus made into a ‘new’ discourse”. (BLOMMAERT, 2005, p. 251, 252)
enunciado se realiza historicamente no fluxo da comunicação discursiva, no encontro entre o
verbal e o extraverbal (VOLÓCHINOV, 1929). Ao contemplar, portanto, a natureza histórico-
dialógica das linguagens, a noção de entextualização pode lançar luz às etapas metodológicas
para o estudo da línguas(gens) proposta por Volóchinvov (2017, p. 220):
É partindo, pois, das inter-relações que duas versões da BNCC estabelecem com o micro
e macrocontexto em que foram (re)configuradas que interpreto as ideologias linguísticas
entextualizadas. A partir de um olhar orientado por uma visão sócio-histórica das línguas(gens)
e dos processos de ensino-aprendizagem, interessa-me, especialmente, compreender de que
forma concepções de línguas(gens) são recontextualizadas na Área de Linguagens, em geral, e
no componente língua inglesa, em específico, na versão da BNCC aprovada em 2017, durante
o governo Temer. De forma a contemplar também à terceira etapa para o estudo dos enunciados
proposta por Volóchinov (2017), destacarei algumas escolhas lexicais que compõem os textos
nas duas versões, para problematizar em que medida mudanças aparentemente sutis deflagram
uma guinada para uma visão mais conservadora11 de ensino-aprendizagem na versão da base
aprovada após o impeachment da presidenta Dilma Roussef.
Se, no plano textual mais geral, o apagamento de questões relacionadas à identidade de
gênero e sexualidade na versão aprovada da BNCC indica de forma mais clara uma atitude
responsiva a movimentos conservadores como aquele intitulado Escola Sem Partido, na área de
linguagens, o que observamos, conforme ilustram os recortes abaixo, é a permanência da
concepção de línguas(gens) como práticas sociais, o que sugere que, na parte da BNCC
11
Essa visão mais conservadora de ensino-aprendizagem é claramente percebida no movimento Escola Sem
Partido (ESP), que parte do pressuposto de que há uma doutrinação orientada por princípios políticos da esquerda
em curso nas escolas, a qual desrespeita princípios éticos da educação familiar e/ou religiosa. Para impedir e/ou
conter essa doutrinação, o movimento defende que o papel da escola é apenas o de instruir, já que educar é
prerrogativa da família. A instrução escolar deve, portanto, ser neutra e não deve contemplar temas relacionados
a gênero, sexualidade e movimentos sociais minoritários, entre outros. Embora o projeto ESP seja considerado
inconstitucional por ferir o princípio da liberdade de cátedra, a ideologia de uma escola supostamente neutra goza
de considerável prestígio popular em uma camada significativa da sociedade brasileira, especialmente entre grupos
que seguem orientações religiosas classificadas sob o rótulo de evangélicas.
intitulada “A Área de Linguagens”, as duas versões privilegiam concepções histórica, cultural
e, portanto, ideologicamente situadas das linguagens.
Excerto 1 Excerto 2
A utilização do termo linguagens, no plural, aponta As atividades humanas realizam-se nas práticas
para a abrangência do aprendizado na área de sociais, mediadas por diferentes linguagens:
conhecimento, que recobre a linguagem verbal, verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e
musical, visual e corporal, e para a integração desses escrita), corporal, visual, sonora e,
recursos expressivos na participação na vida social. O contemporaneamente, digital. Por meio dessas
termo abrange também diferentes formas de práticas, as pessoas interagem consigo mesmas e
experiências: estéticas, sensoriais, sensíveis, com os outros, constituindo-se como sujeitos
corporais, sonoras, cinestésicas, imagéticas, sociais. Nessas interações, estão imbricados
performativas. conhecimentos, atitudes e valores culturais,
(BNCC, 2016, p. 87) morais e éticos.
(BNCC, 2018, p. 61)
Quadro 1 – Contextualização da área de linguagens
Embora a opção pelo plural linguagens não seja justificada na versão mais recente da
BNCC (BRASIL, 2018), a utilização do plural nas duas versões e a opção por enfatizar as
diferentes linguagens que orientam as práticas sociais – oral ou visual-motora, corporal, visual,
sonora e, contemporaneamente, digital – apontam para uma concepção de línguas(gens) como
recursos semióticos que se integram na construção de diferentes formas de experiências
(excerto 1) ou em interações em que se imbricam conhecimentos, atitudes e valores culturais,
morais e éticos. Percebe-se nos dois excertos acima que a ideologia linguística legitimada é
aquela que reconhece as línguas(gens) como práticas (des/re)construídas por meio da
mobilização de uma multiplicidade de recursos em diferentes esferas sociais. Dada a ênfase no
caráter axiológico das (inter)ações que realizamos por meio das línguas(gens), as visões de
práticas de letramento privilegiadas na Área de Linguagens parecem ser aquelas que Street
(1995) relaciona com o modelo ideológico de letramentos.
Não obstante a ênfase nos papeis das diferentes linguagens na (des/re)construção das
práticas sociais afastar a ideologia de línguas(gens) como formas de expressão neutras da
realidade, o apagamento do excerto 3 na versão final da BNCC sinaliza o silenciamento dos
conflitos e relações de poder que perpassam processos de construção de significados no mundo
social.
A ideia de que as práticas de usos das línguas(gens) instauram relações de poder que
podem incluir ou excluir, legitimando as identidades e práticas sociais de certos grupos em
detrimento daquelas rotuladas como inferiores ou marginais (excerto 3), foi apagada da versão
final da BNCC e substituída por uma menção mais geral sobre a necessidade de promover o
aprofundamento da reflexão crítica sobre os conhecimentos dos componentes da área
conforme a capacidade de abstração dos estudantes se desenvolva (excerto 4). Embora os dois
excertos pareçam sugerir a necessidade de focar não apenas nos usos, mas na análise crítica
desses usos, o apagamento da ideologia de que aquilo que é legitimado como norma culta nas
práticas orais e escritas é fundamental, como bem nos lembra Bordieu (1991), para manter o
capital simbólico e o status quo de certos grupos sociais, revela a orientação da versão final do
documento para o desenvolvimento de competências replicáveis nos mais diferentes contextos.
A própria ideia de competências que podem ser medidas e replicadas inscreve, conforme já
sinalizei na seção anterior, a BNCC na ideologia neoliberal.
Para a Área de Linguagens, que inclui os componentes Língua Portuguesa, Artes e
Educação Física nos dois ciclos do ensino fundamental, e Língua Inglesa apenas no segundo
ciclo (do 6º ao 9º ano), as competências específicas a serem desenvolvidas em todos os
componentes curriculares da área são as seguintes:
Ao comparamos a segunda versão da BNCC com aquela aprovada pelo CNE, a primeira
mudança que nos chama atenção em relação à língua adicional é a mudança de nome do
componente. Anteriormente nomeado como língua estrangeira moderna, na versão final da
BNCC, o componente passa a se chamar língua inglesa. Essa mudança decorre da alteração,
em 2017, do artigo 23, parágrafo 5º da LDB (BRASIL, 1996), que anteriormente previa “[…]
a partir da 5ª série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará
a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição”, mas que passa a
determinar que, “no currículo do ensino fundamental, a partir do sexto ano, será ofertada a
língua inglesa”. Se antes, por questões geopolíticas, a língua inglesa já era a mais ofertada no
ensino básico, agora a sua oferta se torna compulsória. Essa mudança autoritária da LDB, de
um colonialismo evidente e realizada sem o devido debate com as comunidades escolares e
acadêmicas e associações científicas, alija as comunidades locais de escolher ensinar a língua
estrangeira moderna que mais atenda às contingências de determinada região. Essa mudança,
além de trazer consequências deletérias para os cursos de formação de professores/as de outras
línguas, ignora as práticas de uso das línguas(gens) de muitas regiões de fronteira, onde o
domínio do espanhol desempenha papeis fundamentais nas (inter)ações locais.
Não foi, no entanto, apenas o nome do componente que sofreu alterações, mas toda a
estruturação do processo de construção do conhecimento, que, conforme ilustram as figuras
abaixo, deixa de ser organizado em torno de práticas sociais e passa a ser estruturado por eixos
organizadores.
O eixo tratado como dimensão intercultural também sinaliza para um lócus ideológico
que compreende as línguas(gens) como recursos que nos colocam em contato com a alteridade,
com formas plurais, e igualmente válidas, de ser e estar no mundo. Esse lócus é marcado pelas
ideologias linguísticas que tratam as línguas estrangeiras modernas como línguas adicionais e
a língua inglesa como língua franca, na segunda e terceira versões da BNCC, respectivamente.
Excerto 5 Excerto 6
É no encontro com textos em outras línguas que ele/a […] o tratamento dado ao componente na BNCC
pode ampliar e aprofundar o acesso a conhecimentos prioriza o foco da função social e política do
de outras áreas e conhecer outras possibilidades de inglês e, nesse sentido, passa a tratá-la em seu
inserção social. Não se trata, portanto, de compreender status de língua franca12. O conceito não é novo e
12
Destaques da própria BNCC.
um conjunto apenas de conceitos teóricos e categorias tem sido recontextualizado por teóricos do campo
linguísticas, para aplicação posterior, mas, sim, de em estudos recentes que analisam os usos da língua
aprender, no uso e para o uso, práticas linguístico- inglesa no mundo contemporâneo. Nessa proposta,
discursivas e culturais que se adicionem a outras a língua inglesa não é mais aquela do “estrangeiro”,
que o/a estudante já possua em seu repertório, em oriundo de países hegemônicos, cujos falantes
língua portuguesa, línguas indígenas, línguas de servem de modelo a ser seguido, nem tampouco
herança, línguas de sinais e outras. trata-se de uma variante da língua inglesa. Nessa
(BNCC, 2016, p.121) perspectiva, são acolhidos e legitimados os usos
que dela fazem falantes espalhados no mundo
inteiro, com diferentes repertórios linguísticos e
culturais, o que possibilita, por exemplo,
questionar a visão de que o único inglês
“correto” – e a ser ensinado – é aquele falado
por estadunidenses ou britânicos.
Mais ainda, o tratamento do inglês como língua
franca o desvincula da noção de pertencimento a
um determinado território e, consequentemente, a
culturas típicas de comunidades específicas,
legitimando os usos da língua inglesa em seus
contextos locais. Esse entendimento favorece uma
educação linguística voltada para a
interculturalidade13, isto é, para o reconhecimento
das (e o respeito às) diferenças, e para a
compreensão de como elas são produzidas nas
diversas práticas sociais de linguagem, o que
favorece a reflexão crítica sobre diferentes modos
de ver e de analisar o mundo, o(s) outro(s) e a si
mesmo.
(BNCC, 2018, p. 239 e 240)
Quadro 3 – Apresentação dos componentes língua estrangeira moderna e língua inglesa
Tanto o tratamento das línguas estrangeiras modernas como línguas adicionais (excerto
5) quanto a assunção da língua inglesa como língua franca (excerto 6) parecem compartilhar a
ideologia linguística de que outras línguas(gens) constituem recursos adicionais no repertório
linguístico que os/as estudantes já trazem para a sala de aula. No excerto 5, essa ideologia é
entextualizada na concepção de que as línguas estrangeiras modernas devem ser aprendidas a
partir de práticas linguístico-discursivas e culturais que se adicionem a outras que o/a
estudante já possua em seu repertório, em língua portuguesa, línguas indígenas, línguas de
herança, línguas de sinais e outras; e, no excerto 6, na sugestão de que se acolham e se
legitimem os usos que dela [da língua inglesa] fazem falantes espalhados no mundo inteiro,
com diferentes repertórios linguísticos e culturais, o que possibilita, por exemplo, questionar a
visão de que o único inglês “correto”- e a ser ensinado – é aquele falado por estadunidenses
ou britânicos. Um primeiro olhar para a perspectiva de inglês como língua franca defendida na
apresentação do componente língua inglesa na versão vigente da BNCC pode nos instigar a
situar as práticas de ensino-aprendizagem do componente na perspectiva caracterizada por
13
Todos os demais destaques são meus.
Mignolo (2007) como decolonial. Isso porque, ao defender a não prerrogativa de falantes
nativos sobre os muitos usos do que chamamos de inglês e a legitimidade desses usos por
todos/as aqueles/as que o utilizam, a ideologia de língua franca assumida pela BNCC permitiria
o ensino-aprendizagem de inglês como “um espaço de contestação, de reivindicação dos
direitos da periferia, de subversão, e não de submissão” (RAJAGOPALAN, 2005, p. 155). No
entanto, esse olhar mais esperançoso, no sentido freireano do termo (FREIRE, 1992), logo se
desfaz quando nos deparamos com as habilidades estipuladas para o componente, que parecem
privilegiar a visão de texto(s) como unidade(s) autônomas (figura 4), e uma dimensão
intercultural pouco problematizadora. Justifico essas intepretações a partir das figuras 5 e 6.
REFERÊNCIAS
BRASIL, SEB/MEC. Base Nacional Comum Curricular. Versão Final. Brasília, DF,
SEB/MEC, 2018.
FIGUEIREDO, E. “Globalization and the global spread of English: concepts and implications
for teacher education”. In: GIMENEZ, T.; EL KADRI, M. S.; CALVO, L. C. S. (orgs.) English
as a lingua franca in teacher education: a Brazilian perspective. De Gruyter Mouton, 2018, p.
31-51.
GEE, J. P. “The New Literacy Studies; from ‘socially situated’ to the work of the social”. In
BARTON, D., HAMILTON, M. and IVANIC, R. (eds.) Situated Literacies: reading and
writing in context. London: Routledge, 2000. Chapter 11. Kindle Edition.
MIGNOLO, W. D. Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity
in politics. Gragoatá, n. 22, 2007, p. 11-41.
PERCIO, A.; FLUBACHER, Mi-Cha. 2017. “Language, education and neoliberalism”. In:
FLUBACHER, M. C.; PERCIO, A. (eds.) Language, education and neoliberalism. Critical
Studies in Sociolinguistics. Multilingual Matters, 2017. Bristol, UK: Multilingual Matters,
2017. Chapter 1. Kindle Edition.
PINTO, Joana Plaza. 2018. Ideologias linguísticas e a instituição de hierarquias raciais. Revista
da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S.l.], v. 10, p. 704-720, jan.
2018. Disponível em:
<http://www.abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/article/view/561>. Acesso em:
10.03.2018.