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Resumo
Neste texto apresento minha compreensão do papel que o conhecimento ocupa na
proposição de políticas curriculares. Na primeira parte, percorrendo diferentes teorias do
campo do Currículo, destaco o quanto cada uma delas traz de ressignificações, de
deslizamentos e de compartilhamento de sentidos, sempre parciais e localizadas
historicamente, no processo de significação de conhecimento. Na segunda seção
apresento minha compreensão dos sentidos a ele atribuídos em documentos curriculares
recentes que retomam a concepção da importância do conhecimento, da organização
disciplinar e da centralidade na sequência lógica dos conteúdos. Nesse movimento
teórico-metodológico, destaco a centralidade do conhecimento como tradição,
exercendo um papel estruturante das políticas. Operando na desconstrução da
possibilidade de o conhecimento desempenhar esse papel, defendo que as tradições são
produzidas por diferentes articulações entre demandas em disputa e não têm um caráter
racional capaz de, por si só, orientar as políticas curriculares no sentido da consecução
de certas finalidades educacionais. Na luta política por significação do conhecimento a
ser selecionado, não são as bases epistemológicas desse conhecimento que serão
defendidas, e sim demandas alicerçadas na manutenção de determinadas tradições, que
se articulam a outras tradições – sociais, científicas, pedagógicas, psicológicas – que
serão hibridizadas e expressas em novas reconfigurações. Entendendo currículo como
espaço de produção de significado, defendo a significação de conhecimento como
construção sócio-histórica que faz parte dessa produção. Por fim, a título de
considerações finais, argumento pela não intenção de me opor à tradição curricular da
centralidade do conhecimento, mas operar na desconstrução de suas bases e pôr em
marcha a disputa, razão da política.
não se possa afirmar uma homogeneidade de concepções, as teorias críticas, como são
designadas correntemente, questionavam a concepção de conhecimento referendada por
“regras e métodos previamente definidos nos campos disciplinares acadêmicos”
(LOPES; MACEDO, 2011, p.77). Presentes, ainda hoje, de forma significativa, as
teorias críticas colocam em pauta outras possibilidades de significação do
conhecimento, questionando as marcas das teorias curriculares instrumentais.
Princípios da Sociologia são incorporados ao campo curricular, disputando o espaço que
têm a Filosofia e a Psicologia. E o conhecimento, até então hegemônico na sua
perspectiva acadêmica, passava a ser entendido em uma associação direta ao poder
político-econômico.
No campo teórico dessa perspectiva, dois conjuntos de autores merecem
destaque. O primeiro deles, na perspectiva da educação popular, é Paulo Freire. Para
Freire, o conhecimento não possui um significado em si, sendo contextualmente
produzido nas lutas contra a opressão. Questionando métodos e possíveis
hierarquizações do conhecimento, o educador pernambucano não nega o diálogo com a
cultura acumulada historicamente que precisa ser devolvida de forma organizada e
sistematizada, como meio de garantir a reconquista do direito à palavra daqueles que a
possuem de forma não estruturada (FREIRE, 1983).
O segundo conjunto é formado por autores da perspectiva histórico-crítica.
Demerval Saviani e José Carlos Libâneo figuram com destaque, no Brasil, nessa
concepção na qual a centralidade dos conteúdos na escola permanece e os critérios de
seleção é que precisam ser questionados. Para Saviani e Libâneo, entre outros, os
conteúdos “incluem os conhecimentos sistematizados, as habilidades e hábitos
cognitivos de pesquisa e estudo, mas também atitudes, convicções e valores” (LOPES;
MACEDO, 2011, p. 88) selecionados nos limites de uma cultura essencializada. O
conhecimento, nessa perspectiva, é capaz de propiciar aos estudantes o acesso a
esquemas conceituais que são considerados imprescindíveis para o entendimento e
modificação da sociedade. Mesmo indicando uma superação de neutralidade do
conhecimento em função da sua construção sócio-histórica, o caráter de conhecimento
objetivo; a oposição entre conhecimentos acadêmicos, historicamente construídos e
legitimados e os conhecimentos de senso comum, não legitimados, são marcas que
permanecem como intimação no estabelecimento das políticas curriculares.
No caso brasileiro, o embate entre os educadores que defendem a educação
popular, apoiados na perspectiva freiriana, e os teóricos da pedagogia histórico-crítica
dos conteúdos ganha espaço. Desenvolvem-se estudos que enfatizam (a) a prática nas
escolas como particularidades, evidenciando uma cultura da escola; (b) a concepção de
professor reflexivo, defendendo a ressignificação do currículo formal pelo professor, na
intenção de anular os efeitos do currículo prescrito; (c) as histórias de vida dos
professores, defendidas por Ivor Goodson (1997), que precisam considerar os contextos
em que estão inseridas essas histórias; e (d) as pesquisas nos/dos/com os cotidianos, que
defendem as redes de conhecimento, argumentando que “os conhecimentos, em sentido
amplo, são tecidos em redes constituídas na inter-relação complexa de diferentes
contextos” (LOPES; MACEDO, 2011, p.161).
As concepções de cultura da escola, de professor reflexivo, de história de
vida dos professores e, de cotidiano, questionam a concepção de conhecimento como
valorização do “discurso do passado, dos valores nacionais e dos saberes acadêmicos,
entendidos como uma cultura comum” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 239). Grosso
modo, torna-se central a crítica à ideia de universalismo do conhecimento, e o currículo
é entendido como um conjunto não só de conhecimentos científicos, mas de práticas, de
crenças e de saberes que são trazidos para a escola pelos sujeitos que nela se constituem.
Os estudos de Michael Apple, que marcavam junto com Pinar (1989), o que se
convencionou chamar reconceptualização do campo do Currículo, pela primeira vez,
dirigem críticas ao entendimento de currículo baseado em critérios de seleção e às
teorias curriculares instrumentais, que enfatizam o planejamento curricular com vistas a
orientar a seleção e a ordem dos conteúdos em cada uma das disciplinas escolares e
acadêmicas. Problematizam, também, teorias curriculares de perspectiva crítica,
hegemônica à época, que colocavam em xeque a forma de organização curricular
disciplinar do conhecimento, entendida como “uma patologia do conhecimento”
(VEIGA-NETO, 1994) e responsável pela manutenção das desigualdades sociais
(GOODSON, 1997). Essas problematizações apresentam-se na forma de teorias que,
marcadas pelo hibridismo, abrem o caminho para a concepção de currículo como espaço
de produção de sentidos.
Designadas correntemente como teorias pós-críticas – hibridizadas em processos
constantes de reinterpretação e enunciadas muitas vezes de forma dicotômica –,
colocam sob suspeita a centralidade conferida ao conhecimento na proposição de
políticas curriculares. Nesse sentido, questionando a possibilidade de um repertório
partilhado integralmente a partir de um processo de reprodução, entendem o currículo
como espaço de produção de significado e o conhecimento, como construção sócio-
histórica que faz parte dessa produção. Tensionam dessa forma, o entendimento de
currículo como conteúdo e o de cultura como repertório de conhecimentos e valores a
partir do qual alguns itens são selecionados.
Vários autores de diferentes linhas de pesquisa vêm nos ajudando a entender
porque as questões culturais ocupam, cada vez mais frequentemente, o centro dos
debates curriculares. No Brasil, essa centralidade vem sendo defendida por Macedo
(2004, 2006), por Lopes (2005, 2009) e, por Veiga-Neto (2002, 2007), dentre outros
pesquisadores que entendem cultura como um processo contínuo de criação e não mais
como um produto que se possa essencializar. Nesse processo de criação, torna-se
necessário considerar (a) as relações de poder em uma perspectiva não verticalizada,
mas que, em diferentes arenas políticas, sujeitos se constituem na luta por tornar
hegemônica determinada concepção – a de conhecimento inclusive – dependente de
fechamentos contingentes e provisórios; (b) as identidades como não fixas, ou seja,
como processos de identificação, na medida em que qualquer fechamento das
identidades significa tentativas de apagamento das diferenças em troca da constituição
de um atributo universal: e (c) “o caráter construído e interpretativo” do conhecimento
(SILVA, 2000).
As teorias pós-críticas apontam a necessidade de questionar a ideia de
epistemologia de um campo disciplinar específico, argumentando que a definição de
conhecimento legítimo é parte de uma luta dentro e fora da escola e não uma parte
legitimada da cultura que é transportada para a escola.
dos sujeitos como cidadãos ativos” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 191) e que supor o
contrário do que essa concepção sugere é uma atitude minimamente ingênua.
O processo de revisão por que passam as concepções de conhecimento na
significação do currículo expressos em Diretrizes e outros documentos curriculares,
ainda hoje em vigor, retomam a concepção da importância do conhecimento, da
organização disciplinar e da centralidade na sequência lógica dos conteúdos. Criticando
o que designam por medo dos conteúdos, buscam “prescrever” um projeto de fixação de
identidade do aluno por meio do conhecimento.
Mais recentemente, a tradição da centralidade do conhecimento vem orientando,
por exemplo, a proposição de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que remete ao
registro do conhecimento/saber como um objeto que pode ser transmitido ou distribuído
igualmente a todos. Na proposição desse documento curricular, planejada sua conclusão
para junho de 2016, há a pretensão de uniformização curricular e de valorização da
testagem em larga escala como estratégia de controle. Enfatiza-se, assim, a concepção
de que, uma vez feita a seleção dos conhecimentos a serem ensinados, é possível
verificar, via avaliações centralizadas, o que efetivamente foi ensinado e aprendido,
pressupondo que a seleção, por si só, seja capaz de dar conta do planejamento curricular
e orientar os descritores da avaliação. O conhecimento é significado, ratifico, como um
objeto, um dado, uma informação, selecionado em uma cultura reificada. A tradição
curricular da centralidade do conhecimento surge como intimação capaz de garantir o
direito ao aprendizado e se apresenta como uma relação lógica clara, objetivada,
pressupondo um caráter racional e determinante na proposição de políticas curriculares.
na escola, como produção entre sujeitos em dadas relações de poder contextuais, leva à
produção de saberes/conhecimentos. Sujeitos diferentes, em contextos diferentes,
(re)interpretam, (re)significam os conhecimentos/saberes de formas diferentes, em
função de existências diferentes e, em múltiplos conflitos, disputam “a própria fixação
discursiva do que vem a ser conhecimento” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 244).
Essas considerações, que reúnem, em uma espécie de linhas gerais, as defesas
que sustento, levam-me, em primeiro lugar, a problematizar o caráter racional e
determinante da tradição da centralidade do conhecimento na proposição de políticas.
Nessa proposição, diferentes articulações entre demandas de comunidades disciplinares,
das equipes técnicas de governo, do empresariado, partidos políticos, associações,
instituições e movimentos sociais os mais diversos, impossibilitam que a tradição, por si
só, adquira um caráter racional e determinante, tornando-a dependente dessas disputas
que, em processos articulatórios (LACLAU, 2006), buscam orientar as políticas
curriculares no sentido da consecução de certas finalidades educacionais. Na luta
política por significação do conhecimento a ser selecionado, não são as bases
epistemológicas desse conhecimento que serão defendidas por sujeitos constituídos
antes da luta política, a partir dos conhecimentos que dominam ou da trajetória
profissional que defendem. Ao se constituírem como sujeitos na luta política, defendem
demandas alicerçadas na manutenção de determinadas tradições, mas essas vão se
articular a outras tradições – sociais, científicas, pedagógicas, psicológicas – que serão
hibridizadas e expressas em novas reconfigurações.
Em segundo lugar, ao entender essa tradição em seu caráter fluido, não racional,
não determinado, aceito a impossibilidade do fechamento da significação de
conhecimento e transformo sua significação em um horizonte constantemente adiado.
Entretanto, isso não significa diminuir a importância do conhecimento a ser
aprendido/ensinado nas escolas. Significa desconstruir a ideia de que qualquer seleção
pressupõe a existência de um conjunto de conteúdos do qual extraímos os legítimos.
Significa desconstruir a ideia de que o conhecimento está nos livros, nos planos de
ensino, na nossa formação acadêmica, nos programas dos vestibulares. O conhecimento
depende de uma reconfiguração a posteriori, considerando concepções de mundo, de
currículo, de política, de educação, enfim. O fechamento da sua significação, sempre
adiado, impede que se possa extrair algo para sempre fixado.
Essa concepção não diminui a importância do conhecimento a ser ensinado. O
que ela busca diminuir é a centralidade conferida à lógica do ensino de conteúdos que
desconsidera as lutas que se travam entre diferentes significados que a eles conferimos,
não apenas nas escolas, mas em diferentes contextos sociais. O que ela busca diminuir é
a ideia de que a seleção de conteúdos por si só possa dar conta do planejamento
curricular, desconsiderando que essa seleção é arbitrária e produzida em meio a relações
de poder que dela excluem tantos outros conhecimentos possíveis de serem ditos. O
que ela busca diminuir é a possibilidade de que, a partir dessa seleção de conhecimentos
disciplinares, se possa defender a ideia de um currículo nacional, desconsiderando a
pluralidade de saberes decorrente da pluralidade de desejos e intenções de uma
pluralidade também de atores sociais, na escola e fora dela. O que ela procura diminuir
é a ideia de saberes disciplinares desconectados de outras demandas sociais, em
permanente modificação. O que ela busca diminuir é a certeza de que essa seleção, por
si, só seja capaz de garantir o alcance de finalidades educacionais, como o direito de
aprender, no caso da BNCC, mas cumpre apenas o papel de transformar esse direito
legítimo em dever de aprender um determinado conhecimento.
A promessa de que o conhecimento selecionado possa vir a dar conta do alcance
dessas finalidades é uma promessa sem nenhuma garantia de ser cumprida porque não
está em nenhum lugar do presente, também não se encontra no futuro e nem depende de
um sujeito epistemologicamente capaz de ensinar e aprender esses conteúdos. Não
diminui, portanto, a importância do conhecimento, apenas se propõe a pensá-lo em
outras bases e a pôr em marcha essa disputa.
Referências Bibliográficas
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2011.
Resumo
Introdução
A defesa de uma base comum para o currículo foi reativada pelo Ministério da
Educação (MEC), em 2009, com o Programa Currículo em Movimento (BRASIL,
2009). Projetou-se como uma interpretação mais restritiva de currículo e de educação
com o envio do documento Subsídios para Diretrizes Curriculares Nacionais
falta à educação de “boa” qualidade. Pode-se dizer que a força da articulação política
(que condensa distintos projetos societários, diferentes demandas educativas não
atendidas) em torno da BNCC se assenta na crença da educação como totalidade ou na
leitura estrutural da sociedade como totalidade fechada, na qual a educação desempenha
a tarefa de salvação.
A noção de totalidade, para Laclau (2000, p. 104), “opera como princípio
subjacente de inteligibilidade da ordem social”, sendo seu status o de uma essência de
tal ordem que é preciso reconhecer por traz de variações empíricas suscitadas na vida
social, pois se trata de uma totalidade fundante, “que se apresenta a si mesma como um
objeto inteligível de „conhecimento‟, concebido, este último, como processo de
re/conhecimento” (Idem) (grifos do autor). De modo tal, no campo educativo, para esta
chave de leitura estrutural (ou da totalidade do social) haveria uma positividade própria
nos objetos e estes seriam passíveis de definição e descrição. Construir uma BNCC
incidiria em explicitar os objetos educativos (direitos de
aprendizagem/objetivos/expectativas/habilidades/conhecimentos, conteúdos), julgando-
se, com isso, poder reparar os problemas educacionais, àquilo que é vivido como uma
falta a fissurar o social, a impedir que outra educação e outra sociedade se realizem. O
nome BNCC perfaz, não obstante, um suplemento do que falta à educação atual e do
que (supõe-se) será garantido pela definição de expectativas de aprendizagem, que
Indicam que o/s estudante tem o direito de aprender determinados
conhecimentos em cada etapa. Isso não impede que os/as
professores/as antecipem, ou aprofundem posteriormente, as
aprendizagens previstas para determinada fase; apenas se está
sinalizando claramente a necessidade que estes conhecimentos sejam
efetivamente trabalhados até o final do ciclo indicado. (BRASIL,
2015, p. 98)
texto se produz nesta direção, na direção de uma educação sem fundamento, sem um
universal. Isso, a meu ver, significa lutar contra a concepção teleológica, rasa e neutra
de política curricular implicada no projeto societário comum sustentado por grupos
privados e agentes públicos ao clamarem pela garantia de conhecimentos essências a
todos através de uma base comum. Conectar educação e BNCC como garantia de
equidade é uma simplificação mistificadora desejosa de excluir da educação o que não
se pode controlar ou enclausurar, não se pode sequer saber. Desejosa de apagar a radical
diferença constitutiva da educação, que jamais cessa de comparecer nos contextos
educativos. É, sobretudo, uma tentativa de calar a multiplicidade de demandas em curso
a favor da escola como bem público objetivando legitimar uma intervenção não estatal.
Diferença, contexto e disseminação constituem radicalmente a possibilidade
mesma do viver e, quer gostemos ou não, a tarefa (impossível, diria Freud) de educar. A
BNCC, como projeto de equidade (de garantia de direitos à), é uma empreitada falida,
pois se há tentativa de controle e violência, há o texto em excesso que nenhuma base
pode fazer sucumbir plenamente, há différance desde sempre (e infinitamente) lá (numa
BNCC, numa sala de aula, numa escola), em qualquer lugar que possamos fantasiar o
controle.
Referências
Acontecimento no Contexto
Em diferentes empreendimentos filosóficos Derrida discute a desconstrução de
marcadores do logocentrismo/metafísica ocidental, buscando atentar para o caráter
estabilizador, e de aspiração a verdades absolutas, de distintas formas de pensar o
mundo, a vida. Dentre seus argumentos, aborda à leitura do mundo por meio do que
chama de “texto em geral” (Derrida, 2001), uma textualização do mundo, que ultrapassa
limites de bibliotecas e livros, que não se permite conter ou coordenar por uma verdade
ou significado transcendental. Um todo texto dinamizado pela diferença, pela traição
interpretativa, pela impossibilidade de acesso ao mesmo. Neste texto, especificamente,
atento para a perspectiva de contexto, que Derrida (1991) já argumentava ser uma
questão pouco tratada, mantendo em mente sua articulação com as discussões de escrita
e, portanto, différance (Derrida, 1991). Faço isso com vistas a acionar a discussão de
conhecimento, que argumento ser estruturado em diferentes correntes do pensamento
curricular como via de constituição de sujeitos hábeis a decidir conscientemente em
contextos previamente concebidos.
Derrida (1991) pondera que um contexto é uma construção interpretativa,
baseada na suposição de um consenso implícito, mas estruturalmente vago, que visa à
coordenação do que se deve tratar entre seus limites e/ou a “prosseguir os diálogos no
horizonte de uma inteligibilidade e de uma verdade do sentido” (Derrida, 1991, p.350),
de modo que regras ou acordos gerais possam se instaurar. Para ele, um contexto nunca
é absolutamente delimitável, não podendo, portanto, ser saturado por qualquer
conhecimento ou cálculo anteriores. Esta não-saturação estrutural decorre, segundo o
filósofo (Derrida, 1991), da dinâmica de ruptura do próprio contexto. Isto ocorre uma
vez que a iterabilidade - repetição e citação daquilo a que se supõe referir - leva a que,
por mais que se busque fidelizar e contextualizar a citação, jamais se consiga manter
intacta a significação daquilo que se pretende reproduzir. Nessa perspectiva, destaca-se
o caráter inconsciente, singular e intenso da tradução como iteração/escrita, tendo em
vista seu dinamismo produtivo e, simultaneamente, sua capacidade de fender aspirações
homogeneizantes de escrita/textualização, de partir pretensões contextuais plenas.
Entender a iteração/tradução como um meio de articulação e traição irresistível e
permanente é pontuar que os contextos são (in)fundados fragilmente, porque
constituídos por uma fé (Derrida, 2007) de se estar tratando da mesma coisa na relação
com dado significante. E, ainda, concebê-los como fraturados em sua estrutura, pois, a
repetição aditiva da différance leva à falência os intentos de menção ao referencial, ao
que se supõe como origem ou espaço comum do próprio contexto, que é dilacerado pelo
caráter diferencial dos sentidos articulados sob um mesmo nome/contexto/significante.
Dessa forma, ao mencionar o contexto já não estamos nele ou o acessando, mas estamos
adulterando a ideia daquilo que mencionamos, traindo, engendrando outros contextos,
vivendo noutra contextualização.
A menção é, por conseguinte, ruptura, diferimento, iteração no sentido mesmo
da alteridade como irrupção, é outro contexto. Para Derrida (1991), a iteração, marcada
pela différance, altera e faz com que algo novo aconteça, contamina a intenção e faz
com que todo ato performático/de fala/escrita/tradução expresse algo diverso do que se
pretendia dizer. Nessa perspectiva, sustenta-se que todo enunciado está exposto à
ruptura contextual. Derrida (1991) pontua que a iterabilidade, ao mesmo tempo em que
fazer potencial, nesse caso, seriam legadas pelo conhecimento. Tal leitura possibilita a
conjectura de que a cidadania, a subjetividade e as formas de conceber o mundo estão
condicionadas a um conhecimento não obtido, mas virtualmente proposto pelas
DCNEM. Um conhecimento capaz de detonar a precipitação de um sujeito polivalente e
portador de uma potencialidade crítica definida pelo que é definido como crítica.
Sob a perspectiva das DCNEM (1998), um conhecimento específico é capaz de
produzir determinado sujeito ajustado para agir em todos os contextos supostos como
garantidos. Tal conhecimento é assumido como aquele encarregado de viabilizar o
acesso a supostos “significados verdadeiros sobre o mundo físico e social” (Brasil,
1998, p. 27), conhecimentos considerados competentes à formação de sujeitos capazes
de analisar e produzir soluções, de orientar à decisão correta frente aos desafios, de
proporcionar adaptabilidade a situações novas (Brasil, 1998, p.27). A aquisição de tal
conhecimento é defendida como fundamental à produção de sujeitos, pela escola e
através dos conhecimentos disciplinares. É justamente pela falta de um tal sujeito que se
afirma a importância de que tal conhecimento seja aprendido.
O trabalho e o emprego, como possuidores de significados fixos, são assumidos
como contextos prioritários para o trabalho curricular, sendo entendidos como contextos
nos quais o conhecimento deve desdobrar competências com potencial preparatório para
que o sujeito em diferentes situações no “mundo das ocupações” (Brasil, 1998). Desta
forma, é defendido que o conhecimento não pode ser fragmentado, como em um
modelo disciplinar tradicional, mas deve ser interdisciplinar e contextualizado (Brasil,
1998, p.37), apropriando-se dos conhecimentos das diferentes disciplinas para a
formação de sujeitos competentes para atuar em mais distintos contextos.
Nas DCNEM de 2012, ainda que mobilizadas pela missão de atender as
necessidades não atendidas pelas DCNEM de 1998, é defendida a necessidade por
maior qualificação de sujeitos para o desenvolvimento industrial do país. Nesse sentido,
a formação do sujeito ideal para o contexto privilegiado do trabalho e das mudanças
contínuas deste trabalho, é congregada nas missões de oportunizar a inclusão social e a
cidadania, o que possibilita a leitura de que a produção de sujeitos para o acertado
mundo do trabalho é, necessariamente, formar cidadãos/trabalhadores autônomos,
críticos e reflexivos, que saibam lidar com os desafios vindouros de mundo que é
assumidamente dinâmico.
Para dar conta de constituir condições ideais, a escola passa a ser lida como
contexto primordial de difusão “sistemática dos conhecimentos científicos construídos
pela humanidade” (Brasil, 2012, p. 150). Apesar disso, ao longo do texto é defendida a
necessidade de que o sucesso da educação, da produção do conhecimento, diz respeito à
relação que a escola precisa estabelecer com o projeto de vida dos estudantes (Brasil,
2012, p.155). Assim como nas DCNEM de 1998, as de 2012 partem dos princípios da
interdisciplinaridade e contextualização como forma de assegurar que não só o
conhecimento científico, aos quais estariam relacionadas as disciplinas escolares, é
fundamental à produção de sujeitos competentes, como a produção de sentidos em
contextos privilegiados controla as formas de operação de tais conhecimentos com os
sentidos/significados adequados, supostos como ideais para a sociedade atual.
Uma visão de conhecimento científicoviii integrado, nesse caso, é tomada como
pressuposto fundante das formas de conhecer circulantes no currículo. A aplicação
contextual deste conhecimento asseguraria o fechamento do hiato entre a teoria e a
prática, produzindo sujeitos conhecedores daquilo que é desejado contextualmente
(sociedade, trabalho).
A apropriação de conhecimentos científicos se efetiva (...) com
contextualização que relacione os conhecimentos com a vida, em
oposição a metodologias pouco ou nada ativas e sem significado para
os estudantes. Estas metodologias estabelecem relação expositiva e
transmissivista que não coloca os estudantes em situação de vida real,
de fazer, de elaborar. (Brasil, 2012, p. 167)
O conhecimento científico interdisciplinarizado em sua contextualização, ao
longo dos textos das DCNEM (Brasil, 1998; 2012), sinaliza a expectativa de um
conhecimento capaz de constituir subjetividades para operar contextualmente. Uma
perspectiva de conhecimento limitante (não só ao conhecimento científico, como a uma
de suas versões) e a contextos considerados garantidos, ou mesmo passíveis de serem
saturados em termos de possibilidades de acontecimento, à experiência do sujeito em
questão.
Penso tais perspectivas como passíveis de aproximação às leituras de mundo
recuperadas da teorização curricular, uma vez que também focalizam um conhecimento
prioritário como forma de projeção subjetiva contextual. Argumentos que, a meu ver,
posicionam o debate curricular sobre conhecimento no âmbito do controle do sujeito e
das formas de ler o mundo na escola, e para alem dela. Abordagens que restringem
mesmo aquele conhecimento suposto como básico às formas de aplicação em contextos
desejáveis, ideais para o sujeito forjado na idealidade de um currículo que não pode não
ser calculado (de cima para baixo ou de baixo para cima; interdisciplinar, mas
contextualizado adequadamente).
Considerações finais
Supor um dado conhecimento como onipotência funcional para todo contexto
(da escola, do trabalho, da família, da sociedade etc) incide em um sintoma de tentativa
de cálculo (e, portanto, exclusão) sobre as formas de conhecer o mundo, de lidar com o
outro desconhecido, de aplacar o questionamento desconhecido de uma alteridade “toda
outra” (Derrida, 2006) que impõe, continuamente, a necessidade de revolvermos nossas
formas de conhecimento, sejam elas quais forem, para “dar conta” da resposta aquilo
que se supõe, em uma linguagem opaca, como a inquisição a que não se pode escapar.
Isto é dizer que não só o contexto não é algo calculável, como o conhecimento possível
e passível a operação nele não é uma propriedade carregada por um sujeito de
razão/consciência transcendental. Uma vez que o contexto não pode ser saturado por
razão alguma, não pode ser recuperado, o conhecimento só pode ser considerado como
aquilo que resulta da decisão de resposta de uma subjetivação (Derrida, 2006). Ou seja,
apesar de toda tentativa de controle, o que é reunido e tomado como conhecimento
plausível para que se responda ao que se impõe como questionamento (não se sabe,
nunca, onde e como) reside no momento da loucura, na decisão em resposta, ocasião em
que supomos ser precipitada a subjetivação, o sujeito.
Apoiando-me na incitação pós-estrutural de Lopes e Macedo (2011) em pensar o
currículo como “simplesmente um texto” e, nesse sentido, retomando a preocupação
derridiana que mobiliza estas linhas, argumento que tanto perspectivas tradicionais
quanto críticas tendem a supor o conhecimento e o contexto como passíveis de controle
e racionalização. Enfatizo esta leitura tendo em conta o caráter estadocêntrico que
marca visões macroestruturais, defensoras da verticalização do poder, de cima para
baixo, em termos de controle sobre o contexto da prática escolar, sobre a produção de
conhecimento. E, também, as perspectivas de emancipação e resistência, que, em defesa
ao caráter vívido e latente da experiência subjetiva no contexto da prática escolar,
reiteram a verticalidade do currículo ao conceber a prática como capaz de se impor
como resistência, de baixo para cima, como contra-hegemonia (Giroux, 1997), também
através de um conhecimento definido como possuidor de propriedade capaz de produzir
determinado sujeito apto, capaz, constituído para contextos pré-estabelecidos, pautados
em visões de sociedade, trabalho, comunidade, emancipação, mundo. Uma visão de
conhecimento suposta como capaz de transcender singularidades, saturar contextos
(des)conhecidos com dada potência à resolução de problemas, afirmar competências ou
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Educação, v. 11, n. 32, p. 285-296, 2006.
i
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio
ii
Em http://www.consed.org.br/index.php/comunicacao/noticias/726-con…o-lemann-realizam-
seminario-construindo-uma-base-nacional-comum. Acessado em novembro de 2014. Refere-se à
palestra de Paula Louzano no Seminário Base Nacional Comum em debate: desafios, perspectivas e
expectativas, no dia 9 de outubro de 2014, em Brasília/ DF
iii
Desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT), Câmpus de Rondonópolis (MT), intitulada Articulações discursivas por uma BNCC:
a nomeação do currículo como tentativa de estabilidade e controle na educação.
iv
Sob coordenação da Prof.ª Dra. Alice Casimiro Lopes, no Programa de Pós-Graduação (PROPED) da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), endereço eletrônico: www.curriculo-uerj.pro.br
v
Ver: http://movimentopelabase.org.br/
vi
http://www.fundacaolemann.org.br/
vii
Vide nota número 6.
viii
Para além de discordar de um conhecimento pressuposto ao currículo, à decisão, minha referencia à
defesa de “um” tipo de conhecimento científico, defendido sem críticas pelas DCNEM (Brasil, 2012), está
apoiada, em concordância com Lopes (2015), no argumento bachelardiano de que sequer o que
chamamos por ciência pode ser tomado como uno, haja vista a ciência viver seu próprio processo de
crítica e construção. Igualmente, é criticável a expectativa realista de ciência. Para maior
aprofundamento na discussão, ver Lopes (2015).