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VIII Jornadas de Economia Crítica

Rio Cuarto, 03 a 05 de setembro de 2015

Artigo: Interpretações de Marx e Interpretações da Crise


Atenágoras Oliveira Duarte1

1. Introdução: “Karl Marx manda lembranças”2 ou o retorno de quem nunca foi


Marx já foi morto, enquanto pensador e expressão de um projeto político, um número
incontável de vezes, em todos os cantos deste planeta. Considerá-lo superado, ultrapassado ou
simplesmente errado, sem maiores explicações quanto a tais considerações, foi a forma
encontrada por muitos oponentes teóricos e políticos que não conseguiram dar conta, no
mesmo patamar de complexidade e sofisticação teórica, da obra de Marx. “Matá-lo” sempre
foi uma forma de se evitar um confronto.
Mas Marx teorizou sobre a realidade, de maneira que a mesma frequentemente bate a
porta e força as Universidades, os governos e mesmo a grande mídia a admitirem, em algum
grau, a sobrevivência de suas formulações. Quanto mais profunda for a crise, mais viva é a
presença de Marx.
A crise de 2007/2008 não é apenas mais uma crise cíclica do capitalismo. A
profundidade, a amplitude e a complexidade da mesma autorizam a sua inclusão na condição
de Terceira Grande Depressão do capitalismo mundial, e que segue em curso, apesar de tantos
anúncios do seu fim. Frente a uma crise desta magnitude, embora existam contribuições
importantes por parte de outras vertentes teóricas heterodoxas (o mainstream não tem nada de
relevante a dizer sobre esta crise), o que se observa é uma crescente valorização do
pensamento de Marx (e de seus herdeiros) em diferentes esferas sociais, mesmo naquelas
mais marcadas pela missão hegemônica de propagar a ideologia capitalista e combater
concepções antagônicas.
O fato é que o pensamento marxista nunca deixou de existir, mesmo que amplamente
minoritário, mesmo que residual em vários países. Nunca deixaram de surgir, em maior ou
menor medida, marxistas com o propósito de dar continuidade às contribuições de Marx e de
Engels. Existem vários pesquisadores e grupos de pesquisadores que se reivindicam

1
Professor de Economia do Núcleo de Gestão do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) – Brasil. Pesquisador integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas (GEPMARX)
da UFPE e do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Econômica e Economia Política (GEPHEEP) da UFPE.
2
Expressão tomada emprestada de Benjamin (2008).

1
marxistas, em muitos países do mundo.3 Ainda não foi inventado um “medidor de marxismo”
que tenha conquistado o reconhecimento da maioria, mas decerto que discutir o que é e o que
não é um método e uma teoria marxista faz parte do próprio processo de desenvolvimento da
ciência.
Como não poderia deixar de ser, a crise do capitalismo mundial exposta em 2007/2008
resgatou o reconhecimento da obra de Marx, mas também fomentou diferentes interpretações
oriundas dos seus herdeiros, ou pelo menos daqueles que reivindicam sua herança teórica e/ou
política.
Este artigo não pretende apresentar nenhum “medidor de marxismo”, mas tão somente
problematizar o debate e apresentar mais uma interpretação possível da crise a partir de Marx
e da tradição do pensamento marxista, como forma de contribuir com o processo de
aprendizado. A ideia é investigar o que se considera definidor do pensamento científico
legitimamente herdeiro das contribuições de Marx e Engels, para tentar melhor referenciar as
diferentes interpretações marxistas da crise. Em segundo lugar, explorar as potencialidades e
as aparentes deficiências de algumas interpretações marxistas da crise. Por fim, apresentar
mais uma interpretação sobre a crise, resultante da articulação de algumas interpretações
consideradas ao longo do trabalho.

2. Interpretações de Marx

A amplitude e complexidade das diversas interpretações de Marx não cabem em um


artigo, nem em um livro, talvez nem em uma coleção de livros. Trata-se de mais de um século
e meio de estudos e debates do qual não se tem qualquer pretensão de sintetizar. O
entendimento apresentado neste artigo é que o ponto central, definidor da natureza das teorias
de Marx, é o seu método.4 Em especial, não se deve considerar o método em Marx enquanto
definição prévia de regras e postulados que servem para interpretar qualquer realidade. 5 O
método em Marx tem mais relação com um conjunto de procedimentos a partir dos quais os

3
Em pesquisa realizada no portal Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) do Brasil, em 04 de junho de 2015, considerando o nome do grupo, sua principal linha de pesquisa e as
palavras-chaves do grupo para a palavra de referência “Marx” foi obtida uma lista com 158 grupos de pesquisa
cadastrados neste órgão que estudam, direta ou indiretamente, Marx. Os encontros internacionais de economia
política também são marcados por forte presença de pesquisadores fundamentados no marxismo.
4
Netto (2011) destaca a dificuldade em apresentar um método em Marx, dada a natureza da integração entre
método científico e objeto investigado.
5
“Não oferecemos ao leitor um conjunto de regras porque, para Marx, o método não é um conjunto de regras
formais que se “aplicam” a um objeto que foi recortado para uma investigação determinada nem, menos ainda,
um conjunto de regras que o sujeito que pesquisa escolhe, conforme a sua vontade, para “enquadrar” o seu
objeto de investigação.” [Netto, 2011, p. 52]

2
construtos ideais da realidade vão sendo formados, levando em conta que tais procedimentos
não são aplicações operacionais, mas sim que são categorias delimitadoras de como se pode
abstrair a realidade, ou ainda, que tais categorias são instrumentos que também são objetos,
pois vão sendo constituídas no processo de investigação científica.6 O método, portanto, vai
sendo formado a partir de sua integração com o objeto pesquisado, 7 e segue o sentido da
abstração como recurso de compreensão da realidade concreta.
Pode-se denominar o método de Marx de materialismo histórico8 e dialético,9 mas sem
uma clara apresentação destas categorias tal denominação pode perder o sentido. Abaixo são
apresentados os contornos de como se entende, nos marcos deste artigo, estes componentes do
método de Marx.

# Materialismo não determinista


O materialismo enquanto entendimento da existência objetiva de uma realidade natural
na qual a espécie humana está inserida, o materialismo enquanto identificação do papel desta
realidade na formação de nossa subjetividade são caracterizações por demais presentes em
outras áreas das ciências, de maneira que quase soa estranha a necessidade de sua
reafirmação. Mas o resgate de que as ideias são formadas sob determinadas condições
objetivas é ponto crucial no método de Marx. A identificação do ambiente sob o qual a
subjetividade humana é formada não significa, em hipótese alguma, a adoção de um
determinismo, no qual não exista nem vontade nem escolhas.10 A máxima de Marx,
apresentada logo no início de sua obra “18 Brumário” segundo a qual a humanidade faz sua
própria história, mas não como quer, e sim a partir de determinadas condições objetivas,11

6
Tal se pode concluir menos de citações diretas de Marx, e mais da análise crítica de sua obra: “... Marx não nos
apresentou o que “pensava” sobre o capital, a partir de um sistema de categorias previamente elaboradas e
ordenadas conforme operações intelectivas: ele (nos) descobriu a estrutura e a dinâmica reais do capital; não
lhe “atribuiu” ou “imputou” uma lógica: extraiu da efetividade do movimento do capital a sua (própria,
imanente) lógica – numa palavra, deu-nos a teoria do capital: a reprodução ideal do seu movimento real.”
[Netto, 2011, p. 52 e 53, grifos no original]
7
“... é a estrutura e a dinâmica do objeto que comandam os procedimentos do pesquisador. O método implica,
pois, para Marx, uma determinada posição (perspectiva) do sujeito que pesquisa: aquela em que se põe o
pesquisador para, na sua relação com o objeto, extrair dele as suas múltiplas determinações.” [Netto, 2011, p.
53, grifo no original]
8
“... o que havia de essencial e de fecundo no “método naturalista”, que permite apanhar o que é geral nas
coisas; e o que havia de essencial no “método histórico”, que permite captar as coisas em sua singularidade –
deram origem a um novo método de trabalho científico, conhecido posteriormente sob o nome de “materialismo
histórico”.” [Fernandes, 2008, p. 22].
9
Há quem prefira denominar o método de Marx apenas de “Materialismo Histórico”, e considerar a dialética
como fundamento central deste paradigma. Um exemplo desta abordagem pode ser visto em Barros (2011).
10
Sobre a questão do determinismo no marxismo, vide Barros (2011, p. 67 a 101).
11
“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de
sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A
tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” [Marx, 1982, pág. 7]

3
constitui-se em um dos pontos centrais na formação de abstrações descritivas e
interpretadoras da realidade por parte de Marx, assim como na definição de suas posições
políticas. Não se escolhe a realidade previamente existente, mas existem escolhas quanto ao
que se fazer frente a esta realidade.

# Abordagem histórica
Não se transforma (e esse sempre foi o objetivo central da elaboração teórica de Marx)
o que não se conhece, e não se conhece uma realidade se não é considerada sua trajetória,
como surge, como evolui, como se transforma. Mais do que usar a história como laboratório
das teorias sociais, a tradição de Marx destaca o entendimento que os fenômenos sociais são
eles mesmos definidos historicamente. Esta compreensão demanda também o pressuposto da
particularidade, ou seja, que cada categoria social é historicamente definida em seus próprios
termos, de maneira que não se pode falar de uma evolução histórica linear, mas sim de um
mosaico de processos simultâneos, antagônicos ou complementares, com suas próprias
temporalidades de curta ou longuíssima duração e diferentes graus de complexidade. Marx
não buscava regras universais e a-históricas, mas sim a compreensão de processos históricos,
cada um deles regido por suas próprias “leis” sociais.12
O materialismo em Marx permite a identificação do que há de “universal” nos
processos sociais, pois identifica os elementos objetivos constitutivos da realidade, enquanto
que sua qualificação de ser histórico permite resgatar as particularidades inerentes a todo
processo social. A conjugação destes dois recortes permite a visualização das transformações
da realidade objetiva em formatos particulares a cada momento do processo histórico.13

# Abordagem Dialética
Marx enxergava uma realidade dinâmica, mas buscou a lógica embutida nesta
dinâmica, para além do mero acaso. E esta lógica da dinâmica ele foi buscar em Hegel, na
categoria da dialética. É crucial observar que, em Marx, esta categoria não é dissociada da
percepção materialista da realidade, de maneira que Hegel inspira Marx, mas a dialética de

12
“As leis a que as “ciências históricas” – todas as ciências não naturais – podem chegar são leis históricas,
porque cada período histórico se rege por suas próprias leis. Essa ideia já tinha sido formulada [por Marx] com
veemência na polêmica com Proudhon – as leis econômicas manifestam-se enquanto duram as relações que
exprimem.” [Fernandes, 2008, p. 21]
13
“... o próprio movimento da realidade estabelece uma lei de interpenetração dos contrários, por meio da qual
é possível compreender inclusive o elemento comum e sua validade como fator explicativo. Sem os elementos
comuns, o próprio desenvolvimento acumulativo da cultura e as transições bruscas de um período histórico
para outro, com as correspondentes mudanças de organização social motivadas pelas transformações das
relações de produção, seriam inexplicáveis.” [Fernandes, 2008, p. 22]

4
Marx não é a dialética de Hegel, pois é formulada a partir de uma análise materialista da
realidade.
A lógica da transformação a partir das contradições permite visualizar uma realidade
para além do empírico, com a busca pelas tendências que estão em gestação e que podem
aflorar ao empírico em velocidades inesperadas. Estas tendências correspondem a respostas
sistêmicas das contradições existentes. É a partir desta abordagem que se consegue ver as
transformações do capitalismo antes delas aflorarem. Se o materialismo permite a
visualização dos fatores objetivos comuns a diferentes realidades, se a historicidade resgata a
dimensão da particularidade das realidades sociais, a dialética confere à dinâmica de
transformações uma lógica, baseada nas contradições da realidade, que indicam os sentidos
possíveis destes processos históricos.
O conceito de contradição dialética não é trivial, podendo se fazer distinções entre as
formulações de Marx14 e as formulações da tradição marxista que lhe seguiu.15 De parte deste
artigo, simplifica-se o conceito enquanto o antagonismo, dissonância ou divergência entre os
componentes de uma realidade, que são, eles mesmos, totalidades menores dentro de
totalidades maiores. As contradições dialéticas se manifestam, em especial, no âmbito das
tendências e contratendências que formam a totalidade de processos (de diferentes
temporalidades e diferentes complexidades) em curso na realidade, na condição de fontes
deste dinamismo da realidade.
É importante ainda destacar essa aplicação da lógica dialética em totalidades formadas
por outras totalidades, formando um emaranhado de tendências e contratendências com suas
respectivas dinâmicas e contradições próprias. O que se quer dizer com isso é que a aplicação
da dialética no estudo do capitalismo precisa levar em conta uma realidade estratificada, de

14
Para efeito de ilustrar a complexidade do tema, apresenta-se uma interpretação, entre outras, acerca do
entendimento sobre a categoria de contradição dialética para Marx: “Nas obras econômicas da maturidade de
Marx, o conceito de contradição é empregado para designar, entre outras coisas: (a) inconsistências lógicas ou
anomalias teóricas intra-discursivas; (b) oposições extra-discursivas como, por exemplo, a oferta e a procura
que envolvem forças ou tendências de origens (relativamente) independentes as quais interagem de tal modo
que seus efeitos tendem a se anular mutuamente, em momentâneo ou semipermanente equilíbrio; e (c)
contradições dialéticas estruturais (ou sistêmicas).” [Bottomore, 2001, p. 80]
15
Seguindo o mesmo propósito da nota de rodapé anterior, apresenta-se uma diferenciação possível da
abordagem desta categoria na tradição marxista: “Na tradição marxista, as contradições dialéticas se têm
caracterizado em contraste com (i) as oposições ou conflitos exclusivos ou “reais” (...), pois seus termos ou
polos pressupõem-se mutuamente, de modo a constituir uma oposição inclusiva; e com (ii) as oposições lógicas
formais, pois as relações envolvidas são dependentes de significado (ou conteúdo), e não puramente formais, de
modo que a negação de A não leve ao seu cancelamento abstrato, mas à criação de um conteúdo mais
abrangente, novo e superior. Associado ao primeiro contraste está o tema da “unidade dos contrários”, a
marca registrada de toda a dialética ontológica marxista, de Engels a Mao Tse-tung. Associados ao segundo
contraste, estão os temas da “negação determinada”, da crítica imanente e da totalização, que são a marca
registrada da dialética relacional, de Lukács a Sartre. Em ambos os aspectos, as contradições dialéticas são
tidas como caracteristicamente concretas.” [Bottomore, 2001, p. 80, grifos no original]

5
maneira que uma dimensão da realidade pode estar em uma velocidade de transformação
bastante distinta de outras dimensões desta mesma realidade. A totalidade do sistema
capitalista não deve ser vista como a homogeneidade do sistema capitalista: o mesmo é
composto por diferentes processos e dimensões econômicas, políticas, culturais, sociais,
tecnológicas, de maneira que o uso da lógica dialética precisará buscar as contradições
específicas de cada uma destas dimensões para poder compreender como são formadas as
contradições resultantes do conjunto do sistema (o que significa dizer que existe uma
hierarquia, histórica e dinâmica, entre os componentes de cada sistema).

# Totalidade, contradição e mediação


O método de Marx pode ser denominado de Materialismo Histórico e Dialético, mas
também é possível retratar sua natureza a partir da conjugação das três categorias que foram
usadas acima e que são destacadas na literatura:16 a totalidade (que é estratificada), a
contradição (dialética) e a mediação. No primeiro caso, a totalidade constitui-se em categoria
obrigatória na percepção da realidade que o materialismo nos confere. Também ela pode ser
vista dentro da abordagem histórica quando se entende a mesma enquanto ferramenta teórica
de descrição e interpretação do desenrolar da realidade em determinados recortes temporais.
A contradição dialética, por sua vez, está presente no desenrolar e na apreensão desta
realidade, na compreensão que as partes constitutivas do real incluem antagonismos e
complementaridades dentro de um processo de transformação. A própria diferenciação das
temporalidades e das complexidades já se constitui em fator suficiente para geração de
contradições, com processos ocorrendo em velocidades e complexidades distintas. Já a
mediação vem a ser uma categoria voltada a identificar as relações entre os processos
diferenciados que ocorrem na sociedade, e que permite a percepção da totalidade enquanto
uma “unidade do diverso”.17

16
Percepção adotada por Netto (2011), que explicita a existência de uma conexão indissociável entre teoria e
método, e segundo o qual: “... é nesta conexão que encontramos plenamente articuladas três categorias – de
novo: teórico-metodológicas – que nos parecem nuclear a concepção teórico-metodológica de Marx, tal como
esta surge nas elaborações de e posteriores a 1857 (ainda que lastreadas em sua produção anterior). Trata-se
das categorias de totalidade, de contradição e de mediação” [Netto, 2011, p. 55 e 56, grifos no original]
17
“... uma questão crucial reside em descobrir as relações entre os processos ocorrentes nas totalidades
constitutivas tomadas na sua diversidade e entre elas e a totalidade inclusiva que é a sociedade burguesa. Tais
relações nunca são diretas; elas são mediadas não apenas pelos distintos níveis de complexidade, mas,
sobretudo, pela estrutura peculiar de cada totalidade. Sem os sistemas de mediações (internas e externas) que
articulam tais totalidades, a totalidade concreta que é a sociedade burguesa seria uma totalidade indiferenciada
– e a indiferenciação cancelaria o caráter do concreto, já determinado como “unidade do diverso”.” [Netto,
2011, p. 57 e 58, grifos no original]

6
Um quarto elemento – que não se configura exatamente como uma categoria, mas
enquanto um reconhecimento da estrutura da realidade – precisa ser citado: a existência de
múltiplas determinações. Entender a realidade concreta como o resultado da interação entre
tendências e contratendências, entre processos e categorias diferenciados, permite-nos
perceber que a pesquisa científica faz recortes buscando viabilizar a decodificação ideal da
realidade, mas em hipótese alguma se pode perder de vista a condição de múltiplas
determinações do real, sob o risco de não se conseguir minimamente apreender os contornos
da realidade concreta.18
Por esta percepção da realidade, é compreensível que se perceba dentro da totalidade
do sistema processos discrepantes e antagônicos compondo a natureza contraditória da
realidade. O sistema capitalista não funciona de forma homogênea, de maneira que se pode
observar processos opostos ocorrendo em diferentes países, ou dentro de um mesmo país, em
diferentes setores da economia, ou mesmo internamente a setores da economia (como, por
exemplo, diferenciações de processos entre pequenas e grandes empresas de um setor). Este
entendimento é importante para não se cair na armadilha de tentar entender a dinâmica do
sistema a partir do exame de apenas um dos seus componentes, mesmo que seja o
componente principal. Ao mesmo tempo, não se pode subestimar o papel da hegemonia de
um país na condução do sistema capitalista, e se centrar na análise apenas de partes que são
dinâmicas do sistema, mas que também estão em condição periférica. A trajetória do sistema
ocorre pela resultante dos processos.

3. Interpretações marxistas da crise


3.1 – As crises do capitalismo em Marx
Marx desenvolve “O Capital” seguindo a tradição científica de partir do simples para o
complexo. A exposição de Marx sai do abstrato para o concreto, da harmonia consistente do
processo de acumulação para a crise oriunda das contradições do sistema a partir exatamente
de seus sucessos. Por esse procedimento, não há inconsistência quando os 3 livros de “O

18
Marx contrapõe dois métodos de análise econômica, do que conclui: “O concreto é concreto porque é a
síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o
processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e,
portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação. No primeiro método, a representação
plena volatiliza-se em determinações abstratas, no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução
do concreto por meio do pensamento. Por isso é que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do
pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto que o método que
consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se
apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o processo
da gênese do próprio concreto.” [Marx, 1982, p. 14, grifos no original]

7
Capital” apresentam resultados diferentes para o processo de acumulação de capital, quando
contradições que não aparecem no Livro I vão aparecer no Livro III. Ao contrário: a lógica
dialética demanda estes momentos antagônicos. Não é uma contradição da obra de Marx a
ocorrência de crise no capitalismo assumir formatos distintos, e até mesmo parecer inexistir.
É uma contradição do sistema capitalista.
A crise capitalista é a crise do processo de acumulação de capital, que engloba a taxa
de lucros e as formas de sua realização (capital comercial, capital produtivo, capital
financeiro). Uma redução da capacidade produtiva do sistema econômico tende a ser uma
crise, mas não de caráter estrutural ou sistêmico,19 e sim uma crise cíclica, típica do sistema
capitalista (ciclos de temporalidade irregular, dada a diversidade e a natureza das variáveis
que o definem). Se há uma regressão na capacidade produtiva, mas está ocorrendo uma
expansão dos lucros da parcela hegemônica dos capitalistas, a economia pode ser considerada
em crise, mas o capitalismo enquanto sistema, não. Pelo menos não enquanto não atingir a
condição hegemônica capitalista. Por outro lado, pode ocorrer uma expansão da capacidade
produtiva de uma economia e o sistema capitalista estar em crise devido à queda na taxa
média de lucros (como ocorreu com a Primeira Grande Depressão, de 1873 a 1896). Esta
diferenciação permite uma qualificação das crises dentro de uma perspectiva marxista, tanto
do ponto de vista das múltiplas determinações (a economia apresentaria diferentes formas de
crises), quanto da definição da natureza do objeto.
Embora estejamos tratando de crises econômicas, entende-se aqui que não existe
compartimento estanque da esfera econômica. Seguindo a percepção de múltiplas
determinações, e lembrando que Marx formulou sua crítica sobre a Economia Política
enquanto campo pesquisado (em nenhum momento ele tratou como sendo “Economia Pura”),

19
Não há definições claras e consensuais sobre o que seriam crises estruturais e o que seriam crises sistêmicas.
De minha parte, estou considerando que uma crise é estrutural quando atinge pelo menos um dos componentes
da estrutura do sistema capitalista, e seria sistêmica quando alcançasse um conjunto de componentes da estrutura
a ponto de comprometer o funcionamento do sistema capitalista. Este comprometimento não significa a
ocorrência de uma “crise final” do sistema, mas significa a necessidade de transformações profundas no mesmo,
que, em determinadas condições históricas, poderia significar a mudança de sua própria natureza. Ou seja: crise
“final” seria a última crise sistêmica do capitalismo. Mas esta condição (de ser a última) não precisa decorrer de
qualquer característica intrínseca da crise, pois aqui também se considera que não há determinismos econômicos.
Revoluções socialistas são o fruto da ação de coletividades, sob condições objetivas dadas, e não o reflexo
automático de uma determinada situação econômica. Uma revolução socialista, a rigor, é a única solução de fato
e definitiva da crise no capitalismo, mas para efeito da percepção social, podem existir soluções nos marcos do
capitalismo, provisórias por definição (visto que a crise é da própria natureza do capitalismo), mas suficientes
para retomar algum grau de estabilidade política e social – mesmo que outros componentes profundos da crise
capitalista continuem em curso, sem estarem suficientemente aparentes para o conjunto da sociedade. Um
exemplo histórico muito claro desta contradição entre aparência e essência, e entre diferentes componentes da
realidade, é o caso da retomada de uma estabilidade política e social decorrente da redução do desemprego, em
vários países do mundo em diferentes momentos históricos na segunda metade do século XX, mesmo quando,
simultaneamente, avançavam a concentração de poder econômico e político e a destruição ambiental.

8
seja pelo papel das classes sociais, seja pelo papel do Estado (visto como um espaço de luta
de classes, mas que teria uma “autonomia relativa”). Explicita-se aqui a dimensão da
hegemonia política dentro dos Estados Nacionais como componente estrutural do sistema
capitalista. Entende-se aqui por Estado a instituição social com o domínio da violência em
escala social (em sentido mais amplo, da coerção), cujo controle define a condição da classe
dominante. Seu funcionamento, entretanto, segue a dimensão de “autonomia relativa”,
considerada aqui enquanto a situação pela qual os grupos políticos que atuam no Estado,
oriundos ou a serviço da classe dominante, assumem para si a tarefa de manutenção do
sistema, o que significa agregar a dimensão do consenso na formação da hegemonia sobre as
classes sociais dominadas. Este “consenso” só pode partir do atendimento parcial das
necessidades dos setores sociais aliados e até mesmo das classes diretamente antagônicas, a
partir do estabelecimento de uma agenda política hierarquizada conforme a força política de
cada setor social envolvido. O atendimento parcial de algumas necessidades das classes
sociais mais antagônicas ao sistema também se justifica como forma de desestímulo à
resistência contra a ordem estabelecida.
Por esse prisma, uma crise econômica conjuntural, que pode ser parcial (alguns setores
da economia) ou geral (todos os setores) em nível nacional ou internacional, pode ser também
classificada enquanto crise do trabalho (emprego e renda) e/ou crise do capital, na esfera
econômica, e se intercambiar as dimensões da crise também pelo canal político. Ou seja: uma
crise econômica pode ser na verdade uma crise para a força de trabalho, que sofre com o
desemprego e os baixos salários, sem se constituir em uma crise do capital, que pode,
simultaneamente e até a partir da própria queda dos salários, ter uma elevação da taxa média
de lucro. Mas, embora se constituam em classes sociais dominadas, os trabalhadores podem
fazer uso de seu poder político (maior ou menor de acordo com o momento histórico) para
pressionar pela ação do Estado, que no esforço da manutenção da própria hegemonia
capitalista, poderá buscar soluções que atinjam interesses particulares de capitalistas, com o
propósito de manutenção do funcionamento do sistema. A esfera política pode, portanto,
provocar uma redução na taxa média de lucro via aumento da tributação ou dos direitos
trabalhistas. Como a análise é sempre dinâmica, a depender do formato do modelo
econômico, esta transferência de recursos para a classe trabalhadora pode provocar um
aumento da demanda efetiva20, estimular a produção e resultar no aumento dos lucros.

20
Conceito que Marx não usava, mas que não compromete a exposição segundo uma lógica marxista, pois pode
ter equivalência com o problema da realização da produção na esfera da circulação. Observe-se que o mesmo

9
Por outro lado, uma queda nas taxas médias de lucro resulta em uma reação por parte
da classe capitalista, que vai buscar, direta ou indiretamente, ampliar a extração da mais-valia.
A ação política dos trabalhadores pode retardar este processo, mas a condição de classe
dominante tende a prevalecer no médio prazo, até porque, não se pode nunca confundir as
concessões do Estado às classes dominadas, com uma pretensa “neutralidade” do Estado que
não existe e nunca existiu. Historicamente, todo Estado tem uma classe dominante,21 que pode
sustentar agendas políticas bastante generosas para com as classes dominadas, mas nunca ao
ponto de comprometer o seu domínio da estrutura social. Sendo assim, se uma crise
econômica resulta na redução das taxas médias de lucros (e toda crise de superprodução tende
a isso), por relações econômicas diretas (demissões, não concessões de aumentos ou mesmo
redução efetiva de salários) e pela ação do Estado (com redução de direitos sociais, redução
de salários do setor público para aumentar o superávit primário e transferir aos capitalistas via
juros, e com repressão a greves), também irá resultar em uma crise da força de trabalho.
Seguindo os preceitos acima de estratificação da realidade social e de múltiplas
determinações, ainda se faz interessante conjugar hegemonia e diferenciações internas na
classe capitalista. A crise iniciada em 2007/2008 é um bom exemplo disso. Ocorreu (e ainda
ocorre) uma crise do emprego e da renda associada à queda da atividade econômica, mas que
engloba também o fechamento de empresas e o estreitamento de margens de lucros para
setores capitalistas. Contudo, o patrimônio das maiores fortunas do mundo aumentou.22 Para
avaliação de uma crise capitalista, portanto, não basta focar na evolução da taxa média de
lucro, pois a classe capitalista não age articuladamente enquanto um coletivo. Os detentores
efetivos da hegemonia social são os grandes capitalistas. Se eles estão contemplados com
satisfatórias taxas de lucro, a baixa lucratividade ou mesmo a quebra de empresas de
pequenos e médios capitalistas lhes beneficia economicamente (no curto prazo, por
possibilitar a aquisição de empresas, ou por afastar concorrentes, mesmo que de pequeno
porte), mas pode lhes afetar no curto prazo se, pela esfera da política, atingir, de alguma

critério se aplica aos termos de “coerção” e “consenso” como constituintes da hegemonia, ausentes entre as
expressões de Marx, mas implicitamente presentes em sua análise, como se observa no “18 Brumário”.
21
“O Estado não é, portanto, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro;
tampouco é “a realidade da ideia ética”, nem “a imagem e a realidade da razão”, como afirma Hegel. É antes
um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que
essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos
irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses
econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um
poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos
limites da “ordem”. Esse poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o
Estado.” [Engels, 2010, p. 213]
22
Carta Capital (2014).

10
maneira, o seu poder hegemônico. Até que tal aconteça, a queda da taxa média de lucro, se
incluir elevadas taxas de lucros para a maior parte do grande capital, mesmo que associada a
baixas taxas de lucros para pequenos, médios e até uma minoria de grandes capitalistas, não
conduz (ao contrário) a qualquer pressão econômica para mudança do sistema, por parte dos
detentores do poder econômico e político.23
A dimensão e a natureza da atual crise do capitalismo mundial (a conjugação de
superprodução com uma imensa “bolha” de capital fictício, em um momento histórico de
profunda degradação ambiental e desestruturação social) define seu caráter sistêmico, como
será detalhado adiante. Antes, contudo, é preciso resgatar as dimensões e tipos de crises que
podem ser consideradas a partir da obra de Marx.

Uma iniciativa no sentido de tentar sistematizar as formas teóricas de manifestação (e


desenvolvimento) de crises em Marx foi feita por Ribeiro (2009), que analisa as seguintes
dimensões:
1ª) O dinheiro como meio de circulação;
2ª) O dinheiro como meio de pagamento;
3ª) Contradição produção versus circulação;
4ª) Contradição produção versus consumo (capital produtivo);
A estas formas, Ribeiro (2009) acrescenta o papel do capital mercantil e do capital
bancário para superdimensionar as contradições citadas e a crise por superprodução.
Outro autor que investiga as dimensões das crises econômicas capitalistas segundo a
obra de Marx, é Romero (2009), que organiza textos de Marx e Engels para corroborar a
síntese apresentada na introdução da obra. Nesta síntese o autor identifica as quatro
dimensões da crise nas teorias de Marx e Engels: 1) A análise da crise no âmbito do processo
de circulação; 2) A análise da crise no âmbito da produção, centrada na tendência à queda da
taxa de lucro; 3) A análise da crise no âmbito da realização da mais-valia; 4) A crise como
expressão dos limites do capitalismo.
Estes são apenas dois exemplos de sistematização das teorias de Marx sobre as crises
no capitalismo. É crucial destacar que cada teoria citada sobre a crise no capitalismo é
desenvolvida em diferentes pontos da obra de Marx, de maneira que as mesmas não
expressam exatamente processos equivalentes ou alternativos, isto é, tais dimensões são
conectadas entre si, podendo uma forma de crise ser a expressão do desenvolvimento de outra

23
Benayon (2014).

11
forma, como se detalha adiante, na interpretação sobre a crise atual ser centrada no
subconsumo. Considerando as iniciativas acima, a ressalva quanto as conexões e
sobreposições entre os diferentes tipos de crise, e avaliando diretamente do conjunto da obra
de Marx (inclusive suas obras mais explicitamente políticas), é possível considerar algumas
dimensões das crises capitalistas enquanto compatíveis com a obra de Marx:

1. Crise oriunda da ruptura do fluxo circular da renda.


Basta um atraso no processo de compras e vendas para prejudicar o processo
produtivo e gerar um efeito cascata. O ponto central deste processo é que compra e venda são
atos diferentes e separados, em uma economia monetária, visto que tanto compra (D-M),
quanto venda (M-D') por parte dos capitalistas, segue a lei do valor, e não o valor de uso,
constituindo-se esta uma razão suficiente para condenar a “lei de Say”. 24 Na medida em que é
possível um surgimento de descompasso entre os atos de compra e venda (e a própria
existência do dinheiro favorece isso), tem-se uma situação de crise potencial. Uma estrutura
comercial deficiente, ou um problema no fluxo monetário podem ser suficientes para gerar
tais atrasos e provocar crises.

2. Crise de realização do valor


Aqui não se trata apenas de atrasos no fluxo circular da renda, mas no fato de que o
valor só se realiza quando a mercadoria é vendida. Ainda que a renda esteja disponível, que
nem o circuito comercial nem o circuito monetário apresentem problemas, a compra pode não
ser realizada por outras razões, como casos de abundância relativa, ou a existência de
incertezas (tecnológicas ou econômicas) desestimulando a compra. A contradição mais
ontológica aqui relacionada é a contradição entre valor e valor de uso, ou seja, é o fato que a
produção no capitalismo busca a acumulação do capital, da capacidade de gerar e controlar
valor, e não o atendimento das necessidades sociais e individuais.

3. Crise oriunda da tendência à queda da taxa de lucro25


Os capitalistas podem simplesmente decidir não ampliar a produção se a taxa de lucros
da atividade em questão não compensa. Este é o caso mais clássico de crise capitalista, pois é
resultado do próprio sucesso da acumulação capitalista. Na ânsia de aumentar a extração da

24
Vide Possas (1987), nas notas de rodapé 14 e 15, na página 57.
25
No que se refere à polêmica com a corrente de pensamento econômico centrada na obra de Sraffa, que
discorda da validade desta tendência, vide Duarte (2012) e/ou Carcanholo (1997).

12
mais-valia relativa, a classe capitalista tende a ampliar a composição orgânica do capital, ou
seja, o capital constante tende a crescer relativamente mais que o capital variável. Dado o
cálculo da taxa de lucro (l = (m)/(C + v)), mesmo ocorrendo um aumento da mais valia (e,
portanto, do lucro), o capital constante (C) necessário para obtenção deste resultado tende a
crescer proporcionalmente mais, reduzindo a taxa de lucro, mesmo quando do aumento do
lucro. Este processo não ocorre para empresas líderes quando da adoção de tecnologias
inovadoras, mas sim quando de sua difusão, que reduz os lucros extraordinários da empresa
inovadora, parcialmente distribuídos com seus concorrentes, e parcialmente reduzidos pela
queda de preços resultante da concorrência (quando se consolida a percepção social da
redução do tempo socialmente necessário para a produção da referida mercadoria). Esta
tendência da queda da taxa de lucro a partir do aumento relativo da composição orgânica do
capital é confrontada pelas contratendências que permitem o aumento da taxa de lucro, mas
Marx considerava que, em termos históricos, a tendência a queda fosse mais forte que as
contratendências, exatamente porque a tendência decorre da natureza e da lógica da
acumulação incessante do capital.26

4. Crise oriunda da expansão do capital fictício


A melhor de todas as mercadorias é o dinheiro. Não há problema de concorrência
tecnológica ou de quebra de safra. Para a lógica de acumulação de capital, D-D’ constitui-se
em uma alternativa mais promissora que D-M-D’. Além disso, o aumento da escala produtiva
leva ao aumento da necessidade das grandes empresas de mobilizarem recursos cada vez
maiores para obtenção do capital constante e adiantamento do capital variável. Estas
percepções indicam a tendência do capitalismo de desenvolver seu sistema financeiro. Mas
não se trata apenas da expansão do recurso a moeda para intermediação das atividades
produtivas. A lógica da acumulação de capital não está presa à mercadoria de onde provem a
mais-valia, mas sim ao acúmulo de valor em sua forma abstrata. É sob este contexto que Marx
considera a categoria de capital fictício,27 e a tendência do sistema capitalista de ampliá-lo.

26
Marx (1984).
27
Embora o capítulo XXV do livro III de “O Capital” seja denominado “Crédito e Capital Fictício”, o
desenvolvimento deste conceito é mais perceptível nos capítulos XXIX e XXX. Ainda assim, com a conhecida
limitação decorrente do fato dos livros II e III de “O Capital” serem obras inacabadas por Marx. O conceito de
capital fictício vai sendo formado com a leitura das citações e da análise de Marx da relação desta forma de
capital com as outras categorias investigadas (capital bancário, dívida pública, ações, letras de câmbio). Como a
condição de ficção é o resultado do processo de descolamento entre a esfera produtiva e a esfera financeira, um
mesmo ativo financeiro pode ser real ou fictício. Por isso que não se pode confundir capital portador de juros
com capital fictício. Para maiores esclarecimentos, vide Aquino & Cipolla (2008), Carcanholo & Sabadini
(2009), Carcanholo & Nakatani (1999) e/ou Carcanholo (2012).

13
Dada a anarquia econômica do sistema capitalista, a busca por maximização dos lucros de
diferentes agentes econômicos favorece enormemente a formação de bolhas especulativas,
com o crescente distanciamento entre os valores reais contidos na esfera produtiva e o valor
fictício gerado na esfera financeira. Contudo, só o setor produtivo gera valor: o ativo
financeiro é tão somente uma representação do valor, um direito de acesso à riqueza gerada na
esfera produtiva. O capital fictício é o ativo financeiro (título da dívida pública, ações, letras
de câmbio, capital bancário, derivativos) que corresponde a uma aposta no desempenho futuro
da economia produtiva que não tem lastro real na produção,28 embora tenha existência
concreta na apropriação.29 Em algum momento os agentes do sistema perceberão a
discrepância, levando a uma explosão ou um esvaziamento da bolha especulativa, com toda a
crise daí decorrente.

5. Crise oriunda da desmedida do valor


A ilimitada busca pela acumulação de capital força os capitalistas a buscarem o
aumento da mais-valia relativa, com o aumento da produtividade do trabalho. É esta
característica da própria genética do capitalismo que fundamenta a teoria econômica da
tecnologia de Marx. O capitalismo precisa revolucionar continuamente sua estrutura
produtiva, de maneira que o desenvolvimento tecnológico se constitui em seu motor e em sua
compulsão. Há dois resultados cruciais deste processo: um é a já citada tendência à queda da
taxa de lucro; e outro é o amplo desenvolvimento da ciência em geral, com a clara tendência
da mesma ser plenamente incorporada ao processo produtivo.

28
“No capitalismo toda soma de dinheiro adquire a capacidade de gerar juros dando origem, portanto, ao
chamado capital portador de juros. (...) Isto implica que todo fluxo regular de renda seja visto como o resultado
de uma soma de capital que lhe dá origem. Entretanto, nem todo fluxo regular de renda advém do capital
propriamente dito e nesta situação o que dá origem a tal fluxo de renda é o chamado capital fictício. Para que
um fluxo de renda seja fruto de um capital é necessário que a soma do dinheiro seja despendida produtivamente
de modo a ser valorizada pela força de trabalho, isto é, converter-se em valor que se conserva e que se amplia.
Neste caso, tanto o capital industrial despende dinheiro produtivamente quanto o capital portador de juros
quando este é emprestado para fins produtivos. (...) Já o capital fictício não é valor que se conserva nem que se
amplia, ao contrário, é apenas um título que dá direito a apropriação de uma parte da mais-valia produzida na
sociedade”. (Aquino & Cipolla, 2008, p. 15 e 16).
29
“(...) o capital fictício é real do ponto de vista dos atos mercantis do dia a dia, do ponto de vista do ato
individual e isolado, mas é fictício do ponto de vista da totalidade da economia. Ele é e não é fictício; ele é e
não é real. Essa é sua dialética. (...) É certo que o capital que consideramos é fictício por não corresponder à
riqueza real produzida, no entanto ele tem existência como sujeito capaz de apropriar-se de excedente
mercantil, de mais valia. Assim, desse ângulo, podemos dizer que ele também é real.
Qualquer capital real, na sua existência possui substância real, produzida anteriormente, e possui o
direito de apropriação sobre a mais valia que será produzida. O capital fictício não possui substância real, mas
possui esse direito de apropriação. Assim, e em resumo, mesmo do ponto de vista global, ele é fictício e real ao
mesmo tempo”. (Carcanholo, 2012, p. 11).

14
No desenvolvimento de sua teoria do valor trabalho, Marx parte do pressuposto que é
possível considerar o trabalho complexo como múltiplo do trabalho simples, viabilizando o
processo social de definição do valor a partir do conteúdo de trabalho incorporado nas
mercadorias. O desenvolvimento das ciências em geral e sua incorporação ao processo
produtivo, contudo, ampliam a parcela do trabalho intelectual cada vez mais complexo,
dificultando, crescentemente, o processo social de avaliação do valor do trabalho,
promovendo uma crescente tendência de “desmedida do valor”.30 Considerando ainda as
tendências já citadas de queda da taxa média de lucro e de expansão do capital fictício, a
conjugação destes processos amplia a possibilidade de bolhas especulativas, e potencializa a
conjugação de crise de superprodução manifestada em crise financeira.

6. Crise na condução hegemônica do sistema


A maioria das obras de Economia Política destaca os fatores mais explicitamente
econômicos no tratamento das crises no capitalismo. Contudo, na própria obra de Marx se
enfatiza o papel do Estado, sobretudo através da dívida pública, na articulação das atividades
econômicas no capitalismo. Ao se observar ainda o “18 Brumário” é possível repensar o
Estado não como algo externo ao sistema, mas como parte obrigatória no funcionamento do
sistema capitalista, tanto na proteção da propriedade privada dos meios de produção, na
repressão aos trabalhadores, na regulação da economia, mas também na própria articulação
das esferas do capital (comercial, produtivo, financeiro) através de leis (comerciais,
tributárias, fiscais, monetárias), dos gastos públicos e do papel desempenhado na criação de
crédito e circulação monetária através da dívida pública. A crise do Estado é a crise nesta
articulação econômica, e pode vir a ser uma crise na sustentação política do modelo
econômico patrocinado pelo Estado capitalista.

3.2 A crise de 2007/2008 – Interpretações Marxistas

Em termos de nível de atividade econômica, a crise de 2007/2008 repercutiu nos


piores resultados do PIB desde a crise de 1929, envolvendo até quedas maiores que as
observadas naquele ano, para algumas das maiores (no início do século XXI) economias do
mundo. Um ponto interessante na comparação entre as duas grandes crises está em considerar
dois períodos: os 10 anos anteriores à crise (incluindo o ano de seu início) e o ano da crise

30
Vide Prado (2005).

15
mais os quatro anos posteriores. No que se refere ao período anterior (para o qual não foram
encontrados dados para a China e para a Rússia, entre 1920 e 1929), observa-se que a
discrepância entre as taxas médias é bem maior entre 1999 e 2008, do que foi entre 1920 e
1929. No período mais recente, as taxas de crescimento da China, Rússia, Índia e Coréia do
Sul destoam das taxas médias dos outros países. No comparativo com o período posterior à
crise, observa-se que a crise iniciada em 1929 seguiu forte até pelo menos 193331, enquanto
que, para o mesmo período, embora se observe um baixo crescimento econômico da maioria
dos países do G7, apenas Itália e Reino Unido, deste grupo, mantiveram-se com uma
trajetória de queda do PIB. Por outro lado, China e Índia mantiveram-se com elevadas taxas
de crescimento. Ou seja: a crise econômica mundial prosseguiu até (e além) quatro anos de
sua plena deflagração (tendo por referência 2008, até 2012), mas com repercussões menores
que as observadas entre 1929 e 1933. Isso não significa dizer que a crise possa ser medida
meramente pelo desempenho do PIB. Vale lembrar que a Primeira Grande Depressão foi
assim denominada pelos historiadores econômicos pela queda nas taxas de lucro que
provocou fortes transformações no capitalismo mundial, e não pela trajetória do PIB, que
exceto por algumas quedas de economias nacionais em alguns anos, apresentou uma trajetória
global de crescimento significativo do produto. Foi esta expansão produtiva que levou a
queda dos preços, em uma crise de superprodução. Uma solução para esta crise foi a
aceleração do processo de fusão e incorporação de empresas, dentro do processo de
concentração e centralização do capital. A outra grande “solução” foi o imperialismo europeu
do final do século XIX e início do século XX.32

Tabela 1: Taxas médias anuais de variação do PIB, por períodos e anos.


1930 1920-1929 1929-1933 2009 1999-2008 2009-2013
EUA -8,90% 3,98% -8,05% -2,80% 2,57% 1,16%
China 1,27% 1,36% 9,21% 10,12% 8,85%
Índia 0,70% 2,50% 0,31% 8,48% 6,86% 6,44%
Japão -7,27% 3,42% 2,71% -5,53% 1,08% 0,43%
Alemanha -1,40% 4,92% -2,73% -5,09% 1,58% 0,66%
Rússia 5,85% 2,67% -7,80% 6,88% 1,07%
Brasil -5,95% 3,95% 0,63% -0,33% 3,36% 2,63%
Reino Unido -0,71% 1,86% -0,59% -5,17% 2,75% -0,19%
França -2,90% 4,94% -2,21% -3,15% 1,96% 0,14%
México -6,29% 0,98% -2,14% -4,53% 2,54% 1,81%
Itália -4,93% 2,90% -0,78% -5,49% 1,27% -1,54%
Coréia -4,86% 0,42% 4,32% 0,32% 5,43% 3,02%
Canadá -3,34% 4,89% -8,37% -2,71% 2,86% 1,28%
Espanha -3,36% 3,60% -1,45% -3,83% 3,45% -1,39%

31
O fato histórico é que muitos países só saíram plenamente da crise com a segunda guerra mundial.
32
Vide Coggiola (2009) e Hobsbawm (2011).

16
Austrália -9,52% 3,12% -1,17% 1,42% 3,41% 2,52%
* Projeção FMI.
Fontes: Cálculo próprio a partir das estatísticas de Angus Maddison, obtidas em
http://www.historicalstatistics.org/, em julho de 2013, e das taxas de variação anual obtidas no portal do FMI
(www.imf.org) em julho de 2013.

Tabela 2 – Taxas médias anuais de crescimento do PIB por período para regiões e países
selecionados, no século XIX.
PIB 1870 1820 / 1870 1850 / 1873 1873 / 1896 (III) – (III) –
(*) (I) (II) (III) (I) (II)
Mundo 1.110.952 0,94%
Ásia 425.638 0,06%
Europa Ocidental (12 p) 338.978 1,75% 1,83% 1,93% 0,18% 0,11%
África 45.234 0,75%
América Latina 27.311 1,22%
China 189.740 -0,37%
Índia 134.882 0,38%
Reino Unido 100.180 2,05% 2,36% 1,93% -0,12% -0,42%
EUA 98.374 4,20% 4,31% 3,52% -0,68% -0,79%
Países da antiga URSS 83.646 1,61%
Alemanha 72.149 2,00% 2,23% 2,46% 0,47% 0,24%
França 72.100 1,43% 0,99% 1,73% 0,30% 0,73%
Itália 41.814 1,24% 1,18% 0,92% -0,32% -0,26%
Japão 25.393 0,41% 0,84% 2,29% 1,89% 1,45%
Espanha 19.556 0,93% 2,14% 0,33% -0,60% -1,81%
Indonésia 18.929 1,10% 1,29% 1,56% 0,47% 0,27%
Bélgica 13.716 2,24% 2,57% 1,97% -0,27% -0,59%
Países Baixos 9.952 1,70% 1,55% 1,69% -0,01% 0,14%
Áustria 8.419 1,45% 1,36% 2,45% 1,00% 1,09%
Brasil 6.985 1,77% 1,82% 1,92% 0,15% 0,10%
Suécia 6.927 1,62% 2,58% 1,63% 0,01% -0,94%
Canadá 6.407 4,42% 3,48% 2,19% -2,23% -1,30%
Austrália 5.810 7,28% 7,83% 2,88% -4,41% -4,95%
Chile 2.509 3,14% 3,48% 3,26% 0,12% -0,22%
Noruega 2.360 2,25% 2,99% 1,61% -0,64% -1,38%
(*) Em milhões de dólares Geary-Khamis internacionais a preços de 1990.
Fonte: Cálculo próprio a partir das estatísticas de Angus Maddison, obtidas em
http://www.historicalstatistics.org/, em julho de 2013.

- Principais interpretações marxistas


Optou-se por não fazer uma revisão da literatura, buscando examinar a consistência da
interpretação de cada autor, pois este seria um caminho muito extenso, que já motivou artigos
com este propósito. A ideia é se valer destes artigos que mapearam as polêmicas entre os
marxistas e adotar a qualificação da crise sugerida pelo autor. Ou seja, não se pretende avaliar
aqui se este ou aquele autor fez esta ou aquela interpretação, mas aceitar a tipificação das
explicações sobre a crise, que mesmo que estejam indevidamente associadas a um autor,
sejam explicações plausíveis sobre a mesma e que contem com algum grau de fundamentação

17
marxista.33 A escolha das obras que sintetizam estas diferentes interpretações não significa
necessariamente uma concordância com as críticas feitas, mas sim um reconhecimento à
sistematização do debate contida nas mesmas.
Uma destas classificações das interpretações marxistas foi feita por Cipolla (2012),
que sintetizou sua análise no quadro abaixo:

Quadro 1: Causas da atual crise do capitalismo segundo diferentes autores marxistas e as


principais críticas de Cipolla
Autores Causas da crise Principais críticas [de Cipolla]
Independentização financeira das A teoria da expropriação financeira
Costas grandes corporações em relação ao implica que os juros são uma subtração
Lapavitsas crédito bancário levou bancos a do valor da força de trabalho e, desse
redirecionarem os fluxos de crédito para modo, a teoria se assenta sobre a
Paulo dos as famílias como fonte alternativa de hipótese de que a força de trabalho está
Santos lucros na forma de expropriação sendo paga sistematicamente abaixo de
financeira face a salários estagnados. seu valor.
Aumento da taxa de exploração da força O aumento da taxa de exploração teria
de trabalho e da taxa de lucro sem o enfraquecido a demanda efetiva e
Michel aumento da taxa de acumulação tornado inviável a acumulação da mais-
Husson redirecionou a mais-valia para as valia, mas Husson não explica como
finanças como forma de gerar fontes esse processo pode se reiterar
alternativas de demanda continuamente.
Monopólios lucrativos não podem A produção de meios de consumo não é
John Bellamy reinvestir o excedente para não deprimir proporcional ao investimento, mas
Foster suas margens de lucro, de modo que a apenas ao investimento em meios de
mais-valia busca valorizar-se através de consumo, e não há motivos pelo qual a
Fred Magdoff aplicações no mercado financeiro, produção de meios de consumo não
gerando ondas de especulação. possa se adaptar ao nível de demanda.
Sem destruição de capital, a taxa de lucro A análise diverge da visão de Marx,
efetiva não consegue aumentar acima da para quem a redução da taxa de lucro
taxa de lucro de longo prazo, que é baixa, resulta do aumento de c/v. Ademais,
Andrew
e mantém a economia em regime de para Marx, a massa de lucro deve ser
Kliman
letargia de modo que os governos tentam levada à estagnação, fato que não pode
compensar esse fato, facilitando o crédito ocorrer na teoria de Kliman, já que sua
e criando bolhas especulativas. taxa de lucro de longo prazo é positiva.

Fonte: Cipolla (2012), p. 57.

As críticas feitas por Cipolla favorecem o aprofundamento do debate, mas no artigo de


Cipolla (2012) investigado não há uma crítica que, à luz dos comentários acima sobre o
método de Marx, precisa ser desenvolvida: em que medida as interpretações levam em conta a
multidimensionalidade da crise no capitalismo? Se as interpretações identificam o vetor chave
do processo, o papel desempenhado pelas outras dimensões, a depender de como elas se

33
As obras tomadas por referência, para este propósito, foram: Cipolla (2012); Andrade & Marques (2010);
Aquino & Cipolla (2008).

18
articulam, podem gerar efeitos relevantes sobre a resultante de todo o processo, inclusive
contrariando a tendência principal. O exemplo mais claro é a simbiose entre as economias dos
EUA e da China, com dinâmicas e trajetórias próprias no campo da financeirização, das taxas
de crescimento do produto e dos lucros. Analisar a crise mundial com foco na economia dos
EUA é muito diferente de analisar com foco na economia da China. A análise precisa ser feita
considerando as partes do sistema em si, assim como suas interações, para que se possa
avaliar a resultante sobre a economia mundial.
Outra obra que trata de divergências na interpretação da atual crise nos marcos da
tradição marxista é Andrade & Marques (2012). Nesta obra a ênfase esta na crítica às
interpretações de Alain Bihr e de Michel Husson. O debate que brota desta crítica remete a
diversos outros autores marxistas do século XX, e engloba as categorias de superprodução,
financeirização, subconsumo, insuficiência de demanda, geração e apropriação de mais-valia.
Um ponto importante deste artigo é demonstrar como o dimensionamento da crise permite
variações na associação dos diferentes fatores da crise. É assim que a interpretação de Bihr
reconhece que a crise atual é de superprodução, em consonância com vários outros autores
marxistas, mas enfatiza a manifestação da crise enquanto insuficiência de demanda, seguindo
um rumo de desenvolvimento diferente de outros autores adeptos do foco na superprodução.
Andrade & Marques (2012) vão demonstrar que Bihr segue um desenvolvimento teórico que
guarda semelhanças com a teoria subconsumista de Rosa Luxemburgo. No que se refere a
Husson, também tratado por Cipolla, os autores identificam uma ênfase na financeirização34
enquanto parte de um processo de sub-acumulação do capital. Para Andrade & Marques
(2012), Bihr e Husson incorreriam na mesma incompreensão de origem, que seria a relação
entre “economia real” e “economia financeira”,35 em especial com a busca de um sentido
oriundo na economia real para a dinâmica de acumulação na esfera financeira. 36 Ou seja, a

34
O debate sobre este fenômeno tem duas referências importantes em Chesnais (1995) e Chesnais (2005), que
não serão diretamente tratadas neste artigo, mas que são consideradas tanto por Andrade & Marques quanto por
Prado (2014), considerados diretamente.
35
“Para esses autores considerar na análise a divisão entre uma “economia real” e uma “economia
financeira” seria algo como se deixar cegar pela aparência do movimento capitalista. Para evitar esse
“equívoco”, Bihr subordina a relação capitalista plenamente reificada sob a forma do capital portador de juros
e do capital fictício a um desvio do consumo dos trabalhadores para “bens de luxo” dos capitalistas. Husson,
por sua vez, desenvolve seu raciocínio baseando-se na dinâmica recente de constrangimento da acumulação em
favor da distribuição de lucros para a “finança”. Essas punções de parte do excedente econômico para a
alimentação de rendas financeiras seria o polo determinante da crise atual para os autores. Assim, ao não
considerarem os obstáculos negativos à continuidade da valorização do capital na condição de capital (dado
que todos os obstáculos e problemas tratados pelos autores são positivos), esses autores decidem por pontos de
vista a partir do qual a contradição dos termos presentes é dissolvida em favor de um ou de outro”. [Andrade &
Marques, 2012, p. 18, grifos no original]
36
“Desse modo, é completamente impertinente a tentativa de adequar ou visar a dinâmica capitalista pela
ordem do sentido. A relação-capital se coloca muito além do princípio do prazer (e satisfação de necessidades),

19
razão motivadora da acumulação do capital, tanto na esfera produtiva quanto na esfera
financeira, não decorre das necessidades materiais de valor de uso de qualquer classe, mas
sim com a compulsão pela acumulação sem fim por parte do capital (em qualquer dos seus
formatos: industrial, comercial ou financeiro). Faço aqui uma ressalva a esta interpretação dos
autores Andrade e Marques: embora eu os considere corretos ao observarem do papel real e
ativo desempenhado pela acumulação fictícia sobre o setor produtivo, embora também
considere correto observar que a acumulação sem fim no marco das bolhas especulativas não
precise de qualquer conexão com os valores de uso, visto que o objetivo é o valor em seu
sentido abstrato, pelo poder econômico e político que pode gerar, é fundamental buscar as
conexões entre as duas esferas, entre os dois formatos do capital total, algo que os autores não
negam, mas também não enfatizam.

- Algumas observações sobre algumas interpretações citadas


Todas as interpretações citadas podem e devem ser avaliadas a partir das ferramentas
que caracterizam o método de Marx, explorado acima. Neste sentido, merece destaque a
noção da totalidade conjugada com a noção de estratificação da realidade, de maneira a se
evitar um tratamento homogêneo entre variáveis de pesos distintos, ou seja, muitos dos
fatores considerados podem estar presentes no processo de surgimento e desenvolvimento da
crise, mas é preciso identificar a hierarquia entre eles, assim como separar a aparência do
processo de sua essência, em especial na identificação das raízes do processo dos fatores que
lhes são decorrentes, ainda que estes também modifiquem o próprio processo original
(ampliando, reduzindo, alterando). Para ilustrar este enfoque, são apresentados abaixo
comentários sobre duas das interpretações investigadas.
A tese que a crise atual é oriunda da autonomização da esfera financeira é
consideravelmente “popular”, em parte pela ampla evidência empírica do processo de
expansão financeira, e em parte pela existência de algum grau de influência do pensamento
keynesiano sobre a tradição marxista contemporânea.37 Considera-se aqui que, na perspectiva
da tradição marxista, a divergência com esta tese é o entendimento que a mesma foca na
aparência de autonomia da esfera financeira quando a essência do sistema é da

bem como de realidade adequadamente ajustada em um telos, mesmo que imposto externamente. A crise se dá,
certamente, pela insistência na manutenção de um sonho – a possibilidade de eliminação do trabalho na
geração de valor - , em detrimento da realidade – a impossibilidade dessa eliminação -, todavia esse “sonho”
desempenha um papel ativo que não pode ser reduzido a uma “simples aparência”.” [Andrade & Marques,
2012, p. 19, grifos no original].
37
Vide, entre outros, Cipolla & Pinto (2010).

20
inseparabilidade das formas do capital enquanto uma totalidade.38 A hipertrofia do capital
financeiro não significa sua autonomia, embora assim possa parecer, mas significa sim que
esta forma de realização do capital total se apresenta, em um dado contexto histórico,
enquanto um mecanismo relativamente mais eficaz de apropriação da mais-valia que os
outros formatos do capital (industrial e comercial), sem alterar os papéis específicos destes
formatos (de geração e realização do valor, respectivamente) dentro do circuito de valorização
do capital. Significa também um fortalecimento do papel do Estado, via dívida pública, na
gestão da articulação das diferentes esferas do capital, podendo assim significar, também, uma
intensificação da luta de classes através da política econômica.
A tese da estagnação por subconsumo, por sua vez, é bastante antiga, e remonta aos
debates em torno das teses de Rosa Luxemburgo, que de forma explícita ou implícita, direta
ou indireta, teve vários adeptos. Duas críticas costumam ser feitas a esta abordagem, dentro
da tradição marxista. A primeira é que o problema de realização, 39 nas teses subconsumistas,
decorre do entendimento que o valor gerado (c + v + m), do lado da oferta, não é compatível
com o valor que pode ser realizado (c pelos capitalistas, v pelos trabalhadores) pelo lado da
demanda, de maneira que o sistema precisaria de um fator externo para viabilizar seu
funcionamento. Ocorre que, para cada capitalista individual, o capital total (c + v +m) é
realizado ou não, mas não ocorre uma realização parcial. 40 A insuficiência que pode surgir no
sistema só pode ser na demanda total, com parte dos capitalistas sem conseguir realizar o
capital investido.41 Como o sistema funciona de forma dinâmica, mesmo que desequilíbrios

38
“A crítica a esse tipo de teorização [da financeirização] considera que não se pode opor simplesmente o
capital financeiro ao capital industrial como se fossem dois subsistemas distintos, ainda que interligados de
algum modo – um deles amigo e o outro inimigo do desenvolvimento. Um não pode ser pensado simplesmente
como externo ao outro, mesmo se o primeiro se mantém externo à produção. Ao contrário, nessa perspectiva
que se mantém fiel aos textos originais, ambos têm de ser compreendidos como momentos da totalidade social
constituída pelo próprio capital.” [Prado, 2014, p. 21]
39
“A produção capitalista oferta mercadorias no valor de c + v + m. Do lado da demanda (realização), a
parcela c é demanda dos capitalistas para reposição dos meios de produção; o equivalente a v é realizado pelos
trabalhadores, que compram bens de consumo. Assim, se a realização da mais-valia é a questão vital da
acumulação capitalista, a existência de compradores não capitalistas (mercados externos) é a condição vital
para que a acumulação se processe”. (Carcanholo, 2007, p. 2 e 3).
40
“A afirmação de que todo problema de realização se resume à realização de uma parcela específica do valor,
no caso a mais-valia, decorre da confusão que se faz entre as duas noções de mercadoria. Em cada mercadoria
singular está contida uma fração de todo o valor c + v + m produzido pela economia e, portanto, quando ela é
realizada, realiza-se esta fração, e não apenas um componente específico, seja ele c, v ou m. Assim, o problema
da realização é mais complexo do que realizar uma parcela do valor produzido. O problemático da realização
está em realizar tantos valores de mercadorias singulares de modo a, no final do processo, toda a produção ter
sido realizada. Em outras palavras, todo o problema da realização reside no fato das apropriações privadas se
darem de tal forma a garantir, em termos sociais, a realização de toda a produção”. (Carcanholo, 2007, p. 6).
41
“Os esquemas de reprodução analisam a circulação de mercadorias, levando em consideração o fato de que a
mercadoria é uma unidade contraditória entre valor e valor de uso. Assim, a realização das mercadorias seria
um processo de realização não só do valor, mas deste materializado em valores de uso específicos. Ao
privilegiar o aspecto quantitativo da realização, Rosa Luxemburgo não tratou do seu aspecto qualitativo. Isto a

21
ocorram, nada impede que os ciclos de realização do capital de diferentes capitalistas se
relacionem com defasagens temporais entre eles, até mesmo pelo fato do sistema, visto em
sua totalidade, também contemplar a existência de crédito, componente não agregado na
análise de Marx no livro II de “O Capital”, mas considerado no Livro III. Mais uma vez, a
incompreensão do método expositivo de Marx cria contradições onde elas não existem. A
segunda e mais fundamental crítica vai no sentido de identificar na tese do subconsumo uma
incompreensão quanto a dinâmica da crise.42 Há, de fato, uma queda no poder de compra da
classe trabalhadora, mas como resultado do desenvolvimento da própria crise decorrente da
queda da taxa de lucro. É exatamente a partir da queda da taxa de lucro que os capitalistas
buscam mecanismos de recuperação das mesmas (as contratendências à queda da taxa de
lucro), entre os quais se inclui exatamente o aumento da extração da mais-valia (no caso
contemporâneo, em grande medida indiretamente, a partir da redução de direitos de todos os
trabalhadores, dos salários do conjunto dos funcionários públicos, e do aumento dos tributos),
que irá, por sua vez, amplificar a crise.

4. Considerações finais: esboço de mais uma interpretação marxista

A crise do capitalismo mundial precisa ser pensada em termos da totalidade do sistema


capitalista. Isso significa considerar diferentes trajetórias das partes constitutivas do sistema
(as economias nacionais e regionais, e internamente a estas os diferentes setores econômicos e
classes sociais, assim como a dinâmica dos diferentes formatos do capital total), e das
múltiplas variáveis que compõem a realidade, inter-relacionadas entre si, mas passíveis de
serem dotadas de suas próprias temporalidades. Nos marcos deste artigo, essa ampla análise
diversificada não será alcançada, mas o propósito é esboçar os elementos que se entende
como necessários para tanto, e que estão presentes em diversos autores marxistas.
Este propósito demanda um rápido panorama na trajetória das macrovariáveis da
economia mundial desde os anos 70. Não se trata aqui de cometer o equívoco de partir do

leva a perder de vista as compras intersetoriais (consumo intermediário), que é o elo teórico que lhe falta para
entender o significado de que são os próprios capitalistas que demandam a mais-valia.” (Carcanholo, 2007, p. 6
e 7).
42
“Ao afirmar que a insuficiência de demanda é a causa da crise, confunde-se uma forma de manifestação do
fenômeno com a sua causa. Quando uma situação de consumo insuficiente para realizar a produção se
configura, a situação de crise já está deflagrada, isto é, as circunstâncias inerentes ao modo de produção
capitalista que provocam a situação já atuaram; a causa da crise já se manifestou através de uma forma, a
insuficiência de demanda para uma produção sempre crescente. Portanto, o subconsumo (no sentido de
insuficiência na demanda total por mercadorias) pode ser considerado como mais uma forma de manifestação
da crise e, como tal, seu papel em uma teoria da crise deve se restringir a isto”. (Carcanholo, 2007, p.10)

22
concreto para o abstrato, como advertido acima. Os dados abaixo não serão fundamento para
formulações teóricas, mas sim uma antecipação de algumas evidências empíricas para a
interpretação que será apresentada abaixo.

Tabela 2: Taxas médias anuais de crescimento do PIB de regiões do mundo.


1980 1990 2000 2000 2003 2010-
2008 2009
-1989 -1999 -2009 -2007 -2007 2014
Mundo 3,24% 3,09% 3,61% 4,23% 4,82% 2,70% -0,38% 3,74%
Economias avançadas 3,11% 2,78% 1,76% 2,63% 2,78% 0,10% -3,43% 1,88%
G7 3,02% 2,55% 1,42% 2,31% 2,46% -0,30% -3,78% 1,87%
EUA 3,11% 3,24% 1,79% 2,65% 2,88% -0,29% -2,80% 2,26%
União Europeia (UE) 2,14% 2,16% 1,73% 2,66% 2,75% 0,59% -4,41% 0,93%
Japão 4,40% 1,45% 0,53% 1,51% 1,85% -1,04% -5,53% 1,83%
Europa Central e do Leste 2,08% 1,64% 3,85% 4,91% 5,97% 3,16% -3,61% 3,29%
Comunidade dos Estados
-4,45% 5,88% 7,60% 8,07% 5,34% -6,45% 3,71%
Independentes* (CEI)
Ásia em Desenvolvimento (AD) 6,78% 7,34% 8,30% 8,50% 9,72% 7,33% 7,70% 7,36%
China 9,71% 9,96% 10,28% 10,49% 11,64% 9,63% 9,21% 8,45%
América Latina e Caribe (ALC) 2,09% 2,95% 3,15% 3,57% 4,81% 4,23% -1,22% 3,86%
Oriente Médio e Norte da África
1,45% 4,33% 5,41% 5,76% 6,68% 5,04% 2,99% 3,98%
(OM&NA)
África Subsahara (AS) 2,58% 2,21% 5,52% 5,86% 6,30% 5,70% 2,64% 5,38%
* Dados a partir de 1993, sendo a média de 1993 a 1999.
Fonte: Elaboração própria, a partir de dados do FMI (World Economic Outlook Database, posição de Outubro de
2013), obtidos em março de 2014.

Gráfico 1: Variação anual do PIB, em %.

Fonte: Elaboração própria a partir de dados obtidos do FMI ( www.imf.org, em março de 2014).

No gráfico 1, observa-se a trajetória do crescimento econômico entre as diferentes


regiões do mundo.43 Como se observa no gráfico, os anos 80 e 90 apresentam uma maior
discrepância das trajetórias de crescimento. Nos anos 2000, existem diferenças relevantes nas
magnitudes das taxas regionais de crescimento, mas a trajetória é parecida: crescimento
43
Só não foi considerada a Oceania. O Reino Unido está incluído no G7 na Tabela 1, mas não consta em
nenhuma região no Gráfico 1. Ainda assim, o gráfico ficou sobrecarregado de informações. Optou-se por mantê-
lo com tantas regiões para explicitar o grau de discrepância das trajetórias entre 1980 e 2000, e a significativa
confluência destas trajetórias a partir de 2001.

23
econômico ascendente ano a ano com baixa variabilidade entre 2002 e 2007, queda do
crescimento em todas as regiões em 2008 e 2009, exceto a América Latina (em 2008) e a Ásia
em Desenvolvimento (em 2009), e recuperação a partir de 2010. Se formos observar as taxas
médias de crescimento por região, na tabela 1, não se poderia mais falar de depressão entre
2010 e 2014. Contudo, a crise continua, como se pode constatar pelas seguintes evidências: a)
o baixo crescimento atinge o centro econômico e político do sistema (EUA, União Europeia e
Japão); b) a manutenção da fonte da crise de 2008, ou seja, a bolha especulativa do sistema
financeiro internacional diminuiu, mas continua presente, assim como seu mecanismo
gerador, afetando as expectativas de curto e médio prazo; c) a bolha especulativa foi
convertida em uma crise de endividamento dos Estados Nacionais, pelo processo de
estatização dos “títulos podres”, repercutindo em drásticos cortes de direitos e gastos sociais;
d) o fato da atual estratégia geopolítica dos EUA passar por um rebaixamento nos preços
internacionais do petróleo, fato que repercute mais fortemente nos países dependentes dos
preços do petróleo; e) a aparente crise da lógica consumista em parte dos países centrais, em
especial (mas não só) pelo agravamento da gravíssima crise ambiental.

Ao mesmo tempo, é preciso se observar a crise de 2008 em suas múltiplas dimensões


(produtiva, tecnológica, monetária, financeira, geopolítica, cultural, da luta de classes). A
percepção destas múltiplas dimensões não significa homogeneizar processos que são
hierarquizados. Uma variável pode afetar um processo de forma secundária. O consumismo
enquanto comportamento social, por exemplo, tem relação com a expansão do consumo nos
EUA, mas não foi o fator chave que conduziu a crise de 2008.
É preciso ter clareza na percepção da totalidade da crise, mas também é preciso
sempre destacar que as partes do todo interagem de forma heterogênea. Trata-se de resgatar a
condição de crescimento desigual e combinado entre as economias nacionais e regionais que
conformam o sistema. A heterogeneidade não é aleatória: os países centrais possuem
instrumentos econômicos e políticos para favorecerem suas posições no sistema internacional,
exatamente por estarem no centro da dinâmica do sistema. Contudo, a origem do sucesso
também se torna a origem do fracasso. A crise de 2008 teve por epicentro os EUA, tendo por
segunda linha de repercussão a Europa. Os países centrais acabaram por ser os mais afetados
exatamente porque os mecanismos de sua supremacia (em especial, o processo de
financeirização) se voltaram contra eles. Simultaneamente, a crise foi, de início, relativamente
positiva para países periféricos, desprovidos das fontes de dinamismo tecnológico e
econômico dos países centrais. Este impacto relativamente favorável nos preços das

24
commodities foi revertido, especialmente com a queda dos preços do petróleo (que, por sua
vez, incluem forte componente de atuação política da potência hegemônica).
Dado o contexto global, esboça-se aqui uma curta e estilizada interpretação da atual
crise do capitalismo internacional. Após duas grandes guerras mundiais, uma grande
depressão, a revolução russa e a revolução chinesa, as principais elites capitalistas no mundo
agiram no sentido de orquestrar um capitalismo administrado que lhes permitisse alcançar
uma estabilidade econômica e social que afastasse o risco do socialismo. Este período de
capitalismo administrado é lembrado como o “período de ouro” do capitalismo mundial, dada
a melhoria da qualidade de vida por todo o mundo. De 1950 a 1973 a economia mundial
cresce a taxas médias mais elevadas que qualquer outro período da história. A diferença na
renda entre as nações diminui. A diferença entre as classes sociais diminui. Há uma expansão
nos direitos sociais, comparativamente a outros períodos da história, e em algumas regiões do
planeta dissemina-se o chamado “Estado de bem estar social”. A modelagem internacional do
capitalismo administrado foi gerida pelo projeto hegemônico dos EUA, 44 que é o projeto dos
grandes capitalistas internacionais residentes nos EUA ou em países associados, mas seguindo
a lógica da “autonomia relativa”, tal modelagem incorpora as motivações geopolíticas do
Estado hegemônico, sem qualquer prejuízo (muito pelo contrário) do seu propósito ontológico
de defesa do sistema capitalista mundial.
É no final dos anos 60 que a intensificação da luta de classes altera os pressupostos
motivadores do modelo. Seja no campo das lutas de classes diretas, expressas em greves e
manifestações a favor de direitos sociais, ou no campo indireto, disfarçado em conflito entre
nações, como a guerra entre o Vietnã e os EUA, a luta entre as classes capitalistas e as classes
trabalhadoras, mas também a concorrência entre capitalistas de nações distintas, conduziram
ao crescente entendimento, por parte da classe dominante, que o modelo de capitalismo
administrado já não contemplava adequadamente seus propósitos maiores. Some-se a isso, a
queda nas taxas médias de lucros decorrentes da maturação das tecnologias predominantes
nos anos 50 e 60, contidas no capital constante expandido no período.
O período de 1971 a 1979 corresponde ao período de transição, em que a estratégia do
Estado hegemônico vai no sentido de retornar ao capitalismo liberal como forma conjugada e
associada de expandir seu poder e restabelecer a lucratividade ambicionada pelas classes
capitalistas. Frente a queda na taxa média de lucro nos anos 70, várias contratendências são
fomentadas, com destaque para o barateamento dos bens de produção a partir do

44
Vide Tavares & Fiori (1997).

25
desenvolvimento tecnológico, a ampliação do comércio internacional e o aumento da extração
da mais-valia. Mas estas são contratendências “genéricas” nos termos de Marx. A
financeirização surge como uma nova contratendência, como um mecanismo de extração
indireta de mais-valia para permitir o aumento nas taxas de lucros.
De 1980 a 2007 temos uma trajetória de expansão e consolidação de um capitalismo
desregulado por todo o mundo, inclusive por parte dos antigos países socialistas. Como seria
de se esperar, também foi um período de inúmeras crises (a crise da dívida externa dos países
do terceiro mundo; a crise da bolsa de valores dos EUA em 1987; a crise da libra esterlina em
1992; a crise do México em 1995; a crise do leste europeu em 1997; a crise da Rússia em
1998; a crise do Brasil em 1998-1999; a crise da Argentina, de 2001), mas dentro de um
processo assimétrico em que o “desenvolvimento desigual e combinado” teve na desigualdade
seu fator de destaque. A China e a Índia, em especial, por não se sujeitarem ao processo de
desregulação, conseguiram manter trajetórias de elevadas taxas de crescimento do produto e
transformação econômica, transferindo para a Ásia a maior parcela do dinamismo produtivo
do capitalismo mundial. Através do processo de financeirização, os EUA conseguem os
ganhos oriundos deste dinamismo produtivo.
É sob este contexto histórico que se constrói a crise de 2007-2008. Trata-se de uma
crise de superprodução originada em maior medida na China e na Índia, mas realizada,
também em maior medida, nos EUA, através do canal das transferências financeiras destes
países para os EUA.45 Mas o que diferencia esta crise de superprodução de outros casos
históricos é um conjunto de alguns componentes peculiares deste momento histórico: a
dimensão da financeirização, com extraordinário desenvolvimento do capital fictício
(entendida a financeirização nos termos colocados acima, de hipertrofia de uma forma do
capital); a dimensão social e ambiental da proliferação do consumismo na maioria dos países;
a desmedida do valor associada ao elevado grau de desenvolvimento tecnológico; o grau de
exploração social decorrente da redução de direitos e concentração da renda pelos grandes
capitalistas; e a crise parcial da hegemonia dos EUA, no que se refere especificamente a sua
capacidade de dar estabilidade ao sistema. Por fim, há um fator que merece consideração
especial: frente a um cenário de acirramento da luta de classes, verifica-se a ausência de uma
alternativa anticapitalista politicamente viável, neste momento, na imensa maioria dos países,
de maneira que a terceira grande depressão do capitalismo mundial prossegue em um quadro
de grandes incertezas.

45
Oliveira (2009).

26
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