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J 16 a 29 de abril de 2014 * jornaldeletras.sapo.

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* 27
j u l i e ta m o ng i n h o

Sentidos múltiplos

A
primeira vez que angustiante e o silêncio. Quando
pude escrever a vamos pronunciar as palavras
palavra liberdade comuns somos abalroados
foi em latim. pelo ruído da língua fabricada
Libertas/libertas/ para nos entontecer. Abrimos
libertati/libertate a boca, mas de espanto, será
etc. etc. que as nossas palavras ainda
Já contei esta história tantas existem? Não guardaremos
vezes, que a professora de latim uma língua morta e enterrada,
do meu 6º ano mudou outras pior do que o latim, contrária
tantas. Ora entra na sala com ao espírito empreendedor e
um sorriso, ora de má catadura. ao desígnio nacional? Uma
Ora, sub umbra imaginaria língua antipatriota? O Pessoa
arboris, solta os cabelos, acende de bronze, tão catita ali ao
um cigarro e anuncia a boa Chiado, não falará já chinês ou
nova, ora nos manda fazer o mercadês? As fotografias em
exercício só para nos castigar. que aparece eterno por esse
Certo é que pela professora foi mundo fora não serão engenho
pronunciada a palavra revolução, suficiente, não substituirão com
o que equivalia a cometer vantagem as irresponsabilidades
um pecado capital. A palavra que os heterónimos andaram a
pertencia à extensa lista das que escrever? Quanto é que custou a
nos tinham ensinado a calar tinta com que pintou a papelada?
sem percebermos porquê, pois a E a papelada, sim, quanto é que
explicação já seria, em si mesma, custou?
subversiva. Ser subversivo era O pior é que ao abrir a
como ter uma doença incurável boca para não dizer nem
ou esquecermo-nos da letra do ai nem ui, começamos a
hino da Mocidade, ou mastigar a duvidar da nossa própria voz.
hóstia. No fundo era não honrar Será que ainda nos sairão
pai e mãe e todos os legítimos sons legíveis da garganta,
superiores, sendo todos os capazes de se contrapor à
superiores indiscutivelmente crueldade? Quarenta anos
legítimos. Merecia castigo depois. Quarenta, assim, por
incomparável, no mínimo a extenso, não é um número,
expulsão para o purgatório, a ver é uma palavra viva. Vinte e
se, em penitência, começávamos cinco não é um número, são
a apreciar a placidez do cantinho três palavras à procura de
do céu onde decorria a nossa sentido. Sentidos múltiplos,
vida arrumadinha na gaveta das libertados de uma ordem
sobras. natural. Justiça, alegria,
LIMA CARVALHO
A professora de latim, estranhar, caminho, nós,
reacionária ou democrata, deu desejo, duvidar, aventura, Classe burguesa após o 25 de Abril dando cambalhotas (réplica da pintura realizada
a notícia. Tinham-nos mudado futuro, desobedecer, propor, no painel colectivo de 1o de Junho de 1974)
de país antes de crescermos o inventar, limpo, boa-fé.
suficiente para morrermos de “Tornemos nós ao simples, ao
guerra, ou de pasmo. A quinta- sensato, ao denso e intenso uso
feira de Abril, essa, é inequívoca das palavras” (Hélia Correia).
como uma varinha de condão, “Poetas cronistas narradores/ tempo novo/Sem mancha
tocou-nos e desatámos a viver, acudam ao povo que matam” nem vício//Como a voz do
O CLEPUL, Centro de Literaturas
a falar, a descobrir o poder da (Marta Fialho). mar/Interior de um povo// e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade
palavra. Como página em branco/ de Letras da Universidade de Lisboa,
atribui em 2014, com patrocínio de mecenas anónimo, o

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A aula seguinte, entre as Torrebela, documentário Onde o poema emerge//Como
nove e meia e as dez e vinte da realizado pelo alemão arquitectura/Do homem que

Prémio Jorge
manhã, completou a descoberta. Thomas Harlan, produzido ergue/Sua habitação”.
A turma está sentada nos lugares pela cooperativa Era Nova, As reportagens do dia
do costume. A professora de sobre o tempo da ocupação da 25 de Abril - do jornalista
inglês à secretária, com um rádio herdade pelos trabalhadores Adelino Gomes, para a RTP, dos

de Sena 2013
ligado. Do rádio sai o silêncio. organizados em cooperativa. fotógrafos Eduardo Gageiro,
Da boca da professora o silêncio Hoje a Torrebela, designada Alfredo Cunha e Carlos Gil.
sai. Nós, mudos e quedos. por Torrebela Hunting, é uma Coro dos Tribunais, o primeiro
Ouvia-se a lentidão das árvores, coutada de caça, que anuncia disco de Zeca Afonso em
um ou outro espirro e a espera. “Batidas de perdiz, pato e faisão. liberdade (1975). Inclui, entre
No Algarve o defunto regime Manhãs bem passadas com outros, o tema O que Faz Falta. A O prémio, com o valor de 5000 €, distinguirá
conseguira cortar a emissão do almoço nas antigas cavalariças falta que ele nos faz. uma monografia édita ou inédita, publicada ou apresentada
RCP, aguardava-se que fosse do palácio”. O que diz Molero, romance em 2013, ou uma realização de especial relevo no
retomada a qualquer momento. O poema que Sophia de de Dinis Machado, publicado âmbito do estudo e projeção da obra do autor.
Cinquenta minutos suspensos da Mello Breyner Andresen em 1977. “Um livro-chave Os originais devem dar entrada até 15 de maio de 2014 no Centro.
palavra. escreveu no dia 27 de Abril do nosso tempo”, dele disse
Hoje recordo com mais de 1974, chamado Revolução: Eduardo Lourenço. Luiz Pacheco
nitidez esse segundo tempo, “Como casa limpa/Como chão definiu-o: “uma alegria enorme
o idioma mudo. É que parece varrido/Como porta aberta// quase insensata”. Foi como se Regulamento em: www.clepul.eu
termos reaprendido a espera Como puro início/Como definisse o 25 de Abril. J

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