Você está na página 1de 511

KARL MARX:

A CRÍTICA DESAPIEDADA DO EXISTENTE


Nildo Viana

KARL MARX:
A CRÍTICA DESAPIEDADA DO EXISTENTE
© by Nildo Viana

Coedição:
GPDS
Grupo de Pesquisa Dialética e Sociedade.
Universidade Federal de Goiás, Campus II, FCS –
Caixa Postal 131 – CEP: 74.001-970.

Conselho editorial:
Dr. Cleito Pereira dos Santos
Dr. Edmilson Marques
Dr. Lucas Maia
Dr. Nildo Viana
Dra. Veralúcia Pinheiro

Ficha Catalográfica
VIANA, Nildo.
Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente/Nildo Viana. Florianópolis, Bookess, 2016.
506 p.
ISBN: 9788580452198

1. Karl Marx. 2. Marxismo - Teoria. 3. Materialismo Histórico. 4. Dialética Marxista. 5. Teoria Marxista.
6. Capitalismo.
CDD 300-320

Índices para catálogo sistemático:

1. Sociologia. 2. Sociologia Clássica. 3. Sociologia Marxista.


SUMÁRIO

07 – Introdução

25 – Natureza Humana e Humanismo

59 – Alienação, Alheamento e Fetichismo

97 – Materialismo Histórico, Modo de Produção e Luta


de Classes

161 – A Crítica da Política: Sociedade Civil e Estado

193 – A Teoria da Consciência e das Representações

235 – A Crítica das Ideologias

285 – A Dialética Materialista

331 – O Capital: Teoria do Modo de Produção


Capitalista
371 – Autoemancipação e Revolução Proletária

411 – A Sociedade Comunista

453 – Marx, Crítico do Pseudomarxismo

489 – Considerações Finais

497 – Referências

6
INTRODUÇÃO

A crítica arrancou as flores imaginárias


que enfeitavam as cadeias, não para que o
homem use as cadeias sem qualquer
fantasia ou consolação, mas para que se
liberte das cadeias e apanhe a flor viva.
Karl Marx

Ao se deparar com esta obra, um leitor poderá


perguntar a razão de escrever mais um livro sobre Karl
Marx, já que existem diversas obras sobre seu
pensamento. A razão de ser da presente obra é que, apesar
de tantas obras já escritas sobre este pensador (a maioria
esgotada, desatualizada e de difícil acesso), Marx ainda
pode ser considerado, como colocou Martin Nicolaus, um
“desconhecido” (NICOLAUS, 1969), embora ele mesmo
não tenha demonstrado o conhecer direito. Essa é a
justificativa para a presente obra, tentar reconstituir o
pensamento de Karl Marx em sua totalidade e livrá-lo das
falsas interpretações, das deformações, das simplificações
às quais foi submetido.
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Entre o leitor e o autor existem inúmeras mediações.


Em alguns casos estas mediações podem ser obstáculos
para a compreensão do pensamento de determinado autor.
Deixando de lado as simplificações rotineiras dos manuais
e adversários de determinado autor ou concepção, há um
processo de simplificação até por parte daqueles que
defendem as ideias de algum pensador e outros que fazem
interpretações tendenciosas para encaixá-lo em seus
interesses, objetivos, concepções ou, ainda, aqueles que
fazem leituras mediadas por outros, principalmente os
intérpretes canonizados e os manuais. Este processo cria,
para os leitores subsequentes, determinada predisposição
mental na leitura que é confirmar o que já foi dito ou
entender o que é de difícil entendimento sob forma mais
fácil, ou seja, a partir da interpretação anteriormente
existente.
Isso é mais verdadeiro e grave no caso de
pensadores polêmicos, inovadores, envolvidos em lutas
políticas. Uma camada obscurante entre leitor e autor pode
emergir a partir de interpretações canonizadas que
deformam o pensamento de determinado pensador. A
8
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

existência e proeminência destas interpretações


canonizadas possuem múltiplas determinações, entre elas
a pouca leitura ou não-leitura das fontes, bem como má
leitura, desconhecimento de obras e simplificação de
afirmações, descontextualização de trechos e obras, entre
diversos outros problemas que poderiam ser resolvidos
com uma leitura rigorosa. Porém, além destas
determinações, existem outras mais importantes e
decisivas, tais como os valores, concepções, sentimentos,
dos intérpretes e leitores, bem como influência social e um
relativo consenso que se instaura em torno da
interpretação canonizada.
Este é o caso de Karl Marx. Um autor que poucos
leram. Um número ainda menor fizeram leituras rigorosas
de suas obras. Isso, ao lado de outras de outras
determinações, abriu caminho para a deformação do seu
pensamento e a transformação desta em verdade
inquestionável. A origem disso tudo se encontra na própria
origem do marxismo e seu desenvolvimento histórico. O
marxismo original de Marx e Engels acabou sendo
substituído por uma concepção oposta a destes autores e
9
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

por isso pode ser chamada de pseudomarxismo. Durante


sua vida, Marx já percebeu esse processo e por isso
proferiu a famosa frase “tudo que eu sei é que não sou
marxista”.
A social-democracia alemã nascente foi a primeira
forma de deformação da concepção de Marx. Engels, em
parte, colaborou com esse processo. O pensamento de
Marx foi simplificado e deformado tanto pelos adversários
quanto pelos supostos seguidores. Marx foi interpretado de
forma evolucionista, economicista, cientificista e sob
diversas outras formas menos influentes, mas geralmente
de acordo nestes aspectos. A segunda forma de
deformação do pensamento de Marx, a mais poderosa e
até hoje hegemônica, foi o bolchevismo, através
principalmente da obra de Lênin (e, junto com ele, Stálin,
Trotsky, Mao Tse-Tung, entre outros). Nessa abordagem,
bastante semelhante à anterior e que lhe reforçava a
influência, Marx está de acordo com quase todos estes
elementos, acrescentando, no entanto, a questão do caráter
voluntarista para se encaixar na doutrina do partido de
vanguarda e outras teses complementares.
10
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Porém, todas estas interpretações de Marx são


extremamente pobres e a simplificação do seu pensamento
apenas mostra o caráter simplista dos simplificadores.
Outras deformações ocorreram e se avolumaram, contendo
pontos semelhantes e algumas diferenças de detalhes ou
foco. A discussão entre a existência ou não de oposição
entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade” é apenas
um exemplo das interpretações equivocadas que buscam
ganhar um pensador influente para suas teses1.
Porém, a história das interpretações do pensamento
de Marx não viveu apenas de deformações e
simplificações. Alguns autores tentaram interpretar Marx
de forma mais rigorosa e sem a predisposição mental

1
A ideologia do “corte epistemológico” entre “jovem Marx” e “Marx
da maturidade” foi produzida por Louis Althusser (1979) e visava
com isso se adequar à hegemonia estruturalista (o estruturalismo
como ideologia dominante nas ciências humanas e na filosofia), além
de manter seu compromisso com o PCF – Partido Comunista
Francês, de forte influência stalinista, reinterpretando Marx e
colocando-o como anti-humanista, científico, entre outras
características que são adequadas ao estruturalismo e stalinismo, mas
não ao pensamento de Marx. Outros se utilizaram de tal divisão para
defender o “jovem Marx”, humanista e teórico da alienação
(conceito interpretado geralmente de forma equivocada), como os
religiosos que queriam se apropriar do seu pensamento.
11
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

problemática que se formou em torno de suas obras, de


acordo com interesses e necessidades incompatíveis com o
espírito de sua obra. Assim, autores como Labriola (1979),
Korsch (1977; 1983), e, em menor grau, Lukács (1989),
Mondolfo (1967), Rühle (1943). Claro que isso não quer
dizer que em sua totalidade, tais obras retomaram o
pensamento autêntico de Marx, pois algumas são muito
sintéticas ou apresentam uma concepção mais panorâmica.
Porém, elas resgatam aspectos essenciais do pensamento
de Marx esquecidos e abandonados pelo pseudomarxismo.
Karl Marx é um dos pensadores mais complexos na
história do pensamento ocidental. Além da complexidade,
há o elemento crítico-revolucionário de seu pensamento,
que nem todos os leitores conseguem compreender. O
nosso objetivo na presente obra é um grande desafio:
apresentar sinteticamente e de forma acessível um
pensamento extremamente complexo, resgatando o seu
caráter crítico-revolucionário, como já colocava Korsch
(1977). O pensamento de Marx é essencialmente crítico,
mas não se trata de qualquer crítica e sim a partir de um
fundamento que é revolucionário, radical, que vai até a
12
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

raiz, e “a raiz para o homem é o próprio homem” (MARX,


1968).
O significado do termo crítica, no pensamento
de Marx2, remete à posição segundo a qual a crítica não é
um objetivo em si mesmo, mas é o pressuposto de algo.
Nesse sentido, a crítica não é um fim, mas tão-somente um
meio. Ela é um pressuposto de algo e este algo é que é o
elemento fundamental. Para entender o significado da
crítica é preciso entender sua estrutura e seu fundamento.
A sua estrutura é a superação e seu fundamento é o
proletariado, como agente da transformação social radical
que gera a emancipação humana. Trata-se da superação
das representações cotidianas ilusórias e das ideologias
(ou seja, de todas as formas de falsa consciência) e da
realidade que gera tais formas de consciência ilusória (o
modo de produção capitalista, a sociedade capitalista com
seu processo de exploração, dominação e opressão
fundado na divisão social do trabalho que gera classes

2
Uma discussão sobre o conceito de crítica e suas raízes filosóficas,
pode ser vista em Assoun e Raulet (1981), apesar de alguns
problemas interpretativos.
13
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sociais antagônicas). Essa superação já manifesta o seu


próprio objetivo: a revolução, a transformação total e
radical das relações sociais. Tal crítica com toda a sua
radicalidade não é, no entanto, um objetivo em si mesmo,
não possui apenas caráter destrutivo e sim construtivo.
Busca destruir as ilusões e a realidade que gera tais ilusões
e, ao mesmo tempo, constituir uma nova realidade na qual
não haja necessidade de ilusões. Contudo, isso não pode
ocorrer apenas com um ato de vontade, pois essa
superação, transformação, constituição do novo em
substituição ao velho, requer um fundamento. A crítica
revolucionária não pode surgir do nada, ela necessita, para
ser realmente o que se propõe ser, um fundamento e este é
o proletariado, tal como definido por Marx3. Podemos,
pois, dizer que a crítica é um projeto de superação das
ideologias e consciência ilusória e da realidade social que
as constituem cujo objetivo é expressar a perspectiva do
proletariado visando contribuir com seu projeto histórico,

3
A concepção marxista de proletariado será expressa adiante e a
necessidade de recordar isto é apenas devido ao fato das
deformações do pensamento de Marx também gerou a deformação
de seus conceitos, inclusive o conceito de proletariado.
14
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

a revolução social que constitui uma nova sociedade, pós-


capitalista, fundada no “autogoverno dos produtores”, a
associação revolucionária que realiza a emancipação
humana.

Assim, o pensamento de Marx envolve dois


aspectos inseparáveis: a crítica da realidade existente e das
ilusões que ela gera, por um lado, e a expressão da
potencialidade de engendramento de uma nova sociedade
no interior da atual, cujo agente e embrião é o
proletariado. Isso significa ir além do capitalismo no
interior do capitalismo, ou seja, compreender aquele ser
que faz a ponte entre o presente e o futuro: o proletariado.
Desta forma, uma das razões da dificuldade de
compreender o marxismo é que o mais comum na mente
das pessoas, até aquelas que dizem querer transformação
social ou mudanças, etc., é o presentismo, ou seja, não
conseguir superar a sociedade presente, mesmo quando se
propõe a fazê-lo. Por isso, ao invés de pensar uma
transformação radical da totalidade da sociedade existente,
pensam, no fundo, em mudanças dentro dessa sociedade,

15
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

em alterações nesta, supondo que isso seria o projeto de


nova sociedade pensado por Marx. Claro está que
ideologias diversas vieram para aumentar mais ainda tal
dificuldade de pensar o radicalmente novo, bem como
interesses e usos do pensamento de Marx para outros
objetivos. Assim, o comunismo, de sociedade
radicalmente diferente, se torna uma caricatura muito
distante do projeto original. Em lugar de uma nova
sociedade, emerge mudanças no interior da atual
sociedade sob nome de “socialismo”, “comunismo”, entre
outros, confundido agora com “distribuição de renda” (o
que pressupõe relações de produção e distribuição
capitalistas, ou seja, a manutenção do que existe),
“estatização dos meios de produção” (o que pressupõe
Estado, fruto da luta de classes, o que significa a
permanência da existência de classes sociais), entre outras
formas de confundir o projeto comunista com uma
proposta de capitalismo reformado. Estas e outras
deformações do projeto original de Marx sobre o
comunismo é um dos elementos que retiram a radicalidade
do seu pensamento e reforçam o presentismo.
16
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

O proletariado, por ser a classe da sociedade


atual que traz em si a sociedade do futuro, articula
presente e futuro. Nega o presente em nome do futuro e
por isso se nega a si mesmo: o proletariado é a abolição da
sociedade de classes, abolição de si mesmo e das demais
classes e, por conseguinte, a forma de emancipação
humana. O proletariado é a negação presente do presente e
afirmação do futuro no presente. Todas as concepções
reformistas, revisionistas e supostamente revolucionárias
buscam negar essa característica e elemento principal do
pensamento de Marx, pois é justamente graças a ele que se
torna impossível os compromissos com a sociedade
existente. Daí a necessidade de negar o proletariado como
sujeito revolucionário, seja criando substitutos,
acrescentando outros, seja colocando sua “incapacidade”
de se autolibertar e produzir a emancipação humana.
Obviamente que outros recusam o caráter “político”
(revolucionário) do pensamento de Marx e o colocam
como apenas um “cientista”, “filósofo”, etc. Tudo isso
vem para retirar a radicalidade do pensamento de Marx e,
por conseguinte, seu caráter crítico-revolucionário.
17
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Ninguém pode compreender um pensador se se recusa a


aceitar seus pressupostos, suas posições, etc. Logo, recusar
a radicalidade do pensamento de Marx significa renunciar
a compreendê-lo.

Para ficar mais fácil a compreensão do que


estamos dizendo, talvez seja suficiente explicitar o que
significa para Marx a transformação social. Não se trata de
mudanças superficiais, de alteração de elementos da
sociedade atual, nem de grandes reformas na mesma.
Trata-se de algo muito mais profundo, a transformação de
uma forma de sociedade em outra. A passagem do
feudalismo para o capitalismo é um exemplo. O modo de
produção feudal é radicalmente disto do modo de
produção capitalista, assim como a cultura, as instituições,
as crenças e ideologias, eram radicalmente distintas. A luta
travada pela burguesia contra as relações de produção
feudais, as ideologias e instituições da sociedade feudal,
ajudam a perceber isso. Os costumes, a cotidianidade, a
cultura em geral, as relações sociais no seu conjunto, as
relações de produção e forças produtivas, tudo isso

18
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

transformado de forma profunda. Uma mudança que é


difícil compreender e se existisse uma máquina do tempo,
aí alguns poderiam ter a percepção da radicalidade da
mudança. No entanto, este exemplo é ainda algo pequeno
diante da radicalidade da mudança pensada por Marx. Isso
se deve ao fato de que se o feudalismo se distingue
profundamente do capitalismo, ainda tem alguns pontos
semelhantes. Basta citar a existência das classes sociais
(distintas, mas significa a existência de exploração,
dominação, divisão social do trabalho, etc.) para ver que,
embora sob formas distintas, determinadas relações sociais
possuem semelhanças. A transformação social pensada
por Marx é muito mais radical e profunda, pois a nova
sociedade que substitui o capitalismo é ainda mais distinta
desta que o feudalismo (ou o escravismo ou ainda outras
formas de sociedade que existiram, incluindo as
sociedades simples ou “comunismo primitivo”), pois
rompe com a divisão social do trabalho, a exploração,
dominação, alienação, opressão. Logo, o modo de
produção comunista é tão distante do modo de produção
feudal quanto do modo de produção capitalista, bem como
19
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

a cultura, os valores, os sentimentos, os costumes, as


formas de organização social, são radicalmente distintos.
Por isso é difícil imaginar e mais difícil ainda se não
tivermos a percepção dessa radicalidade acima exposta,
pois sem isso fica fácil confundir revolução com reforma e
comunismo com capitalismo reformado (tal como foi o
dito “socialismo real”).

Mas nós nascemos e vivemos na atual


sociedade e pensar o radicalmente diferente e novo é algo
difícil. E se pensar é difícil, acreditar na sua possibilidade
de concretização é ainda mais difícil. Marx não apenas
analisou profundamente a sociedade capitalista e observou
suas tendências e potencialidades, como identificou a
possibilidade de transformação social radical e que o
proletariado, devido suas condições de existência na
sociedade capitalista, pode e tende a concretizar esse
processo. Um amplo conhecimento histórico e uma
erudição significativa (e não enciclopédica, como a de

20
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

outros intelectuais)4, foram fundamentais para Marx


constituir tal percepção e radicalidade de pensamento,
além da análise profunda da sociedade capitalista.
Contudo, isso tudo só foi possível a partir de seu encontro
com outras determinações, ou seja, a formação humanista
de Marx, o que significa valores, concepções, sentimentos
e outros processos que permitiam um questionamento da
sociedade e a busca de um projeto alternativo, e a
emergência do movimento operário e suas lutas, incluindo
suas primeiras manifestações utópicas, mostrando seu
potencial revolucionário.

Assim, Marx constituiu seu pensamento no


sentido de realizar uma crítica revolucionária e para isso
busco desenvolver um conjunto de ferramentas
intelectuais (método dialético, materialismo histórico),
análises da história da humanidade e do capitalismo, das

4
A erudição enciclopédica é a daqueles que conhecem e memorizam
diversos autores, concepções, fatos, etc. Uma erudição significativa é
a daqueles que que memorizam e conhecem o que é significativo, ou
seja, inserido numa percepção totalizante da realidade que permite
entender o significado particular dos fenômenos e sua inserção na
totalidade.
21
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

lutas de classes e suas tendências, das formas ilusórias de


consciência e das instituições sociais, etc. Sem dúvida, ele
aprofundou em alguns elementos mais que em outros e
planejou desenvolver diversos aspectos (basta olhar sua
biografia e documentos para saber que ele pretendia
escrever inúmeras outras obras planejadas, algumas que
ele afirmou que iria desenvolver, tal como sobre dialética,
Estado, classes sociais, etc., e outras que ele apenas
estudava e preparava materiais para posteriores
desdobramentos, como se pode ver em seu manuscrito
sobre matemática, etc.).

É o pensamento deste autor que vamos buscar


reconstituir aqui, sob uma forma simultaneamente
sintética e acessível, por um lado, e, fidedigna e
aprofundada, por outro5. Para realizar tal tarefa,
apresentaremos a teoria de Marx sem trabalhar sua
constituição histórica, seu processo interno de formação, o

5
O desenvolvimento de análises sobre obras, questões, etc. específicas
com maior profundidade podem ser encontradas em outras obras.
Sobre a questão metodológica, desenvolvemos um trabalho que
aprofunda alguns aspectos aqui apontados (VIANA, 2007a), sobre
sua concepção de classes (VIANA, 2012a), etc.
22
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

que significa que nossa abordagem do pensamento de


Marx não é uma biografia intelectual e nem se prenderá ao
seu desenvolvimento cronológico, sua evolução
intelectual, embora lance mão disso quando for necessário
para interpretar seu pensamento.

O nosso objetivo foi apresentar uma exposição de


sua teoria, de suas ideias principais. Iniciaremos com sua
teoria da natureza humana e o processo social de sua
deformação/negação com a instauração da alienação, que
gera o alheamento e o fetichismo da mercadoria. A base
do pensamento de Marx se fundamenta nesta concepção
de natureza humana e em sua negação pela alienação. Daí
a necessidade de resgatar esses aspectos do seu
pensamento para poder compreender os demais elementos
constitutivos dele. A seguir abordaremos os seus conceitos
de modo de produção e luta de classes, elementos
fundamentais de sua teoria da história e fundamento de
sua teoria do capitalismo, bem como os conceitos
complementares de sociedade civil e estado. O passo
seguinte foi apresentar uma discussão de sua teoria da

23
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

consciência, em três capítulos, expondo a sua análise do


ser consciente e suas representações, da ideologia e da
dialética materialista, pois estes elementos permitem
compreender seu posicionamento diante de outras
concepções e estruturação de sua concepção
metodológica. O momento seguinte foi uma breve
exposição de sua teoria do modo de produção capitalista,
elemento fundamental de sua análise da sociedade
contemporânea. O próximo passo, uma continuidade dessa
análise, foi apresentar sua teoria da revolução proletária e
do comunismo. Por fim, uma breve discussão sobre a
crítica que Marx realizou aos pseudomarxistas, aqueles
que diziam concordar com suas concepções, mas, que, no
fundo, as deformavam. Esse itinerário, a nosso ver,
permite uma compreensão sintética e global do
pensamento de Karl Marx.

24
NATUREZA HUMANA E HUMANISMO

O homem rico é, ao mesmo tempo, aquele


que precisa de um complexo de
manifestação humana da vida, e cuja
própria autorrealização existe como uma
necessidade interior, como uma
necessidade.
Karl Marx

O ponto de partida do pensamento de Marx é a sua


teoria da natureza humana e seu complemento, a teoria da
alienação. É a partir dessa teoria que ele passa a constituir
sua concepção e sua produção teórica, que possui um
caráter humanista, como muitos perceberam
(MONDOLFO, 1967; FROMM, 1983). O marxismo de
Marx é um humanismo. Nesse sentido, é importante
começar uma exposição sobre o pensamento de Marx
partindo de sua concepção de natureza humana e
alienação.
Marx ironizava os pensadores que tomavam os
indivíduos tal como existem numa determinada época e
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sociedade como o modelo de natureza humana. Assim, em


Esparta, na sociedade escravista grega, a natureza humana
seria percebida como sendo a do guerreiro. Porém, a
figura do guerreiro é algo típico de uma determinada
cidade-estado, em determinado período histórico, a partir
de relações sociais historicamente construídas, com
características derivadas de sua peculiaridade no conjunto
da sociedade. Em outras cidades-estados, na sociedade
escravista antiga, outros modelos de natureza humana
poderiam emergir, caso houvesse a generalização e
naturalização de características peculiares da cidade,
relações sociais e cultura de cada uma.
Marx ironiza Bentham ao considerar o ser humano
da sociedade capitalista o modelo de natureza humana:

“Jeremias Bentham é um
fenômeno puramente inglês. Mesmo sem
excetuar nosso filósofo, Christian Wolf,
em nenhum tempo e em nenhum país o
lugar-comum mais comezinho jamais se
instalou com tanta autossatisfação. O
princípio da utilidade não foi invenção de
Bentham. Ele só reproduziu, sem espírito,
o que Helvetius e outros franceses do
século 18 tinham dito espirituosamente.
Se por exemplo, se se quer saber o que é

26
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

útil a um cachorro, precisa-se pesquisar a


natureza canina. Essa natureza não se
pode construir a partir do ‘princípio de
utilidade’. Aplicado ao homem, isso
significa que se se quer julgar toda a ação,
movimento, condições, etc. humanos
segundo o princípio da utilidade, trata-se
da natureza humana em geral e depois da
natureza humana historicamente
modificada em cada época. Bentham não
perde tempo com isso. Com a mais
ingênua secura ele supõe o filisteu
moderno, especialmente o filisteu inglês,
como o ser humano normal. O que é útil
para esse original homem normal e seu
mundo é em si e para si útil. E por esse
padrão ele julga então passado, presente e
futuro. Assim, por exemplo, a religião
cristã é ‘útil’ porque reprova
religiosamente os mesmos delitos que o
código penal condena juridicamente. A
crítica da arte é nociva porque perturba o
prazer que as pessoas honestas encontram
em Martin Tupper, etc. Com lixo dessa
espécie, o bom homem, cuja divisa é
nulla dies sine linea1, encheu montanha
de livros. Se eu tivesse a coragem de meu
amigo H. Heine, eu chamaria o Sr.
Jeremias de um gênio da estupidez
burguesa” (MARX, 1988a, p. 176).

1
“Nenhum dia sem um traço”, afirmação atribuída ao pintor grego
Apelles, para justificar a regra de trabalhar todos os dias em seus
quadros, mesmo que minimamente.
27
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Marx, assim, distingue natureza humana em geral e


natureza humana historicamente modificada em cada
época. A questão reside em que é a natureza humana
geral? O que é a natureza humana historicamente
modificada em cada época? Como distinguir estas duas
coisas? Aqui temos um problema metodológico. Marx
resolve este problema com o método dialético, que será
analisado adiante. No entanto, os temas, questões,
análises, de Marx, remetem a todo momento a outras
questões, temas, análises, o que forma a totalidade do seu
pensamento. Por isso teremos que adiantar um aspecto do
método dialético, que depois retornaremos adiante em sua
totalidade e complexidade.
Na concepção de Marx, a essência e a aparência dos
fenômenos não coincidem. Os fenômenos aparecem
imediatamente à consciência humana, mas não a sua
essência. Essa essência só é perceptível com o trabalho da
mente humana via processo de abstração. O empiricismo,
hoje reinante nas ciências humanas, vive no reino da
aparência, enquanto que o que interessa realmente é a
essência. Assim, a aparência do capitalismo, do futebol, da
28
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

música, da guerra, do governo dos Estados Unidos, do


assassinato de uma pessoa, e tudo o mais, difere da sua
essência. No fundo, a aparência esconde a essência,
embora não consiga escondê-la em sua totalidade. Porém,
a essência dos fenômenos não expressa a sua totalidade.
Ela é a determinação fundamental, aquilo que constitui o
fenômeno, mas ele possui outras determinações, é algo
concreto, existente realmente e em determinado contexto.
Por isso, a existência é a forma do aparecer da essência,
mas ao não saber da essência, o pesquisador se perde na
aparência, substituindo o essencial pelo aparente. Assim, é
fundamental compreender a essência e sua existência. Isso
quer dizer, em outras palavras, que é essencial entender –
no caso do ser humano – a natureza humana em geral e a
natureza humana modificada historicamente em cada
época.
Assim, a essência humana2 não pode ser perceptível
imediatamente, através da mera observação de indivíduos

2
Natureza humana e essência humana são as mesmas coisas. O que é
essencial é universal, logo, presente em todos os casos singulares.
Assim, não se trata de uma concepção biologista de natureza, embora
29
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

concretos e históricos. O que se vê imediatamente é a


aparência humana, o ser humano individual determinado
por sua época e sociedade. Assim, as representações
cotidianas produzidas historicamente tendem a atribuir aos
indivíduos de determinada época e/ou sociedade a
manifestação pura da essência humana. A filosofia e
outras formas de ideologia – conceito que discutiremos
adiante – reproduzem essas representações cotidianas
ilusórias sobre a natureza humana através de sua
sistematização, o que significa a sua elevação ao status de
ciência, filosofia, etc. Isso, por sua vez, reforça a
aparência, pois não se trata mais apenas do aparecer
social e sua percepção espontânea, mas dele reforçada
pelas representações cotidianas ilusórias (o processo no
qual essa percepção espontânea agora convive com a
percepção espontânea gerada anteriormente e solidificada
como manifestação cultural) e pela ideologia.
Assim, o indivíduo utilitarista, egoísta, competitivo,
típico da sociedade capitalista, é considerado a

também não negue a corporeidade e o organismo, não sendo também


uma concepção culturalista.
30
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

manifestação mais pura da essência humana. De acordo


com Marx, isso não expressa a essência humana. Na
verdade, expressa a existência humana em determinada
época e sociedade, ou seja, sua existência e não sua
essência. Contudo, essa existência é tomada por sua
aparência e, portanto, é a aparência humana que se
manifesta nestas concepções. Assim, no imaginário
(representações cotidianas ilusórias) e na ideologia, há
uma inversão da realidade: a aparência substitui a
essência.
A partir da perspectiva dialética, tomar o indivíduo
real, histórico, concreto, como sendo a natureza humana é
mera ilusão, equívoco, produção de representação ilusória
ou ideologia (que se reforçam reciprocamente). Não se
pode confundir existência com essência, pois ao
considerar a existência como essência esta última deixa de
ser percebida e a assim a percepção não ultrapassa a
aparência do fenômeno. Então, para descobrir o que é a
essência humana é preciso outro recurso além de observar
indivíduos com os quais convivemos ou temos notícias e
informações, e sim pesquisar o ser humano e suas
31
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

necessidades e verificar suas transformações durante o


processo histórico, para assim ter uma percepção mais
adequada da essência e da existência do ser humano.
Logo, não é observando os indivíduos de nossa sociedade,
determinados pelas relações sociais, pelo modo de
produção, pela cultura e representações cotidianas
existentes, que poderemos descobrir o que é a essência
humana.
Se o indivíduo da sociedade moderna não revela, em
sua imediaticidade ou aparência, a essência humana, então
como descobrir o que é a essência humana? Observando o
indivíduo da sociedade feudal ou o da sociedade
escravista? A resposta também é negativa. Estes
indivíduos também são determinados por sua época e
sociedade. Não se pode de tomar a essência como um
conjunto de manifestações existenciais. A grande questão
lançada por Marx é: o que é um ser humano? Como não
descobrimos isso observando os seres humanos em cada
época histórica ou tipo de sociedade, então como
descobrimos a essência humana?

32
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Segundo Marx, através do processo de abstração,


que busca descobrir por detrás da existência a essência. Se
estamos abordando a essência humana, então não é
observando os seres humanos em determinada época ou
sociedade que podemos descobrir sua natureza. Isso ocorre
pelo motivo de que o ser humano destas épocas e
sociedades sofrem múltiplas determinações e é preciso
entendê-las, mas, além disso, buscar descobrir a
determinação fundamental, sua essência. Assim, é preciso
distinguir entre o que é determinado historicamente por
determinadas relações sociais que não são manifestação da
essência humana e o que manifesta realmente tal essência.
A essência humana pertence a todos os seres humanos,
independentemente da época e sociedade, pois, se não
fosse assim, não existiria. A essência é universal, revela o
ente-espécie, a espécie humana.
É a partir dessas premissas metodológicas que Marx
vai produzir sua concepção de natureza humana. O ser
humano não é o que aparenta ser em cada época e
sociedade e por isso é preciso descobrir o que ele é. Isso
só pode ser feito através do processo de abstração. Porém,
33
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

aqui se trata de abstração dialética e não abstração


metafísica3. A abstração dialética busca descobrir a
determinação fundamental, a essência do fenômeno. No
caso do ser humano, trata-se de descobrir a sua essência,
sua determinação fundamental. Isso ocorre via processo de
abstração dialética. A abstração metafísica toma o ser
humano em geral e algumas de suas características e assim
produz concepções ideológicas de natureza humana. A
abstração dialética busca reconhecer a historicidade dos
fenômenos e, portanto, de sua essência. A ideia de
essência, no método dialético, não é metafísica, não se
trata de algo a-histórico, eterno, imutável e sim de algo
que pode ter finitude, que é constituído historicamente,
possui um processo de constituição.
Isso se aplica ao ser humano. É nesse sentido que
Marx busca descobrir o que é o ser humano, ou seja, a

3
A abstração dialética é a que descobre a essência do fenômeno e suas
múltiplas determinações e a abstração metafísica é aquela que toma a
aparência como essência (VIANA, 2007a). Marx não fez essa
distinção terminológica, mas em seus escritos se nota as duas formas
de conceber abstração (VIANA, 2007b), tal como abordaremos no
capítulo sobre método dialético.
34
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

essência humana. Marx realiza esse processo da seguinte


forma:

A primeira condição de toda a


história humana é, naturalmente, a
existência de seres humanos vivos. A
primeira situação a constatar é, portanto, a
constituição corporal desses indivíduos e
as relações que ela gera entre eles e o
restante da natureza. Não podemos,
naturalmente, fazer aqui um estudo mais
profundo da própria constituição física do
homem, nem das condições naturais, que
os homens encontraram já prontas,
condições geológicas, orográficas,
hidrográficas, climáticas e outras. Toda
historiografia deve partir dessas bases
naturais e de sua transformação pela ação
dos homens no curso da história (MARX
e ENGELS, 2002, p.10).
Pois bem, aqui Marx oferece uma boa demonstração
do uso da abstração dialética. Não se trata de observar os
seres humanos em determinada época ou sociedade e daí
derivar o que é o ser humano e sim analisar o que é o
caracteriza e a primeira constatação é a constituição
corporal do mesmo. Todos os indivíduos, em qualquer
época e sociedade, possuem um corpo. Isso é
inquestionável. Assim, é a partir da constituição corporal
dos indivíduos e das relações que ela gera com os demais
35
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

indivíduos e a natureza (meio ambiente) que é o ponto de


partida da análise. Marx afirma que não pode analisar
profundamente tal constituição corporal, bem como as
condições naturais com as quais se deparam. Porém, é
impossível pensar o ser humano fora dessas premissas:
constituição corporal, relações sociais, relações com a
natureza. Marx continua:

Pode-se distinguir os homens dos


animais pela consciência, pela religião e
por tudo o que se queira. Mas eles
próprios começam a se distinguir dos
animais, logo que começam a produzir
seus meios de existência, e esse passo à
frente é a própria consequência de sua
organização corporal. Ao produzirem seus
meios de existência, os homens produzem
indiretamente sua própria vida material
(MARX e ENGELS, 2002, p. 10-11).
Assim, a distinção entre homens e animais pode ser
atribuída a várias diferenças existentes, mas, na realidade
concreta, essa distinção surge quando os homens começam
a produzir seus meios de existência. Sem dúvida, os
animais não produzem seus meios de existência, apenas
extraem aquilo já existente na natureza para poder se

36
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

alimentar, habitar, etc. A produção é, então, um elemento


fundamental:

A maneira como os homens


produzem seus meios de existência
depende, antes de mais nada, da natureza
dos meios de existência já encontrados e
que eles precisam reproduzir. Não se deve
considerar esse modo de produção sob
esse único ponto de vista, ou seja,
enquanto reprodução da existência física
dos indivíduos. Ao contrário, ele
representa, já, um modo determinado da
atividade desses indivíduos, uma maneira
determinada de manifestar sua vida, um
modo de vida determinado. A maneira
como os indivíduos manifestam sua vida
reflete exatamente o que eles são. O que
eles são coincide, pois, com sua produção,
isto é, tanto com o que eles produzem
quanto com a maneira como produzem. O
que os indivíduos são depende, portanto,
das condições materiais de sua produção
(MARX e ENGELS, 2002, p. 11).
Porém, aqui Marx não está falando da essência
humana e sim dos indivíduos. Os indivíduos são o que e
como produzem, e, portanto, são determinados. Esse
processo pode esconder algo mais. No fundo, esconde a
essência humana, pois mostra apenas sua existência. A
essência humana é algo que é comum a todos os seres

37
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

humanos e por isso uma coisa é perceber que os


indivíduos são o que e como fazem, outra coisa é a
essência humana presente em todos eles. Marx coloca as
bases para se descobrir isso:

Para os alemães despojados de


qualquer pressuposto, somos obrigados a
começar pela constatação de um primeiro
pressuposto de toda a existência humana,
e portanto de toda a história, ou seja, o de
que todos os homens devem ter condições
de viver para poder ‘fazer a história’.
Mas, para viver, é preciso antes de tudo
beber, comer, morar, vestir-se e algumas
outras coisas mais. O primeiro fato
histórico4 é, portanto, a produção dos
meios que permitem satisfazer essas
necessidades, a produção da própria vida
material; e isso mesmo constitui um fato
histórico, uma condição fundamental de
toda a história que se deve, ainda hoje
como há milhares de anos, preencher dia a
dia, hora a hora, simplesmente para
manter os homens com vida (MARX e
ENGELS, 2002, p. 22).
Aqui Marx revela o que existe de comum em todos
os seres humanos. Todos os seres humanos precisam, para
sobreviver, de comer, beber, dormir, etc. Este conjunto de

4
No original alemão está “ato histórico”, assim como em outras
traduções.
38
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

necessidades está presente em todos os seres humanos, em


qualquer época ou sociedade. Mas como estes seres
humanos fazem para satisfazer estas necessidades?
Através do trabalho, da produção. Não como indivíduos
isolados, mas associados. Por isso, eles satisfazem essas
necessidades básicas através da relação com os outros
seres humanos e através do trabalho. Aqui temos dois
conceitos fundamentais para se compreender o
pensamento de Karl Marx: trabalho e relação social. Esses
dois aspectos se tornam necessidades especificamente
humanas: “O segundo ponto a examinar é que uma vez
satisfeita a primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o
instrumento já adquirido com essa satisfação levam a
novas necessidades – e essa produção de novas
necessidades é o primeiro ato histórico” (MARX e
ENGELS, 2002, p. 22).
Para comer, beber, habitar e satisfazer outras
necessidades humanas, o ser humano precisa trabalhar. O
trabalho também se torna, assim, uma necessidade
humana. Na realização do trabalho, o ser humano muda a
natureza e a si mesmo. E ele executa o trabalho ao lado
39
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

dos demais seres humanos, num processo de cooperação.


Ou seja, ele executa o trabalho numa relação social com
outros seres humanos. Ao fazer isto, ele transforma o
trabalho e a cooperação em partes de sua essência, de sua
natureza. Um ser humano somente desenvolve habilidades
humanas no interior de relações sociais. A fala, por
exemplo, só ocorre no interior das relações sociais. Um
indivíduo não aprende a falar sem contato com outros
seres humanos e nem necessita fazê-lo se mudar para uma
ilha deserta.
A tese de Marx é a de que o ser humano uma vez
satisfazendo suas necessidades primárias (comer, beber,
etc.) acaba criando novas necessidades. O meio e a forma
de realizar tal satisfação se tornam também necessidades
humanas (MARX e ENGELS, 2002). O trabalho e a
cooperação se tornam necessidades humanas e ao
existirem e se desenvolverem historicamente criam, por
sua vez, novas necessidades. Daí a importância que Marx
atribuirá ao trabalho e à cooperação5.

5
Cooperação significa agir em conjunto, ação coletiva, ou seja,
associação para determinado fim. A associação é um termo
40
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Uma terceira relação aparece e complementa esse


processo, embora já esteja na sua base como procriação,
parte das necessidades básicas que os homens
compartilham com os animais. “A terceira relação, que
intervém no desenvolvimento histórico, é que os homens,
que renovam a cada dia sua própria vida, passam a criar
outros homens, a se reproduzir. É a relação entre homem e
mulher, pais e filhos, é a família” (MARX e ENGELS,
2002, p. 23). No entanto, a família deve ser vista
concretamente e não a partir de especulações abstratas.
Assim, a produção da vida – a própria, através do trabalho
e a dos outros, através da procriação – aparecem como
uma relação natural e como relação social. Ela é “social no
sentido em que se entende com isso a ação conjugada de
vários indivíduos, sejam quais forem suas condições,
formas, objetivos” (MARX e ENGELS, 2002, p. 23).
Assim, cada modo de produção está ligado a um modo de
cooperação e este é uma “força produtiva”. Há uma

fundamental que Marx desenvolverá em sua teoria da revolução


proletária, tal como se pode ver no antepenúltimo capítulo dessa
obra.
41
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

relação de interdependência entre os seres humanos:


“Manifesta-se, portanto, de início, uma dependência
material dos homens entre si, condicionada pelas
necessidades e pelo modo de produção, e que é tão antiga
quanto os próprios homens” (MARX e ENGELS, 2002, p.
24). Esta dependência assume várias formas no processo
histórico.
Portanto, a cooperação e as relações sociais, devido
à procriação, dependência material e a produção, se
tornam necessidades humanas ao lado do trabalho. Assim,
os seres humanos possuem as mesmas necessidades
básicas que os animais (comer, beber, procriar, etc.) e no
seu processo de satisfação geram as necessidades
especificamente humanas. As necessidades
especificamente humanas são aquelas derivadas da forma
de satisfazer tais necessidades básicas, que se tornam, elas
mesmas, necessidades. O trabalho e a cooperação6 são

6
A palavra cooperação se presta a equívocos e por isso “associação”
parecer ser mais adequada e passa a ser usada posteriormente por
Marx. A nosso ver, o termo “socialidade” expressa melhor essa
necessidade e potencialidade humana, já que evitar mal entendidos
no processo de compreensão da essência humana.
42
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

aspectos essenciais da natureza humana, embora esta


englobe as necessidades básicas, pois os seres humanos
são seres vivos e suas necessidades compartilhadas com os
animais mas não deixam de ser humanas, assim como o
ser humano não está separado da natureza.
O trabalho é uma potencialidade e necessidade
humana. Através do trabalho, o ser humano se realiza, dá
forma humana ao mundo. O trabalho realiza um processo
de humanização do ser humano e do mundo. O ser
humano manifesta seu ser interior e se exterioriza através
do trabalho. Assim, através do trabalho, o ser humano se
humaniza e faz o mesmo com o mundo. O trabalho está
intimamente ligado à cooperação. O ser humano é um ser
social, um “ente-espécie” (MARX, 1983a), e o trabalho é
realizado no interior das relações sociais, através da
cooperação. Assim, o processo de humanização é aquele
marcado pela cooperação entre os seres humanos e pelo
trabalho enquanto objetivação, isto é, enquanto forma de
manifestação das potencialidades e necessidades humanas.
O trabalho, no sentido atribuído por Marx, é toda e
qualquer atividade humana. O trabalho humano é
43
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

atividade especificamente humana e se distingue da


atividade animal:

O animal identifica-se com sua


atividade vital. Ele não distingue a
atividade de si mesmo. Ele é sua
atividade. O homem, porém, faz de sua
atividade vital um objeto de sua vontade e
consciência. Ele tem uma atividade vital
consciente. Ela não é uma prescrição com
a qual ele esteja plenamente identificado.
A atividade vital consciente distingue o
homem da atividade vital dos animais: só
por esta razão ele é um ente-espécie
(MARX, 1983a, p. 96).
Assim, o trabalho humano é distinto do trabalho
animal e manifesta relações dos seres humanos entre si e
com a natureza. Em obra posterior à anteriormente citada,
Marx desenvolve sua concepção sobre o trabalho
especificamente humano:

Antes de tudo, o trabalho é um


processo entre o homem e a natureza, um
processo em que o homem, por sua
própria ação, media, regula e controla seu
metabolismo com a Natureza. Ele mesmo
se defronta com a matéria natural como
uma força natural. Ele põe em movimento
as forças naturais pertencentes à sua
corporalidade, braços e pernas, cabeça e
mão, a fim de apropriar-se da matéria
natural numa forma útil para sua própria
44
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

vida. Ao atuar, por meio desse


movimento, sobre a Natureza externa a
ele e ao modificá-la, ele modifica, ao
mesmo tempo, sua própria natureza. Ele
desenvolve potências nela adormecidas e
sujeita o jogo de suas forças a seu próprio
domínio. [...]. Pressupomos o trabalho
numa forma em que pertence
exclusivamente ao homem. Uma aranha
executa operações semelhantes às do
tecelão, e a abelha envergonha mais de
um arquiteto humano com a construção
dos favos de suas colmeias. Mas o que
distingue, de antemão, o pior arquiteto da
melhor abelha é que ele construiu o favo
em sua cabeça, antes de construí-lo em
cera. No fim do processo de trabalho
obtém-se um resultado que já no início
deste existiu na imaginação do
trabalhador, e portanto idealmente. Ele
não apenas efetua uma transformação da
forma da matéria natural; realiza, ao
mesmo tempo, na matéria natural seu
objetivo, que ele sabe que determina,
como lei, a espécie e o modo de sua
atividade e ao qual tem de subordinar sua
vontade. E essa subordinação não é um
ato isolado. Além do esforço dos órgãos
que trabalham, é exigida a vontade
orientada a um fim, que se manifesta
como atenção durante todo o tempo de
trabalho, e isso tanto mais quanto menos
esse trabalho, pelo próprio conteúdo e
pela espécie e modo de sua execução,
atraí o trabalhador, portanto, quanto
menos ele o aproveita, como jogo de suas

45
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

próprias forças físicas e espirituais


(MARX, 1988b, p. 143).
Esse tipo de trabalho é objetivação, ou seja, o ser
humano realiza seus objetivos em sua atividade laboral e
se manifesta através dela. É um trabalho teleológico
consciente, ou seja, uma atividade que possui uma
finalidade, um objetivo, consciente. O trabalho é
objetivado no resultado do trabalho, no produto, e este se
torna um objeto ou produto trabalhado:

No processo de trabalho a
atividade do homem efetua, portanto,
mediante o meio de trabalho, uma
transformação do objeto de trabalho,
pretendida desde o princípio. O processo
extingue-se no produto. Seu produto é um
valor de uso, uma matéria natural
adaptada às necessidades humanas
mediante transformação da forma. O
trabalho se uniu com seu objetivo. O
trabalho está objetivado e o objeto
trabalhado. O que do lado do trabalhador
aparecia na forma de mobilidade aparece
agora como propriedade imóvel na forma
do ser, do lado do produto. Ele fiou e o
produto é o fio (MARX, 1988b, p. 144).
Assim, essa atividade vital consciente é expressão da
natureza humana, permite o desenvolvimento das forças
físicas e mentais do ser humano. Ela é uma necessidade
46
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

humana, fazendo parte, portanto, da natureza humana.


Essa atividade, no entanto, ocorre sob a forma da
cooperação, na qual os seres humanos se associam para
efetivar suas atividades. Nesse sentido, outra característica
da essência humana aparece. O ser humano é um ser ativo
e também um ser social.

O homem é um ente-espécie não


apenas no sentido de que ele faz da
comunidade (sua própria, assim como as
de outras coisas) seu objeto, tanto prática
quanto teoricamente, mas também (e isso
é simplesmente outra expressão da mesma
coisa) no sentido de tratar-se a si mesmo
como a espécie vivente, atual, com um ser
universal consequentemente livre
(MARX, 1983a, p. 93).
O ser humano é um ser social e isto se manifesta na
cooperação, na comunidade, no conjunto das relações
sociais, que se tornam necessidades humanas. A relação
entre mulheres e homens é uma relação natural e direta
que pode medir o desenvolvimento da espécie:

A relação imediata, natural e


necessária, de ser humano a ser humano é
também a relação do homem com a
mulher. Nessa relação natural da espécie,
a relação do homem com a natureza é
diretamente sua relação com o homem e
47
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sua relação com o homem é diretamente


sua relação com a natureza, com sua
própria função natural. Portanto, nessa
relação se revela sensorialmente, reduzida
a um fato observável, até que ponto a
natureza humana se tornou natureza para
o homem e a natureza se tornou natureza
humana para ele. Dessa relação, pode-se
estimar todo o nível de desenvolvimento
do homem. Conclui-se, do caráter dessa
relação, até que ponto o homem se tornou,
e se entende assim, um ser-espécie, um
ser humano. A relação do homem com a
mulher é a mais natural do ser humano a
ser humano. Ela indica, por conseguinte,
até que ponto o comportamento natural do
homem se tornou humano, e até que ponto
sua essência humana se tornou uma
essência natural para ele, até que ponto
sua natureza humana se tornou natureza
para ele. Também mostra até que ponto as
necessidades do homem se tornaram
necessidades humanas e,
consequentemente, até que ponto outra
pessoa, como pessoa, se tornou uma de
suas necessidades, e até que ponto ele é,
em sua existência individual, ao mesmo
tempo um ser social (MARX, 1983a, p.
116).
Assim, o ser humano é um ser social e somente
sendo um ser social é um ser humano. A atividade e
consciência não são sociais apenas em comunidades, pois
exprimem e confirmam diretamente em associação real

48
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

com outros seres humanos mesmo distantes delas. Até nas


atividades nas quais a associação direta é pouco provável,
ainda é um ato social, humano:

Ainda quando realizo trabalho


científico, etc., uma atividade que
raramente posso conduzir em associação
direta com outros homens, efetuo um ato
social, porque humano. Não só o material
de minha atividade – como a própria
língua que o pensador utiliza – que me é
dado como um produto social. Minha
própria existência é uma atividade social.
Por essa razão, o que eu próprio produzo
o faço para a sociedade, e com a
consciência de agir como um ser social
(MARX, 1983a, p. 118-119).
O trabalho científico é uma atividade social, pois usa
a linguagem, que é social, é realizado por um ser social,
com objetivos sociais e a partir de outros elementos
sociais (produção científica anterior, cultura anterior, etc.).
A relação social com outros seres humanos é uma
realidade e uma necessidade para todos os indivíduos
humanos. O conjunto das necessidades humanas forma a
“riqueza do homem”: “o homem rico é, ao mesmo tempo,
aquele que precisa de um complexo de manifestações
humanas da vida, e cuja própria autorrealização existe
49
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

como uma necessidade interior, como uma necessidade”


(MARX, 1983a, p. 125). Marx cita os operários franceses,
cujo pretexto de fumar, comer e beber para congregar
pessoas revela que a associação e a fraternidade não são
uma frase vazia7.
O processo histórico complexifica o ser humano, o
processo de humanização cria novas necessidades e é
assim que se pode conceber a natureza humana, um ser
que possui um conjunto de potencialidades e necessidades,
desde as primárias (comuns a todos os animais, tal como a
alimentação) passando pelas especificamente humanas
(trabalho, cooperação) até chegar a necessidades que são
um desdobramento destas, embora, devido a determinados

7
Marx toma a associação como elemento fundamental em sua teoria
do comunismo e esse trecho merece ser reproduzido: “quando
artesãos comunistas formam associações, o ensino e a propaganda
são seus primeiros objetivos. Mas sua própria associação cria uma
necessidade nova – a necessidade da sociedade –, o que parecia ser
um meio torna-se um fim. Os resultados mais notáveis desse
desenvolvimento prático podem ser vistos quando operários
socialistas franceses se reúnem. Fumar, comer, beber não mais são
meios de congregar pessoas. A sociedade, a associação, o
divertimento tendo também como fito a sociedade, é suficiente para
eles; a fraternidade do homem não é a frase fazia, mas a realidade, e
a pobreza do homem resplandece sobre nós vinda de seus corpos
fatigados” (MARX, 1983a, p. 134).
50
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

contextos sociais, é possível haver necessidades


prejudiciais ao ser humano enquanto “ente-espécie” e
indivíduo. Assim, a natureza humana não é definida
“empiricamente”8, tal como nas concepções empiricistas, e
nem abstratamente, tal como em certas concepções
filosóficas. O que existe de comum em todos os seres
humanos são suas necessidades e potencialidades. Tal
como coloca Marx, o ser humano é dotado de um conjunto
de “faculdades” e elas são necessidades.

O homem é diretamente um ser


natural. Como tal, e como ser natural
vivo, ele é, de um lado, dotado de poderes
e forças naturais, nele existentes como
tendências e habilidades, como impulsos.
Por outro lado, como ser natural, dotado
de corpo, sensível e objetivo, ele é um ser
sofredor, condicionado e limitado, como
os animais e vegetais. Os objetos de seus
impulsos existem fora dele como objetos
dele independentes; sem embargo, são
objetos das necessidades dele, objetos
essenciais indispensáveis ao exercício e

8
Em algumas passagens dos Manuscritos de Paris e em A Ideologia
Alemã, Marx usa as expressões “empírico” ou “empiricamente” de
forma positiva, mas com significado distinto do uso comum pelas
ciências naturais e humanas e, posteriormente, abandonou o uso
dessas palavras e passou a utilizar a expressão “concreto”, tal como
colocaremos no capítulo sobre dialética materialista.
51
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

confirmação de suas faculdades (MARX,


1983a, p. 159).
Assim, o trabalho, a cooperação e outras
necessidades humanas formam a natureza humana e a
unidade entre ser humano e natureza e entre os seres
humanos, mesmo porque esta unidade é, ela mesma, uma
necessidade dos seres humanos. Nesse sentido, o
marxismo é um humanismo. Porém, não um humanismo
abstrato e sim concreto, pois não se limita a compreender
a natureza humana e derivar tudo deste conceito e sim
compreende a necessidade de entender o desenvolvimento
dos seres humanos na história e assim compreender a
deformação da natureza humana e sua determinação
histórica e social9.

9
O humanismo abstrato é positivo e benéfico no sentido que rompe
parcialmente com a consciência coisificada e com o individualismo
(também com o egoísmo), mas acaba caindo numa concepção
ingênua dos indivíduos e das relações sociais. Marx questionou
Feuerbach por seu humanismo abstrato e em seu lugar constituiu um
humanismo concreto, que tem uma base semelhante à de seu
antecessor (o que permite interpretações e apropriação do seu
pensamento por parte de humanistas abstratos), mas que vai além e
reconhece as determinações sociais e históricas e, principalmente, a
divisão social, especialmente a de classes sociais, e a luta de classes
derivada daí e, portanto, não pensa como o socialismo utópico que a
emancipação humana poderá ocorrer através da filantropia, por
52
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Este é o procedimento dialético para chegar a uma


determinada concepção de natureza humana. Ele difere
radicalmente do procedimento de tomar um indivíduo ou
mesmo conjunto de indivíduos de determinada época e
sociedade e considerá-lo expressão da natureza humana. O
modo dialético de proceder é usar o processo de abstração
para descobrir a essência, e, posteriormente, descobrir as
múltiplas determinações do concreto, distinguindo
existência e essência. A essência é universal, se manifesta
em todos os indivíduos e, portanto, não é uma mera
invenção ou atribuição arbitrária de um determinado
pensador.
Neste sentido, por qual motivo não poderíamos
tomar o indivíduo da sociedade capitalista ou qualquer
outro como modelo de natureza humana? A razão disto se
encontra no fato da análise de Marx não ser indutiva, isto
é, ele não parte de um caso particular, indivíduo, para

exemplo. Outro elemento importante do humanismo abstrato é que


ele é condição de possibilidade para o humanismo concreto. É por
isso que Marx, assim como todos os marxistas autênticos e
revolucionários, foram, antes do desenvolvimento de sua consciência
revolucionária, humanistas abstratos.
53
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

chegar a uma generalização. A sua análise também não é


dedutiva, isto é, não parte de premissas abstratas e gerais
para chegar ao particular. O método dialético de Marx
postula uma forma de explicação da realidade muito mais
complexa e que desenvolveremos adiante10.
A análise de Marx é dialética e isto significa que ele
rompe com o empiricismo e com a metafísica. Ele não
parte do indivíduo, pois o indivíduo é manifestação da
essência humana, mas tal como determinado por uma
época e sociedade específicas, assim como não parte de
premissas abstratas, tal como o egoísmo natural do ser
humano, pois tal premissa não tem base real, histórica,
concreta. Assim, algumas abordagens empiricistas (o que
pode ser comum também em abordagens derivados de seu
irmão gêmeo, o irracionalismo), a natureza humana não
existe, devido às inúmeras diferenças observáveis nos
seres humanos ou então existe e apenas pode ser
verificada empiricamente, através da observação. A

10
Uma crítica às concepções indutiva e dedutiva, nas ciências
naturais, abordando também este problema metodológico nas
ciências humanas, e uma comparação com o método dialético pode
ser visto em: Viana, 2002.
54
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

pobreza metodológica do empiricismo, bem como sua


ingenuidade, é por demais evidente e já recebeu críticas
suficientes, deste Labriola (1979) e Lukács (1989) até
pensadores mais recentes (KOSIK, 1986), pois nunca
ultrapassam o aparecer social, ou, como diz Kosik, o
mundo da pseudoconcreticidade. Ou seja, sob o pretexto
de revelar o que as coisas realmente são, através da
pesquisa empírica, o que fazem é se contentar com a
aparência dos fenômenos, desconhecem a essência e por
isso não a entendem e nem chegam à existência, ou seja,
ao concreto.
A concepção metafísica, racionalista, já faz o
processo inverso. Parte de uma premissa, um postulado
racional, e daí deriva sua concepção de natureza humana.
Os casos observáveis, “empíricos”, aparecem apenas para
confirmar o pressuposto criado pela imaginação do
pensador. Este foi o procedimento, por exemplo, de
Hobbes (1983) e Rousseau (1989) e foi justamente isso
que permitiu que o primeiro apresentasse a tese de que o
homem é egoísta por natureza e o segundo a tese contrária
de que ele é bom por natureza. Ao invés de estudar o ser
55
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

humano e suas necessidades no desenvolver do processo


histórico, criam ideias e derivam sua concepção de
natureza humana a partir de suas especulações. Daí a
existência de tantas teses sobre a natureza humana quanto
permite a imaginação dos filósofos e demais pensadores.
Os demais procedimentos atribuídos a Marx, como o
indutivo-dedutivo e o hipotético-dedutivo, além de
mostrar desconhecimento da complexidade do pensamento
deste autor e do caráter simplista das concepções
atribuídas a ele, sendo pré-kantianas, pré-hegelianas e pré-
marxistas, mostram desconhecer as características do
método dialético. Isso está tão longe do pensamento de
Marx que já mostra que os adeptos destas interpretações
são incapazes de compreendê-lo. De qualquer forma, não é
unindo indução e dedução, nem criando algo como um
modelo hipotético-dedutivo que se consegue resolver a
questão e produzir um saber correto (muito menos uma
interpretação correta de Marx).
O procedimento de Marx é, tal como mostramos
anteriormente, através do processo de abstração (no
sentido dialético do termo) descobrir a essência humana
56
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

para reconstituir o todo no pensamento. Ao contrário de se


fixar na aparência (empiricismo) ou de inventar uma
essência a partir da especulação (racionalismo),
desconhecendo, inclusive, a essência real, muitas vezes
confundindo ela com a existência, Marx busca
compreender a essência para depois chegar ao concreto,
ou seja, sua manifestação, sua existência histórica e social
delimitada por uma época e sociedade determinadas.
Assim, é partindo das necessidades humanas reais,
existentes de fato e inquestionáveis, tal como comer,
beber, etc., que se busca compreender as demais
necessidades e, nesse processo, reconstituir o que é a
essência humana. Isto não quer dizer que esta essência se
manifeste plenamente e sem interferências sociais,
históricas, etc. A existência humana é manifestação
concreta da essência humana, mas essa, ao se manifestar,
pode ser alterada, deformada, etc.
A manifestação da natureza humana ocorre ou é
obstaculizada em cada época histórica através das formas
de produção e reprodução dos bens materiais necessários
para a sobrevivência humana e de tudo que é derivado daí.
57
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

O modo de produção e reprodução dos bens materiais em


determinada sociedade vai configurar o ser humano
histórico-concreto, que é uma forma de manifestação
concreta da natureza humana (mais adiante voltaremos ao
conceito de modo de produção, fundamental para a teoria
de Marx). E pode ser uma manifestação deformada,
reprimida, coagida.
Esta posição metodológica pode ser melhor
compreendida no que se refere à questão da natureza
humana quando ele expõe o processo social e histórico
marcado pelo impedimento da manifestação plena da
natureza humana. E Marx explica isso abordando o
fenômeno da alienação. Trataremos disto no próximo
capítulo.

58
ALIENAÇÃO, ALHEAMENTO E FETICHISMO

A crítica central feita por Marx ao


capitalismo não é a injustiça na
distribuição da riqueza; é a perversão do
trabalho convertendo-o em trabalho
forçado, alienado, sem sentido – por
conseguinte, a transformação do homem
em uma ‘monstruosidade aleijada’.
Erich Fromm

Um dos conceitos mais controversos da teoria de


Marx é o de alienação. Muita tinta já foi derramada e
muitas interpretações realizadas. Porém, poucos
compreenderam este conceito em seu real significado.
Muitos recusaram o conceito de alienação, dizendo que é
“pré-marxista”, seria uma questão presente apenas no
“jovem Marx”, e seria usado pelos religiosos, humanistas,
reformistas, para se apropriar do pensamento desse autor e
deixar de lado ou tornar secundário a sua concepção
científica e econômica do capitalismo, o “Marx da
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

maturidade”1. Assim, além das diversas interpretações do


conceito de alienação, há toda uma polêmica entre aqueles
que colocam a ênfase nesse conceito e os que o negam. Da
mesma forma, muitos confundem o significado que Marx
fornece ao termo com o que outros pensadores ou mesmo
as representações cotidianas entendem por alienação, além
daqueles que confundem alienação e fetichismo, entre
outros problemas interpretativos.
Outro conceito importante na teoria marxista é o de
fetichismo, intimamente relacionado com o de alienação
(o que contribui para que alguns confundam os dois

1
Muitos autores se manifestaram sobre isso, alguns sustentando um
“corte epistemológico” entre o jovem Marx e o Marx da maturidade,
tal como Althusser (1979), colocando apenas o último como
marxista. Esta é a tendência estruturalista e stalinista, anti-humanista.
Outros priorizam o jovem Marx e esquecem o Marx da maturidade e
a luta de classes e crítica ao capitalismo. São duas concepções
equivocadas, pois o pensamento de Marx é uma totalidade e tiveram
desdobramentos, mudanças, aprofundamentos, mas manteve os
aspectos iniciais com algumas modificações e desenvolvimentos,
como se vê nos seus próprios escritos. Isso pode ser visto em: Viana,
2007c. Uma interpretação correta do pensamento de Marx só é
possível analisando a totalidade do seu pensamento e
compreendendo sua preocupação fundamental (humanismo, luta por
emancipação humana) e desdobramentos necessários (luta de classes
e revolução proletária). Fora disso o que se realiza é deformação e
não interpretação.
60
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

termos como se tivessem o mesmo significado). O


fetichismo é derivado da alienação e foi desenvolvido por
pensadores depois de Marx com outros termos, como
“reificação” e “coisificação”, o que discutiremos adiante.
Obviamente que não retomaremos aqui todo esse
amplo debate, que deixaremos para outra oportunidade,
pois nosso objetivo é reconstituir o pensamento de Marx.
Sem dúvida, isso nos fará, aqui e ali, remeter a esse debate
e alguns dos debatedores, mas nosso foco é como este
conceito foi trabalhado por Marx. Porém, não é possível
entender o conceito marxista de alienação sem entender o
conceito de natureza humana, que trabalhamos
anteriormente. A partir da sua concepção de natureza
humana, expressa pelo conjunto de necessidades humanas
e que se manifesta através das atividades humanas, é que é
possível pensar a alienação.
Se a natureza humana se manifesta através da
atividade teleológica consciente, ou seja, através do
trabalho, no sentido amplo do termo, então este é o
conceito fundamental da teoria da alienação. O trabalho
deve, então, ser entendido de duas formas, tal como se
61
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

encontra em Marx e poucos pensadores posteriores


perceberam isso (MARCUSE, 1968; FROMM, 1983;
PANNEKOEK, 1977; PEIXOTO, 2010). O trabalho, em
sentido amplo, é a mesma coisa que atividade. O trabalho
que manifesta a natureza humana é objetivação, ou seja, a
forma como o ser humano humaniza o mundo e a si
mesmo. Alguns usam a expressão práxis, para expressar
isso e o próprio Marx o fez em algumas passagens. Trata-
se de humanizar o mundo, o que significa expressar sua
essência e assim realizá-la concretamente.
O ser humano ao produzir, transfere para o produto
do seu trabalho sua essência, objetivando-se, nesse
produto e colocando a marca da humanidade no mundo
exterior. O indivíduo não faz isso sozinho e sim em
associação com outros seres humanos, mesmo porque ele
só é um ser humano no interior dessa associação. Assim, o
trabalho como objetivação, atividade teleológica
consciente, também é chamado de práxis. A práxis é o
modo próprio do ser humano se realizar e manifestar sua
essência. A práxis é uma atividade consciente do ser
humano, onde ele coloca uma finalidade que não nega sua
62
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

natureza, ao contrário, a confirma, e assim é a forma


própria do ser humano viver, estando livre das coerções
sociais.
Assim, a práxis ou o trabalho como objetivação,
significa a manifestação da natureza humana, a realização
do ser humano. Isto só pode ocorrer no interior de uma
associação livre dos seres humanos, ou seja, sem haver
qualquer relação de dominação entre os seres humanos. A
história da humanidade, porém, não é marcada por um
progressivo processo de realização do ser humano, mas, ao
contrário, demonstra, de fato, a não-realização do ser
humano. O que impede esta realização? Marx responde a
essa pergunta utilizando o conceito de alienação.
O conceito de alienação é retirado da filosofia alemã
(principalmente Hegel e Feuerbach, dois filósofos que
inspiraram Marx) mas ressignificando-o, isto é, dando um
novo significado a este termo. Assim, analisar o
significado do termo alienação em Marx é uma tarefa
complexa, pois esse autor usa o termo no significado
antigo (presente na filosofia alemã) e, ao mesmo tempo,
no novo significado que ele fornece. Outro elemento
63
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

complicador é que em alemão existe mais de uma palavra


que em português aparece apenas como “alienação”2.
Porém, muitos caem no que Labriola (1979) chama
de verbalismo, ou seja, buscam compreender os termos e
concepções de um autor através da palavra e seu
significado em outros contextos e autores ao invés de
analisar o processo genético do conceito no pensamento
do autor, e, assim, compreendem alienação não no sentido
fornecido por Marx, mas no sentido comum da palavra ou
em outras concepções filosóficas e confundem isso com o
que o pensador alemão havia colocado.

2
Segundo Mészáros, haveria três palavras que em alemão que
manifestaria alienação: entäusserung, entfremdung e veräusserung
(MÉSZÁROS, 2006). Porém, Mészáros não aprufunda essa
discussão e nem compreende que isto depende de interpretação (a
tradução não é “neutra”). Se tais palavras são, no pensamento de
Marx, a mesma coisa ou coisa distinta e, no último caso, o que
significaria cada uma, isso só pode ser compreendido através de uma
análise rigorosa de sua exposição, o que Mészáros não fez. Além
disso, existem outros elementos complicadores que Mészáros não
leva em consideração (outros termos, o que leva ao problema da
objetivação, exteriorização, etc.) e sua interpretação de Marx é
pseudomarxista, ao distinguir formas de alienação (política,
econômica, etc.) partindo muito mais de uma “doutrina dos fatores”
do que do materialismo histórico, o que só poderia resultar em
confusões.
64
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

O nosso procedimento é analisar o processo genético


deste conceito no pensamento de Marx. Isso nos remete ao
capítulo anterior, sobre a natureza humana. Assim, o
trabalho como objetivação, a práxis, é expressão concreta
e real da natureza humana. Porém, esse trabalho não é algo
que se realiza fora das condições sociais e históricas das
relações entre os seres humanos e destes com a natureza. É
por isso que o trabalho pode ser alienado. Anteriormente
descrevemos o trabalho como objetivação, isto é, como
um processo de realização do ser humano e como
elemento de sua humanização. Agora mostraremos a
análise que Marx realizou do trabalho enquanto alienação.
Desta forma, se observa que Marx distinguia entre
duas formas de trabalho, uma que é manifestação da
essência humana, objetivação, práxis, e outra que é
negação da essência humana, alienação, exteriorização. A
alienação surge no trabalho e se generaliza pelas demais
relações sociais. Aqui estamos bem distantes das

65
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

concepções que consideram a alienação um fenômeno da


consciência3.
Não deixa de ser curioso o fato dos intérpretes
desconsiderarem que quando Marx discute alienação nos
Manuscritos de Paris4, isso ocorre principalmente quando
se refere ao problema do trabalho. O foco de sua análise é
o trabalho alienado5. Segundo Marx, a economia política

3
Essa é a concepção pré-marxista da filosofia alemã e também a
desenvolvida pelas representações cotidianas e pela psiquiatria, o
que recorda o nome antigo fornecido ao psiquiatra, “alienista”,
aquele que trata daqueles que são “alienados”. Obviamente que a
alienação gera processos que atingem a consciência e esta mesma
pode ser alienada, mas não é esse o elemento essencial e sim o
trabalho alienado.
4
O título mais comum nas traduções é Manuscritos Econômico-
Filosóficos. Porém, este título não foi fornecido por Marx e sim
pelos organizadores e tradutores, e permite equívocos por uma
atribuição problemática, já que a obra não é de economia e nem se
pretende ou afirma ser de filosofia. Outros dois títulos menos
problemáticos são atribuídos ao mesmo: Manuscritos de 1844 e
Manuscritos de Paris.
5
Não discutiremos aqui o uso de diversos termos, em idioma alemão,
por Marx, nem discutir a bibliografia e posição assumida diante disto
pelos diversos intérpretes. A questão é que há muita confusão em
torno destes termos e tal confusão é gerada pela dificuldade do texto
de Marx e qualidade das traduções, mas, muito mais do que isso,
pelo problema das interpretações deformadoras promovidas sobre
esse texto, interessadas muito mais em inaugurar uma filosofia
(pretensamente ortodoxa e marxista, mas que, no fundo, se revela
uma deformação do pensamento de Marx). Deixaremos isso para
66
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

(ciência econômica) oculta o processo de alienação que


está na essência do trabalho por não abordar a relação
direta entre trabalhador e produção. Assim, “o trabalho
humano produz maravilhas para os ricos, mas produz
privação para o trabalhador. Ele produz palácios, porém
choupanas é o que toca ao trabalhador” (MARX, 1983a, p.
92).

Até aqui consideramos a alienação


do trabalhador somente sob um aspecto,
qual seja o de sua relação com os
produtos de seu trabalho. Não obstante, a
alienação aparece não só como resultado,
mas também como processo de produção,
dentro da própria atividade produtiva.
Como poderia o trabalhador ficar numa
relação alienada com o produto de sua
atividade se não se alienasse a si mesmo
no próprio ato da produção? O produto é,
de fato, apenas o résumé da atividade, da
produção. Consequentemente, se o
produto do trabalho é alienação, a própria

outra obra mais profunda e dedicada exclusivamente à concepção


marxista de alienação. Aqui apenas colocaremos de forma resumida
o significado da alienação no pensamento de Marx. Para tal
interpretação, lançamos mão das edições alemã, francesa, espanhola
e algumas em idioma português. As citações que fazemos são de
uma tradução portuguesa, que, apesar de visíveis problemas,
expressa o pensamento de Marx com problemas formais, mas, e isto
é o fundamental, não consegue deixar de manifestar a essência do
seu pensamento, que está no conteúdo e não na forma.
67
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

produção deve ser alienação ativa –


alienação da atividade de alienação. A
alienação do objeto de trabalho
simplesmente resume a alienação da
própria atividade do trabalho (MARX,
1983a, p. 93)6.

6
No original alemão, Marx usa entäusserung e entfremdung, em
revezamento e às vezes os dois (ou seja, Marx usa um termo e entre
vírgulas o outro). Nessa tradução, assim como em outras, aparece
apenas a palavra alienação. Na edição francesa isso é justificado
através do argumento, feito pelo tradutor, que há uma indistinção, o
que não é verdadeiro (mesmo porque, se as duas palavras
significassem a mesma coisa, o autor não usaria ambas, uma após a
outra para não explicitar nada além do que está escrito, a não ser que
fosse para explicar que são sinônimos, como fizemos com
objetivação e práxis, o que não é o caso). Veja: “Wir haben bisher
die entfremdung, die entäusserung des arbeiters nur nach der einen
seite bin betrachtet, nämlich sein verhältnis zu den produkten seiner
arbeit. Aber die entfremdung zeigt sich nicht nur im resultat, sondern
im akt der produktion, innerhalb der produzierenden tätigkeit selbst.
Wie würde der arbeiter dem produkt seiner tätigkeit fremd
gegenübertreten können, wenn er im akt der produktion selbst sich
nicht sich selbst entfremdete? Das produkt ist ja nur das resümee der
tätigkeit, der produktion. Wenn also das produkt der arbeit die
entäusserung ist, so muß die produktion selbst die tätige
entäusserung, die entäusserung der tätigkeit, die tätigkeit der
entäusserung sein. In der entfremdung des gegenstandes der arbeit
resümiert sich nur die entfremdung, die entäusserung in der tätigkeit
der arbeit selbst”. Aqui, tal como desenvolveremos em outra obra,
Marx se refere à alienação e também ao alheamento (o que alguns,
equivocadamente traduzem como “estranhamento”, permitindo a
confusão entre um termo que remete a uma relação social para outro
que remete à instância da consciência, apesar da ambiguidade do
termo). Todas as versões alemãs das obras de Marx que citamos
nessa obra foram retiradas do site
68
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

O foco de Marx, aqui, é, claramente, o trabalho. Em


várias passagens Marx repetirá isso, ou seja, a primazia do
trabalho alienado sobre as outras formas de alienação e
suas consequências. A perda do produto do trabalho, que é
o foco de muitos intérpretes, é um resultado do trabalho
alienado7. Uma dessas consequências do trabalho
alienado, apontado por Marx acima, e retomado por ele
em outras passagens, é a questão do produto, da
propriedade privada. Segundo Marx, é a alienação do
trabalho que permite a alienação do produto do trabalho,
ou seja, é ele que gera a propriedade privada como algo
alheio e não pertencente a ele.
O significado do trabalho para a essência humana é
apresentado por Marx mostrando que é sua mortificação:

O que constitui a alienação do


trabalho? Primeiramente, ser o trabalho

http://www.marxists.org/deutsch/index.htm e por isso não iremos


colocar na bibliografia, já que as obras nesse idioma serviram apenas
para cotejar com as versões em outros idiomas.
7
Aliás, esse é um dos elementos da crítica de Marx à economia
política, partir da propriedade privada (produto, trabalho morto,
materializado) para chegar ao trabalho, ao invés do percurso
contrário. O pseudomarxismo faz o mesmo percurso da economia
política criticada por Marx.
69
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

externo ao trabalhador, não fazer parte de


sua natureza, e, por conseguinte, ele não
se realizar em seu trabalho mas negar a si
mesmo, ter um sentimento de sofrimento
em vez de bem-estar, não desenvolver
livremente suas energias mentais e físicas
mas ficar fisicamente exausto e
mentalmente deprimido. O trabalhador,
portanto, só se sente à vontade em seu
tempo de folga, enquanto no trabalho se
sente contrafeito. Seu trabalho não é
voluntário, porém imposto, é trabalho
forçado. Ele não é a satisfação de uma
necessidade, mas apenas um meio para
satisfazer outras necessidades. Seu caráter
alienado é claramente atestado pelo fato
de, logo que não haja compulsão física ou
outra qualquer, ser evitado como uma
praga. O trabalho exteriorizado, trabalho
em que o homem se aliena a si mesmo, é
um trabalho de sacrifício próprio, de
mortificação. Por fim, o caráter
exteriorizado do trabalho para o
trabalhador é demonstrado por não ser o
trabalho dele mesmo mas trabalho para
outrem, por no trabalho ele não se
pertencer a si mesmo mas sim a outra
pessoa (MARX, 1983a, p. 93).
Aqui temos claramente a oposição entre trabalho
como objetivação, práxis, e trabalho como alienação. O
trabalho alienado nega a essência humana, pois está é
práxis. A práxis permite o desenvolvimento das
potencialidades humanas, o livre desenvolvimento de suas
70
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

energias físicas e mentais, enquanto que o trabalho


alienado impede tal desenvolvimento. E produz
sofrimento, desgaste, mortificação. O trabalho alienado é
negado, recusado, por ser a recusa da essência humana. O
trabalho é dirigido por outro, pertence a outro, ou seja, não
manifesta as potencialidades humanas, mas as nega, não é
humanização e manifestação, é coerção exterior,
exteriorização.
Assim, para entender o conceito de alienação em
Marx é preciso entender o que ele quer dizer com trabalho
alienado e sua relação com o alheamento. O trabalho
alienado é o trabalho dirigido por outro, é heterogestão.
Sendo assim, ele é uma relação social. Aqui Marx está
muito distante daqueles que compreende a alienação como
uma questão de consciência. Marx afirma que: “Assim,
graças ao trabalho alienado o trabalhador cria a relação
de outro homem que não trabalha e está de fora do
processo de trabalho, com o seu próprio trabalho”
(MARX, 1983a, p. 99). O trabalho alienado marca o
controle do não-trabalhador sobre o trabalho. A alienação
é a perda de controle do processo de trabalho e, por
71
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

conseguinte, a criação daquele que irá controlar tal


processo. É justamente por controlar o processo de
trabalho que o não-trabalhador também controla o produto
do trabalho. Assim, a propriedade privada é um produto
do trabalho alienado. Segundo Marx, “a propriedade
privada é, portanto, o produto, o resultado necessário, do
trabalho alienado” (MARX, 1983a, p. 99).
Eis aqui o ponto fundamental da teoria da alienação
de Marx. A alienação é, fundamentalmente, alienação do
trabalho. O trabalho alienado é a fonte de todas as outras
formas de alienação e da propriedade privada. É uma
relação social na qual o não-trabalhador controla a
atividade do trabalhador. Marx repete em várias passagens
justamente isso: o produto do trabalho (objetos do
trabalho, propriedade privada, etc.) é um mero resumo,
resultado, da atividade laboral e se há alienação da
atividade, então haverá alienação do produto. Ou seja, se o
trabalhador não controla o seu trabalho, também não irá
controlar o produto do seu trabalho. Marx explicita isso
em outra passagem:

72
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Toda autoalienação do homem, de


si mesmo e da natureza, aparece na
relação que ele postula entre os outros
homens, ele próprio e a natureza. Assim, a
autoalienação religiosa é necessariamente
exemplificada na relação entre leigos e
sacerdotes, ou, já que aqui se trata de uma
questão do mundo espiritual, entre leigos
e um mediador. No mundo real da prática,
essa autoalienação só pode ser expressa
na relação real, prática, do homem com
seus semelhantes. O meio através do qual
a alienação ocorre é, por si mesmo, um
meio prático. Graças ao trabalho alienado,
por conseguinte, o homem não só produz
sua relação com o objeto e o processo da
produção como com homens estranhos e
hostis, também produz a relação de outros
homens com a produção e o produto dele,
e a relação entre ele próprio e os demais
homens. Tal como ele cria sua própria
produção como uma perversão, uma
punição, e seu próprio produto como uma
perda, como um produto que não lhe
pertence, assim também cria a dominação
do não-produtor sobre a produção e os
produtos desta. Ao alienar sua própria
atividade, ele outorga ao estranho uma
atividade que não é dele (MARX, 1983a,
p. 99).
A alienação religiosa é aquela na qual o leigo perde
o controle de suas crenças, cuja responsabilidade passa a
ser do sacerdote. A alienação na vida prática se expressa
na relação social com os demais seres humanos. O
73
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

trabalho alienado, relação social na qual o trabalhador é


dirigido pelo não-trabalhador, expressa a perda do controle
do próprio trabalho e significa que alguém efetiva esse
controle. O produto do seu trabalho também passa a ser
dirigido por outro, sendo sua consequência. A alienação
do trabalho gera a alienação do produto. Isso produz a
“dominação do não-produtor sobre a produção e os
produtos desta”. Ao alienar sua atividade, concede ao não-
produtor uma atividade que não é dele, que é dirigir o
processo de trabalho alheio.
Contudo, Marx usa duas palavras para expressar
esse processo. No original alemão, ele usa algumas vezes
a expressão entäusserung e às vezes entfremdung, sendo
que esta última palavra é usada sempre quando trata do
trabalho alienado. Às vezes ele utiliza ambas ao mesmo
tempo. A questão é que se entfremdung pode ser
considerada e traduzida como alienação, entäusserung
vem sendo traduzida como “estranhamento”, quando não é
simplesmente retirada como se não existisse no original.
Marx não usaria uma palavra com o mesmo significado
em determinadas afirmações, como se fossem sinônimos,
74
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

pois não só ninguém faz isto (e não há nenhum outro


exemplo nas demais obras de Marx), como não tem
sentido fazê-lo.
Então resta saber o que significa entäusserung no
pensamento de Marx. Essa palavra é traduzida em alguns
casos como “estranhamento” e, em outros como alienação
(e entfremdung como estranhamento). Porém, o
fundamental é entfremdete Arbeit – trabalho alienado. Por
qual motivo este é o fundamental? Por uma razão bem
simples: é quando usa essa expressão, trabalho alienado,
que Marx coloca como determinação fundamental,
gerador, dos demais processos e por isso é o essencial8.
O que significa o outro termo, entäusserung? A
expressão pode ser traduzida por alienação ou
estranhamento, pois é o tradutor que decide isso tendo em
vista a palavra não ter equivalente claro em idioma
português. Porém, a expressão estranhamento não é a mais

8
Ou seja, partimos do conteúdo para entender a forma, ao contrário
das traduções arbitrárias que partem da forma ou escolhem a forma
que desejam para depois determinar o conteúdo, já pré-determinado
por esta escolha formal, tal como aqueles que traduzem “trabalho
alienado” por “trabalho estranhado”, algo sem sentido, mesmo
linguístico (cf. VIANA, 2012b).
75
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

adequada. Ao invés da arbitrariedade do tradutor, o


fundamental é captar o sentido que a palavra possui no
pensamento do autor, expresso em seu texto. Quando
Marx usa entäusserung, ele se refere à apropriação, ou
seja, ao processo de exploração no qual o produto do
trabalho – e não só este – se torna alheio, isto é,
pertencente a outro. Não se trata de uma questão
metafísica ou de um problema da esfera da consciência, e
sim de uma relação social concreta. Por isso, o termo
alheamento é mais adequado.
O trabalho alienado gera o alheamento do produto.
O trabalhador ao não controlar o seu processo de trabalho,
também não controla o produto do seu trabalho, e ambos
se tornam alheios. A alienação leva ao alheamento. A
alienação é heterogestão, o alheamento é despossessão. O
trabalho dirigido por outro, alienado, se torna alheio, se
torna de outro. A alienação é o momento da dominação e o
alheamento o da exploração. Toda a elaboração de Marx é
para questionar a ideologia produzida pela economia
política que observa apenas a aparência do alheamento,
que se limita a analisar as riquezas e sua distribuição. A
76
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

abordagem do alheamento (quanto mais o trabalho produz,


menos possui, ou seja, o foco é a propriedade) em sua
essência não é realizada, bem como o trabalho alienado (a
atividade que gera a propriedade), desaparecendo o fato de
é este que possibilita aquele.
O trabalho alienado é trabalho heterogerido, o que
promove a alienação do produto do seu trabalho, que é
controlado pelo não-trabalhador. A alienação do trabalho é
uma autoalienação. O terceiro elemento do trabalho
alienado é a alienação humana mais geral, na qual o ser
humano se separa da natureza (ao negar, nesse processo,
sua própria essência) e se aliena de sua própria espécie, ao
invés da práxis que manifesta a essência humana, com seu
caráter social, o que temos é a sua negação e assim como o
trabalho se tornou mero meio de sobrevivência, o mesmo
ocorre com a vida genérica da espécie9. O trabalho

9
“Assim como o trabalho alienado transforma a atividade livre e
dirigida pelo próprio indivíduo em um meio, também transforma a
vida do homem como membro da espécie em um meio de existência
física” (MARX, 1983a, p. 97). O trabalho alienado transforma a
práxis em meio para satisfazer outras necessidades, deixando de ser
realização de uma necessidade humana, e também transforma a vida
social como meio. Assim, o trabalhador só sente livre em suas
77
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

alienado é uma relação social, pois alguém controla e se


apossa do trabalho e produto derivado dele:

O ser estranho a quem pertencem o


trabalho e o produto deste, a quem o
trabalho é devotado e para cuja fruição se
destina o produto do trabalho, só pode ser
o próprio homem. Se o produto do
trabalho não pertence ao trabalhador, mas
o enfrenta como uma força estranha, isso
só pode acontecer porque pertence a um
outro homem que não o trabalhador. Se
sua atividade é para ele um tormento, ela
deve ser uma fonte de satisfação e prazer
para outro. Não os deuses nem a natureza,
mas só o próprio homem pode ser essa
força estranha acima dos homens
(MARX, 1983, p. 98).
Uma das mais persistentes formas de deformação da
teoria de Marx reside justamente na interpretação da
alienação como um fenômeno que fica no plano da
consciência ao invés de relação social real, explicitada nas
várias citações aqui apresentadas. A alienação (e o
alheamento) só pode existir por ser uma relação entre os
seres humanos, entre trabalhador e não-trabalhador, uma

funções animais (comer, beber, procriar, etc.) e se reduz a um animal


em suas atividades especificamente humanas (práxis). “O animal se
torna humano e o homem se torna animal” (MARX, 1983a, p. 94).
78
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

relação social. Esse processo de alienação da atividade, do


produto da atividade e da perda da essência humana ocorre
no processo social. Daí emerge a alienação humana:

Uma consequência direta da


alienação do homem com relação ao
produto de seu trabalho, à sua atividade
vital e à sua vida-espécie é que o homem
é alienado por outros homens. Quando o
homem se defronta consigo mesmo,
também se está defrontando com outros
homens. O que é verdadeiro quanto à
relação do homem com seu trabalho, com
o produto desse trabalho e consigo mesmo
também o é quanto à sua relação com
outros homens, com o trabalho deles e
com os objetos desse trabalho (MARX,
1983a, p. 97).
A alienação humana é a generalização do trabalho
alienado, caracterizado pela relação na qual o não-
trabalhador controla o trabalhador, o que significa que
também é trabalho alheado, já que ele passa a ser de outro,
e pela perda do controle do produto do seu trabalho, que se
torna alheio, pertencente a outro, e assim não se realiza
como ser humano, não há mais práxis e sim
exteriorização. Ao invés de haver o processo de

79
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

humanização do mundo ocorre o processo contrário, de


exteriorização do ser humano.
Um outro elemento que Marx não desenvolve muito,
apenas esboça em passagens que discute a alienação
religiosa e o fetichismo, é a relação do trabalhador com
sua consciência. A consciência é transformada pela
alienação e expressa a não-realização no trabalho e a
inversão entre meios e fins: o trabalho e a vida genérica da
espécie deixam de ser fins para ser apenas meios. Esse é o
processo “exteriorização da vida”, o que traz percepções
conscientes, sentimentos, etc. Outra questão relativa é a
consciência produzida pelos ideólogos da economia
política, que parte da propriedade privada para chegar ao
trabalho ao invés do caminho inverso, criando outra
inversão.
Assim, a consciência é um problema menor em todo
esse processo. A ênfase de Marx é no trabalho alienado,
heterogestão, que gera a alienação do produto e da
espécie, promovendo a alienação humana, exteriorização
dominando a objetivação. Nesse contexto, também ocorre
o fenômeno do alheamento, na qual o trabalho, o produto
80
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

do trabalho, se tornam alheios, pertencentes a outros seres


humanos, os não-trabalhadores. Aqui se esboça uma
análise das classes sociais e da relação capital-trabalho.
Porém, antes de continuar com os desdobramentos da
teoria marxista da consciência relacionada com a
alienação, é interessante relacionar a discussão sobre
alienação com a ideia de natureza humana trabalhada no
capítulo anterior. O trabalho alienado constitui os
trabalhadores como agentes do processo revolucionário,
de transformação social e emancipação humana. Segundo
Marx:

Da relação do trabalho alienado


com a propriedade privada também
decorre que a emancipação da sociedade
da propriedade privada, da servidão,
assume a forma política de emancipação
dos trabalhadores; não no sentido de só
estar em jogo a emancipação destes, mas
por essa emancipação abranger a de toda
a humanidade. Pois toda servidão humana
está enredada na relação do trabalhador
com a produção e todos os tipos de
servidão são somente modificações ou
consequência dessa relação (MARX,
1983a, p. 100).

81
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

A consciência não é o foco de Marx, em que pese


muitos tenham interpretado assim10. Assim, muitos
compreendem o conceito de alienação em Marx de forma
equivocada, seja interpretando como um fenômeno da
consciência (e próximo às representações cotidianas e
psiquiatria), seja como sendo um problema apenas do
produto do trabalho (e nunca do trabalho, da atividade em
si). Há também, aqueles que por determinadas razões
políticas e determinada predisposição mental, querem
defender a tese de que Marx abandonou o conceito de
alienação em favor da análise da produção capitalista e da
teoria do valor-trabalho.
Sem dúvida, nos Manuscritos de Paris, o conceito
de trabalho alienado é o fundamental, e, nas obras
posteriores, perde o caráter central e a alienação é algumas
vezes substituída por direção enquanto que alheamento é
substituído pelo conceito de exploração e outros

10
Há uma extensa bibliografia sobre a questão da alienação em Marx,
com posições distintas e até antagônicas. Não seria possível elencar
aqui todas estas concepções. Por isso, nos limitamos a indicar
algumas obras: Konder, 1965; Astrada, 1968; Mészáros, 2006;
Santos, 1982; Schaff, 1979.
82
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

semelhantes. A linguagem dos Manuscritos de Paris,


ainda demasiadamente filosófica, vai sendo substituída por
uma linguagem diferenciada e menos abstrata. Porém, a
mutação não é absoluta. Isso é perceptível tanto na
permanência da palavra como sua subsistência implícita.
Marx usa o termo alienação em O Capital, Teorias da
Mais-Valia, Grundrisse e em outras obras, ou seja, seus
últimos escritos. O uso da palavra significa, na maioria
dos casos, alheamento e, em alguns, alienação no sentido
fornecido nos Manuscritos de Paris.
Em O Capital, no volume 01, usa as palavras alemãs
entausserung e verausserung, que expressam o significado
do alheamento. Este é o caso do alheamento dos bens do
Estado11, ou seja, a transferência ilegal dos bens do Estado
para outras mãos. Em outras passagens, no entanto, usa
entfremdung, para se referir ao trabalho, mantendo, pois, o
mesmo significado presente nos Manuscritos de Paris.

11
“O roubo dos bens da Igreja, a fraudulenta alienação dos domínios
do Estado, o furto da propriedade comunal, a transformação
usurpadora e executada com terrorismo inescrupuloso da
propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram
outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva” (MARX,
1988a, p. 264-265).
83
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Nos Grundrisse, há passagens com grande semelhança em


relação aos Manuscritos de Paris:

O trabalho não é valor de uso –


enquanto diferenciado de seu valor de
troca – para o próprio operário, mas
somente para o capital. O operário, pois,
troca o trabalho como valor de troca
simples, predeterminado, determinado por
um processo passado – troca o seu próprio
trabalho como trabalho objetivado,
porém, só na medida em que este objetiva
já uma quantidade determinada de
trabalho, ou seja, que seu equivalente já
está medido, dado; O capital troca o
trabalho como trabalho vivo, como força
produtiva geral de riqueza; a atividade
acrescentadora da riqueza. É claro que o
trabalhador não pode enriquecer-se
mediante esta troca, pois assim como Isaú
vendeu sua primogenitura por um prato de
lentilhas, ele cede sua força criadora pela
capacidade de trabalho como magnitude
existente. Tem que se empobrecer ainda
mais, como veremos adiante, já que a
força criadora do seu trabalho enquanto
força do capital, se estabelece frente a ele
como poder alheio. Aliena o trabalho
como força produtiva da riqueza; o
capital se apropria dele enquanto tal. Por
fim, neste ato de intercâmbio está posto a
separação do trabalho e propriedade no
produto do trabalho, do trabalho e
riqueza. [...]. Frente ao trabalhador, a
produtividade do seu trabalho se torna um
poder alheio; em geral seu trabalho,
84
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

enquanto não é faculdade, mas


movimento, é trabalho real; o capital,
inversamente, se valoriza a si mesmo
mediante a apropriação do trabalho
alheio. [...]. Como o capital é a antítese do
operário, [as forças produtivas – NV]
aumentam unicamente o poder objetivo
sobre o trabalho. A transformação do
trabalho (como atividade viva e orientada
a um fim) em capital é em si o resultado
do intercâmbio entre capital e trabalho, na
medida em que este intercâmbio outorga
ao capitalista o direito de propriedade
sobre o produto do trabalho (e a direção
sobre o trabalho) (MARX, 1985, p. 247-
249).
Nessa passagem, Marx retoma o termo alienação e
usa o mesmo raciocínio presente nos Manuscritos de
Paris: a força criadora (potencialidade e necessidade
humana) é submetida ao capital, que possui direção sobre
o trabalho e se apropria do produto do mesmo, o que
significa, da perspectiva do trabalhador, alienação e
alheamento. Essa ideia está presente em inúmeras
passagens de O Capital, sem, no entanto, usar a palavra
alienação ou alienado em muitos casos12. De qualquer

12
Em A Ideologia Alemã, Marx fala da supressão do trabalho
(alienado) no comunismo: “a revolução comunista, ao contrário, é
dirigida contra o modo de atividade anterior, ela suprime o trabalho e
85
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

forma, para Marx, a relação entre capitalista e operário,


relação de possuidores de mercadoria (o primeiro dos
meios de produção – trabalho materializado, morto – e o
segundo da força de trabalho – capacidade de trabalho,
trabalho vivo – sendo que os possuidores de mercadoria
estabelecem “uma relação em que eles somente se
apropriam do produto do trabalho alheio, alienando o
próprio” (MARX, 1988b, p. 96). Somente alienando o
trabalho, ou seja, tornando-o alienado, controlado por
outrem, é que há o alheamento do produto.
Essa interpretação do pensamento de Marx nos
parece muito mais coerente e, além disso, evita usar
terminologia problemática que tende a falsear o
pensamento de Marx. Um desses elementos reside no uso
da palavra “estranhamento” quando se trata de
alheamento. Qual a diferença? A palavra estranhamento é

extingue a dominação de todas as classes (...)”. Assim, não é o


problema da distribuição que é o foco de Marx e foi assim
interpretado tanto por reformistas social-democratas quanto por
bolchevistas defensores dos regimes capitalistas estatais (“socialismo
real”), e sim o trabalho, a produção e seu controle. Isto está
intimamente ligado ao programa comunista de Marx, como
colocaremos no último capítulo.
86
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

geralmente entendida no sentido de um ato da consciência.


Quando alguém diz que alguém estranhou outra pessoa,
aborda uma questão de consciência. Por outro lado, o
alheamento deixa claro que se trata de um processo em
que algo se torna alheio, de outro. Trata-se de uma relação
social, que, no caso do trabalho, significa que ele se tornou
de outro e, no caso do produto, a mesma coisa. O
alheamento é produto da alienação. É uma relação social,
concreta, tal como a alienação e o trabalho alienado, mais
especificamente.
Assim, temos o trabalho alienado como elemento
fundamental, que é heterogestão, controle sobre o trabalho
pelo não-trabalhador em relação ao trabalhador, e, como
resultado, alienação do produto do trabalho, controle do
não-trabalhador sobre o produto. A consequência disso é
que o trabalho é alheado, ou seja, se torna alheio,
pertencente a outro, bem como seu produto, manifestando
o processo de exploração. Em ambos os casos temos
relações sociais concretas, mas no mundo das
interpretações ideológicas, é possível abandonar as
relações sociais concretas e se refugiar em algo que não
87
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

está presente na análise de Marx na elaboração desses


conceitos – a não ser quando Marx fala da alienação
religiosa, que é a realizada na relação entre o indivíduo
leigo e os sacerdotes, que controlam as ideias religiosas –
que é a consciência13. No entanto, essa referência é apenas
uma comparação para mostrar que no mundo da
consciência também há um processo de direção e
apropriação das ideias, nas quais os leigos são controlados
e desapossados mentalmente pelos sacerdotes.

13
Isso é observável em diversos autores que transformam a questão da
alienação em questão da consciência, alguns transformando ele em
idealista e hegeliano-feuerbachiano (SANTOS, 1982) em seus
primeiros escritos. Adam Schaff, para citar apenas mais um exemplo,
distingue entre dois tipos de alienação, alienação em geral e
alienação de si mesmo: “no primeiro dos casos – a alienação –
estamos diante de uma relação objetiva, no sentido que se alienam os
produtos do trabalho humano, portanto objetos determinados (no
sentido lato dessa palavra, isto é, não somente coisas), independente
do que o homem pense a respeito, ou de como se sinta, ou
experimente; no segundo dos casos – a alienação de si mesmo –
estamos ante uma relação subjetiva, no sentido que o homem se
aliena do mundo socialmente criado por ele, o do próprio eu, e a
alienação reside nos sentimentos, vivencias e atitudes do homem,
portanto em suas reações subjetivas, se bem que socialmente
condicionadas (no significado lato desta expressão, que compreende
muitos aspectos)” (SCHAFF, 1979, p. 93). Os dois tipos de alienação
em Schaff deixa de lado o essencial, o trabalho alienado. Só trata do
alheamento e não de sua fonte e depois da consciência, invertendo a
concepção de Marx e produzindo mais uma interpretação ideológica.
88
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Porém, em obras posteriores Marx abordará a


questão da consciência, tanto com o conceito de ideologia
e representações, quanto com o conceito de fetichismo.
Nos Manuscritos de Paris, ele afirma que “a consciência
que o homem tem de sua espécie é transformada por meio
da alienação, de sorte que a vida-espécie torna-se apenas
um meio para ele” (MARX, 1983a, p. 97). Ele continua
dizendo que o trabalho alienado converte a propriedade
mental em algo estranho. Isso se reproduzirá na
consciência dos ideólogos do “sistema monetário e do
sistema mercantilista”, “para quem a propriedade privada
é uma entidade puramente objetiva para o homem, são
fetichistas e católicos” (MARX, 1983a, p. 110).
Aqui temos o uso da palavra fetichista, expressando
uma percepção da consciência de que a propriedade
privada é algo “objetivo”, que possui vida própria, não é
produto do trabalho. Isto se manifesta na consciência do
trabalhador e do ideólogo14. Assim, uma outra

14
E não deixa de ser trágico, e ao mesmo tempo cômico, que o que
Marx critica e denuncia acaba sendo a forma dominante de
interpretação do seu próprio pensamento. Os ideólogos “marxistas”
89
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

consequência do trabalho alienado é a consciência


fetichista, o estranhamento em relação do produto do
trabalho – que é a propriedade privada, que não parecer
ser produto do trabalho, do seu trabalho, e sim algo que
existe independentemente dele.
Marx voltará a discutir o conceito de fetichismo em
O Capital. Porém, enfatizará a mercadoria e não a
propriedade privada. Nessa obra, ele apresenta o que é o
fetichismo da mercadoria e suas fontes. A fonte do
fetichismo, já colocamos, é o trabalho alienado, que, no
capitalismo, assume a forma de produção de mais-valor, o
processo de dominação e exploração do trabalho
específico do modo de produção capitalista. Quando faz a
abordagem do fetichismo da mercadoria, realiza
comparação com o fenômeno religioso.

O misterioso da forma mercadoria


consiste, portanto, simplesmente no fato
de que ela reflete aos homens as
características sociais do seu próprio

ao transformarem a sua teoria do trabalho alienado em uma


ideologia, considerando-o um processo que ocorre no plano da
consciência e que se tornaria “objetivo”, transformam o crítico do
fetichismo em fetichista.
90
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

trabalho como características objetivas


dos próprios produtos do trabalho, como
propriedade naturais sociais dessas coisas
e, por isso, também reflete a relação
social dos produtores com o trabalho total
como uma relação social existente fora
deles, entre objetos. Por meio desse
quiproquó os produtos do trabalho se
tornam mercadorias, coisas físicas
metafísicas ou sociais. Assim, a
impressão luminosa de uma coisa sobre o
nervo ótico não se apresenta como uma
excitação subjetiva do próprio nervo.
Mas, no ato de ver, a luz se projeta
realmente a partir de uma coisa, o objeto
externo, para outra, o olho. É uma relação
física entre duas coisas físicas. Porém, a
forma mercadoria e a relação de valor dos
produtos de trabalho, na qual ele se
apresenta, não têm que ver absolutamente
nada com sua natureza física e com as
relações materiais que daí se originam.
Não é mais nada que determinada relação
social entre os próprios homens que para
eles aqui assume a forma fantasmagórica
de uma relação entre coisas. Por isso, para
encontrar uma analogia, temos de nos
deslocar à região nebulosa do mundo da
religião. Aqui, os produtos do cérebro
humano parecem dotados de vida própria,
figuras autônomas, que mantém relações
entre si e com os homens. Assim, no
mundo das mercadorias, acontece com os
produtos da mão humana. Isso eu chamo
o fetichismo que adere aos produtos do
trabalho, tão logo são produzidos como
mercadorias, e que, por isso, é inseparável
91
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

da produção de mercadorias (MARX,


1988b, p. 71).
A mercadoria, produto do trabalho humano, tal
como veremos adiante, aparece para os seus produtores,
não como relação social que gera sua produção e a ela
mesma, mas como coisas, ou seja, como se tivessem vida
própria, autonomia. As mercadorias, no entanto, não vão
se trocar sozinhas no mercado e nem se autoproduzem. O
que está ausente aqui é a percepção de que ela é produto
do trabalho humano, relação social. É por isso que Marx
ironiza as mesas que “começam a dançar por sua própria
iniciativa” (MARX, 1988b, p. 70). A comparação com a
religião não é gratuita, pois Marx parte da ideia de que não
é a religião que produz o ser humano, mas, ao contrário, é
o ser humano que produz a religião (MARX, 1968)15.

15
Nesse sentido, a comparação entre fetichismo e idolatria é
esclarecedora. Erich Fromm realizou tal comparação,
equivocadamente, com a alienação. Porém, como ela se encaixa na
ideia de fetichismo, vamos apresentá-la para esclarecer este último
conceito: “a essência do que era chamado de ‘idolatria’ pelos antigos
profetas não está em o homem adorar muitos deuses em vez de um
único. Está em os ídolos serem a obra das mãos do próprio homem –
eles são coisas, e no entanto o homem curva-se ante elas e as
reverencia; adora aquilo que ele mesmo criou. Ao fazê-lo, ele se
transforma em coisa. Transfere às coisas de sua criação os atributos
92
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Assim, quando Marx diz que o fetichismo é


inseparável da produção de mercadorias, está se referindo
ao fetichismo da mercadoria, pois outras formas, com suas
especificidades, de fetichismo existiram. O fetichismo da
mercadoria é algo que surge apenas e tão-somente no
capitalismo, uma sociedade fundada na produção
generalizada de mercadorias através da extração de mais-
valor, forma de exploração dos trabalhadores assalariados
produtivos, o que será abordado adiante.
Porém, é totalmente sem sentido tomar o fetichismo
da mercadoria como o problema fundamental da sociedade
capitalista. A mercadoria é apenas a “forma mais geral e
menos desenvolvida da produção burguesa” e por isso seu
“caráter fetichista parece ainda relativamente fácil de
penetrar” (MARX, 1988b, p. 77). Marx cita o fetichismo
do sistema monetário (reproduzido por muitos
pseudomarxistas que falam do domínio do capital
financeiro) e do capital. A reificação das forças produtivas

de sua vida, e, em vez de experienciar-se como a pessoa criadora, só


entra em contato consigo mesmo através da adoração do ídolo”
(FROMM, 1983, p. 51).
93
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

e do capital, citada por Marx, revela como o fetichismo


não é produzido apenas pelos agentes do processo de
produção mas também pelos ideólogos, os economistas e
outros, tal como abordaremos no capítulo sobre ideologia.
O fetichismo da mercadoria é um problema derivado
e o problema fundamental, como já havia demonstrado
nos Manuscritos de Paris e novamente em O Capital, no
próprio capítulo que discute o fetichismo, é o trabalho
alienado ou, mais especificamente no caso do capitalismo,
a extração de mais-valor. Tomar o fetichismo da
mercadoria como o grande problema do capitalismo é
reproduzir a consciência fetichista. Marx deixou isto claro:

O reflexo religioso do mundo real


somente pode desaparecer quando as
circunstâncias cotidianas, da vida prática,
representarem para os homens relações
transparentes e racionais entre si e com a
natureza. A figura do processo social da
vida, isto é, do processo da produção
material, apenas se desprenderá do seu
místico véu nebuloso quando, como
produto de homens livremente
socializados, ela ficar sob seu controle
consciente e planejado. Para tanto, porém,
se requer uma base material da sociedade
ou uma série de condições materiais de
existência, que, por sua vez, são o produto
94
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

natural de uma evolução histórica longa e


penosa (MARX, 1988b, p. 76).
Assim, a abolição do fetichismo da mercadoria
pressupõe a abolição do modo de produção capitalista e o
combate às formas de consciência fetichista é apenas parte
da luta geral contra esse modo de produção e não a luta
fundamental e única, como querem alguns fetichistas
contemporâneos. Após analisar os conceitos de alienação e
alheamento em Marx, fica claro sua distinção em relação
ao fetichismo. No primeiro caso, temos relações sociais
concretas, dominação e exploração no processo de
produção; no outro, os efeitos disso na consciência dos
seres humanos, duas coisas distintas, embora
complementares.

95
MATERIALISMO HISTÓRICO,
MODO DE PRODUÇÃO E LUTA DE CLASSES

O modo de produção da vida material


condiciona o desenvolvimento da vida
social, política e intelectual em geral.
Karl Marx

O ponto de partida de Marx foi a teoria da natureza


humana e da alienação. A ideia do trabalho alienado
coloca a questão das classes sociais e das lutas de classes.
Num primeiro momento, Marx percebe que a natureza
humana é negada na sociedade capitalista e que essa
negação é realizada de forma mais cristalina e brutal junto
aos trabalhadores. O trabalho alienado é o conceito
fundamental para explicitar os limites da economia
política, uma manifestação ideológica, e permite entender
a razão da revolução social. Assim, a ideia de revolução
social é fundamental no pensamento de Marx e perpassa
toda sua produção teórica. Tal como coloca nos
Manuscritos de Paris, a revolução dos trabalhadores
permite a emancipação humana. Um ano antes de escrever
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

os Manuscritos, Marx já havia inaugurado alguns


elementos do materialismo histórico:

A história tem, pois, uma missão,


uma vez que a verdade do além foi
superada, que é a de estabelecer a verdade
do aquém. Uma vez desmascarada a
forma sacra que representava a
autoalienação humana, a primeira tarefa
da filosofia que se coloca a serviço da
história consiste em desmascarar essa
autoalienação sob suas formas profanas.
A crítica do céu se transforma assim em
crítica da terra, a crítica da religião em
crítica do direito, a crítica da teologia em
crítica da política (MARX, 1968, p. 11).
Assim, o processo histórico mostra uma luta de
classes constante, na qual se encontra a raiz das revoluções
sociais. Porém, todo o processo de transformação histórica
foi feito no sentido de trocar a classe dominante e não
abolir as classes sociais. Toda classe social ascendente
busca se colocar como o “representante universal” de
todas as classes exploradas e ao mesmo tempo concentrar
o mal na classe dominante, mas, uma vez no poder, se
torna nova classe dominante. Esse processo só pode ser
interrompido quando surge uma classe com “cadeias
radicais”. Segundo Marx:
99
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

A formação de uma classe com


cadeias radicais, de uma classe da
sociedade civil que não é uma classe da
sociedade civil, de um estado que é a
dissolução de todos os estados, de uma
esfera que possui caráter universal por seu
sofrimento universal e que não reclama
um direito particular porque não sofreu
uma injustiça particular mas a injustiça
mesma, que já não pode apelar a um título
histórico, mas simplesmente ao título
humano, que não está em oposição
unilateral com as consequências, mas em
oposição total com as condições da
essência estatal alemã; de uma esfera,
finalmente, que não pode emancipar-se
sem emancipar todas as outras esferas da
sociedade e por isso emancipar todas elas;
que seja, em uma palavra, a perda total do
homem e que portanto só pode
reencontrar a si mesma ao voltar a
reencontrar novamente o homem em sua
totalidade. Essa dissolução da sociedade
como classe particular é o proletariado
(MARX, 1968, p. 45).
Este manifesto inaugural do materialismo histórico
(VIANA, 2016), é o ponto de partida para sua discussão
sobre trabalho alienado. Nesse texto a oposição entre
trabalhadores e não-trabalhadores, proletários e
capitalistas, já se encontra presente. Porém, há ainda
resquícios de linguagem filosófica, falta de
aprofundamento nas relações sociais concretas e outros
100
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

aspectos que Marx vai desenvolver em suas obras


posteriores. Marx acaba desenvolvendo suas teses,
realizando um aprofundamento que lhe permitirá ir além
da crítica da desumanização e da exploração e realizar a
crítica do modo de produção capitalista e analisar as
possibilidades concretas da revolução proletária.
A primeira obra mais desenvolvida nesse sentido é A
Ideologia Alemã, escrita em parceria com Friedrich
Engels1. É nessa obra que o materialismo histórico se
torna mais concreto e que alguns conceitos são
desenvolvidos e outros esboçados. Em primeiro lugar,
temos uma análise mais profunda das classes sociais e do
processo histórico. Nas obras posteriores, como o
Manifesto Comunista, A Miséria da Filosofia,
Contribuição à Crítica da Economia Política, O Capital,
entre outras, ele desenvolve e estrutura o materialismo
histórico.
Marx elabora, a partir de sua teoria da alienação e
sua teoria inicial da exploração, que ganhará

1
“Engels apenas contribui com as primeiras páginas, como se sabe”
(DEBRITO, 1985, p. 41).
101
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

concreticidade posteriormente, uma teoria da história da


humanidade, que ficou conhecida como materialismo
histórico. Nesse momento, há também um avanço
metodológico, já que o materialismo histórico nasce junto
com o método dialético, do qual trataremos adiante. Esse
avanço metodológico significa que Marx passa a trabalhar
o processo histórico da humanidade com base na realidade
concreta e não apenas em seus elementos essenciais, suas
relações fundamentais, mesmo porque essas são produtos
históricos. A história da humanidade é vista então como
sendo a história de seres humanos reais, concretos,
históricos, sociais. Ao contrário da filosofia especulativa,
objeto de sua crítica em A Ideologia Alemã, A Sagrada
Família e em outras obras, Marx busca reconstituir a
história a partir de seus elementos concretos.

As premissas de que partimos não


são bases arbitrárias, dogmas; são bases
reais que só podemos abstrair na
imaginação. São os indivíduos reais, sua
ação e suas condições materiais de
existência, tanto as que eles já
encontraram prontas, como aquelas
engendradas de sua própria ação. Essas
bases são pois verificáveis por via

102
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

puramente empírica (MARX e ENGELS,


2002, p. 10).
Assim, é com base na realidade concreta2 que Marx
inicia sua análise da história da humanidade. Para
reconstituir a história da humanidade sobre esta base
concreta, Marx desenvolverá o conceito de modo de
produção. Eis um conceito que provocou as mais variadas
polêmicas e definições distintas. No entanto, muitos
buscam entender esse conceito trocando a leitura rigorosa
dos textos de Marx pela imaginação própria ou então
através de leituras superficiais ou fragmentárias que são
completadas pela arbitrariedade ou uso de outras teses e
autores em substituição ao próprio elaborador do conceito.
O modo de produção é o modo como os seres humanos
produzem e reproduzem os meios de sobrevivência em
determinada sociedade. O conceito de sociedade, no
entanto, remete à totalidade da vida social, ou, como Marx

2
O uso da expressão “empírica”, em Marx, dá margem para alguns
intérpretes pouco rigorosos, chamá-lo de “positivista” (em sua forma
empiricista). Porém, tal tese não se sustenta, pois parte de um
verbalismo já criticado por Labriola (1979), retirando a palavra do
seu contexto e significado próprio no conjunto do pensamento de
Marx. Posteriormente, como mostraremos adiante, Marx usará o
termo concreto ao invés de empírico.
103
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

coloca, é “o conjunto das relações sociais” (MARX,


1991).
Tal como colocamos anteriormente, os seres
humanos possuem necessidades básicas que são satisfeitas
por intermédio do trabalho, da produção. Daí a
importância fundamental do modo de produção. A
concepção mais comum aponta para uma descrição dos
componentes do modo de produção, que seriam as forças
produtivas e relações de produção (SHAW, 1979). Sem
dúvida, estes conceitos estão presentes no conceito mais
amplo de modo de produção, mas não é suficiente uma
descrição que não aprofunde o significado e os conceitos
derivados. Outros preferiram ao invés de uma análise
rigorosa do conceito em Marx, interpretá-lo a partir de
outras concepções, especialmente o estruturalismo3. Estas

3
“Um modo de produção é uma combinação específica de diversas
estruturas e práticas que, em combinação, aparecem como instâncias
ou níveis, isto é, como estruturas regionais com uma autonomia e
dinâmica próprias, ligadas a uma unidade dialética. Um modo de
produção compreende três níveis ou instâncias: a econômica ou
infraestrutura, a político-jurídica e a ideológica. Estas duas últimas
constituem a superestrutura. Entende-se que se trata de um esquema
abstrato indicativo que é constituído para efeito de uma análise, e
que é possível adotar outro com diferentes
104
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

concepções realizam o procedimento de estruturar uma


definição que não se encontra em Marx e afirmar que esta
concepção é a deste autor. No fundo, é apenas uma
atribuição de significado muito mais do que uma leitura
rigorosa. Logo, o suposto conceito de modo de produção
em Marx é, na maioria dos casos, uma invenção dos seus
intérpretes. Depois desta invenção, atribuem ela a Marx e
afirmam que não se pode pensar fora dela. Assim, se cria
um processo de cristalização de uma concepção e sua
atribuição a Marx, o que muitas vezes passa como
“marxismo ortodoxo”. Alguns apontam, para justificar sua
invenção, uma “filosofia subjacente” em Marx, o que é
apenas uma forma de legitimar o ilegítimo4.

instâncias”(FIORAVANTE, 1991, p. 31). Tal definição nada tem a


ver com a concepção marxista, pois em Marx o modo de produção
remete ao processo de produção de bens materiais e exclui o resto,
ou seja, o jurídico-político e o cultural. Não existe nenhuma
afirmação em Marx que desse margem para esse tipo de
interpretação, sendo, pois, não um procedimento interpretativo
equivocado e sim uma invenção arbitrária e intencional.
4
“... Marx quer dizer o que diz: não é preciso explicar isso em termos
de alguma pretensa filosofia ‘subjacente’ ou de emprego peculiar de
palavras. Não afirmo que não haja ambiguidades, discrepâncias,
enigmas, ou enganos evidentes em Marx; simplesmente argumento
que com algum esforço as ideias de Marx podem tornar-se
105
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

No entanto, há um autor que se aproximou mais do


pensamento de Marx no processo de compreensão do
conceito de modo de produção:

O que é um modo de produção. No


Prefácio à Contribuição... Marx escreve:
‘em grandes linhas, os modos de
produção asiático, antigo, feudal e
burguês podem ser designados como
épocas que marcam o progresso da
formação econômica da sociedade’. E
afirma, além disso, que ‘o modo de
produção da vida material condiciona, em
geral, o processo social, político e
espiritual da vida’. (...) Prevalece, é certo,
o dado econômico quando se considera a
formação da sociedade (...); a afirmação
relativa à ‘produção da vida material’ que
está na base que qualquer processo de
desenvolvimento social, é bastante clara.
Assim como está claramente indicado, no
texto há pouco citado, a distinção entre
‘base econômica’ da sociedade (conjunto
das relações de produção), por um lado, e
a sobrestrutura jurídico-política e as
várias formas de consciência social, por
outro. É, contudo, necessário recordar que
o dado econômico não se pode reduzir
apenas aos métodos organizativos e
técnicos da produção material. Devem
também tomar-se em consideração as

logicamente consistentes e coerentes – ou, onde isso não for


possível, que os problemas podem pelos menos ser identificados”
(SHAW, 1979, p. 16).
106
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

relações (sociais) que intercorrem entre os


homens (entre as classes determinantes)
no curso desta produção (...). Portanto, no
modo de produção acham-se ‘fundidos’,
‘sintetizados’, dois elementos, um de
caráter prevalentemente técnico, o outro
de caráter eminentemente social; isto é,
por um lado, as forças produtivas (...), e,
por outro, as relações sociais de produção
(LA GRASSA, 1974, p. 363-364).
O procedimento (analisar os escritos de Marx) e os
resultados de La Grassa são os melhores, pelo menos até ele não
começa a apelar para outros autores. Em que pese a definição
acima ainda contenha alguns pontos problemáticos, apresenta
alguns elementos importantes para reconstituirmos a concepção
marxista de modo de produção. Um elemento é observar que o
conceito de modo de produção remete para o processo de
produção de bens materiais. Além disso, esta produção é
sempre uma relação social:

O objeto deste estudo é, em


princípio, a produção material. Indivíduos
produzindo em sociedade – portanto uma
produção de indivíduos socialmente
determinada, este é, naturalmente, o ponto
de partida. O caçador e o pescador
individuais e isolados, de que partem
Smith e Ricardo, pertencem às inocentes
ficções do século 18. São ‘robinsonadas’
que não exprimem de forma alguma,
como parecem crer alguns historiadores

107
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

da civilização, uma simples reação contra


os excessos de requinte e um regresso a
um estado de natureza mal compreendido
(MARX, 1983b, p. 201).
Trata-se, portanto, de indivíduos produzindo bens
materiais em sociedade. Portanto, para entender modo de
produção é preciso entender o que se entende por produção:

Assim, sempre que falamos de


produção, é à produção num estágio
determinado do desenvolvimento social
que nos referimos – à produção de
indivíduos vivendo em sociedade. Pode
parecer que, para falar da produção em
geral, será conveniente ou seguir o
processo histórico de seu
desenvolvimento nas suas diversas fases,
ou declarar antes de mais nada que
iremos ocupar-nos de uma época histórica
determinada, por exemplo, da produção
burguesa moderna que é, de fato, o nosso
verdadeiro tema. Mas todas as épocas da
produção têm certas características
comuns, certas determinações comuns. A
produção em geral é uma abstração, mas
uma abstração racional, na medida em
que, sublinhando e precisando os traços
comuns, nos evita a repetição. No entanto,
este caráter geral ou estes traços comuns,
que a comparação permite estabelecer,
formam por seu lado um conjunto muito
complexo cujos elementos divergem para
revestir diferentes determinações.
Algumas destas características pertencem
a todas as épocas, outras apenas comuns a

108
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

umas poucas. [Algumas] destas


determinações revelar-se-ão comuns tanto
à época mais recente como à mais antiga.
Sem elas, não é possível conceber
qualquer espécie de produção. (...); do
mesmo modo é importante distinguir as
determinações que valem para a produção
em geral, a fim de que a unidade (...) não
nos faça esquecer a diferença essencial.
Este esquecimento é o responsável por
toda a sapiência dos economistas
modernos que pretendem provar a
eternidade e a harmonia das relações
sociais atualmente existentes (MARX,
1983b, p. 202-203).
A produção é uma relação social – indivíduos produzindo
em sociedade – e que muda historicamente, mantendo
elementos semelhantes e por isso é possível pensar em
produção em geral e elementos específicos de cada época
histórica. Essa relação social que é a produção é também
consumo. Isso ocorre pelo seguinte processo: “o indivíduo que
desenvolve suas faculdades ao produzir, igualmente as
despende, as consome no ato da produção” e “há o consumo dos
meios de produção que empregamos, porque se desgastam ou se
dissolvem” (MARX, 1983b p. 208). Isso também acontece com
a matéria-prima. Em síntese: “o ato de produção é, em todos os
seus momentos e ao mesmo tempo, um ato de consumo”
(MARX, 1983b, p. 208). O consumo também é produção, pois é

109
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

através dele que o produto se transforma realmente em produto


e cria a necessidade de uma nova produção.

A este duplo caráter corresponde,


do ponto de vista da produção: 1º, A
produção fornece ao consumo a sua
matéria, o seu objeto. Um consumo sem
objeto não é consumo; neste sentido,
portanto, a produção cria, produz o
consumo. 2º, Mas não é unicamente o
objeto que a produção dá ao consumo.
Dá-lhe ainda o seu aspecto determinado, o
seu caráter, o seu acabamento (finish). Tal
com o consumo dava o retoque final ao
produto como produto, a produção dá-o
ao consumo. Em primeiro lugar, o objeto
não é um objeto geral, mas um objeto
determinado, que deve ser consumido de
forma determinada, à qual a própria
produção deve servir de intermediária. A
fome é a fome, mas a fome que se satisfaz
com carne cozinhada, comida com faca e
garfo, não é a mesma fome que come a
carne crua servindo-se das mãos, das
unhas, dos dentes. Por conseguinte, a
produção determina não só o objeto do
consumo, mas também o modo de
consumo, e não só de forma objetiva, mas
também subjetiva. Logo, a produção cria
o consumidor. 3º, A produção não se
limite a fornecer um objeto material à
necessidade, fornece ainda uma
necessidade ao objeto material. Quando o
consumo se liberta da sua grosseria
primitiva e perde o seu caráter imediato –
e não fazer seria ainda o resultado de uma

110
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

produção que se mantivesse num estágio


de primitiva rudeza –, o próprio consumo,
enquanto instinto, tem como
intermediário o objeto. A necessidade que
sente desse objeto é criada pela percepção
deste. O objeto de arte – tal como
qualquer outro produto – cria um público
capaz de compreender a arte e de apreciar
a beleza. Portanto, a produção não cria
somente um objeto para o sujeito, mas
também um sujeito para o objeto. Logo, a
produção gera o consumo: 1º, fornecendo-
lhe a sua matéria; 2º, determinando o
modo de consumo; 3º, criando no
consumidor a necessidades de produtos
que começaram por ser simples objetos.
Produz, por conseguinte, o objeto do
consumo, o modo de consumo, o instinto
do consumo (MARX, 1983b, p. 210).
Em cada época histórica, há um modo de produção
específico, mas existem elementos comuns a todos os modos de
produção. E o modo de produção é o modo como os seres
humanos produzem e reproduzem os meios de existência,
produtos, objetos, consumo, relações sociais que geram outras
relações sociais. Portanto, a produção adquire formas diferentes
em épocas diferentes. Estas formas são os modos de produção.
Marx abordou a sucessão de alguns modos de produção na
Europa Ocidental e destacou que existem elementos comuns a
todos os modos de produção e elementos específicos em cada

111
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

um deles5. O modo de produção feudal, por exemplo, possui


determinações diferentes do modo de produção capitalista. Mas
quais são os elementos componentes de um modo de produção?
Qual é a relação do modo de produção com a sociedade?
Vejamos o que diz Marx:

Na produção social da sua


existência, os homens estabelecem
relações determinadas, necessárias,
independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento das
forças produtivas materiais. O conjunto
destas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, a base
concreta sobre a qual se eleva uma
superestrutura jurídica e política e a qual
correspondem determinadas formas de
consciência social. O modo de produção
da vida material condiciona o
desenvolvimento da vida social, política e
intelectual em geral (MARX, 1983b, p.
24).
Aqui temos os elementos componentes: as relações de
produção e as forças produtivas. As relações de produção são
relações estabelecidas pelos seres humanos no processo de
produção, sendo, pois, relações sociais. No entanto, se as
relações de produção são relações sociais, isso não quer dizer

5
A isso Karl Korsch chamou de “especificidade histórica” (KORSCH,
1983), embora também englobe o conjunto da sociedade.
112
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

que todas as relações sociais são relações de produção, ou seja,


estas últimas formam um tipo específico de relações sociais.
Segundo Marx:

Em certo estágio de seu


desenvolvimento, as forças produtivas
materiais entram em contradição com as
relações de produção existentes, ou, que é
sua expressão jurídica, com as relações de
propriedade no seio das quais se tinha
movido até então. De forma de
desenvolvimento das forças produtivas,
estas relações transformam-se no seu
entrave. Surge então uma época de
revolução social (MARX, 1983b, p. 24-
25).
Assim, temos as relações de produção como relações
sociais no processo de produção cuja expressão jurídica são as
relações de propriedade. As relações de propriedade, são
relações entre classes sociais (VIANA, 2007b; VIANA, 2012a).
Isso, no entanto, necessita esclarecimentos. As relações de
propriedade apenas juridicamente são relações de produção. Em
outra obra, na qual critica Proudhon, Marx destacou isso, pois o
foco de sua análise não são as relações de propriedade e sim as
relações de produção6:

6
E aqui se mantém a tese dos Manuscritos de Paris e A Ideologia
Alemã, escritos anteriores, segundo a qual, é o trabalho que gera a
propriedade, tal como vimos no capítulo sobre trabalho alienado.
113
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Enfim, a propriedade constitui a


última categoria no sistema do Sr.
Proudhon. No mundo real, ao contrário, a
divisão do trabalho e todas as demais
categorias do Sr. Proudhon são relações
sociais que, em seu conjunto, formam
aquilo que atualmente se denomina
propriedade. Fora destas relações, a
propriedade burguesa não passa de uma
ilusão metafísica ou jurídica. A
propriedade de outra época, a propriedade
feudal, desenvolve-se em uma série de
relações sociais completamente diversas.
Quando estabelece a propriedade como
uma relação independente, o Sr. Proudhon
comete algo mais que um simples erro de
método: demonstra, claramente, que não
apreendeu o vínculo que liga todas as
formas da produção burguesa, que não
compreendeu o caráter histórico e
transitório das formas da produção em
uma determinada época (MARX, 1989, p.
210).
Marx destaca a historicidade da propriedade e de seu
caráter jurídico, que só pode ser compreendido no
conjunto das relações sociais. A propriedade expressa
relações sociais históricas e são a face jurídica de relações
sociais concretas, existentes realmente, podendo expressá-
las de forma adequada ou não. Em síntese, a propriedade
sendo expressão jurídica de relações sociais concretas,
relações de produção, possui momento de unidade e
114
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

momento de separação, são idênticos e diferentes. Está


intimamente ligada a divisão social do trabalho.
Segundo Marx, “Os diversos estágios de
desenvolvimento da divisão social do trabalho
representam outras tantas formas diferentes da
propriedade” e isso quer dizer que a “cada novo estágio da
divisão do trabalho determina, igualmente, as relações dos
indivíduos entre si no tocante à matéria, aos instrumentos
e ao produto do trabalho” (MARX e ENGELS, 2002, p.
12). Marx afirma que a divisão social do trabalho encerra
a propriedade, mostrando que, no fundo, são a mesma
coisa: “Assim, divisão do trabalho e propriedade privada
são expressões idênticas – na primeira se enuncia, em
relação à atividade, aquilo que na segunda é enunciado em
relação ao produto dessa atividade” (MARX e ENGELS,
2002, p. 28). As relações de produção são formas
assumidas pela divisão social do trabalho na produção dos
bens materiais na sociedade, que produz juridicamente a
propriedade privada. As relações de propriedade são
relações entre proprietários e não-proprietários, sendo,

115
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

portanto, relações de classes. Nesse sentido, relações de


produção são relações de classes7.
O outro elemento componente do modo de produção
são as forças produtivas. O que são as forças produtivas?
Marx apresentou a seguinte definição:

As forças produtivas são o


resultado da energia prática dos homens,
mas esta mesma energia é circunscrita
pelas condições em que os homens se
acham colocados, pelas forças produtivas
já adquiridas, pela forma social anterior,
que não foi criada por eles e é produto da
geração precedente. O simples fato de
cada geração posterior deparar-se com
forças produtivas adquiridas pelas
gerações precedentes, que lhes servem de
matéria-prima para novas produções, cria
na história dos homens uma conexão, cria
uma história da humanidade, que é tanto
mais a história da humanidade quanto
mais as forças produtivas dos homens, e,
por conseguinte, as suas relações sociais
adquiriram maior desenvolvimento.
(MARX, 1989, p. 207).
As forças produtivas, portanto, são o resultado do
processo de produção e trabalho da época anterior, e por isso

7
Isso a partir do surgimento das sociedades classistas, pois antes
disso, as relações de produção são relações sociais igualitárias no
processo de produção e consumo.
116
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

inclui os meios de produção (máquinas, ferramentas, etc.), um


determinado estágio de desenvolvimento das capacidades
humanas, da força de trabalho, um modo de cooperação. As
forças produtivas não tem vida, não “se desenvolvem”, ao
contrário do que pensam alguns intérpretes de Marx. Apesar do
conceito de forças produtivas ser mais amplo do que julgam
alguns destes intérpretes, que a consideram apenas como
“máquinas” ou “meios de produção”8, o que torna ainda mais

8
Nesse sentido, os intérpretes realizam um recuo em relação a Marx e
retomam Proudhon, criticado por Marx justamente por isso: “Para o
Sr. Proudhon, a conexão entre a divisão do trabalho e as máquinas é
inteiramente mística. Cada um dos modos da divisão do trabalho
tinha seus instrumentos de produção específicos. De meados do
século 17 a meados do século 18, por exemplo, os homens não
produziam tudo à mão. Possuíam instrumentos, e instrumentos muito
complicados, como teares, alavancas, etc.” (MARX, 1989, p. 209).
Curiosamente, Marx não poderia prever o surgimento de pretensos
marxistas, na verdade, pseudomarxistas, “místicos”. Korsch já havia
alertado para isso: “O conceito marxista não tem nada de místico
nem de metafísico. ‘Força produtiva’ não é, aqui, nada mais que a
real capacidade de trabalhar dos homens vivos: a capacidade de
produzir por intermédio de seu trabalho e com a utilização de
determinados meios materiais de produção e em uma forma de
cooperação determinada por eles, os meios materiais para a
satisfação das necessidades sociais da vida, o que quer dizer, em
condições capitalistas, a capacidade de produzir ‘mercadorias’. Tudo
o que aumenta esse efeito útil da capacidade humana de trabalhar (e
portanto, em condições capitalistas, inevitavelmente também o lucro
de seus exploradores) é uma nova ‘força produtiva’ social”
(KORSCH, 1983, p. 211).
117
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

exótica a ideia de que elas possuem uma história autônoma e


independente. Marx, criticando Proudhon, afirma:

Assinalarei, também, de passagem,


que, se o Sr. Proudhon não chegou a
compreender a origem histórica das
máquinas, compreendeu menos ainda o
seu desenvolvimento. Pode-se dizer que
até 1825 – época da primeira crise
universal – as necessidades do consumo,
em geral, cresceram mais rapidamente
que a produção, e o desenvolvimento das
máquinas foi uma consequência
obrigatória das necessidades do mercado.
A partir de 1825, a invenção e a utilização
das máquinas não foi mais que um
resultado da guerra entre patrões e
empregados. Mas isto só é válido com
referência à Inglaterra. Quanto às nações
europeias, viram-se obrigadas a empregar
as máquinas em função da concorrência
que lhes faziam os ingleses, tanto em seus
próprios mercados quanto no mercado
mundial. Já na América do Norte, a
introdução da maquinaria deveu-se tanto à
concorrência com outros países quanto à
escassez de mão-de-obra, isto é, à
desproporção entre a população do país e
as suas necessidades industriais (MARX,
1989, p. 209).
Essa passagem é suficiente para mostrar aos
intérpretes de Marx que afirmam que ele é um
“determinista tecnológico”, são pensadores e cientistas

118
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

místicos e que eles não fazem mais que atribuir o seu


misticismo a Marx. A passagem acima mostra que o
desenvolvimento das máquinas é determinado pelas
relações sociais. Em cada caso específico, determinações
específicas. Os deterministas tecnológicos reduziram as
forças produtivas às máquinas e ferramentas e, depois,
deduziram que estas se desenvolvem por conta própria,
indo mais longe no misticismo que Proudhon, que deduzia
seu desenvolvimento da divisão social do trabalho em
geral (abstratamente vista). Essa ideologia da autonomia
das forças produtivas não são apenas produtos de
deficiência ou loucura da mente dos ideólogos, pois, no
fundo, ela tem uma base real, a sociedade existente e sua
forma de organização, em sua aparência. Tal como coloca
Marx:

As forças produtivas se apresentam


como completamente independentes e
desligadas dos indivíduos, como um
mundo à parte, ao lado dos indivíduos.
Isso tem sua razão de ser porque os
indivíduos, dos quais são as forças,
existem como indivíduos dispersos e em
oposição uns aos outros, enquanto que
essas forças, por outro lado, só são forças
reais no comércio e na interdependência
119
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

desses indivíduos. Portanto, por um lado,


uma totalidade das forças produtivas que
assumiram uma espécie de forma objetiva
e não são mais para esses indivíduos as
suas próprias forças, mas sim as da
propriedade privada e, portanto, as dos
indivíduos unicamente na medida em que
são proprietários privados. Em nenhum
período anterior as forças produtivas
tinham assumido essa forma indiferente
ao comércio9 dos indivíduos enquanto
indivíduos, porque suas relações eram
ainda limitadas. Por outro lado, vê-se
evidenciar ante essas forças produtivas a
maioria dos indivíduos de que essas
forças se desligaram e que dessa forma se
viram frustrados do conteúdo real da sua
vida, tornaram-se indivíduos abstratos,
mas que, por isso mesmo e somente
então, foram colocados em condições de
entrar em contato uns com os outros
enquanto indivíduos (MARX e ENGELS,
2002, p. 82).
O que Marx diz nesse trecho é que as forças
produtivas aparecem como “forças objetivas”,
“completamente independentes” aos indivíduos. Isso

9
Marx usa o termo alemão Verkehr, que é bem mais amplo que
“comércio”, no sentido mercantil do termo, e é mais próximo de
“intercâmbio”, que quer dizer relação, troca, etc. Ele mesmo alerta
isso em uma passagem de sua Carta a Annenkov: “emprego aqui a
palavra comércio em seu sentido mais amplo, do mesmo modo que
empregamos em alemão o vocábulo Verkehr” (MARX, 1989, p.
207).
120
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

significa que no reino da aparência, das representações


ilusórias, elas se apresentam – mas não são – forças
objetivas e independentes. Essa é uma concepção
fetichista das forças produtivas. Porém, Marx explica a
gênese dessa concepção fetichista das forças produtivas:
trata-se da gênese e desenvolvimento da propriedade
privada, a separação entre trabalhadores e suas próprias
forças produtivas, que os fazem perder a percepção de que
tais forças são produzidas por eles, e assim aparentam ser
algo autoprodutor, sob o nome de propriedade privada, e,
no caso, do capitalismo, sob o nome de capital10.
Assim, os ideólogos que interpretam Marx como
determinista tecnológico (o determinismo das forças
produtivas, entendidas como tecnologia apenas, enquanto
que o conceito é muito mais amplo em Marx) se mostram
totalmente equivocados e que apenas produzem um
fetichismo das forças produtivas, já criticado pelo autor

10
E desde os Manuscritos de Paris, sob forma mais abstrata, Marx
repete essa afirmação e por isso é tão difícil compreender que
intelectuais, especialistas no trabalho intelectual, pseudomarxistas
passem por cima de tantas afirmações antifetichistas transformando-
as em afirmações fetichistas.
121
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

interpretado, que vira, nessa concepção


interpretação/deformação ideológica, mais um fetichista. E
desde os Manuscritos de Paris, sob forma mais abstrata,
Marx repete essa afirmação e por isso é tão difícil
compreender que intelectuais (especialistas no trabalho
intelectual) pseudomarxistas passem por cima de tantas
afirmações antifetichistas transformando-as em afirmações
fetichistas. Obviamente que aqui também atuam os valores
e interesses dos intérpretes, além das demais
determinações já aludidas.
Porém, em que pese o desenvolvimento das forças
produtivas possuírem múltiplas determinações, há uma
determinação fundamental. Qual é essa determinação?
Marx coloca: “As condições nas quais se podem utilizar
forças produtivas determinadas são as condições da
dominação de uma classe determinada da sociedade”, pois
“o poder social dessa classe, decorrendo do que ela possui,
encontra regularmente sua expressão prática sob forma
idealista no tipo de Estado peculiar a cada época” (MARX
e ENGELS, 2002, p. 85). Assim, a forças produtivas
aparecem como sendo independentes dos indivíduos e, no
122
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

fundo, sua utilização é determinada pela classe dominante,


ou seja, a sua aparência de autonomia não só esconde que
elas são determinadas como também que a classe
dominante, a classe proprietária, é sua principal
determinação. E uma classe é dominante porque, nas
relações de produção, domina a atividade de produção,
tornando o trabalho alienado e extraindo um mais-produto
que garante seu poder material. É por isso que a revolução
comunista transforma o modo de atividade ao invés de
simplesmente redistribuí-lo ou atuar apenas sobre a renda
ou a propriedade, tal como trataremos adiante.
Em síntese, o modo de produção é composto pelas
forças produtivas e relações de produção, que, em cada
modo de produção específico, possui uma correspondência
e contradição. O modo de produção possui uma dinâmica
própria que se manifesta, em determinadas sociedades (as
divididas em classes sociais)11, como luta de classes. Isso
se deve ao fato de que as relações de produção, nas

11
No Manifesto Comunista, Marx e Engels diferenciaram entre as
sociedades divididas em classes sociais e as sociedades sem classes,
pré-históricas (cf. MARX e ENGELS, 1988).
123
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sociedades classistas, são relações de classes sociais,


fundada em um determinado tipo de divisão social do
trabalho, que já não é mais uma divisão rudimentar do
trabalho (sexo, idade).
A relação entre forças produtivas e relações de
produção é outro ponto de polêmica entre os intérpretes de
Marx. Contudo, de tudo que foi visto anteriormente, fica
evidente que as relações de produção possuem primazia
sobre as forças produtivas, que, no entanto, condicionam
as relações de produção e as lutas de classes que elas
manifestam12. O desenvolvimento das forças produtivas
tem como determinação fundamental as relações de
produção, que são relações de classes, luta de classes. Por
conseguinte, um modo de produção é, nas sociedades
classistas, um modo de luta de classes, uma forma
específica de luta de classes na qual se constitui

12
Marx diz, em O Capital, que o modo de produção capitalista, “como
qualquer outro modo de produção determinado, pressupõe certo
nível das forças sociais produtivas e de suas formas de
desenvolvimento como sua condição histórica: uma condição que é,
ela mesma, o resultado e o produto históricos de um processo
anterior e do qual parte o novo modo de produção como sua base
dada” (MARX, 1988c, p. 293).
124
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

determinado modo de atividade, cooperação, organização


do trabalho, dos quais deriva as relações de distribuição e
as expressões jurídicas desta relação (a propriedade, por
exemplo)13.
Como vimos na citação anterior, o modo de
produção determina as formas jurídicas, políticas e
ideológicas em uma determinada sociedade. Estes outros
elementos componentes da sociedade, além do modo de
produção, tiveram sua cristalização linguística na
expressão “superestrutura” (VIANA, 2007b). Assim, o
modo de produção é a determinação fundamental de uma
sociedade14.

13
“As relações de distribuição são essencialmente idênticas a essas
relações de produção, sendo um reverso delas, de modo tal que
ambas partilham o mesmo caráter historicamente transitório”
(MARX, 1988c, p. 293).
14
Alguns intérpretes de Marx quiseram substituir o conceito de
sociedade pelo de “formação social”, sob pretexto de que este último
termo carregaria em si a ideia de historicidade. No entanto,
concordamos com Luporini, crítico da noção de formação social,
pois, segundo ele: “a contraposição da palavra ‘formation’, como
que um ‘nome de ação’ (e que denota portanto um conceito
‘dinâmico’), à palavra ‘Form’, como de um ‘nome de estado’ (e que
denota portanto um que de ‘estático’) me parece sem fundamento.
Parece-me evidente que a palavra ‘Form’ pode denotar uma forma
que se desenvolve, dinâmica, portanto, e a palavra ‘formation’ uma
125
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Esta afirmação pode parecer que sustenta outra


interpretação comum e equivocada do pensamento de
Marx, que é o seu “determinismo econômico” (algo um
pouco mais amplo que o determinismo tecnológico, que se
limita às forças produtivas, entendidas de forma restrita e
equivocada, englobando o que se chama “economia”). O
conceito de modo de produção é muito mais amplo do que
o de “economia” e este termo tem muitos significados,
incluindo “produção de riquezas”, “mercado”, “finanças”,
“oferta e procura”, etc., ou seja, os termos da economia
política burguesa criticada por Marx. Obviamente que

configuração que se apresenta estaticamente (como em geologia, de


cuja linguagem Marx provavelmente a tirou): e vice-versa. Os dois
termos, tomados em si, são tais que nada se pode decidir sobre o seu
valor estático ou dinâmico, a não ser a partir do contexto que são
utilizados” (LUPORINI, 1974, p. 223). Sendo assim, não
consideramos que o termo “sociedade” signifique algo estático (além
de ter sido usado amplamente por Marx), pois o que decide isto é o
contexto discursivo não qual é utilizado e consideramos, portanto,
desnecessário substituí-lo por um outro termo como o de “formação
social”. De qualquer forma, isso ultrapassa o problema da
interpretação de Marx e passa para o campo dos usos de seu
pensamento e, consequentemente, alterações por parte daqueles que
o usam. Além disso, um determinado estágio de desenvolvimento da
humanidade é simultaneamente estático e dinâmico e o conceito de
sociedade expressa isso. A sociedade feudal, por exemplo, é
dinâmica e mutável em sua forma, mas seu conteúdo permanece até
sua substituição pela sociedade capitalista.
126
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Marx era um crítico da economia política em geral e da


burguesa em particular, e por isso discordava cabalmente
das ideologias produzidas pelos seus ideólogos, tal como
mostraremos adiante, incluindo a de Adam Smith, do
mercado como mão invisível, entre inúmeras outras que
serão criticadas em várias de suas obras, desde os
Manuscritos de Paris até O Capital.
A questão é que Marx, em algumas passagens, usa a
palavra economia, mas os intérpretes dificilmente fazem o
trabalho árduo de entender as palavras usadas por um
autor no interior do seu discurso e significado próprio. É
mais fácil e comum, embora totalmente equivocado, usar o
procedimento de pensar que o autor usou tal palavra e não
se perguntar sobre o que ela realmente significa no seu
pensamento e assim usa-se o dicionário, as representações
cotidianas ou outras definições já vistas para dar um
significado, deformando o que o interpretado quis dizer.
Esta é a interpretação verbalista, criticada por Labriola
(1979) e já citada aqui. Marx, quando usa o termo
economia ou seus derivados, dá-lhe o significado de modo
de produção.
127
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Aqui temos outro elemento que provoca confusão.


Muitos transformam Marx em fetichista (das forças
produtivas, do capital, do modo de produção, etc.)
enquanto ele sempre coloca que se trata de relações
sociais. O modo de produção é composto pelas relações de
produção, seu elemento fundamental, e pelas forças
produtivas, e as primeiras são relações sociais, como já
demonstramos. Mas podemos citar novamente Marx para
evidenciar isso em outra passagem em que ele explica o
caráter das relações de produção: “relações em que os
homens entram em seu processo de vida social, na criação
de sua vida social” (MARX, 1988c, p. 293). No entanto,
as relações de produção são relações sociais específicas,
na qual ocorre o processo de produção e esta, nas
sociedades classistas, são relações entre as classes sociais.
É por isso que a dicotomia que alguns atribuem a
Marx, entre “estrutura” e “sujeito”, ou “desenvolvimento
das forças produtivas” e “luta de classes” é sem sentido15.

15
Um conjunto de intérpretes de Marx defenderam tais concepções,
sem maior fundamentação e demonstrando não entender o autor,
geralmente sem uma pesquisa mais profunda de suas obras, como a
128
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

O último item é mais questionável ainda, pois as forças


produtivas não se desenvolvem autonomamente e isso já
foi explicitado. Da mesma forma, uma oposição entre uma
suposta “estrutura” (seja ela modo de produção ou, mais
restritamente, forças produtivas) e “sujeito” é um equívoco
que apenas demonstra o não entendimento do que é modo
de produção para Marx. Aqui o procedimento é o mesmo,
ou seja, o intérprete usa uma consciência fetichista e
atribui a Marx um conceito de modo de produção
metafísico, inexistente no interpretado. Depois, observa
que algumas passagens e afirmações do interpretado
contradiz isso e, logo, atribui a ele também uma
contradição. A incompreensão do intérprete se transforma
em contradição do interpretado, assim como uma criança
míope pode pensar que o mundo é embaçado, ou seja,
pode pensar que o problema seu é externo, do outro.

filósofa Agnes Heller (1982), que julgava haver uma contradição no


seu pensamento entre forças produtivas e luta de classes, ou o
historiador Perry Anderson (1984), que encontrava contradição entre
“sujeito” e “estrutura”, termos nem sequer usados por Marx como
conceitos. Uma crítica a estas interpretações pode ser vista em
Viana, 2007c.
129
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Por isso vamos aprofundar um pouco mais o


conceito de modo de produção em sua totalidade. Numa
das primeiras formulações em que cita o termo, Marx
explicita esse caráter totalizante:

O modo pelo qual os homens


produzem seus meio de vida depende,
antes de tudo, da natureza dos meios de
vida já encontrados e que têm que
reproduzir. Não se deve considerar tal
modo de produção de um único ponto de
vista, a saber: a reprodução da existência
física dos indivíduos. Trata-se, muito
mais, de uma determinada forma de
atividade dos indivíduos, determinada
forma de manifestar sua vida,
determinado modo de vida dos mesmos.
Tal como os indivíduos manifestam sua
vida, assim são eles. O que eles são
coincide, portanto, com sua produção,
tanto com o que produzem, como com o
modo como produzem. O que os
indivíduos são, portanto, depende das
condições materiais de sua produção
(MARX e ENGELS, 1991, p. 28).
Aqui nos encontramos diante do conceito marxista
de classes sociais. O processo de produção, nas sociedades
de classes, como já colocamos, é fundado na exploração
de uma classe sobre outra, mediado pela dominação. O
trabalho alienado é o elemento fundamental e é relação

130
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

social entre produtores explorados e exploradores não-


produtores. Aqui temos relações de classes, mas é preciso
aprofundar essas questões e mostrar que entre luta de
classes e modo de produção não existe distinção radical e
por isso não existe contradição no pensamento de Marx
nesse aspecto.
Para Marx, a história não é, como para alguns
pseudomarxistas, o desenvolvimento das forças
produtivas, afirmação que ele não fez em lugar algum16. O
que ele coloca é que “a história de toda sociedade até hoje
é a história de luta de classes” (MARX e ENGELS, 1988,
p. 66). Marx considera que as classes sociais são
compostas por um conjunto de indivíduos que
compartilham o mesmo modo de vida (modo de atividade)
e isso gera interesses comuns e luta com as demais classes
(MARX e ENGELS, 2002; MARX, 1989; MARX e
ENGELS, 1988; MARX, 1987a). Derivado disso também
geralmente compartilham costumes e representações

16
Apenas numa má interpretação do Prefácio ao livro Contribuição à
Crítica da Economia Política (MARX, 1983b), e poderia pensar
nisso, mas ela não se sustenta a partir de uma leitura rigorosa.
131
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

comuns. Em várias passagens Marx reproduz esta ideia e


ela pode ser vista quando aborda a burguesia como classe
social:

Na idade média, os burgueses


eram obrigados a se unir em cada cidade,
contra a nobreza do campo, para se
defender; a extensão do comércio, o
estabelecimento das comunicações
levaram cada cidade a conhecer outras
cidades que tinham feito triunfar os
mesmos interesses, lutando contra os
mesmos inimigos. Só muito lentamente a
classe burguesa se formou a partir das
numerosas burguesias locais das diversas
cidades. A oposição às relações existentes
e também o modo de trabalho que essa
oposição condicionava transformaram ao
mesmo tempo as condições de vida de
cada burguês em particular, para fazer
delas condições de vida comuns a todos
os burgueses e independentes de cada
individuo isolado. Os burgueses tinham
criado essas condições na medida em que
se tinha desligada da associação feudal. E
eles tinham sido criados por essas
condições, na medida em que estavam
determinados por sua oposição ao
feudalismo existente. Com a ligação entre
as diferentes cidades, essas condições
comuns transformaram-se em condições
de classe. As mesmas condições, a mesma
oposição, os mesmos interesses deviam
engendrar os mesmos costumes. Por toda
parte, a própria burguesia só se

132
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

desenvolve pouco a pouco, ao mesmo


tempo que lhe são dadas as condições
prévias para isso; por sua vez ela se divide
em diferentes frações, segundo a divisão
do trabalho, e acaba por absorver em seu
âmbito todas as classes proprietárias já
existentes (enquanto ela transforma em
uma nova classe, o proletariado, a maioria
da classe não proprietária e uma parte da
classe até então proprietária), na medida
em que toda a propriedade existente é
convertida em capital comercial e
industrial” (MARX e ENGELS, 2002, p.
61).
O modo de vida de cada classe social17 tem sua
origem em determinada posição na divisão social do

17
No trecho citado acima, Marx coloca “condições de vida” e em
outros momentos “modo de vida”. Observando o original alemão,
condições de vida aparece 13 vezes e modo de vida 5 vezes.
Contudo, modo de vida aparece nos momentos mais significativos e
em uma passagem como sinônimo de modo de produção (conceito
ainda não estabelecido nessa obra, que usa, preferencialmente,
“formas de propriedade”). Em outras obras posteriores, modo de
vida é utilizado ao invés de condições de vida. Por isso consideramos
modo de vida um conceito e “condições de vida” um quase
sinônimo. Hoje preferimos utilizar modo de vida como conceito que
apontam os elementos comuns na vida de cada classe social e
condições de vida reservamos para diferenças no seu interior.
Exemplificando: o proletariado (como todas as classes sociais)
possui um modo de vida comum, mas distintas “condições de vida”.
No primeiro caso, todos os proletários produzem mais-valor, são
assalariados, etc. e no segundo, num nível maior de concreticidade,
podemos dizer que eles possuem diferenças em suas condições de
133
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

trabalho. A divisão social do trabalho, como já colocamos,


é idêntica às relações de produção, ou sua expressão
jurídica, as relações de propriedade. As relações de
propriedade se referem ao resultado do que na divisão
social do trabalho se refere à atividade. Assim, divisão
social do trabalho e relações de produção são a mesma
coisa e, logo, é aí que se constituem as classes sociais.
Contudo, em uma determinada sociedade, não existe
apenas uma forma de relações de produção e um modo de
produção. Este é um outro elemento geralmente esquecido
do pensamento de Marx, inclusive porque ele não
enfatizou isso e, embora tenha aparecido em várias obras,
não ganhou a mesma frequência que outras afirmações do
mesmo. Curiosamente, é no Prefácio da Contribuição à
Crítica da Economia Política, um dos mais citados e
menos compreendidos trechos da obra de Marx, que ele
coloca que “O conjunto destas relações de produção
constitui a estrutura econômica da sociedade”. Ao abordar
a questão do conjunto das relações de produção, isso

vida, pois alguns moram em regiões menos perigosas do que outros,


ganham salários melhores, etc.
134
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

significa que não existe apenas uma relação de produção


em uma determinada sociedade, que podem existir mais,
assim como ele coloca em obras como O Capital e A
Miséria da Filosofia, a existência de um modo de
produção dominante, o que significa a existência de outros
modos de produção subordinados ao dominante. Esse
conjunto de relações de produção é determinado, no
entanto, pelo modo de produção dominante (e pelas
relações de produção que lhe caracterizam). Ao comentar
o caráter dominante do modo de produção capitalista,
Marx cita exemplos da existência de outros modos de
produção dominantes:

Aliás, essa espécie de


assimilação também é própria de modos
de produção anteriormente dominantes,
por exemplo, o feudal. Relações de
produção que absolutamente não lhe
correspondiam, que estavam
completamente fora das suas, foram
subordinadas às relações feudais, como,
por exemplo, na Inglaterra, os tenures in
common socage (por oposição aos tenures
on kngihts’s service), que só implicavam
obrigações monetárias e que só pelo nome

135
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

é que eram feudais (MARX, 1988a, p.


291)18.
O modo de produção dominante expressa uma
divisão social do trabalho no interior das relações de
produção dominantes e estas determinam as demais
manifestações da divisão social do trabalho. Nas relações
de produção dominantes (ou seja, do modo de produção
dominante) se constituem as duas classes sociais
fundamentais de uma determinada sociedade, a classe
dominante e a classe explorada. A relação entre essas
classes é de luta, oposição constante, e que as caracterizam
como classe e expressam o que são as relações de
produção, ou, juridicamente, as relações de propriedade.
Contudo, ao contrário do que pensam alguns intérpretes,
não existem apenas duas classes sociais numa determinada
sociedade e sim várias. Isso porque além das duas classes
constituídas pelas relações de produção dominantes,
existem aquelas que são constituídas pelos modos de
produção subordinados, pelas relações de produção
subordinadas. É por isso que muitos não entendem como
18
As expressões em inglês seriam, no primeiro caso, “feudos
campesinos livres” e, no segundo, “feudos de cavalaria”.
136
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Marx, no Manifesto Comunista, não apresentou apenas


duas classes em modos de produção anteriores ao
capitalismo:

Nas épocas anteriores da


história encontramos quase por toda parte
uma completa estruturação da sociedade
em diversas ordens, uma múltipla
gradação das posições sociais. Na Roma
antiga, temos patrícios, guerreiros,
plebeus, escravos; na Idade Média,
senhores feudais, vassalos, mestres,
companheiros, aprendizes, servos; e, em
quase todas essas classes, outras
gradações particulares (MARX e
ENGELS, 1988a, p. 67).
Essa interpretação equivocada ocorre devido ao
fato dos seus realizadores não buscarem reconstituir o
conceito de classes sociais em Marx e sim atribuir a ele o
que outros autores (especialmente Lênin e seus
sucessores) afirmaram, tal como a ênfase nos meios de
produção e o aspecto jurídico, por exemplo (VIANA,
2012a)19. Assim, os modos de produção subordinados

19
Um conjunto de pseudocríticos de Marx apelou para a concepção
leninista para tentar destruir sua concepção de classes e provocaram
infindáveis discussões sobre propriedade (no sentido jurídico) e
meios de produção ao invés de discutir as relações de produção,
mostrando desconhecer tal teoria que supostamente criticavam
137
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

constituem outras classes sociais (este é o caso dos


camponeses e artesãos, no capitalismo). Além destas,
outras classes existem, tal como as que são resquícios de
outros modos de produção anteriores ao existente e são
temporárias, já que tendem a desaparecer com a evolução
do novo modo de produção dominante e dos modos de
produção subordinados a ele (é o caso da nobreza, no
período de passagem do feudalismo para o capitalismo).
Outras classes existem e que são derivadas das
relações de produção dominantes. Essas classes poderiam
ser chamadas de “improdutivas”20, cuja atividade e papel
na divisão social do trabalho reside em criar as condições
para a reprodução das relações de produção dominantes.
Esse é o caso da burocracia e outras classes que vivem no
âmbito do que geralmente se chama “superestrutura”. Da

(ARON, 1964; GURVITCH, 1982; OSSOWSKI, 1976; GIDDENS,


1975). Para uma crítica a essas ideologias, cf. Viana, 2012a.
20
É preciso deixar claro que Marx não denomina dessa forma, mesmo
porque sua teoria das classes sociais foi apenas esboçada, não tendo
sido desenvolvida a ponto de resolver diversas questões, inclusive
terminológicas. Em apenas uma passagem, um esquema, em sua obra
Contribuição à Crítica da Economia Política, ele coloca a expressão
classes improdutivas, apesar de oferecer elementos mais amplos para
pensá-las em O Capital.
138
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

mesma forma, em todas as sociedades classistas, existiu


uma classe social marginalizada na divisão social do
trabalho, aquelas que nem executam trabalho produtivo
nem improdutivo. Estas classes marginais são o
lumpemproletariado no capitalismo e os plebeus na Roma
antiga, para citar dois exemplos.
Estas classes vivem em constante luta. Elas
possuem modos de vida comuns, interesses comuns e
oposição às demais classes, sendo que em certo caso se
aliam ou aproximam de uma ou várias classes. A luta de
classes ocorre na relação de todas elas, mas o que é
fundamental é a luta entre as duas classes fundamentais (e
geralmente as demais classes se aglutinam em torno
delas). Através da luta, estas classes reforçam seus laços
de solidariedade e unificação, criando novos aspectos em
comum. As classes exploradas e dominadas são classes
em-si, ou seja, são determinadas pela classe dominante
(relações de produção dominantes, Estado, hegemonia
cultural, etc.) e que no processo de luta podem se tornar
classes para-si, isto é, classes autodeterminadas, pois
criam sua forma de associação, agindo coletivamente para
139
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

defender seus interesses. As classes dominantes durante a


história da humanidade são classes para-si, pois formam
sua unificação através do Estado, que representa seus
interesses gerais. Algumas classes sociais possuem uma
maior dificuldade de se tornar classe para-si, devido seu
próprio modo de produção, tal como Marx colocou em
relação ao campesinato (MARX, 1987a).
Através das lutas de classes ocorrem as
transformações sociais, a passagem de um modo de
produção (dominante) para outro. Marx afirmou que as
épocas de revoluções sociais são marcadas por uma forte
contradição entre forças produtivas (resultado da energia
prática dos seres humanos, ou seja, trabalho passado
materializado em um conjunto de instrumentos e meios de
trabalho e produção e presente na capacidade produtiva
desenvolvida em determinado momento histórico) e
relações de produção estabelecidas, sendo que estas são
marcadas por uma dominação de classe, uma determinada
forma de exploração de uma classe sobre outra. O
desenvolvimento das forças produtivas criam as condições
de possibilidade da transformação social, porém, as
140
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

relações de produção dominantes passam a entravar o seu


desenvolvimento. As lutas de classes, neste contexto, se
radicalizam e abrem a possibilidade de uma revolução
social:

Em certo estágio de seu


desenvolvimento, as forças produtivas
materiais entram em contradição com as
relações de produção existentes, ou, que é
sua expressão jurídica, com as relações de
propriedade no seio das quais se tinha
movido até então. De forma de
desenvolvimento das forças produtivas,
estas relações transformam-se no seu
entrave. Surge então uma época de
revolução social. A transformação da base
econômica altera, mais ou menos
rapidamente, toda a imensa
superestrutura. Ao considerar tais
alterações é necessário sempre distinguir
entre a alteração material – que se pode
comprovar de maneira cientificamente
rigorosa – das condições econômicas de
produção, e as formas jurídicas, políticas,
religiosas, artísticas ou filosóficas, em
resumo, as formas ideológicas pelas quais
os homens tomam consciência deste
conflito, levando-o às suas últimas
consequências (MARX, 1983b, p. 24-25).
Assim, as forças produtivas, trabalho
materializado, ficam impedidas de se desenvolver pelas
relações de produção (dominantes) e dessa forma uma
141
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

época de crise se instaura, promovendo uma radicalização


das lutas de classes. Essa contradição ocorre devido à
apropriação das forças produtivas por uma classe social
determinada, a classe dominante, que não quer que o
desenvolvimento delas coloque em questão das relações
de produção e por isso tem que controlar e impedir tal
desenvolvimento. Ao buscar controlar as forças produtivas
(que inclui a classe produtora) para manter as relações de
produção fundadas na exploração e dominação, o que
significa manter determinadas relações entre classes
sociais e sua existência, provoca um processo de constante
conflito de classes que, em determinado momento, ao
entravar o próprio desenvolvimento das forças produtivas,
gera uma situação de crise e revolução, na qual as lutas de
classes se radicalizam e abrem espaço para a revolução
social.
Por conseguinte, essa apropriação e controle das
forças produtivas, realizada pela classe dominante e
seguindo a dinâmica das relações de produção dominantes,
impedem o próprio processo de desenvolvimento das
forças produtivas e busca reproduzir o processo de
142
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

exploração e dominação, o que gera a tendência de crise e


revolução. Isso ocorre não só por travar o
desenvolvimento das forças produtivas e sua apropriação
coletiva. A classe dominante deve não só reproduzir as
relações de produção existentes como, ainda, aumentar o
processo de exploração e dominação. Ao travar o
desenvolvimento das forças produtivas, promove a
necessidade de aumentar a exploração e a dominação. As
forças produtivas se tornam forças destrutivas e a
revolução é a solução final desses conflitos e da crise. No
caso do capitalismo:

No desenvolvimento das forças


produtivas, ocorre um estágio em que
nascem forças produtivas e meios de
circulação que só podem ser nefastos no
quadro das relações existentes e não são
mais forças produtivas, mas sim forças
destrutivas (a máquina e o dinheiro) e –
em ligação com isso, nasce uma classe
que suporta todos os ônus da sociedade,
sem gozar das suas vantagens, que é
expulsa da sociedade e se encontra
forçosamente na oposição mais aberta a
todas as outras classes, uma classe
formada pela maioria dos membros da
sociedade e da qual surge a consciência
da necessidade de uma revolução radical,
consciência que é a consciência
143
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

comunista e pode ser forma também, bem


entendido, nas outras classes, quando
toma conhecimento da situação dessa
classe (MARX e ENGELS, 2002, p. 85)21.
Essa classe, então, luta contra a classe dominante
e assim a revolução é produto social das contradições
sociais existentes, da luta de classes. Adiante retornaremos
a esta questão ao tratar das lutas de classes no capitalismo
e a teoria da revolução proletária de Marx. O que interessa
concluir aqui, resumidamente, é que para Marx o
capitalismo cria as condições da revolução comunista e,
por conseguinte, a abolição das classes em geral e a
realização da emancipação humana via revolução
proletária22.
Seria necessário acrescentar alguns elementos
para dar conta da totalidade da análise de Marx sobre as
classes sociais, e isso em parte, será feito nos próximos

21
Alguns aspectos aqui apresentados por Marx serão desenvolvidos e
aperfeiçoados, e outros perderam importância (tal como ser a classe
que é a maioria da população).
22
“No entanto, as forças produtivas que se desenvolveram no seio da
sociedade burguesa, criam ao mesmo tempo as condições materiais
para resolver esta contradição. Com esta organização social termina,
assim, a Pré-História da Humanidade” (MARX, 1983b, p. 25).
144
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

capítulos, porém, temos aqui uma concepção sintética de


sua análise das classes sociais.
Porém, as lutas de classes não se realizam apenas
nesse processo de produção e reprodução da vida material,
elas existem no conjunto das formas políticas, jurídicas e
ideológicas que emergem a partir dessa base material.
Assim, segundo Marx:

O conjunto destas relações de


produção constitui a estrutura econômica
da sociedade, a base concreta sobre a qual
se eleva uma superestrutura jurídica e
política e a qual correspondem
determinadas formas de consciência
social. O modo de produção da vida
material condiciona o desenvolvimento da
vida social, política e intelectual em geral
(MARX, 1983b, p. 23).
Aqui temos um outro elemento polêmico na teoria
de Marx, que é a relação entre “base” e “superestrutura”,
ou entre a sociedade civil, o conjunto das relações de
produção, e as formas jurídicas, políticas, ideológicas
existentes. É aqui que alguns encontram o fundamento da
tese do determinismo econômico de Marx. O que ele
coloca no Prefácio acima citado, é que a partir do
conjunto das relações de produção se eleva uma
145
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

superestrutura jurídica e política, e que há formas de


consciência que correspondem a ela. A seguir, diz que o
modo de produção condiciona o desenvolvimento da vida
social, política e intelectual em geral. Assim, temos a ideia
de elevar, ou seja, erguer, uma superestrutura jurídica e
política. Isso significa, no interior da metáfora do edifício
social entre base e superestrutura23, que não se pode ter
uma superestrutura a não ser possuindo uma base, que, no
caso, é o modo de produção.
A essa superestrutura jurídica e política, corresponde
determinadas formas de consciência social. Corresponder
quer dizer uma relação de identidade, ou seja, relação de
conformidade ou concordância. Seria bem estranho que as
formas de consciência social nada tivessem a ver com as

23
Althusser foi um dos autores que alertaram para a existência de uma
metáfora do edifício social, que tem a função de ilustrar o
pensamento (ALTHUSSER, 1986). Essa percepção de Althusser, no
entanto, tem sua origem na obra de Karl Korsch (1983). Portanto,
base e superestrutura são apenas expressões metafóricas que ilustram
a relação entre modo de produção e formas jurídicas, políticas,
ideológicas e intelectuais e não conceitos. Marx usou tal metáfora da
superestrutura poucas vezes e isso se tornou, nos seus epígonos, um
conceito, sendo reificado (VIANA, 2007b). Por isso propomos o uso
de formas de regularização das relações sociais (VIANA, 2007b) ou
simplesmente formas sociais ao invés de superestrutura.
146
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

formas jurídicas e políticas existentes. Assim, nada é de se


espantar ao notar que o modo de produção da vida
material condiciona as formas jurídicas, políticas e
intelectuais. Também nada é mais natural que “não é a
consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu
ser social que, inversamente, determina a sua consciência”
(MARX, 1983b, p. 24). Ou seja, o ser social determina a
consciência e aqui não há nenhum “determinismo
econômico”, pois não se trata de afirmar que “a economia”
determina a consciência e sim o ser social, ou seja, a
totalidade do ser social e somente num mundo ilusório de
uma consciência absoluta e desligada da realidade, assim
como as nuvens estão desligadas da terra (abstraindo suas
relações), é que se poderia pensar diferente (voltaremos a
isto adiante, na discussão sobre consciência e
representações).
Da mesma forma, quando Marx afirma que “a
transformação da base econômica altera, mais ou menos
rapidamente, toda a imensa superestrutura” (MARX,
1983b, p. 25), está dizendo é que a “base econômica”
(modo de produção, conceito muito mais amplo que
147
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

“economia”, principalmente em certos significados


atribuídos a tal palavra) altera a “superestrutura”. O que
ele quer dizer é algo tão simples que pode ser entendido
com a percepção de que a passagem do modo de produção
feudal para o modo de produção capitalista significou uma
alteração radical nas formas jurídicas, políticas e
ideológicas, pois, outra forma de Estado (o estado
capitalista), de organização jurídica (a substituição do
direito consuetudinário pelo direito formal burguês) e das
ideologias (a teologia e a religião sendo suplantadas pela
ciência, etc., a concepção estática do mundo que
correspondia ao feudalismo por uma concepção dinâmica
que corresponde ao capitalismo). O que Marx afirma é
algo confirmado historicamente e uma verdade
inquestionável e que só os espíritos simples e ao mesmo
tempo extremamente elevados em sua autoimagem,
poderia pensar diferente. A ideia de propriedade não
poderia permanecer havendo mudanças nas relações de
propriedade, bem como sua expressão jurídica não poderia
ser a mesma com sua alteração.

148
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Assim, Marx entende a história como uma sucessão


de diversos modos de produção, diversas formas de
sociedade, que expressavam diferentes formas de luta de
classes: “em um caráter amplo, os modos de produção
asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser
qualificados como épocas progressivas da formação
econômica da sociedade” (MARX, 1983b, p. 25). Essa
sucessão de modos de produção, que manifestam
determinadas lutas de classes, ocorreu, obviamente, em
alguns países, e não em todos, inclusive outros estudos de
Marx apontam para a análise de outros modos de
produção24. No início desse texto Marx coloca que é se
trata de uma “conclusão geral”, que serviu de “fio
condutor” para suas análises e Korsch destacou com razão
o caráter de fio condutor, não sendo, portanto, um modelo
para encaixar a realidade e nem leis da história. Era
justamente isso que o próprio texto coloca, um modo não
idealista de conceber a história. Ele já havia anunciado

24
Isso é bem diferente da deformação stalinista da concepção de
Marx, que produziu “leis da história”, na qual haveria a sucessão
necessária de cinco modos de produção: “comunista primitivo,
antigo, feudal, capitalista e comunista” (STÁLIN, 1982).
149
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

isso anteriormente ao criticar as “frases ocas sobre a


consciência” e a “filosofia da história”:

Com o conhecimento da
realidade, a filosofia não tem mais um
meio para existir de maneira autônoma.
Em seu lugar, poder-se-á no máximo
colocar uma síntese dos resultados mais
gerais que é possível abstrair do estudo do
desenvolvimento históricos dos homens.
Essas abstrações, tomadas em si mesmas,
desvinculadas da história real, não tem
absolutamente nenhum valor. Podem
quando muito servir para a classificação
mais fácil da matéria histórica, para
indicar a sucessão de suas estratificações
particulares. Mas não dão, de modo
algum, como a filosofia, uma receita, um
esquema segundo o qual se possam
ordenar as épocas históricas (MARX e
ENGELS, 2002, p. 21).
De qualquer forma, Marx reconhecia que as
ideologias, as representações, as formas de consciência em
geral, produziam efeitos práticos e tinham um papel
atuante na história. Da mesma forma, o Estado e as formas
jurídicas, também fazem parte da totalidade que é a
sociedade e interferem, no sentido de reproduzir as
relações sociais existentes, principalmente as relações de
produção. Porém, no processo de transformação social, as

150
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

formas jurídicas, políticas e ideológicas são um entrave


para a sua realização e por isso devem ser destruídas e
substituídas por outras formas ou simplesmente ser
abolidas (é o caso do Estado e do direito formal). Algumas
manifestações das formas de consciência podem contribuir
com a transformação social, as que expressam as classes
revolucionárias no processo histórico determinado.
Em síntese, no pensamento de Marx, a relação entre
forças produtivas e relações de produção é bastante
complexa e a simplificação em nada ajuda nesse caso.
Marx afirma que existe uma correspondência entre elas: as
relações de produção feudais constituem forças produtivas
feudais, as relações de produção escravistas, forças
produtivas escravistas. Há aqui uma relação de
correspondência e unidade, mas também existe
contradição, pois as forças produtivas podem limitar as
possibilidades de transformação social, isto é, a criação de
novas relações de produção. A sociedade feudal, por
exemplo, dificilmente permitiria a implantação do
comunismo, pois este necessita de uma base de
desenvolvimento das forças produtivas, incluindo o
151
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

desenvolvimento tecnológico acelerado que não existia


nesta sociedade.
As relações de produção, por sua vez, condicionam e
limitam o desenvolvimento das forças produtivas, pois se
estas não estiverem de acordo com a reprodução da classe
dominante e seus interesses, serão obstaculizadas. As
relações de produção, por sua vez, impedem o livre
desenvolvimento das forças produtivas, pois só permitem
o desenvolvimento daquelas que estejam de acordo com
suas necessidades de reprodução. Numa sociedade
capitalista, por exemplo, um amplo processo de
automação não se desenvolve porque corroeria as bases da
exploração capitalista e decretaria o fim das relações de
produção capitalistas.
Estas contradições se tornam ainda mais complexas
quando levamos em consideração as “formas políticas,
jurídicas e ideológicas”. Estas são compostas pelo Estado,
instituições como a igrejas, partidos, sindicatos, etc., pela
cultura, ideologia e toda forma de produção intelectual.
Estas formas são expressão do modo de produção. Assim,
no modo de produção feudal temos formas “jurídicas”,
152
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

políticas e ideológicas feudais, no modo de produção


escravista, formas escravistas e assim por diante25. Aqui
vemos a unidade entre modo de produção e formas sociais.
Temos aqui também uma unidade e correspondência. Mas
também temos contradição. O modo de produção é a
determinação fundamental destas formas sociais, a base
concreta que as faz brotar.
No entanto, uma vez existindo, esta
“superestrutura”, estas formas sociais de regularização da
sociedade, passa a influenciar o desenvolvimento do modo
de produção e a si mesma, tornando a relação muito mais
complexa. O Estado, as ideias, as instituições, etc.
conseguem assim realizar uma ação recíproca sobre o
modo de produção e adquirir o que Engels denominou
autonomia relativa. Assim, temos unidade e determinação
do modo de produção sobre as formas sociais mas também

25
Alguns elementos da “superestrutura” ou das formas sociais,
existem em alguns modos de produção e não existem em outras. Nas
sociedades pré-classistas, por exemplo, não existia ideologia, Estado,
etc. Da mesma forma, na sociedade feudal não existia direito
propriamente dito. As formas sociais existentes são derivadas das
necessidades e processo de constituição de um determinado modo de
produção.
153
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

autonomia relativa e ação recíproca (veja mapa


conceitual).

Mapa Conceitual dos Conceitos Fundamentais do Materialismo Histórico

A unidade, em determinado contexto histórico, pode


se transformar em contradição. Assim, existe ao mesmo
tempo unidade e contradição, determinação e ação
recíproca. Por exemplo, o Estado Absolutista, embora
comandado pela nobreza, ao invés de realizar ações no
sentido de reforçar as relações de produção feudais,

154
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

contribuíram para o desenvolvimento da manufatura e da


produção capitalista, o que era contrário aos interesses
feudais e assim entrou em contradição com o modo de
produção feudal, embora já anunciasse o novo papel do
Estado diante do modo de produção capitalista nascente.
As revoluções burguesas concretizaram este novo papel
com a modernização e racionalização do Estado, que ficou
livre das impurezas do feudalismo (VIANA, 2003).
A ideia de ação recíproca é questionável
(LABRIOLA, 1979) e foi utilizada por Engels e outros e
não exatamente por Marx, porém serve para ilustrar o
processo de autonomia relativa das formas jurídicas,
políticas e ideológicas, que podem entravar as mudanças
nas forças produtivas e relações de produção, bem como
incentivar seu desenvolvimento, tal como se vê no
pensamento de Marx. No entanto, é preciso estar atento
para o fato de que se trata de autonomia relativa (possível
devido ao processo de divisão social do trabalho, pois o
Estado só existe porque existem seres humanos que lhe dá
vida, tal como o direito, as instituições, as formas de
consciência, etc.) e que não estão isolados, possuindo
155
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

unidade com o modo de produção, apesar das possíveis


contradições que só podem ser corretamente analisadas no
processo histórico concreto.
O Estado é a principal forma de regularização das
relações sociais. Ele surge para amortecer os conflitos de
classes e impedir o dilaceramento da sociedade,
conservando intacto o modo de produção dominante. O
Estado surge com o aparecimento da sociedade de classes,
pois é a luta de classes que o faz necessário. Ele é uma
necessidade da classe dominante, que faz surgir uma
instituição aparentemente neutra e que representa o
interesse da coletividade e, no fundo, representa tão-
somente os interesses coletivos da classe dominante. A
cultura, o mundo das representações, as ideologias,
também representam os interesses da classe dominante,
pois elas naturalizam e universalizam as relações sociais
existentes. Ao apresentar determinadas relações sociais (a
propriedade privada, as desigualdades sociais, etc.) como
naturais e universais, as ideologias e representações em
geral, acabam reforçando o processo de dominação e
legitimando as relações de produção (e sua expressão
156
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

jurídica, as relações de propriedade) e o próprio Estado, o


seu maior guardião. O direito também é uma destas formas
de regularização das relações sociais, apresentando-se
como expressão jurídica da desigualdade e das relações de
classes. O mesmo faz as demais instituições componentes
deste amplo espectro que é o que ficou conhecido como
“superestrutura” (as formas sociais de regularização).
Estes aspectos serão desenvolvidos nos próximos
capítulos.
No entanto, é preciso distinguir entre estas formas de
regularização nas sociedades de classes das existentes nas
sociedades sem classes. Algumas delas existem em ambas
as formas de sociedade, tal como a cultura
(representações, ideias em geral), embora sob forma
diferenciada, e outras existem apenas nas sociedades de
classes, tal como o Estado, a ideologia, etc. Outro
elemento que é necessário acrescentar é que existe, nas
sociedades classistas, uma luta de classes também n
âmbito das formas sociais, principalmente no plano
cultural, pois as diferentes classes criam sua cultura, seus
representantes intelectuais, suas concepções de mundo,
157
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

embora, como já dizia Marx, “as ideias dominantes são as


ideias da classe dominante” (MARX e ENGELS, 1988).
Obviamente que, o que predomina nas formas sociais, é a
classe dominante e suas classes auxiliares, mas as demais
classes sociais exercem certa influência, principalmente no
plano cultural.
Em cada sociedade se constitui uma especificidade
de relações sociais, com classes sociais, formação cultural,
mentalidade, instituições, também distintas. Assim, a
sociedade escravista não possui apenas um modo de
produção fundado no trabalho escravo, mas também em
uma cultura, mentalidade, Estado, instituições,
radicalmente diferentes das demais sociedades. Marx
mostrou justamente a diferença entre as diferentes épocas
históricas, totalidades históricas que se transformam e que
possuem uma especificidade histórica (KORSCH, 1983).
O mesmo ocorre com a sociedade feudal e
capitalista. Na Europa Ocidental, se desenvolveram os
modos de produção escravista, feudal, capitalista. Toda
esta análise histórica de Marx tem como objetivo analisar
o processo de transformação social e entender o processo
158
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

de formação, desenvolvimento e superação das diversas


formas de sociedade que existiram historicamente,
especialmente a sociedade capitalista. Marx desenvolveu o
método dialético e o materialismo histórico visando
abordar a história da humanidade e especialmente o
desenvolvimento capitalista para descobrir as
possibilidades e tendências de superação desta sociedade e
sua substituição pelo comunismo. Por conseguinte, as
deformações e simplificações de sua teoria da história, o
materialismo histórico, bem como as supostas
contradições atribuídas a ele, apenas revelam
incompreensão e superficialidade na análise. Porém,
alguns elementos da chamada “superestrutura” precisam
ser melhor definidos e é a isto que vamos dedicar os
próximos capítulos.

159
A CRÍTICA DA POLÍTICA:
SOCIEDADE CIVIL E ESTADO

Até os políticos radicais e revolucionários


já não procuram o fundamento do mal na
essência do Estado, mas numa
determinada forma de Estado, no lugar da
qual eles querem colocar uma outra forma
de Estado.
Karl Marx

Marx é considerado por muitos como um “estatista”,


um defensor ardoroso do Estado e precursor do
totalitarismo, cujo exemplo teria sido os países do
chamado “socialismo real”. No entanto, nada é mais falso
do que isso. Adiante trataremos de sua concepção de
comunismo. No presente capítulo abordaremos apenas sua
concepção de Estado. Sem dúvida, a interpretação acima é
falsa e sem base real. Esta é a posição de antimarxistas e
antissoviéticos declarados, que buscavam colocar fascismo
e bolchevismo num mesmo saco e responsabilizar Marx
pela ditadura pseudocomunista na antiga URSS e demais
países “socialistas”.
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Porém, outras interpretações, não tão exageradas e


realizadas por epígonos de Marx parecem mais
convincentes e possuindo base nos escritos de Marx. Este
é o caso dos leninistas (em suas variadas vertentes) e
outros. Contudo, trata-se de uma interpretação mediada
pela social-democracia e pelo leninismo e, portanto, tal
como colocaremos no último capítulo da presente obra,
bem distantes do pensamento de Marx, sendo, muitas
vezes, antagônico a ele1. No entanto, é a interpretação
hegemônica. Sua força emerge da sua hegemonia nos
partidos que se dizem comunistas, socialistas e
socialdemocratas e parece convincente a partir de algumas
afirmações de Marx, mal lidas e interpretadas, e somente
uma leitura rigorosa pode recuperar o verdadeiro
significado de suas afirmações sobre o estado. Os dois
elementos que dão maior poder de convencimento para
estas interpretações são algumas afirmações sobre a
estatização dos meios de produção que constam no

1
A interpretação estatista do pensamento de Marx por supostos
marxistas tem sua grande fonte em Lênin, especialmente sua obra O
Estado e a Revolução (LÊNIN, 1987.).
162
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Manifesto Comunista e o uso da palavra “estado” em


algumas ocasiões para se referir ao processo da revolução
proletária, o que está relacionado com o primeiro
elemento. Trataremos destes dois elementos, mas antes
vamos reconstituir a teoria do estado de Marx.
A análise que Marx realiza do estado é inseparável
de sua análise da sociedade civil. Tal como colocamos
anteriormente, a sociedade civil, para Marx, é o conjunto
das relações de produção, ou seja, inclui as relações de
produção dominantes (do modo de produção dominante) e
das demais relações de produção existentes. Também
inclui o processo social em geral, se opondo, no fundo, ao
Estado. A origem da concepção marxista de sociedade
civil se encontra em Hegel. Toda a filosofia anterior a
Hegel considera a sociedade civil como sendo a sociedade
política, o estado (BOBBIO, 1982). Sociedade civil é
sociedade estatal, ou seja, posterior ao “estado de
natureza”. Aqui a concepção de sociedade civil é histórica,
ela seria sucessora das sociedades pré-estatais. Porém,
com Hegel, a sociedade civil torna-se sociedade não-

163
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

estatal, o mundo das relações sociais e econômicas fora do


mundo político.

A inovação de Hegel com


relação à tradição jusnaturalista é radical:
na última redação do seu elaboradíssimo
sistema de filosofia política e social, tal
como aparece na Filosofia do Direito de
1821, ele se decide a chamar de sociedade
civil – ou seja, com uma expressão que,
até seus imediatos predecessores, servia
para indicar a sociedade política – a
sociedade pré-política, isto é, a fase da
sociedade humana que era até então
chamada de sociedade natural. Essa
inovação é radical com relação à tradição
jusnaturalista, porque Hegel, ao
representar a esfera das relações pré-
estatais, abandona as análises que tendiam
a reduzir as relações econômicas às suas
formas jurídicas (teoria da propriedade e
dos contratos), e, desde os anos juvenis,
serve-se dos economistas, especialmente
ingleses, para os quais as relações
econômicas constituem o tecido da
sociedade pré-estatal e nos quais a
distinção entre o pré-estatal e o estatal é
figurada cada vez mais como distinção
entre a esfera das relações econômicas e a
esfera das instituições políticas [...]
(BOBBIO, 1982, p. 28).
Porém, utilizando uma linguagem mais rigorosa, a
sociedade civil em Hegel não é sociedade pré-estatal e sim
não-estatal. O pré-estatal se refere ao passado histórico do
164
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

“estado de natureza” enquanto que o não-estatal se refere


ao presente, a uma relação estabelecida no interior da
sociedade humana a partir de um determinado momento
histórico, o da emergência do Estado.
Marx parte de Hegel para elaborar sua concepção de
sociedade civil. Em seus primeiros escritos, antes da
fundação do materialismo histórico, ele partia de um
humanismo abstrato e assim realizava uma crítica
humanista da sociedade capitalista. Porém, ao desenvolver
sua consciência, Marx vai questionando Hegel. Marx
conserva a ideia de existência de uma sociedade civil, por
um lado, e um Estado, por outro, mas inverte a relação
estabelecida por Hegel:

A relação real da família e da


sociedade civil com o Estado é concebida
como sua atividade interior imaginária. A
família e a sociedade civil constituem os
pressupostos do Estado; são ativas, no
verdadeiro sentido da palavra; mas na
especulação sucede o contrário (MARX,
1978, p. 11).
Ao avançar seu pensamento, Marx considera a
sociedade civil como a base do Estado e este a sanção
desta. No entanto, ele fez todo um complexo percurso
165
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

intelectual para chegar a tais conclusões. O elemento que


ele destacou da filosofia de Hegel e trabalhou em sua
perspectiva foi o significado da sociedade civil. Ele
retoma de Hegel a ideia de diferenciação entre sociedade
civil e Estado, mas a sua crítica mostra o caráter ilusório e
ideológico da abordagem hegeliana da relação entre
ambos. A sociedade civil continua sendo, para Marx, a
instância do privado, das relações privadas e o Estado a
instância do coletivo e das leis. É a oposição entre vida
pública e vida privada:

O Estado funda-se na
contradição entre a vida pública e a vida
privada, entre os interesses gerais e os
particulares. A administração deve
limitar-se, portanto, a uma esfera de
atividade formal e negativa, pois o seu
poder termina no ponto onde começa a
vida civil com o trabalho dela. Em face
das consequências que brotam do caráter
insocial da vida da sociedade civil,
propriedade privada, comércio, indústria,
saque mútuo entre os diferentes grupos, a
impotência é a lei natural da
administração. Essas divisões, esse
rebaixamento e escravidão da sociedade
civil, são as bases naturais sobre as quais
repousa o Estado moderno, assim como a
sociedade civil foi o fundamento natural
da escravidão sobre a qual repousava o
166
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Estado na antiguidade. A existência do


Estado e a escravidão na antiguidade –
franca antítese clássica – não estavam
ligados mais intimamente do que o Estado
moderno e o mundo do comércio
moderno – santa antítese cristã. Se o
Estado moderno quisesse acabar com a
impotência da sua administração, ver-se-
ia obrigado a abolir as presentes
condições da vida privada. E se o Estado
pretendesse abolir essas condições da vida
privada, teria de acabar também com sua
própria existência, pois ele existe
unicamente em relação com elas (MARX,
apud. BOTTOMORE e RUBEL, 1964, p.
208-209)2.
Assim, a realização da ética no Estado, tal como
proposto por Hegel, é uma impossibilidade, pois sua base
é a sociedade civil. O Estado não pode realizar o espírito
absoluto hegeliano. Por isso, já em A Questão Judaica,
Marx critica a ideia de emancipação política. Na sociedade
feudal, a sociedade civil era imediatamente sociedade
política, na sociedade moderna, sociedade civil e Estado se
separam através da revolução política. Assim, “a
emancipação política é uma redução do homem – por um

2
Aqui preferimos citar as passagens do livro de Bottomore e Rubel
por ser uma tradução melhor do que as existentes de sua obra A
Questão Judaica (MARX, 1978).
167
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

lado, a membro de uma sociedade civil, indivíduo


independente e egoísta, e por outro lado, a cidadão,
personalidade moral” (apud. BOTTOMORE e RUBEL,
1964, p. 225). Essa oposição entre homem egoísta da
sociedade civil e cidadão abstrato do Estado é uma criação
burguesa. A solução do Marx humanista é a mesma que
defenderá no futuro, mas de forma ainda abstrata:

A emancipação humana só será


completa quando o homem verdadeiro,
individual, tiver assimilado em si próprio
o cidadão abstrato; quando se houver
tornado um ser social como indivíduo em
sua vida cotidiana, em seu trabalho e em
suas relações; e quando tiver reconhecido
e organizado suas próprias forças (forces
propes) como forças sociais, e
consequentemente não separar mais de si
próprio esse poder social como poder
político (apud. BOTTOMORE e RUBEL,
1964, p. 225-226).
Aqui já se encontra a base do pensamento posterior
de Marx, que ganhará maior precisão, concreticidade e o
“homem em geral” será substituído pelas classes sociais
em luta. Um dos seus textos mais famosos, o Prefácio de
Contribuição à Crítica da Economia Política, é onde ele
sintetiza sua concepção de sociedade civil. Segundo Marx:
168
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Nas minhas pesquisas cheguei


à conclusão de que as relações jurídicas –
assim como as formas de Estado – não
podem ser compreendidas por si mesmas,
nem pela dita evolução geral do espírito
humano, inserindo-se, pelo contrário nas
condições materiais de existência de que
Hegel, à semelhança dos ingleses e
franceses do século XVIII, compreende o
conjunto pela designação de ‘sociedade
civil’; por seu lado, a anatomia da
sociedade civil deve ser procurada na
economia política (MARX, 1983b, p. 24).
Assim, as formas do Estado são derivadas da
sociedade civil3 e esta deve ser analisada a partir do modo
de produção, termo utilizado na sequência do raciocínio de
Marx. A sociedade civil é onde se encontram as classes
sociais e as relações de produção, logo, é a base da
sociedade em geral e, por conseguinte, do Estado:

3
Às vezes Marx toma a sociedade civil como um fenômeno típico da
sociedade burguesa (quando, por exemplo, opõe Estado moderno e
sociedade civil em comparação com escravidão e Estado antigo), às
vezes como um processo social das sociedades de classes em geral,
como é o caso dessa citação. Nesta última concepção há uma maior
precisão conceitual. Claro que isto também tem a ver com a
emergência de uma sociedade civil organizada que realiza uma
mediação burocrática entre indivíduo e Estado, aspecto não
desenvolvido por Marx e que ajudaria a compreender a dinâmica da
sociedade capitalista. Porém, a análise desse processo fica para outra
oportunidade, já que aqui o objetivo é analisar o pensamento de
Marx.
169
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

“Já é evidente, portanto, que


essa sociedade civil é a verdadeira sede, o
verdadeiro palco de toda a história e
vemos a que ponto a concepção passada
da história era um absurdo que omitia as
relações reais e se limitava aos grandes e
retumbantes acontecimentos históricos e
políticos. A sociedade civil compreende o
conjunto das relações materiais dos
indivíduos dentro de um estágio
determinado de desenvolvimento das
forças produtivas” (MARX e ENGELS,
2002, p. 33).
Assim, podemos passar da ideia de sociedade civil
para a crítica do Estado. Marx rompe com as concepções
da história, como podemos ver na citação acima, que
focalizam os “grandes homens”, estadistas e
acontecimentos políticos. É na sociedade civil, o conjunto
das relações materiais – relações de produção – que
determina as mudanças históricas. Isso se deve ao fato de
que ele percebeu que o Estado não é o elemento
determinante no processo histórico, pois ele mesmo é
determinado. Na ideologia, a realidade aparece invertida e
o Estado aparece como o demiurgo do real ao invés de ser
produto dele (obviamente que, uma vez existindo, o

170
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Estado atua e determina o real, mas não é o único


determinante e foi determinado antes de determinar).
O Estado é um produto da sociedade civil. Porém,
resta saber por qual motivo é assim. A sociedade civil é o
lócus das relações de produção que instituem as classes
sociais fundamentais e, por conseguinte, de suas lutas, que
engloba outras classes, não-fundamentais. A luta de
classes faz emergir o aparato estatal, resolução ilusória do
conflito de classes. A luta de classes poderia dilacerar a
sociedade como um todo, provocar a revolução social e
destruir a dominação de uma classe sobre as outras. Ora, é
exatamente por isso que o Estado aparece como mediador
e árbitro da luta de classes, mas, no entanto, isso é apenas
aparência, pois, no fundo, ele é a forma organizativa geral
da classe dominante.

Desde que o Estado é a forma


em que os indivíduos da classe dominante
proclamam seus interesses comuns, e na
qual é condensada toda a sociedade civil
de uma época, segue-se que o Estado atua
como intermediário em nome de todas as
instituições da comunidade, e tais
instituições recebem uma conformação
política. Daí a ilusão de que a lei é
baseada na vontade, e decerto na vontade
171
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

divorciada da sua base real – a vontade


livre (MARX, apud. BOTTOMORE e
RUBEL, 1964, p. 214).
As classes dominantes na história são classes
autodeterminadas por intermédio do Estado, sua forma de
associação, de manifestação de seus interesses comuns
contra as outras classes sociais. As revoluções burguesas,
revoluções políticas, retiraram o caráter político da
sociedade civil, tal como ocorria na sociedade feudal4 e
assim emerge a divisão entre o público (estatal) e o
privado. A burguesia constitui um Estado que é a sua
forma de associação para valer os seus interesses de
classe. É por isso que Marx poderá dizer que o estado
moderno, capitalista, não é nada mais do que “um comitê
para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”
(MARX e ENGELS, 1990, p. 78), ou seja, é a sua
organização coletiva, de classe.
4
“A velha sociedade civil [do feudalismo – NV] tinha um caráter
diretamente político, isto é, os elementos da vida civil – tais como a
propriedade, a família, os tipos de ocupação – tinham-se tornado
elementos políticos sob a forma de domínio senhorial, castas e
corporações. Determinavam assim a relação do indivíduo perante o
Estado como um todo, isto é, sua situação política, ou, em outras
palavras, sua separação e segregação dos demais elementos da
sociedade” (MARX, apud. BOTTOMORE e RUBEL, 1964, p. 223).
172
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

O Estado capitalista é, portanto, um aparato do


capital, da burguesia. Ele realiza esse processo de
manifestação dos interesses comuns da classe dominante
seja sob a forma de sua aparência ilusória de expressão
dos interesses gerais da sociedade (legitimação, ideologia,
direito, etc.), sob a forma de repressão ou mesmo sob a
forma de intervenção na produção e distribuição das
riquezas5. Assim, o Estado emerge da sociedade civil, tem
nela sua origem e base real, mas, uma vez existindo, busca
se autonomizar e tende a buscar controlar a sociedade
civil. No mundo nebuloso da ideologia, tal como veremos
adiante, a base real desaparece e apenas a ação estatal se
manifesta, sendo o lado ativo da história e das mudanças
sociais. O Estado busca, cada vez mais, controlar a
sociedade civil, o que atinge seu ponto máximo na
sociedade burguesa. Isso se realiza através do processo de
fortalecimento do Estado, que ocorre via crescimento da

5
Isto é mais visível em O Capital, embora o capítulo sobre Estado que
ele planejava acrescentar à obra não tenha sido redigido, mas se vê,
principalmente na parte dedicada ao sistema colonial e acumulação
primitiva, bem como ao processo de formação da sociedade
burguesa, o papel do Estado no processo de acumulação e
constituição do capitalismo.
173
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

burocracia no processo de constituição do capitalismo. Ele


é produto da sociedade civil marcada por uma crescente
divisão social do trabalho e é parte dessa divisão. A
burocracia estatal é o que dá vida ao Estado burguês:

Torna-se imediatamente óbvio


que em um país como a França, onde o
poder executivo controla um exército de
funcionários que conta mais de meio
milhão de indivíduos e portanto mantém
uma imensa massa de interesses e de
existências na mais absoluta dependência;
onde o Estado enfeixa, controla, regula,
superintende e mantém sob tutela a
sociedade civil, desde suas mais amplas
manifestações de vida até suas vibrações
mais insignificantes, desde suas formas
mais gerais de comportamento até a vida
privada dos indivíduos; onde através da
mais extraordinária centralização, esse
corpo de parasitas adquire uma
ubiquidade, uma onisciência, uma
capacidade de acelerada mobilidade e
uma elasticidade que só encontra paralelo
na dependência desamparada, no caráter
caoticamente informe do próprio corpo
social – compreende-se que em
semelhante país a Assembleia Nacional
perde toda a influência real quando perde
o controle das pastas ministeriais, se não
simplifica ao mesmo tempo a
administração do Estado, reduz o corpo
de oficiais do exército ao mínimo possível
e, finalmente, deixa a sociedade civil e a

174
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

opinião pública criarem órgãos próprios,


independentes do poder governamental.
Mas é precisamente com a manutenção
dessa dispendiosa máquina estatal em
suas numerosas ramificações que os
interesses materiais da burguesia francesa
estão entrelaçados de maneira mais
íntima. Aqui encontra postos para sua
população excedente e compensa sob
forma de vencimentos o que não pode
embolsar sob a forma de lucros, juros,
rendas e honorários. Por outro lado, seus
interesses políticos forçavam-na a
aumentar diariamente as medidas de
repressão e, portanto, os recursos e o
pessoal do poder estatal, enquanto tinha
ao mesmo tempo que empenhar-se em
uma guerra ininterrupta contra a opinião
pública e receosamente mutilar e paralisar
os órgãos independentes do movimento
social, onde não conseguia amputá-los
completamente. A burguesia francesa viu-
se assim compelida por sua posição de
classe a aniquilar, por um lado, as
condições vitais de todo o poder
parlamentar e portanto inclusive o seu
próprio, e, por outro lado, a tornar
irresistível o poder executivo que lhe era
hostil (MARX, 1987a, p. 58-59).
Aqui Marx trata de um caso concreto, mas revela
algo essencial e característico do Estado capitalista, a
burocracia e sua subordinação à divisão social do

175
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

trabalho6. Também mostra que o Estado cada vez mais


controla a sociedade civil, buscando inverter a relação. No
entanto, parar a análise aqui significa não compreender a
teoria de Marx sobre o Estado. É no seu controle sobre a
sociedade civil que se pode observar a autonomização do

6
Marx inicia esse processo de crítica do Estado e da burocracia
através de sua crítica a Hegel, cujo espírito absoluto se realiza no
Estado: “a [sua – NV] sociologia da burocracia dirige-se ao processo
de toda burocracia, sobretudo da burocracia do Estado. Não se pode
aceitar como tal a racionalidade burocrática e muito menos
transportá-la ao absoluto. Porém sua crítica não se separa de dupla
crítica: a da filosofia e a do Estado” (LEFEBVRE, 1979, p. 109). A
crítica marxista do Estado, obviamente, desemboca num projeto
autogestionário: “seria necessário mostrar que, neste ponto, a crítica
radical da filosofia política, do Estado, da burocracia (crítica que
acompanha a análise sociológica destas racionalidades irracionais),
conduz, a uma práxis revolucionária: a autogestão democrática
generalizada, sem burocracia, sem Estado?” (LEFEBVRE, 1979, p.
108). Sem dúvida, não é possível concordar com a totalidade da
interpretação de Marx nessa obra de Lefebvre (nem em outras), mas
retirando as imprecisões conceituais e atribuição de caráter
“sociológico” ao pensamento de Marx, bem como aos equívocos de
conteúdo, ele apresenta aqui uma rara percepção crítica da
burocracia e do Estado em Marx e sua consequência lógica e
histórica: abolição do Estado e instauração da autogestão social. Esse
ponto será discutido adiante. Rubel, comentando o trecho citado de
O Dezoito Brumário, afirma: “Em sua gênese histórica, o Estado
moderno é inseparável da constituição e do desenvolvimento da
burocracia e do militarismo modernos” (RUBEL, 1976, p. 31). Aqui
se revela novamente a questão da ampliação da divisão social do
trabalho e burocracia como elementos característicos do Estado
(militarismo e burocracia).
176
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

aparato estatal, ou seja, da burocracia estatal e seu poder


crescente na sociedade capitalista e outra de suas
características: o parasitismo. Porém, é preciso entender
que o Estado capitalista não se torna autônomo e acima da
sociedade civil como um todo e para entender isso é
necessário compreender a determinação da sociedade civil
sobre o Estado, o que remete às classes sociais e ao caráter
de classe do Estado moderno.
A sociedade civil é palco da história, das lutas de
classes. Porém, existe uma classe que é dominante. No
capitalismo, é o caso da burguesia. Ela detém o poder
financeiro, é quem dirige o processo de acumulação e
reprodução do capitalismo como um todo. O Estado serve
para esse processo de reprodução não só pela intervenção
direta da classe capitalista (e suas empresas), mas pela
própria necessidade social em geral. O Estado, em Marx, é
“superestrutura” (ou forma de regularização), segundo sua
metáfora, e, portanto, tem suas formas fundadas a partir da
sociedade civil, sua base real. Essa sociedade civil, no
capitalismo, mostra a supremacia da classe capitalista. Isso
revela a essência, a natureza do Estado e ele não pode
177
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

superar sua natureza a não ser se destruindo e não faz


parte dela buscar sua autodestruição e sim sua
autoperpetuação. Assim coloca Marx:

Pode o Estado agir de outra


maneira? O Estado jamais verá a causa
das imperfeições sociais ‘no Estado e nas
próprias instituições’, como ‘um
prussiano’ espera do seu rei. Onde há
partidos políticos, cada partido localiza a
causa de tais males no fato de estar o
partido contrário, em vez dele, ao leme do
Estado. Mesmo os políticos radicais e
revolucionários buscam a origem do mal
não na própria natureza do Estado, e sim
numa determinada composição do Estado,
que eles pretendem substituir por outra
composição (MARX, apud.
BOTTOMORE e RUBEL, 1964, p. 208).
Aqui Marx antecipa, numa perspectiva crítica, a
posição de alguns de seus epígonos, para os quais a
conquista do poder estatal é o objetivo e isso garantiria o
processo de transformação social, sendo que o problema é
sempre quem está no poder estatal e nunca sua natureza e
o discurso sobre distinção entre “governo” e “estado”,
sobre “correlação de forças”, etc., são apenas legitimações
de práticas políticas que nada tem a ver com o marxismo.

178
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Com o desenvolvimento do capitalismo, cada vez


mais o velho aparelho herdado da sociedade feudal se
torna um “órgão do despotismo de classe”:

O poder centralizado do
Estado, com os seus órgãos onipresentes:
exército permanente, polícia, burocracia,
clero e magistratura — órgãos forjados
segundo o plano de uma sistemática e
hierárquica divisão de trabalho – tem
origem nos dias da monarquia absoluta,
ao serviço da classe burguesa nascente
como arma poderosa nas suas lutas contra
o feudalismo. Contudo, o seu
desenvolvimento permanecia obstruído
por toda a espécie de entulhos medievais,
direitos senhoriais, privilégios locais,
monopólios municipais e de guilda e
constituições provinciais. A escova
gigantesca da Revolução Francesa do
século dezoito levou todas estas relíquias
de tempos idos, limpando assim,
simultaneamente, o terreno social dos
seus últimos embaraços para a
superestrutura do edifício do Estado
moderno erguido sob o primeiro Império,
ele próprio fruto das guerras de coalizão
da velha Europa semifeudal contra a
França moderna. Durante os regimes
subsequentes, o governo, colocado sob
controle parlamentar — isto é, sob o
controle direto das classes proprietárias,
não apenas se tornou um viveiro de
enormes dívidas nacionais e de impostos
esmagadores; com os seus irresistíveis

179
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

atrativos de lugares, proventos e clientela,


não apenas se tornou o pomo de discórdia
entre facções rivais e aventureiros das
classes dominantes; mas o seu caráter
político mudou simultaneamente com as
mudanças econômicas realizadas da
sociedade. Simultaneamente com o
progresso da indústria moderna
desenvolvia, alargava, intensificava o
antagonismo de classe entre capital e
trabalho, o poder de Estado assumia cada
vez mais o caráter do poder nacional do
capital sobre o trabalho, de uma força
pública organizada para a escravização
social, de uma máquina de despotismo de
classe (MARX, 2011, p. 13-14).
O Estado não passa de uma “excrescência
parasitária”, que aparentemente “flutua” acima da
sociedade civil, mas que, no fundo, no capitalismo, é
produto e agente do capital. Em primeiro lugar, o caráter
parasitário do Estado vem de seu caráter improdutivo. O
Estado não produz mais-valor (adiante, quando
abordarmos a questão do capitalismo, isto será discutido),
mas drena recursos da sociedade civil. Essa “dispendiosa
máquina estatal” (MARX, 1987a), que cria postos para a
população excedente, não possui autossuficiência
financeira. O Estado é uma das principais formas de
criação e reprodução de classes sociais improdutivas, e o
180
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

imposto é a principal forma como drena parte do mais-


valor global para sustentar suas classes parasitas. Ele
explicitou isso no plano do capítulo sobre o Estado que
iria adicionar a obra O Capital:

O Estado. (Estado e sociedade civil.


– O imposto ou a existência das classes
improdutivas.
– A dívida pública.
– A População. – O Estado em expansão:
colônias. – Moeda internacional. – Por
fim, o mercado mundial. Transgressão da
sociedade civil sobre o Estado. As crises.
Dissolução do modo de produção e do
tipo de sociedade baseada no valor de
troca. Estabelecimento real do trabalho
individual como trabalho social e vice-
versa (apud. RUBEL, 1976).
Aqui está explícito um plano de trabalho que
relaciona impostos e classes sociais improdutivas,
mostrando o caráter parasitário do Estado e sua forma
principal de drenar mais-valor e sustentar sua imensa
burocracia.
Um outro elemento da análise do Estado é o seu
discurso, que reproduz sua aparência ilusória de
autonomia e busca lhe legitimar. Trata-se das formas de
consciência jurídicas, políticas e ideológicas pelas quais o
181
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Estado busca se legitimar. Já colocamos um aspecto disso


quando discutimos a natureza do Estado e como aqueles
que buscam conquistá-lo ou preservá-lo abordam seus
problemas, como “defeitos de administração”. Marx, em
seus primeiros escritos, coloca que a declaração dos
direitos do homem é apenas a sanção política do indivíduo
como trabalhador assalariado submetido ao capital. Em
1844, ele critica o “pensamento político”, que é nada mais
do que uma expressão ideológica e falsa da realidade
estatal e produto da consciência burguesa fundada na
divisão social do trabalho e especialização intelectual, que
gera distintas “realidades”, fragmentando, isolando e
autonomizando a realidade social.
Quanto mais poderoso é o Estado, e
quanto mais político é um país, por
conseguinte, tanto menos provável há de
ser que ele investigue as bases dos males
sociais e chegue a uma explicação geral
dos mesmos pelo princípio do Estado em
si, ou seja, pela estrutura da sociedade da
qual o Estado é a expressão oficial,
consciente e ativa. O pensamento político
é pensamento realmente político no
sentido em que o pensar ocorre dentro da
moldura política. Quanto mais claro e
vigoroso é o pensamento político, tanto
menos habilitado está a captar a natureza
182
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

dos males sociais7. O período clássico do


pensamento político é a Revolução
Francesa. Longe de reconhecerem a
origem dos males sociais no princípio do
Estado, os heróis da Revolução Francesa
buscavam as origens dos males políticos
na organização social defeituosa. Assim,
por exemplo, Robespierre via na
coexistência da grande pobreza e da
grande riqueza apenas um entrave à
democracia autêntica: almejava
estabelecer então uma austeridade
espartana em todos os sentidos. O
princípio da política é a vontade: quanto
mais parcial e mais aperfeiçoado se torna
o pensamento político, tanto mais acredita
na onipotência da vontade, tanto menos
capaz é de ver as limitações naturais e
mentais da vontade, tanto menos capaz é
de perceber a origem dos males sociais
(MARX, apud. BOTTOMORE e RUBEL,
1964, p. 210).
O pensamento político é o pensamento cujo centro é
o Estado, local no qual os indivíduos atomizados e
egoístas, em sua aparência ilusória, se torna “cidadão”, no
qual os interesses comuns, o “interesse público”, se

7
Em outras palavras, quanto mais desenvolvido e especializado é uma
forma de pensamento, menos capaz é de entender a realidade. Esta é
uma primorosa crítica da especialização do trabalho intelectual. Se
notarmos que as ciências humanas e as ciências em geral passam por
um processo histórico de crescente especialização, então nota-se
também sua crescente incapacidade de expressar a realidade.
183
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

manifesta8. A lei como manifestação da vontade geral e


independente é outra ideologia que busca legitimar o
Estado. Segundo Marx, “os visionários, que veem na lei o
predomínio de uma vontade geral e independente, também
veem no crime apenas uma violação da lei”. Porém, “O
Estado não se baseia em nenhuma vontade dominante;
mas o Estado, que surge do modo de vida material dos
indivíduos, também ostenta a forma de uma vontade
dominante” e se esta vontade perde o seu domínio, isso se
deve as mutações sociais, na vida dos indivíduos e na
existência material. Isso de forma independente da
vontade dos indivíduos. “É possível que o Direito e a
legislação tenham uma evolução autônoma, porém nesse
caso hão de ser puramente formais e não mais dominantes,
como o demonstram tantos exemplos flagrantes na história
jurídica de Roma e da Inglaterra” (MARX, apud.
BOTTOMORE e RUBEL, 1964, p. 218). Tanto o

8
As ideologias políticas sobre democracia, cidadania, etc., incluindo a
ideologia do Estado “neutro”, “instrumento”, etc. (VIANA, 2015a),
que invade o pseudomarxismo, são totalmente antagônicas ao
pensamento de Marx, e consegue deformá-lo de tal forma que ele se
torna o contrário do que realmente é.
184
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

pensamento político quanto o jurídico se fundamentam na


vontade, no voluntarismo que desconsidera as bases reais
e sociais que os determinam.
Já temos visto como, através da atividade
dos filósofos, uma história do pensamento
puro pôde surgir, ao separar-se o
pensamento dos indivíduos e as relações
de fato que lhe servem de base. No caso
presente também a lei pode ser destacada
de sua base real, e assim podemos chegar
a uma ‘vontade dominante’, com
expressões diferentes em diferentes
períodos, a qual em suas manifestações –
as leis – tem sua própria história
independente. Por esse modo, a história
civil e política é ideologicamente
transformada na história da
predominância de leis em
autodesenvolvimento (MARX, apud.
BOTTOMORE e RUBEL, 1964, p. 218).
Assim, temos um quadro geral do pensamento de
Marx sobre sociedade civil e Estado. A primeira, que
contém o conjunto das relações de produção, é a base real
do Estado. Este, no reino das aparências, se apresenta
como autônomo. Marx desfaz esta ilusão e mostra que é a
sociedade civil, o modo de produção dominante,
especialmente, através da classe dominante que lhe dá
vida, que o constitui. Ele não é nada mais como a forma

185
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

coletiva e organizada pela qual a classe dominante faz


valer seus interesses de classe contra os interesses de
outras classes, especialmente as classes exploradas. No
capitalismo, isso ocorre de forma específica, com uma
maior separação entre sociedade civil e Estado e numa
especialização mais ampla deste, aumentando sua força
através da burocracia e burocratização crescente, o que
aumenta a ilusão de autonomia, gerando um discurso falso
e ideológico sobre a política, as leis, visando legitimá-lo e
justificá-lo, buscando ocultar seu caráter de classes e seus
reais interesses. Sob a fachada de “interesses comuns”,
“interesse público”, ele manifesta o interesse da classe
dominante. Uma imensa burocracia parasitária se forma e
é sustentada pela produção de mais-valor e gera outras
tantas questões (algumas que Marx não desenvolveu,
outras esboçou), tal como a dívida pública, os impostos
como mecanismo de sustentação, etc.
Obviamente que, depois desta abordagem, a questão
do Estado em Marx parece ser bem clara: ele é um órgão
de dominação de classe e por isso deve ser destruído. No
entanto, Marx é considerado, a despeito disso, um
186
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

“estatista”, um defensor do Estado e da conquista do poder


estatal. Essa é, inclusive, a interpretação hegemônica do
pensamento de Marx. O caráter “estatista” da concepção
de Marx é encontrado, segundo essa interpretação, no
Manifesto Comunista. Nesse escrito, Marx defendeu a
“estatização dos meios de produção” e a “ditadura do
proletariado”.
Como abordaremos novamente essa questão no
capítulo dedicado ao projeto comunista de Marx, então
realizaremos apenas uma breve síntese da discussão em
torno desse texto para elucidarmos a concepção deste
autor. Em primeiro lugar, Marx, em nenhum momento,
defendeu a conquista do Estado capitalista. A sua proposta
era a de que a classe operária em seu conjunto,
“organizada em classe dominante”, realizasse a ditadura
do proletariado, que seria a “conquista da democracia”,
pois se trata da “revolução da maioria” (MARX e
ENGELS, 1988). Logo, em nenhum momento Marx
propôs o assalto ao Estado capitalista por grupos, partidos,
setores da classe, pois a ditadura do proletariado seria a
classe auto-organizada em sua totalidade. Nesse contexto,
187
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

ele propõe a conquista do poder político pelo proletariado.


Mas o que é “poder político”? O próprio Marx o define
como “o poder organizado de uma classe para opressão de
outra” (MARX e ENGELS, 1990, p. 97). Aqui Marx
pensa o poder político apenas em sua dimensão repressiva,
ou seja, sem aparato burocrático (característica do Estado
burguês), pois é a classe proletária, como um todo, que
exerce a repressão sobre as classes reacionárias.
Mas resta um aspecto a ser compreendido, que é o
da “estatização dos meios de produção”. Segundo Marx, o
proletariado deve usar sua “supremacia política” (o seu
poder de opressão sobre as classes reacionárias) para
arrancar o capital (os meios de produção) da classe
capitalista e centralizá-lo nas mãos do Estado, que ele
complementa, “isto é, do proletariado organizado em
classe dominante”, ou seja, novamente a totalidade do
proletariado e não um aparato burocrático. Assim,
centralizar nas mãos do Estado significa passar para o
controle da classe operária em sua totalidade. Obviamente
que o uso de determinados termos, como o Estado,
centralização, etc., dão margem para se pensar numa
188
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

máquina burocrática de especialistas, mas, uma leitura


rigorosa permite perceber que não se trata disso e sim da
classe auto-organizada e usando o poder de repressão
sobre as classes reacionárias. Desta forma, a conclusão
óbvia é que Marx nada tem de estatista.
Sem dúvida, o Manifesto Comunista tem problemas
não apenas conceituais e semânticos. O uso das palavras
“partido”, “estado”, “ditadura”, entre outros, dá margem
para más interpretações, mas, além disso, há um outro
problema: um grau elevado de abstração, pelo qual Marx
busca solucionar problemas sociais e históricos pela
imaginação criativa, usando o que tinha ao seu dispor em
sua época (as experiências das revoluções burguesas, as
lutas ainda relativamente incipientes do proletariado, etc.).
Até mesmo Lênin (1987) percebeu que sua formulação era
demasiada “abstrata”.
Mas foi o próprio Marx, no Manifesto Comunista,
que alertou que os socialistas utópicos trocavam “a
organização gradual e espontânea do proletariado em
classe, pela organização de uma sociedade pré-fabricada
por eles” (MARX e ENGELS, 1990, p. 105). Marx não
189
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

caiu no mesmo erro, pois ele destaca o papel ativo do


proletariado, sem, no entanto, mostrar como isso ocorre
concretamente e por isso sua fórmula é ainda
demasiadamente abstrata e é somente com a emergência
do proletariado como classe revolucionária numa primeira
experiência radical de luta pela constituição de uma nova
sociedade é que permitiria ultrapassar tal limitação.
Isso ocorreu a partir da primeira revolução proletária
inacabada da história: a Comuna de Paris de 1871. É a
partir desse acontecimento histórico que Marx
compreendeu “a forma finalmente encontrada” de
autoemancipação proletária. A partir desse momento, a
destruição do estado burguês é acompanhada pela
instituição do “autogoverno dos produtores” (MARX,
2011), o que significa o abandono do uso do termo
“Estado” (e isso ficará mais forte depois do embate com o
anarquismo, como mostraremos adiante).
Assim, é possível pensar que a leitura do Manifesto
Comunista é responsável pela versão de um Marx
estatista. Isso é verdade, desde que se acrescente que é
uma má leitura. Não só por simplificar o conteúdo, não
190
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

compreender o seu quadro conceitual, mas também por


passar por cima dos prefácios que o próprio autor escreveu
revendo o que havia escrito após a experiência comunarda.
Nos prefácios ele coloca em questão as medidas propostas
no Manifesto, ou seja, a estatização dos meios de
produção. Na parte que trataremos de sua concepção de
comunismo isso será aprofundado. Aqui resta concluir que
Marx propõe a abolição do Estado e a instituição da “livre
associação dos produtores” e a base desta proposta está na
concepção de que o poder político é a forma pela qual uma
classe social dominante faz valer seus interesses de classe
contra as demais classes e que o Estado capitalista faz isso
através de imenso aparato burocrático que deve ser
destruído e não conquistado.

191
A TEORIA DA CONSCIÊNCIA E DAS REPRESENTAÇÕES

A história de toda sociedade até nossos


dias movimentou-se através de
antagonismos de classe, que assumiram
formas diferentes nas diferentes épocas.
Mas, qualquer que tenha sido a forma
assumida por esses antagonismos, a
exploração de uma parte da sociedade por
outra é um fato comum a todos os séculos
passados. Portanto, não é de espantar que
a consciência social de todos os séculos, a
despeito da multiplicidade e variedade, se
tenha movido sempre dentro de certas
formas comuns, de certas formas de
consciência que só poderão se dissolver
completamente com o completo
desaparecimento dos antagonismos de
classe.

Karl Marx

Marx produziu uma teoria da consciência que é


fundamental para entender seu pensamento e sua crítica
das ideologias, que será objeto do próximo capítulo. Antes
de iniciar a exposição de Marx sobre a consciência, é
necessário destacar que ele não partiu, como alguns
pensam, de uma “teoria do conhecimento” (VIANA,
2007b). Antes de Marx, John Locke (LOCKE, 1983;
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

HESSEN, 1987) já havia fundado a ideologia burguesa do


conhecimento e esta ganhará inúmeras reflexões em torno
dos termos metafísicos de “sujeito do conhecimento”,
“objeto do conhecimento”, o que vai gerar as ideologias
chamadas “objetivistas” e “subjetivistas”, e,
consequentemente, as ideias de “subjetividade” e
“objetividade”. Estes termos, não é preciso dizer, não se
encontram no pensamento de Marx.
Os supostos “marxistas” que passam a discutir
questão de “sujeito” e “objeto” em Marx apenas mostram
não entender o seu pensamento, sua base teórica e
estrutura conceitual. Desta forma, mesclam marxismo com
ideologias burguesas, empobrecendo sua teoria e
demonstrando desconhecer sua revolução teórica. Alguns
perceberam isso e criticaram tal empobrecimento:

Naturalmente que um tal materialismo,


que parte da representação metafísica de
um ser dado de forma absoluta, já não é
também, na realidade, apesar de todos os
protestos formais, uma concepção
dialética universal ou porventura
materialista dialética. Lênin e os seus, ao
transferirem unilateralmente a dialética
para o objeto, para a natureza e a história,
e ao qualificarem o conhecimento de
194
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

simples reflexo e reprodução passivos


deste ser objetivo na consciência
subjetiva, destroem efetivamente toda a
relação dialética entre o ser e a
consciência e também, como
consequência necessária, a relação
dialética entre a teoria e a prática. Não
contentes em prestar assim um tributo
involuntário ao ‘kantismo’ que tanto
tinham combatido, não contentes com
rever num sentido retrógrado a questão
das relações entre a totalidade do ser
histórico e todas as formas de consciência
historicamente existentes (posta já num
sentido muito mais lato pela dialética de
Hegel e sobretudo pela dialética
materialista de Marx e Engels), voltando
ao problema ‘gnosiológico’ muitíssimo
mais restrito das relações entre o objeto e
o sujeito do conhecimento, eles
concebem, ao mesmo tempo, este
conhecimento como um processo
evolutivo que se desenrola em princípio
sem contradições e como uma progressão
infinita na direção da verdade absoluta
(KORSCH, 1977, p. 48).
Aqui observamos uma análise correta da teoria da
consciência de Marx. O problema da concepção que
aborda a questão do sujeito e objeto de conhecimento é
que trabalha com duas abstrações metafísicas. O sujeito do
conhecimento é um ser abstrato, fora da história e das
relações sociais. O objeto do conhecimento é, igualmente,
195
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

um ser fora da história e das relações sociais. Trata-se de


um modelo analítico que pensa o cientista – geralmente
considerado neutro e objetivo, fora da história, das
relações sociais e até mesmo de suas características
humanas. O resultado da relação entre estas duas
abstrações metafísicas é outra abstração metafísica, “o
conhecimento”, que parece separado do ser que o
produziu, tornando-se um fetiche.
A questão de Marx é outra. Ele não parte de uma
suposta “realidade objetiva”, seja a “matéria”, o “fato”, o
“empírico”, o “objeto” e nem de um suposto “sujeito”, e
sim dos seres humanos reais, concretos, existentes
realmente e por isso históricos e sociais. A definição de
consciência em Marx é fundamental para entender a
inseparabilidade entre ser e consciência: a consciência não
é nada mais que o ser consciente. A consciência não pode
ser separada dos indivíduos reais, de carne e osso. É por
isso que as formas de consciência existentes,
manifestações de seres humanos existentes realmente,
possuem limitações, da história, das relações sociais, dos
indivíduos e da própria capacidade humana.
196
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Marx e Engels colocaram que as ideologias, as


representações em geral, a moral, a religião, não são como
as nuvens, não pairam no céu, não são produtos da
genialidade de indivíduos, nem da pura atividade cerebral.
Elas são constituídas socialmente, historicamente. A
consciência dos indivíduos não é nada mais do que o ser
consciente. Este postulado fundamental de Marx expressa
a ideia de que não existe algo chamado consciência (ou
ideia, cultura, representações, ideologia, etc.), que estaria
separado e destacado do ser humano concreto que a
produz. As ideias de um indivíduo são ideias originadas de
suas relações sociais e com a natureza. É por isso que
existe uma unidade entre o ser e a consciência, pois é o ser
consciente, um indivíduo que vive sob determinadas
relações sociais, em determinada época, em determinada
posição social, e sua consciência é a sua percepção destas
relações. Todo indivíduo é um ser social e, sendo assim,
sua consciência é a consciência de um ser social, logo,
também compartilha este caráter social. Assim, cada
indivíduo e também cada grupo social, produz suas ideias
de acordo com suas relações sociais (que significa um
197
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

determinado posicionamento, e toda posição nas relações


sociais gera valores, interesses, etc.). O indivíduo não
percebe a realidade imediatamente em sua totalidade1, mas
tão somente da posição que possui na divisão social do
trabalho, no qual seu modo de vida, interesses, cultura,
tradição, insatisfação, experiências concretas, etc., são a
sua vida e o que lhe permite pensar como pensa.
A ideia do ser consciente mostra a inseparabilidade
entre ser e consciência. Não existe uma consciência
separada, destacada, do ser, do indivíduo real e concreto.
Essa unidade, no entanto, não é entre “consciência e
realidade” e sim entre ser e consciência. A ideologia do
conhecimento desloca a questão para o segundo caso, e o
pseudomarxismo de Lênin e Stálin, entre outros, reproduz
essa concepção burguesa (VIANA, 2007b). Isto significa
dizer que não existe separação entre os indivíduos e sua
consciência. A consciência dos seres humanos é expressão

1
Essa opacidade da totalidade das relações sociais é, ela mesma, um
produto social e histórico que, assume maior ou menor grau,
dependendo das relações sociais concretas de determinada época
histórica. No caso do capitalismo, a opacidade aumenta para a
consciência espontânea ou imediata e por isso a reflexão crítica
torna-se ainda mais necessária.
198
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

do seu modo de vida, de suas relações com os demais


seres humanos e com a natureza2, ou seja, o que eles são3.
E a forma dessas relações é, por sua vez, condicionada
pela produção (MARX e ENGELS, 2002, p. 11). A
divisão social do trabalho gera distintos modos de vida e,
por conseguinte, formas de consciência. Logo, as formas
de consciência são produtos sociais e históricos.

A produção das ideias, das representações


e da consciência está, a princípio, direta e

2
“A forma como os homens produzem esses meios depende em
primeiro lugar da natureza, isto é, dos meios de existência já
elaborados e que lhes é necessário reproduzir; mas não deveremos
considerar esse modo de produção deste único ponto de vista, isto é,
enquanto mera reprodução da existência física dos indivíduos. Pelo
contrário, já constitui um modo determinado de atividade de tais
indivíduos, uma forma determinada de manifestar a sua vida, um
modo de vida determinado. A forma como os indivíduos manifestam
a sua vida reflete muito exatamente aquilo que são. O que são
coincide portanto com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que
produzem como com a forma como produzem. Aquilo que os
indivíduos são depende portanto das condições materiais da sua
produção. Esta produção só aparece com o aumento da população e
pressupõe a existência de relações entre os indivíduos” (MARX e
ENGELS, p. 36).
3
O indivíduo também possui um processo histórico de vida, já que é
um ser concreto (mais adiante discutiremos esta categoria da
dialética), e assim ele não só é o que vive mas o que gera a partir
desse modo de vida, incluindo sua cultura, seus valores, sentimentos,
etc. que se acumula e influência o processo de desenvolvimento
posterior, tal como colocaremos adiante.
199
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

intimamente ligada à atividade material e


ao comércio material dos homens; ela é a
linguagem da vida real. As
representações, o pensamento, o comércio
intelectual dos homens aparecem aqui
ainda como a emanação direta de seu
comportamento material. O mesmo
acontece com a produção intelectual tal
como se apresenta na linguagem da
política, na das leis, da moral, da religião,
da metafísica, etc. de todo um povo. São
os homens que produzem suas
representações, suas ideias, etc., mas os
homens reais, atuantes, tais como são
condicionados por um determinado
desenvolvimento de suas forças
produtivas e das relações que a elas
correspondem, inclusive as mais amplas
formas que estas podem tomar. A
consciência nunca pode ser mais que o ser
consciente e o ser dos homens é seu
processo de vida real (MARX e
ENGELS, 2002, p. 19)4.
Marx acrescenta que “a moral, a religião, a
metafísica”, assim como todas as fantasmagorias do

4
Apesar da tradução ter pontos problemáticos, fica claro que Marx
relaciona vida e consciência, ser e consciência mostrando sua
inseparabilidade, a não ser em concepções metafísicas de “vida”,
fora das relações sociais concretas. Claro está que “atividade
material” aqui não significa produção de bens materiais e sim “real”,
em oposição ao mundo das ideias, contexto do significado do
materialismo em oposição ao idealismo, bem como a expressão
“comércio” é uma má tradução, pois seria mais adequado
“intercâmbio”, ou, de forma mais exata, “relação”.
200
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

cérebro humano, “são sublimações resultantes


necessariamente do processo de sua vida material”, do
“processo de vida real” (MARX e ENGELS, 2002). Elas
“perdem logo toda a aparência de autonomia”, elas
mudam com o processo de mudança da produção e do
pensamento que lhe acompanha. Assim, ao se analisar
uma determinada manifestação da consciência, não se
pode separá-la do seu produtor:

Não é a consciência que determinada a


vida, mas sim a vida que determina a
consciência. Na primeira forma de
considerar as coisas, partimos da
consciência como sendo o indivíduo vivo;
na segunda, que corresponde à vida real,
partimos dos próprios indivíduos reais e
vivos, e consideramos a consciência
unicamente como a sua consciência
(MARX e ENGELS, 2002, p. 20, grifos
meus).
Na primeira abordagem – a consciência determina a
vida – se concebe a consciência como se fosse um
indivíduo vivo, ou seja, como se tivesse vida própria. A
segunda abordagem – a vida determina a consciência – ela
é concebida como expressão da vida real, partindo de seres
humanos de carne e osso, reais, vivos, e portanto a

201
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

consciência não pode ser, nesse caso, mais do que a


consciência destes indivíduos reais.
A partir desta abordagem, “cessam as frases ocas
sobre a consciência, para que um saber real as substitua”
(MARX e ENGELS, 2002, p. 20). O que significa esse
saber real que substituirá estas “frases ocas”? Aqui temos
um novo elemento na abordagem de Marx, que é a
possibilidade de um saber falso e um saber verdadeiro. Ou
seja, o primeiro ponto da teoria da consciência de Marx é
que ela é um produto social e histórico, o que fornece a
explicação de sua gênese. O segundo ponto aborda o
conteúdo dessa consciência. Em uma nota ele esclarece tal
concepção:

As representações que estes indivíduos


elaboram são representações a respeito de
sua relação com a natureza, ou sobre suas
mútuas relações, ou a respeito de sua
própria natureza. É evidente que, em
todos estes casos, estas representações são
a expressão consciente – real ou ilusória –
de suas verdadeiras relações e atividades,
de sua produção, de seu intercâmbio, de
sua organização política e social. A
suposição oposta é apenas possível
quando se pressupõe fora do espírito de
indivíduos reais, materialmente

202
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

condicionados, um outro espírito à parte.


Se a expressão consciente das relações
reais deste indivíduo é ilusória, se em suas
representações põem a realidade de
cabeça para baixo, isto é consequência de
seu modo de atividade material limitado e
das suas relações sociais limitadas que daí
resultaram (MARX e ENGELS, 1991, p.
36).
Alguns podem questionar afirmando que se a
consciência não é nada mais que o ser consciente, então
como ela poderia ser falsa? Sem dúvida, para alguns
ideólogos, a consciência é sempre verdadeira,
simplesmente por existir, tal como Jung e outros (VIANA,
2008a). Obviamente, isso é uma expressão ilusória, falsa,
da consciência5, uma ideologia, da qual trataremos no
próximo capítulo. Na citação acima Marx afirma que as
representações podem ser reais ou ilusórias, ou seja,
verdadeiras ou falsas. Isso não contradiz a tese anterior de
que a consciência é o ser consciente, pois não há
separação e sim uma explicação da existência da falsa
consciência ou consciência ilusória. Na primeira
afirmação, temos a percepção de que a consciência é um

5
Para uma análise crítica dessas ideologias, cf. Viana, 2008a.
203
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

produto social e histórico de indivíduos de carne e osso.


Na segunda afirmação, temos uma percepção de que o
conteúdo dessa consciência pode ser verdadeiro ou falso e
que seu caráter ilusório também tem origem nas relações
sociais.
As representações são ilusórias pelo motivo de que o
produtor dessas representações ilusórias são indivíduos
que possuem um modo de atividade (produção) e relações
sociais limitadas. Relações sociais limitadas, formas de
consciência igualmente limitadas. Um ser humano que
passou a vida como escravo, terá a consciência de um
escravo, ser e consciência coincidem. A consciência desse
escravo tende a ser falsa se, por exemplo, ele considera
que a escravidão é algo natural6, ou seja, é a vida real, as

6
Seja por nascer e viver como escravo, seja por, além disso, ainda ter
ouvido o discurso da classe dominante – como no caso de Aristóteles
– que afirma que a escravidão é natural e eterna. Da mesma forma,
quando um indivíduo afirma que o ser humano é egoísta por
natureza, apenas revela sua consciência falsa sobre os seres humanos
derivados de sua existência real e concreta numa sociedade
competitiva e conflituosa, que gera individualismo, etc., e que ele
mesmo pratica o egoísmo, ou seja, sua consciência falsa apenas
revela o que ele é e vive e, portanto, é a vida que determinou sua
consciência. O filósofo Thomas Hobbes jamais teria afirmado que “o
204
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

relações sociais concretas que possibilitam a emergência


de determinadas formas de consciência e que permitem
que estas sejam verdadeiras ou falsas.
É por isso que um princípio metodológico do
materialismo histórico é a análise das relações sociais
concretas ao invés da crença nos discursos e
representações. Ou, como diz Lapassade, ao abordar a
concepção de Marx: “a distância entre a existência (‘a
vida’) e consciência introduz de novo esta exigência
metodológica: dar mais importância à situação real do que
à consciência, muitas vezes deformada, desta situação.
Examinar mais a atividade do que a opinião”
(LAPASSADE, 1975, p. 175). Esse princípio
metodológico, muitas vezes esquecido, é postulado por
Marx em um dos trechos de sua obra mais citada e
utilizada, o Prefácio da Contribuição à Crítica da
Economia Política:

A conclusão geral a que cheguei e que,


uma vez adquirida, serviu de fio condutor
dos meus estudos, pode formular-se

homem é o lobo do homem”, se tivesse nascido numa sociedade


indígena ou na sociedade feudal.
205
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

resumidamente assim: na produção social


da sua existência, os homens estabelecem
relações determinadas, necessárias,
independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento das
forças produtivas materiais. O conjunto
destas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, a base
concreta sobre a qual se eleva uma
superestrutura jurídica e política e a qual
correspondem determinadas formas de
consciência social. O modo de produção
da vida material condiciona o
desenvolvimento da vida social, política e
intelectual em geral. Não é a consciência
dos homens que determina o seu ser; é o
seu ser social que, inversamente,
determina a sua consciência. Em certo
estágio de seu desenvolvimento, as forças
produtivas materiais entram em
contradição com as relações de produção
existentes, ou, que é sua expressão
jurídica, com as relações de propriedade
no seio das quais se tinha movido até
então. De forma de desenvolvimento das
forças produtivas, estas relações
transformam-se no seu entrave. Surge
então uma época de revolução social. A
transformação da base econômica altera,
mais ou menos rapidamente, toda a
imensa superestrutura. Ao considerar tais
alterações é necessário sempre distinguir
entre a alteração material – que se pode
comprovar de maneira cientificamente
rigorosa – das condições econômicas de
produção, e as formas jurídicas, políticas,
206
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

religiosas, artísticas ou filosóficas, em


resumo, as formas ideológicas pelas quais
os homens tomam consciência deste
conflito, levando-o às suas últimas
consequências. Assim como não se julga
um indivíduo pela ideia que ele faz de si
próprio, não se poderá julgar uma tal
época de transformação pela mesma
consciência de si; é preciso, pelo
contrário, explicar esta consciência pelas
contradições da vida material, pelo
conflito que existe entre as forças
produtivas sociais e as relações de
produção (MARX, 1983b, p. 24-25).
Aqui temos a síntese do princípio metodológico de
partir das relações sociais concretas para compreender as
formas de consciência, as representações, e não partir
destas ou considerá-las como “autônomas”, “verdadeiras”,
“autossuficientes”. É justamente por partir desse
pressuposto metodológico que Marx poderá efetivar a
crítica das representações ilusórias e, principalmente, da
ideologia, tal como colocaremos no próximo capítulo.
Porém, a teoria da consciência de Marx possui
outros elementos. O modo de vida, a produção material, as
relações sociais concretas, estão na base da formação das
diversas formas de consciência, das representações em
geral. Tanto das verdadeiras quanto das falsas. A
207
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

consciência é um produto social e histórico cujo conteúdo


pode ser verdadeiro ou falso, que também possuem gênese
social. A consciência individual é constituída socialmente
e as formas de consciência social são produtos sociais e
históricos7.
É fundamental compreender que, para Marx,
existem modos de vida diferentes, fixados pela divisão
social do trabalho, que constituem distintas formas de
consciência, especialmente as das classes sociais. A
discussão anterior sobre as classes sociais e o materialismo
histórico ajuda a compreender esse processo social
complexo. A sociedade, quando dividida em classes
sociais, não é um todo homogêneo e por isso vai gerar
modos de vida e interesses diversos. A relação de
exploração e dominação gera interesses antagônicos,

7
Isto quer dizer que a consciência individual não é produto do
cérebro, da genialidade, do indivíduo como se este fosse um ser fora
da sociedade, ou seja, é uma consciência social, que possui sua
singularidade oriunda do processo histórico de vida particular de
cada indivíduo. As formas de consciência social são as diversas
consciências individuais em sua semelhança e que são
compartilhadas por que, em que pese as diferenças individuais,
expressam o mesmo modo de vida e, por conseguinte, o mesmo
conteúdo.
208
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

processos de produção de consciência derivados dela.


Marx percebeu ume elemento essencial derivado da
divisão social do trabalho e das classes sociais, que é a
existência de distintos interesses e que estes são
determinações sobre as formas de consciência. A classe
dominante não tem interesse na verdade, pois isto
enfraqueceria sua dominação e fortaleceria seu principal
inimigo, a classe explorada. No caso do capitalismo, a
burguesia não tem interesse na verdade e sim o
proletariado.
As ideias dominantes são as ideias da classe
dominante e o interesse desta é produzir representações
ilusórias e ideologias. As ideias dominantes são ideias
ilusórias8. As demais classes são atingidas pelas ideias
dominantes, não só pela força cultural da classe
dominante, mas também por possuir os meios de produção
cultural (MARX e ENGELS, 2002)9 e também por

8
São ideologias e imaginários (no sentido de representações
cotidianas ilusórias).
9
“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias
dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da
sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A
209
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

expressar as relações sociais existentes, que aparentam ser


naturais e por isso as ideologias e representações ilusórias
que as naturalizam parecem ser confirmadas por elas:

Será preciso grande perspicácia para


compreender que as ideias, as noções e as
concepções, numa palavra, a consciência
do homem se modifica com cada
mudança em suas condições de vida, em
suas relações sociais, em sua existência
social? O que demonstra a história das
ideias senão que a produção intelectual se
transforma com a produção material? As
ideias dominantes de uma época sempre
foram as ideias da classe dominante.
Quando se fala de ideias que
revolucionam uma sociedade inteira, isto
quer dizer que, no seio da velha
sociedade, se formaram os elementos de
uma nova sociedade e que a dissolução
das velhas ideias marcha ao lado da
dissolução das antigas condições de vida
(MARX e ENGELS, 1990, p. 94).
Assim, classes distintas vão gerar formas distintas de
consciência. Na sociedade capitalista, a burguesia é a
classe dominante e é a classe que impôs suas ideias às

classe que tem á sua disposição os meios de produção material


dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz
com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as
ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual”
(MARX e ENGELS, 1991, p. 72).
210
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

demais classes. O proletariado é a classe revolucionária e


que por isso traz em si a potencialidade da revolução e o
embrião de novas relações sociais. Tal como Marx
colocou, a existência de ideias revolucionárias pressupõe a
existência de uma classe revolucionária. O proletariado é
essa classe revolucionária. Porém, sua consciência
revolucionária não brota automaticamente ou
imediatamente de sua existência de classe. A sua
consciência possui uma especificidade, elementos críticos,
mas ainda está sob a hegemonia das ideias dominantes. É
no processo de luta de classes que desenvolve sua
consciência revolucionária, ou seja, é no processo de luta
que engendra novas relações sociais, novas formas de
organização, novas formas de consciência. A consciência
de classe emerge sob distintas formas em distintas classes
e a unidade entre ela e os interesses da classe ocorre
imediatamente em algumas classes (é o caso das classes
dominantes na história) e em outros casos há uma
mediação que, no caso do proletariado, é a luta de classes,
tal como discutiremos adiante quando analisarmos a
questão da revolução proletária.
211
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

A teoria da consciência de Marx tem um outro


aspecto fundamental. Trata-se do caráter ativo da
consciência. Sem dúvida, para muitos, a consciência na
concepção de Marx é mero epifenômeno, sem nenhuma
importância real ou histórica. Isso não é verdade. Desde o
seu primeiro texto já no interior de sua concepção
materialista da história, ele afirma que a teoria se torna
força material quando se apodera das “massas” (MARX,
1968). Isso também se expressa na importância que
fornece à crítica e a análise da realidade, demonstrando o
seu valor, inclusive como luta política (O Capital, por
exemplo, foi produzido para ser lido por operários e é uma
arma de luta produzida para o proletariado). A “arma da
crítica” não substitui a crítica das armas, mas é uma força
material, real, concreta (MARX, 1968). Engels, nesse
aspecto em acordo com Marx, embora com pontos
problemáticos, afirma que “o elemento determinante da
história é, em última instância, a produção e a reprodução
da vida real” e que as formas políticas das lutas de classes,
os seus resultados, as formas jurídicas e a manifestação
dessas lutas no “cérebro dos participantes”, bem como “as
212
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as concepções


religiosas e seu desenvolvimento ulterior em sistemas
dogmáticos”, “exercem igualmente sua ação sobre o curso
das lutas históricas e, em muitos casos, determinam de
maneira preponderante sua forma” (ENGELS, 1987a, p.
39)10.
Aqui entramos em uma outra questão, que é o papel
do imaginário (representações cotidianas ilusórias) na
concepção de Marx. Como colocamos anteriormente, a
ideologia é uma consciência falsa, ilusória, mas
organizada sistematicamente, ou seja, é um pensamento
ilusório, mas sistemático. Toda ideologia é falsa

10
A posição de Engels é próxima da de Marx e, nesse caso, deixando
de lado os problemas conceituais (tal como o uso dos termos
“situação econômica”, “fatores”, etc.), a sua concepção mostra o
caráter ativo da consciência, ainda que de forma limitada. Sem
dúvida, há outros elementos problemáticos, tal como a discussão
sobre fatores – que será criticada por Plekhanov (1990) e
principalmente e de forma mais adequada por Labriola (1979), que
retoma a questão da totalidade, bem como, posteriormente a crítica
que Korsch (1977; 1983) faz das “interações”. A concepção de
alguns vulgarizadores e pseudocríticos de Marx preferiu apontar um
economicismo em seu pensamento ao invés de analisar suas
concepções. Isso também é comum em várias tendências do
pseudomarxismo. Labriola (1979) e Korsch (1977) foram exceções e
críticos dessa posição.
213
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

consciência, nem toda falsa consciência é ideologia. As


representações ilusórias que abordamos anteriormente não
são ideologias. Porém, alguns autores confundem
representações ilusórias em geral com ideologia. É
importante destacar aqui uma interpretação equivocada do
pensamento de Marx, segundo a qual uma falsa
consciência, por ser falsa, não pode ser ao mesmo tempo
ligada às relações de poder, ou seja, não pode servir à
dominação. Sendo ilusória, seria ineficaz11. Marx, em um
escrito antes de desenvolver o materialismo histórico, já
afirmava:

11
Esse é o caso de Rouanet (1978), que tenta, a partir da discussão das
posições de Althusser e Gramsci, mostrar a impossibilidade de
compreender a ideologia como saber ilusório e ao mesmo tempo
instrumento de poder. Obviamente que tal tese é, desde sua raiz,
infundada, pois seria necessário partir de Marx, de onde estes dois
autores dizem retirar sua concepção de ideologia, para depois de
refutar esta tese neste autor e depois realizar a refutação dos seus
epígonos. É sempre mais fácil refutar o representante mais fraco de
uma determinada concepção, mais ainda quando, no fundo, ele a
deforma e permite maiores questionamentos. Claro que esta questão
poderia ter sido colocada no capítulo seguinte, sobre ideologia,
porém, como esse autor confunde ideologia com imaginário
(representações ilusórias), então pode ser discutido aqui e vale
também para a questão da ideologia, cuja questão de sua eficácia é
discutida mais amplamente em: Viana, 2010.
214
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Se alguém acredita possuir 100 táleres*,


se essa não é para ele apenas uma
representação arbitrária, subjetiva, se ele
acredita nela, então os 100 táleres
imaginados têm para ele o mesmo valor
que 100 táleres reais. Por exemplo, ele
contrairá dívidas em função desse seu
dado imaginário, o qual terá uma ação
efetiva: foi assim, de resto, que toda a
humanidade contraiu dívidas contando
com seus deuses (Apud. LUKÁCS, 1979,
p. 13).
No Dezoito Brumário, Marx também demonstra que
“a tradição de todas as gerações mortas oprime como um
pesadelo o cérebro dos vivos” (MARX, 1987a, p. 17-18)
e, portanto, atua no processo histórico. As ideias não são
epifenômenos e pensar assim é esquecer que a luta de
classes se dá, também, no plano cultural, e que quanto
maior for o desenvolvimento da consciência
revolucionária do proletariado, menores são as chances de
retrocesso e contrarrevolução, bem como quanto maior a
força das ideias dominantes, mais fraca será a sua luta. O
vínculo das ideias com o desenvolvimento histórico e
movimento de classes é fundamental, a fusão entre teoria e
proletariado é o principal capítulo desse processo, mas
*
Moeda alemã da época (século 19).
215
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sempre houve vínculos entre formas de consciência e luta


de classes, teorias e movimentos políticos. Segundo Marx,
a moderna sociedade burguesa não foi resultado de uma
doutrina que partia de determinados princípios, mas o
contrário:

Os princípios e teorias que os


escritores da burguesia criaram no
curso de sua luta contra o feudalismo,
eram nada mais do que
a expressão teórica do movimento real.
Na verdade, pode-se observar que o
caráter era mais ou menos utópico,
dogmático ou doutrinário dessa expressão
correspondia exatamente ao grau
do avanço desta fase do desenvolvimento
histórico real (MARX, 2008, p. 166).
Assim, é preciso recordar que toda produção
intelectual possui uma base real, seres conscientes que a
produz em condições históricas e sociais particulares e
que, nas sociedades classistas, estão submetidos à divisão
social do trabalho, tanto a que constitui as classes sociais
quanto a que institui frações de classes, categorias
profissionais, etc. Perceber este processo, o vínculo entre
produção de ideias e classes sociais, é fundamental. Além
dessa determinação fundamental, que é a classe social, no

216
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

processo de produção de representações, existem outras


diversas determinações que dão uma conformação
concreta a cada representação criada. Eis como Marx
explicita isso ao discutir a oposição entre legitimistas e
orleanistas em sua análise do bonapartismo:

Os legitimistas e os orleanistas,
como dissemos, formavam as duas
grandes facções do partido da ordem. O
que ligava estas facções aos seus
pretendentes e as opunha uma à outra
seriam apenas as flores-de-lis e a bandeira
tricolor, a Casa dos Bourbons e a Casa
dos Orléans, diferentes matizes do
monarquismo? Sob os Bourbons
governara a grande propriedade territorial,
com seus padres e lacaios; sob os Orléans,
a alta finança, a grande indústria, o alto
comércio, ou seja, o capital, com seu
séquito de advogados, professores e
orados melífluos. A Monarquia
Legitimista foi apenas a expressão
política do domínio hereditário dos
senhores de terra, como a Monarquia de
Julho fora apenas a expressão política do
usurpado domínio dos burgueses
arrivistas. O que separava as duas facções,
portanto, não era nenhuma questão de
princípio, eram suas condições materiais
de existência, duas diferentes espécies de
propriedade, era o velho contraste entre a
cidade e o campo, a rivalidade entre o
capital e o latifúndio. Que havia, ao
mesmo tempo, velhas recordações,
217
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

inimizades pessoais, temores e


esperanças, preconceitos e ilusões,
simpatias e antipatias, convicções,
questões de fé e de princípio que as
mantinhas ligadas a uma ou a outra casa
real – quem o nega? Sobre as diferentes
formas de propriedade, sobre as
condições sociais, maneiras de pensar e
concepções de vida distintas e
peculiarmente constituídas. A classe
inteira os cria e os forma sobre a base de
suas condições materiais e das relações
sociais correspondentes. O indivíduo
isolado, que as adquire através da
tradição e da educação, poderá imaginar
que constituem os motivos reais e o ponto
de partida de sua conduta. Embora
orleanistas e legitimistas, embora cada
facção se esforçasse por convencer-se e
convencer os outros de que o que as
separava era sua lealdade às duas casas
reais, os fatos provaram mais tarde que o
que impedia a união de ambas era mais a
divergência de seus interesses. E assim
como na vida privada se diferencia o que
um homem pensa e diz de si mesmo do
que ele realmente é e faz, nas lutas
históricas deve-se distinguir mais ainda as
frases e as fantasias dos partidos de sua
formação real e de seus interesses reais, o
conceito que fazem de si do que são na
realidade (MARX, 1987a, p. 45-46).
Aqui Marx apresenta que cada classe social cria sua
expressão política, seus símbolos, suas alianças, e,
principalmente, suas formas de consciência. A partir de
218
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sua base material de classe e relações sociais


correspondentes, cada classe cria suas “maneiras de
pensar”, “concepções de vida distintas”. Ao lado disso,
experiências cotidianas, enfrentamentos passados e
crenças já constituídas, proporcionam “velhas
recordações”, “inimizades pessoais”, “temores e
esperanças”, “preconceitos e ilusões”, “simpatias e
antipatias”, “convicções” e “questões de fé e de princípio”.
Essa concreticidade, que traz diversas outras
determinações, manifestam apenas de forma mais
detalhada o conjunto de motivações e aspectos envolvidos
em tais manifestações de classes. Nessa multiplicidade de
determinações, a individualidade ao se distinguir no
interior da coletividade, aparenta que apenas estes
aspectos, em geral derivados da condição de classe (o ódio
de um indivíduo por outro tende a ocorrer, com mais
frequência, em relação a indivíduos da outra classe, pois já
existe toda uma história e tradição de rivalidades, de
confrontos, etc., para citar apenas um exemplo), são as
suas motivações. E aqui Marx retoma a fórmula já
expressa na Contribuição à Crítica da Economia Política:
219
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

a consciência que o indivíduo tem de si e o que ele é


realmente são coisas distintas e isso vale mais ainda para
as lutas históricas, para a consciência social.
Porém, numa sociedade de classes, não apenas as
classes sociais criam formas de consciência que
correspondem aos seus interesses, condições de vida, etc.,
mas também criam um conjunto de indivíduos que se
tornam os seus principais porta-vozes políticos ou
intelectuais. Aqui não se trata da ideologia da
representação (VIANA, 2013), ou seja, a ideologia de que
os partidos políticos representam o povo ou seus
eleitores12. O termo em Marx refere-se a outro processo.
Trata-se dos porta-vozes de determinada classe social,

12
Na ideologia da representação, há um discurso falso que um partido
político faz de representar os interesses do “povo”, “nação”,
“trabalhadores” e seus reais interesses, expressando uma ou outra
classe social efetivamente. A representação aqui é expressão efetiva
e é neste sentido que Marx aborda tal questão. A ideologia da
representação é apenas uma consciência ilusória da representação
que substitui a expressão real de determinados interesses por uma
suposta representação de outros interesses. Esse jogo ideológico é
determinado pelo processo eleitoral e por isso o discurso partidário é
manifesta um objetivo declarado e falso e oculta seu verdadeiro
objetivo (VIANA, 2013), para retomar a análise do sociólogo Etzioni
(1978).
220
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

aqueles que a representam politicamente – na ação e no


discurso – ou intelectualmente – na produção intelectual,
literária, discursiva. Cada classe social produz seus
representantes intelectuais e políticos (e estes, ao fazerem
discurso, também expressam uma representação
intelectual). O nosso foco aqui, no entanto, serão os
representantes intelectuais (ou literários, como Marx
coloca em algumas oportunidades, bem como ideológicos,
quando se refere ao caso da burguesia).
Há uma passagem no Dezoito Brumário na qual
Marx sintetiza sua concepção de representação intelectual
e política de classe. Ao discutir a formação da social-
democracia, na época uma aliança entre proletariado e
pequena-burguesia13, e a união do socialismo e da
democracia, gênese do nome em questão. Essa aliança,
segundo Marx, proporciona um conteúdo democrático que
não ultrapassa os limites da pequena-burguesia, que
considera que suas condições especiais de emancipação

13
Embora, posteriormente, a futura social-democracia efetivará o
mesmo processo, só que cada vez mais a primazia será da burocracia
e da intelectualidade e cada vez menos da pequena-burguesia e do
proletariado.
221
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

são as condições gerais de toda emancipação. Nesse


momento, Marx explica a relação entre representantes de
classe e classe social, através do caso da pequena-
burguesia e seus representantes democráticos:

O que os torna representantes


da pequena burguesia é o fato de que sua
mentalidade não ultrapassa os limites que
esta não ultrapassa na vida, de que são
consequentemente impelidos,
teoricamente, para os mesmos problemas
e soluções para os quais o interesse
material e a posição social impelem, na
prática, a pequena burguesia. Esta é, em
geral, a relação que existe entre os
representantes políticos e literários de
uma classe e a classe que representam
(MARX, 1987a, p. 48).
Assim, os representantes intelectuais e políticos de
uma classe possuem uma mentalidade análoga às
condições sociais e interesses materiais de uma
determinada classe social e isso os conduz aos mesmos
problemas e soluções que a classe que representam busca
na prática. Isso constitui sua mentalidade, suas concepções
e práticas. Esses porta-vozes não são, ainda, os
especialistas no trabalho intelectual, não são os ideólogos,
intelectuais por profissão. São indivíduos que agem e
222
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

pensam, que atuam seja sob a forma prática-política ou


intelectual-literária, ou ambas simultaneamente. São porta-
vozes das classes sociais por serem elementos ativos
discursiva ou praticamente, sendo que geralmente
expressam as duas coisas juntas, a não ser em raros casos.
Sem dúvida, alguns atuam mais no nível da ação
intelectual-literária e outros mais na ação prática-política,
mas aí é questão apenas de ênfase e tempo gasto. Poucos
representantes intelectuais fazem só discurso (o que já é
uma prática, quando se torna público) e existem diversas
gradações de ação concreta, assim como poucos apenas
“agem”, sem realizar discursos, por mais limitados,
simplórios, etc., que possam ser.
O que distingue tais representantes intelectuais e
políticos de uma classe dos indivíduos que pertencem a
esta classe é justamente sua manifestação intelectual ou
política ou ambas simultaneamente. Os indivíduos que
pertencem a uma determinada classe e que se manifestam
intelectual e politicamente são representantes dela, desde
que sua manifestação esteja ligada aos seus interesses de
classe e tal manifestação seja pública. Da mesma forma,
223
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

outros indivíduos que pertencem a esta mesma classe e


também se manifestam, mas seu conteúdo está ligado aos
interesses de outra classe, são representantes desta outra
classe. Em síntese, os representantes intelectuais e
políticos de uma classe pode expressar a classe à qual
pertencem ou não, ou seja, podem expressar outra classe
social. Segundo Marx, a transformação democrática da
sociedade dentro dos limites da pequena burguesia é o
discurso dos representantes democráticos e estes
expressam tal classe. Ele acrescenta que “não se deve
imaginar, tampouco, que os representantes democráticos
sejam na realidade todos shopkeepers (lojistas) ou
defensores entusiastas destes últimos”, pois, “segundo sua
formação e posição individual podem estar tão longe deles
como o céu da terra” (MARX, 1987a, p. 48)14.

14
Aqui fica claro a distinção entre a real concepção de Marx e a que
lhe é atribuída por seus pseudocríticos, entre eles Bourdieu (1996),
ao tratar do caso de Flaubert (Cf. VIANA, 2011). Bourdieu julga
refutar a teoria marxista colocando que Flaubert expressava uma
classe que não era a qual pertencia. Aqui se abre espaço para a
ideologia pseudomarxista de Lucien Goldmann (1976), segundo a
qual há apenas homologia entre produção intelectual e classe social.
Porém, o que Marx quer dizer é que os representantes intelectuais de
uma classe social não necessitam ser pertencentes a ela, embora essa
224
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

O que constitui um indivíduo como representante


intelectual (ou político) de uma classe não é seu
pertencimento de classe, embora, obviamente, isso ocorra
quase sempre, tal como as colocações anteriores de Marx
deixam entrever. Então aqui parece residir uma
contradição, pois a unidade entre ser e consciência, tanto
no indivíduo quanto nas classes sociais, parece não existir
em todos os casos. Porém, Marx forneceu elementos para
ir além dessa contradição e se recordarmos alguns
aspectos do seu pensamento podemos entender melhor
suas colocações. Se recordarmos que as ideias dominantes
são as ideias da classe dominante, então os indivíduos
representantes das demais classes podem ser envolvidos
por estas ideias e assim, não expressar os interesses e
concepções que são de sua classe. Assim, a social-
democracia que une proletariado e socialismo, por um
lado, e pequena burguesia e democratismo, por outro, é
uma síntese produzida pela supremacia cultural burguesa
(e seu discurso democrático) que, no caso da pequena

seja a tendência, pois isso depende do processo histórico de vida do


indivíduo e do contexto social e histórico.
225
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

burguesia, é sua solução ilusória para sua situação e, em


momentos que o proletariado radicaliza e se torna uma
força política visível, ele pode mesclar o seu
democratismo com o socialismo proletário, deformando-o.
Isso significa que indivíduos proletários podem reproduzir
as concepções burguesas ou pequeno-burguesas, ou aceitar
uma mescla entre elas e as de sua classe. Ou seja, além do
pertencimento de classe, existe a hegemonia da burguesia
(no caso específico do capitalismo) e ainda as
manifestações de diversas classes que podem fazer com
que os indivíduos não expressem os interesses de sua
classe de pertencimento.
Assim, as ideias dominantes e existentes teriam um
papel importante na constituição das concepções dos
representantes intelectuais e políticos das classes sociais.
Sem dúvida, as lutas de classes – não apenas no plano da
cultura e das ideias – e as forças políticas em ascensão
também determinam esse descompasso entre
pertencimento e representação de classe. Isso
proporcionaria a emergência do ecletismo, tal como Marx
(1988b) analisa no caso dos representantes intelectuais da
226
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

burguesia na economia política, tal como Stuart Mill, que


tentar unir as reivindicações proletárias e a perspectiva
burguesa. O ecletismo também ocorre no caso daqueles
que pretendem ser representantes intelectuais do
proletariado, tal como Marx demonstrou no caso de
Proudhon (MARX, 1986).
Outras determinações também podem ser
acrescentadas e, sem dúvida, em certos casos assume
papel primordial, tal como o caso da “interligação” das
ilusões dos ideólogos em geral com as ilusões dos juristas
e políticos, cuja origem reside na “posição prática na vida,
sua profissão” e na “divisão do trabalho” (MARX e
ENGELS, 2002). Outras situações e determinações
também existem em cada caso concreto, inclusive devido
ao fato de que o pertencimento de classe não deixa de
existir simplesmente por causa da força das ideologias e
concepções de outras classes (o que, em muitos casos,
geram diferenças de concepções, tonalidades, ênfases,
distintas em indivíduos que representam a classe a qual
não pertencem). O próprio Marx é um exemplo de
indivíduo que pertencia a uma classe e representou outra
227
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

classe. As lutas de classes na Alemanha, a partir dos anos


1830 e principalmente a década de 1840 são uma das
determinações desse processo, bem como a ascensão da
burguesia, os ecos do socialismo francês, a emergência do
proletariado na Inglaterra e França, entre outros
acontecimentos, formaram um conjunto de determinações
que tiveram ressonância no pensamento e ação de Marx.
Claro que outras determinações, como o impacto do
humanismo sobre Marx (e ele nunca deixou de ser um
humanista, apenas mudou a sua forma), a sua formação e
desenvolvimento intelectual, também atua, mesmo porque
foi o que permitiu passar de um humanismo abstrato para
um humanismo concreto, a influência da filosofia de
Hegel e a força do hegelianismo, especialmente o de
esquerda, etc. Obviamente que restaria explicar por qual
motivo o humanismo e o hegelianismo de esquerda
tiveram impacto sobre Marx e isso só pode ser realizado
através de um extenso e profundo estudo biográfico e
analítico sobre sua vida, que não nos propomos aqui, mas
que revela apenas mais um aspecto da concepção
materialista desenvolvida pelo próprio autor em questão e
228
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

seu método dialético. Tal como veremos adiante, é a


reconstituição do concreto via descoberta de suas
múltiplas determinações que podemos descobrir, em cada
caso individual, esse descompasso entre pertencimento e
representação de classe15.
Um outro aspecto da teoria da consciência de Marx
remete ao problema da ideologia, da ciência e da teoria. A
questão da ideologia é uma das mais polêmicas e que
apresenta maiores divergências interpretativas e, ao lado
de sua importância para a concepção marxista em geral, e
por isso dedicaremos o próximo capítulo para discutir
exclusivamente essa questão. Contudo, Marx concebia a
ideologia como produtos dos ideólogos, especialistas no
trabalho intelectual, e isso traz uma nova questão para a
teoria marxista da consciência. Nas sociedades de classes,

15
Infelizmente, no interior do marxismo, um estudo desse tipo não foi
feito nem sobre Marx nem qualquer outro autor, a não ser
superficialmente e de acordo com os parâmetros das ideologias
burguesas. Nem mesmo uma produção intelectual teórica sobre tal
relação foi produzida, tanto pelo caráter incompleto e pouco
conhecido da teoria das classes sociais em Marx quanto pela
deformação e simplificação de suas teses, principalmente pelos
pseudomarxistas, o que dificulta qualquer aprofundamento de
análises dialéticas sobre a realidade.
229
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

a divisão social entre trabalho manual e intelectual produz


os especialistas do intelecto. Historicamente, estes são
ideólogos, mas não necessariamente. Diversos
especialistas do intelecto não representaram sua classe de
pertencimento e, quando não o fazem, produzem outra
forma de pensamento que não a ideologia. A questão é que
tais especialistas produzem um pensamento complexo,
que, sendo falso, é ideologia. Porém, nem toda produção
intelectual estruturada (e por isso com alto grau de
estruturação e complexidade) é ideologia. Marx usa
termos distintos para expressar essa forma de pensamento
complexo e não ideológica: ciência, teoria, filosofia. Claro
que tais termos são utilizados de forma distinta do que é
dominante em cada caso (a ciência, no sentido dominante
da palavra, é ideologia, bem como filosofia e teoria) e por
isso abre espaço para confusão (trataremos da questão da
ciência no próximo capítulo). Em algumas passagens,
Marx opõe ciência e teoria (o que será retomado por
Korsch, um dos principais continuadores de Marx).
Assim, há o nível das ideias revolucionárias, da
consciência de classe do proletariado, derivada da sua
230
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

própria essência de classe e o nível da teoria


revolucionária, ou seja, a forma complexa e estruturada
dessas ideias, da consciência revolucionária do
proletariado. No primeiro caso, Marx explicita: “Quando
se fala de ideias que revolucionam a sociedade, isso quer
dizer que dentro da velha sociedade surgem elementos de
uma nova sociedade, e que a dissolução das antigas ideias
acompanha a dissolução das antigas condições de vida”
(MARX e ENGELS, 1978, p. 111). Ou, em outras
palavras, “A existência de ideias revolucionárias numa
época determinada pressupõe já a existência de uma classe
revolucionária” (MARX e ENGELS, 2002).
A forma de pensamento que estrutura e complexifica
tais ideias, ou seja, que desenvolve a consciência
revolucionária do proletariado é o comunismo, ou seja, o
próprio marxismo. Porém, esse desenvolvimento
complexo e estruturado da consciência revolucionária do
proletariado é, inicialmente, “doutrinária”, “utópica” e,
posteriormente, se torna revolucionária:

Enquanto o proletariado ainda


não está bastante desenvolvido para se

231
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

constituir como classe e,


consequentemente, a sua própria luta com
a burguesia não tem ainda um caráter
político; enquanto as forças produtivas
ainda não estão bastante desenvolvidas,
no seio mesmo da burguesia, para
possibilitar uma antevisão das condições
materiais necessárias à libertação do
proletariado e à formação de uma
sociedade nova, estes teóricos são apenas
utopistas que, para amenizar os
sofrimentos das classes oprimidas,
improvisam sistemas e correm atrás de
uma ciência regeneradora. Mas, à medida
que a história avança, e, com ela, a luta do
proletariado se desenha mais claramente,
eles não precisam mais procurar a ciência
em seu espírito; basta-lhe dar conta do
que se passa ante seus olhos e se tornarem
porta-vozes disto. Enquanto procuram a
ciência e apenas formulam sistemas,
enquanto se situam nos inícios da luta,
eles veem na miséria somente a miséria,
sem observarem nela o lado
revolucionário, subversivo, que derrubará
a velha sociedade. A partir desta
observação, a ciência produzida pelo
movimento histórico, e que se vincula a
ele com pleno conhecimento de causa,
deixa de ser doutrinária e se torna
revolucionária (MARX, 1989, p. 119).
É exatamente isso que Marx busca efetivar, ou seja,
ser porta-voz do proletariado, expressar teoricamente sua
consciência revolucionária, o que significa estruturar de

232
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

forma complexa tal consciência, o que pressupõe pesquisa


e análise da realidade. Assim, essa expressão teórica do
proletariado seria o marxismo16. Por conseguinte, o
marxismo nada tem de relativista, considera que a
emergência de uma classe revolucionária faz emergir
ideias revolucionárias, tanto no nível das representações
cotidianas, quanto no nível mais elaborado e o marxismo é
a forma mais desenvolvida neste último caso, a sua forma
teórica. Assim, ele não só critica as ideologias burguesas e
de outras classes como é superior a estas formas
complexas de pensamento, pois expressa uma consciência
revolucionária, de uma classe que não só é atual classe
explorada e dominada, mas que é o sujeito revolucionário
e o embrião de uma nova sociedade, novas relações de
produção e, portanto, não tem nenhum interesse que
vincule suas concepções com a sociedade presente. O seu
vínculo é com a sociedade do futuro e, por conseguinte,
pode realizar uma crítica radical e desapiedada da

16
Esta é justamente a definição que Karl Korsch (1977) fornece ao
mesmo: expressão teórica do movimento revolucionário do
proletariado.
233
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sociedade existente. O caráter crítico-revolucionário do


marxismo é possível pelo seu vínculo com o proletariado,
que é, tal como colocou Marx, a classe portadora do
futuro17. O marxismo, portanto, é a forma complexa e
estruturada da consciência revolucionária do proletariado e
por é, ao mesmo tempo, uma crítica das ideologias.

17
“À medida que tal crítica representa, além disso, uma classe, ela só
pode representar a classe cuja missão histórica é a derrubada do
modo de produção capitalista e a abolição final das classes – o
proletariado” (MARX, 1988a).
234
A CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS

A revolução comunista é a ruptura mais


radical com as relações de propriedade
tradicionais, não é de se estranhar,
portanto, que a curso de seu
desenvolvimento rompa, de modo mais
radical, com as ideias tradicionais.
Karl Marx

.
As primeiras obras de Marx foram voltadas para a
crítica da religião e das ideias. Num momento posterior,
após escrever A Ideologia Alemã, passa a tratar da crítica
da política e do modo de produção capitalista. Nesse
sentido, trata-se não de abandono da crítica, mas de
aprofundamento, num primeiro momento, e de prioridade
para análise das relações sociais concretas. Nosso objetivo
não é refazer esse itinerário intelectual, mas mostrar que a
crítica das ideologias é um dos elementos fundamentais do
marxismo e que ele não a abandonou em nenhum
momento, tão somente passou a colocá-la em segundo
plano, embora, às vezes, voltasse a primeiro plano, tal
como em A Miséria da Filosofia ou então na divisão do
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

trabalho que fez quando se dedicou a escrever O Capital e


Engels a criticar os críticos e ideólogos da época.
Em primeiro lugar, é preciso resgatar o significado
do termo ideologia no pensamento de Marx, tendo em
vista que seus epígonos deformaram sua compreensão de
tal termo. A ideologia, para Marx, é um saber ilusório,
falso, que inverte a realidade. Segundo ele:

E, se, em toda ideologia, os


homens e suas relações nos aparecem de
cabeça para baixo como em uma câmara
escura, esse fenômeno decorre de seu
processo de vida histórico, exatamente
como a inversão dos objetos na retina
decorre de seu processo de vida
diretamente físico (MARX e ENGELS,
2002, p. 19).
Aqui temos o elemento fundamental da ideologia e a
comparação com a câmera escura: a ideia da inversão da
realidade. O real aparece “de cabeça para baixo” na
ideologia, tal como numa câmera escura (veja imagem).
Assim, a ideologia é inversão da realidade, consciência
ilusória, ou “falsa consciência”1. Este é um ponto a se

1
Tornou-se popular a expressão “falsa consciência”, que, na verdade é
de Engels e não de Marx, como se fosse um termo usado por Marx.
236
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

destacar, a ideologia realiza a inversão da realidade e esta


é uma de suas características. Porém, sua especificidade
ainda precisa ser explicitada, pois, tal como vimos
anteriormente, existem outras formas de representações
ilusórias da realidade.
Câmera Escura

O que significa dizer que a ideologia inverte a


realidade? Como é possível inverter a realidade no
pensamento? O entendimento destas questões requer a
análise anterior, pois ela apresentou a teoria de Marx
segundo a qual a consciência não é nada mais que o ser
consciente e, portanto, que existe uma unidade entre

Segundo Engels, “a ideologia é, de fato, um processo realizado


conscientemente pelo assim chamado pensador, mas com uma
consciência falsa” (ENGELS, 1987b, p. 49). Porém, aqui a diferença
é tão somente formal, já que Marx considerava a ideologia uma
forma de consciência ilusória, falsa.
237
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

ambos. Não existe separação entre ser e consciência. Após


esta afirmação, parece soar estranha a ideia de uma
consciência falsa, pois isto seria um “ser consciente falso”.
Nesse caso haveria uma separação. Este problema se
desfaz quando aprofundamos essa análise. Ser e
consciência são inseparáveis: a consciência de um ser
social é consciência de suas relações sociais, e não tem
como haver separação. Isso, no entanto, não quer dizer que
a consciência esteja em unidade com a realidade. A
consciência pode inverter a realidade e continua sendo o
ser consciente, os inseparáveis ser e consciência.
Na concepção de Marx, não se trata de unidade entre
“sujeito” e “objeto”, ou seja, entre um indivíduo pensante
e a realidade circundante e sim uma unidade do indivíduo
(que é um ser social) com sua consciência (que é uma
consciência social). A concepção burguesa do
conhecimento difere radicalmente da teoria marxista da
consciência. Ela pressupõe um termo que é uma abstração
metafísica que substitui o indivíduo, o ser social histórico
e concreto. Este é o “sujeito do conhecimento”. Diante
dele, tal concepção coloca um outro termo abstrato que
238
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

seria o equivalente da realidade, o “objeto do


conhecimento”. O conhecimento é produto da relação
entre estas duas entidades abstratas e o fundamental é a
relação entre a consciência e a realidade2. Marx não
postula uma unidade entre consciência e realidade e por
isso é possível haver inversão da realidade na consciência.
O que Marx coloca é que há unidade entre o indivíduo, o
ser, e sua consciência, que é consciência de si e da
realidade social e natural, mas cujo conteúdo pode ser
falso, ilusório, tal como observamos anteriormente. A
consciência ilusória é produto das relações sociais
limitadas dos indivíduos, ou seja, a unidade entre ser e
consciência existe, independente dela ser verdadeira ou
falsa.
A ideologia, portanto, é inversão da realidade, pois o
ser consciente que a produz, ou seja, um ideólogo
específico que é unidade entre um determinado individuo
e sua consciência e não poderia ser de outra forma, inverte

2
Tal concepção ideológica foi reproduzida pelo pseudomarxismo
(VIANA, 2007b). A chamada “teoria do reflexo” de Lênin, é um
bom exemplo disso, pois afirma que a consciência reflete a realidade
(LÊNIN, 1978).
239
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

a realidade, cria uma consciência ilusória da mesma. Mas


o que possibilita tal inversão? Eis uma pergunta
fundamental e já respondida na citação anterior de Marx:
“esse fenômeno decorre de seu processo de vida
histórico”.

Ao contrário da filosofia alemã,


que desce do céu para a terra, aqui é da
terra que se sobe ao céu. Em outras
palavras, não partimos do que os homens
dizem, imaginam e representam,
tampouco do que eles são nas palavras, no
pensamento, na imaginação e na
representação dos outros, para depois se
chegar aos homens de carne e osso; mas
partimos dos homens em sua atividade
real, é a partir de seu processo de vida real
que representamos também o
desenvolvimento dos reflexos e das
repercussões ideológicas desse processo
vital. E mesmo as fantasmagorias
existentes no cérebro humano são
sublimações resultantes necessariamente
do processo de sua vida material, que
podemos constatar empiricamente e que
repousa em bases materiais. Assim, a
moral, a religião, a metafísica e todo o
restante da ideologia, bem como as
formas de consciência a elas
correspondentes, perdem logo toda a
aparência de autonomia. Não tem história,
não tem desenvolvimento; ao contrário,
são os homens que, desenvolvendo sua
produção material e suas relações
240
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

materiais, transformam, com a realidade


que lhes é própria, seu pensamento e
também os produtos do seu pensamento.
Não é a consciência que determina a vida,
mas sim a vida que determina a
consciência. Na primeira forma de
considerar as coisas, partimos da
consciência como sendo o indivíduo vivo;
na segunda, que corresponde à vida real,
partimos dos próprios indivíduos reais e
vivos, e consideramos a consciência
unicamente como a sua consciência
(MARX e ENGELS, 2002, p. 20).
Então a compreensão das formas de consciência
remete ao processo histórico de vida, o processo social
real, inclusive para entender e explicar as ideologias, as
formas existentes de saber ilusório. As representações
ilusórias, tal como colocamos anteriormente, são produtos
de relações sociais limitadas, dos seres humanos entre si e
com a natureza. Porém, a ideologia não é qualquer
representação ilusória. Se toda ideologia é uma
representação ilusória, nem toda representação ilusória é
uma ideologia. Onde reside a especificidade da ideologia?
E se ela é uma representação ilusória específica, quais
relações sociais limitadas também específicas a geram?

241
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Marx explica isso através de um de seus conceitos


fundamentais: divisão social do trabalho3. O nascimento
da ideologia ocorre com o surgimento da divisão entre
trabalho manual e trabalho intelectual e aqui também
temos a chave para compreender a especificidade do
fenômeno ideológico:

A divisão do trabalho só se
torna efetivamente divisão do trabalho a
partir do momento em que se opera uma
divisão entre o trabalho material e o
trabalho intelectual. A partir desse
momento, a consciência pode de fato
imaginar que é algo mais do que a
consciência da prática existente, que ela
representa realmente algo, sem
representar algo real. A partir desse
momento, a consciência está em
condições de se emancipar do mundo e de
passar à formação da teoria ‘pura’,
teologia, filosofia, moral, etc. Mas,
mesmo quando essa teoria, essa teologia,
essa filosofia, essa moral etc. entram em
contradição com as relações existentes,
isso só pode acontecer pelo fato de as

3
Vimos anteriormente que a divisão social do trabalho é a mesma
coisa que as relações de propriedade, sendo que a primeira remete à
atividade e a segunda ao produto, resultado, dessa atividade. Da
mesma forma, observamos que as relações de produção (que as
relações de propriedade são apenas sua expressão jurídica) são
marcadas pela divisão social do trabalho, sendo manifestações dela e
que geram outras formas de divisão do trabalho e subdivisões.
242
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

relações sociais existentes terem entrado


em contradição com a força produtiva
existente; aliás, numa esfera nacional
determinada isso também pode acontecer
porque, nesse caso, a contradição se
produz não no interior dessa esfera
nacional, mas entre essa consciência
nacional e a prática das outras nações, isto
é, entre a consciência nacional de uma
nação e a sua consciência universal
(MARX e ENGELS, 2002, p. 26).
Logo, a ideologia surge com a divisão social do
trabalho. Essa é a base real da ideologia. A partir disso não
somente compreendemos a origem da ideologia, mas
também sua especificidade. Se a ideologia surge com a
divisão social do trabalho entre trabalho manual e
intelectual, então descobrimos a chave que desvenda o
segredo da ideologia. Não são os trabalhadores manuais
que produzem ideologia e sim os trabalhadores
intelectuais. É assim que a consciência pode se emancipar,
pensar que possui autonomia e independência das relações
sociais reais4. Essa emancipação da consciência, sua

4
No mundo ideológico, essa afirmação de Marx pode ser invertida e
passar a dizer o contrário do que está dito. Efetivamente, Althusser
(1985) afirmou que, para Marx, “a ideologia não tem história”,
transformando-a em algo acima da história, enquanto que a ideia
original era que ela não tinha história autônoma e independente.
243
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

autonomia e independência, no entanto, é produto de uma


consciência ilusória. As demais representações ilusórias
são produtos dos indivíduos e suas relações limitadas com
os outros seres humanos e com a natureza, enquanto que a
ideologia é uma manifestação específica delas, realizada
pelos especialistas no trabalho intelectual e que lhe dá
sistematicidade, tornando-a um pensamento complexo.
Os ideólogos são aqueles que produzem as
ideologias, são os especialistas no trabalho intelectual, o
espaço que é reservado para eles na divisão social do
trabalho. Por isso, podem se dedicar a construir sistemas
filosóficos, amplas doutrinas políticas, concepções
científicas e teológicas em alto grau de complexidade. A
ideologia, portanto, não é qualquer “falsa consciência”, é
uma falsa consciência sistemática, um sistema de
pensamento ilusório. A inversão da realidade demonstra
seu caráter ilusório e o sistema de pensamento (ou sua
sistematicidade) mostra sua especificidade diante das
demais representações ilusórias e, ainda, descobrimos que

Assim, a concepção de Althusser é uma inversão da realidade, uma


concepção ideológica de ideologia.
244
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

a ideologia é produto dos ideólogos, especialistas no


trabalho intelectual. Essa é sua base real e por isso ela é
um pensamento sistemático. Marx explicita isso na
segunda parte de A Ideologia Alemã, publicado como livro
independente:

Mostramos que, se os filósofos


e os ideólogos se ocupam exclusiva e
sistematicamente das ideias, o que leva à
sistematização dessas ideias, isso era uma
consequência da divisão do trabalho e
que, em especial, a filosofia alemã é um
produto da estrutura pequeno-burguesa da
Alemanha (MARX e ENGELS, 1979, p.
312).
É por isso que quando a ideologia é abordada é
necessário abordar os ideólogos, os seus produtores. Esses
especialistas no trabalho intelectual e produtores de
sistemas de pensamento ilusórios são um produto histórico
e social e buscam se autonomizar, bem como suas ideias.
Devido sua posição na divisão social do trabalho, em
primeiro lugar, há a supervaloração de suas próprias
atividades, que são atividades intelectuais. Marx,
criticando os ideólogos alemães, afirma:

245
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Para os jovens hegelianos, as


representações, ideias, conceitos, enfim,
os produtos da consciência aos quais eles
próprios deram autonomia, eram
consideradas como verdadeiros grilhões
da humanidade, assim como os velhos
hegelianos proclamavam ser eles os
vínculos verdadeiros da sociedade
humana. Torna-se assim evidente que os
jovens hegelianos devem lutar unicamente
contra essas ilusões da consciência.
Como, em sua imaginação, as relações
dos homens, todos os seus atos e gestos,
suas cadeias e seus limites são produtos
da sua consciência, coerentes consigo
próprios, os jovens hegelianos nos
propõem aos homens este postulado
moral: trocar a sua consciência atual pela
consciência humana, crítica ou egoísta e,
assim fazendo, abolir seus limites. Exigir
assim a transformação da consciência
equivale a interpretar de modo diferente o
que existe, isto é, reconhecê-lo por meio
de uma outra interpretação. Apesar de
suas frases pomposas que supostamente
‘revolucionam o mundo’, os ideólogos da
escola jovem-hegeliana são os maiores
conservadores. Os mais jovens dentre eles
acharam a expressão exata para qualificar
sua atividade, ao afirmarem que lutam
unicamente contra uma ‘fraseologia’.
Esquecem no entanto que eles próprios
opõem a essa fraseologia nada mais que
outra fraseologia e que não lutam de
maneira alguma contra o mundo que
existe realmente ao combaterem
unicamente a fraseologia deste mundo. Os
246
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

únicos resultados a que pôde chegar essa


crítica filosófica foram alguns
esclarecimentos histórico-religiosos – e
assim mesmo de um ponto de vista muito
restrito – sobre o cristianismo; todas as
suas outras afirmações não passam de
novas maneiras de revestir de ornamentos
suas pretensões de terem revelado
descobertas de um grande alcance
histórico – a partir de esclarecimentos
insignificantes (MARX e ENGELS, 2002,
p. 10).
A ideologia surge com o processo de autonomização
do trabalho intelectual através de sua separação do
trabalho manual. Daí os ideólogos podem autonomizar,
em seu saber ilusório, a consciência, separá-la do ser
consciente, das relações sociais concretas, da história, das
classes. Curiosamente, alguns pseudomarxistas fizeram
isso com as ideias de Marx e com o próprio marxismo,
transformando-o em ideologia. Esse é o caso da tese de
Kautsky e Lênin:

Como doutrina, o socialismo


evidentemente tem suas raízes nas
relações econômicas atuais, da mesma
forma que a luta de classe do proletariado:
do mesmo modo que esta última, resulta
da luta contra a pobreza e a miséria das
massas, provocadas pelo capitalismo. Mas
o socialismo e a luta de classe surgem
247
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

paralelamente e um não engendra o outro;


surgem de premissas diferentes. A
consciência socialista de hoje não pode
surgir senão à base de um profundo
conhecimento científico. De fato, a
ciência econômica contemporânea
constitui tanto uma condição da produção
socialista como, por exemplo, a técnica
moderna, e, apesar de todo o seu desejo, o
proletariado não pode criá-las: ambas
surgem do processo social
contemporâneo. Ora, o portador da
ciência não é o proletariado, mas os
intelectuais burgueses (o grifo é de Karl
Kautsky): foi do cérebro de certos
indivíduos dessa categoria que nasceu o
socialismo contemporâneo, e foram eles
que o transmitiram aos proletários
intelectualmente mais evoluídos, que o
introduziram, em seguida, na luta de
classe do proletariado onde as condições o
permitiram. Assim, pois, a consciência
socialista é um elemento importado de
fora (Von Aussenhineigetranes) da luta de
classe do proletariado, e não algo que
surgiu espontaneamente (urwuchsig)
(KAUTSKY, apud LÊNIN, 1978, p. 31).
Isso quer dizer que a consciência socialista, o
marxismo, em síntese, surge através dos intelectuais
burgueses e estes a introjetam no proletariado. Essa
curiosa separação entre ser e consciência, na qual os
intelectuais burgueses é que produzem a consciência

248
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

proletária e o proletariado não produz mais do que


consciência burguesa, é uma inversão tipicamente
ideológica. Ao contrário de tudo que Marx colocou – mas
dizendo-se ser representante do “marxismo ortodoxo”,
tanto a primeira ortodoxia, que é a de Kautsky, quanto a
segunda, que é a de Lênin, o que mostra a proximidade e
vínculo de classes de ambos5 – é do cérebro dos
intelectuais burgueses que emerge o socialismo.
Não contentes com isso, esses dois pensadores
também analisam a origem do marxismo da mesma forma
ideológica, tal como era de esperar pelos interesses de
classes que ambos manifestam. É por isso que Lênin
enfatizará as “três fontes do marxismo”, que geram suas
“três partes constitutivas”: a filosofia alemã, a economia
política inglesa e o socialismo francês (Lênin, 1985).
Assim, no nebuloso mundo ideológico, as ideias de Marx
foram derivadas dessas ideologias, pois a autonomização
das ideias faz permitir pensar que uma ideia deriva de

5
Em termos marxistas, a concepção kautskista-leninista é uma
ideologia da burocracia, inclusive sua produção é voltada para criar o
partido, organização burocrática, que deve dirigir o proletariado e
chegar ao poder estatal.
249
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

outra ideia. Essa tese, também, teve sua origem em


Kautsky (2002), autor de As Três Fontes do Marxismo.
Assim, a herança kautskista-leninista e dita ortodoxa do
“marxismo” realizou uma deformação do pensamento de
Marx a ponto de transformá-lo, nessa versão deformada,
em ideologia. Ora, mais grave que isso é ao se tornarem os
intérpretes pretensamente ortodoxos do marxismo, pois
eles se autodeclaram a continuidade do pensamento de
Marx, seguindo uma linha evolutiva após as três fontes
iniciais e por isso o socialismo é científico (voltaremos a
isso adiante). A interpretação do pensamento de Marx lhes
dá legitimidade e justifica suas concepções, ao separar
proletariado e teoria revolucionária (agora mera
6
ideologia), e os produtores da mesma .
Marx, ao contrário dos ideólogos em geral, coloca a
necessidade de retomar as bases reais da história, o
desenvolvimento do modo de produção, das lutas de
classes. Isso remete ao estudo do processo de vida real

6
Nesse sentido, Karl Korsch é um autor cuja leitura é fundamental
para romper com essa ideologia, tal como se vê na sua própria
definição de marxismo, como expressão teórica do movimento
revolucionário do proletariado (KORSCH, 1977).
250
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

para se entender o vínculo entre formas de consciência e


realidade social. Na concepção materialista da história,
“todo problema filosófico oculto” se converte em uma
questão concreta, real. A outra concepção da história “só
pode ver na história os grandes acontecimentos históricos
e políticos, lutas religiosas e, sobretudo, teóricas, e teve
particularmente de compartilhar, em cada época histórica,
a ilusão dessa época” (MARX e ENGELS, 2002, p. 38).
Assim, os ideólogos reproduzem as ilusões de sua época.
Porém, as ilusões de uma época não são apenas produtos
da mente dos ideólogos, não são gratuitas. Elas possuem
uma base real, tanto no sentido de quem produz a
ideologia – os ideólogos – é um ser social real, concreto,
quanto suas representações são sobre a realidade, mesmo
que esta apareça invertida.

Os pensamentos da classe
dominante são também, em todas as
épocas, os pensamentos dominantes; em
outras palavras, a classe que é o poder
material dominante numa determinada
sociedade é também o poder espiritual
dominante. A classe que dispõe dos meios
da produção material dispõe também dos
meios da produção intelectual, de tal
modo que o pensamento daqueles aos
251
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

quais são negados os meios de produção


intelectual está submetido também à
classe dominante. Os pensamentos
dominantes nada mais são do que a
expressão ideal das relações materiais
dominantes; eles são essas relações
materiais dominantes consideradas sob
forma de ideias, portanto a expressão das
relações que fazem de uma classe a classe
dominante; em outras palavras, são as
ideias de sua dominação. Os indivíduos
que constituem a classe dominante
possuem, entre outras coisas, também
uma consciência, e consequentemente
pensam; na medida em que dominam
como classe e determinam uma época
histórica em toda a sua extensão, é
evidente que esses indivíduos dominam
em todos os sentidos e que têm uma
posição dominante, entre outras coisas
também como seres pensantes, como
produtores de ideias, que regulamentam a
produção e a distribuição dos
pensamentos da sua época; suas ideias são
portanto as ideias dominantes de sua
época (MARX e ENGELS, 2002, p. 49).
Assim, Marx afirma que as ideias dominantes são as
ideias da classe dominante. Esta possui os meios de
produção intelectual e por isso também domina no âmbito
da cultura. O pensamento dominante é o pensamento da
classe dominante, tal como Marx colocará em outras obras
e momentos. Essas ideias são a “expressão ideal das
252
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

relações materiais dominantes”, ou seja, são a expressão,


sob forma de ideias, das relações de produção dominantes.
Aqui Marx revela o vínculo entre ideologia e dominação,
pois os indivíduos que possuem acesso aos meios de
produção intelectual e expressam de forma ideal (e
invertida) a realidade social, manifestam as ideias de sua
dominação. Esses ideólogos regulamentam a produção e
distribuição do pensamento da época.
Marx elabora uma divisão interessante entre
ideólogos ativos e passivos. Os ideólogos ativos são os
produtores de ideias, os que produzem e inovam, enquanto
que os ideólogos passivos são apenas reprodutores. Isto
significa reprodução da divisão social do trabalho no
interior da classe dominante, em sua produção intelectual:

Reencontramos aqui a divisão


do trabalho mencionada antes como uma
das forças capitais da história. Ela se
manifesta também na classe dominante
sob a forma de divisão entre o trabalho
intelectual e o trabalho material, de tal
modo que teremos duas categorias de
indivíduos dentro dessa mesma classe.
Uns serão os pensadores dessa classe (os
ideólogos ativos, que teorizam e fazem da
elaboração da ilusão que essa classe tem

253
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

de si mesma sua substancia principal), ao


passo que os outros terão uma atitude
mais passiva e mais receptiva em face
desses pensamentos e dessas ilusões,
porque eles são na realidade os membros
ativos dessa classe e têm menos tempo
para alimentar ilusões e ideias sobre suas
próprias pessoas (MARX e ENGELS,
2002, p. 49).
Marx também considera que dentro da classe
dominante, pode ocorrer uma cisão no seu interior entre
essas duas partes, criando uma oposição que cerra tão logo
a classe seja ameaçada como um todo. Assim, em A
Ideologia Alemã, Marx considera que os ideólogos são
parte da classe dominante. Esse equívoco conceitual se
deve a dois aspectos: as ideias de Marx sobre as classes
sociais no capitalismo ainda não estava desenvolvida, o
que ele fará a partir de obras posteriores, especialmente O
Capital e a falta de uma teorização mais profunda sobre os
ideólogos. No entanto, há dois elementos importantes para
explicar sua posição em A Ideologia Alemã: a) a
intelectualidade como classe social ainda estava em
formação e pouco desenvolvida e b) o fato de que a
produção ideológica não é monopólio dos intelectuais

254
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

profissionais, pois os membros da classe dominante


também podem produzir ideologias, embora em
quantidade – e certamente em qualidade – bem menor e
que diminui com o desenvolvimento histórico. Porém, em
obras posteriores ele já começa a perceber que os
ideólogos não são, em sua maioria, pertencentes à classe
burguesa. Mas mesmo em A Ideologia Alemã, Marx já
aponta para a percepção da diferenciação dos intelectuais
em relação à classe dominante, ao comentar a concepção
idealista da história e seu método:

Esse método histórico, que reinava


sobretudo na Alemanha, evidentemente,
deve ser explicado a partir de sua
interligação com a ilusão dos ideólogos
em geral, por exemplo, com as ilusões dos
juristas, dos políticos (e mesmo, mais
abaixo, dos homens de Estado em
atividade); devemos portanto partir dos
devaneios dogmáticos e das ideias
extravagantes dessa gente, ilusão essa que
se explica simplesmente por sua posição
prática na vida, sua profissão e pela
divisão do trabalho (MARX e ENGELS,
2002, p. 53-54).
Porém, Marx, em suas análises posteriores das
ideologias, mostrará que os ideólogos não são pertencentes

255
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

à classe burguesa. Esse é o caso do Dezoito Brumário, no


qual distingue a burguesia, representada, e ideólogos, seus
representantes: “os arautos e escribas da burguesia, sua
plataforma e sua imprensa, em suma, os ideólogos da
burguesia, e a própria burguesia, os representantes e os
representados, enfrentavam-se com hostilidade e não mais
se compreendiam” (MARX, 1987a, p. 96). No Prefácio da
Segunda Edição de O Capital, Marx coloca os
economistas vulgares como porta-vozes da classe
dominante, como aqueles que se vendem aos burgueses, o
que significa que não são burgueses.

A burguesia tinha conquistado o


poder político na França e Inglaterra. A
partir de então, a luta de classes assumiu,
na teoria e na prática, formas cada vez
mais explícitas e ameaçadoras. Ela fez
soar o sino fúnebre da economia científica
burguesa. Já não se tratava de saber se
este ou aquele teorema era ou não
verdadeiro, mas se, para o capital, ele era
útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo,
subversivo ou não. No lugar da pesquisa
desinteressada entrou a espadacharia
mercenária, no lugar da pesquisa
científica imparcial entrou a má
consciência e a má intenção da
apologética (MARX, 1988b, p. 23).

256
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Aqui Marx usa “desinteressada” e “imparcial” no


sentido individual ou não de classe, ou seja, a economia
política burguesa, obviamente, expressa os interesses de
classe da burguesia e não poderia ser diferente. Ela é
“desinteressada” no sentido de interesse individual, mas
logo é substituída pela “espadacharia mercenária”, ou seja,
pelo interesse pessoal (do ideólogo, no caso, do
economista). Por outro lado, a pesquisa imparcial quer tão
somente dizer que o economista, enquanto ideólogo da
burguesia, se ilude com a sua pretensa imparcialidade e
neutralidade, mas, tão logo os seus interesses pessoais
sobrepõem outros interesses (tal como o de ter
reconhecimento científico ou ascensão social), ele se torna
conscientemente a serviço da burguesia, sendo parcial e
agindo com má fé, produzindo ideias apologéticas do
capitalismo de forma intencional, devido seus interesses
pessoais.
Essa é a economia política vulgar, da qual Thomas
Malthus é um dos principais representantes. Porém, há
uma economia política cuja ideologia é distinta:

257
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Homens que ainda pretendiam ter


algum significado científico e que queria
ser algo mais do que meros sofistas e
sicofantas das classes dominantes
procuravam sintonizar a Economia
Política do Capital com as reivindicações
não mais ignoráveis do proletariado. Daí
surge um sincretismo desprovido de
espírito, cujo melhor representante é
Stuart Mill (MARX, 1988b, p. 23).
Uma terceira tendência da ideologia burguesa em
economia política é a de David Ricardo e Adam Smith.
Segundo Marx, se na Alemanha não era possível um
estudo descompromissado com a perspectiva burguesa, na
Inglaterra, antes dos vulgares e ecléticos, a obra de David
Ricardo tinha percebido a contradição dos interesses de
classe, mas tomada ingenuamente como lei natural da
sociedade. “Com isso, a ciência burguesa da economia
havia, porém, chegado aos seus limites intransponíveis”
(MARX, 1988b, p. 22).
Marx faz uma distinção entre os representantes
intelectuais e literários das distintas classes sociais, pois
produzem concepções diferentes da realidade: “assim
como os economistas são os representantes científicos da
classe burguesa, os socialistas e os comunistas são os
258
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

teóricos da classe proletária” (MARX, 1989, p. 118)7. Da


mesma forma, sua crítica a Proudhon coloca a tentativa do
cientista de estar acima dos conflitos de classes, pois ele,
“pretende, como homem de ciência, pairar acima de
burgueses e proletários, mas não passa de um pequeno-
burguês que oscila, constantemente, entre o capital e o
trabalho, entre a economia política e o comunismo”
(MARX, 1989, p. 119).
Assim, Marx enfatiza em suas primeiras obras a
crítica das ideologias filosóficas, especialmente a alemã, e,
posteriormente, passa para a crítica das ideologias
científicas, especialmente a economia política. No entanto,
isso não que dizer que tenha abandonado a primeira, mas,

7
Alguns intérpretes, que valoram extremamente a ciência, produzem
uma interpretação ideológica ao inverter o que Marx quis dizer nessa
frase. Para tais intérpretes, os economistas são ideólogos, como
afirma o próprio Marx, e representantes científicos da burguesia e,
logo, para eles, a ideologia seria positiva, pois pode ser ciência.
Claro é que isso é uma inversão, pois o que Marx diz é que os
economistas são ideólogos da burguesia, seus representantes
científicos, o que significa não que a ideologia seja positiva por ser
ciência, e sim que a ciência é negativa por ser ideologia. Da mesma
forma, apesar de todas as evidências ao contrário, muitos epígonos
de Marx afirmam que não existem ideologias científicas, apesar de
Marx ter afirmado isso em relação à economia política, biologia,
historiografia, etc.
259
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

pelo próprio desenvolvimento da segunda que acompanha


a evolução da sociedade capitalista, o seu foco passa a ser
ela, mesmo porque é ela que toma como objeto de estudo
o modo de produção capitalista, que é seu foco analítico
em suas últimas obras. A crítica de Marx a Darwin, que
teria traduzida para o mundo animal e vegetal a sociedade
inglesa de sua época, inspirando em Malthus, mostra que
não se limitava à economia política, a principal ideologia
burguesa de sua época8. Assim, se na Alemanha a
ideologia assumia a forma predominante de filosofia, na
Inglaterra assumia a forma predominante de ciência.
Alguns podem recordar que Marx usou a expressão
“socialismo científico” e que por isso a ciência seria, no
seu pensamento, algo fundamental, e, portanto, ciência
seria autônoma e independente, “neutra”. Obviamente que
isso entra em contradição com todo o pensamento de
Marx. Mas também é verdade que ele utilizou a expressão
“socialismo científico”, popularizada depois por um

8
Não poderemos desenvolver aqui a crítica de Marx a Malthus e
Darwin, mas já fizemos uma análise introdutória disso em outros
textos (VIANA; 2006; VIANA, 2009b).
260
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

escrito de Engels. É necessário compreender que a palavra


ciência, em alemão (wissenschaft) possui significado
muito mais amplo do que o que se concebe atualmente e
que suas análises das produções científicas existentes e das
ciências naturais (o caso das chamadas ciências humanas,
como a economia, é pior ainda) assumiram caráter crítico.
Segundo McLelland:

Fundamentalmente, a Ciência para


Marx não se equiparava à ciência natural.
(O termo alemão Wissenschaft possui
conotação bem mais ampla que a palavra
science em inglês). Durante toda a sua
vida Marx teve a certeza de que a ciência
natural deveria perder o que ele chamava
de ‘orientação unilateralmente
materialista’ para se integrar numa
interpretação total do homem e da
sociedade. Especialmente nos últimos
escritos, ele enfatizou que qualquer
ciência tinha que penetrar o aparente
movimento das coisas até suas reais
causas subjacentes. Isso envolvia uma
diferenciação entre aparência e essência
que percorria um longo caminho de volta,
de Hegel a Aristóteles, passando por
Spinoza (MCLELLAN, 1993, p. 68).
Apesar de imprecisões terminológicas, o que
McLellan coloca é correto, Marx não fundou uma ciência
econômica e sim fez a crítica da economia política, como
261
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

se vê com facilidade no título de sua obra Contribuição à


Crítica da Economia Política e no subtítulo de O Capital,
que é Crítica da Economia Política. Da mesma forma, sua
obra não pode ser considerada científica por não buscar a
prova empírica que a caracteriza9. Apesar de alguns
equívocos que apresentaremos a seguir, há alguns
elementos de verdade na afirmação de McLellan:

Há dois fatores que desaconselham


o tratamento das ideias de Marx como
científicas, no sentido vulgar de teorias
que podem ser provadas ou não através da
observação. Em primeiro lugar, existe
obviamente algum tipo de continuidade
entre as primeiras e as últimas obras que
escreveu: as noções de alienação, o
homem como ser autocriador e a história
como um progresso que leva a uma
sociedade não alienada sempre foram
fundamentais em toda a obra de Marx.
Assim, suas obras sempre englobam um
elemento normativo, o que equivale a
dizer que não estão sujeitas à refutação
direta simplesmente pela referencia ao
‘fato’. Em segundo lugar, as teorias
econômicas de Marx são modelos, mais
ou menos retirados da realidade empírica,

9
Da mesma forma, também não busca a prova racional efetivada pela
filosofia, também criticada por ele, tal como já colocamos no caso
específico de A Ideologia Alemã, mas presente em outras obras e
momentos.
262
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

e simplesmente descrevem tendências.


Assim, a teoria do valor do trabalho não
representa algo certo ou errado. Para
Marx, ela é verdadeira por definição, e o
problema real é saber se ela pode
responder pela oscilação de preços e
lucros (MCLELLAN, 1993, p. 68-69).
Além dos problemas terminológicos, McLellan
demonstra não ter entendido a essência do método
dialético, que não produz “modelos”, tal como
colocaremos adiante, e que também a concepção de Marx
nada tem de normativa10. Porém, é evidente que as

10
McLellan acerta na questão de que a dialética não pode ser refutada
por referências aos fatos (no capítulo sobre a dialética materialista
isto será discutido de forma aprofundada), mas ao pensar em
“modelos”, usa um termo problemático que mostra desconhecer o
modo dialético de pensar a realidade, que não é indutivo-dedutivo,
como alguns já disseram, pois não parte do particular para o geral e
nem vice-versa. Quanto ao uso do termo “normativo” também é
problemático, já que Marx trabalhava em termos de necessidades,
possibilidades, tendências e projetos, quando se trata do futuro e não
de “normas”. Se as necessidades humanas não são satisfeitas, então
há insatisfação, desejo e luta para satisfazê-las, o que gera a sua
possibilidade e tendência de realização e projetos buscando o
mesmo. Por conseguinte, é com base na teoria da natureza humana
que Marx pensa as necessidades e elabora o seu projeto, que é o da
emancipação humana e não é criação dele, pois é apenas expressão
real de necessidades reais. No nível da análise da realidade, ele
observa como isso gera possibilidades, tendências e outros projetos
(inclusive utópico-abstratos), através de suas manifestações
263
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

questões da alienação e da revolução perpassam toda a


obra de Marx e nisso McLellan está certo e nesse sentido o
marxismo rompe com um dos aspectos fundamentais do
discurso científico, a neutralidade, que é inexistente na
realidade concreta. Em nenhum momento Marx é neutro,
ele parte sempre da perspectiva do proletariado e por isso
assume um caráter radicalmente crítico e não abandona a
questão da alienação e da revolução. Isto, porém, nada tem
a ver com “fatos”, pois a alienação é algo com existência
concreta, assim como a possibilidade da revolução
proletária, já esboçada em várias oportunidades.
Obviamente que a alienação e a revolução não podem ser
submetidas ao “fato” ou à “prova empírica”, pois,
simplesmente a alienação não pode ser percebida
empiricamente, mas só concretamente. O que pode ser
provado empiricamente fica no nível da aparência e jamais
no nível da essência. E é por isso que a revolução é
impensável, pois ao contemplar o empírico, a ciência é
incapaz de ver as potencialidades e possibilidades

concretas nas relações sociais e luta de classes. Mas isto tudo será
abordado de forma mais aprofundada mais adiante.
264
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

históricas. Da mesma forma, a teoria do mais-valor não


pode ser percebida empiricamente e não é, “verificável” e
“refutável”, como diria um discípulo de Karl Popper, o
caçador de cisnes negros.
Assim, qualificar o pensamento de Marx como
científico é um equívoco. O uso que ele faz da palavra
ciência é mais amplo e ele usa em dois sentidos, quando
afirma que produz ciência, está colocando nesse sentido
alemão mais amplo e quando coloca como equivalente a
ideologia, está tratando do que é tido como ciência
moderna. O uso que ele faz de “socialismo científico”, nas
poucas passagens que usou esse termo, ele está num
contexto determinado que não pode ser abstraído e que ele
mesmo ressaltou que é uma expressão “utilizada somente
por oposição ao socialismo utópico, que pretende entulhar
o povo com novos fantasmas cerebrais, em vez de limitar
seus conhecimentos ao estudo do movimento social
desenvolvido pelo próprio povo” (MARX, 1987a, p. 76).
Marx também criticou as consequências práticas da
ciência: “a ciência aparece, portanto, na máquina, como
algo estranho e exterior ao operário” (apud.
265
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

MCLELLAND, 1990, p. 320). E chegou a conclusão de


que quanto mais a ciência se desenvolve, mas se perde o
caráter (MCLELLAND, 1990).
Porém, Korsch revela um elemento muito mais
importante da concepção de Marx sobre o termo ciência: a
sua origem hegeliana (KORSCH, 1983; KORSCH, 1977).
O sentido hegeliano do termo ciência é muito mais amplo,
é um saber totalizante sobre a realidade. Segundo Korsch,
o uso do termo ciência, em Marx, é bem distinto do
sentido habitual e positivista (em suas variadas formas),
ou seja, o uso canonizado, dominante e consensual
existente na atualidade. Assim, quando Marx utiliza o
termo ciência para referir-se ao seu próprio pensamento,
ele ultrapassa o sentido positivista, indo além da sua
problemática expressa pela ideologia da neutralidade,
objetividade e pelos limites das ciências particulares
(KORSCH, 1977).
A concepção hegeliana de ciência possui uma
diferença mais radical em relação á concepção dominante
na atualidade e que se formou desde o século 19 do que o
caráter amplo do termo em alemão, pois além disso rompe
266
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

com elementos característicos do que se entende por


ciência, mesclando com aspectos filosóficos, com a ideia
de totalidade, etc. Em síntese, a ciência para Hegel é uma
coisa distinta das ciências particulares. Segundo ele, “a
ciência não se expõe no desenvolvimento exaustivo da sua
particularização, mas restringe-se aos princípios e aos
conceitos fundamentais das ciências particulares”
11
(HEGEL, 1988, p. 84) . Hegel distingue representação e
conceito, este sendo expressão da realidade. Logo, em
Hegel, ciência é uma concepção totalizante que expressa a
realidade, portanto, a verdade.
O que Marx traz de novo, além da concepção de um
saber totalizante, quando atribui o caráter de ciência para
seu pensamento, é o seu caráter materialista e histórico,
seu vínculo com o proletariado, ou seja, um pensamento
só pode ser verdadeiro se os seres conscientes que o
produzem tiverem o interesse e trazer em si o futuro, o que

11
Hegel rompe com o empiricismo ao expressar que “não pode
determinar-se quantas das partes especiais venha a constituir uma
ciência particular, pois a parte, para ser algo de verdadeiro, não deve
ser apenas um momento isolado, mas em si mesma uma totalidade”
(HEGEL, 1988, p. 84).
267
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

permite se desvincular da sociedade presente e realizar sua


crítica radical e revolucionária. Aliás, o limite de Hegel foi
justamente o seu vínculo com a revolução burguesa e não
com a revolução proletária, por isso seu avanço foi
limitado. Assim, a concepção de ciência em Hegel e em
Marx (quando este lhe atribui um sentido não pejorativo,
que é o sentido atual da palavra) remete ao problema da
totalidade, da verdade, da crítica, etc. e se distingue no
processo de investigação crítica de suas próprias origens, a
autoilusão hegeliana que se refugia no idealismo (uma
expressão ideológica da burguesia que se pensa como
expressão da razão universal) e autoconsciência marxista
de seu caráter proletário-revolucionário.
Assim, é possível compreender o uso do termo
ciência em algumas passagens de Marx e sua crítica em
outras passagens, pois trata-se de sentidos diferentes para
a mesma palavra em contextos diferentes. Sem dúvida, o
uso da palavra teoria, em outras oportunidades (e isso
ocorre também em Korsch) é suficiente para romper com a
confusão do uso de dois sentidos para a mesma palavra.
De qualquer forma, é necessário compreender esse duplo
268
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sentido para poder superá-lo. O sentido que Marx atribuía


à ciência que é o que hoje é considerado por esse nome é o
de uma forma de ideologia, da mesma maneira que a
filosofia e a teologia são outras formas. Ao contrário do
que os positivistas e alguns pseudomarxistas pensam, não
existe antagonismo entre ciência e ideologia, a primeira é
tão-somente uma forma de manifestação específica,
histórica e delimitada, da segunda. A expressão ciência, no
sentido positivo e pouco usado por Marx, significa teoria e
o uso desta última palavra resolve a possível confusão que
se pode estabelecer no pensamento de Marx.
Esse resumo da teoria marxista da ideologia ficaria
incompleto sem apresentar as características das
ideologias. A ideologia como um sistema de pensamento
ilusório já mostra suas principais características em sua
própria definição: é um pensamento sistemático e ilusório,
ligado aos interesses da classe dominante ou classes que
pretendem se tornar dominantes, e que inverte a realidade,
apresentando uma consciência falsa sobre ela. Assim,
sistematicidade e falsidade (ou inversão) são duas
características fundamentais da ideologia. A
269
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sistematicidade tem sua origem no caráter sistemático do


pensamento ideológico, que é produto dos especialistas no
trabalho intelectual. A inversão é a característica de
inverter a realidade, apresentá-la mas de tal forma que
aparece de “cabeça para baixo” (trocar o determinado pelo
determinante e vice-versa, a essência pela aparência, etc.).
Porém, ela possui outras características que remetem
a forma como inverte a realidade. A ideologia visa
naturalizar12, eternizar e universalizar as relações sociais
existentes13. Em sua primeira obra que pode ser
considerada marxista, a Introdução à Crítica da Filosofia
12
Ela, no fundo, apenas sistematiza as representações cotidianas da
classe dominante, ou, na sociedade moderna, dos indivíduos
burgueses ou da classe burguesa como um todo. Segundo Marx, “a
falsa concepção interesseira que vos leva a transformar em leis
eternas da natureza e da razão as relações oriundas dos vossos atual
modo de produção e de propriedade – relações históricas que surgem
e desaparecem no curso do desenvolvimento da produção – a
compartilhais com todas as classes dominantes que vos precederam.
O que admitis claramente no caso da propriedade antiga, o que
admitis claramente no caso da propriedade feudal, não podeis, é
claro, admitir no caso de vossa forma burguesa de propriedade”
(MARX e ENGELS, 1978, p. 121).
13
Isso ocorre até com as concepções que se dizem “marxistas” e são
ideológicas. É o caso, por exemplo, de Lênin e Stálin, para citar dois
exemplos. Enquanto Marx propunha a abolição do salariato e do
dinheiro, o que é condição para superação do capitalismo e seu não
retorno, os dois ideólogos russos diziam o contrário.
270
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

do Direito de Hegel, Marx (1968) já afirmava que toda


classe que aspirava a ser classe dominante, deveria
apresentar seus interesses particulares como interesses
universais e deveria continuar a fazê-lo ao se tornar classe
dominante. Em A Ideologia Alemã ele reproduz tal
afirmação (MARX e ENGELS, 2002, p. 50): “os
pensamentos dominantes serão cada vez mais abstratos, ou
seja, assumirão cada vez mais a forma de universalidade”.
Os ideólogos buscam fazer das relações sociais existentes,
“leis eternas” (MARX e ENGELS, 2002). Marx reforça a
ideia da naturalização ao tratar da ideologia dos
economistas:

Os economistas têm
procedimentos singulares. Para eles, só
existem duas espécies de instituições, as
artificiais e as naturais. As instituições da
feudalidade são artificiais, as da burguesia
são naturais. Nisto, eles se parecem aos
teólogos, que também estabelecem dois
tipos de religião: a sua é a emanação de
Deus, as outras são invenções do homem.
Dizendo que as relações atuais – as
relação da produção burguesa – são
naturais, os economistas dão a entender
que é nestas relações que a riqueza se cria
e as forças produtivas se desenvolvem
segundo as leis da natureza. Portanto,
271
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

estas relações, são, elas mesmas, leis


naturais independentes da influência do
tempo. São leis eternas que devem,
sempre, reger a sociedade. Assim, houve
história, mas já não há mais. Houve
história porque existiram instituições da
feudalidade e porque, nelas, encontram-se
relações de produção inteiramente
diferentes das da sociedade burguesa, que
os economistas querem fazer passar por
naturais e, logo, eternas (MARX, 1989, p.
115-116).
Outra característica da ideologia é a autonomização
de si mesma, a busca em romper com os seus vínculos
sociais e, principalmente, de classe. Ela, geralmente, mas
nem sempre, estende isso para as ideias em geral. Nenhum
ideólogo afirma que expressa os interesses da classe
dominante ou das classes auxiliares dela. Geralmente não
admite ser ideólogo de nenhuma classe social específica.
No discurso do ideólogo, ele diz que representa a
humanidade como um todo, Deus, o terceiro estado, a
verdade, o proletariado, o povo, o indivíduo, a razão, etc.,
ou então que é “neutro” e “imparcial”, possui autonomia.
Ou seja, esconde o que expressa (e isso pode ser feito de
forma intencional e consciente ou inintencional e não-
consciente). Segundo Marx:
272
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Admitamos que, no modo de


conceber a marcha da história, as ideias
da classe dominante sejam desvinculadas
dessa mesma classe e ganhem autonomia.
Suponhamos que fiquemos apenas no fato
de terem estas ou aquelas ideias dominado
em tal época, sem nos preocuparmos com
as condições da produção nem com os
produtores dessas mesmas ideias,
abstraindo-nos portanto dos indivíduos e
das circunstâncias mundiais que estão na
base dessas ideias. Então poderemos
dizer, por exemplo, que no tempo em que
imperava a aristocracia imperavam os
conceitos de honra, fidelidade, etc., e que,
no tempo em que dominava a burguesia,
imperavam os conceitos de liberdade,
igualdade, etc. É o que imagina a própria
classe dominante em sua totalidade
(MARX e ENGELS, 2002, p. 50).
Marx, ao criticar os jovens hegelianos, mostra mais
duas características da ideologia: o isolamento e a
abstração metafísica. Esses elementos podem estar juntos
ou separados. O isolamento significa selecionar algum
aspecto de uma totalidade e isolá-lo da totalidade onde
está inserido (descontextualizar), evitando tratar de suas
relações. Esse é um dos procedimentos mais comuns nas
ciências, naturais e humanas. A abstração metafísica é
realizar tal isolamento e depois transformar esse elemento

273
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

isolado na totalidade ou na essência. Este é o caso mais


comum entre os filósofos. Marx exemplificou isso ao
tratar dos jovens hegelianos e seu “assalto” ao sistema
hegeliano, uma totalidade que foi desfigurada:

Mesmo em seus mais recentes


esforços, a crítica alemã não deixou o
terreno da filosofia. Longe de examinar
suas bases filosóficas gerais, todas as
questões, sem exceção, que ela formulou
para si brotaram do solo de um sistema
filosófico determinado, o sistema
hegeliano. Não só em suas respostas, mas
também nas próprias questões, havia uma
mistificação. Essa dependência de Hegel é
a razão pela qual não encontramos um só
crítico moderno que tenha sequer tentado
fazer uma crítica de conjunto ao sistema
hegeliano, embora cada um jure ter
ultrapassado Hegel. A polêmica que
travam contra Hegel e entre si mesmos
limita-se ao seguinte: cada um isola um
aspecto do sistema hegeliano e o faz
voltar-se ao mesmo tempo contra todo o
sistema e contra os aspectos isolados
pelos outros. Começou-se por escolher
categorias hegelianas puras, não-
falsificadas, tais como a Substância, a
Consciência de si, para mais tarde
profanarem-se essas mesmas categorias,
com termos mais temporais, como o
Gênero, o Único, o Homem, etc. (MARX
e ENGELS, 2002, p. 7).

274
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Os jovens hegelianos evitam uma “crítica de


conjunto” do sistema hegeliano, ou seja, a totalidade do
pensamento de Hegel. O que eles fazem é tomar
isoladamente uma categoria de tal sistema, provocando um
isolamento que lhe retira do contexto e portanto faz-lhe
perder o sentido original, e partir desta categoria,
transformá-la numa totalidade que é contraposta ao
sistema hegeliano em geral (e aos outros sistemas criados
da mesma forma).
Esse procedimento ideológico é bastante comum nas
análises da realidade social, onde alguns ficam apenas no
meio do caminho (o isolamento) e outros avançam no
sentido de transformar o aspecto destacado da realidade e
generalizá-lo abstratamente, absorvendo todo o resto da
totalidade nele, sob as mais variadas formas14.

14
Um terceiro caminho, não abordado diretamente por Marx, o que
ficou conhecido como “doutrina dos fatores”, criticada por
Plekhanov (1990) e Labriola (1979), ou das “interações”, criticada
por Korsch (1983) e, em outro contexto, por ele (Korsch, 1977) e
Lukács (1989) através da crítica das ciências particulares. Esse
processo foi desenvolvido por diversos ideólogos sobre diversos
formas e se caracteriza pelo isolamento e depois re-união dos
aspectos isolados da realidade social, gerando “instâncias”, “fatores”,
etc.
275
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Curiosamente, isso aconteceu até com o pensamento


de Marx, onde vários ideólogos buscaram no conceito de
alienação, exploração, “economia” ou até mesmo
“ideologia”, entre outros, um elemento que foi
generalizado e usado depois contra o conjunto da obra de
Marx ou então para explicar o resto, absorvendo-o. Daí,
para alguns, Marx não tinha nada a ver com a ideia de
natureza humana e alienação, só com “luta de classes” e
“exploração”; para outros, a grande questão do marxismo
é a alienação e o resto, incluindo as lutas de classes e a
exploração, são coisas secundárias e sem importância. Isso
foi exemplificado magistralmente pelas discussões da
suposta ruptura entre o “jovem Marx” e o “Marx da
maturidade”.
Alguns ideólogos chegam mesmo a escolher uma
obra e torná-la a única referência ou “referência
fundamental”, tal como, recentemente, uma mistificação
dos Grundrisse, mal lido e mal interpretado (e, no caso
brasileiro, com a vantagem de não ter acesso por falta de
tradução, o que só foi resolvido recentemente), onde uma
ou outra frase, geralmente descontextualizada, serve para
276
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

inventar toda uma interpretação fetichista do seu


pensamento. O procedimento ideológico apontado por
Marx de isolamento e abstração metafísica fez, dele
mesmo, tal como ele acusava ter feito com Hegel, o
mesmo processo de transformação – que no caso de Marx
foi uma verdadeira inversão, transformando sua teoria em
ideologia.
Por fim, a ideologia também assume formas distintas
de acordo com a época. Embora Marx não tenha discutido
o conceito de ideologia de forma mais extensa nas
sociedades classistas pré-capitalistas, ele coloca algumas
diferenças nacionais no caso do capitalismo. É nesse
sentido que ele afirma que a ideologia política possui mais
força na França e Inglaterra, ao contrário do caso alemão:
“enquanto os franceses e os ingleses se apegam pelo
menos à ilusão política, que é ainda a que mais se
aproxima da realidade efetiva”, o que é explicado por sua
situação social real, “os alemães se movem no domínio do
espírito puro e fazem da ilusão religiosa a força motriz da
história” (MARX e ENGELS, 2002, p. 38).

277
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

O ideólogo tende a ser absorvido pela realidade ou


pelas representações cotidianas que são produzidas no seu
interior. As representações – que preferimos denominar
representações cotidianas para evitar vínculos com
determinadas ideologias15 – são produtos sociais e, tal
como colocamos anteriormente, podem ser falsas ou
verdadeiras, ou “reais ou ilusórias”. Os ideólogos tendem
a reproduzir estas representações ilusórias, promovendo o
seu processo de sistematização. Esse é o caso da economia
política vulgar – e não só dela –, tal como Marx coloca:

É (...) igualmente natural que os


agentes reais da produção se sintam
completamente à vontade nessas formas
alienadas e irracionais de capital – juros,
terra – renda, trabalho – salário, pois elas
são exatamente as configurações da
aparência em que eles se movimentam e
com as quais lidam cada dia. Por isso é
igualmente natural que a Economia
vulgar, que não é nada mais do que uma
tradução didática, mais ou menos
doutrinária, das concepções cotidianas
dos agentes reais da produção, nas quais

15
Aqui se trata de deixar bem claro a distinção entre a teoria marxista
das representações e da consciência com a ideologia das
representações sociais. Para uma crítica dessa última e discussão
sobre representações cotidianas, cf. Viana, 2008a; Viana, 2015b.
278
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

introduz certa ordem compreensível,


encontre, exatamente nessa trindade em
que todo o nexo interno está desfeito, a
base natural e sublime, acima de toda e
qualquer dúvida, de sua jactância
superficial. Ao mesmo tempo, essa
fórmula corresponde ao interesse da
classe dominante, à medida que ela
proclama e eleva a dogma a necessidade
natural e legitimação eterna de suas
fontes e rendimentos (MARX, 1988c, p.
262).
Assim, outra característica da ideologia é reproduzir,
sob a forma sistemática, as representações cotidianas. E
por isso as ideologias mais pobres, que naturalizam as
relações sociais existentes de forma superficial (para uma
ideologia, que é um sistema de pensamento, portanto, algo
complexo), reproduzem as representações cotidianas e
uma de suas características, a naturalização. Assim, se os
economistas tendem a reproduzir as representações
cotidianas dos agentes do processo de produção, também
os ideólogos que tomam como tema de estudo o direito, a
política, etc., tendem a fazer o mesmo16.

16
Não custa lembrar que Marx afirmou que na Alemanha, a
concepção idealista da história – uma forma de ideologia – reinava
devido a sua interligação “com a ilusão dos ideólogos em geral, por
exemplo, com as ilusões dos juristas, dos políticos (e mesmo, mais
279
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Sem dúvida, Marx não estruturou em nenhum texto


acabado essas características da ideologia, mas é inegável
que era assim que ele percebia as produções ideológicas e
que repetiu em inúmeras oportunidades.
Antes de encerrar essa discussão sobre ideologia, é
interessante destacar como a ideologia realiza um processo
de naturalização de si mesma, inclusive quando se toma
como tema. É assim que emerge as concepções
ideológicas (portanto, sistemas ilusórios de pensamento,
concepções falsas) de ideologia. Obviamente não
poderemos nem sequer citar a grande diversidade de
concepções ideológicas de ideologia, mas apenas observar
sua existência e que até mesmo os epígonos de Marx, os
pseudomarxistas, deformaram o conceito que ele elaborou.
Muitos, inclusive os pseudomarxistas, buscaram
compreender a ideologia não mais como falsa e não
estando vinculada aos ideólogos, grupo especializado, ou à
classe dominante e para tal, argumentam que Marx teria
abandonado tal posição.

abaixo, dos homens de Estado em atividade)” (MARX e ENGELS,


2002, p. 53-54).
280
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Uma simples frase de Marx, retirada de uma de suas


últimas obras, O Capital, é suficiente para derrubar todas
estas afirmações: “é por isso que o capitalista e seu
ideólogo, o economista político, consideram produtiva
apenas a parte do consumo individual do trabalhador”. Ele
complementa dizendo que esse é exigido para
“perpetuação da classe trabalhadora” e tem que “ser
consumido para o que o capital consuma força de
trabalho”, ou seja, expressa os interesses dos capitalistas.
Aqui a ideologia expressa a perspectiva burguesa, é
produzida por um ideólogo que é economista, um
especialista, e é falsa. Em várias outras passagens Marx
remete ao conceito de ideologia como sistema de
pensamento ilusório, especialmente em relação aos
economistas políticos, mas também aos materialistas
naturalistas abstratos, etc.17

17
O caso de Lênin (MOURA, 1978) e Gramsci (1989), que abordaram
ideologia como “visão de mundo” e por isso puderam postular a
existência de uma “ideologia proletária”, é exemplar das concepções
ideológicas e pseudomarxistas de ideologia, que podem ser somadas
a inúmeras outras, mas não abordaremos isso no presente livro,
deixando para outra oportunidade.
281
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Em síntese, a base real das ideologias são as relações


sociais concretas, os interesses das classes sociais, o modo
de produção. Cada classe social produz suas ideias, suas
representações. A classe dominante não somente produz
suas ideias como produz um grupo social para
produzir/reproduzir de forma sistemática tais ideias: os
ideólogos. Esta base real, concreta, cria obstáculos para o
desenvolvimento da consciência humana. O interesse das
classes dominantes na história sempre foi o de ocultar a
exploração e a dominação, sempre foi naturalizar e
universalizar as relações sociais em que vivem.
Historicamente, toda classe social que deseja se
tornar uma nova classe dominante deve colocar suas ideias
e concepções como sendo “universais”, isto é,
representando a população em geral. Ela não pode assumir
que expressa apenas os seus interesses de classe, pois
sozinha não pode chegar ao poder, não pode se tornar
dominante. O discurso de toda classe ascendente é o de
representar o interesse geral, universal. Foi assim com a
burguesia que pregava liberdade, igualdade, fraternidade.
Porém, a burguesia, apesar de dizer representar todo o
282
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

“terceiro estado” (isto é, não somente a si mesma mas


também ao proletariado, o campesinato e outros grupos
sociais), representa tão-somente seus interesses de classe.
O fim deste dilema da humanidade, segundo Marx,
se encontra no processo histórico que engendrou o
capitalismo e uma classe social que é sua negação e que,
portanto, pode promover a abolição de todas as classes
sociais e a instauração do comunismo. Esta classe social é
o proletariado, pois sua posição no processo de produção e
seus interesses de classe não apontam para uma nova
forma de dominação e sim para a abolição das classes
sociais e da dominação em geral. Neste sentido, o
proletariado realmente representa os interesses universais
da humanidade. É por isso que Marx afirmará que a
emancipação dos trabalhadores significa a emancipação
humana em geral. Isso tem como consequência que o
proletariado, realizando o processo de transformação
social, abole com a ideologia em geral, em todas as suas
formas de manifestação.

283
A DIALÉTICA MATERIALISTA

Em sua forma mistificada, a dialética foi


moda alemã porque ela parecia tornar
sublime o existente. Em sua configuração
racional, é um incômodo e um horror para
a burguesia e para os seus porta-vozes
doutrinários [...]
Karl Marx

O desenvolvimento do pensamento de Marx


engendrou não somente uma teoria da história (o chamado
materialismo histórico) e uma teoria do capitalismo (da
sociedade burguesa) e uma teoria da revolução proletária e
do comunismo, mas também um método de análise da
realidade que mantém uma unidade com o materialismo
histórico e com todo o resto que compõe o marxismo. A
gênese do método dialético em Marx tem como inspiração
fundamental a dialética hegeliana, mas, no entanto,
também se inspira em outras fontes intelectuais e nos
processos sociais e históricos, especialmente a luta de
classes e a luta do proletariado mais especificamente.
Assim, o marxismo é uma totalidade indivisível e apenas
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

os ideólogos, tal como colocamos anteriormente, poder


isolar aspectos e desconsiderar o todo.
O método dialético é um verdadeiro incômodo para
os ideólogos burgueses e mesmo para alguns
pseudomarxistas. Esse incômodo é derivado de sua
radicalidade crítica e dissonância com as ideologias
burguesas, tanto oriundas da filosofia quanto da ciência.
Na verdade, muitos querem compreender o método
dialético de Marx não pelo estudo de sua gênese,
configuração e desenvolvimento e sim sob forma
verbalista ou então enquadrando ele em esquemas mentais
que remetem a outras concepções das quais ele está
extremamente distante. Isso assume tom escandaloso
quando alguns, nem sequer tendo uma concepção
adequada de método, querem enquadrar o método
dialético no esquema simplista da oposição entre indutivo
e dedutivo. As figuras medonhas do pseudomarxismo
analítico, por exemplo, o consideram holista e dedutivo e
querem transformá-lo em indutivo. Outros, percebendo a
dificuldade em interpretá-lo dessa forma, buscam formas
mais complexas, tal como “dedutivo-indutivo” ou
286
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

“hipotético-dedutivo”. Armand Cuvillier, um dos


melhores intérpretes não-marxistas do marxismo, também
não avança muito nessa questão, tal como se pode ver pela
citação abaixo:

Censurou-se também ao marxismo


o haver empregado, sob o domínio de um
sistema preconcebido, método puramente
dedutivo, que partia de alguns princípios
abstratos e só depois ia aos fatos em busca
de socorro. Maurice Bourguin parece-nos
haver visto melhor a verdade quando
escrevia (Revue d’Économie Politique,
1893, p. 199): ‘a não considerar senão o
processo de investigação e de raciocínio,
cumpre reconhecer que o método seguido
por Marx é bem o método histórico. Não
é desde logo visível no Capital, porque é
a crítica da sociedade capitalista que aí
ocupa o maior lugar e essa crítica é
exposta em forma de análise e de
silogismo. Mas, fora da dialética
rigorosamente aplicada ao estudo do
regime econômico moderno, a concepção
marxista das formas sucessivas de
organização social é produto autêntico do
método histórico e indutivo’. Os métodos
hoje empregados pela Sociologia positiva,
Marx e Engels os praticaram, tanto
quanto, é claro, o permitiram os dados
possíveis em seu tempo. Não apenas o
método histórico-comparativo, mas o
método estatístico encontram-se
largamente utilizados no Capital. Engels

287
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

recorreu ao método etnográfico em seu


estudo A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado
(CUVILLIER, 1979, p. 57).
Essa proliferação de métodos, bem comum na
cultura acadêmica e nos manuais de metodologia, apenas
mostra a imprecisão e confusão conceitual existente nesse
campo especializado do saber. Não existe “método
estatístico”, nem indutivo, dedutivo, etnográfico, histórico,
etc. O conceito de método nesses casos é tão impreciso
que parece ser um verdadeiro incógnito ou então qualquer
coisa, qualquer técnica (como a estatística), qualquer
procedimento (comparação, etnografia, etc.). No fundo, o
método é uma elaboração mental que objetiva servir de
suporte para a análise da realidade, seja assumindo a
forma de um modelo (como o positivismo clássico e seus
herdeiros posteriores, o funcionalismo, estruturalismo,
fenomenologia, etc.) ou como um recurso heurístico (o
método dialético de Marx)1. Um método, no entanto,

1
Marx não definiu o conceito de método, mas sua prática discursiva e
teórica aponta para esta compreensão. O seu texto principal sobre
método dialético, como mostraremos a seguir, expressa tal
compreensão. Quanto ao seu caráter heurístico, também está
288
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

possui como base uma teoria da consciência e da realidade


e por isso não pode ser destacado e compreendido de
forma isolada, excluindo tais teorias, pois, tal como
colocamos anteriormente, este é um modus operandi
ideológico. Nesse sentido, os supostos “métodos”
apresentados por Cuvillier definidos mais adequadamente
como técnicas de pesquisa, forma de raciocínio, etc.,
estando muito longe de ser um método.
O próprio Marx foi o primeiro a observar esse tipo
de equívoco ao comentar as resenhas de sua obra O
Capital. Segundo ele, o método empregado nessa obra foi
“pouco compreendido”, como se percebe a partir de uma
avaliação das “intepretações contraditórias que dele foram
feitas” (MARX, 1988b). Ele cita um exemplo:

Assim, a Révue positiviste de Paris


censura-me ao mesmo tempo o ter feito
economia política metafísica e –
adivinhem o quê? – ter-me limitado a uma
simples análise crítica dos elementos
dados, em vez de formular receitas

subentendido em sua formulação. Karl Korsch (1977) foi um dos


primeiros a identificar ele explicitamente como um “instrumento
heurístico” (assim como o materialismo histórico, do qual Korsch
não diferenciava).
289
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

(comtianas?) para as panelas do futuro.


Quanto à acusação de metafísica, eis o
que pensa N. I. Sieber, professor de
economia política na universidade de
Kiev: "No que se refere à teoria
propriamente dita, o método de Marx é o
de toda a escola inglesa, é o método
dedutivo cujas vantagens e inconvenientes
são comuns aos maiores teóricos de
economia política. O Sr. M. Block
descobre em Les Théoriciens Du
Socialisme em Allemagne. Extrait Du
Journal des Économises, julliet et aout
1872, que o meu método é analítico e,
entre outras coisas, afirma que: “com esta
obra, o Sr. Marx se classifica entre os
espíritos analíticos mais eminentes". Os
resenhistas alemães, gritam, obviamente,
contra a sofística hegeliana. O Correio
Europeu, de Petersburgo, num artigo que
examina exclusivamente o método de O
Capital (número de maio de 1872, p. 427-
436), considera o meu método de
pesquisa como rigorosamente realista,
mas o meu método de exposição
desgraçadamente teuto-dialético”
(MARX, 1988b, p. 25).
Assim, neste confuso e nebuloso mundo das
interpretações equivocadas, é preciso retomar, nos
próprios escritos de Marx, a essência do método dialético.
Sem dúvida, diversos pseudomarxistas tentaram recuperar
o método dialético da forma mais fácil possível, através do

290
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

modo verbalista ou através dos vulgarizadores e


deformadores do pensamento de Marx. O modo verbalista
(LABRIOLA, 1979) se caracteriza por usar a palavra, mas
ao invés de entender o seu significado no contexto do
pensamento do autor e seu processo genético de formação,
a toma de outros discursos2 ou parte de uma intuição que
não remete aos escritos do seu criador ou utilizador. O
modo vulgar é semelhante, pois ao invés de encontrar no
autor, prefere comentaristas, adversários ou epígonos e
suas simplificações e deformações.
Nesse sentido, teremos que recuperar o significado
verdadeiro do método dialético nos escritos de Marx, em
seu processo genético que remete a Hegel e outros
pensadores que inspiraram este autor, e no seu uso
concreto nas análises realizadas por ele. No entanto, não
será possível aqui desenvolver de forma mais aprofundada
2
A prática de tomar de outros discursos determinados termos sem que
eles possuam conexão com o discurso do autor interpretado é um
procedimento totalmente equivocado. Claro que o próprio autor pode
se inspirar em outros discursos de outros autores e assim a
compreensão dessa inspiração é importante, mas quando se trata de
pensadores criativos e inovadores, é necessário entender que
dificilmente vai se manter tal qual encontrado no outro pensador e
que é preciso entender o processo de transformação que ele realiza.
291
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

uma reconstituição geral do método dialético (inclusive


porque o próprio Marx não elaborou uma obra estruturada
e de fôlego sobre ele, apesar de ter anunciado que
pretendia fazê-lo)3. Por isso, não desenvolveremos uma
análise das categorias fundamentais da dialética
(totalidade, abstração, abstrato, concreto, forma, conteúdo,
determinação, determinação fundamental, etc.), pois isto
enviaria para diversas e complicadas questões e, ainda, a ir
além de Marx, pois ele usou mas nem sempre explicitou o
significado de algumas destas categorias, cuja inspiração,
obviamente, se deve principalmente a Hegel.
A atenção de Marx para alguns elementos
fundamentais da dialética (a questão da transformação e da
historicidade, por exemplo), está intimamente ligada, por
um lado, à filosofia hegeliana e, por outro, ao movimento
revolucionário burguês e proletário de sua época. Assim,

3
Uma análise mais longa do método dialético pode ser encontrada em
outra obra (VIANA, 2007a), embora focalizando apenas sua parte
explicitada no pensamento de Marx, sem considerar sua gênese e os
desdobramentos necessários, o que foi iniciado em outra obra
(VIANA, 2007b), mas que merece ainda desdobramentos, tal como a
discussão sobre explicação e determinação (VIANA, 2001; VIANA,
2002).
292
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Marx não apenas afirmou que seu pensamento era


expressão do movimento revolucionário do proletariado e
se orientou praticamente nesse sentido, como, ainda,
involuntariamente, tem sua produção intelectual ligada a
esse processo de ascensão das lutas operárias. A sua
manifestação vem a posteriori e ele apenas revela a
autoconsciência desse processo e une determinação
histórica e intencionalidade individual. Logo, a dialética
materialista é expressão metodológica da teoria
revolucionária do proletariado e mantém uma unidade
indissolúvel com o materialismo histórico (VIANA,
2007b) e com a perspectiva do proletariado (VIANA,
2007a).
Nesse sentido, é necessário entender que, como
método, a dialética materialista é expressão do
proletariado e sua verdadeira essência só pode se
manifestar partindo da perspectiva do proletariado e isso
forma um conjunto, o marxismo, que inclui diversos
outros aspectos, entre eles uma teoria da consciência – já
abordada – e uma teoria da realidade.

293
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

A teoria da consciência que está na base do


pensamento de Marx é indispensável para se compreender
sua concepção de dialética. A dialética não é nada mais do
que um recurso mental, o método, que determinados seres
humanos, históricos, reais, concretos, sociais, (“de carne e
osso”) produziram e esse processo foi determinado
histórica e socialmente. Logo, aqui estamos longe do
idealismo e das concepções individualistas e metafísicas.
A palavra dialética tem origem muito antiga, na filosofia
grega antiga, mas seu significado se altera historicamente.
Alguns elementos da dialética materialista surgem antes
de sua configuração final na obra de Marx, mas sem o uso
da palavra dialética. Nesse sentido, um estudo sobre as
origens da dialética materialista deve conceber essas duas
formas de antecedentes, sob o prisma formal e substancial
(VIANA, 2015b). Sem dúvida, não poderemos aqui
refazer a história da dialética até a constituição da dialética
marxista e por isso trataremos tão somente de sua gênese e
seu vínculo com os pressupostos fundamentais do
materialismo histórico-dialético.

294
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

O primeiro ponto a se destacar é a consequência do


vínculo da dialética materialista com o movimento
revolucionário do proletariado. Esse movimento gera uma
forma de consciência revolucionária e uma expressão
teórica que constitui a dialética materialista e essa
expressa metodológica esse ser-de-classe. Nesse sentido, a
dialética materialista é incompatível com as ideologias das
demais classes sociais. A opção metodológica pela
dialética é uma opção de classe. Para quem parte,
conscientemente, de uma posição conservadora, não
poderá assumir uma opção pela dialética marxista e se o
fizer, por razões as mais variadas, será apenas
formalmente ou através de um processo que deforma a sua
essência. Caso seja deformada, pode ser até “moda”, como
já foi um pseudomarxismo com sua pseudodialética
materialista. O próprio Marx afirma:

Em sua forma mistificada, a


dialética foi moda alemã porque ela
parecia tornar sublime o existente. Em sua
configuração racional, é um incômodo e
um horror para a burguesia e para os seus
porta-vozes doutrinários, porque, no
entendimento positivo do existente, ela
inclui ao mesmo tempo o entendimento da
295
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sua negação, da sua desaparição


inevitável, porque apreende cada forma
existente no fluxo do movimento,
portanto, também como seu lado
transitório; porque não se deixa
impressionar por nada e é, em sua
essência, crítica e revolucionária (MARX,
1988b, p. 27).
Assim, a dialética hegeliana é aceitável para
qualquer ideólogo burguês, mas a dialética materialista é
inaceitável e este é um dos motivos de sua recusa não só
pela burguesia, através da crítica ou da deformação, mas
também pelas classes auxiliares da burguesia (burocracia e
intelectualidade), que reproduzem, com ênfases e formas
diferenciadas, a concepção burguesa de mundo, seja
apenas em seus aspectos de classe dominante ou em geral,
dependendo da época e qual fração dessas classes se trata.
O caráter crítico e revolucionário da dialética – enfatizado
por Korsch em diversas oportunidades (1977; 1983) – está
ligado ao conjunto da teoria da qual ela faz parte, ou seja,
ao marxismo.
A dialética materialista não é mística, nem
metafísica. Isso só pode ser explicado remetendo à teoria
marxista da consciência. A dialética não pode “cair do
296
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

céu” e nem ser produto da genialidade individual e


inexplicável de algum pensador. Ela é produto social e
histórico, uma forma de consciência e, portanto, nada tem
de metafísico. Sendo assim, ela não pode se instituir como
um modelo para subsumir a realidade, encaixando essa em
ideias eternas e imutáveis que ditariam não só a realidade
social e natural, como a si mesma e o futuro. Nesse
sentido, não existem “leis da dialética”, apenas na forma
mistificada por Hegel – tal como Marx colocava4 – e na
sua retomada por Engels (1985). A teoria da consciência
que está na base do método dialético impede o fetichismo
da dialética materialista, tal como foi feito pelo

4
“Há quase trinta anos, numa época em que ela ainda estava na moda,
critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana. Quando eu
elaborava o primeiro volume de O Capital, epígonos aborrecidos,
arrogantes e medíocres que agora pontificam na Alemanha culta, se
permitiam tratar Hegel como o bravo Moses Mandelssohn tratou
Espinosa na época de Lessing, ou seja, como um ‘cachorro morto’.
Por isso, confessei-me abertamente discípulo daquele grande
pensador e, no capítulo sobre o valor, até andei namorando aqui e
acolá os seus modos peculiares de expressão. A mistificação que a
dialética sofre nas mãos de Hegel não impede, de modo algum, que
ele tenha sido o primeiro a expor as suas formas gerais de
movimento de maneira ampla e consciente. É necessário invertê-la,
para descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico”
(MARX, 1988a, p. 27).
297
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

pseudomarxismo. O método dialético não sendo um


modelo que encaixa a realidade, sendo parte dela e que é
uma forma de manifestação ideal da mesma – ou pelo
menos busca ser –, busca reconstituí-la no pensamento (e
não “constituí-la”)5.
O objetivo do método dialético é a “reprodução do
concreto pela via do pensamento”. Sendo assim, a
dialética materialista é constituída social e historicamente,
é uma ferramenta intelectual que visa contribuir com a
reconstituição da realidade no pensamento, sendo uma
forma de pensamento que fornece recursos para outra
forma de pensamento, ou seja, é um método, que busca
apreender o real e assim produzir teoria. Porém, mesmo
possuindo um caráter mais abstrato, sua constituição é
social e histórica e não poderia ter surgido nas sociedades
pré-capitalistas, pois é na sociedade capitalista que
surgiram suas condições de possibilidade e determinações

5
“... Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do
pensamento, que se concentra em si mesmo, se aprofunda em si
mesmo e se movimenta por si mesmo, enquanto que o método que
consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é para o pensamento
precisamente a maneira de se apropriar do concreto, de o
reproduzir como concreto espiritual” (MARX, 1983b, p. 219).
298
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

e estas lhe deram a primeira configuração estruturada sob


a forma materialista através da obra de Marx. Sem as
revoluções burguesas e a emergência de sua expressão
ideológica, especialmente o hegelianismo, sem a filosofia
hegeliana, sem a emergência do proletariado e suas lutas,
etc. não seria possível a elaboração do método dialético.
Sem a dialética hegeliana, já seria difícil sua existência de
forma estruturada e surgindo na época em que surgiu. O
seu vínculo com o proletariado, classe que significa a
abolição de classes e cujo interesse particular é,
simultaneamente, interesse universal da humanidade e que
por isso não necessita de ilusões e representações falsas e
necessita da verdade, é o que lhe dá o seu caráter crítico e
revolucionário e que o torna inadmissível para a classe
dominante e as que aspiram à dominação.
Assim, a partir desta percepção de que a dialética
materialista é uma forma de consciência constituída
histórica e socialmente, devemos discutir o outro
pressuposto do método dialético: a teoria da realidade.
Sem dúvida, a dialética materialista é uma forma de

299
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

consciência e, ao mesmo tempo, é uma parte da realidade6.


Logo, o que fizemos anteriormente, ao recordar o caráter
sócio-histórico do método dialético, foi apenas uma breve
reflexão sobre uma parte do real, sobre algo concreto e,
sendo assim, histórico. Aqui temos a categoria
fundamental pela qual se pode compreender o real numa
concepção dialética: o concreto. Sem dúvida, muitos
confundem o concreto com o empírico e o uso que Marx
algumas vezes desta última palavra, uma concessão às
ideologias científicas que em textos mais profundos foi
substituído por um termo de origem hegeliana7. Assim, a

6
Aqui não se deve confundir com a abordagem ideológica (tal como
em Engels) segundo a qual a dialética é uma coisa que existe
objetivamente (através de suas leis) e sim é um método, uma
determinada forma de consciência, que existe realmente e se existe é
parte da realidade, assim como qualquer outra forma de consciência,
ideologia, teoria, etc.
7
Hegel já se propõe a superar o empiricismo e isto é visível em sua
distinção entre “representação” e “conceito”, que Marx retomará. O
empiricismo não ultrapassa o nível da representação: “o empirismo
tem, por um lado, esta fonte em comum com a metafísica, a qual,
para a autenticação das suas definições – dos pressupostos e do
conteúdo mais particular –, possui como garantia igualmente
representações, isto é, o conteúdo que provém diretamente da
experiência” (HEGEL, 1988, p. 101). Esse limite é reforçado por
outros, entre os quais, o isolamento do fenômeno, não precisando de
mais “nenhuma significação e validade do que a tirada da percepção,
300
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

concepção dialética da realidade a compreende como algo


constituído, histórico, totalidade, e, por conseguinte,
produto de determinações, relações, transformações. Desta
forma, a categoria de concreto remete às categorias de
totalidade, abstração, determinação, historicidade, entre
diversas outras. Um aspecto da realidade não pode ser
compreendido fora de relações com os demais aspectos,
sem ser compreendido como uma totalidade e sem se
remeter ao processo histórico de sua constituição, suas
determinações8. A partir dessa concepção de realidade, se

e nenhum nexo deve ter justificação a não ser o que se pode provar
no fenômeno” e tem como consequência, além desse abandono da
totalidade, um igual abandono da historicidade, tanto sua gênese
deixa de ser importante quanto o dever ser, pois é um grande
princípio do empiricismo que “o que é verdadeiro deve existir na
realidade e existir aí para a percepção” (HEGEL, 1988, p. 101)
8
Obvio é que a concepção dialética e marxista rompe com as mais
arraigadas ideias e preconceitos burgueses, inclusive aqueles que
recusam a existência da verdade sob o manto ilusório do relativismo,
do indeterminismo, etc., da mesma forma que rompe com o par
antinômico que o pensamento burguês geralmente cria em
contraposição à si mesmo, o irracionalismo, o determinismo.
Obviamente que o pseudomarxismo, cai na armadilha ideológica
burguesa e isso não por ingenuidade e sim por seus vínculos com as
bases mentais da burguesia, além de interesses momentâneos, no
interior da sociedade capitalista, dos seres conscientes que o
produzem. Daí a maior parte do pseudomarxismo tomar partido do
materialismo, iluminismo, determinismo, etc., não desconfiando que
301
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

produz um recurso heurístico e um conjunto de


procedimentos que constituem o método dialético.
Segundo Marx:

Parece que o melhor método será


começar pelo real e pelo concreto, que são
a condição prévia e efetiva; assim, em
economia política, por exemplo, começa
pela população que é a base e o sujeito do
ato social de produção como um todo. No
entanto, numa observação atenta,
apercebemo-nos de que há aqui um erro.
A população é uma abstração se
desprezarmos, por exemplo, as classes de
que se compõe. Por seu lado, essas classes
são uma palavra oca se ignorarmos os
elementos em que repousam, por
exemplo, o trabalho assalariado, o capital,
etc. Estes supõem a troca, a divisão do
trabalho, os preços, etc. O capital, por
exemplo, sem o trabalho assalariado, sem
o valor, sem o dinheiro, sem o preço, etc.,
não é nada. Assim, se começássemos pela
população teríamos uma visão caótica do
todo, e através de uma determinação mais
precisa, através de uma análise,
chegaríamos a conceitos cada vez mais
simples; do concreto figurado
passaríamos a abstrações cada vez mais

se trata de concepções burguesas, bem como uma minoria que se alia


à outra tendência do pensamento burguês, caindo no idealismo,
romantismo, irracionalismo, indeterminismo, etc., que aparece de
forma mais efetiva em determinados períodos históricos, nas quais os
modismos e interesses acadêmicos apontam para esse rumo.
302
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

delicadas até atingirmos as determinações


mais simples. Partindo daqui, seria
necessário caminhar em sentido contrário
até se chegar finalmente de novo à
população, que não seria, desta vez, a
representação caótica de um todo, mas
uma rica totalidade de determinações e de
relações numerosas. A primeira via foi a
que, historicamente, a economia política
adotou ao seu nascimento. Os
economistas do século XVII, por
exemplo, começam sempre por uma
totalidade viva: população, Nação,
Estado, diversos Estados; mas acabam
sempre por formular, através da análise,
algumas relações gerais abstratas
determinantes, tais como a divisão do
trabalho, o dinheiro, o valor, etc. A partir
do momento em que esses fatores isolados
foram mais ou menos fixados e
teoricamente formulados, surgiram
sistemas econômicos que partindo de
noções simples tais como o trabalho, a
divisão do trabalho, a necessidade, o valor
de troca, se elevavam até o Estado, às
trocas internacionais e ao mercado
mundial. Este segundo método é
evidentemente o método cientificamente
correto. O concreto é concreto por ser a
síntese de múltiplas determinações, logo,
unidade da diversidade. É por isso que ele
é para o pensamento um processo de
síntese, um resultado, e não um ponto de
partida, apesar de ser o verdadeiro ponto
de partida e portanto igualmente o ponto
de partida da observação imediata e da
representação. O primeiro passo reduziu a
303
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

plenitude da representação a uma


determinação abstrata; pelo segundo, as
determinações abstratas conduzem à
reprodução do concreto pela via do
pensamento (MARX, 1983b, p. 218-219).
Marx retoma a distinção hegeliana entre
“representação” e “conceito” e nesse processo pode dizer
que o ponto de partida natural de qualquer pesquisa ou
análise é a representação, ou seja, a observação imediata.
Isso significa dizer que todos partem da intuição, da
observação imediata, da representação do fenômeno e não
tem como ser diferente, pois só se alguém nascesse com o
saber pronto é que poderia estar além da observação
imediata e da representação. Todo ser humano começa a
perceber a realidade com a partir da consciência
espontânea. Esse é o ponto de partida “verdadeiro”,
porquanto natural e não há como escapar dele. Esse é o
reino dos fatos, dos dados, do empírico (e base do
empiricismo). Porém, é necessário ultrapassar esse dado
imediato, que é mera abstração metafísica9. O empiricismo

9
É necessário distinguir entre abstração dialética, um dos
procedimentos do método dialético, de abstração metafísica
(VIANA, 2007a), o que Marx não fez explicitamente, mas fez em
304
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

fica nesse nível e não o ultrapassa, apenas reúne


arbitrariamente ou a partir de modelos criados
arbitrariamente aspectos da realidade e monta sua colcha
de retalhos positivista. O caminho sugerido por Marx é o
uso do processo de abstração, pois, “na análise das formas
econômicas não podem servir nem o microscópio nem
reagentes químicos. A faculdade de abstrair deve substituir
ambos” (MARX, 1988b, p. 18).
Assim, é necessário reconhecer que a representação
é o ponto de partida inevitável e por isso “natural”, em
determinados casos, pois, em outros, a situação é
diferente. Mas vamos seguir a reflexão de Marx e pensar,
por enquanto, apenas neste caso. O exemplo que ele
fornece da população serve para pensarmos o seu
procedimento. A população é uma abstração metafísica se
a tomarmos sem considerar suas partes constituintes
(classes, divisão do trabalho, etc.), que, por sua vez,
também são totalidades compostas por partes e assim

sua prática discursiva ao colocar a abstração em certos momentos


com algo equivocado e em outras como algo verdadeiro (VIANA,
2007b).
305
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sucessivamente. O mero detalhamento de suas partes


constituintes, por sua vez, não resolveria o problema,
geraria no máximo uma representação caótica do todo. Ao
ir mais além e realizar uma análise que aponta para
descobrir as determinações, constituindo abstrações mais
simples, conceitos mais simples que as expressam, se abre
caminho para sua superação. Essa é uma forma de
procedimento realizada pela economia política.
Partindo desse estágio, torna-se necessário fazer o
caminho inverso e para chegar novamente à população.
Esta já não seria mais uma representação caótica e sim
uma rica totalidade de determinações e relações. Alguns
economistas procedem dessa forma, ou seja, iniciando
pela formulação de tais determinações e conceitos mais
simples para se elevar ao nível da totalidade.
Temos, portanto, dois procedimentos: a) o que parte
da representação e da intuição e chega até uma
“representação caótica do todo” (população, nação,
estado), e posteriormente chega até a formulação de
conceitos mais simples (divisão do trabalho, dinheiro,
valor, etc.), ou seja, parte de uma “totalidade viva” para
306
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

chegar a relações gerais abstratas mais simples, conceitos


que expressam aspectos particulares, “fatores isolados”; b)
o que parte de sistemas econômicos que iniciam com
noções simples (divisão do trabalho, valor de troca, etc.)
até chegarem ao Estado, mercado mundial, etc., ou seja, a
uma totalidade concreta. O primeiro procedimento foi o da
economia política em seu nascimento – por razões óbvias,
já que é uma ciência em formação – e o segundo foi o de
seu período no qual já se tinha estabelecido “sistemas
econômicos” que já partem destas noções fixadas e
formuladas teoricamente (divisão do trabalho, valor de
troca, etc., pois, na etapa anterior da economia política já
haviam sido produzidas e fixadas) e chegam assim à
totalidade concreta. Marx concorda com este último
procedimento e este é o procedimento dialético.
Aqui é preciso explicar que não há coincidência
entre o método dialético e o “método da economia
política”. São métodos distintos, mas possuem um
elemento em comum que é este procedimento. Mesmo
porque, seria errôneo pensar que se pode partir das noções
da economia política para compreender o modo de
307
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

produção capitalista. Esse procedimento, tal como


realizado por Marx, pois ele realmente partiu da produção
dos economistas, mas a partir de sua crítica e
reformulação, gerando novas formas de compreensão das
determinações, novos conceitos, etc. Nesse sentido, após
Marx, é a partir da teoria do capitalismo de Marx que se
deve partir, e essa pode ser cotejada com a economia
política burguesa, mas esta deve ser concebida de forma
radicalmente crítica (e também a contribuição de Marx,
pois reformulações, ampliações e desdobramentos são
necessários, obviamente de forma muito menos profunda
já que a essência do modo de produção capitalista foi
apresentada por ele).
Assim, quando se trata de determinados fenômenos,
o ponto de partida natural ainda é o concreto-dado, ou
seja, aquilo que é observação imediata, embora possa ser e
deva ser, no caso da abordagem dialética, pensada a partir
das categorias da dialética, especialmente a de totalidade,
e relacionada com outras teorias e conceitos retiradas da
análise de outros fenômenos, principalmente aqueles de
maior amplitude que abarcam este fenômeno menos
308
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

amplo. Que tipo de fenômeno é esse? São aqueles que são


ainda inexplorados e são mais comuns no período de
nascimento de uma teoria, na qual faltam análises,
conceitos e determinações. Por isso, mesmo quando o
ponto de partida é o concreto-dado, a representação do
fenômeno, na perspectiva dialética não se parte do
empírico, pois se parte de algo que é visto como concreto
– e por conseguinte, algo que é determinado, totalidade,
etc., tal como aponta o método dialético – e assim há uma
concepção do real mais rica que impede alguém que parte
dessa abordagem metodológica cair no empiricismo.
No caso geral, o que vale é partir da teoria já
constituída (ou das ideologias, através da reflexão crítica e
reformulação radical em confronto com a realidade
concreta). Contudo, esse “partir da teoria” não significa
desconsideração pelo fenômeno e uso apenas da
especulação. O real é reconstituído no pensamento e,
portanto, é um pressuposto, mesmo quando se parte da
teoria, pois esta não brota do nada e se refere ao real e,
além disso, o procedimento dialético não significa analisar
a teoria (ou ideologias) e seu encadeamento terminológico
309
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

e sim as relações sociais concretas. Por isso, o método


dialético não é metafísico:

Para a consciência – e a
consciência filosófica considera que o
pensamento que concebe constitui o
homem real e, por conseguinte, o mundo
só é real quando concebido – portanto, o
movimento das categorias surge como ato
de produção real – que recebe um simples
impulso do exterior, o que é lamentado –
cujo resultado é o mundo. E isto (mas
trata-se ainda de uma tautologia) é exato
na medida em que a totalidade concreta
enquanto totalidade-de-pensamento,
enquanto concreto-de-pensamento, é de
fato um produto do pensamento, da
atividade de conceber; ele não é pois de
forma alguma o produto do conceito que
engendra a si próprio, que pensa exterior e
superiormente à observação imediata e da
representação. O todo, na forma em que
aparece no espírito como todo-de-
pensamento, é um produto do cérebro
pensante, que se apropria do mundo do
único modo que lhe é possível, de um
modo que difere da apropriação desse
mundo pela arte, pela religião, pelo
espírito prático. Antes como depois, o
objeto real conserva a sua independência
fora do espírito; e isso durante o tempo
em que o espírito tiver uma atividade
meramente especulativa, meramente
teórica. Por consequência, também no
emprego do método teórico é necessário
que o objeto, a sociedade, esteja
310
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

constantemente presente no espírito como


dado primeiro (MARX, 1983b, p. 219).
Sem dúvida, a forma de expressar de Marx aqui
carrega alguns problemas, mas isso tem a ver com as suas
fontes de inspiração e a quais concepções se contrapõe.
Mas o que Marx coloca é que o real existe
independentemente da consciência teórica, apesar da
filosofia pensar diferente. Isso significa que a
reconstituição do real no pensamento é uma re-
constituição, pois o real já é constituído antes de ser
pensado e teorizado. A teoria busca apenas descobrir as
determinações do fenômeno, mas ele já estava
determinado antes de tal descoberta. Por outro lado, Marx
deixa claro que a análise dialética não é um movimento de
categorias puras e destacadas do real, é um estudo
aprofundado do real, buscando reconstituí-lo, e, portanto,
ele não está ausente. Porém, ele não é tratado com algo
empírico, isolado, etc., pois, mesmo partindo da
observação imediata e da representação, é necessário que
a sociedade “esteja constantemente presente no espírito
como dado primeiro”, ou seja, a ideia de totalidade não

311
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

pode ser abandonada e, no caso da realidade social, a


sociedade deve estar sempre presente na mente ao iniciar
uma análise de qualquer fenômeno.
Marx se contrapõe, assim, ao conjunto da produção
filosófica e, ao mesmo tempo, ao hegelianismo. Também
se contrapõe a certas abordagens da economia política.
Porém, quando ele coloca a questão das “categorias” e dos
“conceitos simples”, que são equivalentes às
determinações, já que são formas de expressá-las, e da
necessidade da teoria como ponto de partida, não está
caindo no idealismo e nas concepções que crítica10. Assim,
é possível perguntar: o método dialético parte do real ou
da teoria? Pois bem, já dissemos que não parte do
empírico (da observação imediata ou da representação) e
nem da filosofia ou do pensamento especulativo puro, o
que quer dizer que recusa tanto o empiricismo quanto o

10
“Os pressupostos de que partimos não são arbitrários, nem dogmas.
São pressupostos reais de que não se pode fazer abstração a não ser
na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições
materiais de vida, tanto aquela por eles já encontradas, como as
produzidas por sua própria ação. Estes pressupostos são, pois,
verificáveis por via puramente empírica” (MARX e ENGELS, 1991,
p. 26-27).
312
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

idealismo e racionalismo. O ponto de partida é o real, mas


não de forma ingênua, nua e crua, e sim através de uma
pré-reflexão que é a teoria, tanto a teoria da realidade do
método dialético – que o concebe como algo concreto,
histórico, uma totalidade (por isso a sociedade deve estar
sempre presente na mente do investigador dialético) –
quanto teorias mais específicas, caso existam, ou então
pelas demais concepções, ideológicas ou não, existentes, e
que também não são aceitas acriticamente, são elas
mesmas analisadas criticamente. Ou seja, a abordagem
dialética é fundamentalmente crítica: tanto da
representação imediata do real – nossa ou a dos outros – e
da observação imediata, quanto das elaborações
intelectuais sobre o mesmo. O caráter crítico do método
dialético está presente em todos os seus momentos.
Contudo, o procedimento que parece ser ambíguo,
no fundo, mostra que nada tem de contraditório. Partir da
teoria significa partir do real, porém, refletido e
conceituado. Se recordarmos que, em termos marxistas,
mas também hegelianos, a teoria e os conceitos são

313
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

“expressões da realidade”11, então partir da teoria significa


partir do real já refletido e analisado, através de conceitos
anteriormente elaborados que são suas formas de
manifestação mental. A única diferença realmente
existente é quando se aborda aspectos do real,
determinados fenômenos, que não receberam ainda um
processo de reflexão e análise, ou seja, que ainda não
contam com uma teoria ou conjunto de conceitos que os
expressam, e, nesse caso, e somente nesse, o ponto de
partida é a observação imediata e a representação, mas não
de modo ingênuo e sim crítico, aliado com as tentativas
anteriores de compreendê-lo (outras representações,
pretensamente científicas ou “teóricas”, ou seja,
ideológicas, que também são analisadas criticamente) e
conceitos e teorias mais amplas, além dos pressupostos do
método dialético, inclusive que nenhum fenômeno está
isolado, é indeterminado, etc.

11
A concepção hegeliana da teoria como expressão da realidade é
retomada por Marx noutro sentido, bem como Korsch recupera essa
concepção, também de forma materialista. Em várias obras, como
em A Miséria da Filosofia, Carta a Annenkov e o próprio texto O
Método da Economia Política, Marx afirma que os conceitos são
expressão da realidade.
314
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Basta a leitura de O Capital, de Karl Marx, para se


observar que, ao mesmo tempo em que o autor remete ao
real, ou seja, relações sociais concretas, também se refere
às ideologias que buscam expressar esse real, de forma
crítica em ambos os casos. Ele critica tanto as
representações e observação imediata do fenômeno quanto
as ideologias que dizem descrevê-lo ou explicá-lo. O caso
de sua análise da mercadoria é exemplar. Marx faz toda
uma análise do que é a mercadoria, suas formas de
manifestação, seu processo de constituição social, etc. Ou
seja, ele produz o conceito de mercadoria. Nesse conceito,
ele não isola o fenômeno, pois coloca suas condições de
possibilidade. Sem divisão social do trabalho não é
possível a existência da mercadoria e, portanto, é
necessário a ampliação dessa para ela existir.
Logo, divisão social do trabalho é outro conceito
que, por sua vez, remete ao trabalho e ao problema da
divisão social e a diversos outros, como dinheiro, valor de
troca, valor de uso, etc. Outros conceitos vão se
constituindo e sem se perder a historicidade e
especificidade dos fenômenos, ou seja, Marx mostra como
315
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

a mercadoria não é eterna e surge em determinadas


condições históricas, tal como a expansão da divisão
social do trabalho em determinadas condições, que existe
a produção especificamente capitalista de mercadorias
(produção de mais-valor), bem como a produção mercantil
simples, etc. Marx revela que as mercadorias, no âmbito
da produção capitalista, são produtos do trabalho humano
através de uma relação de exploração e daí trabalha
conceitos de mais-valor, lucro, acumulação, etc., chegando
à totalidade do modo de produção capitalista, momento
necessário para chegar à totalidade da sociedade
capitalista.
Quando Marx realiza esse processo analítico, do que
se trata? Trata-se de uma análise da realidade concreta.
Não são conceitos puros que geram uns aos outros,
embora possa até parecer que seja assim, mas esses
conceitos expressam relações sociais concretas e essas
geram outras relações, estão envolvidas num outro
conjunto de relações sociais, e, portanto, a elaboração
conceitual reproduz esse movimento, proliferando a
criação de novos conceitos para expressar essa realidade
316
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

vista de forma cada vez mais ampla. A existência social e


histórica gera a existência conceitual e o histórico parece,
ao ser exposto conceitualmente, como puramente lógico,
mas isso é apenas manifestação da percepção já realizada
por Hegel de que “o real é racional, e o racional é real”, ou
seja, existe uma unidade entre consciência e realidade na
teoria. Essa unidade, no entanto, não ocorre como na
filosofia hegeliana, através do desenvolvimento da razão e
sim através da análise das relações sociais concretas e do
engendramento de sua expressão teórica e isso pressupõe
uma outra unidade anterior, entre ser consciente e teoria,
entre proletariado e sua manifestação ideal que necessita
compreender o real, expressá-lo tal como ele é.
Pois bem, Marx não se limita a isso. Sem dúvida, ele
desenvolve o conceito de mercadoria e realiza todos os
desdobramentos necessários para compreendê-la como
uma totalidade envolvida em outra totalidade mais ampla.
Marx parte de um conceito mais simples para chegar a
conceitos mais complexos, parte da mercadoria para
chegar a mais-valor, capital, etc. Ele não se contenta com
isso e vai além, colocando a questão do fetichismo da
317
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

mercadoria, na qual revela que a observação imediata e a


representação produzem representações ilusórias sobre
este fenômeno. Como já colocamos isso em capítulo
anterior, não desenvolveremos esta questão. Aqui cabe
apenas enfatizar a distinção entre essência e aparência,
termos hegelianos que expressam bem o significado do
fetichismo da mercadoria12. Ou seja, uma vez
reconstituído a essência do fenômeno, é possível,
posteriormente, realizar a crítica de sua aparência na
representação. Porém, isso também gera um princípio
metodológico, que é não confundir aparência com essência
e não tomar a representação (aparência) como ponto de
partida único e muito menos como se fosse algo
verdadeiro.
Assim, Marx não só apresenta as relações sociais
concretas que constituem a mercadoria como também
realiza a explicação da gênese do fetichismo da
mercadoria, da sua forma aparente, sua representação.
Esses dois processos, no entanto, são complementados e

12
“Toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata
entre a aparência e a essência das coisas” (MARX,1988C).
318
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

realizados simultaneamente com a crítica da ideologia que


supostamente produz uma abordagem científica sobre tal
fenômeno. Em O Capital, a crítica da economia política
está presente e é outro momento do todo analítico que é
esta obra. Ele não apenas reconstitui o concreto (que é o
capital, uma relação social de classe) e mostra a percepção
ilusória do mesmo (o fetichismo da mercadoria), como
também mostra que a ciência econômica, no fundo, apenas
reproduz esta última – a representação, que não ultrapassa
a aparência – e não consegue captar a essência. No fundo,
o que a economia política realiza é tão-somente a
sistematização das concepções cotidianas dos agentes do
processo de produção.
Isto quer dizer que o método dialético realiza um
processo de confrontação entre o mundo real – relações
sociais concretas – , e o mundo da cultura, ou seja, das
representações, ideologias e teoria, sendo que o ponto de
partida é esta última, mas que se fundamenta nas relações
sociais concretas (sendo sua expressão) e que, depois de
ampliada e reconstituir novas relações sociais concretas,
elabora a crítica das representações e da ideologia.
319
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Assim, o método dialético não é indutivo, não é


empiricista, não parte do “particular para o geral” e nem é
dedutivo, não é racionalista ou idealista, não parte do
“geral para o particular”. Começar pelo particular é se
iludir com a aparência – pois nada é isolado, parte
desvinculada do todo, um “objeto puro” – e começar pelo
geral, ou seja, pela ideologia, por modelos, por falsas
totalidades criadas abstratamente de forma metafísica, é
produzir fantasmagorias – pois o todo é constituído por
partes que não podem ser esquecidas ou evitadas, e os
modelos são construções arbitrárias de indivíduos,
abstrações metafísicas. Para compreender melhor isso, as
categorias de essência, existência e aparência são
fundamentais. A existência é o concreto, o que existe
realmente e pode ser reconstituído em suas múltiplas
determinações. Através da análise se busca justamente
descobrir estas determinações, manifestas através de
conceitos. Através do processo de abstração (em sua
forma dialética e não metafísica) se busca descobrir estas
determinações, visando entender o processo de
constituição do fenômeno, sua essência, sua determinação
320
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

fundamental. Marx afirma que um resenhista anônimo


descreveu acertadamente o método dialético na seguinte
passagem:

Para Marx, só importa uma coisa:


descobrir as leis dos fenômenos de cuja
investigação ele se ocupa. E para ele é
importante não só a lei que os rege, à
medida que eles têm forma definida e
estão numa relação que pode ser
observado em determinado período de
tempo. Para ele, o mais importante é sua
lei de modificação, de seu
desenvolvimento, isto é, a transição de
uma forma para outra, de uma ordem de
relações para outra. Uma vez descoberta
essa lei, ele examina detalhadamente as
consequências por meio das quais ela se
manifesta na vida social. (...). Por isso,
Marx só se preocupa com uma coisa:
provar, mediante escrupulosa pesquisa
científica, a necessidade de determinados
ordenamentos das relações sociais e, tanto
quanto possível, constatar de modo
irrepreensível os fatos que servem de
pontos de partida e de apoio. Para isso, é
inteiramente suficiente que ele prove, com
a necessidade da ordem atual, ao mesmo
tempo a necessidade de outra ordem, na
qual a primeira inevitavelmente tem que
se transformar, quer os homens acreditem
nisso, quer não, quer eles estejam
conscientes disso, quer não. Marx
considera o movimento social como um
processo histórico-natural, dirigido por

321
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

leis que não apenas são independentes da


vontade, consciência e intenção dos
homens, mas, pelo contrário, muito mais
lhes determinam a vontade, a consciência
e as intenções. (...). Se o elemento
consciente desempenha um papel tão
subordinado na história da cultura, é claro
que a crítica que tenha a própria cultura
por objeto não pode, menos ainda do que
qualquer outra coisa, ter por fundamento
qualquer forma ou resultado da
consciência. Isso quer dizer que o que lhe
pode servir de ponto de partida não é a
ideia, mas apenas o fenômeno externo. A
crítica vai limitar-se a comparar e
confrontar um fato não com a ideia, mas
com outro fato. Para ela, o que importa é
que ambos os fatos sejam examinados
com o máximo de fidelidade e que
constituem, uns em relação aos outros,
momentos diversos de desenvolvimento;
mas acima de tudo, importa que sejam
estudadas de modo não menos exato a
série de ordenações, a sequência e a
conexão em que os estágios de
desenvolvimento aparecem. Mas, dir-se-á,
as leis gerais de desenvolvimento da vida
econômica são sempre as mesmas, sejam
elas aplicadas no presente ou no passado.
(...). É exatamente isto que Marx nega.
Segundo ele, essas leis abstratas não
existem. (...). Segundo sua opinião, pelo
contrário, cada período histórico possui
suas próprias leis. Assim que a vida já
esgotou determinado período de
desenvolvimento, tendo passado de
determinado estágio a outro, começa a ser
322
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

dirigida por outras leis. Numa palavra, a


vida econômica oferece-nos um fenômeno
análogo ao da história da evolução em
outros territórios da Biologia. Os antigos
economistas confundiram a natureza das
leis econômicas quando as compararam
com as leis da Física e da Química. (...).
Uma análise mais aprofundada dos
fenômenos demonstrou que os
organismos sociais se distinguem entre si
tão fundamentalmente quanto organismos
vegetais e animais. (...). Sim, um mesmo
fenômeno rege-se por leis totalmente
diversas em consequência da estrutura
diversa destes organismos, da
modificação em alguns de seus órgãos,
das condições diversas em que
funcionam, etc. Marx nega, por exemplo,
que a lei da população seja a mesma em
todos os tempos e em todos os lugares.
Ele assegura, pelo contrário, que cada
estágio de desenvolvimento tem uma lei
demográfica própria. (...). Com o
desenvolvimento diferenciado da força
produtiva, modificam-se as circunstâncias
e as leis que as regem. Ao Marx se coloca
a meta de pesquisar e esclarecer, a partir
desta perspectiva, a ordenação econômica
do capitalismo, ele apenas formula, com
todo rigor científico, a meta que deve ter
qualquer investigação exata da vida
econômica. (...). O valor científico de tal
pesquisa reside no esclarecimento das leis
específicas que regulam nascimento,
existência, desenvolvimento e morte de
dado organismo social e a sua substituição
por outro, superior. E o livro de Marx,
323
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

tem, de fato, tal mérito (apud. MARX,


1988b, p. 26).
Aqui se coloca em síntese alguns aspectos essenciais
do método dialético. Aqui há elementos do materialismo
histórico, quando se trata da sociedade capitalista
especificamente, ou do desenvolvimento histórico das
sociedades humanas, mas, ao mesmo tempo, mostra que o
objetivo do método dialético é reconstituir o real,
descobrindo sua determinação fundamental, expresso aqui
como sendo “lei do fenômeno”13. A determinação
fundamental é a essência do fenômeno. Porém, a essência
assume diversas formas de manifestação, o que gera
inúmeras outras determinações, e ao descobrir a
determinação fundamental, a essência, passo fundamental
e necessário, se pode partir para descobrir as demais

13
O resenhista anônimo, obviamente, opta por uma linguagem
científica, ou seja, oriundas das ideologias burguesas. Como é um
autor russo e, portanto, dificilmente um conhecedor da filosofia de
Hegel, essa forma de expressar – que encontra alguns elementos na
própria obra de Marx, que usa a palavra lei em diversas
oportunidades, embora alertando que não se trata de leis no sentido
das ciências naturais e que devem ser entendidas como “tendências”
– é um tanto quanto limitada, mas seu aspecto negativo é
minimizado ao explicar que não se trata de leis da física ou química,
o que mostra seu caráter diferencial.
324
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

determinações e chegar até a existência, ou seja, o


concreto. Desta forma reconstitui o concreto no
pensamento, percebendo a existência como manifestação
concreta da essência. Observar o que existe sem perceber
sua determinação fundamental, sua essência, bem como
suas múltiplas determinações, é o mesmo que ficar no
nível da aparência.
Portanto, o método dialético concebe o real ao
mesmo tempo como particular e como totalidade, pois as
duas coisas não estão separadas na realidade e, por
conseguinte, não podem estar separada no pensamento que
a expressa. Uma parte do todo não existe como apenas
uma parte, só existe no interior da totalidade que a
constitui. A totalidade, por sua vez, não existe sem suas
partes, que a constituem. A existência não existe sem a
essência e a essência não existe sem a existência, sem sua
manifestação concreta, a não ser como potencialidade,
tendência. No empiricismo, se parte do particular isolado,
depois realiza-se a soma ou a generalização. No
racionalismo, se parte de uma totalidade abstrata, de um
modelo, e depois se justifica ou “comprova” com o
325
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

particular, com o empírico. Ambos são falsos por


separarem o que não está separado. O problema da
generalização é empiricista e falso, enquanto que o
problema da aplicação de modelos na realidade através de
exemplos e fatos é racionalista e falso. Nada mais comum
do que o procedimento empiricista de reunir dados
estatísticos, fatos, etc., para depois juntá-los através da
soma ou da generalização. Da mesma forma, o
procedimento racionalista (tal como se vê no
funcionalismo e estruturalismo), de apresentar seus
“modelos” e depois rechear suas produções de fatos e
exemplos é bem comum14.
Não é possível compreender a natureza humana, o
estado, a sexualidade, o fascismo, etc., apenas através de
entrevistas e dados estatísticos ou através de criação de

14
No caso do empiricismo, é o procedimento que se observa, por
exemplo, no risível Relatório Kinsey sobre sexualidade e no caso do
estruturalismo e funcionalismo, basta ver o extenso trabalho de
Malinowski (1978) para confirmar seu modelo com inúmeros fatos
recolhidos nas Ilhas Trobriand, bem como nas obras de Lévi-Strauss
e todos os estruturalistas, inclusive alguns que se dizem ou são
considerados “marxistas”, tal como no caso da obra de João
Bernardo, Os Labirintos do Fascismo, que deveria se chamar Os
Labirintos do Modelo Fascista.
326
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

modelos imaginários. Nesse sentido, todo o conjunto da


produção intelectual metodológica após Marx que não
buscou efetivar um desenvolvimento deste e sim criar uma
alternativa, não apenas demonstra seu caráter conservador,
como seus limites metodológicos perceptíveis e
instransponíveis. A abstração é o processo de reconstituir,
não a partir de um particular ou um suposto geral criado
pela especulação, a essência e o concreto. Sem dúvida, não
é observando diversas mercadorias, conversando com
pessoas sobre elas15 ou especulando imaginariamente que
Marx constituiu o seu conceito de mercadoria e todas as
implicações que retirou dela.
Contudo, alguns podem considerar que a teoria do
capitalismo apresentada em O Capital é algo “dedutivo”,
bem como o trabalho dos conceitos é algo meramente
lógico ou ideal. Já afirmamos, anteriormente, que essa
impressão é equivocada e o próprio Marx esclareceu isso
ao afirmar que é necessário distinguir o método de
pesquisa do método de exposição:

15
Como diz comicamente Darwin (1979) ao colocar que observou
muitos fatos e até conversou com jardineiros...
327
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

É, sem dúvida, necessário


distinguir o método de exposição
formalmente, do método de pesquisa. A
pesquisa tem que captar detalhadamente a
matéria, analisar as suas várias formas de
evolução e rastrear sua conexão íntima.
Só depois de concluído esse trabalho é
que se pode expor adequadamente o
movimento real. Caso se consiga isso, e
espelhada idealmente agora a vida da
matéria, talvez possa parecer que se esteja
tratando de uma construção a priori
(MARX, 1988b, p.26).
Quem lê O Capital não viu o processo, apenas o
resultado. Ao observar apenas o resultado, se pode pensar
que é uma construção a priori. Eis aqui novamente uma
distinção entre que faz uma leitura dialética e quem não
ultrapassa a aparência. O resultado aparece como algo
dado e não determinado, constituído social e
historicamente, as múltiplas determinações. Ou seja, como
Marx produziu O Capital? Obviamente que uma leitura
atenta mostra o seu extenso trabalho de pesquisa, somente
pelo número de obras e autores citados, dados
apresentados, reflexões realizadas, foi um extenso e
monumental trabalho de pesquisa. Quando Marx realiza a
exposição, ou seja, a redação de O Capital, ele apresenta o

328
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

resultado e alguns só observam isso. O fetichismo da


mercadoria é como o fetichismo de obras escritas. Claro é
que, aqui se enfatiza o processo de pesquisa de Marx que
culmina com a obra, mas não o processo geral de
constituição da obra, o que remete para diversas outras
determinações, que são as determinações do indivíduo
Karl Marx (e já colocamos a questão da perspectiva do
proletariado, a inspiração na dialética hegeliana, etc.),
incluindo as lutas sociais e sua formação intelectual em
geral. Logo, o método de exposição parte da pesquisa
concluída, das determinações já descobertas, dos conceitos
já elaborados, após a pesquisa realizada. Assim, a leitura
de uma obra dialética deve ter este pressuposto.
Essa breve síntese do método dialético aponta para
pensarmos como Marx colaborou não apenas com sua
análise da realidade concreta mas como apresentou,
parcialmente, as ferramentas intelectuais que utilizou
nesse processo. Desta forma, sua contribuição foi
metodológica, teórica e política, numa síntese fundamental
e que abre amplas perspectivas para a compreensão da
sociedade capitalista e análise da realidade
329
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

contemporânea. O método dialético foi expresso em O


Capital e foi sua forma de produção de sua teoria do
capitalismo, da qual trataremos no próximo capítulo.

330
O CAPITAL:
TEORIA DO MODO DE PRODUÇÃO
CAPITALISTA

A produção de mais-valor ou a extração


de mais-trabalho constitui o conteúdo e o
objetivo específico da produção
capitalista.
Karl Marx

A teoria do capitalismo de Marx é um dos aspectos


mais desenvolvidos do seu pensamento e de fundamental
importância para compreendê-lo, pois não só revela um
uso revolucionário do método dialético – tal como
veremos a seguir – como de uma análise de um modo de
produção específico, contribuindo, pois, também com a
compreensão do materialismo histórico, além de colocar o
elemento essencial do seu pensamento: a compreensão da
sociedade atual, suas contradições e tendências, visando
mostrar a potencialidade e possibilidade do comunismo. A
análise das sociedades pré-capitalistas, a discussão em
torno do método dialético e materialismo histórico, entre
outros aspectos, visava contribuir com a compreensão do
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

processo de alienação e da sua superação, ou seja, a


emancipação humana.
Nesse contexto, é imprescindível entender a razão de
ser da obra: sua preocupação humanista com a libertação
humana e sua percepção de que tal emancipação não
poderia ser realizada apenas devido a esta preocupação, a
bondade humana ou pela educação, como pregava o
utopismo abstrato, pois os seres humanos são seres sociais
e é necessário entender que estão degradados em sua
humanidade de tal forma que até o pensamento da
libertação humana está envolvido na atual sociedade e,
portanto, é preciso descobrir o agente revolucionário, ou
seja, quem a partir de relações sociais concretas pode e
deve concretizar a emancipação humana. A história da
humanidade foi marcada pela luta de classes desde que a
divisão de classes emergiu no horizonte histórico e,
portanto, não se pode esperar que as classes privilegiadas
ou a classe dominante realize a libertação das classes
exploradas e nem que indivíduos ou grupos oriundos
destas poderiam fazê-lo. Assim, a potencialidade
revolucionária se encontra no lado dos explorados,
332
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

naqueles que estão submetidos à alienação, à exploração,


dominação, opressão.
A teoria do capitalismo de Marx é resultado dessa
preocupação geral, humanista e libertária, que o faz buscar
entender melhor as lutas de classes da sociedade
capitalista e a classe revolucionária de nossa época.
Assim, após reflexões mais gerais sobre a história da
humanidade, sobre a alienação, etc., Marx começa a
analisar o capitalismo. Inclusive, em um de seus primeiros
textos dedicados ao estudo do capitalismo, Trabalho
Assalariado e Capital, Marx coloca que era criticado por
não ter feito uma análise do capitalismo: “De vários lados
nos criticaram por não termos analisado as relações
econômicas que formam a base material da luta de classes
e das lutas nacionais nos nossos dias” (MARX, 1987b, p.
19).
Assim, Marx passa a se dedicar ao processo de
análise do modo de produção capitalista. A grande obra
que ele dedicou a essa questão foi O Capital, obra que
ficou inacabada. O inacabamento dessa obra nos privou de
um desenvolvimento de diversas questões. Contudo, o
333
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

volume 01 desenvolve aspectos fundamentais para a


compreensão da essência do capitalismo – a produção de
mais-valor – e os demais volumes colocam o
desdobramento disso, ou seja, a acumulação de capital e
suas contradições, entre outros aspectos derivados. Nesse
sentido, vamos analisar a teoria do capitalismo de Marx
tomando como referência principal sua grande obra,
embora também levando em considerações outras sobre a
mesma questão. É bastante conhecida e cita a famosa frase
de abertura de O Capital:

“A riqueza das sociedades em que


domina o modo de produção capitalista
aparece como uma “imensa coleção de
mercadorias” e a mercadoria individual
como sua forma elementar. Nossa
investigação começa, portanto, com a
análise da mercadoria” (MARX, 1988b,
p.45).
Essa afirmação foi responsável por muitos mal
entendidos. Muitos leitores apressados começaram a
deduzir de que a questão mais importante é a mercadoria e
a definir o capitalismo como “sistema produtor de
mercadorias” ou “modo de produção de mercadorias”. Em
primeiro lugar, a mercadoria é anterior ao capitalismo. Na
334
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sociedade escravista, por exemplo, havia produção de


mercadorias. Em segundo lugar, a mercadoria é o
resultado do trabalho, produto do trabalho humano e a
questão fundamental reside justamente no processo de
produção e não em seu resultado. A afirmação de Marx
acima é a de que o modo de produção capitalista “parece”
como uma imensa produção de mercadorias. Como já
discutimos na parte referente ao método dialético, o
parecer não revela a essência e por isso é preciso um
esforço para descobri-la. É justamente isso que faz Marx
na sequência do seu texto. A imensa coleção de
mercadorias é aparência do modo de produção capitalista e
por isso é preciso descobrir sua essência.
A produção de mercadorias, no fundo, é mero
pretexto para produção de mais-valor. Tal como coloca
Marx, “A produção de aço é mero pretexto para a
produção de mais-valia” (MARX, p. 377).

“O leitor recorda-se que a


produção de mais-valia ou a extração de
mais-trabalho constitui o conteúdo e o
objetivo específico da produção
capitalista, abstraídas as transformações
do próprio modo de produção que possam
335
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

surgir da subordinação do trabalho ao


capital” (MARX, 1988b, p. 226).
O que é essencial é a produção de mais-valor:

“A produção capitalista não é


apenas produção de mercadoria, é
essencialmente produção de mais-valia. O
trabalhador produz não para si, mas para o
capital. Não basta, portanto, que produza
em geral. Ele tem de produzir mais-valia.
Apenas é produtivo o trabalhador que
produz mais-valia para o capitalista ou
serve à autovalorização do capital”
(MARX, 1988a, p. 138).
Assim, desfeito esse primeiro equívoco
interpretativo, podemos compreender melhor o que Marx
quis dizer. A produção de mais-valor é mediada pela
produção de mercadorias. As representações cotidianas
tomam a aparência e essas são as formas “naturais”,
“imediatas” de entender a realidade. Por isso, o método
dialético supera a percepção aparente ao reconstituir o
concreto através da abstração. Marx, nesse sentido, busca
superar a aparência ao buscar descobrir sua essência, e
inicia esse processo questionando o que existe de comum
em todas as mercadorias. A resposta é que toda
mercadoria é produto do trabalho humano. Ele é o

336
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

principal gerador de riquezas. A mercadoria é


simplesmente trabalho humano materializado,
corporificado, nela. A mercadoria é um valor de uso e, ao
mesmo tempo, um valor de troca. Enquanto valor de uso é
um objeto que possui alguma utilidade e enquanto valor de
troca é um objeto vendável, que é portador de um
determinado valor.
No modo de produção capitalista, os valores de uso
são portadores materiais de valores de troca, sendo,
portanto, mercadorias. Marx afirma que o valor de troca só
pode ser a forma de expressão de um conteúdo dele
distinguível. Nesse caso, se 01 computador, 05 mesas e 10
cadeiras vale o mesmo, então 10 cadeiras vale o mesmo
que 01 computador e 05 mesas. O valor de troca dessas
mercadorias é igual. Assim, o valor de troca é o modo de
expressão do seu conteúdo. Se 01 computador tem o
mesmo valor que 05 mesas, então há algo de comum e de
grandeza igual em ambos os casos. Contudo, o valor de
uso deles é bem distinto. Uma mesa pode servir para
apoiar o computador ou para servir o jantar, enquanto que
o computador serve para processar dados, realizar
337
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

comunicação, etc. Mas eles possuem o mesmo valor de


troca e isso significa que possuem algo em comum e isso
remete a uma terceira coisa, que não é nem o computador
e nem a mesa. As mercadorias possuem diferenças
qualitativas e quantitativas. Como valores de uso, há
diferenças qualitativas, como valores de troca, há
diferenças quantitativas. Enquanto valores de troca, todas
as mercadorias são produtos do trabalho humano e essa é
sua “propriedade comum”. A terceira coisa é justamente
esse aspecto: produto do trabalho humano. Ao considerar
seu valor de troca e não seu valor de uso, as formas
concretas do trabalho desaparecem. Nesse caso, o trabalho
humano abstrato, uso da força de trabalho indiferenciado,
é o elemento comum de todas as mercadorias. A
materialização desse trabalho nas mercadorias as tornam
valores mercantis. Todas elas possuem um determinado
valor, cuja diferença é quantitativa. A grandeza
quantitativa do valor é assim explicada por Marx:

Portanto, um valor de uso ou bem


possui valor, apenas, porque nele está
objetivado ou materializado trabalho
humano abstrato. Como medir então a

338
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

grandeza de seu valor? Por meio do


quantum nele contido da “substância
constituidora do valor”, o trabalho. A
própria quantidade de trabalho é medida
pelo seu tempo de duração, e o tempo de
trabalho possui, por sua vez, sua unidade
de medida nas determinadas frações do
tempo, como hora, dia etc. (MARX,
1988b, p. 47).
O tempo de trabalho, nesse caso, no entanto, é
trabalho abstrato, ou seja, trabalho social médio. “É,
portanto, apenas o quantum de trabalho socialmente
necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário
para a produção de um valor de uso o que determina a
grandeza do seu valor” (MARX, 1988a, p. 48). Assim,
notamos um duplo caráter do trabalho humano
materializado nas mercadorias: abstrato e concreto. Como
trabalho concreto é útil, produz valores de uso e como
trabalho abstrato é produz mais-valor, acrescenta valor à
mercadoria. Este duplo caráter se reproduz na mercadoria,
que possui valor de uso e valor de troca. O valor de troca
da mercadoria, no entanto, só pode ser percebido através
da “relação social de mercadorias para mercadoria”.
Assim, no processo social de troca de mercadorias é que

339
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

se revela o valor da mercadoria. A forma simples do valor


pode facilitar a compreensão disso: 01 computador = 05
mesas. Aqui se revela, segundo Marx, o segredo de toda
forma de valor. A mercadoria computador expressa o seu
valor na mercadoria mesa e esta é material para tal
expressão de valor. O computador assume um papel ativo
e as mesas um papel passivo. O valor do computador é um
“valor relativo”, a forma relativa do valor, e as mesas atua
como algo equivalente, forma equivalente. Contudo, entre
ambas as formas de valor há uma determinação recíproca,
elas se pertencem e são inseparáveis. Mas também são
excludentes e opostas. A forma relativa do valor pressupõe
a forma equivalente. O valor do computador só pode ser
expresso através de outra mercadoria, sendo ele forma
relativa e a outra mercadoria, forma equivalente. Uma
forma pressupõe a outra. A mercadoria que funcional
como forma equivalente não pode funcionar,
simultaneamente, como forma relativa de valor. Isto se
deve ao fato de que ela deve fornecer material para outra
mercadoria expressar seu valor.

340
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

As mercadorias em geral possuem um determinado


quantum de valores de uso e também de trabalho humano
materializado nelas. A forma de valor expressa uma
determinada grandeza de valor. Se 01 computador é igual
a 05 mesas, então possuem o mesmo quantum de tempo de
trabalho. E que ambos possuem o mesmo tempo de
trabalho que 10 cadeiras. Isso significa que possuem a
mesma substância de valor. Desta forma podemos
compreender a forma relativa de valor desdobrado:

01 computador = 05 mesas, 10 cadeiras, 5 000 canetas.

5 000 canetas = 01 computador, 05 mesas, 10 cadeiras.

Qualquer mercadoria pode expressar o valor de outra


mercadoria (variando de quantidade quando o valor for
distinto, ou seja, o valor de uma mesa não é o mesmo que
de um computador, mas de 05 mesas sim). O valor assim
aparece como produto do trabalho humano abstrato.
Contudo, é necessária uma forma de manifestação
unitária, ou seja, um equivalente geral para todas as outras
mercadorias. Esse papel de equivalente geral é geralmente

341
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

atribuído ao dinheiro, mas pode ser também atribuído a


outras mercadorias (ouro, por exemplo).
Marx afirma, contra os adoradores fetichistas do
mercado1, que as mercadorias precisam, para serem
trocadas, de um “elemento dinâmico”, para que elas
possam ser levadas ao mercado, já que elas não possuem
vida própria e não se movimentam por conta própria. Tal
elemento dinâmico é, obviamente, os seus proprietários.
Estes são seres vivos e não coisas, por isso podem se
movimentar e possuir vontade. O mercado, no fundo, é a
relação entre proprietários de mercadorias que gera relação
entre as mercadorias. E é através de sua troca que elas se

1
Certa vez, em uma palestra, um suposto crítico de Marx afirmou que
ele realizava o “fetichismo do mercado”. Curiosamente, o suposto
crítico depois de demonstrar que não havia entendido a teoria de
Marx, passou a afirmar que “o” mercado fazia isto e aquilo, etc.
tornando-o um agente, algo com vida própria. Eu perguntei para o
palestrante se o que ele fazia não é o que acusava em Marx,
fetichismo do mercado, e o que ele entendia por “mercado”. A
resposta evasiva foi a de que mercado não é a ir comprar verduras na
feira e sim uma “instituição”. Aqui se nota o alto nível dos críticos
de Marx, que se contentam em demonstrar ignorância de sua obra e
pseudocríticas aliado a concepções fetichistas que hipoteticamente
criticariam o fetichismo, explicando um fetiche (o mercado) por
outro (a instituição), e nunca expondo que são os seres humanos
reais e concretos que fazem o mercado e as instituições existirem.
342
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

tornam mercadorias. Um proprietário de mercadoria se


apropria de outra mercadoria enquanto perde a sua. Eles se
tratam como proprietários privados, possuidores de
mercadorias.
O dinheiro, como equivalente geral, apenas reproduz
o valor já existente na mercadoria, não lhe acrescenta
nenhum valor. Da mesma forma e consequentemente, a
circulação de mercadorias não acrescenta valor à
mercadoria, pois apenas retransforma a mercadoria que
passa de sua forma material natural para a forma dinheiro.
Resta saber então o que acrescenta valor à mercadoria, o
que gera mais-valor. Há uma mercadoria que gera mais-
valor para outras mercadorias, que é justamente aquela
mercadoria que ao ser consumida realiza a materialização
do trabalho. Essa mercadoria que gera outras mercadorias
através do processo de trabalho é a força de trabalho. Esta,
sendo uma mercadoria, é adquirida por outro proprietário
de mercadoria, o portador do capital, no mercado.
Aqui nós temos a essência das relações de produção
capitalistas. A relação entre proprietário de capital e
comprador da força de trabalho e o proprietário dessa
343
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

última começa pela aquisição da última pelo primeiro. O


capitalista compra a força de trabalho. O que é força de
trabalho?

“Por força de trabalho ou


capacidade de trabalho entendemos o
conjunto de faculdades físicas e
espirituais que existem na corporalidade,
na personalidade viva de um homem e
que ele pões em movimento toda vez que
produz valores de uso de qualquer
espécie” (MARX, 1988b, p. 135).

O encontro entre o vendedor da força de trabalho,


que não possui nenhuma outra propriedade, e o comprador
dela, que é possuidor do capital ocorre no mercado e
constrange os que possuem apenas a força de trabalho a
vendê-la e tem um antecedente histórico, que remete à
própria formação do capitalismo: o “possuidor de
dinheiro”, o capitalista, só surge e pode comprar a força de
trabalho havendo uma “acumulação prévia de capital”, que
se origina com o movimento do capital comercial
possibilitando a acumulação primitiva de capital (Cf.:
MARX, 1988b; MARX, 1988d, MARX, 1988e).

344
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

A força de trabalho é a única mercadoria que gera


mais-valor às demais mercadorias e só circula no mercado
ao ser vendida pelo seu “proprietário”, o trabalhador. Essa
compra e venda, instituída historicamente através da
expropriação dos trabalhadores dos meios de produção, é
realizada entre possuidores de mercadorias (força de
trabalho e dinheiro) que são livres juridicamente e por isso
também podem “livremente” desfazer o contrato2. O
trabalho deve ser duplamente livre: livre para oferecer sua
força de trabalho e livre da propriedade dos meios de
produção, pois não tendo meios de produção não pode
produzir seus meios de sobrevivência, precisa comprá-los
e para fazê-lo precisa de dinheiro. A forma de conseguir o

2
Obviamente que Marx explica que os proletários são apenas
juridicamente livres, ou seja, não são, como o escravo ou o servo,
constrangidos a trabalhar por uso da coerção física e sim por vontade
própria e assinando um contrato de forma livre, mas, são
constrangidos a fazê-lo já que não sendo possuidores de mais nada
além da força de trabalho e no capitalismo tudo se transformar em
mercadoria (inclusive os meios de sobrevivência, como alimentação,
vestuário, habitação, etc.) e sem possuir dinheiro não é possível obter
tais meios, o que obriga a vender a única mercadoria que possui, a
força de trabalho.
345
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

dinheiro é vendendo sua única mercadoria, a força de


trabalho.
Aqui nós temos um outro elemento a discutir: o
valor da mercadoria força de trabalho. Já observamos,
anteriormente, que o valor das mercadorias é determinado
pelo tempo de trabalho socialmente necessário para
produzi-la. Agora afirmamos que a força de trabalho é
uma mercadoria. Logo, é necessário descobrir qual seu
valor, pois embora seja uma mercadoria, não é como as
outras, é sui generis. Assim, precisamos resgatar o que ela
tem de comum com as outras mercadorias e o que é que
possui de diferente devido sua especificidade. O que a
força de trabalho possui em comum com todas as outras
mercadorias é o fato de que o seu valor é determinado pelo
tempo de trabalho social necessário para sua produção. A
produção da força de trabalho é um processo que remete à
sua reprodução e manutenção. O proprietário da força de
trabalho necessita de meios de sobrevivência. Ou seja,
para haver a reprodução da força de trabalho (ele
sobreviver e continuar trabalhando, bem como gerando

346
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

filhos que também devem fazê-lo), é necessário que ele


disponha destes meios de sobrevivência.
O valor da força de trabalho é composto pelo
conjunto dos meios de sobrevivência. Desta forma, o valor
do conjunto dos meios de sobrevivência e o valor da força
de trabalho são equivalentes. No entanto, trata-se do
conjunto destes meios, necessários para a reprodução da
força de trabalho, um indivíduo vivo, e por isso deve
incluir a morte e o desgaste, os meios de sobrevivência
dos “substitutos”, os filhos. Também deve incluir o que é
gasto com desenvolvimento de habilidades, ou seja,
formação e educação. Logo, os custos da força de trabalho
incluem meios de sobrevivência do indivíduo trabalhador
e sua família, formação e educação, etc. Essas
necessidades que formam o custo da força de trabalho
variam historicamente (o valor das mercadorias que são
parte dos meios de sobrevivência se altera em
determinados contextos, as exigências de formação e
qualificação se alteram, etc.) e o que é considerado
necessário também não é algo fixo, pois isso depende da
cultura e das mudanças sociais (um computador hoje é
347
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

algo necessário para a formação e qualificação da grande


maioria dos trabalhadores, o que significa também que o
valor da força de trabalho varia de acordo com sua
qualificação, atividade, etc.) e as necessidades são
constituídas socialmente e através da luta de classes. A
luta de classes também é diretamente outra determinação
do valor da força de trabalho (MARX, 1987b; MARX,
1988f). Os movimentos grevistas que exigem aumentos
salariais ou as ações da classe capitalista visando abaixar o
nível salarial, ou a existência de um amplo exército
industrial de reserva, são outras faces desse processo.
O capitalista adquire a força de trabalho para que ela
produza mercadorias e gere mais-valor. Essa é a base da
relação de classes e de exploração entre classe capitalista e
classe proletária. O capitalista usa a força de trabalho no
processo de produção e transforma este em processo de
valorização. O processo de trabalho é ao mesmo tempo
processo de valorização. Esse processo de valorização é o
processo de criação de mais-valor, que valoriza o capital.
O processo de trabalho somente no capitalismo é processo
de valorização. Ele é inicialmente um processo no qual o
348
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

ser humano media, regula e controla seu metabolismo com


a natureza, no qual realiza a objetivação, transformando a
natureza e a si mesmo. É um processo de humanização.
Porém, com a emergência do trabalho alienado, isso
se transforma e, no capitalismo, se torna uma forma
específica de alienação (e alheamento), uma forma distinta
de exploração. No capitalismo, o trabalhador está
submetido ao trabalho alienado, ou seja, é controlado pelo
não-trabalhador que é o capitalista, que comprou sua força
de trabalho, e o produto do seu trabalho é apropriado pelo
capitalista, sendo tornando alheio ao produtor. Esse
processo de trabalho alienado no capitalismo é, ao mesmo
tempo, processo de valorização. Pois o produto que é
apropriado pelo capitalista é uma mercadoria e está é
produzida por gerar lucro para o capitalista e só gera lucro
graças ao trabalho incorporado nela que gera mais-valor.
Nesse caso, o trabalho alienado é gerador de mais-valor e
o processo de trabalho é processo de valorização.
O objetivo do capitalismo com o processo de
produção não é gerar valores de uso. Sem dúvida, a
mercadoria é um valor de uso. Contudo, o capitalista
349
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

realiza o processo de produção por ela ser valor de troca.


Mas mais que isto, o fundamental é que ela depois de
produzida tenha um valor superior ao utilizado no
processo de produção (meios de produção e força de
trabalho). Em síntese, o capitalista quer produzir a
mercadoria devido ao fato de que isso significa,
simultaneamente, produção de mais-valor. O capitalista
usa força de trabalho e meios de produção para produzir
mercadorias, mas somente a primeira acrescenta valor às
mercadorias. Os meios de produção apenas repassam o seu
valor a elas. O capital constante (meios de produção)
transmite seu valor à mercadoria, a força de trabalho cria
um valor novo. Esse processo de criação de valor novo
pela força de trabalho não é remunerado pelo capitalista,
sendo processo de exploração.
Essa é a essência das relações de produção
capitalistas. O proletariado é a classe dos trabalhadores
assalariados produtivos e a burguesia é a classe dos
apropriadores de mais-valor. Dessa relação de exploração,
relações de produção capitalistas, emergem outras
relações, processos, consequências. Infelizmente, a
350
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

maioria dos leitores de Marx se limitou ao volume 01 de O


Capital, isto é, pararam aqui. Ao se limitar a tal volume,
fica apenas com a primeira parte da teoria, que explicita a
relação-capital, ou seja, as relações de produção
capitalistas mostrando a produção de mais-valor, a fonte
do capital. Nos volumes seguintes, que ficaram inacabados
e foram publicados nesse estado incompleto, Marx aponta
para a segunda parte da teoria, fundamental para
compreende o modo de produção capitalista e a dinâmica
do capitalismo.
Marx vai explicitar que o capital possui duas partes,
que expressa o investimento em meios de produção e força
de trabalho, ou seja, capital constante e capital variável. O
capital constante não acrescenta valor às mercadorias,
apenas repassa o seu valor para essa via trabalho
executado pelos proletários. Por isso é chamado por Marx
de trabalho morto. A força de trabalho, o trabalho vivo, é
que gera mais valor e ao fazer isso repassa o valor do
capital variável no produto final, a mercadoria. A relação
entre capital variável e capital constante não é estática e
muda com o desenvolvimento capitalista. A proporção do
351
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

capital variável em valor tende a diminuir em relação ao


capital constante. O capital constante em geral
(instalações, máquinas, toda a infraestrutura) se amplia e o
uso da força de trabalho diminui. Eles formam a
composição orgânica do capital e aponta para essa
tendência, que significa uma queda na taxa de lucro
médio. O investimento do capital passa a ser maior com o
capital variável e menor com a força de trabalho. Isso gera
uma das principais características do capitalismo: a
tendência declinante da taxa de lucro (MARX, 1988d).
Esse processo está inserido na dinâmica da
acumulação capitalista. A acumulação de capital não é
apenas produção e extração de mais-valor e sim um
processo complexo de produção que gera um processo
igualmente complicado de relações de distribuição e
processos sociais complementares. A compreensão disso
remete ao processo derivado da produção de mais-valor,
que é a acumulação de capital. A classe capitalista retira,
proporcionalmente, uma parte muito pequena do lucro
para consumo, ou seja, sob a forma de renda. A maior
parte do lucro é reinvestida, adquirindo um quantum maior
352
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

de capital constante e variável. Esse reinvestimento gera,


por sua vez, mais lucro e, por conseguinte, mais
investimento. A acumulação de capital é, portanto, um
processo de reprodução ampliada, gerando concentração e
centralização do capital. O capital assim vai se expandindo
indefinidamente. As pequenas empresas e algumas
grandes, no entanto, sucumbem na competição com as
demais e são anexadas e se tornam parte do capital
vencedor. O resultado disso é a formação de um mercado
mundial. O capital se moderniza e avança, passa a
desenvolver o crédito e a sociedade por ações, entre outros
processos analisados por Marx. O desenvolvimento
tecnológico, nesse constante do capital, também segue sua
dinâmica de reprodução ampliada. Não é nosso objetivo
apresentar detalhadamente esse processo, mas tão-somente
deixar claro que produção de mais-valor gera e implica
acumulação de capital e este gera o poder crescente do que
hoje alguns chamam “corporações”, que pode ser
denominado, em terminologia marxista mais atualizada,
capital transnacional.

353
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Nesse processo, a tendência declinante da taxa de


lucro médio emerge com cada vez mais força. A
reprodução ampliada do capital e o desenvolvimento
capitalista gera uma necessidade de uso cada vez mais
intensivo de capital variável, especialmente de tecnologia.
Isso, por sua vez, gera a concretização da queda da taxa de
lucro, porquanto cada vez menos força de trabalho,
trabalho vivo, convive com cada vez mais capital
constante, trabalho morto. Esse é um dos principais
motivos para as crises capitalistas.
A classe capitalista, no entanto, não assiste a sua
derrocada passivamente. O capital gera um conjunto de
processos visando criar contratendências à tendência
declinante da taxa de lucro. O Estado capitalista cumpre a
função geral de evitar tal tendência, além de outras
iniciativas do capital e sob outras formas. Marx mostrou
algumas das principais formas de combate à tendência
declinante da taxa de lucro, que apenas citaremos sem
maior desenvolvimento. As contratendências são geradas
via aumento da massa de lucro, intervenção estatal,
aumento de extração de mais-valor relativo, etc. O
354
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

aumento da massa de lucro significa que se busca


compensar a queda da taxa (que é proporcional) com
aumento da produção em quantidade. É o caso, por
exemplo, do capital automobilístico que tem sua taxa de
lucro em queda de 30 para 20%, sendo que a produção de
carros era de 10 mil por mês. Nesse caso, se
hipoteticamente cada carro fosse vendido por 1 mil dólares
(ou reais, euros, etc., aqui não interessa a moeda, já que se
trata apenas de uma hipótese ilustrativa), o capital
receberia um milhão. Se o lucro fosse 30% em um mês,
seria 300 mil e, no mês da queda, 200 mil. Logo, a queda
da taxa de lucro em 10% significaria perda de 100 mil.
Para aumentar a massa de lucro, o capital deveria
aumentar o volume da produção. Por exemplo, passar de
10 mil para 20 mil carros. Nesse caso, ao invés de receber
um milhão, receberia dois milhões. Assim, o lucro de 200
mil passaria a ser 400 mil e assim compensaria a queda da
taxa de lucro pelo aumento da massa de lucro. Isso, no
entanto, depende de outras determinações, mas esse
exemplo é suficiente para esclarecer essa relação.

355
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Outra contratendência é a busca de aumento de


extração de mais-valor. Isso ocorre principalmente com o
mais-valor relativo. Marx distingue mais-valor absoluto e
mais-valor relativo. O mais-valor absoluto é determinado
pelo salário ou jornada de trabalho, enquanto que o mais-
valor relativo é determinado pela produtividade. Se um
trabalhador gera, como no exemplo acima, 30% de mais-
valor e isso cai para 20%, então o capital pode diminuir os
salário ou aumentar a jornada de trabalho, que seria
aumento de extração de mais-valor absoluto. No entanto,
essas duas possibilidades tendem a gerar uma resistência e
luta dos trabalhadores. O mais-relativo é menos
perceptível. Se o conjunto dos trabalhadores produzem 10
mil carros por mês, o capital pode, usando nova
tecnologia, alterando a organização do trabalho, usando
incentivos aos trabalhadores, aumentar a produtividade, o
que significa produzir mais no mesmo período de tempo,
fazendo elevar a produção para 20 mil carros. Sem dúvida,
aqui teremos aumento de massa de lucro, mas, também, da
taxa de lucro, casos os salários fiquem no mesmo nível,
pois os gastos com capital variável ficam estagnados.
356
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Assim, para haver mais-valor relativo é necessário que os


salários e novos gastos (tecnologia, quando é utilizada
nesse processo) não sejam superiores ao que foi acrescido
pelo trabalho vivo. Caso não houvesse nenhum aumento
salarial ou gasto com capital constante, então haveria um
crescimento de extração de mais-valor para 40%.
Outras estratégias podem ser realizadas pelo capital
visando gerar contratendências, mas elas são limitadas não
só pela luta dos trabalhadores como também por diversas
outras determinações, como, por exemplo, a reprodução
ampliada do mercado consumidor, embora Marx não tenha
tratado especificamente desse último aspecto.
Assim, uma das consequências da produção de mais-
valor é a acumulação de capital, que é marcado por um
amplo desenvolvimento tecnológico, uma necessidade da
burguesia, que precisa “constantemente revolucionar os
meios de produção” (MARX e ENGELS, 1988). A
competição capitalista constrange o capital para a eterna
busca de desenvolvimento tecnológico e das forças
produtivas. Nesse processo, o limite seria a automação,
mas esta, sendo generalizada, aboliria as relações de
357
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

produção capitalistas e por isso é limitada. O


desenvolvimento das forças produtivas passa a ser uma
necessidade do capital e, ao mesmo tempo, um problema.
Esse processo contraditório é resolvido com o incentivo
para o desenvolvimento das forças produtivas que não
entram em contradição com as relações de produção e por
isso a automação só pode ocorrer até um certo limite e em
setores que não prejudiquem o capital.
Assim, o capitalismo cada vez produz mais e esse
processo é acompanhado por um outro, que é a
concentração e centralização do capital, que significa a
formação de oligopólios que ultrapassam os marcos
nacionais e se tornam internacionais. Marx observou a
formação do mercado mundial e das grandes empresas
capitalistas e sua tendência expansionista. O que ocorreu
após sua morte, em 1883, especialmente depois da
Segunda Guerra Mundial, foi a expansão do capital
transnacional. O capital oligopolista nacional se torna
transnacional e como a se instalar em diversos outros
países. Isso, sem dúvida, significa uma enorme

358
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

concentração de riqueza nas mãos de um cada vez menor


número de pessoas3.
Marx, pela época que viveu, conseguiu analisar as
três primeiras fases do capitalismo: o período de
formação, chamado também de “capitalismo comercial”,
que Marx colocou como sendo dominado pela
“acumulação primitiva de capital”, no qual o roubo e a
pilhagem tiveram um papel fundamental, comandado pelo
Estado absolutista e o sistema colonial, que incentivaram o
desenvolvimento das manufaturas; o período de
consolidação das relações de produção capitalistas sob
forma pura, que ele denominou como sendo da “grande

3
Seria possível pensar diferente. Algumas pessoas raciocinam como
se a chamada “livre inciativa” fosse acessível a todos, mas não é. O
mercado, ou seja, as relações de distribuição capitalistas, é dominado
por algumas empresas oligopolistas e elas destroem as pequenas e
médias e até mesmo outras que são grandes, seja através da
aquisição, fusão, etc. Esse processo, além do poder financeiro do
grande capital oligopolista e toda as suas estratégias (tal como o
capital transnacional que pode destruir um concorrente local,
nacional, abaixando o preço de suas mercadorias a um nível que
compromete a continuidade da produção, pois ele tem condições
para isso e atua em outros lugares que são outras fontes de lucro,
enquanto que o capital nacional passa a perder a competição, pois se
abaixar os preços não tem lucro e se não abaixar não vende...), tem
também a ação do poder estatal, atrelado ao capital oligopolista,
entre outras determinações.
359
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

indústria”, marcado pelo que se convencionou chamar


“revolução industrial”; o terceiro período, que ele apenas
vislumbrou, pois quando escrevia O Capital, esse estágio
já tinha se formado em alguns países, incluindo a
Inglaterra, mas sua percepção dificilmente ocorre tão
rapidamente, pois pressupõe a consolidação do processo e
sua análise é demorada, já que só pode ser adequadamente
compreendido após pesquisas profundas4.
Outro elemento fundamental derivado desse
processo é a repartição do mais-valor. Uma coisa é a
produção do mais-valor, que ocorre nas unidades de
produção (fábricas, construção civil, empresas agrícolas,

4
Esses estágios do capitalismo foram analisados, posteriormente, por
diversas economistas, historiadores e sociólogos. Alguns cunharam o
termo regime de acumulação para explicitar tais fases, como os
adeptos da chamada “escola da regulação” e o geógrafo David
Harvey, entre outros. Nós também analisamos o desenvolvimento
capitalista e seus estágios através do conceito de regime de
acumulação, embora diferente em diversos aspectos do conceito
trabalhado pelos autores anteriormente citados. A evolução do
capitalismo seria, em nossa perspectiva, marcada por uma sucessão
de regimes de acumulação, que, após a acumulação primitiva, seriam
o regime de acumulação extensivo (época da revolução industrial),
intensivo (da segunda metade do século 19 até 1945), conjugado
(1945-1980) e integral (que se inicia em 1980 até os dias de hoje).
Essa tese foi desenvolvida em duas obras (VIANA, 2009; VIANA,
2015a) e alguns artigos.
360
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

minas, etc.), outra coisa é a sua realização. A realização do


mais-valor ocorre nas relações de distribuição capitalistas,
ou, segundo linguagem dominante, no mercado. Como já
dizia Marx, e colocamos anteriormente, as mercadorias
não vão sozinhas ao mercado. São os seus portadores que
as levam e instituem as relações de distribuição. A
produção de mercadorias pressupõe divisão social do
trabalho no qual os indivíduos não produzem o que
consumem, não produzem valores de uso para si mesmos,
e sim valores de uso para outros, que para esse indivíduo
significa valor de troca. A divisão social do trabalho é
precondição por colocar o indivíduo na dependência das
mercadorias produzidas por outros indivíduos e vice-
versa. Alguns produzem roupas, outros alimentos. Um
operário do capital automobilístico trabalha com a
produção de carros, que muitas vezes, dependendo do seu
valor e época, não poderá comprar. Mas ele terá que
comprar roupas, alimentos e diversas outras coisas
(habitação, eletrodomésticos, etc.) e cada item desse
conjunto (os produtos de limpeza são produzidos por
diversas empresas e assim o creme dental é adquirido do
361
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

capital oligopolista X e o detergente do capital oligopolista


Y, que tem trabalhadores distintos a seu serviço).
A realização do mais-valor ocorrer nas relações de
distribuição capitalistas e isso proporciona uma aparência
de autonomia das mercadorias e ofusca a percepção da
repartição do mais-valor. A aparência de autonomia das
mercadorias já foi explicitada no capítulo que abordamos
o fetichismo da mercadoria e, por isso, não voltaremos a
essa discussão. A não percepção da repartição do mais-
valor é um elemento mais importante, pois é fundamental
para compreender a dinâmica capitalista e sua divisão de
classes.
Cada empresa capitalista extrai mais-valor na
relação de exploração instituída na unidade de produção,
através da produção de mercadorias. Para vender a
mercadoria, o capital necessita remunerar os responsáveis
pela sua comercialização. Assim, o capital produtivo
repassa, nesse processo, parte do mais-valor extorquido
para o capital comercial, bem como para o capital bancário
e para o aparato estatal (este sob a forma mais comum de
imposto). Desta forma, se torna perceptível que o conjunto
362
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

do mais-valor global extraído pelo capital produtivo é


repartido na sociedade. O conceito de mais-valor global se
torna fundamental, bem como o de repartição do mais-
valor.
A repartição do mais-valor é realizada no conjunto
da sociedade e por isso as fontes de renda das classes
sociais assalariadas improdutivas são oriundas do mais-
valor global. Quando o Estado drena parte do mais-valor
via impostos e com isso paga a sua imensa e pesada
burocracia, a fonte de renda desta é o mais-valor global. O
trabalho burocrático não gera mais-valor, apenas gera
despesas, inclusive nas empresas capitalistas, gerando o
que Marx denominou “falsos custos de produção”
(MARX, 1985). Quando um latifundiário aluga suas terras
para um capitalista, esse lhe paga com parte do mais-valor
extraído de sua força de trabalho5, ou seja, a fonte de

5
“Lucro do capital (ganho empresarial mais juros) e renda fundiária
não são (...) nada mais que componentes específicos da mais-valia,
categorias em que esta é distinguida conforme ela recaía no capital
ou na propriedade fundiária, rubricas que, no entanto, não alteram
nada em sua essência. Somados, constituem o total da mais-valia
social. O capital suga o mais-trabalho, que representa a mais-valia e
o mais-produto, diretamente dos trabalhadores. Pode, portanto, nesse
363
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

renda do latifundiário também é o mais-valor produzido


pelo proletariado6.
A partir dessa teoria da repartição do mais-valor,
fica mais fácil entender a teoria das classes sociais sob o
capitalismo. O proletariado é a classe dos trabalhadores
assalariados produtivos, ou seja, produtora de mais-valor7.

sentido ser considerado como produtor da mais-valia. A propriedade


fundiária não tem nada a ver com o real processo de produção. Seu
papel se restringe a fazer com que parte da mais-valia produzida
passe do bolso do capital para o seu próprio” (MARX, 1988e, p.
256).
6
Marx não teve condições de desenvolver essa teoria, que ficou
incompleta. No entanto, apresentou os elementos necessários para a
compreensão do mais-valor global e da repartição de mais-valor.
Um aprofundamento dessa análise levaria, fatalmente, a discutir a
questão da renda nacional, cuja fonte não é apenas o mais-valor
global, mas também o que é gerado nos modos de produção
subordinados, especialmente o modo de produção camponês.
7
A suposta ambiguidade que alguns autores atribuem a Marx na
análise e definição do proletariado é, no fundo, produto da
superficialidade da leitura que possuem de sua obra. Isso é oriundo
do desconhecimento do método dialético e da teoria do capitalismo
de Marx. Alguns, devido a isto, não conseguem enxergar mais do
que a aparência (o “empírico”) e por isso pensam que o proletariado
é o conjunto dos assalariados, os trabalhadores manuais, os
empregados de fábricas, etc. O empiricismo substitui a dialética e a
compreensão do modo de produção capitalista é substituída por sua
aparência (MEUSEL, 1978; SWEEZY, 1977). Esta concepção
equivocada é percebida e infelizmente reproduzida como se fosse
uma ambiguidade de Marx, até por marxistas autogestionários
(GUILLERM e BOURDET, 1976) permitindo a crítica de
364
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

A burguesia é a classe dos apropriadores de mais-valor,


sob a forma de lucro. Os demais trabalhadores
assalariados improdutivos (que não produzem mais-valor,
como comerciários, bancários, trabalhadores domésticos,
burocratas, etc.) compõe outras classes sociais. As “classes
improdutivas” são várias e Marx não teve tempo de
realizar uma análise pormenorizada e completa delas, fez
apenas alguns poucos apontamentos. Os latifundiários,
camponeses, artesãos, lumpemproletariado, formam outras
classes sociais, não assalariadas. Assim, podemos dizer
que, para Marx, existem as classes fundamentais
(burguesia e proletariado, envolvidos na produção e

sociólogos que defendem a existência de uma incapacidade do


marxismo em apresentar uma “definição sociológica do
proletariado”, que, por conseguinte, passa a ser compreendido como
“os produtores”, “os operários”; “todos os que vendem sua força de
trabalho”, “os assalariados”. Aqui o problema é não entender que a
sociologia nasceu e viveu sob a forma do positivismo, incluindo sua
versão empiricista. A abordagem de Marx é clara sobre o
proletariado, a classe dos trabalhadores assalariados produtores de
mais-valor que, por isso mesmo, é uma classe revolucionária, tal
como será colocado no capítulo anterior. A ambiguidade atribuída a
Marx é, no fundo, um produto da leitura superficial desse pensador, e
o leitor superficial atribui ao autor um problema que é de sua leitura.
Uma discussão mais aprofundada sobre isso pode ser visto em
VIANA, 2008b.
365
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

extração de mais-valor), as classes residuais do pré-


capitalismo (que sobrevivem durante um certo tempo mas
logo desaparecem, como a nobreza), as classes de modos
de produção subordinados (camponeses, artesãos, etc.), as
classes assalariadas improdutivas (burocracia, por
exemplo) e o lumpemproletariado, que é marginalizado na
divisão social do trabalho, compondo o exército industrial
de reserva8.
Desta forma, Marx demonstra a unidade entre
relações de produção e relações de distribuição, que
geralmente são percebidas apenas em sua aparência
fenomenal. Isso se reproduz na economia política, que,
segundo Marx, realiza a reificação das relações de
produção ao lado da naturalização das relações de
distribuição capitalistas.

8
No caso do lumpemproletariado Marx não é tão preciso quando na
abordagem de outras classes. Em certos momentos, ela aparece como
o conjunto do exército industrial de reserva e em outros aparece
como apenas os seus elementos mais empobrecidos. Sobre a teoria
das classes de Marx, em geral e no capitalismo, o
lumpemproletariado e outras questões derivadas, é possível consultar
A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx (VIANA, 2012a) e
Braga (2013).
366
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Em síntese, a teoria do modo de produção


capitalista de Marx, exposta fundamental em O Capital,
mas também desenvolvida nos Grundrisse e outras obras,
e, junto com suas outras produções, formam uma teoria do
capitalismo. Aqui é preciso distinguir entre modo de
produção capitalista e sociedade capitalista. O modo de
produção feudal constitui a sociedade feudal, que, no
entanto, possui outros modos de produção, subordinados,
como colocamos no capítulo sobre materialismo histórico,
e determinas formas sociais o formas de regularização das
relações sociais (chamadas por Marx de formas jurídicas,
políticas e ideológicas ou, metaforicamente,
“superestrutura”). Em O Capital, como ele mesmo
escreveu, o tema é tão-somente o modo de produção
capitalista. Apesar disso, ele teve que abordar elementos
externos para uma compreensão mais adequada do modo
de produção capitalista. Entre estes elementos “externos”
ele, na análise da gênese do capitalismo, abordou o Estado
(na sua forma absolutista), e em vários momentos as
ideologias (principalmente a economia política), os modos
de produção subordinados (tal como na parte em que
367
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

discute o “campesinato parcelar”, por exemplo). Inclusive


ele planejou escreve um capítulo sobre o Estado,
especificamente, apesar de não compor o modo de
produção capitalista, devido sua importância para a
compreensão do mesmo.
Por isso, aqui seria necessário apresentar sua
teoria das formas sociais capitalistas, ou da “superestrutura
capitalista”. Porém, Marx não elaborou uma teoria
completa a esse respeito. Uma parte de sua obra abordou
elementos das formas sociais, como a ideologia, o Estado,
etc. A abordagem da ideologia, no entanto, foi geral,
apontando para todas as sociedades de classes (MARX e
ENGELS, 1991). Uma análise mais específica da
ideologia no capitalismo ocorreu apenas nas discussões
sobre economia política burguesa (MARX, 1988b;
MARX, 1983b), formas falsas de socialismo (MARX e
ENGELS, 1988), liberalismo (MARX, 1988b) e mais
algumas ideologias de sua época, sem uma formulação
teórica mais geral. No caso do direito, Marx fez algumas
considerações sobre o direito burguês, seu caráter genérico
e abstrato, uma “lei igual para indivíduos desiguais”, bem
368
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

como vários outros aspectos do mesmo9. Em relação à


arte, ele também apontou algumas de suas características,
tal como sua mercantilização (MARX e ENGELS, 1986).
Assim, elementos dispersos nas obras de Marx
trazem uma introdução a uma teoria das formas sociais.
Em pelo menos um caso é necessário abordar, pois é
fundamental para compreender a acumulação de capital. É
o caso do estado burguês. O estado capitalista não escapa
das determinações apresentadas por Marx ao estado em
geral. Contudo, ele possui uma especificidade, que é a
constituição da burocracia e sua relação com o modo de
produção capitalista, assumindo a posição de “capitalista
coletivo ideal” (ENGELS, 1990). O Estado capitalista gera
uma imensa burocracia, abordada anteriormente, e
enquanto associação da burguesia para fazer valer seus
interesses de classe, tem papel fundamental na reprodução
ampliada do capital, sob várias formas, sendo que Marx
apontou algumas deles em O Capital10.

9
O direito foi mais abordado no seus escritos de juventude (2008).
10
A relação entre estado e acumulação de capital foi melhor
desenvolvida pela chamada “escola derivacionista” (MATHIAS e
369
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Em síntese, Marx apresentou uma teoria geral do


modo de produção capitalista, embora incompleta, e
esboçou uma teoria da sociedade capitalista e das formas
sociais. Aqueles que disseram ter desenvolvido suas
análises, geralmente empobreceram suas ideias, ao
simplificá-las e, na maior parte das vezes, deformá-las.
Poucos realmente contribuíram para o desenvolvimento de
sua teoria. No entanto, esses aspectos serão abordados
adiante.

SALAMA, 1983) e nós também discutimos isso (VIANA, 2015a). O


problema da escola derivacionista é deixar de lado os outros aspectos
do aparato estatal, tal como seu caráter repressivo, burocrático, etc.
Outros já focalizaram alguns destes aspectos e deixaram a questão da
acumulação de lado junto com os demais. Aqui, as análises
supostamente marxistas do Estado estão aquém de Marx.
370
AUTOEMANCIPAÇÃO
E
REVOLUÇÃO PROLETÁRIA

A emancipação dos trabalhadores é obra


dos próprios trabalhadores.
Karl Marx

A análise da obra de Marx realizada até aqui aponta


para entender o seu pensamento como expressão teórica
do movimento revolucionário do proletariado. Podemos
sintetizar o pensamento de Marx em sua análise da história
das sociedades humanas através da afirmação de que a
história da humanidade, a partir da emergência das
sociedades classistas, é a história da luta de classes. Todas
as questões que discutimos até aqui remetem ao problema
da luta de classes. Não é possível compreender a história
da humanidade, a alienação, o capitalismo, as formas de
consciência, a ideologia, a dialética, etc., sem abordar a
questão da luta de classe ou tê-la como fundamento.
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Esse princípio fundamental da teoria da história das


sociedades classistas vale para a sociedade capitalista, uma
de suas formas de manifestação. Porém, derivado desse
processo, emerge historicamente uma classe social que
pode abolir a sociedade de classes: o proletariado. Aqui
temos outro princípio fundamental do materialismo
histórico no que se refere ao capitalismo: a luta proletária
é a chave para compreender a abolição do capitalismo e,
com isso, todas as classes e formas de sociedade fundadas
no antagonismo de classes. As classes e suas lutas não são
eternas, surgiram num determinado momento, e tendem a
desaparecer no processo histórico. Esta é a grande questão
que perpassa a obra de Marx e todo seu esforço intelectual
foi compreender não somente a sua existência, mas seu
processo de encerramento, a emergência de uma sociedade
sem classes.
Uma das questões importantes nesse processo é
compreender os dois aspectos chaves da teoria de Marx da
abolição da sociedade de classes: a luta de classes e a luta
proletária. A luta de classes emerge com a própria
sociedade de classes e é o que determina sua história. A
372
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

luta proletária é o que pode por fim a esse processo. A


grande questão é: por qual motivo é o proletariado que
pode cumprir com a missão de abolir as classes sociais e
instaurar uma sociedade sem classes? Aqui há um
problema que alguns intérpretes não conseguiram
ultrapassar, que é a relação entre luta de classes e luta
proletária, o que permitiria responder à questão anterior.
Isso é mais comum para alguns militantes, especialmente
obreiristas e autonomistas. Estes pensam que para Marx, a
luta proletária gera o comunismo e por isso basta seguir o
movimento operário para que se realize esse processo de
transformação social. Neste sentido, o endeusamento do
proletariado e o reboquismo são as consequências
políticas, bem distantes da teoria de Marx. Alguns
reforçam isso através da transformação da dialética
marxista em hegeliana, substituindo a razão pelo
proletariado.
Uma outra concepção – a leninista – já reconhece a
luta de classes como fundamental para a luta proletária e
realização do comunismo. Contudo, considera que a luta
proletária é demasiada restrita, sendo no máximo
373
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

reformista se ficar nos limites da sua espontaneidade.


Devido suas condições de vida, a luta proletária não
conseguiria, por si só, ser revolucionária. Daí postula a
tese de que para haver a emancipação humana via
revolução dos trabalhadores é necessário que indivíduos
de outras classes, intelectuais burgueses e pequeno-
burgueses, o ajudem a se libertar, através da produção
científica e organização partidária. Trata-se da concepção
leninista do partido de vanguarda. Aqui a luta de classes é
reduzida a luta de partidos. Porém, esse equívoco
ideológico não é gratuito, pois o partido de vanguarda e os
partidos em geral constituem uma nova classe social, a
burocracia1. A burocracia partidária almeja tomar o poder
e por isso produz essa interpretação ideológica e
deformadora e ao fazê-lo, busca substituir o proletariado.
O ideólogo da burocracia é aquele que produz uma
suposta “consciência revolucionária do proletariado” e, ao
substituir a classe no plano do pensamento (já que é ele
que produz a consciência revolucionária da classe),

1
Discutiremos essa concepção de forma mais aprofundada adiante.
374
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

também passa a substituí-la no plano político e prático,


passa a querer ser seu dirigente. A vanguarda, no fundo, é
a direção do proletariado, tal como foi a burguesia nas
revoluções burguesas.
Essas duas concepções estão em contradição com o
pensamento de Marx, embora a primeira esteja mais
próxima dele que a segunda. No entanto, é necessário
resgatar a teoria da revolução proletária de Marx para
compreender seu pensamento de forma mais adequada e
relação da luta proletária com a luta de classes em geral.
Antes, no entanto, é necessário refutar estas duas
deformações do pensamento de Marx. Sem dúvida, na
dialética de Marx há um elemento hegeliano quando se
trata do proletariado, que é a classe revolucionária de
nossa época. Contudo, Marx não pensava apenas no
proletariado, mas na luta de classes na sociedade
capitalista. O motivo disso é que Marx não era metafísico
e pensava em termos de totalidade e concreto: não existe
apenas a classe proletária lutando, existe a burguesia, as
demais classes, e é no bojo dessas lutas que a
possibilidade da revolução social se coloca, sem poder
375
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

abstrair todo este processo2. Em síntese, em Marx não


existe uma dialética imanente do proletariado, pois sua
dialética não é mística – como era a hegeliana e como os
pseudomarxistas interpretam a de Marx – e nem ele
concebe a revolução proletária como um processo sem
lutas e que dependeria apenas de seu autodesenvolvimento
natural e espontâneo.
Isso, no entanto, não é motivo para pensar que a
outra concepção seja verdadeira. A luta de classes existe e

2
Engels expressa a posição dialética e materialista, apesar de sua
linguagem e ênfase em indivíduos, da seguinte forma: “a história se
faz ela mesma de tal maneira que o resultado final é sempre oriundo
de conflitos entre muitas vontades individuais, cada uma das quais,
por sua vez, é moldada por um conjunto de condições particulares de
existência. Existem inumeráveis forças que se entrecruzam, uma
série infinita de paralelogramas de forças que dão origem a uma
resultante: o fato histórico. Este, por sua vez, pode ser considerado
como o produto de uma força que, tomada em seu conjunto, trabalha
inconsciente e involuntariamente. Pois o desejo de cada indivíduo é
obstaculizado pelo de outro, e o que resultado disso é algo que
ninguém queria. Assim é que a história se realiza como se fosse um
processo natural e está sujeita, também, essencialmente, às mesmas
leis do movimento” (ENGELS, 1987a, p. 40-41). Sem dúvida, a
questão é mais das lutas de classes do que vontades individuais, que
são manifestações daquela, bem como outros problemas observáveis
na concepção engelsiana, mas, de qualquer forma, ela aponta para a
percepção de que não é a vontade individual nem apenas a ação
proletária que determina o processo histórico, pois este é resultado
de “múltiplas determinações”.
376
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

envolve o proletariado, mas a resolução que significa o


comunismo, o “autogoverno dos produtores”, só pode
ocorrer através da ação revolucionária dessa classe. Não é
possível a libertação proletária via ação burguesa ou de
qualquer outra classe (ou mesmo setores ou grupos da
classe querendo representar sua totalidade). E não é
possível a emancipação humana sem a abolição das
classes, que é produto da revolução proletária. Os
equívocos destas duas concepções ficarão mais claros ao
analisarmos a concepção da autoemancipação e revolução
proletária em Marx.
O proletariado está submetido ao processo de
alienação do trabalho. Tal como colocamos anteriormente,
isso provoca, ao mesmo tempo, alheamento do produto e
estranhamento em relação a ele. Porém, esse trabalho
heterogerido expressa um processo que é de dominação
sobre o processo de trabalho que garante a exploração, a
alienação é condição para o alheamento. Desta forma, o
trabalho alienado é negado, faz parte do processo de
destruição do trabalhador. Assim, a resistência é
espontânea e cotidiana, devido ao caráter alienado do
377
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

trabalho. O alheamento do produto também é motivo para


estranhamento e resistência, pois o produto não pertence
ao trabalhador. Ele produz riquezas mas fica com
migalhas.
Porém, no caso concreto do capitalismo, há outros
aspectos a serem considerados. Para Marx, o processo de
trabalho, no capitalismo, é um processo de valorização,
como já colocamos, e é marcado pela luta entre a classe
capitalista e a classe operária em torno do mais-valor.
Historicamente, a classe operária resiste cotidianamente,
graças ao caráter alienado do trabalho e luta para diminuir
a exploração e, em momento de acirramento das lutas de
classes, pela sua abolição. As lutas cotidianas dos
trabalhadores são realizadas no sentido de buscar diminuir
a exploração, mas mesmo esta luta abre caminho para uma
luta mais ampla, pois cria as formas de luta e organização
próprias dos trabalhadores.
O proletariado, então, é revolucionário por se
defrontar com o trabalho alienado, com a exploração e
com tudo que é derivado disso. Porém, ele não é
imediatamente revolucionário. Eis uma questão importante
378
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

e pouco abordada. Se ele fosse imediatamente


revolucionário, teria realizado a revolução proletária ainda
em seu berço de nascimento. Segundo Marx, “Não se trata
de saber que objetivo este ou aquele proletário, ou até o
proletariado inteiro, tem momentaneamente. Trata-se de
saber o que é o proletariado e o que ele será
historicamente obrigado a fazer de acordo com este ser”
(MARX, 1979, p. 55), em 1865, em carta a Schweitzer,
afirmou que “a classe operária é revolucionária ou não é
nada” (apud. RUBEL, 1974, p. 72).
O ser-de-classe do proletariado, portanto, é o ser
revolucionário, essa é sua “missão”. A palavra “missão”
ou “vocação” (ou outras similares) pode dar a entender
que há algo de metafísico nessa concepção. Este tipo de
interpretação do pensamento de Marx é realizado por
muitos, tantos defensores como críticos de sua suposta
concepção. Colocamos anteriormente a concepção de
obreiristas e autonomistas, mas agora vamos observar um
crítico de tal concepção que a atribui equivocadamente a
Marx:

379
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

“A teoria marxista do proletariado


não se funda em um estudo empírico dos
antagonismos de classe nem em uma
experiência militante da radicalidade
proletária. Nenhuma observação empírica
e nenhuma experiência militante podem
conduzir à descoberta da missão histórica
do proletariado, missão que é, segundo
Marx, constitutiva de seu ser de classe.
Marx insistiu muitas vezes: não é a
observação empírica dos proletários que
permite que se conheça sua missão de
classe. Ao contrário, é o conhecimento de
sua missão de classe que permite discernir
o ser dos proletários em sua verdade.
Pouco importa, por conseguinte, o grau de
consciência que os proletários têm de seu
ser; e pouco importa o que acreditam
fazer ou querer: importa apenas o que são.
Mesmo que, no momento presente, suas
condutas sejam mistificadas e os fins que
acreditam perseguir sejam contrários à
sua missão histórica, cedo ou tarde o ser
triunfará sobre as aparências, e a Razão
sobrepujará as mistificações. Dito de
outro modo, o ser do proletariado é
transcendente aos proletários; constitui
uma garantia transcendental da adoção,
pelos proletários, da linha justa de classe”
(GORZ, 1982, p. 27).
Esse tipo de interpretação, totalmente equivocada,
acerta em apenas um ponto: a ideia de que o proletariado
é revolucionário. Essa afirmação é de Marx e as citações
anteriores mostram isso. Contudo, o que Gorz e outros
380
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

afirmam sobre a fundamentação de Marx sobre isso é


completamente equivocado. Gorz falseia a realidade –
talvez não intencionalmente – ao afirmar que Marx não
realiza nenhum estudo “empírico” ou “observação
empírica” das lutas de classes ou “experiência militante”
do proletariado3. Obviamente Marx não aborda o empírico
– seja o proletariado “empírico”, tomado como algo
isolado, ahistórico, etc., mas analisa o ser-de-classe do
proletariado, o que já desenvolvemos nos capítulos
anteriores, desde a análise do trabalho alienado até a da
produção do mais-valor, ou seja, funda sua análise em
relações sociais concretas que é, nesse caso, luta de classe
entre proletariado e burguesia. Quando Marx analisa o
proletariado, sua alienação e exploração pelo capital, não é
para ver na miséria apenas a miséria e sim sua recusa, o
seu potencial e isso está na crítica que ele fez aos
economistas, que “veem na miséria somente a miséria,

3
Obviamente que Marx aborda o concreto e não o empírico, tal como
já discutimos no capítulo dedicado ao método dialético. O empírico é
o “dado” e Marx observa o proletariado como determinado e lutando
contra sua determinação – que é o capital – e que possui uma
potencialidade, o que não se vê e nem se poderia ver numa
concepção pobre referente ao “empírico”.
381
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sem observarem nela o lado revolucionário, subversivo,


que derrubará a velha sociedade” (MARX, 1989, p. 119).
Desta forma, Marx se distingue dos socialistas utópicos,
para os quais o proletariado é percebido por eles “apenas
desse ponto de vista de classe que mais sofre” (MARX e
ENGELS, 1988, p. 96).
Assim, Marx analisa o proletariado como algo
concreto, ou seja, determinado, histórico, envolvido numa
totalidade de relações sociais, entre as quais a alienação,
exploração (produção de mais-valor), etc. e em todos estes
casos, o que é elemento fundamental de sua teoria das
classes sociais (VIANA, 2012a) se manifesta relações e
luta de classes. As classes só existem em sua relação e luta
e o proletariado possui uma relação específica com a
burguesia (alienação, exploração e tudo que é derivado
disso e, por conseguinte, a resistência e a luta). É aí que
ele descobre o ser-de-classe do proletariado e não em uma
dialética mística e metafísica.
A concepção de luta de classes está presente nesse
processo e não só neste, como também, desde os primeiros
escritos de Marx, após a constituição do materialismo
382
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

histórico, há análise da luta de classes e de revoluções,


desde os trabalhadores silesianos e revoluções burguesas,
até as lutas de classes na França, culminando com a
Comuna de Paris. Logo, não é “o conhecimento de sua
missão de classe que permite discernir o ser dos
proletários em sua verdade”, pois o ser-de-classe do
proletariado não é sua missão histórica e sim sua missão
histórica é compreendida a partir do seu ser-de-classe. A
questão é que este ser-de-classe não pode ser apreendido
empiricamente, mas tão-somente como algo concreto,
envolvido num conjunto de relações sociais, submetido ao
domínio do capital, ao trabalho alienado, e que resiste e
luta contra tudo isto e possui um potencial revolucionário.
Quando Marx coloca a questão do ser-de-classe do
proletariado, sendo que o que interessa é o que é o
proletariado, está apenas, mais uma vez, expressando a
concepção materialista da história, na qual não é o
indivíduo ou sua consciência que realiza as mudanças
históricas e sim a luta de classes e a transformação
comunista da sociedade capitalista se faz através da luta
proletária.
383
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

O uso, por parte de Marx, do termo “missão”, é


entendido no sentido metafísico e não no sentido concreto
que ele fornecia ao termo. Mais uma vez, se atribui
equivocadamente a Marx um sentido metafísico a um
termo que ele usa. O pior de tudo é que ele mesmo criticou
a atribuição de um sentido metafísico ao termo missão4 ao
esclarecer o significado que atribuía ao mesmo:

O proletário (...) que deve


satisfazer suas necessidades como
qualquer homem, e que nem sequer pode
satisfazer as necessidades que compartilha
com os demais homens; o proletário, cuja
necessidade de um trabalho de quatorze
horas o rebaixa ao nível de uma besta de
carga, a quem a competição transforma
em objeto, em artigo de comércio; o
proletário que é expulso de sua posição de
simples força produtiva – a única que lhe
pertence – por forças produtivas novas,
mais poderosas que as antigas, este
proletário tenderá necessariamente como
tarefa real revolucionar suas condições de

4
Marx discutia, em parágrafos anteriores a citação que utilizamos, os
termos “vocação”, “destinação”, “tarefa”, “ideal”, atribuída ao
proletariado e afirma que poderia ser entendido sob várias formas, e
após elencar quatro possibilidades, apresenta uma crítica da
concepção metafísica de Max Stirner. Ao discutir a atribuição que a
classe burguesa e seus ideólogos podem realizar ao proletariado, cita
a palavra “missão” como um possível uso por tais ideólogos no
sentido de sua tarefa de aceitar a dominação.
384
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

existência. Sem dúvida, pode representar-


se esta tarefa como sua ‘vocação’;
também pode, se quer fazer propaganda,
interpretar essa “vocação” no sentido de
que é vocação humana do proletário fazer
isso e aquilo, ainda mais que sua situação
não lhe permite nem ao menos as
necessidades que surgem diretamente de
sua natureza humana. São Sancho5 não se
preocupa absolutamente com a realidade
subjacente nesta ideia. Pouco lhe importa
a finalidade prática desse proletário; se
aferra ao termo “vocação” e o transforma
em algo sagrado, porque considera o
proletário como o servidor do santo: uma
maneira fácil de acreditar-se superior e de
“progredir” (MARX, apud. RUBEL,
1974, p. 20).
Assim, nas poucas vezes que Marx usou o termo
“missão”, é neste sentido concreto, que remete a
necessidades radicais do ser humano e que se manifesta
sob forma específica nos indivíduos proletários, os quais
estão submetidos a um processo de desumanização, de
miséria, e por isso é a negação revolucionária da classe
oposta, burguesa e das relações de produção capitalistas. A
missão do proletariado, na abordagem de Marx, significa
não ele seguir uma ideia pré-estabelecida por Marx ou

5
Referência a Max Stirner, autor de O Único e sua Propriedade.
385
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

qualquer outro e sim o que o seu ser-de-classe,


determinado modo de vida, interesses e luta, o constrange
a fazer para se libertar.
Contudo, há um outro elemento na teoria do
proletariado de Marx que é geralmente esquecido. É o
caráter negativo do proletariado. Já abordamos a
consideração de Marx sobre os economistas que observam
na miséria apenas ela mesma e não sua negação. O
proletariado é negação do capitalismo e da alienação em
geral, da sociedade de classes específica que é a capitalista
e da existência das classes sociais em geral. Ao negar ele
afirma e ao afirmar ele nega. O proletariado ao negar o
capital (a miséria, a alienação, a exploração, a
mercantilização, etc.) afirma uma nova sociedade e ao
fazê-lo, ele novamente nega o capital. Ele nega o capital, o
domínio do trabalho morto, e em sua negação, traz em si o
germe de uma nova sociedade, que é uma negação da
totalidade da sociedade burguesa e ao realizar o processo
revolucionário, afirma a revolução proletária e,
simultaneamente, a emancipação humana. O proletariado
ao negar o capital, afirma a associação. E no
386
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

prosseguimento dessa negação, abolindo o capital e o


Estado, o faz através da associação, afirmação e negação
simultânea. No primeiro caso, temos a negação ainda sob
uma relação de dominação, no segundo caso temos uma
negação radical da totalidade e sem relações de
dominação.
Esse caráter negativo do proletariado é fundamental
para compreender a radicalidade do processo
revolucionário. Ao contrário de concepções obreiristas,
autonomistas, entre outras, não se trata de endeusar o
proletariado determinado pelo capital, o que existe e
observável empiricamente, e sim quando ele realiza o
processo de negação do capital. A passagem de um
processo para o outro será explicitado adiante. A questão é
que não se trata de criar uma “identidade proletária” e ter
“orgulho proletário”, pois, no fundo, o que ele quer, sendo
revolucionário, é se abolir. A autoemancipação proletária
é uma autoabolição. O proletariado, como colocamos no
capítulo anterior, só existe na relação com a classe
capitalista e sua luta contra esta se conclui ao abolir tal
classe, o que significa abolir sua relação com ela e, por
387
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

conseguinte, abolir a si mesmo. Os demais grupos e


classes na sociedade atual buscam se reproduzir e se
manter e não se abolir. A ideia de criar “identidades” é
contrarrevolucionária, pois são identidades de grupos
determinados pelo capital e submetidos a ele. É apenas
mais uma forma de reproduzir a divisão social do trabalho
e formas de opressão, ao invés de superá-las. Nesse
sentido, o proletariado visa à abolição da burguesia e a
própria e também a de todas as outras classes e outras
subdivisões da sociedade burguesa.
O proletariado, em sua luta contra a burguesia, passa
de classe em-si a classe para-si, segundo uma célebre
passagem de Marx. Essa passagem foi muito mal
interpretada. Sem dúvida, o uso de termos hegelianos
contribuiu com a confusão, além, é claro, da predisposição
mental de intérpretes e ideólogos. A terminologia
hegeliana permitiu muitos pensarem tal passagem de
forma idealista e outros retomarem a discussão hegeliana
sobre a consciência para entender a afirmação de Marx.
Contudo, o significado da passagem de classe em si a
classe para si no pensamento de Marx é muito mais amplo
388
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

do que a concepção idealista permite ver. Quando Hegel


usa a expressão em si e para si, trabalha a questão da
consciência (HEGEL, 1992), mas, no entanto, em outras
oportunidades, usa em termos mais amplos, usando para
explicar o ser (HEGEL, 1988), que passa de em si ou
determinado, à para si ou autodeterminado. Esse é o
significado que Marx adota para pensar a passagem do
proletariado de classe em si a classe para si, ou, para ser
mais claro, de classe determinada à classe
autodeterminada.
Essa passagem, por conseguinte, não é apenas uma
mutação na consciência e sim um processo muito mais
amplo, de constituição de uma classe auto-organizada, que
faz valer por conta própria seus interesses. A classe
determinada é aquela constituída pelas relações sociais
existentes e a classe autodeterminada é aquela que
consegue se organizar como classe e reconhecer seus
interesses. O proletariado, como classe em si, é
determinado pelo capital, e quando passa a classe para si,
realiza sua autodeterminação. No primeiro caso, ele luta
contra a burguesia, mas dentro dos limites impostos pelo
389
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

capital, ou seja, faz reivindicações que visa melhorar sua


situação no interior da sociedade capitalista (diminuição
da jornada de trabalho, aumento salarial, melhoria nas
condições de trabalho, etc.). No segundo caso, visa romper
com o capital, abolir as relações de produção capitalistas e
com o Estado capitalista, constituindo uma nova
sociedade, abolindo a si mesmo nesse processo ao abolir o
capital.
A interpretação de Marx segundo a qual a passagem
de classe em-si a classe para-si é meramente na instância
da consciência é comum. Ela tem a seu favor não apenas a
tradição hegeliana, mas também a tradição leninista que é
a forma dominante de interpretação falsa do pensamento
de Marx. Essa interpretação influencia até mesmo
antileninistas. A superação disso pode ocorrer a partir da
leitura de Hegel e do próprio Marx. Ou seja, uma leitura
rigorosa dos textos de Marx quando ele aborda essa
passagem de classe determinada para classe
autodeterminada é suficiente para entender que se trata
algo muito mais amplo do que uma mera mudança de
consciência. Em quatro obras Marx faz referências mais
390
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

diretas a esse processo: A Ideologia Alemã; Manifesto


Comunista; O Dezoito de Brumário e A Miséria da
Filosofia. Nesse sentido, é importante citar alguns trechos
para deixar claro qual é sua concepção. Marx sempre
coloca que o proletariado passa por fases distintas de
desenvolvimento:

O proletariado passa por diferentes


fases de desenvolvimento. Sua luta contra
a burguesia começa com sua própria
existência. No princípio, lutam operários
isolados, depois os operários de uma
mesma fábrica, a seguir os operários de
um mesmo ramo da indústria, numa dada
localidade, contra o burguês singular que
os explora diretamente. Dirigem seus
ataques não apenas contra as relações
burguesas de produção, mas contra os
próprios instrumentos de produção,
destroem as mercadorias estrangeiras que
lhes fazem concorrência, quebram as
máquinas, incendeiam as fábricas,
procuram reconquistar pela força a
desaparecida posição do trabalhador na
Idade Média (MARX e ENGELS, 1988,
p. 73-74).
Aqui temos o proletariado determinado pelo capital
e submetido à hegemonia burguesa:

Nessa fase, os operários


constituem uma massa disseminada por

391
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

todo país e dispersa pela concorrência. A


aglomeração de operários em grandes
massas ainda não é o resultado da sua
própria união, mas da união da burguesia,
a qual, para alcançar seus próprios
objetivos políticos, é obrigada a colocar
em movimento todo o proletariado, o que
por enquanto ainda pode fazer. Nessa
fase, portanto, os proletários não
combatem os seus inimigos, mas os
inimigos de seus inimigos, os restos da
monarquia absoluta, os proprietários de
terras, os burgueses não industriais, os
pequenos burgueses. Assim, todo o
movimento histórico está concentrado nas
mãos da burguesia; toda vitória obtida
nessas condições é uma vitória da
burguesia (MARX e ENGELS, 1988, p.
74).
Assim, nós temos o proletariado como classe
determinada e hegemonizada pela burguesia. Essa
primeira fase do desenvolvimento do proletariado é o da
época do seu nascimento até o triunfo das revoluções
burguesas e um período um pouco posterior a isso, quando
em situações de crise, lutas políticas, etc., a burguesia
manipula e hegemoniza a luta do proletariado. Contudo,
essa primeira fase é substituída pela seguinte:

Porém, com o desenvolvimento da


indústria, o proletariado não apenas se
multiplica; concentra-se em massas cada
392
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

vez maiores, sua força aumenta e ele sente


mais tudo isso. Os interesses, as
condições de existência no interior do
proletariado igualam-se cada vez mais à
medida que a maquinaria elimina todas as
distinções de trabalho e reduz, quase por
toda parte, os salários a um mesmo nível
baixo. A crescente concorrência dos
burgueses entre si e as crises comerciais
que disso resultam tornam os salários dos
operários cada vez mais instáveis; o
aperfeiçoamento constante e cada vez
mais rápido das máquinas torna as
condições de vida do operário cada vez
mais precárias; as colisões entre o
operário singular e o burguês singular
assumem cada vez mais o caráter de
colisões entre duas classes. Os operários
começam a formar coalizões contra os
burgueses; reúnem-se para defender seus
salários. Chegam até mesmo a fundar
associações permanentes para estarem
precavidos no caso de eventuais
sublevações. Aqui e ali explode em
revoltas (MARX e ENGELS, 1988, p.
74).
Marx acrescenta:

De tempos em tempos os operários


triunfam, mas é um triunfo efêmero. O
verdadeiro resultado de suas lutas não é o
êxito imediato, mas a união cada vez mais
ampla dos operários. Tal união é
facilitada pelo crescimento dos meios de
comunicação que são criados pela grande
indústria e que colocam em contato os

393
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

operários de diferentes localidades. E


basta esse contato para centralizar as
numerosas lutas sociais, todas do mesmo
caráter, numa luta nacional, numa luta de
classes. Mas toda luta de classe é uma luta
política. E a união que os habitantes das
cidades da Idade Média, com seus
caminhos vicinais, levaram séculos para
alcançar, é hoje, com as ferrovias,
realizada em poucos anos pelos
proletários modernos (MARX e
ENGELS, 1988, p. 74-75).
Essa segunda fase do desenvolvimento da luta
proletária é já numa situação histórica distinta, na qual a
burguesia já se consolidou como classe dominante e ao
invés de seu combate com outras classes, é mais a luta de
suas frações e as crises comerciais que formam o contexto
da luta proletária. Sem dúvida, alguns pequenos equívocos
podem ser identificados no texto de Marx. Eles podem ser
explicados tanto pelo momento histórico em que escrevia
e que certas situações e tendências ainda não estavam
delineadas quanto também pelo fato de que sua própria
teoria ainda não estava totalmente desenvolvida. Contudo,
a ideia geral do desenvolvimento desta segunda fase da
luta proletária corresponde ao que efetivamente ocorreu.
As lutas futuras teriam outros obstáculos, mas isso não
394
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

anula a veracidade das teses de Marx, retirando alguns


detalhes e elementos que eram da época e foram alterados.
Marx, ainda no Manifesto Comunista, acrescenta
que:

Essa organização dos proletários


em classe e, com isso, em partido político,
é incessantemente abalada pela
concorrência entre os próprios operários.
Mas renasce sempre, cada vez mais forte,
mais firme, mais poderosa. Aproveita-se
das divisões internas da burguesia para
forçá-la a reconhecer, sob a forma de lei,
certos interesses particulares dos
operários. Foi assim, por exemplo, com a
lei das dez horas de trabalho na Inglaterra
(MARX e ENGELS, 1988, p. 75).
Aqui Marx afirma que a “organização dos
proletários em classe” ou “em partido político” significa a
auto-organização da classe através da qual ela faz valer os
seus interesses e isso já mostra uma fase superior do
desenvolvimento da luta proletária. Claro que é preciso
esclarecer que “partido político”, nesse contexto, nada tem
a ver com os partidos políticos que emergem
posteriormente. Na época em que Marx escreveu isso não
existiam os partidos políticos formais que existem hoje (a

395
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

socialdemocracia e os partidos burgueses, bem como


outros, surgem décadas depois).
O proletariado “organizado como classe” ou como
“partido político” significa auto-organizado, ou seja, com
organização própria e independente, lutando por seus
próprios interesses de classe. Marx afirma que “a
burguesia mesma, portanto, fornece ao proletariado os
elementos de sua própria educação, isto é, armas contra si
mesma” (MARX e ENGELS, 1988, p. 75). Temos, por um
lado, um processo de auto-organização e, por outro,
autoeducação. Esse duplo processo é resultado da luta de
classes, na qual a luta proletária chega numa fase mais
avançada. Isso é reforçado por indivíduos da burguesia
que são lançados no proletariado, bem como pelos
indivíduos desta classe que devido ao processo de
dissolução da classe dominante são lançados no
proletariado, trazendo novos elementos de formação. Tal
como ocorreu com parte da nobreza que aderiu à
burguesia, “hoje uma parte da burguesia passa-se para o
proletariado, especialmente uma parte dos ideólogos
burgueses que conseguiram alcançar uma compreensão
396
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

teórica do movimento histórico em seu conjunto” (MARX


e ENGELS, 1988, p. 75).
Por fim, chegamos à última fase do desenvolvimento
da luta proletária:

A condição mais essencial para a


existência e a dominação da classe
burguesa é a acumulação de riqueza nas
mãos de particulares, a formação e o
aumento do capital; a condição do capital
é o trabalho assalariado. O trabalho
assalariado baseia-se exclusivamente na
concorrência dos operários entre si. O
progresso da indústria, cujo agente
involuntário e passivo é a própria
burguesia, substitui o isolamento dos
operários, resultante da concorrência, por
sua união revolucionária, resultante da
associação. Assim, o desenvolvimento da
grande indústria abala sob os pés da
burguesia a própria base sobre a qual ela
produz e se apropria dos produtos. A
burguesia produz, acima de tudo, seus
próprios coveiros. Seu declínio e a vitória
do proletariado são igualmente inevitáveis
(MARX e ENGELS, 1988, p. 78, grifos
meus).
Aqui se observa que a questão fundamental para
Marx não é a consciência revolucionária, que faz parte do
processo, mas sua ênfase recaí sobre a associação, a união
revolucionária do proletariado. Isto está em total
397
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

concordância com A Ideologia Alemã, na qual Marx já se


referia ao processo de formação de uma associação do
proletariado, bem como em A Miséria da Filosofia. No
Dezoito do Brumário, Marx se refere ao caso do
campesinato passar de classe em-si a para-si e coloca
como questão sua desorganização devido ao seu “pequeno
modo de produção” que dificultaria sua união para fazer
valer os seus interesses, ou seja, passar a ser classe
autodeterminada. Isso vale para o proletariado e as
afirmações acima do Manifesto Comunista, bem como da
A Ideologia Alemã comprovam isso. Contudo, há um texto
no qual Marx é mais claro ainda nessa discussão e por isso
faremos mais uma citação para comprovar isto:

As condições econômicas,
inicialmente, transformaram a massa do
país em trabalhadores. A dominação do
capital criou para esta massa uma situação
comum, interesses comuns. Esta massa,
pois, é já, face ao capital, uma classe, mas
ainda não o é para si mesma. Na luta, de
que assinalamos algumas fases, esta
massa se reúne, se constitui em classe
para si mesma. Os interesses que defende
se tornam interesses de classe. Mas a luta
de classes é uma luta política (MARX,
1989, p. 159).

398
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Antes desse trecho, Marx havia colocado que o


capital reunia os operários e gerava a coalizão na luta em
torno dos salários e devido à repressão e, “nesta luta –
verdadeira guerra civil –, reúnem-se e se desenvolvem
todos os elementos necessários a uma batalha futura. Uma
vez chegada a este ponto, a associação adquire um caráter
político” (MARX, 1989, p. 159). Por conseguinte, quando
Marx aborda a passagem de classe em si a classe para si,
tal como no trecho acima, a sua ênfase é na reunião e na
associação. Esta associação é a forma organizativa da
classe proletária em seu conjunto (e não de partidos ou
grupos componentes delas ou de outras classes). Sem
dúvida, tal associação ganha caráter político, ou seja, de
luta de classes, na qual os interesses de classe são
reconhecidos, o que significa consciência revolucionária,
que é um elemento e nem sequer o aspecto enfatizado por
Marx. Isto se deve ao fato de que a gênese da consciência
está na luta e na associação derivada da luta e é essa que é
o embrião de novas relações sociais e relações de
produção. Uma vez ocorrendo isso, acontece a abolição do
poder político, do Estado (vamos abordar isso de forma
399
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

mais aprofundada no capítulo seguinte, sobre a sociedade


comunista). Segundo Marx:

A classe laboriosa substituirá, no


curso do seu desenvolvimento, a antiga
sociedade civil por uma associação que
excluirá as classes e seu antagonismo, e
não haverá mais poder político
propriamente dito, já que o poder político
é o resumo oficial do antagonismo da
sociedade civil (MARX, 1989, p. 160).
Aliás, a ideia segundo a qual o proletariado não pode
se autoemancipar e deve ser libertado pelo partido (que
emerge com a criação do Partido Socialdemocrata
Alemão)6 é criticada por Marx em carta, tal como
mostraremos no capítulo sobre Marx e sua crítica ao
pseudomarxismo. Contudo, o fundamental aqui é que
Marx pensa no proletariado se tornando classe
autodeterminada, criando sua associação e depois
generalizando esta, abolindo as classes e o Estado
capitalista7. Em síntese, a emancipação dos trabalhadores,

6
Esta concepção é posteriormente sistematizada e desenvolvida pela
concepção por Karl Kautsky e Lênin. Isso será discutido adiante.
7
Em A Guerra Civil na França, Marx (1986) aborda a questão da
generalização do trabalho produtivo, ou seja, todos passam a ser
trabalhadores produtivos, o que significa a abolição das classes
400
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

segundo Marx, é obra dos próprios trabalhadores em sua


luta contra o capitalismo, tal como ele escreveu nos
estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores.
A associação política do proletariado – através das lutas,
greves, auto-organização, desenvolvimento da consciência
– seria, para Marx, produto da luta proletária em combate
com a burguesia.
Assim, a revolução proletária segundo Marx é um
processo de luta de classes. A classe dominante utiliza
todos os seus recursos e aparatos para impedir o avanço do
proletariado, sua passagem para classe autodeterminada.
Contudo, o proletariado, através de sua luta e ajudado pela
competição intercapitalista, crises comerciais, realiza o seu
processo de autoeducação e auto-organização, rompendo
com a determinação do capital e buscando sua
autoemancipação. A revolução proletária é produto desse

sociais. Obviamente que será o trabalho produtivo da sociedade


comunista e não do modo de produção capitalista, ou seja, de
produtores de mais-valor, pois este deixará de existir, ou seja, não
será mais um trabalho alienado, assalariado, explorado, controlado
por outros.
401
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

processo de autonomização (ou passagem para classe


autodeterminada) do proletariado.
Desta forma, não só fica mais claro a posição de
Marx a esse respeito como também sua distinção em
relação a concepções obreiristas e autonomistas, que caem
no reboquismo, e em relação às concepções vanguardistas,
que são concepções burocráticas que querem dirigir o
proletariado. Nesse sentido, a teoria da revolução
proletária de Marx tem um elemento adicional, que é o
papel dos comunistas ou revolucionários nesse contexto de
autoemancipação proletária. Marx não desenvolveu de
forma aprofundada essa questão, mas deixou claro o papel
dos revolucionários no Manifesto Comunista:

Qual a relação dos comunistas com


os proletários em geral?
Os comunistas não constituem um
partido particular diante dos outros
partidos operários.
Não têm interesses distintos dos
interesses do conjunto do proletariado.
Não propõem princípios
particulares, com os quais desejariam
modelar o movimento proletário.
Os comunistas distinguem-se dos
outros partidos proletários apenas em dois
pontos: de um lado, nas diversas lutas

402
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

nacionais dos proletários, destacam e


fazem prevalecer os interesses comuns,
independentes da nacionalidade, de todo o
proletariado; de outro lado, nas diferentes
fases de desenvolvimento por que passa a
luta entre proletariado e burguesia,
representam sempre os interesses do
movimento em seu conjunto.
Na prática, portanto, os comunistas
constituem a parte mais resoluta dos
partidos operários de todos os países, a
parte que impulsiona sempre mais avante;
quanto à teoria, têm sobre a restante
massa do proletariado a vantagem de uma
compreensão das condições, do
andamento e dos resultados gerais do
movimento proletário.
O objetivo imediato dos
comunistas é o mesmo que o de todos os
demais partidos proletários: constituição
do proletariado em classe, derrubada da
dominação da burguesia, conquista do
poder político pelo proletariado.
As proposições teóricas dos
comunistas não se baseiam de forma
alguma em ideias, em princípios
inventados ou descobertos por esse ou
aquele reformador do mundo.
São apenas a expressão geral das
condições efetivas de uma luta de classe
já existente, de um movimento histórico
que se desenrola sob nossos olhos.
(MARX e ENGELS, 1988, p. 79-80).

403
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Aqui Marx sintetiza o papel dos revolucionários e


sua relação com o proletariado8. A relação estabelecida
por ele não condiz nem com o vanguardismo, nem com o
reboquismo. O papel dos revolucionários não é dirigir o
proletariado, mas sim contribuir com sua luta. Eles não
devem formar partidos separados e interesses particulares,
nem propor princípios específicos, além de não ter suas
teorias em modelos ou princípios inventados por
intelectuais ou “pretensos reformadores do mundo” (como
coloca outra tradução). Contudo, o seu papel também não
é apenas assistir a luta proletária ou ficar a reboque dela.
Os revolucionários destacam e fazem prevalecer os
interesses comuns, inclusive acima da nacionalidade,

8
Sem dúvida, existem outros textos de Marx que remete para essa
questão. Contudo, os textos marcados por conjunturas políticas e
circunstâncias específicas, além de que grande parte em certo
momento da vida do autor em que determinadas posições ainda não
estavam suficientemente claras, não devem ser consideradas como
mais importante do que os documentos programáticos e marcados
por uma reflexão mais ampla e geral ao invés de casos específicos.
Obviamente que muitas vezes, um pensador não consegue colocar
em prática alguns princípios, devido pressões, contextos, etc., mas o
que é definidor do seu pensamento é sua obra teórica. Nesse sentido,
não é necessário analisar todos os textos de intervenção política
direta de Marx, marcados por todos estes elementos, sendo
suficientes seus textos teóricos.
404
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

expressando o movimento em conjunto, sendo a parte


mais resoluta e que busca impulsionar as demais e com a
vantagem teórica de compreender as condições,
andamento e resultado geral do movimento proletário. Isso
é distinto do vanguardismo e do reboquismo. Nem fica
apenas assistindo, interfere teórica e praticamente, embora
as duas coisas não sejam distintas (a teoria é uma forma de
prática política, pois fornece ferramentas intelectuais,
compreensão da realidade, e é mobilizadora e a prática é
inspirada e reforçada pela teoria e ao mesmo tempo a
enriquece).
Em síntese, os revolucionários devem se colocar na
perspectiva do proletariado como classe autodeterminada
(o que significa não cair no reboquismo e nem ficar preso
ao que a maioria da classe opta em determinado momento,
bem como não cair no vanguardismo que quer manter o
proletariado como classe determinada para dirigi-la) e é
por isso que são revolucionários (ou “comunistas”) e
reconhecem que é justamente a passagem para a
autodeterminação que permite sua libertação e
emancipação humana e é por isso que não se arvoram em
405
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

ser dirigentes do proletariado, pois não cabe a eles


substituir ou dirigir tal classe, já que se o fizesse seria a
contrarrevolução.
O objetivo dos revolucionários é composto por três
elementos, que são fundamentais para compreender o
programa comunista. O primeiro elemento é a constituição
do proletariado em classe. Obviamente que isso não
significa constituir as relações de produção capitalistas
para gerar o proletariado. Aqui a constituição em classe
significa sob a forma de classe autodeterminada (para-si),
pois ela já existe como classe determinada (em-si). Já
discutimos o que significa tal passagem e por isso não
precisamos explicar novamente. Por conseguinte, o
objetivo não é dirigir o proletariado e mantê-lo como
classe determinada, mudando apenas os seus dirigentes e
sim contribuir para que ele realize sua autoemancipação
via autodeterminação.
O segundo elemento e o terceiro elemento ocorrem
simultaneamente, sendo resultados imediatos do primeiro.
O segundo elemento é a derrubada da dominação
burguesa, ou seja, do Estado capitalista e do capital, a sua
406
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

supremacia realizada graças ao aparelho estatal e às


relações de produção capitalistas (isso será aprofundado
no capítulo seguinte). O terceiro elemento é a “conquista
do poder político” pelo proletariado. Nesse último item,
temos uma contradição de Marx, que, em A Miséria da
Filosofia, havia afirmado a abolição do “poder político
propriamente dito”. No Manifesto Comunista, Marx define
o poder político como a forma como uma classe social
exerce coerção sobre outra: “o poder político propriamente
dito é o poder organizado de uma classe para a opressão
de outra”. Nesse sentido, Marx concebe o poder político
como a função de repressão e, portanto, como funcionando
apenas no período revolucionário. E, mais ainda, é o poder
organizado da classe e não parte desta ou grupo externo a
ela. Trata-se dos “indivíduos associados”. Aqui temos a
associação operária, forma de auto-organização proletária
que é o embrião da sociedade comunista.
Isso fica claro quando se lê a passagem anterior, na
qual ele afirma que, com o curso do desenvolvimento,
quando as diferenças de classe deixar de existir e “toda a
produção concentrar-se nas mãos dos indivíduos
407
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

associados, o poder público perderá seu caráter político”


(MARX e ENGELS, 1988, p. 87). Ou seja, a associação
assumirá, num primeiro momento, um caráter político,
repressivo (realizando a repressão da classe dominante e
aliados), e, num segundo momento, deixará de fazê-lo por
não haver mais necessidade e nem resquícios da classe
burguesa. Ou seja, a ideia de “conquista do poder político
pelo proletariado” significa que a classe no seu conjunto
exerce repressão sobre a classe antagônica.
Sem dúvida, Marx propõe um conjunto de medidas
que concentram, nas mãos do Estado, a produção e
organização social, inclusive mantendo alguns elementos
que são típicos da sociedade burguesa. Contudo, o Estado,
nesse caso, não é o Estado capitalista em mãos diferentes e
sim um outro tipo de organização que expressa a
associação do proletariado (significando um poder de
repressão), ou seja, união do conjunto da classe e não
grupos ou partidos. Muito menos burocracia, que seria
abolida, o que é explicitado na ideia de abolição da
“máquina estatal burguesa”. Além disso, o próprio Marx
(MARX e ENGELS, 1988, p. 42) afirmou que estas
408
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

medidas estavam ultrapassadas, devido ao próprio


desenvolvimento histórico do capitalismo, principalmente
graças à experiência da Comuna de Paris em 1871. Desta
forma, o pensamento de Marx é mal interpretado na
primeira posição e desconsiderado na segunda, na qual ele
realiza uma reformulação a partir das experiências de luta
do proletariado e assim ganha mais concreticidade e
supera o caráter impreciso da primeira formulação.
Assim, o programa comunista, que constitui o
objetivo dos revolucionários, aponta para a defesa da
organização da totalidade do proletariado como classe
autodeterminada que abole o capital e o Estado burguês e
institui uma associação revolucionária. Isso ficará mais
claro quando Marx desenvolver suas reflexões sobre a
sociedade comunista, tal como abordaremos a seguir.

409
A SOCIEDADE COMUNISTA

Em lugar da velha sociedade burguesa,


com suas classes e seus antagonismos de
classes, surge uma associação na qual o
livre desenvolvimento de cada um é a
condição para o livre desenvolvimento de
todos.
Karl Marx

Marx é bastante conhecido por ser o teórico do


comunismo. Ele dedicou sua vida a lutar contra o
capitalismo não visando melhorias no seu interior (o que
significaria manutenção da alienação, da exploração, do
fetichismo, das classes, etc.) e sim sua abolição. A
abolição do capitalismo geraria o comunismo. No entanto,
é necessário estar atento que Marx pensa na abolição da
sociedade capitalista e fundação da sociedade comunista,
duas formas de sociedade distintas e não reformas ou
mudanças no interior da primeira. Assim, é necessário
entender a radicalidade da mudança de uma forma de
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sociedade para outra, a constituição de uma sociedade


radicalmente diferente.
Mas antes de entrar nessa questão, é necessário
esclarecer o uso da expressão “comunismo” por Marx. Na
época de Marx, aqueles que se colocam numa posição
oposicionista diante da sociedade capitalista, seja sob
forma reformista ou revolucionária, geralmente se
autodenominavam socialistas ou socialdemocratas. Ele
usou a palavra comunista para se autodenominar visando
se distinguir deles, aos quais julgava utopistas. Adiante
veremos como essa denominação vai ser substituída por
“socialdemocracia”, algo sem sentido e que se tornará
hegemônico por um período logo, só se rompendo com a
ruptura dos dissidentes que retomam a expressão
comunista, o que será discutido nos próximos capítulos.
Marx pensa em termos de transformação do
conjunto das relações sociais e não apenas da fábrica ou
do Estado. A revolução proletária, segundo Marx, institui
uma nova forma de sociedade. Marx abordou a evolução
da humanidade através de várias formas de sociedade,
como já colocamos, nas quais existe um modo de
412
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

produção dominante. As sociedades pré-classistas são


substituídas pela sociedade de classes que assumem várias
formas (escravista, feudal, capitalista, etc.). Marx
considerava que a sociedade capitalista, por desenvolver
as forças produtivas, realizar um processo de
mundialização e constituir a classe proletária (MARX e
ENGELS, 1991), abre a possibilidade de uma nova
sociedade para lhe substituir: sem classes e fundada na
igualdade, liberdade e solidariedade, promessas não
cumpridas das revoluções burguesas. A passagem de uma
forma de sociedade para outra significa uma
transformação radical e total do conjunto das relações
sociais. Não se trata, pois, de melhorar as condições de
vida dos trabalhadores, de distribuir renda, de estatizar os
meios de produção, de participação em lucros. Trata-se, no
fundo, de mudar radicalmente a sociedade, abolir as
classes sociais, inclusive o proletariado e demais
trabalhadores especializados, trata-se de abolir o salariato,
o dinheiro, as rendas, bem como as empresas capitalistas,
o Estado, etc. Em síntese, significa a abolição da

413
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

totalidade da sociedade capitalista e uma profunda e


radical reorganização social.
Contudo, não se trata apenas de abolição e
destruição. É, ao mesmo tempo, instauração, criação,
construção. É negação e ao mesmo tempo afirmação. O
radicalmente novo emerge a partir da superação da
sociedade anterior. A mudança é tão radical e profunda
que indivíduos de nossa sociedade possuem dificuldade
em pensar tal sociedade. Os termos e conceitos que
usamos para explicar a sociedade capitalista são
inaplicáveis à sociedade comunista, mas como esta ainda
não existe, então há a tendência ao uso indiscriminado e
equivocado de tais termos e conceitos. Sem dúvida, estes
termos e conceitos, assim como a nossa cultura em geral,
são burgueses e assim tendemos a usar tais expressões e
pensar em termos da sociedade capitalista. É por isso que
a maioria das concepções de socialismo e comunismo,
inclusive que se dizem “marxistas”, defendem, na verdade,
uma ou outra espécie de capitalismo reformado
(voltaremos a isso adiante).

414
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Mas como pensar, então, a constituição da sociedade


comunista e o radicalmente novo que ela expressa?
Existem duas formas fundamentais para isto. Em primeiro
lugar, é necessário perceber o momento da superação, ou
seja, a abolição daquilo que é típico do capitalismo e das
sociedades classistas em geral. Derivado disso, é possível
vislumbrar as relações sociais que expressam tal superação
por já não mais as reproduzir. Se não existe dinheiro,
salário, capital, mais-valor, etc., então é preciso
compreender que se trata de relações sociais radicalmente
distintas. Esses conceitos que expressam relações sociais
da sociedade capitalista não tem nenhum sentido numa
sociedade comunista. Da mesma forma, como as classes
sociais, Estado, exploração, dominação, alienação,
alheamento, etc., são conceitos que expressam as relações
sociais das sociedades classistas, então não servem para
expressar as relações sociais da sociedade comunista, que
é uma sociedade sem classes. Assim, é possível vislumbrar
as características da sociedade comunista, pelo que ela não
tem e supor o que ela teria (e não o que ela colocaria no
lugar, pois pensar nesses termos significa reproduzir
415
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

conceitos da sociedade capitalista sob nova forma,


mudando apenas formalmente e não o conteúdo, ou seja, o
salário não é substituído pelo “rendimento”, pois não
existe equivalente, já que a relação que o constitui foi
abolido e o mesmo vale para o Estado, etc.). Obviamente
que este vislumbrar pode ser ampliado pelo uso da
imaginação, comparação com outras sociedades
existentes, etc. Mas isso cabe àquele que fará isso
acrescentar ou não e, obviamente, sem cair no utopismo e
em exageros e propostas detalhadas sobre a sociedade do
futuro1. Esse procedimento de vislumbre racional é,
portanto, fundamentado teórica e metodologicamente, pois
pressupõe uma teoria (do capitalismo e da história da
humanidade, pois isso é condição de possibilidade para
entender a historicidade das relações sociais e a essência e
especificidade das relações de produção capitalistas e do
capitalismo como um todo) e um método (o dialético, que

1
Claro que aqui não se trata de pensar todas as possibilidades e
tendências de sociedade do futuro, mas tão-somente da sociedade
comunista, ou seja, de uma das tendências existentes e que faz parte
de nosso desejo e por isso se constitui também como um projeto e
este, inclusive, reforça sua tendência de realização.
416
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

concebe os conceitos como expressões das relações sociais


e que portanto são históricos como as relações sociais que
expressam).
A segunda forma é caracterizada por realizar, além
da reflexão crítica e histórica, a análise das experiências
concretas que esboçaram o comunismo. Esse foi o
procedimento adotado prioritariamente por Marx. Ele
pensava o comunismo não como um mero projeto ou
plano inventado por reformadores sociais e sim um
movimento real com agentes concretos – no caso, uma
classe social – com potencial e tendência para realizá-lo.
Como colocamos anteriormente, um dos princípios
fundamentais do materialismo histórico no caso da análise
do capitalismo é que a gênese do comunismo está na luta
proletária. Sendo assim, é em suas experiências históricas
que podemos observar seu modo de realização. Desta
forma, o procedimento do reconhecimento histórico
pressupõe a pesquisa das experiências revolucionárias já
ocorridas.
Marx, em suas primeiras obras, utilizou o primeiro
procedimento (apesar de teoricamente priorizar o segundo)
417
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

e, após a experiência heroica dos comunardos em 1871, a


primeira tentativa de revolução proletária, ele adotou o
segundo procedimento. Contudo, obviamente que ele não
abandonou o primeiro, que continua sendo usado de forma
complementar e tendo em vista o caráter inacabado e
limitado da experiência da Comuna de Paris, se tornou um
procedimento necessário. Mesmo hoje, após diversas
outras experiências históricas de tentativas de revoluções
proletárias, o segundo procedimento continua necessário,
pois a derrota de tais tentativas mostra que falta algo e,
além disso, as tentativas posteriores apresentaram novos
problemas que não estavam presentes na experiência
comunarda (tal como a questão da burocracia). Vamos
analisar a concepção de comunismo em Marx a partir
desse reconhecimento destes dois procedimentos.
O primeiro ponto, no pensamento de Marx sobre o
comunismo, é a afirmação de que ele não é um “ideal” a
ser realizado e sim um “movimento real” (MARX e
ENGELS, 1991). Uma de suas críticas aos socialistas
utópicos era justamente criar planos de sociedade usando a
imaginação:
418
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

No lugar da atividade social


precisam colocar sua própria atividade
pessoal inventiva; no lugar das condições
históricas da emancipação, condições
fantásticas; no lugar da organização
gradual do proletariado em classe, uma
organização da sociedade pré-fabricada
por eles mesmos. A futura história do
mundo, para eles, resolve-se na
propaganda e na realização prática de seus
planos de sociedade (MARX e ENGELS,
1988, p. 96)2.

2
Embora essa seja em muitos pontos a melhor tradução portuguesa do
Manifesto Comunista, este trecho, especificamente, não ficou muito
bom. Em outra tradução podemos ler o seguinte: “a atividade social é
substituída por sua própria imaginação pessoal; as condições
históricas da emancipação, por condições fantasiosas; a organização
gradual e espontânea do proletariado em classe, pela organização de
uma sociedade pré-fabricada por eles. A história futura do mundo se
resume, para eles, na propaganda e na prática de sés planos de
organização social” (MARX e ENGELS, 1990, p. 105). A vantagem
aqui nesta tradução é que ao invés de seguir à risca o aspecto formal
se buscou captar o conteúdo e o termo “imaginação pessoal” deixa
mais claro o que Marx quis dizer e no original constava “ação
inventiva pessoal” e o fundamental aqui é a ideia de “invenção”,
mais adequada e precisa que “imaginação”. O uso da palavra
“espontâneo” também é de se destacar, pois Marx queria dizer da
própria classe, independente, e que está presente no original e que
simplesmente desaparece na tradução anterior. A primeira tradução é
realizada por Álvaro Pina, que inspira a tradução brasileira (de
Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder, intelectuais brasileiros
bastante conhecidos em seus vínculos políticos), sendo militante do
Partido Comunista Português e possuindo, portanto, determinada
mentalidade e concepções que determinam suas preferências no
processo de tradução.
419
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Esse movimento real que é o comunismo possui,


portanto, condições históricas para sua possibilidade e
concretização. As condições históricas do comunismo são
a existência de um mundo de riquezas (desenvolvimento
das forças produtivas), uma massa de seres humanos
privados de propriedade (uma classe revolucionária graças
às suas condições de vida) e um mercado mundial (MARX
e ENGELS, 1991). Nessa obra, Marx ainda não havia
aprofundado a sua discussão sobre o capitalismo, mas o
que ele explicita como condições históricas do comunismo
são justamente estes elementos, sendo que o principal é a
existência de uma classe revolucionária, o proletariado.
Uma vez realizado o processo de revolução social,
através da autoemancipação proletária, tal como
colocamos no capítulo anterior, ocorre o processo de
formação do comunismo. Aqui é preciso explicitar uma
interpretação totalmente falsa do pensamento de Marx que
consiste em lhe atribuir a tese leninista de um “período de
transição” do capitalismo ao comunismo chamado
“socialismo”. No pensamento de Marx, socialismo e
comunismo são sinônimos e ele nunca concebeu um
420
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

regime intermediário entre a sociedade capitalista e a


sociedade pós-capitalista.
Num primeiro momento, Marx analisou o processo
de constituição do comunismo usando o procedimento do
vislumbre racional, pois não havia possibilidade de outro
procedimento enquanto não ocorresse o processo de
desencadeamento de uma revolução proletária. É esta a
posição presente no Manifesto Comunista e em alguns
outros textos de Marx e Engels. E é por isso que as
observações que Marx faz nesta obra são mais gerais e
menos precisas em comparação das que fará
posteriormente. Segundo Marx, as revoluções do passado
foram feito por minorias em proveito de minorias e a
revolução proletária é uma revolução da maioria em
proveito da maioria. Esse processo de realização da
revolução significa que, após a constituição do
proletariado como classe autodeterminada, ela efetiva uma
luta contra o aparato estatal burguês e contra o capital e,
sendo vitoriosa, instaura a “ditadura do proletariado”. Essa
palavra deu margem para muitas confusões. Sem dúvida,
muitos fazem leitura de um autor não buscando o
421
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

significado que ele fornece às palavras que usa e sim


atribuindo o significado mais comum ou idiossincrático ao
autor. Por isso é interessante entender o que significa tal
termo para Marx. Segundo ele, ao discutir sua
contribuição sobre a questão das classes e luta de classes:

“[...] Muito antes de mim,


alguns historiadores burgueses tinham
exposto o desenvolvimento histórico desta
luta de classes e alguns economistas
burgueses a anatomia econômica das
classes. O que eu fiz de novo foi
demonstrar: 1) que a existência das
classes está ligada apenas a determinadas
fases históricas do desenvolvimento da
produção; 2) que a luta de classes conduz
necessariamente à ditadura do
proletariado; 3) que esta mesma ditadura
constitui tão-somente a transição para a
abolição de todas as classes e para uma
sociedade sem classes” (MARX, 1987a,
p. 29).
A expressão ditadura pode dar a entender que se
trata de um regime político ditatorial, tal como
conhecemos hoje. Obviamente, isso entraria em
contradição com diversas outras afirmações de Marx e por
isso não se deve pensar em “ditadura” no sentido comum
da palavra. Para Marx, ditadura quer dizer, como ele

422
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

coloca no Manifesto Comunista, tão-somente o uso do


poder político, compreendendo por este o uso da coerção
sobre outra classe social. No caso, é o uso da coerção por
parte do proletariado contra a burguesia e suas classes
auxiliares. E como o próprio Marx colocou, trata-se da
maioria da população exercendo coerção sobre uma
minoria e, por conseguinte, é um processo “democrático”.
Aliás, ele mesmo coloca, no Manifesto Comunista, “o
primeiro passo na revolução operária é a elevação do
proletariado a classe dominante, a conquista da
democracia” (MARX e ENGELS, 1988vozes, p. 86).
Sem dúvida, estas afirmações de Marx entram em
contradição com outras afirmações dele na mesma época:

“Isso significa que, após a


ruína da velha sociedade, haverá uma
nova dominação de classe, resumindo-se
em um novo poder político? Não. A
condição da libertação da classe laboriosa
é a abolição de toda classe, assim como a
condição da libertação do terceiro estado,
da ordem burguesa, foi a abolição de
todos os estados e de todas as ordens. A
classe laboriosa substituirá, no curso de
seu desenvolvimento, a antiga sociedade
civil por uma associação que excluirá as
classes e seu antagonismo, e não haverá

423
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

mais poder político propriamente dito, já


que o poder político é o resumo oficial do
antagonismo na sociedade civil” (MARX,
1989, p. 160).
Essa citação acima é do livro A Miséria da Filosofia,
publicada em 1847, ou seja, um ano antes do Manifesto
Comunista. Aqui ele defende claramente a abolição do
Estado, sua reabsorção pela sociedade civil. Essa
ambiguidade pode ser compreendida quando se pensa em
termos de que num caso Marx está pensando no processo
revolucionário e, noutro caso, após o término da revolução
proletária. Ou seja, no Manifesto Comunista, a
preocupação é com os três elementos colocados no
capítulo anterior, isto é, constituição do proletariado em
classe, a derrubada do poder estatal burguês e conquista do
poder político.
Marx pensa que o proletariado, para se constituir
como classe autodeterminada, precisa constituir sua forma
própria de associação. Trata-se da “associação operária”,
passo para a revolução e constituição da “livre associação
dos produtores”, ou seja, de todos os indivíduos
livremente associados na sociedade sem classes, no

424
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

comunismo. A associação operária começa a emergir,


como esboço e embrião, dentro do capitalismo e ao se
constituir busca destruir o poder estatal e se tornar poder
político. Ao atingir tal objetivo e destruir a máquina estatal
e se tornar poder político realiza a revolução proletária
que, uma vez realizada, instaura o comunismo. É
interessante notar que a “transição” de que Marx fala para
se referir esse processo nada tem a ver com um suposto
“período de transição” longo e que seria o “socialismo”. A
única transição que Marx se refere é o processo
revolucionário, que tem elementos antes da destruição do
poder estatal burguês e da tomada do poder político, que é
a formação da associação operária, cujo elemento de
concretização ocorre ao se fortalecer e conseguir realizar
isso e, por conseguinte, exercer a coerção sobre a classe
dominante por um período de tempo relativamente curto,
marcado pela abolição das relações de produção
capitalistas em sua totalidade e constituição de novas
relações sociais e sua universalização.
Desta forma, no Manifesto Comunista, Marx
priorizou esse momento imediato da revolução proletária,
425
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

enquanto que em A Miséria da Filosofia, já estava


pensando o momento pós revolucionário, a instauração do
comunismo. É por isso que nesse momento não há poder
político “propriamente dito”, nem do proletariado, pois
este terá deixado de existir.
Um outro elemento é a questão do Estado. Marx
propõe a abolição do Estado. Esta afirmação está presente
em diversas obras, desde O Dezoito Brumário, A Miséria
da Filosofia, Manifesto Comunista, etc. No Dezoito
Brumário Marx afirma: “em sua luta contra a revolução, a
república parlamentar viu-se forçada a consolidar,
juntamente com as medidas repressivas, os recursos e
centralização do poder governamental. Toda as revoluções
aperfeiçoaram essa máquina ao invés de destroçá-lo”
(MARX, 1986-dezoito, p. 114). O que pode parecer
contradição é apenas a diferenciação que Marx realiza
entre “máquina estatal” (Estado, ou seja, organização
burocrática que se passa por “órgão público”) e “poder
político” (poder organizado de uma classe para oprimir
outra classe). Em relação ao primeiro, Marx sempre
defendeu sua abolição imediata. É isso que está presente
426
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

no O Dezoito Brumário, em A Miséria da Filosofia, e


também no Manifesto Comunista.
É por isso que temos que retomar tal obra para
explicitar sua posição, já que em tal obra ele é considerado
estatista. Ele coloca nesta obra a derrubada do poder
estatal burguês, ou seja, de sua máquina estatal, sua
burocracia, elemento da divisão social do trabalho. Ao
mesmo tempo, ele defende a conquista do poder político.
Já explicamos que, nesse caso, trata-se de poder de
coerção de uma classe sobre outro e não um aparato
burocrático estatal. Contudo, existem outras afirmações
nessa obra que promovem confusão sobre sua concepção.
Vejamos estas afirmações para promover sua explicação:

“O proletariado utilizará seu


domínio político para arrancar pouco a
pouco todo o capital à burguesia, para
centralizar todos os instrumentos de
produção nas mãos do Estado, ou seja, do
proletariado organizado como classe
dominante, e para aumentar o mais
rapidamente possível a massa das forças
produtivas” (MARX e ENGELS, 1988, p.
86, grifos meus).
Aqui temos uma definição de Estado que não é o da
máquina estatal burguesa (e a ideia de máquina estatal
427
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

remete, no pensamento de Marx, à burocracia) e sim de


“proletariado organizado como classe dominante”, ou seja,
quando possui “domínio político”, ou “poder político”. O
Estado, nesse caso, não é um aparato burocrático e sim
uma classe inteira organizada como classe dominante.
Marx afirma também que essa intervenção despótica sobre
o direito de propriedade e relações burguesas de produção
aparenta ser medida insuficiente e insustentável, mas que é
inevitável para “revolucionar todo o modo de produção”.
Ele coloca que nos países mais avançados tais medidas
seriam:

“1. Expropriação da
propriedade fundiária e emprego da renda
da terra nas despesas do Estado.
2. Imposto fortemente
progressivo.
3. Abolição do direito de
herança.
4. Confisco da propriedade de
todos os emigrados e rebeldes.
5. Centralização do crédito nas
mãos do Estado, por meio de um banco
nacional com capital do Estado e
monopólio exclusivo.
6. Centralização dos meios de
transporte nas mãos do Estado.
7. Multiplicação das fábricas
nacionais e dos instrumentos de produção;
428
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

cultivo e melhoramento das terras


segundo um plano comum.
8. Trabalho obrigatório igual
para todos; constituição de exércitos
industriais, principalmente para a
agricultura.
9. Unificação dos serviços
agrícolas e industrial; medidas tendentes a
eliminar gradualmente as diferenças entre
cidade e campo.
10. Educação pública e gratuita
de todas as crianças. Eliminação do
trabalho das crianças nas fábricas em sua
forma atual. Combinação da educação
com a produção material, etc.” (MARX e
ENGELS, 1988, p. 87).
Aqui temos diversos problemas a serem resolvidos.
O primeiro é o uso da palavra Estado e a aparente noção
de que se trata de um aparato burocrático. O segundo
problema é o papel desse Estado. Há também o problema
das medidas e seu caráter que ainda remete para relações
sociais da sociedade burguesa. Sem dúvida, “renda da
terra”, “imposto”3, “crédito”, “banco nacional”, “capital”

3
O próprio Marx, em sua Crítica ao Programa de Gotha, critica a
ideia de imposto progressivo: “O imposto sobre o rendimento
pressupõe fontes de rendimento diferentes de classes sociais
diferentes, pressupõe portanto a sociedade capitalista” (MARX,
1971, p. 31). Essa afirmação demonstra não somente a mudança no
pensamento de Marx como seu cuidado em distinguir capitalismo e
429
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

são conceitos que expressam relações sociais da sociedade


burguesa.
Pois bem, sobre a palavra estado, a questão é que
Marx a usa em dois sentidos (o que provoca confusões e é
uma imprecisão conceitual que, apesar do seu rigor
intelectual, ele caiu em diversas oportunidades). O
primeiro sentido é o de Estado como forma de associação
de uma classe dominante para exercer sua dominação,
uma excrescência parasitária da sociedade civil, que, no
capitalismo, assume proporções gigantescas, se tornando
uma máquina estatal, burocrática. O segundo sentido,
usado raras vezes, é o de “poder político”, ou seja, forma
de associação de uma classe para oprimir outra. No
Manifesto Comunista, ele usa nos dois sentidos e o último
ele reserva ao proletariado. Em várias passagens, como já
mostramos, ele se refere, nesse último caso, a poder
político e, em alguns casos, usa a expressão “Estado”. A
grande questão é se este “estado” é um aparato burocrático
ou não. Ao colocar termos como centralização, etc., dá a

comunismo e uso de conceitos de um em outro, o que, na realidade


prática, significaria a manutenção da sociedade capitalista.
430
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

entender que sim. Contudo, em diversas passagens do


Manifesto Marx coloca o proletariado organizado em
classe dominante, ou seja, não grupos ou partidos. O
parágrafo seguinte de Marx esclarece essa questão e já nos
ajuda a entender o segundo elemento problemático das
medidas propostas no Manifesto:

“Quando as diferenças de
classe desaparecerem no curso do
desenvolvimento e toda a produção
concentrar-se nas mãos dos indivíduos
associados, o poder público perderá seu
caráter político. O poder político
propriamente dito é só o poder organizado
de uma classe para a opressão de outra. Se
na luta contra a burguesia o proletariado é
forçado a organizar-se como classe, se
mediante uma revolução torna-se a classe
dominante e como classe dominante
suprime violentamente as antigas relações
de produção, então suprime também,
juntamente com essas relações de
produção, as condições de existência dos
antagonismos de classe, as classes em
geral e, com isso, sobre/sua própria
dominação de classe” (MARX e
ENGELS, 1988, p. 87).
Em nenhum momento Marx afirmou que seria um
partido ou grupo que tomaria o poder estatal, pois ele
sempre pensa em termos de classe (luta de classes,

431
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

autoemancipação proletária). O Estado, propriamente dito,


é um produto da divisão social do trabalho, como o
próprio Marx colocou, a burocracia é manifestação dela e
da especialização. Pressupõe tal separação entre sociedade
civil e estado. Marx pensa que a sociedade civil gera o
estado como excrescência parasitária e com o proletariado,
parte da sociedade civil, se organiza e destrói o aparato
burocrático e exerce suas funções. Isso remete ao processo
de estatização, mas não de um aparato estatal burocrático,
mas do proletariado como classe e, portanto, sua
centralização é nas mãos desta classe. Isso, sem dúvida, é
um tanto quanto abstrato e indefinido. O papel desse
“Estado” (do proletariado organizado em classe
dominante) é expropriar os expropriadores, abolir as
relações de produção capitalistas. Temos, assim, a
conclusão de que esse suposto “estado” apresentado no
Manifesto não é um aparato burocrático centralizado e seu
papel é tão-somente realizar a repressão da antiga classe
dominante e destruição das relações de produção
capitalistas.

432
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Resta um último problema no trecho citado que é o


uso de conceitos que expressam relações sociais
burguesas. Isso, em parte, remete a limites do
procedimento de vislumbre racional utilizado por Marx,
que, muitas vezes, não consegue superar conceitos e
questões que são da atual sociedade e não da sociedade
futura. Em parte, é derivado de que tais medidas ainda não
se configuram como sendo para a sociedade comunista e
sim para a revolução proletária. Ou seja, como coloca no
trecho subsequente citado, na luta o proletariado se
organiza como classe (cria a associação operária), e esta,
ao conseguir via revolução derrubar a classe dominante e
suprimir as relações de produção capitalistas, acaba
criando o processo de sua própria abolição. Contudo, é
preciso entender que são momentos distintos. O primeiro
momento é o proletariado se organizar como classe, a
auto-organização do proletariado, a associação operária
que significa sua passagem à classe autodeterminada. O
seu objetivo é destruir o aparato estatal burguês e as
relações de produção capitalistas. A realização deste
objetivo, no entanto, pode ser abortada, o que significa que
433
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

deverá, após a derrota, se reorganizar e tentar novamente4.


O segundo momento é no qual realiza a revolução
proletária, na qual destrói o aparato estatal burguês e como
“classe dominante” exerce a ditadura do proletariado, ou
seja, abole violentamente as relações de produção
capitalistas. O terceiro momento, e último, desse processo,
é, após ter destruído as relações de produção capitalistas,
abole-se a si mesmo e nasce a sociedade comunista.

4
“As revoluções burguesas, como as do século dezoito, avançam
rapidamente de sucesso em sucesso; seus efeitos dramáticos
excedem uns aos outros; os homens e as coisas se destacam como
gemas fulgurantes; o êxtase é o estado permanente da sociedade; mas
estas revoluções têm vida curta; logo atingem o auge, e uma longa
modorra se apodera da sociedade antes que esta tenha aprendido a
assimilar serenamente os resultados de seu período de lutas e
embates. Por outro lado, as revoluções proletárias, como as do século
dezenove, se criticam constantemente a si próprias, interrompem
continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para
recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as
deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços,
parecem derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar
da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante
delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus
próprios objetivos até que se cria uma situação que toma impossível
qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam: Hic
Rhodus, hic salta! [Aqui está Rodes, salta aqui!] (MARX, 1987a, p.
21).
434
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Destes três momentos, o primeiro é anterior à


revolução e o segundo é posterior. O primeiro ainda é na
sociedade capitalista, enquanto que o terceiro é na
sociedade comunista. Entre um e outro, há o período
revolucionário, que é quando se realiza a passagem de
uma forma de sociedade para outra, na qual, já emergindo
com o fortalecimento do proletariado auto-organizado no
capitalismo, torna-se a principal força política e destrói o
Estado burguês e ao mesmo tempo vai destruindo as
relações de produção capitalistas e ao terminar esse
processo finaliza a revolução. A questão é a duração desse
processo que nada tem a ver com o fantasioso
“socialismo” como “período de transição” inventado por
Lênin e outros. Pois mesmo que dure um tempo longo, não
significa a constituição de uma forma de sociedade
intermediária e sim apenas um processo revolucionário,
cuja duração concreta pode ser de alguns meses, mas
jamais de anos, pois isso significaria que as ações de
destruição das relações de produção não estão ocorrendo
efetivamente.

435
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Ao encerrar esse processo, ou seja, com o término da


revolução proletária, “em lugar da velha sociedade
burguesa, com suas classes e seus antagonismos de
classes, surge uma associação na qual o livre
desenvolvimento de cada um é a condição para o livre
desenvolvimento de todos” (MARX e ENGELS, 1988, p.
87). Logo, temos um processo que é a autonomização do
proletariado, sua constituição como classe
autodeterminada, auto-organizada, dentro da sociedade
capitalista e isso ocorrendo, obviamente, as lutas operárias
estarão num nível de radicalidade muito grande e está a
um passo da revolução proletária. Caso avance e tente a
abolição do poder estatal burguês e das relações de
produção capitalistas, pode conseguir ou não. Se não
conseguir, não houve revolução. Se conseguir, há uma
revolução proletária e essa pode se estender por algum
tempo até a derrocada total das relações de produção
capitalistas. Contudo, esse processo pode se iniciar e não
terminar, pois a contrarrevolução pode retomar a situação

436
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

anterior5. Caso consiga ser vitoriosa, instaura-se a


sociedade comunista.
Contudo, essa não foi a palavra final de Marx sobre
o assunto. Ele retornou ao tema da sociedade comunista
em diversas outras oportunidades. Dois textos se destacam
pela profundidade nesta discussão, que é o texto sobre a
Comuna de Paris, presente no seu livro A Guerra Civil na
França e no texto Crítica ao Programa de Gotha. A partir
da experiência da Comuna de Paris, Marx revê diversas
questões apresentadas no Manifesto. O procedimento do
vislumbre racional passa a ser enriquecido com o
procedimento do reconhecimento histórico, pois a
experiência comunarda lhe permitiu perceber uma
primeira forma de manifestação da revolução proletária.
Desta forma, a experiência da Comuna de Paris em
1871 teve um grande impacto na teoria da revolução de
Marx (e não do comunismo, pois este continua da mesma

5
Esse foi o caso da Comuna de Paris e de todas as outras revoluções
proletárias, ou seja, de todos os momentos apontados por Marx,
apenas o último não se concretizou, ou seja, a destruição total das
relações de produção capitalistas e do Estado e, por conseguinte, a
instauração do comunismo, o que foi apenas esboçado e já está
contido no momento anterior parcialmente.
437
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

forma no seu pensamento, tal como colocaremos adiante).


Segundo Marx:

A Comuna de Paris havia


obviamente de servir de modelo a todos
os grandes centros industriais da França.
Uma vez estabelecido o regime comunal
em Paris e nos centros secundários, o
antigo governo centralizado teria de dar
lugar, inclusive nas províncias, ao
autogoverno dos produtores (MARX,
2011, p. 13).
Para Marx, esta experiência heroica dos operários
parisienses que destruiu o Estado realizou o que ele
denominou “autogoverno dos produtores”, mostrou a
chave da revolução proletária, a forma finalmente
descoberta da autoemancipação proletária (MARX, 2011).
A destruição do poder estatal foi um passo que apontou
para a abolição das relações de produção capitalistas, que,
devido ao processo contrarrevolucionário, acabou sendo
apenas esboçado:

“A Comuna não foi uma revolução


contra uma forma qualquer de poder
estatal, legitimista, constitucional,
republicano ou imperial. Foi uma
revolução contra o Estado como tal,
contra este produto monstruoso da
sociedade; foi a ressurreição da autêntica
438
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

vida social do povo, levada a cabo pelo


povo. Não teve como finalidade transferir
de uma fração da classe dominante a outra
o poder estatal, mas destruir esta abjeta
maquinaria da dominação de classe. Não
foi um desses combates mesquinhos pela
dominação de classe entre sua forma de
poder executiva e suas formas
parlamentares, mas uma rebelião contra
ambas, que se complementam, já que a
forma parlamentar não é mais que um
acessório mistificador do poder
executivo” (MARX, apud. RUBEL, p.
135).
A Comuna de Paris foi uma revolução proletária
inacabada e por isso foi uma experiência que teve limites,
mas não só demonstrou como ocorre a autoemancipação
proletária como esboçou a instauração de uma sociedade
comunista. O aspecto principal da Comuna de Paris que
esboçou a instauração do comunismo foi justamente a
abolição do poder estatal. Uma nova forma de auto-
organização da população através da autogestão, decisão
coletiva, escolha de delegados removíveis, substituíveis,
elegíveis e responsáveis. O delegado da Comuna, ao
contrário de um político profissional em nossa sociedade,
é escolhido pela população e pode ser a qualquer momento
removido e substituído, sendo que deve ser responsável,
439
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

isto é, seguir a decisão coletiva e expressar a mesma, não


podendo defender interesses próprios e possuir autonomia.
Devido seu caráter de revolução inacabada, alguns
elementos das relações de produção capitalistas são
mantidos e por isso – apesar da ocupação e autogestão de
algumas fábricas – tratou-se de um esboço de formação de
uma sociedade comunista, no qual um elemento foi mais
desenvolvido, no processo decisório geral da cidade, e
outros elementos apenas se iniciaram.
Nesse contexto, os delegados não poderiam se
autonomizar e gerar interesses próprios e por isso a
decisão segundo a qual não poderiam ter salários
superiores a de um operário é uma medida correta, embora
insuficiente e temporária. Isso se deve ao fato de que
receber salário significa reproduzir relações sociais da
sociedade capitalista, e se há uma medida de comparação
com operários, então ainda existe tal classe, que é produto
do capitalismo. A explicação dessa medida se deve a este
caráter inacabado, uma experiência de apenas dois meses,
num contexto de pressão externa e guerra civil. A Comuna

440
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

e o derramamento de sangue que lhe sucedeu apenas


revelam a contrarrevolução e sua forma nua e crua.
A experiência da Comuna de Paris contribuiu para
Marx reavaliar algumas de suas concepções. Assim, o
procedimento do vislumbre racional sobre a sociedade
comunista pôde ser reforçado pelo procedimento do
reconhecimento histórico. A partir disto ele pôde reavaliar
e precisar mais algumas questões. O ponto fundamental
desse processo foi a maior precisão sobre a questão do
Estado e da necessidade de sua abolição. Após a
experiência comunarda, a ênfase na abolição do Estado
passa a ser o elemento principal e a superação das
ambiguidades que poderiam ser encontradas no Manifesto
Comunista é realizada6. E Marx explicitou isso no
Prefácio da edição alemã de 1872:

“Apesar de terem as condições


mudado muito nos últimos vinte e cinco
anos, os princípios gerais expostos nesse
Manifesto conservam ainda hoje, em seu
conjunto, toda a exatidão. Apenas alguns

6
Para uma análise da posição de Marx em relação à Comuna de Paris,
sugiro a leitura de meu texto Marx e a Essência Autogestionária da
Comuna de Paris (VIANA, 2011).
441
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

pontos deveriam ser aqui e ali retocados.


O próprio Manifesto explica que a
aplicação prática desses princípios
dependerá, sempre e em todos os lugares,
das circunstâncias históricas existentes;
por isso, não se deve atribuir nenhuma
importância particular às medidas
revolucionárias propostas no final do
capítulo II. Atualmente, essa passagem
seria redigida de maneira diferente em
mais de um aspecto. Tendo em vista o
imenso desenvolvimento da grande
indústria nesse últimos vinte e cinco anos
e, como ele, o progressivo
desenvolvimento da organização da classe
operária em partido; tendo em vista as
experiências práticas, primeiro da
revolução de fevereiro e depois,
sobretudo, da Comuna de Paris, que pela
primeira vez permitiu ao proletariado,
durante dois meses, a posse do poder
político, esse programa está agora
envelhecido em alguns pontos. A
Comuna, especialmente, demonstrou que
‘a classe operária não pode simplesmente
se apoderar da máquina estatal já pronta e
colocá-la em movimento para seus
próprios fins’ (ver A Guerra Civil na
França. Manifesto do Conselho Geral da
Associação Internacional dos
Trabalhadores, de 1871, onde essa ideia
está mais extensamente desenvolvida)”
(MARX e ENGELS, 1988, p. 42).
Nesse sentido, o desenvolvimento histórico do
capitalismo e as experiências revolucionárias fornecem um

442
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

novo elemento para abordagem de Marx sobre o


comunismo. O procedimento do reconhecimento histórico
pode ser mais efetivamente usado após a experiência
comunarda. Contudo, é preciso reflexão crítica sobre as
experiências e não apenas tomá-las como modelos a serem
seguidos. Marx colocou alguns limites da Comuna de
Paris e sua análise crítica da socialdemocracia alemã
nascente em seu programa político exposto no congresso
realizado na cidade de Gotha. O texto que passou a ser
conhecido como Crítica ao Programa de Gotha coloca
novos pontos na concepção de Marx sobre comunismo.
Ao criticar o Programa de Gotha, Marx aponta para
uma análise de alguns aspectos da sociedade comunista. É
neste texto que distingue duas fases da sociedade
comunista. Para ele, a sociedade comunista nasceria da
sociedade capitalista e que, por isso, em sua primeira fase,
ainda traria alguns resquícios dela. Assim a primeira fase
da sociedade comunista é a fase do período
revolucionário, marcada pela ditadura do proletariado; a
segunda, é a fase do comunismo consolidado. Marx fez
poucas indicações sobre esta sociedade comunista da
443
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

primeira fase, mas seus principais elementos são a


retribuição do trabalhador através do sistema de bônus, o
domínio da classe proletária auto-organizada exercendo
repressão sobre os resquícios das velhas classes sociais do
capitalismo (a ditadura do proletariado), o fim da
propriedade privada, o autogoverno dos produtores, entre
algumas outras características.
O processo de retribuição do trabalhador de acordo
com o seu trabalho é realizado através do sistema de
bônus. Segundo Marx:

“Do que aqui se trata é de uma


sociedade comunista não como se
desenvolveu sobre as bases que lhe são
próprias, mas, pelo contrário, tal como
acaba de sair da sociedade capitalista;
uma sociedade que, por consequência, em
todos os aspectos, econômico, moral,
intelectual, apresenta ainda os estigmas da
antiga sociedade que a engendrou. O
produtor recebe pois individualmente –
uma vez feita as deduções – o equivalente
exato do que deu à sociedade. O que ele
lhe deu foi a sua quota-parte individual de
trabalho. Por exemplo, o dia social de
trabalho representa a soma das horas de
trabalho individual; o tempo de trabalho
individual de cada produtor é a porção do
dia social de trabalho que forneceu, a
parte que nele tomou. Ele recebe da
444
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

sociedade um vale certificando que


forneceu tanto trabalho (dedução feita do
trabalho efetuado para os fundos
coletivos) e, com esse vale, retira dos
armazéns sociais uma quantidade de
objetos de consumo equivalente ao custo
de uma quantidade igual do seu trabalho.
A mesma quota-parte de trabalho que deu
à sociedade sob uma forma, recebe-a de
volta sob outra forma” (MARX, 1971, p.
19)7.
As deduções que Marx se refere são em relação ao
fundo de reserva para sustento dos incapacitados ao
trabalho, bem como gastos com substituição dos meios de
produção usados, parte suplementar para aumentar a
produção, encargos com administração (que tende a
diminuir com o desenvolvimento do comunismo) e gastos
com outras necessidades sociais.
O sistema de bônus é o meio para superação do
salariato e do dinheiro. A necessidade de superação do
salariato e do dinheiro advém do fato que sua existência
permitia um retorno ao capitalismo, pois o dinheiro é um

7
Outras traduções colocam “bônus”, que é mais correta do que “vale”
(outros colocam “certificado”, que é a pior opção). Contudo,
infelizmente o livro com a tradução mais adequada estava
emprestado quando escrevemos esta parte. Mas como não existem
outros grandes problemas, então apenas este aviso resolve a questão.
445
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

meio de troca universal e pode ser usado para comprar


meios de produção. O salariato reforça a existência do
dinheiro e pressupõe determinadas relações sociais que o
comunismo, mesmo em sua primeira fase8, supera, que é a
existência de detentores do capital que realizam o
assalariamento. O sistema de bônus, proposto por Marx,
não só permite a abolição do salariato e do dinheiro, como
também torna-se mecanismo de abolição das classes e das
distinções de classe, realizando a generalização do
trabalho produtivo9. Aqui temos o procedimento do
vislumbre racional, que, mesmo após a Comuna de Paris,
vai além da experiência concreta, mesmo porque essa se
realizou num contexto desfavorável e foi uma revolução
proletária inacabada.

8
O sistema de bônus foi utilizado, por exemplo, na Espanha durante a
guerra civil espanhola e a experiência autogestionária realizada lá e
em outros momentos históricos. No caso espanhol e, ao que tudo
indica, aqueles que efetivaram o uso do sistema de bônus não tinham
conhecimento da obra de Marx e isso apenas mostra que o
procedimento do vislumbre racional é um instrumento útil e
necessário para se pensar a sociedade comunista desde que
possuindo um embasamento teórico-metodológico.
9
No texto sobre a Comuna de Paris Marx coloca a necessidade de
generalização do trabalho produtivo, que deixa de ser um atributo de
classe e passa a ser atributo de todos (MARX, 2011).
446
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Nesse contexto, a divisa da primeira fase da


sociedade comunista é a de que cada um recebe de acordo
com seu trabalho. Marx considera que há inconvenientes
nesse processo, mas eles são consequência do fato dessa
sociedade comunista ter emergido a partir de uma
sociedade capitalista. Esses “defeitos inevitáveis”
expressam ainda uma sobrevivência formal do direito
burguês, pois cada um receber de acordo com seu trabalho
é uma regra universal para indivíduos desiguais (uns
possuem família, outros não, para citar apenas um
exemplo apresentado por Marx).
Marx concebia o proletariado como a maioria da
população e que seria apoiado por outras classes e setores
da sociedade, e por isso a ditadura do proletariado tem
como papel de realizar a repressão sobre as classes sociais
conservadoras do capitalismo em processo de extinção.
Nesse momento, a associação operária se torna associação
de produtores, forma de realização da autogestão social ou
“livre associação dos produtores”.
A segunda fase da sociedade comunista seria a
realização completa e plena do comunismo. Nesta fase,
447
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

tratar-se-ia de uma sociedade igualitária na qual as pessoas


consumiriam não o equivalente ao que produziram e sim
de acordo com suas necessidades, pois seria também uma
sociedade de abundância. Segundo Marx:

Numa fase superior da


sociedade comunista, quando tiver
desaparecido a escravizante subordinação
dos indivíduos à divisão do trabalho e,
com ela, a oposição entre o trabalho
intelectual e o trabalho manual; quando o
trabalho não for apenas um meio de viver,
mas se tornar ele próprio na primeira
necessidade vital; quando, com o
desenvolvimento múltiplo dos indivíduos,
as forças produtivas tiverem também
aumentado e todas as fontes da riqueza
coletiva brotarem com abundancia, só
então o limitado horizonte do direito
burguês poderá ser definitivamente
superado e a sociedade poderá escrever
em suas bandeiras: “De cada um segundo
as suas capacidades, a cada um segundo
as suas necessidades!” (MARX, 1974).
Contudo, esses elementos não são os mais
importantes numa sociedade comunista. Marx afirma que
esta é uma preocupação fundamental do “socialismo
vulgar” (e que ele trata por estar no Programa de Gotha,
do Partido Socialdemocrata Alemão) que,
equivocadamente, enfatiza a repartição, separando-a do
448
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

modo de produção. Eles pensam a sociedade comunista,


no fundo, com reivindicações da sociedade capitalista
(imposto, estado livre, salários iguais, etc.).
Nesse caso, haveria a superação da alienação e o
reencontro entre o ser humano e sua essência, podendo
desenvolver o conjunto de suas potencialidades e
necessidades humanas, abandonar a especialização e
possuir um desenvolvimento onilateral, isto é, de todas as
suas potencialidades. O trabalho deixaria de ser alienado e
voltaria a ser objetivação, realização do ser humano em
suas obras. Assim, há o estabelecimento de relações
sociais igualitárias numa sociedade fundada na livre
associação dos seres humanos, no qual “o
desenvolvimento de cada um é condição do livre
desenvolvimento de todos”, segundo expressão de Marx
no Manifesto Comunista. Assim, a abolição da divisão
social do trabalho, da alienação, da exploração e
dominação permite emergir o ser humano onilateral. Esta
concepção já estava exposta desde o seu livro A Ideologia
Alemã:

449
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Na sociedade comunista,
porém, onde cada indivíduo pode
aperfeiçoar-se no campo que lhe
aprouver, não tendo por isso uma esfera
de atividade exclusiva, é a sociedade que
regula a produção geral e me possibilita
fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar
da manhã, pescar à tarde, pastorear à
noite, fazer crítica depois da refeição, e
tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso
me tornar exclusivamente caçador,
pescador ou crítico (MARX e ENGELS,
1991, p. 19).
Assim, com o comunismo se encerra a pré-história
da humanidade (MARX, 1983b) e a história consciente e
controlada pelos indivíduos livremente associados
substitui a história na qual os indivíduos são controlados
por outros, que aparecem como forças alheias. Desta
forma, a emancipação humana se concretiza via
autoemancipação proletária e o comunismo (também
chamado por Marx como “autogoverno dos produtores”,
“livre associação dos produtores”) é sua concretização.
Contudo, as ideias de Marx sobre o comunismo,
assim como todas as demais, foram deformadas,
simplificadas, etc. Os não-leitores e maus-leitores, sejam
adversários ou epígonos, devido sua perspectiva de classe

450
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

não-proletária, deformaram extensivamente a obra de


Marx. Felizmente, alguns que partiam da perspectiva do
proletariado e não abandonaram o pensamento marxista
por causa do pseudomarxismo, contribuíram para resgatar
o verdadeiro pensamento de Marx. Devido a isto vamos
dedicar os próximos capítulos para discutir o
pseudomarxismo, os epígonos de Marx, e os autênticos
marxistas.

451
MARX, CRÍTICO DO PSEUDOMARXISMO

Tudo que sei é que não sou marxista.


Karl Marx

O termo “pseudomarxismo” foi usado inicialmente,


pelo que sabemos, por Karl Korsch e alguns outros, na
época de radicalização da luta proletária no final da década
de 1910. No entanto, Korsch não desenvolveu um conceito
e sim apenas utilizou um termo que, a partir de sua obra,
podemos considerar se refere a um falso marxismo que se
caracteriza por se autointitular marxismo e, no fundo,
romper com sua essência, transformando o marxismo de
teoria em ideologia. O marxismo seria expressão teórica
do movimento revolucionário do proletariado, sua
essência, e o pseudomarxismo, apesar de se dizer
marxismo e fazer citações de Marx e Engels, é expressão
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

ideológica da burguesia (ou de suas classes auxiliares,


especialmente a burocracia, diríamos nós).
Partindo das deduções que podemos fazer do uso
que Korsch deu ao termo e devido ao processo histórico
que proporcionou maior esclarecimento sobre a história do
marxismo e do pensamento de Marx, bem como o
aprofundamento teórico, podemos oferecer uma
conceituação de pseudomarxismo. De forma simples e
sem rodeios, o pseudomarxismo é um falso marxismo e
que por isso mesmo é toda concepção que se diz marxista
mas que não é expressão teórica do movimento
revolucionário do proletariado e sim expressão ideológica
da burguesia, da burocracia ou qualquer outra classe
social, sob distintas formas, de acordo com as
especificidades nacionais, políticas, da época, etc. Em
síntese, o pseudomarxismo é uma apropriação do
marxismo que parte de uma perspectiva de classe não-
proletária (especialmente burguesa, burocrática ou
intelectual) para deformar suas ideias essenciais (expressa
num primeiro momento por Marx e num segundo

454
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

momento por outros marxistas)1 ou sua prática política, ou


ambas simultaneamente.
Korsch foi um dos primeiros pensadores a usar o
termo pseudomarxismo, ou seja, essa palavra, esse signo.
O fenômeno real, no entanto, surgiu antes. A sua
existência concreta era anterior ao surgimento do termo e
o próprio Marx foi o primeiro crítico do pseudomarxismo.
Obviamente que Marx não utilizou tal palavra. Em sua
época, a própria palavra marxismo surgirá mais no fim da
sua vida. É nos embates que ocorrem na Associação
Internacional dos Trabalhadores que o nome surgirá
através do seu adversário, Mikhail Bakunin, que criará tal
palavra e tendo sentido pejorativo (HAUPT, 1987;

1
Nesse sentido, o marxismo não se reduz ao pensamento de Marx. Ele
representou o seu primeiro momento (e o mais profundo, inclusive
por ter lançado as bases do marxismo, bem como o mais importante,
devido ao aprofundamento e complexidade da teoria estabelecida e
que poucos indivíduos posteriores chegaram a ter um
desenvolvimento intelectual próximo ao dele). Claro que não se trata
de fazer apologia de Marx e nem de endeusá-lo, mas tão-somente
reconhecer não somente o que ele fez efetivamente (toda sua obra
teórica) como que, devido seu processo histórico de vida particular e
contexto em que isso ocorreu, reuniu condições que poucos
poderiam ter desenvolvido. Já abordamos isso no primeiro capítulo e
não retomaremos esta questão aqui.
455
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

VIANA, 2008b). Os “marxistas” seriam os seguidores de


Marx. Estes marxistas seriam as pessoas com proximidade
as suas ideias e que apoiavam-no no interior da AIT, mas
também fora dela. Estes seriam principalmente os ingleses
e alemães, sendo que estes últimos dariam vida
posteriormente ao Partido Operário Social-Democrata
Alemão (SDAP) e pouco depois ao Partido Social-
Democrata Alemão (SPD).
Marx mantinha contatos com os supostos
“marxistas” no interior da AIT (fundada em 1864) e por
correspondência. No caso alemão, esses supostos
“marxistas” seriam August Bebel e Wilhelm Liebknecht,
futuros fundadores do SDAP, fundado em 1869. Com o
processo de evolução das discussões, cada vez mais ficava
claro que estes “marxistas” não haviam entendido nem a
concepção política de Marx nem o materialismo histórico.
A situação piorou quando houve o processo de formação
do SPD, no qual os “marxistas” realizaram a fusão com os
“lassallistas”, seguidores de Ferdinand Lassale, antes
aglutinados na Associação Geral dos Trabalhadores da
Alemanha (ADAV). A fusão trazia, necessariamente,
456
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

concessões e a concepção estatista de Lassale acabaria


ganhando mais espaço2.
No fundo, é no SPD que surgirá a primeira forma
mais sistematizada de pseudomarxismo. A crítica de Marx
(e também de Engels, enquanto ele ainda estava vivo,
apesar de posteriormente à sua morte manter algumas
críticas) pode ser vista principalmente através de suas
cartas e da Crítica ao Programa de Gotha, da qual já
colocamos alguns aspectos no capítulo anterior. A
deformação das ideias de Marx pelos supostos “marxistas”
se refere a quase todos os pontos do marxismo (a sua
primeira manifestação expressa na obra do seu fundador).
Engels, buscava, em diversas cartas, romper com os
equívocos dos pseudomarxistas, principalmente no que se
refere ao materialismo histórico, embora ele mesmo caísse
em equívocos ao fornecer suas repostas em algumas
ocasiões, apesar de em outras apresentar uma concepção
mais próxima da de Marx. Inclusive, é ele que revela a
afirmação de Marx, segundo a qual ele não seria

2
Marx mantinha relações de amizade com Lassalle, embora lhe
contestasse politicamente, como mostraremos adiante.
457
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

“marxista”. Em carta a Konrad Schmidt, socialdemocrata


alemão, Engels afirma:

“A concepção materialista da
história tem hoje em dia numerosos
amigos que a utilizam como desculpa para
não estudar história. Como Marx
costumava dizer, referindo-se aos
‘marxistas’ franceses dos fins dos anos
70: ‘tudo que sei é que não sou um
marxista’ (ENGELS, apud. MARX e
ENGELS, 1987c, p. 36).
Engels coloca “marxistas” entre aspas e cita a
afirmação de Marx que mostra seu descontentamento e
desacordo com o suposto “marxismo” existente na França.
Engels continua sua crítica:

“Em geral, o termo


‘materialista’ serve a muitos escritores
jovens, na Alemanha, de simples frase
para classificar toda espécie de coisas sem
as estudar posteriormente; tais escritores
pensam que basta colar um rótulo para
que o assunto seja dado por encerrado.
Porém, nossa concepção da história é,
acima de tudo, um guia para o estudo e
não uma alavanca para levantar
construções à maneira dos hegelianos. É
preciso estudar de novo toda a história,
investigar detalhadamente as condições de
vida das diversas formações sociais, antes
de se tentar deduzir delas as ideias
políticas, jurídicas, estéticas, filosóficas,
458
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

religiosas, etc., que a elas correspondem.


A este respeito, fez-se bem pouco até
hoje, porque bem poucos a isto se
entregaram seriamente” (ENGELS, apud.
MARX e ENGELS, 1987c, p. 36-37).
Nesta passagem, bem como na de outras cartas,
Engels busca mostrar os equívocos e desenvolver
observações sobre o materialismo histórico que mostram a
simplificação e incompreensão do materialismo histórico.
Contudo, ele mesmo acaba caindo no equívoco de mover
seu pensamento no interior das premissas daqueles que ele
tenta corrigir. Eis um exemplo, extraída de uma carta a
Joseph Bloch:

“Marx e eu temos em parte a


culpa pelo fato de que, às vezes, os jovens
escritores atribuam ao aspecto econômico
maior importância do que a devida.
Tivemos que enfatizar esse princípio
fundamental frente a nossos adversários,
que o negavam, e nem sempre tivemos
tempo, lugar e oportunidade para fazer
justiça aos outros elementos que
participam da ação recíproca. Mas quando
se tratou de apresentar um período da
história, isto é, de fazer uma aplicação
prática, o problema foi diferente e não
houve erro possível. Entretanto,
infelizmente, acontece com frequência
que as pessoas acreditam ter
compreendido perfeitamente uma teoria e
459
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

acreditam poder aplicá-la sem maiores


dificuldades a partir do momento em que
assimilaram (nem sempre de forma
correta) seus princípios fundamentais.
Não posso livrar dessa reprimenda muitos
dos recentes ‘marxistas’, explicando-se
assim muitas das coisas absurdas que têm
produzido (...)” (ENGELS, apud. MARX
e ENGELS, 1987a, p. 41-42).
Aqui, além do uso novamente entre aspas da palavra
“marxistas”, temos mais uma crítica relacionada ao
materialismo histórico. Contudo, a resposta que Engels
fornece aos seus correspondentes e critica os
deformadores do materialismo histórico, acaba
reproduzindo parte do que combate. O primeiro problema
é a questão da economia. Em Carta a Konrad Schmidt, ele
afirma que a economia, “em última instância”, determina a
superestrutura. Na mesma carta faz afirmações que são
coerentes com o materialismo histórico e outras que são
questionáveis3. Sem dúvida, ele assumiu a culpa, mas a
questão central é que sua solução mantém o equívoco do
“econômico” (ou da economia, sem perceber o problema
da formulação nesses termos) e apresenta a solução da
3
Labriola (1979), por exemplo, critica sua ideia de ação recíproca,
que seria marcada por uma incompreensão da dialética.
460
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

“ação recíproca”, que, em que pese possa ser questionada,


é no mínimo insuficiente. E um aprofundamento seria
necessário para entender não apenas a suposta
determinação da economia, mas o próprio significado
desse termo (nas raras vezes usadas por Marx e no uso dos
“marxistas” da época). Engels ao combater as
simplificações do materialismo histórico, acaba realizando
outra simplificação, mais complexa e próxima do
pensamento de Marx, mas que se desvia da concepção
original com toda sua complexidade e na linguagem isso
mais explícito (o uso abusivo de Engels das expressões
“economia”, “superestrutura”, “fatos”, “fatores”, etc.
expressam isso)4.
Assim, Marx elaborou uma teoria que reproduz a
complexidade da história e da sociedade e obteve algumas
colaborações de Engels, mas este, no entanto, possuía
limites que não conseguia superar e com o passar do
tempo foram aumentando. Contudo, devido amizade e

4
Posteriormente se desenvolveria no pseudomarxismo a “doutrina dos
fatores”, que será criticada por Plekhanov (1990) e Labriola (1979),
tal como já colocamos anteriormente.
461
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

confiança depositada em Engels, e os vínculos afetivos e


psíquicos criados, bem como pela concordância (real em
alguns casos, aparente em outros), Marx pouco se ocupou
das divergências conscientes com Engels e nem poderia se
ocupar das divergências não-conscientes.
É possível perceber algumas divergências de fundo
entre ambos. Isso pode ser visto no debate sobre Pierre
Trémaux. Marx e Engels travaram um breve debate sobre
este autor através de cartas e assim ficaram explícitas
algumas diferenças entre ambos. Isso remete à abordagem
da teoria da evolução de Darwin por Marx e Engels.
Engels leu Darwin e logo se entusiasmou pelo livro A
Origem das Espécies, enviando-a a Marx5. Este demorou

5
A posição de Marx sobre Darwin foi deformada historicamente até
pelos pseudomarxistas. Inclusive se popularizou, ao que tudo indica
devido a um mal entendido, a afirmação de que Marx havia
solicitado a Darwin um prefácio para O Capital. “O que ocorreu, na
verdade, foi uma carta de Edward Aveling, genro de Marx,
solicitando a autorização de Darwin para dedicar-lhe sua obra (e não
a de Marx) intitulada Darwin para Estudantes, de caráter
antirreligioso, e por isso houve a recusa do famoso naturalista, que
encaminhou a mesma para Marx e se encontrava junto com suas
correspondências e por isso não havia referência à qual obra se
referia o seu autor, o que permitiu a confusão estabelecida e que se
tornou a versão verdadeira da história até 1975” (VIANA, 2009b).
462
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

um bom tempo para ler e após isto fez algumas


observações favoráveis ao livro e outras de caráter crítico6.
Algum tempo depois, Marx leu a obra de Pierre Trémaux,
e apesar de algumas ressalvas, a considerou de grande
importância para explicar o processo da evolução. Engels
se opôs prontamente, devido ao fato de que este autor era
desacreditado e fazia algumas afirmações absurdas, o que
Marx não contestava, mas nem por isso descartava. Vamos
citar alguns trechos dessas cartas para deixar mais claro a
posição dos dois sobre Trémaux:

“Apesar de todos os seus


defeitos, que não desconheço, [ele]
representa um progresso muito importante
em relação à Darwin. As duas
proposições principais são: ao contrário
do que se crê, os croisements
(cruzamentos) não são o que produz as
diferenças, mas, ao contrário, a unidade
de tipo das espèces (espécies). Em
contraposição, a formação da terra é por si
só uma causa de diferenciação (não a
única, mas sim a causa principal)”
(MARX, 1975, p.48).

6
Engels, por sua vez, inseriu algumas das críticas de Marx (realizadas
por cartas), quase transcrevendo-as, em seu livro Anti-Düring
(ENGELS, 1990) e outros locais, sem fazer referência a quem
elaborou a ideia.
463
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

A resposta de Engels é que a conclusão dele é que


tal “teoria não vale nada”, ressaltando as afirmações
consideradas absurdas de Trémaux e seu desconhecimento
de geologia. Marx responde que as afirmações de Engels
podem ser encontradas quase ao pé da letra7 em uma obra
de Cuvier, o renomado geólogo. Marx afirma que Cuvier
fez coisa semelhante com alguns antecessores de Darwin,
que enunciaram elementos que este depois desenvolveria,
e, apesar de todos os seus méritos, ele se equivocou e os
criticados tinha razão, sendo que a história subsequente
comprovou isso. Marx ressalta que a questão do solo é a
grande contribuição de Trémaux, e isso independente de
sua exposição geral. A nova resposta de Engels já
relativiza um pouco sua concepção, dizendo que havia lido
apenas um terço do livro e a melhor parte não havia lido, e
que a questão do solo teria alguma importância mas que
mesmo assim a contribuição de Trémaux era unilateral.
Por fim, sobre o caso de Cuvier, responde que a discussão

7
Como, posteriormente, as críticas que ele faz a Darwin são
encontradas quase ao pé da letra nas cartas enviadas a ele por Marx.
464
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

naquela época não remetia à geologia e Trémaux não


demonstra grande conhecimento nessa área.
Pois bem, essas cartas mostram duas personalidades
distintas. Engels ficou entusiasmado8 a obra de Darwin e
enviou um exemplar para Marx. Marx viu certo valor, mas
fez várias críticas. Marx enviou uma carta elogiando
Trémaux, apesar de seus equívocos, e Engels descartou,
num primeiro momento, qualquer contribuição dele. A
questão é que Darwin é um autor que em determinados
círculos da esfera científica já era aclamado (inclusive
pelo seu amigo Cuvier) e Trémaux era um desconhecido e
desacreditado escritor. A posição em relação aos dois é
distinta em Marx e Engels, o primeiro revela mais
simpatia pelo autor desacreditado por ter encontrado um
elemento importante em sua obra que não se encontrava
na obra de Darwin e o segundo revela mais simpatia pelo
autor mais famoso e renomado. O reconhecimento de
Trémaux, desconhecido e desacreditado, por Marx e sua
recusa por Engels, bem como o reconhecimento de

8
“Sigo lendo este Darwin, que é algo verdadeiramente sensacional”
(ENGELS, 1975, p. 21).
465
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Darwin, relativamente famoso e reconhecido nos círculos


científicos progressistas, por Engels e a ressalva de Marx,
mostra uma diferença de personalidade. Marx é mais
atento ao conteúdo das obras e não teme em reconhecer
contribuições de autores obscuros e Engels é mais sensível
à fama e temeroso em relação aos “desacreditados”9.
Marx coloca elementos positivos na obra de Darwin,
apesar de seu “rude método inglês” e depois apresentou
em carta seguinte a crítica da concepção darwiniana, que
faria uma transposição da sociedade inglesa (capitalista e
competitiva) para o mundo da natureza. Engels vê apenas
elementos negativos na obra de Trémaux, e só depois que
passa a reconhecer algum mérito. Marx, em relação à
Trémaux, anuncia que não desconhece seus problemas
mas reconhece uma contribuição importante dele.
As diferenças que se retira daqui são duas: Engels é
mais “entusiasmado” que Marx, com menor criticidade e
seu entusiasmo tem ligação com o papel da autoridade
científica. Diferenças não desprezíveis. Marx mostra

9
Isso significa, por exemplo, que Engels seria mais adaptado à esfera
científica do que Marx.
466
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

maior criticidade em relação à produção científica e que


busca refletir sobre as concepções e explicações, inclusive
colocando-as no processo histórico e social. Engels
demonstra menor criticidade e um posicionamento mais de
acordo com as ideologias dominantes. A afirmação de
Marx sobre Cuvier (que apesar de ser uma grande
autoridade, o maior geólogo da época, se equivocou em
determinadas questões que depois foram esclarecidas) e
que o comentário de Engels sobre Trémaux o repetia
quase ao pé da letra, revela uma posição de crítica das
autoridades científicas. Era isso que ele questionou na
posição de Engels, que parece não ter entendido, e
remeteu a discussão para Trémaux (a observação de Marx
era mais abstrata e geral, demonstrando que uma ideia
considerada equivocadas pelas autoridades científicas,
poderiam ser verdadeiras e o caso comprovava isso). A
posição de Engels em relação e no interior da social-
democracia alemã, após a morte de Marx, reforça essa
análise10.

10
No interior do marxismo, diversos autores enfatizaram a oposição
entre Marx e Engels (LABRIOLA, 1979, MONDOLFO, 1956;
467
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Se o principal colaborador e amigo pessoal de Marx


já tinha limites e problemas, os demais apresentariam
muito mais elementos problemáticos. A fusão de
lassallistas11 e “marxistas” faz avançar os problemas. O
primeiro problema era a formação deficiente e
incompreensão do materialismo histórico (a que Engels,
através de cartas e contatos, tentou minimizar, mas
terminou por criar novos problemas com isso); o segundo,
intimamente ligado ao primeiro, é derivado das concessões
políticas para garantir a aliança com os lassallistas e os
limites da compreensão do pensamento de Marx. Mas
antes de entrar na crítica que Marx efetiva ao
pseudomarxismo nascente, é interessante elencar os
principais pontos dessa crítica.
Os principais pontos da crítica de Marx ao
pseudomarxismo são: a) a interpretação do seu

LUKÁCS, 1989).
11
Os lassallistas, discípulos de Lassalle, reproduziam as teses básicas
elaboradas por estes e que apontavam para um estatismo com apoio
popular (DRAPER, 2015), que mais tarde será encampado pela
social-democracia e bolchevismo. Marx já havia percebido isso e
era um crítico ferrenho de Lassalle (DRAPER, 2015) e da fusão
entre social-democratas e lassallistas (MARX, 1974).
468
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

pensamento; b) a deformação de sua concepção de


revolução proletária; e c) a concepção de socialismo. A
interpretação do pensamento de Marx pelos
pseudomarxistas se referia a todos os pontos fundamentais
de sua teoria. Isso era mais visível no caso do
materialismo histórico e as cartas de Engels acima citadas
demonstram isso e por isso não voltaremos a este aspecto.
As razões da deformação do materialismo histórico (e
também da dialética materialista) têm como uma de suas
determinações o pouco estudo e pesquisa (que o próprio
Marx percebeu, tal como mostra citação adiante), mas
também interesses, processos sociais, e a reprodução de
concepções ideológicas e burguesas12 mescladas com o
pensamento de Marx.
Isso ocorre em diversos momentos e Labriola
explicou uma de suas razões: a interpretação verbalista. O

12
“Se pessoas de outras classes se juntam ao movimento proletário, a
primeira exigência é a de que elas não tragam consigo nenhum tipo
de preconceito burguês, pequeno-burguês, etc., e sim que se
apropriem com franqueza da perspectiva proletária. Aqueles
senhores, porém, como ficou provado, estão completamente
dominados por representações burguesas e pequeno-burguesas”
(MARX, 2014, p. 228).
469
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

verbalismo, segundo Labriola, consiste em tomar uma


palavra ou conceito do autor e ao invés de entendê-la no
seu processo genético e significado no interior do seu
pensamento, o retira de outro autor e sobrepondo um
significado distinto ao significado real. É o caso, por
exemplo, daqueles que leem o Manifesto do Partido
Comunista e entendem, pelo termo “partido”, as
organizações formais e burocráticas existentes hoje e não
o significado do termo no pensamento de Marx nessa
época, na qual tais partidos ainda não existiam13. Outro
exemplo é o materialismo de Marx, ao qual a maioria dos
intérpretes, ao invés de buscar entender seu significado
nesse autor, acaba extraindo e reproduzindo o significado
do materialismo burguês do século 1814. O determinismo
econômico e tecnológico emerge a partir do
pseudomarxismo.

13
O Manifesto foi escrito em 1848 e os partidos políticos no sentido
atual da palavra, só surgiram algumas décadas posteriores, tal como
o Partido Operário Social-Democrata Alemão, que surge em 1869 e
um partido com nome “comunista” só vai surgir depois da Primeira
Guerra Mundial e o racha no interior dos partidos social-democratas
que geraria, posteriormente, os partidos comunistas.
14
Sobre isso, cf. Korsch (1977); Pannekoek (1973).
470
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Outro elemento é a reinterpretação de Marx a partir


de alguma ciência particular ou buscando transformar o
seu pensamento em algo semelhante. A ideia de
“socialismo científico”, já comentada anteriormente, foi
um dos elementos que ampliou essa deformação
interpretativa. O século 19, época do cientificismo,
possibilitou diversos intelectuais a integrar o pensamento
de Marx nas disciplinas cientificas existentes. No entanto,
o marxismo é um saber totalizante e não uma ciência
particular e sua assimilação por alguma delas significa sua
destruição. O próprio Marx já havia percebido isso ao
comentar algumas publicações da social-democracia:

Há lá uma falta absoluta de


material de cultura real, efetivo ou
teórico. Ao invés disso, realizam
tentativas para pôr o pensamento
socialista superficialmente apropriado em
consonância com os pontos de vista
teóricos mais diversos que os senhores
trouxeram consigo da Universidade ou de
qualquer outro lugar e sendo que um é
ainda mais confuso do que o outro, graças
ao processo de putrefação em que se
encontram os restos da filosofia alemã nos
dias de hoje. Ao invés de, para começar,
estudarem eles próprios
fundamentadamente a nova ciência, cada
471
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

um prefere aproximá-la dos pontos de


vista que trouxeram consigo, fazer dela
uma ciência privada própria sem nenhum
hesitação e aparece mesmo com a
pretensão de a querer ensinar. Por isso,
entre estes senhores existem tantos pontos
de vista quanto número de cabeças; ao
invés de trazerem clareza seja lá ao que
for, apenas estabeleceram uma grave
confusão – felizmente, quase só
conhecida entre eles próprios. O partido
pode muito bem passar sem semelhantes
elementos de cultura, cujo primeiro
princípio é ensinar o que ainda não
aprenderam (MARX, 2014, p. 227-228)
15
.
Marx não evitou a crítica a dois problemas
encontrados no pseudomarxismo nascente e que entravam
em frontal antagonismo com suas concepções, apesar de
utilizar seu nome para defender tal posição. O primeiro se
refere ao proletariado e à revolução proletária. Marx
sempre defendeu, e isto foi exposto no capítulo específico
sobre isso,

15
Marx não chegou a aprofundar isso, mesmo porque isso passou a ser
mais comum após a sua morte, mas Labriola (1979), Korsch (1977) e
o jovem Lukács (1989) criticaram tal procedimento.
472
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Contudo, esta mesma interpretação deformante


ocorria também em todos os demais aspectos16. Marx
criticou especificamente a questão da compreensão da
revolução proletária e da sociedade comunista. A sua tese
da autoemancipação proletária foi substituída, no
pseudomarxismo, pela ideia de que o partido político (no
caso, social-democrata), é que a libertaria. Marx, em uma
carta, realizaria a crítica dessa interpretação deformante do
seu pensamento que acaba gerando uma concepção
política pseudomarxista. Um dos pontos criticados por
Marx nesse aspecto é a concepção de Estado da social-
democracia, que, sob forma lassallista, colocava como
meio de chegar ao comunismo. O Manifesto dos Três de
Zurique, escrito por três líderes do SPD, Karl Höchberg,
Eduard Bernstein e Karl August Schramm, defende a

16
A deformação ocorria até mesmo no uso das palavras, como o
próprio Marx observou na crítica que fez ao termo “social-
democracia” (BLUMENBERG, 1970). Marx adotou o nome
“comunismo” justamente para se distinguir dos demais socialistas de
sua época e o termo social-democrata significou um retrocesso para
não “assustar os trabalhadores”, segundo justificativa dos fundadores
da social-democracia.
473
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

transformação por via estatal, através da legalidade e a


reforma:

Precisamente agora, sob a


pressão da lei dos socialistas17, o Partido
mostra que não está inclinado a seguir o
caminho da revolução sangrenta, violenta,
mas que está decidido... a tomar o
caminho da legalidade, isto é, da reforma
(Apud MARX, 2014, p. 193).
A questão do Estado também estará presente na
Crítica ao Programa de Gotha, no qual Marx aborda o
problema da sociedade comunista e do aparato estatal
nesse contexto. Voltaremos a isso adiante. Marx contesta a
concepção assumida pelos burocratas do SPD e coloca a
diferença entre sua concepção de autoemancipação
proletária e a concepção burocrática dos representantes
ideológicos desse partido:

No que nos diz respeito, com


todo o nosso passado, só nos resta um

17
Trata-se da lei de exceção contra os socialistas promulgada na
Alemanha em 21 de Outubro de 1878. Em virtude desta lei foram
proibidas todas as organizações do Partido Socialdemocrata, as
organizações operárias de massas, a imprensa operária, foi
confiscada a literatura socialista e perseguidos os sociais-democratas.
Por pressão do movimento operário de massas a lei foi abolida a 1 de
Outubro de 1890.
474
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

caminho a seguir. Há quase 40 anos


colocamos em primeiro plano a luta de
classes como o motor da história e,
especialmente, a luta de classes entre
burguesia e proletariado, como a grande
alavanca da revolução social moderna. É-
nos impossível, portanto, caminharmos
juntos com pessoas que querem suprimir
esta luta de classes do movimento.
Quando fundamos a Internacional e
formulamos em termos claros seu grito de
guerra: “a libertação da classe operária
será obra da própria classe operária”.
Não podemos evidentemente caminhar
com pessoas que declaram aos quatro
cantos que os operários são muito pouco
instruídos para poder emancipar a si
mesmos, e que só a partir de cima eles
podem ser libertados, pelas cúpulas, pelos
filantropos burgueses e pequeno-
burgueses. Se o novo órgão do partido
toma uma atitude que corresponda às
ideias destes senhores, se essa orientação
é burguesa e não proletária, não nos
restará mais nada a fazer, por mais
lamentável que seja, do que declarar
abertamente nossa oposição e romper a
solidariedade da qual demos prova até
agora, na qualidade de representantes do
partido alemão no exterior”. Esperemos,
contudo, que não se chegue até ai. [...]
(MARX, 2014, p. 229).
Aqui a divergência de concepção é explicitada: a
concepção dos líderes social-democratas é a da libertação
pelas cúpulas, pelos filantropos burgueses e pequeno-
475
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

burgueses e a de Marx é a da libertação do proletariado


por ele mesmo. Marx coloca um elemento fundamental do
seu pensamento e que distingue do pseudomarxismo que
emerge nessa época e vai se reproduzir nas obras da
“ortodoxia” supostamente “marxista”, em Kautsky e
Lênin, tal como colocamos anteriormente. É a substituição
da luta de classes pela luta de partidos. Se para Marx, a
luta de classes é o motor da história, e, no capitalismo, a
luta de classes entre burguesia e proletariado é a grande
alavanca da revolução social moderna, para os
pseudomarxistas é a luta de partidos e mais precisamente,
no capitalismo, a luta da burocracia social-democrata18.
Marx não apenas critica os representantes
ideológicos da social-democracia, mas também mostra as
bases reais que geram tal ideologia, ou seja, o caráter de
classe da concepção pseudomarxista:

São os representantes da
pequena burguesia que se anunciam,
cheios de medo de que o proletariado,

18
Esse será um dos principais pontos da crítica do jovem Trotsky ao
leninismo, que ele caracteriza como “substitucionismo”,
transformando a luta de classes em “querelas de partido”
(TROTSKY, 1975).
476
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

compelido pela sua situação


revolucionária, possa “ir demasiado
longe”. Ao invés de oposição política
decidida – mediação geral; ao invés de
luta contra o governo e a burguesia – a
tentativa de ganhá-los e de persuadi-los;
ao invés de resistência obstinada contra os
maus tratos de cima – submissão humilde
e admissão de que se tinha merecido o
castigo. Todos os conflitos historicamente
necessários são interpretados de forma
deturpada como mal-entendidos e toda a
discussão termina com o protesto: afinal,
no fundamental, estamos todos unidos. As
pessoas que em 1848 apareceram como
democratas burgueses, podem agora do
mesmo modo chamar-se a si próprias
social-democratas. Tal como, para elas, a
derrocada do capitalismo é algo para um
futuro inalcançável e não tem, portanto,
absolutamente nenhuma significação para
a prática política do presente. É possível
mediar, fazer compromissos, praticar a
filantropia, o quanto quiser. É o mesmo
para a luta de classes entre proletariado e
burguesia. É reconhecida no papel,
porque já não se pode negá-la. Na prática,
porém, é mascarada, apagada, amortecida.
O Partido Social-democrata não deve ser
um Partido operário, não deve atrair sobre
si o ódio da burguesia ou, em geral, de
quem quer que seja; deve, antes de tudo,
fazer uma propaganda enérgica entre a
burguesia; ao invés de dar peso aos
objetivos fundamentais, que assustam a
burguesia e que, contudo, são
inalcançáveis na nossa geração, ele deve
477
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

antes empregar toda a sua força e energia


naquelas reformas restauradoras pequeno-
burguesas que conferem à velha ordem da
sociedade novos apoios e que, por esse
fato, poderiam talvez transformar a
catástrofe final num processo gradual,
parcelar e de dissolução mais pacífica
possível. São as mesmas pessoas que, sob
a aparência da incansável ocupação, não
só não fazem nada elas próprias, como
também tentam impedir que, em geral,
aconteça algo — a não ser conversa; as
mesmas pessoas, cujo medo de qualquer
ação, em 1848 e em 1849, obstaculizaram
o movimento a cada passo e finalmente o
levou à derrota; as mesmas pessoas que
nunca veem a reação e, depois, ficam
totalmente admiradas de se encontrarem
finalmente num beco sem saída, onde
nem resistência nem fuga são possíveis;
as mesmas pessoas que querem confinar a
história ao seu horizonte pequeno-
burguês e por cima das quais, de cada vez,
a história transita para a ordem do dia
(MARX, 2014, p. 226-227).
Aqui temos uma dupla contraposição: a primeira é
entre a posição de Marx (autoemancipação proletária) e a
pseudomarxista/social-democrata (libertação pela cúpula
do partido) e a segunda é entre o caráter de classe da
primeira posição, marxista, e da segunda posição, social-
democrata, pseudomarxista. Desta forma, a posição de
Marx, que expressa o marxismo, é proletária, enquanto
478
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

que a posição da social-democracia, que fala em seu


nome, é “pequeno-burguesa”, logo, pseudomarxista. O
pseudomarxismo deforma a expressão teórica do
movimento revolucionário do proletariado (marxismo), e
diz representá-lo. Da mesma forma, diz representar o
proletariado e, no fundo, representa a pequena-
burguesia19. E Marx complementa mostrando seu caráter
deformador: “Se eles constituírem um Partido pequeno-
burguês socialdemocrata, estão no seu pleno direito; seria
possível até negociar com eles, ou mesmo, segundo as
circunstâncias, formar alianças, etc. Mas, num partido
19
Marx utiliza a expressão “pequena-burguesia” por considerar que a
força do partido provém dos elementos pequeno-burgueses, como
esta aparece em alguns de seus discursos. Marx teve o mérito de
descobrir a essência da burocracia estatal e conseguiu ter uma
presciência da burocracia civil, especialmente a sindical e partidária
(VIANA, 2016). Contudo, essa presciência foi dificultada pelo
pouco desenvolvimento da burocracia civil, e, nesse caso específico,
da burocracia partidária. Por outro lado, a burocracia sindical já
havia sido percebida por Marx quando ele analisou a corrupção dos
sindicatos. Algum tempo depois ficaria claro o verdadeiro caráter de
classe da social-democracia, que é burocrático e não exatamente
pequeno-burguês, apesar da ambiguidade que cerca essa palavra e
que, em muitos casos, agrupa classes distintas, todos aqueles que não
seriam nem burgueses e nem proletários, o que outros denominam
“classes médias”. No fundo, esses termos são usados para se referir á
“terceira força” que fica entre burguesia e proletariado, e que
posteriormente seria hegemonizada pela classe burocrática.
479
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

operário, eles são elementos deformadores” (MARX,


2014, p. 228).
Outro aspecto fundamental da crítica de Marx ao
pseudomarxismo é sobre o significado do comunismo. O
pseudomarxismo trocou a expressão comunismo por
social-democracia, o que desagradou Marx e Engels. Mas
o pior foi ter deformado a compreensão do que é o
comunismo. Em Crítica ao Programa de Gotha, Marx
realiza uma crítica extensa e detalhada do programa,
colocando seus elementos problemáticos, suas influências
(Lassalle, especialmente). Ao lado disso, novamente, a
incompreensão do seu pensamento, apesar de se passar por
“marxista”. Não desenvolveremos todos estes aspectos,
que podem ser lidos na obra de Marx, tal como a discussão
que este faz sobre o trabalho, o salariato, etc. Aqui
destacaremos apenas os pontos fundamentais dessa crítica
que mostra a deformação do pensamento de Marx e o
abandono do marxismo apesar de declarar fidelidade ao
mesmo.
Desta forma, cabe destacar a crítica que Marx realiza
à tese da “repartição equitativa”. Essa frase oca,
480
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

reproduzida por ideólogos burgueses e “seitas” socialistas,


fica no âmbito da sociedade burguesa. No comunismo, “os
produtores não trocam seus produtos”, bem como “o
trabalho incorporado em produtos já não aparece aqui
como valor desses produtos” (MARX, 1974, p. 18). A
partir de ideologias jurídicas, o programa social-democrata
apresenta como dogmas concepções que não passam de
fraseologias obsoletas. A social-democracia enfatiza a
questão da repartição, ou seja, das relações de distribuição.
“Mesmo abstraindo tudo o que acaba de ser dito, era de
qualquer modo um erro dar tanta importância ao se se
chama a repartição e nela colocar a tônica” (MARX, 1974,
p. 21). O programa social-democrata, pseudomarxismo, ao
enfatizar a distribuição ao invés da produção, deforma um
dos princípios fundamentais do materialismo histórico:

Em todas as épocas, a
repartição dos objetos de consumo é
consequência do modo como estão
distribuídos as próprias condições da
produção. Mas esta distribuição é uma
característica do próprio modo de
produção. O modo de produção
capitalista, por exemplo, consiste em que
as condições materiais de produção são
atribuídas aos não-trabalhadores sob a
481
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

forma de propriedade capitalista e


propriedade fundiária, ao passo que a
massa apenas possui as condições
pessoais de produção: a força de trabalho.
Distribuídos desta maneira os elementos
da produção, a atual repartição dos
objetos de consumo resulta naturalmente
por si mesma. Sejam as condições
materiais da produção sob propriedade
coletiva dos próprios trabalhadores, e do
mesmo modo resultará uma repartição dos
objetos de consumo diferente da atual. O
socialismo vulgar (e com ele, por sua vez,
uma fração da democracia) herdou dos
economistas burgueses o hábito de
considerar e tratar a repartição como uma
coisa independente do modo de produção
e de, por essa razão, representar o
socialismo como girando essencialmente
em torno da repartição. Uma vez que as
relações reais foram há muito
esclarecidas, para quê voltar atrás?
(MARX, 1974, p. 21)20.

20
Todo o pseudomarxismo posterior enfatizará a questão da
distribuição ao invés da produção, do efeito e não da causa. Lênin,
por exemplo, defendia após a Revolução Bolchevique, que o
dinheiro era a “nata da sociedade” (LÊNIN, 1979) e, se antes da
tomada do poder estatal exigia a manutenção do salariato com a
palavra de ordem “todos devem receber salários iguais aos dos
operários (LÊNIN, 1987), após passou a defender salários superiores
para os técnicos e especialistas (LÊNIN, 1988). Isso tudo ao
contrário de Marx, que propunha, como vimos anteriormente, a
abolição do dinheiro e do salariato. Contudo, o programa de Gotha
era mais avançado do que a concepção leninista nesse aspecto, pois
propunha, também, a abolição do salariato.
482
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Além disso, o programa social-democrata regride


também no que se refere ao problema do estado. Se Marx
havia demonstrado, tal como colocamos anteriormente no
capítulo dedicado ao estado, que este é uma associação da
classe dominante para fazer valer os seus interesses e que
é uma excrescência parasitária da sociedade civil que deve
ser abolido com sua máquina burocrática, o
pseudomarxismo social-democrata defende a realização de
um “estado livre”. Marx critica o programa social-
democrata afirmando que as ideias socialistas não o tocam
nem de leve. Ao invés de tomar a “sociedade presente
como o fundamento do estado presente”, toma “o estado
como uma realidade independente, que possui os seus
próprios fundamentais intelectuais, morais e livres”
(MARX, 1974, p. 29).
Da mesma forma, Marx critica a ideia de “estado
popular”, bem como coloca a questão das “funções do
estado”21, que já havia abordado em sua discussão sobre a
Comuna de Paris.

21
Em outra oportunidade, Marx esclarece que as funções do estado
que permanecem no comunismo não são funções de governo e nem
483
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Então surge a pergunta: que


transformação sofrerá o Estado numa
sociedade comunista? Por outras palavras:
que funções sociais se manterão análogas
às atuais funções do Estado? Só a ciência
pode responder a essa pergunta; e não é
juntando de mil maneiras a palavra Povo
com a palavra Estado que se fará avançar
o problema um passo que seja (MARX,
1974, p. 30).
Aqui Marx comete uma imprecisão conceitual que
facilitará ao pseudomarxismo deformar suas teses. O uso
do termo “estado”, aqui, acaba possibilitando
deformações. Engels, nesse aspecto em consonância com
Marx, esclarece que, no caso do comunismo, não há
nenhum “estado”, no verdadeiro sentido da palavra:

O estado popular livre se


converteu no estado livre.
Gramaticalmente falando, estado livre é
um estado que é livre em relação aos seus
cidadãos, isto é, um estado com um
governo despótico. É necessário
abandonar toda essa charlatanice acerca
do Estado, principalmente após a Comuna
de Paris, que não era já um estado no
verdadeiro sentido da palavra. Os
anarquistas nos jogaram na cara mais de
uma vez esta expressão “Estado popular”,

encerram nenhum poder, convertendo-se apenas em questões


administrativas (MARX, 1987c).
484
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

apesar de que já na obra de Marx contra


Proudhon, e, posteriormente, no
Manifesto Comunista, é afirmado
claramente que, com a implantação do
regime socialista, o estado se dissolve por
si mesmo e desaparece. Sendo o Estado
uma instituição meramente transitória,
que se utiliza na luta, na revolução, para
liquidar pela violência os adversários, é
um absurdo falar de estado popular livre:
enquanto o proletariado necessitar do
estado, não será no interesse da liberdade
e sim para submeter os seus adversários e
tão logo se possa falar de liberdade, o
estado como tal deixará de existir. Por
isso nós propomos dizer sempre, ao invés
da palavra estado, a palavra
“Comunidade” (Gemeinwesen), uma boa
e antiga palavra alemã que equivale à
palavra francesa “Comunne”.
No fundo, o texto de Engels teria ficado mais claro
se ao invés de colocar que o “estado se dissolve por si
mesmo e desaparece”, deveria ter colocado que o estado
capitalista é abolido e a associação operária, do conjunto
da classe, que executa a função de repressão (do “povo em
armas”), se dissolve, pois deixa de ser necessário com a
abolição total das classes e seus resquícios. Num sentido
semelhante, Marx coloca que a ideia de Estado popular de
Wilhelm Liebknecht, é uma “tolice” e as medidas que

485
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

aplica no processo revolucionário não tem aplicação após


sua efetivação e “organização definitiva” (MARX, 1987c).
Voltando à Crítica ao Programa de Gotha, Marx
coloca que as reivindicações políticas do pseudomarxismo
social-democrata não ultrapassa a velha ladainha
democrática: sufrágio universal, legislação direta, direito
do povo, milícia popular, etc. Essas reinvindicações são as
de setores democráticos da burguesia e inclusive já foram
realizadas em alguns países. A exigência de impostos
sobre rendimentos significa nada mais do que a
manutenção da máquina estatal e sua base é a sociedade
capitalista. Em síntese, o programa social-democrata
criticado por Marx realiza uma confusão no que se refere à
compreensão do Estado e, o que é mais grave, exige
autonomia para o aparato estatal, cuja base é a sociedade
capitalista, o que significa, no fundo, não ultrapassar os
limites dessa mesma sociedade. Isso entra em contradição
com as ideias de Marx e com os interesses do proletariado,
mas vai de encontro com outros interesses22.

22
Marx não aborda isso, por razões já apresentadas, mas este é o
interesse de toda burocracia: a burocratização, o que significa
486
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Assim, o programa social-democrata é apenas um


programa no interior da sociedade capitalista e que não
busca ultrapassar seus limites. Isso significa que, apesar de
falar em nome do marxismo, nada tem a ver com este e,
também, que não é expressão do proletariado e sim de
outras classes.
Marx, na Crítica ao Programa de Gotha, esclarece
que a social-democracia é um pseudomarxismo e que nada
tem a ver com o projeto comunista. As críticas de Marx,
no entanto, foram ocultadas, esquecidas, deformadas. A
consolidação da social-democracia, que se torna no início
do século 19, um grande partido político que crescem cada
vez mais até chegar ao governo com a República de
Weimar, em 1918, e a ascensão ao poder do Partido
Bolchevique com o golpe de estado de outubro de 1917,
acaba gerando duas formas de pseudomarxismo que
preservarão – com discordâncias em diversos aspectos, tal
como passagem ao “socialismo” via insurreição ou
processo eleitoral – os equívocos já apontados por Marx,

ampliação da burocracia (organização e classe) e intensificação do


controle social.
487
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

aprofundando e criando outros. Marx foi, portanto, o


primeiro crítico do pseudomarxismo, sendo que depois
dele, alguns começaram23 a perceber que havia uma
divergência entre seus escritos e as interpretações, bem
como entre a posição de classe proletária defendida por ele
e a posição de outras classes por detrás dessas
interpretações deformantes. Esse processo de deformação
ficou ainda mais fácil após a morte de Marx, pois ele não
estava vivo para denunciar esse procedimento, como fez
em diversas cartas e na Crítica ao Programa de Gotha.

23
Esse é o caso de Labriola, Korsch, Pannekoek, Rühle, Mondolfo,
Mattick, Guérin, Debord, Debrito e uma longa lista de autores.
488
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A enorme importância de que se reveste a


obra teórica de Karl Marx para a prática
da luta de classe proletária consiste em ele
ter reunido pela primeira vez formalmente
numa unidade sólida, na totalidade viva
de um sistema científico, todo o conteúdo
das ideias novas que transcendem o
horizonte burguês e surgem
inelutavelmente na consciência do
proletariado a partir da sua situação
social.
Karl Korsch

Devemos encerrar este pequeno livro sobre as ideias


de Marx alertando que o que aqui se fez foi um breve
resumo de suas ideias centrais, que necessitariam e
demandariam aprofundamentos e desdobramentos. Sem
dúvida, estas lacunas podem ser preenchidas com leituras
das obras de Marx, especialmente as citadas no presente
texto.
No entanto, qualquer leitor poderá ver inúmeras
obras sobre o pensamento de Marx, mas deve estar atento
para o fato, já alertado pelo próprio Marx, que as
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

interpretações, como quaisquer outras representações, não


são neutras ou meramente intelectuais, pois estão ligadas
aos interesses, valores, concepções daqueles que as fazem.
Por isso, a leitura do próprio autor, sem mediações dos
intérpretes, é um caminho aconselhável, principalmente no
caso de Marx, que produziu uma obra crítica, polêmica,
erudita. Neste sentido, as objeções políticas a Marx muitas
vezes proporcionam críticas que parte da simplificação e
vulgarização do seu pensamento, o que não é privilégio
dos críticos de Marx mas também de muitos de seus
epígonos.
Enfim, o que podemos dizer é que para compreender
Marx é necessário ir à fonte, embora isto não seja
suficiente, pois também quem vai à fonte é um ser social
que teve um processo histórico de vida e posição social,
bem como valores, sentimentos, etc., derivados daí.
Dependendo de quais valores, sentimentos, interesses,
predisposições mentais, o leitor, mesmo tendo acesso à
fonte (lendo o maior número de obras possíveis), pode
cometer equívocos, geralmente não intencionais. Apesar
de não ser suficiente ir à fonte, é necessário. A leitura
490
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

crítica, no sentido de contextualizada, tanto no sentido de


entender o contexto social e histórico do autor, mas
também da evolução do seu pensamento, é outro elemento
importante. A compreensão da perspectiva do autor, suas
preocupações fundamentais, é um aspecto fundamental.
Esses são alguns dos processos fundamentais que
contribuem para uma leitura mais próxima possível do
autor e do que ele realmente quis dizer.
Expusemos em grandes linhas o pensamento de Karl
Marx, destacando sua concepção de natureza humana,
alienação, modo de produção, luta de classes, ideologia,
dialética, capitalismo, revolução proletária e comunismo.
Outros temas seriam necessários acrescentar, mas esta
introdução geral e panorâmica já introduz o leitor no
universo de pensamento de Marx e permite uma percepção
de sua produção teórica.
Em síntese, o complexo pensamento de Karl Marx
apresenta algumas teses centrais aqui expostas e um
conhecimento mais aprofundado requer pesquisa e
aprofundamento, mas consideramos que realizamos a

491
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

tarefa que nos propomos, apresentar uma introdução


sintética e mais simples possível de sua obra.
O destino das ideias de Karl Marx foi bastante cruel
com o seu autor. Um pensador humanista e que
compreendia a natureza humana como a liberdade, o livre
desenvolvimento do conjunto das potencialidades do ser
humano onilateral, social e práxico, que denunciou a
alienação e a necessidade de uma revolução para superá-
la, que seria uma revolução proletária que libertaria a
humanidade desse pesadelo, foi transformado em
“estatista”, “determinista”, responsável por regimes
ditatoriais que realizaram o contrário do que ele defendia.
A herança do pensamento de Marx foi apropriada
por deformadores, indo dos social-democratas e seus
sucessores bolcheviques e todos os derivados dessas duas
tendências, passando por seus pseudocríticos dos mais
variados tipos, até chegar aos deformadores acadêmicos de
todas as ciências particulares e abordagens possíveis. No
entanto, alguns poucos heroicos pensadores preferiram a
dignidade da interpretação correta. Mesmo com enganos e
equívocos pontuais, alguns conseguiram ultrapassar a
492
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

cegueira interpretativa gerada pelos detratores e epígonos.


No plano intelectual, alguns, como Rubel, buscaram
resgatar o pensamento de Marx, para além do
pseudomarxismo, em que pese sua linguagem e outros
aspectos estar bem aquém da dialética materialista. Da
mesma forma, no plano político, os chamados “comunistas
de conselhos”, críticos radicais da social-democracia e do
bolchevismo, bem como aqueles que mais recentemente
retomaram Marx e o conselhismo, os marxistas
autogestionários, buscaram recompor a concepção política
de Marx. Outros, em questões pontuais, poderiam ser
citados, como a análise do capitalismo em Jean Barrot
(1977) ou em Cleaver (1981); a análise da teórico-
metodológica em Labriola, Korsch, Lukács, entre outros; a
análise de sua concepção de comunismo em Berger
(1977), Tragtenberg (1989), entre outros.
O destino das ideias de Marx reproduziu o elemento
teórico fundamental do materialismo histórico: a luta de
classes. No fundo, os pseudocríticos e pseudomarxistas
expressam perspectivas de classe distintas da de Marx, o
que gera as pseudocríticas e as deformações. Por outro
493
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

lado, aqueles que partem da perspectiva do proletariado,


ou pelo menos se aproximam dela, já avançam numa
compreensão mais profunda de seu pensamento. O motor
da história é a luta de classes, afirmou Marx, e,
poderíamos, parafraseando-o, afirmar que a explicação da
história das interpretações do pensamento de Marx se
encontra na luta de classes.
Curiosamente, a luta de classes, elemento
fundamental do pensamento de Marx, foi justamente
expurgada do seu pensamento, tanto por causa do
cientificismo quanto por interesses de classes, que, no
fundo, se complementam. Os pseudomarxistas fizeram
questão de trocar a luta de classes por “querelas de
partido” e assim substituírem o proletariado por sua luta
pelo poder estatal. O proletariado foi substituído por
partidos ou por estados, falsamente chamados de
“socialistas”.
Esse processo todo apenas confirmar a tese básica de
Marx a respeito da consciência, que é nada mais do que o
ser humano, como indivíduo real e concreto, envolvido
nas relações sociais, consciente. A consciência de Marx
494
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

foi parcialmente transmitida para os seus textos e sua


interpretação é realizada por outros indivíduos que, com
sua consciência (derivada, tal como no caso de Marx, do
seu processo história de vida), interpretam a sua obra. Os
limites das interpretações são os das relações limitadas dos
intérpretes com a sociedade que os fazem seres humanos e
sob a forma específica como se formaram.
Assim, esta obra é apenas uma breve tentativa de
resgatar os elementos essenciais do pensamento de Marx.
Indo da preocupação fundamental desse autor, um
humanista que visa a libertação humana da alienação, e do
meio fundamental para realizar tal objetivo, a revolução
proletária, constituindo o comunismo ou a “livre
associação dos produtores”, pensamos ter resgatado a
essência de sua concepção. Julgamos ter efetivado nosso
objetivo e os leitores podem julgar diferente, mas o nosso
julgamento nos permite o sono dos justos e ficaremos
satisfeitos se aqueles que nos julgam também possam
dormir com a consciência tranquila, pois mesmo que tenha
sido equivocado, foi um julgamento honesto.

495
REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis e BADIOU, Alain. Materialismo


Histórico e Materialismo Dialético. 2a edição, São Paulo:
Global, 1986

ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. Rio de Janeiro:


Zahar, 1979.

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 2ª


edição, Rio de Janeiro: Graal, 1985.

ANDERSON, Perry. A Crise da Crise do Marxismo. São


Paulo: Brasiliense, 1984.

ARON, Raymond. Novos Temas de Sociologia


Contemporânea: Luta de Classes. Lisboa: Presença, 1964.

ASSOUN, P. L. e RAULET, G. Marxismo e Teoria


Crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

ASTRADA, Carlos. Trabalho e Alienação. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1968.

BARROT, Jean. O Movimento Comunista. Lisboa: Etc,


1977.

BERGER, Claude. Marx frente a Lênin. Associación


Obrera o Socialismo de Estado. Madrid: Zero, 1977.
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

BLUMENBERG, Werner. Karl Marx en Documentos


Propios y Testimonios Graficos. Madrid: Edicusa, 1970.

BOBBIO, Norberto. O Conceito de Sociedade Civil. Rio


de Janeiro: Edições Graal, 1982.

BOTTOMORE, Tom e RUBEL, Maximilien. Sociologia e


Filosofia Social de Karl Marx. Rio de Janeiro: Zahar,
1964.

BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo:


Companhia das Letras, 1996.

CLEAVER, Harry. Leitura Política de O Capital. Rio de


Janeiro: Zahar, 1981.

CUVILLIER, Armand. Introdução à Sociologia. São


Paulo: Nacional, 1979.

DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. São Paulo:


Hemus, 1979.

DEBRITO, Carlos. Marx, Um Elogio Crítico. Lisboa,


Antígona, 1985.

DRAPER, Hal. Lassalle e o Socialismo de Estado. Revista


Marxismo e Autogestão. Vol. 2, num. 4, jul./dez. de 2015.
Link: http://redelp.net/revistas/index.php/rma

498
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. 4ª edição,


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

ENGELS, Friedrich. Anti-Düring. 3ª edição, Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1990.

ENGELS, Friedrich. Carta a Franz Mehring. In: MARX,


Karl e ENGELS, Friedrich. Cartas Filosóficas e o
Manifesto Comunista de 1848. São Paulo: Moraes, 1987b.

ENGELS, Friedrich. Carta a Joseph Bloch. In: MARX,


Karl e ENGELS, Friedrich. Cartas Filosóficas e o
Manifesto Comunista de 1848. São Paulo: Moraes, 1987a.

ENGELS, Friedrich. Carta a Konrad Schmidt. In: MARX,


Karl e ENGELS, Friedrich. Cartas Filosóficas e o
Manifesto Comunista de 1848. São Paulo: Moraes, 1987c.

ETZIONI, Amitai. Organizações Complexas. São Paulo:


Atlas, 1978.
FIORAVANTE, Eduardo. Modo de Produção, Formação
Social e Processo de Trabalho. In: GEBRAN, Philomena
(org.). Conceito de Modo de produção. 2a edição, Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1991

FROMM, Erich. O Conceito Marxista do Homem. Rio de


Janeiro: Zahar, 1983.

GIDDENS, Anthony. A Estrutura de Classes das


Sociedades Avançadas. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

499
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

GOLDMANN, L. Sociologia do Romance. 3ª edição, Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

GORZ, André. Adeus ao Proletariado. Rio de Janeiro:


Forense, 1982.

GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. 7ª


edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

GUILLERM, Alain e BOURDET, Yvon. Autogestão:


Mudança Radical. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

GURVITCH, Georges. As Classes Sociais. São Paulo:


Global, 1982.

HAUPT, Georg. Marx e o Marxismo. In: HOBSBAWM, E.


(Org.). História do Marxismo. Vol. 1. 3ª Edição, Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987.

HEGEL, G. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas de


Epítome. Vol. 1. Lisboa: Edições 70, 1988.

HEGEL, G. F. Fenomenologia do Espírito. Parte 1.


Petrópolis: Vozes, 1992.

HELLER, Agnes. Para Mudar a Vida. São Paulo:


Brasiliense, 1982.

HESSEN, J. Teoria do Conhecimento. 8ª edição. Coimbra:


Armênio Amado, 1987.

500
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder


de um Estado Eclesiástico e Civil. In: Col. Os Pensadores.
3ª edição, São Paulo: Abril Cultural, 1983.

KONDER, Leandro. Marxismo e Alienação. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

KORSCH, Karl. Karl Marx. Barcelona: Ariel, 1983.

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto:


Afrontamento, 1977.

KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 1986.

LA GRASSA, Gianfranco. Modo de Produção, Relações


de Produção e Formação Econômico-Social. In: SERENI,
Emilio e outros. Modo de Produção e Formação
Econômico-Social. Lisboa: Estampa, 1974.

LABRIOLA, Antonio. La Concepción Materialista de la


Historia. Madrid: Editorial 7, 1979.

LAPASSADE, Georges. A Entrada na Vida. Lisboa:


Edições 70, 1975.

LEFEBVRE, Henri. A Sociologia de Karl Marx. Rio de


Janeiro: Forense, 1979.

LÊNIN, W. As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas


do Marxismo. São Paulo: Global, 1985.
501
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

LÊNIN, W. Materialismo e Empiriocriticismo. Rio de


Janeiro: Mandacaru, 1978.

LÊNIN, W. O Estado e a revolução. São Paulo: Global,


1987.

LÊNIN, W. Que Fazer? São Paulo: Hucitec, 1978a.

LÊNIN, Wladimir. Como Iludir o Povo? São Paulo:


Global, 1979.

LÊNIN, Wladimir. Estado, Ditadura do Proletariado e


Poder Soviético. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1988.

LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano.


3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1983.

LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. 2ª


edição, Rio de Janeiro: Elfos, 1989.

LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os princípios


ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria
Ciências Humanas, 1979.

LUPORINI, Cesare. Marx Segundo Marx. In: Sereni,


Emilio e outros. Modo de Produção e Formação
Econômico-Social. Lisboa: Estampa, 1974.

MALINOWSKI, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico


Ocidental. 3a edição, São Paulo: Abril Cultural, 1978.
502
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

MARCUSE, Herbert. Materialismo Histórico e


Existência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã


(Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Hucitec, 1991.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 3ª


ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã.


Vol. 2. Lisboa: Presença, 1979.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família.


Lisboa: Presença, 1979.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido


Comunista. 6ª edição, São Paulo: Global, 1990.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido


Comunista. In: LASKI, Harold. J. O Manifesto Comunista
de Marx e Engels. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido


Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Sobre Arte e


Literatura. São Paulo: Global, 1986.

503
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

MARX, Karl. A Comuna de Paris. In: VIANA, Nildo


(org.). Escritos Revolucionários Sobre a Comuna de
Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.

MARX, Karl. A Guerra Civil na França. 2ª edição, São


Paulo: Global, 1986.

MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª edição, São


Paulo: Global, 1989.

MARX, Karl. A Questão Judaica. São Paulo: Moraes,


1978.

MARX, Karl. Anotações ao Livro de Bakunin, “O Estado


e a Anarquia”. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O
Anarquismo. São Paulo: Acadêmica, 1987.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia


Política. 2ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983b.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. Lisboa:


Nunes, 1974.

MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.


Lisboa: Presença, 1978.

MARX, Karl. Crítica de la Filosofía del Derecho de


Hegel. Buenos Aires: Ediciones Nuevas, 1968.

504
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

MARX, Karl. Elementos Fundamentales para la Crítica


de la Economia Política (Grundrisse). 1857-1858. Vol. 2.
10ª edição, México: Siglo Veintiuno, 1985.

MARX, Karl. Escritos de Juventud sobre el Derecho.


1837-1847. Barcelona: Antrophos, 2008.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. In:


FROMM, Erich. O Conceito Marxista do Homem. Rio de
Janeiro: Zahar, 1983a.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 01.2. 3ª edição, São Paulo:


Nova Cultural, 1988b.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 02. 3ª edição, São Paulo:


Nova Cultural, 1988a.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 03. 3ª edição, São Paulo:


Nova Cultural, 1988d.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 04. 3ª edição, São Paulo:


Nova Cultural, 1988e.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 05. 3ª edição, São Paulo:


Nova Cultural, 1988c.

MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas A Kugelman.


5ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987a.

505
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

MARX, Karl. O Manifesto dos Três de Zurique. Revista


Marxismo e Autogestão. Vol. 01, num. 02, jul./dez. de
2014. Link: http://redelp.net/revistas/index.php/rma

MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. 6ª Edição, São


Paulo: Global, 1988f.

MARX, Karl. Teses Sobre Feuerbach. In: MARX, Karl e


ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª
Edição, São Paulo: Hucitec, 1991.

MARX, Karl. Trabalho Assalariado e Capital. 4ª Edição,


São Paulo: Global, 1987b.

MATHIAS, G. e SALAMA, P. O Estado


Superdesenvolvido. São Paulo: Brasiliense, 1983.

MCLELLAN, David. As Ideias de Marx. São Paulo:


Cultrix, 1993.

MCLELLAN, David. Karl Marx. Petrópolis: Vozes, 1989.

MÉSZÁROS, Istvan. A Teoria da Alienação em Marx. São


Paulo: Boitempo, 2006.

MEUSEL, A. O Proletariado. In: IANNI, Octávio. (Org.).


Teorias da Estratificação Social. 3ª Edição, São Paulo:
Nacional, 1978.

MONDOLFO, Rodolfo. El Materialismo Histórico em F.


Engels y Otros Ensayos. Buenos Aires: Raigal, 1956.
506
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

MONDOLFO, Rodolfo. Estudos Sobre Marx. São Paulo:


Mestre Jou, 1967.

MOURA, José Barata. Ideologia e Prática. Lisboa,


Caminho, 1978.

NICOLAUS, Martin. El Marx Desconocido. Proletariado


y Clase Media en Marx. Barcelona: Anagrama, 1969.

OSSOWSKI, Stanislaw. Estrutura de Classes na


Consciência Social. 2ª edição, Rio de Janeiro: Zahar,
1976.

PANNEKOEK, Anton. Lenin Filosofo. Córdoba: PYP,


1973.

PANNEKOEK, Anton. Los Consejos Obreros. Madrid:


Zero, 1977.

PEIXOTO, Maria Angélica. Para Entender a Alienação:


Marx, Marcuse, Fromm. Revista Espaço Acadêmico. Ano
10, num. 110, julho de 2010.

PLEKHANOV, Georg. Princípios Fundamentais do


Marxismo. 2ª Edição, São Paulo: 1990.

ROUANET, Sérgio Paulo. Imaginário e Dominação. Rio


de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

507
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso Sobre a Origem e os


Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. São
Paulo: Ática, 1989.

RUBEL, Maximilien (org.). Páginas Escogidas de Marx


para una Ética Socialista. Vol. 1. Buenos Aires,
Amorrurtu, 1976.

RUBEL, Maximilien (org.). Páginas Escogidas de Marx


para una Ética Socialista. Vol. 2. Buenos Aires,
Amorrurtu, 1974.

RUBEL, Maximilien. El Estado visto por Karl Marx.


Barcelona, Etcétera, 1976.

RÜHLE, Otto. Karl Marx. Nova Iorque: The New Home


Library Edition, 1943.

SANTOS, Laymert G. Alienação e Capitalismo. São


Paulo: Brasiliense, 1982.

SCHAFF, Adam. La Alienación como Fenómeno Social.


Barcelona: Grijalbo, 1979.

SHAW, William. Teoria Marxista da História. Rio de


Janeiro: Zahar, 1979.

STÁLIN, Joseph. Materialismo Dialético e Materialismo


Histórico. 3a edição, São Paulo: Global, 1982.

508
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

SWEEZY, Paul. Capitalismo Moderno. Rio de Janeiro:


Graal, 1977.

TRAGTENBERG, M. Reflexões Sobre o Socialismo. 3ª


edição, São Paulo: Moderna, 1989.

VIANA, Nildo. “A Explicação nas Ciências Sociais”.


Fragmentos de Cultura. IFITEG/UCG. Vol. 12, num. 05,
set./out. 2002.

VIANA, Nildo. A Alienação Como Relação Social.


Revista Sapiência (UEG). Vol. 01, num. 02, 2012.

VIANA, Nildo. A Consciência da História – Ensaios


sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio
de Janeiro: Achiamé, 2007b.

VIANA, Nildo. A Esfera Artística. Marx, Weber,


Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto Alegre: Zouk,
2007.

VIANA, Nildo. A Questão da Causalidade nas Ciências


Sociais. Goiânia: Edições Germinal, 2001.

VIANA, Nildo. A Teoria da População em Marx. Boletim


Goiano de Geografia. UFG, v. 26, n. 2, jul./dez./2006.

VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em Karl


Marx. Florianópolis: Bookess, 2012.

509
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

VIANA, Nildo. Cérebro e Ideologia. Uma Crítica do


Determinismo Cerebral. Jundiaí: Paco Editorial, 2010.

VIANA, Nildo. Classes Sociais, Burocracia e Intelectuais


no Pensamento de Karl Marx. Rio de Janeiro: Rizoma,
2016.

VIANA, Nildo. Darwin Nu. Revista Espaço Acadêmico.


Ano VIII, num. 95. Abril de 2009a.

VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia:


Alternativa, 2007a.

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. 2ª


edição, Rio de Janeiro: Rizoma, 2015a.

VIANA, Nildo. Introdução à Sociologia. Belo Horizonte:


Autêntica, 2005.

VIANA, Nildo. Karl Marx e a Essência Autogestionária


da Comuna de Paris. In: VIANA, Nildo (org.). Escritos
Revolucionários Sobre a Comuna de Paris. Rio de
Janeiro: Rizoma, 2011.

VIANA, Nildo. O Fim do Marxismo e outros ensaios. Rio


de Janeiro: Giz Editorial, 2007c.

VIANA, Nildo. O Manifesto Inaugural do Materialismo


Histórico. In: MARX, Karl e VIANA, Nildo. Introdução à
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: O Manifesto

510
Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente Nildo Viana

Inaugural do Materialismo Histórico. Rio de Janeiro: Ar


editora, 2016.

VIANA, Nildo. O Que é Marxismo. Rio de Janeiro: Elo,


2008b.

VIANA, Nildo. O Que São Partidos Políticos? Brasília:


Kíron, 2013.

VIANA, Nildo. Senso comum, representações sociais e


representações cotidianas. Bauru: Edusc, 2008.

511

Você também pode gostar