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Capítulo 01 - O País Sagrado

de Millis
Meu nome é Rudeus Greyrat.
Na minha vida anterior eu era um homem adulto, mas atualmente, sou um belo
garoto de onze anos. Magia é meu campo de especialização. Posso lançar feitiços
personalizados sem a necessidade de um encantamento, esse é um truque que me
rendeu um pouco de reconhecimento.

Cerca de um ano e meio atrás, fui teletransportado para um lugar amigável


conhecido como Continente Demônio, graças a um desastre mágico de grande
escala. Infelizmente, o Continente Demônio, por acaso, quando comparado com
minha terra natal, a Região de Fittoa do Reino Asura, fica do outro lado do planeta.
Para voltar, seria necessário viajar meio mundo.

Na mesma hora me tornei um aventureiro e comecei a longa e difícil jornada de


volta para casa.

Desde então passaram-se dezoito meses. Nesse tempo, atravessei o


Continente Demônio… e agora, também passei pela Grande Floresta.

Millishion é a capital do País Sagrado de Millis. O acesso pela Estrada da


Espada Sagrada oferece aos viajantes uma vista espetacular de toda a cidade.

A primeira coisa a chamar a atenção é o Grão Lago – um corpo de água azul


brilhante, alimentado pelo Rio Nicolaus, que desce das Montanhas Wyrm Azul. Bem
no centro do lago, o grande Palácio Branco parece flutuar sobre suas águas.

Mais adiante, nas margens do Nicolaus, dá para ver dois outros marcos
distintos: a radiante catedral dourada da cidade e a reluzente sede de prata da
Guilda dos Aventureiros.

A cidade que circunda esses edifícios notáveis é organizada de maneira tão


precisa quanto os quadrados em uma folha de papel quadriculado. Em suas bordas
externas, poderia notar sete torres imponentes, com vastas planícies verdes se
estendendo além delas.

Era um lugar rico não apenas em sua majestade, como também em sua perfeita
harmonia com a natureza. Não havia nenhuma outra cidade tão bonita no mundo.

Trecho de “Peregrinando pelo Mundo” do aventureiro Kant Sangrento.

Bem, esse era o tipo de cidade que se esperaria encontrar em um mundo de


fantasia. Eu nunca tinha visto uma grande metrópole com tanto azul e verde antes,
e as ruas ficavam dispostas em uma grade lindamente limpa que lembrava Sapporo
ou a velha Edo. A visão dessas coisas me comoveu de um modo que nunca havia
acontecido em Rikarisu. Isso era lindo.

— Ah, uau…
A garota sentada ao meu lado – atualmente boquiaberta com a vista – chamava-
se Eris. Eris Boreas Greyrat, para ser mais preciso. Ela era a neta de Sauros, lorde
de Fittoa. Por algum tempo, servi como seu tutor pessoal.

A natureza dela era extremamente feroz. Embora geralmente fizesse o que eu


dizia, era o tipo de garota que daria um soco na cara de um Presidente se ele a
irritasse demais. E a simples menção a veleiros era o bastante para fazê-la tremer.
Isso por possuir a tendência de sofrer enjoos terríveis.

— Hmmm.

O cara de pele clara com a cabeça raspada, também olhando para a cidade
com admiração, era nosso companheiro demônio: Ruijerd Superdia. Ninguém
poderia dizer no momento, mas sua cor natural de cabelo era um tom vívido de
esmeralda. Era uma característica que ele tinha em comum com todos os outros
membros da infame raça Superd. Para a maioria das pessoas deste mundo,
demônios de cabelo verde eram sinônimos de morte e destruição. Mas, embora ele
pudesse definitivamente ser perigoso e impulsivo às vezes, era basicamente um
velho gentil com excepcional carinho por crianças, ao menos na opinião minha e de
Eris.

Eu nunca pensei nos dois como pessoas particularmente românticas, mas pelo
visto podiam reconhecer uma coisa bonita quando as viam bem na cara.

— É realmente incrível, não é?

O último membro de nosso pequeno grupo era um homem chamado Geese,


que tinha uma forte semelhança com um macaco. Era um aventureiro de profissão
e um inútil de coração; o tipo de cara que era jogado na prisão por trapacear no jogo.
Ele não era um membro do nosso grupo nem nada, mas pediu para nos acompanhar
até Millis, então estávamos viajando juntos desde a Grande Floresta.

Poderia ter perguntado por que estava se gabando desse lugar como se o
tivesse construído, mas era compreensível agora que tinha admirado a vista. Eu
teria feito exatamente a mesma coisa no lugar dele.

— Sim, isso com certeza é alguma coisa. Mas aquele lago é enorme… isso não
causa todos os tipos de dores de cabeça durante a estação das chuvas?

Bem, na verdade, eu só estava tentando descontrair. Não queria que o homem


ficasse presunçoso demais. Ainda assim, isso realmente se tornou uma questão em
minha mente. Aquele lago ficava bem no centro da cidade, e na Grande Floresta,
logo ao norte, sofriam com três meses seguidos de chuva torrencial todo ano. Isso
com certeza influenciava no clima local.

— Heh. Ouvi dizer que no passado isso realmente era um incômodo —


respondeu Geese. — Mas agora eles têm o clima totalmente sob controle, graças a
essas sete torres mágicas. Não tem como aquele castelo no meio do lago afundar.
Viu que não tem muros externos nem nada assim? Isso porque as torres o protegem
com uma barreira mágica.
— Fala sério. Então, teria que derrubar essas torres primeiro se quisesse cercar
a cidade, hein?

— Uh, nem mesmo brinque sobre isso. Os Cavaleiros Sagrados jogariam você
na prisão se te ouvissem.

— Entendi. Vou tomar cuidado.

Geese explicou que, enquanto as sete torres permanecessem de pé, a capital


ficaria protegida de desastres naturais e até epidemias de doenças. Eu não
conseguia imaginar como isso funcionava, mas com certeza parecia conveniente.

— Vamos lá! Vamos logo!

Incitados por uma Eris excitada, nossa carruagem voltou a avançar.

A cidade de Millishion era dividida em quatro distritos:

Ao norte ficava o Distrito Residencial, onde a maioria dos quarteirões era repleta
de casas de famílias. Havia algumas diferenças entre as áreas onde vivia o povo
comum e aquelas onde residiam as famílias dos nobres e cavaleiros, mas
virtualmente todos os edifícios do distrito eram alguma espécie de casa.

A leste ficava o Distrito Comercial, onde se localizava a maioria das principais


empresas da cidade. Poderia até encontrar algumas lojas de varejo por ali, mas
tendiam a ser operações de pequena escala; o distrito era dominado principalmente
por empresas maiores. Era nele que poderia encontrar os ferreiros e casas de leilão
de Millishion.

Ao sul ficava o Distrito dos Aventureiros, com a sede da Guilda bem no seu
centro. Estava cheio de pousadas, bares e lojas que atendiam a caçadores de
fortuna profissionais. Também tinha alguns salões de jogos e favelas onde viviam
aventureiros fracassados, então era necessário tomar cuidado. Por alguma razão, o
mercado de escravos da cidade ficava ali, e não no Distrito Comercial.

A oeste ficava o Distrito Divino, lar de muitos membros de algum escalão da


Igreja Millis. Nele se encontraria a enorme catedral municipal, bem como um
cemitério gigantesco. Os Cavaleiros Sagrados de Millis também ficavam sitiados no
lugar.

Geese repassou tudo isso para nós com detalhes surpreendentes enquanto nos
aproximávamos dos portões.

Acabamos circulando pelos arredores de Millishion antes de entrar no Distrito


dos Aventureiros. De acordo com Geese, os forasteiros que entram por um distrito
diferente eram normalmente vistos com alguma suspeita e submetidos a inspeções
mais demoradas. Pelo visto, a cidade possuía algumas peculiaridades irritantes.

No momento em que passamos pelos portões, nos encontramos rodeados pelo


caos.
Millishion parecia deslumbrante à distância, com certeza, mas por dentro
não parecia tão diferente de qualquer outra cidade. Havia estábulos e pousadas
baratas aos montes perto da entrada da cidade. Um pouco mais adiante,
mercadores com barracas ao ar livre anunciavam seus produtos em voz alta para
toda a multidão. Eu podia ver lojas de armas ainda mais longe ao longo da avenida
central. Provavelmente encontraria pousadas um pouco mais agradáveis nas ruas
laterais e mais calmas. Além disso, a brilhante sede prateada da guilda era grande
o suficiente para ser visível mesmo dos portões.

Primeiro, deixamos nossa carruagem em um estábulo próximo. No final das


contas, estavam dispostos a entregar nossa bagagem na pousada de nossa escolha
sem nenhum custo extra. Isso nunca foi uma opção em qualquer outra cidade que
visitamos, mas em uma grande como esta, acho que era necessário se diferenciar
da multidão se quisesse sobreviver nos negócios.

Assim que saímos do estábulo, Geese se virou para nós e fez um anúncio
abrupto:

— Tudo bem então, pessoal! Eu já sei para onde vou a seguir, então acho que
isso é um adeus!

— Hã? Você já tá vai? — Foi um pouco surpreendente. Eu esperava que ele


fosse ao menos até a pousada conosco.

— Qual o problema, chefe? Vai sentir minha falta?

— Bem, sim. É claro. — Eu sabia que Geese estava apenas brincando, mas
respondi honestamente. Não nos conhecíamos há muito tempo, mas ele com
certeza não era um cara mau. Um companheiro de viagem com quem se dava bem
era algo valioso em viagens longas como essa. Por algum tempo, minha vida ficou
menos estressante graças a ele.

Sem mencionar que, sem o homem, nossas refeições voltariam a ser muito
menos saborosas. Isso sim ia ser uma merda.

— Aw, não fique assim, chefe. Provavelmente vamos nos encontrar pela cidade
algum dia desses, sabe? — Com um pequeno encolher de ombros, Geese se
abaixou e me deu um tapinha na cabeça. Mas quando se virou para sair, Eris
bloqueou seu caminho.

— Ouça, Geese! — Ela assumiu sua pose de sempre – braços cruzados, queixo
erguido. —Da próxima vez é bom que você me ensine a cozinhar, entendeu?

— A resposta ainda é não, mocinha. Mas que persistente… — Coçando a nuca,


ele passou por Eris e olhou para Ruijerd. — Ei, cuide-se também, chefe!

— Boa sorte para você também. Não faça muitas travessuras, entendeu?

— Sim, captei.
Com um ligeiro aceno, Geese finalmente se juntou à multidão. Mas que adeus
mais casual. Ninguém jamais pensaria que passamos dois meses inteiros juntos,
viajando pela estrada.

— Ah, claro. Uma última coisa, chefe! — Pouco antes de ele desaparecer de
vista, sua cara de macaco se voltou para mim por um momento. — Não se esqueça
de dar uma passada na Guilda dos Aventureiros, viu?

— Hm…? Ah, claro! — Eventualmente passaríamos pela guilda, já que


precisaríamos levantar algum dinheiro. Mas por que ele estava tocando nesse
assunto?

Não tive a chance de fazer nenhuma pergunta extra. Assim que ouviu minha
resposta, Geese desapareceu na multidão.

Mas nossa maior prioridade era encontrar uma pousada. Esta sempre era nossa
prioridade ao chegarmos a uma nova cidade.

A maioria das pousadas em Millishion parecia estar localizada a alguma


distância das avenidas principais, então acabamos vagando um pouco por ruas
laterais até que encontramos um pequeno aglomerado delas. Depois de uma rápida
olhada ao redor, me acomodei em um lugar chamado Pousada Luz D’Alvorada. O
local não ficava muito perto das principais ruas da cidade, mas ficava bem longe das
favelas. A área parecia bastante segura. Ofereciam todas as comodidades que eu
procurava e parecia ter um preço para atrair aventureiros de rank C ou B. A principal
desvantagem era que não parecia receber muito sol, mas eu poderia viver com isso.

Assim que escolhemos nosso quarto, o próximo passo seria desfazer as malas
e nos organizar, depois disso partiríamos para visitar um dos locais mais importantes
da cidade – a Guilda local, para ser mais exato. Se sobrasse algum tempo, faríamos
alguns passeios turísticos e depois voltaríamos para nossa pousada para uma
reunião de equipe. Bem, de qualquer forma, era essa a nossa rotina padrão.

— Não poderíamos ter ficado em um lugar mais barato? — perguntou Eris,


olhando ao redor da pousada com curiosidade.

Teria que admitir, ela tinha razão, especialmente porque eu estava sempre
dando um sermão nela e em Ruijerd sobre como devíamos ser cuidadosos com
nosso dinheiro. No momento, porém, tínhamos algum conforto financeiro e
poderíamos relaxar. Tínhamos sido bem pagos pelos três meses que passamos de
guarda para os Doldia, e o guerreiro chefe do povo-fera, Gyes, também nos deu
uma boa gorjeta. Nossos fundos somavam pouco mais de sete moedas de ouro
Millis. Precisaríamos eventualmente levantar mais dinheiro, mas a curto prazo,
poderíamos pagar por alguns luxos modestos.

— Não custa nada dar uma melhorada de vez em quando, certo? — Às vezes
seria bom dormir em uma cama que fosse realmente macia.
Um rápido olhar para Eris revelou que ela não estava totalmente convencida.
De qualquer forma, fui em frente e abri a porta de nosso quarto.

Era um espaço pequeno e arrumado. Apreciei que já tivessem nos fornecido


uma mesa e cadeiras no canto oposto do cômodo. A porta tinha uma fechadura
funcional e as janelas possuíam venezianas. Não era muito comparável aos hotéis
de negócios do Japão, mas para os padrões deste mundo, era definitivamente um
dos mais agradáveis.

Agora que havíamos chegado ao nosso quarto, tínhamos algumas coisas para
resolver.

Primeiro, nosso equipamento precisava de sua manutenção regular. Segundo,


precisávamos fazer um balanço de nossos suprimentos descartáveis e anotar tudo
o que estivesse acabando. Em seguida, cuidar de nossas camas, lavar os lençóis e
passar, varrer e limpar. Tudo isso era nossa simples rotina, então começamos a
trabalhar sem trocar palavras.

Quando terminamos, o sol estava se pondo e começava a escurecer do lado de


fora. Isso fazia sentido, já que só tínhamos chegado a Millishion no início da tarde.
Ainda assim, não teríamos tempo para passar pela Guilda no mesmo dia…, mas
não era como se isso realmente importasse.

Depois de um jantar rápido no bar ao lado da pousada, nós três voltamos direto
para o nosso quarto. Assim que nos acomodamos no chão e formamos um círculo,
limpei a garganta e coloquei as coisas em andamento.

— Certo, eu convoco uma reunião de ordem do Fim da Linha. Pessoal, este é


o nosso primeiro encontro desde que chegamos à capital de Millis! Vamos torná-lo
inesquecível!

Eu tive que dizer “Aplausos, por favor”, e bater minhas mãos algumas vezes
antes de Eris e Ruijerd seguirem o exemplo enquanto hesitavam. Sinceramente. Os
dois nunca falhavam em me decepcionar.

— Então… Finalmente chegamos até aqui, pessoal. Isso sim é uma conquista
de verdade.

Havia alguma emoção real em minha voz quando disse essas palavras.
Tivemos um longo e complicado trabalho para chegar a este ponto. Havíamos
passado mais de um ano no Continente Demônio e uns bons quatro meses na
Grande Floresta. Agora, finalmente, havíamos alcançado a região deste mundo
onde a humanidade residia. A parte mais perigosa de nossa viagem já havia ficado
para trás. Desse ponto em diante, as estradas estariam bem conservadas e o
terreno quase todo bom e nivelado. Comparado ao que passamos anteriormente,
deveria ser uma verdadeira moleza.

Claro, em termos de distância absoluta, ainda tínhamos uma longa jornada pela
frente. A distância entre Asura e Millis era cerca de um quarto da circunferência do
planeta. Por mais boas que fossem as estradas, não conseguiríamos fazer isso em
apenas uma semana. Na verdade, provavelmente teríamos outro longo ano de
viagens pela frente.

Diante disso, nosso maior problema a longo prazo provavelmente seria de


natureza financeira.

— No momento, acho que devemos ficar nesta cidade por um tempo para
economizar algum dinheiro.

— Por quê? — perguntou Eris, franzindo a testa.

Era uma pergunta razoável. Tentei responder o mais claramente que pude.

— Bem, nós atravessamos o Continente Demônio e a Grande Floresta muito


bem, mas as coisas tendem a ser muito mais caras em território humano.

Pensei na pesquisa de mercado que fiz ao longo de nosso caminho. Nunca tive
a chance de sair fazendo orçamentos em Porto Zant, mas ainda me lembrava de
como a maioria das coisas funcionava em várias partes do Continente Demônio e
na pequena cidade em que paramos além das Montanhas Wyrm Azul. A maioria das
coisas era mais cara em Millis e no Reino Asura. A tarifa noturna da pousada seria
completamente fora da realidade para os padrões do Continente Demônio.

Era óbvio que os humanos eram gananciosos. Nós nos importávamos muito
mais com dinheiro do que qualquer uma das outras raças.

— O valor da moeda Millis é muito alto. Apenas as moedas Asuranas valem


mais, pelo que eu sei. Isso significa que tudo aqui é caro, mas também indica que
as tarefas na Guilda local pagarão muito bem. Em vez de parar por uma semana em
cada cidade, como fizemos no Continente Demônio, acho que será mais eficiente
ficarmos aqui por cerca de um mês e economizar muito dinheiro de uma só vez.

Assim que tivéssemos uma boa pilha de valiosas moedas Millis em nossos
bolsos, o resto da viagem seria muito mais tranquilo. Percorreríamos um longo
caminho para atravessar as regiões ao sul do Continente Central.

— E também, não sabemos quanto vão cobrar pela passagem de barco de um


Superd para o Continente Central, certo? — falei.

Eris fez uma careta ao ouvir a palavra “barco”. Nossa viagem marítima anterior
era uma de suas memórias mais miseráveis. Para mim era bem diferente, é claro.
Minhas lembranças de consolá-la enquanto estava enjoada continuaram a ser uma
fonte de grande prazer.

— Considerando todas as coisas, acho que devemos nos concentrar em ganhar


algum dinheiro em Millishion e, depois, ir direto para o Reino Asura. Podemos não
ser capazes de fazer muito para melhorar a reputação dos Superds por um tempo…
Isso está bem para você, Ruijerd?

— Claro — respondeu, assentindo levemente.


Eu realmente não esperava que ele se opusesse. Nesse ponto, só estava
ajudando porque queria.

Pessoalmente, teria ficado feliz em me estabelecer no lugar por um tempo e


dedicar algum esforço real para mudar a opinião do público sobre seu povo. Seis
meses ou um ano de trabalho diligente em uma grande cidade como esta poderiam
ter um enorme impacto.

Dito isso, já havíamos gasto um ano e meio apenas para chegar até onde
estávamos. Não queria arrastar esta jornada ainda mais do que o necessário. Digo,
neste momento já estávamos “desaparecidos” por dezoito meses, não? Paul e
Zenith provavelmente estavam muito preocupados.

Imagino o que estão fazendo agora… Ah, opa. Nunca cheguei a mandar uma
carta para eles, certo?

Queria fazer isso, mas os eventos sempre conspiravam para me distrair. Isso já
devia ter escapado da minha mente uma meia dúzia de vezes. Bem, nada como o
presente…

— Então tá bom. Amanhã vamos tirar uma folga, que tal?

Este não era um conceito novo para nós. Eu já havia anunciado vários “dias de
folga” no passado. No início, era por preocupação com Eris, mas, em algum
momento, comecei a usá-los principalmente para meu próprio bem. A garota nunca
mostrava qualquer sinal de fadiga, e Ruijerd era o homem mais resistente que
conheci. Eu era, com certeza, o mais fraco do grupo.

Claro, estava muito mais forte do que em minha vida anterior. Não dava para
comparar meus dois eus, mas estava apenas no nível de um aventureiro típico. A
exaustão física geralmente não era um problema.

Mas e quanto à exaustão mental? Essa era uma história diferente. Por um lado,
ainda tinha alguns problemas para matar coisas vivas. Quanto mais matávamos
monstros, mais estresse se acumulava dentro de mim.

Entretanto, este “dia de folga”, em particular, não era por causa da fadiga. Só
queria ter certeza de não voltar a esquecer de escrever aquela carta. Se
passássemos o dia seguinte reunindo informações, verificando a lista de empregos
da Guilda e lidando com todas as outras coisas em nossa lista de tarefas pendentes,
isso iria voltar a ficar de escanteio. Desta vez, usaria um dia e, finalmente, cuidaria
disso.

— Você está se sentindo mal de novo, Rudeus?

— Não, isso é um pouco diferente. Preciso de um tempo para escrever uma


carta.

— Uma carta?

Balancei a cabeça para Eris.


— Devíamos deixar todos de casa saberem que estamos bem, certo?

— Hmm… bem, tá bom. Então acho que vou deixar isso com você.

— Sim. Cuidarei disso.

No dia seguinte finalmente faria isso. Tomaria meu tempo, pensaria em meus
dias em Buena Village e escreveria para Paul e Sylphie.

Na época em que ele me despachou para servir como tutor de Eris, meu pai me
avisou para não mandar nenhuma carta… mas, nessas circunstâncias, com certeza
não se importaria.

Entretanto, as chances de as cartas serem entregues não eram lá muito boas.


Na época em que Roxy e eu estávamos trocando correspondências entre Asura e
Shirone, parecia que uma em cada sete cartas que enviávamos realmente chegava,
então sempre tínhamos que enviar várias cópias da mesma mensagem. Desta vez
teria que fazer o mesmo.

— Aliás, o que vocês dois vão fazer? — perguntei.

Eris pronta e energeticamente respondeu:

— Vou matar alguns Goblins!

— Goblins?

Espera, espera. Goblins? Seriam Goblins iguais aos que eu conheço? Tipo…
caras verde-amarelados, talvez com metade do tamanho de um humano, com
clavas rústicas? Aqueles que sempre aparecem como destaque em jogos
pornográficos de fantasia?

— Sim. Vi alguém dizendo que há muitos deles aparecendo por aqui. Esse é
exatamente o tipo de coisa com que aventureiros deveriam lidar, não é? —
respondeu Eris alegremente.

Para ser totalmente honesto, ouvi um pouco sobre eles durante nossa jornada.
Neste mundo, os Goblins eram basicamente vistos como uma espécie de verme. Se
reproduziam rapidamente e causavam todo tipo de problema para as pessoas. Eram
inteligentes o suficiente para se comunicarem verbalmente, então podiam ser
tecnicamente classificados como demônios, mas a grande maioria deles vivia como
animais selvagens. Então, quando seus números começavam a ficar fora de
controle, eram exterminados.

— Tudo bem então. Ruijerd, você pode ir junto com ela e…

— Ah, vamos lá! Eu posso lidar com alguns Goblins sozinha! — Eris interrompeu
indignada. A expressão em seu rosto sugeria que estava mais do que um pouco
ofendida.
O que eu deveria fazer?

Ela era uma lutadora muito competente. E Goblins eram monstros de rank E –
não eram inimigos lá muito desafiadores. Não viviam no Continente Demônio, então
eu nunca tinha visto um, mas pelo que ouvi, até uma criança que aprendesse
algumas habilidades básicas de esgrima poderia lidar com eles, sem nem suar.

Talvez, obrigar que levasse nosso guarda-costas juntos seria um pouco de


superproteção. Afinal, a garota poderia lidar com monstros de rank B…, mas ainda
assim. Quando uma garota aventureira fosse derrotada por um Goblin, o monstro
instantaneamente a transformaria em uma escrava sexual, certo? Eu não sabia
muito sobre os Goblins deste mundo, mas esse era definitivamente o problema deles
no meu. E, digo, se eu fosse o Goblin sortudo que conseguisse deixar Eris
inconsciente, certamente me sentiria no direito de fazer o que quisesse.

Se algo tão terrível acontecesse com Eris no momento em que eu tirasse meus
olhos dela, nunca seria capaz de voltar a encarar Ghislaine ou Philip…
— Está tudo bem, Rudeus — disse Ruijerd, tirando-me do meu devaneio. —
Deixe que ela cuide disso sozinha.

Isso era incomum. Normalmente, ele ficava fora desse tipo de discussão.
Durante o último ano e meio, Ruijerd deu aulas a Eris sobre como lutar contra todos
os tipos de monstros e inimigos diferentes. Seus métodos educacionais eram um
pouco obscuros para eu seguir, mas ela claramente aprendeu muito com ele. Se o
homem estava convencido de que a garota poderia fazer isso, provavelmente ficaria
tudo bem.

— Então tá bom. Eris, não se descuide só por serem fracos.

— É, eu sei!

— E também se assegure de estar bem preparada antes de ir.

— É claro!

— Se as coisas ficarem complicadas, apenas dê meia-volta e corra, entendeu?

— Tá bom, tá bom! Certo!

— E se o pior acontecer, apenas agarre a coisinha nojenta pela mão e grite:


“Este Goblin é um molestador!” a plenos pul…

— Ah, já chega! Posso me virar com alguns Goblins sozinha, Rudeus!

Ops. Acabei deixando-a estressada.

Para ser honesto, ainda estava um pouco ansioso com isso, mas só teria que
colocar minha fé no julgamento de nosso guerreiro veterano.

— Nesse caso, não direi mais nada. Boa sorte, Eris.

— Obrigada! — disse, balançando a cabeça satisfeita. — Não se preocupe, eu


cuido disso!

— E você, Ruijerd? O que vai fazer amanhã?

— Acho que vou dizer olá a um conhecido meu.

Essa devia ser a primeira vez que o ouvi usar a palavra conhecido.

— É mesmo? Eu não sabia que você… tinha algum, na verdade.

— Bem, é claro que tenho.

Pelo que eu sabia de sua história de fundo, Ruijerd estava vagando por aí
sozinho por um bom tempo… mas depois de quinhentos anos, acho que
provavelmente encontrou algumas pessoas ao acaso. Parecia um pouco estranho
que uma daquelas pessoas estivesse morando logo em Millishion. Então,
novamente, esta era uma cidade enorme, então talvez fizesse um sentido grotesco.

— Que tipo de pessoa que é?

— Um guerreiro.

Ah. Provavelmente alguém que ele, no passado, resgatou na selva do


Continente Demônio ou algo assim, hein? Bem, de uma forma ou de outra, eu não
estava disposto a bisbilhotar. Não era seu pai e não sentia necessidade de interrogar
sobre com quem andava nas horas vagas.

Na manhã seguinte, Eris e Ruijerd saíram em seus respectivos caminhos, e eu


fui à cidade comprar papel, canetas e tinta. Achei que poderia aproveitar a
oportunidade para vagar pelas barracas ao ar livre por um tempo, até ter um bom
senso de quanto custava a maioria das coisas em Millis.

No final das contas, a comida era na verdade um pouco mais barata do que no
Continente Demônio. Claro, a variedade também era muito, muito melhor. Havia
bastante carne e peixe fresco disponíveis, e até uma boa variedade de vegetais.

Entretanto, a maior das surpresas com certeza foram os ovos. Havia muitos
deles, todos recém-botados e eram incrivelmente baratos. Eu tinha visto ovos à
venda algumas vezes no Continente Demônio, mas aqueles eram botados por
monstros ao invés de pássaros. A ideia era fazer com que eclodissem, deixasse a
criatura bebê o marcar e, então, treiná-la como quiser. É claro, ninguém comia
aquelas coisas. Eram muito caros para se transformar em uma omelete.

Aliás, existiam galinhas neste mundo. Havia até algumas pessoas que as
criavam em Buena Village e, ao que parece, a avicultura também era uma indústria
importante em Millis.

De repente, fiquei morrendo de vontade de voltar a comer ovo com arroz. Eu


sei, eu sei… isso é algo bem básico. Mas, vamos lá! É uma refeição nutricionalmente
completa!

Infelizmente, embora eu tivesse muitos ovos disponíveis para mim no momento,


não parecia haver nenhum arroz ou molho de soja para usar como
acompanhamento. O pão era aparentemente a grande base da dieta em Millis,
assim como em Asura.

O arroz existia neste mundo, mesmo não estando à venda no mercado local.
Era o alimento básico nas regiões norte e leste do Continente Central, e Roxy certa
vez mencionou que também estava disponível no Reino Shirone. Geralmente o
usavam como base para algo como arroz frito ou paella, com muita carne, vegetais
e frutos do mar. Infelizmente, parecia que não faziam criação de aves em Shirone,
então os ovos eram, pelo visto, uma mercadoria rara. Talvez o clima não fosse
adequado para a criação de galinhas.

Quanto ao molho de soja, nunca tinha visto nada assim neste mundo. Certa
vez, notei algo que parecia muito com soja enquanto folheava um dicionário de
plantas, mas parecia possível que até o momento ninguém tivesse tentado
fermentá-las e transformá-las em molho.

Não, não. Não posso ser pessimista! Existiam ovos e arroz, certo? Nesse caso,
também deveria haver molho de soja em algum lugar. Eu só precisava procurar
direitinho.

Algum dia, juntaria todos os ingredientes e tornaria meu sonho em realidade.


Mesmo se os ovos fossem um pouco anti-higiênicos, a magia de desintoxicação
poderia lidar com um pequeno envenenamento alimentar.

Assim que terminei minha pesquisa rápida no mercado local e comprei um


conjunto básico de artigos de papelaria, comecei a voltar para a pousada enquanto
tentava descobrir exatamente o que escrever na carta.

Esta seria a primeira vez que eu escreveria para Paul ou Sylphie. Deveria
começar com meus anos na casa dos Boreas…? Não, o importante era deixar que
soubessem que eu estava em segurança. Seria melhor começar com nosso
teletransporte para o Continente Demônio.

Pensando bem, eu tinha muito o que contar a eles. Comecei a viajar com um
lendário guerreiro Superd, conheci o Grande Imperador Demônio e até passei três
meses inteiros em um vilarejo do povo-fera.

Hmm. Será que acreditariam nisso?

Bem, de qualquer forma, eu só contaria a verdade. Mas parecia improvável que


alguém lá de casa comprasse minha história sobre receber um olho mágico da
própria Kishirika Kishirisu.

Falando em gente-fera… Seria bom saber se Ghislaine estava bem. Ela


provavelmente também tinha sido levada para algum canto aleatório do globo.
Supondo que não tivesse caído no meio de um vulcão ou algo assim, acreditava que
estaria bem. Afinal, a mulher era uma força da natureza ambulante.

Afinal, quantas outras pessoas tinham sido teletransportadas? A parede de luz


surgiu da Cidadela de Roa, então parecia possível que todos na propriedade dos
Boreas tivessem sofrido o mesmo destino que Eris e eu. Hmm. Ou seja: Philip,
Sauros, Hilda, Alphonse (o mordomo)… e todas as criadas, isso só para começar.
Senti que o Velho Sauros poderia abrir seu caminho pela vida muito bem, não
importa onde fosse parar, mas ainda assim…

— É, agora estou preocupado… — Murmurando comigo mesmo, virei para uma


rua estreita. Bem, Millishion também tinha algumas dessas. O layout da cidade, de
longe, parecia limpo e organizado, mas conforme os prédios antigos eram
derrubados e substituídos, vielas sujas como essa tendiam a se abrir entre eles.
Claro, tudo ainda estava alinhado em uma quadra, então não precisava se
preocupar em se perder em algum labirinto sinuoso. Era por isso que decidi tomar
um caminho diferente no retorno à pousada. Não custaria nada explorar um pouco
as ruas da cidade. Se tivesse sorte, poderia tropeçar na alameda de algum
amorzinho encantador ou algo assim. Nossa ruiva tinha uma personalidade algo
violenta, mas parecia que também era capaz de apreciar um pouco de beleza de
vez em quando. E se ficássemos na cidade por um mês inteiro, provavelmente
teríamos tempo para um “encontro” ou dois. Poderia ganhar alguns pontos bônus
de afeto se encontrasse alguns lugares legais para levá-la.

Quando estava me perdendo em pensamentos, notei um grupo de cinco ou


mais homens se movendo rapidamente em minha direção, bem do outro lado do
beco. Não pareciam aventureiros, à primeira vista, mas apenas
simples punks vagabundos. Suas roupas pareciam intimidadoras. Bem,
provavelmente não passavam de um bando de crianças bagunceiras. Ainda assim,
era meio rude ficar rondando em grupos nesses becos estreitos. Um pedestre
educado sempre deixava espaço para alguém que seguia na outra direção. Uma
criança como eu não precisava de tanto espaço, é verdade, mas nesse ritmo íamos
dar um encontrão. Deveriam estar se aproximando de mim em fila única e desviando
os olhos…

— Mova-se, moleque!

Imediatamente me pressionei contra a parede do beco.

Mas não entenda errado. Só queria evitar qualquer problema desnecessário.


Quer dizer, pareciam estar com muita pressa! E eu não estava. Não era como se
tivesse saído do caminho deles porque pareciam meio assustadores ou algo assim.
Sério, juro! Não tenho medo de nenhum delinquente! Juro pela minha alma.

Bem, de qualquer forma, pense nisso. Não se pode julgar um livro pela capa,
certo? Pareciam um bando de punks vagabundos, mas pelo que eu sabia, um deles
era na verdade um famoso espadachim.

Se tivesse ficado muito confiante e contestado a grosseria deles, poderia ter me


visto sendo cortado em pedaços pelo Nobre da Fúria, ou algo assim. Digo, este era
um mundo onde uma garotinha prestes a morrer de fome na rua poderia se tornar
um Grande Imperador Demônio, certo? Não havia nenhum motivo para sair brigando
por aí.

Bem, essa foi ao menos minha primeira impressão. Mas, quando passaram por
mim, percebi que dois caras no meio do grupo carregavam um saco de estopa. E
havia uma mãozinha saindo daquilo. Parecia que estavam carregando uma criança
– dentro de um saco, nada menos.

Sequestradores de novo?

Pelo visto este mundo estava cheio deles. Os criminosos pareciam agarrar as
crianças na primeira chance que encontravam. Também não era uma questão
regional; acontecia em todos os lugares, desde o Reino Asura até o Continente
Demônio, a Grande Floresta e o País Sagrado de Millis.
Pelo que Geese me disse, o sequestro costumava ser uma linha de trabalho
muito lucrativa. O mundo estava quase todo em paz, com exceção de alguns
conflitos menores aqui e ali. Apenas alguns escravos chegavam ao mercado das
regiões central e norte do Continente Central, e isso era tudo. E muitas, muitas
pessoas queriam escravos. Isso era uma verdade particular para os países mais
ricos, como Millis e Asura, onde as classes altas estavam constantemente
procurando comprar pessoas. Resumindo, a oferta não era grande o suficiente para
atender à demanda. Vítimas de sequestros tinham altos preços no mercado e,
enquanto isso fosse verdade, o problema nunca iria desaparecer. Para acabar com
a prática, pelo visto seria necessário começar uma ou duas guerras massivas.

Em qualquer caso… e agora?

Dado o número de homens, provavelmente estávamos falando de um crime


premeditado. Não seria surpreendente se a criança naquele saco fosse filho ou filha
de alguém relativamente importante do local.

Para ser honesto, eu não queria nem me envolver nisso. Da última vez que
resgatei crianças de uma gangue de sequestradores, acabei sendo tomado como
um dos criminosos e jogado em uma cela de prisão. E isso foi há apenas alguns
meses, então a memória ainda estava dolorosamente fresca.

Eu iria simplesmente deixar a criança ser entregue ao seu destino?

Não, não. Claro que não. Sequestradores sempre existiriam, é claro. E


isso estava trazendo de volta algumas memórias desagradáveis. Mas nada disso é
motivo para apenas virar a cara.

A primeira regra do time Fim da Linha era: “Nunca abandone uma criança em
perigo”. E a segunda regra do time Fim da Linha era: “Nunca, jamais abandone uma
criança em perigo”.

O Fim da Linha era um grupo de mocinhos. Permanecíamos firmes diante do


mal; resgataríamos crianças sempre que tivéssemos a oportunidade. E pouco a
pouco, espalharíamos a boa palavra sobre Ruijerd e os Superds.

Me virei e segui os cinco homens com o saco de estopa em silêncio.

Minhas habilidades furtivas pelo visto acabaram melhorando em algum


momento. Acho que seguir Eris e companhia lá nos Doldia foi uma boa prática. Os
sequestradores chegaram e entraram em seu destino, um armazém escondido, sem
sequer olhar na minha direção. Era um bando bem desleixado. Para começo de
conversa, evidentemente precisavam de melhorias no olfato.
O armazém em questão estava localizado em um canto tranquilo do Distrito dos
Aventureiros, mais afastado da multidão do que a pousada em que estávamos
hospedados. Não se podia ver o lugar da rua; a única maneira de alcançá-lo era se
espremendo por um beco estreito. Não havia como uma carruagem puxada por
cavalos chegar até ali. Nem seria possível carregar nada volumoso para fora. Me
perguntei por que diabos alguém colocaria um depósito em um local tão inacessível.
O armazém provavelmente foi construído algum tempo antes dos edifícios que
agora o cercavam. Às vezes, os engenheiros podem realmente ferrar qualquer um,
hein?

Mas não era como se isso importasse. Assim que me senti confiante de que o
grupo não estava apenas passando, me movi para a parte de trás do prédio e usei
magia da terra para ficar elevado ao chão, o que me permitiu entrar no prédio por
uma janela relativamente alta. Me abaixei até o chão, me arrastei até uma pilha
bagunçada de caixas de madeira, me escondi dentro de uma, então
cuidadosamente olhei para fora para ver como era composto todo o terreno.

Os cinco sequestradores estavam parados do outro lado do armazém mal


iluminado, conversando sobre alguma coisa. Pelo que pude perceber, tinham muitos
amigos bebendo no bar ao lado, e alguém precisava ir informá-los de que o
“trabalho” estava feito.

Eu tinha duas opções básicas neste momento. Poderia tentar derrubar os cinco
antes que unissem toda a gangue, ou poderia ficar parado, dar uma olhada
cuidadosa no rosto de seus amigos e simplesmente fugir com a criança quando
tivesse a chance. A última abordagem parecia muito mais atrativa, então decidi me
acomodar em minha caixa e ficar confortável.

Mas o que havia nela, afinal? Graças à iluminação ruim, eu realmente não tinha
dado uma boa olhada em seu conteúdo. O que quer que fosse, definitivamente era
feito de tecido. Mas as coisas eram muito pequenas para serem camisas ou calças.
E, por alguma razão, ficar deitado em uma pilha disso me fez sentir estranhamente…
tranquilo.

Estendi a mão e peguei uma das coisas. A forma e a textura eram familiares –
um pedaço de tecido cuidadosamente costurado com alguma profundidade definida
e três orifícios distintos. Em uma seção específica, o tecido era duas vezes mais
grosso; achei que pudesse sentir um toque da poderosa energia mística quando
toquei naquela parte.

— Uau! Espera aí, são calcinhas!

— Quem está aí?!

A-ah, merda, me ouviram! Droga… Nunca esperei que montassem uma


armadilha tão diabólica!

— Mas que infernos? Há alguém nas caixas?

— Apareça!
— Ei, vá falar com o chefe! Precisamos de todos aqui!

Bem, isso definitivamente não era bom. Enquanto eu estava sentado, já


estavam chamando a cavalaria. Era evidente que já chegara a hora para uma
mudança de planos. Só teria que agarrar a criança e fugir de uma vez, certo?
Parecia a melhor opção. Espere, não… assim veriam meu rosto.

Ah, em que eu estava pensando? Eu tinha uma máscara perfeitamente


adequada à mão.

Woooo! Sou um pedaço ardente de êxtase, baby!

Brincadeirinha.

Por um momento, parei e considerei tirar meu robe para esconder melhor minha
identidade, mas então me lembrei que nem estava o usando. Também não tinha
meu cajado. Afinal, tinha saído apenas para fazer compras.

Então tudo certo. Vamos nessa!

— Nossa!

— Cara, e-ele está usando uma calcinha na cabeça…

— Que aberração…

Os homens ficaram momentaneamente perplexos com minha aparição


repentina e dramática. Aproveitei a oportunidade para iniciar um monólogo.

— Ouçam-me, canalhas gananciosos! Como ousam tomar crianças inocentes


de suas famílias? Que vergonha! Vergonha! As pessoas chamam isso de…
sequestro!

O público não pareceu apreciar minha interpretação de Rom Stol. Talvez não
tivessem assistido ao velho anime de mechas.

— Q-quem diabos você deveria ser?

— Eu sou Ruijerd do Fim da Linha!

— O quê? Fim da Linha?

Ah, merda! Esqueci! Me apresentar assim virou um tipo de hábito, então as


palavras simplesmente escaparam da minha boca. Este era um caso em que eu
realmente não deveria ter dito nada.

Foi mal, Ruijerd! A partir de hoje, você é um estranho esquisito que resgata
crianças enquanto usa uma calcinha na cabeça! Mas não se preocupe. Vou salvar
a criança, custe o que custar!
— Malditos sejam, sequestradores nojentos! Graças a vocês, um homem
inocente acaba de ser muito caluniado! Sua vilania não ficará impune!

— Olha, garoto, vá brincar de herói em outro lugar! Nós não…

— Eu não vim aqui para conversar, seu idiota! Ataque Nascer do Soooool!

— Gurgh!

Acabei com a conversa disparando um feitiço Canhão de Pedra. Era sempre


bom usar alguns ataques preventivos. Na verdade, foi a mesma abordagem que
usei para resgatar o Grande Imperador Demônio daquele velho pedófilo sujo em
Porto Vento.

— Toma essa! E essa!

— Guh!

— Blagh!

Em um piscar de olhos, nocauteei os quatro homens que permaneceram no


armazém. Uma vez que todos estavam caídos, corri para verificar o prisioneiro.

— Você está bem, jovem?! Hmm. Parece que está inconsciente…

Senti como se já tivesse visto a criança em algum lugar. Na verdade, havia


algo… realmente familiar nela. Mas não consegui identificar exatamente o que era.
Que estranho.

Bem, tanto faz. Não era hora de pensar nisso. Eu precisava sair do lugar antes
que o resto da gangue chegasse… Mas, assim que esse pensamento passou pela
minha cabeça, uma multidão inteira de homens apareceu na porta do armazém.

— Uau! Mas que diabos? Ele derrubou todos os quatro!

— O garoto sabe lutar! Tragam o capitão aqui, já!

— Hoje ele bebeu muito, sabe?

— Ele ainda é um grande lutador, mesmo quando está bêbado!

Dois homens se viraram e fugiram, provavelmente para buscar seu “capitão”.


Isso ainda deixava mais de dez pessoas para eu lidar, e agora tinha que assumir
que mais reforços apareceriam.

Isso não era bom. Isso não era nada bom. Talvez realmente devesse ter
desviado o olhar… ou esperado até o dia seguinte, quando poderia ter convencido
Ruijerd a me ajudar. Lidar com tudo sozinho foi definitivamente um erro. Nesse
ponto, minha única opção era acabar com toda a gangue.
— Que tipo de aberração é esse cara? Ele está usando uma calcinha na
cabeça…

— Espere, ele veio aqui para roubar nossas roupas íntimas?!

— Ai, deus! Será que é algum tipo de pervertido?!

Quando olhei mais de perto, notei que na verdade também havia algumas
mulheres no grupo. Foi mal, Ruijerd! Sério… eu te devo uma.

Com um pedido de desculpas final para o homem que eu tinha injustiçado


profundamente, voltei meu foco para a tarefa em mãos. Por sorte, esses bandidos
não eram nada de especial. Continuaram avançando em minha direção em linha
reta, então era fácil atirar um Canhão de Pedra antes que chegassem perto demais.
Não eram rápidos o suficiente para desviar da minha magia, e um único golpe era o
suficiente para deixar a maioria deles inconsciente. Nenhuma dessas pessoas
estava armada. Também não havia magos com os quais se preocupar. Até o
momento estava tudo indo melhor do que o esperado.

— Droga, não podemos nem chegar perto…

— O que diabos há com esse garoto?! Ele está usando algum tipo de item
mágico?!

— Por que o capitão está demorando tanto?!

Quando nocauteei talvez metade deles, os outros começaram a ficar


visivelmente agitados. Afinal, talvez eu pudesse até mesmo criar meu caminho para
fora do lugar sem grandes problemas.

— O capitão vai chegar logo, pessoal! Até lá só precisamos aguentar!

Bem, quanto trabalho para nada.

Duas mulheres apareceram na porta do armazém. Uma delas era uma guerreira
vestida com uma armadura de biquíni; a outra era uma com um robe de maga. Não
demorou muito para a onda de reforços chegar, mas não fiquei surpreso. Pelo visto,
toda sua gangue estava bebendo no lugar ao lado.

A mulher guerreira estava, por algum motivo, exibindo muita pele. No


Continente Demônio, não vi uma única lutadora vestindo tão poucas coisas. Ela se
destacava ainda mais em comparação à maga, que estava vestindo uma roupa
perfeitamente normal.

Droga! Quem é essa mulher?! Eu não consigo… desviar… meus olhos…!

— Shierra, vou mantê-lo ocupado! Me dê cobertura!

— Certo!
A mulher de biquíni puxou a espada da cintura e correu em minha direção.
Enquanto isso, a maga na retaguarda pegou seu cajado e… ah, merda. Os seios da
mulher de biquíni balançavam loucamente cada vez que ela dava um passo. Não
deixe eles balançarem com tanto vigor, garota! Vão escapar!

Foi honestamente bizarro. Bem, eu esperava que a armadura de biquíni


mantivesse seu peito firmemente no lugar para não causar problemas na batalha.
Todo o seu traje parecia não servir a nenhum propósito prático.

Ah, cara, olha só como essas coisas se movem! Direita… esquerda…


direita! Estavam se aproximando, balançando para cá e para lá… Por um momento,
pararam, então saltaram de volta em minha direção…

— Hiyaaaa!

De repente, percebi que a mulher de biquíni estava balançando sua espada


diretamente para o meu rosto.

— Gaah! — Caindo reflexivamente para trás, consegui evitar o golpe por um fio
de cabelo. Foi por pouco! Droga. Essa garota luta sujo!

Ela estava propositalmente usando aquilo como distração?!

Nesse ponto, percebi uma voz fraca murmurando algo do outro lado do lugar.

— (…) converta onde quiseres e emita um único fluxo puro de…

Ah, merda. Isso era um encantamento mágico! Alguém estava prestes a atirar
uma Bola de Água em mim!

Pensando rápido, estendi minha mão na direção da maga. Desta vez escolhi o
feitiço Muro de Pedra. A melhor maneira de afastar um feitiço mágico à base de
água era pegar um pouco de areia e sujeira para absorver tudo em seu caminho.

Enquanto corria para lançar o feitiço, rapidamente olhei e encontrei a maga


apontando seu cajado diretamente para mim, prestes a lançar seu ataque.

No mesmo instante em que ela disparou sua Bola de Água, minha Parede de
Pedra se ergueu para enfrentá-la. O projétil de alta velocidade explodiu contra meu
feitiço com um estrondo ensurdecedor, em vez de um respingo. Água espirrou em
todas as direções por todo o armazém.

— O quê?! O que f-foi isso?!

Pelo que parecia, deixei a maga bem nervosa, então voltei minha atenção para
a mulher de biquíni.

— Ah…!
A força de seu ataque deixou seus seios balançando descontroladamente no
ar. Parecia que estavam prestes a se libertar. Quase pude… vê-los…!

— Hyaaaaaa!

Puxado de volta à realidade no último momento por seu grito de batalha


penetrante, consegui rolar de volta à segurança. Desta vez, coloquei um pouco mais
de distância entre nós antes de pular.

A mulher de biquíni olhou para mim, sua espada ainda contra o chão, no local
onde havia acertado.

— Pare de correr como uma barata, seu pequeno pervertido! — Enquanto


falava, ela ergueu a arma novamente, segurando-a firme acima do nível da cintura.
Parecia ter desistido de me oprimir com a velocidade e agressividade. Em vez disso,
começou a diminuir a distância entre nós lenta, mas firmemente.

Seguindo seu exemplo, recuei um pouco para… Ooh. Quando ela segurou sua
espada, seus braços empurraram seus melões juntos. Mas que decote
impressionante…

Argh! Vamos lá! Pare de cair na armadilha dela, estúpido!

Eu não conseguia manter meus olhos em sua maldita espada. Como deveria
lutar nessa condição?

Para ser honesto, nem a guerreira nem sua amiga maga eram lá muito
talentosas. Mas, nesse ritmo, eu nunca iria derrubá-las. Que deus me ajude se ela
sofresse com algum problema crítico com suas vestimentas. Eu provavelmente seria
cortado em pedaços na mesma hora.

Como descobriram minha única fraqueza?! Quem me vendeu, droga?!

Certo, se acalma.

Eu estava apenas me distraindo, simples assim. Isso não era uma técnica
deliberada. A questão era… o que eu faria sobre isso? Se quisesse transformar tudo
em uma luta justa, precisava fazer com que ela de alguma forma cobrisse os peitos.
E seu traseiro agradavelmente rechonchudo também, por falar nisso. Como poderia
manipulá-la para colocar roupas de verdade?

Talvez pudesse dizer algo para tentar deixá-la toda envergonhada… Hmm, não.
Se tivesse escolhido essa roupa deliberadamente, essa abordagem poderia sair
pela culatra.

— Hmph!

Claro! Eu já sabia!

Estão todos familiarizados com a história do vento do norte e do sol?


Era uma vez, o vento norte e o sol competiram para ver qual deles poderia
obrigar uma certa viajante a se despir. O vento do norte tentou soprar suas roupas
com rajadas frias e penetrantes, mas a viajante simplesmente vestiu camadas extras
de roupas. O sol, entretanto, simplesmente aqueceu tudo até que ela começou a
tirar as roupas por vontade própria.

Em outras palavras, se deixasse as coisas boas e quentes aqui, ela


tiraria tudo…

Não, não, não! É exatamente isso que não queremos, lembra?! Certo. Frio.
Precisávamos de frio.

— Você não tem para onde correr — disse a mulher guerreira.

Olhei para trás e percebi que tinha me apoiado contra a parede do armazém.
Mas isso não era um problema. Eu já tinha elaborado minha estratégia. Sem uma
palavra, estendi minhas mãos em direção à minha agressora com poucas roupas.

— Campo de Sincelo.

No momento em que canalizei minha energia mágica através da minha mão


direita, o ar extremamente frio saiu do nada para preencher o armazém. A
temperatura caiu trinta graus centígrados quase que na mesma hora. De repente,
ficou como se estivéssemos dentro de uma geladeira.

— Mas que…?!

Eu já podia ver os arrepios nos braços da mulher de biquíni, mas ainda não
tinha acabado. Desta vez, deixei minha energia mágica fluir para minha
mão esquerda.

— Explosão.

Uma grande rajada de vento fez a mulher voar para trás. Quando ela parou de
rodopiar, a enviei até a entrada do armazém. Eu estava pensando em chamar esse
pequeno feitiço combinado de “Explosão Polar”.

— Haa-choo!

O ar agora estava tão gélido que senti que poderia pegar um resfriado também,
mas consegui fazer exatamente o que tinha planejado. Tremendo e espirrando, a
mulher com armadura de biquíni gesticulou freneticamente para suas amigas
pedindo por um casaco. Agora eu estava livre de perigos. Uma vez que aqueles
seios estivessem escondidos da vista, não havia como ela levar a melhor sobre mim.
Tudo o que restava agora era deixar todo mundo inconsciente e começar com a
minha fuga…

— Estou aqui, pessoal! Desculpe por deixar todo mundo esperando!

Ou assim pensei…, até que meu mais novo desafiante apareceu.


O homem na porta parecia familiar. Algo em seu rosto realmente me fez sentir
um pouco de… nostalgia. Eu já tinha visto aquele cara em algum lugar, não tinha?
Mas onde? Ele não estava indo em minha direção.

— Tch. Esse bostinha se tornou um verdadeiro estorvo, hein? Hic… Para trás,
pessoal! Não há razão para se unir contra uma criança melequenta… Vou derrubá-
lo pessoalmente.

O homem estava obviamente confiante em suas habilidades, mas também


parecia que poderia estar bêbado. Mesmo à distância, eu podia vê-lo balançando
instavelmente, e seu rosto estava tingido de vermelho.

Sério. Quanto mais eu olhava para o cara, mais familiar ele parecia. Com o
cabelo castanho e o rosto levemente violento, meio que se parecia com Paul…
Pensando bem, também soava muito parecido com ele. É. Se colocassem Paul em
uma greve de fome e não o deixassem ter uma boa noite de sono por alguns meses,
provavelmente acabaria parecendo algo assim. Isso me fez hesitar um pouco quanto
a lançar qualquer ataque sério contra o sujeito.

Mas, é claro, dentre todas as coisas, de jeito nenhum meu pai estaria na
verdade andando com um bando de sequestradores em Millis.

— Ei, você! Acha que pode simplesmente entrar aqui e bater no meu pessoal,
hein? Bem, vou fazer você viver para se arrepender!

O homem deu um passo à frente de seu grupo, cuspiu algumas palavras ferozes
em minha direção e puxou um par de espadas de suas bainhas. Qualquer um capaz
de empunhar duas armas com competência tinha que ser um mestre espadachim.
Só por sua postura, tive a nítida sensação de que estava em um nível totalmente
diferente da mulher de armadura de biquíni. Canhão de Pedra seria o bastante para
lidar com ele?

Hmm… Eu realmente não queria usar nada que pudesse matar o cara,
entretanto…

Talvez sentindo minha hesitação, o homem avançou abruptamente.

— Wah…!

Ele me pegou um pouco desprevenido, mas consegui lançar um feitiço Canhão


de Pedra atrasado. O homem reagiu na mesma hora, girando a espada em sua mão
direita diagonalmente para desviar o projétil.

— Estilo de Deus da Água, hein?!

— Isso não é tudo que tenho a oferecer, parceiro!

Ele já estava quase em cima de mim. Agindo por puro reflexo, desencadeei uma
onda de choque e me lancei voando para trás no ar.

— Hah!
— Uau!

Ativei meu Olho da Previsão para espiar o futuro e me ajudar a evitar seus
ataques posteriores. O homem era rápido com suas espadas, mas seu jogo de pés
parecia um pouco desleixado. Provavelmente estava relacionado a todo o álcool em
seu sistema. Afinal de contas, talvez eu pudesse derrota-lo.

— Tch! Ele se move como o moleque, caramba… Vierra! Shierra! Venham me


dar uma mão!

Só assim, a mulher de armadura de biquíni e sua amiga maga voltaram a


avançar. E quanto àquilo de me derrubar sozinho, hein? Afinal, que tipo de homem
é você?

A mulher guerreira, agora toda coberta com um sobretudo, começou a me


circular. E a maga já estava começando a entoar outro encantamento. Isso
definitivamente não era bom. Os ataques do homem eram ferozes e persistentes, e
eu estava ocupado apenas me esquivando de todos eles.

Por sorte, ainda tinha um ou dois truques na manga.

— Wah!

— Ugh!

Usando a magia vocal do povo-fera, parei o homem em seu caminho por apenas
um instante, me dando tempo para enviá-lo voando com uma onda de choque.

— Canhão de Pedra!

Mantendo um olho no homem enquanto ele caía para trás, disparei um feitiço
ofensivo na maga. Em seguida, quando a mulher da armadura de biquíni estava
balançando sua espada em minha direção, usei meu Olho da Previsão para escapar
do ataque e acertar um contragolpe sólido.

A maga estava concentrada em seu encantamento. Meu feitiço a atingiu em


cheio e a deixou inconsciente. A mulher guerreira cambaleou para trás, mas ainda
não estava fora da luta, isso era notável a julgar pela fúria em seu olhar.

E, claro, agora, o homem estava voltando direto para mim de novo.

— Shierra…! Você vai pagar por isso, seu merdinha!

Assim que o homem deu um passo à frente, transformei o chão embaixo dele
em um pequeno espaço de pântano lamacento. Seu pé mergulhou direto naquilo, e
ele caiu desajeitadamente para frente no chão.

— Capitão!
Por um momento, os olhos da guerreira ficaram sobre ele em vez de mim.
Péssima ideia. Sem qualquer palavra, disparei outro Canhão de Pedra direto nela.

— Ah!

Dois já eram, faltava uma.

— Vierra! Puta merda!

Empurrando uma de suas espadas de volta para a bainha, o homem enfiou a


outra na própria boca. Ativei meu Olho da Previsão.

O homem vai correr para mim de quatro.

Esse cara era um cachorro ou o quê?

Disparei vários feitiços Canhão de Pedra para mantê-lo afastado e recuei para
criar mais distância entre nós. Infelizmente, o armazém não era um dos grandes.
Não havia maneira fácil de impedir que ele diminuísse a distância.

— Raaaaah!

Torcendo o corpo de um jeito bem estranho, o homem saltou do chão. Ele de


alguma forma conseguiu sacar a espada em seu quadril, mesmo enquanto me
atacava como um animal. Seus ataques foram rápidos e furiosos, partindo de
posturas tão estranhas que eu nunca saberia o que esperar.

O homem vai agarrar a espada na boca com a mão esquerda e a balançar para
baixo.

Que movimento bizarro.

A cada passo o cara voltava a desafiar minhas expectativas. Sem o Olho da


Previsão, eu nunca teria conseguido evitar aquele último ataque. Ainda assim, sua
lâmina roçou a ponta do meu nariz. O corte formigou dolorosamente.

Meu coração estava batendo forte no meu peito. Não estava tentando matar o
homem, mas o sujeito transbordava com a intenção de tirar minha vida. Por alguma
razão, isso realmente não parecia importar para ele no momento. Isso devia ser
óbvio desde o começo. Se eu não desse tudo o que tinha, não conseguiria sair do
armazém vivo.

Cerrei meus dentes e me abaixei, ficando quase agachado. Pensei no meu


treinamento com Ruijerd e Eris. O estilo feroz e bestial desse homem estava
provavelmente perto da forma como Ruijerd atacava quando estava apenas
atuando, mas seus movimentos não eram tão rápidos ou perfeitos quanto os do
Superd. O fator estranheza era sua principal vantagem. Eu poderia fazer isso.

Na próxima vez que ele me atacasse, eu acertaria um contragolpe e… Nesse


ponto, percebi que o homem havia parado de se mover.
Um momento depois, percebi que a calcinha que eu estava usando na cabeça
agora estava no chão do armazém.

Merda, isso não era bom. Eles veriam meu rosto…

— É você… Rudy?

Rudy?

Existia apenas um homem que me chamava assim.

E aquela voz… não era mais a rouquidão de algum bêbado zangado. De


repente, parecia uma muito familiar.

— Pai…?

Nos anos desde que o vi pela última vez, Paul Greyrat evidentemente havia
passado por uma espécie de transformação.

Seu rosto estava magro; havia olheiras sob seus olhos e barba por fazer nas
bochechas. Seu cabelo estava despenteado e seu hálito cheirava a bebida. Em
basicamente todos os aspectos, meu pai parecia um completo maltrapilho. A
diferença para o homem que eu lembrava era… dramática, para não dizer mais.
Capítulo 02 - A História de
Paul

Ponto de Vista do Paul

Quando abri os olhos, me vi no meio de uma planície relvada.

Era um trecho comum de terreno plano e limpo, mas, estranhamente, parecia


familiar. Tentei determinar onde estava e a resposta me veio à mente em pouco
tempo. Estava ao sul do Reino Asura, perto de uma cidade em que passei algum
tempo. Era o lugar onde fiquei quando estava aprendendo o Estilo Deus da Água…
e a cidade natal de Lilia.

Naturalmente, concluí que isso devia ser algum tipo de sonho. Afinal, não tinha
motivo para estar no local. Ainda assim, isso com certeza despertou memórias.
Quantos anos passei nesta área? Um? Talvez dois? Tudo que eu sabia era que com
certeza não tinha ficado muito tempo.

A maioria das minhas memórias daquele período da minha vida dizia respeito
ao salão de treinamento e aos alunos mais velhos com quem treinei. Eram um bando
de idiotas arrogantes com bocas grandes e nenhuma habilidade real. Eu tinha um
talento real, então estavam sempre ocupados tentando me manter no “lugar
apropriado”. E também sempre odiei que me mandassem fazer algo – afinal, a única
razão pela qual fugi de casa foi para escapar do controle do meu velho.

Mas ele pelo menos era um homem genuinamente competente e intimidador,


com poder suficiente para justificar seu ego. Os alunos do último ano, por outro lado,
eram apenas um monte de lixo inútil com egos inflados. Quando cheguei ao nível
intermediário, ainda estavam presos nos estágios finais de suas lições de iniciante.
Com certeza foi meio patético.

Inferno, mesmo o mestre do salão de treinamento só tinha alcançado o nível


Avançado no Estilo Deus da Água. Ele era um daqueles velhos idiotas que
adoravam gritar sobre “coragem” e “determinação”, apesar do fato de
que nunca havia feito nada de demais em lugar nenhum. Eu queria mostrar a cada
um deles o quão bom seria no futuro.

Mas, nunca tive a chance. Acabei perdendo minha paciência com suas
besteiras, transei com Lilia por despeito e fugi durante a noite. Passei algum tempo
de olho nela… mas, naquele momento, tudo que queria era tomar algo que todos
estimavam.
Na manhã seguinte, estavam todos procurando furiosamente por qualquer
vestígio meu. Fugi para outro país com um sorriso de escárnio no rosto.

Deus, eu realmente era um merdinha estúpido. Não me importava com o quanto


os outros alunos me odiavam, mas descontar minha frustração em Lilia com certeza
não foi uma das melhores coisas que fiz.

— Mm…

O vento estava aumentando. Um pouco de poeira soprou em meus olhos e fiz


uma careta. Um momento depois, houve um pequeno puxão na minha manga.

— Papai? Onde estamos…?

— Hm?

Por algum motivo, estava segurando Norn em meus braços. Ela estava olhando
para mim com ansiedade nos olhos.

Nesse ponto, finalmente percebi que estava realmente parado no meio do nada
com as roupas que usava em casa. Podia sentir o chão sólido sob meus pés… e o
calor do corpo da minha filha contra o meu peito.

Isso não era um sonho.

— Mas que diabos…?

Eu não fazia ideia do que estava fazendo neste lugar. Se estivesse sozinho,
provavelmente teria acreditado que era um sonho. Mas Norn estava bem ali, em
meus braços.

Sim. Era a pequena Norn, claro. Minha adorável filha de três anos.

Eu não a abraçava assim com muita frequência. Estava querendo ser algo mais
apropriado, um tipo de pai digno, então mantinha minhas expressões físicas de afeto
ao mínimo. Então o que ela estava fazendo em meus braços?

Ah, lembrei… Finalmente lembrei.

Apenas alguns momentos atrás, estava conversando com Zenith em nossa


casa.

— Sabe, quando as meninas crescem um pouco, não gostam de ser abraçadas


pelo pai. Você devia aproveitar para as mimar enquanto ainda pode.

— Nah, desta vez quero demonstrar alguma dignidade paterna. Comparada a


Rudeus, Norn parece uma criança comum, certo? Se eu fizer tudo direitinho, aposto
que posso convencê-la de que sou o melhor homem do mundo.

— Essa não foi a abordagem que seu pai adotou? Achei que você o odiava.
— Você tem razão… Tudo bem, me dá ela aqui.

Foi apenas uma conversa boba e casual. Lilia também estava por perto,
ensinando uma coisa ou outra para Aisha. Depois de perceber que a garota era
“talentosa”, decidiu cultivar seus talentos por meio de aulas e sermões constantes.
Argumentei que a criança ficaria mais feliz se a deixássemos ter uma infância mais
despreocupada, mas Lilia resistiu com tanta ferocidade que tive de recuar.

Entretanto, a criança realmente estava crescendo rápido. Ela começou a andar


muito cedo e absorveu tudo o que lhe ensinamos como se fosse uma esponja. Lilia
era uma boa professora, então isso provavelmente era esperado, mas Aisha estava
progredindo tanto que me preocupou que pudesse haver algo de errado com Norn.

Quando falei com Lilia, ela disse: “Aisha não é nada especial em comparação
com o jovem mestre Rudeus. E a Senhorita Norn é uma criança perfeitamente
normal.”

Eu não me importava se Norn era “normal” ou não, sério. Mas quando a imaginei
crescendo na sombra de dois irmãos brilhantes, isso me fez sentir um pouco mal
por ela.

Lembrei de pensamentos como aqueles que passavam pela minha mente… E


então fui subitamente envolvido por uma luz branca cegante.

É, finalmente lembrei. Não havia nenhum tipo de lacuna na minha memória. O


fato de ainda estar com Norn em meus braços era prova disso. Fazia algum tempo
desde que ela aprendeu a andar, mas eu a estava segurando contra o peito.

Estava acontecendo algo muito estranho. Isso ficou imediatamente óbvio.

— Papai? — Norn voltou a falar comigo com uma voz inquieta. Ela estava
observando o meu rosto o tempo todo.

— Está tudo bem, Norn. — Afagando suavemente sua cabeça, olhei ao redor
da área. Zenith e Lilia não estavam em lugar nenhum. Será que estariam por perto?
Ou eu era o único que tinha sido levado ao lugar?

Nesse caso, por que Norn ainda estava comigo?

Uma possibilidade surgiu em minha mente.

Certa vez, ativei uma armadilha muito desagradável nas profundezas de um


labirinto – um círculo de teletransporte escondido. E isso parecia muito semelhante.
Na época, tive a sorte de ser teletransportado para perto. Mas reflexivamente agarrei
Elinalise pela manga quando a armadilha ativou, o que a arrastou junto comigo.
Daquela vez ela ficou bem chateada.

Se não tivesse sorte, uma armadilha de teletransporte seria o tipo de coisa que
poderia oferecer uma morte instantânea. Pisar naquilo não foi minha culpa, já que
nosso macaco batedor deveria ter avistado a coisa de antemão… mas isso não era
mais importante. Resumindo, a magia de teletransporte era capaz de mover alguém
instantaneamente – e qualquer pessoa com quem estivesse em contato físico – para
um local diferente. Isso explicaria por que Norn ainda estava comigo, mas as outras
não.

Mas por que fui teletransportado? Não houve nenhum aviso. Alguém tinha feito
isso de propósito?

Para ser honesto, eu tinha inimigos em todos lugares. Não seria surpreendente
se alguém me atacasse furtivamente, dadas todas as coisas ruins que fiz no
passado. Mas magia de teletransporte? Isso não fazia sentido. Por um lado, não
havia nenhum encantamento conhecido para isso. Para teletransportar alguém,
seria necessário usar um círculo mágico ou um item mágico especial. Itens de
teletransporte foram proibidos em todo o mundo, e a criação de círculos de
teletransporte foi proibida por tanto tempo que a arte em si foi praticamente perdida.
Por que alguém iria a extremos, extremos perigosos, apenas para se vingar de um
único homem como eu? E por que simplesmente me jogariam no meio do nada…?

Será que o responsável era alguém do salão de treinamento? Talvez ainda


estivessem guardando rancor e me teletransportaram para longe para que
pudessem colocar as mãos em Lilia. Talvez me jogaram neste lugar para passar
alguma mensagem… e quando eu voltasse para minha casa, encontraria Zenith e
Lilia sendo violadas por uma gangue de bandidos cruéis.

Droga. Isso soava como algo que aqueles bastardos iriam pensar.

— Uh, Papai…

— Não se preocupe, Norn. Está tudo bem. Vamos voltar para casa rapidinho.

Tentando tranquilizar tanto a mim quanto Norn, parti em direção à cidade


vizinha. Felizmente, tinha uma moeda de ouro Asurano escondida na bainha da
minha espada, era um fundo para emergências. E graças aos velhos hábitos de
meus dias de aventuras, sempre mantive minha espada comigo, mesmo quando
dormia. Só a deixava de lado durante as noites mais gostosas. Meu cartão de
aventureiro também estava guardado dentro da bainha. Era só uma pequena
precaução para qualquer tipo de emergência.

Fui até a Guilda local e troquei minha moeda de ouro por moedas de valores
menores. A recepcionista me devolveu nove moedas de prata Asurana e oito
moedas de cobre grande. Pelo visto, em algum momento aumentaram suas taxas,
mas isso seria mais do que eu precisaria, de qualquer forma. Revisei rapidamente
as tarefas disponíveis, encontrei uma para uma entrega de emergência e a aceitei
na hora.

Meu cartão ficou sem magia há anos, então a senhora atrás do balcão teve que
primeiro o recarregar para mim. Quando as palavras reapareceram, ela exclamou
surpresa e me perguntou por que um aventureiro de rank S estava aceitando um
trabalho como aquele. Como era uma solicitação de emergência, as restrições
normais não se aplicavam, mas em circunstâncias normais teria sido uma tarefa
de rank E.
Eu não tinha nenhum motivo real para esconder minha situação, mas não queria
perder tempo explicando. Dei uma vaga explicação confusa, depois perguntei se
poderia pegar um cavalo emprestado. Essa era uma das vantagens especiais que
a Guilda oferecia aos aventureiros de rank S. Quando aceitava uma entrega
urgente, emprestariam algum transporte de graça. Claro, precisaria devolver o
cavalo assim que o serviço fosse concluído… mas, desta vez, estava planejando
cavalgar em uma direção totalmente diferente. Me senti mal pelo cliente, porém
precisava lidar com uma emergência pessoal.

O cavalo que me entregaram acabou por ser um espécime bastante


impressionante. Tive sorte. Esse trabalho de entrega devia ser, de fato, muito
urgente. Havia uma possibilidade real de perder meu status de aventureiro por
causa dessa façanha, mas poderia viver com isso. Bem, não planejava voltar a
ganhar a vida com essas coisas.

Coloquei Norn no cavalo e pulei atrás dela.

Na mesma hora galopamos para longe da cidade.

No meio da viagem, Norn começou a passar mal. A menina não tinha


experiência em andar a cavalo, e eu fiz com que viajássemos dia e noite.
Provavelmente era demais para ela aguentar.

Com o tempo que levou para cuidar de sua saúde, não consegui voltar para a
Região de Fittoa durante uns bons dois meses. Demorou tanto que quase me
arrependi por não ter pego uma carruagem para fazer o percurso. Eu já tinha falhado
no serviço de entrega, é claro, mas a taxa de quebra de contrato não seria tão ruim.

No momento, porém, eu estava caindo em desespero. Ainda não tínhamos


chegado a Buena Village, mas finalmente descobri o quanto a situação era grave.

Tudo na Região de Fittoa havia desaparecido.

Fiquei perplexo. Totalmente perplexo. Mas que diabos era isso? Onde Buena
Village tinha ido parar? Onde estavam Zenith e Lilia? A Cidadela de Roa também
havia desaparecido. Isso significava que até Rudeus sumiu?

Isso não pode ser verdade.

Em algum momento, caí de joelhos graças ao choque e angústia. As palavras


“foram eliminados por uma armadilha de teletransporte” ecoaram dentro da minha
mente.

Foi uma frase que ouvi mais de uma vez em meus dias de aventureiro, quando
ainda estava explorando labirintos. As armadilhas de teletransporte eram a única
coisa com a qual deveria estar sempre atento. Elas acabavam dividindo grupos e
deixando todos perdidos, sem saber a localização uns dos outros. Acionar uma era
uma ideia muito, muito ruim. Ouvi inúmeras histórias de times veteranos que foram
totalmente eliminados por causa dessas coisas. Uma vez, vi um homem atordoado
contando como todo o seu grupo havia pisado em um círculo de teletransporte. Ele
conseguiu se juntar a outro aventureiro e lutar para sair do labirinto, apenas para
descobrir que todos os seus amigos morreram.

Mas por que isso aconteceu? Logo conosco?

— Papai… ainda não chegamos em casa?

A voz de Norn me trouxe de volta à realidade. Sua mãozinha estava segurando


minha manga.

Sem dizer uma palavra, a abracei com força.

— O que foi, Papai?

Isso mesmo. Eu sou o pai dela.

A garota ainda não entendia o que havia acontecido. Mas não estava
preocupada, porque eu estava com ela. Eu era o pai dela. Agora eu era o pai, droga!
Não poderia mostrar nenhuma fraqueza. Tive que permanecer calmo e confiante. Ia
ficar tudo bem.

O teletransporte era uma armadilha perigosa e eu não fazia ideia do por que
disso ter acontecido. Mas estava vivo, não estava? Zenith era uma ex-aventureira
de pleno direito. E embora Lilia não fosse tão ágil quanto costumava ser antes do
envenenamento, ainda sabia como usar uma espada.

Aisha, porém…

Pense, droga. Lilia estava com ela naquele momento?

Não conseguia lembrar… Mas não poderia perder as esperanças.

Por enquanto, só teria que acreditar que Lilia estava segurando a mão da filha
quando aquela luz nos atingiu.

Devolvi o cavalo para a Guilda na cidade mais próxima e comecei a reunir


informações.

Parecia que a calamidade mágica realmente havia afetado toda a Região de


Fittoa. Philip e Sauros estavam desaparecidos, então o irmão mais velho de Philip
estava trabalhando como lorde interino. No entanto, ele estava sob intensa pressão
política para assumir a responsabilidade pelo desastre. Pelo que parecia, estava
prestes a ser destituído de sua posição. Toda a energia do homem estava
atualmente dedicada à sua proteção, então não havia tomado quaisquer medidas
reais para lidar com a calamidade em si. Em vez de cuidar de seu povo, o bastardo
egoísta estava tentando salvar sua própria pele. E ainda perguntavam por que eu
não suportava nobres Asuranos.
No decorrer de minhas investigações, conheci um velho chamado Alphonse.
Ele se apresentou como um mordomo que estava a serviço de Philip antes do
desastre. Sua lealdade à família Boreas Greyrat era aparentemente inabalável,
apesar das circunstâncias atuais. Estava montando um campo de refugiados,
usando o dinheiro do próprio bolso, e queria que eu o ajudasse com as ações.

Quando perguntei por que ele me queria, o velho explicou que Philip às vezes
mencionava meu nome. Pelo visto, me considerava “um homem que mostra seu
verdadeiro valor em uma crise, mas também tende a criá-las por meio de sua própria
falta de visão”. Bem, eu não pedi para ser criticado, mas tanto faz.

Alphonse admitiu que estava um tanto hesitante em me abordar com base nesta
questionável “declaração”. Assim que levou em consideração o fato de que eu era
o pai de Rudeus, entretanto, decidiu que seria sábio procurar minha ajuda.

Eu tinha ouvido um pouco sobre como as coisas estavam indo em Roa por meio
de cartas, mas ainda era bom ver que meu filho era tão bem considerado por alguém
com quem provavelmente nem interagia com tanta frequência. Em todo caso, aceitei
a oferta de Alphonse com prazer e comecei a trabalhar na mesma hora.

Depois de um mês, fizemos muito progresso.

Alphonse era um homem com muitas conexões. Em apenas algumas semanas,


lidou com todos os preparativos e reuniu trabalhadores suficientes para colocar o
campo de refugiados em funcionamento. Foi um feito realmente impressionante.

De minha parte, recrutei a maioria dos refugiados mais jovens que se reuniram
na área para uma organização chamada Esquadrão de Busca e Resgate de Fittoa.
Viajamos por todo o país, ajudando pessoas que foram desalojadas pela
calamidade. Claro, meu objetivo principal não era salvar um bando de estranhos.
Antes de mais nada, estava procurando minha família.

Neste ponto, a luta pelo poder na capital real aparentemente se resolveu, já que
Alphonse começou a receber fundos de recuperação de desastres do governo.
Deixei um bilhete no campo de refugiados para Rudeus e parti com meu esquadrão
para o País Sagrado de Millis, onde ficava a sede da Guilda dos Aventureiros. Asura
e Millis eram dois dos maiores países do mundo. Achei que as informações que
procurava deveriam estar em um ou outro. Parecia ser a abordagem lógica.

Honestamente, pensei que encontraria todo mundo em breve.

Mas que otimismo mais cego.

Meus primeiros seis meses em Millis foram bem produtivos.

No final das contas, um grande número de Fittoanos foi teletransportado para


este continente, e nós saímos resgatando cada um deles. Alguns já tinham sido
vendidos como escravos, e libertar à força a “propriedade” de outra pessoa era
contra a lei em Millis. Mas a ideia de alguém vendendo Zenith ou Lilia como escrava
me deixou tão furioso que nunca hesitei em infringir essa lei. Me apeguei
teimosamente a uma política de resgatar todos que encontramos.

Depois de decidir esse curso de ação, pedi ajuda à família de Zenith. Acontece
que minha esposa era de uma casa nobre com algum poder real em Millis. Eram
conhecidos por produzir muitos cavaleiros famosos, entre outras coisas. Com a
ajuda deles, comecei a preparar o terreno para libertar todos os escravos que
localizamos.

No final das contas, nossos esforços foram frutíferos. Nos movemos


rapidamente e encontramos muitos Fittoanos perdidos e sem um tostão em pouco
tempo. Depois de retirá-los de qualquer situação difícil em que tivessem ficado,
fornecemos fundos para viagens aos capazes de voltar para casa, recrutamos todos
os voluntários dispostos em nosso esquadrão e encontramos lugares para as
crianças e idosos refugiados ficarem.

Libertar os escravos exigia mais esforço, é claro. Pagávamos pela liberdade de


tantos quanto podíamos. Quando isso não era uma opção, pedíamos para que a
família de Zenith pressionasse. E quando isso não funcionava, procurávamos
chances de tomá-los de seus donos.

Naturalmente, tomar escravos à força não agradava a nobreza Millis como um


todo. Alguns até enviaram suas forças pessoais atrás de nós. Sofremos com
numerosas fatalidades.

Ainda assim, eu não iria parar. Minha moral estava alta. Estava salvando
pessoas desesperadas que precisavam de ajuda. E, por esse motivo, meu time ficou
comigo apesar do perigo.

Usei tudo o que tinha – o nome Greyrat, minha conexão com a família de Zenith
e minha reputação como um ex-aventureiro – para encontrar maneiras de contornar
os obstáculos em nosso caminho. Mas não importa o quanto trabalhamos, não
importa o quão exaustivamente eu tenha pesquisado, não conseguia encontrar
nenhuma informação sobre Zenith ou Lilia.

Inferno, eu não tinha ouvido nada sequer sobre Rudeus. Aquele menino se
destacava como uma pedra no sapato em todos os lugares que ia, mas agora
parecia que tinha sumido da face do planeta.

Antes que eu percebesse, um ano inteiro havia se passado.

A essa altura, ouvíamos falar cada vez menos dos Fittoanos teletransportados.
Provavelmente tínhamos encontrado quase todos que iríamos encontrar no
Continente Millis e nas regiões ao sul do Continente Central. Ainda havia algumas
aldeias menores que não havíamos revistado e vários escravos que não havíamos
conseguido libertar, mas era só isso. Meu esquadrão estava trabalhando
sistematicamente para libertar os escravos restantes. Assim que colocamos nossas
mãos sobre eles, o resto foi bastante simples.

Eu sabia que era uma abordagem violenta. Sabia que cada escravo que
libertamos despertava mais ódio da nobreza local. E mesmo assim continuei. Às
vezes, isso fazia com que meu pessoal fosse atacado na rua. Às vezes, ficavam
gravemente feridos ou eram até mesmo assassinados. E alguns membros do
esquadrão me culparam por isso.

Talvez estivessem certos. Talvez eu pudesse ter evitado que as coisas ficassem
tão feias.

Mas não importa o que dissessem, não mudaria minha abordagem neste ponto.
Estava muito comprometido com o caminho que escolhi.

Começamos a receber mais notícias sobre Fittoanos mortos do que vivos. Tinha
havido mais más notícias do que boas desde o início, mas a proporção só piorava.

Para ser franco, as pessoas que encontramos vivas eram uma minoria. Etos,
Chloe, Laws, Bonnie, Lane, Marion, Monty… já estavam todos mortos. Cada vez
que ficava sabendo de outro conhecido morto, meu sangue gelava.

Às vezes, os membros do esquadrão caíam em lágrimas com as últimas


notícias terríveis. Mais de uma vez, chegamos um pouco tarde demais para salvar
alguém, e um amigo ou membro da família descontava sua raiva em mim, exigindo
saber por que levei tanto tempo para nos levar até aquela cidade ou vila.

Havia o risco de ficarmos presos em algum lugar se não planejássemos nossos


movimentos com cuidado, portanto, nunca achei que minha estratégia estivesse
errada. Sob minha liderança, conseguimos salvar vários milhares de refugiados.

Claro, se tivesse conseguido falar com os membros do meu antigo grupo, o


Presas do Lobo Negro, poderiam ter nos ajudado procurado também no Continente
Demônio e no Continente Begaritt. Mas só consegui entrar em contato com um
deles, e o cara desapareceu logo após algumas breves conversas. Eu não tinha
ideia do que ele estava fazendo.

Não iria dizer que era um sem coração nem nada do tipo. Para começo de
conversa, nunca nos demos lá muito bem, e houve uma briga e tanto quando eu
debandei. Depois da maneira como me despedi, não seria surpreendente se
virassem as costas para mim.

Afinal de contas, por que tive que abandonar as coisas deixando um gosto tão
azedo em tudo? Fui um moleque tão estúpido.

Mas não fazia mais sentido pensar naquilo.


Um ano e meio se passou desde “O Incidente de Deslocamento”.

Atualmente, o álcool era a única coisa que me fazia continuar. Começava a


beber pela manhã e não parava mesmo à noite. Eu, literalmente, não ficava sóbrio
nunca.

Sabia que deveria me conter. Mas sempre que o efeito da bebida passava, os
mesmos pensamentos voltavam a surgir na minha cabeça.

Começava a pensar que minha família estava morta.

Pensaria nas maneiras como poderiam ter morrido. Ficava me questionando


sobre o que havia acontecido com seus corpos. Não conseguia pensar em
mais nada.

Alguém poderia me culpar? Até aquele meu filho absurdamente talentoso havia
desaparecido sem deixar vestígios. Eu não queria acreditar. Realmente não queria.
Mas era bem provável que ele estivesse morto. Todos provavelmente morreram em
algum momento dos últimos dezoito meses – com lágrimas escorrendo pelo rosto,
esperando que eu os resgatasse.

Cada vez que imaginava isso, pensava que poderia enlouquecer. Afinal de
contas, o que diabos eu estava fazendo? Por que perdi todo esse tempo ajudando
um bando de estranhos? Deveria ter ido direto para as partes mais perigosas do
mundo, desde o começo. Poderia ter, de alguma forma, conseguido, mesmo se
estivesse sozinho.

Fiz a escolha errada e acabei perdendo minha família. As pessoas de quem


mais gostava foram roubadas de mim, e eu nunca poderia recuperá-las.

É claro que não queria acreditar nisso.

Então bebia. Quando estava bêbado, pelo menos, sentia algo parecido com
felicidade.

Na verdade eu já não estava mais nem trabalhando direito.

Em mais seis meses, estaríamos iniciando uma operação para repatriar muitos
dos Fittoanos que encontramos no Continente Millis. Eram idosos, mulheres,
crianças e pessoas tão doentes que mal podiam se mover. Mesmo se lhes
déssemos dinheiro, não havia garantia de que poderiam suportar uma longa
jornada. Mas todos queriam voltar para sua terra natal, então meu esquadrão os
escoltaria de volta ao Reino Asura.

O planejamento estava avançando de forma constante. Mas, apesar de meu


papel como capitão do time, faltei às reuniões e passei meus dias bebendo.

Permaneceria em Millis após a operação, junto com alguns outros membros


importantes do Esquadrão de Busca e Resgate. Depois de tudo feito, entretanto,
nossas atividades seriam drasticamente reduzidas. Em outras palavras, iriam
interromper a busca por vítimas depois de apenas dois anos. Parecia muito cedo…
mas, ao mesmo tempo, eu tinha que admitir que entendia a lógica por trás disso.
Continuar procurando pelo interior, a esta altura, não passaria de desperdício de
dinheiro.

No final, não consegui encontrar um único membro da minha família.

Fracassei.

Agora que estava bêbado o tempo todo, os outros membros do esquadrão


começaram a manter distância de mim. Mas não poderia culpar nenhum deles.
Ninguém quer perder tempo lidando com algum idiota bêbado.

Porém, havia algumas exceções, e Norn era uma delas.

— Papai! Sabia? Adivinha o que aconteceu quando eu estava lá fora!

Não importa o quão bêbado eu estivesse, Norn sempre conversaria


alegremente comigo. Esta doce garotinha era tudo o que restava da minha família.

Certo. Havia uma boa razão para eu não ter ido para o Continente Demônio ou
Begaritt, não é? Eu tinha que cuidar de Norn. O que deveria fazer, abandonar minha
filha de quatro anos? Não havia nenhuma maneira de deixá-la para trás e vagar para
algum lugar onde pudesse morrer facilmente.

— Hm? O que foi, Norn? Aconteceu alguma coisa?

— Sim! Quase caí na rua lá fora, mas um careca grandalhão me ajudou! E ele
me deu isso aqui! Olha só!

Com um grande sorriso, Norn me mostrou a maçã vermelha brilhante em suas


mãos. Com certeza parecia fresca e suculenta.

— Ah, é? Bem, sorte sua. Você disse “obrigada” como uma boa menina?

— Sim! Quando eu disse obrigada, o careca me deu um tapinha na cabeça!

— Sério? Acho que você encontrou uma pessoa muito legal. Mas não deve
chamá-lo de “careca”, viu? Alguns caras são meio sensíveis com relação ao cabelo.

Conversar com minha filha era sempre muito divertido. Norn era a luz da minha
vida. Se alguém tentasse machucá-la, acabaria com todos, mesmo se isso
acabasse começando uma briga com o Papa da Igreja Millis.

— Capitão! Temos um problema!

Quando estava começando a me sentir um pouco melhor, um dos meus


homens irrompeu em meu quarto. Não poderia dizer que fiquei satisfeito ao ter uma
conversa com minha filha interrompida assim. Poderia ter jogado o cara para fora
com um rugido de raiva, mas Norn ainda estava comigo. Um pouco de orgulho e
mesquinhez manteve minha voz calma.
— O que está acontecendo?

— Os caras que trabalharam hoje acabaram de ser atacados!

— O quê, sério?

Agora, quem iria fazer uma coisa dessas?

Que pergunta idiota. Com certeza eram aqueles aristocratas idiotas de novo.
Havíamos explicado centenas de vezes que residentes inocentes do Reino Asura
foram escravizados como resultado de uma calamidade mágica, mas os canalhas
teimavam e se recusavam a entregá-los. Pelo que me lembrava, planejávamos
resgatar um escravo de algum deles.

— Certo! Pessoal, coloquem seus equipamentos! Vamos! — Corri para fora do


meu quarto e chamei os lutadores do esquadrão. Nenhum deles era um guerreiro lá
muito experiente, mas também não era como se estivéssemos indo contra um bando
de exploradores de labirinto veteranos. Com meu pessoal seguindo de perto, fui
para o lugar onde a luta havia começado.

A caminhada não foi longa. Tinham atacado o prédio ao lado – um dos


armazéns do Esquadrão de Busca e Resgate, um lugar em que costumávamos
guardar roupas e suprimentos para nosso pessoal. Se nossos inimigos tivessem
encontrado isso, teríamos um problema em nossas mãos. Talvez tivéssemos que
mudar nossa base de operações.

— Há apenas um deles, mas ele é durão. Tenha cuidado, Paul.

— Ele é um espadachim ou o quê?

— Não, é um mago. Parece uma criança, mas está com o rosto escondido.

Um garoto mago? Eu sabia que meu pessoal era amador, mas eram adultos
em boa forma, e ele derrubou um monte deles. Este “garoto” provavelmente era um
hobbit, se quisessem saber minha opinião. Estavam sempre se aproveitando de sua
aparência infantil para enganar as pessoas.

Então um mago hobbit veterano… hmm. Será que poderia derrotá-lo nessas
condições? Estava confiante de que poderia lidar com um bandido ou até três deles,
não importa o quão bêbado estivesse, mas…

Nah, sem problemas. Eu tenho muitos truques na manga.

Balançando a cabeça, entrei no armazém.


Capítulo 03 - Contenda de
Família

Paul estava hospedado em um lugar chamado Pousada Porta D’Alvorada, mas


me levou para o bar ao lado. Havia cerca de dez mesas redondas de madeira e, no
momento, eu estava sentado bem em frente ao meu pai.

Ainda era dia, mas não éramos os únicos no bar. Na verdade, todos os lugares
estavam ocupados. Os caras que derrubei no armazém estavam sentados, tendo
seus ferimentos tratados pelos curandeiros do grupo. Nem seria preciso dizer que
os olhares que me deram não foram muito amigáveis.

Pelo visto eram todos membros da gangue de Paul. E, dentre todos, quem mais
chamava a atenção era, com certeza, a guerreira sentada diagonalmente atrás dele.

Ela tinha cabelos castanhos curtos com as pontas feitas, uma boca carnuda e
um rosto bastante encantador. Mas era sua silhueta e sua roupa que faziam com
que realmente se destacasse. Seu peito era enorme, sua cintura era fina e sua
bunda arredondada. Por alguma razão, ainda estava usando aquela armadura de
biquíni. Pelo visto ainda não tinha nem vinte anos.

Era aquela garota que anteriormente me deu tanto trabalho. Paul a chamava de
“Vierra”. Ela definitivamente tinha o tipo de corpo pelo qual eu podia imaginar meu
velho babando. Eu mesmo achei difícil desviar o olhar quando olhei na direção
dela… e aquela roupa absurdamente minúscula certamente não ajudava em nada.

A própria “armadura de biquíni” não era algo tão raro neste mundo. Afinal, a
maioria dos ferimentos poderia ser curada instantaneamente com magia, então
algumas espadachins optavam por equipamentos de proteção mais leves, aceitando
o fato de que às vezes mostrariam demais. Conheci algumas pessoas assim no
Continente Demônio, e tinha que assumir que ela estava na mesma situação. Mas
eu nunca tinha visto ninguém com tão poucas roupas antes. Normalmente, uma
armadura como aquela seria usada sobre roupas leves, e não sobre a pele nua. E
qualquer um usaria alguma proteção para cobrir ao menos algumas partes das
próprias juntas. Agora podíamos até estar apenas em um bar, então faria sentido
não se incomodar em usar nada mais para a proteção. Da mesma forma,
normalmente se usaria um casaco sobre esse tipo de armadura quando não
estivesse lutando. Ao menos era isso que as mulheres faziam no Continente
Demônio. Mas algumas das espadachins mais experientes não pareciam se
importar tanto…
Espera. Ela não tinha colocado um sobretudo no armazém depois que lancei o
feitiço? Por que diabos iria tirá-lo de novo?

Bem, tanto faz. Eu poderia muito bem aproveitar o colírio para os olhos
enquanto tivesse a oportunidade. Mm, sim, de fato. Esplêndido, esplêndido… Ops.

Acidentalmente encontrei o olhar da garota enquanto a cobiçava. Ela me deu


uma piscadela rápida, então devolvi uma das minhas.

— Ei, Rudy… Rudy?

Nesse ponto, percebi que Paul estava falando comigo e, com pesar, desviei
meus olhos da guerreira.

— Olá, Pai. Quanto tempo.

— É. Uh… é bom ver que você ainda está vivo, garoto.

A voz de Paul transbordava exaustão. O homem realmente tinha mudado


bastante. E, com certeza, não foi para melhor. Nunca o tinha visto tão abatido ou
desgrenhado antes.

— Bem… obrigado…

Para ser honesto, estava tendo muita dificuldade para entender essa situação.
O que diabos Paul estava fazendo nesse lugar? Estávamos no País Sagrado de
Millis. Ficava tão longe do Reino Asura quanto a Mongólia da África. Ele estava me
procurando?

Não, não podia ser. Ele nem sabia que eu tinha sido teletransportado para o
Continente Demônio. Devia haver algum outro motivo. O que aconteceu com seu
trabalho de proteger Buena Village?

— Então… o que está fazendo aqui, Pai?

A pergunta parecia um ponto de partida razoável para mim, mas Paul reagiu
com óbvia surpresa.

— O quê? Você viu minha mensagem, não viu?

— Sua mensagem…? — Mas do que ele estava falando? Não me lembrava de


ter recebido nenhuma mensagem.

Por algum motivo, Paul franziu a testa, carrancudo, diante da minha confusão.
Consegui de alguma forma perturbá-lo?

— Se importa em me contar o que andou fazendo até agora, Rudy?

— Uh, estive basicamente tentando sobreviver. É uma longa história…


Eu realmente esperava que Paul explicasse a situação primeiro, mas como ele
perguntou, decidi contar a história de minha jornada para Millishion. Comecei com
meu teletransporte para o Continente Demônio com Eris, descrevendo como fomos
resgatados por um demônio, nos tornamos aventureiros e passei um ano inteiro
viajando até Porto Vento.

Parando para olhar para o passado, a jornada foi bem divertida. Sofremos com
um começo difícil, é verdade, mas por volta do sexto mês já estávamos
acostumados com a vida de aventureiro. Aos poucos, comecei a gostar de contar
minha própria história. Minhas descrições de eventos tornaram-se mais eloquentes
e comecei a descrever vários episódios de maneiras cada vez mais dramáticas.
Nada era ficção, mas dei um jeito de moldar tudo, transformando as coisas em uma
grande e espetacular história.

Para começar, dividi nossa aventura pelo Continente Demônio em três partes
claras:

Capítulo Um: Encontrei meu querido amigo Ruijerd, e fizemos um nome para
nós mesmos na cidade de Rikarisu.

Capítulo Dois: Prometendo ajudar Ruijerd em sua busca e corrigir vários erros,
o grande mago Rudeus iniciou sua grande jornada.

Capítulo Três: Fui pego em uma armadilha covarde do povo-fera e me tornei


um prisioneiro indefeso em sua aldeia.

Podia haver um exagerinho aqui ou ali, mas mantive a narrativa fiel à realidade.
Depois de um tempo, comecei a me divertir tanto que passei a balançar as mãos e
adicionar efeitos sonoros dramáticos às cenas de ação.

Além disso, optei por deixar de fora todo o caso com o Deus Homem.

— E então, quando finalmente chegamos a Porto Vento, a primeira coisa que


encontramos foi… — Assim que estava encerrando o capítulo dois de minhas
“Crônicas de Uma Jornada Errante Através do Continente Demônio”, abruptamente
fiquei em silêncio. Por algum motivo, o humor de Paul piorou. Havia algo muito
parecido com uma carranca em seu rosto, e ele tamborilava os dedos na mesa,
irritado.

Será que foi algo que eu disse? Realmente não entendi por que ele estava
chateado, então decidi tentar descobrir ao continuar.

— Uh, então de qualquer forma… Depois disso, nós fomos para a Grande
Floresta…

— Chega — disse Paul, seu tom nitidamente irritado. — Já entendi, certo? Você
passou o último ano e meio brincando por aí.

A maneira como ele disse isso meio que me irritou.

— Como é que é? Na verdade passei por muitos problemas.


— Ah, é? Quando?

— Hein?

Ele me pegou desprevenido com isso. Minha voz soou um pouco estranha.

— Do jeito que você acabou de descrever, a coisa toda pareceu uma maldita
caminhada no parque.

Bem, claro. Isso porque contei as coisas assim de propósito. Mas, parando para
pensar, talvez tenha me empolgado demais.

— Olha, Rudy… deixe-me perguntar uma coisa.

— O que foi?

— Por que não se incomodou em tentar descobrir se mais alguém foi


teletransportado para o Continente Demônio?

Fiquei em silêncio. Foi a única coisa que pude fazer. Afinal, não consegui pensar
em nenhuma boa resposta para sua pergunta. Havia apenas uma resposta possível.
Um motivo simples.

Nem pensei nisso.

No início, estava totalmente ocupado com os problemas do nosso grupo. Mas


mesmo depois de começarmos a tomar controle das coisas, nunca pensei que
alguém além de nós pudesse ter sido enviado para o Continente Demônio.

— Acho… que esqueci disso. Um… eu estava meio que ocupado e…

— Ah, estava? Você encontrou tempo para ajudar algum demônio aleatório que
nunca viu antes, mas não conseguiu pensar nas outras pessoas que provavelmente
também foram enviadas para lá?

Voltei a ficar em silêncio.

Talvez tivesse priorizado as coisas erradas. Certo. Mas não conseguia ver
motivo para me questionar sobre isso depois de tudo feito.

Eu simplesmente não pensei nessas coisas na hora certa. O que se supunha


que deveria ter feito?

— Hah! Então, e aí? Você não procurou ninguém. Não se preocupou em


escrever sequer uma única carta. Só ficou por aí, curtindo a vida de aventureiro com
uma garotinha bonita e um guarda-costas invencível! E então, quando chegou a
Millishion… hah! A primeira coisa que fez foi tropeçar em um sequestro, colocar uma
calcinha na cabeça e fingir que é algum tipo de herói?
Com um bufo zombeteiro, Paul estendeu a mão para pegar uma garrafa de
álcool na mesa ao lado. Ele bebeu metade em um único gole e cuspiu no chão
fazendo barulho.

Sua atitude estava realmente começando a me irritar. Eu não ia dizer para que
não bebesse, mas estávamos no meio de uma discussão importante.

— Olha, eu fiz o melhor que pude, entendeu? Fiquei preso em um lugar


totalmente desconhecido, sem dinheiro, e senti que tinha que me concentrar em
manter Eris segura. Você realmente pode me culpar por ter esquecido algumas
coisas?

— Não estou culpando você nem nada, garoto. — O tom de voz de Paul soou
zombeteiro como sempre.

Neste momento não pude deixar de levantar minha voz.

— Então por que continua me atacando assim?! — Minha paciência tinha


limites. Não entendi o motivo para o homem estar agindo assim.

— Por quê? — Mais uma vez, Paul cuspiu no chão revelando desgosto. — Isso
é o que eu quero saber. Por quê?

— Como é que é? — A cada segundo que passava a conversa ficava mais


confusa. O que ele estava tentando dizer?

— Essa criança, Eris, é a filha de Philip, não é?

— Hã? Uh, sim, claro que é.

— Eu mesmo nunca vi ela, mas tenho certeza de que é uma garotinha bonita.
Foi por isso que não enviou nenhuma carta? Poderia acabar ficando mais difícil dar
uns pegas nela se aparecesse um monte de guarda-costas, imagino.

— Ah, vamos lá! Já te disse, só esqueci! — Nenhum pensamento do tipo tinha


passado pela minha cabeça.

É verdade que Eris era a criança de uma família poderosa. Os Greyrats


possuíam muita influência. Se eu tivesse falado com o lorde local de Porto Zant,
poderiam ter nos dado um ou dois guarda-costas. Claro, acabei em uma cela de
prisão em uma vila do povo-fera antes de ter a chance de tentar algo assim. Mas já
não tinha explicado isso?

Ah, espera. Não. Na verdade, não tive a chance de chegar nessa parte…

Ainda assim, realmente senti que fiz o melhor trabalho que pude diante das
circunstâncias. Eu não estava dizendo que havia tomado as melhores decisões
possíveis em todos os momentos, mas não achei que Paul tivesse o direito de me
criticar depois de tudo feito.
Após um momento de silêncio, a mulher da armadura de biquini colocou a mão
no ombro dele, chegando por trás.

— Capitão, por que simplesmente não esquece isso? Sabe, ele ainda é uma
criança. Não precisa ser tão ríspido assim.

Não pude deixar de bufar. Sério, típico do Paul. Apesar de toda sua conversa
fiada, não conseguia nem se controlar perto das mulheres. E desde quando um cara
desses podia falar desse jeito comigo?

Apenas para registrar: Não coloquei um único dedo em Eris. Claro, em alguns
momentos me senti tentado. Às vezes, meus desejos pecaminosos quase levavam
a melhor sobre mim. Mas, no final das contas, nunca a toquei.

— Sabe, Pai, não sei se você tem algum direito de me dar algum sermão por
causa de mulheres.

— O quê…?

Paul semicerrou os olhos ameaçadoramente neste momento. Mas na hora, não


percebi.

— Afinal de contas, quem é essa garota atrás de você?

— Vierra? O que tem ela?

— Diga-me, minha Mãe e Lilia sabem que você está tão íntimo com uma mulher
tão bonita?

— Não, elas não sabem. Como diabos saberiam? — Paul contorceu o rosto
amargamente, mas eu nem estava olhando para ele. Estava muito ocupado
aproveitando o fato de que finalmente consegui levar alguma vantagem.

— Então pode traí-las tanto quanto seu coração quiser? A propósito, ela está
usando uma roupa e tanto. Acho que logo vou ganhar mais um irmão ou irmã.

De repente, me encontrei deitado no chão com meu rosto latejando


dolorosamente. Paul estava olhando para mim com ódio nos olhos.

— Já estou farto dessa merda, Rudy.

Ele me deu um soco. Por quê? Mas que diabos?

— Olhe. Se você chegou até aqui, já passou por Porto Zant, não passou?

— Passei. E daí?

— Então você já sabe, não sabe?!


Do que ele estava falando?! Isso realmente não fazia qualquer sentido. Tudo
que poderia dizer era que Paul estava escondendo algo de mim… e que estava
chateado por eu não saber o que era esse “algo”. Mas que piada. Eu não era
nenhum sabe-tudo, inferno. O mundo transbordava com coisas que não sabia.

— Não faço ideia do que você está falando! — Me levantei com um salto e dei
um golpe em Paul.

Mesmo enquanto ele se esquivava do soco, ativei meu Olho da Previsão.

Ele vai pegar minha perna e me fazer tropeçar.

Pisei com força no pé de Paul e girei para dar outro soco em seu queixo.

Ele vai se esquivar do meu soco e me acertar um contragolpe.

O homem se movia bem até demais para um bêbado. Canalizei magia em


minha mão direita. Se eu não fosse páreo para ele em uma briga de curta distância,
poderia simplesmente partir para o uso de feitiços.

O redemoinho que invoquei atingiu meu pai de frente. Com um grito mudo de
surpresa, girou para trás no ar, voando para além do balcão do bar. O barulho de
garrafas quebrando passou por todo o cômodo quando ele caiu no chão.

— Puta merda! Agora já chega! — Paul se pôs de pé na mesma hora, mas


cambaleou instavelmente ao tentar se mover.

Você andou bebendo demais, idiota. No passado ele fora muito mais forte. O
velho Paul teria dado um jeito de evitar meu redemoinho, mesmo naquela posição
estranha.

— Rudy, seu moleq…

— Capitão!

Enquanto Paul vacilava, outra mulher correu para o seu lado. Desta vez, era a
maga de robe. Então ele estava cercado por garotas, não estava? Foi incrível como
teve coragem de me dar um sermão.

— Me deixa em paz! — Empurrando a maga para o lado, Paul caminhou pelo


cômodo de volta até mim.

— Com quantas mulheres você dormiu enquanto estive longe, hein, Paul?

— Cale a maldita boca!

Ele vai me lançar um golpe poderoso com a mão direita.

Mas que soco mais previsível. Esse era o mesmo Paul que eu conhecia?
Mesmo sem o Olho da Previsão, eu provavelmente poderia ter desviado.
— Hah! — Agarrei seu braço estendido e o puxei para frente para algo como
um lançamento de ombro com um braço só. Claro, eu não entendia nada de judô.
Usei uma rajada de magia do vento para impulsioná-lo , então apenas o joguei no
chão com o máximo de força que consegui.

— Gah…!

Paul não conseguiu nem amortecer a queda direito. Enquanto ele estava jogado
no chão, eu me abaixei e montei no homem, prendendo seus braços sob meus
joelhos do jeito que Eris sempre fazia.

— Olha aqui… eu dei… o meu melhor, entendeu?!

E bati nele.

E bati de novo.

E mais outra vez.

Rangendo os dentes, Paul olhou para mim com os olhos cheios de uma fúria
amarga.

Porra, o que havia de errado com ele?! O que foi que fiz para merecer aquele
olhar?!

— O que você esperava de mim?! Eu fui parar em um lugar totalmente


desconhecido! Não tinha ninguém para pedir ajuda! E ainda consegui chegar até
aqui! Isso não é bom o bastante?!

— Você poderia ter feito melhor e sabe disso!

— Isso não é verdade!

E voltei a dar socos nele. E de novo.

Pelo visto, nenhum de nós tinha mais coisas a dizer. Paul apenas olhou para
mim enquanto sangue escorria dos cantos de sua boca.

Parecia realmente irritado. Como se estivesse lidando com alguém totalmente


irracional. Por quê? Eu nunca tinha visto uma expressão assim em seu rosto. Não
era assim que ele era. Que se fod..

— Pare com issooooo! — De repente, algo me acertou pelo lado. Balancei um


pouco com o impacto e, no instante seguinte, Paul me empurrou para longe dele e
se sentou.

Assumindo que voltaria a ser atacado, logo me preparei. Mas Paul não se
moveu em minha direção… porque agora havia uma garotinha parada bem entre
nós.
— Pare! Pare agora!

A criança tinha o nariz de Paul e o cabelo dourado de Zenith. A reconheci na


mesma hora. Era Norn. Norn Greyrat – minha irmãzinha. Ela tinha ficado muito maior
desde a última vez que a vi. Agora devia ter cinco anos, não é? Talvez até seis. Por
que estava parada na minha frente e com os braços abertos?

— Pare de bater no Papai!


Pisquei, confuso.
— Hein? — Bater no Papai? O quê? Não. Vamos lá …

Norn estava olhando para mim, parecendo que ia explodir em lágrimas a


qualquer momento. Quando olhei ao redor do lugar… por algum motivo, todos
estavam olhando para mim como se eu fosse o cara mau.

— Isso é sério…?

Senti meu sangue gelando. Memórias de décadas anteriores passaram pela


minha mente. Memórias de todas as vezes em que sofri bullying em minha vida
anterior. Naqueles tempos, sempre que tentava me defender, todos da sala de aula
costumavam me olhar assim.

Certo, certo, claro. Então eu é que estava errado, de novo, hein?

Tanto faz. Desisto.

Já chega disso. Era hora de ir embora. Eu não tinha encontrado nada que
valesse a pena ser visto, e também não tinha feito nada. Seria melhor voltar para a
pousada e esperar por Eris e Ruijerd. Podíamos deixar esta cidade de imediato…
talvez em um ou dois dias. Sério, não seria o fim do mundo. A capital não seria o
único lugar onde poderíamos fazer algum dinheiro. Digo, Porto Oeste devia ter uma
filial própria da Guilda, certo?

— Escute, Rudy. Você não foi o único teletransportado pela Calamidade. Todo
mundo de Buena Village também foi.

Paul estava dizendo alguma outra coisa, mas simplesmente ignorei.

Hm? O quê?

O que era isso agora?

— Deixei uma mensagem para você com as Guildas de Porto Zant e Porto
Oeste. Você não se tornou um aventureiro? Por que diabos não leu?

Hein? Eu não tinha visto nada do tipo em Porto Zant…

Não, espera. Certo. Nunca tivemos a chance de visitar a Guilda dos


Aventureiros de lá, não foi? Após chegarmos, a primeira coisa que fiz foi partir em
busca de Ruijerd, e aquela saída terminou comigo trancado em uma cela de prisão
no Vilarejo Doldia.

— Enquanto você estava curtindo suas férias, um monte de gente morreu.

Eu tinha visto “O Incidente de Deslocamento” com meus próprios olhos. Tinha


visto a escala daquela calamidade mágica. Por que não pensei nisso? Até o Deus
Homem disse que o desastre tinha sido “enorme”. Não existia motivo para supor que
não tivesse chegado a Buena Village.
Então… todos de casa desapareceram…

— Isso significa que… Sylphie também está desaparecida?

— Está mais preocupado com uma garota do que com sua própria mãe, Rudy?
— disse Paul, irritado e carrancudo.

Minha garganta fechou.

— O quê?! V-você não encontrou nem a minha Mãe?!

— Isso mesmo. Não consegui a encontrar em lugar nenhum! E nem Lilia!

As palavras me acertaram como um soco no estômago. Minhas pernas


tremeram e cederam; tropecei para trás, mal conseguindo me segurar em uma
cadeira antes de cair.

— Mas estivemos procurando. Estivemos procurando por todos os


desaparecidos. Esse é o objetivo do Esquadrão de Busca e Resgate.

O Esquadrão de Busca e Resgate? Toda essa gente fazia parte de uma equipe
de busca organizada?

— M-mas… por que uma equipe de busca e resgate sairia por aí sequestrando
as pessoas?

— Isso é por que alguns dos deslocados foram vendidos como escravos.

Segundo meu pai, era algo comum: Alguém era teletransportado para um lugar
totalmente desconhecido. Não faria ideia sequer de onde estava. E então alguém
se aproveitaria disso para enganar e escravizar os sem entendimento.

Paul e os outros membros do esquadrão compararam incontáveis registros com


suas listas de pessoas desaparecidas, foram ver todos os Fittoanos escravizados
que localizaram e então tentaram convencer seus proprietários a libertá-los. Mas,
pelo visto, muitas dessas pessoas se recusaram a desistir de sua “propriedade”. Sob
as leis escravocratas de Millis, não importava como alguém acabasse sendo
escravizado – uma vez que fosse um, não era nada mais do que uma propriedade
privada de seu dono. Portanto, Paul recorreu à libertação compulsiva de escravos.

Roubar um escravo era crime, claro, mas havia algumas brechas na lei. O
esquadrão se aproveitou de todas elas para libertar muitas pessoas.

Claro, estavam dispostos a respeitar os desejos de qualquer pessoa que


optasse por permanecer na situação atual. Mas praticamente todos os escravos que
encontraram imploraram, em prantos, para serem levados de volta para sua terra
natal. O garoto que tinham acabado de salvar era um desses casos. Não era de se
admirar que parecesse tão familiar. Era Somal, uma das crianças que costumava
implicar com Sylphie. No último ano, foi forçado a trabalhar como uma espécie de
garoto de programa.
Paul e seus companheiros ouviram os gritos amargos de incontáveis Fittoanos
escravizados, alguns que inclusive ainda não haviam conseguido resgatar. Fizeram
muitos inimigos entre a nobreza local e os membros do esquadrão começaram a se
afastar como resultado de seus métodos cada vez mais enérgicos. Paul estava
sendo pressionado de todos os cantos. Cada dia se demonstrava uma nova e
estressante provação. Mesmo assim, perseverou. A única coisa que importava era
encontrar e resgatar as vítimas da Calamidade, e tudo o que fez, fez por elas.

— Achei que você tivesse descoberto a situação há muito tempo, Rudy.


Presumi que já estava fazendo sua parte.

Tudo o que pude fazer neste momento foi inclinar minha cabeça. Ele não estava
sendo justo. Como eu poderia saber de tudo?

Mas, novamente… quando realmente pensei no assunto…

Era perfeitamente possível que pudesse ter encontrado Fittoanos deslocados


em algumas das cidades pelas quais passamos no Continente Demônio. Se tivesse
falado com eles, provavelmente teria conseguido uma noção de quão grande foi o
desastre. Não tinha me esforçado o suficiente para entender a situação. Priorizei
ajudar Ruijerd em vez de descobrir mais sobre a Calamidade.

Estraguei tudo. Simples assim.

— E agora descobri que você estava brincando de aventureiro…

Brincando, hein…?

É. Realmente não poderia argumentar contra isso.

O tempo todo em que estive roubando as calcinhas de Eris, olhando de soslaio


para as moças da Guilda dos Aventureiros, fantasiando com o Grande Imperador
Demônio e cobiçando uma garota com orelhas de gato, Paul esteve procurando
desesperadamente por nossa família desaparecida.

Não era de admirar que tenha ficado tão irritado comigo.

Ainda assim, eu não conseguia me desculpar. No final das contas, tentei o meu
melhor. Pensei nas coisas e tomei as decisões que pareciam mais razoáveis para
mim.

E agora o que deveria fazer?

Paul não disse mais nada. Norn também ficou em silêncio. Mas eu podia ver a
hostilidade em seus olhos, e isso me machucou profundamente. Parecia que tinham
arrancado um grande pedaço do meu coração.

Olhei ao redor do lugar e vi que os camaradas de Paul também estavam


olhando para mim com olhos de reprovação.
Mais memórias dolorosas vieram à tona. Lembrei-me do dia após um bando de
delinquentes me despir e me amarrar do lado de fora para que todos vissem.
Lembrei-me de como todos olharam para mim quando entrei na sala de aula naquela
manhã.

Minha mente ficou paralisada.

Em algum momento, voltei para o nosso quarto na pousada.

Desabei na cama. Não tinha certeza do que tinha acontecido comigo, ou por
quê. Não tinha certeza de nada. Meu cérebro não devia estar funcionando direito no
momento.

— Hã…?

Algo dentro das minhas roupas fez um barulho audível. Procurando por elas,
encontrei o papel para escrever que comprei naquela tarde. Esmaguei aquilo e
joguei fora.

— Hah… — Com um longo suspiro, voltei para a cama e abracei meus joelhos
contra o peito.

Não queria mais fazer absolutamente nada.

Nunca tinha sido tratado tão friamente por um pai antes, nem mesmo em minha
vida anterior. Mesmo com tudo que foi dito e feito, Mamãe e Papai sempre foram
muito gentis comigo.

Mas agora, Paul tinha me rejeitado por completo. Ele olhou para mim da mesma
forma que meu irmão da minha vida anterior no dia em que me expulsou de casa.

Onde errei?

Ao considerar tudo, achei que tinha feito um trabalho decente. Mesmo agora,
nenhuma das minhas principais decisões se destacou como uma falha crítica. A
única coisa que me veio à mente foi como, desde o começo, pedi para Ruijerd me
ajudar. Naquele momento segui o conselho do Deus Homem, embora desconfiasse
profundamente dele.

O fato de ter contado sobre minhas viagens da forma mais alegre possível
também não ajudou. Isso foi em parte porque tinha me empolgado, mas também
não queria deixar Paul preocupado… e também estava pensando no meu orgulho.
Queria convencê-lo de que poderia me cuidar muito bem.

Entretanto, Paul não estava com o humor adequado para ouvir uma incrível
história de aventuras. E os membros do seu time também não. Eu com certeza
escolhi as palavras erradas. Por um lado, nunca quis sugerir que Sylphie fosse mais
importante do que minha mãe. Mas Paul e Norn estavam lá… não era natural
presumir que Zenith também estaria bem?

Não. Isso não passa de uma desculpa. Naquele momento, Zenith nem tinha
passado pela minha cabeça.

E quanto a toda aquela coisa sobre ser um mulherengo? Foi Paul quem
começou com isso, e eu nunca toquei em Eris. Um canalha sem-vergonha como ele
não tinha o direito de me dar um sermão…

Ah. Espera. Agora isso fazia sentido. Talvez ele também não tivesse tocado
naquelas garotas. Sim… isso explicaria por que se irritou tanto comigo.

Certo. Agora eu tinha ligado todos os pontos.

Eu só teria que voltar no outro dia e conversar com Paul de novo. Só ficamos
um pouco exaltados, isso foi tudo. Eu já tinha lidado com esse tipo de coisa antes.
Assim que conversássemos, ele entenderia.

Sim. Da próxima vez daria tudo certo. Eu também estava preocupado com
nossa família, é claro. Se tivesse descoberto que estavam desaparecidos antes,
também teria procurado.

Foi realmente uma pena eu ter passado mais de um ano no Continente Demônio
sem reunir qualquer informação. Mas, no final das contas, continuei vivo. Ainda tinha
a chance de consertar as coisas. Tudo o que tínhamos que fazer era planejar uma
busca calma e completa. Encontrar algumas pessoas presas em um mundo tão
grande levaria um tempo, claro; e Paul entendeu isso, com certeza. Assim que o
acalmasse, poderíamos decidir nosso próximo movimento. Poderíamos nos
concentrar nos lugares que ninguém havia procurado. Eu também ajudaria, é óbvio.
Depois de deixar Eris em Asura, poderia simplesmente continuar viajando para o
norte ou ir para algum outro lugar.

Sim. Então tudo bem. Em primeiro lugar, vou… ver Paul de novo. E voltarei…
àquele bar e…

— Urp…!

De repente, dominado pela náusea, pulei da cama e corri para o banheiro. Em


pouco tempo, vomitei tudo que tinha no estômago.

A um nível racional, tinha resolvido tudo, mas ainda não me sentia melhor. Já
fazia muito tempo que não enfrentava esse tipo de hostilidade de um membro da
família, e doeu demais para poder suportar.

A tarde já estava começando quando Ruijerd retornou. Parecendo um pouco


mais feliz do que o normal, o homem pegou um pequeno envelope e começou a
mostrá-lo para mim. Mas quando olhei para ele de onde estava na cama, o Superd
parou e franziu a testa.

— Aconteceu alguma coisa, Rudeus?

— Encontrei meu pai. Ele está aqui na cidade.

A expressão de Ruijerd ficou ainda mais tensa.

— Ele te disse algo desagradável?

— Sim.

— Já faz algum tempo que vocês não se viam, correto?

— Bem, sim.

— Mas vocês brigaram?

— Sim.

— Conte-me os detalhes.

Descrevi todo o incidente do início ao fim da forma mais honesta que pude.
Assim que terminei, Ruijerd disse “entendo” e depois ficou em silêncio.

Foi o fim da nossa conversa. Depois de algum tempo, ele saiu do quarto em
silêncio.

Eris voltou à noite.

Claro, a julgar pelo tanto que estava animada, algo devia ter acontecido. Havia
folhas grudadas em suas roupas e manchas de poeira em seu rosto… mas ela
parecia feliz. Parecia que o trabalho de matar Goblins havia corrido bem. Ao menos
algo deu certo.

— Olá, Eris.

— Ei, Rudeus! Estou de volta! Você nem imagina o qu… Hein?

Quando eu sorri para ela, Eris arregalou os olhos diante do choque. Um instante
depois, atravessou o quarto correndo até mim.

— Quem foi?! — gritou freneticamente, me sacudindo pelos ombros. — Quem


fez isso com você?!

— Estou bem. Não é nada demais.

— Ah, vamos lá! Você não pode estar falando sério!


Ficamos nessa por um tempo, mas Eris se demonstrou realmente persistente.
Acabei cedendo e contando o que aconteceu com Paul. Com uma voz monótona e
sem emoção, contei toda a história pela segunda vez – o que eu disse, como ele
reagiu e como tudo terminou.

Eris respondeu com uma explosão de fúria.

— Não acredito nisso! Como ele poderia dizer essas coisas?! Você trabalhou
duro para nos trazer até aqui! E ele chama isso de brincar?! Que fracasso de pai!
Vou matar aquele idiota estúpido!

Com essa declaração um tanto alarmante, ela saiu furiosa do quarto enquanto
empunhava a espada. Não tive energia o bastante para a impedir.

Poucos minutos depois, Ruijerd carregou Eris de volta para o quarto pela nuca,
como um gatinho rebelde.

— Me solta, Ruijerd!

— Você não deve interferir em uma briga de família — disse o Superd,


depositando sua prisioneira no chão.

Eris na mesma hora se virou e olhou para ele.

— Existem algumas coisas que você nunca deve dizer ao seu filho! Mesmo se
estiverem brigando!

— Isso é verdade. Mas posso entender como o pai de Rudeus se sentiu.

— Ah, é? Bem, e como Rudeus se sente, então?! Você o conhece! Ele é a


pessoa mais despreocupada e confiante do planeta. Você pode dar um soco ou um
chute, e ele simplesmente dá de ombros! Mas olhe para ele agora… Está arrasado!

— Então talvez você deva o consolar. Tenho certeza que uma jovem como você
conseguiria fazer isso.

— O qu…?!

Quando Eris moveu a boca, sem palavras, Ruijerd se virou e saiu do quarto em
silêncio.

Deixada para trás comigo, ela começou a ficar inquieta, então começou a vagar
ao redor do quarto sem fazer nada em particular, mas parecia nervosa. E
frequentemente lançava olhares em minha direção. Às vezes parava, assumia sua
pose usual de braços na cintura e abria a boca para dizer algo, apenas para fechá-
la e retomar sua caminhada. A garota estava seriamente impaciente. Era como
assistir a um urso no zoológico ou coisa do tipo.

No final, se sentou ao meu lado, na minha cama, em silêncio. Não disse uma
palavra. E deixou um pouco de distância entre nós.
Qual será o tipo de expressão que tinha no rosto? Eu não estava olhando com
muita atenção. Não tinha energias para isso.

E passou mais um pouco de tempo em silêncio.

Eventualmente, percebi que não estava mais sentada ao meu lado. Assim que
comecei a me perguntar para onde tinha ido, me abraçou por trás.

— Está tudo bem. Estou aqui por você… — Enquanto falava essas palavras,
Eris abraçou minha cabeça com força. Eu estava envolto em suavidade, calor e o
leve cheiro de suor de seu corpo.

Depois do ano e meio que passamos juntos na estrada, aquele cheiro se tornou
muito familiar. E agora, era estranhamente reconfortante. A rejeição da minha
família me encheu de ansiedade e medo, mas agora esses sentimentos pareciam
derreter.

Talvez, neste momento, Eris também fosse “família”. Se ela tivesse existido na
minha vida anterior, eu poderia ter escapado da minha miséria muito, muito antes.
A julgar pelo quanto aquele abraço fez por mim, com certeza parecia possível.

— Obrigado, Eris.

— Sinto muito, Rudeus. Não sou muito boa nesse tipo de coisa…

Estendi a mão para apertar uma das mãos de Eris enquanto ela me abraçava.
Era a mão de uma espadachim – forte e calejada. Uma prova de seu trabalho duro.
Não era exatamente o que se esperaria de uma jovem senhora de uma casa nobre.

— Não se desculpe. Isso significou muito para mim.

— Certo…

Algo dentro de mim estava se recompondo. Senti que estava ficando um pouco
mais calmo.

Com um suspiro silencioso de alívio, me deixei cair de volta contra Eris.


Precisava me apoiar um pouco nela… pelo menos por enquanto.

Capítulo 04 – Reunidos
Ponto de Vista do Paul

Eu ainda não tinha saído do bar.

O sol estava prestes a se pôr, então o lugar estava começando a receber mais
clientes que não eram membros do meu time. Por outro lado, muitos dos meus já
haviam partido. Mas não era como se isso realmente me importasse. Estava
plantado em uma mesa sozinho, bebendo como um peixe.

Pelo visto, era óbvio que eu não estava de bom humor. Todos por perto estavam
mantendo distância.

— E aí! Estava te procurando, amigão.

Todos, exceto o recém-chegado, pelo visto.

Olhei para cima e me vi cara a cara com um macaco sorridente. Foi a primeira
vez que vi sua cara feia em um ano.

— Geese…? Onde diabos você esteve, hein?

— Aah, que hostil! Você parece ainda mais mal-humorado do que o normal,
meu amigo.

— E o que você esperava?

Estalando minha língua irritado, estendi a mão e toquei minha bochecha. O


lugar em que Rudeus havia me batido ainda estava latejando. Talvez devesse ter
engolido meu orgulho e deixado um de nossos curandeiros me tratar.

Aquele maldito moleque, praguejei. “O Continente Demônio pode ser cruel, mas
minha magia foi mais do que páreo para ele”, hein? Bem, bom pra você. Se isso não
foi nada mesmo, por que não deu um tempo para procurar pela sua mãe?

Ah, mas pelo menos pude ouvir suas ideias sobre as melhores maneiras de
cozinhar carne de Grande Tartaruga. “Se eu não tivesse tido a ideia de criar uma
panela usando a magia da Terra, teríamos ficado comendo pedaços carbonizados
e fedorentos daquela coisa por um ano inteiro!” Não havia mais nada que pudesse
ter feito com o tempo que passou caçando ingredientes para um guisado de
monstro?

Ugh. Que se dane.

E então, para completar, teve a coragem de me acusar de traição! Eu nem


pensei em tocar em uma mulher no último ano e meio, seu idiota presunçoso! Você
não fez nada para ajudar e acha que tem o direito de pegar no meu pé?
Ah, você não sabia, hein? Que ótima desculpa. Se realmente se incomodasse
em olhar o mundo ao seu redor, Zenith ou Lilia poderiam já estar conosco!

Sério. Mas que piada…

— Hee hee hee. Pelo visto, acho que vocês ainda não se encontraram. —
Sorrindo para si mesmo por algum motivo obscuro, Geese pediu uma ou outra coisa.
Provavelmente algum goró. O homem bebia mais ainda do que Talhand, e Talhand
era um anão. — Ei, Paul. Certifique-se de dar uma passada na Guilda dos
Aventureiros amanhã, viu?

— Por quê?

— Porque acho que vai encontrar alguém interessante.

Alguém interessante? Geese aparentemente achou que essa reunião iria


melhorar meu humor. Dado o momento de sua chegada, e quem eu “encontrei”…
não foi difícil adivinhar sobre quem estava falando.

— Você está falando do Rudy?

Fazendo beicinho, o macaco velho coçou a cabeça.

— Hã? Como você sabe?

— Já esbarrei com ele hoje.

— Mas você não parece lá muito feliz. Brigaram ou coisa do tipo?

Uma briga…? Bem, acho que sim. Mas aquilo mal poderia ser considerado uma.

Droga. Só de pensar naquilo, meu rosto voltou a doer…

— Paul, o que houve? Me conta. — Geese se levantou e puxou sua cadeira


para perto de mim. Com aquele rosto amigável, o homem sempre teve talento para
ouvir os problemas das pessoas. Esta não foi a primeira vez que enfiou o nariz nas
minhas coisas e me encorajou a reclamar.

— Tudo bem, olha só isso…

Fui em frente e contei a Geese o que aconteceu antes.

Fiquei feliz em ver Rudeus, é claro. Mas parecia que não estávamos encarando
a situação da mesma forma, então perguntei a ele o que andou fazendo nos últimos
tempos. Nesse ponto, ele começou a falar alegremente sobre sua jornada pelo
Continente Demônio.

Cada palavra que saía de sua boca era ostentação desnecessária, então
observei que poderia ter usado seu tempo de forma mais produtiva.
Então ficou chateado comigo. Ele fez uma piada sobre eu estar dormindo com todas
por aí. E foi então que perdi toda a minha paciência. E depois nós brigamos, e o
moleque chutou meu traseiro. Fim.

— Ahh… tá. Entendi…

Geese ouviu pacientemente a história toda, balançando a cabeça e fazendo


alguns breves comentários aqui e ali. Senti que o homem estava simpatizando
comigo. Mas então, depois que terminei as coisas, ele me olhou nos olhos e disse:

— Bem, parece que suas expectativas podem ter sido um pouco injustas, chefe.

— Hein? — respondi, soando como um completo idiota.

Injusto? Onde é que fui injusto? E com quem?

— Acha que eu esperei demais? Do Rudy?

— Digo, cara, pensa comigo — Geese continuou enquanto eu piscava confuso.


— Claro, o garoto é incrível. Nunca vi ninguém que pudesse lançar feitiços não
verbais como ele. E quando o vi trocando golpes após golpes com o Santo do Norte
Gallus, senti arrepios até na espinha. Rudeus é o tipo de prodígio que só se vê uma
vez por século.

Certo. Rudeus era um prodígio. Um gênio. Sempre poderia fazer qualquer coisa
que definisse como objetivo, mesmo quando criança. Por um tempo, tive a
impressão de que também tinha alguns defeitos relativamente sérios, mas… bem,
ao final de sua estadia em Roa, Philip estava disposto a casar sua própria filha com
ele. Philip! O mesmo cara que falava mal de mim pelas costas!

— Sim, isso mesmo. Ele é inacreditável. Quando tinha apenas cinco anos…

— Mas, no final das contas, ainda é só uma criança. — Surpreso com a firme
interrupção de Geese, fiquei em silêncio. — Rudeus ainda é um garoto de onze anos
— repetiu lentamente, apenas para deixar claro. — Nem mesmo você fugiu de casa
antes dos doze, certo?

— Sim…

— Qualquer um mais jovem do que isso ainda é só um pirralho melequento.


Não é isso que você sempre dizia?

— Sim, certo, claro. E daí se eu falava isso? — Vamos lá. Rudy já está mais
forte até do que eu.

Claro, eu estava um pouco bêbado naquela hora. Entretanto, mesmo levando


isso em conta, estava claro que o garoto havia melhorado drásticamente. Eu podia
até estar bêbado, mas também estava dando tudo de mim; me abaixei para usar a
“Postura de Quatro Pernas” do Estilo Deus do Norte e até mesmo fiz uso da “Espada
Silenciosa” do Estilo Deus da Espada. Mas minha espada só cortou a calcinha que
o moleque estava usando na cara. Rudy também não estava levando a luta a sério.
O fato de nenhum dos meus companheiros ter sofrido nada pior do que alguns
ferimentos leves era prova suficiente disso.

Era difícil dizer como cresceu como lutador desde a última vez que o vi. Mas,
mesmo aos sete anos, já era mais inteligente do que eu. Agora era mais
inteligente e mais forte do que eu. Então, onde estava a irracionalidade ao esperar
que pudesse fazer mais do que deveria? Sua idade não refletia em suas
capacidades.

— Paul, o que você estava fazendo quando tinha onze anos?

— Hm…?

Pelo que me lembro, passei a maior parte daquele ano em casa, treinando com
a espada e sendo mastigado pelo meu velho. Ele encontrava motivos para reclamar
de cada coisinha que eu fazia, e aproveitava todas as chances que tinha para me
dar alguns tapas.

— Acha que naquela época poderia ter sobrevivido sozinho no Continente


Demônio?

— Heh. Gesse, você está esquecendo de um pequeno detalhe. Rudy encontrou


um demônio guarda-costas, lembra? Esse cara fala a língua Humana, do Deus
Demônio e Deus Fera, e é forte o suficiente para derrotar um monstro de rank A
sozinho. Qualquer um poderia se virar com uma companhia dessas.

— Não — declarou Geese com confiança. — Você não teria feito isso. Sem
chance. Mesmo se você fosse lá agora, ainda não sobreviveria por conta própria.

Não posso dizer que ouvir isso melhorou meu humor. Geese continuar sorrindo
para mim do outro lado da mesa também não ajudava. O sorriso do homem era
seriamente irritante.

— Hah! Certo! E isso só não ressalta meu ponto? Rudy conseguiu algo que eu
não consigo. Meu filho é um prodígio! Ele já pode andar com os próprios pés! Não
tenho mais nada para ensinar. Foi errado esperar que o garoto colocasse esses
talentos em uso, hein?! Eu sou mesmo o errado aqui?!

— Sim, você é. Mas isso não é nenhuma novidade, né? — Ainda sorrindo,
Geese parou por um momento para beber a cerveja que acabara de receber. —
Ahhhh! Agora sim. Você não consegue beber esse tipo de coisa na Grande Floresta,
sabia?

— Geese!

— Tá bom, tá bom. Não precisa gritar. — Geese bateu com sua caneca de
madeira na mesa e me olhou nos olhos, sua expressão de repente ficou muito mais
séria. — Escuta, Paul. Você nunca pisou no Continente Demônio, não é?

— E daí?
Isso era verdade. Nunca tive o prazer de visitar o lugar. Sim, mas eu tinha
ouvido rumores, é claro. Todo mundo fazia parecer que o lugar era perigoso, onde
qualquer um encontraria monstros toda vez que saísse para dar um passeio e
precisava comê-los para sobreviver. Mas “muitos monstros” era algo com que até
eu poderia lidar, fala sério.

— Bem, é onde eu nasci e fui criado, lembra? E, na minha opinião, todo o


continente é uma merda.

— Sabe, parando pra pensar agora, você nunca falou muito sobre o lugar. O
que há de tão terrível lá?

— Em primeiro lugar, não existem estradas adequadas. Há alguma trilha entre


as cidades, é claro, mas você não encontrará nada parecido com aquelas estradas
seguras, suaves e sem monstros que existem em Millis e no Continente Central. Se
estiver viajando para qualquer lugar, é melhor estar preparado para ser atacado por
monstros de rank C a qualquer momento. Ou algo até pior.

Certo, eu sabia que o lugar tinha muitos monstros, mas rank C ou pior? No
Continente Central, as pessoas teriam que ir fundo em uma floresta para encontrar
algo tão perigoso. Muitos monstros desse rank viviam em grandes bandos ou tinham
alguma habilidade especial letal.

— Geese, acho que você está exagerando um pouquinho demais.

— Não. Cara, presta atenção, não estou te falando nada de complicado. É


assim que o Continente Demônio é. O lugar está infestado por monstros
desagradáveis.

Geese parecia perfeitamente sério, mas era assim que ele sempre parecia
quando estava mentindo. Dessa vez eu não iria cair nesse tipo de merda.

— Agora, digamos que alguém tenha jogado uma criança no meio de um lugar
como aquele. É um garoto realmente talentoso e, veja bem, não tem nenhuma
experiência de combate no mundo real.

— Certo…

Sem experiência real, hein? Parecia que estávamos mais uma vez falando
sobre Rudy. Pensando bem, eu nunca tinha ouvido falar dele entrando em nenhuma
batalha de verdade antes. Mas pelo visto o garoto conseguiu lutar contra alguns
supostos sequestradores em Roa, e Ghislaine achava que poderia ser derrotada se
existisse alguma distância entre os dois. Eu não conhecia um único espadachim
melhor do que aquela mulher. Se ela não podia se aproximar dele com segurança,
então provavelmente não havia nem mil pessoas no planeta capazes de o derrotar
em seu alcance ideal.

No geral, sua falta de experiência real não me parecia grande coisa. Alex R.
Kalman, o segundo Deus do Norte, não matou um Imperador da Espada na primeira
batalha em que lutou?
— Nesse momento, um adulto aparece e se oferece para ajudar a criança. Esse
cara é um demônio, e também é muito forte. Na verdade, ele é um Superd. Você já
ouviu falar deles, não ouviu?

— Claro. — Para ser franco, eu não tinha certeza se acreditava nessa parte da
história. Pelo que ouvi, havia apenas um punhado de Superds sobrando, mesmo no
Continente Demônio.

— Então, o garoto tem alguém que lhe oferece ajuda quando ele está em uma
situação desesperadora. E o cara está disposto a ajudá-lo a atravessar um lugar
totalmente desconhecido. E os Superds são assustadores, é claro! A criança não
tem ideia de como o sujeito pode reagir a uma recusa. Ela simplesmente teria que
aceitar a oferta, certo?

— Aham, provavelmente.

— Mas com o passar dos dias, o pequeno e inteligente Rudeus começa a se


perguntar: “Afinal de contas, por que esse cara está me ajudando?”

Claro. Isso soava como algo esperado de Rudeus. A pergunta poderia nunca
me ocorrer, mas o garoto sempre foi perspicaz com esse tipo de coisa. Eu sabia o
quão estranhamente perceptivo ele era desde aquele dia em que entrou em cena
para salvar Lilia da ira de Zenith.

— O problema é que ele não consegue descobrir. Não sabe o que o cara quer
de verdade.

Bem, e então? Ninguém nunca consegue saber o que um estranho está


realmente pensando. Essa é a razão pela qual caras como Geese conseguem
ganhar a vida.

— O Superd resolve ajudar por algum tempo, mas poderia facilmente


abandoná-los ou traí-los caso sentisse vontade… ou assim pensa Rudeus. E é por
isso que ele decide tentar agradar o cara.

— Esse plano não faz sentido, Geese. Um Superd ao menos tem um lado bom?

— Olha, não vem dar uma de espertalhão. Mas você entendeu o que quero
dizer, certo? Rudeus decide apelar para as emoções desse cara. Ele quer fazer com
que o homem acredite que todos são amigos.

Hmm. Isso explicaria por que Rudy passou tanto tempo ajudando o suposto
demônio. E, para ser sincero, até que fazia sentido. Ele não estava apenas
ganhando pontos extras com seu protetor, mas também tendo a chance de
desenvolver suas próprias habilidades como aventureiro, para o caso de precisar
contar com elas mais tarde. Tive que admitir, isso parecia racional. Provavelmente
era o caminho mais seguro que poderia ter escolhido.

Hmph… o menino tinha uma boa cabeça sobre os ombros, não tinha?
— Tch. Você pode pensar até que uma criança tão inteligente conseguiria
encontrar algum tempo para descobrir mais alguma coisa.

Geese ergueu uma das mãos e abriu os dedos.

— Ele está em uma terra desconhecida — disse, dobrando um para baixo. —


Está em sua primeira aventura. Não importa o quão inteligente seja, é tudo novidade.
Precisa aprender o básico rápido, antes que alguém se aproveite dele. Está tentando
manter um demônio que pode traí-lo a qualquer momento feliz. Ah, e tem uma
amiguinha atrás dele, uma que precisa proteger.

Quando terminou de falar, Geese tinha abaixado todos os dedos. Com um breve
encolher de ombros, passou para seu argumento final.

— Se o garoto também conseguisse vasculhar o continente em busca de outras


pessoas que foram teletransportadas, bem, isso o tornaria sobre-humano. Sério, eu
estaria pronto para dar a ele um lugar nos Sete Grandes Poderes.

Os Sete Grandes Poderes, hein? Isso despertou algumas memórias.


Antigamente, eu costumava sonhar em conquistar esse tipo de fama. Ainda assim,
senti que Rudy realmente tinha o talento bruto para algum dia entrar naquela lista.
E eu não acreditava que isso era apenas o meu orgulho paternal falando.

— O garoto poderia acabar trabalhando até a morte enquanto tentasse. Sei que
Rudeus é um prodígio, mas todo ser humano tem seus limites, cara. Ainda mais
quando são crianças.

— Certo, olha — interrompi. — Se foi tão difícil, então por que ele fez a coisa
toda parecer uma grande e divertida aventura? Parecia até um daqueles pirralhos
ricos e mimados que se metem no primeiro andar de um labirinto só para ter algo
de que podem se gabar. — Se a viagem tivesse sido tão difícil para Rudy, ele não
teria a descrito com tanta alegria. No lugar disso, teria me falado do quanto sofreu e
sobre as dificuldades que enfrentou. Mas o moleque não mencionou sequer um
obstáculo em seu caminho.

— Por quê? Porque não queria te preocupar, é óbvio.

— Hein? — Eu grunhi, de alguma forma parecendo ainda mais estúpido do que


antes. — Por que diabos ele iria ficar preocupado comigo? Por acaso sou um
fracasso como pai?

— Sim, com toda certeza do mundo.

— Tch. Certo, acho que você tem razão. Sou um homenzinho fraco que se
afoga na bebida por motivos idiotas. Suponho que nosso pequeno prodígio
sentiu muita pena ao me ver.

— Odeio ser quem te conta isso, Paul, mas não é preciso ser um prodígio para
ter pena de você agora — disse Geese, deixando um suspiro escapar. — Sei que
você não pode ver seu próprio rosto, então deixe-me dizer uma coisa. Cara, você
está péssimo.
— Ah, é? Péssimo o bastante para ganhar alguma simpatia até do meu próprio
filho?

— Aham. Se ele aparecesse aqui justo agora, não acho que acabariam
brigando. Rudeus provavelmente se sentiria muito mal se você dissesse qualquer
coisa.

Eu estendi a mão e toquei meu rosto. A barba por fazer que não tinha me
incomodado em barbear por vários dias raspou audivelmente contra meus dedos.

— Olha, Paul. Só vou repetir o que já falei aqui — disse Geese enquanto seu
tom de repente ficava firme. — Você esperava muito do seu filho.

Esperar muito foi realmente algo irracional da minha parte? Rudy sempre fez
tudo o que queria, desde quando era pequeno. Tudo o que sempre fiz foi criar
obstáculos em seu caminho com minhas tentativas desajeitadas de ser pai. Para
falar a verdade, ele nunca precisou de mim.

— Me conta uma coisa. Por que você não pode simplesmente ficar feliz por ele
ter chegado até aqui? Realmente importa que tipo de viagem o garoto fez? Digamos
que foi realmente um cruzeiro despreocupado, e que passou cada minuto do seu
tempo aos amassos com sua namorada. E daí? Agora ele está aqui, e está seguro.
Não é algo para se comemorar?

Claro que seria. No começo eu até fiquei feliz.

— Você preferia que seu filho voltasse com os olhos fundos e com um ou dois
membros faltando? Porra, existia a chance até de você só se “reunir” ao cadáver
dele. Ah, não, erro meu… Se ele tivesse morrido no Continente Demônio, não
haveria nem mesmo um corpo para você encontrar.

Rudy? Um cadáver? Eu o tinha visto saudável e cheio de vida, então agora era
impossível até mesmo imaginar esse tipo de coisa. Mas apenas alguns dias atrás…
eu não tinha imaginado exatamente esse cenário enquanto me afundava no
desespero?

— Deus, que pooobre criança! Depois daquela longa e difícil viagem, finalmente
encontrou seu querido pai novamente, mas o cara acabou virando um saco de bosta
bêbado! Se eu fosse ele, teria rompido os laços na hora.

Ah, bom. Agora ele já estava de teatrinho.

— Já entendi o recado, Geese. Você não está errado, tá bom? Mas há uma
coisa que ainda não entendo.

— Hm? E o que é?

— Por que Rudy não sabia sobre o que aconteceu com Buena Village? Tenho
certeza de que tinha uma mensagem esperando por ele em Porto Zant.
Geese abriu a boca como se quisesse explicar, depois fez uma careta e desistiu.
Eu reconheci essa expressão. Isso significava que ele estava escondendo algo.

— Uh, sei lá. Provavelmente só deu azar e não viu a mensagem.

— Espera… exatamente onde você se encontrou com Rudy? Eu estava


supondo que você o encontrou em Porto Zant.

Eu não sabia onde Geese passou o último ano, mas Rudeus tinha vindo para
Millis pelo norte. E Porto Zant era a única cidade naquela direção que era grande o
suficiente para o homem realmente se dar bem.

Definitivamente deixei uma mensagem para Rudy naquela cidade. E, além


disso, tínhamos membros de nossa equipe posicionados lá. Seu trabalho era coletar
informações de qualquer viajante que cruzasse do Continente do Demônio. Se o
garoto era um aventureiro, a Guilda seria uma parada obrigatória, certo?

— Na verdade, me encontrei com Rudeus no vilarejo do Clã Doldia. Bem, pra


ser sincero, foi um choque. Ele foi jogado nu em uma cela de prisão, acusado de
agredir a Fera Sagrada deles.

— Nu? Em uma prisão do povo-fera? Isso é sério…?

Ghislaine já tinha me falado dessas coisas. Para os membros da tribo Doldia,


ser despido, acorrentado em uma cela de prisão e encharcado com água gelada era
a maior de todas as humilhações. Quase nunca submetiam estranhos a tal
tratamento, mas, quando o faziam, geralmente acabava com a morte do prisioneiro.
Uma vez molhei Ghislaine, era só uma brincadeira, e ela me olhou como se eu
tivesse matado seus pais.

— Então, uh… o que aconteceu lá?

— O quê? Rudeus não te contou tudo?

— Tudo o que ouvi foi a parte em que ele viajou pelo Continente Demônio. —
Por que não me falou que não tinha visto a mensagem que deixei em Porto Zant?
Isso era realmente muito importante.

Ah, certo. Nem perguntei sobre essas coisas.

Droga. Por que eu tinha que ser tão pavio curto?

Precisava me acalmar e começar a pensar nas coisas com mais cuidado. Rudy
era um garoto inteligente, mas de alguma forma falhou em ver minha mensagem,
ou até mesmo ouvir sobre a situação. Se tivesse passado algum tempo em Porto
Zant, teria tropeçado nesse tipo de informação sem nem procurar.

Em outras palavras, deve ter se metido em algo no momento em que chegou lá


– algo que o fez ser levado pela tribo Doldia. Seja lá o que fosse, devia ser um
enorme incidente. Parte do nosso pessoal localizada no Porto Zant deveria voltar
em dois ou três dias para fazer seu relatório regular, mas talvez algo grande tivesse
acontecido no norte.

— Bem, eu mesmo não sei todos os detalhes — disse Geese. — Mas estava
andando com os Mildett na Grande Floresta quando soube de um boato de que os
Doldia tinham prendido uma criança humana.

— Hm? Espera aí. Aonde você estava? — Os Mildett? Não era uma tribo de
gente-fera? Não eram os únicos com orelhas de coelho?

— Em um vilarejo Mildett. Naquele em que o chefe mora, aquele lugar na


verdade é bem grande, mas…

A explicação de Geese foi dolorosamente prolixa e irritante. Sério, fiquei tentado


a interrompê-lo no meio do caminho. Mas eu havia perdido a chance de obter
informações importantes ao ficar impaciente com Rudy antes. E embora raramente
aprendesse com meus erros, não era estúpido o suficiente para estragar tudo do
mesmo jeito duas vezes, ainda mais no mesmo dia.

Eventualmente, o conto errante de Geese chegou ao fim. Tentei resumir o que


ele me disse.

— Então, basicamente, você estava passeando por todas as tribos da Grande


Floresta… e os convencendo a enviar quaisquer humanos perdidos que
encontrassem para Millishion?

— Isso aí. Heh heh. Fique à vontade para demonstrar gratidão!

— Tá, te devo essa… — Isso provavelmente explicava o constante fluxo de


refugiados aparecendo da área da Grande Floresta e que vinham me pedir ajuda.

— Bem, enfim! Quando ouvi sobre esse garoto humano, meio que tive uma
ideia, então saí correndo. Não quero me gabar nem nada, mas sou um homem com
muitas conexões, né? Acontece que conheço até um pessoal do vilarejo Doldia. Pedi
para um de seus guerreiros, um amigão meu, para me jogar na mesma cela que o
garoto.

— Calma aí. Por que você precisava ficar preso com ele?

— Se o pior acontecesse, só poderia ajudar em sua fuga se fizesse isso. É muito


mais fácil escapar de uma prisão de gente-fera do que invadir uma.

Eu estava familiarizado com o talento de Geese para escapar de prisões.


Sempre que ele era preso por executar algum tipo de esquema, voltava logo, como
se nada tivesse acontecido.

— De qualquer forma, eu estava assumindo que encontraria o garoto deitado


em posição fetal e chorando sem parar, sabe? Mas em vez disso… ha ha!

— O que aconteceu? Ele estava bem?


— Cara, ele tava de boa lá, todo peladão! E as primeiras palavras que saíram
de sua boca foram: “Bem-vindo ao destino final da vida!” Como deveria reagir a
isso?! — Geese teve que parar por um momento para rir de sua própria história.

— Cara, isso não parece ser motivo para risada…

— Mas foi hilário! Paul, na mesma hora eu saquei que ele era seu filho!

Eu não entendia o que havia de tão engraçado nisso. Ou como havia descoberto
tão rapidamente.

— Cara, ele é a sua cópia — Geese continuou. — Ridiculamente arrogante!


Adora mandar nos outros! Uma vez, ele estava tentando flertar com uma garota fera,
sabe? Ela olhou para ele e disse: “Posso sentir o cheiro da sua excitação”, mas
mesmo assim o garoto continuou cobiçando o corpo dela! O menino é seu filho, sem
dúvidas!

Neste ponto, o homem parou para outra crise de riso. Eu me mexi


desconfortavelmente na cadeira, lembrando de alguns episódios de minha
juventude.

— Mas ainda demorei um pouco para ter certeza absoluta — disse Geese,
fazendo uma pausa para esvaziar uma segunda caneca de cerveja. — Mas, sim, é
isso aí. Não dá para culpar o garoto por não ter visto sua mensagem. Pelo que
parece, ele não passou nenhum tempo em Porto Zant.

— Hm? Geese, calma aí. Vocês ficaram na mesma cela, não ficaram? Então…

Ele não poderia ter simplesmente explicado tudo?

— Enfim! — disse Geese, levantando-se de seu assento. — Tenho certeza de


que haverá um pouco de constrangimento familiar remanescente aqui, mas faça um
favor ao seu velho amigo Geese e vá se reconciliar com o garoto, certo?

— Ei, espera. Eu ainda quero…

— Ah, claro. Esqueci de mencionar, mas parece que Elinalise e companhia


foram para o Continente Demônio no seu lugar. As pessoas estavam dizendo que
alguma elfa andou ordenhando metade dos homens de Porto Zant, e ambos
sabemos o que isso significa.

— O quê? Sério? — Para ser sincero, eu achava que Elinalise era a que mais
me odiava.

— Heh heh. No final das contas, não te odeiam tanto quanto deixam
transparecer.

Com isso, Geese saiu do bar. Claro, ele não pagou pelo que bebeu. O sujeito
nunca fazia isso. Mas, desta vez, não me importei em pagar sua conta.
De qualquer forma, bebi mais do que o suficiente por um dia. Já estava na hora
de ir embora e esperar a noite passar.

Em breve teria que conversar com Rudy. Talvez no dia seguinte…

— Chega de bebida por esta noite, amigão — disse Geese, que colocou a
cabeça pela porta. — Amanhã você vai para a Pousada Luz D’Alvorada sóbrio,
entendeu?

— Tá, tá! Eu sei! — Com um suspiro irritado, coloquei minha caneca de cerveja
na mesa.

Agora que pensei nisso, parecia que tinha exagerado nos últimos dias. Por que
continuei me afogando nessa merda? Eu ainda tinha muitas outras coisas que
precisava fazer.

— Um… Capitão Paul? Terminou de falar com seu amigo?

Enquanto eu revirava as coisas na minha cabeça, uma mulher se aproximou da


minha mesa, toda hesitante. Havia uma expressão de desculpas em seu rosto.
Minha cabeça não estava boa o suficiente para reconhecê-la já de cara, mas depois
de estudar seu rosto por alguns segundos, percebi que era Vierra – um dos
membros do meu esquadrão.

— Heh. O que há com você, garota? Sentiu vontade de usar algo modesto pela
primeira vez?

— Bem, sim… — Com um aceno ambíguo, Vierra sentou-se no assento que


Geese havia acabado de desocupar. Por alguma razão, nesta noite não estava
usando seu costumeiro traje provocante. Ela havia trocado para uma roupa
perfeitamente normal que a fazia parecer mais com uma garota comum da cidade.
— Eu estava preocupada sobre o que aconteceu com seu filho antes poder ter sido
minha culpa, senhor.

— O quê? O que te faz pensar uma coisa dessas?

— Er, bem, parecia que… a maneira como me visto pode ter feito com que ele
entendesse mal a natureza do nosso relacionamento…

— Isso não faz sentido. O rebeldezinho deu uma olhada no tamanho do seu
peito e tirou suas próprias conclusões.

Havia uma razão para Vierra se vestir daquele jeito. A mulher tinha sido uma
aventureira comum em Fittoa, mas o Incidente de Deslocamento a deixou presa no
Continente Millis, sem nenhum equipamento para usar. Ela foi rapidamente
capturada por uma gangue de bandidos que a trataram como seu brinquedo. Era o
tipo de pesadelo que deixaria a maioria das pessoas destruídas por dentro, mas ela
conseguiu superar tudo com pura força de vontade.

No entanto, também tínhamos acolhido uma garota que não se recuperou tão
rapidamente: Sua irmã, Shierra. Mesmo agora, Shierra tremia incontrolavelmente
em cada vez que um homem olhava para ela. E tivemos vários casos semelhantes
em nosso esquadrão.

Para proteger todas de atenção indesejada, Vierra começou a usar uma


armadura deliberadamente reduzida para atrair os olhares de todos os homens. Ela
também era o membro de nosso esquadrão mais adepto para confortar e cuidar de
mulheres que foram submetidas a esse tipo de trauma. Como um homem sem forma
de compreender aquele tipo específico de dor, eu a considerava uma parte
indispensável da equipe.

Não tínhamos qualquer relacionamento sexual, é claro. Essa era uma ideia
ridícula.

— Não foi culpa sua. Entendeu?

— Sim, senhor…

Ainda parecendo um pouco abatida, Vierra se levantou e voltou para a mesa


onde as outras garotas estavam sentadas. Olhando ao redor do cômodo com um
pouco mais de cuidado do que antes, percebi que mais do que algumas pessoas
estavam me olhando com óbvia preocupação em seus olhos.

— Ah, fala sério… Não me olhem assim, seus idiotas! Eu vou fazer as pazes
com ele amanhã, tá bom?!

Empurrei minha cadeira para trás, me levantei e saí do bar.

Quando voltei para o meu quarto na pousada, encontrei Norn já dormindo.

Me servi de um copo d’água da jarra que estava em nossa mesa e bebi tudo de
uma só vez. O líquido morno desceu até meu estômago embrulhado.

Consegui sentir a sobriedade voltando ao meu corpo. Sempre tive uma alta
tolerância ao álcool; ficava meio duro quando bebia bastante, mas os efeitos nunca
pareciam durar muito tempo. Quando a névoa em minha cabeça começou a se
dissipar aos poucos, olhei para minha filha, que estava enrolada com seu cobertor
na cama, e acariciei suavemente a sua cabeça.

Me senti mal por Norn. Realmente mal. Com um pai como eu, ela tinha muito
para reclamar, mas sempre guardava tudo para si e fazia o possível para sorrir. Se
eu a perdesse, não teria forças para continuar vivendo.

— Mm… Papai…

Norn se mexeu um pouco na cama. Não parecia que eu tinha a acordado;


provavelmente estava apenas falando enquanto dormia.

Norn não era como Rudy. Ela era uma criança normal. Eu tinha que mantê-la
segura.
De repente, um pensamento estranho me ocorreu: se Rudy também fosse uma
criança “comum”, não estaria dormindo neste quarto com Norn? Ele teria ficado em
casa conosco, em vez de sair para ser um tutor. E, no momento do desastre, poderia
estar puxando minha manga, perguntando se também poderia abraçar Norn.

Se Rudy fosse comum – um garoto normal de onze anos – eu não o olharia da


mesma forma que olhava para Norn? Como alguém que precisava proteger?

Com isso senti minhas pernas tremendo. Finalmente entendi por que Geese me
disse que “Ele ainda é uma criança.”

Que diferença fazia se Rudy fosse comum ou não? Isso importava mesmo? E
se o gênio fosse Norn? Eu teria falado com ela daquele jeito? Se Norn tivesse
voltado para mim depois de partir em uma aventura, sem saber de nada do que tinha
acontecido… eu teria dito que esperava mais dela?

Depois que comecei a pensar nisso, não consegui dormir. Não queria nem
deitar na cama. Saí de nossa pousada, encontrei um balde de alumínio cheio de
água do lado de fora e joguei ele todo na minha cabeça.

E então, lembrando-me da expressão no rosto de Rudy quando ele saiu do bar,


inclinei-me e vomitei.

Refresque sua memória, Paul. Quem foi que machucou a criança daquele
tanto?

Olhando para o balde de alumínio, vi o rosto de um completo idiota. Quem quer


que fosse esse idiota, era obviamente o último homem no mundo que tinha qualquer
direito de se chamar de pai.

— Ah, merda. Isso pode ser complicado…

Se eu estivesse no lugar de meu filho, cortaria as relações sem pensar duas


vezes.

Ponto de vista do Rudeus

Na manhã seguinte, quando me sentei para tomar o café da manhã, meu humor
estava relativamente melhor.

Tínhamos acabado de caminhar até o bar ao lado da pousada. A comida em


Millishion era definitivamente saborosa. Nossas refeições estavam ficando cada vez
melhores conforme viajávamos pelo continente e pela Grande Floresta. Nesta
manhã, comemos pão fresco, uma espécie de sopa clara de sabor leve, uma salada
simples de vegetais e fatias grossas de bacon. Nada mal.
Embora eu não tivesse comido na noite anterior, o jantar parecia ser
acompanhado por algum tipo de sobremesa. Era um tipo específico de gelatina doce
que era muito popular entre os jovens aventureiros, tendo conquistado até mesmo
uma menção em uma balada popular recente sobre as aventuras de uma jovem
maga.

Bem, isso era até legal. Era sempre bom ter alguma comida decente na barriga.
Ficar com fome deixa qualquer um irritado. E ficar irritado arruina o apetite. E um
apetite arruinado só deixa você com ainda mais fome. Era um ciclo vicioso. Seria o
suficiente para deixar até um andróide carrancudo.

— Entre…

Enquanto eu refletia sobre esses assuntos e tomava um gole de uma bebida


parecida com café após a refeição, o barman voltou sua atenção para a entrada.
Um homem cansado e de cara pálida estava parado na porta. Quando vi seu rosto,
estremeci por puro reflexo.

Ele olhou ao redor por um momento, então me viu.

Naquele momento, todas as emoções que experimentei no dia anterior voltaram


à tona. Mesmo que não tenha dito uma palavra para mim, me encontrei desviando
o olhar para o chão.

Só pela minha reação, as duas pessoas com quem eu estava sentado


pareceram perceber quem devia ser o homem na entrada. Ruijerd franziu a testa;
Eris chutou a cadeira para trás e se levantou.

— Quem você pensa que é?

O homem começou a caminhar em nossa direção, mas Eris havia se plantado


bem no meio do seu caminho. Com os braços cruzados, os pés bem separados e o
queixo levantado, olhou para o homem severamente – apesar do fato de que ele era
duas cabeças mais alto do que ela.

— Sou Paul Greyrat… o pai dele.

— Eu sei disso!

Enquanto eu olhava para as costas de Eris, Paul falou sobre sua cabeça com
uma voz ironicamente jocosa.

— O que há, Rudy? Agora está se escondendo atrás de garotinhas?


Que playboyzinho.

Algo nessas palavras – ou talvez seu tom – me aliviou um pouco. Isso me


lembrou da maneira como ele costumava me provocar no passado. Eram boas
lembranças.
Decidi que Paul estava tentando preencher a distância que se formou entre nós.
Afinal, ele tinha saído de seu caminho para me encontrar logo cedo. Eu estava calmo
o suficiente para pelo menos tentar conversar.

— Rudeus não está se escondendo atrás de mim! Eu é que estou escondendo


ele! De um pai fracassado! — Fechando as mãos em punhos, Eris estremeceu de
fúria. Parecia que estava prestes a dar um soco no queixo de Paul.

Lancei um olhar para Ruijerd. Pelo visto, sentindo o que eu queria, ele agarrou
Eris pelo pescoço e a levantou do chão.

— Ei! Me solta, Ruijerd!

— Devíamos deixar os dois sozinhos.

— Você viu Rudeus ontem à noite, não viu?! Esse homem não tem o direito de
se chamar de pai!

— Não seja tão dura com ele. A maioria dos pais está longe de ser perfeito.

Ruijerd se dirigiu para a saída, carregando uma Eris relutante. Mas, ao passar
por Paul, ele parou por um momento.

— Você tem todo o direito de dizer o que quer. Mas a única razão pela
qual pode fazer isso, é por que seu filho ainda está vivo.

— Uh… sim…

As palavras de Ruijerd carregavam um peso real. Ele parecia se considerar o


pai mais fracassado do mundo. Talvez sentisse algum tipo de simpatia por um
colega desastrado.

— Você realmente não deveria mandar nas pessoas com um movimento de


queixo, Rudy.

— Você entendeu tudo errado, Pai — protestei. — Na verdade só foi um contato


visual. Nem precisei mover o queixo.

— Não tenho certeza se isso realmente faz diferença — disse Paul, sentando-
se à minha frente. — Então, era aquele o cara demônio de quem você estava me
falando ontem…?

— Sim. Aquele é Ruijerd da tribo Superd.

— O Superd, hein? Parece um cara bastante amigável. Acho que os rumores


devem ser um pouco exagerados.

— Não ficou com medo dele nem nada do tipo?

— Não seja idiota. Ele é o homem que salvou meu filho.


No dia anterior, Paul não parecia pensar assim, mas… provavelmente não seria
muito útil apontar esse ponto.

Então…

— Enfim. Posso perguntar por que você está aqui?

Minha voz saiu mais áspera do que eu pretendia, e Paul se encolheu na cadeira.

— Uh… bem, eu queria dizer que sinto muito.

— Pelo quê?

— Por tudo o que aconteceu ontem.

— Não precisa se desculpar. — Era bom que ele estivesse disposto a fazer
isso, mas depois de uma boa noite de sono no peito de Eris, eu estava pronto para
confessar os erros que cometi. — Para ser honesto, até agora na verdade fiquei só
brincando.

No começo as coisas foram um pouco complicadas, é claro. Mas, na maior parte


do tempo, nossa jornada transcorreu sem problemas e tive muito tempo para me
entregar a várias perversões. O fato de nunca ter conseguido reunir informações
sobre a Região de Fittoa foi, sem dúvida, um fracasso da minha parte. Nunca tive a
chance de bisbilhotar em Porto Zant, mas passamos um bom tempo em Porto Vento.
Poderia ter encontrado algum tipo de corretor de informações por lá e descoberto
mais sobre a Calamidade.

Não procurei pelas coisas que deveria. Foi algo desleixado e descuidado da
minha parte.

— É compreensível que tenha sentido raiva de mim, Pai. Eu também sinto


muito… Não consigo imaginar como as coisas devem ter sido agitadas para você.

Toda a Região de Fittoa foi “deslocada” e nossa família acabou espalhada ao


vento. Quando pensei em como Paul deve ter se sentido nos dias e semanas que
se seguiram, não consegui o culpar por sua atitude severa. Fiquei viajando em uma
bolha de ignorância, felizmente ignorante quanto à tragédia em curso ao meu redor.

— Não fale algo assim, Rudy. Sei que você também deve ter passado por
momentos difíceis.

— Não, isso não é verdade. Para ser sincero foi moleza. — Afinal, Ruijerd
estava comigo. Depois de nosso começo conturbado em Rikarisu, as coisas
correram relativamente bem. Nosso guarda-costas garantiu que os monstros nunca
nos emboscassem. Ele caçou nosso jantar sem ser solicitado, e até interferiu
quando Eris e eu brigamos. Para mim, pelo menos, a jornada foi virtualmente
relaxante. A palavra “moleza” parecia adequada.

— Ah, é mesmo? Então foi moleza, hein…? — Eu não sabia o que Paul estava
pensando no momento, é claro. Mas, por alguma razão, sua voz tremia um pouco.
— Aliás, sinto muito por não ter visto sua mensagem. Sobre o que era?

— Eu só disse que estava bem e pedi que você fizesse uma busca na parte
norte do Continente Central.

— Entendi. Bem, posso ir lá dar uma olhada assim que deixar Eris na Região
de Fittoa.

Por que eu estava falando como um robô? Tudo o que disse parecia
estranhamente tenso. Parecia até que estava ansioso. E porque estaria? Perdoei
Paul e ele me perdoou. As coisas definitivamente não seriam as mesmas de antes,
mas esta era uma situação de emergência, certo? E todo mundo fica tenso em uma
emergência. Claro. Fazia sentido.

— Deixando isso de lado por enquanto, poderia entrar em mais detalhes sobre
a situação atual na Região de Fittoa?

— Sim, com certeza. — A voz de Paul era tão robótica quanto a minha e tremia
um pouco cada vez que ele falava. Será que também estava nervoso?

Não, não. Primeiro devia tentar descobrir o que estava por trás do meu próprio
comportamento. Realmente havia algo estranho nisso… Eu não conseguia agir da
maneira de costume.

Como é que falava com Paul antes daquilo acontecer? Costumávamos ser bem
casuais um com o outro, não é?

— Vejamos. Por onde devo começar…?

Com a voz ainda tensa, Paul me deu um resumo completo do que tinha
acontecido em Fittoa enquanto eu estava fora. Todos os edifícios da região
desapareceram e todos os residentes foram teletransportados para algum canto
aleatório do planeta. Muitas mortes já haviam sido confirmadas e muitas outras
pessoas ainda continuavam desaparecidas.

Paul descreveu como recrutou voluntários para o Esquadrão de Busca e


Resgate e os transformou em uma organização funcional. Escolheu basear suas
operações em Millishion, já que era o lar da sede da Guilda dos Aventureiros e um
bom ponto central para reunir informações.

O esquadrão tinha outra base de operações na capital do Reino Asura, e o ex-


mordomo Alphonse comandava as coisas por lá. Alphonse também era o líder geral
da organização e estava ativamente fornecendo ajuda aos refugiados que haviam
voltado para a Região de Fittoa.

Paul também explicou que havia deixado mensagens para mim em cidades de
todo o mundo. Esperava que pudéssemos nos separar e procurar os membros
desaparecidos de nossa família em lugares variados.
Como o mais velho e independente de seus filhos, provavelmente seria minha
responsabilidade ajudar. Eu ainda era uma criança, sim, mas tinha a mente de um
adulto. Se tivesse visto a mensagem, teria me incitado a agir.

Zenith, Lilia e Aisha estavam todas desaparecidas. E era perfeitamente possível


que eu tivesse passado por uma delas em algum lugar no Continente Demônio. Isso
era apenas um fato, e foi o suficiente para me fazer lamentar tudo que fiz por lá.
Estive com tanta pressa que raramente ficávamos em uma única cidade por mais
do que alguns dias.

— Então está tudo certo com Norn?

— Aham, tivemos sorte. Ela estava me tocando quando tudo aconteceu.

De acordo com Paul, era assim que a magia de teletransporte normalmente


funcionava: Se estivesse em contato físico com alguém quando ela o atingisse,
seriam enviados para o mesmo destino.

— Ela está bem?

— Aham. No começo ela pareceu um pouco desconfortável por ter ido parar em
um lugar desconhecido, mas agora é basicamente a mascote do esquadrão.

— Sério? É bom ouvir isso.

Ao menos Norn estava segura e feliz. Esta era definitivamente a única colher
de chá ao se analisar toda a bagunça que foi feita. Era algo a se comemorar, com
certeza.

Mas, por alguma razão, eu ainda estava me sentindo meio triste.

Nossa conversa foi interrompida. Isso parecia estranhamente… esquisito. Paul


e eu não éramos assim antes, não é? O que aconteceu com a maneira como
costumávamos fazer piadas e brincar um com o outro? Mas que peculiar.

Depois de um tempo, Paul disse uma coisa ou outra, mas não consegui
responder direito.

Minhas respostas foram ficando cada vez mais breves e apáticas.

Em algum momento, todos os outros clientes tinham ido embora do bar. Em


pouco tempo, provavelmente seríamos convidados a sair para que pudessem se
preparar para a correria do almoço.

Acho que até Paul percebeu isso. Então passou para o tópico principal, e
também final.

— Rudy, o que você planeja fazer a partir de agora?

— Em primeiro lugar, vou levar Eris de volta à Região de Fittoa.


— Não sobrou quase nada de Fittoa, sabe?

— Eu sei. Mas ainda assim, vou fazer isso.

Mesmo que Philip, Sauros e Ghislaine ainda estivessem desaparecidos e não


encontrássemos nenhum rosto familiar esperando por nós, tínhamos que ir. Afinal,
voltar para lá sempre foi nosso objetivo. Seguiríamos nosso objetivo inicial. E assim
que chegássemos a Fittoa, poderíamos testemunhar seu estado com nossos
próprios olhos.

Depois disso, eu poderia partir para buscar na parte norte do Continente


Central… ou talvez até mesmo pediria a Ruijerd para me ajudar a voltar ao
Continente Demônio. Inferno, poderia até mesmo tentar ir para o Continente
Begaritt. Bem, eu meio que sabia a língua de lá.

— Depois disso, vou começar a procurar nas outras partes do mundo.

— Tudo bem…

Com isso, a conversa esfriou de novo. Eu não fazia ideia do que dizer.

— Aqui. — Nesse momento, o garçom abruptamente colocou dois copos de


madeira na nossa frente. Nuvenzinhas de vapor subiam suavemente do líquido
dentro deles. — Isso é por conta da casa.

— Ah. Obrigado. — Agora que pensei nisso, minha garganta estava


dolorosamente seca.

Assim que percebi isso, também notei algumas outras coisas. Eu estava
apertando minhas mãos com força; minhas palmas estavam úmidas de suor. Minhas
costas e axilas também pareciam estranhamente frias. E a franja do meu cabelo
estava colada na minha testa.

— Ei, garoto. Não vou fingir que sei o que está acontecendo aqui, mas…

— Hm…?

— Ao menos olhe para a cara dele.

Foi só quando ouvi essas palavras que me dei conta. O tempo todo evitei de
encarar o olhar de Paul. Depois de desviar meus olhos quando ele entrou, não voltei
a olhar para seu rosto. Nem uma vez.

Engolindo em seco, olhei para meu pai. Seu rosto estava cheio de incerteza e
angústia. Parecia um homem prestes a desabar em lágrimas.

— Por que você está fazendo essa cara?

— Que cara? — disse Paul, sorrindo amarelo.


Com sua expressão apática e bochechas fundas, parecia uma pessoa
completamente diferente do homem que eu conhecia. Mas, por alguma razão, senti
como se já tivesse visto um rosto muito semelhante em algum lugar. Onde foi? Tinha
a sensação de que fazia muito tempo…

E me lembrei…

Tinha visto algo parecido no espelho do banheiro, na minha antiga casa.

Tinha acontecido um ou dois anos depois de eu me tornar totalmente recluso.


Naquela altura, ainda achava que tinha tempo para mudar as coisas. Mas também
estava ciente de que havia uma distância cada vez maior entre mim e todos que
conhecia – uma que talvez nunca fosse capaz de superar.

Ainda assim, eu estava simplesmente com muito medo de voltar a sair. E assim,
sentimentos de ansiedade e frustração constantemente cresceram dentro de mim.
Talvez tenha sido o período mais emocionalmente volátil da minha vida.

Entendo. Então era isso…

Paul, sem sucesso, procurou desesperadamente por sua família. Apesar de


todos os seus esforços, não tinha encontrado um único rastro de notícia por muito
tempo. Ficava constantemente preocupado. E, finalmente, começou a se
perguntar: E se estiverem feridos? E se estiverem doentes? E se já estiverem
mortos? Quanto mais pensava nisso, mais preocupado ficava.

E então, finalmente, eu apareci… com um sorriso alegre no rosto. Foi tão


diferente do que Paul havia imaginado que ele acabou ficando irritado.

Uma vez passei por algo semelhante. Não muito depois de começar minha vida
como um perdedor, alguém que eu conhecia desde o ensino fundamental foi me
visitar e começou a me contar sobre o que estava acontecendo na escola. Eu estava
profundamente deprimido e com muita dor, mas ele falava sobre sua vida como se
não existisse nenhuma preocupação com o mundo. Aquilo fez meu estômago doer.
Acabei explodindo e lançando insultos ásperos contra aquela pessoa.

No dia seguinte, disse a mim mesmo que me desculparia na próxima vez que o
cara aparecesse. Mas ele nunca mais voltou. E eu também não estendi a mão para
ele. Deixei algum tipo de orgulho teimoso me segurar.

Agora me lembrava. Era exatamente a mesma cara que vi no espelho.

— Pai, tenho uma proposta.

— O quê…?

— Nessas circunstâncias, acho que precisamos tentar agir como adultos.

— Uh, sim, acho que não agi de forma muito madura ontem… Mas não tenho
certeza de onde você quer chegar.
O gelo dentro do meu coração estava derretendo rapidamente. Finalmente
entendi como Paul estava se sentindo. Depois de resolver uma parte do quebra-
cabeça, o resto, na verdade, seria bem simples.

Voltei a pensar no passado – no dia em que Paul me criticou por brigar, e


respondi com minhas próprias palavras ásperas. Na época, não fiquei nem um
pouco impressionado com suas habilidades de pai. Mas ele tinha apenas vinte e
quatro anos, era muito jovem para ser pai, então decidi não fazer um
julgamento muito severo.

E já tinham se passado seis anos. Paul agora já tinha entrado na casa dos trinta.
Ele ainda era um pouco mais jovem do que eu na minha vida anterior e já havia
realizado mais do que eu. Quando briguei com meu amigo, nem tentei consertar as
coisas. Acabei encontrando maneiras de me convencer de que era tudo culpa dele.
Em comparação, Paul estava se esforçando muito mais.

Eu não era mais a mesma pessoa daquela época. Jurei para mim mesmo que
iria mudar, não jurei? Acabei esquecendo disso, mas não podia me permitir repetir
os mesmos erros estúpidos de novo e de novo.

Esta era uma briga muito maior do que a última, sim. Mas eu estava me
comportando exatamente da mesma maneira que naquele dia, de seis anos atrás.
Estávamos ambos cometendo os mesmos erros estúpidos, de novo. Achei que tinha
percorrido um longo caminho desde então, mas, em vez disso, parecia que só tinha
andado em círculos. Precisava reconhecer isso.

E o mais importante: Tive que dar um verdadeiro passo adiante.

— Vamos fingir que o dia de ontem nunca aconteceu.

A proposta parecia bastante simples. Fiquei profundamente magoado com o


que Paul me disse naquele bar. A dor era quase insuportável. Meu amigo, que
passou em minha casa, preocupado comigo, deve ter sentido algo semelhante
quando o afastei. E foi daquele jeito que as coisas terminaram. Nunca mais nos
vimos.

Desta vez as coisas não seriam iguais. Eu não deixaria meu vínculo com Paul
ser quebrado.

— Ontem nós dois não brigamos. Agora, neste momento, estamos nos vendo
novamente pela primeira vez em anos. Entendido?

— Do que você está falando, Rudy?

— Não pense demais nisso, por favor. Apenas abra bem os braços. E anda
logo!

— Uh… tá bom… — Paul abriu os braços, parecendo um pouco indeciso.

E eu prontamente me joguei neles.


— Pai! Senti sua falta!

Seu corpo exalava um cheiro sobressalente de bebida. Ele parecia estar sóbrio,
mas eu não ficaria surpreso se ainda estivesse de ressaca. Afinal de contas, quando
foi que começou a beber tanto? Nos velhos tempos, eu achava que ele nem bebia.

— R-Rudy? — Paul parecia não saber como reagir.

Descansando meu queixo em seu ombro, murmurei um conselho bem baixinho.

— Vamos lá. Você acabou de se reunir com seu filho. Não há nada que queira
dizer?

Isso era meio ridículo, claro. Mas, mesmo assim, abracei o corpo sólido de Paul
com todas as minhas forças. Não foi apenas seu rosto que ficou mais magro. Seu
manequim parecia estar um ou dois tamanhos menor do que antes. Claro, eu cresci
nos últimos anos, então isso provavelmente tinha algo a ver com isso; mas era óbvio
que meu pai havia passado por alguns momentos muito difíceis.

Após um momento de hesitação, Paul conseguiu murmurar:

— Eu… eu também senti sua falta.

E uma vez que ele disse aquelas primeiras palavras, foi como se as comportas
se abrissem.

— Também senti sua falta, Rudy… Senti tanto a sua falta! Eu procurei e
procurei, mas não consegui encontrar ninguém… Comecei a pensar que vocês
poderiam estar todos mortos… Comecei… imaginando você…

Quando olhei para Paul novamente, várias lágrimas escorriam por seu rosto.
Não era uma imagem lá muito bonita. O homem estava soluçando feito um bebê.

— Desculpa… Eu sinto muito, Rudy…

Bem, ótimo. Agora ele também está tornando as coisas mais fáceis.

Afaguei a sua nuca algumas vezes. Por um tempo, nós dois apenas choramos
juntos.

E então, pela primeira vez em cinco anos, finalmente me reuni com meu pai.
Capítulo 05 - Objetivos
Confirmados

Depois de tudo, Paul e eu passamos muito tempo apenas conversando. Não


discutimos nada particularmente importante, na maior parte do tempo nos limitando
apenas a tópicos mais triviais.

Em primeiro lugar, ele me contou como as coisas estiveram em Buena Village


durante os anos que passei na Cidadela de Roa.

Paul atualmente tinha duas esposas, mas isso aparentemente não se traduzia
em “diversão” em dobro. Zenith e Lilia tiveram algumas discussões em segredo e
chegaram a um acordo. Como regra geral, esperava-se que ele mantivesse as mãos
longe de Lilia. A única exceção seria se Zenith engravidasse pela terceira vez, mas,
nesse caso, Paul seria obrigado a obter sua aprovação com antecedência.

Zenith ainda estava um pouco em conflito quanto a essa situação, mas pelo
visto meio que concordou com isso. Com certeza era algo conveniente para meu
pai. Para ser honesto, fiquei até com um pouco de inveja.

— Então, acha que vou ter uma terceira irmã chegando?

— Nah. Por algum motivo, não estamos mais conseguindo… Então sei lá.
Fizemos você na primeira tentativa.

— Então no primeiro tiro você acertou em cheio e conseguiu um filho perfeito?


Que homem de sorte que você é, hein Pai.

— Você realmente se acha o engraçadão, não é?

Não parecia o tipo de conversa que um menino de onze anos deveria ter com o
pai, mas mesmo assim estávamos aproveitando.

Uma das coisas que não discutimos foi a possibilidade de Zenith e Lilia estarem
vivas. Era como um elefante na sala, mas nós dois sabíamos que mencionar isso
só serviria para estragar o nosso humor.

— E como Sylphie estava sem a minha companhia?

— Ah, sim. Rudy, aquela garota é incrível. Acho que você tem algum talento
como professor.
Pelo que parecia, Sylphie estava se saindo bem. Ela passava as manhãs
correndo e praticando técnicas mágicas básicas e, à tarde, normalmente trabalhava
em seus feitiços de cura com Zenith.

A propósito, após alguns anos, a pequena Aisha também começou a receber


lições de Lilia, embora a maioria delas incluísse coisas como etiqueta, em vez de
feitiços.

— Enfim, aquela criança é definitivamente… uh, acho que séria é a palavra


certa. Ela sempre vinha à nossa casa para fazer uma coisa ou outra no seu quarto.

— Sabe se Sylphie encontrou alguma coisa por lá…?

— O quê? Havia algo escondido por lá que você não queria que ela visse?

— Não, não! Claro que não. Pai, não seja ridículo.

Ha ha. Mas que absurdo.

— Bem, agora, de qualquer forma, acho que não sobrou mais nada.

Pelo que Paul me contou, todos os objetos da Região de Fittoa desapareceram


com o desastre. Isso incluía tudo, desde pequenas coisas como canetas de pena e
frascos de tinta até grandes estruturas como edifícios e pontes. As únicas exceções
eram os itens que as pessoas carregavam consigo no momento em que foram
teletransportadas.

— Ah. Entendo…

Mas que pena. Não conseguia lembrar o motivo do por que era uma pena, mas
ainda assim senti um gostinho de melancolia.

— E aí, o que andou fazendo nos últimos tempos, Rudy?

— Ah, lá em Roa?

Obedientemente, comecei a contar um resumo rápido do meu tempo como


tutor.

A história começou com meu primeiro dia de trabalho, quando Eris me deu um
soco e eu quase desisti na mesma hora, então passei para o nosso “infeliz”
sequestro. Expliquei que Eris se animou comigo um pouco depois que nos tirei
daquela situação difícil, mas ainda se recusava a levar minhas aulas a sério.

Em seguida, descrevi como fui pedir ajuda a Ghislaine e como ela convenceu a
mocinha a prestar atenção nas aulas. E depois disso, falei sobre como meu
relacionamento com Eris havia melhorado pouco a pouco, sobre nossas aulas de
dança e os eventos do meu décimo aniversário.

— Ah, é mesmo. Seu aniversário. Sinto muito por isso, garoto…


— Por que está pedindo desculpas?

— Bem, eu não pude dar as caras por lá, lembra?

Para o povo do Reino Asura, o décimo aniversário de uma criança era um


evento de importância monumental. Eu ainda não entendia exatamente o porquê,
mas parecia ser considerado algum tipo de marco de sorte. A família deveria dar
uma grande festa e encher a criança de presentes.

— Está tudo bem. A família de Eris me deu uma festa maravilhosa.

— Ah, é mesmo? E o que te deram?

— Um cajado mágico muito bom, embora o nome seja um pouco constrangedor.


Chama-se Aqua Heartia – Arrogante Rei Dragão da Água.

— O que há de errado com esse nome? Achei bem legal.

Ele estava falando sério? Só por falar isso em voz alta eu ficava com vontade
de enfiar a cabeça em algum buraco. Talvez, neste mundo, fosse normal dar nomes
exagerados aos itens mais poderosos.

— Ah, Rudy, não te deram nenhum outro presente? Ouvi Alphonse comentando
algumas coisas.

— Outro presente? — Hmm. Então o que seria isso? Sabedoria, coragem e


poder ilimitado? Eu sentia que ainda estava um pouco carente em todas essas
coisas…

— Vamos lá, estou falando sobre a filha do Philip. Hoje foi a primeira vez que a
vi, mas ela é uma criança bonita. E também é bem devota! Aquilo foi totalmente
comovente, a maneira como ela te protegeu…

Entretanto, eu na verdade não ganhei Eris de ninguém.

Digo, Philip disse que eu tinha permissão para tentar o que quisesse, mas ainda
assim não fiz muita coisa. Eu me preocupava com Eris e não queria apressar as
coisas. Na noite anterior mesmo, ela esteve lá para mim quando mais precisei de
sua companhia. Nunca tive ninguém me abraçando e acariciando minha cabeça até
que eu adormecesse. Não planejava trair sua confiança. Ela me prometeu que
poderíamos dar o próximo passo quando eu fizesse quinze anos. Mas, mesmo
assim, caso Eris não estivesse pronta, eu iria me conter.

Claro, eu tinha um impulso sexual ligeiramente forte, e isso poderia ficar ainda
pior dentro dos próximos quatro anos. Havia uma chance de que não fosse capaz
de me controlar… mas, no momento, planejava ao menos tentar.

— Eris é importante para mim, sim. Mas prefiro não falar sobre ela como se
fosse algum objeto que ganhei dos seus pais.
— Bem, acho que você vai se casar com a família deles, então é mais como se
eles estivessem te ganhando.

— O qu…?! — Quem vai se casar com o quê?

— Você vai se juntar à nobreza com o apoio de Philip, não é?

— Do que está falando? Quando foi que alguém disse isso?

— Hã? Acho que foi mais ou menos um ano antes do desastre. Philip me enviou
uma carta dizendo que você e Eris estavam realmente se dando bem, então ele
queria que você se casasse com a família dele. Se me perguntar, a nobreza Asurana
não passa de um bando de canalhas podres, mas eu disse que você poderia fazer
o que quisesse…

Interessante. Philip já havia falado com Paul sobre isso antes mesmo de nossa
conversa no meu décimo aniversário. Mesmo se eu tivesse rejeitado a ideia, ele
provavelmente estava planejando passar os próximos anos tentando nos juntar.
Aquela não foi uma proposta espontânea.

Em qualquer caso, isso explicava por que Paul tirou algumas conclusões
precipitadas quanto a mim e Eris. Dois jovens apaixonados, perdidos em uma terra
desconhecida, sozinhos e profundamente ansiosos? Qualquer um poderia supor
que “se conheceriam melhor” ao longo de sua jornada.

— Pela sua expressão, acho que Philip armou para você.

— Parece que sim.

Nós dois soltamos suspiros ao mesmo tempo. Philip era um homem engenhoso,
mas provavelmente tinha que ser assim para sobreviver no mundo implacável e
cruel da alta nobreza Asurana.

— De qualquer forma, parece que você anda bem amigável com a mocinha.
Isso significa que Sylphie… — Paul hesitou no meio da frase. — Uh, foi mal.
Esqueça que eu disse qualquer coisa.

Até onde nós dois sabíamos, Sylphie ainda estava desaparecida. Ainda assim,
me peguei considerando a pergunta que Paul começou a fazer.

Eu me preocupava com Sylphie, mas o que sentia por ela não era exatamente
o mesmo que sentia por Eris. Ela era mais como uma irmãzinha, ou talvez até
mesmo uma filha. Fiquei chateado quando a vi sendo atormentada, e queria ajudá-
la a crescer forte e feliz, mas nos separamos antes que esses sentimentos
pudessem se transformar em algo mais.

Não era tão diferente do meu relacionamento com Eris, mas nos últimos dias
ela andou me apoiando tanto quanto eu estava a ajudando. Se alguém me
perguntasse em qual delas eu estava mais interessado agora, a resposta teria que
ser Eris.
Mas, claro, não era como se eu tivesse feito uma comparação completa
colocando as duas lado a lado. Na verdade, tudo se resumia à quantidade de tempo
que passávamos juntos. Eris já tinha se tornado parte da minha vida há anos. As
pessoas adoram escrever histórias sobre rapazes se reunindo com suas amigas de
infância, mas é mais fácil se apaixonar por alguém quando passa muito tempo
fazendo companhia um ao outro. Até então, estive com Eris pelo dobro do tempo
que estive com Sylphie. E, para não dizer muito, nosso tempo juntos foi bem agitado.

Claro, isso não significava que não estava preocupado com minha amiga
desaparecida.

— Espero que Sylphie esteja bem…

— Bem, a garota não está exatamente no seu nível, mas tem se esforçado
muito. Digo, ela consegue usar magia de cura não verbal, sabia? Isso é o suficiente
para ganhar a vida em qualquer lugar em que esteja. Os curandeiros são realmente
valiosos, pelo menos fora do Continente Millis.

— Ah. Certo… — Hein? Espera. Ele acabou de falar o que eu acho que
falou? — Espera. Sylphie consegue lançar feitiços de cura não verbais?

— Hm? Aham. No começo Zenith ficou chocada. Mas você também pode fazer
isso, não é?

— Não, magia de cura não. — Eu não entendia os princípios subjacentes


daqueles feitiços, então nunca consegui lançá-los sem entoar. Não importa quantas
vezes os usasse, não conseguia descobrir os mecanismos pelos quais curavam o
corpo.

— Sério mesmo?

— Aham. Só posso lançar feitiços de cura se usar os encantamentos.

— Bem, não vou fingir que sei muito sobre magia, mas dizem que todo mundo
é naturalmente melhor com alguns tipos do que com outros, certo? Acho que Sylphie
tem um talento especial para a cura.

Talvez Sylphie tenha ficado muito mais forte do que eu desde que nos
separamos. Fiquei até com um pouco de medo de reencontrá-la. E se ela desse
uma olhada na minha magia e dissesse: “Você não melhorou nada, hein Rudy”…?

Paul e eu continuamos conversando por algum tempo. Quando chegamos ao


final do papo, aquele abismo que tinha se formado entre nós já tinha sumido.

Quando a noite estava chegando, duas camaradas de Paul apareceram para


buscá-lo.

Para ser mais específico, era a moça da armadura de biquíni e sua amiga maga.
A primeira, desta vez, estava usando roupas comuns e sem graça, por seja lá qual
fosse o motivo. Foi uma troca dramática quando levando em conta o seu outro traje.
Ela foi uma das causas da nossa briga, no entanto… Será que estava tentando
mostrar um pouco de consideração?

— Pai.

— Sim?

— Confio em você, sério. Mas depois de tudo que aconteceu ontem, só quero
uma confirmação formal… Você não está tendo nenhum caso, está?

— Inferno, não.

Foi bom ouvir isso. No dia anterior, nós dois tínhamos tomado decisões
precipitadas. Em vez de buscar por provas concretas, apenas acusamos um ao
outro de ser idiotas loucos por sexo… Opa. Não, não. Eu já tinha dito que aqueles
acontecimentos foram apagados da história.

Em qualquer caso, parecia que Paul atualmente não tinha tempo ou energia
sobrando para ser um mulherengo. Ele estava focado em encontrar sua família e
não estava disposto a arriscar qualquer separação. Eu teria que aprender com seu
exemplo e dar um tempo para as minhas próprias travessuras pervertidas.

— Rudy. Você vai levar Eris até a Região de Fittoa, não é? —Antes de partir,
meu pai aparentemente queria confirmar se eu estava decidido.

— Sim — respondi com um aceno firme. — Mas você quer que eu também me
junte ao esquadrão de Busca e Resgate?

— Não, isso não é necessário. De qualquer forma, temos a obrigação de levar


qualquer membro da família Boreas que encontrarmos de volta para Asura.

— Isso soa como uma missão muito importante. Tudo bem em deixar isso
comigo?

— Não consigo pensar em ninguém mais adequado para o trabalho. E parece


que você também já conquistou a confiança dela.

Evidentemente, Paul tinha muita fé em mim. Talvez fé até demais, sério. Senti
que ele estava mais uma vez tendendo a superestimar minhas capacidades.
Entretanto, isso não importava. Independentemente do que ele esperasse de mim,
desta vez eu tentaria corresponder às suas expectativas.

— Claro — disse Paul com um sorriso malicioso —, mas também posso


encarregar isso a alguns guarda-costas, caso você queira ficar aqui em Millishion.

Ah, por favor.

Se fôssemos encarar isso racionalmente, me separar de Eris até que era uma
opção válida. Mas não era como se eu quisesse ficar em Millishion neste momento
– poderia simplesmente sair e procurar por minha família em outras partes do
mundo. Um retorno ao Continente Demônio, por exemplo, parecia ser algo bem
razoável.

Mas isso só era verdade ao se encarar com a mais pura racionalidade. Eu não
poderia simplesmente abandonar Eris para sair cuidando das coisas para meu
próprio benefício. Precisava levá-la para casa em segurança.

Além disso, a ideia de deixar meu trabalho pela metade para poder trabalhar
em outra coisa despertou algumas velhas e desagradáveis memórias. Na minha
vida anterior, nunca terminei nada do que comecei. Não queria retomar esse hábito
destrutivo. Me conhecendo, isso provavelmente acabaria com Eris falhando em
chegar a Fittoa em segurança, e minha busca solitária pelo Continente Demônio
poderia acabar resultando em um incrível nada.

Então seria melhor se concentrar em uma coisa de cada vez. Afinal, também
precisava levar a questão de Ruijerd em consideração. Era difícil imaginar nosso
amigo teimoso se dando bem com alguns membros aleatórios do Esquadrão de
Busca e Resgate, e ele provavelmente ficaria furioso se eu tentasse sair de nosso
grupo neste momento. Em seu livro de regras, isso com certeza estaria classificado
como uma conduta inadequada para um guerreiro.

— Fico feliz por você oferecer isso, mas acho que é melhor eu acompanhá-la.

— Sim, e, de qualquer forma, não é como se tivéssemos alguém mais forte do


que você no esquadrão. Não fico surpreso por não querer entregar o trabalho. —
Tive a impressão de que Paul quase fez uma careta ao dizer essas palavras.

Será que ele ficou um pouco constrangido por eu ter ganho em nossa briga?
Naquela hora, Paul estava evidentemente bêbado, então senti que não contava…
mas se eu falasse isso, provavelmente pareceria muito mais humilhante do que
qualquer outra coisa. Às vezes, ficar de boca fechada é a melhor opção.

— De qualquer forma, por quanto tempo você vai ficar em Millishion?

— Bem, estamos planejando ganhar algum dinheiro aqui para seguir com a
próxima etapa de nossa jornada, então provavelmente cerca de um mês.

— Podemos cobrir suas despesas de viagem — disse Paul. Voltando-se para


as duas jovens atrás dele, e falou com a maga cheia de sardinhas e de aparência
tranquila. — Temos algumas reservas, não temos?

— Sim. O Sr. Alphonse nos confiou fundos que podem ser usados no caso de
localizarmos algum membro da família Boreas.

Claro, o ex-mordomo da família havia entregue a Paul uma generosa quantia


em dinheiro, destinada a garantir uma viagem de retorno confortável para qualquer
membro da família de Eris que fosse encontrado.

— Certo. Então pode ficar com isso.

— Entendo… Bem, fico feliz que você não tenha gasto tudo com bebida.
— Por que acha que deixei Shierra cuidando do dinheiro? — Por algum motivo,
Paul parecia realmente orgulhoso de si mesmo. Foi meio triste, mas resolvi não falar
nada.

— E isso é exatamente quanto dinheiro? — perguntei.

— É o equivalente a vinte dólares do rei — respondeu Shierra na mesma hora.

Os dólares do rei eram a moeda mais valiosa no Continente Millis. Usando a


conversão de um iene para uma moeda de pedra, seriam o equivalente a cerca de
50.000 ienes. Portanto, vinte deles seriam…

— Um milhão de ienes!

— Um milhão do quê…? — disse Paul, erguendo uma sobrancelha.

Tá, talvez eu tenha exagerado um pouco na minha reação. Mas alguém poderia
me culpar por isso? Durante o último ano e meio, fiquei obcecado com cada moeda
que gastamos, e agora jogaram um milhão no meu colo assim, do nada.

— Isso é sério?! Com esse dinheiro dá pra passar a vida inteira fazendo o que
quiser!

— Bem, acho que isso seria o bastante para construir uma casa no sul. Mas
não seria o bastante para uma vida inteira.

O quê? Mas, cara, um milhão! Um milhão de ienes! Isso seria tipo… o quê, mil
moedas de minério verde?! Com isso, poderíamos pagar pela passagem de navio
até para um Superd!

Ah, é mesmo.

— Hm. Na verdade, ainda há outro problema com o qual teremos que lidar.

— Sério? E qual é?

— Lá em Porto Vento pediram uma quantia absurda de dinheiro para deixar um


Superd embarcar para Millis. Não tenho certeza de como são as coisas em Porto
Oeste, mas presumo que também vão exigir uma tarifa enorme. Não sei se vinte
moedas do rei serão o suficiente…

— Ah, é mesmo… — Paul cruzou os braços, pensativo. Ele não iria exigir que
deixássemos Ruijerd para trás ou coisa do tipo, né?

— Shierra, quanto cobram para levar um Superd para o Continente Central?

Com um breve aceno de cabeça, Shierra prontamente respondeu:

— Cem moedas do rei.


Ela tinha memorizado o preço de todas as taxas ou o quê? Essa garota parecia
estar realmente por dentro das coisas. Parando para pensar, parecia ser algo como
uma “secretária extremamente capaz”…

Quando olhei na direção de Shierra, nossos olhos se encontraram por um


momento. Ela soltou um gritinho e olhou para o chão na mesma hora. A moça que
já não estava mais de biquíni casualmente deu um passo à frente para escondê-la
da minha vista. Não pude deixar de me sentir magoado.

— Sinto muito, mas ela fica um pouco desconfortável com contato visual.
Poderia tentar não olhar muito?

— Uhm, tá bom…

Eu tinha normalizado meu relacionamento com Paul, mas os outros membros


de seu time aparentemente ainda não gostavam muito de mim. Bem, eu poderia
conviver com isso.

Mas, mais importante… cem moedas do rei, hein? Estávamos falando do


equivalente a cinco milhões de ienes. Não era um montante que poderia ser juntado
com pressa. Era o suficiente para fazer qualquer um deixar um suspiro escapar.

— Afinal, por que sempre cobram tanto dos Superds?

— É principalmente porque as regras foram estabelecidas há algum tempo,


quando a perseguição àquela tribo estava no auge — respondeu Shierra, de algum
lugar atrás da moça da armadura de biquíni.

Pelo tom de sua voz, qualquer um pensaria que isso era de conhecimento geral,
mas mesmo as pessoas que trabalhavam no posto de controle em Porto Vento se
provaram incapazes de explicar essas coisas. O peito da garota era bastante
pequeno, mas, pelo visto, ela tinha um cérebro enorme.

— Além disso, o nobre que administra a alfândega de Porto Oeste é conhecido


por seu ódio aos demônios — acrescentou Paul. — Mesmo se você tiver o dinheiro,
ele pode encontrar algum motivo para negar sua passagem.

— Fala sério. Uhm… será que não podemos pedir para a família da Mãe dar
um jeitinho nisso?

— Desculpe, mas, do jeito que as coisas estão, já estão se arriscando bastante


por nós. Não podemos arrastá-los em direção a mais problemas.

Em outras palavras, provavelmente precisaríamos recorrer mais uma vez aos


contrabandistas. Da última vez isso não deu muito certo, então eu queria encontrar
algum outro jeito. Por um lado, ainda estávamos no mesmo continente que o grupo
que atacamos. Se os criminosos locais tivessem conexões com alguns sindicatos
maiores, poderíamos já estar em algum tipo de lista negra.

Quanto mais eu pensava no problema, mais minha cabeça doía.


— Então tá bom. A gente se vira.

— Desculpe, garoto — disse Paul, e então sorriu e se virou para as mulheres


que esperavam atrás dele. — Ei, e aí, o que acharam do meu garotão? Bem
autossuficiente, não é?

— Uhm, claro.

— Err…

As duas se entreolharam, ambas com sorrisos amarelos. Não sei o que ele
esperava que elas dissessem. Será que ao menos se lembrava daquela “briga de
bar” do dia anterior?

— Pai, você realmente não deveria ter o hábito de pedir às garotas para
avaliarem o seu “garotão”. Isso pode acabar com a reputação da família Greyrat.

— Suas piadas sujas não estão ajudando, garoto!

Paul e eu caímos na gargalhada. As duas mulheres não pareciam estar se


divertindo tanto, mas ninguém consegue agradar todo mundo.

— Então tá, Rudy. Já está na hora de eu ir.

— Tá bem.

Finalmente se levantando de sua cadeira, Paul girou os ombros com um estalar


audível. Eu nem tinha notado, mas pelo visto ficamos conversando por um bom
tempo.

Quando olhei para o balcão, o barman tinha um sorriso um tanto irônico na cara.
Tínhamos ocupado uma de suas mesas durante a hora do almoço, não foi? Eu teria
que dar uma boa gorjeta com o pagamento.

— Depois de definir seus planos, entre em contato comigo. Deveríamos jantar


com Norn ao menos uma vez antes de você pegar a estrada.

— Isso me parece bom.

Com isso, Paul saiu do bar com as duas jovens no seu rastro.

Às vezes ele realmente parecia um velhote sujo, não parecia?

Não muito depois de Paul sair, Eris e Ruijerd voltaram para o bar. A garota
estava com um olho roxo e o Superd tinha uma expressão nitidamente infeliz no
rosto.
— Ei, vocês dois, o que houve?

— Nada — disse Eris, cruzando os braços enquanto bufava irritada. — Como


foram as coisas com aquele homem?

— Nós nos reconciliamos.

Assim que essas palavras saíram da minha boca, Eris franziu as sobrancelhas
com força.

— O quê?! Por quê?! — perguntou enquanto batia o punho na mesa com tanta
força que o objeto chega rachou.

Pela deusa, mas que garota mais forte…

— Entendo — disse Ruijerd calmamente. — Fico feliz por ouvir isso.

— Rudeus! — Eris me agarrou pelos ombros com bastante força. E foi com
força mesmo. O aperto da garota era de outro mundo. — Por que você fez isso?!

— Como assim, por quê? — perguntei, um tanto quanto surpreso.

— Você não lembra mais do tanto que ficou deprimido ontem?!

— Bem, é claro. E sou grato pelo que você fez por mim. Seu abraço realmente
me acalmou.

Foi só por causa do apoio de Eris que consegui voltar a olhar no rosto de Paul.
Se ela não estivesse lá para me confortar, eu poderia ter ficado trancado no meu
quarto por dias.

— E é disso que estou falando! Aquele homem não apareceu nem no seu
décimo aniversário, Rudeus. E a maneira como te tratou ontem foi inacreditável!
Você teve que fazer todo o caminho do Continente Demônio até aqui! Foi jogado até
em uma cela de prisão na Grande Floresta, pelo amor de deus! Mas quando você
finalmente conseguiu voltar, ele basicamente disse para você sumir! Como você
pode simplesmente perdoar aquele idiota?!

Uau. Mas que sermão.

Entendi o ponto de Eris. Quando se colocava desse jeito, Paul realmente


parecia ser um pai péssimo. Eu podia até acreditar que ele desprezava os meus
esforços. Se eu fosse uma criança comum, suas ações teriam sido imperdoáveis.

Mas do jeito que eu via as coisas, era inevitável que ele cometesse alguns erros
tentando lidar com um filho como eu. Reencarnei com minhas memórias intactas e
tirei proveito disso desde o início. Como alguém poderia ser um pai “normal” para
uma criança tão estranha? Paul teve dificuldade para aprender como interagir
comigo, então imagine para me criar. E, para ser honesto, em primeiro lugar, não
acho que o homem realmente sabia o que significava ser um bom pai… não que eu
também soubesse, é claro.

Como filho dele, tudo que precisava fazer era observar suas tentativas
estranhas de ser um pai caloroso, compreensivo e um pouquinho condescendente.
Paul poderia fazer tantas besteiras quanto quisesse. Eu iria encarar seus erros com
calma. Nenhum deles me machucaria tanto quanto aquela briga de bar.

Mas, é claro, de qualquer forma, logo começaríamos a seguir caminhos


diferentes.

— Eris.

— Hã? O quê…?

Eu não tinha certeza do que dizer. Eris estava com raiva porque ela se
importava comigo. Mas, para mim, já tinha ficado tudo no passado.

— Meu pai é um ser humano. E todo mundo comete erros, sabia?

Com isso dito, coloquei minha mão em seu rosto e comecei a trabalhar para
curar seu hematoma. Eris aceitou minhas atenções com mansidão, mas o olhar em
seu rosto me disse que não estava convencida. Assim que terminei meu feitiço,
voltamos para nosso quarto na pousada, com ela sempre mal-humorada.

Enquanto a observávamos andando, falei com a outra pessoa do nosso grupo.

— Então, Ruijerd…

— O que foi?

— De onde saiu aquele hematoma no rosto dela? — Aquilo com certeza não
existia no dia anterior.

— Tive alguns problemas para segurá-la — respondeu Ruijerd com um tom de


voz contido.

Hmm. Normalmente, ele era o tipo de cara que explodiria de raiva se visse
alguém bater em uma criança, mas seus princípios talvez fossem mais flexíveis do
que eu pensava. Eris devia ter se debatido como uma lunática enquanto estava
furiosa. E, claro, os dois treinavam constantemente, então esta não foi a primeira
vez que ele a deixou com um ou dois hematomas…

Olhando seu rosto mais de perto, porém, percebi que isso não era realmente
relevante. Ruijerd não parecia tão calmo assim. O Superd não era um homem
expressivo, mas eu podia ver algo parecido com angústia em seus olhos.

Ele não queria bater nela. Mas parece que não teve escolha.
Eu não sabia exatamente o que tinha acontecido, ou que palavras trocaram.
Mas havia uma coisa que com certeza poderia dizer: foi por minha culpa que os dois
brigaram. Mas, como resultado, fui capaz de fazer as pazes com Paul… o que
significa que devia estar, acima de tudo, grato.

— Obrigado, Ruijerd. Seria complicado fazer as pazes com meu pai se ela
matasse ele.

— Não precisa me agradecer.

Ainda assim, aquilo chegou ao ponto de Ruijerd precisar bater em Eris para a
impedir. Com o passar do tempo essa garota devia ficar cada vez mais forte.

Um pouco depois, realizamos uma reunião de equipe bem rápida.

— Então tá bom. Pessoal, vamos começar nossa segunda reunião oficial em


Millishion!

Desta vez, estávamos conduzindo nossos negócios no bar, e não em nosso


quarto. Pensando bem, durante o dia todo, eu não tinha pisado fora do
estabelecimento. Era um lugar aconchegante e nunca ficava lotado… embora eu
tivesse certeza de que o proprietário tinha alguns sentimentos confusos quanto a
isso.

— Já não tivemos uma dessas há apenas dois dias? — disse Eris.

Ela não parecia mais estar com raiva. Eu esperava que ficasse de mau humor
por pelo menos algumas horas, mas a garota acabou superando depois de apenas
cerca de dez minutos. Eris com certeza sabia como seguir em frente. Eu precisava
aprender com o seu exemplo.

— Sim, mas a situação agora é outra. Para ser específico, não há mais
necessidade de ganharmos dinheiro aqui em Millishion. Acho que logo logo
seguiremos em frente.

Com vinte moedas do rei na carteira, não adiantava muito tentar ganhar mais
dinheiro. E quanto à coleta de informações, Paul já havia me contado basicamente
tudo o que sabia. Com nossa campanha de relações públicas para os Superds em
modo de espera, não tínhamos muito mais para fazer nesta cidade – conforme
resolvi explicar.

Fiquei hesitante em contar a Eris sobre o estado atual da Região de Fittoa. Mas,
no final das contas, aproveitei a chance para ir em frente e fazer isso. Provavelmente
seria melhor se ela soubesse o que nos esperava, assim poderia já começar a se
preparar.

— Eris, parece que nossa casa não existe mais.

— Aham.

— Além disso… Philip e Sauros ainda estão desaparecidos.


— Não fico surpresa.

— E ninguém sabe onde Ghislaine está, então é possível que…

— Escuta, Rudeus — disse Eris, cruzando os braços e erguendo o queixo. —


Eu sempre imaginei que isso seria o mínimo.

Seu olhar estava firme. Sua expressão era tão intensa e arrogante quanto
sempre. Não havia nenhum indício de dúvida ou incerteza em seus olhos.

Eris não tinha se esquecido de Fittoa. Ela estava pronta para enfrentar o pior.

Bufando, continuou:

— Aposto que Ghislaine ainda está por aí em algum lugar, mas eu sabia que
havia uma boa chance de meu Pai e meu Avô estarem mortos.

Afinal, nós dois fomos parar no meio do Continente Demônio. Acho que ela
percebeu que muitos outros podiam ter sido pegos em situações igualmente
perigosas. Claro, também havia a hipótese de que a garota estivesse apenas
tentando parecer corajosa. Com Eris, era difícil dizer a diferença entre confiança real
e arrogância.

— Ah, aliás, eu sabia que você estava tentando esconder essas coisas de mim.

Eu não sabia exatamente o que ela pensou que eu estava “escondendo”.


Entretanto, isso não parecia ser apenas atuação. Eris, ao seu modo,
já estava pensando nas coisas. Em outras palavras, eu era o único que tinha se
esquecido totalmente da Região de Fittoa.

Isso foi meio constrangedor.

— Entendi. Bem, então tá bom.

Ela realmente era uma jovem impressionante. Tendo chegado a essa


conclusão, decidi passar para o nosso próximo tópico.

— Em qualquer caso, eu estava pensando que poderíamos partir de Millishion


dentro de uma semana a partir de agora.

— Tem certeza? — perguntou Ruijerd.

— Por que não teria?

— Assim que partirmos, talvez você nunca mais veja seu pai.

— Bem, isso é um pouco pessimista… — Vindo de Ruijerd, essas palavras


tiveram um peso real. Mas não era como se eu estivesse indo para a linha de frente
de alguma guerra. — A questão é que também tenho alguns outros membros da
família que talvez nunca mais veja. Agora, acho que vou me preocupar em encontrá-
los.

— Entendi. Isso é verdade.

Visto que Ruijerd parecia ter sido convencido, passei para a essência da
questão.

— Para o resto de nossa jornada, gostaria de priorizar a coleta de informações.

Ainda passaríamos cerca de uma semana em todas as grandes cidades por


onde passássemos. Mas, em vez de nos concentrarmos em ganhar dinheiro,
usaríamos esse tempo principalmente para descobrir os boatos e fofocas locais.

Em primeiro lugar, estaríamos procurando encontrar os Fittoanos deslocados.


A rota de Millis a Asura era algo como a Rota da Seda; não havia nenhuma outra
estrada tão transitada, principalmente por mercadores e comerciantes. O Esquadrão
de Busca e Resgate sem dúvida vasculhou cada centímetro dela. Ainda assim, havia
uma chance de encontrarmos algo que tinham deixado passar.

Também faríamos o que pudéssemos para melhorar a reputação do Superd


enquanto investigávamos. Mas, infelizmente, o nome Fim da Linha não era tão
conhecido em Millis e no Continente Central. Talvez tivéssemos que reconsiderar
nosso método de abordagem.

— Entretanto, há um problema. Não tenho certeza de como podemos


atravessar o mar.

Esse era, com certeza, o nosso maior problema. Neste mundo, mesmo as
viagens marítimas “rotineiras” eram um negócio sério. Havia muitas maneiras de
cruzar as fronteiras nacionais por terra, mas quando se tratava de barcos, as opções
eram severamente limitadas… especialmente se fosse para um Superd.

— Quanto a isso, Rudeus… Dá uma olhada nisso.

Ruijerd puxou um envelope. Era o mesmo que ele estava prestes a me mostrar
no dia anterior, antes de perceber minha condição.

Peguei e examinei. As palavras “Para o Duque Bakshiel” estavam rabiscadas


na parte da frente. No verso, encontrei um selo de cera vermelha, impresso com
algo que parecia um brasão de família.

— O que é isso?

— Uma carta. Ontem um conhecido meu escreveu ela para mim.

Ah, certo… Pensando bem, ele mencionou que iria dizer olá para alguém que
conhecia nesta cidade.

— Ruijerd, pode nos dizer quem é esse conhecido?


— Um homem chamado Gash Broche.

— Qual é a ocupação dele?

— Não sei. Mas parece que tem algum status por aqui.

Ruijerd passou a explicar que conheceu Gash no Continente Demônio cerca de


quarenta anos atrás, depois de resgatar seu grupo de viagem de um grupo de
monstros que quase os eliminou. Na época, Gash era só uma criança, e no começo
olhou para Ruijerd com uma mistura de terror e hostilidade. Depois de passar algum
tempo juntos, porém, eles se separaram em termos relativamente amigáveis. O
Superd levou seu grupo até a cidade mais próxima, em segurança, e Gash disse
para fazer uma visita caso passasse por Millishion.

Como ele nunca deixou o Continente Demônio, Ruijerd havia se esquecido


completamente disso. Mas então viu o homem com seu “terceiro olho” enquanto
circulávamos pelas muralhas externas da cidade, e então lembrou de tudo.
Interessado em ver como os anos tinham passado para Gash, embora também um
tanto ansioso com a possibilidade de que o homem pudesse tê-lo esquecido, Ruijerd
dirigiu-se para fazer uma visita.

Para sua surpresa, Gash o reconheceu na mesma hora e o cobriu com


hospitalidade. No início, o Superd pretendia apenas dizer olá, mas parece que os
dois se deram muito bem. Ele acabou recontando toda a história de nossa jornada,
e assim que terminou, Gash escreveu uma carta e disse para entregá-la ao
responsável em Porto Oeste.

Foi uma história interessante. Por um lado, Ruijerd geralmente não fazia tantos
amigos. Será que esse cara era algo como Gustav, do povo-fera? A julgar pela
maneira como ele enviou uma carta casual a um duque, provavelmente tinha alguma
influência real…

Sério, eu queria dar uma olhada no conteúdo da carta. Mas, conforme lembrava,
quebrar esse tipo de selo invalidaria seu conteúdo.

— Parece que esse Gash deve ser algum tipo de nobre, hein?

— Não sei dizer, mas ele tinha muitos homens.

Mas vai saber o que isso indicava. Ele estava falando sobre servos ou algo
assim? A palavra “muitos” também era bem vaga…

Bem, em qualquer caso, o homem era amigo de Ruijerd. Eu não ficaria muito
surpreso se acabasse se tratando de alguém que se candidatou para ser o próximo
Rei Mamodo.

— Você foi na casa dele?

— Sim.

— Era grande?
— Bastante.

— Uhm, quão grande?

— Não é tão grande quanto o Castelo Kishirisu.

Castelo Kishirisu? Certo, então isso descartou o grande palácio no meio do


lago. Mas não era como se eu esperasse que o cara fosse um membro da família
real. Ainda assim, o edifício devia ser muito grande, já que Ruijerd estava usando
um castelo como ponto de comparação.

Hmm…

Estávamos falando sobre um amigo de Ruijerd. Então ele provavelmente não


seria um cara mau. Mas, pelo que Paul me disse antes, o nobre encarregado da
alfândega de Porto Oeste amava odiar os demônios. Se nosso amigo Gash fosse
apenas um pouco influente, entregar esta carta poderia acabar sendo um horrível
tiro pela culatra. Será que deveríamos gastar algum tempo descobrindo exatamente
quem ele era?

Mas Ruijerd parecia tão orgulhoso enquanto segurava aquela carta. Se eu


expressasse qualquer suspeita sobre seu novo amigo, o homem provavelmente me
encheria de palavras sobre confiança e honra.

Bem, tanto faz. Não era como se eu tivesse ideias melhores. Por enquanto,
seria melhor seguir a maré e deixar o Superd feliz. Depois, em segredo, poderia
perguntar para Paul quem era esse Gash Broche.

— Então tá bom — falei. — Vamos torcer para que essa carta resolva o
problema.

Ruijerd respondeu com um pequeno aceno de aprovação.

Isso basicamente encerrava o assunto. Partiríamos de Millishion dentro de uma


semana. Até então, faríamos o que pudéssemos dentro da cidade.

— Eu não me importaria de irmos embora amanhã cedo!

Com um pequeno sorriso diante da proposta de Eris, declarei que nossa reunião
de equipe estava oficialmente encerrada.
Capítulo 06 - Uma Semana em
Millishion

Na manhã seguinte, fui ao quartel-general do Esquadrão de Busca e Resgate


para reportar nossos planos a Paul.

O próprio QG era um prédio de dois andares igual a qualquer outro. Não


demorei muito para encontrar meu pai. Ele estava trabalhando duro no que parecia
ser uma sala de conferências, discutindo uma coisa ou outra com cerca de uma
dúzia de outros homens. Mesmo do lado de fora consegui escutar um trecho da
conversa; parecia que estavam se preparando para algum tipo de grande operação.

Pela aparência que Paul tinha naquele outro dia, presumi que ele passava todos
seus dias em Millishion bebendo ou sofrendo com a ressaca, mas talvez eu tenha
apenas o visto em uma hora ruim. Neste momento, o homem era a perfeita imagem
de um líder competente e focado. Fiquei realmente impressionado… pelo menos,
até que alguém aludiu ao fato de que ele havia faltado a um mês de reuniões graças
ao excesso de bebida. Pelo visto, o cara só tinha voltado a se motivar no dia anterior.

Isso provavelmente era porque queria me mostrar o seu melhor lado. Em outras
palavras, voltou a trabalhar por minha causa.

Pela graça da deusa. Garotos adoram se exibir na minha frente…

Com um suspiro teatral, decidi esperar até que Paul conseguisse um pouco de
tempo livre.

Ficar sentado na sala do lado de fora podia ser entediante, então optei por vagar
pelo prédio, sem nada de exato para fazer. Após alguns minutos de exploração,
encontrei minha irmã mais nova, Norn, brincando. Ela estava em uma sala que
parecia servir de berçário, brincando com alguns blocos com um bando de outras
crianças de sua idade.

— Olá — falei, levantando a mão em saudação quando seus olhos encontraram


os meus.

Norn se assustou, então fez uma careta e arremessou o bloco de madeira que
estava em sua mão, mas consegui o pegar.

— Saia daqui!
Essa não me parecia a mais amigável das maneiras de se dizer olá. Hmm. Será
que fiz algo para deixá-la chateada comigo? A única coisa em que consegui pensar
foi na surra que dei em Paul bem na frente dela.

Aham, provavelmente tinha algo a ver com aquilo.


— Hum… O Pai e eu nos reconciliamos, Norn — protestei gentilmente.
—Seu mentiroso! — gritou ela em resposta, e saiu correndo com toda a
velocidade que suas perninhas poderiam permitir.

Pelo visto, agora eu era odiado pela minha irmãzinha. Isso foi um pouco
deprimente.

Eu não queria que ela ficasse incomodada com a minha presença, então voltei
para a coisa mais próxima de uma sala de espera que existia no prédio. Quando me
sentei em um canto, várias cabeças se viraram em minha direção. Reconheci pelo
menos alguns dos caras que vi “sequestrando” Somal no outro dia.

Comecei a sentir que talvez não fosse muito popular pelo QG.

Mas antes que realmente tivesse tempo para me banhar naquela estranheza,
uma mulher familiar entrou no cômodo e todos os olhos se voltaram para ela. Era a
senhorita da armadura de biquíni, de volta aos seus velhos hábitos, agora seminua.
Ela me viu e imediatamente se aproximou.

— Bom dia — falei.

— Bom dia — respondeu ela com um sorriso e um ligeiro inclinar com sua
cabeça. — Está precisando de alguma coisa hoje?

— Sim. Vim aqui para ver meu pai, um… — Qual que era o nome desta moça
mesmo? Parecia até que Paul não tinha me falado. — Ah, perdão. Eu não me
apresentei, não é? Meu nome é Rudeus Greyrat, senhorita. — Ficando de pé,
coloquei uma das mãos no peito e fiz uma reverência aristocrática.

— Uh, ah… m-meu nome é Vierra — respondeu a moça da armadura de biquíni,


suas mãos estavam tremulando ansiosamente no ar. — Eu sou um membro do
esquadrão do Capitão Paul. — Ela começou a devolver meu cumprimento,
oferecendo-me uma visão verdadeiramente irresistível de seu decote.

Esta garota com certeza era um colírio para os olhos. Na verdade, era um colírio
para qualquer coisa, sério. Eu tinha acabado de resolver cessar o meu
comportamento pervertido, então não queria ficar encarando. Mas não conseguia
desviar o olhar. Todas as minhas boas intenções foram abaixo em face da atração
gravitacional exercida por seu peito.

Mas que roupa mais injusta.

— Sinto muito por ter sido tão rude no outro dia. Meu pai é meio mulherengo,
por isso acabei tendo a ideia errada.

— Não, não! Está tudo bem. Posso entender por que você acha isso,
considerando como eu estava vestida. — Vierra enfatizou suas palavras balançando
a cabeça vigorosamente. Como resultado, algumas outras partes de seu corpo
também balançaram. A armadura de biquíni parecia estar fixada em algum lugar,
mas não era o suficiente para impedi-la de balançar diante de movimentos
repentinos. Afinal, aquelas coisas eram bem grandes.
Opa. Eu estava fazendo isso de novo.

Com uma verdadeira demonstração de força de vontade, consegui desviar os


olhos.

— Sabe, senhorita, não sei se é boa ideia andar com essa armadura por aí, já
que tem homens por todos os lados. Imagino que algumas pessoas podem acabar
achando isso meio chamativo. Será que você não poderia ao menos usar uma capa?

Vierra sorriu sem jeito.

— Sinto muito, mas há uma razão para eu usar isso.

Talvez eu estivesse imaginando coisas, mas do nada parecia que tinha um


monte de gente olhando para mim. Será que falei algo que não deveria? Bem, tanto
faz. Depois poderia perguntar sobre isso para Paul.

— Sabe quando meu Pai sairá da reunião?

Vierra pensativamente inclinou a cabeça para o lado.

— Bem, atualmente ele está com um mês inteiro de trabalho atrasado. Então
imagino que vai ficar ocupado por um bom tempo.

— Então tá bom. Quando você tiver uma chance, poderia avisá-lo que estou
planejando deixar Millishion daqui a sete dias?

— Sério? Mas que rápido.

— Bem, é o cronograma que seguimos até agora.

— Entendo… Nesse caso, deixe-me buscar Shierra para você. Um momento,


por favor.

Com isso, Vierra saiu enquanto tagarelava com uma pessoa ou outra. Poucos
minutos depois, voltou com uma curandeira de rosto familiar.

Quando a garota viu que eu estava olhando para ela, soltou um breve suspiro
e deu um passo atrás de Vierra antes de dizer qualquer coisa.

— A agenda do capitão está lotada no momento, mas ele tem algum tempo livre
durante a noite, daqui quatro dias. Então gostaria de marcar um jantar com ele?

— Um, não tem problema se ele estiver muito ocupado, sabe.

— Quando ele fala com você, o capitão sempre parece cheio de vida e energia.
No momento ele está muito ocupado, mas espero que mesmo assim vocês se
encontrem.
A voz de Shierra soou bem composta, mesmo considerando que ela ainda
estava se escondendo atrás de Vierra. Essa garota realmente parecia me odiar. Ou
talvez sentisse até medo de mim. Isso era meio lamentável, mas… tudo bem.

— Daqui a quatro dias, certo? Então tá bom. Devo me encontrar com ele na
pousada?

— Vou fazer uma reserva para vocês em um restaurante que nosso esquadrão
sempre visita. Então vá direto para lá.

Shierra começou a calmamente me passar a hora e local exatos. Iríamos comer


em um lugar chamado “Millis Indolente” no distrito comercial. Só para garantir,
perguntei sobre o código de vestimenta, mas parecia não existir nenhum.

Bem, isso parecia no mínimo meio estranho. Foi tudo como se eu estivesse
agendando uma reunião de negócios com o CEO de alguma grande empresa. Agora
Paul tinha até uma secretária cuidado da agenda dele, hein? Ele realmente tinha
subido na vida.

— Você levará alguma companhia?

O rosto de Eris surgiu em minha mente, mas no mesmo instante me lembrei


dela gritando: “Vou matar aquele idiota estúpido!” enquanto saía furiosa para tentar
assassinar Paul.

— Não, acho que vou sozinho.

Com isso, acertamos todos os detalhes, então me despedi.

Bem. Uma semana passava voando, então teríamos que usá-la bem. Com isso
em mente, fui para a Guilda dos Aventureiros de Millishion.

O prédio era grande, assim como já era de se esperar da sede de toda a


organização. Tinha dois andares de altura e ocupava muito mais espaço do que
qualquer outra filial da Guilda que eu já tinha visto. Claro, eu tinha visto alguns
arranha-céus nos velhos tempos, então a visão não era bem de tirar o fôlego.

Uma vez lá dentro, comecei a trabalhar reunindo informações.

A princípio perguntei sobre a Região de Fittoa, mas ninguém parecia saber de


nada que Paul já não tivesse me contado. Nesta cidade, pelo menos, o Esquadrão
de Busca e Resgate provavelmente era mais bem informado sobre Fittoa do que
qualquer outra pessoa.

Em seguida, procurei informações sobre os monstros nativos da área de


Millishion.
Pelo visto, o nível de ameaça deles não era comparável ao das criaturas do
Continente Demônio. Os mais comuns eram as Locustas Gigantes, que eram
basicamente um tipo de gafanhoto superdesenvolvido; o Coelho Fatia-Carne, um
coelho carnívoro; e a Pedronhoca, que não passava de uma minhoca supercrescida.
A maioria dessas coisas não representava qualquer perigo para ninguém.

Também tendiam a ser muito pequenos, pelo menos em comparação com as


feras do Continente Demônio. Naquela terra árida, monstros várias vezes maiores
que os humanos eram comuns. Até os Coyotes Pax, que havíamos caçado até
ficarem à beira da extinção (isso é um pouco de exagero), tinham mais de dois
metros; e os Lobos Ácidos tinham mais de três. Quanto às Grandes Tartarugas, um
espécime comum podia ter uns oito metros, e as maiores podiam ter até vinte. Os
monstros que surgiram durante a estação das chuvas na Grande Floresta também
eram quase do tamanho de um homem adulto.

Claro, tamanho não é documento, mas a massa corporal e o peso das coisas
seriam, por si só, uma arma. Ao todo, os monstros ao redor de Millishion eram fracos
e insignificantes.

Ainda bem. Assim tínhamos uma coisa a menos com o que se preocupar.

Depois de ouvir o suficiente sobre os monstros, levei algum tempo para pensar
em como poderíamos melhorar a opinião dos moradores locais sobre o povo
Superd.

Infelizmente, parecia que nosso trabalho seria difícil.

Por um lado, havia uma facção política proeminente em Millishion que defendia
a “expulsão” dos demônios. Os líderes desse grupo eram associados aos Cavaleiros
do Templo, uma das ordens militares sagradas da Igreja Millis. Eles declaravam em
voz alta que todos os demônios deveriam ser inteiramente banidos do Continente
Millis.

Entretanto, não estavam no poder do continente, pelo menos não no momento.


O atual papa pertencia a uma facção mais poderosa que clamava pela coexistência
com os demônios; como resultado, os Cavaleiros do Templo não podiam tomar
medidas ativas para os expulsar. No entanto, se um demônio causasse problemas
na cidade, eles correriam ansiosamente para assediar todos os envolvidos. Apesar
de sua fraqueza política, muitas vezes se safavam tomando medidas agressivas em
nome da “justiça” ou da “ordem pública”.

Se Ruijerd anunciasse publicamente que era um Superd e começasse a fazer


trabalhos ao redor de Millishion, os Cavaleiros do Tempo com certeza tornariam
nossas vidas em existências miseráveis em um instante. Pelo visto, esse povo tinha
olhos e ouvidos por toda a cidade.

Nesse caso, talvez pudéssemos trabalhar de outro jeito.

Com isso em mente, peguei uma tarefa de rank B que a Guilda tinha acabado
de colocar no quadro de avisos. Pelo visto, havia um monstro furioso em algum
vilarejo local e que precisava ser exterminado. O lugar era próximo o suficiente para
que pudéssemos cuidar de tudo em apenas um dia de viagem.

Desta vez, nosso alvo seria um Tigre Folha. Era um monstro nativo das regiões
ao sul da Grande Floresta, mas por alguma razão ele havia vagado até o lugar para
fixar residência nesta área.

Tigres Folha tinham peles verdes com manchas marrons. Isso permitia que se
misturassem perfeitamente com a vegetação. Por serem difíceis de ver e
frequentemente se moverem em pequenos bandos, eram considerados monstros
de rank B. No entanto, aquele que procurávamos estava sozinho e sua camuflagem
seria inútil naqueles campos abertos. Provavelmente representaria uma ameaça
inferior a um Lobo Ácido comum. Eu o classificaria, no máximo, como rank D.
Quando estávamos no Continente Demônio, eu teria pulado de alegria se
encontrasse um trabalho tão fácil no quadro de avisos.

Nós três avançamos sem nem pensar. E assim que chegamos, um grande gato
verde estava saindo do vilarejo com uma galinha na boca.

Ele nos notou e largou seu prêmio para rosnar em nossa direção, mas Eris
apenas disse: “Vou cuidar disso”, correu até ele e cortou a coisa ao meio.

Missão completa! Huh, mas que rápido.

As pessoas da aldeia nos ofereceram seus mais sinceros agradecimentos. O


tigre tinha recentemente matado muitos rebanhos e atacou vários fazendeiros da
região.

Normalmente, uma das ordens militares sagradas teria sido enviada para
protegê-los. Mas apenas alguns dias atrás, aparentemente houve um grave
incidente em que uma Criança Abençoada foi atacada nas proximidades. Sua
escolta, uma unidade de Cavaleiros do Templo, foi quase totalmente exterminada;
apenas seu capitão havia sobrevivido.

O capitão cavaleiro mal conseguiu proteger a Criança Abençoada. Mas ainda


foi dispensado de seu posto como punição pelas graves perdas sofridas.

As ordens militares sagradas já estavam nervosas após uma recente série de


sequestros de escravos, mesmo antes deste desastre. Essa notícia deixou tanto a
Igreja Millis quando seus cavaleiros em alvoroço. Como resultado, falharam
totalmente em fazer qualquer coisa sobre um certo monstro perigoso de rank B. Por
falta de opções melhores, os aldeões se voltaram para a Guilda dos Aventureiros.

Era uma história bem interessante. Mas não era como se isso tivesse muito a
ver conosco.

Quando reuni todas as informações que consegui, parti para um pequeno


experimento.

Para ser mais específico, contei aos moradores sobre os Superds. Expliquei
que nosso amigo Ruijerd pertencia àquela tribo e que seu povo estava viajando por
todo o mundo fazendo boas ações na tentativa de ganhar a amizade das outras
raças.

— À primeira vista, um Superd pode parecer frio ou até hostil, mas é bastante
fácil passar pela casca dura deles. Conseguem ver essa estatueta aqui, pessoal?
Basta mostrar uma delas para um Superd e mencionar o nome de Ruijerd. A
carranca assustadora deles vai se transformar em um sorriso feliz, e vocês vão virar
melhores amigos para o resto da vida em um segundo!

Foi um ótimo discurso de vendedor, se é que posso dizer. Ainda assim, o chefe
da aldeia parecia menos do que entusiasmado. Eles estavam gratos a Ruijerd, mas
isso não era o suficiente para mudar seus pontos de vista sobre os demônios como
um todo. E como seguidores da Igreja Millis, não estavam interessados em possuir
uma estátua de um demônio. Com isso dito, empurrou a pequena estatueta de volta
para minhas mãos.

Parecia que o experimento foi um fracasso. Esse provavelmente não era um


problema que poderíamos contornar com tanta facilidade.

Uma estatueta de uma garota sexy talvez seria mais eficaz. Aah, e se eu fizesse
uma versão feminina de Ruijerd?

Espera, não. Isso acabaria com todo o propósito da coisa.

— Eu não fazia ideia que você tinha feito tal coisa — disse Ruijerd, estudando
a estatueta com admiração enquanto nós três marchávamos de volta para Millishion.

— Não é incrível? Rudeus é muito bom em fazer essas coisas! — Por algum
motivo, Eris parecia muito orgulhoso por eu ter recebido a aprovação do homem.

Embora esta versão tenha sido rejeitada, minhas obras na verdade já tinham
alcançado um bom valor de mercado. Afinal, tinham qualidade suficiente para
ganhar a admiração de um certo Rei da Espada do povo-fera e de um príncipe de
algum país estrangeiro.

Sim, de fato. A essa altura, eu já era praticamente um artesão real.

— Mas essa posição não é nada boa.

— Sim, a postura está toda errada. Você teria que se agachar muito mais…

Womp womp womp womp…1

Aqueles dois com certeza sabiam como acabar com o ânimo de alguém.

Três dias depois – um dia antes do meu compromisso para jantar com Paul –
percebi que não tinha nada para vestir e ir ao restaurante.
Não havia um código de vestimenta, e esta era apenas uma reunião de família.
Ainda assim, as roupas que comprei no Continente Demônio pareciam um pouco
gastas, então saí com Eris para fazer algumas compras.

Isso provavelmente se qualificava como um encontro, mas não era um dos mais
emocionantes. Eris nunca estava muito motivada para comprar roupas e tendia a
pensar que tudo estava “bom”. Achei que deveria aproveitar a chance para comprar
algumas roupas novas para ela também. Desse ponto em diante, estaríamos
viajando pelo território da humanidade, e, bem, a primeira impressão é a que fica.
Eu queria, no mínimo, que estivéssemos bem vestidos para que as pessoas não nos
tratassem com grosseria.

Meio que gostaria de pedir conselhos a uma amiga que soubesse algo sobre
moda. Mas as únicas pessoas que eu poderia chamar de “conhecidos” nesta cidade
eram aquele sujeito com cara de macaco e Vierra. Eu não tinha ideia de onde Geese
estava e não era amigável o suficiente com Vierra para pedir um favor pessoal a ela.

No final das contas, decidi analisar as pessoas passando até ter uma noção das
coisas. Eris e eu nos sentamos em uma rua e nos engajamos em observar a
multidão que passava.

Depois de um tempo, percebi que as roupas azuis pareciam um tanto populares


no momento. Além disso, algumas pessoas usavam capas ou jaquetas, mas muitas
outras nem se importavam com essas coisas. O clima local era bom o suficiente
para que a maioria dos agasalhos fosse mais leve.

— Parece que azul está na moda, não é?

— Azul não combina com você, Rudeus.

Uau, mas que direta. Felizmente, eu não me importava muito com as tendências
do momento.

— Então o que combina comigo?

— Você ainda tem aquele negócio que o Geese te deu, não tem? Aquilo
combina.

Ela estava falando daquele colete de pele, não é? Mas aquilo ficava meio
grande em mim. E era longo o suficiente para ficar parecendo com um casaco. Mas,
ainda assim, não era nada desconfortável, então às vezes eu ainda usava.
Principalmente nos dias mais frios.

— Aquilo não é ruim, mas acho que é um pouco grande para mim.

— Aham, imagino que sim. Então porque simplesmente não corta para ficar do
tamanho certo?

— Mas aí seria um desperdício. Ainda sou um garoto em fase de crescimento,


lembra?
Conversando casualmente, nós dois escolhemos algumas coisas para comprar.
Não levamos muito tempo, então atribuí isso à nossa falta de interesse. Então, foi
uma surpresa quando, no final, Eris escolheu um vestido preto bastante moderno
com pequenas rosas brancas bordadas.

— Você realmente quer este, Eris?

— O quê…? Algum problema com isso?

— Não, não. Aposto que ficaria ótimo em você.

— Hmph. Sabe, não precisa ficar me bajulando.

Depois de pagar pelas compras, voltamos para a pousada.

E, finalmente, chegou o grande dia.

À tarde, avisei Ruijerd e Eris que jantaria com meu pai naquela noite.

— Fico feliz em ouvir isso — disse Ruijerd com uma expressão ligeiramente
aliviada no rosto.

Eu consegui até mesmo ver a felicidade em seus olhos. Ao que parece, ele
queria muito que eu deixasse esta cidade estando em boas relações com meu pai.
Mas não era como se existisse algum motivo para se preocupar, é claro. Eu iria
aproveitar esta oportunidade ao máximo para reforçar nossos laços familiares.

— Eu também vou! — anunciou Eris.

Virando-me, eu a encontrei olhando para mim em sua pose usual de braços na


cintura.

— Uhhh…

— O quê? Algum problema com isso?

Se não fosse pelo outro dia, eu teria cedido imediatamente, mas Eris com
certeza ainda sentia alguma hostilidade em relação ao meu pai. Isso, na verdade,
não passava de eufemismo. Parecia que ela o odiava até na alma. Eu, de certa
forma, entendia como a garota se sentia, mas já tinha decidido ser legal com Paul.

Se esse fosse o único problema, poderia levá-la comigo e fazer algumas


tentativas para que os dois ficassem em melhores termos. Mas esse jantar seria
nossa primeira refeição como família em muitos anos, sabe? E eu ainda não tinha
corrigido as coisas com Norn. Além disso, falei que iria ao jantar sozinho.

— Eris, você se importaria de ficar aqui em vez de ir junto?

Considerando todas as coisas, eu queria que ela mostrasse um pouco de


autocontenção. Carregar uma bomba no meio de um incêndio florestal violento não
me parecia a melhor das ideias. Uma apresentação formal para a minha família
poderia esperar até que ficássemos um pouco mais íntimos do que já éramos.

— Sim, eu me importaria! Também vou, entendeu?!

Como fui tolo. A palavra “autocontenção” não fazia parte do vocabulário de Eris.

— Ruijerd, você poderia dizer algo?

Quando me voltei para o Superd em busca de ajuda, encontrei-o com a mão no


queixo, pensando. Seu olhar intenso mudou do meu rosto para o de Eris, e depois
de volta para o meu.

— Você fez as pazes com seu pai, não fez? Então não deve ter problema. Leve
ela junto.

Uau! Fui esfaqueado pelas costas! Este era o mesmo cara que socou Eris para
impedi-la de atrapalhar da última vez?

Ah, bem. Dessa vez acho que teria que seguir a opinião da maioria.

— Bem, se você diz, Ruijerd…

— Hmph! E o que você esperava?

— Só uma coisa, Eris. Eu quero ficar em boas relações com meu pai, então por
favor, seja educada com ele, tá bom?

— Certo…!

A julgar por seu tom de voz, a garota não tinha intenção de realmente manter
essa promessa. Não foi lá muito reconfortante.

Depois, subi as escadas para colocar minhas roupas novas e fui para o
restaurante como um novo eu (também conhecido como Novodeus). Eris foi junto,
usando aquele vestido preto que compramos no outro dia.

Fiz o possível para evitar os becos escuros. Havia muitos sequestradores à


espreita naqueles lugares, e às vezes eles podiam ficar um pouco violentos. Não
havia qualquer razão para arriscar a boa condição de nossas roupas novas.

As avenidas principais também tinham seus perigos, é claro. Como era hora do
jantar, algumas pessoas estavam comprando algo parecido com yakitori nas
barracas ao ar livre. Se eu trombasse com alguma daquelas pessoas, o resultado
com certeza seria trágico. E se um deles desse um encontrão com Eris, seu Soco
Boreas provavelmente deixaria nós dois encharcados de sangue.

Como medida de precaução, mantive meu Olho da Previsão ativo.


Constantemente tendo a visão de um segundo no futuro, então fui capaz de nos
guiar em segurança, mesmo em meio à multidão. Me senti um pouco mal por usar
uma habilidade tão poderosa para algo tão mundano, mas pelo menos chegamos
ao nosso destino sem incidentes.

Toda aquela coisa sobre as “reservas” me deixou um pouco nervoso. No final


das contas, porém, Millis Indolente era um lugar perfeitamente comum. Era um bar
e restaurante independente, não parte de uma pousada; a maioria da clientela
parecia ser de moradores locais relativamente respeitáveis. Quando dei meu nome
ao garçom na entrada, ele guiou Eris e eu para a nossa mesa na mesma hora. O
fato de que éramos dois passou despercebido. Paul já estava sentado à mesa com
um sorriso estranho no rosto, junto com uma Norn aparentemente muito mal-
humorada.

— Desculpa, me atrasei muito?

— Uh, nah… Sinto muito por isso, garoto. Shierra meio que, por algum motivo,
ficou empolgada demais. Eu disse que o lugar de sempre estaria bom, mas…

— Não tem nada de errado em mudar as coisas de vez em quando, certo?

Comecei a puxar uma cadeira, então parei quando notei que Eris estava
parecendo bastante mal-humorada. Tecnicamente, não foi a primeira vez que ela
viu Paul, mas apresentar um ao outro poderia acabar sendo uma boa ideia.

— Um, Pai, esta é a Eris. Como eu disse no outro dia, ela é filha de Philip e
parte dos Boreas…

— Ah. Claro, claro. — Me cortando bem no meio da frase, Paul se levantou e


virou na direção de Eris. Ele se endireitou e colocou uma das mãos no peito, depois
abaixou a cabeça, mas só um pouquinho. Foi um cumprimento treinado – não menos
charmoso que o de Philip. — É um prazer conhecê-la, senhorita. Sou Paul Greyrat,
pai de Rudeus.

Pega de surpresa, Eris tentou olhar para mim, mas não conseguiu quebrar
totalmente o contato visual com meu pai.

— Uh, eu sou… E-Eris Greyrat… senhor. — A expressão em seu rosto ainda


estava carrancuda. Mesmo assim, ela agarrou as pontas do vestido e fez uma
pequena reverência estranha. Parecia que tinha perdido a chance de começar a
gritar ou dar socos.

Eu tinha que admitir, fiquei impressionado com Paul. Pelo visto, ele aprendeu
uma ou duas coisas sobre como lidar com garotas em seus anos como mulherengo.

Desde quando ele podia fazer um cumprimento daqueles…?

— Então tá bom. Por que não nos sentamos?

De qualquer forma, nosso jantar em família começou sem qualquer


derramamento de sangue.
Eris e eu nos acomodamos em nossos assentos. No momento, ela estava se
mantendo quieta, mas era óbvio que revelaria suas presas no mesmo instante em
que as coisas tomassem um caminho ruim. Paul ainda parecia um pouco
desconfortável. E quanto a Norn… Bem, ela nem mesmo tinha olhado na minha
direção.

Resumindo, não era o melhor dos climas. Talvez levar Eris comigo realmente
tenha sido um erro.

Parecia que eu não era o único que achava a situação um pouco estranha. Após
alguns momentos de silêncio, Paul se virou para Norn com uma expressão
preocupada no rosto.

— Vamos lá, criança. Seu irmão mais velho está aqui, viu? Por que não diz oi
para ele?

— Não! Eu não quero jantar com um idiota que deu um soco no meu Papai!

Eris fez uma careta e começou a abrir a boca, mas Paul foi mais rápido.

— Não diga isso, criança. Às vezes o Papai merece levar um ou dois socos.

— Mas você não fez nada de errado! — disse Norn, estufando as bochechas
numa adorável demonstração de indignação.

— Seu irmão mais velho e eu já fizemos as pazes, sabia? Isso não é verdade,
Rudy?

Ah, cara. Ele ia mesmo jogar a batata quente no meu colo, hein? Bem, talvez
essa fosse uma espécie de oportunidade. Uma oportunidade de demonstrar minha
inteligência e charme!

— Ah, com certeza — falei com um sorriso. — Quer que a gente se beije e prove
isso?

— Hã?!

— Hein?

Por algum motivo, o que eu falei não foi lá muito bem visto. Na verdade, eu não
poderia culpar o cara. Eu também não queria dar um beijo nele. Talvez pudéssemos
esquecer que aquilo foi dito.

— Uh, de qualquer maneira… nós dois já voltamos a ser amigos, Norn. Por que
você também não faz as pazes com seu irmão mais velho?

— Não mesmo!

Paul afagou a cabeça de Norn enquanto ela fazia beicinho. Seu cabelo dourado
era realmente bonito. Ele me lembrava o de Zenith. Pensando bem, ela costumava
ficar de mau humor sempre que algo a incomodava. Será que Norn tinha herdado
esse hábito de sua mãe?

Depois de se submeter aos carinhos de Paul por um tempo, a criança se virou


abruptamente para me encarar. Ela teve que inclinar a cabeça para trás apenas para
me olhar no rosto, então o efeito geral foi mais adorável do que intimidante.

— Papai está se esforçando muito mesmo.

Já que este comentário parecia ser dirigido a mim, respondi o mais gentilmente
que pude.

— Aham. Eu sei que está.

— Ele não beija nenhuma garota nem nada do tipo!

— Escutei sobre isso. Sinto muito por ter duvidado dele.

— E ele também é sempre bem legal comigo! — Os olhinhos de Norn se


encheram de lágrimas. Merda, será que eu disse algo maldoso? Por favor, não
comece a chorar, criança… — O Papai parece que está sempre querendo chorar!

Perturbados pela óbvia angústia de Norn, Paul e eu nos entreolhamos com


incerteza.

— Espera, isso é sério?

— Uh, bem, às vezes…

— Sinto muito por ele!

Nenhum de nós tinha nada a dizer sobre isso.

— Como você pôde bater nele daquele jeito? Você é muito malvado!

Olhando para o rosto de Norn, tive que lutar contra a vontade de soltar um
suspiro longo e pesado. Paul e Norn foram teletransportados juntos. Isso era tudo
que eu sabia. Ela ficou muito doente durante a jornada de volta para Fittoa e quase
foi atacada por monstros várias vezes ao longo do caminho.

E foi seu pai quem a protegeu de todos aqueles perigos.

Com a ausência de sua mãe, empregada e irmã, e seu coração explodindo de


ansiedade, Paul era a única pessoa em quem ela podia confiar. Por anos, ele foi a
única família que Norn teve.

E então um estranho apareceu do nada, derrubou-o e começou a socá-lo no


rosto. Isso seria o suficiente para traumatizar a maioria das crianças de sua idade.

— Norn, olha. Aquilo foi tudo minha…


— Está tudo bem, Pai.

Se ela fosse um pouco mais velha, nós três poderíamos ter encontrado uma
maneira de conversar sobre isso. Na idade dela, porém, isso provavelmente seria
impossível. Paul e eu cometemos erros e tiramos conclusões precipitadas;
havíamos nos reconciliado reconhecendo nossas falhas. Mas não dava para esperar
que uma criança entendesse isso.

— Norn ainda é muito jovem. E se eu estivesse no lugar dela, acho que também
não perdoaria um idiota que começasse a te socar.

Era triste que Norn me odiasse, mas não havia muito que eu pudesse fazer a
respeito. Só precisaríamos conversar um pouco no futuro. Quando ela ficasse mais
velha, eu tinha certeza de que ela entenderia. O tempo não é um recurso infinito,
mas pode curar pelo menos algumas feridas.

— Não, não está tudo bem. — Entretanto, ficou claro que Paul não estava de
acordo com meu plano. — Vocês dois podem ser os únicos irmãos que restaram,
sabiam? Quero que vocês sejam bons um para o outro.

Quando o sentido dessas palavras foi absorvido, franzi a testa para meu pai.

— Isso é um pouco agourento, não acha?

— Sim, você está certo… Foi mal.

Bem, isso não era nada bom. A cada segundo o clima ficava mais pesado.
Parecia que era hora de mudar o assunto.

— A propósito, Pai, o que há de bom aqui? Hoje não tive tempo para almoçar,
então estou morrendo de fome.

Não foi a transição mais suave, claro, mas Paul pareceu entender o que eu
estava fazendo. Com um sorriso tenso, ele entendeu a deixa.

— Hm, vejamos. Eles têm um ensopado de frutos do mar muito saboroso, usam
peixe fresco do mar do sul. Ah, e a carne também é boa. Criam muito gado nas
fazendas por aqui, sabe? Na verdade, a carne tem um gosto bem diferente do tipo
Asurano, especialmente porque costumam fazer cozida. Dá um sabor bem rico e
gostoso.

— Ah, preciso provar isso. Toda a carne do Continente Demônio era nojenta.

— Você disse que comiam basicamente carne de Grande Tartaruga, não é?


Bem, a maioria dos monstros tem um gosto muito desagradável.

A conversa estava finalmente começando a ganhar força, mas Norn ainda


estava com a cara virada. Ela só respondeu quando Paul perguntou alguma coisa,
se recusando a até mesmo olhar em minha direção. eu já estava meio que
conformado com isso, mas ainda meio que doía, sabe?
Claro, isso era a mesma coisa que eu tinha feito com Paul há alguns dias.
Parando para pensar naquilo, acabei me sentindo muito mal.

E, a julgar pela maneira como Eris olhava para Norn, ela também não estava
muito satisfeita com essa atitude. Eu realmente não queria que isso se
transformasse em uma briga, mas… era melhor deixar as coisas estarem.

— Ah, claro. Tem uma coisa que eu queria te perguntar, Pai.

— Hã? O que é?

— Você conhece alguém chamado Gash Broche?

— Uh, não… Onde você ouviu esse nome?

Aproveitei a oportunidade para contar a Paul sobre a carta de Ruijerd e o amigo


misterioso que a escreveu para nós. Fiz uma cópia grosseira do emblema no selo
de cera, então peguei e mostrei a ele.

— Uma ovelha, um falcão e uma espada, hein? Parece o brasão da família de


um paladino. Mas acho que nunca ouvi o nome Gash Broche. Mas não é como se
eu estivesse familiarizado com todos os nobres de Millis ou coisa do tipo.

— Entendo… Você acha que Shierra pode saber algo sobre ele?

— Hmm, não sei. Depois vou perguntar para ela.

Descobrir que ele nunca tinha ouvido falar do sujeito não foi reconfortante, mas
teríamos que esperar para ver.

Com esse tópico passado, Paul e eu voltamos a conversar sobre qualquer coisa
que vinha à mente. Por fim, chegamos ao assunto do meu décimo aniversário.

De acordo com Paul, os monstros na floresta fora de Buena Village ficaram


muito mais ativos cerca de um mês antes do acontecimento. Paul e Zenith estavam
tão ocupados tentando colocar a situação sob controle que simplesmente não
tiveram tempo para se preocupar com meus presentes. Finalmente conseguiram
limpar a floresta, um dia antes do meu aniversário, mas quando estavam se
preparando para me enviar algumas coisas, a Calamidade aconteceu.

Enquanto ouvia tudo isso, Eris fez beicinho e franziu as sobrancelhas.


Pensando bem, ela tinha ficado bem triste quando descobriu que Paul não iria
àquela festa.

— Só por curiosidade, o que você planejava me enviar?

— Ia te dar um par de manoplas. Me senti um pouco culpado, já que tinha


acabado de encontrá-las nos fundos de nosso armazém, mas eram itens mágicos
encontrados no fundo de um labirinto. Aquelas coisas eram leves como penas.
Nunca couberam em mim, mas achei que serviriam em você, Rudy.
— Sério mesmo? Eu não sabia que você tinha uma coisa dessas.

— Aham. Zenith disse que o dela era um segredo, mas às vezes eu via Lilia
olhando para uma caixinha trancada com um sorriso no rosto. Acho que também era
para você.

— Uma caixa? — Agora ele me deixou curioso. O que será que tinha dentro
daquela coisa? Mas não era como se fizesse algum sentido pensar nessas coisas.
Seja lá o que fosse, já era.

Depois disso, de alguma forma chegamos ao assunto da família de Zenith. Eles


eram evidentemente bem conhecidos entre a nobreza Millis e tinham uma história
de produção de muitos cavaleiros talentosos e justos. Infelizmente, meus avós
deserdaram Zenith quando ela saiu de casa, então no começo não ficaram muito
entusiasmados em ajudar na procura.

Mas mudaram de opinião assim que deram uma olhada em Norn. Este mundo
era diferente do outro que eu conhecia em muitas coisas, mas, pelo visto, uma
netinha fofa tinha os mesmos efeitos em todos os lugares.

— Hmm. Será que te ajudariam mais se eu ficasse aqui?

— Uh, acho que isso não funcionaria…

— É, você tem razão. — Por eles, eu poderia tentar agir como uma criancinha
inocente, mas minha verdadeira natureza com certeza começaria a aparecer com o
passar do tempo. Isso não valia o risco.

Pouco depois desse papo, o garçom finalmente trouxe nossa comida para a
mesa.

— Certo, vamos lá — disse Paul enquanto segurava seu garfo no ar. — Hmm,
pelo que começo…?

— Isso parece apetitoso — murmurou Eris, estudando toda a variedade com


olhos brilhantes. Sério, seria mais fácil acreditar que ela era a filha de Paul do que
eu. Então, novamente, Paul e Philip eram primos, então isso talvez não fosse tão
bizarro.

Em qualquer caso, parecia uma oportunidade de ouro para melhorar um pouco


a imagem que Norn tinha de mim.

— Pai, suas maneiras são…

— Pare com isso, Papai! Você tem que orar antes de comer!

Nós dois falamos quase que ao mesmo tempo. Norn olhou para mim com
surpresa, mas se virou, mal-humorada, um segundo depois.

— Ha ha. Tá bom, crianças.


— Tá, tá…

Paul coçou a cabeça com tristeza e Eris parecia um pouco relutante, mas os
dois se recostaram nas cadeiras por um momento. Nós quatro começamos a fazer
uma breve oração ao estilo Millis. Tudo isso envolvia juntar as mãos e fechar os
olhos por alguns segundos.

Eris e eu não éramos crentes, e Paul provavelmente também não, mas isso
fazia parte das boas maneiras à mesa deste mundo. Quando em Roma, já sabe,
né? Seguimos os procedimentos sem reclamar.

Por algum motivo, parecia que o humor de Eris e Norn melhorou um pouco após
isso.

Nós apreciamos nossa comida enquanto conversávamos sobre nada lá muito


importante. E, claro, Paul e eu continuamos conversando. Norn nunca olhou na
minha direção e, por sua vez, Eris ficou em silêncio. Paul começou a tentar trocar
algumas palavras com ela, mas as ondas de hostilidade que a garota emitia eram
fortes o suficiente para que ele sempre pensasse melhor. Isso provavelmente foi
sábio da parte dele, já que resolveu não cutucar a onça com vara curta.

— Hmph, acho que ele se manteve sob controle desta vez — murmurou ela,
bem baixinho, quando saímos do restaurante juntos.

Eu nem queria pensar sobre como ela poderia ter reagido se Paul tivesse
gritado comigo, muito menos se tivesse me dado um soco. Mas como não aconteceu
nada disso, sua vontade de o matar podia ter até sumido – ou ao menos diminuído.

Ao menos por esse ponto de vista parecia que tudo tinha se saído bem.

Nossa semana em Millishion chegou ao fim em pouco tempo.

No dia de nossa partida, fomos até o portão do Distrito dos Aventureiros.


Tínhamos acabado de carregar nossas coisas na carruagem e estávamos nos
preparando para sair quando Paul apareceu para se despedir.

— Ei, Rudy. Tem certeza de que não quer ficar mais um pouco?

Por mais que eu apreciasse o convite, já era meio que tarde demais para isso.

— Tenho certeza de que seria bom, mas se não partirmos, podemos acabar
ficando aqui por um ano inteiro sem fazer nada.

— Mas você e Norn ainda nem fizeram as pazes.

— Teremos tempo suficiente para cuidar disso quando encontrarmos as outras


três.
Além do mais, isso não era só sobre mim. Olhei para Eris. Ruijerd a agarrou
pela nuca como uma medida de precaução, mas ela ainda estava erguendo os
punhos para Paul. Talvez eu tivesse superestimado a capacidade dela de seguir em
frente.

— E eu não sou o único que quer ver a família, sabe?

— Certo, claro. Mas a família Boreas provavelmente…

— Não vamos falar sobre isso — falei, dando um corte no que Paul ia falar. —
É possível que Philip e Sauros estejam esperando por nós quando voltarmos para
Fittoa, sabe? Pode ser que a notícia ainda não tenha chegado.

— Certo. Aham, isso é verdade. Mas, sabe, Rudy… — Paul parou por um
momento, seu rosto ficando sério. — Você realmente não deveria ficar muito otimista
quanto a isso. Mesmo se os dois estiverem vivos, não há como dizer o que pode
acontecer com eles depois de um desastre dessa escala.

— O que quer dizer com isso?

Paul abaixou um pouco a voz.

— O irmão de Philip, James, está ocupado tentando salvar seu próprio pescoço.
Há uma chance de ele jogar toda a culpa por essa bagunça em um deles.

Uau.

Eu não tinha pensado nisso antes, mas até que parecia plausível. Sauros era o
lorde de Fittoa, e Philip era o prefeito de Roa; ambos ocupavam importantes cargos
de autoridade. Mesmo se conseguissem voltar para casa, poderiam ser
considerados responsáveis pela perda massiva de vidas e propriedades que foi
causada pela Calamidade.

Eu não sabia exatamente o que isso significaria. Mas, no mínimo, era difícil
imaginar que voltariam a seus antigos papéis e retomariam seu poder. Na verdade,
não seria tão surpreendente se alguém mandasse assassinos atrás deles. Isso
impediria o irmão de Philip de usá-los como bodes expiatórios, tornando muito mais
fácil encurralá-lo na política.

— Se as coisas ficarem feias, apenas certifique-se de manter a pequena


senhora segura. Algumas pessoas podem falar um monte de merda sobre os
“deveres da nobreza”, mas você não tem que dar atenção a isso.

— Claro — falei, balançando a cabeça com a expressão mais séria que pude
fazer. — Tomarei cuidado, Pai.

Paul sorriu com orgulho e acenou com a cabeça.

— Ah, a propósito, falei sobre aquela carta com Shierra. Ela também nunca
ouviu falar sobre o cara.
— Entendo…

— Mas ela falou que ele provavelmente não é ninguém perigoso.

— Então tá bom. Você se importaria de agradecê-la por mim?

Paul balançou a cabeça por um momento. E então, finalmente, se virou e falou


com a garotinha que estava parada atrás dele.

— Vamos, Norn. Diga tchau ao seu irmão mais velho.

— Não quero…

Norn não saiu de onde estava, escondida atrás de seu pai. Entretanto, estava
espiando com metade do rosto à vista. Mas que adorável. Eu me peguei me
perguntando se ela cresceria e se tornaria uma beldade igual sua mãe.

— Não sei quanto tempo vai demorar, Norn, mas vamos nos encontrar de novo
algum dia.

— Não quero.

Até o final, minha irmã se recusou a me olhar no rosto. Sorrindo sem jeito, voltei
para nossa carruagem.

E assim, nosso grupo deixou a cidade de Millishion para trás.

Ponto de Vista do Paul

E, bem assim, Rudeus voltou à estrada.

O garoto continuava tão impressionante quanto sempre. Ele bolou todos os


seus planos em um momento, então colocou tudo em ação na mesma hora. Elinalise
uma vez me disse que eu estava “correndo com a minha vida”, não foi? Então
gostaria de saber o que ela diria ao dar uma olhada nele.

Se os dois algum dia se encontrassem poderia ser divertido, mas… talvez não
fosse uma ideia lá muito boa. Sim. A última coisa que eu queria era acabar como o
sogro daquela mulher.

Assim que cheguei a essa conclusão, alguém me deu um tapa no ombro. Virei-
me para encontrar um homem com cara de macaco sorrindo para mim.

— E aí, Paul. Já se despediu do seu filho?


— Geese… — Eu estava grato a esse idiota; mais grato do que poderia
expressar em palavras. Se não fosse por ele, provavelmente nunca teria feito as
pazes com Rudeus. — Cara, te devo uma.

— Ei, não esquenta!

Nesse ponto, percebi que Geese estava vestido para pegar a estrada.

— Mas, e aí, o que há de errado com você? Vai para algum lugar?

— Aham. Ainda não sei para onde, mas há muitos lugares que vocês ainda não
visitaram, certo?

Demorei um pouco para entender o que ele estava dizendo. Geese continuaria
procurando por minha família. Isso foi um choque, francamente. De todos os
membros do meu antigo grupo, Geese foi o que mais sofreu depois da separação.
Ele não era um lutador, mas um pau para toda obra sem nenhuma especialidade
real. Nenhum outro grupo o aceitaria, e ele não era forte o suficiente para lidar com
trabalhos difíceis sozinho. O homem foi forçado a deixar a vida de aventureiro para
trás. Ele tinha todos os motivos do mundo para se ressentir de mim, até mesmo para
me odiar.

— Por que você está… fazendo isso, Geese? Por que está se esforçando tanto
para encontrá-los?

Geese contraiu os cantos da boca em seu costumeiro sorriso irônico.

— É só por boa sorte. — E com aquela “explicação” tipicamente enigmática, se


virou e foi embora.

Coloquei minhas mãos em meus quadris e o observei partir com um sorriso


irônico no meu rosto. O homem tinha muitas ideias sobre sorte e nenhuma delas
fazia muito sentido para mim. Mas, desta vez, eu não estava exatamente
reclamando.

— Então tá bom!

Assim que Geese desapareceu de vista, me abaixei e coloquei Norn em meus


ombros. Do nada, comecei a explodir de tanta energia e motivação.

Comecemos pelo começo – tínhamos que garantir que a operação de


realocação de refugiados ocorreria sem problemas. E uma vez que isso fosse feito,
eu sairia em busca do resto da minha família. Não importava as circunstâncias.

Com minha resolução firmemente fixada em meu coração, voltei para a cidade.
Capítulo 06,5 - Interlúdio –
Eris, a Matadora de Goblins

Peço desculpas pela digressão abrupta, mas vamos falar sobre um jovem
chamado Cliff Grimor.

Cliff, atualmente, tinha doze anos – estava bem entre a idade de Eris e Rudeus.
Quando era criança, viveu em um orfanato em Millishion. O lugar era operado pela
Igreja Millis e servia como um símbolo de seu poder e prestígio. Naturalmente, não
faltava financiamento ou apoio; as crianças eram muito bem tratadas e tudo mais, e
muitas delas eventualmente acabavam sendo adotadas.

Após vários anos naquela instituição de luxo, Cliff foi adotado, quando tinha
cinco anos, por seu atual pai adotivo. Harry Grimor, um homem idoso e de alta
posição na Igreja Millis.

Depois que Cliff se juntou à casa de Harry, passou por um rigoroso programa
educacional projetado para cultivar seus talentos naturais. Em apenas alguns anos,
alcançou o nível Avançado em magia de Cura, Desintoxicação e no Ataque Divino.
Ele também aprendeu a lançar feitiços de nível Intermediário em todas as disciplinas
de magia ofensiva, e até mesmo feitiços de Fogo de nível Avançado.

Cliff era, em outras palavras, um prodígio.

Todos ao redor do garoto o elogiavam; todos diziam que, um dia, ele deixaria
sua marca no mundo.

Analisando assim, seus anos iniciais foram bem parecidos aos de Rudeus. Mas,
ao contrário de Rudeus, que tinha as memórias de sua vida anterior e sabia que era
melhor demonstrar humildade, Cliff se tornou arrogante. Para ser sincero, o garoto
vivia cheio de si. Muito mesmo.

De certa forma, seria difícil culpá-lo. Mesmo entre seus instrutores, não havia
ninguém proficiente em uma variedade de magias tão grande quanto ele. Alguns
podiam até lançar feitiços de Cura de nível Santo, verdade; outros também tinham
dominado os feitiços de Desintoxicação de nível Santo. Entretanto, apenas Cliff tinha
alcançado o nível Avançado em quatro disciplinas distintas. A amplitude de suas
habilidades era tal que alguns diziam que ele estava trilhando o caminho de um
sábio. O ego do garoto aumentava a cada dia. Aos poucos, ele parou de dar ouvidos
a seus tutores.
Algum dia, no futuro, seria esperado que Cliff sucedesse seu pai adotivo e
assumisse um cargo na Igreja Millis. E ele estava ciente disso, claro. Mas, no
momento, só queria ser um aventureiro.

Mas, por que um aventureiro?

A causa para isso era derivada de seu passado no orfanato. Muitos dos que
cresceram naquele lugar tornaram-se aventureiros. As crianças que não eram
adotadas até o décimo aniversário seriam enviadas para uma escola administrada
pela Igreja Millis, onde passariam por cinco anos de treinamento nas artes práticas
de combate, esgrima e magia. Após a formatura, aceitariam empregos adequados
aos seus talentos específicos. Aqueles que produzissem resultados acadêmicos
excelentes, além de serem bons em esgrima e magia, às vezes se tornavam
cavaleiros, mas a maioria desses graduados acabava como aventureiros.

Aqueles rapazes e moças frequentemente faziam uma pausa para visitar seu
antigo lar. Sempre se deleitavam quando tinham a chance de falar com seus velhos
professores – e de contar histórias emocionantes sobre suas aventuras para todas
as crianças que viam. Muitos dos órfãos, cativados por essas histórias, sonhavam
em seguir seus passos, e Cliff não era exceção.

Claro, ele não acreditava que seu sonho se tornaria realidade. Apesar do que
seu coração queria, o garoto entendia suas circunstâncias com clareza. Uma criança
adotada de um orfanato não teria o direito de escolher seu próprio destino.

Ele pôde aceitar isso… ao menos no começo. Mas a rotina monótona de sua
vida diária o desgastou, e os elogios constantes que recebia o deixaram cheio de si.
E então, um dia, teve a ideia de fugir de sua casa para se registrar como um
aventureiro.

Na verdade, o garoto só queria colocar suas habilidades à prova. Alguns de


seus instrutores eram inclusive aventureiros renomados. Ele, de certo, teria uma
experiência semelhante àquelas que escutara quando era jovem… ou ao menos foi
o que imaginou. Com o cajado que ganhou de seu pai adotivo em seu décimo
aniversário em mãos, Cliff se dirigiu do Distrito Divino ao Distrito dos Aventureiros,
onde comprou um robe azul de mago para usar.

Agora que estava trajado para a função, se dirigiu até a Guilda. Preocupado
com a possibilidade de ser rastreado pela igreja, rapidamente se registrou como um
curandeiro, e então decidiu listar sua profissão como “mago”. Ele pensou que, por
algum motivo, isso poderia fazer diferença.

O registro de Cliff foi, em pouco tempo, concluído. Agora era oficialmente um


aventureiro. Um novo mundo de perigo, excitação e glória se abriu diante dele.

Com o coração acelerado graças à alegria, Cliff olhou para os lados. Quase
todas as pessoas que viu eram homens musculosos. Estava claro que a profissão
da maioria era espadachim ou guerreiro.

Cliff já tinha ouvido os aventureiros que visitavam o orfanato comentando que


lançadores de feitiços talentosos eram muito requisitados. Ele presumiu que só por
ser mago, rapidamente encontraria lugar no grupo de alguém. O garoto não tinha
prestado atenção à explicação da recepcionista sobre o sistema de ranks da Guilda,
então pensou que poderia entrar em qualquer um, independentemente de seu rank.

— Não vai dar certo, garoto.

E então foi, inevitavelmente, rejeitado. Todos que ele abordou o rejeitaram sem
pensar duas vezes. Quando isso aconteceu pela quarta vez consecutiva, a
paciência do menino finalmente se esgotou.

— Por quê?! Por que não me deixam entrar em seus grupos?!

— Eu já falei. Nossos ranks são diferentes.

— E daí?! Sou tão poderoso quanto qualquer mago de rank A! Vocês deviam
estar é gratos por eu estar disposto a trabalhar com gente como vocês!

— Mas que merda é essa? Já cansei dessas suas idiotices, moleque estúpido!
Você quer mesmo cair na porrada comigo?!

— Idiotas, vocês só sabem brandir uma espada. Eu não ficaria tão convencido
assim se estivesse no seu lugar!

— Seu merdinha…

O aventureiro corpulento na frente de Cliff deu um passo à frente e o agarrou


pela gola de sua camisa. O garoto não tinha esperado que isso acontecesse, mas,
se conseguisse derrubar o homem, conseguiria fazer uma verdadeira demonstração
de sua força.

— Já chega. Você está sendo infantil.

Antes que ele tivesse qualquer chance, entretanto, uma garota ruiva mais ou
menos com a sua idade acabou intervindo.

Vamos retroceder um pouco mais no tempo.

Naquela mesma manhã, Eris Boreas Greyrat se separou de Rudeus e Ruijerd


para fazer uma visita à Guilda dos Aventureiros de Millishion. Enquanto ela descia
a rua principal que levava ao prédio, sempre correndo, o sorriso em seu rosto estava
tão grande que qualquer pessoa que visse acabaria sorrindo junto. Eris estava
usando sua roupa padrão de aventureira: uma camisa grossa, protetor de peito feito
de couro, calças de couro e botas de sola fina, mas resistentes. Com sua arma
pendurada ao quadril, mesmo à primeira vista ficava óbvio que se tratava de uma
espadachim.
Entretanto, neste dia, não estava usando seu capuz de sempre. No último ano,
tinha aprendido que usar aquela coisa na Guilda faria confundirem ela com uma
maga… e isso tendia a encorajar sujeitos estranhos a se aproximarem.

E, em pouco tempo, a garota chegou ao seu destino. A Guilda dos Aventureiros


de Millishion ficava no fim da rua principal. Era a sede de toda a organização e o
maior edifício do Distrito dos Aventureiros.

Seu portão de entrada, todo imponente, não foi o suficiente para intimidar Eris.
Ela foi direto lá para dentro. A entrada do prédio, entretanto, foi quase o suficiente
para fazê-la parar e cruzar os braços. O lugar não era apenas maior do que qualquer
um que tinha visto nas outras filiais da guilda, como também era maior que o salão
de banquete da mansão de sua família, lá em Roa. Qualquer garoto ou garota que
colocasse os pés nesse lugar para se registrar na Guilda provavelmente teria
hesitado diante dessa visão impressionante.

Mas, claro, Eris não era uma recém-chegada tímida. Ela era uma aventureira
de rank A – uma verdadeira veterana. Levou apenas um segundo para que fizesse
um caminho rápido até o quadro de avisos.

Este quadro era muito maior do que qualquer outro que ela já tinha visto, mas
mesmo assim estava cheio de folhas de papel. Cruzando os braços, a garota
começou a olhar para todos.

Entretanto, em vez de seguir para as tarefas de rank B, que eram moleza para
o Fim da Linha, estava estudando a seção de rank E do quadro, procurando tarefas
classificadas como Missões Abertas. Eram missões especiais, postadas
periodicamente pelo país em que a Guilda estava localizada. Suas recompensas
eram menores, mas como eram de alta prioridade, qualquer aventureiro poderia
aceitá-las, independentemente de seu rank.

Claro, não existia algo assim no Continente Demônio. Não existiam “países” lá.

Entre um punhado de Missões Abertas, os olhos de Eris se fixaram em uma em


particular.

Aberta

TAREFA: Exterminar Goblins

RECOMPENSA: 10 moedas de cobre Millis por orelha

DETALHES: Ajude a abater a população local de Goblins

LOCALIZAÇÃO: Leste de Millishion

DURAÇÃO: Nenhuma
Prazo: Nenhum

CLIENTE: Os Cavaleiros Sagrados de Millis

NOTAS: Novos aventureiros devem ser cautelosos com os Hobgoblins, que às


vezes são encontrados entre grupos de Goblins. Não remova esta solicitação do
quadro; simplesmente traga as orelhas coletadas diretamente para o balcão da
frente.

Os Goblins eram uma espécie de monstros que viviam principalmente nas


fronteiras entre florestas e planícies abertas. Eles tinham forma humanóide e
usavam armas grosseiras, mas não podiam compreender a fala humana. Em
pequenos números, eram em sua maioria inofensivos, mas se deixados sozinhos
por muito tempo, se reproduziam rapidamente e começavam a atacar quaisquer
vilarejos próximos. Eram considerados um tipo de praga um tanto perigosa. No
entanto, como residiam na periferia de áreas arborizadas, também agiam como uma
espécie de amortecedor natural contra os monstros mais perigosos que surgiam
dentro das florestas.

Eram criaturas fracas e podiam ser mortos sem muita dificuldade por qualquer
um que soubesse usar uma espada. A Guilda dos Aventureiros se aproveitou desse
fato, oferecendo tarefas regulares de extermínio de Goblins com recompensas
generosas, servindo como uma espécie de introdução às missões de combate.

Além do mais, embora Eris não soubesse disso, as criaturas às vezes também
eram usadas como ferramenta de tortura contra espiões estrangeiros que acabavam
sendo capturados. Por todas essas razões, o País Sagrado de Millis não fazia
nenhum esforço para exterminar os Goblins dentro de suas fronteiras, preferindo
manter sua população em um nível estável.

Eris era uma aventureira de rank A cujas habilidades foram reconhecidas por
Ruijerd Superdia, e era perfeitamente capaz de derrotar um guerreiro de rank C
comum usando apenas seus punhos. Ninguém entenderia por que ela se importava
com um trabalho tão básico em um momento destes.

Mas existiam duas razões.

Primeiro: isso era algo que ela sonhava fazer há muito tempo.

Durante o breve período de sua vida em que frequentou a escola, costumava


escutar um grupo de meninos de sua classe. Eles sempre ficavam falando sobre o
que fariam quando virassem aventureiros. O plano deles era começar caçando
Goblins. Depois de economizar algum dinheiro e ficar mais fortes, finalmente
seguiriam para as regiões ao sul do Continente Central, onde poderiam assumir
tarefas de alto nível e mergulhar em labirintos.
Ouvindo sua conversa animada, Eris começou a se entregar a essas mesmas
fantasias.

Um dia, caminhou até o pequeno grupo e exigiu que a deixassem entrar na


conversa, o que de alguma forma levou a uma briga na qual a garota venceu
brutalmente contra três garotos. Ela foi expulsa da escola, mas logo conheceu
Ghislaine, cujas histórias apenas intensificaram seu desejo por uma vida cheia de
aventuras.

Depois de conhecer Rudeus, constantemente sonhava em se tornar uma


aventureira em um grupo com ele. Em sua imaginação, formariam um grupo de dois:
Eris, a espadachim, e Rudeus, o mago. Juntos, desafiaram labirintos desconhecidos
em busca de tesouros.

Quando ela realmente se encontrou presa no Continente Demônio com ele, no


entanto, as coisas aconteceram de forma muito diferente de suas fantasias. Rudeus,
em particular, agia muito cheio de profissionalismo em relação a tudo. Ele manteve
o grupo longe de labirintos e de seus perigos desconhecidos. Se Eris tivesse
proposto que fossem matar alguns Goblins, o garoto provavelmente teria levantado
uma sobrancelha e dito: “Por que nos incomodaríamos em fazer isso?”

Bem, só ressaltando, ela não era mais uma novata. Já tinha lutado durante todo
seu caminho cheio de perigos pelo Continente Demônio, então sabia que não havia
nenhum motivo real para aceitar este trabalho em um momento desses. Mas,
mesmo sendo inútil, matar Goblins sempre esteve no topo de sua lista de “Coisas
que quero fazer quando me tornar uma aventureira”. Ela só queria passar pela
experiência, nada além disso.

Essa era a sua primeira razão. A segunda… era segredo.

— Será que consigo voltar antes do sol se por…

Estudando a tarefa que encontrou no quadro, Eris tentou descobrir quanto


tempo levaria para a viagem de ida e volta. Desta vez, viajaria à pé. Ainda estava
cedo, mas seria melhor ter uma margem de erro confortável.

— Hm…?

Mas enquanto estava pensando nisso, percebeu uma nota postada na borda do
quadro, além das tarefas de rank F.

Cidadãos deslocados da Região de Fittoa: Por favor, entrem em contato com


o seguinte endereço:

Depois de ler a primeira linha, Eris desviou o olhar. Ela tinha visto essa mesma
nota na Guilda dos Aventureiros de Porto Zant.

Rudeus nunca mencionou a Região de Fittoa. Eris presumiu que era só porque
não queria a deixar ansiosa. A garota suspeitou que a razão pela qual ele havia
criado mais “dias de folga” era para que pudesse tomar algumas providências
necessárias quanto a isso.
Então tentou não pensar muito em coisas complicadas. A garota se convenceu
de que não era inteligente o suficiente para entender o que estava acontecendo, e
também tinha Rudeus para pensar pelos dois. Quando chegasse a hora, tinha
certeza de que ele explicaria seu plano de uma maneira que qualquer um pudesse
entender. Ela jamais sonhou que Rudeus nem estava ciente da existência desse
aviso.

— Então tá bom!

Tendo feito o que foi fazer, Eris se afastou do quadro com bom humor e se
dirigiu para a saída. Agora só faltava ir para o leste e matar alguns Goblins. Dado o
quão entusiasmada estava no momento, provavelmente destruiria um ou dois
ninhos inteiros antes de se cansar. Não havia nada nem ninguém que pudesse detê-
la. Por favor, um minuto de silêncio por nossos amiguinhos verdes…

— Por quê?!

Não, espera, parece que nos adiantamos um pouco. Quando ela estava prestes
a deixar o prédio, parou de andar graças ao som de um grito.

Virando-se naquela direção, viu um menino cercado por um grupo de homens


com quase duas vezes seu tamanho.

— Por que não me deixam entrar em seus grupos?!

Levando em conta aquele robe azul, o garoto gritando parecia ser um mago.
Ele era um pouco mais baixo do que Rudeus; seu cabelo castanho escuro era longo
na frente, escondendo seus olhos de vista. O cajado que carregava não era tão
impressionante quanto o Aqua Heartia de Rudeus, mas pelo tamanho de seu cristal
mágico, qualquer um poderia dizer que era feito de materiais de qualidade. Sua
família provavelmente era rica, mas não tão rica quanto a de Eris.

— Sou tão poderoso quanto qualquer mago de rank A! Vocês deviam estar é
gratos por eu estar disposto a trabalhar com gente como vocês!

Sua atitude arrogante também não estava sendo muito bem recebida pelos
homens que o cercavam. Isso não foi lá muito surpreendente. Caso aquele garoto
estivesse gritando essas coisas para ela, Eris daria um soco em sua cara e não diria
nada.

— Mas que merda é essa? Já cansei dessas suas idiotices, moleque estúpido!
Você quer mesmo cair na porrada comigo?!

— Idiotas, vocês só sabem brandir uma espada. Eu não ficaria tão convencido
assim se estivesse no seu lugar!

— Seu merdinha…

Um dos aventureiros agarrou o menino pela gola. O rosto do garoto permanecia


calmo, mas Eris podia ver que suas pernas estavam tremendo um pouco.
Caminhando até o grupo, ela resolveu intervir.

— Já chega. Vocês estão sendo infantis. — Se Rudeus estivesse lá,


provavelmente teria ficado de boca aberta neste momento. Este não era o tipo de
coisa que se esperava escutar, dentre todas as pessoas, logo de Eris.

Sério, ela estava achando isso tudo muito emocionante. Como aventureira
de rank A, estava acima de qualquer uma dessas pessoas. Ela era a veterana
calma, intervindo para proteger o novato de um bando de valentões! Se alguém
perguntasse, diria que isso era muito legal.

Claro, Ruijerd frequentemente tinha que intervir assim para impedi-la de socar
algum idiota infeliz bem no meio da cara, mas esse fato inconveniente havia fugido
de sua memória.

— Tch… É, acho que você tem razão. Não fui lá muito maduro.

Para sua surpresa, o homem recuou na mesma hora. Ela esperava que isso se
transformasse em uma luta, então foi meio anticlimático.

— Vamos lá gente. Vamos embora. — Os homens foram embora, deixando o


menino mago para trás. Eris esperou que ele agradecesse com um sorriso no rosto.

Em sua imaginação, seria algo assim:

Menino: Obrigado por me ajudar, senhorita. Quem é você?

Eris: Ah, ninguém especial.

Menino: Por favor! Pelo menos me diga seu nome!

Eris: Hmm. Tudo bem… então você pode me chamar de Ruijerd do Fim da
Linha.

Às vezes Rudeus gostava de falar essas coisas. Ela queria sentir o mesmo
gostinho.

— E quem foi que pediu a sua ajuda, hein?! — A expressão orgulhosa de Eris
congelou no lugar quando o menino gritou com ela. — Eu podia lidar com aqueles
valentões muito bem usando a minha magia! Não enfie o nariz onde não é chamada!

De certa forma, o garoto teve sorte. Afinal, foi nocauteado pelo primeiro soco
dela, e aqueles homens de antes ainda estavam por perto. Se não tivessem corrido
de volta para tirar Eris de cima dele, o garoto provavelmente teria acordado após
perder uma parte bastante delicada de sua anatomia.
Com um humor um tanto ruim, ela fez seu caminho para o portão da frente de
Millishion. Eris geralmente deixava as coisas desagradáveis para trás quase na
mesma hora, mas, desta vez, ainda estava se sentindo irritada. Havia uma razão
para isso, é claro.

— Espera! Por favor, espera! — Foi porque o garoto da Guilda, tendo


recuperado a consciência, saiu correndo atrás dela. — Sinto muito pelo que falei
naquela hora. Foi só por causa do calor do momento…

Assim que ele a alcançou, imediatamente se desculpou e curvou a cabeça de


forma educada. Por causa disso, o humor de Eris ficou apenas “um pouco” ruim. O
menino havia escapado de um destino horrível – mas foi por pouco.

Claro, se ele tivesse permanecido consciente depois do primeiro soco para


testemunhar sua raiva, não teria sido tolo o suficiente para a perseguir dessa forma.

— Meu nome é Cliff. Cliff Grimor!

— Meu nome é Eris… — Por um momento ela pensou em usar o nome Fim da
Linha, mas decidiu não fazer isso. Não iria mencionar o nome de Ruijerd para
alguém que a irritou.

— Eris! É um nome maravilhoso! Pela sua roupa, suponho que seja uma
espadachim, sim? Gostaria de fazer um grupo comigo? — Cliff se plantou bem no
meio da estrada para tagarelar. Eris ficou extremamente tentada a socá-lo na cara
de novo, mas conseguiu se controlar.

— Não, obrigada. — Ela desdenhosamente virou a cara e voltou a andar.

Bem, a garota não estava muito acostumada a lidar com esse tipo de coisa.
Rudeus era basicamente a única pessoa que voltou para mais depois de sua
primeira surra.

— Ah. Tudo bem. Nesse caso, ao menos deixe-me te apoiar pela retaguarda!
Todo mundo diz que sou um sábio em formação, sabe. Com certeza vou ajudar!

Se Rudeus estivesse lá para testemunhar essa tentativa de avanço


desesperada, provavelmente teria feito um comentário do tipo: “Está mais para um
coroinha em desenvolvimento, seu virjão idiota!” para si mesmo.

Eris, entretanto, não era tão bruta. Ela, por um momento, se perguntou quão
“útil” o garoto poderia se tornar após ser picado e usado como adubo.

— Tenho certeza de que você nunca viu um feiticeiro tão incrível quanto eu
antes, Eris — disse Cliff com um sorriso confiante. — Eu sou ainda melhor do que
os magos de rank A normais, e isso é verdade!

Esta observação acabou a irritando. Para ela, o mago mais incrível do mundo
era, claramente, Rudeus Greyrat. Até Ruijerd reconhecia suas habilidades. Embora
ele fosse um aventureiro de rank A, não havia nada de “normal” nele.
— Você devia ao menos querer ver o que eu faço por si mesma!

Tudo bem então, Eris se pegou pensando. Vamos ver se você é tudo isso.

— Tá bom, certo. Siga-me.

— É claro!

E então, Eris e o jovem mago Cliff começaram a matar alguns monstros.

Em um instante, uma grande onda de chamas consumiu sete Goblins de uma


vez.

— O que achou disso? Bem incrível, não é? — disse Cliff, examinando os


cadáveres dos monstros com uma expressão de imensa satisfação no rosto. — Os
magos comuns que você conhece jamais seriam capazes de fazer isso!

Eris também olhou para os restos mortais. Todas as criaturas foram reduzidas
a cinzas, o que significa que não havia mais orelhas para coletar.

— Você acha? Não posso dizer que estou impressionada. — Essa era sua mais
sincera opinião. Na verdade, ela não poderia estar menos impressionada. Cliff usou
um feitiço de Fogo de nível Avançado chamado “Chamas do Êxodo”. Ela já tinha
visto Rudeus lançando a mesma coisa. Mas, ao contrário de Cliff, ele não
pronunciava um longo encantamento, e suas chamas também eram mais
poderosas. Claro, para começo de conversa, Rudeus não usaria um feitiço desses
contra um bando de Goblins. Ele teria matado todos de uma vez sem tocar nas
orelhas.

Além do mais, Eris manteve os monstros ocupados até Cliff terminar seu
encantamento, dando-lhe a chance de mostrar o que poderia fazer; mas como o
garoto não a avisou quando terminou, ela quase foi pega no alcance de seu feitiço.
Rudeus nunca teria cometido um erro desses.

— Ah, parece que você não sabe muito sobre magia, Eris. Olha só, existem
vários tipos diferentes de feitiços, e…

Cliff começou a dar uma longa palestra sobre os vários níveis de feitiços,
explicando que a magia que acabara de usar era um feitiço de nível Avançado, tão
complexo que até mesmo a maioria dos adultos era incapaz de lançar.

Mas, claro, Eris já sabia tudo isso. Ela aprendeu essas coisas durante suas
aulas com Rudeus. E, em comparação com as explicações desconexas de Cliff, as
aulas de Rudeus tinham sido dez vezes mais fáceis de entender.

— E aí? Agora entende o quão incrível eu sou?


Eris queria muito dar um soco na cara desse idiota. Ele realmente estava
acabando com seu tão esperado dia de matadora de Goblins. Com os braços ainda
cruzados, ela friamente deu seu veredito.

— Certo, já vi o bastante. Você não vai ser de muita ajuda, então já pode ir
embora.

Se Rudeus estivesse no lugar de Cliff neste momento, provavelmente teria


escolhido bater em retirada tática. Mas esse garoto não percebeu a hostilidade nos
olhos de Eris.

— Isso é sério?! Não posso te deixar aqui sozinha! Você estava sofrendo pra
matar um punhado de Goblins!

Assim que essas palavras, soaram, Eris o acertou. Com força.

Cliff cambaleou para trás e levou a mão ao rosto. Havia sangue escorrendo de
seu nariz. Ele rapidamente lançou um feitiço básico de Cura em si mesmo para parar
o fluxo.

— Ei, mas o que foi isso?!

Eris, irritada, estalou a língua. Ela foi um pouco mole com ele desta vez, já que
deixá-lo inconsciente em um campo aberto não parecia uma opção muito boa. Mas,
pelo visto, o garoto precisava de uma punição maior para aprender.

Assim que ela cerrou o punho para um ataque consecutivo, porém, Cliff
finalmente pareceu entender a situação.

— Espera, não! Entendi! Eris, você com certeza é muito forte. Então que tal
darmos uma passada pela floresta? Eu realmente não posso demonstrar meu real
valor como mago lutando só contra um bando de Goblins.

Não havia quaisquer segundas intenções por trás dessa proposta. Cliff só
queria se exibir na frente de Eris. Não era que ele tivesse uma queda por ela ou
quisesse impressioná-la; só estava ansioso para se deleitar com seu próprio poder.

— Florestas são perigosas — disse Eris secamente. Isso era algo que Rudeus
sempre dizia, e Ruijerd concordava com ele. E ela confiava plenamente no
julgamento daqueles dois.

— Você não está com medo, está?

— Claro que não!

Mas, claro, Eris era uma garota simples. Quando alguém desafiava seu orgulho,
ela mordia a isca de uma só vez. Afinal, ninguém da família Boreas que se prezasse
deixaria algum aventureiro novato falar esse tipo de bobagem.

— A floresta, certo? Tá bom! Vamos!


E então, os dois fizeram um desvio para uma floresta sombria e escura que
ficava nas proximidades.

— Acho que nem a floresta de Millis é tão ruim assim, hein?

Eris fatiou uma criatura parecida com um macaco, chamada Gotango, enquanto
falava. Este era um monstro de rank D, consideravelmente mais perigoso do que
um Goblin, mas não representava uma ameaça real para ela.

— Acho que não. Essas coisas não são páreo para mim!

Cliff, por sua vez, estava matando Gotangos com feitiços de Vento de nível
Intermediário enquanto entrava cada vez mais para dentro da floresta.

— Ah… — De repente, Eris parou no meio do caminho.

— Eris, qual o problema? — disse Cliff, voltando-se e se aproximando dela com


um grande sorriso no rosto.

Com uma careta, a garota cruzou os braços, plantou os pés no chão e ergueu
o queixo para o ar.

— Me conta uma coisa. Você está marcando a nossa rota de retorno?

— Não, na verdade não. — Cliff nem pensou em dar atenção a isso. Toda sua
viagem estava sendo impulsiva, levada pelo momento, então ele não tinha feito
nenhum planejamento ou preparado qualquer coisa de antemão.

— Entendi. Então estamos perdidos — disse Eris, cheia de categoria.

Cliff ficou em silêncio. Depois de um momento, seu rosto ficou muito pálido.

— Uh… o que devíamos fazer?

Como Eris parecia imperturbável, Cliff presumiu que ela devia ter algum tipo de
plano. Mas não era o caso.

Isso não era nada bom. O que Rudeus e Ruijerd diriam se descobrissem que
ela se perdeu na floresta? Como poderia explicar como acabou ali, quando deveria
estar caçando Goblins?

Claro, Eris não deixou sua ansiedade transparecer. Como uma mulher da
família Greyrat, esperava-se que permanecesse calma e composta o tempo todo.

— Cliff, atire-se para o céu e veja para que direção fica a cidade.

— Você está brincando? Isso é um absurdo.

— Rudeus consegue fazer isso sem qualquer problema.


— Rudeus? Quem diabos é Rudeus?

— Ele é meu tutor.

— O quê?!

Eris soltou um breve suspiro. Não fazia sentido entrar em uma discussão. O
que deveria estar fazendo em uma situação como essa? Ghislaine não ensinou o
que deveria fazer ao se perder?

Claro. Deveria juntar um monte de galhos e acender uma fogueira, certo? Seria
possível ver a fumaça mesmo de longe. Mas quem veria o sinal? Ruijerd e Rudeus
tinham que cuidar de outras coisas. Eles não sairiam à sua procura.

Eris cruzou os braços e começou a fechar a cara. Fechou os olhos e tentou


pensar cuidadosamente. Ghislaine sempre disse que era fundamental manter a
calma, ainda mais quando se sentia ansiosa, por isso a garota nunca se permitiu a
entrar em pânico.

— E-Eris, o-o que devemos fazer?

— Provavelmente existem alguns outros aventureiros nesta floresta, certo?

— Ah, é claro! Podemos apenas gritar por socorro… Vamos tentar encontrar
alguém!

Cliff não perdeu tempo e começou a correr, mas Eris não se moveu. Ruijerd
sempre falava que nesse tipo de situação seria melhor não se mover. Ele ensinou a
garota a ficar quieta e conscientemente aguçar seus sentidos. Ela não tinha aquele
terceiro olho conveniente dele, mas tinha suas orelhas e seu nariz. E podia até sentir
o fluxo de energia mágica na área. A garota ainda era inexperiente em muitas coisas,
mas treinava duro todos os dias.

— Uh, Eris…?

— Fica quieto!

Com os olhos ainda fechados, ela respirou fundo e esvaziou a mente. Ouviu os
sons da floresta. Podia escutar o farfalhar de galhos, monstros em movimento, o
zumbido de insetos voando… e em algum lugar meio longe, breves sons de um
combate.

— Tudo certo. Siga-me. — Sem um momento de hesitação, ela voltou a andar.

— O que está acontecendo?! — disse Cliff, correndo atrás dela. — Você achou
algo?!

— Bem, tem mais gente aqui. Estão nessa direção.

— E como você sabe disso?!


— Fiquei apurando meus sentidos por algum tempo.

— Seu professor te ensinou a fazer até isso?!

Eris teve que pensar nisso por um segundo. Ruijerd era seu professor?
Provavelmente sim. Ele a ensinou muitas coisas, se não tantas quanto Ghislaine.
Ela provavelmente poderia até mesmo chamá-lo de seu mestre atual.

— Aham, isso mesmo.

— Este Rudeus deve ser realmente alguma coisa…

— Hm…? Aham, Rudeus é incrível.

Um pouco confusa sobre por que o assunto mudou tão de repente, Eris seguiu
em frente.

Assim que os dois chegaram à orla da floresta, avistaram uma carruagem


tombada no meio dos sulcos que suas rodas haviam feito.

— Abaixe-se!

— Ack!

Eris agarrou Cliff pela cabeça e empurrou-o para o chão, então se abaixou ao
lado dele para observar a situação.

Ainda tinham outras seis pessoas de pé. Uma delas era uma cavaleira
totalmente armada e usando elmo, de pé com as costas contra uma árvore e a
espada desembainhada. Os outros cinco eram homens vestidos todos de preto,
posicionados em um semicírculo em torno da guerreira solitária.

Três cadáveres jaziam na grama. Todos usavam a mesma armadura que a


cavaleira que estava sendo cercada. Lenta, mas continuamente, os homens de
preto estavam se aproximando de sua presa.

A batalha já estava decidida. Mas, por alguma razão, a cavaleira não fez
nenhum movimento para fugir. Olhando mais de perto, Eris percebeu que havia uma
jovem se encolhendo na base da árvore atrás da guerreira de armadura – uma
garota cujo rosto estava transparecendo terror e brilhando com lágrimas.

— Aquela armadura… Eris, ela é uma Cavaleira do Templo! — sussurrou Cliff

O coração de Eris acelerou. Ela sabia sobre os Cavaleiros do Templo. Eram


uma das três ordens militares sagradas de Millis. Os Cavaleiros da Catedral de elite
eram encarregados de questões de defesa nacional. Os Cavaleiros Missionários
eram despachados para o exterior como uma espécie de mercenários, para que
pudessem espalhar os ensinamentos da Igreja Millis e demonstrar seu poder. E os
temidos Cavaleiros do Templo, com seus infames Inquisidores, eram encarregados
de erradicar a heresia.
Os Cavaleiros da Catedral usavam branco, os Cavaleiros Missionários, prata, e
os Cavaleiros do Templo, cerúleo. Mesmo de longe, a armadura da cavaleira
emboscado era visivelmente de um tom azul. Então não sobrava qualquer dúvida.
Um grupo de Cavaleiros do Templo tinha sido emboscado.

— Seus tolos! Vocês não sabem quem é esta lady?! — Foi só quando a
cavaleira encurralada gritou essas palavras que Cliff e Eris perceberam que ela era
uma mulher.

Os homens vestidos de preto se entreolharam e bufaram de tanto rir.

— É claro que sabemos.

— Então por que iriam querer machucá-la?!

— Não deveria ser óbvio?

— Então vocês são lacaios do Papa?! Brutos malditos!

Eris não conseguiu entender a conversa. Mas uma coisa estava muito clara:
aqueles homens ameaçadores vestidos de preto iam matar aquela garotinha
aterrorizada. Ela alcançou a espada em seu quadril.

— O que você acha que está fazendo? — sibilou Cliff. — Não podemos nos
envolver nisso! Aquela garota é a Criança Abençoada que supostamente será a
próxima Papa, sabia? Isso significa que aqueles homens de preto são os assassinos
pessoais do atual Papa! Eles são bem treinados e implacáveis. Mesmo eu não teria
chance contra eles!

Eris nem mesmo parou para se perguntar por que Cliff sabia tanto sobre tudo
isso. Só havia uma coisa em sua mente: a menos que interviesse, aquela garota iria
morrer diante de seus olhos.

Ela, afinal de contas, era parte do Fim da Linha. Caso se escondesse e


observasse uma criança sendo assassinada, nunca seria capaz de voltar a olhar
Ruijerd nos olhos. E, mais de uma vez, viu Rudeus se colocar em perigo por razões
muito semelhantes.

— Vamos lá. Vamos ficar quietos e esperar que não nos percebam…

— Desculpe, mas isso é inútil. Já sabem que estamos aqui. — Um dos homens
vestidos de preto percebeu sua presença no momento em que ela empurrou Cliff
para o chão. Eris não tinha esquecido da breve reação que tinha sido demonstrada.

Ela não sabia exatamente o que fariam uma vez que sua missão fosse
cumprida, mas isso não importava. A garota pretendia tomar a iniciativa ali, naquele
mesmo momento.

— Apenas se esconda aqui, Cliff!


— Eris! Não!

Sacando sua espada, a garota saltou na frente dos assassinos.

Os homens vestidos de preto imediatamente se espalharam, mas…

— Lentos demais!

Ela se moveu muito mais rápido do que eles haviam esperado. Seu ataque
principal foi a técnica de nível Avançado do Estilo Deus da Espada: “Espada
Silenciosa” – um movimento de menos complexidade do que a “Espada de Luz”,
mas tão mortal quanto. Sua espada cortou o ar sem sequer fazer som.

Ao decorrer de seu treinamento com Ghislaine e Ruijerd, suas habilidades de


esgrima foram aperfeiçoadas a um grau notável. Sua lâmina acertou um dos homens
pelo ombro, cortou sua caixa torácica na diagonal e o dividiu em dois.

Embora esta fosse a primeira vez que Eris matava alguém, não vacilou nem por
um instante. Seu foco já havia mudado para seu próximo alvo. Os homens vestidos
de preto estavam se movendo rapidamente para cercá-la, mas Eris continuava um
passo mais rápido do que qualquer um deles. Ruijerd havia a ensinado a maneira
correta de se mover quando cercada por vários inimigos. Muitos monstros caçavam
em bandos; o objetivo normalmente seria eliminá-los o quanto antes, sem dar uma
chance para que criassem um cerco.

— Haaah! — Em um piscar de olhos, Eris matou outro dos assassinos.

Os três homens restantes estavam visivelmente nervosos. Os movimentos


dessa garota eram erráticos e seus ataques surgiam de ângulos inesperados, sem
qualquer aviso prévio. Era quase impossível evitá-los enquanto tentavam fazer
qualquer outra coisa.

Mesmo assim, ainda eram assassinos profissionais. No momento em que Eris


matou seus camaradas, a cercaram com sucesso. Dois dos assassinos pularam em
direção dela quase ao mesmo tempo, escalonando seus ataques.

Eles eram rápidos, mas não tão rápidos quanto Ruijerd. E não eram tão bem
coordenados quanto os Coiotes Pax do Continente Demônio.

Esses homens não eram bons o suficiente.

— Suas adagas estão envenenadas! Tome cuidado! — Gritando palavras de


advertência, a cavaleira que estava defendendo a menina correu para acertar um
dos assassinos pelas costas.

Eris antecipou com precisão como os homens vestidos de preto reagiriam a


isso, e encontrou sua chance de se libertar de seu cerco. No mesmo instante em
que percebeu que iria vencer a luta, sua espada cortou um terceiro assassino.

— Maldição! Retirada!
Os dois homens restantes giraram bruscamente e começaram a correr. Mas
Eris jamais deixaria um trabalho pela metade. Em um piscar de olhos, alcançou um
e ferozmente o cortou pelas costas, estripando-o. Suas entranhas se espalharam
pelo chão enquanto ele caía.
O último assassino não olhou para trás. No momento em que Eris se virou para
ele, o sujeito já tinha fugido para muito longe.

Com um pequeno bufo de desdém, ela agitou vigorosamente a espada para


espirrar o sangue e entranhas para longe. Pelo que parecia, a garota estava tão
calma como sempre. Mas seu coração ainda estava disparado. Eris tinha acabado
de experimentar sua primeira batalha de vida ou morte contra outros seres humanos.
E, pela primeira vez, matou alguém.

Além do mais, seus oponentes empunhavam adagas envenenadas – até


mesmo um único arranhão poderia ser fatal. E Rudeus e Ruijerd também não
estavam por perto para protegê-la. Ela entrou na briga sem pensar muito, mas se
não fosse por aquela mulher cavaleira, poderia ter morrido.

Naturalmente, manteve esses pensamentos apenas para si mesma.


Embainhando sua espada, ela se virou para enfrentar a Cavaleira do Templo.

— Desculpa. Um deles acabou escapando.

Essas palavras deixaram a cavaleira um tanto perplexa. A garota que estava


diante dela não era nem mesmo uma adulta, mas abriu caminho através de um
grupo de assassinos. E, para completar, parecia completamente imperturbável.

Sem nem mesmo tirar o elmo, a mulher pressionou o punho contra o estômago
e se curvou ao estilo dos Cavaleiros Sagrados de Millis.

— Meus sinceros agradecimentos por sua ajuda.

Eris se lembrou de como Ruijerd respondia palavras como essas e decidiu


seguir seu exemplo. Sem fazer nenhuma reverência, disse:

— Estou feliz que a criança esteja ilesa. — E nada mais.

— Sou Therese Latria dos Cavaleiros do Templo. Senhorita, é certo presumir


que seja uma aventureira? Posso perguntar seu nome?

— Eu me chamo Er… — Eris começou a dar seu nome verdadeiro, mas então
parou bruscamente. Não, isso não estava certo. O que Rudeus sempre fazia nessas
situações? — Sou o Ruijerd do Fim da Linha. Queira ou não acreditar, eu sou, na
verdade, uma Superd.

Sob o elmo, o rosto de Therese ficou tenso. Embora Eris não soubesse disso,
os Cavaleiros do Templo, como um todo, defendiam a expulsão de todos os
demônios do Continente Millis.

Claro, a garota não tinha todas as características distintas de um verdadeiro


Superd. Therese levou apenas um momento para voltar a relaxar. A menina tinha
dado um nome claramente falso e assumiu a identidade de um demônio contra o
qual os Cavaleiros do Tempo seriam hostis. Parecia ser uma mensagem de que não
tinha interesse em criar qualquer tipo de envolvimento duradouro.
Em outras palavras, não esperava recompensa, apesar de ter salvo a vida de
alguém importante. A Cavaleira achou isso agradavelmente surpreendente.

— Entendi. Tudo bem, então… — Por um momento, ela parou para estudar Eris
enquanto a garota a observava com os braços cruzados. Depois de memorizar seu
rosto, assobiou bem alto.

Em pouco tempo, um cavalo saiu correndo da floresta.

Era o animal que estava anteriormente puxando a carruagem. Ele fugiu quando
a carruagem tombou, mas retornou ao chamado de Therese, exatamente como fora
treinado para fazer. Depois de colocar a jovem no lombo do animal, a Cavaleira
saltou atrás dela.

— Se você precisar de ajuda, procure por Therese dos Cavaleiros do Templo!


— Com essas palavras finais, saiu a galope. Eris a observou partindo sem dizer uma
palavra.

De volta às sombras, um certo jovem – ainda incapaz até de ficar de pé –


também estava observando. E, aos olhos dele, a cavaleira em fuga e a destemida
espadachim ruiva que a viu partir pareciam nada menos que personagens de um
conto de fadas.

Algum tempo atrás, um prelado da Igreja Millis se apaixonou por uma mulher
da raça Hobbit. A mulher deu-lhe um filho e, com o tempo, a criança cresceu e tomou
uma esposa para si. Cliff foi o primeiro e único filho desse casal.

Na época de seu nascimento, várias facções dentro da igreja estavam


envolvidas em uma violenta luta pelo poder. A violência custou a vida de seus pais.
Para manter Cliff a uma distância segura do conflito, seu avô – o prelado – o deixou
temporariamente com o orfanato em Millishion. Ele triunfou sobre seus inimigos,
tomou o papado para si e o levou de volta para sua casa.

Em outras palavras, Cliff Grimor era o verdadeiro neto do atual Papa de Millis…
embora poucos, mesmo dentro da Igreja, estivessem cientes desse fato.

Por causa disso, o garoto sabia perfeitamente bem por que aquela carruagem
fora atacada. Aquela Criança Abençoada, que supostamente possuía poderes
milagrosos, era a ferramenta mais poderosa no arsenal de um certo arcebispo. E a
facção daquele arcebispo estava atualmente em conflito ativo com o avô de Cliff.

Ele, na verdade, já tinha até se encontrado com a garota antes. Não fazia ideia
do que ela estava fazendo naquela floresta; mas já estava familiarizado com os
assassinos vestidos de preto que a atacaram. Aqueles homens eram seus
instrutores. Cliff já tinha descoberto, há algum tempo, que eles realizavam esse tipo
de trabalho para seu avô. E também sabia o quão poderosos eram. Já tinham lutado
muitas vezes, mas ele nunca chegou sequer perto da vitória. E, ainda assim, não
tiveram uma chance contra Eris.

Na verdade, a luta fora bastante equilibrada. Mas, da maneira como Cliff via,
essa garota havia superado totalmente um grupo de homens que ele nunca poderia
ter vencido, mesmo em um milhão de anos. Enquanto faziam seu caminho de
retorno, o garoto se viu olhando para o rosto cansado dela com profunda e genuína
admiração.

Essa garota um dia seria alguém.

Com esse pensamento firmemente formado em sua mente, Cliff fez uma oferta
impulsiva.

— Eris, aceita se casar comigo?!

— O quê?! Sem chances! — Foi um golpe sem misericórdia. E ainda por cima
fazendo uma careta horrível.

Parecia bizarro para Cliff que qualquer garota recusasse uma proposta de
alguém tão profundamente talentoso quanto ele, então começou a buscar uma
explicação. O garoto pensou em todas as conversas que tiveram. Depois de um
momento, se lembrou dela mencionando um certo “professor” por diversas vezes.
Como é que ele se chamava? Ru… Ru…

— Rudeus.

Eris se virou ao som desse nome.

— Esse é o nome do seu professor, certo? Como ele é?

Em minutos, Cliff começaria a se xingar por ter feito essa pergunta. Ele teve a
impressão de que Eris não era do tipo que falava muito, mas esse claramente não
era o caso. Depois que a garota começava a falar sobre Rudeus, se enchia de
orgulho enquanto tagarelava sem parar. Ela falou das planícies além de Millishion
até a Guilda dos Aventureiros. Tudo o que falava eram elogios enormes, e a
expressão em seu rosto deixava muito clara a intensidade de seus sentimentos. Foi
mais do que suficiente para deixar Cliff com um ciúme profundo.

— Já vou voltar para casa — disse quando finalmente decidiu interromper,


ciente de que sua expressão devia estar um tanto quanto abatida.

Eris parecia pronta para continuar falando por mais uma ou duas horas, mas
apenas acenou com a mão, fazendo um gesto vago e desinteressado.

— Ah, tá bom. Tchau. — Era difícil acreditar que ela era a mesma garota que
tinha falado tão apaixonadamente sobre seu tutor apenas alguns segundos antes.

Cliff silenciosamente a observou se afastar até que a garota desapareceu de


vista. Quem era esse “Rudeus” que encantou tanto aquela jovem poderosa, linda e
perfeita?

Com visões de um rival misterioso flutuando em sua mente, o jovem mago


voltou para a sede da Igreja Millis, onde levou um sermão das pessoas que estavam
procurando por ele.
Incidentalmente, a luta pelo poder dentro da Igreja logo se intensificou após o
incidente com a Criança Abençoada. O Papa então decidiu que era muito perigoso
para seu neto permanecer em Millishion, então Cliff foi enviado para viver em uma
terra estrangeira. Mas, é claro, isso não tinha nada a ver com Eris.

Quanto à própria garota, ela basicamente se esqueceu de todo o encontro no


momento em que voltou para a pousada e viu Rudeus sentado miseravelmente em
sua cama. Mas isso também era uma outra história.

Capítulo 07 - Para o
Continente Central

Depois de dois meses na estrada, nosso grupo finalmente chegou à cidade de


Porto Oeste. Suas ruas eram muito semelhantes às de Porto Zant, a cidade costeira
ao norte. Entretanto, era consideravelmente maior.

A rota entre as capitais do País Sagrado de Millis e o Reino Asura era uma
artéria crucial para o comércio. Muitas cidades ao longo de sua extensão serviam
como bases de operação para mercadores e comerciantes; Porto Oeste era uma
das mais proeminentes.

Embora não pudesse se comparar ao Distrito Comercial de Millishion, várias


empresas tinham sua sede no local, e as ruas da cidade estavam repletas de lojas
e negócios subsidiários.

Como tínhamos chegado tão longe, era hora de dizer adeus ao nosso cavalo e
carruagem.

Neste mundo, não existiam balsas para transportar veículos terrestres através
de rios e coisa do tipo. Assim como quando deixamos o Continente Demônio,
precisávamos vender nossos meios de transporte e comprar um novo do outro lado.

Ao contrário daquele lagarto encantador, eu não tinha me apegado muito ao


nosso cavalo, então decidi dar um nome a ele só no final. Adeus, querido Biscoito
Molhado.

Assim que vendemos nosso amigo, fomos direto para o posto de controle. Este
acabou por ser um edifício bem grande, ao contrário daquele de Porto Vento. Havia
até soldados com elmos e armaduras do lado de fora da entrada.
Também era bem comum ver cavaleiros totalmente trajados nas ruas de
Millishion. À primeira vista, o equipamento parecia ser muito resistente, mas quando
pensei no que Eris ou Ruijerd poderiam fazer, me perguntei se serviria a algum
propósito. As pessoas e monstros deste mundo tendiam a ter um grande poder de
fogo. Um golpe podia ser suficiente para quebrar a armadura extravagante e deixar
essas pessoas só de cueca. Poxa, apenas um coice poderia jogar as pessoas em
um buraco sem fundo, e isso seria como um game over automático…

Certo, foi mal. Já parei.

Ao entrar no prédio aduaneiro, descobrimos que estava lotado. Muitos daqueles


lá dentro pareciam ser aventureiros, enquanto os outros se vestiam como
mercadores. Vários funcionários que pareciam permanecer em estado de alerta
processavam todas as solicitações sem perder tempo. Se comparado com Porto
Vento, parecia outro mundo, já que lá o escritório ficava quase vazio e o pessoal
era, na melhor das hipóteses, apático.

Caminhei até o balcão mais próximo.

— Olá.

— Olá. Como posso te ajudar?

Mais uma vez, me vi diante de uma recepcionista com seios


impressionantemente grandes. Neste mundo, parecia haver algum tipo de regra
tácita de que as balconistas deviam ser todas peitudas. Mas não era como se eu
tivesse do que reclamar, é claro.

— Uhm, quero atravessar o mar com o meu grupo.

— Tudo bem. Por favor, pegue isso. — A mulher me entregou um pequeno


cartão de madeira com o número 34 gravado nele. Evidentemente, este era o
método que adotaram para realizar as operações burocráticas.

Voltei para a sala de espera e me sentei. Eris se deixou cair na cadeira ao meu
lado, mas Ruijerd permaneceu de pé. Quando dei uma olhada ao redor, parecia
haver muitas outras pessoas esperando que seus números fossem chamados.

— Hmm. Parece que vai demorar um pouco.

— Você não vai entregar a carta a eles? — perguntou Ruijerd.

Fiz que não com a cabeça.

— Não até que chamem o nosso número.

— Bem, que seja.


Eris já estava um pouco inquieta. Compreensível, já que esperar pacientemente
não era uma de suas especialidades. Depois de um momento, porém, ela
murmurou:

— Rudeus, acho que alguém está olhando para mim…

Olhei ao redor do cômodo, dessa vez com mais cuidado, tentando localizar a
pessoa de quem ela estava falando. No final das contas, eram os guardas. Muitos
deles estavam lançando breves olhares na direção de Eris; e ela estava retornando
os olhares, é óbvio.

— Eris, por favor, não comece uma briga com eles.

— Eu não estava planejando isso.

Isso era algo difícil de se acreditar. Em todos casos, qualquer um ficaria confuso
com o motivo pelo qual olhavam na direção dela. Mas não consegui pensar em
nenhuma explicação plausível. Será que tinham ficado cativados por sua beleza?
Nah. Eris definitivamente estava ficando mais bonita a cada dia, mas ainda era uma
criança. A menos que todos os cavaleiros que trabalhassem no local fossem
pedófilos desgraçados, não poderia ser o que estava acontecendo.

— Número trinta e quatro, por favor, avance.

Enfim, finalmente chamaram o nosso número, então me levantei e fui até o


balcão.

Expliquei à recepcionista que queríamos reservar uma passagem para o


Continente Central e, em seguida, entreguei a carta de Ruijerd. Ela pegou o
envelope com um sorriso educado, mas quando olhou para o nome que estava
escrito, sua expressão ficou um tanto duvidosa.

— Espere um minuto, por favor. — Com isso, ela se levantou e foi para os
fundos do prédio.

Depois de um tempo, ouvi um baque forte e o som de alguém gritando. Um


soldado totalmente trajado logo saiu correndo da parte de trás, se aproximou de
outro guarda e sussurrou algo em seu ouvido. O guarda saiu correndo do escritório
com uma expressão muito séria no rosto.

Tudo isso me pareceu um tanto quanto sinistro. Entreguei aquela carta porque
confiava em Ruijerd, mas talvez fosse mais inteligente pesquisar um pouco mais
sobre quem era Gash Broche.

— Desculpe por deixar todo mundo esperando! — A recepcionista de antes


havia retornado. Mesmo seu sorriso profissional era insuficiente para esconder a
tensão em seu rosto. — O Duque Bakshiel disse que o verá agora.

Tive um pressentimento extremamente ruim quanto a isso.


— Sou o Duque Bakshiel von Wieser, diretor do Escritório Alfandegário do
Continente Millis.

Este suíno parecia muito com um porco.

Opa, erro meu. Este homem parecia muito com um porco.

Seu pescoço era tão grosso que seu queixo todo tinha sumido. Seu cabelo loiro
claro estava grudado na testa, e havia olheiras enormes sob seus olhos. Ele tinha o
rosto de um velho astuto e desagradável.

E também estava carrancudo diante de nós, sendo claramente hostil.

Eu tinha visto um cara muito parecido com ele nos velhos tempos… o via toda
vez que me olhava no espelho.

— Hmph. E pensar que algum demônio imundo seria descarado o suficiente


para me trazer uma carta como esta…

O Duque Bakshiel estava sentado em uma luxuosa poltrona de couro, a qual


não parecia inclinado a abandonar. Ela rangeu embaixo dele enquanto o gordão
batia no pedaço de papel em sua mão com uma caneta. Havia incontáveis pedaços
de papel em sua mesa aparentemente cara. Entre eles, vi um envelope familiar,
agora rasgado. Ele, presumivelmente, estava segurando o que tinha dentro daquilo.

— Você certamente escolheu um nome impressionante, devo admitir. E aquele


selo também parecia bem real. Mas eu não nasci ontem, meus amigos! Isso com
certeza é falso!

Bakshiel jogou a carta descuidadamente na nossa direção. Estendi a mão por


reflexo e a peguei.

Este homem é um Superd. No entanto, tenho uma grande dívida com ele.

Trata-se de um homem de poucas palavras, mas de caráter nobre.

Renuncie todas as taxas habituais e leve-o em segurança ao Continente


Central.

Galgard Nash Vennik,

Comandante dos Cavaleiros Missionários


Uma simples olhada no nome na parte inferior do envelope fez minha cabeça
girar. O que aconteceu com Gash Broche? Quem era esse tal de Galgard Nash
Vennik?

Demorei alguns segundos para perceber que poderia encurtar “Galgard Nash”
para “Gash”. Será que era o tipo de cara que se apresentava com um apelido?
Ruijerd talvez tivesse ficado com a impressão de que o homem se chamava apenas
Gash. Mas isso ainda não explicava a parte do “Broche”, é claro.

Mas, mais importante… “Comandante dos Cavaleiros Missionários”?! Ele era


realmente o líder de uma das três ordens militares sagradas?! Comecei a sentir uma
enorme dor de cabeça. Por que o velho conhecido de Ruijerd seria um figurão tão
importante?

Mas isso, de certa forma, até que fazia sentido. O comandante dos Cavaleiros
Missionários devia estar bem posicionado na hierarquia de Millis, certo? Podia
acabar sendo ruim se todos descobrissem que era amigo de um Superd. Talvez
fosse por isso que tenha usado um nome falso.

Claro, existia uma explicação ainda mais simples para isso. Fazia quarenta
anos desde que Ruijerd conheceu o homem. Talvez ele tivesse se casado com uma
família poderosa e por isso acabou mudando de nome, ou coisa do tipo.

— Em primeiro lugar, não há a menor chance de um homem tão calado escrever


uma carta como esta. Eu o conheço bem e sei que ele detesta colocar uma caneta
no papel, mesmo quando é simplesmente necessário. Você espera mesmo que eu
acredite que ele escreveu isso em nome de algum demônio bonzinho? Mas que
farsa.

Ruijerd ouviu tudo em silêncio, mantendo uma expressão conflitante no rosto.


Este homem estava afirmando abertamente que sua carta era falsa, apenas porque
ele era um Superd – ou ao menos era o que parecia. E o sujeito poderia não estar
completamente errado, para ser sincero. Mas Paul havia me avisado que esse
Duque Bakshiel era famoso por seu ódio por toda espécie demônio.

Este tal de Gash, ou Galgard, também estava ciente disso, não estava? Se ele
soubesse como Bakshiel era, realmente deveria ter escrito uma explicação um
pouco mais completa.

Será que então o homem não era quem dizia ser?

Não, não. Lembre-se do que Ruijerd disse.

Ele conheceu Gash em um edifício grande o suficiente para compará-lo ao


Castelo de Kishirisu. Isso seria muito grande para uma casa ou mansão, mas, e se
fosse a sede dos Cavaleiros Missionários? Provavelmente seria um grande edifício,
com muitos cavaleiros dentro dele o tempo todo… e se Gash fosse o comandante,
todos aqueles cavaleiros seriam seus subordinados. Isso explicaria por que Ruijerd
disse que ele tinha “muitos homens”.
Mas, claro, descobrir isso já não era mais lá muito útil. O Duque Bakshiel já
havia decidido que a carta era falsa. Já que as coisas chegaram até esse ponto,
dizer: “Sim, é uma farsa! Sinto muito por isso!” não seria muito bom para o nosso
grupo.

Dei um passo à frente.

— Em outras palavras, você acredita que esta carta seja uma falsificação,
senhor?

— E quem é você? — disse Bakshiel, olhando para mim com desconfiança. —


Não tenho tempo para tagarelar com crianças.

Uau. Essa era, de certa forma, uma coisa nova. Já fazia muito tempo desde que
alguém me desprezou, sabe? Quando eu queria ser tratado como uma criança, as
pessoas me tratavam como um adulto. Mas quando queria ser tratado como um
adulto, as pessoas me tratavam como uma criança. Mas que saco.

Mantendo esses pensamentos para mim, coloquei minha mão direita no peito e
me curvei ao estilo da nobreza Asurana.

— Minhas desculpas, senhor. Por favor, permita que me apresente. Meu nome
é Rudeus Greyrat.

Bakshiel deixou um ligeiro tremor atravessar suas sobrancelhas.

— Você disse… Rudeus… Greyrat?

— Isso mesmo. Apesar de me envergonhar ao admitir, sou uma parte pequena


e indigna do mesmo clã Greyrat que faz parte da alta nobreza de Asura.

— Hrm. Mas as famílias Greyrat usam os nomes dos antigos deuses do vento
para se distinguir, não é?

— Isso é verdade, senhor. Pertenço a um ramo da família e, portanto, não tenho


o direito de usar um desses nomes. — No instante em que as palavras “ramo da
família” deixaram minha boca, pude ver a cautela nos olhos de Bakshiel dando lugar
ao desdém. Mas antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, indiquei Eris com a
palma da minha mão. — No entanto, Lady Eris aqui é um uma parte legítima da
família Boreas Greyrat.

Quando bati levemente em suas costas, Eris também deu um passo à frente.
Ela me olhou surpresa por um momento, mas não entrou em pânico.

No início, cruzou os braços e abriu os pés na largura dos ombros, mas


rapidamente percebeu que isso não estava certo. Seu segundo impulso foi alcançar
a ponta da saia para poder fazer uma reverência; infelizmente, não estava usando
saia. Então, por fim, decidiu colocar a mão no peito e se curvar como eu.

— Sou Eris Boreas Greyrat, filha de Philip Boreas Greyrat. É um prazer


conhecê-lo, senhor.
Seu fluxo de ações parecia um pouco enferrujado. Além disso, eu senti como
se ela tivesse feito toda a última parte errada.

Olhei para a cara de Bakshiel. Era difícil dizer como ele estava reagindo, mas…
tanto faz. Só teríamos que nos apoiar na imensa influência da família de Eris.

— Hmph. E o que a filha de um família nobre Asurana está fazendo aqui, pode
dizer?

Essa com certeza era a questão mais óbvia do mundo. Felizmente, não havia
necessidade de respondermos com nada além da verdade.

— Senhor, você está familiarizado com a calamidade que se abateu sobre a


Região de Fittoa há cerca de dois anos?

— É claro. Muitos Asuranos foram teletransportados para todo o mundo, pelo


que eu soube.

— Isso mesmo. Eu e a jovem também fomos afetados.

Conforme expliquei a Bakshiel, escoltei Eris por todo o Continente Demônio,


com Ruijerd atuando como nosso guarda-costas contratado. Ao cruzar para o
Continente Millis, mal tínhamos conseguido pagar a viagem vendendo todos os
nossos ativos, mas não tínhamos fundos suficientes para pagar a viagem de Millis
ao Continente Central. O custo da passagem de Ruijerd, em particular, era
simplesmente alto demais.

Consequentemente, pedimos ajuda a Sir Galgard, já que ele era um velho


conhecido da família Greyrat e amigo pessoal de Ruijerd. Ele teve a gentileza de
nos escrever uma carta.

Essa história não era bem verdade, é claro. Mas parecia boa o suficiente.

— A jovem pode estar vestida como uma aventureira no momento, mas isso é
apenas porque não queríamos nenhum caipira percebendo que ela possui
nascimento nobre. Tenho certeza de que você pode entender os potenciais perigos,
Duque Bakshiel.

— Entendo — disse Bakshiel, com uma expressão bastante azeda na cara. —


Então é assim. Você está aliado ao “Esquadrão De Busca e Resgate de Fittoa” que
tem causado um monte de problemas em Millishion, não é?

— Uh… o quê? Não, não. Do que você está falando, senhor?

— Eu nunca ouvi o nome Eris Boreas Greyrat — disse Bakshiel com um distinto
guincho digno de um porco. — No entanto, conheço um certo Paul Greyrat; um
bandidinho que supostamente está roubando um monte de escravos.

Ah, mas que amável. Papai já criou até uma reputação.


— Duque Bakshiel, deixe-me ter certeza de que te entendi. Você acredita que
a carta de Sir Galgard é uma falsificação e Lady Eris não é parte real da alta nobreza
Asurana, é isso? E nos toma por meros lacaios desse libertino inútil chamado Paul
Greyrat, que bebe o dia todo, critica seu próprio filho, tem pés chulezentos e cria
preocupação sem fim à sua pobre filha?

— De fato.

Sério, mas que coisa mais horrível para se dizer. Paul estava tentando o seu
melhor lá fora. Claro, ele tinha suas falhas, e alguns de seus métodos podiam ser
bem imperfeitos. Mas ele estava sendo chamado de “inútil”? Isso era ofensivo!

— Posso perguntar por que você concluiu que o selo em nossa carta não é
autêntico? — perguntei, apontando para o envelope na mesa de Bakshiel.

O homem franziu a testa por um momento e acenou com a cabeça.

— Não é incomum que falsificações do selo do Cavaleiro Missionário circule no


mercado negro.

Sério? Foi a primeira vez que ouvi falar disso.

— E por que acha que minha empregadora, Lady Eris, não é quem ela afirma
ser?

— Hah. Você realmente esperava que eu acreditasse nesse monte de


baboseira sobre uma espadachim ser filha de uma família nobre?

Olhei para Eris, que assumiu sua pose usual de braços cruzados. Embora seus
braços não estivessem marcados por nenhuma cicatriz, estavam bronzeados e
eram mais musculosos do que os de um jovem aventureiro comum. Não era
exatamente o que se esperaria de uma pequena princesa superprotegida, claro.

— Ah — falei enquanto deixava uma risada escapar. — Parece que você não
está familiarizado com Sir Sauros.

— Sauros? Você quer dizer o lorde da Região de Fittoa?

Pelo visto ele reconheceu ao menos esse nome. Bom.

— Exato. Ele é o avô de Eris, e também o homem que escolheu cultivar seus
talentos com a espada desde muito jovem.

— O quê? Por que ele faria algo assim?

— Isso é uma espécie de segredo de família, mas… foi decidido há algum


tempo que Lady Eris se casaria com alguém da família Notos. E Sir Sauros detesta
o atual chefe daquela casa.

— Entendo.
Só para ficar bem claro, eu estava sugerindo que Eris havia sido treinada para
ser uma pequena guerreira selvagem, para que um dia pudesse matar o chefe da
família Notos enquanto ele dormia. Felizmente, a garota parecia intrigada com
minhas palavras. Se ela tivesse entendido o que eu estava dizendo, provavelmente
já teria arrancado alguns de meus dentes na base da pancada.

— Por essa razão, entre outras, a jovem deve retornar para Asura. Se você
insistir que ela é uma impostora, nós simplesmente teremos que voltar para
Millishion e entrar com um recurso junto às autoridades competentes.

Eu não tinha ideia de quem seriam as autoridades competentes neste caso, é


claro. Não era algo que me preocupei em pesquisar.

— Hmph. Se você quer que eu acredite em tudo isso, mostre-me algum tipo de
prova.

— A carta de Sir Galgad certamente é prova suficiente.

— Mas que absurdo. Você está andando em círculos.

— E daí se estiver? Olhe, Duque Bakshiel, você realmente quer tornar a família
Greyrat sua inimiga? — Merda. Eu nem sei mais o que estou dizendo.

Felizmente, a ameaça que deixei escapar parecia ter surtido algum tipo de
efeito, a julgar pelo quão severamente o Duque Bakshiel estava olhando para mim.

— Tudo bem. Vou permitir que você e a jovem reservem uma passagem.

— Mas nosso guarda…

— Por minha autoridade como duque, designarei alguns cavaleiros para


escoltá-los. Isso com certeza é melhor do que a proteção deste… demônio.

Comparado a conceder passagem a um demônio, Bakshiel preferiu nos


emprestar alguns de seus próprios homens. Ele parecia bem determinado a não
deixar Ruijerd passar, não importa o motivo. Eu não tinha visto esse tipo de coisa
com meus próprios olhos antes, mas a discriminação contra os demônios neste
continente era evidentemente pior do que tinha imaginado.

Que opções tínhamos neste momento? Devíamos simplesmente tentar


atravessar Ruijerd de outra forma? Eu podia muito bem imaginar outra batalha
sangrenta contra um grupo de contrabandistas acontecendo. Realmente não
parecia muito atraente…

Mas, no momento em que estava considerando minha resposta, ouvi uma


batida forte na porta.

— O que é? Estou ocupado — disse Bakshiel, parecendo um pouco


desconfiado.
A pessoa do lado de fora não esperou por permissão para entrar. Um mulher
loira com armadura azul abriu a porta e entrou no cômodo.

— Perdão. Disseram-me que um certo “Ruijerd do Fim da Linha” estava aqui.

— Mãe…?

Essa era Zenith.

— Hã?!

Todos os presentes, de uma só vez, se viraram para olhar para ela.

A mulher olhou para mim, parecendo um pouco irritada.

— Eu sou solteira. Não tenho filhos, muito menos um tão velho quanto você.

Como é que é? Ah, vamos lá, Mãe. Você perdeu a memória depois de termos
nos visto pela última vez? Ah, ela pode ter ficado cansada da falta de noção de
Paul…

Ao olhar mais de perto para a mulher, porém, comecei a notar alguns detalhes
em que ela diferia de minha mãe. Depois de anos separados, não conseguia me
lembrar muito bem de Zenith… mas o formato do rosto dessa mulher e a cor de seu
cabelo eram sutilmente diferentes. No final das contas, não era ela.

— Sinto muito. Minha mãe está desaparecida e você se parece muito com ela.

— Entendi…

Ótimo. Agora ela estava olhando para mim com pena em seus olhos. Talvez até
mesmo me considerasse uma criança perdida e solitária, ou qualquer coisa do tipo.
Atualmente, eu já não era mais tratado igual a uma criança com muita frequência,
mas ao menos ainda parecia com uma.

Com um guincho, o Duque Bakshiel olhou para a mulher com armadura.

— Bem, se não é a nossa Cavaleira do Templo recém-rebaixada. Precisa de


alguma coisa?

— Um Superd apareceu no território Millis. Qualquer membro diligente da minha


ordem viria correndo diante dessa notícia.

— Você ainda levará dez dias para assumir seu posto aqui. Não enfie o nariz
onde não é chamada!

— Onde não sou chamada? Que coisa estranha para se dizer, Duque Bakshiel.
Só para avisar, ainda não assumi oficialmente minhas funções aqui, mas meu
antecessor já partiu para Millishion. Quando surgem problemas em um posto de
controle, eles são problemas dos Cavaleiros do Templo, não são? Mesmo assim,
pareço ser a única Cavaleira do Templo nesta sala. Se importaria em me explicar
isso?

Essa crítica severa deixou o homem sem palavras. Ele gaguejou um pouco
conforme seu rosto ficava pálido.

— Uma equipe de dois líderes deve supervisionar a defesa de cada posto


alfandegário. Essa é uma regra rígida estabelecida pela Igreja Millis, Duque
Bakshiel. Você não pretende desafiar isso, ou pretende?

— Claro que não. Eu só pensei… Bem, você acabou de chegar aqui. Por que
não tira alguns dias para relaxar e se acostumar com a cidade?

— Isso não será necessário.

Pela expressão no rosto do Duque Porquinho, dava para pensar que ele estava
prestes a ser abatido. Eu realmente ia me esbaldar da próxima vez que comesse
carne de porco.

— Então. Se importa em explicar o que está sendo discutido aqui?

Resumindo, parecia que a cavaleira estava em pé de igualdade com Bakshiel.


Normalmente um duque estaria no topo da hierarquia aristocrática, mas no País
Sagrado de Millis, a Igreja era extremamente poderosa e tinha seus próprios direitos.
Esse sistema diferenciado provavelmente tinha algo a ver com o que estava
acontecendo.

— Bem, acontece que…

Ele simplesmente resumiu a situação. Às vezes, fazia comentários com base


apenas em suas próprias suposições, então tive que intervir com algumas
correções.

A cavaleira ouviu toda a história em silêncio, e depois olhou para o nosso grupo.

— Hm. Esse homem então é um demônio, não é…?

Ela semicerrou os olhos enquanto estudava Ruijerd, mas quando se virou para
Eris, sua expressão ficou instantaneamente mais suave.

E, por fim, ela cruzou olhares comigo… e colocou a mão no queixo, pensativa.

— Jovem, você pensou que eu fosse sua mãe, não foi? Posso saber o nome
dela?

— É Zenith. Zenith Greyrat.

— E do seu pai?

Olhei para a cara de Bakshiel. Cara, isso ia ser estranho…


— Paul Greyrat.

Compreensivelmente, o duque arregalou os olhos. Eu só teria que falar que meu


pai era uma pessoa diferente daquele monte de bosta em Millishion. Meu papai seria
basicamente um santo. Ele até me daria dinheiro se eu o socasse o bastante.

— Entendo — murmurou a cavaleira. E então, por algum motivo, ela se agachou


e colocou os braços em volta de mim.

— Hã?! — Isso foi, para não dizer mais, uma surpresa.

— Não consigo imaginar pelo que você passou… — Ela não estava apenas me
abraçando, mas também acariciando minha cabeça.

Não foi o mais suave dos abraços, graças à armadura que a mulher usava, mas
eu pelo menos estava sentindo um cheiro agradável de fragrância feminina.
Naturalmente, meu amiguinho lá embaixo… nem mesmo despertou. Huh.

O que houve, garotão? Achei que você amava o cheiro de uma mulher
ligeiramente suada. Ora, naquele outro dia, bastou uma fungada em Eris para
você…

Olhando para a jovem em questão, eu a vi nos fitando com os olhos bem abertos
e as mãos cerradas em punhos. Mas que aterrorizante.

— Um… senhorita?

Depois de afagar minha cabeça por algum tempo, a cavaleira voltou a se


levantar. E em vez de olhar em minha direção, se virou para encarar o Duque
Bakshiel.

— Vou levar esses três sob minha proteção pessoal.

— O quê?! — Bakshiel estalou. — Mulher, um deles é um demônio!

Vendo-a com o canto do olho, a cavaleira arrancou a carta de Ruijerd de minhas


mãos e rapidamente a examinou.

— Esta carta é autêntica, aliás. Reconheço a caligrafia de Sir Galgard quando


a vejo.

— Você vai ignorar os ensinamentos da Igreja Millis? Que tipo de Cavaleira do


Templo é você?

Neste ponto, Eris deixou escapar um breve “Ah!”. A cavaleira se virou para ela
por um momento e piscou.

Eu estava começando a me sentir completamente perdido…

— Eu sou uma capitã de companhia. E estou falando sério sobre isso.


— Pah! Uma capitã rebaixada por perder sua unidade toda!

— Hmph. E as suas próprias condições não são bem semelhantes? Não, erro
meu. Eu pelo menos completei minha missão, enquanto você simplesmente
abandonou seu dever.

O Duque Bakshiel cerrou os dentes e rosnou. Pelo que parece, também foi
designado a esse lugar como um tipo de punição. Depois de descobrir esse pequeno
detalhe, seu grande título na verdade parecia mais patético do que intimidante.
Agora havia algo parecido com puro ódio em seu olhar.

— Olha aqui, mulher. Não me importa o quão poderosa sua família seja. Este
tipo de insolência não vai…

Bakshiel não foi capaz de terminar sua frase. No meio do caminho, a cavaleira
curvou a cabeça para ele.

— Peço desculpas. Minhas palavras foram desnecessárias. Desde que fui


designada para cá, não tenho nenhum desejo de me colocar em conflito com você.
No entanto, este assunto específico possui um significado pessoal para mim. Espero
que perdoe minha grosseria.

Foi realmente impressionante. Ela disparou tudo o que queria dizer, mas logo
depois se desculpou. Qualquer um seria capaz de ver a raiva no rosto de Bakshiel
evaporando. Eu teria que tentar imitá-la da próxima vez que realmente irritasse
alguém.

— Significado pessoal?

— Sim — disse a cavaleira, com um breve aceno de cabeça para seu colega
confuso. Ela então colocou a mão no meu ombro. — Esse menino é meu sobrinho,
sabe.

Perdão?!

Therese Latria era a quarta filha da família Latria, uma parte crucial da nobreza
Millis. Ela também era uma cavaleira altamente promissora que ganhou o posto de
capitã dos Cavaleiros do Templo, mesmo sendo muito jovem.

O Conde Latria era seu pai. E Zenith Greyrat sua irmã.

Depois de saber que eu era parente consanguíneo de Therese, o rosto do


Duque Bakshiel assumiu uma expressão resignada. Com um suspiro relutante, ele
concordou em liberar a passagem do meu grupo para o Continente Central.
No momento, eu estava em uma pousada em Porto Oeste, envolvido pelos
braços de Therese.

Apenas Eris, Therese e eu estávamos no cômodo. Talvez sentindo que sua


presença poderia tornar as coisas estranhas, Ruijerd resolver se afastar por um
momento.

— Sabe, Rudeus, minha irmã me contou tudo sobre você nas cartas.

— Sério? O que ela disse sobre mim?

— Principalmente que você é adorável. Não posso dizer que foi a primeira
palavra que me veio à mente quando te vi naquele escritório, mas agora entendi.
Você é fofo como um botão de flor, isso mesmo! — Enquanto falava, Therese
esfregava o rosto afetuosamente em mim.

Foi uma experiência um tanto quanto incomum. Nos últimos treze anos,
algumas pessoas me descreveram como “assustador”, “atrevido” ou “suspeito”, mas
Zenith era a única que me chamava de fofo.

Em qualquer caso… apesar do fato de que eu estava sendo abraçado por uma
linda mulher com seios grandes, por alguma estranha razão a arma de fogo entre
minhas pernas não estava pronta para disparar nenhuma moeda.

Era só porque ela era minha parente?

— Therese, pode soltar o Rudeus?

Eris nos observou com o queixo apoiado em uma das mãos, tamborilando os
dedos contra a mesa, evidentemente irritada. Será que isso era ciúme? A vida de
um playboy não é nada fácil…

— Eu posso entender como você se sente, Senhorita Eris, mas não há como
dizer quando voltarei a ver Rudeus. E quando voltarmos a nos ver, ele
provavelmente terá perdido todos os vestígios da fofura que possui. Minhas sinceras
desculpas, mas gostaria de criar algumas lembranças com ele enquanto posso. —
Therese começou a me acariciar com ainda mais vigor do que antes, sem mostrar
nenhum sinal de arrependimento.

— Posso perguntar por que você está falando tão educadamente com Eris?

— Porque devo minha vida a ela. — Isso despertou meu interesse.

No dia em que Eris saiu para caçar Goblins perto de Millishion, ela
aparentemente resgatou Therese de um grupo de assassinos que a cercou. Therese
estava de plantão na proteção de certa “pessoa importante”; se Eris não tivesse
aparecido naquela hora, ela e sua protegida teriam perdido a vida.

Isso tudo era novidade para mim. Quando olhei para a garota, ela demonstrou
uma expressão um pouco envergonhada no rosto.
— Desculpa. Esqueci de te contar sobre isso…

Pelo que Eris me contou, assim que voltou para a pousada e viu como eu estava
deprimido, se esqueceu de tudo o que havia acontecido naquele dia. Então, no final
das contas, foi minha culpa, hein? Nesse caso, eu realmente não poderia reclamar.

Aliás, Therese ainda estava me acariciando como uma louca. Já que estava
sentada atrás de mim, era difícil dizer com certeza, mas aposto que a mulher tinha
uma expressão bem feliz no rosto. Com certeza foi meio estranho. Quer dizer, eu
tinha uma mulher pressionando seus seios contra mim e não estava nem
remotamente animado. Foi uma sensação muito… estranha.

— Brincadeiras à parte. Você é muito fofo, Rudeus. Eu poderia até te devorar!


— Desculpe, isso significa que você quer dormir comigo?
Como resposta a essa tentativa falha de humor, Therese cobriu minha boca
com a mão.

— Você com certeza fica mais bonito de boca fechada. Ouvir você falando me
lembra de Paul Greyrat.

Parecia que minha tia não era uma grande fã do meu pai. Me acariciando como
um cachorrinho, ela foi em frente e mudou de assunto.

— De qualquer forma… O Comandante Gash nunca muda, hein?


Ele devia saber como o Duque Bakshiel reagiria a uma carta como aquela, mas foi
em frente e mesmo assim a escreveu.

Galgard Nash Vennik era, na verdade, o homem no comando dos Cavaleiros


Missionários de Millis. Esta ordem era essencialmente uma força mercenária que
despachava jovens cavaleiros para regiões turbulentas do mundo, onde poderiam
ganhar experiência de combate real enquanto também espalhavam os
ensinamentos da Igreja Millis. No momento, eles estavam entre as campanhas e
retornaram a Millis para reforçar seus números com novos recrutas.

O amigo de Ruijerd, Gash, também conhecido como Galgard, era o líder deles
há algum tempo. Ele sobreviveu a uma expedição desastrosa ao Continente
Demônio quando era um jovem cavaleiro, e nas décadas seguintes, reformulou sua
ordem tornando-a na ordem mais forte que já existiu. Era um homem brusco e quieto
que raramente sorria, mas também era conhecido por sua justiça e imparcialidade
até mesmo com o pior dos vilões.

Em Millis, ninguém era considerado um cavaleiro de pleno direito até que


tivessem experimentado pelo menos uma expedição com os Cavaleiros
Missionários. Essas campanhas costumavam ser altamente perigosas. Mas com
Gash no comando, mais de noventa por cento dos jovens cavaleiros enviados agora
voltavam vivos. Esta era a razão pela qual muitos o saudavam como o maior
comandante que a ordem já teve. Cada cavaleiro das três ordens militares sagradas
respeitava Gash profundamente. Muitos até mesmo deviam a vida a ele.

— Claro, ele também é famoso por escrever pouco e falar menos ainda.

No campo de batalha, o homem dava ordens com rapidez e precisão, mas na


maioria das outras vezes ficava apático demais para retribuir a saudação de um
oficial. Ele quase nunca escrevia cartas de qualquer tipo, e apenas carimbava
relatórios que os outros escreviam. Sua letra tinha sido vista por tão poucas
pessoas, que documentos supostamente escritos por ele rotineiramente
começavam a circular.

Ruijerd o havia descrito como um homem falante e apaixonado. Mas, claro, o


Superd também era muito calado. Talvez seus padrões de “falante” fossem
diferentes dos nossos… ou talvez Gash apenas agisse de forma diferente perto dele.

— Tá, olha — Eris interrompeu. — Você não vai soltar ele nunca?
Eu pude ver que a garota já estava a cerca de cinco segundos de explodir, então
finalmente saí do alcance de Therese.

— Aww… meu querido e caloroso Rudeus… — Minha tia parecia levemente


desolada, mas eu não era seu travesseiro de corpo. E não era como se eu estivesse
realmente gostando da experiência, de qualquer forma.

— Venha aqui, Rudeus!

Assim como ordenado, sentei-me ao lado de Eris. Ela prontamente agarrou


minha mão.

— Um…

Em poucos segundos, a garota ficou corada até as orelhas. Olhando para o lado
de seu rosto enquanto ela olhava para frente, não pude deixar de sorrir.

Therese, por outro lado, estava ocupada socando um travesseiro na cama.


Compreensível, mas por que não socar a parede em vez disso? Isso, de acordo com
minha experiência, era muito mais satisfatório.

— Hah… aproveitem a juventude enquanto a têm, crianças. — Therese


balançou a cabeça e suspirou, depois olhou para nós com uma expressão mais
séria. — Certo. Há uma coisa sobre a qual gostaria de avisá-lo, Rudeus. Pode não
importar muito, já que você está prestes a deixar Millis, mas acho que precisa estar
ciente disso.

Ela fez uma pausa por um momento após essa longa introdução, e então
continuou com firmeza:

— Seria mais inteligente se você não mencionasse a palavra Superd dentro das
fronteiras deste país.

— Por quê?

— Um dos ensinamentos mais antigos da Igreja Millis afirma que os demônios


devem ser totalmente expurgados.

Isso, especificamente, significava que todos os demônios deveriam ser


expulsos do Continente Millis. No momento, era uma espécie de doutrina morta que
poucos levavam a sério, mas os Cavaleiros do Templo ainda estavam se esforçando
para colocá-la em prática. E, claro, os Superds eram particularmente infames,
mesmo entre as raças de demônios. Se a notícia de algum se movendo por Millis se
espalhasse, os Cavaleiros apareceriam atrás dele com tudo o que tinham – mesmo
se não fosse realmente o que dissesse ser.

— Dado tudo o que ele fez por você e Eris, vou abrir uma exceção nesse caso.
Mas, normalmente, eu não teria olhado isso só por cima.

— Não seja ridícula — disse Eris friamente. — Vocês não venceriam Ruijerd
nem em um milhão de anos, não importa quantas pessoas fossem.
— Suponho que você esteja certa sobre isso, Senhorita Eris — disse Therese,
sorrindo ironicamente. — Mas, infelizmente, os Cavaleiros do Templo são um bando
de fanáticos. Inclusive eu. Nós travaríamos essa batalha, mesmo se soubéssemos
que não teríamos chance.

Aparentemente, existiam algumas pessoas assim entre os Cavaleiros Sagrados


de Millis. E, assim, ela enfatizou, devíamos ter muito cuidado se por acaso
voltássemos a este continente.

Todo esse incidente realmente mostrou como eram profundos os preconceitos


da humanidade em relação aos demônios. Achei que, desse ponto em diante, seria
difícil melhorar a reputação dos Superds.

Além do mais, se descobrissem que eu venerava Roxy como uma deusa,


poderiam acabar me tornando alvo de torturas e inquisidores, ou algo assim.
Provavelmente seria melhor manter minha religião pessoal só para mim mesmo.

Nossa travessia pelo mar, desta vez, foi tranquila.

Minha tia certificou-se de que estávamos bem preparados para a viagem. Ela
não só forneceu todas as provisões de que precisaríamos, como até nos deu algum
tipo de remédio para enjôo. Eu tinha a impressão de que a medicina era um campo
negligenciado neste mundo, mas, evidentemente, não dependiam da magia de cura
para tudo. Existiam ao menos alguns tipos de remédios.

Mas, ainda assim, os medicamentos não eram baratos. Ainda bem que eu tinha
parentes em cargos importantes.

Therese teve um cuidado especial para atender todas as necessidades de Eris.


Ela sempre demonstrava alguma hostilidade no olhar quando fitava Ruijerd, mas o
que eu poderia fazer? As pessoas não mudam toda a sua perspectiva do mundo da
noite para o dia.

Graças ao remédio que Therese conseguiu, Eris passou a maior parte de nossa
viagem um pouco desconfortável, em vez de completamente miserável. O que
indicava que não estava me implorando para usar a Cura nela o tempo todo.

Para ser totalmente honesto, isso foi um pouco decepcionante. Eu queria ver
ela toda mansa e manhosa de novo. Mas, pelo lado positivo, meu medidor não
carregou, não soltei meu Buster Wolf e Eris não precisou me acertar com um Sunny
Punch1. As coisas só correram como sempre.

Eris parecia um pouco ansiosa depois da última vez, já que grudou em mim feito
cola quando entramos no barco. Ela definitivamente não ficou “mansa” em nenhum
momento, mas pelo menos pude vê-la pulando de alegria enquanto olhávamos para
o mar. Isso já era bom o bastante para mim.
Entretanto, um dos marinheiros aproveitou a oportunidade para nos provocar.

— E aí, pombinhos! Vocês dois vão se juntar as meias no Reino do Rei Dragão
ou o quê?

— Pode apostar — falei, colocando um braço em volta dos ombros de Eris e


sorrindo. — Vai ser um casamento daqueles.

Neste ponto, Eris me deu um soco na cara.

— A-ainda está muito cedo para nos casarmos, idiota!

Apesar da violência, ela não parecia tão chateada com a ideia em si, a julgar
pela maneira como se moveu depois. A parte da “provocação” foi provavelmente o
principal problema.

Se eu quisesse tocar nesse assunto, deveria ser em um lugar agradável e


tranquilo, com apenas nós dois, e só quando o clima apropriado fosse estabelecido.
Eris já tinha se tornado uma espadachim monstruosa, mas ainda era uma donzela
inocente nos caminhos do romance.

Ainda assim… casamento, hein?

Philip e os outros com certeza queriam nos juntar. Mas, agora, ninguém sabia
onde eles estavam. Paul disse para não ficar muito otimista…

E não eram apenas Philip, Sauros e companhia, claro. Zenith, Lilia e a pequena
Aisha também estavam desaparecidas. E também não tínhamos notícias de Sylphie.
Caramba, sequer sabíamos se Ghislaine ainda estava viva. Havia tantos motivos
para ficar ansioso.

Ainda assim, eu não poderia me deixar afundar no pessimismo. Quando


voltássemos para Fittoa, talvez estivessem todos esperando por nós, sãos e salvos.

Eu sabia que a ideia era absurda. Sabia que não era nem remotamente
provável. Mas, ao mesmo tempo, arrancar os cabelos de preocupação não ia
adiantar de nada. Isso era, ao menos, o que eu falava para mim mesmo.

Para o bem ou para o mal, deixamos o Continente Millis para trás.


Capítulo 07.5 - Interlúdio –
O Regresso de Roxy

Mais ou menos na mesma época que Rudeus e seu grupo zarparam de Millis,
Roxy Migurdia estava voltando para sua cidade natal pela primeira vez em muitos
anos.

O vilarejo Migurd não mudou nada. E todos aqueles que ela conhecia pareciam
também não terem mudado. Havia mais residentes do que antes, talvez, mas ainda
era um lugar assustadoramente silencioso.

Quando criança, Roxy não achava esse silêncio estranho, mas agora que tinha
viajado pelo mundo todo, podia dizer confiantemente que isso era bem incomum.
Neste vilarejo, era difícil ouvir qualquer voz que fosse. E, ainda assim, seu povo se
comunicava perfeitamente o tempo todo.

Quando os residentes avistaram Roxy, ficaram apenas lá, parados e olhando.


Ela sabia que estavam tentando se comunicar por telepatia, a habilidade única inata
que separava a raça Migurd das demais raças de demônios. Mas não fazia ideia do
que estavam falando. Tudo que ela era capaz de ouvir era um tipo de zumbido bem
fraquinho. Roxy não conseguiu responder às palavras deles.

Depois de algum tempo, seus pais apareceram. Os anos também não pareciam
ter passado para eles. Saudaram a filha com palavras alegres e perguntaram,
repletos de preocupação, se ela tinha feito todo o caminho até lá sozinha.

Elinalise e Talhand escolheram esperar fora do vilarejo. Talvez tivessem


pensado que Roxy gostaria de ter um pouco de privacidade.

Ela contou sobre suas viagens aos seus pais, sempre mantendo aquela mesma
voz calma e desapaixonada. Eles expressaram surpresa com sua história e, com
alívio em seus rostos, disseram-lhe para ficar o tempo que quisesse.

Mas a maga se sentia fora do lugar – mesmo enquanto falava com seus próprios
pais. As palavras de preocupação e boas-vindas que eles expressaram foram todas
pronunciadas em uma língua que lhes era estranha. Seu povo nunca falava nada
com a própria boca, especialmente quando queriam demonstrar amor ou afeto.

Era perfeitamente possível que seus pais estivessem preocupados com ela do
fundo do coração, mas não tinham como transmitir isso a Roxy. A maga não podia
usar telepatia, então não conseguia receber as mensagens deles.
Isso a fez se sentir terrivelmente sozinha.

Ficar neste lugar por qualquer período de tempo seria doloroso demais. Ela
ficaria apenas remoendo o fato de que não era uma parte real do povo Migurd, então
decidiu partir de novo na mesma hora.

— Você já vai mesmo? — perguntou seu pai com uma expressão preocupada.

— Sim.

— Você não pode ficar pelo menos uma noite?

Roxy balançou a cabeça, inexpressiva.

— Sinto muito, mas esta jornada é realmente urgente. Mas acabei passando
aqui, já que estava por perto.

— E quando você voltará, querida?

— Não sei — respondeu Roxy, honestamente. — Talvez eu não volte.

E então foi a vez de sua mãe parecer preocupada.

— Roxy… você não consegue começar a nos visitar ao menos a cada vinte
anos?

— Imagino — respondeu de forma evasiva. — Bem, talvez eu apareça dentro


dos próximos cinquenta anos.

— Sério? Você promete? Vamos te esperar.

— Tudo bem — disse Roxy, balançando a cabeça vagamente.

Nesse ponto, ela percebeu que sua mãe começou a chorar bem baixinho.

— Uh… Mãe…?

— Ah, sinto muito. Eu me prometi que não iria chorar, mas… Sinto muito,
querida…

Ao ver aquelas lágrimas, algo dentro de Roxy ruiu. Antes que ela percebesse,
estava abraçando sua mãe com força, e então seu pai passou os braços em volta
das duas.

Naquele momento, a maga finalmente percebeu que palavras e linguagens não


significavam tanto assim. No final, ficou no vilarejo Migurd por cerca de três dias. E,
pela primeira vez em muito tempo, conseguiu relaxar um pouco.
O “Mestre do Canil” do Fim da Linha era, na verdade, Rudeus Greyrat.

Levou algum tempo até que Roxy aceitasse isso.

Depois de chegar ao Continente Demônio, seu grupo viajou constantemente


para o norte em busca de informações sobre Rudeus. Quanto mais para o norte,
mais pessoas reconheciam seu nome.

Roxy estava se aproximando, mas, ao mesmo tempo, parecia que havia algo
de estranho acontecendo. Todos que viram Rudeus o descreveram de maneiras que
se sobrepunham às histórias sobre os imitadores do Fim da Linha. No curso de sua
jornada, Talhand várias vezes apontou para o fato de que o garoto poder lançar
feitiços não verbais parecia exatamente com o que o Mestre do Canil daquele grupo
fazia.

Na verdade, Roxy tinha percebido isso desde o começo. Ela só não queria
admitir que havia cruzado o caminho de seu aluno e não percebeu.

Quando chegaram à cidade de Rikarisu, no entanto, não teve escolha a não ser
aceitar. Naquela cidade, soube do “Incidente do Fim da Linha” que aconteceu lá há
dois anos. E também ouviu a história de um homem chamado Nokopara, com quem
já havia feito um grupo no passado. Dado o que seus pais lhe disseram quando ela
parou em seu vilarejo… todas as peças se encaixavam. Roxy simplesmente teve
que admitir a verdade.

O Mestre do Canil só podia ser Rudeus.

No momento, Roxy estava em um bar de Rikarisu com seu velho camarada


Nokopara.

Quando ela perguntou sobre Rudeus, ele inicialmente hesitou em falar muito.
Parecia que, em algum momento, o homem tinha começado a trabalhar de um modo
meio desrespeitoso. Mas não era Roxy quem iria o julgar por isso. No Continente
Demônio, cada um fazia o que conseguia para poder sobreviver.

— Entendo… Então Blaze morreu no trabalho, hein…?

— Aham. O pobre coitado foi engolido vivo por uma Cobra Capuz-Vermelho.

Passaram-se anos desde que Roxy deixou o Continente Demônio; os dois


tinham muito que pôr em dia. E, ainda assim, se pegaram falando principalmente
sobre os velhos tempos.

Fechando os olhos, pensou em Blaze. O homem tinha cara de porco e uma


boca suja; ele a xingava sempre que ela errava. Ainda assim, lá no fundo, não era
um cara mau, e seria difícil encontrar um guerreiro mais confiável.
De acordo com Nokopara, no momento de sua morte, Blaze já era o líder
veterano de um grupo de rank B. E, no Continente Demônio, essa era uma enorme
conquista. Roxy ficou impressionada com o quão longe seu velho colega de boca
suja havia chegado. Ao mesmo tempo, porém, seu grupo aparentemente se
chamava Super Blazers. Sério? O homem nunca foi bom em nomear as coisas.

Em qualquer caso, Nokopara disse que o monstro que exterminou a equipe de


veteranos de Blaze foi então morto por Rudeus e seu time, que tinha acabado de
formar seu próprio grupo. Em outras palavras, ele derrubou um monstro de rank A
logo depois de se tornar um aventureiro.

Não existia uma chance, sequer das mais remotas, de que Roxy pudesse ter
feito isso nos seus velhos tempos. Mas isso com certeza soava como algo que
Rudeus faria. O pensamento fez com que um sorrisinho se formasse em seu rosto.

Bebendo sua bebida, uma tipicamente forte do Continente Demônio, Nokopara


murmurou:

— Você realmente mudou, Roxy.

Ela olhou para seu reflexo em sua bebida e se perguntou se isso era verdade.

— Mudei? É meio difícil para mim dizer.

— É. Você parece muito mais adulta do que antes.

— O quê? Você está tirando sarro de mim ou algo assim? — Quando ela
começou a se aventurar com Nokopara e Blaze, já tinha a aparência de um Migurd
adulto. E, desde então, seu rosto e corpo não mudaram muita coisa. Ela estava
perfeitamente ciente de que sua aparência era quase a mesma.

— Nah, é sério! É, tipo, sua vibração, eu acho. Você costumava ser mais infantil,
sabe?

— Bem, eu já passei por várias luas, sabe? Mesmo não parecendo. — Roxy
deu de ombros, jogou um punhado de salgadinhos assados na boca e mastigou.
Essas coisas eram, na verdade, sementes de Ente de Pedra. Ela não os achava
particularmente saborosos, mas por algum motivo era difícil parar de enfiá-los na
boca depois de começar.

— Mas é disso mesmo que estou falando. Antigamente, você costumava


ficar desesperada para que todos pensassem em você como uma adulta e
provavelmente ficaria nas nuvens se escutasse algo tipo o que falei.

— É sério…? É, acho que já fui assim mesmo.

Isso foi quando ela não entendia corretamente suas próprias habilidades e
limitações. Naquela época, Roxy trabalhava furiosamente para convencer as
pessoas de que era adulta e também alguém a ser levada a sério. Se gabava de
seu talento como maga e de sua competência em todos os aspectos da magia. Ela
insistia que era capaz de fazer qualquer coisa.
Sua opinião sobre si mesma havia sido completamente invertida desde então,
mas a reputação que construiu continuou a se espalhar por conta própria.
Atualmente, parecia que as pessoas estavam constantemente esperando que ela
fizesse coisas que não podia fazer. Roxy estava recebendo muitas reações de
surpresa de pessoas no Continente Demônio, sempre que falava que era a ex-
professora de Rudeus. Por algum motivo, o garoto dizia a todos que devia suas
habilidades “aos ensinamentos de sua mestra”. Naturalmente, presumiram que a
maga também deveria ser capaz de lançar feitiços não verbais, o que
definitivamente não era.

Talvez o próprio mestre de Roxy, que uma vez a rebaixou de diversas formas,
tivesse experimentado sentimentos semelhantes a estes. Se fosse esse o caso, se
sentiria mal sobre como tinha reagido. Era difícil ser mentor de alguém mais
talentoso do que si mesma. Pelo visto, era necessário experimentar por si mesma
antes de realmente entender.

No caso de Roxy, além de ser uma fonte de orgulho, também era de


constrangimento. Ela não queria mais que Rudeus parasse de chamá-la de sua
mestra, mas, por algum motivo, o fato de que ele ignorou totalmente suas ordens
nesse caso a deixou meio que feliz.

— De qualquer forma, você não mudou nada, Nokopara.

— Ah, é?

— É. Exceto fisicamente, é claro.

O homem sempre foi louco por dinheiro e tinha a tendência de infernizar os mais
fracos, e obviamente continuava o mesmo. Antigamente, Roxy sempre pensava que
ele era a última pessoa de quem queria se tornar inimiga.

— Ei, o que isso quer dizer? Quer dizer que já estou ficando todo babão e
enrugado?

— Pode-se dizer que sim. Você envelheceu, Nokopara. E ficou enrugado.

— Hah! Você tem uma boca e tanto, garota! — Nokopara soltou um relincho
sarcástico, depois suspirou. — Cara, isso realmente me lembra…

— Eu sei o que você quer dizer.

Antigamente, haveria mais dois nesta mesa: um menino que estava sempre
xingando Nokopara, sem parar, e outro que interrompia suas brigas enquanto
suspirava. Agora, os dois já tinham partido, deixando apenas dois ex-aventureiros
de meia-idade para trás.

Claro, nenhum tinha envelhecido tanto, graças às suas raças, mas os velhos
tempos nunca voltariam. Isso era certo.

Os dois acabaram conversando sobre os velhos tempos por horas, até que
Nokopara finalmente ficou bêbado e caiu sob da mesa.
Roxy tinha visto seus pais, e agora um conhecido muito antigo. Isso por si só
significava que sua viagem até ali não tinha sido uma total perda de tempo. Ela
estava verdadeira e profundamente feliz por ter feito essa jornada.

Será que Rudeus já tinha alcançado Millishion? perguntou-se Roxy.

Supondo que tinham se cruzado em Porto Vento, ele provavelmente já tinha


deixado este continente há uns seis meses. A estação das chuvas estava prestes a
começar, é verdade… mas a Estrada da Espada Sagrada era um caminho seguro
e fácil de seguir. A menos que tivesse parado em um assentamento de Elfos ou
Anões, seu grupo certamente já teria chegado à cidade.

Em outras palavras, desde o começo ela não precisava ter saído em sua
procura. Exatamente como Paul presumira naquela carta, o garoto podia se virar
sozinho.

Ele abriu caminho através de todo o Continente Demônio em um instante, junto


com aquela garota chamada “Eris” com quem foi teletransportado. A maioria dos
viajantes se tornaria vítima dos perigos locais ou sofreria para avançar, mas ele fez
com que tudo parecesse fácil. Além de tudo, de alguma forma recrutou um Superd,
algo que Roxy sempre temeu, para seu grupo.

— Seu pupilo é um garoto impressionante, Roxy.

— De fato. Mal posso acreditar que o Paul é mesmo o pai dele.

Elinalise e Talhand não se cansavam de fazer elogios.

No entanto, da maneira como Roxy via as coisas, realmente não importava


quem era mestre ou pai dele. O garoto foi um prodígio desde o começo. Ele poderia
muito bem ter feito tudo isso, mesmo sem nunca ter a conhecido.

Mas, deixando tudo isso de lado…

— E aí, o que fazemos agora?

Roxy fez uma pausa para considerar a pergunta de Elinalise. O objetivo inicial
desta jornada era encontrar Rudeus, mas ele provavelmente já estava seguro em
Millishion. Ela queria muito vê-lo, mas, ao mesmo tempo, não queria abandonar seu
objetivo maior.

— Vamos procurar na região noroeste do Continente Demônio.

Eles rastrearam Rudeus, mas os outros três membros de sua família ainda
estavam desaparecidos. Na estrada, já tinham encontrado vários humanos
deslocados da Região de Fittoa; provavelmente também teria alguns na região
noroeste.
— Tem certeza que não quer ver seu pupilo? — perguntou Talhand.

— Sim, tenho certeza — disse Roxy com um breve aceno de cabeça. Parando
para pensar, e se Rudeus descobrisse que ela havia passado por ele sem nem
mesmo perceber? Isso seria muito humilhante. Sua posição como sua “mestra” já
era bastante instável. — Há muitas cidades no Continente Demônio que ainda não
verificamos. Vamos continuar passando por elas, uma a uma, assim como já temos
feito.

Talhand e Elinalise apenas se entreolharam e riram.

De uma forma ou de outra, a viagem de Roxy Migurdia ainda não havia


terminado.

Capítulo 07.6 - Extra I –


Carne de Dragão, Estilo
Nanahoshi

Tínhamos chegado à cidade de Porto Leste no Reino do Rei Dragão – a maior


cidade portuária do mundo inteiro.

As pessoas falavam a mesma língua que no País Sagrado de Millis, mas os


nomes e a aparência das lojas eram sutilmente diferentes. Ainda assim, esta era a
quarta cidade portuária que eu via, então o lugar realmente não parecia nada novo.
Assim que saímos do barco, comecei a trabalhar na tarefa rotineira de encontrar
uma pousada.

Enquanto caminhávamos pela rua, no entanto, Eris fez uma pausa e murmurou:

— Algo cheira bem.

Hmm. Tipo o cheiro do seu pescoço depois de um treino? Sabe, esse é um dos
meus preferidos. Mas, com uma fungada no ar, entendi o que Eris quis dizer.
Certamente havia um aroma tentador flutuando ao redor da área.
Olhei para cima, em direção do sol lá no céu. Assim que parei para pensar, notei
que meu estômago estava meio vazio.

— Acho que já deve ser hora do almoço.

— Sim… — Eris concordou, balançando a cabeça ligeiramente.

Nós dois estávamos com o olhar fixo em um restaurante que parecia ser a fonte
desse cheiro interessante. Sua fachada não era nada promissora. As paredes de
tijolos estavam em péssimo estado, com buracos visíveis aqui e ali, e a placa de
madeira estava tão suja e gasta que era impossível de ler. Até a porta da frente
estava prestes a cair das dobradiças. Parecia mais uma casa abandonada do que
um restaurante requintado.

Entretanto, o cheiro saindo lá de dentro era outra história. Não era o tipo de
fragrância rica que faria um homem ficar com água na boca na mesma hora, mas
havia algo de nostálgico nisso. Senti meu estômago roncar.

— Quer entrar lá?

A pergunta de Ruijerd me assustou um pouco. Eu estava indo na direção do


restaurante mesmo sem perceber.

— Sim… Algum problema?

— Você não vive dizendo que devíamos comer apenas em lugares bem
arrumados?

Eu me lembro de ter dito algo nesse sentido, sim. Mas isso foi lá no Continente
Demônio, onde aqueles lugares visualmente pobres só tinham comidas horríveis.
Às vezes aparecia alguma exceção à regra, onde tudo acabava sendo melhor que
o esperado, mas… de uma forma ou de outra, eu normalmente não colocaria meus
pés em um lugar destes.

Por alguma razão, porém, realmente me senti atraído por este.

— Uma mudança de ritmo não vai machucar, certo?

— Bem, que seja…

Com Ruijerd e Eris me seguindo, empurrei a porta da frente. Ela protestou


fazendo barulho contra o tratamento cruel e incomum que sofreu.

Sem surpresa, o restaurante em si também era bem sujo. Bom…, talvez “sujo”
não fosse bem a palavra certa. Parecia limpo o suficiente ao menos para um lugar
onde as pessoas iriam para comer. Mais do que qualquer outra coisa, era
apenas pobre. Parecia que faltavam pernas em metade das cadeiras, a maioria das
mesas estava rachada e havia buracos por todo o chão.

Como era de se esperar, não havia outros clientes lá dentro.


— O lugar é todo nosso — murmurou Eris alegremente. Creio que ela não viu
nada de suspeito quanto a um restaurante estar totalmente vazio na hora do almoço.
Mas isso era o bastante para me deixar ansioso, é claro. Mas, por algum motivo,
meu senso de expectativa ainda estava forte.

— Bem-vindos, pessoal… — Quando nós três sentamos, um homem magro


feito um esqueleto se aproximou de nós com um cardápio. Será que era ele quem
dirigia o lugar? Bem, seu rosto era bem sombrio. Digo, era óbvio à primeira vista que
o estabelecimento não estava tendo muito sucesso, mas não faria mal pelo menos
mostrar um sorriso amarelo para os clientes…

— Rudeus, você tem certeza de que não devemos reconsiderar isso?

Uau. Não era todo dia que Ruijerd ficava me questionando assim. Mas, ainda
assim, não podíamos sair por aí julgando as pessoas por suas aparências, certo?

— Bem, bem. A comida pode ser deliciosa, não acha?

Sorrindo sem jeito com minhas palavras, o homem esquelético abriu seu
cardápio para nós. Havia apenas dois itens listados nele:


o Carne de Dragão, Estilo Nanahoshi


o Moqueca de Peixe Alba

Em Millishion, os restaurantes normalmente ofereciam mais de dez opções de


escolha. Mesmo os bares que se concentravam principalmente nas bebidas
ofereciam um pouco mais de variedade do que isso. Mas havia um lado bom, os
preços deste lugar eram baixos. Talvez isso compensasse tudo.

— E aí, pessoal?

Então a escolha era carne ou peixe, hein?

O Peixe Alba era uma espécie nativa dos mares do sul. Era algo padrão na dieta
das pessoas nesta parte do mundo; eu já tinha experimentado isso em Porto Oeste.
O cardápio dizia que era uma “moqueca”, mas, nesse caso, provavelmente seria só
uma espécie de sopa com peixe e legumes. Era supostamente um prato muito
comum no Reino do Rei Dragão.

Por outro lado, tínhamos “Carne de Dragão, Estilo Nanahoshi”. Eu nunca tinha
ouvido falar disso antes. Só sabia que o Dragões residiam em uma cordilheira
próxima que foi nomeada em sua homenagem. Diziam que eles eram capazes de
manipular até a gravidade. Essa era realmente a carne daqueles monstros? Ou será
que era algo com um gosto bem parecido…?

Além disso, o que “Nanahoshi” significava? O termo era totalmente novo para
mim, embora soasse quase… Japonês. Claro, eu não estava muito familiarizado
com as várias cozinhas deste mundo. Talvez fosse um método de culinária popular
no Reino do Rei Dragão.

De uma forma ou de outra, definitivamente chamou minha atenção.

— Vou querer a carne.

— Eu também.

— Então serão três porções de carne.

Assim que seus carnívoros clientes fizeram seus pedidos, o homem esquelético
desapareceu para dentro da cozinha, sempre inexpressivo.

Não forneciam nenhuma água da casa, mas não era como se eu esperasse
algo diferente. Era uma regra meio que geral, ninguém ganhava nada de graça neste
mundo. Isso exigia algum autoatendimento. Criei copos com magia da Terra, os
enchi com água e entreguei para Ruijerd e Eris. Com alguns cubos de gelo, seriam
o melhor tônico existente para um corpo cansado.

Eris engoliu o conteúdo de seu copo em segundos, mastigou o gelo e estendeu


o recipiente para mim.

— Rudeus, mais.

Balançando minha cabeça tristemente, voltei a encher o copo para ela.


Normalmente, poderia ter dito para que lançasse o feitiço por si mesma,
mas estávamos dentro de um restaurante. Não havia razão para arriscar bagunçar
tudo e inundar o lugar.

Como sempre, Ruijerd estava apenas bebericando sua água. O homem comia
rápido, mas sempre demorava para beber.

— De qualquer forma, não parece que existe muita informação a ser coletada
nesta cidade, não é?

— Acho que não. Eu meio que queria dar uma olhada melhor nas espadas, mas
talvez devêssemos simplesmente seguir para a próxima cidade.
Havia uma grande variedade de armas de lâminas sendo vendidas no lugar.
Havia até mesmo uma barraca de beira de estrada com uma enorme variedade de
espadas sendo exibida. Eris ficou com os olhos brilhando só por ter visto, mas logo
percebeu que eram todas peças de lixo, que seriam vendidas apenas a iniciantes
que não sabiam de nada. Suas habilidades como lutadora haviam melhorado muito,
mas isso não significava que poderia distinguir uma espada boa de uma ruim à
primeira vista. Isso não era tão surpreendente, sério.

— Ei! Estou entrando!

Nossa conversa foi abruptamente interrompida por um grande estrondo.


Alguém havia aberto a porta. Um homem com aparência de bandido entrou no
restaurante sem nem mesmo tirar os sapatos. Mas não era como se alguém fizesse
isso. Então não era realmente nada de demais.

Ao som da voz do intruso, o homem esquelético emergiu da cozinha.

— Shagall…

— E aí, Randolph! Já decidiu tomar a decisão certa hoje?

— Minha resposta não vai mudar, não importa quantas vezes você pergunte.
Poderia simplesmente ir embora, por favor?

— Hah! Por quanto tempo vai manter esse lugar vazio funcionando, cara?

— Até eu morrer, claro. Isso é da minha família há gerações…

A partir da conversa, eu poderia dar um palpite razoável a respeito da situação.


Para encurtar a história, esse negócio estava lutando para sobreviver. O proprietário
provavelmente havia feito todos os tipos de empréstimos apenas para manter as
portas abertas. Este bandido devia ser algum especulador suspeito que queria
comprar o terreno barato ou algo assim.

— Espere ao menos um pouco. Tenho clientes no momento.

— Clientes? Ah, uau, você realmente tem. Mas que visão mais rara!

— Não vou desistir deste lugar, não enquanto eu tiver um único cliente.

— Hah! — Roncando enquanto ria, o bandido se jogou em uma das cadeiras


vazias. Com um olhar de soslaio em sua direção, o homem esquelético voltou para
a cozinha.

Definitivamente parecia que os tempos estavam difíceis. Eu não sabia de todos


os detalhes, é claro, mas se a comida fosse boa, talvez pudéssemos tentar espalhar
a palavra sobre este lugar.

— Aquele homem está nos encarando…


Tive a sensação de que Eris poderia reagir de forma exagerada a qualquer
contato visual do sujeito, então fui em frente e cobri seus olhos com as mãos. Um
problema como esse precisava ser resolvido pelo poder da comida, não por seus
punhos furiosos.

— Ei! Rudeus! Não consigo ver!

Agh. Espera. Isso aí não é meu pulso, Eris! Ah, meus ossos. Meus pobres e
delicados ossos…

— Desculpem pela demora, pessoal.

Enquanto eu estava brincando com Eris, nossa comida saiu da cozinha… e


arregalei meus olhos diante da visão.

— Sem chances…!

“Carne de Dragão, Estilo Nanahoshi” era aparentemente uma refeição dividida


em três porções.

Em primeiro lugar, havia uma espécie de sopa de vegetais transparente. Eu


poderia dizer à primeira vista que teria um sabor simples e refrescante.

Isso era bom. Conteúdo padrão. Mas as outras duas partes eram uma história
diferente.

Primeiro, à esquerda, tínhamos um alimento básico que eu não tinha visto


nenhuma vez depois de chegar a este mundo. Era arroz! O imperador de todos os
grãos!

Não… espera. Pensando bem, a cor não parecia ser a certa. Parecia que tinha
alguns outros grãos na mistura. Certo, então era arroz multigrãos. Fazia tanto tempo
que eu não via nada desse tipo que fiquei até um pouco confuso.

Em todo caso, isso certamente explicava por que o cheiro que vinha daquele
lugar era tão nostálgico. Naquela hora, o homem devia estar cozinhando arroz. Não
era de se admirar que fui atraído como um ímã.

Finalmente, havia a terceira parte de nossa refeição. Isso consistia em pedaços


marrom-dourados de produtos fritos. Em outras palavras…

Era, sem dúvidas, karaage.

Então… embora a sopa não fosse exatamente missô, e o arroz não fosse
exatamente branco… essa era uma refeição clássica de karaage.

— Não acredito!

— O que foi, Rudeus…? — Eris estava olhando para mim com dúvida.
Compreensível, já que eu estava tremendo e segurando a mesa com as duas mãos.
— Uh, foi mal… Não foi nada.

Nunca imaginei que comida frita ao estilo japonês existiria neste mundo. Os
céus realmente estavam sorrindo para mim! Talvez aquele maldito Deus Homem
estivesse finalmente começando a entender o que eu queria da vida.

Então tá bom! Vamos lá! Hora de comer! Agora!

Juntando minhas mãos, fiz uma rápida oração de agradecimento a todos os


espíritos dos céus e da terra.

— Vamos comer!

Não havia pauzinhos, naturalmente, então coloquei um grande bocado de arroz


na boca, usando o garfo.

— Aaaah… — Uma única lágrima escorreu pela minha bochecha.

Na minha vida anterior, minha paixão por arroz não conhecia limites. Era
basicamente para aquilo que eu vivia, ainda mais no final dos meus vinte anos; já
devia comer um pacote daquilo por dia. E, comparado com o arroz que comia
naquela época, essa coisa era péssima. De acordo com o sistema de classificação
de sabor japonês, não seria nem de Tipo C.

Entretanto, ainda era arroz. O bom e velho arroz de verdade.

Pela primeira vez na minha vida, realmente entendi que todo arroz era cozido
da mesma forma.

— R-Rudeus? Qual é o problema?

— Ah, não é nada… absolutamente nada! — Chorei silenciosamente enquanto


comia, dando minha melhor impressão de um soldado japonês que acabara de voltar
para casa depois de anos em um albergue na Sibéria. Cada mordida encheu minha
boca com o sabor familiar e reconfortante do arroz.

Ah, espera. Não tem muito, certo? Eu devia comê-lo com os


acompanhamentos…

Já era hora de provar o karaage. Com uma gananciosa apunhalada com o garfo,
espetei um pedaço de carne frita e o levei à boca.

— Mergh!

Minha alegria, na mesma hora, deu lugar ao choque.

Isso era carne frita, com certeza. Mas definitivamente não era karaage. O
revestimento estava úmido e oleoso; a carne estava seca e dura. E quanto mais eu
mastigava, mais forte ficava seu odor rançoso.
Na verdade, estava me deixando com náuseas.

Comecei a tremer de raiva. Você espera que eu… Você espera que eu coma
arroz com ISSO?!

Poderia comer o arroz puro, claro. Poderia comer infinitas porções, desde que
estivesse temperado. Sim, arroz branco temperado era tudo o que minha alma de
samurai realmente precisava.

Mesmo assim. Não consegui reprimir minha fúria. O karaage não era nada
menos que um ato de blasfêmia ao arroz.

— Quero ver o cozinheiro! Agora mesmo!

Quando o dono do restaurante saiu da cozinha todo ansioso, comecei fazendo


alguns elogios.

Em primeiro lugar, o pseudo-missô era bastante aceitável. Era uma sopa de


legumes simples e salgada, mas complementava muito bem o sabor característico
do arroz multigrãos. Combinados, esses dois pratos, por si só, serviriam quase como
uma refeição completa. Somente um artesão habilidoso poderia ter feito isso.

A maneira como ele cozinhou o arroz também foi impressionante. Parecia que
tinha usado a quantidade certa de água e a quantidade perfeita de calor. Também
era possível sentir o toque de um profissional veterano nisso. Cada grão que provei
fez com que uma lágrima se formasse em meus olhos. Se ele tivesse ido um pouco
mais longe e prestado mais atenção à qualidade da água que estava usando, teria
sido digno de uma nota perfeita. E eu estava perfeitamente disposto a presenteá-lo
com alguns megatons da deliciosa H2O da marca Rudeus. As coisas que eu
cuidadosamente conjurava do nada eram mais saborosas do que qualquer uma que
ele tiraria de qualquer lugar.

Com tudo isso dito, mudei para o tópico do karaage… ou melhor, a carne de
Dragão ao Estilo Nanahoshi.

Eu retalhei aquilo. Retalhei completa e brutamente.

Aquilo não era adequado para consumo humano. Como ousava servir algo
assim para um cliente? Ele tinha alguma ideia de quem eu era? Eu era Rudeus
Greyrat do grupo Fim da Linha, droga! O homem pagaria caro por este insulto!

Para encurtar a história, surtei com o cara, igual um chefe celebre com um
humor particularmente ruim faria naqueles programas de culinária. Em retrospecto,
nem tenho certeza de por que fiquei tão zangado. Talvez o fato de que ainda estava
com fome tivesse algo a ver com isso.
Eris e Ruijerd deviam ter pensado que perdi a cabeça. No final daquele episódio
horrível, tiveram que me arrastar para fora do lugar enquanto eu chutava e gritava.

Honestamente, fui longe demais. Meu amor por arroz levou o melhor sobre mim,
sim… mas isso não justificava algumas das coisas que falei. Especialmente porque
eu também era apenas um amador.

Este mundo não tinha os tipos de ingredientes que estavam disponíveis no


Japão. Até mesmo o óleo necessário para fritar a carne era de uma qualidade muito
inferior neste mundo. No final do dia, aprendi que algumas pessoas deste mundo
comiam arroz com acompanhamentos, e que fritar era uma coisa corriqueira. Essa
foi uma notícia fantástica. Então, por que diabos fiquei tão furioso?

Quando saímos do restaurante, o dono do lugar havia murchado


completamente e pude ver as lágrimas brilhando em seus olhos. Com certeza fui
um idiota infantil.

Vamos fazer melhor da próxima vez, Rudeus.

Ponto de Vista do Proprietário

Os negócios estavam indo de mal a pior.

Nos últimos anos, quase não recebi visitantes. Mesmo quando alguém acabava
aparecendo, nunca se tornava um cliente regular. Estava me afogando em cada vez
mais dívidas, sem poder fazer nada.

Para piorar, um cliente me atingiu com uma enxurrada de críticas. Pelo visto,
eu não estava deixando meu óleo quente o suficiente, ou prendendo umidade
suficiente na carne. Ah, e deveria ter adicionado tempero agridoce antes de colocar
o revestimento. No final de seu discurso, o menino me disse que até o tipo de carne
que eu estava usando era inapropriado.

Mas Dragão era a espinha dorsal do cardápio deste restaurante por centenas
de anos. O que deveria fazer se o problema era tão básico?

— Cara, isso me assustou de verdade…

Um homem que tinha uma forte semelhança com um bandido quebrou o silêncio
constrangedor. Seu nome era Shagall Gargantis, e vinha me importunando
implacavelmente há anos.
— Mesmo assim, acho que isso deve deixar as coisas bem claras, certo? Sua
comida é péssima o suficiente para que até uma criança ranhenta possa criticar até
não aguentar mais, cara.

Shagall tinha um sorriso feio estampado no rosto, como sempre. Quando sua
expressão estava séria, o homem ficava razoavelmente bonito e também não
parecia estúpido. Se ele fizesse as coisas certas, dezenas de subordinados
curvariam a cabeça por vontade própria. Mas, por algum motivo, o sujeito gostava
de se vestir como um bandido e zombar de mim.

Isso talvez fosse algum tipo de disfarce.

— Você está certo… mas…

— Olha, eu entendo por que você quer proteger algo que está em sua família
há gerações. A questão é que, entretanto, você não tem cabeça para os negócios.
Ou o poder para manter este lugar funcionando.

As palavras me acertaram como um soco no estômago. Ele tinha toda a razão.


Eu era um empresário sem esperança. E também não tinha nenhum talento como
cozinheiro. Minha comida era claramente horrível, já que não conseguia satisfazer
sequer uma criança daquelas.

— Dito isso, você tem habilidades reais em um campo diferente. Todo mundo
tem alguns empregos para os quais são mais adequados do que outros, não acha?

— Suponho que sim…

Não pude deixar de concordar. Toda a minha determinação finalmente


desmoronou, deixando apenas resignação em seu lugar.

— Tudo bem, você venceu. Vou fechar meu restaurante.

Este lugar foi fundado há 250 anos; havia passado de geração a geração de
minha família. Mas eu falhei em preservar esse legado.

Simplesmente teria que carregar essa desgraça comigo pelo resto dos meus
dias.

Naquele dia, o Alto General Shagall Gargantis do Reino do Rei Dragão


conseguiu recrutar um certo indivíduo… só para saber: Randolph Marianne, o Deus
da Morte, classificado em quarto lugar entre os Sete Grandes Poderes.

Por que Randolph de repente aceitou a oferta de Shagall, depois de anos de


recusas constantes?

Muito poucos saberiam a resposta para esta pergunta.


Capítulo 07,7 - Extra II –
A Morte de Ariel

Meu nome é Gustaf. Sou um humilde corretor de informações que mora na


cidade de Ars, capital do Reino Asura.

Quando digo “humilde”, isso não significa que não tenha uma opinião negativa
de mim mesmo. É justo dizer que sou muito bom no que faço, na verdade. Pelo
preço certo, posso descobrir qualquer coisa que queiram saber sobre qualquer coisa
que aconteceu dentro das fronteiras de Asura.

Um dia, não muito tempo atrás, ouvi um certo boato.

Era mais ou menos assim: A Segunda Princesa, Ariel Asura, foi assassinada
por assaltantes desconhecidos enquanto ia se matricular na Universidade de Magia
de Ranoa.

Sendo o cara inteligente que sou, rapidamente percebi que essa “notícia” estava
sendo deliberadamente espalhada pela cidade pelo Príncipe Grabel, o rival mais
acirrado de Ariel.

Há cerca de um mês, a princesa havia deixado Ars, aparentemente para estudar


no exterior. Sua partida foi tranquila. Dada sua popularidade com os cidadãos da
capital, qualquer tentativa de um grande desfile de despedida poderia ter ficado
totalmente fora de controle. Supostamente, foi por isso que escapou da cidade em
segredo. Sua comitiva, incluindo guardas e assistentes, contava apenas com
dezessete indivíduos. Era uma comitiva bem pequena para uma princesa real. Mas
como incluía o infame playboy Luke Notos Greyrat e o guarda-costas altamente
conspícuo conhecido como “Fitz Silencioso”, minha rede de informações logo me
trouxe a notícia de sua partida.

A essa altura, é claro, já proliferavam os rumores de que Ariel fora mandada


para um exílio após perder a luta pelo poder na corte real. E agora, poucas semanas
depois, tínhamos esse novo boato circulando.

Se a princesa realmente tivesse sido assassinada, a notícia se espalharia muito


rapidamente. Se houvesse alguma testemunha que pudesse nomear os
responsáveis, seria uma coisa, mas, em vez disso, tínhamos “agressores
desconhecidos” e uma fonte anônima. O fato de um boato tão frágil estar se
espalhando pela cidade tão rápido parecia prova suficiente de que estava sendo
espalhado de propósito.

Como provedor profissional de informações precisas, fiquei tentado a vasculhar


e descobrir a verdade. No entanto, a última coisa que queria era chamar a atenção
de qualquer nobre ardiloso responsável por esta situação, então decidi me manter
no escuro sobre isso.

Porém… um pouco depois que o boato sobre a morte de Ariel começou a se


espalhar, um certo indivíduo me fez uma visita.

Este homem sabia sobre mim e minha reputação como um corretor de


informações de primeira linha. E eu o reconheci como um servo de Pilemon Notos
Greyrat, líder da facção da Princesa Ariel entre a nobreza. Seu papel principal era
fornecer a seu senhor informações atualizadas. Claro, ele veio me ver disfarçado e
deu um nome falso, mas poderia muito bem não ter se incomodado com essas
coisas.

O sujeito parecia me considerar alguém suspeito e falou comigo de uma


maneira bastante condescendente. Quando finalmente disse que sabia exatamente
quem ele era, o homem abaixou a cabeça e me apresentou uma oferta de trabalho.

Especificamente, queria que eu descobrisse se a Princesa Ariel estava mesmo


morta.

Isso foi uma grande surpresa, sério. Eu nunca teria imaginado que os próprios
aliados de Ariel haviam perdido todo o contato com sua facção e nem mesmo
sabiam se ela estava segura. Até mesmo um cara inteligente como eu pode ficar um
pouco confuso de vez em quando. Inicialmente escolhi ficar longe de toda essa
bagunça… mas acabei decidindo aceitar o trabalho.

Por quê, me pergunta?

Bem, porque o dinheiro oferecido era muito bom, é claro.

Comecei refazendo os passos da Princesa Ariel.

Depois de deixar a capital, seu grupo viajou direto para o norte, em direção a
Ranoa. Considerei a possibilidade de ela ter fugido para uma direção totalmente
diferente depois de espalhar mentiras sobre a matrícula na Universidade de Magia,
mas não parecia ser o caso.

Enquanto seguia a trilha dela e reunia informações, logo ficou claro que um
grupo de perseguidores estava em seu encalço. Algumas pessoas relataram ter
visto pessoas suspeitas vestidas de preto bem na época em que o grupo da princesa
estava passando por sua cidade, e Ariel parecia ter perdido uma escolta ou duas
quando chegou à próxima cidade ao longo de sua rota.

Mas isso não foi inesperado. Se a viagem tivesse corrido bem, seus aliados não
teriam procurado freneticamente por notícias de sua segurança.

Apesar de perder um guarda após o outro, Ariel, no entanto, continuou seguindo


para o norte. Com sua comitiva reduzida a dez, finalmente alcançou o posto de
controle na fronteira norte. Era uma instalação sólida e bem protegida que
pressionava contra uma grande floresta ao sul do vale conhecido como Mandíbula
Superior do Wyrm Vermelho.

Neste lugar, consegui obter um testemunho útil de um homem que se lembrava


muito bem da chegada de Ariel.

Oficial de Controle da Fronteira

Depoimento de Smily Gatlin

Eu estava de péssimo humor naquele dia. Não que nos outros dias meu humor
fosse melhor. Afinal, na época, sentia que estava sendo completamente
desperdiçado em meu posto.

Hmm? Exatamente no quê eu trabalhava? Bem, meu trabalho era na maior


parte do tempo tedioso e chato. Eu verificava os passes de viajantes que
procuravam deixar o território Asurano. Às vezes, poderia revistar as pessoas ou
seus pertences enquanto procurava por contrabando. Mas, é claro, a grande maioria
dos que passavam por este posto de controle eram aventureiros, mercenários ou
mercadores que queriam fazer negócios no norte por algum motivo estranho. A
maioria dos mercadores tinham passes válidos, e os aventureiros tinham permissão
por simplesmente usar seus cartões da Guilda.

Bandos mercenárias e viajantes de primeira viagem precisavam passar por um


processo de inspeção formal antes que seus passes pudessem ser emitidos, mas
esse não era o meu trabalho. Eu simplesmente os encaminho para um oficial
diferente. E, a menos que fosse algum tipo de criminoso notório ou algo assim, os
documentos logo ficariam prontos. Não somos muito rígidos com essas coisas deste
lado do posto de controle. Afinal, muito mais pessoas querem entrar em Asura do
que sair.

Tecnicamente, também sou responsável por impedir criminosos que tentam


cruzar a fronteira usando documentos falsificados, mas o trabalho bruto também não
é meu departamento. Os soldados é que lidam com problemas dessa natureza.

Como falei antes, no entanto, normalmente não é muito difícil conseguir um


passe, a menos que seja um grande criminoso. Pessoas desse tipo geralmente
estão na lista de procurados. Em vez de correr o risco de visitar um posto de
controle, recorrem a contrabandistas para fazer a travessia. E, claro, caçar e
erradicar redes de contrabando também não estava na minha descrição de trabalho.
Eu achava meu trabalho muito enfadonho e completamente inútil. Não importa
o quanto tentasse, sabia que nunca ganharia nenhum reconhecimento. A ideia de
envelhecer neste lugar me deixava totalmente infeliz.

O fato de eu não ser muito amigável com os soldados, que eram essencialmente
meus colegas de trabalho, também não ajudava muito. Os considerava imbecis e
eles pensavam em mim como um viadinho patético com um ego enorme. O fato de
nossas cadeias de comando estarem separadas só piorava as coisas.

Eu era um homem formado em uma prestigiosa academia aristocrática da


capital. Meus talentos estavam claramente sendo desperdiçados neste fim de
mundo… ou assim acreditava.

O grupo da Princesa Ariel chegou por volta do meio-dia, se bem me lembro.

A princípio, tudo que vi foi uma luxuosa carruagem de dois lugares


acompanhada por sete guardas a pé. Contando o motorista na frente e os dois
passageiros em potencial dentro, parecia ser um grupo de dez.

Meu pensamento inicial foi que um aristocrata estava se envolvendo em algum


tipo de expedição turística. No entanto, essa era a fronteira do Reino. Além desse
posto de controle, ficavam apenas as perigosas terras estrangeiras conhecidas
como Territórios Nortenhos, infestadas por neve e monstros. Os nobres às vezes
passavam a caminho de lugares distantes, mas sempre traziam pelo menos três
carruagens e vinte guardas ou mais. Talvez pudessem se contentar com menos se
contratassem um bando de aventureiros de elite, mas esse grupo não me pareceu
um de guerreiros endurecidos pela batalha. Todos estavam vestidos para pegar a
estrada, mas alguns claramente não estavam acostumados a longas viagens, e
outros pareciam um tanto quanto magros para serem guarda-costas.

Então talvez não fosse uma viagem turística. Seria possível que tivessem algum
negócio neste próprio posto de controle? Não seria bom descartar a possibilidade
de uma inspeção surpresa de algum lorde de alto escalão.

Por enquanto, decidi proceder como de costume.

— Posso ver seu passe, por favor?

— Aqui está.

A resposta à minha pergunta veio de um jovem que estava à frente do grupo.


Ele era incrivelmente bonito, até mesmo aos meus olhos, mas havia sinais claros de
exaustão em seu rosto. Os círculos escuros sob seus olhos se destacavam muito.

Foi neste momento que senti, pela primeira vez, que poderia haver algo
estranho acontecendo.

Não havia problemas com o próprio passe. Era um documento genuíno emitido
pelo Reino Asura, carimbado com uma marca válida da família Notos. Tudo estava
em perfeita ordem. Eu normalmente teria acenado para eles passarem através do
portão sem nem pensar duas vezes.
Mas algo no rosto do jovem bonito me fez hesitar. Eu poderia jurar que já tinha
o visto em algum lugar. Em retrospecto, isso acontecia porque se tratava de Luke
Notos Greyrat, o famoso cavaleiro guardião da Princesa Ariel. Suponho que não
poderia o reconhecer, já que nunca tinha o visto de tão perto.

Em todo caso, criei o hábito profissional de deter qualquer pessoa que me


parecesse vagamente familiar. Afinal, a maioria dos rostos que eu memorizava eram
de representações de criminosos procurados.

— Minhas desculpas, mas posso dar uma olhada no interior de sua carruagem?

Com minhas palavras, vários soldados que estavam parados ao redor do posto
de controle se moveram para bloquear as saídas. Não éramos muito amigáveis, é
verdade, mas sempre cumpriam seus deveres em momentos assim. Vários dos
guardas ao redor da carruagem ficaram visivelmente tensos com esse
desenvolvimento. Eu me enrijeci um pouco, me perguntando se realmente estava
lidando com alguma gangue perigosa.

O belo jovem balançou a cabeça lentamente.

— Devido a certas circunstâncias extraordinárias, o passageiro deve seguir com


total privacidade.

Não havia nenhuma maneira de que isso funcionasse, é claro.

Quando repeti minha exigência em termos um tanto mais duros, o rosto do


jovem se contorceu em uma careta amarga. Vários de seus companheiros – aqueles
que pareciam mais acostumados a viajar, especificamente – também olharam para
mim e colocaram as mãos nas espadas que carregavam. Seus movimentos não
eram tão rápidos quanto os de guerreiros mestres, mas tive a sensação de que
haviam experimentado sua porção de combates.

Principalmente o garoto de cabelo branco e estatura baixa que estava bem atrás
do belo líder. Ele, na verdade, era bastante intimidante. A única arma que carregava
era uma varinha do tipo que os iniciantes usavam para praticar magia básica, mas
algo sobre a maneira como se portava sugeria que era um lutador verdadeiramente
letal e com a cautela de um veterano experiente. Suponho que devia ser o tal de
“Fitz Silencioso”. Acho que nunca senti tanto medo de um menino com menos da
metade da minha idade.

Minha experiência me disse que um grupo como esse poderia causar danos
significativos à nossa guarnição. Deveria ordenar aos soldados que os prendessem,
ou havia alguma outra opção?

Enquanto eu hesitava, alguém falou de dentro da carruagem.

— Pare com isso, Luke.

Era uma voz de ouro. O som disso transformou meu cérebro em mingau. Havia
algo quase hipnótico nela, acredito. Naquele momento, realmente desejei ouvir
aquilo para sempre.
Era uma voz que já tinha ouvido antes – uma que reconheci.

Tinha ouvido isso dez anos antes, na cerimônia de formatura da minha


academia na capital, quando certa pessoa fez um discurso congratulatório ao nosso
orador. Por mais breve que tenha sido o discurso, nunca o esqueci. Nunca. Naquela
época, acho que quase todos os graduados do local se amaldiçoaram por não terem
estudado mais.

— Esses homens estão simplesmente sendo diligentes em seus deveres.

Quando a porta daquela carruagem foi aberta, senti um enorme arrepio correr
pela minha espinha.

Não poderia a esquecer, mesmo se tentasse.

Eu me lembrava claramente, mesmo agora, da jovem princesa que compareceu


à nossa cerimônia de formatura como uma convidada de honra. Lembrei-me da
alegria que senti com a perspectiva de servi-la e servir a este reino. Lembrei-me de
como me senti privilegiado por ingressar nas tropas deste país orgulhoso.

Vou me lembrar dela até o dia da minha morte.

— M-minhas desculpas, Vossa Alteza…

Mesmo quando criança, aquela princesa de cabelos dourados era


deslumbrantemente linda, e agora estava diante de mim, muito mais linda do que
antes. Caí sobre um joelho na mesma hora, incapaz de pensar em qualquer coisa.

Não podia haver dúvidas a este respeito. Esta era a Segunda Princesa do Reino
Asura, Ariel Anemoi Asura – a mais amada da família real, que regularmente
aparecia em eventos ao redor da capital e defendia seus cidadãos. Muitos dos
soldados presentes já deviam ter ao menos a vislumbrado em algum momento do
passado. Mas com certeza foi a primeira vez que qualquer um de nós a viu de tão
perto.

— Não há necessidade disso. Pelo que me lembro, existe uma lei que determina
que ninguém servindo em um posto de fronteira precisa se ajoelhar no desempenho
de suas funções normais.

Com essas palavras, a princesa saiu de sua carruagem.

Quase todos os soldados ao nosso redor seguiram meu exemplo e se


ajoelharam. Mas, como a Princesa Ariel apontou, salvo algum tipo de circunstâncias
especiais, ninguém em serviço deveria se ajoelhar. Não sei o motivo exato, mas há
muitos e muitos anos já era assim. Desde que comecei a trabalhar neste lugar,
nunca me ajoelhei diante de ninguém, não importa sua posição. Esta também foi a
primeira vez que vi algum dos soldados fazer isso. E ninguém jamais nos
repreendeu ou desafiou por essas questões.
Mas é claro que o fato de não ser obrigatório não significava que fosse proibido.
Ficamos como estávamos e inclinamos nossas cabeças para Ariel. Simplesmente
parecia ser o que deveríamos fazer.

— P-Princesa Ariel, eu… sinto que é meu dever perguntar… por que você veio
para uma travessia de fronteira como esta com um séquito tão pequeno?

— Não consegue dizer só de olhar?

Eu sabia que algo estranho estava acontecendo, é claro, e quando procurei


minha memória com base no que Ariel disse, um evento de cerca de um mês antes
da ocasião passou pela minha mente.

O indivíduo no comando geral deste posto de controle não era eu, é claro, nem
meu superior direto, o Oficial Sênior de Controle de Fronteira. Era um nobre que
também servia como prefeito de uma cidade próxima, o lugar mais próximo onde os
viajantes podiam encontrar hospedagem. O homem poderia passar meses sem dar
as caras, mas aparecia para nos dar algumas ordens quando sentia necessidade.

Em sua última visita, ele nos disse: “Nos próximos meses, alguém muito nobre
pode acabar fazendo uma visita.” Com base na frase “alguém muito nobre”, imaginei
que isso envolveria dezenas de carruagens cercadas por enxames de atendentes,
então nem me lembrei do incidente até que realmente vi a princesa.

— Disseram-me que alguém muito nobre poderia estar chegando, sim…

— E foi só isso que lhe disseram?

Sua pergunta fez minhas memórias daquele momento ficarem ainda mais
claras. O homem havia, de fato, continuado: “Esta pessoa provavelmente tentará
cruzar a fronteira e fugir para o norte. No entanto, você não deve permitir isso.
Encontre um motivo para atrasar o grupo e manter todos esperando na cidade por
vários dias.”

Recebi ordens para não permitir a travessia. Para detê-la aqui.

Em outras palavras, para garantir sua morte.

Não era a primeira vez que recebíamos um pedido do tipo. Era relativamente
comum que nobres que cometeram erros graves na capital tentassem fugir para o
norte e, em tais casos, o comandante nos daria instruções semelhantes. Às vezes,
diziam-nos para deixá-los passar, e chegariam em segurança ao norte. Mas, às
vezes nos diziam para atrasá-los um pouco e, inevitavelmente, “desapareceriam” na
floresta logo além da fronteira.

Nasci e fui criado na capital, mas sou plebeu de nascimento. Sei muito pouco
sobre a corte real e suas facções. Claro, estava ciente de que a nobreza como um
todo estava constantemente envolvida em violentas lutas pelo poder. Percebi que
meu superior não estava condenando certos fugitivos em troca de dinheiro, muito
menos ao acaso. Aqueles que sobreviviam sem dúvida pertenciam à sua facção da
aristocracia, enquanto aqueles que morriam eram leais aos seus inimigos.
Essa adorável jovem princesa havia perdido uma luta contra os aliados de meu
supervisor e agora estava fugindo. Essa parecia, de longe, a possibilidade mais
provável.

— Qual o problema? Me responda.

Por um momento, fiquei perdido em pensamentos.

Seria fácil sorrir abertamente e responder “Não. Disseram-me simplesmente


para tratá-la com a maior cortesia. No entanto, parece haver algumas pequenas
irregularidades no seu passe. Pode demorar um pouco para resolver isso, então
poderia voltar amanhã?” No passado, fiz sempre assim. Encontrar algum pequeno
detalhe para justificar um atraso não me representaria nenhuma dificuldade.

Mas, ao mesmo tempo, me perguntei se isso era o que deveria fazer.

Qual era o propósito do meu trabalho, preso a este ponto de fronteira


monótono?

Certamente não estava “servindo ao meu país” de maneira apreciável. A própria


ideia era absurda. Tal pensamento nunca passou pela minha cabeça, sequer uma
vez, mesmo em todo o tempo que já desempenhava o cargo.

E, ainda assim, apesar de todo o meu cinismo, houve um momento solitário em


minha vida em que senti um verdadeiro dever patriótico. Como mencionei antes, foi
na minha cerimônia de formatura, quando vi a Princesa Ariel pela primeira vez.
Naquele dia, realmente me considerei uma pequena parte de um grande e orgulhoso
país. A ideia de servir a minha nação e a ela me deu alegria.

Agora que me lembrava desses sentimentos, tinha que me perguntar: Será que
estava realmente disposto a recuar e deixar essa jovem princesa ser entregue ao
seu destino?

A resposta decisiva surgiu de imediato. Não senti necessidade de hesitar.

— Disseram-me para parar aquele nobre aqui e garantir que passasse vários
dias à espera na cidade vizinha.

Todos os guardas da princesa reagiram a essas palavras, mas a própria Ariel


permaneceu totalmente calma e imperturbável.

— Entendi. Então, o que pretende fazer?

— Nada em especial.

— Você não vai cumprir suas ordens? Não importa o quão estranhas possam
ser, ignorá-las pode te fazer perder a cabeça.

Eu não pude deixar de rir suavemente com a franqueza de suas palavras.


— Minhas ordens, senhorita? Não tenho certeza do que você está falando.
Nunca ouvi falar de qualquer “pessoa muito nobre” indo para um país estrangeiro
com uma única carruagem surrada e menos de dez guardas.

— Oh?

— No momento, estou lidando com uma jovem bastante pomposa cujo nome
eu nem sei. Se importaria de me dizer quem você é, aliás?

A Princesa Ariel riu com o que parecia ser uma diversão genuína. Talvez
estivesse gostando dessa farsa quase tanto quanto eu.

— Sou Ariel Canalusa. A única filha de um nobre de baixo escalão, na verdade.

— Muito bem então, Senhorita Canalusa. O que a traz para o norte?

— Estou viajando para Ranoa para me matricular na Universidade da Magia.

— É mesmo? Bem, não vejo problemas com o seu passe, por favor, prossiga.
Que tenha uma viagem segura.

— Obrigada.

Com uma pequena reverência graciosa e inconfundivelmente real, a princesa


Ariel voltou para a carruagem. O cocheiro pôs os cavalos em movimento na mesma
hora, e seus guardas correram ao lado, parecendo um tanto perplexos.

— Então. Quem é o próximo da fila?

Quando essas palavras saíram da minha boca, percebi que vários olhos
estavam fixos em mim. Na verdade, praticamente todos os soldados da área
estavam olhando na minha direção.

Me peguei me perguntando se tinha sido muito precipitado quanto a isso.

Todos esses homens eram fiéis aos seus deveres. Eles não eram como eu –
eram lutadores estúpidos que foram treinados na capital para acatar ordens como
algo absoluto, sem nunca pensar duas vezes. Enquanto estavam tecnicamente sob
meu comando neste posto de controle, no final das contas eu pertencia a um
departamento completamente diferente. Era perfeitamente possível que seus
próprios superiores tivessem ordenado para que não deixassem Ariel passar. Nesse
caso, minha desobediência resultaria em consequências para todos. Já que a
Princesa era um alvo de alta prioridade, não seria nenhuma surpresa se seus oficiais
tivessem mandado um recado para os soldados rasos, falando que ela poderia estar
chegando.

Me preparei da melhor forma possível. Parecia plausível que esses homens me


espancariam até ficar azul para só depois expor o que eu havia feito. Afinal, permitir
a travessia foi uma decisão unilateralmente minha.
Enquanto mordia meu lábio, um dos homens se aproximou de mim sem pressa.

Era o capitão de todos os soldados no pátio. Seus ombros eram, aliás, quase
três vezes mais largos que os meus.

Ele ergueu a mão, larga e pesada como uma frigideira… e então bateu nas
minhas costas.

Cambaleei para frente, mas, para minha surpresa, quase não senti dor.

— Bom trabalho, amigo.

No momento em que seu capitão falou essas palavras, os outros soldados


ergueram os punhos no ar e rugiram em aprovação. Alguns até mesmo piscaram
para mim.

Embora eu só tenha descoberto isso mais tarde, praticamente todos os


soldados que trabalhavam neste posto de controle eram fãs leais da Princesa Ariel.
Parece que ela também tinha o hábito de frequentemente aparecer mas cerimônias
de formatura do exército. A maioria deles só a tinham ouvido falar algumas breves
palavras, mas eu não estava em uma situação diferente. Conseguia compreender
muito bem como se sentiam.

— Permissão para falar livremente, Oficial Gatlin? Todos nós acabamos


perdendo a cabeça com a frustração por sermos abandonados aqui, mas, pela
primeira vez em anos, você nos deixou de bom humor! Não é mesmo, rapazes?

— Isso aí!

— Apareça na taverna da cidade nesta noite, certo? Eu pago!

Quando o capitão me deu mais um tapinha nas costas, senti uma sensação
muito peculiar tomando conta de mim. Até alguns minutos atrás, pensava nessas
pessoas como… diferentes de mim em um nível fundamental, sabe? Me convenci
de que eram um bando de bandidos caipiras e burros, e não súditos leais da família
real. Mas não era o caso. Assim como eu, foram jogados no meio do nada e
orientados a obedecer algum bastardo maldito. Assim como eu, também estavam
de saco cheio.

E, depois que percebi isso… estranhamente, comecei a sentir algum orgulho


do meu trabalho.

Desde aquele dia, tenho me dado bem com os soldados, e meu trabalho me
trouxe um verdadeiro prazer.

Tudo graças à Princesa Ariel, sem dúvida. Simplesmente por agraciar este
posto de controle com sua presença, ela o tornou um lugar muito mais feliz.

Depois disso, o Oficial Gatlin fez um longo discurso sobre a profundidade de


sua adoração pela Princesa Ariel, que optei por omitir.
Bem. Por mais que eu gostasse de ouvir o Oficial Gatlin elogiando a Princesa
Ariel e a elevando aos céus, não era esse o motivo exato pelo qual estava falando
com ele.

— Será que um grupo de homens vestidos de preto passou por este posto de
controle em sua perseguição?

Com essa pergunta, a expressão do homem mudou repentinamente para uma


mais sombria.

— Eles não estavam… exatamente em busca dela, eu acho.

— Como assim?

— Um grupo de pessoas suspeitas passou pelo posto de controle talvez três


dias antes da chegada da Princesa Ariel. Naquele dia eu não estava em serviço,
então só fiquei sabendo disso algum tempo depois.

Isso foi interessante. Se os inimigos de Ariel tinham cruzado a fronteira primeiro,


provavelmente estavam esperando para emboscá-la quando deixasse o país.

— Se eu soubesse, poderia pelo menos ter avisado… mas, neste momento, só


posso orar por sua segurança.

— Entendi. Muito obrigado.

O Oficial Gatlin claramente não tinha ouvido o boato de que a princesa já estava
morta. Parecia que a história nasceu na capital.

No entanto, isso por si só não era suficiente para me dizer se Ariel estava viva
ou morta.

Decidi continuar coletando informações. O que eu tinha no momento estava


aquém do que precisava para concluir este trabalho.

Conversei com os demais oficiais no posto de controle e tentei dialogar até


mesmo com alguns soldados. Em seguida, fui até a cidade vizinha e tentei encontrar
pessoas que pareciam cruzar a fronteira regularmente.

Precisava saber o que aconteceu com Ariel. Ela conseguiu ficar inteira após
atravessar a floresta? Ou tinha morrido, assim como diziam os rumores? Corri pela
cidade inteira em busca de alguém que pudesse me dar a resposta… e finalmente
encontrei um certo jovem comerciante com uma história para contar.

Depoimento de Bruno, o Mercador


Naquele dia, eu estava ocupado trazendo minhas mercadorias para o sul, para
Asura, assim como sempre. Desci pela Mandíbula Superior do Wyrm Vermelho e
estava seguindo a única estrada que passa pelas Patilhas Wyrm… Hein? Ah, certo.
Sim, é assim que todos daqui chamam a floresta ao norte. Mas não sei quem foi que
inventou isso.

De qualquer forma, eu estava transportando uma carga de… hmm. Não consigo
me lembrar direito o que era. Provavelmente algumas peles que você só consegue
pegar lá nos Territórios Nortenhos, eu acho.

O quê? Não, era só eu.

Guardas? Pareço ter dinheiro para contratar guardas? Sou bastante bom em
uma luta, sabe. Aliás, já passei até algum tempo treinando no Santuário da Espada.
Err, do que estávamos falando mesmo?

Certo, certo. Eu estava descendo pelas Patilhas Wyrm. Estava sozinho com
meu amigo Robinson.

Hm? Você quer saber onde ele está? Heh. Nos estábulos. Infelizmente não
aceitam burros aqui. De qualquer forma, nós dois estávamos tendo um desempenho
decente. Eu estava de bom humor, pelo que me lembro. Os negócios estavam indo
bem e quase economizei dinheiro suficiente para comprar uma carroça. Até uma
daquelas pequenas que usam em burros servem para mover muito mais coisas de
uma vez, sabe? Essa era uma perspectiva realmente excitante.

Mas então ouvi o som de metal batendo vindo de algum lugar à frente, e meu
humor piorou na hora.

Não era só o som. Eu podia sentir um cheiro suspeito no ar. Já ganhei a vida
como comerciante por um bom tempo, sabe? Por isso tenho um olfato excelente
para o perigo.

Evitar problemas é sempre bom, claro. Mas, como disse, só há um caminho


através das Patilhas, e eu não poderia simplesmente voltar atrás. Decidi ir para a
floresta com Robinson e seguir pela borda. Sabia que seria mais inteligente
simplesmente deixar o burro para trás, mas ele é meu amado parceiro de negócios,
certo? Não podia arriscar que fosse devorado por um monstro ou algo assim.

De qualquer forma, eu e ele começamos a nos mover pela floresta, garantindo


que ficaríamos escondidos. O som de metal colidindo ficava mais alto à medida que
avançávamos, e comecei a ouvir até o grito das pessoas. Robinson estava um pouco
assustado, mas nós estávamos juntos, então ele ficou manso e quieto. Já passamos
por altos e baixos juntos, sabe?

O que foi?

— Chega de falar sobre o burro, diga-me, o que você viu?

Cara, você é bem impaciente… Mas, tá bom, tanto faz.


Quando espiei a cena por trás da vegetação rasteira, a primeira coisa que notei
foi uma carruagem. Bem, não era tão grande assim para uma carruagem.
Provavelmente estava carregando três pessoas, isso se formos contar com o
cocheiro. A maioria das desse tamanho usa só um cavalo, mas naquela estavam
usando dois, então provavelmente era uma personalizada.

Hmm? Ah, quer saber por que sei tanto sobre isso? Bem, estou tentando decidir
qual carroça comprar para o meu burro, certo? O vendedor de carruagens me
explicou um pouco sobre toda a linha dele, e… Tá, tá, tá bom. Você não tem que
ficar olhando pra mim desse jeito, cara! Vou voltar ao assunto.

De qualquer forma, logo percebi que a carruagem foi atacada. Digo, ela estava
tombada, e alguns caras que pareciam guardas estavam lutando com um monte de
outros caras usando roupas pretas. Quando cheguei lá, eram sete caras de preto
enfrentando quatro guardas. Dois guardas, ou talvez servos, já estavam caídos no
chão. Ah, e também havia quatro garotas escondidas perto da carruagem, tremendo
muito. Provavelmente estavam sendo vítimas de um ataque.

Os caras das roupas pretas tinham maiores números, mas não parecia que
estavam na vantagem nem nada do tipo. Afinal, muitos deles estavam caídos no
chão. Já devia ter uns doze deles caídos. Eu fiquei meio pasmo, na verdade. Fiquei
pensando no tipo de gente idiota que enviou um bando de amadores desajeitados
para cuidar de um trabalho desses.

Entretanto, entendi tudo errado. Quando olhei com um pouco mais de atenção,
percebi que os caras de preto não eram nada ruins. Eram, no mínimo, mais
habilidosos que os guardas. Em uma luta justa, no mano-a-mano, com certeza
ganhariam.

Hein? Quer saber como sou capaz de dizer isso? Presta atenção. Como eu
disse, sou um espadachim melhor do que você imagina. Quando vejo alguém
lutando, posso dizer o quão forte é.

De qualquer forma, tudo aquilo me pareceu muito estranho, então acabei


parando para assistir a batalha. E depois de alguns segundos, percebi que um cara
do lado dos guardas era habilidoso demais. Era uma criança de cabelo branco,
sabe? Bem magrinha, e só usava uma varinha mágica de iniciante. Mas, por alguma
razão, estava em um nível totalmente diferente do resto.

De volta ao Santuário da Espada, vi alguns caras que estavam se tornando


Santos ou Reis da Espada. E, deixe-me dizer, parecia que o tempo passava dez
vezes mais devagar para eles. Não tinham apenas um trabalho de pés rápido;
podiam fazer julgamentos adequados em um piscar de olhos. O menino não era tão
bom assim, mas eu posso dizer que ele tinha uma consciência absoluta e excelente
do campo de batalha. Sempre que um de seus amigos estava em perigo, lançava
um feitiço no momento perfeito e salvava o traseiro de todos.

Ah, e ele também só estava usando feitiços de nível Iniciante. Acho que estava
tentando preservar mana. E estava fazendo um trabalho divino, sério. Um mago
comum não conseguiria fazer uma coisa daquelas nem em um milhão de anos.
Sabe, a pessoa precisa ser muito bem treinada, de uma forma bem específica, para
fazer as coisas daquele jeito.

Bem, e de onde eu estava, não conseguia ouvir nem os encantamentos. Acho


bem possível que fossem feitiços não verbais… sabe, aquelas magias sem
encantamentos. Nunca vi aquilo antes, mas acho que tem gente por aí que
consegue fazer isso.

De qualquer forma, foi impressionante. Mas acho que os caras de preto se


adaptaram ao estilo depois de vê-lo derrubar metade do time. E, além disso, parecia
que os guardas estavam muito cansados. Em outras palavras, a luta estava mais
equilibrada do que pensei. Senti que, assim que um único homem de qualquer um
dos lados caísse, estaria tudo decidido.

Mas, no geral, acho que os caras de preto estavam mais organizados. De


repente, mudaram toda a estratégia. Deviam ter se comunicado com sinais, mas eu
com certeza não percebi.

Até aquele ponto, estavam adotando uma abordagem direta de dois contra um,
contra os três guardas da linha de frente, com um outro cara ajudando quem parecia
precisar. Do nada, os sete se retiraram e foram na direção do garoto de cabelo
branco.

Os três espadachins não conseguiram reagir a tempo. Mas a criança sim. De


alguma forma, mantendo seu foco, imediatamente lançou um feitiço em área que
matou dois inimigos de uma só vez.

Nesse ponto, os caras de preto se espalharam. Dois deles seguiram em direção


ao menino de cabelo branco, e os outros três correram direto para as garotas perto
da carruagem. Acharam a oportunidade que queriam para romper a defesa dos
guardas.

Mas o mago de cabelo branco ainda conseguiu reagir. Sem nem mesmo olhar
para os dois assassinos caindo sobre ele, o garoto apontou sua varinha para os que
estavam indo até as mulheres. Inacreditável, né? Normalmente, qualquer um ficaria
mais preocupado com a própria vida.

No instante seguinte, aconteceram várias coisas de uma só vez.

Primeiro, o garoto de cabelo branco lançou um feitiço desagradável que matou


dois dos assassinos que estavam atacando as garotas.

Em segundo lugar, dois dos guardas correram para interceptar os dois caras de
preto que foram atrás do garoto. Os quatro foram abaixo de uma só vez.

E, finalmente, o último dos homens de preto puxou uma das garotas assustadas
e trêmulas do grupo e cortou sua linda cabecinha fora.

Um instante tarde demais, o último dos espadachins o apunhalou pelas costas.


Orgulhosamente segurando a cabeça decepada de sua vítima, o homem morreu
com uma expressão satisfeita no rosto.
Suponho que ela era a jovem que os guardas lutaram tanto para proteger.

Os cinco sobreviventes ficaram lá, parados, em silêncio, completamente


atordoados. Compreensível, né? Digo, perderam a maioria de seus
companheiros e também a garota que queriam proteger.

Quando o show acabou, silenciosamente me movi pela floresta. Para começo


de conversa, existia a possibilidade de alguns monstros serem atraídos para a área
graças ao cheiro de sangue. E eu realmente não queria lidar com eles me pedindo
ajuda. Robinson e eu demos no pé na mesma hora.

E essa foi toda a história de Bruno.

Em combinação com o que eu descobri com o Oficial Gatlin, parecia que a


Princesa Ariel havia passado em segurança pelo posto de controle, apenas para ser
emboscada na floresta ao norte, onde os assassinos tiraram sua vida durante uma
batalha violenta.

Afinal, os rumores eram verdadeiros. Assim como os nobres de sua facção


temiam, Ariel estava morta.

Ainda assim, havia alguns mistérios restantes.

Por exemplo, o que aconteceu com os sobreviventes? Pelo que Bruno me


contou, cinco membros do grupo conseguiram superar a batalha. O estado de Luke
Notos Greyrat continuava desconhecido, mas ao menos o Fitz Silencioso ainda
estava vivo. Esse cara realmente se destacava na multidão, e eu não tinha ouvido
uma única palavra sobre ele voltando para sua casa na capital.

Havia uma chance de que tivesse seguido alguma rota secundária em vez da
que eu segui aqui, mas isso ainda implicaria em uma passagem pela fronteira.
Ninguém no posto de controle havia mencionado que ele voltou, então eu tinha que
pensar que continuou se movendo para o norte.

Mas isso não me parecia tão estranho assim. Seria preciso alguma coragem
para voltar para casa, em desgraça, após deixar a Princesa Ariel ser assassinada.
Talvez tenha decidido que seria mais inteligente fugir para os Territórios Nortenhos.

Se cruzasse a fronteira, não seria difícil descobrir se isso aconteceu mesmo, só


precisaria passar um tempo por lá, é claro… mas, infelizmente, meu campo de
especialização é “qualquer coisa dentro das fronteiras de Asura”. Não trabalho com
assuntos internacionais.

Além disso, meu trabalho era determinar o paradeiro da Segunda Princesa Ariel
Anemoi Asura. Seus guardas estavam fora do escopo dessa missão, então decidi
voltar para a capital real. Meu coração pertence à cidade, sabe? Não consigo ficar
confortável quando estou longe de casa.
Mesmo assim, consegui comprar uma bebida rara dos Territórios Nortenhos
com meu parceiro Bruno. Depois de terminar todo o trabalho, iria me presentear com
uma festinha particular.

Sério, mais alguém precisava ter visto a expressão de Pilemon quando relatei
minhas descobertas. Foi bom ver um homem que lidava com informações muito
acima do meu escopo ficar branco feito um fantasma por causa de alguns fatos que
relatei.

De qualquer forma, o caso foi oficialmente encerrado e recebi meu pagamento


integral.

Decidi fazer um bom jantar de comemoração para saborear minha pilha de


dinheiro, a bebida que comprei de Bruno e a lembrança do rosto do meu cliente.

Fui até meu bar favorito, pedi uma comida leve e me sentei para relaxar no meu
lugar de sempre. Sabe, ali de onde eu ficava, dava para ter uma boa visão do
ambiente todo; era basicamente a minha mesa pessoal.

Quando me concentrava o suficiente, conseguia ouvir todas as conversas aos


arredores. Esta era uma das minhas habilidades mais úteis. Quem quisesse ser um
corretor de informações de primeira categoria não poderia deixar nenhuma notícia
passar despercebida.

— Ouvi dizer que apareceu um boato de que a Princesa Ariel foi morta no norte,
hein?

— Sim. É uma pena. Eu era um grande fã…

— Vamos lá, não me diga que você acredita nessa merda.

— Bem, não é como se eu quisesse, mas…

Alguém estava falando sobre o assunto do momento, então olhei naquela


direção. Um cara de aparência robusta estava bebendo com um homem
significativamente mais velho. Claro, nenhum deles conhecia a verdade. Eram
apenas fantoches sem noção, dançando da maneira que os últimos rumores
desejavam.

O pensamento me deixou com um humor ainda melhor. Às vezes, é muito bom


ser um homem que está por dentro do assunto.

— Olha, estou estacionado no posto de controle perto da fronteira, sabe?

— É claro que eu sei disso, Tio. Você acabou de completar 20 anos de trabalho,
não foi? É por isso que te deram uma licença estendida.
— Que sabe-tudo. Também sabe o que eu faço naquele posto de controle?
Hm?

— Uh, não…

O assunto parecia estar se afastando de Ariel, então me vi perdendo o


interesse. Eu podia ver o barman dando os toques finais no meu pedido. Mas, o
caso foi encerrado, certo? Meu próximo trabalho seria encontrar a melhor maneira
de aproveitar essa bebida.

— Eu trabalho na torre de vigia.

Bem, assim fiquei interessado de novo.

— Bem no topo do posto de controle, temos um implemento mágico que nos


permite ver muito longe. Nós o usamos para ficar de olho no outro lado da floresta
ao norte, sabe? Eu sou o responsável por isso.

— Não brinca.

— De qualquer forma, a notícia se espalhou bem rápido depois que a Princesa


Ariel passou pelos portões lá embaixo. Todos os meus garotos da equipe de vigia
estavam morrendo de vontade de pelo menos dar uma olhada nela, então ficamos
olhando até ficarmos cansados.

— E-então o que houve? Você a viu saindo da floresta?

— Com certeza. Era a Princesa Ariel, sem dúvida.

Isso não pode estar certo, pensei comigo mesmo. Este velho soldado estava
mentindo? Ou será que Bruno tinha, por algum motivo, mentido?

Não parecia provável… mas era possível que Bruno tivesse entendido tudo
errado. Talvez a garota que o último assassino matou não fosse realmente a
Princesa Ariel. Pelo que eu ouvi, a família real Asurana possuía alguns instrumentos
mágicos extravagantes que podiam transformar alguém em um substituto perfeito.
Ela provavelmente usou um desses para sobreviver ao ataque.

Tirei a conclusão errada. Entreguei informações erradas. Isso não era bom.
Precisava obter uma confirmação desta história, então contar a verdade ao meu
cliente…

— Aproveite, parceiro. — O barman deixou minha comida na mesa.

Havia um prato de comida fumegante na minha frente e, ao lado, uma garrafa


de bebida rara que quase nunca se via em Ars.

— Ah, para o inferno com isso… — Eu meio que me levantei da minha cadeira,
mas optei por me jogar de volta nela. Se a princesa estivesse realmente viva e
matriculada na Universidade de Magia de Ranoa, a verdade iria se espalhar mais
cedo ou mais tarde. A última coisa que eu precisava era de algum nobre arrogante
me pedindo um reembolso, então simplesmente teria que deixar a capital em breve.

Mas, sério… Quem teria pensado que os vigias daquela torre poderiam tê-la
visto daquela distância? Até mesmo um cara inteligente como eu às vezes acaba
deixando alguma coisa passar, acho.

No final, o corretor de informações conhecido como Gustaf forneceu a seu


cliente informações enganosas.

Como resultado, Pilemon Notos Greyrat, o principal membro da facção Ariel, foi
compelido a fazer uma escolha dolorosa que o deixou em uma situação difícil… mas
essa é uma história para outra hora.

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